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Texto de pré-visualização
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Documentário e Cultura Histórica o sertão de trabalho e relações de classe em O País de São Saruê 1971 André Fonseca Feitosa João Pessoa 2014 F311d Feitosa André Fonseca Documentário e cultura histórica o sertão de trabalho e relações de classe em O País de São Saruê 1971 André Fonseca Feitosa João Pessoa 2014 215f il Orientador Elio Chaves Flores Dissertação Mestrado UFPBCCHL 1 Carvalho Vladimir 1935 crítica e interpretação 2Historiografia 3 Cultura histórica 4 Sertão e sertanejos representação 5 Sertão e documentário UFPBBC CDU 9302043 André Fonseca Feitosa Documentário e Cultura Histórica o sertão de trabalho e relações de classe em O País de São Saruê 1971 Orientador Prof Dr Elio Chaves Flores Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História do Centro de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal da Paraíba UFPB em cumprimento às exigências para obtenção do título de Mestre em História Área de Concentração em História e Cultura Histórica Orientador Prof Dr Elio Chaves Flores João Pessoa agosto de 2014 André Fonseca Feitosa Documentário e Cultura Histórica o sertão de trabalho e relações de classe em O País de São Saruê 1971 Aprovada em 2014 Banca Examinadora Prof Dr Élio Chaves Flores Orientador Prof Dr Severino Cabral Filho Membro externo Profa Dra Telma Dias Fernandes Membro Interno Prof Dr Damião de Lima Suplente A todos que já se dedicaram ou se dedicam à transformação da humanidade em uma realidade mais solidária e amorosa Em particular a meu pai Alberto Ronaldo Pinheiro Feitosa e meu mestre Giovanni da Silva Queiroz AGRADECIMENTOS Agradeço ao Programa de PósGraduação em HistóriaUFPB e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES pela concessão de bolsa de estudos que possibilitou o desenvolvimento desta pesquisa À orientação exemplar do professor Elio Flores cujas contribuições foram fundamentais Agradeço a meu pai Alberto Ronaldo Pinheiro Feitosa pelo carinho por me ensinar o gosto pelo conhecimento e pela solidariedade A Arthemisa Gadelha por todo o carinho e zelo de mãe Agradeço a Ramon Limeira Arruda pela amizade pelo incentivo a entrar em um curso universitário pelos filmes e pelos livros compartilhados a Giovanni Queiroz pela amizade e generosidade acadêmica a André Ricardo Dias Santos Famigerado Saulo Carolina Barros Madruga Daniel Santana e Amana Martins pela amizade e trocas intelectuais às aulas saudosas de Solange Rocha e Regina Célia Gonçalves Aos mestres especialíssimos Regina Behar e Romero Venâncio cuja paixão pelo cinema foram fundantes desse trabalho A Telma Dias Fernandes criatura afetuosa e agradável também dedico um agradecimento especial pelas aulas e atenção Agradeço ainda a André Ricardo Dias a Elton Bruno de Oliveira e a Lucas Ramalho cujos ombros afetuosos foram importantes por demais a amizade e aprendizado com Mateus Vicente e Vinícius Gouveia que me ajudaram a expandir os horizontes para a vida ao mestre Roberto Miranda Rávi pelo yoga na Estação Ciência namastê aos excolegas de trabalho que me apoiaram a fazer o mestrado Ana Lígia Norma Cavalcante e Cláudia Xavier a Paulo Alves por todo o carinho e pelo apoio nessa reta final Por fim reforçar meus agradecimentos a Giovanni Queiroz Carolina Madruga Daniel Santana André Ricardo Dias e Paulo Alves Amo muito vocês RESUMO Esta pesquisa pretende analisar aspectos da representação de sertão e sertanejos no documentário O País de São Saruê 1971 de Vladimir Carvalho relacionando o discurso fílmico a cultura histórica e política que o cineasta se inseria Nossa hipótese é que tais representações são construídas a partir do mundo do trabalho Palavraschaves Vladimir Carvalho Cultura Histórica representação O País de São Saruê Sertão e Documentário ABSTRACT This work analises the representation of backland and its people on the documentary O País de São Saruê 1971 of Vladimir Carvalho We relate the film discourse to the historic and politic culture around its film maker Our hypothesis is that these representaions are build based on work category Palavraschaves Vladimir Carvalho Historic Culture representation O País de São Saruê Documentary Sumário CAPÌTULO 1 Primeiras Palavras diretrizes da pesquisa 10 CAPÍTULO 2 O País de São Saruê documento e documentário 23 CAPÍTULO 3 Planificação O País de São Saruê na cultura e na política das décadas de 1960 e 1970 34 CAPÍTULO 4 A terra de São Saruê o espaço e os homens 75 CAPÍTULO 5 A política em O País de São Saruê sertão trabalho e exploração 118 CONSIDERAÇÕES FINAIS 175 REFERÊNCIAS 181 APÊNDICE Tabela de sequências de O País de São Saruê 191 ANEXO A Ficha técnica de O País de São Saruê cinematecagovbr 194 ANEXO B Material de áudio transcritos de O País de São Saruê música tema do filme cantoria do vaqueiro José de Arimatéia entrevistas com José Gadelha e com Antônio Mariz 196 ANEXO C Poesia de Jomar Morais Souto para O País de São Saruê 201 ANEXO D Cordel Viagem a São Saruê de Manoel Camilo dos Santos 209 ANEXO Filmografia de Vladimir Carvalho 212 10 Capítulo 1 Primeiras palavras diretrizes da pesquisa O historiador não exige que as pessoas acreditem em sua palavra sob o pretexto de ser um profissional conhecedor de seu ofício embora seja o caso em geral mas fornece ao leitor a possibilidade de verificar suas afirmações Antoine Proust Doze Lições de História Nossa pesquisa tem como objetivo identificar as matrizes de discursos e práticas em O País de São Saruê 1971 que permitiram a Vladimir Carvalho elaborar uma identidade para o sertão e seus habitantes Relacionamos o documentário ao contexto de produções culturais ligadas ao Partido Comunista Brasileiro nas décadas de 1960 e 1970 que fomentaram uma cultura política particular Identificamos no filme matrizes de representações compartilhadas por artistas comunistas à época Isso permitiu contextualizar a inserção do filme nas disputas simbólicas da época através da análise estética de seu discurso O País de São Saruê é um documentário do cineasta paraibano Vladimir Carvalho O filme se configura em um documento histórico e simultaneamente em um texto autoral com possibilidade de diálogo e problematização para a História Analisamos quais elementos do documentário em sua linguagem cinematográfica planos sequências narrativa fotografia etc indicam uma elaboração política e estética que se relacionam ao ideário político sobre a realidade camponesa nas décadas de 1960 e 1970 Nossa hipótese é que a representação do sertão e do sertanejo é feita a partir da categoria trabalho Nosso recorte histórico se inicia em 1966 quando ele realiza as primeiras filmagens de O País de São Saruê e vai até 1971 quando conclui o filme Vladimir Carvalho é um cineasta nacional de destaque Participou da produção do filme Aruanda 1960 clássico no cerne do surgimento do Cinema Novo e realizou diversos documentários sobre a Paraíba como Romeiros da Guia 1962 e O Sertão do Rio do Peixe 1968 O País de São Saruê foi seu primeiro longametragem e marcou sua cinematografia Depois realizou outros longasmetragens como O Homem de Areia 1982 Engenho Zé Lins 2007 também de temas regionais e outros sobre a realidade do Distrito Federal onde atuou como professor como Conterrâneos Velhos de Guerra 1990 e Rock Brasília Era de Ouro 20111 1 O País de São Saruê sofreu quase uma década de censura pelo regime militar sendo liberado após bastante polêmica e exibido com imagens defasadas em relação à época Apesar disso recebeu o prêmio especial do júri em 1979 Vladimir Carvalho ganhou ainda outros prêmios como de melhor filme na sua categoria no Festival de Brasília em 1990 com Conterrâneos Velhos de Guerra Um de seus recentes trabalhos Rock Brasília foi vencedor do Festival de Cinema de Paulínia em 2011 como melhor documentário e foi finalista 11 O País de São Saruê é um documentário de longa metragem filmado na Paraíba que pretende mostrar a realidade do sertão em geral suas características físicas sua população e sua origem histórica e social Exibe as principais economias do nordeste semiárido a criação de gado o cultivo do algodão e a exploração de minérios Apresenta o problema do subdesenvolvimento regional deslocando sua explicação climática para a questão fundiária Filmado com poucos recursos O País de São Saruê aborda estes temas econômicos de maneira bastante poética Sofreu censura durante anos e quando liberado pela censura do regime militar estava defasado tecnicamente em relação à época trazendo prejuízos para sua recepção pelo público Ainda assim é reconhecido como um importante filme da cinematografia brasileira No âmbito da História Cultural representação apropriação e cultura histórica Nosso trabalho se encaixa no âmbito da História Cultural e Política2 Essa historiografia teve um grande crescimento na década de 1970 e se tornou uma das maiores vertentes entre historiadores A história passou a valorizar grupos locais e períodos particulares e entender seus valores específicos BURKE 2005 p8 Este não é um domínio homogêneo havendo nele diversas propostas de abordagens e objetos3 Entre tais proposições o historiador Roger Chartier defende uma história das representações definida assim podese pensar uma história cultural do social que tome por objecto a compreensão das formas e dos motivos ou por outras palavras das representações do mundo social que à revelia dos actores sociais traduzem as suas posições e interesses objectivamente confrontados e que paralelamente descrevem a sociedade tal como pensam que ela é ou como gostariam que fosse CHARTIER 1990 p194 Assim procuramos compreender estas formas e motivos que descrevem como os atores em três modalidades no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2012 melhor longametragem documentário melhor montagem documentário e melhor trilha sonora 2 A ampliação de objetos com a História Cultural trouxe uma renovação para historiografia que pode trabalhar com novos objetos fontes e abordagens das mais diversas A arte o cotidiano práticas de leitura se tornaram objetos mais comuns na historiografia e mesmo a política teve uma grande ampliação de abordagens A política passou a ser vista não mais circunscrita no âmbito institucional mas no cotidiano no cinema na propaganda etc Um trabalho que possui pesquisas do político sob abordagens diversas é Por uma história Política 1988 organizado pelo historiador francês René Remond 3 Peter Burke em O que é história cultural 2004 aponta uma história da história cultural mostrando suas diversas tendências e abordagens Periodizando em clássica século XIX história social da arte 1930 a descoberta da história da cultura popular em 1960 e a nova história cultural na década de 1970 4 Rosa Maria Godoy Silveira 2007 em A cultura histórica em representações sobre territorialidades identifica três tendências intelectuais francesas sobre a questão representacional Moscovici representando a Teoria da Representação Social seus avanços e propostas de entender o macro e micro através das representações sociais e individuais Deleuze e Guattari que refutam o pensamento representacional abraçando a multiplicidade e a contingência e por fim Paul Ricoeur que assume o pensamento representacional mas de maneira diferente de Moscovici e com ressalvas ao pensamento historiográfico valorizando seu referencial o quê o discurso historiográfico aborda através de seus vestígios p3839 12 sociais enxergavam a realidade histórica que se inseriam Assim Vladimir Carvalho realizou uma representação do sertão revelando como ele o via e como gostaria que fosse e que analisamos a partir de seu lugar social O discurso fílmico de O País de São Saruê parte de certa matriz de entendimento da realidade camponesa e de uma utopia almejada por artistas naquela época Para nossa empreitada dois conceitos de Chartier foram importantes representação e apropriação Para ele as representações constituem matrizes de discursos e práticas diferenciadas que têm por objetivo a construção do mundo social e como tal a definição contraditória das identidades tanto a dos outros como a sua 1990 p18 A apropriação se refere à maneira como os sujeitos históricos assumem outros discursos para elaborar suas próprias representações Assim identificamos os discursos e influências para Vladimir Carvalho na criação de O País de São Saruê Elas por sua vez revelaram que o filme se inseria entre disputas ideológicas do entendimento da realidade brasileira e sertaneja uma economia simbólica De acordo com o sociólogo Pierre Bourdieu o poder simbólico permite evitar o confronto físico direto conseguindo o equivalente pela força de mobilização que exerce através de suas maneiras de dar determinada visibilidade ao mundo social Esse poder depende do nível de reconhecimento de um discurso tornando as representações um campo de embate de disputa e de dominação O reconhecimento se liga à ignorância do caráter arbitrário desse poder que legitima uma visão arbitrária enquanto verdade única embora exercido por grupos sociais específicos que incutem identidades nada inocentes5 Sobre isso afirma Chartier As lutas por representação têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo se impõe ou tenta impor a sua concepção do mundo social os valores que são os seus domínios Por isso essa investigação sobre as representações supõenas como estando sempre colocadas num campo da concorrência cujos desafios se enunciam em termos de poder e dominação CHARTIER 1990 p17 Entender as representações é importante para perceber os mecanismos pelos quais se legitimam práticas ações poderes e dominações como a produção de um documentário e quais seus objetivos O conceito ainda possui outros desdobramentos interessantes Em A Fabricação do Rei a construção da imagem pública de Luís XVI 1992 Peter Burke investiga a construção do 5 Na sua teoria do poder simbólico Bourdieu analisa as relações de poder nos instrumentos que estruturam a sociedade língua arte produção intelectual o lugar social as hierarquias etc Na sua concepção de representação e de identidade identifica ambas como imersas em um campo de disputa para instituir uma realidade uma maneira de compreender o mundo Assim as representações são enunciados performativos que pretendem que aconteça aquilo que enunciam 2010 p118 Elas se inscrevem em um campo de disputa no qual o poder simbólico é capaz de constituir o dado pela enunciação de fazer ver e fazer crer de confirmar ou de transformar a visão de mundo e deste modo a acção sobre o mundo portanto o mundo poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força física física ou econômica graças ao efeito específico de mobilização só se exerce se for reconhecido quer dizer ignorado como arbitrário BOURDIEU 2010 p14 13 imaginário sobre o Rei Sol e identifica que a representação podia significar o desempenho de alguém em uma situação representar seu papel uma imagem que traz de volta objetos ausentes à memória ou à ideia ou ainda se referir a tomar o lugar de alguém a exemplo dos secretários que podiam substituir o rei ou até pinturas moedas etc Representar era tomar o lugar de alguém ou de uma ação mesmo que de si por isso Uma vantagem do termo representação é que ele pode se referir não só aos retratos visuais ou literários do rei à imagem projetada nos meios de comunicação ou por eles mas também a imagem recebida a imagem de Luís na imaginação coletiva ou como dizem os historiadores e antropólogos franceses as representações coletivas da época A desvantagem da expressão representações coletivas pelo menos em inglês é dar lugar à suposição de que todos têm imagens idênticas do rei ou até de que existe de fato uma imaginação coletiva segundo o modelo do inconsciente coletivo de Jung BURKE 1994 p21 Assim uma representação representa tanto as imagens plásticas visuais quanto as projetadas culturalmente através de meios diversos como o cinema Ao se elaborar uma representação buscase substituir representar uma determinada realidade pelo seu simulacro O País de São Saruê não é diferente e procura falar em nome de uma realidade o sertão brasileiro substituindo o real pelo referente sua representação como as pinturas de Luís XIV dada as proporções6 Como indicado por Burke as representações são coletivas e mesmo admitindo uma construção autoral do cineasta reconhecemos no filme imagens e discursos partilhados coletivamente à época tornandose parte desse tempo e de sua cultura histórica Aliás para Proust uma época tem um determinado vocabulário histórico em articulação com um sistema de representações que possibilitam os códigos para elaboração de textos7 A realidade camponesa no documentário igualmente se inscreve em uma moldura histórica8 Analisamos o filme a partir da identificação desse sistema de representações permitindonos historicizálo pelos temas que eram recorrentes na produção cultural de artistas de esquerda da época Trabalhamos portanto com um objeto da cultura histórica 6 São linguagens suportes e contextos evidentemente diferentes Aliás o cinema o faz de maneira mais eficiente uma vez que no cinema há uma coincidência entre referente e referencial efeito de realidade que permite maior grau de credibilidade à imagem cinematográfica como indicaremos no capítulo seguinte 7 O mesmo se aplica ao cinema que também se serve dessas fontes e que pode ser entendido pelas disponibilidades técnicas e linguísticas que lhe são próprias mas igualmente históricas 8 De forma mais geral qualquer texto servese do código de determinado sistema de representações que por sua vez utiliza determinado vocabulário Um relatório de presidente departamental ou regional da época da Restauração sobre a situação política e social de um departamento rural era inconsciente e imperceptivelmente distorcido por sua representação dos camponeses ele os observava de acordo com sua expectativa e conforme sua representação prévia lhe permitia acolher eventualmente ele menosprezava o que não estava inscrito no interior dessa moldura A interpretação de seu relatório supõe portanto que o historiador esteja atento ao sistema de representações adotado no interior dessa moldura assim para a interpretação dos textos tornase indispensável levar em consideração as representações coletivas PROUST 2008 p61 14 situandoo em uma moldura que tanto possibilitava leituras quanto as direcionava até certo ponto Aqui tornase evidente que essa representação adentra o campo da cultura política no qual os sujeitos usam seus conhecimentos e ações para influir nos rumos da história O País de São Saruê foi um filme realizado com vontade de transformar o meio social a partir de concepções e desejos oriundos de uma identidade social e política de Vladimir Carvalho História cultural cultura política cultura histórica e cultura cinematográfica Para essa espécie de onipresença da cultura neste trabalho é válido inserir uma ressalva A historiadora Rosa Maria Godoy Silveira chama atenção para o caráter vastíssimo que pode assumir o termo cultura histórica uma vez que toda cultura é histórica e tudo que é histórico é cultural Sugere enquanto Cultura Histórica um termo mais genérico que abarcaria as experiências vividas pela Humanidade e seus sentidos a produção pela Históriaprocesso que poderia ser diferenciado de Cultura Historiográfica como um conhecimento das experiências vividas pelas sociedades seus grupos e indivíduos em uma perspectiva temporal 2007 p42 Busca portanto separar a produção dos homens no tempo cultura histórica de uma produção dos historiadores cultura historiográfica afim de que a imprecisão dos conceitos não os faça perder sua eficácia epistemológica e o poder de delimitação dos campos O historiador Elio Flores no entanto propõe uma cisão que nos parece mais funcional para o objetivo de nosso trabalho Ele afirma que o discurso histórico não é de domínio único dos historiadores mas compartilhado por outros agentes sociais que elaboram representações históricas em diálogo com a historiografia e outros campos do mundo social9 Elio Flores reconhece que para além da instituição historiográfica e de suas práticas metodológicas características outros campos elaboram discursos históricos O conceito de cultura histórica toma como objetivo os discursos à margem da historiografia que representam as experiências humanas sob uma perspectiva temporal Consideramos que sua proposição permite delimitar melhor o específico da cultura que estamos analisando o caráter de cultura histórica ou seja histórico discursivo e ao mesmo tempo diferenciálo da produção historiográfica dos historiadores Essa opção também permite nos aproximar de Jacques Le Goff ao delimitar o objeto da história da história a cultura histórica ou mentalidade histórica que reconhece nas produções do imaginário uma das principais expressões da realidade histórica esse campo difuso de como se reage ao próprio passado por outro lado esta história indireta não se confunde para o autor com a história dos historiadores única que tem vocação científica 1990 p49 Esta é a distinção 9 Entendo por cultura histórica os enraizamentos do pensar historicamente que estão aquém e além do campo da historiografia e do cânone historiográfico Tratase da intersecção entre a história científica habilitada no mundo dos profissionais como historiografia dado que se trata de um saber profissionalmente adquirido e a história sem historiadores feita apropriada e difundida por uma plêiade de intelectuais ativistas editores cineastas documentaristas produtores culturais memorialistas e artistas que disponibilizam um saber histórico difuso através de suportes impressos audiovisuais e orais FLORES 2007 p 95 15 que norteia os limites entre cultura histórica e produção historiográfica neste trabalho Pensamos então O País de São Saruê enquanto um agente discursivo que elabora uma representação histórica do sertão fora da instituição historiográfica Nosso objeto se insere assim em um movimento amplo da ação política de artistas engajados no contexto das décadas de 1960 e 1970 Estão situados em uma moldura histórica e em uma cultura política explicitadas na análise fílmica Isso nos leva a conclusão de que as apropriações do filme são realizadas nos discursos possíveis em sua cultura geral e histórica disponibilidade que pode ser identificada por exemplo através das leituras e filmes assistidos por Vladimir Carvalho Buscamos compreender o documentário enquanto artefato que apesar de se constituir fora do campo historiográfico também elabora um discurso histórico em diálogo com a historiografia e que contribui para a constituição da cultura histórica sobre a região Esta participação porém não é inocente mas em campo de disputas simbólicas e de classe a fim de legitimar ações práticas no mundo social Espaço sertão campo e nordeste Apresentamos agora nossas escolhas teóricas sobre o conceito de regionalização que nos permite entender espaços como Nordeste e sertão O sociólogo marxista Francisco de Oliveira em Elegia para uma religião 1977 reconhece que existem diversas maneiras de se definir uma região e opta por uma perspectiva de formação do Nordeste pela reprodução do capital A região para ele é um espaço onde se imbricam dialeticamente uma forma especial de reprodução do capital e por conseqüência uma forma especial da luta de classes 2008 p148 Formadas a partir da divisão internacional do trabalho no capitalismo para Francisco de Oliveira elas são uma evidência histórica irrefutável 2008 p146 O trabalho de Francisco de Oliveira procura entender a relação entre o Estado e a sociedade brasileira e nordestina pelo planejamento regional através especialmente da criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste SUDENE Seu enfoque é essencialmente de economiapolítica entendendo que a passagem do eixo econômico brasileiro do Nordeste do algodão e do açúcar para o Sul do café e da indústria acarreta uma redefinição regional do trabalho no qual o primeiro espaço se estagna e outro mantém um crescimento O planejamento regional representou uma tentativa de conter tais disparidades Para ele o Nordeste da Sudene assume os contornos da ideologia da classe dominante da região da indústria 2008 p164 Durval Albuquerque Jr em A invenção do Nordeste e outras artes 1999 rompe com essa matriz de entendimento distanciandose de uma perspectiva econômicopolítica e 16 se concentra nos aspectos discursivos da regionalidade10 Essa construção foi elaboradacriada na decadência da sociedade préindustrial caracterizando um espaço que seria naturalmente oposto a modernização um espaço de atraso É uma identidade da qual o Nordeste deve se emancipar pois a construção de discursos identitários podem confundir elaborações discursivas com o que realmente somos ALBUQUERQUE 2011 p344 Propõe que devemos sempre libertar as imagens e enunciados do passado os temas que o constituíram os conceitos que o interpretaram de seu sentido óbvio problematizandoos p 348 Para o historiador se hoje o Nordeste parece ter existência evidente foi porém inventado Se para Francisco de Oliveira a identidade é construída na dialética entre uma estrutura e uma superestrutura Durval Muniz de Albuquerque Jr trabalha com uma documentação diversa mas tratada desierarquizada não fazendo diferenciação entre jornais filmes poesia ou música pois foram tomados como discursos produtores de realidade e ao mesmo tempo produzidos em determinadas condições históricas 2011 p45 A documentação não é prova no último mas material a ser problematizado enquanto expressão da regionalidade exibindose um contraste entre estas duas perspectivas Rosa Maria Godoy Silveira em O Regionalismo Nordestino 1981 analisa a formação da identidade nordestina articulando a reorganização econômica e internacional da produção capitalista e o surgimento de uma ideologia regionalista que demonstra a crise e conflitos entre as oligarquias iniciados no século XIX A historiadora trabalha com uma perspectiva de identidade montada de si para o outro que contempla os rearranjos internos da política nordestina em relação às mudanças nacionais11 Parecenos que esse texto abarca as dimensões simbólica e econômicopolítica articulando uma divisão do capital a nível internacional e nacional e oferecendo uma base estrutural para os discursos que são interpretados Porém isso não impede a autora de problematizálos historicamente enquanto expressões de uma regionalidade Consideramos pois que o texto de Silveira abarca aspectos de ambas as iniciativas apesar de ser escrito antes de A invenção do nordeste e outras artes Em Rosa M G Silveira a regionalidade não é uma pseudounidade cultural 10 Para ele no cruzamento de discursos políticos ou culturais sedimentouse uma ideia de Nordeste como espaço de área seca para uma identidade racial econômica social e cultural à parte realizada por intelectuais ligados à sociedade préindustrial em declínio que elaboraram textos e imagens para este espaço ancorandoo no entanto na contramão da história construindoo como um espaço reacionário às mudanças que estavam ocorrendo na sensibilidade social e mais ainda na sociabilidade com a emergência de um espaço burguês no Brasil 2011 p342 11 Rosa M Godoy se aproxima um pouco mais da abordagem de Oliveira e indica como as elites nordestinas conscientes do processo de mudanças do eixo econômico e político nacional argumentam sobre um espaço que lhes prejudicava os interesses o CentroSul porém não percebem a articulação desta transformação às mudanças no quadro da divisão internacional do trabalho Conclui que a ideologia regionalista surge como representação da crise na organização do espaço de uma fração açucareira da classe dominante brasileira em vias de subordinação a uma outra fração hegemônica comercialcafeeira SILVEIRA 2009 p17 17 geográfica e étnica como em Durval M A Albuquerque Jr 2011 p33 Para ele os discursos que instituem a realidade criticando que a História Regional procure legitimar a construção do espaço regional como continuidade histórica oferecendolhe base material Seu objetivo é questionar a própria ideia de região e a teia de poder que a institui 2011 p3912 Reconhecemos as contribuições trazidas esses autores para o debate sobre regionalidade que não é consensual e cujas divergências são parte do resultado produtivo das reflexões Mas cabe indicar a polivalente intelectual Maura Penna 1992 valiosa referência para esse debate Divergindo um tanto de Albuquerque Jr afirma que a região Nordeste é uma realidade visto que é um dado que permite os indivíduos se localizar no espaço e no meio social dando sentido ao mundo e a suas experiências Identifica a variação dos sentidos conforme o contexto histórico e a referência de região ou mesmo de indivíduo a partir de sua formação e vivências PENNA 1992 p47 Pensamos que o trabalho de historicização e desnaturalização dos discursos regionais é um passo importante para nosso trabalho embora não baste a si próprio daí a importância de trazer o debate de autores como Oliveira Silveira e Penna pois inserem as práticas discursivas em um debate político mais imediato que é bastante produtivo para pensar a regionalidade em O País de São Saruê A preocupação de Albuquerque Jr por outro lado é também interessante pois procura pensar a própria regionalidade no seu espaço na cultura histórica enquanto enunciados do passado de maneira bem mais radical que os referidos autores problematizando seus sentidos óbvios historicizandoos 13 Cabe também ressaltar que Albuquerque Jr na diversidade de fontes artísticas analisadas literatura artes plásticas cinema música apresenta matrizes de discursos sobre o Nordeste e identifica uma visão da região que foi muito desenvolvida pelos artistas comunistas a qual chama de território da revolta um Nordeste de miséria e injustiça social mas também de utopias ideário elaborado sob forte influência do pensamento marxista Cf ALBUQUERQUE 2011 p 237 Filmes como O Deus e o Diabo na Terra do Sol Vidas Secas Os Fuzis ou O País de São Saruê poderiam ser lidos por essa matriz de entendimento do espaço nordestino semiárido enquanto espaço da revolta Durante a análise no entanto articulamos mais profundamente ao conceito de romantismo revolucionário do sociólogo Marcelo Ridenti que pareceu mais produtivo 12 O regionalismo é muito mais do que uma ideologia de classe dominante de uma dada região Ele se apoia em práticas regionalistas na produção de uma sensibilidade regionalista numa cultura que são levadas a efeito e incorporadas por várias camadas da população e surge como elemento dos discursos destes vários segmentos Por isso procuramos nos afastar de fazer a chamada História Regional porque esta por mais que se diga crítica do regionalismo do discurso regionalista está presa ao seu campo de dizibilidade ALBUQUERQUE 2011 p39 Albuquerque Jr em sua perspectiva mais restritamente discursiva recebeu críticas como a de que parece descrever uma região que faz a si mesma BERNARDES 2007 p43 13 Nós utilizamos o conceito de cultura histórica pois achamos que a perspectiva de Albuquerque Jr pode ser vista assim mas não lemos o autor se referir dessa maneira 18 pois pensado para entender a produção artística de artistas engajados em nosso recorte Nossas categorias de análise são o sertão e sertanejo em O País de São Saruê Porém na perspectiva de trabalhar o documentário a partir da cultura política pecebista notamos que a visão sobre o campo do PCB na formação do cineasta perpassa seu entendimento de sertão Cruzar outras categorias portanto propiciou uma análise mais produtiva Reconhecemos que a região sertaneja também é uma construção discursiva reproduzida por uma diversidade de discursos midiáticos artísticos políticos intelectuais etc Acreditamos que ela também pode ser entendida pela divisão social do trabalho seja nacional enquanto uma região ocupada através da pecuária em relação a um espaço açucareiro por exemplo ou internacional quando se tornou um polo algodoeiro que cresceu e se apequenou perante as flutuações e atuações do capital internacional por exemplo Por outro lado o sertão possui características culturais que vão além do âmbito econômico em imaginário amplo poético identificável na literatura cinema etc Sobre a categoria sertão Nísia Trindade Lima afirma que no processo de formação de nossa nacionalidade houve a formação de um dualismo entre sertão e litoral Para ela sertanejo caboclo ou caipira foram objetos sociológicos importantes nesse desenvolvimento14 Um marco a construção dessa categoria foi Os Sertões 1902 de Euclides da Cunha A obra descreve o conflito de Canudos realizando um estudo geográfico e sociológico desse espaço buscando no sertanejo a essência nacional caracterizandoo como um forte místico e primitivo Cunha entendia tais características pela relação do homem com o meio natural Sua visão influenciou fortemente a produção cultural seguinte especialmente a literatura regional e o cinema das décadas de 1950 e 1960 incluindo a geração de Vladimir Carvalho15 A literatura ficcional reproduziu essa matriz em diversos livros entre os quais destacamos escritores comunistas como Graciliano Ramos e Jorge Amado que se tornaram grandes nomes da literatura dita regionalista16 O ensaísta Gilberto Freyre um dos grandes nomes que pensaram a região nordestina enfocou a região litorânea sua produção da canadeaçúcar e a cultura a ela ligada Ao escrever Nordeste 1937 o autor adverte que quem pensará o outro Nordeste da pecuária seco e árido o sertão será o sociólogo Djacir Menezes em Outro Nordeste 1937 Este aborda o espaço de clima seco das tragédias dos retirantes e do banditismo social 14 O homem do interior foi um dos objetos privilegiados nos textos de cunho sociológico produzidos na segunda metade do século XIX nas três primeiras décadas do século XX e na fase de e na fase de institucionalização universitária das ciências sociais que pode ser aproximadamente demarcada entre os anos de 1933 e 1964 LIMA 1999 p14 15 O livro está dividido em três partes a terra o homem e a luta A construção de O País de São Saruê se fez de maneira semelhante mostrando o espaço o homem e os problemas enfrentados por ele Vladimir Carvalho admite que essa leitura foi muito importante na sua formação em entrevista a Carlos Alberto de Mattos 29 disponível nos extras do DVD O País de São Saruê distribuído pela Videofilmes Tema do capítulo 3 16 Graciliano Ramos obteve grande impacto com o romance Vidas Secas 1938 que abordava o pequeno sertanejo e seu conflito com as longas estiagens que dificultavam sua sobrevivência No seu livro há não apenas uma questão de sobrevivência mas uma seca de sentimento de pensamento e de humanidade 19 bem diverso do Nordeste apresentado por Freyre Roger Bastide 1957 descreve um Brasil de contrastes que se mostra dentre outras formas pela diferença entre o Nordeste do açúcar e do semiárido17 Em Djacir Menezes ou Roger Bastide temos ainda elementos euclidianos muito presentes pretendendo caracterizar o sertão pela questão físicogeográfica clima solo o misticismo religioso o atraso da região e a separação do país em dualidades contrastantes Na década de 1960 os problemas do Nordeste ganham o status de questão nacional ou seja a região se configura como obstáculo para a integração e desenvolvimento nacionais O discurso do PCB e de Celso Furtado partiram dessa concepção Se Furtado pretendia resolver essa questão pelas reformas do Estado elaborando seu plano de ação para o desenvolvimento do Nordeste no pensamento pecebista nessa modernização deveria levar à proletarização do campo e à sua organização permitindo a revolução social meso que através de reformas18 Essas ideias eram parte daquela cultura histórica na qual se situa a construção de O País de São Saruê Vladimir Carvalho se serve de discursos sobre os conflitos de classe e de modernização da região sertaneja e elabora um discurso original artístico que se insere nestas disputas simbólicas De maneira muito geral podemos identificar o sertão e o semiárido para nossa análise como semelhantes pois servem para diferenciar a região da economia da canadeaçúcar litorânea da área onde predomina a produção do algodão e da pecuária no interior do Nordeste Reconhecemos no entanto que as categorias entre os autores são diversas Porém trabalhamos cruzandoas e reconhecendo suas influências na relação entre arte e política estabelecida em O País de São Saruê O sertão e sertanejos assim carregam uma marca de significação mais cultural enquanto o nordeste semiárido é uma categoria estritamente econômica e geográfica A Análise de O País de São Saruê O título do filme é uma referência ao cordel de Manoel Camilo dos Santos Viagem a São Saruê 1948 19 O documentário está dividido em 13 sequências20 Nossa análise temática foca a 17 Não se pode imaginar contraste mais violento do que o existente entre as duas regiões De um lado a terra escura pegajosa úmida cavada de sulcos embebida de água com árvores frutíferas mangueiras laranjeiras canaviais rios limosos De outro lado um caos de pedras cinzentas cravadas em desordem no chão de argila seca rachado pelo sol e vastas extensões de areia ardente BASTIDE 1978 p86 18 Celso Furtado em Operação Nordeste 1959 discutindo a desigualdade econômica das regiões identifica uma rede econômica que desprivilegia o Nordeste em favorecimento do Sul FURTADO 2009 p47 Enquanto isso o PCB considerava o Nordeste uma região feudal sendo a proletarização do camponês através de uma revolução nacional e democrática de conteúdo antiimperialista e antifeudal necessária GORENDER 1987 p30 Tal visão acreditava em um desenvolvimento por etapas oriunda de uma interpretação stalinista dos chamados países em desenvolvimento que deveriam consolidar o capitalismo para chegar ao socialismo No Capítulo 5 no entanto mostramos que havia divergências sobre tais leituras 19 O cordel próximo das epopeias narra a viagem do poeta a uma terra similar ao Éden um paraíso possível avesso da escravidão do sistema capitalista A busca desse paraíso foi motivada pelo seu intelecto devido às histórias contadas quando era criança cf PINHEIRO e LÚCIO 2001 p 47 Porém enquanto Manoel 20 apresentação do espaço espécie de gênesis da terra sertaneja e de seus homens o vaqueiro e o papel da pecuária no filme e na ocupação do sertão capítulo 4 a luta de classes e os conflitos políticos locais exibidos não literalmente no filme nas sequências do cultivo do algodão e da fase industrial dessa economia pulando para o discurso do prefeito de Sousa Antônio Mariz que conclui o documentário capítulo 5 Outros temas presentes no filme são indicados no percurso a modernização do sertão a presença do imperialismo a decadência da civilização do couro etc O documentário possui uma polifonia acentuada pois utiliza uma variedade de materiais discursivos para formar sua narrativa poesia música da jovem guarda rock música popular entrevistas fotografias jornais e outros elementos propriamente fílmicos Tais recursos e seus usos diversos pelo filme se tornaram objetos de nossa análise Para pensar os planos cinematográficos utilizamos o método iconográfico de Erwin Panofisky que embora elaborado para a análise de pinturas consideramos útil Dessa maneira buscamos chegar aos objetos de análise propostos por Panofisky como os estilos pelos quais podemos identificar maneiras como em um determinado contexto histórico se expressam objetos e eventos e tipos como se expressam em um contexto temas e conceitos através de objetos Panofisky sugere inicialmente uma descrição iconográfica que identifique objetos e ações literais nas imagens aqui nos planos e nos sons do filme em seguida propõe identificar convenções e temas para por fim interpretar os valores simbólicos em sentido mais profundo Assim os primeiros planos de O País de São Saruê 1971 inserem o espectador no espaço e cenário do filme De início identificamos e descrevemos tais planos chão pedregoso o cactos o céu limpo e ensolarado as aves voando Em seguida passamos para o plano de interpretação esses objetos compõem uma imagem do sertão seco e sua vegetação característica ou seja tanto localizam o espectador em um espaço geográfico quanto ressaltam qualidades peculiares Em terceiro nível relacionamos essa construção às elaborações discursivocinematográficas das décadas de 1960 e 1970 de uma região de problemáticas sociais e de um espaço de seca como presente em filmes como Vidas Secas 1963 e Deus e o Diabo na Terra do Sol 1964 21 Assim O País de São Saruê é parte de uma tradição de cinema social documentário que tem construção semelhante em outros filmes como aqueles do ciclo de documentário paraibano como Aruanda 1960 nos quais havia uma denúncia social através da representação da vida de camponeses e do campo nordestino como espaço de pobreza Ali identificamos os sintomas culturais ou símbolos que foram tendências comuns naquele contexto para expressar os temas e Camilo dos Santos constrói um lugar que saciaria as ânsias populares de uma felicidade terrena Vladimir Carvalho encontra um povo seu espaço e estruturas sociais que impedem a realização desses desejos Assim como afirma o cineasta o filme é um contraponto ao delírio do cordel CARVALHO 1986 p129 20 A estrutura do filme pode ser conferida no Apêndice A Tabela de sequências de O País de São Saruê com a tabela das sequências do filme 21 21 conteúdos da pobreza da seca e da dura realidade rural preocupações recorrentes da arte vinculada à esquerda brasileira na década de 1960 A essa produção podemos relacionar as convulsões campesinas da época e localizar a posição política desses cineastas sobre tais conflitos Utilizamos ainda a semiótica de Algirdas Julius Greimas baseados numa proposta de análise semissimbólica de Antônio Pietroforte Este estudioso da linguística apresenta em Semiótica visual os percursos do olhar 2007 uma proposta de análise semissimbólica ou seja um esquema semiótico que nos permite problematizar uma obra de arte e seus elementos visuais na sua relação entre conteúdo e forma reconhecendo que a última é capaz de criar sentidos Assim a forma não é apenas um veículo do conteúdo mas também constrói significações passíveis de problematização Seu sistema para análise de estruturas narrativas também foi de grande auxílio Visto que O País de São Saruê é um documentário bastante poético enfatizamos a análise estética conseguindo resultados mais satisfatórios A estrutura da divisão das sequências de O País de São Saruê se organiza de maneira a fazer espécie de narrativa históricomítica estabelecendo uma gênese uma problematização do presente e mesmo dando indicativos para o futuro Apresenta a origem da terra depois dos homens sua ocupação no espaço a construção da civilização sertaneja ou do couro através do trabalho os obstáculos e indicativos para sua superação Em Prisioneiros do Mito Cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil 19301956 Jorge Ferreira discorre sobre a cultura política dos comunistas entre 1930 e 1956 e traz teses interessantes ainda para nosso recorte temporal Indica como o pensamento comunista da época embora almeje a laicidade e a negação do pensamento religioso ainda estava preso a mitos teologias e hierofanias de sociedades tradicionais as quais permanecem em nostalgias nas imagens e nos desejos que traduzem em entusiasmos profundos de se viver em uma humanidade diferente FERREIRA 2002 p 25 Isso ajudou a perceber que o documentário se estrutura apresentando uma gênese problemáticas e obstáculos do mal o latifúndio e indicando caminhos para a realização de uma utopia Pela nossa hipótese essa elaboração foi realizada pela representação do sertão através do mundo do trabalho O País de São Saruê está dividido nos temas dos mundos animal mineral e vegetal articulados à ocupação e desenvolvimento histórico da região e neste percurso apresenta as contradições dos meios de produção no sertão paraibanobrasileiro22 Elegemos três matrizes de discursos apropriados pelo cineasta a partir das quais fizemos nossa análise uma concepção pecebista da região e seus problemas a tese marxista de que a cultura é construída a partir do mundo do trabalho e por fim a representação sociológica de Euclides da Cunha sobre o sertanejo A dissertação se divide da seguinte maneira 22 Vladimir Carvalho reconhece a divisão nos três mundos em entrevista concedida a Carlos Alberto de Mattos 29 disponível nos extras do DVD O País de São Saruê distribuído pela Videofilmes 22 No segundo capítulo apresentamos a relação cinema e história e comentamos a relação entre o documentário gênero fílmico e sua relação com o conceito historiográfico de documento justificando aspectos metodológicos utilizados para a análise de O País de São Saruê No terceiro capítulo levantamos dados préfílmicos contextualizando o processo de elaboração do filme a partir da formação de Vladimir Carvalho da conjuntura políticocultural e do processo de filmagens de O País de São Saruê Esses dados permitem pensar a cultura política e cinematográfica em que Carvalho se inseria e aspectos relevantes técnicos e préfílmicos da construção do documentário Descrevemos o período de produção de O País de São Saruê as gravações de Sertão do Rio do Peixe médiametragem que ampliado formou o filme que analisamos suas dificuldades econômicas e soluções e aspectos relevantes como os profissionais envolvidos na música e na poesia do filme dentre outros Constam nessa etapa elementos préfílmicos como o processo de filmagem e esboço de roteiro No quarto capítulo analisamos as três primeiras sequências que apresentam o espaço e sua ocupação pelo homem A primeira introdutória traz a síntese da problemática a ser exibida e informações históricas sobre o sertão e o filme A segunda apresenta o espaço de maneira extremamente poética e a terceira o vaqueiro relacionando a pecuária à ocupação do espaço sertanejo Utilizamos aqui como documentos de apoio o livro Capítulos de História Colonial 1907 de Capistrano de Abreu Os Sertões 1902 de Euclides da Cunha e alguns textos marxistas e de artistas comunistas para contextualizações e relações de análise No quinto capítulo analisamos a representação de O País de São Saruê articulandoo aos debates sobre o campo do PCB na época cobrindo o período de revisão da esquerda brasileira pósgolpe militar e das tensões do regime Focamos três sequências a sexta que aborda o cultivo do algodão a sétima que aborda sua etapa industrial e a décima segunda que conclui o filme com um discurso de Antônio Mariz Mostramos como essas sequências se relacionam as discussões da esquerda e se posicionam no debate sobre o subdesenvolvimento do sertão Portanto esta dissertação está no âmbito da cultura cinematográfica e da cultura política Nosso recorte cinematográfico se refere ao documentário O País de São Saruê nosso documento Seu diretor Vladimir Carvalho está inserido em uma militância comunista que como mostramos adiante influenciou seu cinema Nossa base de articulação do filme voltouse para a influência do livro Os Sertões 1902 e de uma cultura política que enxergava o campo e os camponeses sob ótica econômico política específica 23 Capítulo 2 O País de São Saruê documento e documentário O documento desviado só volta a ser documento por uma operação crítica que o espectador não está habituado a fazer na situação de semihipnose que a participação da ficção requer Guy Gauthier Cinema o outro cinema a crítica é contrária à disposição normal da inteligência humana a tendência espontânea leva o homem a acreditar no que lhe é dito É natural aceitar todas as afirmações sobretudo uma afirmação escrita aplicar a crítica é portanto adotar um modo de pensamento contrário ao pensamento espontâneo uma atitude de espírito que não é natural Seignobos La Méthode historique appliquée aux sciences sociales As duas citações que abrem esse capítulo nos servem para defender a iniciativa deste trabalho Se a crítica documental do historiador pode ser vista como um destes movimentos contrários à disposição humana sendo um esforço a operação de desconfiar e avaliar as informações recebidas então a afirmação de Seignobos se assemelha ao dito por Guy Gauthier sobre que para perceber o aspecto documental em um filme é requerido deixar o estado de semi hipnose de quando seduzidos pelo cinema Ao historiador que trabalha com cinema estas são exigências básicas para analisar o discurso histórico de um filme ficcional ou não Se a tendência espontânea humana é acreditar no que lê ou vê o efeito de realidade característico do cinema reforça essa tendência pelo seu apelo realista verossímil e sedutor Ora se ao espectador a operação crítica é facultada não é ao historiador a quem cabe necessariamente esforçarse na crítica de sua fonte O caminho não natural do pensamento de desconfiar e enxergar os limites e possibilidades do discurso históricos nos produtos culturais é central para ir além da impressão imediata sugerida em um filme e seus artifícios eróticos dever pudico do historiador Assim apresentamos elementos da discussão dessa relação de sedução e distanciamento entre cinema e história através de duas categorias fundamentais para a história e para o cinema respectivamente documento e documentário Cinema e História Diversos historiadores discutiram a relação entre cinema e história entre os quais podemos destacar Pierre Sorlin Marc Ferro e Robert Rosenstone os brasileiros Marcos Napolitano Jorge Nóvoa ou na Paraíba Regina Behar Um número consistente de trabalhos no Programa de Pós Graduação em História da UFPB articularam estas searas nos quais vislumbramos diversas possibilidades desse diálogo Em Cinema e História uma imagem do Nordeste 2007 Rossana de Sousa Sorrentino 24 Lianza analisou A Canga 2001 discutindo a visão de Nordeste neste curta Carlos Adriano Ferreira de Lima 2008 analisou Hans Staden 1999 identificando a representação da sociedade Tupinambá Já Marcos José Melo 2012 problematizou a identidade oferecida ao continente africano no cinema contemporâneo através de diversos filmes Jônatas Xavier de Sousa 2013 analisou a representação da mulher torturada em Que bom te ver viva 1989 de Lúcia Murat 23 Como podemos perceber tais trabalhos abordaram realidades históricas diversas mas partiram de uma fundamentação comum que articula representação social e cinema semelhante ao nosso trabalho Isso não quer dizer que os filmes foram abordados igualmente os instrumentos analíticos variaram conforme a necessidade de cada filme e tema Em Que bom te ver viva por exemplo há uma construção documentária misturada a uma personagem ficcional alterego da cineasta Lúcia Murat que rendeu um trabalho de interpretação particular no trabalho de Jônatas Xavier Carlos Lima analisou um filme ficcional e histórico que procurou uma fidelidade naturalista na sua representação embora sem ambição de ser um filme histórico poderíamos indicar como um tanto semelhante o caso de A Canga porém o filme é problematizado a partir da visão de um Nordeste de Seca e de brutalidade Assim ainda se neste caminho recorrente as análises foram diversas não foi o único trajeto possível Por isso indicamos o trabalho de Adeilma Bastos Carneiro 2009 que fugiu ao problema representacional Sua pesquisa abordou o impulso oferecido pelo Núcleo de Documentação Cinematográfica da Universidade Federal da Paraíba 1979 à produção cinematográfica paraibana trabalhando o lócus de formação de cineastas e as opções ideológicas e estéticas abraçadas por eles A relação cinemahistória portanto abarca outras iniciativas história das escolas e técnicas do cinema história econômica do cinema história da recepção de filmes Apenas na década de 1970 o cinema foi incorporado institucionalmente pela disciplina histórica quando a História Cultural se consolidava frente à predominância da história serial e quantitativa Cf SILVA 2008 p118120 Marc Ferro foi o primeiro historiador a afirmar que um filme podia ser documento para a história ou agente histórico Após ele outros historiadores o admitiriam como Le Goff ao reconhecer o papel do cinema e outras mídias no avanço da relação entre homens e a história ressaltando sua importância no âmbito da cultura histórica 1990 p 49 Hoje crescermos em meio a grande profusão de sons e imagens difundidos pelos mais diversos meios midiáticos A linguagem cinematográficaaudiovisual parece tão natural que dificilmente nos perguntamos sobre seu surgimento seu funcionamento sua gramática ou suas figuras de linguagem salvo nos casos de produção audiovisual cinefilia ou no nosso caso 23 Os últimos trabalhos realizados no Programa de Pós Graduação em História da UFPB Quando nós somos os outros Hans Staden e a Cultura Histórica 2008 de Carlos Adriano Ferreira de Lima Paisagem cinematográfica O nudoc e a produção cultural nas décadas de 19801990 2013 de Adeilma Bastos Carneiro Como se fossem insetos África e ideologia no cinema contemporâneo 2012 de Marcos José de Melo Que bom te ver viva Memórias e Histórias de mulheres que sobreviveram à violência da ditadura 2013 de Jônatas Xavier de Souza 25 de pesquisa acadêmica24 Porém quando o cinema surgiu no final do século XIX não havia uma linguagem cinematográfica propriamente dita como atualmente Ela foi consolidada aos poucos surgindo teorias que buscavam explicála eou propunham maneiras de fazer cinema25 O historiador que pretende analisar filmes é importante conhecer as convenções da linguagem cinematográfica e os debates de seus teóricos assumindo cuidados epistemológicos necessários para tal pesquisa Munido do conhecimento de aspectos dessa linguagem cinematográfica que durante um século se afirma com léxico convenções e estéticas próprios o pesquisador realizará interpretações que sem esse aparato deixariam muito a desejar26 A linguagem cinematográfica não é inocente As escolhas técnicas e estéticas em um filme fornecem informações importantes sobre o cineasta sua obra e os efeitos almejados através da sétima arte O cineasta elabora seu discurso através da escolha de sons da fotografia dentre outros artifícios que se relacionam a ideologia assumida pelo artista Marc Ferro indica que o cinema tem um caráter de agente ativo no processo histórico pois desde que o cinema se tornou uma arte seus pioneiros passaram a intervir na História com filmes 2010 p15 e que os cineastas conscientes ou não estão a serviço de uma causa de uma ideologia reconhecendo que isso não exclui o fato de que haja entre eles existência de duros combates em defesa de suas próprias ideias 2010 p15 Por isso com base nos já mencionados conceitos de cultura histórica 24 Quando os primeiros experimentos de imagens em movimento surgiram e se tornaram populares eles estavam ligados a uma atividade de espetáculo de curiosidades Foi a partir do início do século XX que o que viria a ser considerado com sétima arte começou a desenvolver convenções narrativas que se tornaram predominantes permitindolhe ampliar seu público para um setor mais ilustrado e se industrializar COSTA 2006 p28 Por volta de 1907 o cinema construía convenções narrativas suas e um marco desse processo foram os filmes de D W Griffith que definiu muito do que se tornou clássico para cinema A seleção de artigos de História do Cinema Mundial organizada por Fernando Mascarello possui um bom panorama do percurso do cinema do século XIX às produções mais recentes suas origens e escolas As escolas e maneiras de fazer cinema se deram de uma maneira que podemos mapeálas no âmbito ficcional e documentário com certa independência embora frequentemente estes gêneros se influenciassem Assim como o cinema ficcional tem grandes cineastas como Hitchcock Chaplin Bergman e outros o documentário possui grandes nomes como Robert Flaherty Dziga Vertov John Grierson Alberto Cavalcanti e no Brasil Eduardo Coutinho Vladimir Carvalho Lúcia Murat dentre outros Se há correntes no cinema ficcional há também no documentário como o Cinema Direto o Cinema Verdade o Documentário Social etc Identificar os cineastas e as escolas que lhes influenciaram é fundamental no trabalho com documentário Essa diversidade pode ser conferida em O documentário um outro cinema 2011 de Guy Gauthier 25 A linguagem cinematográfica se tornou mais complexa na tentativa de atender um público burguês mais exigente Para tanto conferiu ao cinema uma maior respeitabilidade disputando para tanto o status de arte já alcançado por outros campos como o teatro e a literatura No âmbito científico também ocorreu esse embate uma vez que estavam ligados a pesquisa e a ciência a principal função e caráter atribuídos ao cinema no seu surgimento Tal debate se desdobrou pelo entendimento do que era o cinema forma de conhecimento produto de fruição artística ou simples entretenimento A imagem cinematográfica é objetiva ou manipulável Quais os limites da neutralidade do cinema ou do desejo por um cinema educativo científico artístico e como fazêlos Daí se engendrou duas categorias embora não sejam únicas que dominaram e dividiram a visão do cinema o cinema de ficção e o documentário No entanto com o passar do tempo as distinções entre esses dois gêneros se tornaram categorias mais e mais próximas confundindose 26 A expressão linguagem cinematográfica já consta na década de 1910 em textos de Ricciotto Canudo Louis Delluc Hugo Münsterberg ou de Kulechov e Pudovkin A produção nesse sentido cresceu depois na segunda metade do século XX com autores como Christian Metz e Jean Miltry Cf AUMONT 1995 p158169 26 de Elio Flores e de representação e de apropriação de Roger Chartier afirmamos que o cinema elabora representações e se apropria de discursos disponíveis em realidades históricas específicas que lhes oferece certa liberdade de elaborações e inserção nos debates de seu tempo Assim Ferro indica que as culturas recebem diferenciadamente as imagens cinematográficas outro fenômeno a ser analisado na perspectiva da diversidade na diacronia e na sincronia de suas civilizações O historiador Marcos Napolitano na mesma esteira indica que o historiador deve considerar os códigos internos de funcionamento do filme uma lógica interna ao filme sua linguagem convenções narrativas dentre outros e as representações da realidade histórica ou social nelas contidas NAPOLITANO 2005 p 237 ou seja identificar os discursos externos com os quais a fonte dialoga27 Em nossa análise relacionamos O País de São Saruê ao acesso de Vladimir Carvalho às discussões de intelectuais comunistas e outras literaturas Napolitano indica ainda a necessidade de se situar a linguagem cinematográfica em uma historicidade técnica e cultural pois os elementos técnicos e estéticos da obra proporcionam uma maior compreensão da realidade histórica ou social representadas no filme O País de São Saruê por exemplo teve limitações no uso de entrevistas pois a sincronia de som era recurso recente pouco utilizado no país Técnica e discurso se ligam e a interpretação perde seu potencial caso se separe a estética e o conteúdo de sua dimensão técnica podendo até ocorrer conclusões equivocadas Robert Rosenstone trouxe outra contribuição historiográfica importante para esse debate Critica os historiadores que se limitam a buscar a confirmação de informações historiográficas nos filmes como espécie de avaliadores de sua validade Propõe outra visão que identifique as contribuições do cinema para a sociedade que não estão circunscritas nos detalhes específicos mas no sentido abrangente do passado que elas transmitem as ricas imagens e metáforas visuais que elas nos fornecem para que pensemos historicamente Defende que entendam o filme não enquanto veículo para transmissão de verdades literais mas de verdades metafóricas que representam um comentário e desafio ao discurso histórico tradicional 2010 p 2324 Buscamos assim identificar as metáforas e comentários cinematográficos de O País de São Saruê entendendo que sua argumentação hora se cruza com a historiografia eou com a política mas que possui caráter original artístico apresentando ambiguidades que inclusive não podem e não querem ser resolvidas 27 Podemos pensar por exemplo que há especificidades estéticas e técnicas em Psicose 1960 de Hitchcock quando o diretor resolve montar um enredo com suspense e mistério que o leva a fazer determinadas escolhas de planos sons e sequências específicas para alcançar os efeitos desejados por outro lado a representação de um drama edipiano presente na narrativa não poderá ser explicado exclusivamente pela crítica interna desse documento para tanto será necessário problematizar as representações históricosociais nele contidas através de uma crítica externa que poderá levar em consideração por exemplo certa popularidade de teorias psicanalíticas nos Estados Unidos na década de 1950 27 Concluímos assim o filme se relaciona com as representações sociais e históricas carecendo de uma crítica que contemple suas dimensões técnica estética contextual e de linguagem mas também o situando no debate com outros agentes históricos de sua época Ao analisarmos a relação entre planos e os usos dos sons ou pontuarmos os elementos fílmicos individual ou relacionalmente não se tratará de cinefilia mas de iniciativa necessária para um melhor entendimento do discurso construído em O País de São Saruê28 Documentário e representação cinematográfica A distinção entre documentário e ficção não contempla a diversidade de produções cinematográficas todavia essa é ainda a forma mais popular de dividir o cinema29 Delineamos as especificidades desse cinema para mostrar os cuidados assumidos em nossa crítica documental e exibir algumas reflexões que esse esforço nos encaminhou A categoria documentário nos remete ao próprio status de objetividade do cinema na sua origem Podemos indicar dois aspectos desta questão o processo de captação das imagens que nos leva a entender como se configurou certo realismo com crença na neutralidade das imagens cinematográficas e a própria ideia de documento na época do surgimento da categoria documentário através da qual articulamos a noção de documento tão cara a história O cinema herdou da fotografia certo status de neutralidade e o fetiche do registro Acreditavase que as imagens fotográficas não recebiam intervenção da subjetividade humana uma vez que eram registradas por uma máquina sendo portanto neutras30 Cientistas ficaram animados com essa crença tentando legitimar o registro cinematográfico enquanto ferramenta 28 Assim concordamos com Marcos Silva e Jorge Nódoa quando dizem que Embora o historiador ou o cientista social não seja obrigado a se transformar num crítico de cinema para trabalhar com filmes ele tem a obrigação sim de entender os recursos narrativos e poéticos que um filme utiliza para identificar o que é mesmo que essa obra diz sobre seus temas e personagens Identificados os filmes como parte importante do universo documental trabalhado pelos professores eou pesquisadores de História documentos sobre a época em que o filme foi produzido e documentos sobre os temas e personagens que ele aborda como memória artística e representação impõese a necessidade de pensar sobre a materialidade expressiva desses documentos Não se trata de impor uma hierarquia entre documentos um filme é tão importante documentalmente quanto um discurso de greve ou um balanço de empresa tabelas de preços ou informações quantitativas sobre população mas de entender e aproveitar peculiaridades de gêneros e campos documentais SILVA 2008 pp0809 29 É comum encontrar referência a um cinema de nãoficção que englobaria também o documentário Porém como indica Hélio Godoy Assim por oposição ao que é ficcional tentase encontrar um campo onde o fazer documentário possa ser localizado Infelizmente nesse campo encontramse atualmente tantas outras formas audiovisuais que pela negação fica difícil chegar a alguma definição 2001 pp1516 Se o termo cinema de não ficção busca definir o documentário pela oposição à ficção que desfrutou de maior atenção dos estudiosos do cinema mantém a dificuldade de estabelecer um campo de pesquisa bem definido 30 A idéia de objetividade apresentada pelos primeiros fotógrafos era sustentada pelo argumento de que os próprios objetos deixam vestígios na chapa fotográfica quando ela é exposta à luz de tal forma que a imagem resultante não é o trabalho de mãos humanas mas sim do lápis da natureza BURKE 2004 p26 28 científica para produção de conhecimento ou para educação GAUTHIER 2011 p4231 A fotografia foi uma invenção que combinou descobertas anteriores da câmera obscura da perspectiva artificial que permitia oferecer maior nitidez a imagem e a fixação dos reflexos de luz utilizados na câmera obscura MACHADO 1984 p3032 Arlindo Machado mostra que o processo fotográfico é desde sua origem uma convenção e afirma que o realismo baseado na ideia de que a fotografia capta algo que existe externamente possui uma concepção ingênua p33 Critica inclusive as produções que se quiseram científicas como da antropologia Veio daí o nome de objetivas para as lentes fotográficas e cinematográficas Tais ideias chegaram a um dos maiores pensadores do cinema André Bazin que atribuiu um caráter ontológico a essa objetividade da câmera ao qual Machado critica dizendo que Conhecesse Bazin entretanto o verdadeiro significado da construção perspectiva que está embutida na câmera e ele teria o desprazer de verificar que nada é mais subjetivo do que as objetivas fotográficas porque o seu papel é personificar o olho do sujeito da representação p37 Não adentrando mais neste debate indicamos que suas raízes técnicas e interpretativas permitiram à imagem audiovisual forte apelo realista Sendo o documentário o gênero fílmico que talvez mais seja visto por esse suposto status tal discussão se torna válida para pensar o debate envolto na sua definição Além disso para além das definições técnicas os teóricos do cinema Jacques Aumont e Michel Marie 2006 afirmam que entre as diferenças que alicerçam a distinção entre ficção e documentário há uma situação de recepção que leva o espectador a adotar uma atitude mais documentarizante do que ficcionalizante neste tipo de gênero p86 O sociólogo Francisco Elinaldo Teixeira especialista em documentário comenta que este termo surgiu entre as décadas de 1920 e 1930 trazendo em si marcas da significação do campo das ciências humanas da segunda metade do século XIX para designar um conjunto de documentos com a consistência de prova a respeito de uma época TEIXEIRA 2006 p253 O gênero tem assim uma ligação com o debate historiográfico sobre documento histórico e seu caráter de prova e de objetividade desenvolvido pela escola metódica Tais historiadores se serviram de uma concepção com origem jurídica utilizada com fins científicos aproximando real e documento na qual este deteria os fatos históricos32 Por isso segundo Antoine Prost Robin 31 Guy Gauthier indica que na França no início do século XX a imagem em movimento foi utilizada para fins educativos como o no Museu pedagógico por exemplo e referencia que FélixLouis Regnault realizou o primeiro filme etnográfico em 1895 no mesmo mês da famosa projeção pública dos Lumiére 2011 p5051 32 No final do século XIX o principal vestígio do passado utilizado pelos historiadores da escola metódica ou positivistas era o documento oficial escrito Creditavam a esse material um caráter de prova e objetividade A palavra documento com o sentido de prova jurídica representação que se mantém até a atualidade já era usada pelos romanos tendo sido retomada na Europa Ocidental no século XVII Assim os historiadores positivistas ao se apropriarem do termo conservamlhe o sentido de prova agora não mais jurídica e sim 29 Collingwood critica que essa seria uma história de tesoura e cola feita com fatos préfabricados que os historiadores apenas encontravam em documentos Cf Prost 2008 p69 Assim bastaria ao historiador elencar os fatos históricos presentes nas testemunhas do passado os documentos33 Como vimos Francisco E Teixeira indica que o termo documentário surgiu para nomear um domínio específico do cinema trazendo a marca da concepção de documento oriunda das ciências humanas da segunda metade do século XIX Conclui que o documentário possui uma forte conotação representacional ou seja o sentido de um documento histórico que se quer veraz comprobatório daquilo que de fato ocorreu num tempo e espaços dados Atualmente quando se fala de documentário de imediato essa significação originária ainda vem à tona mas para logo em seguida se refratar numa multiplicidade de concepções e renomeações que converteu o campo num dos mais babélicos do cinema TEIXEIRA 2006 p253 As categorias documento e documentário têm nas origens semelhanças quanto à relação com o real que pretendiam Assim se no século XX a concepção de documento foi ampliada pela historiografia dos Annales incluindo materiais de diversos suportes como os visuais também houve mudanças significativas no documentário cujas narrativas questionaram sua própria expressão deixando de lado uma representação meramente objetiva questionando o estatuto objetivo desse cinema Essa ampliação das maneiras de fazer documentário ampliou suas indagações sobre os limites e possibilidades artísticos e científicos da representação desse gênero Ao documentário e à História perguntamos ciência ou arte34 Os historiadores Marcos Silva e Jorge Nódoa indicam que mudanças no conceito de documento e o início do trabalho sistemático de historiadores com cinema foi na mesma época Evidenciouse que o documento não é um objeto a ser interpretado pelo historiador sozinho mas uma modalidade de interpretação do mundo e de constituição de Memória Por isso concluem que estes profissionais dialogam com o cinema através de seus instrumentos próprios de trabalho a argumentação explicativa e demonstrativa os corpos conceituais e as tradições historiográficas SILVA 2008 p 9 Substituise uma concepção apassivante do documento para uma dialógica entre a representação documental do passado e o historiador a partir dos métodos e com status científico O próprio fato de nomear a palavra documento aos testemunhos históricos traduz uma concepção de história que confunde o real com o documento e o transforma em conhecimento histórico Captar o real nessa lógica cartesiana seria conhecer os fatos relevantes e fundamentais que si impõem por si mesmos ao conhecimento do pesquisador SÁSILVA DE ALMEIDA GUINDANI 2009 p7 33 Sobre essa visão do que foi a escola metódica o próprio Antoine Prost critica essa simplificação dos escritos de Seignobos Para ele Seignobos não se reconheceria em tal redução de suas ideias Cf Prost p 69 34 A relação entre documentário e o real é vasta havendo diferentes realismos Cineastas do Documentário Clássico e do Documentário Moderno possuem plurais posições sobre o filme e sua objetividade daí a diversidade de termos cinema do real cinemaverdade cinemadireto não ficção Cf TEIXEIRA 2006 30 instrumentos do último35 Essa representação se torna então objeto de pesquisa para o historiador Quando o cinema surgiu houve expectativas acerca de sua contribuição para a ciência e a História buscava se aproximar do método das ciências naturais defendendo sua objetividade pela noção de documento Esta concepção influenciou a categoria documentário e a visão sobre o conhecimento gerado pela imagem cinematográfica Por outro lado o cinema começou a se estabelecer enquanto arte e portanto da criação humana chocandose com algumas dessas fundamentações objetivistas36 Iniciavase uma tensão entre o cinema seu caráter narrativo e o real repartindo opiniões sobre sua natureza funções e métodos de análise Um exemplo de fotografia com apelo realista pode servir de suporte para situar melhor essa discussão sobre o documentário A fotografia de um menino pobre e com grande frio retirada por G Reijlander nos comove pela tristeza expressa Envolvidos pela estética e pelo apelo realista não imaginamos que o garoto de Wolverhampton foi vestido com farrapos teve seu rosto sujo de fuligem e remunerado para fazer aquela pose BURKE 2004 p28 Assim esse apelo realista que a imagem fotográfica ou cinematográfica oferece representa um risco O filme que em geral atribuise a origem do documentário Nanook o esquimó 1922 de Robert Flaherty possui semelhante polêmica Seus atores sociais representam no filme uma comunidade esquimó em extinção Eles porém já não tinham alguns dos hábitos solicitados e reconstituídos diante da câmera sob orientação de Flaherty NICHOLS 2009 p 3037 Se a realidade filmada não era toda autêntica ainda assim o cineasta elaborou uma representação sobre aquela realidade esquimó após muita pesquisa que inaugurou outra maneira de se relacionar com o cinema Daí que Peter Burke afirme que as fotografias podem ser consideradas evidência para a história na medida em que possuem valor documental e história pelo seu caráter de discurso sobre o passado Tal afirmação se aplica ao cinema também campo de saber fora do circuito profissional dos historiadores âmbito da cultura histórica Por isso para além da autenticidade ou objetividade de Nanook o esquimó e de qualquer documentário sua representação também é parte da história e pode ser objeto da historiografia uma vez que constitui um discurso sobre uma realidade 35 Esse encontro ocorre nas dimensões do lugar social do historiador de sua prática de pesquisa e de sua escrita como define Michel de Certau CERTEAU 1982 p 66 36 Nos anos 1950 quando as discussões ontológicas sobre o cinema atingiram seu ápice Edgar Morin propôs num dos primeiros estudos antropológicos a esse respeito que a metamorfose do cinematógrafo em cinema a passagem da mera técnica de registro visual para uma arte propriamente cinematográfica derase com a conquista da narratividade quando o cinema aprendeu a narrar nas primeiras décadas do século XX Nesse mesmo período mais especificamente a partir dos anos 1920 um corpus de idéias noções e proposições a respeito de um domínio que se queria divergente em seus propósitos métodos e maneiras de considerar a narrativa ganhava curso o domínio do documentário TEIXEIRA 2006 p254 37 Chamamos de atores sociais os participantes de documentários que atuam diante da câmera Eles podem ser solicitados para fazer uma cena do seu cotidiano ou mesmo ter filmada uma ação que aconteceria independente do cineasta Mesmo quando o ator não está reconstituindo uma ação para o cineasta sabemos que a presença da câmera altera a relação do indivíduo com sua performance 31 participando de uma economia simbólica fazendo parte da história cultural da humanidade38 Como vimos o apelo realista pode esconder facetas não realistas e não evidentes como em Nanook o esquimó No cinema o referente e sua representação coincidem levando a pensarmos que seu discurso não parte da imaginação de alguém mas que o exibido na tela é o próprio real A essa aparente ausência de mediação entre objeto e representação chamamos de efeito de real ROSSINI 2006 p116 Jacques Aumont e Michel Marie afirmam que o efeito de realidade faz com que o espectador mesmo ciente de que o que ele assiste não é o real acredite que aquilo existiu em algum momento 2003 p 92 O historiador deve procurar manter distância desse efeito de realidade e dos efeitos emotivos suscitados pelo cinema pois também podem influenciar sua análise ROSSINI 2006 p118 Esse efeito de real é ainda mais presente nos filmes documentários que se apropriam ainda mais do realismo suscitado pelo cinema Há ainda a estética dos filmes em elementos como a música fotografia narrativa ritmo dentre outros que procuram nos seduzir para interpretar as imagens sob certo ângulo Diversos processos participam da elaboração do discurso cinematográfico enquadramento iluminação montagem etc Porém nem sempre os filmes explicitam tais orientações estéticas e emotivas e suas imagens por mais que possuam uma dimensão documental não são testemunhos neutros da realidade O que não significa que esses filmes não ofereçam conhecimentos válidos Bill Nichols 2009 afirma que o documentário como outros discursos reivindica uma abordagem do mundo histórico e a capacidade de intervenção nele moldando a maneira pela qual o vemos Embora o cinema não possa ser aceito como igual da investigação científica 2009 p69 Esse cinema almeja tanto uma abordagem do mundo histórico quanto realizar uma intervenção nele remetendonos a centralidade do efeito de real nesse tipo de produção a crença da fidelidade do que se vê na tela ao real tornase campo de disputa O documentário é diferente assim do discurso científico pois possui maneiras objetivos e resultados diversos na sua produção de conhecimento Assim no já referido sobre cultura histórica reconhecemos que o documentário pode elaborar um discurso histórico embora diferente do historiográfico e que estabelece por outro lado assume uma relação com o público diferente dos filmes ficcionais O crítico e estudioso francês do cinema documentário Guy Gauthier 1995 comenta sobre a complexidade que envolve o termo documentário Para ele tanto o documentário quanto a ficção permitem conhecer algo da realidade e diferenciálos por essa relação não é suficiente para 38 Marcos Napolitano faz uma ressalva de dois extremos no uso de fontes audiovisuais Por um lado as fontes audiovisuais cinema televisão e registros sonoros em geral são considerados por alguns tradicional e erroneamente testemunhos quase diretos e objetivos da história de alto poder ilustrativo sobretudo quando possuem um caráter estritamente documental qual seja o registro direto de eventos e personagens históricos Por outro lado as fontes audiovisuais de natureza assumidamente artística filmes de ficção teledramartugia canções e peças musicais são percebidas muitas vezes sob o estigma de subjetividade absoluta impressões estéticas de fatos sociais objetivos que lhe são exteriores NAPOLITANO 2005 p235236 32 diferenciar tais categorias A extensa discussão sobre o que é real também torna difícil estabelecer como indicativo do que caracteriza esse cinema Mas aponta por exemplo outras possibilidades mais sólidas como a definição pelo roteiro âmbito no qual o documentário não pode propor de início um roteiro mas uma proposta GAUTHIER 2011 p 13 Mas isso não é simples e outros critérios utilizados para validar o realismo do documentário podem ser utilizados para invalidálo A diferença entre uso de atores profissionais ou não por exemplo não é suficiente para o qual propõe a diferença entre representar o papel de si e de outra pessoa entre simulacro e auto representação p14 Afirma que Esses grandes painéis de cinema onde os limites se confundem merecem não ser deixados de lado em virtude de uma ambivalência que é frequentemente a marca de sua originalidade A cadeia documental conforme esse procedimento nos leva a examinar sucessivamente o projeto não há roteiro e sim uma hipótese de roteiro a filmagem lá onde o documentarista define sua singularidade a montagem a reintegração parcial no cinema somente e o dispositivo espectatorial em que o espectador decide o status do filme GAUTHIER 2011 p17 Se a definição não nos permite plena clareza e consenso dos limites e distinções entre o documentário e a ficção encontrase justamente nesses meandros o mais interessante eventualmente desse gênero Baseado em Gauthier afirmamos que os critérios na análise da cadeia documental variam de caso a caso localizando as potencialidades ficcionalizantes e documentais de um filme Isso nos permite atender a versatilidade e pluralidade de construções narrativas que caracterizam o documentário moderno no qual se encaixa O País de São Saruê Há outras visões sobre documentário Hélio Augusto Godoy de Souza se posiciona de maneira mais centrada na possibilidade de investigação da prática documentária e sua capacidade de elaborar um conhecimento válido sobre o real Sua tese é de que o fazer documentário é uma atitude produtora de conhecimento não somente pelo ponto de vista do dispositivo tecnológico que revelaria fenômenos não observados pelo ser humano mas também pelo processo de participação investigativa no próprio fenômeno que se pretende conhecer SOUZA 2001 p21 Souza fundamenta sua proposta no grande nome da semiótica Charles Sanders Peirce e sua definição de signo e de semiose bem como em Jacob von Uexküll e seu conceito de Umwelt uma representação mental um universo subjetivo que é permitido pelo aparato biológico de qualquer ser vivo e que garante que aquele ser sobreviva no ambiente SOUZA 2001 p19 39 39 Segundo Godoy Souza a concepção triádica de signo em Pierce tem como partes constituintes objeto representamen sic e interpretante habilitam o conceito de signo como um instrumento para a análise da realidade através de imagens e sons significativos Daí deriva a noção de semiose a ação do signo Ao se assumir um ponto de vista pansemiótico onde qualquer comunicação verbal ou nãoverbal é semiose ampliase o campo de ação das idéias peirceanas SOUZA 2001 p17 33 Defende que o documentário é espécie de extensão da adaptação biológica humana pela cultura O documentário entre as inúmeras tendências audiovisuais pode então passar a ser considerado como uma das adaptações culturais desenvolvidas na evolução da espécie humana onde a questão do Conhecimento e da Realidade assume posição destacada Sua forma de produção aproximao do fazer investigativo que também está presente na ciência SOUZA 2001 p19 Apesar da interessante ideia de Hélio Souza não fundamentamos nosso trabalho na sua tese Se Gauthier ressalta a ambivalência da relação entre narrativa e realidade do documentário como algo interessante Souza se serve da Teoria Realista do Documentário para defender a proximidade desse gênero com a investigação científica Souza portanto diverge de Bill Nichols que separa categoricamente estes tipos de produção Por outro lado os três autores indicam a importância do método e da ética na produção documentária Estes dois aspectos nos pareceram diretrizes mais consensuais para a pesquisa com esse tipo de documento Por isso procuramos na formação e nas motivações de Vladimir Carvalho elementos para entender sua ética documentária e sua prática e método documentário em O País de São Saruê Entendemos portanto O País de São Saruê enquanto documentário ou seja oriundo de uma tradição com seus próprios expoentes e escolas Entre eles destacamos Robert Flaherty cujo cinema Vladimir Carvalho assume como inspiração Cf Capítulo 3 Apesar dessa influência clássica Carvalho se aproxima do documentário moderno abraçando elementos estéticos do neorrealismo italiano do cinemaverdade e do cinema novo brasileiro O País de São Saruê enquanto documento inserese em uma moldura histórica que nos permite analisálo enquanto um veículo grávido de discursividade histórica e enquanto obra de arte única e carregada de ambiguidades e poeticidade que sua estética propõe Daí que mesmo enquanto buscamos situálo em relação às convenções sociais artísticas e disponibilidades técnicas da época também o entendemos como um trabalho único e autêntico de Vladimir Carvalho Sua unidade não se perde enquanto elemento social tampouco ocorre o contrário No capítulo seguinte apresentamos o contexto histórico de produção de O País de São Saruê identificandoo na conjuntura cinematográfica nacional as mudanças políticas e o desenvolvimento artístico de Vladimir Carvalho Esses dados são essenciais para refletir sobre seu discurso e especialmente para pensar a atitude ética e a prática documentária de Vladimir Carvalho em um cinema de autoria que representou um marco importante no desenvolvimento artístico do documentário brasileiro 34 Capítulo 3 Planificação O País de São Saruê na cultura e na política das décadas de 1960 e 1970 O documentário O País de São Saruê 1971 de Vladimir Carvalho exibe os problemas sociais enfrentados no sertão paraibano Monta um quadro do cotidiano e cultura nordestinos contemporâneos à sua filmagem e alcança grande força poética e artística fugindo ao modelo mais tradicional de documentários clássicos e didáticos Essa particularidade está no próprio título que remete ao cordel A Viagem a São Saruê 1948 de Manoel Camilo dos Santos seus versos contam a história de um poeta que viaja para uma terra idílica em um sertão de fartura e de alegria40 O documentário no entanto mostra o oposto exibindo a miséria no sertão e as razões para esse cenário Interpretamos essa referência pela indicação que a conjuntura do filme seria o obstáculo para realização da utopia presente no cordel e a situação atual de uma terra de riqueza anterior que foi espoliada41 A narrativa pode ser dividida em três mundos o animal o vegetal e o mineral representando respectivamente as principais economias da região pecuária bovina e caprina agricultura do algodão e de subsistência e extração mineral de minérios e de ouro O filme começa identificando o espaço um sertão árido e hostil apresentado por meio de uma narrativa poética que identifica a região O homem surge nesse espaço transformando a natureza construindo casas cidades A narrativa se baseia no mundo do trabalho na transformação da natureza pelo homem articulando uma base de ideário marxista a uma visão euclidiana de Sertão do homem e de sua relação com o meio natural Carvalho atribui aos indígenas cariris a origem dos trabalhadores rurais indicando um passado de lutas Mostra ainda o vaqueiro e sua cultura adentrando no tema da pecuária o cotidiano de seu trabalho o folclore que o envolve e o grande obstáculo da seca Mostra a fazenda de Acauã espaço de uma finada opulência de uma elite decaída Logo temos a sequência sobre a agricultura abordando a produção do algodão e sua exploração pelos latifundiários locais mas 40 Manoel Camilo dos Santos foi um grande nome da literatura de cordel paraibana de origem popular trabalhava com seu pai no comércio ambulante tornase cantador e depois chega a assumir uma tipografia própria Algumas informações biográficas podem ser encontradas em httpwwwcasaruibarbosagovbr cordelManuelCamilomanuelCamilobiografiahtml Acesso em 28Jun2014 O cordel Viagem a São Saruê se encontra disponível no Anexo D p209 41 Esse tema está desenvolvido posteriormente A relação entre o documentário e o cordel foram trabalhadas no artigo De um lugar ao povo São Saruê viagem ou país publicado nos anais do II Encontro Regional de Literatura e II Simpósio de Iniciação à docência em Língua Portuguesa ocorrido em 19 a 23 de setembro de 2011 na Universidade Federal de Campina Grande 35 também de pobres e ricos pela inserção de empresas estrangeiras que prejudicou a todos Exibese também a penosa situação dos homens e mulheres populares e a agricultura de subsistência que muitas vezes insuficiente os levam a buscar outras formas de sobrevivência como parcas caças especialmente em tempos de seca Em outro momento o debate sobre o imperialismo é ampliado pelas sequências que mostram a circulação de produtos industrializados estrangeiros na feira de Sousa e na entrevista com um voluntário em trabalhos comunitários no sertão o norteamericano Charles Foster Mostrase assim tanto as relações entre o sertão e os EUA e indicações de seu contexto político quanto a desagregação cultural local pela inserção de bens culturais estrangeiros na troca das alparcatas de couro pelas sandálias japonesas por exemplo É o declínio da civilização do couro O mundo mineral é apresentado no ciclo do ouro A extração de ouro é apresentada de maneira fabulosa como uma ilusão popular que se perpetua e que poderia ser encontrada no próprio cordel A Viagem a São Saruê Esta sequência oferece uma espécie de síntese de um país potencialmente rico mas no entanto subdesenvolvido Por fim o filme conclui com um discurso do prefeito de Sousa Antônio Mariz sobre a problemática sertaneja no qual ele se refere ao problema da estrutura agrária como principal obstáculo para o desenvolvimento da região sintetizando a principal reflexão proposta pelo filme Traça um quadro penoso dos problemas e aponta uma maneira política de encarar o problema As imagens e a música da conclusão explicitam mais ainda o posicionamento político do cineasta Em síntese o discurso fílmico apropriase de uma visão euclidiana da terra do homem e de sua luta Apresenta de maneira poética a terra nordestina o homem sertanejo seus costumes aparência etc e sua luta o trabalho O primeiro antagonista do homem apresentado é o ambiente seco porém aos poucos o documentário apresenta a ocupação desse território o surgimento de uma elite e sua modernização bem como sua decadência Mostra a exploração do homem pelo homem na região e ampliase o debate para o âmbito da economia e política internacionais pelo tema do imperialismo na inserção de bens culturais e de consumo e na presença de jovens voluntários norteamericanos aparentemente fugindo da participação na Guerra do Vietnã Concluise afirmando que o maior obstáculo ao desenvolvimento da região é um problema político a questão agrária 20 Close up Vladimir Carvalho um documentarista sertanejo e revolucionário O País de São Saruê é um filme da década de 1970 mas que tem uma construção muito vinculada política e esteticamente aos ideários da década de 1960 Esse ideário pode ser entendido 36 pelo que Marcelo Ridenti chamou de romantismo revolucionário a fim de compreender a cultura de esquerda nas décadas de 1960 e 1970 Apresentamos breves dados da formação de Vladimir Carvalho permeada pelas suas experiências pessoais sua atuação política e artística que dialogavam com as diversas transformações pelas quais passava o Brasil Utilizamos especialmente duas obras Vladimir Carvalho pedras na lua e pelejas no asfalto 2008 de Carlos Alberto Mattos e Dos homens e das pedras o ciclo do cinema documentário paraibano 1959 1979 1998 dissertação de mestrado de José Marinho Carlos Alberto Mattos é um jornalista baiano crítico e pesquisador de cinema A biografia de Vladimir Carvalho elaborada por Mattos faz parte da Coleção Aplauso organizada pela Imprensa Oficial no Estado de São Paulo O texto é escrito em primeira pessoa característica da própria coleção a decisão sobre o depoimento de cada um na primeira pessoa mantém o aspecto de tradição oral dos relatos tornando o texto coloquial como se o biografado falasse diretamente com o leitor ALQUÉRES 2008 p 9 Essa escolha narrativa pretende tornar a leitura mais palatável e aproximar biografado e leitor É uma biografia que procura apresentar Vladimir Carvalho em seu contexto histórico descrevendo as experiências pessoais do cineasta e ligandoas à sua produção cinematográfica Utilizamos bastante este trabalho mas com ressalvas dado que é um texto escrito por Mattos apesar de escrito como uma fala do próprio Carvalho A dissertação de mestrado de José Marinho Dos homens e das pedras o ciclo do cinema documentário paraibano 1959 1979 foi outra preciosidade para nosso trabalho42 Marinho mostra o surgimento de um ciclo de documentários entre as décadas de 1950 e 1970 na Paraíba Aborda o contexto de discussões no âmbito cineclubista que formariam alguns nomes de destaque como Linduarte Noronha Vladimir Carvalho e Ipojuca Pontes Realiza também uma espécie de pequena biografia de seus expoentes como Linduarte Noronha Vladimir Carvalho e Rucker Vieira e analisa os principais clássicos dessa produção cinematográfica Aruanda 1960 O País de São Saruê 1971 Romeiros da Guia 1962 A cabra na região semiárida 1966 e Os homens do caranguejo 1968 Servese de uma série de depoimentos destes artistas concedidos ao autor Outra fonte digna de indicação foram os textos do jornalista Wills Leal43 Ele publicou obras como Cinema no Nordeste 1982 Cinema Província 1968 e Cinema na Paraíba Cinema da Paraíba 2007 As duas últimas auxiliaram na contextualização do cinema na Paraíba entre 1950 e 1970 Como Leal afirma sua obra é mais informativa que técnica sendo a primeira tentativa de apreender o fenômeno do cinema paraibano e o desejo de ser um depoimento 42 José Marinho atuou no teatro no cinema e na TV Na década de 1960 fez parte do Teatro de Cultura Popular TCP Participou como ator de diversos filmes incluindo Terra em Transe 1967 de Glauber Rocha Tornouse um acadêmico lecionando na Universidade Federal Fluminense UFF e sendo mestre pela Universidade de São Paulo USP 43 Wills Leal se formou em Filosofia na Faculdade de Filosofia de João Pessoa e depois bacharel em Língua e Literatura Francesas Leal é professor escritor e jornalista 37 pessoal sôbre o brotar o crescer e a projeção do cinema não só nos limites culturais e econômicos de uma província como no plano nacional LEAL 1968 p 5 Vladimir Carvalho é um documentarista paraibano que nasceu em Itabaiana na Paraíba em 1935 Destacamse na sua trajetória experiências pessoais no interior paraibano sua militância artística sua participação nas atividades do Partido Comunista Brasileiro no Centro Popular de Cultura CPC da União Nacional dos Estudantes UNE Em entrevista concedida ao Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural do Ministério do Desenvolvimento Agrário o cineasta comenta sobre sua origem itabaianense e sua inserção no cinema Nasci em Itabaiana PB na região da Caatinga litorânea onde a principal atividade produtiva era a pecuária Minha origem portanto permeia tudo o que fiz em cinema Já em Aruanda 1960 de Linduarte Noronha documentário que participei sobre comunidade de afrodescendentes ilhada no alto sertão paraibano reforçou essa minha tendência CARVALHO 200444 Vladimir Carvalho afirma que este é seu background e engajamento com a realidade rural Na sua obra cinematográfica são muito recorrentes os temas rurais ou a abordagem de eventos urbanos com um olhar voltado para o rural A trajetória de Carvalho está cindida com seu êxodo do Nordeste após o golpe militar quando se torna professor da UnB e sua cinematografia passa a dividir a paixão pelo Nordeste com Brasília45 Sobre a produção de longametragem de Vladimir Carvalho podemos afirmar que mesmo em Brasília volta seu olhar constantemente para o Nordeste É lá que realiza O País de São Saruê seu primeiro longametragem fechando um ciclo que começara na década de 1960 de um cinema de temática nordestina e de denúncia social Na década de 1980 seus dois citados 44 CARVALHO Entrevista realizada em 28 de junho de 2004 Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural NEAD do Ministério do Desenvolvimento httpwwwneadgovbrportalneadnoticiasitemitemid4986219 Acesso em 15 de ago 2013 45 Os filmes de Carvalho parecem refletir esse movimento migratório seus primeiros trabalhos são sobre a realidade paraibana todos na década de 1960 Romeiros da Guia 1962 A Bolandeira 1968 e O Sertão do Rio do Peixe 1968 Na década de 1970 já em Brasília temos a transição do cinema paraibano para o olhar que lança sobre seu novo lar o Distrito Federal Assim temos fechando o ciclo iniciado na década anterior O País de São Saruê 1971 e A Pedra da Riqueza 1975 somados a Incelência para um Trem de Ferro 1972 que falam sobre o Nordeste Carvalho começa então a fazer filmes também sobre a realidade da região do Planalto Central surgindo filmes diversificados como O Espírito Criador do Povo Brasileiro 1973 Itinerário de Niemeyer 1973 Vila Boa de Goyaz 1974 Quilombo 1975 Mutirão 1976 Pankakaru de Brejo dos Padres 1977 e Brasília Segundo Feldman 1979 todos curtas ou média metragens Apenas na década de 1980 Carvalho alcança fôlego suficiente para realizar novos longa metragens retomando a sua terra de origem com O Homem de Areia 1982 e com O Evangelho segundo Teotônio 1984 ambos voltados para a temas mais nordestinos Realiza curtas nesse período com Perseghini 1984 e No Galope da Viola 1989 A década de 1990 no entanto teria um longametragem que marcaria sua trajetória dessa vez filmando em Brasília mas com o olhar voltado para o Nordeste que ali existia Carvalho realiza Conterrâneos Velhos de Guerra 1990 Realiza curtas como A Paisagem Natural 1990 Com os pés no futuro zumzum 1996 e Ariano Suassuna em AulaEspetáculo 1997 e Manejo Florestal 1998 No século XXI realiza ainda o político longa Barra 68 Sem Perder a Ternura 2000 o nostálgico e biográfico Engenho Zé Lins 2007 e Rock Brasília 2011 38 longasmetragens mudam o tema não buscando mais o povo ou uma denúncia social da miséria mas retomam o olhar para seu espaço de origem agora focando o olhar em duas figuras nordestinas do coronel Teotônio ou do político e literato José Américo Conterrâneos Velhos de Guerra inaugura a década de 1990 após longa gestação e embora com tema e localidade diferentes seu olhar continua voltado para sua terrinha para seus conterrâneos com suas lentes a serviço dos candangos nordestinos que construíram Brasília desmistificando a capital do país exibindo sua ingratidão com os Severinos e Fabianos que a ergueram Seus últimos trabalhos demonstram sua dinamicidade seja documentarizando o escritor José Lins do Rego tão caro às suas lembranças e formação literária seja com o político Barra 68 Sem Perder a Ternura dando o troco à ditadura militar pelos anos de censura oferecidos a O País de São Saruê ou ainda no Rock Brasília no qual surpreendeu a crítica com um filme que tratava sobre música e rock retorquindo que seus filmes tinham rock afirmação confirmada no presente trabalho Concluímos que nos seus longasmetragens há uma predominância de temas políticos e de denúncia social olhando os de baixo particularmente os nordestinos Enumeramos elementos da trajetória pessoal que consideramos elucidativos sobre essa característica a a influência da literatura de autores como José Lins do Rego Graciliano Ramos Jorge Amado e Euclides da Cunha reconhecida em entrevistas e na biografia do autor c presença da cultura da civilização do couro na infância de Vladimir Carvalho que morava em um centro comercial de gado a Itabaiana da época e de seu avô materno que fabricava artigos de couro para vaqueiros e que era descendente dos Índios Cariris d a visão de mundo materialista de Vladimir Carvalho influenciada inicialmente pelo pai comunista Luís Carvalho pela militância do cineasta posteriormente no Partido Comunista Brasileiro e pelo aprendizado na escola do partido e sua participação e militância em organizações culturais vinculadas ou não ao PCB como grêmios literários cineclubes Teatro Socialista e o Centro Popular de Cultura CPC f sua atuação como jornalista para diversos jornais Paraibanos e também para a imprensa pecebista destacando a cobertura de conflitos sociais do campo g seu engajamento nos debates do cineclubismo paraibano das décadas de 1950 e 1960 ressaltando o contato com o documentário de Robert Flaherty O Homem de Aran 1934 e seu ingresso no ciclo documentarista nesta segunda década destacando a participação em Aruanda que representou um marco na filmografia brasileira h sua formação em Filosofia iniciada na Universidade Federal da Paraíba e concluída na Bahia i sua atuação no Centro Popular de Cultura especialmente na produção do filme 39 censurado Cabra Marcado pra Morrer 19641985 de Eduardo Coutinho j seu trabalho com artistas diversos como Caetano Veloso e Arnaldo Jabor Ao que nos interessa mais imediatamente gostaríamos de indicar que Vladimir Carvalho foi um homem em cuja infância houve uma primeira influência que indica um olhar solidário para questões sociais que se relaciona ao seu ingresso na militância comunista Relacionado a isto está o desenvolvimento de seu trabalho jornalístico conhecendo mais profundamente os problemas sociais do Nordeste por exemplo ao cobrir os conflitos das Ligas Camponesas para o jornal do PCB Novos Rumos Formouse em filosofia atuou em organizações culturais e teve contato com a literatura dita regionalista chegando finalmente ao debate e produção cinematográfica Era o que podemos chamar de um intelectual do partido figuras de ambígua relação com o PCB como mostramos adiante 22 Planomédio o cenáriopercurso de artistas comunistas e O País de São Saruê Em Prisioneiros do Mito cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil 1930 19562002 Jorge Ferreira realiza um trabalho sobre a cultura política e o imaginário dos comunistas entre as décadas de 1930 e 1950 Mostra elementos do cotidiano de militantes comunistas operários intelectuais e dirigentes e a construção do imaginário na vida partidária que permitiam suas práticas e características específicas Nessa discussão apresenta como a relação entre intelectuais e PCB era por vezes conflituosa Após 1945 com a redemocratização e fim da Segunda Guerra Mundial houve grande adesão dos intelectuais ao PCB FERREIRA p17846 Essa adesão se deu também com uma guinada para uma rígida concepção sobre arte e um esquematismo de produção cultural e no enquadramento e no controle de artistas e escritores É neste momento que o jdanovismo é assumido pelos comunistas e com ele o realismo socialista47 Nessa ótica o partido acreditava 46 No Brasil a grande adesão de intelectuais do PCB ocorreu após 1945 na conjuntura da democratização O desprezo que eles nutriam pelo fascismo o grande prestígio dos comunistas com o término da II Guerra e os ideais de racionalidade de progresso e da ciência que pareciam desprezados pela burguesia mas que agora surgiam como bandeiras da URSS atraíram um grande número de artistas e escritores ao marxismo FERREIRA 2002 p177 Indica ainda que a convivência com fluxos criativos fez com que de modo geral o PCB afirmarse com a modernidade artística também explicando tal adesão de intelectuais 47 Ferreira afirma ainda que na versão imposta por Andrei Jdanov o realismo socialista implicava a premissa de que o partido e somente ele era portador da única verdade em todas as dimensões da vida social inclusive na da arte somente os artistas e intelectuais que aceitaram o marxismoleninismo e se submeteram às diretrizes partidárias teriam crédito e confiança em suas atividades nas mais diversas expressões artísticas o essencial era exaltar operários e camponeses mitificandoos no gênero conhecido como histórico revolucionário o subjetivismo o abstracionismo o expressionismo e o formalismo deveriam ser recusados 40 que o papel do intelectual e do artista do partido segundo o jdanovismo era retratar com fidelidade e realismo a vida dos trabalhadores e denunciar desse modo a exploração e a miséria que sofriam Os dirigentes afirmavam que a função dos intelectuais era realizar obras sobre o povo categoria entendida a partir de uma leitura pecebista influenciada pelo marxismo soviético Outra característica indicada era de produzir uma arte acessível ao povo FERREIRA 2002 p181182 objetivo valorizado pelo partido na literatura de Jorge Amado Ferreira conclui que os revolucionários portanto não questionavam o valor e a importância social da arte mas sim o estilo a mensagem e a finalidade política da obra 2002 p183 Ferreira baseado em Strada afirma ainda que se por um lado o jdanovismo foi uma política repressiva e paralisadora de qualquer iniciativa criadora por outro também não se pode negar que o realismo socialista e a estética marxistaleninista também detiveram um caráter ativo e produtivo Artistas e intelectuais não aderiram a essa estética soviética passivamente mas também pelo fascínio que ela exerceu sobre muitos intelectuais internacionalmente48 No Brasil houve uma anterior aproximação desse grupo ao PCB em 1945 mas um afastamento em 1947 e uma grande reaproximação com a desestalinização49 Os intelectuais detinham uma ambiguidade na relação com o PCB eles eram alvo de admiração e exaltações mas também de desconfiança e desprezo por dirigentes e militantes O Partido queria o prestígio e apoio de intelectuais no entanto exigia que assumissem o marxismoleninismo nos moldes descritos por ele Não apenas determinouse regras para a produção artística e intelectual mas houve casos de perseguições a artistas dentro do PCB FERREIRA 2002 p191 Por isso Ferreira conclui que Ser intelectual em um partido comunista portanto era muito difícil Entre o elogio e a execração ele por sua origem de classe estava sempre sob suspeita A liberdade de expressão cultural o livre curso da criação artística a produção do conhecimento científico isenta de regras e as necessidades bem como qualquer inovação no campo do teatro da ópera da pintura do cinema da literatura da música e da comédia por fim toda a produção cultural na União Soviética era bela e superior e tudo o que vinha do Ocidente era decadente corrupto e imoral 2002 p180 48 O autor indica ainda que muitos autores considerados clássicos chegaram às mãos de grande número de leitores na URSS como Byron Balzac Dikens Victor Hugo Shakespeare Gabriel García Márquez Sobre o aspecto produtivo da arte soviética e seus problemas podese conferir em Da revolução cultural ao realismo socialista de Vittorio Strada no nono volume de História do Marxismo Eric Hobsbawn org publicado pela Paz e Terra 49 Entre 1958 e 1972 houve crescimento do partido e sua desestalinização na década de 1950 abraçando uma política antiimperialista e uma luta por reformas nacionalistas e democráticas As denúncias dos crimes de Stálin e os conflitos gerados na desestalinização do Partido contribuíram para um momento de crise que levou a divergências políticas programáticas e dissidências O marco inicial dessa mudança foi o documento conhecido como Declaração de Março de 1958 O PCB se tornou menos sectário aproximandose ainda mais dos setores intelectuais e artísticos e exercendo grande influência nas artes do período Nesse período houve uma significativa mudança na relação com intelectuais e artistas Para mais informações conferir Em Busca do Povo Brasileiro artistas da revolução do CPC à era da TV 2000 de Marcelo Ridenti 41 libertárias da imaginação não se adaptavam com as exigências da militância profissional e as apertadas amarras do stalinismojdanovismo O intelectual engajado o artista comprometido e o escritor politicamente disciplinado à direção do partido continuavam a produzir suas obras No entanto eles abdicavam do direito de expressão da autonomia cultural e da capacidade de imaginar livremente O intelectual comunista excessivamente comprometido deixava de ser um livrepensador FERREIRA 2002 p191 192 Contudo será que esse quadro traçado por Ferreira se aplica ao Vladimir Carvalho e sua obra O País de São Saruê A análise de Ferreira cobre até 1954 porém confrontando os dados com o sociólogo Marcelo Ridenti que cobre as décadas de 1960 e 1970 parecenos que diversos conflitos e ambiguidades permaneceram Porém não encontramos evidências de uma ausência de livrepensamento no trabalho do documentarista Houve sim uma forte adesão à formação oriunda do partido mas isso não limitou sua produção artística pelo contrário fez parte dos elementos que enriqueceram seu ofício Marcelo Ridenti indica como a linha política do PCB se centrava menos em uma revolução imediata que na junção das forças progressistas pelo fim do atraso contra o imperialismo e o latifúndio Mas afirma que no setor cultural uma das matrizes do romantismo revolucionário surgiu no interior do PCB particularmente no setor cultural RIDENTI 2000 p65 Afirma ainda que Com o fim do zdanovismo não havia diretrizes claras da direção do PCB para uma política cultural partidária Esta passou a ser formulada na prática por artistas e intelectuais do Partido ou próximos dele que estavam em sintonia com os movimentos sociais políticos e culturais do período talvez o tempo em que o PCB mais tenha influenciado a vida política e intelectual nacional quando ele preponderou no seio de uma esquerda que foi forte o suficiente para Roberto Schwarz falar numa hegemonia de esquerda no campo cultural 1978 RIDENTI 2000 p72 50 A maior flexibilidade de artistas vinculados ao partido não só auxiliou a relação destes com o PCB mas permitiu uma maior revitalização nas produções artísticas Podemos conferir na citação também como seus temas e preocupações estavam vinculados aos conflitos políticos e sociais da época Buscavase pensar os rumos do país e intervir para a efetivação de mudanças políticas nacionais através da arte Para tanto as produções refletiram sobre o que era o povo brasileiro procurando nas suas raízes projetar seu futuro de utopia A esse fenômeno Ridenti chamou de romantismo revolucionário 50 Marcos Napolitano em Cultura Brasileira Utopia e massificação 19501980 2000 enxerga o período de outra maneira apontando a multiplicidade que caracterizava a cultura brasileira no período Aponta outros elementos da indústria cultural presentes no período como as divas do rádio e o cinema de chanchada NAPOLITANO 2008 p89 42 Os artistas vinculados ao romantismo revolucionário utilizaram a arte como instrumento de transformação social Procuraram nos migrantes favelados e nos camponeses temas para pensar o homem novo nascido de uma vontade revolucionária Era um romantismo modernizante mas que queria também virtudes atribuídas a uma realidade précapitalista A autenticidade nacional era buscada no povo Queriam uma transformação social e viam na arte um instrumento de luta RIDENTI 2000 p 2527 Carlos Estevam Martins no Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura publicado em Março de 1962 descreve uma arte popular revolucionária como uma arte que se alinhava com a essência do povo No conceito de povo existia um recorte da nação e do popular os governados pelos outros e para os outros MARTINS 2004 p 149150 Durante a repressão do governo militar e o fechamento das vias de participação política e perseguição ao movimento sindical e aos partidos o setor artístico representou um espaço de forte resistência da esquerda Dois grandes exemplos foram o Show Opinião e os Festivais de MPB que se transformaram em verdadeiras arenas políticas Ao mesmo tempo houve o avanço da indústria cultural e com ela uma maior inserção de artistas na lógica de mercado para sobreviver Em geral após o golpe houve um gradativo afastamento de artistas e do PCB Podemos afirmar que houve uma vinculação e aproximação de Vladimir Carvalho ao ideário do romantismo revolucionário e encaixe no movimento artístico Contudo a segunda parte de maior aproximação de artistas à indústria cultural e ao afastamento dos artistas do PCB não ocorreu com o documentarista paraibano Não é lúcido afirmar que Vladimir Carvalho esteve ou esteja fora disso Contudo Vladimir Carvalho não se afastou do PCB e buscou resistir tanto à lógica da indústria cultural ou às acomodações de artistas ao regime a fim de garantir uma maior liberdade de produção Em entrevista o cineasta afirma que nunca trabalhara por encomenda e reforçou que só filma aquilo que lhe envolve que lhe comove Seus filmes partiram de propostas com as quais se identificou não era essa frescurinha da inspiração eu via que havia necessidade depois via que aquilo podia ser útil Eu sou um sertanejo eu sou um nordestino então se tinha a questão fundiária no país uma coisa que nunca se fez a reforma agrária se tinha gente sofrendo por causa disso se o latifúndio era algo pernicioso na economia nordestina e eu via assistia e conhecia aquele meio aquela realidade era a minha obrigação se eu me defini pelo documentário de dar aquele recado CARVALHO 200151 Por isso podemos ver como o caráter da finalidade política e social de sua arte era mais central que exatamente a sobrevivência dela para Vladimir Carvalho Isso também se deu pela possibilidade em muitos momentos de ganhar dinheiro por outras vias como o 51 CARVALHO Entrevista realizada em 03 Novembro de 2001 por Marília Franco Disponível em httpwwwmnemocinecombraruandavcarvalho3htm Acesso em 06 nov 2012 43 jornalismo ou dando aulas na UnB Essa última ofereceulhe uma flexibilidade financeira que permitiu realizar as filmagens de O País de São Saruê O historiador Rodrigo Patto Sá Motta indica em seu livro As Universidades e o Regime Militar 2014 que houve acomodações na política brasileira entre setores ligados à elite e o regime militar Essa seria uma tendência da sociedade brasileira uma cultura política de conciliar o velho e o novo e de não realizar rupturas mais radicais assim é forte entre nós brasileiros o recurso à conciliação à busca de soluções de compromisso que evitem o caminho de rupturas radicais Procurase acomodar os interesses de grupos em disputa em um jogo de mútuas concessões para evitar conflito agudo sobretudo quando os contendores principais pertencem às elites sociais Entretanto nem todos os agentes políticos fazem uso de tais estratégias e os que o fazem não são movidos por lógica férrea ou qualquer forma de determinismo pois em alguns contextos os apelos à conciliação não são bemrecebidos A conciliação e a acomodação fazem parte do repertório de estratégias à disposição dos que disputam os jogos de poder no Brasil ou seja elas integram a cultura política do país e como há larga tradição e vários exemplos bem sucedidos muitos líderes são incentivados a escolher tal caminho na esperança de construir projetos políticos estáveis MOTTA 2014 p1415 Com relação ao cinema na biografia escrita por Mattos há a insinuação desse tipo de atitude de acomodação ou conciliação às quais Vladimir Carvalho se orgulha de não ter participado Sobre os anos de censura que sofreram O País de São Saruê escreve Mattos em primeira pessoa sobre o documentarista que Tampouco admiti fazer concessões contra a integridade do filme como a sugerida por um amigo conciliador no sentido de introduzir um discurso do Presidente Médici em Recife Recuseime também a fazer uso das abomináveis sessões privadas para figurões da República em troca de promessas de cumplicidade para liberar Ao próprio Glauber Rocha neguei procuração para interceder em meu nome em 1977 quando ele enchia páginas do Correio Braziliense com sua apologia de Geisel e Golbery MATTOS 2008 p136 Dessa maneira há indícios das acomodações indicadas por Rodrigo Motta na política brasileira também entre artistas e o regime militar Mesmo Glauber Rocha que escreveu o famoso manifesto cinemanovista Eztetyka da Fome 1965 realizou algumas concessões pelo indicado no texto de Mattos Contudo desse tipo de influência ou estratégia de conciliação como outras Vladimir Carvalho manteve distância A militância no PCB não foi a única a influenciar Vladimir Carvalho em seu ideário romântico e revolucionário mas também em seu cotidiano refletiu leu pesquisou e participou 44 de muitos dos temas que filmou A importância dessas atuações para a abordagem da economia agrária em O País de São Saruê por exemplo pode ser identificado nesta passagem da biografia do cineasta realizada por Mattos e escrita em primeira pessoa Com o surgimento das ligas camponesas fazia frequentes viagens para dar assistência aos lavradores e suas famílias juntamente com médicos dentistas advogados economistas e agrônomos Cobria as ligas da Paraíba para o jornal Novos Rumos que o PCB editava no Rio Por conta de reuniões do setor estudantil do Partido fiz várias viagens ao Rio ainda nos anos 1950 Não posso negar que esse período de estudos e atividades com o aprofundamento contínuo dos conceitos disseminados pelo Partido teve uma enorme importância na minha formação Na minha e na de muita gente neste país Descontados alguns sectarismos e equívocos a escola do Partido como era chamada no jargão próprio estruturoume moralmente para a vida A insistência na esperança é um dos traços que dela herdei MATTOS 2008 p7071 Por isso a escola do partido é reconhecida por Vladimir Carvalho como uma importante influência para sua formação intelectual e moral Essa presença pode ser confirmada a nível estético e de conteúdo nos filmes de Vladimir Carvalho e particularmente em O País de São Saruê Isso fica evidente durante a análise do filme nos capítulos seguintes Cabe destacar que outros elementos da formação de Vladimir Carvalho como a formação literária não restrita à literatura do partido não eram monopólio do cineasta mas comum a muitos artistas engajados da época A nível de exemplo na introdução de Dos homens e das pedras o ciclo de cinema documentário paraibano 19591979 José Marinho afirma De Euclides da Cunha a Graciliano Ramos passando por José Américo de Almeida José Lins do Rego Josué de Castro Ariano Suassuna e Gilberto Freyre uma vasta produção cultural enunciou e denunciou as profundas contradições no sistema político e social da região Nordeste MARINHO 1998 p25 Esses artistas são referidos na biografia de Vladimir Carvalho e alguns em outras entrevistas como Josué de Castro Euclides da Cunha e Gilberto Freyre ou ainda foram personagens protagonistas de seus documentários como José Américo de Almeida e José Lins do Rego A forma no entanto como cada artista se apropria e utiliza tais influências são fenômenos autênticos e individuais Cabe ainda destacar a importância da Universidade Federal da Paraíba e seu pólo cineblubista na Faculdade de Filosofia que teve papel na formação do cinema paraibano em geral MARINHO 1998 p30 Em depoimento a José Marinho Wills Leal afirma que 45 todos nós éramos até certo ponto meio esquerda excetua Linduarte Noronha e Jomard Muniz de Britto o Vladimir o João Ramiro Todos nós fomos para a Faculdade de Filosofia éramos filósofos na época mas uma filosofia Bernanos até certo ponto mas até certo ponto também marxista LEAL Apud MARINHO 199831 Essa foi uma época de atuação de Vladimir Carvalho no âmbito da crítica cinematográfica no rádio em programa sobre cinema contribuindo para jornais Correio da Paraíba A União e A Tribuna do Povo e assumindo até a presidência da Associação dos Críticos Cinematográficos da Paraíba MATTOS 2008 p76 LEAL 1968 p44 Pela afirmação de Wills Leal podemos ver que esse núcleo paraibano sofria influência marxista 21 Planodetalhe documentarizar um filme de baixo uma escolha Essa seção aborda a escolha de fazer um documentário de baixo de Vladimir Carvalho Desenvolvemos o tema articulando a análise da primeira sequência que introduz os temas a serem abordados pelo documentário às intenções e formação política do documentarista Indicamos também os préfílmicos que também contextualizam as condições políticas e econômicas da produção do documentário Uma afirmação é central para nosso trabalho o homem faz escolhas Quando analisamos O País de São Saruê consideramos essencialmente que ele possui um caráter autoral52 Tal pressuposto torna essencial a reflexão sobre as motivações que levaram Vladimir Carvalho a realizar esse documentário e a problematização de suas elaborações estéticas e conteudísticas Optamos por não opor as influências sociais e históricas sofridas pelos indivíduos ao nível subjetivo mas eleger como nosso objeto de estudo essa articulação As características autorais são identificadas através de uma interpretação histórica e política da estética em um filme Através dessa análise chegamos a elementos de uma cultura política cristalizada em uma cultura cinematográfica Roberto Pattos Sá Motta define cultura da seguinte maneira 52 Shirly Ferreira de Souza 2010 mostra que Vladimir Carvalho não considera O País de São Saruê como um filme de autor mas apesar disso defende esta afirmação A autoria proposta pela crítica francesa da época indicavam a necessidade de uma unidade de obra a repetição de temas e a recorrência de traços estéticos que poderiam identificar um estilo seriam as características que definiriam o autor nesses moldes franceses o que inviabilizaria segundo a autora esse encaixe é uma insuficiência de grande produção de Vladimir Carvalho à época que permitisse identificar tais traços de autoria Por outro lado Shirly propõe que se considere a concepção de autoria dos cinemanovistas que pressupunham para tanto principalmente uma responsabilidade social e experimentação estética características que contemplam O País de São Saruê SOUZA 2010 8587 46 A definição conceitual de cultura é extremamente polêmica Contudo para nossos fins optamos por lançar mão de uma definição que mesmo não sendo consensual é pelo menos a mais corrente entre os estudos etnológicos Cultura então seria o conjunto complexo constituído pela linguagem comportamento valores crenças representações e tradições partilhados por determinado grupo humano e que lhe conferem uma identidade 1996 p93 Esse conceito de cultura nos ajuda a balizar o tema e abordagem de nosso trabalho Ao pensarmos em O País de São Saruê como um documento histórico identificamos nas representações contidas ali características culturais que articulam dois grupos comunistas e artistas Encontramos o fenômeno que Marcelo Ridenti chamou de romantismo revolucionário pelo qual se identifica um imaginário que podemos compreender pela análise de suas produções e pelo rastreamento de suas influências políticas e artísticas Assim articulase no nosso objeto de análise desde a circularidade de discussões do Partido Comunista Brasileiro sobre a realidade camponesa como o trabalho literário de um Euclides da Cunha ou a geografia social de Josué de Castro em Geografia da Fome 1947 Para Roberto Motta historiadores começaram a adotar o conceito de cultura em detrimento de mentalidades pois este possui uma imprecisão conceitual e também tendia a uma homogeneização exagerada das sociedades passando por cima de suas diferenças e especificidades já o conceito de cultura é mais consistente e permite uma maior apreensão do mesmo objeto as representações mentais Ao mesmo tempo respeitaria mais as particularidades dos grupos em uma sociedade 1996 p93 Por isso Roberto Motta afirma que o conceito de cultura política nosso objeto de discussão pode ser caracterizado como o conjunto de normas valores atitudes crenças linguagens e imaginário partilhados por determinado grupo e tendo como objeto fenômenos políticos 1996 p9553 Como 53 Cabe comentar que o conceito de cultura política possui também ainda uma complicada definição Nos textos lidos identificamos a inexistência de uma definição unívoca e precisa em fenômeno parecido com o conceito de cultura histórica Isso no entanto não impediu uma enorme produção de trabalhos que partem desta concepção para a construção de seus objetos de estudo O historiador norteamericano Ronald P Formisano em seu artigo The Concept of Political Culture 2001 indica as contribuições e influências da antropologia e da ciência política para o trabalho dos historiadores com o conceito de cultura política bem como os atritos com a última Ressalta a enorme produção de trabalhos empíricos em detrimento de uma busca de definição conceitual pelos historiadores realizando um levantamento dessa produção nos EUA Giacomo Sani no Dicionário de Política de Noberto Bobbio 2000 reforça esse caráter de ampliação do objeto político para além do estrito às instituições políticas e a da participação direta nas decisões do Estado para outros âmbitos de vivência do político como as crenças os ideais as normas e as tradições p306 Indica em acordo com Formisano e Roberto Motta a existência de subculturas ou seja especificidades de grupos que divergem entre si em uma mesma sociedade possuindo práticas políticas diferenciadas Nesse sentido retomando uma ampliação da noção de cultura política que se afastava de uma tendência no início de se restringir ao recorte nacional para identificar culturas políticas Isso é melhor explicado por Roberto Patto Sá Motta no artigo Desafios e Possibilidades na apropriação de cultura política pela historiografia 2009 O historiador indica que houve dois grupos de tendências do conceito um dos cientistas sociais norte americanos mais influenciados pela sociologia e pela psicologia e outro de autores franceses inspirados pela antropologia Estes últimos se diferenciaram dos primeiros pela rejeição etnocêntrica de teorizações baseadas em Almond e Verba expoentes dessa vertente que colocavam uma espécie de superioridade da cultura 47 identificamos estamos tratando de um imaginário que se relaciona aos comunistas o romantismo revolucionário e de um documentarista que era militante do PCB 54 Sobre isso Roberto Motta afirma que existem vetores sociais responsáveis pela reprodução das culturas políticas como família instituições educacionais corporações militares partidos e sindicatos Nada mais natural quando lidamos com uma categoria que pressupõe que as escolhas políticas dos indivíduos são determinadas por filiação a grupos eou tradições 2009 p23 Vladimir Carvalho era filiado como indicado ao PCB e manteve certa fidelidade ideológica e engajamento que podem ser identificados em entrevistas e também nos temas e estética de seus documentários Por isso seu trabalho artístico é um excelente espaço para uma problematização de manifestações da cultura política comunista brasileira no documentário nacional Servimonos da liberdade que a arte permite a diferentes leituras realizando uma interpretação nossa do filme por outro lado buscamos em O País de São Saruê também identificar interpretações pensadas a partir da intencionalidade do cineasta refletindo sobre o seu trabalho autoral o que lhe é particular no filme suas opções mas sem deixar de lado sua apropriação de outras elaborações artísticas o caráter geral que se refere aos sintomas culturais da época Procuramos fazer uma dialética entre o particular e o geral bem como entre nossa interpretação e àquela que achamos plausível de identificar como circunscrita nas intencionalidades políticas e artísticas do autor ou da lógica própria do documentário Perguntamonos por que Vladimir Carvalho resolveu fazer um filme na Paraíba sobre o sertão focando nos populares e nos conflitos sociais ali inscritos Esse problema abre o cívica ou democrática que contrastaria com outras mais atrasadas O grupo francês desenvolveu uma perspectiva mais centrada nas características diversas dentro de um mesmo povo rejeitando a homogeneização nacional implicada por essa outra vertente inspirados em Berstein e Sirinelli Focalizam assim em culturas políticas comunistas liberais socialistas dentre outras chamadas por Berstein de famílias políticas MOTTA 2009 p1920 O uso pelos historiadores foi aderido nas décadas de 1980 e 1990 havendo uma ampliação das possibilidades da História Política 54 Sobre a cultura socialista ou comunista Rodrigo Pattos Sá Motta afirma que no mundo contemporâneo constituiuse uma cultura política socialista que tendo se estabelecido entre o início e o meio do século XIX foi reproduzindose ao longo das décadas atravessou o século seguinte e está presente até hoje embora no momento viva uma séria crise A cultura socialista possui todos os elementos necessários para caracterizála enquanto tal valores atitudes crenças normas e um imaginário que têm garantido ao grupo uma forte identidade própria nos últimos cento e cinquenta anos 1996 p95 Sobre a cultura política comunista no Brasil existem diversos trabalhos destacamos na dissertação o Prisioneiros do Mito cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil 19301956 de Jorge Ferreira que abordou o imaginário no cotidiano de comunistas mas há uma série de outros trabalhos tratando inclusive da relação entre arte e política Um bom exemplo é a coletânea de artigos Comunistas Brasileiros cultura política e produção cultural 2013 organizada por Marcos Napolitano Rodrigo Czajka e Rodrigo Patto Sá Motta os trabalhos incluem análises de representações na pintura dramaturgia televisiva jornalismo e até em políticas culturais demonstrando como os enfoques da cultura política podem ser dos mais diversos e como a cultura política comunista influenciou fortemente artistas e intelectuais no Brasil 48 presente capítulo Não podendo focar nos conflitos das Ligas Camponesas ou outros conflitos do campo que se radicalizaram mesmo após a ditadura militar Vladimir Carvalho vai para o sertão onde poderia denunciar os problemas do modo de produção rural sertanejo de maneira segura Sua denúncia no entanto dialoga diretamente com a centralidade da questão agrária das teses comunistas sobre a realidade brasileira O conceito de apropriação visa uma história social das interpretações remetidas para as suas determinações fundamentais que são sociais institucionais culturais e inscritas nas práticas específicas que as produzem CHARTIER 1990 p26 Através desse conceito discutimos como o filme mobiliza discursos apropriação e produz uma interpretação representação uma leitura da realidade sertaneja em O País de São Saruê Ele nos auxilia a pensar como as leituras e experiências de Carvalho são apropriadas de maneira a elaborar um discurso que se serve por exemplo das leituras de Os Sertões Por sua vez os sintomas culturais são aquilo que Erwin Panofisky indica como formas pelas quais em determinadas condições históricas artistas expressaram certos conteúdos em temas e conceitos55 Há três dimensões de análise aplicadas às obras de arte diferenciadas por Panofsky que é interessante deixar bem claras A história dos estilos que consiste na maneira diversa que em um mesmo contexto histórico objetos e fatos são expressos em formas a história dos tipos a maneira pela qual sob condições históricas diferentes temas específicos e conceitos são expressos por objetos e fatos e por fim a história dos sintomas culturais que são as maneiras pelas quais sob condições históricas diferentes as tendências gerais e essenciais da mente humana foram expressas por temas específicos e conceitos PANOFSKY 1986 p0708 Panofsky e a História Cultural podem ser articulados na tentativa de entender as representações e suas apropriações como matrizes de discursos passíveis de identificação em sintomas culturais ou seja uma recorrência de temas que expressam conteúdos de dimensão discursiva Embora o autor pense uma 55 Panofisky e as etapas de seu método iconológico e iconográfico são melhor indicadas no capítulo seguinte Em artigo publicado na revista de história e estudos culturais Fênix a Professora de Arte da UFJF Raquel Quinet Pifano comenta o método de Panofisky ajudando a identificar melhor as ideias do autor Afirma que nas etapas do processo de interpretação de Panofisky há a identificação da história dos estilos como representam objetos em contextos históricos a história dos tipos quando se chega ao âmbito da convenção como temas e conceitos são representados através de objetos e fatos são as imagens Elas podem ser combinadas gerando alegorias ou histórias cuja análise remete à iconografia sendo necessário o cruzamento com outras fontes para interpretação de como essas formas de representar foram adquiridas Por fim a autora fala do nível iconológico de análise que busca uma compreensão mais profunda do objeto e que para Panofisky é apreendido pela determinação daqueles princípios subjacentes que revelam a atitude básica de uma nação de um período classe social crença religiosa ou filosófica qualificados por uma personalidade e condensados numa obra 1986 p52 Esse método mesmo pensado para a análise de pintura nos ajuda a sistematizar nosso pensamento pensado as imagens cinematográficas nestes três passos descrevendoas compreendendo sua maneira de representar em sua historicidade para por fim buscar entender o que revelam sobre um grupo social de artistas engajados entre os quais se inscreve o trabalho particular de Vladimir Carvalho inscrito no discurso de O País de São Saruê 49 linguagem iconográfica para imagens sem movimento aplicamos seus estudos para uma imagem em movimento cinematográfica Discurso aqui é entendido como o pensamento de determinados grupos em um contexto histórico uma ideologia sistematizado segundo uma certa lógica assumida pelos seus agentes Por isso podemos opor o discurso dos comunistas ao discurso dos militares por exemplo Identificase dentro da diversidade do pensamento particular dos agentes da palavra no Brasil da década de 1960 e 1970 uma lógica comum ao grupo Ou seja dentro das divergências entre Alberto Passos Guimarães e Caio Prado Júnior ambos pecebistas havia no entanto elementos discursivos comuns por exemplo ambos se apropriavam da ideia de luta de classes no entanto também interpretavam de maneira diversa qual era o modo de produção no Nordeste semifeudal para o primeiro e capitalista para o segundo Um intelectual costura seu discurso utilizando diferentes tecidos de outros Carvalho inicia o documentário com imagens do terreno sertanejo seco e árido56 Nessa sequência são apresentadas também informações históricas sobre a região identificando o processo de ocupação e colonização dessas terras trazendo a opressão sofrida aos indígenas Cariris e sua resistência57 Em imagens não temos a presença humana como objeto de filmagem Ainda assim os letreiros que fornecem dados históricos referentes aos homens da região e a poesia ao final também trazem o elemento humano Ao descrever essa sequência para Jomar Souto fazer a poesia que narra grande parte do filme Carvalho indica as imagens naturais que constarão nesses planos iniciais aves voando sobre um açude e basicamente paisagem natural sertaneja e ao final o que espera de contextualização histórica Poematexto fala da raça espoliada e extinta que habitou o sertão e das entradas portuguesas que a dizimaram quando fizeram sua marcha para o Oeste instalando os currais de gado que deram origem às primeiras fazendas sertanejas O domínio natural da cultura pastoril em relação ao trogloditismo da vida tribal A perda da liberdade com a tentativa de escravidão do primitivos habitantes A praia e a reação dos índios a grande guerra da 56 Shirly Ferreira de Souza em sua dissertação O sertão como dado São Saruê como aspiração o documentário O País de São Saruê entre a utopia e a política 2010 inicia sua análise de O País de São Saruê contando como em seu início os letreiros informam sobre a recuperação e contexto de censura do filme e que hoje eles são parte constituinte do filme O objetivo da mestranda era tratar dos silêncios no filme no período de censura o que tornou pertinente leválos em consideração Porém ao pensarmos no filme como um documento da década de 1960 e nos preocuparmos com sua construção narrativa para entender aquele período histórico preferimos abordar o enredo mais ligado à proposta original do filme ou seja a questão do modo de produção no sertão nordestino Por isso deixamos de lado as inserções informativas recentes inseridas no enredo do documentário em DVD País de São Saruê O Direção Vladimir Carvalho Marcus Odilon Coutinho Produções Rio de Janeiro RJ 1971 90 min Som Color Formato 35 mm Os dados completos do filme podem ser conferidos no Anexo A Ficha técnica de O País de São Saruê p194 57 Esta introdução cheia de referências históricas será trabalhada no próximo capítulo ao analisarmos de maneira mais ampla a narrativa elaborada no documentário 50 Confederação dos Cariris Vence o branco português o primeiro dominador estranho à terra CARVALHO 1986 p17 Identificamos o recorte social raças espoliadas aqui tanto étnico o substantivo se refere ao indígena quanto econômicopolítico representado pelo adjetivo Historicamente delimita a entrada portuguesa e o massacre na marcha para Oeste identificando tal processo com a origem das primeiras fazendas sertanejas da ocupação do espaço sertanejo do processo de formação da civilização do couro Ainda aponta a mudança da sedentarização da cultura pastoril diferenciandoa de um trogloditismo da vida tribal Por outro lado houve a perda da escravidão dos primitivos habitantes os índios que terminam vencidos pelos brancos mas não sem conflito na indicação da resistência Cariri Estes são elementos interpretativos da história colonial brasileira sertaneja e paraibana que são objetivados pelo cineasta Mostramos no capítulo seguinte sua realização em imagens cinematograficamente Podemos apenas adiantar que ao resultado final do filme a poesia não fala tão explicitamente quanto se poderia esperar da descrição dos conflitos no texto de Carvalho O poema oferece uma forma lírica que ameniza seu caráter de denúncia no filme ao menos se compararmos a possível opção que resultaria no uso de uma pesada e explícita voz over58 elemento comum do documentário clássico Na indicação para o poeta permanece um registro da intencionalidade política das indicações de Carvalho fornecendo subsídios para afirmarmos que O País de São Saruê detém uma abordagem de baixo59 Bill Nichols crítico e teórico do cinema que escreve sobre documentário afirma que o documentário libera uma análise histórica de uma realidade social 2009 p69 Nesse 58 Uso de uma voz em um filme cujo personagem não aparece em imagem Possui vários tipos a mais famosa em voz de deus cujo locutor não se apresenta mas possui um tom e treino oratório que conferem credibilidade científica para seu discurso 59 Assumimos aqui que há uma construção parecida àquela indicada pela historiadora Regina M Behar no artigo Conterrâneos Velhos de Guerra o cinema escreve a história vista de baixo 2010 No seu texto estão articulados cultura histórica e cinema demonstrando como Vladimir Carvalho realizou no documentário Conterrâneos Velhos de Guerra uma empreitada de uma contrahistória nos termos de Marc Ferro opondose à visão monumental predominante acerca da construção de Brasília através do uso do ponto de vista dos candangos que a construíram Lá no entanto o cineasta se vale especialmente de entrevistas mas não somente para construir esse discurso Em O País de São Saruê temos uma construção na qual há apenas uma entrevista com populares na sequência da mineração do ouro predominando o modelo de documentário eu falo sobre vocês Ainda assim acreditamos que a perspectiva adotada pelo cineasta pode ser indicada como uma perspectiva que assume um lugar de classe ou seja do intelectual que procura assumir a ideologia a identidade de classe daquilo que entendem como classe operária ou camponesa Em meio aos discursos do Brasil do milagre econômico tanto o filme também pode representar uma contra história como uma tentativa de um discurso de baixo ou aos moldes da história a contrapelo de Walter Benjamin na qual o historiador neste caso cineasta materialista histórico se afasta o máximo possível da tradição Ele considera como tarefa sua pentear a história a contrapelo BENJAMIN 1985 p157 Daí a conclusão de Regina Behar de que Vladimir Carvalho imigrante nordestino marxista cineasta preocupado com uma história vista de baixo interessava conhecer a história não contada interessava saber desses conterrâneos dos homens que como ele imigraram e com os quais compartilhavam uma identidade cultural e uma solidariedade de classe cujo compromisso se revela nessa trilogia documental pelos caminhos de Brasília BEHAR 2010 p198 51 sentido quando falamos aqui em uma perspectiva histórica de baixo pensamos no tipo de análise legitimada pelo documentário e não uma historiográfica ou seja a inscrição do filme no campo da cultura histórica como definido em Flores 2007 p 95 Vladimir Carvalho era militante do Partido Comunista Brasileiro e nunca escondera sua opção de classe ou seja de lutar por aqueles que considerava oprimidos pelo sistema social capitalista Apesar disso ele foi um intelectual que não veio da classe operária ou mesmo camponesa portanto não veio de baixo em um sentido classista marxista Seu pai um homem de certa leitura e de esquerda era figura influente na política e de considerável poder aquisitivo o que lhe fornecia um acesso privilegiado à cultura para ele e para seus filhos Não à toa Carlos Mattos ressalta na biografia do cineasta as leituras de Carvalho de José Lins do Rego na infância60 Apenas com a morte do pai Vladimir Carvalho necessitou trabalhar para ajudar nas despesas da família em sua juventude Ainda assim seus estudos foram garantidos chegando a fazer um curso superior de Filosofia Trabalhou a maior parte do tempo como jornalista que lhe garantia a sobrevivência e permitiu o engajamento no Partido Comunista Brasileiro e no Centro Popular de Cultura Quando fez as filmagens de O País de São Saruê estava atuando como professor universitário na UnB Portanto nessa trajetória Vladimir Carvalho era na verdade um homem simpático aos de baixo ou seja no jargão comunista participava de uma pequena burguesia que pendia para a luta das classes baixas Por isso quando falamos em documentário de baixo não pensamos em um cinema realizado por aqueles que são marginalizados economicamente pela sociedade como surgiu muito posteriormente mas em um documentário que faz uma opção temática classista por aqueles que seus realizadores consideravam de baixo a partir do imaginário da esquerda da época61 Pela trajetória de Carvalho pela cultura política que se inseria e pelos documentos e relatos nos quais se afirma suas intencionalidades com relação ao filme sabemos dos objetivos políticos e de certa concepção de realidade social que perpassa O País de São Saruê Havia um grupo social os sertanejos ou melhor uma classe camponeses a qual Carvalho tinha simpatia na elaboração de seu documentário Era para ela e por ela que ele fez seu filme Ele se aproxima da proposta do que Marc Ferro chamou de uma contra história uma história 60 Seu pai era um construtor compulsivo o qual Vladimir Carvalho assistiu no próprio terreno serem fabricados materiais de construção Sua família detinha relativas posses na época 61 Cabe como exemplo a diferença entre duas produções cinematográficas o Cinco Vezes Favela de 1962 realizado pelo CPC da UNE no qual militantes estudantis elaboraram uma representação da vida na favela a partir daquilo que entendiam daquela realidade e o Cinco Vezes Favela agora por nós mesmos de 2010 realizado sob produção de Carlos Diegues um dos diretores e produtores do filme anterior Diversamente ao anterior este último foi feito por moradores da própria favela Sua representação se aproxima mais de um cinema de baixo no sentido de ser produzido pelos de baixo que se colocam como tema 52 que se opõe à história oficial no que se refere à escolha temática que privilegia contar a história a partir de um ponto de vista daqueles que foram esquecidos no processo de modernização Cabe lembrar que um elemento central da tese dos intelectuais pecebistas era do atraso econômico e técnico do Nordeste O documentário se contrapunha a certa perspectiva da historiografia e da propaganda do regime militar ambos disseminadores de uma cultura histórica que privilegiava uma História do país centrada nos feitos de grandes homens políticos da elite brasileira ou dos grandes centros urbanos Esta foi uma escolha pessoal de Carvalho e ao mesmo tempo fazia parte de uma das peculiaridades e inovações do Cinema Novo e de muitos filmes ligados ao romantismo revolucionário trazer à tela pessoas humildes o povo Se hoje é relativamente comum a presença de temas como o sertão seco ou a favela nas produções audiovisuais atuais antes foi uma novidade temática que se consolidou no cinema da década de 19501960 Já entre as décadas de 1910 e 1930 encontravase no cinema tendências da representação da nacionalidade em temas rurais e urbanos No primeiro exaltavase a natureza e costumes do interior BERNARDET GALVÃO 1983 p25 Porém os autores indicam que o nacional não era vinculado necessariamente a uma imagem popular embora estivessem próximas p30 Foi apenas na década de 1930 que o popular enquanto retrato do povo surge em alguns poucos filmes do cinema nacional Os autores concluem que estes casos isolados não caracterizam uma preocupação sobre um cinema popular que surgiria apenas na década de 1950 década na qual já havia e se acentua uma aproximação entre intelectuais classe média e o PCB nossas considerações em torno de possíveis idéias sobre um cinema popular nos primeiros cinqüenta anos de cinema brasileiro são sobretudo produto de nossa preocupação com o tema mais do que decorrência do pouco que conhecemos do pensamento cinematográfico da época Em termos de reflexão sobre cinema brasileiro a idéia de popular adquire relevo e importância apenas nos anos 1950 e será de então por diante um dos temas predominantes no pensamento cinematográfico BERNARDET GALVÃO 1983 p3536 Foi na década anterior à produção de O País de São Saruê que se iniciou uma reflexão do pensamento cinematográfica na qual a ideia de popular ganhou importância e se tornou tema predominante de certo cinema Daí a sua centralidade no movimento Cinema Novista e outras produções que pensaram a nacionalidade a partir do indígena do negro ou do sertanejo Bernardet caracteriza da seguinte maneira o contexto da década de 1950 A situação política do país o desenvolvimento das esquerdas e das idéias nacionaldesenvolvimentistas a retomada da produção cinematográfica 53 brasileira após a quase estagnação nos anos 1940 o projeto da Vera Cruz a valorização do cinema como produção cultural digna a divulgação do ideário do neorealismo italiano a preocupação crescente das elites culturais brasileiras com o cinema levam a discussão sobre cinema no Brasil a adquirir uma originalidade que não tinham na primeira metade do século e a se politizar fortemente Neste contexto as idéias de nacional e de popular se imbricam uma na outra o que não acontecia anteriormente BERNARDET 1983 p62 Bernardet indica como o nacional desenvolvimentismo no âmbito político e o próprio movimento neorrealista italiano influenciou a arte As elites culturais refletiram sobre o cinema brasileiro alcançando uma originalidade não existente até então cuja uma das características era seu caráter politizado Nacionalidade se imbrica com a própria ideia de povo com a discussão sobre modernização e temas de cunho social O primeiro filme a trazer os favelados à cena foi Rio 40 graus 1955 pela influência do neorrealismo que foi importante para a construção do cinema engajado do período como destacamos anteriormente Já o tema do sertão já estava presente nas telas tendo já O Cangaceiro 1953 como um importante marco na elaboração dessa representação Aqui porém não se tratava de um cinema crítico e engajado mas uma espécie de western brasileiro62 Este filme foi criticado por não conter uma estética brasileira mas baseada nos moldes hollywoodianos portanto estrangeiros Um filme que mudou como se representava o sertão e sua miséria e cuja estética influenciou definitivamente a maneira de fazer cinema sobre tal realidade foi Vidas Secas 1963 de Nelson Pereira dos Santos Ao falarmos desses filmes estamos pensando no âmbito do cinema ficcional porém Vidas Secas já fora influenciado pela estética inaugurada na área do documentário com Aruanda 1960 que Carvalho participou da realização63 Podemos indicar mais uma vez essa circularidade de 62 O western é um gênero de cinema ficcional de grande popularidade nas décadas de 1950 1960 e ainda na década de 1970 É o estilo de filme de bangbang com ação e os tipos bem delimitados de mocinho e bandido Essa construção cinematográfica se vincula a uma ideologia norteamericana construída antes mesmo do cinema mas que ganhou grande repercussão mundial com a produção hollywoodiana Estereótipos sobre o índio a mulher e o homem branco e heterossexual defensor da propriedade privada fazem parte deste tipo de cinema Os defensores de um cinema nacional críticos aos modelos de Hollywood e à temática de tais filmes rejeitavam filmes que tentaram transformar o sertão brasileiro no Oeste estadunidense e o sertanejo no cowboy brasileiro como em O Cangaceiro Sobre as características e a construção histórico ideológica desse gênero podese conferir o texto Western de Fernando Simão Vugman em História do Cinema Mundial 2006 Sobre a popularização e reprodução desse modelo de cinema comenta Vugman Para muitos o Western é considerado o gênero cinematográfico norteamericano por excelência Com os primeiros filmes em que aparecem cowboys datando da virada do século XIX para o século XX o Western incluise entre os primeiros gêneros de filmes narrativos da história Se ao longo do século passado Hollywood tornouse a indústria do cinema hegemônico certamente os índios bandidos e mocinhos do Velho Oeste deram uma grande contribuição para o sucesso desse cinema entre o público norte americano e mundial Mas o sucesso do gênero não se limitou ao público sua influência sobre a cinematografia de outros países pode ser observada em filmes de samurais japoneses cangaceiros brasileiros em filmes indianos russos e mexicanos além é claro das francas imitações na Alemanha e na Itália VUGMAN 2006 p159 63 Carvalho indica que em Vidas Secas o fotógrafo Luís Carlos Barreto baseouse na luz estourada de Aruanda única forma de captar a dramaticidade da soalheira nordestina CARVALHO 1986 p125126 54 temas e maneiras de fazer cinema daquele período Elas nos ajudam a entender ainda na década de 1970 o fazer cinema de Carvalho Sobre essa história do sertão e do rural no cinema brasileiro comenta o próprio Vladimir Carvalho O cinema brasileiro sempre enfocou o rural desde a chanchada que traziam musicais com duplas caipiras e artistas como Jackson do pandeiro mas não traziam uma visão crítica A produção qualificada técnica e artisticamente da Vera Cruz também explorarou sic temas rurais como em Caiçara ou O Cangaceiro Mas até então não tinham a preocupação em se abrir para a realidade brasileira e nem traziam uma visão crítica do assunto Já o Cinema Novo redescobriu o Brasil e o campo era uma fonte muito rica de narrativas e temas Aquilo atraiu cineastas como Glauber Rocha Mas o ponto de conflito das tramas dos filmes estavam exatamente na questão da posse da terra 64 CARVALHO 2004 A novidade no rural neste contexto era sua abordagem a realidade brasileira vista sob uma visão crítica Os pontos de conflito eram centrados na questão da posse da terra O tema agrário era central As personagens chave para essas narrativas eram os camponeses Isso nos permite contextualizar a dedicatória a populares que começa o filme explicitando o posicionamento político e uma referência literal ao tema que era caro ao tipo de cinema do qual O País de São Saruê se ligava este filme é dedicado aos humildes lavradores vaqueiros tangerinos violeiros e retirantes que muitas vezes interromperam suas tarefas para nos ajudar a realizálo CARVALHO 1986 p 30 Longe de ser uma mera formalidade essa dedicatória institui um olhar aos temas apresentados pelo filme O sertão nesse sentido representou um espaço privilegiado para essas narrativas de baixo do período bem como a favela Como vimos o romantismo revolucionário serviase de elementos pré capitalistas para construir uma utopia no futuro havia duas tendências desses intelectuais que podemos considerar românticos uma de recriar o paraíso perdido no tempo presente estetizando ou poetizando o seu entorno ou ainda de encontrar o paraíso no presente porém no real em um espaço primitivo ou até exótico LÖWY SAYRE 1993 p24 Essas duas tendências estiveram presentes em muitos artistas ligados ao PCB que tanto estetizaram a realidade social a seu redor idealizando o povo quanto buscaram na alteridade do homem da favela do operário e principalmente no camponês a herança précapitalista perdida O sertão e o camponês foram temas privilegiados por esses intelectuais e artistas Ridenti afirma que A ligação com a literatura social de resgate do autêntico homem do povo brasileiro identificado com o sertanejo ou o migrante nordestino tão 64 Entrevista realizada em 28 de junho de 2004 Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural NEAD do Ministério do Desenvolvimento httpwwwneadgovbrportalneadnoticiasitemitemid4986219 Acesso em 15 de ago 2013 55 recorrente na filmografia dos cinemanovistas e também de cineastas do período não identificados com o Cinema Novo estava presente no projeto original do filme do CPC que Coutinho dirigia antes de tentar filmar o Cabra Marcado pra Morrer RIDENTI 2000 p 97 Esse volver do olhar de artistas ao camponês na busca das raízes e da autenticidade do homem e da cultura brasileira além de muito presente nesse período e no imaginário do CPC também era central no pensamento social da época Para a teoria desenvolvimentista que ganhou espaço nas décadas de 1950 e 1960 o Nordeste se torna o espaço do arcaísmo e do atraso espaço do subdesenvolvimento Celso Furtado foi seu grande locutor PENNA 1992 p28 Esse conjunto de teses influenciou fortemente o PCB Ridenti afirma ainda que as classes médias idealizavam o trabalhador rural tomando por vezes conotações caricatas ou míticas embora o autor também reconheça que houve uma real inserção no movimento dos trabalhadores RIDENTI 2000 p848965 Os filmes no cinema engajado da época que tematizou o homem do campo detém inúmeros exemplares seja em ficções como Vidas Secas Deus e o Diabo na Terra do Sol Os Fuzis ou em diversos filmes documentários como Viramundo os curtas produzidos pela caravana Farkas e o já citado ciclo de cinema paraibano O crítico de cinema JeanClaude Bernardet quando analisou documentários realizados nessa época em Cineastas e imagens do povo 1985 entre 1960 e 1980 afirma que os cineastas detinham uma atitude humilde em relação ao povo mas que sua linguagem não era popular 2003 p186 Este foi um dos desafios para pensar qual público era almejado por O País de São Saruê e qual sua atitude perante o povo como pudemos confirmar a afirmação de Bernardet pela dedicatória que abre O País de São Saruê Vladimir Carvalho se difere de alguns desses artistas e cineastas que eram muitas vezes homens da realidade urbana que se voltaram nessa época para a realidade rural Diversamente Vladimir Carvalho viera da Paraíba vira essa realidade e foi fazer filmes sobre o campo in loco A linguagem do filme porém não era necessariamente voltada para 65 Dois exemplos valiosos oferecidos pelo sociólogo o primeiro referese a uma visão caricata do camponês A tentativa de aproximação com o homem simples do campo ao mesmo tempo detentor de uma sabedoria inata e objeto de uma pedagogia revolucionária fica transparente no artigo Mutirão em Novo Sol no I Congresso Nacional de Camponeses de José de Oliveira Santos 1962 O artigo comenta a encenação da peça Mutirão em Novo Sol do CPC paulista na I Conferência de Lavradores do Estado de São Paulo 11 de novembro de 1961 e no I Congresso Nacional de Camponeses em Belo Horizonte 14 de novembro A narrativa afirma que 600 camponeses presenciaram o espetáculo no primeiro evento e outros 4 mil no segundo dá bem conta do imaginário das classes médias urbanas de esquerda da época sobre o trabalhador rural Talvez seja difícil encontrar texto mais exemplar do romantismo do CPC um povo que é simples sofrido sábio e maravilhoso inspirador de transformações sociais mas primitivo e desamparado devendo ser objeto da ação do teatro enquanto instrumento de extensão e elevações culturais A platéia camponesa revitalizaria a arte cênica que por sua vez envolveria o engajamento dos autênticos artistas do povo na luta de elevação cultural numa fase mais futura Santos 1962 RIDENTI 2000 p85 Por outro lado Ridenti também oferece uma contrapartida mostrando a inserção do romantismo revolucionário no movimento dos trabalhadores citando o exemplo da produção de textos de ficção de Francisco Julião famoso líder das ligas camponesas em 1955 p8889 56 esse povo Seus documentários objetivavam comunicar à classe média urbana especialmente estudantil afinal na época não havia cinema no sertão como hoje Contudo sua linguagem era mais acessível que de filmes do Glauber Rocha66 Tendo em vista os dados expostos a construção do que seriam esses de baixo perpassa por três questões essenciais as experiências pessoais do diretor na Paraíba suas intenções políticas vinculadas à atuação no PCB e a sua formação literária A representação desses de baixo possui origem política mas configurada em elaboração fílmica Certamente Carvalho entrou em contato com esses homens e mulheres reais que filmou no entanto ao elaborar seu filme o registro artístico dessa realidade foi organizado de maneira a formar um discurso de Carvalho não a realidade em si mas seu simulacro Ao dedicar o filme aos populares Carvalho faz uma opção de classe mas não apenas isso deixou explícito para o espectador essa opção Durante o filme essa oposição de classe foi desenvolvida embora de maneira menos explícita dado o contexto de ditadura militar e do desejo de que o filme chegasse às telas de cinema alcançando um público de classe média Além da opção temática há outra opção que é pertinente comentar a opção pelo documentário Esse tipo específico de cinema possui uma elaboração diferenciada e peculiaridades que incidem diretamente na forma de narrar na sua estética bem como na maneira como se convencionou recepcionarver esse tipo de cinema A forma pela qual se enxerga esse tipo de filme influencia tanto sua recepção da escolha de ir ver um filme documentário até a forma como se realiza esse tipo de produção como sua produção a maneira pela qual se elabora o filme bem como a escolha em realizar tal tipo de cinema Tornase importante pensar a categoria documentário em sua própria historicidade ou seja em como Vladimir Carvalho lidava com a realização desse tipo de cinema Embora a categoria documentário não seja consensual havendo outras propostas de classificação neste momento nos concentramos em como esse cineasta enxergava esse tipo de produção Sabemos que vários artistas da década de 1960 especialmente aqueles ligados ao 66 Durval Muniz de Albuquerque 1999 problematiza as leituras sobre o Nordeste propondo uma representação desse espaço como território da revolta tomando como corpus documental produções vinculadas ao imaginário marxista como os romances de trinta e incluindo o Cinema Novo Diferentemente de Ridenti afirma que o Nordeste dessa produção é construído como espaço das utopias como lugar do sonho com um novo amanhã p207 enfocando a relação de ruptura com o passado para diferenciar de autores saudosistas como Gilberto Freyre Parecenos que essa leitura entra em sutis conflitos em diversos pontos com a proposta do romantismo revolucionário de Ridenti No entanto Albuquerque em seu texto reconhece a eleição temática como algo de escolha e produção de sentido desses intelectuais problematizando essa transformação 57 Cinema Novo foram influenciados pelas escolas neorrealista italiana e nouvelle vague francesa Embora ambas fossem escolas de filmes ficcionais foram importantes na formação em geral de tais artistas O neorrealismo italiano lançou mão de atores e cenários reais se aproximando em muito de elementos que definiam o documentário não utilização de atores reais filmagem de cenários reais etc O neorrealismo era um cinema que almejava uma finalidade política e social denunciando uma Itália pós Segunda Guerra ou as barbaridades fascistas Quanto à nouvelle vague houve uma dinamização dos elementos cinematográficos na maneira de narrar e a valorização da figura do diretor como autor Parece significativo que assim como os neorrealistas procurouse fazer um cinema dentro dos limites materiais que se dispunha Muitos cineastas tinham poucos recursos e para registrar o que acontecia na Itália fascista e pósfascismo Foram usados negativos de origens e qualidades diversas Os filmes neorrealistas se valorizaram mais pelo caráter político e histórico que por questões técnicas muito embora isso não retire o valor estético de tais produções que contaram com grandes nomes do cinema como Roberto Rosselini Entre a nouvelle vague e o neorrealismo parecenos que o último surtiu maior influência sobre o ciclo de documentário paraibano Sabemos que tais discussões chegaram até esses documentaristas Sobre o assunto relata Vladimir Carvalho Eu gostava muito também do Neorealismo mesmo que a informação desse cinema chegasse de forma um pouco retardatária O que acontece Eu achava que cinema era filme de ficção Até que um dia baixou no Recife um crítico carioca chamado Jonas com uma série de filmes clássicos antológicos do cinema mundial entre eles filmes russos como Outubro do Eisenstein filmes de Marcel Carné dos ingleses enfim dez filmes que ele exibia e discutia E junto ele trouxe um longametragem eu ouvia falar vagamente em Flaherty mas não sabia o que era E de repente me aparece O Homem de Aran Aquilo foi como uma revelação para mim foi algo definidor Por quê Era um filme que não tinha atores tais como a gente concebe enredo dramático préestabelecido nada do que a gente está acostumado a receber em filme de ficção E era lindíssimo um filme com mais de uma hora portanto com a mesma duração de um filme de ficção e prendia a atenção só com aquele idílio a relação do homem com a natureza CARVALHO 2001 67 Sabemos que o neorrealismo italiano chegou aos cinéfilos e futuros cineastas paraibanos através do cineclube católico montado pelo Pe Antônio Fragoso68 Vladimir 67 CARVALHO Entrevista realizada em 03 Novembro de 2001 por Marília Franco Disponível em httpwwwmnemocinecombraruandavcarvalho3htm Acesso em 06 nov 2012 68 Sobre isso afirma Carlos Mattos escrevendo em primeira pessoa na biografia sobre Vladimir Carvalho eu já freqüentava o cineclube comandado pelo Padre Antônio Fragoso muito ligado ao engajamento social da Igreja Padre Fragoso por sinal comungava da tradição romana que muito estimulou o cineclubismo dos anos 1950 e 1960 por conta de uma visão do cinema como ferramenta de esclarecimento do rebanho católico Esse dado não é estranho a minha formação 58 Carvalho teve contato com filmes de Eisenstein em Recife e mais importante ainda Robert Flaherty O Homem de Aran 1934 é uma referência muito forte para o cineasta que sempre a indica em diversas entrevistas Robert Flaherty é considerado por muitos o pai do documentário com Nanook o esquimó 1920 Robert Flaherty e Nanook o esquimó são marcos no documentário especialmente no modelo clássico de documentário O filme já trazia no seio a grande polêmica sobre o status de objetividade do documentário Almejava mostrar os costumes de um povo distante e diferente do europeu os esquimós porém apesar da euforia acerca do caráter objetivo do filme sabese que houve representação para as câmeras de costumes que os atores sociais não praticavam mais como a pesca de leões marinhos com arpão gerando grande polêmica Essa discussão sobre representação no documentário e seus limites com a ficção foi alvo de substantiva produção de teóricos do cinema69 Retomamos o tema depois no momento cabe apenas indicar que para além do efetivo realismo ou não do documentário flahertyano este foi uma influência importante para Vladimir Carvalho Flaherty é tão valorizado pelo documentarista que no site da Fundação Cinememória criada por Carvalho em 1994 em Brasília um texto biográfico do paraibano afirma se que a opção pelo documentário foi feita já em 1950 ao assistir ao Homem de Aran ou seja muito antes de efetivamente ter conseguido filmar alguma coisa Robert Flaherty foi uma apropriação que se encaixou muito bem com a motivação temática e engajada de Vladimir Carvalho O documentarista se apropriou de tais leituras e do cinema documental de Flaherty para elaborar seus próprios filmes a fim de falar de uma realidade que conhecia de maneira a certo modo romântica pelas suas memórias infantis de maneira profissional com suas pesquisas jornalísticas e atuação no CPC e ainda com o acúmulo de leituras teóricas e discussões no PCB sobre a questão agrária brasileira Cabe comentar também que a década de 1960 foi um momento de debates político culturais e no qual o documentário brasileiro foi inovado tecnicamente e teoricamente floresceu proporcionando novos voos para os cineastas A possibilidade de sincronia de som com a chegada Leituras importantes para essa nova compreensão do cinema foram os artigos da Revista Cinema editada em Belo Horizonte o livro Cine Social do espanhol José María García Escudeiro e o ensaio Significação do Far West de Octavio de Faria Ali estava todo um mundo além do mero divertimento A partir de então torneime espectador inveterado do neorealismo italiano do cinema verista francês do expressionismo alemão dos clássicos soviéticos 2008 p75 69 O cinema possui grandes teóricos Muitos escreveram sobre cinema como na década de 1910 Ricciotto Canudo Louis Delluc Kulechov e Pudovkin A produção nesse sentido cresceria posteriormente tendo como destaques na segunda metade do século XX autores como Christian Metz e Jean Miltry já na crítica acadêmica Muitos cineastas também foram teóricos do cinema como Sergei Eisenstein Pier Paolo Pasolini dentre outros No Brasil alguns nomes da crítica cinematográfica são JeanClaude Bernardet e Ismail Xavier Há também uma profusão de autores sobre documentário especificamente entre os quais podemos destacar Bill Nichols Guy Gauthier e brasileiros como Fernão Pessoa Ramos Hélio Godoy e Francisco Elinaldo Teixeira 59 de equipamentos móveis resultou em novidades estilísticas e técnicas que foram utilizadas apropriadas aqui para dar voz ao povo cf RAMOS 2004 p 8184 BERNARDET 2003 p281285 Daí que o crítico de cinema JeanClaude Bernardet aponte que houve na década de 1960 um apogeu do documentário de modelo sociológico uma vertente engajada e que buscava dialogar sobre e com o povo Cf BERNARDET 2003 p12 Esse cinema entrou em declínio no final da década de 1960 e início da década de 1970 Muitos cineastas engajados enveredaram pelo cinema ficcional como Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha No entanto Vladimir Carvalho e outros paraibanos se definiram pelo documentário Com as atuações em diferentes trabalhos produção roteiro diretor auxiliar montagem em diversos filmes durante a década de 1960 Vladimir Carvalho pode realizar seu primeiro longametragem de sua completa autoria O País de São Saruê Sua escolha pelo documentário se dava por um recado que queria oferecer que para o diretor tanto lhe realizava mais artisticamente quanto se encaixava em seus anseios políticos e sociais Como indicamos podemos afirmar que esse cinema optou tematicamente pelos de baixo Os entraves e soluções objetivos para as filmagens do projeto de O País de São Saruê são abordados na etapa seguinte 23 Planosequência fazer um filme em um país subdesenvolvido No contexto político da década de 1960 no âmbito da esquerda colocavase em xeque o modelo soviético de socialismo abrindo espaço para alternativas libertadoras terceiro mundistas O Brasil se modernizava e os diversos grupos políticos discutiam seus projetos para essa transformação Concomitantemente houve uma proletarização das camadas médias da população instaurando a sociedade de consumo no Brasil O país vivia a tensão da Guerra Fria acompanhava os horrores da Guerra do Vietnã e a surpresa do Maio de 68 eclodia o movimento hippie lutas armadas espalhavamse por diversos países O Brasil acompanhava um processo de democratização da vida nacional uma radicalização dos movimentos sindicais e camponeses e uma mobilização grande em torno das reformas de base de João Goulart interrompidas pelo Golpe de 1964 Foi nesse contexto que houve a referida efervescência artísticacultural tão ligada aos debates políticos da época O regime militar no entanto fechou as vias de participação política direta reprimindo particularmente os partidos e sindicatos A cultura se tornou o baluarte da atuação política no país70 Porém isso mudaria em dezembro de 1968 o Ato Institucional nº 5 1968 representou 70 Ridenti mostrou como em várias entrevistas muitos artistas afirmavam que atuavam na esfera cultural por impossibilidade de fazer política demonstrando o porque entre 1964 e 1969 arte e política se tornaram ainda 60 maiores dificuldades para a arte engajada Muitos artistas e intelectuais se aproximaram da luta armada nesses anos de chumbo Era um contexto bem diverso da década de 1960 o que fez com que muitos cineastas se voltassem para própria linguagem da sétima arte Em Cineastas e Imagens do Povo Bernardet aponta tipologias para o documentário brasileiro a partir de certas escolhas estéticas que dialogavam com o contexto histórico do Brasil durante o período militar Aponta como o cinema impedido pela censura de se voltar para temas sociais muitas vezes optou por abordagens metalinguísticas Nesse sentido embora não seja o caso de Vladimir Carvalho isso acabou por se resvalar em seu cinema Em O País de São Saruê há uma construção poética da narrativa mais sofisticada que nos filmes anteriores que pode ser relacionada a uma influência indireta dessas transformações Um bom exemplo desse movimento foi o filme filhote de O País de São Saruê A Pedra da Riqueza 1975 que para além da realidade da extração mineira de xelita na Paraíba realiza uma complexa discussão do próprio cinema Cf OU 2011 Cf FEITOSA 201271 Embora tenha existido uma tendência de muitos documentaristas se voltarem à problematização da linguagem documentária o que pode ser entendido pelo contexto político também é pertinente ressaltar que esse é um movimento anterior ao golpe a nível internacional no qual muitos filmes documentários buscavam novas formas de expressão Um expoente desse fenômeno no Brasil foi Opinião Pública 1965 de Arnaldo Jabor que trouxe aqui inovações já propostas na França Devido à perseguição do regime após a censura de Cabra Marcado Para Morrer Carvalho deixa o Nordeste e vai para o Rio de Janeiro Mesmo nesse contexto Vladimir Carvalho não parou de trabalhar participando de filmes como O grito da terra 1964 como assistente de montagem e Rio Capital do Cinema como assistente de direção Atua também como assistente de direção em Opinião Pública experiência bastante significativa Esse filme foi um marco no documentário brasileiro pela maneira mais despojada de filmar mais flexível em relação ao roteiro e o uso de som direto tecnologia que era recente no Brasil Opinião Pública foi influenciado pelo método do cinema verdade francês abusando das entrevistas com grande espontaneidade sem precedentes no documentário nacional72 A partir mais íntimas 2000 p5455 Contudo vale ressaltar esta não era uma regra e Vladimir Carvalho não se encaixa pois atuava na esfera cultural muito antes 71 Analisamos brevemente o curta em trabalho apresentado no Encontro Estadual de História 27 e 30 de novembro de 2012 ANPUHPB UFCG em Cajazeiras Paraíba em 2012 72 A expressão foi proposta por Edgar Morin e por Jean Rouch no Manifesto publicado por ocasião da distribuição de seu filme Chronique dun été Crônica de um verão 1960 Tratavase de propor um novo tipo de cinema documentário utilizando a exemplo dos cineastas americanos em torno de Robert Drew e dos cineastas canadenses da ONF as novas técnicas leves Não se tratava apenas de uma evolução mas de uma nova atitude estética e moral os cineastas participam da evolução da pesquisa e da filmagem eles não procuram esconder a câmera nem o microfone eles intervêm diretamente no desenrolar do filme passando do estatuto de autores ao de narradores e de personagens Correlativamente a Câmera é concebida como um 61 do ponto de vista da classe média carioca abordou temas da política e do cotidiano explorando a representação dessas personagens sociais Esse trabalho teve importante relevância na trajetória de Carvalho refletindose em O País de São Saruê que se tornou um filme menos preso ao roteiro que buscou explorar entrevistas e que ainda mostra o próprio documentarista no filme embora de maneira menos ostensiva que na realizada pelos franceses em Crônica de um verão Com o aprendizado em Opinião Pública e com dinheiro que ganhou na produção do documentário Vladimir Carvalho resolve filmar na Paraíba MATTOS 2008 p113 Iniciase aqui o trabalho como diretor do cineasta possuindo caráter autoral em um contexto político e em condições financeiras que teriam forte influência nos seus trabalhos da década de 1970 A questão financeira os parcos recursos para realização de seus filmes como indica Leal perseguiu o documentarista LEAL 2007 p181 Nessa empreitada realizou quatro filmes Sertão do Rio do Peixe 1968 O País de São Saruê 1971 A Bolandeira 1968 e A Pedra da Riqueza 1975 Os dois últimos são filhotes de O País de São Saruê pois foram curtas que surgiram durante as gravações do filme pai e O Sertão do Rio do Peixe foi ampliado para fazer O País de São Saruê motivo pelo qual daremos maior atenção ao processo de filmagem dessa obra73 Essa iniciativa teve elementos que são importantes para pensar a filmagem de O País de São Saruê a ausência de recursos o apoio de Antônio Mariz e o retorno àquela atmosfera sertaneja que como vimos marcou sua infância em Itabaiana Podemos identificar tais elementos no comentário de José Marinho sobre essa iniciativa do cineasta Carvalho preparase para se tornar diretor e produtor de seus próprios filmes Com algumas idéias e uma velha câmera Bell Howell 16mm emprestada parte para o sertão onde pretende estabelecer contatos com um amigo de infância Antônio Mariz prefeito da cidade de Souza no sertão paraibano Corre o ano de 1966 nos pés um par de sapato gasto pelo tempo e na mochila somente uma muda de calça e duas camisas Agora irá rever os centauros em seus cavalos ligeiros em busca dos bois brabos a que tantas vezes assistiu ainda menino nas ruas de Itabaiana MARINHO 1998 p94 95 instrumento de revelação da verdade dos indivíduos e do mundo É também portanto como pesquisa sobre o mundo real que o cinemaverdade pretende se opor ao cinema de ficção definido o contrário como cinema da mistificação e da mentira RAMOS F P 2004 p5051 Este cinema no entanto será uma influência mais forte posteriormente 73 Em síntese sumária que inevitavelmente ofusca a grande riqueza que representam os dois curtas A Bolandeira pode ser apresentada como um filme sobre a produção de açúcar E A Pedra da Riqueza que fala sobre extração de xelita em uma mina no sertão problematizando a questão da alienação no cinema e no trabalho É interessante que aparentemente uma maneira de fazer cinema vai se desenhando entre os três filmes em A Bolandeira o filme é mais parecido com o modelo de Aruanda de narrar embora já mais poético essa estética é ampliada em O País de São Saruê e mais forte em A Pedra da Riqueza Por isso o último filme é fortemente metalinguístico problematizando o próprio fazer documentário 62 No contexto de repressão da ditadura militar Vladimir Carvalho não poderia filmar no cenário dos conflitos das Ligas Camponesas como desejaria Porém para abordar as contradições do Nordeste poderia ir para o sertão enfrentando a propaganda ufanista da ditadura militar opondose à ideologia da história oficial Sobre essa iniciativa comenta Mattos Havia tempos cultivava o germe da idéia de um documentário sobre as contradições das relações de produção na Paraíba sobre a exploração do homem disfarçada nos informativos do governo e da Sudene ou escamoteada no falso conceito de Novo Nordeste Mas a hora não aconselhava movimentos bruscos Meros dois anos após a experiência das ligas camponesas o Cabra Marcado pra Morrer e o golpe de 1964 era ainda temeroso filmar na vigiada zona dos canaviais Pensei então no sertão profundo área do algodão e da pecuária onde a imobilidade econômica perpetuava um quadro de miséria e uma prática rural bastante primitiva MATTOS 2008 p113 Carvalho continua um trabalho que procurará denunciar as injustiças sociais de sua terra de origem vinculadas a sua formação marxista oriunda de suas experiências no CPC e no jornal do Partido Nesse processo ainda com a lembrança viva das dificuldades enfrentadas neste episódio Carvalho opta por ir ao sertão afastandose da região litoral nordestina cenário das Ligas Camponesas Mudança de tema não por mera intencionalidade mas por circunstâncias políticas Há que se ressaltar uma significativa mudança no cenário político e cultural de até então Mário Ortiz Ramos indica como na década de 1960 a questão nacional era pensada em termos de aliança de classes ou de frente política e cultural porém na década de 1970 é o Estado que comanda a questão nacional elidindo obviamente a relação classe nação arvorandose a guardião de uma comunidade indivisa seus interesses tomados como os interesses de todos O nacional e a realidade nacional são vistos como dois todos harmoniosos que não apresentam nem conflitos internos e nem se contrapõem em seus fundamentos à dominação externa RAMOS 1983 p 93 Dessa forma com o AI5 a produção cinematográfica documentária de cunho social encontrou grandes obstáculos esbarrando em um sistema ideológico e estatal que lhe vetou os parcos recursos e lhe censurava a produção em nome de uma unidade nacional Por isso ao tentar conseguir recursos com o governador João Agripino Filho Vladimir Carvalho não conseguiu atribuindo à censura em bloco do regime À época para sobreviver mais uma vez Vladimir Carvalho voltase para o jornalismo escrevendo para o Correio da Paraíba CARVALHO Apud Marinho 1998 p 95 Vladimir Carvalho resolveu então ir ao sertão para fazer um filme sobre o trabalho 63 desenvolvido por Antônio Mariz na prefeitura de Sousa mas acaba assumindo outra proposta a hipótese de roteiro nas palavras de Gauthier de um trabalho sobre os meios de produção no sertão Assim antes das filmagens de O Sertão do Rio do Peixe Vladimir Carvalho realiza outro trabalho como indica Mattos escrevendo em primeira pessoa Consultando amigos e influências acabei por chegar a Antonio Mariz ex vicepresidente da UNE e então prefeito petebista varguista do município de Sousa no extremo oeste do estado Ele me contratou para filmar o desfile de Sete de Setembro em Sousa com uma câmera Bell Howell pertencente ao Serviço de Cinema Educativo Exibimos o pequeno registro em praça pública e satisfeito Mariz acenou com hospedagem uma viatura e algum dinheiro para os negativos com que eu começaria a filmar a região MATTOS 2008 p114115 Assim houve uma estratégia para além da mera amizade para conseguir o apoio de Mariz realizando uma espécie de serviço mostrando seu trabalho inicialmente com o registro do Sete de Setembro em Souza A hospedagem viatura e o dinheiro eram insuficientes e os negativos foram conseguidos com trabalho A câmera emprestada pelo Serviço de Cinema Educativo era quase imprestável CARVALHO 1986 p128 Esse apoio não viabilizaria por completo a produção do filme gerando a necessidade de diversas soluções para a falta de instrumentos que permitissem uma produção mais sofisticada Uma citação de Mattos em primeira pessoa ajuda a exemplificar essa característica das filmagens Filmávamos do jeito que fosse possível ora com negativos de várias marcas e procedências ora com película sem qualquer indicação Um lote que comprei soube depois era de filmes vencidos do consulado dos EUA em Recife Isso resultou numa imagem muito precária que bem ou mal assumimos como dado estético Eu não diferenciava muito o filme de um certo artesanato que no Nordeste é feito do lixo industrial Certa feita esquecemos por algumas horas várias latas de filme sobre um lajedo expostas ao sol resultando na alteração química do material já filmado MATTOS 2008 p115 Os negativos obtidos provavelmente a baixo custo pois seus recursos eram limitados foram problemáticos pois com diversas procedências e sem poder negligenciar material houve até a utilização de negativos vencidos e de qualidades distintas Essa montagem precária foi assumida como dado estético prática que já presente em outros filmes realizados com recursos limitados como Vidas Secas ou Aruanda74 Alguns eventos 74 Vidas secas é uma adaptação do romance de Graciliano Ramos para o cinema de Nelson Pereira dos Santos Foi também realizada com limitados recursos embora com mais recursos provavelmente que O País de São Saruê A estética da miséria do cinema paraibano influenciou o Cinema Novo Soluções estéticas como essas eram parte de uma tendência do cinema que procurava assumir a miséria terceiro mundista 64 inesperados também influenciaram o filme como a exposição dos negativos ao sol já que não podiam refazer as filmagens Esses contratempos também foram assumidos como dado estético A afirmação de Vladimir Carvalho que enxergava no filme algo do artesanato nordestino feito com lixo industrial visto que o cinema é uma arte industrial é bem emblemática do que era fazer esse cinema com poucos recursos todo o material era válido e a precariedade do filme se tornava parte da própria composição da história desse filme mas também relacionando tal qualidade à região As dificuldades em se fazer arte e cinema enfrentadas por artistas nordestinos se torna outro dado75 Ainda outros aspectos da produção merecem indicação a fim de deixar claros outros dados dessa precariedade de recursos e suas soluções estéticas A não disposição de recurso ao som direto para fazer entrevistas como as realizadas em A Opinião Pública levaram Vladimir Carvalho solucionar a questão com a inauguração do que chamou de som indireto ele gravava os sons das personagens em outro espaço separadamente e incluía com as imagens sem sincronia alguma Outra solução foi necessária para obstáculos pela ausência de instrumentos para fazer a iluminação em lugares fechados e escuros que não tinham acesso à luz elétrica Assim Vladimir Carvalho para filmar nos casebres escurecidos pela fuligem da lenha queimada só contavam com a iluminação natural que procuravam reforçar retirando algumas telhas ou usando rebatedores76 estes últimos feitos com lousas de grupos escolares de Souza que a equipe cobria com papel metalizado MATTOS 2008 p116 Em 1966 e 1967 nas épocas de estiagem gravou três horas de filme que compõe O Sertão do Rio do Peixe 1968 médiametragem que foi ampliado mais tarde tornandose O País de São Saruê77 Quando retorna ao Rio de Janeiro com os copiões para montar os filmes A Bolandeira e O Sertão do Rio do Peixe Vladimir Carvalho passa uma difícil fase financeira com família morando no subúrbio e ganhando um salário de gari nas redações dos jornais CARVALHO Apud LEAL 2007 p183 O Sertão do Rio do Peixe foi exibido na Maison de France e foi selecionado para o 75 Em outra entrevista Vladimir Carvalho se comenta sobre uma ajuda de custo conseguida com um amigo para ir ao Rio de Janeiro realizar a montagem de Sertão do Rio do Peixe Com auxílio de outro amigo Virgínius da Gama e Melo consegui uma pequena ajuda financeira e voltei para o Rio em princípios de 1968 Então com esse material e com as entrevistas realizadas eu montei uma versão do filme de cerca de cinqüenta minutos que se chamou Sertão do Rio do Peixe CARVALHO Apud Marinho 1998 p95 76 Instrumento pelo qual se utiliza uma luz indireta fazendo com que algum instrumento receba uma luz artificial ou natural e reflita sobre aquilo que se quer filmar 77 Antes de realizar O Sertão do Rio do Peixe Vladimir Carvalho finaliza o curta A Bolandeira que foi sua primeira experiência como diretor A história aborda a produção da cada de açúcar em engenhos de madeira no sertão da Paraíba mostrando suas origens históricas seu processo de trabalho e circulação de seus produtos na feira O filme se utilizou das gravações realizadas para o filme até que Carvalho viu que ali possuía um filme independente 65 Festival de Viña del Mar no Chile e também em uma mostra organizada pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna Vladimir Carvalho pôde ir para o Chile e seu festival onde conheceu mais do cinema latino e fez contatos com outros cineastas mas isso só foi possível porque teve direito à passagem visto que sua situação financeira não permitia grandes gastos Comenta sobre isso Vindo do Chile fiz vida normal no Rio trabalhando no Diário de Notícias Vivia muito mal estava ruim de vida porque o cinema que pretendia fazer não dava camisa a ninguém Isso em 1968 1969 Não tinha recursos não tinha como me sustentar com o salário do Diário de Notícias falido até o último pingo de chumbo CARVALHO apud MARINHO 1998 p96 No segundo semestre de 1969 no entanto aparece uma saída para suas dificuldades financeiras Vladimir Carvalho é convidado por Fernando Duarte78 que na época dava aulas no curso de cinema da Universidade de Brasília UnB para ir trabalhar com ele na universidade a fim de fundar um centro de produção de documentários MATTOS 2008 p155 MARINHO 1998 p97 Comenta Wills Leal A ida para Brasília permitiu ao cineasta uma certa estabilidade o que não tinha tido até então LEAL 2007 p182 Cabe o comentário de Carvalho sobre sua reação ao ser convidado para Brasília Aceitei incontinenti pois o tipo de cinema que queria fazer só poderia ter continuidade sob a proteção de instituições de organismos que pudessem nos subvencionar olhando mais o aspecto cultural do que o comercial Eu já havia percebido que a política do INC em relação ao curtametragem não ia dar em nada eu me endividara com A Bolandeira CARVALHO apud LEAL 2007 p183 Já em Brasília retoma várias vezes à Paraíba a fim de ampliar O Sertão do Rio do Peixe para o que se tornou O País de São Saruê Apenas na segunda viagem filmou as cenas adicionais que tornaram possível a montagem de O País de São Saruê No processo final até as filmagens realizadas na cidade de Souza do comício de Sete de Setembro foram incluídas As filmagens de Vladimir Carvalho para o filme foram feitas em algumas etapas primeiro as duas viagens em 1966 e 1967 quanto captou o material que rendeu o média metragem Sertão do Rio do Peixe Após esse filme sentiu necessidade de ampliar o filme realizando O País de São Saruê Com a estabilidade oferecida pelo trabalho como professor na UnB Vladimir Carvalho pode continuar o projeto de seu filme retornando com recursos 78 Fernando Duarte carioca nascido em 1937 foi o fotógrafo da primeira tentativa de realizar Cabra Marcado pra Morrer e foi assistente de câmera em Cinco Vezes Favela 1961 Fez parceria com Vladimir Carvalho em várias atividades na UnB e em filmes nos documentários Vestibular 70 1970 O Espírito Criador do Povo Brasileiro 1973 Itinerário de Niemeyer 1973 A Pedra da Riqueza 1975 Mutirão 1976 e Conterrâneos Velhos de Guerra 1990 66 próprios CARVALHO 1986 p129 Em 1970 fazem as filmagens da sequência dos minérios quando intuí a visão de um país à margem potencialmente rico mas vivendo na mais crassa pobreza CARVALHO 1986 p129 Temos aqui outro indicativo de que a hipótese de roteiro era desenvolvida durante as próprias filmagens as quais geravam novas ideias novas possibilidades de prosseguimento do filme Cabe ressaltar que o documentário não é apenas formado pelas filmagens in loco mas por uma série de outros documentos e materiais oriundos de pesquisa encomenda ou do acaso Com relação ao material visual temos as filmagens os letreiros fotografias pinturas e jornais As filmagens podem ser realizadas in loco ou também de arquivo como o é indiretamente planos filmados para Antônio Mariz em registro que acabaram sendo utilizados pelo documentário Chamamos de letreiros as imagens de comunicação essencialmente verbal escrita de alguns planos Elas são os recursos mais literais do documentário incluise aqui créditos informações sobre a remasterização ou inserção de informações sobre a realidade e o documentário Com relação às fotografias estão incluídas fotografias profissionais as realizadas in loco como algumas fotografias realizadas por Walter Carvalho conjuntamente com a filmagem na sequência sobre extração mineral e que estão sobrepostas encontradas in loco como as fotografias já existentes na Fazenda de Acauã a fotografia de Getúlio Vargas no gabinete de Antônio Mariz ou as fotografias de arquivo de uma enchente muitas conseguidas pelo diretor com famílias sertanejas Pinturas a exemplo da imagem de São Miguel Arcanjo na casa de um popular ou de Nossa Senhora na capela de Acauã Cabe reforçar que estamos nos referindo às fotografias que são inseridas na totalidade do ecrã tornandose um plano fílmico sejam inteiras ou em detalhe Os jornais por fim aparecem em vários momentos inserindo imagens ou elementos verbográficos com apelo histórico e documental como o jornal que fala da convocação do Vietnã durante a entrevista com o voluntário estrangeiro Charles Foster que vive no sertão Quanto aos materiais sonoros temos música sons artificiais declamação de poesia locutor em voz over e entrevistas Em música temos diversos elementos desde rock música da jovem guarda ou o som de uma rabeca Podemos dividir em três grupos música popular a cantoria do vaqueiro José de Arimatéia por exemplo música de estúdio como Acauã de Luís Gonzaga e música encomendada para o filme como a música tema de O País de São Saruê produzida por Marcus Vinícius e José Siqueira Chamamos de sons artificiais sons que são inseridos na montagem embora busquem oferecer a sensação de que são os sons escutados durante as filmagens por exemplo temos o som de sinos de gado quando são exibidos bois porém não houve gravação do som in loco sendo essa uma construção realizada na montagem declamação de poesia na voz de Echio Reis de uma poesia encomendada para o 67 filme a João Moraes Souto que entra nos materiais utilizados pelo filme mas que não é nem necessariamente auditivo ou visual embora apresentado da primeira forma Temos também o locutor em voz over na voz de Paulo Pontes que oferece informações do filme elaboradas pelo diretor E por último as entrevistas inseridas em som indireto ou seja não sincronizadas com a imagem que são de pioneiros do ouro Pedro Alma Zeca Inocêncio e Suassuna do usineiro Gadelha e do prefeito de Sousa Antônio Mariz As sequências de O País de São Saruê Dividimos o filme em treze sequências entre as quais ignoramos uma que foi inserida com a digitalização do filme pois não foi pensada por Vladimir Carvalho no período que analisamos79 Apresentar essa sistematização é importante pois justifica nossas escolhas temáticas e a divisão do documentário em grandes unidades significativas Como afirma Jacques Aumont a divisão do documentário em sequências é uma convenção da crítica que detém um lado arbitrário Para dividir um filme em partes recorrese a elementos do próprio enredo e do filme ao sabor dos temas para a análise que se quer construir Como dito elencamos o critério de elementos de conteúdo e da linguagem que nos oferecem pistas de uma coerência entre as partes passível de ser identificada por raccords e também pela conclusão de pequenos temas que formam o discurso ou a narrativa maior Usamos também como base a própria divisão como indicamos do Vladimir Carvalho no copião para Jomar Moraes Souto orientando de forma extra fílmica essa empreitada Guy Gauthier indica que para analisar o caráter ficcional e documental de um documentário fazse necessário analisar sua cadeia documental que consiste em observar o projeto do filme a filmagem a montagem e o dispositivo espectatorial Essa análise é apresentada posteriormente no decorrer da dissertação Na presente etapa apresentamos o projeto do filme ou seja a hipótese que norteou Vladimir Carvalho para as filmagens em vez de um roteiro Diferente de um filme ficcional que comumente se pode prender a um roteiro 79 Shirly Ferreira de Souza em sua dissertação O sertão como dado São Saruê como aspiração o documentário O País de São Saruê entre a utopia e a política 2010 discute os processos de silenciamento da censura a partir de O País de São Saruê Os créditos que iniciam o filme nessa ótica são importantes para a autora que diz Assim a ação dos militares e a censura produziram silenciamentos na produção de sentidos desses sujeitos por meio de seus filmes No entanto como reflete Orlandi não há força que pare o silêncio Ele se desloca para outro lugar ou outro tempo carregando a marca da interdição Tanto em Cabra 84 como em O País de São Saruê esse deslocamento de sentido está explícito na própria película No primeiro como parte da trama o reencontro do cineasta com seus personagens Só ele poderia voltar e filmar os participantes de Cabra 64 A força do filme está justamente no silêncio que os militares impuseram aos jovens barbudos pois ele se calou temporariamente voltou a falar quando foi possível em 1984 No segundo foi inserido nos créditos iniciais do filme a interdição pelo qual passou Assim enquanto eles durarem seja no suporte em película ou em DVD serão testemunhas do processo de silenciamento ao qual foram submetidos 2010 p84 68 prévio o documentário parte de uma hipótese de problema pesquisa e até mesmo de roteiro mas este último só vai se definindo no decorrer das filmagens e no processo de montagem Isso justifica que Vladimir Carvalho diga que foi filmar ao afresco ou seja filmando um tanto por acaso o que encontrava Isso fica mais flagrante com o curta A Pedra da Riqueza e a Bolandeira que foram filmes elaborados em função das imagens coletadas pelo diretor que não esperava necessariamente encontrar os temas desses filmes O mesmo aconteceu em outros filmes como a denúncia de um massacre de candangos em Conterrâneos velhos de guerra que forneceu outros elementos para o documentário Tais eventualidades demonstram que um filme especialmente o documentário e particularmente desse documentarista são construídos no próprio processo Em O País de São Saruê não foi diferente e da hipótese de roteiro ao resultado final muita coisa se alterou no processo A partir destes elementos da cadeia documental o projeto do filme e suas filmagens acreditamos que se afirma o caráter mais documental que ficcional do filme Mattos comenta em primeira pessoa sobre as duas primeiras viagens para as filmagens do que renderia O Sertão do Rio do Peixe e O País de São Saruê que não havia roteiro mas apenas anotações e a intenção de espelhar o passado com o presente Eu sabia que encontraria fósseis do que aconteceu um ou dois séculos atrás 2008 p115 Não havia um roteiro mas uma hipótese de roteiro anotações esparsas No entanto isso não quer dizer que o filme foi todo feito ao acaso mas que havia ideias oriundas de uma pesquisa anterior ou de como seria o documentário Um espelhar do passado e do presente é passível de identificação no resultado final de O País de São Saruê Em entrevista a Carlos Mattos nos extras de O País de São Saruê Carvalho comenta o processo de formação anterior ao filme que lhe influenciaram para fazer o documentário O cineasta comenta que lê ao menos duas vezes por ano Os Sertões Comenta ainda sobre seu desejo de registrar aspectos de uma civilização que não mudara na sua forma desde a colônia e que desaparecia naquela época Outra leitura importante foi a de Capistrano de Abreu como consta em algumas de suas entrevistas e na sua biografia realizada por Mattos O historiador realiza em Capítulos de História Colonial 1907 uma obra que aborda as origens do sertanejo na mestiçagem entre índios e colonizadores Essa sua visão se aproxima da realidade presente em O País de São Saruê quando Carvalho informa nos letreiros iniciais sobre as origens daquela região Outra leitura importante foi a de João Lélis O Garimpo de São Vicente indicada por Mattos em primeira pessoa 69 Em 1970 decidi enfiarme na caatinga mais uma vez tendo em mira O País de São Saruê A essa altura eu já havia me mudado para Brasília e meu irmão Walter para o Rio Com ele na assistência de direção e no still e de novo com Manuel Clemente na câmera saí em busca daquilo que José Américo chamara de o país mineral Fui procurar o garimpo de São Vicente descrito em livro de João Lélis e encontrei uma cidadefantasma habitada por portadores de hanseníase 2008 p12580 O livro de João Lélis influenciou Vladimir Carvalho bem como a leitura de José Américo particularmente na busca da economia de extração mineral Isso nos serviu de fonte para pensar a formação do diretor e de seu discurso O País de São Saruê Porém cabe ressaltar que apesar desse conhecimento prévio a realidade o surpreendia no que ele encontrava Quando entrevista Gadelha por exemplo não se sabe exatamente o que dirá o sertanejo tampouco é garantido na viagem que encontraria o sertão tal qual pesquisou O roteiro é feito por uma hipótese que se altera no percurso Assim a busca pelo Garimpo de São Vicente revelou uma cidade fantasma que o documentarista não esperava encontrar Para pensar essa hipótese de roteiro um documento nos auxiliará o texto que serviu de mote para a produção da poesia de Jomar Moraes Souto Como vimos a declamação dessa obra por Echio Reis foi utilizada como trilha sonora em boa parte do documentário Quando Vladimir Carvalho mostra o copião do filme para o poeta havia já um roteiro elaborado após algumas filmagens e o material continha dez sequências81 Vladimir Carvalho a essa altura já fizera uma organização de algumas filmagens e facilitava a existência do médiametragem Sertão do Rio do Peixe O resultado no entanto ficou diverso do planejado aumentouse o número de sequências havendo exclusão de uma e inclusão de novas A sequência referente à produção de produtos da cana de açúcar foi retirada e dela Vladimir Carvalho fez o curta A Bolandeira Ela separava as sequências da capela de Acauã e de sua Casa Grande que ficaram juntas Na nossa divisão das sequências ficamos em dúvida entre mantêla como uma única sequência cujo tema era histórico e falava de Acauã de uma maneira geral Porém uma observação mais atenta mostra que elas possuem certa independência somada à tentativa de manter uma certa fidelidade à separação elaborada pelo 80 João Lélis 19091954 foi um historiador paraibano do IHGP nascido em Alagoa Nova Formouse em Direito no Recife em 1937 e trabalhou como redator e redator da A União e como diretor do Diário do Povo em 1929 cobrindo os movimentos revolucionários de 1930 Teve também uma atuação política chegando a participar em 1946 da Comissão que elaborou a Constituição do Estado da Paraíba Ingressou no IHGP em julho de 1946 Disponível em httpihgpnetmemorial5htmCADEIRA Nº 21 Acesso em 04Jul2014 Escreveu o livro O Garimpo de São Vicente 1946 no qual expõe aspectos sociais do surto de ouro ocorrido na microrregião do Piancó ao sul de Sousa na Paraíba Sua escrita no entanto não monstra fontes ou uma característica historiográficoacadêmica aproximandose mais da escrita do jornalismo 81 Uma sequência representa um conjunto de cenas com uma coerência interna a qual podemos atribuir um caráter de espécie de capítulo de um filme Geralmente possui um tema específico que junto dos demais monta uma narrativa mais ampla Estou me baseando no esquema de mote para a poesia de Jomar Moares Souto encomendada por Vladimir Carvalho para o filme Sendo essa uma divisão do próprio diretor achei pertinente utilizála para entender a estrutura do roteiro do filme 70 cineasta no citado documento optamos por separálas Através da análise de seus elementos cinematográficos percebemos que há uma coerência estética e temática que as separa na primeira se fala da tristeza e do sofrimento e dos anseios do padre Luiz José Correia de Sá e de Frei Caneca82 Na seguinte falase da elite de Acauã em um tempo de riqueza de maneira saudosa Mostrase os progressos da região à época a chegada dos carros Ford e a existência das linhas férreas Essa separação temática poderia não ser satisfatória no entanto ambas possuem trilhas sonoras que as diferem quando não estamos ouvindo a declamação da poesia ou as informações sobre a região em voz over escutamos na Igreja soar de tambores em música pagã e na da elite uma polca animada Entre as duas há um raccord que as separa que é a imagem da Santa que gira vertiginosamente ao som de tambores até se corta para um plano da Casa Grande em silêncio Ao resultado as mantivemos como diferentes sequências Entendemos que a divisão do filme tem um caráter arbitrário e que deve buscar em elementos cinematográficos e temáticos uma divisão adequada como indicado pelos teóricos do cinema Jacques Aumont e Michel Marie Incluiuse duas novas sequências ambas falando sobre exploração mineral no sertão Elas mostram o ciclo do ouro e oferecem algumas informações gerais sobre a existência de extração de outros minérios como a bauxita e xelim na região Ainda nessas viagens mais material foi filmado rendendo o curta A Pedra da Riqueza outro filhote de O País de São Saruê Essas sequências décima e décima primeira não constam no esboço elaborado para Jomar Souto Moraes pois foram filmadas posteriormente A poesia não contempla essas temáticas Algumas passagens muito pequenas da poesia em relação às demais foram inseridas mas majoritariamente o áudio é oriundo de entrevistas em som indireto Outros elementos do roteiro original foram alterados e são passíveis de identificar pela comparação entre esse texto e o resultado disponível em DVD mas não nos ateremos a detalhálo mais pormenorizadamente tendo em vista que não é central para nosso objetivo Nossa divisão do documentário ficou assim Primeira sequência A terra Carvalho exibe imagens do terreno sertanejo seco e árido Traz informações históricas sobre a região identificando o processo de ocupação e colonização desse espaço identificando a opressão sofrida pelos indígenas Cariris e sua 82 Frei Caneca é um nome de prestígio no Nordeste pelas suas referências históricas de líder político e religioso sendo relacionado à Revolução Pernambucana de 1817 Acauã foi propriedade do padre Luiz José Correia de Sá que participou da revolta de 1817 e que chegou a abrigar o frei Caneca o revoltoso frei Caneca em 1824 Sobre a importância histórica de Acauã há menções nos sítios do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional IPHAN e no sítio do Patrimônio de Influência Portuguesa HPIP ressaltase o caráter histórico e arquitetônico da fazenda de Acauã que foi propriedade da família Sá até 1928 Endereços httpwwwhpiporgDefaultptHomepageObraa954 Acesso em 28072014 e httpwwwiphangovbransnettemaconsultaaspLinhatchistgifCod1507 Acesso em 28072014 71 resistência Ela tem função de introduzir o espectador no espaço físico no qual a realidade social será apresentada pelo documentário ao mesmo tempo o faz estabelecendo uma gênese começando a contar a história desse espaço e de seu povo Segunda sequência o homem e a luta é exibida a ocupação da terra pelo homem Inicialmente vemos camponeses limpando o terreno depois construindo casas depois a câmera mostra uma fazenda e a criação de caprinos o pastoreio casarões pessoas pilando Na terceira sequência mostrase o mundo animal ou seja o trabalho do vaqueiro seu canto e seu cotidiano vaquejando pelo mato tangendo o gado amansando bois brabos Exibi se a transformação desse trabalho em folguedo pela arte o bumbameuboi o cavalomarinho Na conclusão o tema da seca é colocado através da apresentação da morte de um boi tempo das perdas seca na terra e na alma CARVALHO 1986 p19 Essa sequência indica a humanização do espaço e é dividida pelo momento de criação o trabalho que cria cidades etc a luta do cotidiano a morte a seca o boi morto e a sublimação dessa vida em arte Quarta sequência mostrase a capelinha da fazenda de Acauã A narração historiciza a casagrande de Acauã seu apogeu e relação com a revolução de 1817 Também se indicou os aspectos religiosos mostrando uma capela e sua arte O poema se refere ao Padre Sá revolucionário dono de Acauã CARVALHO 1986 p19 Quinta sequência mostra elementos restantes da cultura material da casa grande de Acauã Mostrase fotos e remetese ao cotidiano da elite que vivia ali e o processo de modernização pelo qual passou a região Estabelece ao final algumas referências à população humilde estabelecendo um contraste Sexta sequência mostra a produção algodoeira no sertão e a miséria e pobreza que estavam submetidos seus camponeses Essa exibição é particular mas ao mesmo tempo generalizante pois não se refere unicamente aos trabalhadores desse tipo de atividade O tema aqui é a exploração do homem pelo homem que se manifesta na informação sobre como ocorre essa produção a pobreza em que vivem os trabalhadores a rusticidade do trabalho a pesagem do algodão remetendo à desigualdade e à injustiça na região e também à religiosidade sertaneja como alusão à luta do bem contra o mal Sétima sequência inicialmente mostra José Gadelha e sua situação na exploração do homem pelo homem Após a sequência anterior mostrar a vida do camponês emerge o latifundiário A luta de classes é sugerida particularmente pela montagem Oitava sequência mostra a feira de Sousa a babel nordestina Mostra pobreza e inserção dos bens de consumo estrangeiros no sertão as mudanças de uma modernidade recente e o declínio da civilização do couro um forte contraste entre o arcaico e o moderno Nona sequência entrevista com Charles Foster do Peace Corps formado em 72 ciências políticas que veio ao sertão fazer trabalho voluntário Carvalho aproveita para indicar conexões à guerra no Vietnã ligando a realidade do sertão aos conflitos políticos mundiais Décima sequência mostra a extração do ouro no sertão através de entrevistas com pioneiros desta época ou seja de 1940 quando se descobria ouro por acaso no sertão enquanto a guerra se desenrolava na Europa A primeira entrevista é com Pedro Alma que fala sobre a riqueza grande que existia e de como fazia para retirar ouro o documentário mostra de maneira fabulosa contrastando com a descrição histórica ou sociológica de até então Também entrevista o humilde Zeca Inocêncio que não trabalhou diretamente no ouro mas descreve as coisas que viu na exploração do ouro Décima primeira aborda a extração mineral no sertão de materiais como a bauxita caulim e xelita e apresenta as tentativas de Chateaubriand Suassuna em Catolé do Rocha de conseguir algum minério em sua fazenda Décima segunda sequência mostra a dificuldade de governar no sertão e faz uma apresentação das causas dos problemas enfrentadas no sertão Contrapõese no discurso verbal a problemática climática a desigualdade social e a questão política como obstáculos para o desenvolvimento da região É também uma sequência na qual as imagens buscam comover o espectador ao drama vivido pelos sertanejos cheias secas ausência de atendimento médico etc Conclui no entanto com palavras de esperança de Mariz Décima terceira sequência conclui o filme com espécie de síntese em contínuo giratório Traz as imagens construídas durante o filme concluindo com o lamento sertanejo e a silhueta de um camponês atirando ao sol seu inimigo ou seria ao gavião que observou tudo do alto e cuja montagem alude ao avião de José Gadelha e a poesia ao gavião que levou a riqueza para dentro de um cercado Esta cena dotada de intensa carga metafórica é um dos objetos de conclusão de nossa análise Por essa descrição superficial do documentário identificamos alguns temas importantes a seca as dificuldades e adaptações feitas pelo homem para viver no sertão a pecuária agricultura e extração mineral a luta de classes a ocupação histórica e social do território semiárido as condições de trabalho e sobrevivência no sertão contemporâneo ao filme o declínio da cultura popular o imperialismo o problema político e econômico para o desenvolvimento da região etc Em geral esses temas se relacionam com o debate sobre o Nordeste realizado pela esquerda e pelo Partido Comunista Brasileiro especialmente na década de 1960 A representação dos conflitos agrários no sertão em O País de São Saruê se liga às concepções de campo e Nordeste especialmente semiárido da esquerda comunista e da influência cepalina e furtadiana O latifúndio por exemplo é um tema que seria pensado o campo em geral porém há os problemas mais específicos da região e mais indicados como 73 presentes na região semiárida o problema climático e o atraso dos meios de produção por exemplo Esse será nossa base de articulação na segunda parte de nossa análise Em entrevistas e textos que comentam o filme no entanto outras produções culturais se mostraram importantes para a compreensão do filme e constam no trabalho Utilizamos outras referências importantes durante nossa análise o documentário O Homem de Aran 1934 de Robert Flaherty Os Sertões 1902 de Euclides da Cunha Capítulos de História Colonial 1907 de Capistrano de Abreu dentre outros A fim de fazer um recorte mais preciso que permita uma análise melhor delimitada concentramonos nos seguintes temas o sertão e o sertanejo lidos a partir da matriz discursiva euclidiana a representação do mundo do trabalho relacionando à teoria e imaginário marxistas e a questão agrária ou seja as dimensões políticoeconômicas que obstaculizam o desenvolvimento do semiárido nordestino83 Esses temas procuram ser interpretados à luz das discussões contemporâneas ao filme almejando interpretar o filme na sua historicidade Esse olhar nos permite enxergar que Vladimir Carvalho elabora uma representação do sertão e do sertanejo especialmente do trabalhador sertanejo que mescla uma pluralidade de leituras e fazeres culturais mas centrada no mundo do trabalho e na questão agrária pensados pelo PCB O filme não chama de camponês os trabalhadores da agricultura assim como apresenta operários na indústria do algodão ou pioneiros do ouro que não se encaixariam nessa categoria Em geral falamos em sertanejos pensando no popular sertanejo vaqueiro agricultor operário fazendo ressalvas ao aparecer figuras como José Gadelha um latifundiário também sertanejo de origem geográfica e identidade cultural semelhante A rigor não era consenso para os comunistas uma definição do que tornava alguém camponês tal debate é extenso e não há referência ao termo no documentário enfocamos portanto nos elementos discursivos do documentário sem aprofundar discussões pecebistas que não fossem auxiliar na compreensão do discurso fílmico84 Pretendemos assim mostrar como uma cultura cinematográfica um fazer estético fílmico pode ser entendida pelo 83 Houve um discurso que explicava esse fenômeno pelo viés climático Na década de 1950 emerge a denúncia da estrutura agrária e da indústria da seca Outros estudos apontam como outros setores como a atuação de empresas estrangeiras investimento em uma economia de exportação apropriação de divisas pelo setor mercantil ou a própria tarifação de produtos importados influenciaram nesse processo Se a concentração fundiária é um dos principais obstáculos ele não explica por completo os problemas enfrentados no semiárido nordestino Essa discussão é apresentada no quarto capítulo 84 Uma boa coletânea de documentos que exemplifica essa profusão de ideias é A questão agrária lançada pela Editora Expressão Popular Nos diversos textos apresentamse explicações de cunho histórico e econômico que se aproximam e depois se distanciam nos critérios para estabelecer as definições do que seriam camponeses e para definir as relações de trabalho com o latifúndio Além disso ao cruzar com outras discussões da sociologia como a respeito da relação do camponês com sua identidade esse debate se torna ainda mais complexo pois os comunistas pretendiam oferecer uma identidade que também se relacionasse com uma já existente na região daí a tentativa de entender as categorias regionais como foro cambão a partir de termos próprios trabalho assalariado relações feudais etc Essa discussão é realizada no quarto capítulo 74 arcabouço e debate político contemporâneos a seu diretor uma cultura política Elegemos sequências que representaram maior importância aos temas eleitos Trabalhamos com as sequências iniciais que mostram o espaço sua ocupação e o mundo da pecuária e da agricultura sequências 01 02 03 06 e 07 e que sintetizam o debate apresentado sequências 01 12 e 13 Mostramos como Vladimir Carvalho introduz inicialmente a região e seu trabalho traçando um panorama social e histórico do sertão e o trabalho que nele o homem exerce para sobreviver depois indica os conflitos climáticos e de classe ali existentes para por fim apresentar o que considera o mais grave impedimento ao desenvolvimento da região a questão agrária ou latifundiária Tendo em vista nossos objetivos temáticos elegemos algumas sequências organizadas nos capítulos seguintes para nossa análise do discurso do filme Para entendermos o discurso de O País de São Saruê a partir de uma estetização cinematográfica de elementos oriundos de uma cultura política e literária elegemos a representação de sertão e sertanejo no documentário Nossa hipótese é de que o eixo central dessa representação é o mundo do trabalho este é o centro da discussão do quarto capítulo Nele analisamos a representação do sertão e do sertanejo pelo mundo do trabalho a partir da apresentação inicial do sertão e do trabalho de seus habitantes Problematizamos essa construção cinematográfica a partir de seus elementos estéticos cruzando com a literatura e elementos da cultura marxista Nesta etapa um de nossos interlocutores principais foi Os Sertões de Euclides da Cunha Focamos nas quatro primeiras sequências nas quais há uma introdução do espaço e de seus trabalhadores No quinto capítulo aprofundamos o caráter da discussão política para o desenvolvimento da região servindose de documentos do PCB e do CPC e das publicações de alguns dos intelectuais do partido como Alberto Passos Guimarães e Caio Prado Júnior A análise dos elementos discursivos cinematográficos foi feita a partir desse corpus focando nas sequências do algodão na qual se apresenta mais fortemente o tema da luta de classes e se entrevista o latifundiário José Gadelha e as últimas sequências particularmente a que possui uma entrevista com Antônio Mariz que comenta longamente sobre o problema do subdesenvolvimento sertanejo 75 Capítulo 4 A terra de São Saruê o espaço e os homens 41 A análise do filme semiótica cinema e história Os enredos de documentários geralmente assumem etapas comuns a outras modalidades narrativas a apresentação do espaço o cenário e dos personagens de conflitos e de um desfecho Em O País de São Saruê as primeiras sequências introduzem seus protagonistas o sertão e os sertanejos A construção estética dessa etapa é o alvo da análise deste capítulo Podemos afirmar que o filme constrói uma narrativa que se baseia também em certa dualidade Nossa chave interpretativa o marxismo embora busque uma dialética também se serve largamente de muitas tradições de construção dualista Utilizamos o método interpretativo do quadrado semiótico do teórico Algirdas Julius Greimas que trabalha com dualidades Este método é essencialmente interpretativo e nos serve para problematizar a estética de O País de São Saruê Buscamos entender o documentário pela articulação entre estética e conteúdo preocupados em identificar elementos políticos presentes Interessamonos mais pela realidade construída pelo filme sua representação que pela confirmação ou não dos seus elementos históricos Utilizamos a semiótica greimasiana a partir da adaptação de Antônio Pietroforte em Semiótica Visual os percursos do olhar 2012 na qual o autor sistematizou e aplicação do percurso gerativo de sentido e do quadrado semiótico Pietroforte faz ainda diversas análises semióticas em pinturas fotografias esculturas dentre outras linguagens Utilizamos sua proposta e metodologia adaptandoa para a análise de O País de São Saruê Outra contribuição que nos auxiliou a fundamentar essa escolha pela semiótica foram considerações do Grupo µ ao pensar em uma teoria própria para a imagem85 A obra Traité Du signe visuel pour une rhétorique de limage 1992 escrita pelo grupo afirmam que a função semiótica não é buscada exclusivamente na relação entre significante e significado mas na relação estabelecida entre eles uma articulação ambígua qualidade central e objeto para a análise GRUPO µ 1993 p 24 Baseado na psicologia Gestalt os estudiosos desse grupo afirmam que a forma não é natural não existe por si mesma mas é percebida Ela é uma ordem do espírito humano um modelo sendo a ordem uma coincidência parcial ou total do que é percebido como 85 O Grupo µ 1967 agrupa de maneira intedisciplinar linguístistas e semiólogos da Universidade de Lieja na Bélgica Foi formado inicialmente por Jacques Dubois Francis Édeline JeanMarie Klinkenberg Philippe Minguet Francis Pire Hadelin Trinon Esse símbolo µ remete a inicial da palavra metáfora O grupo representou uma das tentativas dos anos 1960 de propor uma teoria espécie de gramática própria da imagem Utilizamos a tradução espanhola de Traité du Signe visuel pour une rhétorique de limage 1992 titulada Tratado Del signo visual para una retórica de la imagen 76 um modelo deduzindo que a imagem pode ser ordenada para um espectador que possui um modelo e não para aquele que não o possui GRUPO µ 1993 p 37 86 Buscar os modelos estéticos e matrizes de discursos também modelos e entender sua articulação se torna o objetivo central de nossa análise pois podem ser entendidos como parte de uma moldura histórica A semiótica greimasiana se apresenta como uma ferramenta útil O método de análise de imagens de Greimas propõe e distingue plano de conteúdo e plano de expressão Esses planos são definidos por Pietroforte de maneira geral como O plano de conteúdo referese ao significado do texto ou seja como se costuma dizer em semiótica ao que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz O plano de expressão referese à manifestação desse conteúdo em um sistema de significação verbal não verbal ou sincrético PIETROFORTE 2012 p 11 Para o Grupo µ o plano da expressão e o de conteúdo seguem regras em cada semiótica particular Ao propor uma semiótica visual afirma que a expressão será um conjunto de estímulos visuais e o conteúdo será simplesmente o universo semântico 1993 p 4187 A distinção para fins analíticos entre forma e conteúdo permite que articulemos a apresentação de uma realidade social do sertão de O País de São Saruê conteúdo com a estética a expressão forma pela qual Vladimir Carvalho problematiza tal conteúdo No âmbito historiográfico é comum se visar apenas o plano de conteúdo preocupandose com o que se diz e sua validade No entanto adotamos a proposta da História Cultural procurando as maneiras pelas quais grupos neste caso artistas ligados à esquerda oferecem uma visibilidade a temas em sua historicidade Assumimos a proposta de Robert A Rosenstone 2010 quando propõe maior análise das maneiras pela qual o cinema mostra temas históricos e a de Marc Ferro 2010 quando afirma a centralidade da estética e da linguagem cinematográfica para seu uso como fonte pelo historiador A semiótica visual se encaixou bem a nosso objetivo pois foge de um decalque da linguística às imagens procurando o que é específico no visual pois como afirma o Grupo µ é comum na explicitação do visual realizada de maneira verbal o esquecimento do significante visual esvaziando o estatuto semiótico da imagem 1993 p2288Entendemos uma 86 Llamamos orden a la coincidência parcial o total de lo percibido con un modelo de donde se deduce que una imagen puede ser ordenada para un espectador que posee un modelo y no para otro que no lo posee Es el lector el que hace la lectura 87 Tradução nossa En resumen para que se pueda hablar de semiótica hacen falta dos planos el de la expresión y el del contenido segmentados siguiendo reglas que varían com cada semiótica particular y que estos planos se correspondan En una semiótica visual la expresión será un conjunto de estímulos visuales y el contenido será simplemente el universo semântico 1993 p41 88 Cabe comentar que encontramos poucos trabalhos que articulem a semiótica greimasiana à história aliás a semiótica é pouco utilizada pelos historiadores Dentre os elementos das dificuldades teóricas próprias da semiótica também podemos explicar a pouca utilização por uma crença de que a semiótica é um instrumento que desconsidera o contexto Nesse sentido alguns autores que falaram sobre a semiótica de Greimas foram bastante elucidativos dada a complexidade teórica de utilizar essa ferramenta poderosa mas complexa As acadêmicas de 77 construção discursiva no documentário através de uma dimensão de expressão e de conteúdo contemplando a plasticidade dos planos e o princípio de que o cinema é imagem em movimento O modelo do quadrado semiótico visa representar as relações estabelecidas no percurso gerativo de sentido O sentido é estabelecido por uma rede de relações entre os elementos do conteúdo O quadrado semiótico por meio de operações de afirmação e de negação sistematiza uma rede fundamental de relações de contradição contrariedade e implicação Há também uma geração de um termo complexo gerado pela simultaneidade dos termos simples afirmados e um termo neutro gerado pela simultaneidade de suas negações PIETROFORTE 2012 p 14 A narrativa ocorre por meio de transformações quando um elemento se transforma em outro um gato com fome que come um rato e se transforma em um gato sem fome por exemplo Identificar essa transformação é parte do processo objetivado pelo modelo teórico a nível narrativo do percurso gerativo de sentido Uma ação que transforma elementos define um programa enunciativo Uma narrativa complexa é composta por diversos programas enunciativos Realizar um programa de base representa uma performance que para se realizar pode requerer outros programas de base Isso tudo se refere ao plano de conteúdo Todavia em muitos enunciados o plano de expressão não apenas expressa um conteúdo mas passam a fazer sentido sendo articulados a uma forma de conteúdo A isso chamamos de semissimbolismo Quando isto ocorre a análise buscará entender qual o conteúdo gerado e como se articula no plano de expressão Em nível de exemplo podemos relacionar ao conto Chapeuzinho Vermelho temos letras Ana Cristina Fricke Matte e Gláucia Muniz Proença sugerem que tomemos como texto a junção de um plano de conteúdo o do discurso estudado por meio do percurso gerativo de sentido com um plano de expressão verbal não verbal ou sincrético MATTE LARA 2009 p340 ou seja é no percurso gerativo de sentido na relação entre significado e significante que a análise identificará como se manifestam discursos seja na estética plano de expressão ou de conteúdo lembrando que ambos se mostram no próprio texto Isto quer dizer que em O País de São Saruê buscamos no próprio discurso fílmico a dimensão discursiva no quê e como diz Daí a conclusão das autores de que o contexto na semiótica é tomado como os outros textos em que o objeto em análise dialoga examinando tais coerções nos próprios textos e não como uma instância externa a que os textos remeteriam MATTE LARA 2009 p340 Nosso trabalho faz essa análise porém extrapola esse objetivo semiótico pois não se trata aqui de um trabalho de semiótica mas historiográfico articulando os resultados da análise semióticaestética a uma textualidade também externa Se a semiótica não nega essa dimensão histórica mas apenas optou por privilegiar uma dimensão intradiscursiva nós por nossa vez optamos por aqui utilizar instrumentos semióticos mas sem almejar a geração de sentido interna ao texto em si mas para um trabalho historiográfico ou seja mais contextual o que como vimos não é impossível Ainda sobre o tema da contextualidade possível na semiótica afirmam a semiótica possui recursos extremamente organizados para a análise do contexto Contexto sem esses recursos é um conceito vago e infinito impossível de ser analisado senão arbitrariamente Admitimos que a análise do contexto é sempre parcial e portanto é preciso definir que contexto estamos falando MATTE LARA 2009 p347 Sobre seu uso no âmbito da arte comentam ainda que os estudos semióticos são preponderantemente focados no plano da expressão o plano do conteúdo é geralmente abordado de forma bastante impressionista Em casos como esse a interdisciplinaridade é bastante profícua já que permite integrar os avanços dos estudos semióticos do plano do conteúdo com os estudos do plano da expressão provenientes do campo das artes sobre o objeto em questão MATTE LARA p348 Podemos sugerir que uma abordagem desse tipo interdisciplinar nada mais seja do que uma contextualização teórica do objeto que explora um contexto externo em textos teóricos ou um contexto situacional em textos sobre história da arte Cabe observar que se trata de uma contextualização bem mais complexa do que aquela que simplesmente insere novos objetos de análise MATTES LARA 2009 p348 78 duas possibilidades de programas de base levar os doces para a vovó ou ser comida pelo lobo No entanto para impedir a menina de chegar ao seu destino o lobo lança mão de uma tentação desviandoa de seu destino O lobo realiza uma de suas performances mas ela é apenas uma para realizar seu programa de base maior devorar a menina Ao final da fábula outros programas de base são acionados e o lobo termina na versão mais difundida pego pelo caçador que salva Chapeuzinho Vermelho e sua avó Entre a dualidade vida e morte a vida de chapeuzinho vermelho afirma a morte do lobo e vice versa Isto ficará mais claro durante nossa análise Cristina Pompa baseada em Michael de Certeau diferencia o lugar de um espaço o primeiro se refere a uma configuração de posições implicando certa estabilidade na coexistência de seus elementos o segundo é mais dinâmico animado por movimentos ali desdobrados é um lugar praticado transformado pelos relatos e pelas crônicas Pensamos o sertão em O País de São Saruê por essa perspectiva de como o documentário interpreta significa visibiliza esse espaço 42 O Sertão de Vladimir Carvalho A sequência que inicia O País de São Saruê utiliza três elementos letreiros filmagens de paisagem e a música tema do filme Os letreiros são alternados com planos que mostram um açude sertanejo no qual aves de arribação pousam e voam em bando daquele lugar Outros planos mostram a paisagem sertaneja seu céu e sua terra Somos apresentados rapidamente ao espaço sertanejo que será melhor desenvolvido durante todo o filme A música tema possui voz e violão em estilo regional Ela fala sobre um reino desencantado e de um gavião que levou a riqueza de um lugar deixando apenas as costelas do Eldorado A riqueza é referida como o algodão ouro prata diamantes À alegria de alguns é relacionada à tristeza de outros Além de reforçar o caráter regional das imagens pela estética da música sua letra introduz temas que serão desenvolvidos pelo documentário apropriação da riqueza por uns a riqueza na região seja por uma elite local ou pelo imperialismo As metáforas no entanto ficam mais claras ao final do filme após os temas serem desenvolvidos Essa canção abre e conclui o documentário por isso voltaremos mais detalhadamente na conclusão da análise O terceiro elemento são os letreiros Apresentados em estética de xilogravura ou seja com caráter regional eles introduzem mais explicitamente os temas e trazem informações históricas sobre a região Esse letreiro é um dos elementos mais literalmente históricos Ele apresenta a versão historiográfica para a gênese da região para em seguida na próxima sequência fazêlo de maneira poética Os dois primeiros parágrafos dos letreiros afirmam Êste filme é dedicado aos humildes lavradores vaqueiros tangerinos violeiros e 79 retirantes que muitas vêzes interromperam suas tarefas para nos ajudar a realizá lo Nos vales dos rios de Peixe e Piranhas no extremo oeste da Paraíba Nordeste do Brasil espalhase por cerca de 20 municípios numa área superior a oito mil quilômetros quadrados uma população estimada em 500 mil viventes O País de São Saruê Sequência 1 355 Já nos referimos no primeiro parágrafo ao caráter de baixo do documentário no capítulo anterior O segundo parágrafo oferece dados bem diretos e objetivos sobre o espaço das filmagens sua localização vales dos rios de Peixe e Piranhas no extremo oeste da Paraíba Nordeste do Brasil o tamanho do espaço e a quantidade de sua população Eles mostram a população indicada pelo documentário pois em vinte municípios se espalham 500 mil pessoas No parágrafo seguinte são inseridos dados mais históricos e interpretativos Ricos e pobres são todos descendentes de colonos portugueses aí chegados no século XVII e de índios que durante a conquista formaram a Confederação dos Cariris e foram dizimados pelos bandeirantes perdendo suas terras transformadas em datas e sesmarias CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 1 414 Somos apresentados à origem étnica e cultural da população colonos portugueses e os indígenas Ao mesmo tempo já é exibido o conflito entre esses dois grupos presente na dualidade entre os termos colonos e índios e reforçado pela afirmação que os últimos formaram a Confederação dos Cariris para se defender dos bandeirantes mas que perderam suas terras Apresentase a origem da população e da questão agrária A ocupação do território a época da América Portuguesa em torno do médio e baixo São Francisco e suas áreas vizinhas foi realizado a partir da economia colonial Houve assim uma separação entre litoral e interior naquele predominando a cultura da cana de açúcar pela proximidade com os cursos fluviais e dos portos de embarque e neste a pecuária cujo caráter expansivo se adaptou às regiões interioranas 89 A Paraíba da segunda metade do século XVII era povoada majoritariamente por índios MELLO 2013 p 79 de diversos grupos entre os quais se destacam os tupis cariris e tarairiús Na região das filmagens indicada no letreiro havia os dois últimos grupos de indígenas Cariri era um termo para designar inúmeras tribos e algumas estiveram às margens do rio do Peixe outro grupo os tarairiús também constava na região representada no filme no rio Piranhas MELLO 2013 p 7172 Para José Octávio de Arruda Mello foram os tarairiús os responsáveis pela 89 Chamamos de América Portuguesa ao cenário histórico habitado por indígenas e ocupado pelos colonos principalmente de origem portuguesa durante o período colonial O Brasil nação é uma construção posterior ocorrida com a vinda da família real e a mudança de status administrativopolítico de colônia para Império Com vista a tal discussão já realizada pela historiografia buscamos respeitála fazendo essa distinção em nosso texto Da mesma maneira se faz necessário distinguir o que chamamos hoje de Nordeste que é uma criação uma territorialização do século XX mas que não existia à época de ocupação do sertão 80 chamada Confederação dos Cariris a reação indígena na defesa de suas terras Isso gerou a Guerra dos Bárbaros de 1680 a 1730 Dizimados o autor afirma que os sobreviventes na maioria foram para o Ceará e o Rio Grande do Norte havendo na Paraíba menor contribuição indígena à civilização sertaneja que nesses estados p 78 Pedro Puntoni problematiza a ideia de uma Confederação dos Cariris e o próprio termo tapuia indicando que foi um termo bastante vulgarizado em manuais escolares que assumem uma percepção de que os tapuias do semiárido se resumiam em um só grupo étnico o dos cariris 2002 p 78 Indica que Irineu Joffily divulgou essa ideia e que ela foi partilhada pelo historiador Capistrano de Abreu p 7879 Sabemos que Capítulos de História Colonial 1907 escrita pelo último foi uma das leituras reconhecidas por Vladimir Carvalho para o entendimento do sertão O livro indica os conflitos entre colonos e indígenas no processo de colonização e ocupação do território sertanejo Podemos identificar assim como um discurso parte de uma cultura histórica e historiográfica mais tarde problematizada por autores como Puntoni90 Segundo Capistrano de Abreu havia uma maior parte de tronco Cariri entre as tribos Elas tiveram conflitos por não ceder suas terras ou por assaltos ao gado dos colonos Capistrano de Abreu afirma que estes conflitos foram menos sanguinolentos que os anteriores das bandeiras pois havia menor necessidade de braços para o trabalho e também não havia tanta repugnância a tal trabalho bem como existência de terras devolutas para onde os indígenas podiam migrar Mas ainda afirma que Entretanto muitos foram escravizados refugiaramse outros em aldeias dirigidas por missionários acostaramse outros à sombra de homens poderosos cujas lutas esposaram e cujos ódios serviram 2000 p152 Parece significativo que uma cultura históricahistoriográfica valorizava esse levante como um elemento que demonstrava a ação de enfrentamento dos indígenas Vladimir Carvalho nas leituras de Capistrano de Abreu parece ter abraçado essa ideia servindose da representação 90 O sertão foi explorado primeiramente pelas entradas das bandeiras em busca de ouro e pedras preciosas ou na caça de mão de obra indígena que se extinguia no litoral Durante muito tempo permaneceu uma visão romântica do bandeirante no entanto autores como Capistrano de Abreu foram críticos dessa visão mostrando a violência sofrida pelos indígenas que tiveram suas terras espoliadas Todavia também os indígenas foram alvos de mitificações Cristina Pompa baseada em Pedro Puntoni indica que a Confederação dos Cariris era mais produto do olhar europeu constando por isso na documentação colonial e chegando à historiografia indígena Houve um esforço do governo geral em formalizar a repressão aos diversos grupos indígenas chamados de Tapuias que também podem ser identificados com os chamados Cariris que entravam em contato e conflito com as fronteiras causando problemas ao desenvolvimento da economia colonial Os indígenas tiveram comportamentos diversos saqueando atacando colonos em vinganças fazendo alianças diversas ou tentando conviver com eles Embora os combates possam ser vistos como reações e resistências segundo Pompa parece que não podemos fornecer o caráter de um levante de índios contra os colonos POMPA 2003 p 27071 Neste sentido ambos os autores divergem sobre este aspecto da Confederação Cariri A ideia divulgada por Irineu Joffily e abraçada por Capistrano de Abreu e outros autores no entanto também teve outras versões Puntoni aponta que Câmara Cascudo se referia à confederação dos cariris como um termo romântico afirmando que não houvera plano comum ou unidade de chefia preferindo chamála de Guerra dos Índios 2002 p 79 Ressalta a arbitrariedade das fontes que nos permitem apenas conhecer o olhar do conquistador devido a lacuna de fontes que com a visão dos indígenas 81 de um espaço permeado de conflitos e injustiças já no século XVII O povo pobre e explorado sertanejo da década de 1960 nas suas filmagens possui sua origem nos subjugados índios do século XVII A seleção desse conteúdo e a busca nos de baixo como temas da exploração do homem pelo homem ou de resistências populares demonstram as intencionalidades políticas do documentarista e sua intersecção com a historiografia e a cultura histórica disponíveis A apresentação do indígena não apenas indica um aspecto da origem étnica do sertanejo mas também as raízes da questão agrária do sertão O documentário indica que as terras indígenas foram transformadas em datas e sesmarias nesse processo de ocupação territorial ou seja desapropriadas de seus donos originais Este é o mal original ou o ovo da serpente dos conflitos agrários na região para o documentário Sabemos que Capistrano de Abreu foi uma influência da historiografia para Vladimir Carvalho Este autor que para muitos inaugura uma escrita propriamente historiográfica no Brasil não poderia fugir a sua historicidade possuindo influências de um evolucionismo social Por isso o autor ao falar sobre os animais sertanejos em sua relação com o indígena afirma que Estes animais nem um pareceu próprio ao indígena para colaborar na evolução social dando leite fornecendo vestimenta ou auxiliando o transporte apenas domesticou um ou outro os mimbabas da língua geral De caça e principalmente de pesca era composta sua alimentação animal Possuía agricultura incipiente de mandioca de milho de várias frutas Como eramlhe desconhecidos os metais o fogo produzido pelo atrito fazia quase todos os ofícios do ferro A plantação e colheita a cozinha a louça as bebidas fermentadas competiam às mulheres encarregavamse os homens das derrubadas das pescarias das caçadas e da guerra ABREU 2000 p 39 Capistrano de Abreu pelo citado baseia sua leitura do indígena ao molde europeu de vida e de civilização Para a evolução social do indígena haveria a necessidade de haver um entorno semelhante ao europeu para desenvolver uma cultura semelhante Ele se encaixa bem com algumas ideias de Euclides da Cunha também detentor de certo determinismo do social pelo ambiental Ambos os autores poderiam ser articulados com o entendimento do marxismo popularizado na década de 19501960 sobre o mundo social A evolução social de certa maneira para aquele marxismo consistia na passagem do estado primitivo ao capitalismo e depois ao socialismo O Nordeste era o espaço do atraso no qual permaneciam relações e práticas arcaicas em obstáculo para a concretização do capitalismo no Brasil e consequentemente do socialismo Capistrano de Abreu reconhece a presença dos índios Cariris na população brasileira e sertaneja e atribui a eles características que podemos relacionar às que comumente se combinam com o imaginário sobre o sertanejo 82 Se agora examinarmos do meio sobre esses povos naturais não se afigura a indolência o seu principal característico Indolente o indígena era sem dúvida mas também capaz de grandes esforços podia dar e deu muito de si O principal efeito dos fatores antropogeográficos foi dispensar a cooperação A mesma ausência de cooperação a mesma incapacidade de ação incorporada e inteligente limitada apenas pela divisão do trabalho e suas consequências parece terem os indígenas legado aos seus sucessores ABREU 2000 p 41 Da indolência ao grande esforço Essa representação do indígena Cariri ou também do tapuia já existia à época da colonização Ela se combina ao sertanejo de antíteses de Euclides da Cunha que o define exatamente como um homem inerte mas capaz de grandes proezas físicas Teria o sertanejo em O País de São Saruê tais características Este capítulo responde esta questão Retomando o letreiro que abre o filme esta é a última parte A criação do gado e o rude trato da terra emprestaram a esses vales uma feição cultural marcante e idêntica à que em geral se observa em todo o sertão nordestino também nessas paragens uma minoria detém a posse da terra e dos bens que o esforço do homem retira dela O resultado é a injustiça e a humilhação Por isso qualquer semelhança com a história de outros sertões não é mera coincidência mas semelhança mesmo CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 1 435 Reconhecendo na pecuária sertaneja a origem de sua feição cultural afirma que essa não é uma particularidade da área das filmagens mas de todo o sertão Vladimir Carvalho indica que a temática apresentada e filmada em uma realidade particular paraibana possui um caráter geral caracterizando todo o sertão Explicita o problema da luta de classes a minoria que detém a posse da terra e dos bens que o esforço do homem retira dela Essa referência se aproxima da construção em oposição básica da teoria marxista e sua oposição de classes entre os que possuem meios de produção e os que necessitam vender sua força de trabalho Assim um exemplo dessa construção é a descrição de Engels em Princípios do comunismo 1847 que daria origem ao Manifesto Comunista 1848 o autor indica justamente um processo em que os proletários sempre existiram mas que foi intensificado com a Revolução Industrial Opõe no capitalismo a classe dos grandes capitalistas que em todos os países civilizados já estão de posse exclusiva de todos os meios de subsistência das matériasprimas e dos instrumentos máquinas fábricas etc necessários à produção dos meios de existência Essa é a classe dos burgueses isto é a burguesia e em seguida a classe dos despossuídos dos que em virtude do desapossamento são obrigados a vender seu trabalho aos burgueses para receber em troca os meios necessários à sua subsistência Essa é chamada classe dos proletários isto é o proletariado 2005 p 44 As riquezas são produzidas pelo proletariado que vende sua força de trabalho para os donos de terras que se apropriam dessa riqueza gerada O documentário afirma que o resultado 83 desse fenômeno social é a injustiça e humilhação qualificandoa e posicionandose frente ao conflito para por fim ressaltar o caráter geral que objetiva seu documentário qualquer semelhança com a história de outros sertões não é mera coincidência mas semelhança mesmo Daí duas conclusões essenciais a centralidade da questão agrária e da luta de classes para as relações que são exibidas no documentário e de que o sertão particular filmado por Vladimir Carvalho foi apresentado para afirmar uma tese mais geral sobre o problema da terra em todo o sertão brasileiro O sertão de Vladimir Carvalho se exibe especialmente nas relações de trabalho e nos conflitos de classe apresentados nas próximas sequências do documentário nas quais essa temática foi desenvolvida 43 A imensa múmia de cactos sertão espaço de seca e de luta Na primeira sequência os planos iniciais mostram aves chegando e deixando um açude em terras agrestes do sertão apresentando um contraste entre riqueza e pobreza Embora o filme vá se servir das imagens consolidadas do sertão como espaço da seca opta por começar o filme com imagens que possuem água símbolo de riqueza frente à realidade árida do sertão A essas imagens se alternam letreiros ambos embalados por uma música cuja letra nos oferece uma síntese uma apresentação do que tratará o documentário Ela por sua vez também traz esse contraste entre riqueza e pobreza A princípio podemos não prestar muito atenção nela pois nossa atenção deve ser dividida entre a música e os letreiros que trazem muitas informações Porém ela é tão importante que também conclui o filme sintetizando junto às imagens finais o tema central do filme Analisaremos a música posteriormente No momento cabe indicar que o conflito entre riqueza e pobreza já se encontra na abertura do filme que sugere em metáforas os elementos da exploração do homem pelo homem da riqueza e da pobreza do espaço sertanejo A essa altura fazse necessário considerações sobre o processo de montagem De maneira simplificada a montagem consiste na combinação e organização de certa quantidade de imagens principalmente mas também de sons e inscrições gráficas Esse processo ao que nos interessa inclui duas dimensões essenciais a sucessão desses elementos em um tempo a sucessão de planos que podem incluir em si imagens inscrições gráficas e ser acompanhados de sons e a organização interna dos elementos de um plano sua duração e sua composição Cf AUMONT 1995 p 5360 Cabe ainda comentar que embora exista a profissão do montador e exista uma figura específica em O País de São Saruê estamos considerando neste conceito ampliado de montagem que a figura de Carvalho enquanto diretor também foi fundamental no processo de montagem ou seja a montagem não é encarada aqui como mera 84 ação técnica de cortar o objeto físico o negativo do filme e colocálo em determinada ordem mas enquanto processo de criação e organização intelectual desses elementos de maneira a produzir uma narrativa O conceito de quadro pode nos elucidar e ampliar essa questão O quadro desempenha em graus bem diferentes dependendo dos filmes um papel muito importante na composição da imagem especialmente quando a imagem é imóvel Alguns filmes manifestam uma preocupação com o equilíbrio e a expressividade da composição no quadro que nada fica a dever à pintura De um modo geral podese dizer que a superfície retangular que o quadro delimita e que também se chama às vezes por extensão de quadro é um dos primeiros materiais sobre os quais o cineasta trabalha AUMONT 1995 p 20 Por tal afirmação podemos dizer que o plano representa um espaço delimitado por um quadro que por sua vez representa um recorte da realidade realizado pelo cineasta Esse recorte não é inocente mas realizado em um momento de criação na qual a seleção dos elementos da imagem seu ângulo sua iluminação gerarão diferentes efeitos estéticos e portanto discursivos Elaborase assim um discurso fílmico Assim analisamos como a composição de um plano realizada na montagem e pensada de maneira fotográfica representa um processo de elaboração discursiva Isso requer admitir que o processo de montagem não esteja apenas na mesa de montagem mas na própria filmagem91 Os elementos de composição dos planos serão objetos de análise daquilo que constitui o texto fílmico seja no nível de conteúdo ou no nível de expressão92 Por isso seus objetos como são exibidos iluminação disposição do espaço etc também são considerados Após essa sequência introdutória O País de São Saruê apresenta o sertão Planos apresentam esse cenário onde se desenrolam as ações de outras personagens seu espaço geográfico sua vegetação sua aridez 91 Em A Estética do Filme 1995 p 5960 Jacques Aumont afirma que a organização interna da própria unidade do plano é pensada antes da filmagem No entanto não nos referimos dessa maneira pelo fato de sua análise da estética fílmica privilegiar como bem admite filmes ficcionais Reconhecendo no entanto a dimensão ficcional do documentário e de sua organização podemos afirmar que a elaboração da fotografia terá momentos de maior ou menor planejamento anterior à filmagem a depender da situação Nesse momento inicial de nossa análise de imagens essencialmente naturais havia maior liberdade de planejamento da filmagem por exemplo que as imagens gravadas no calor do momento que podem variar de dificuldade homens trabalhando há movimento intenso ou o encontro com sertanejos que lamentam a morte de uma criança uma situação inusitada e que registra algo ocorrido naquele momento 92 Chamo de texto fílmico a unidade de discurso fílmico uma combinação de códigos de linguagem cinematográfica AUMONT MARIE 2011 p 88 Também chamarei de discurso fílmico a mesma noção quando quiser denotar melhor seu caráter seu aspecto de elaboração discursiva do documentário 85 CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 2 514 650 As figuras exibidas mostram uma parte da primeira sequência Elas aparecem imediatamente após as cenas que descrevemos O primeiro plano é constituído por dois campos de profundidade mais próximo à câmera há uma árvore sem folhas retorcida e ao fundo o céu com o sol no canto superior do enquadramento cujos raios atravessam todo o espaço da fotografia preenchendo tanto o céu quanto se sobrepondo ao negro dos contornos da árvore A luz do sol estoura toda a iluminação da imagem Esse plano que inicia é muito importante pois introduz ao tema que compõe as imagens em seguida Em nível dos temas apresentados na imagem o sol e uma árvore apresentase a oposição sol x seres vivos93 A nível fotográfico nível de expressão há a mesma oposição no jogo de luz e sombra o alto contraste entre o preto e o branco ajuda a reforçar o embate entre o sol e os objetos que fustiga sejam eles seres vivos ou objetos inanimados Esse plano é 93 Utilizei seres vivos para poder incluir as plantas os animais selvagens e o homem em um mesmo grupo que é oposto ao clima desse ambiente geográfico 86 mostrado com o áudio de um som ambiente de vento e pássaros sem grandes barulhos reforçando o caráter realista e natural desse início Também prepara o expectador para a voz grave de Echio Reis que narra o poema de Jomar Souto Sobre a poesia Carvalho diz A cadência do poema uma forma próxima do épico antiga grega também sertaneja de se narrar a História marca todo o longo prólogo como uma voz da Terra um monólogo do Sertão CARVALHO 1986 p 12 É pertinente comentar como essa voz da Terra remete à relação entre homem e meio tão cara à tradição de representação do sertão A divisão de Os Sertões em o homem a terra e a luta está sugerida na estrutura do filme que inicia com um prólogo do Sertão apresentando em seguida os sertanejos e seus revezes Cabe ressaltar em nível de expressão que quando os raios brancos de sol na fotografia ocupam a maior parte do fundo em segundo plano também ultrapassam os contornos da árvore em primeiro plano94 Estes dois objetos na fotografia que também compõe o discurso fílmico entram em disputa pelo espaço fotográfico O branco invade o negro que em nível de conteúdo representam o sol e a árvore respectivamente Essa articulação representa o conflito natural entre vida e morte seca e vegetação vida que será desdobrado em outros significados no decorrer do documentário Em seguida as quatro figuras mostram dois planos que apresentam a paisagem seca do sertão mostrase pedras cactos a vegetação rasteira e o solo pedregoso e começam com a luz estourada ou seja com excesso de iluminação como vemos pela brancura inicial desses planos porém aos poucos vão diminuindo a recepção de luz de maneira que a imagem vai escurecendo na medida em que aumentam os tons de cinza e de preto detalhes dos elementos de vegetação ganham relevo e nitidez95 Seguidos ao primeiro plano que descrevemos estes planos continuam a apresentar o espaço enquanto exibem seu conflito com o sol o símbolo do clima seco do sertão em conflito com a vegetação e o solo a terra Essa diminuição da luz permite ver mais detalhes das imagens A brancura mais uma vez disputa com as sombras e o 94 Diferenciamos nível de expressão forma e nível de conteúdo tema O nível de expressão se referirá a maneira estética como são apresentados elementos plásticos e sonoros O nível de conteúdo os objetos e temas que se referem Plano aqui se refere a uma dimensão de profundidade da fotografia e não a referida unidade fílmica Uma fotografia ou mesmo um plano cinematográfico podem contar diferentes campos de profundidade denominados planos nos quais podem aparecer diferentes objetos que apesar de se manifestarem em uma superfície plana assumem diferentes posições em relação à proximidade da lente da câmera que os registra 95 O aumento ou diminuição da abertura do receptor de luz da câmera cinematográfica permite manipular o efeito estético da luz natural Além dessa maneira outros meios são utilizados como refletores ou rebatedores Sobre isso Vladimir Carvalho comenta que por ausência de recursos utilizou como rebatedores quadros de escola cobertos com espécie de papel laminado Por meio desse instrumento ele rebatia a luz natural para iluminar os objetos que queria representar Utilizar a luz natural do sertão extremamente forte também foi outro desafio não só para o cineasta como para outros anteriores Cf BERNARDET Tendo em vista as limitações da produção e da própria iluminação Carvalho e João Ramiro o fotógrafo de O País de São Saruê elaboraram soluções estéticas para uma maneira de melhor expressar o sertão Assim temos uma espécie de consenso entre as possibilidades técnicas e naturais das filmagens e outra da elaboração artísticoestética no filme Analisamos a nível de expressão esse âmbito estético 87 negro que nos permitem ver a terra e a vegetação sertaneja como que indicando que aquele atrapalha a existência deste O excesso de branco nos impede de ver nitidamente a própria imagem quase a tornando apenas um quadro branco sem objetos A ausência de objetos poderia significar no nível de expressão e pensando no quadrado semiótico de Greimas o não preto que é não objeto ou não vegetação não solo não terra Embora usualmente se atribua o preto à morte e o branco à vida a leitura do significado das imagens em nível de expressão deve ser realizada pela lógica interna à imagem e pela sua pertinência Neste caso parece evidente que houve uma inversão dessas usuais significações atribuídas a tais cores Para entender melhor essa construção de oposições explicaremos nosso uso do método de análise de um sistema semissimbólico de Greimas Seu quadrado semiótico permite compreender o percurso gerativo de sentido sistematizando o processo semântico em questão Esse modelo é construído a partir de oposições identificadas no planonível de conteúdo e no planonível de expressão Em nível de expressão a oposição luz e sombra nosso quadrado ficou da seguinte maneira As linhas verticais relacionam os termos à sua negação preto não preto branco não branco As linhas horizontais relacionam os termos opostos ou seja preto branco e suas negações As duas linhas diagonais no centro do quadro o x estabelecem uma relação de sentido e possibilidade de percurso o preto que se afirma no não branco e o branco no não preto As linhas são caminhos que indicam as possibilidades narrativas quando um dos elementos consegue realizar a ação pela qual se afirma ou ao contrário quando é negado Por isso temos aqui percursos possíveis e excludentes o preto pode se tornar não preto e afirmar o branco que realizaria sua performance porém o percurso contrário também pode acontecer Estabelecemos em nível de conteúdo por sua vez outra oposição vegetação x sol às 88 quais relacionamos outra instância de significado vida e morte Neste caso colocaremos ambas as dimensões no quadrado semiótico complexificandoo A vegetação se opõe ao sol Como explicamos anteriormente tais elementos por uma construção histórica e discursiva podem se referir à morte e à vida no sertão Por isso sobrepomos esta outra oposição A negação de um constitui a afirmação do outro96 Neste conflito o sol e a vegetação podem realizar a sua performance a vegetação pode negar o sol que remete aqui à seca e afirmar a vida Do contrário o sol pode realizar sua performance a seca e afirmar a morte Transpondo plano de conteúdo ao plano de expressão teremos 96 Obviamente estamos aqui abordando a construção de sentido no filme Não estamos afirmando que a negação do sol necessário para todos os seres vivos seja a vida e que o documentário afirme isto Mas que a nível do sentido que se atribui a tais objetos enquanto imagens podemos afirmar tal conclusão pois o sol forte sertanejo é visto como um obstáculo a vida Toda imagem cinematográfica ou não ao ser evocada é carregada de sentido ou seja remete a elementos que não se reduzem ao seu referente imediato Isso permite uma vasta gama de produção de sentido no cinema por vezes ambíguos Por exemplo Charles Chaplin em Tempos Modernos 1936 coloca um plano de uma passeata seguido de um rebanho de ovelhas estabelecendo uma relação de sentido que não se resumiria aos animais em si mas ao sentido conotativo que se dá a eles como de massa ou talvez do cordeiro cristão 89 No esquema sobrepomos plano de conteúdo e plano de expressão A vegetação que simboliza a vida no sertão precisa negar o sol forte a seca para realizar sua performance e afirmar a vida Em nível de expressão temos a luz e a sombra que definem a visão desses objetos em conflito reforçando essa oposição a nível plástico A vegetação se opõe ao branco do sol luz que perfura e disputa espaço com os contornos negros da árvore definidos pelas sombras A negação do negro é também da vegetação e da vida O filme porém não apresenta um desfecho mas exibe o conflito em nível de expressão 97 Por fim cabe ressaltar que se para nossa análise foi necessário recorrer a uma reflexão pormenorizada e semiótica da fotografia Estes são também elementos essencialmente cinematográficos pois os planos ostentam movimentos impossíveis à fotografia seja dos raios brancos do sol que ora ultrapassam o contorno da árvore e ora não espetandoas como espinhos ou no movimento no qual o excesso de luz permite ver os detalhes das imagens à medida que diminui98 Os planos seguintes se referem a travellings que mostram mais da vegetação pedras cactos etc O último plano das figuras representa um açude secando devido à estiagem São um conjunto de imagens padrão largamente utilizadas pelo cinema na década de 1960 para mostrar a realidade de seca sertaneja já consolidadas nas artes plásticas e literatura Acessam portanto uma rede de significados anteriormente sedimentados A imagem de uma reserva de água que se seca último quadro das imagens não possui pássaros que voam por mera gratuidade Esta imagem foi reproduzida pela literatura referindose às maneiras dos sertanejos avaliarem a chegada da seca Estão presentes em autores lidos por Vladimir Carvalho como José Lins do Rego Graciliano Ramos José Américo de Almeida e Euclides da Cunha Assim afirma Cunha sobre a capacidade do sertanejo de adivinhar o flagelo da seca Do mesmo passo nota que os dias estuando logo ao alvorecer transcorrem abrasantes à medida que as noites vão tornando cada vez mais frias A atmosfera absorvelhe com avidez de esponja o suor na fronte enquanto a armadura de couro sem mais a flexibilidade primitiva se lhe endurece aos ombros esturrada rígida feito uma couraça de bronze E ao descer das 97 Porém a nível de curiosidade no próprio contorno dos cactos a oposição branco e negro está representada essa planta também é símbolo da vida na medida em que é vegetação porém é símbolo também da hostilidade do sertão de seu clima seco da própria seca não à toa é utilizada em westerns e outros filmes ambientados em ambientes áridos Se seus contornos são delineados pelas sombras seus espinhos são exibidos através do branco símbolo essencial da hostilidade sertaneja como descrito por Euclides da Cunha sobre um espaço que espeta os homens que ali vivem Dessa maneira o próprio elemento mais hostil dessa planta reforça a oposição construída a nível de expressão na oposição dessas duas cores e da sombra e da luz 98 Cabe fazer uma ressalva que ao se referir à imagem em movimento não se fala apenas de elementos que se movimentam no espaço enquadrado ou diegético da filmagem mas a própria mudança de cores iluminação mesmo em uma paisagem estática também é apenas possível no cinema 90 tardes dia a dia menores e sem crepúsculos considera entristecido nos ares em bandos as primeiras aves emigrantes transvoando a outros climas É o prelúdio de sua desgraça CUNHA 2011 p 136 As aves emigrantes ou de arribação são um sintoma cultural recorrente nas descrições das maneiras do sertanejo identificar a seca Embora descrevendo o litoral fértil da canade açúcar José Lins do Rego também expõe essa imagem em Menino de Engenho 1932 99 Chamavam de arribaçãs as rolas sertanejas que desciam batidas pela seca para o litoral Vinham em bando como uma nuvem muito no alto a espreitar um poço de água para a sede de seus dias de travessia E quando avistavam faziam a aterrissagem em magote escurecendo a areia branca do rio Nós ficávamos a espreita de cacete na mão para o massacre Matávamos a cacetadas como se elas não tivessem asas para voar A seca comeralhes o instinto natural de defesa REGO 2002 p 47 Essa imagem aparece em Vidas Secas no capítulo O mundo coberto de penas O mulungu do bebedouro cobriase de arribações Mau sinal provavelmente o sertão ia pegar fogo Vinham em bandos arranchavamse nas árvores da beira do rio descansavam bebiam e como em redor não havia comida seguiam viagem para o sul O casal agoniado sonhava desgraças O sol chupava os poços e aquelas excomungadas levavam o resto da água queriam matar o gado RAMOS 2011 p 109 Quando Vladimir Carvalho utiliza tais imagens está inserido dentro dos sintomas culturais que podem ser identificados na literatura e que agora eram trazidos para as telas com a inserção da figura do sertanejo como tema dos filmes100 Em nível de fotografia e luz cabe indicar a análise de JeanClaude Bernardet sobre os critérios utilizados na década de 1950 para indicar a nacionalidade de filmes brasileiros Analisando publicações em jornais e revistas especialmente em São Paulo o crítico de cinema monta um quadro dos critérios utilizados para indicar aquilo que se valorizava ou não 99 Embora esta menção não seja no sertão as aves de arribação chegam ao litoral após fugirem da seca em busca de água Neste sentido elas nos servem como indicação desse sintoma cultural Na literatura que remete ao Nordeste de opulência de autores como José Lins do Rego Jorge Amado ou Gilberto Freyre há menção mesmo que rápida aos retirantes oriundos do sertão O Outro Nordeste como nomearia Djacir Menezes também deixou sua marca na literatura que descrevia o litoral 100 Todo historiador que tenta identificar símbolos essenciais de um artista ou de uma obra de arte o faz a partir de sua visão de mundo Os sintomas culturais seriam aquilo que Panofsky sugeriu como um filtro para tal empreitada ajudando a garantir a validade das afirmações do pesquisador Assim sendo o homem um ser que entende o mundo através de símbolos que instituem uma maneira de ver o mundo o historiador buscará em outros documentos da civilização na qual a obra de arte está inserida vestígios que permitam identificar tendências políticas poéticas e religiosas filosóficas e sociais da personalidade período ou do país em questão PIFANO 2010 p 9 Buscamos em outros documentos elementos que permitem entender símbolos em sinais visuais e sonoros do filme ou mesmo abstratos a nível de conteúdo e que servem para identificar símbolos culturais e apropriação de outros discursos pelo O País de São Saruê 91 como um cinema nacional ideal na crítica da década de 1950 Em certo momento após indicar diversos temas de forma e conteúdo indica que Benedito J Duarte valoriza ou não na fotografia e luz de alguns filmes que mostram o sertão Para ele uma luz mais crua e áspera que mostrasse o caráter inóspito e inconformado das caatingas seria mais adequada que uma luz estilizada como a de O Cangaceiro 1953 Os autores dessa iluminação seriam estrangeiros que embora técnicos competentes não se tinham assimilado à luz e à feição da terra que os chamara Valoriza por isso a fotografia de Canto do Mar 1952 e de O Saci 1951 que segundo ele têm a autenticidade de uma peça documentária representam realmente o homem e a natureza de determinadas regiões do Brasil DUARTE Apud BERNARDET 1983 p109 A discussão sobre a luz não é um mero capricho ou diletantismo mas um dado importante estético e uma preocupação recorrente no período pois como vimos a iluminação foi um dos pontos destacados em Aruanda e reutilizados em Vidas Secas Esse é um elemento constituinte dessa cultura cinematográfica brasileira que como indicado por Bernardet possuía uma relação com a imagem que se tinhaqueria construir do país e como se pensava que ela deveria ser realizada pelo cinema Cultura cinematográfica e cultura política se entrelaçam No âmbito acadêmico Fernão Pessoa Ramos no artigo Cinema Verdade no Brasil 2004 afirma que A fotografia de Rucker Vieira em Aruanda é um dos pontos altos do documentário com tonalidades toscas e estouradas captando a dureza do sertão RAMOS 2004 p 85 e afirma mais à frente que A imagem do povo e da natureza nordestina tão cara ao primeiro Cinema Novo surge finalmente estampada na tela comentando da intensa repercussão do filme em temática e estética no Brasil da época101 Essas soluções estéticas da iluminação presentes na fotografia reforçam uma identidade do espaço sertanejo através de temas e objetos que remetem ao seu clima seco É uma elaboração cinematográfica de um tema já desenvolvido noutras artes A década de 1960 na qual se iniciaram as filmagens de O País de São Saruê foi um momento no qual uma vertente engajada do cinema brasileiro foi marcada pela presença do campo e da questão agrária Por isso Celso Frederico sobre a produção desse cinema afirma que Os cineastas preocupados em refletir a realidade brasileira tinham como referência e modelos disponíveis o romance socialregional produzido a 101 Foi na década de 1960 a publicação do manifesto Eztétyka da Fome 1965 de Glauber Rocha que justamente articulava o imaginário do Cinema Novo a uma vontade política o próprio Vladimir Carvalho assume a influência de Deus e o Diabo na Terra do Sol 1964 filme extremamente político e metafórico na construção de O País de São Saruê Cultura cinematográfica e política se ligavam de maneira muito forte e característica nesse período e principalmente nos cineastas engajados 92 partir da Revolução de 1930 mais rico e expressivo do que o romance urbano tudo naturalmente filtrado pelo clima político do pré64 FREDERICO 1998 p 277278 Tendo em vista o contexto político brasileiro e as perspectivas revolucionárias da esquerda da época os cineastas se voltaram para os modelos disponíveis o romance regional fecundado pela influência de Euclides da Cunha102 Durval Muniz de Albuquerque Júnior mostra como tais imagens reproduzidas por essa literatura e outras áreas artísticas durante o século XX detém uma ligação com uma matriz euclidiana que divulgou certa imagem da região a partir de Os Sertões 1902103 Euclides da Cunha caracteriza a caatinga a caatinga o afoga o viajante que passa por ela abrevialhe o olhar agride o e estonteiao enlaçao na trama espinescente e não o atrai repulsao com as folhas urticantes com o espinho com os gravetos estalados em lanças e desdobraselhe na frente léguas e léguas imutável no aspecto desolado árvore sem folhas de galhos estorcidos e secos revoltos entrecruzados apontando rijamente no espaço ou estirandose flexuosos pelo solo lembrando um bracejar imenso de tortura da flora agonizante O sol é inimigo que é forçoso evitar iludir ou combater Ajustase sobre os sertões o cautério das secas esterilizamse os ares urentes empedrase o chão gretando recrestado ruge o nordeste nos ermos e como um cilício dilacerador a caatinga estende sobre a terra as ramagens de espinhos CUNHA 2011 p 50 A caatinga símbolo do sertão da seca é construída como um espaço de embate agonia espinhos flora agonizante galhos retorcidos de tortura O sol é um inimigo que não pode ser combatido é um oponente à própria vida A vegetação sertaneja é mostrada como hostil aos viventes a esse sentido se soma os símbolos dos galhos retorcidos do chão ressecado gretado e do sol As imagens do filme se assemelham a essa construção literária reelaborando tais temas na fotografia em sua iluminação e no uso da imagem em movimento Este segundo aspecto fica mais claro nos próximos planos do documentário ao som da narração da poesia de Jomar Souto na voz empostada e grave de Echio Reis Ela corta o silêncio de até então oferece um tom poético e dramático à sequência comovendo para a realidade exibida As imagens mostram a vegetação sertaneja na luta para sobreviver A poesia reforçar esse caráter e oferece mais dramaticidade às imagens comovendo o espectador a um 102 O romance regional se refere a uma gama de escritores que se voltaram para o Nordeste seja o litorâneo ou o semiárido Dentre tais autores podemos destacar Jorge Amado José Lins do Rego José Américo de Almeida e Graciliano Ramos Os três últimos são influências reconhecidas para Vladimir Carvalho encontrandose nos dois últimos obras que tratam diretamente da realidade sertaneja 103 Embora Durval Muniz de Albuquerque não se ocupou da categoria sertão mas se preocupava com a invenção do Nordeste utilizamos sua análise para entender a construção das imagens de um Nordeste seco que generaliza toda a região pela generalização desse recorte geográfico e por aquilo que se reproduziu enquanto característico do semiárido nordestino 93 espaço de solidão de tristeza Solidão era alimento e aves no céu sempre iam O vento às vezes levava nos descampados além lembranças tristes de graça que ninguém sabe de quem CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 1 559 6 09 O sertão é apresentado como um espaço de permanência imutabilidade onde sempre se encontrou a seca e que é hostil até aos bichos que nele residiam No princípio era o que sou Fui o de sempre o que fui O mesmo vento de sempre meu pó vermelho inda alui Imensa múmia de cacto rarefiz pele assim maleável nem ao tato dos bichos que moram em mim Maleável nem às chagas que às vezes o sol inventa cuspindo fogo nas raras represas dágua barrenta CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 1 648 705 Os planos articulados às impressionantes palavrasimagens que descrevem o sertão imensa múmia de cacto que cospe fogo e possui água barrenta reforçam a matriz euclidiana já descrita A terra hostil até aos bichos é castigada pelo sol que lhe causa chagas Reforçase o sentido já referido na construção da fotografia e iluminação dos planos que começam essa sequência O sertão é representado como um espaço físico imutável originalmente seco Os três primeiros versos remetem a um espaço de permanência O narrador do filme constrói o personagem principal o sertão de duas maneiras através das imagens como vimos e através de uma voz poética que fala por ele De início essa poesia assume a voz do próprio sertão que fala sobre si Sua primeira apresentação remete a um estado de imutabilidade pois seu estado de origem o princípio é o mesmo que é no tempo diegético Nos dois primeiros versos ocorre um jogo entre substantivos e tempos verbais que articulam temporalidades diferentes tornando iguais as situações em um tempo original mítico e a atualidade da realidade fílmica princípio tempo passado e sou tempo presente a mesma relação está para o verbo ser no passado fui e o substantivo abstrato sempre que remete à junção entre as temporalidades do ontem do hoje e quiçá do futuro A essa última união entre um passado mítico um presente concreto a realidade documental do filme e uma projeção de futuro entendemos a permanência do clima o qual não pode ser alterado A múmia é outro significante que remete a ausência de água termo facilmente relacionado ao modelo de preservação de cadáveres egípcios que ficavam completamente secos e assim preservados Uma múmia de cactos qualidade que atribui caráter regional local e que é hostil seja pelos espinhos dessa planta ou pela afirmação de que não é maleável nem aos bichos que moram em mim O sertão é apresentado como esse espaço 94 rígido de solo e clima inflexíveis hostis à vida Reforçando o aspecto do sol que o fustiga chegando a criar chagas mas que a ele resiste já que nem a ele é maleável apresenta também o espaço de um forte o nordeste semiárido assim como o sertanejo euclidiano é um forte A poesia ainda alude às represas de água barrenta expressão que une dois significantes que representam a vida no primeiro e a morte no segundo pois a água desejável ao homem é a água límpida símbolo de pureza e vida Ao mesmo tempo emerge outra ambiguidade o barro também pode ser o símbolo da origem da vida na mitologia cristã A água barrenta carregaria essa dupla significação bem como todo esse pedaço da poesia pois se o sertão é um espaço de difícil sobrevivência também é apresentado como um personagem que não morre apesar de tantos obstáculos e do próprio sol que lhe queima desde tempos imemoráveis A poesia assume então algumas funções que cabe ressaltar A primeira que indicamos é o reforço do discurso oferecido pelas imagens sobre o sertão através das palavras que constroem imagens de um espaço seco outra função é estabelecer uma temporalidade que até agora só poderíamos deduzir pela ordem da organização fílmica se estamos no começo do filme poderia estar no começo do enredo da história que narrada o que não é absolutamente regra ela indica que estamos em um tempo de origem um tempo mítico104 além disso oferece um sentido de tristeza e solidão comovem o espectador emotivamente para sua realidade Essas duas últimas funções não estão a serviço da imagem mas constroem junto com a imagem um significado105 Imediatamente à referência desse espaço de tristeza e sequidão106 de água barrenta107 104 Esta ideia de tempo mítico será melhor trabalhada mais à frente ao abordarmos os diferentes locutores e efeitos narrativos de O País de São Saruê 105 O som também participa como dito do processo de montagem Na produção de O País de São Saruê não houve uso de som direto pois a tecnologia era difícil de conseguir à época no Brasil Assim seus sons foram montados ou seja inseridos nas imagens Isso se torna evidente nas narrações em voz over na qual o dono da voz não aparece durante o filme trazendo informações e declamando a poesia de Jomar Morais Souto no entanto mesmo os sons ambientes que buscam oferecer a sensação de ouvir o som natural da região são também gravações Eles são organizados como em todo o processo de montagem de maneira a oferecer determinados sentidos e sensações sendo parte do discurso fílmico 106 Na verdade a poesia publicada e versão declamada no filme não são iguais Foram realizadas diversos recortes trocando estrofes de lugar e sendo necessário selecionar o que entraria no filme Assim a anterior referência Maleável nem às chagas que às vezes o sol inventa cuspindo fogo nas raras represas dágua barrenta não consta na versão completa da obra que tivemos acesso Isso nos leva a algumas divagações houve a inserção de versos ou Jomar Morais Souto publicou o poema também com modificações Essa questão no entanto é secundária para nós pois nos interessa mais o resultado final do texto fílmico Quando falamos no poeta nos referimos a esse híbrido entre a obra de Jomar Morais Souto e o resultado no filme A poesia na íntegra pode ser conferida no Anexo C p201 107 Tendo em vista que água barrenta não consta no poema original cabe indicar aqui a água substância na qual surgiu a vida que compõe maior parte do homem e que é relacionada a vida na literatura e nos mitos No contexto semiárido e seu constante medo das estiagens a água representa vida e sua ausência a morte O homem na mitologia cristã nasceu do barro Quando no filme a poesia fala nas raras represas dágua barrenta pode se referir no sentido mais denotativo às raras reservas de água ou em sentido mais figurativo como a poesia pressupõe ao surgimento do homem que veio da água e do barro ou ainda às espaçadas civilizações do sertão seja na contemporaneidade do filme seja à época indígena que a poesia se refere imediatamente As represas de água barrenta poderiam ser os nichos humanos naquele contexto hostil No 95 emergirão os outros personagens principais do sertão os homens seus habitantes O documentário mostra que mesmo em clima e vegetações tão hostis ou servindose dessa turva água barrenta ali surge vida trabalho e arte Em um filme de cerca de uma hora e vinte minutos 1h20 os sete primeiros minutos não exibem o homem em imagens O espaço é portanto um elemento bastante significativo do documentário As imagens que mostram aves de arribação o sol a vegetação representandoos como elementos de um espaço imutável e hostil à vida pautam o conflito entre vida e morte Emerge então a figura humana 44 Os antigos reis do lugar ocupação do território sertanejo Desse espaço sertanejo castigado pela sua condição climática algo emerge na diegese do documentário que quebra essa imutabilidade trágica108 No princípio era o silêncio quando a terra amanhecia e entre nós as aves livres o resto o sol ganharia Outrora pontas de lançamento marcavam cruzes no ar Em torno do fogo a dança dançavam os reis do lugar Dentro do mato o tapuia entre cantos de concriz celebrando as aleluias do reino que sempre quis109 CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 2 707 734 O homem aparece simbolizado pelos índios que se reuniam em torno do fogo a dançar os reis do lugar são os donos do reino encantado que o narrador da poesia a própria terra sempre quis A descrição pesada e triste do espaço é quebrada pela alegria e riqueza da chegada dos homens os índios em um reino antigo de felicidade e encanto Os homens são apresentados pela poesia sob duas características atribuídas ao indígena a alegria simbolizada pela dança em torno do fogo e pela celebração de aleluias e pelo caráter guerreiro simbolizado pela lança arma indígena aludida pela figura de linguagem pontas de lançamento Ao caráter sofrido e quieto da terra a poesia traz os homens com o contraste da luta e da festa Eles rompem a quietude Montase uma oposição entre o silêncio e a morte representada por tudo aquilo que o sol ganhava exceto as aves que podiam voar para longe e filme a segunda estrofe que se segue a esse verso se refere à presença humana no sertão como que antecipada pela referida figura de linguagem Essa interpretação é útil adiante 108 É importante ressaltar novamente a diferença entre diegese e discurso fílmico Diegese se refere ao enredo proposto pelo filme o mundo elaborado pelo filme Embora esse conceito seja usualmente utilizado para a ficção utilizamos aqui para pensar no mundo do documentário como a realidade segundo a qual o texto apresenta com os dados e visibilidades que ela fornece e da forma como apresenta Se na diegese o homem surge neste momento no discurso fílmico ele apareceu novamente pois já foi referido nas inscrições gráficas que iniciaram o filme contextualizando o filme 109 Os versos entre a expressão Outrora e reis do lugar não foram encontrados na poesia publicada 96 a dinamicidade que o homem traz ao sertão Esses homens os indígenas tapuias realizam o próprio desejo da terra construindo o reino que a terra sempre quis As aleluias assumem outra dupla função simbolizam um canto religioso e de alegria mas que colocado no plural pode se referir à diversidade divina dos indígenas politeístas portanto anteriores ao encontro com o branco cristão e a catequese Esse verso caracteriza o homem dessa terra o tapuia110 Esse verso que analisamos é declamado enquanto se ouve uma música popular animada embalada ao som de pífano contrastando com o anterior silêncio permeado pela voz grave e empostada de Echio Reis111 Também a nível sonoro o filme apresenta a terra de maneira triste e árida e os índios homens que habitaram a terra na origem de maneira alegre As imagens que se seguem são de planos médios permitindo englobar o homem e o meio As primeiras figuras humanas no filme são mostradas em relação com o meio natural a vegetação sertaneja Embora a poesia fale sobre os tapuias somos apresentados a homens contemporâneos à produção do filme sertanejos populares trabalhadores que podemos identificar pelas roupas e pelos objetos de trabalho em mãos foices facões etc Metaforicamente utilizase a dialética de imagens e sons para ligar o elemento dos tapuias aos sertanejos atuais não apenas ligando figuras históricas e sociais mas duas temporalidades a origem e o tempo contemporâneo da filmagem Neste sentido identificamos elementos essenciais para nossa análise a uma relação ambígua entre a terra e o homem representada em uma relação de domínio mas também de proteção e conflito b uma distinção entre a imutabilidade da terra e a dinâmica humana c a origem dos sertanejos relacionada ao caráter indígena d o conflito entre natureza e homem no qual o segundo domina a primeira através do trabalho e a ligação a nível diegético da narrativa de duas dimensões temporais para construir uma espécie de gênese Tais elementos podem ser entendidos à luz da referida matriz euclidiana Em Os Sertões há exatamente esta relação ambígua entre o homem e o meio Seu livro a fim de contar a história do conflito de Canudos começa com uma caracterização do meio o sertão para apresentar o homem relacionando raça e meio em acordo com a cultura histórica da época e em seguida descrever sob essa ótica os eventos de Canudos112 Utilizando de modelos 110 Na Paraíba convencionouse dividir os indígenas em duas categorias os tupis e os cariris ou tapuias Os tupis eram índios que tinham uma língua de matriz comum que dá o nome ao grupo Podem ser identificados dois grupos na Paraíba os potiguaras e tabajaras Estes dois estavam em constante conflito Os tabajaras foram os primeiros a ter contato à época da colonização criando laços com os portugueses Os cariris ou tapuias existiam em maior número e ocupavam a área do sertão 111 O pífano é uma flauta transversal aguda parecida com um flautim Ela tem timbre intenso e estridente É originário da Europa Medieval e tradicional em regiões do Nordeste fazendo parte de uma cultura popular nas quais é confeccionada por populares e tocada de ouvido sem partitura 112 Nísia Trindade Lima afirma que nos textos de Euclides da Cunha encontramos a tentativa de tipificação sistemática do homem brasileiro com ênfase na dimensão ecológica ou seja em sua relação com o ambiente 1999 p 31 97 narrativos do documentário clássico especialmente flahertyano O País de São Saruê faz construção semelhante apresentando o meio o homem e depois sua luta Porém o filme não aborda um confronto militar e declarado como Canudos mas o conflito cotidiano do sertanejo com o ambiente natural e com o mundo do trabalho em uma sociedade de classes Se tanto Vladimir Carvalho quanto Euclides da Cunha constroem a ideia de um sertanejo caracterizado em relação com o meio no escritor o clima e a mestiçagem serão os grandes motores históricos para esse entendimento do social O escritor se inseria em um momento de recente abolição dos escravos no Brasil o que gerou um forte impacto nas reflexões de intelectuais sobre a identidade nacional Nísia Trindade Lima indica que Raça e herança colonial são temas importantes e centrais do pensamento social brasileiro nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX LIMA 1999 p27113 No contexto das teorias raciais do final do século XIX e início do século XX Os Sertões explica questões psicológicas e comportamentais através de postulados étnicos com base na formação racial do Brasil negros indígenas e portugueses A mestiçagem negra não teve o mesmo peso que a indígena na formação do sertanejo por isso Euclides da Cunha foca muito mais no último Para o autor a mestiçagem foi na maioria dos casos prejudicial CUNHA 2011 p 113 sendo diferentes as misturas ocorridas no sertão e na cidade no primeiro houve uma homogeneização que levou a raça única do sertanejo114 Nessa comparação valoriza a mestiçagem sertaneja cujo isolamento teria sido benéfico para Cunha na luta entre as raças há uma eliminação lenta da raça inferior para ele negros e indígenas que se dilui no cruzamento Nesse caminho surgem mestiços mutilados inevitáveis do conflito que perdura que possuem qualidades negativas Pois neste caso a raça forte não destrói pelas armas esmagaa a raça fraca pela civilização Conclui sobre os sertanejos Ora os nossos rudes patrícios dos sertões do Norte forraramse a esta última O abandono em que jazeram teve função benéfica Libertouos da adaptação penosíssima a um estádio social superior e simultaneamente evitou que descambassem para as aberrações e vícios dos meios adiantados A fusão entre eles operouse em circunstâncias mais compatíveis com os elementos inferiores O fator étnico preeminente transmitindolhes as tendências civilizadoras não lhes impôs a civilização Este fato destaca fundamentalmente a mestiçagem dos sertões da do litoral 113 Nísia Trindade Lima indica também que a geração após a Proclamação da República 1889 adotava um estilo de abordagem que opunha dois brasis Esse tipo de elaboração pode ser encontrado em Euclides da Cunha e mesmo em autores posteriores como Alberto Torres Oliveira Vianna e Gilberto Freyre 1999 p28 Essa influência pode ser identificada na própria ideia presente no título Brasil terra de contrastes de Roger Bastide ou no Outro Nordeste de Djacir Menezes cujo título polariza com o Nordeste de Gilberto Freyre 114 Euclides da Cunha afirma Ora toda essa população perdida num recanto dos sertões lá permaneceu até agora reproduzindose livre de elementos estranhos como que insulada e realizando por isso mesmo a máxima intensidade de cruzamento uniforme capaz de justificar o aparecimento de um tipo mestiço bem definido completo CUNHA 2011 p 109 e ainda A uniformidade sob estes vários aspectos é impressionadora O sertanejo do norte é inegavelmente o tipo de uma subcategoria étnica já constituída CUNHA 2011 p 113 98 São formações distintas senão pelos elementos pelas condições do meio O contraste entre ambas ressalta ao paralelo mais simples O sertanejo tomando em larga escala do selvagem a intimidade com o meio físico que ao invés de deprimir enrija o seu organismo potente reflete na índole e nos costumes das outras raças formadoras apenas aqueles atributos mais ajustáveis à sua fase social incipiente CUNHA 2011 p 117 Com esta base Euclides da Cunha defendeu que o sertanejo possui características específicas em antítese não é um degenerado mas um retrógrado CUNHA 2011 p 116 é um forte mas aparentemente fatigado aparência de cansaço que ilude entre extremos impulsos e apatias longas CUNHA 2011 p 119 Cunha aproxima sertanejo do vaqueiro e podemos afirmar que também valem as características que atribui ao último forte esperto resignado e prático herdadas tanto pela formação racial quanto pelo contexto seco e triste no qual sobrevive Ressalta ainda sua servidão inconsciente que permite que mesmo com os patrões distantes sejam bastante leais Indica ainda a religiosidade e misticismo desse grupo Em O País de São Saruê a caracterização do sertanejo não é centrada na questão racial mas na relação do homem com o meio através do trabalho Não há menção sobre as teorias raciais nem tentativa estética tão forte de relacionálas Há no máximo a indicação da origem sertaneja no elemento indígena Também mostra o sertanejo como um forte porém não como fatigado nem degenerado ou retrógrado Valorizao pelo trabalho A figura do vaqueiro e a figura do sertanejo agricultor estão dispostas e são exibidas como duas possibilidades da vida sertaneja valorizando um aspecto não tão presente no romance euclidiano As características da servidão da religiosidade e da relação com a seca estão em dimensões próximas mas não iguais A relação ambígua entre homem e meio em Euclides é inicialmente semelhante à construída por Vladimir Carvalho Se o livro trata de longas descrições do solo da vegetação e do clima os planos e a narração poética apresentados neste capítulo apresentam tais conteúdos através de som e imagem Euclides da Cunha apresenta e interpreta esses personagens sociais segundo as teorias sociológicas que abraçara em sua época assim como Vladimir Carvalho Assim a matriz euclidiana é reelaborada autoralmente em linguagem cinematográfica e na apropriação de outras fontes intelectuais do cineasta Apresenta em imagem o que é descrito verbalmente no livro Interpreta esteticamente esse habitat e seus homens explicando a relação entre seus elementos formadores115 A terra em Os Sertões é exibida como hostil dura mas também como um elemento 115 Cabem dois comentários aqui A centralidade da relação homem e meio ou seja animal e habitat para Euclides da Cunha no livro mas também a influência de outras leituras de Vladimir Carvalho e da própria prática cinematográfica O cineasta teve como um reconhecido grande mestre nos estudos e no fazer documentário o professor de geografia e cineasta Linduarte Noronha Em suas aulas foram apresentadas autores como Franz Boas destacados na biografia do documentarista de O País de São Saruê 99 ao qual o sertanejo especialmente o vaqueiro está adaptado116 Daí o conflito apresentado com o sol e com uma terra seca hostil à vida mas que ao mesmo tempo deseja o homem como dito pela poesia durante a introdução desse espaço Se no filme o sertão fala em primeira pessoa através da poesia dizendo que o reino da alegria e de trabalho dos indígenas era o que sempre quis no romance de Euclides da Cunha o escritor mostra como o sertão é uma terra que castiga seus homens o heroísmo tem nos sertões para todo o sempre perdidas tragédias espantosas Não há revivêlas ou episodiálas Surgem de uma luta que ninguém descreve a insurreição da terra contra o homem 2011 p137 Se aqui apresenta um duro quadro de luta do homem com a terra em outro momento nas origens históricas da ocupação do sertão mostra a ambiguidade dessa relação Batidos pelo português pelo negro e pelo tupi coligados refluindo ante o número os indômitos Cariris encontraram proteção singular naquele colo duro da terra escalavrado pelas tormentas endurado pela ossamenta rígida das pedras ressequido pelas soalheiras esvurmando espinheirais e caatingas Ali se amorteciam caindo no vácuo das chapadas onde ademais nenhuns indícios se mostravam dos minérios apetecidos os arremessos das bandeiras A tapuiretama misteriosa ataviarase para o estoicismo do missionário As suas veredas multívias e longas retratavam a marcha lenta torturante e dolorosa dos apóstolos As bandeiras que a alcançavam decampavam logo seguindo rápidas fugindo buscando outras paragens CUNHA 2011 p111 Os indígenas tapuias ocupando o sertão e sobrevivendo às investidas das bandeiras encontraram na terra sertaneja um refúgio ao qual seus inimigos não conseguiam se adaptar Apesar disso essa terra é apresentada como um colo duro da terra escalavrado pelas tormentas endurado pela ossamenta rígida das pedras ressequido pelas soalheiras esvurmando espinheirais e caatingas ou seja um lugar de sequidão dureza espinhos rústico de se viver O substantivo colo materno e acolhedor em referência à ocupação do sertão é apresentado com elementos nada confortáveis e receptivos Esta ambiguidade como vimos está presente na elaboração estética do filme mostrase um espaço duro mas que abraça o sertanejo porém não indica a proteção desse espaço ao indígena como Cunha o acolhimento está presente na afeição do espaço ao indígena A oposição terra e homem é mais forte em Os Sertões que em O País de São Saruê Isto se explica pela diferença fundamental nas visões dos autores no escritor o homem é definido pela sua relação com o meio já no cineasta o homem se entende em relação com o trabalho e com outros homens na relação de classes Ao identificar a origem indígena do homem sertanejo exibido em seu cotidiano de 116 Euclides da Cunha ressalta que o sertanejo é o vaqueiro relegando pequeno espaço para um sertanejo essencialmente agricultor pela própria característica da terra na crença do romancista CUNHA 2011 p 125 100 trabalho durante o filme Vladimir Carvalho propõe que a exploração e sujeição dos indígenas no processo de colonização quando o nosso continente inicia uma relação com o mundo capitalista europeu é semelhante ou mesmo episódio anterior do sofrimento dos sertanejos à época do documentário exibidos pelas suas filmagens As oposições discursivas euclidianas e do cineasta se referem a uma dicotomia maior entre vida e morte Essa dicotomia é um conflito presente no fio narrativo dessas duas elaborações artísticas 45 Mundo em construção a terra se humaniza pelo trabalho Já indicamos a diferença entre a concepção do homem em Os Sertões e O País de São Saruê No entanto não foi realizada uma análise sobre a representação desse homem social no documentário Demonstraremos esta construção pela análise da segunda sequência quando aparece a primeira imagem humana no documentário Os planos mostram homens limpando a terra A paisagem é alterada CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 2 715 CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 2 736 Em outro plano vemos homens cortando a vegetação com uma foice Aos poucos modificam a paisagem limpando o plano que estava cheio de plantas 101 O País de São Saruê Sequência 2 745 841 Nos dois primeiros planos seis primeiros quadros há um sertanejo cortando cactos símbolo da agressividade do sertão Conforme ele corta o cactos o plano fica mais limpo podemos vêlo melhor a vegetação que dominava a frente do plano é substituída pela figura do homem que ocupa o seu lugar Constróise a oposição cacto natureza hostil espinho e homem na qual o homem realiza sua performance dominando a natureza O segundo plano mostra semelhante construção desta vez com dois planos de profundidade o céu limpo atrás com os vales verdes ao fundo no qual predomina a branquidão do céu e no primeiro plano de profundidade mais próximo da câmera a sombra de uma árvore e um sertanejo sombreado Constróise a oposição aí em nível de conteúdo homem x natureza Em nível de expressão temos a árvore que preenche a fotografia À medida que o homem realiza sua performance cortando a árvore dominando a natureza o plano se torna mais limpo pela ação do corte mudando a fotografia como podemos ver no último quadro Além disso temos uma oposição entre os dois elementos móveis desse plano um se mantém de pé o homem e o outro cai por chão sendo dominado a árvore Ambos os planos descritos constroem artisticamente essa oposição homem x natureza no qual aquele domina esta ou seja transforma o espaço representado pela vegetação A foice representa um instrumento de trabalho sendo um objeto que qualifica os personagens e que permite o domínio humano sobre a natureza O documentário não apresenta 102 qualquer homem mas sertanejos camponeses117 A poesia indica Nas mãos calosas dos reis outro mundo em construção Uma hora um dia um mês e as casas brotam do chão CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 2 845 853 Essa passagem indica os reis à época da ocupação aqueles que realizaram o povoamento com trabalho enfatizado pela expressão mãos calosas Também indica que construíam um outro mundo que entendemos de duas maneiras a construção de uma civilização não mais indígena mas sertaneja oue uma mudança no âmbito natural para o humano Pode ser interpretado ainda como a mudança do estágio de desenvolvimento das forças produtivas segundo o marxismo ou seja a passagem de um modo de produção mais arcaico no Brasil com os indígenas ao modo de produção feudal ou capitalista118 O substantivo e objeto casas são o símbolo máximo da ocupação de uma terra espinhosa que vira lar moradia O homem vence a terra e nela se fixa dandolhe feição nova O País de São Saruê Sequência 2 857 1001 Nesta construção temos homens trabalhando construindo casas Sem antagonistas eles realizam sua performance e erigem um casarão A câmera procura mostrar este trabalho e 117 A foice é um símbolo amplamente utilizado no imaginário comunista para indicar os camponeses compondo o famoso símbolo comunista que une a foice trabalho rural e o martelo operário 118 A posição dos comunistas sobre o status do modo de produção que estava o sertão era para alguns capitalismo para outros situação feudal Este tema é trabalhado no capítulo seguinte 103 brinca com as formas e relevos da construção com expressividade fotográfica sofisticada Temos assim dois objetos representados homens matériaprima madeira barro tijolos os quais pouco a pouco transformam em uma casa Na dimensão discursiva o aparentemente simples registro artístico da construção pode ser exibido em complexa rede de sentidos Panofsky propõe a identificação de estilos mostrando como objetos e eventos se expressam pictoricamente em momentos históricos Esse processo permite identificar os estilos ou seja a maneira pela qual em um contexto histórico se convencionou expressar representar temas e conceitos plasticamente Este método foi útil para trabalhar elementos dos planos ou mesmo construções mais amplas do documentário Porém estendemos os princípios teóricos de Panofsky e aplicamos na construção de imagens também literáriopoéticas pois seu método foi criado para as artes plásticas Mas utilizamos essa categoria também para pensar a articulação entre a expressão sonora e poética do documentário às leituras literárias de Vladimir Carvalho A fim de chegar a uma análise iconológica Panofsky propõe alguns passos Inicialmente fazse necessário uma descrição préiconográfica que consiste em identificar os eventos e objetos representados âmbito descritivo da forma No segundo passo a análise iconográfica fazse necessário ir além da experiência comum e levar em consideração o locus histórico da obra de arte compreendendo as convenções das imagens Por exemplo podemos identificar ao primeiro nível préiconográfico um leão de boca aberta Mas um leão de boca aberta pode significar agressividade força rei da selva as possibilidades são muitas Porém restringimos esse número enxergando objetos e eventos segundo a forma pela qual são expressos por outros artistas em um contexto histórico Chegase ao âmbito dos estilos Depois em análise iconográfica profunda podemos identificar como um mesmo artista expressa temas de maneiras específicas Panofsky propõe portanto identificar os estilos ou seja como em um contexto histórico temas específicos foram representados de determinadas maneiras sendo essencial a descrição de temas e objetos Por isso vamos indicar uma possibilidade de relação que se não é apresentado exaustivamente neste trabalho visto que este não é nosso objetivo imediato permite mostrar proximidades expressivas de O País de São Saruê com outras produções artísticas de comunistas e suas expressões comuns Os planos descritos acima exibiam a ocupação do sertão pelos sertanejos através dos objetos homem casa tijolo barro madeira Os planos valorizam esse tema seja pela sua duração relativamente generosa a própria escolha desse tema e pelo posicionamento da câmera quando utilizam diversas tomadas em contraplongée valorizando os homens e a casa 104 construída119 Esta é a identificação préiconográfica Esse tema foi bastante utilizado em outras produções artísticas No documentário Aruanda cujo cenário é de uma terra afastada da cidade daquilo que chamaríamos de civilização urbana ocidental encontra um pequeno grupo humano e mostra seu cotidiano ambiente e trabalho Se a construção de casas não está ostensivamente presente em Aruanda há uma sugestão de construção vemos planos da construção de cercas com madeira e barro realização seguida de outro plano com crianças encostadas a uma parede comendo farinha trabalho realizado Todavia não há o processo exibido como em O País de São Saruê no qual a construção vira um tema Apesar disso havia o trabalho humano O trabalho com barro e a transformação da natureza pelas mãos humanas literalmente foi tema recorrente no cinema documentário ao qual se ligava Vladimir Carvalho120 Mas relacionando a outros artistas engajados podemos relacionar essa tendência documentária a outra dimensão que Vladimir Carvalho se aproximava caracterizando melhor sua particularidade Para tanto utilizamos três exemplos significativos Bertolt Brecht121 no Teatro em Perguntas de um operário que lê 1935 Vinícius de Moraes122 na poesia O Operário em construção 1956 e Chico Buarque123 na música Construção 1971 Escolhemos estes homens por três razões essenciais A primeira se refere a seus ofícios são todos poetas o que os aproxima para nossa interpretação da estrutura formal tanto da poesia de Jomar Souto Moraes quanto do próprio O País de São Saruê que detém uma linguagem poética Todos eles são reconhecidos homens de esquerda que se dedicaram à militância 119 Chamamos de contraplongée a filmagem com posicionamento da câmera de baixo para cima Esse posicionamento gera efeitos que podem variar segundo a vontade do diretor e o contexto fílmico ao final da montagem Geralmente se usa para valorizar personagens que se quer engradecer pois em tal posicionamento parecem maiores do que realmente são Esta é uma convenção clássica do cinema 120 A nível imediatamente cinematográfico cabe comentar que não vemos casas sendo construídas em O Homem de Aran Porém há este tema em Nanook o Esquimó 1922 do mesmo diretor considerado por muitos a obra que inaugura o documentário Porém sua presença é diferente mostrando a solução provisória de Nanook em construir um iglu para passar uma noite enquanto a exibição de um tema exótico 121 Bertolt Brecht 18981956 foi um grande escritor de poesias e peças de teatro bem como um teórico sobre esta última arte Suas peças foram um marco no teatro do mundo inteiro e possuíam forte teor revolucionário Brecht se exilou quando Hitler chegou ao poder na Alemanha em 1933 Viajou por diversos países até chegar aos Estados Unidos lá enfrentou problemas devido à sua opção ideológica durante a Guerra Fria Sabemos que textos seus já eram publicados no Brasil desde a década de 1960 a exemplo de Sobre Teatro publicado na revista Estudos Sociais no número 8 em julho de 1960 RIDENTI 2000 p82 122 Vinícius de Moraes 19131980 foi um jornalista diplomata poeta e compositor brasileiro Participou do movimento da Bossa Nova cujo valor artístico é internacionalmente reconhecido Escreveu poesias de diversos matizes muitas com teor revolucionário Em 1969 foi afastado do cargo diplomático devido ao Ato Institucional Número 5 pela ditadura militar brasileira 123 Chico Buarque de Hollanda 1944 é um poeta e compositor brasileiro de grande importância para a cultura de nosso país Sua produção foi importante estética e politicamente para a música brasileira participando do movimento da Bossa Nova Era próximo da esquerda na década de 1960 fazendo parte de artistas que se encaixaram no que Ridenti denominou de romantismo revolucionário Durante a ditadura militar se auto exilou na Itália devido ao clima político do país mas voltou em 1970 Através de sua música elaborava críticas ao regime Muitas conseguiram passar pela censura se tornando bastante conhecidas Foi parceiro de Vinícius de Moraes 105 sofrendo contratempos políticos Por fim são todos historicamente ligados a Vladimir Carvalho que já leu Brecht e podemos deduzir teve acesso a Vinícius de Moraes e Chico Buarque dada sua centralidade na cultura brasileira na época e ainda hoje Em Brecht a referida poesia questiona quem trabalhou nas grandes construções comemoradas pela humanidade As Sete Portas de Tebas a Babilônia ou a Muralha da China por exemplo124 A poesia critica que a história apresente estes eventos como produtos prontos sem identificar seus atores ordinários os operários ou atribuindo estes feitos aos grandes líderes A poesia opõe o trabalho do operário ao silêncio historiográfico Quem construiu Tebas a das sete portas Nos livros vem o nome dos reis Os reis arrastaram os blocos de pedra Babilônia muitas vezes destruída Quem a reconstruiu tantas vezes Em que casas Da Lima auriradiosa moravam seus obreiros BRECHT trad CAMPOS 1995 p147 A poesia se inicia opondo tal silêncio à figura de um operário específico um construtor de casas cidades O primeiro verbo exibido na tradução é o verbo construir Os objetos além dos sujeitos históricos são portas pedras casas obreiros Seus eventos são construir transportar reconstruir morar Estes objetos foram utilizados para elaborar essa imagem do trabalho que contrasta com a riqueza dos grandes e o esquecimento relegado aos operários Todos os sete elementos citados são relacionados ao trabalho no sentido marxista ou seja transformação da matériaprima que segundo a cultura marxista gera valor e riqueza no entanto como vemos na poesia são outros aqueles que se enriquecem materialmente e usufruem do prestígio125 A crítica poética de Brecht utilizou para isso estes objetos e temas Vinícius de Moraes de modo semelhante na poesia O Operário em construção 1956 elabora crítica próxima e usa objetos e temas similares aos de Brecht Há em ambas a centralidade da expressão construção como vemos no título Opõe o mundo da alienação do 124 O poema Perguntas ao Operário que Lê foi publicado em 1935 por Bertold Brecht Esse poema chegou ao Brasil em 1966 publicado na revista Tempo Brasileiro em uma tradução de Haroldo de Campos e duas posteriores não acessíveis à época do filme traduzidas por Edmundo Moniz 1982 e Paulo César Souza 1986 Por isso utilizamos a tradução de Haroldo Campos republicada pela revista Fragmentos em 1995 Dentre as três traduções o texto de Haroldo Campos ficou com efeito mais literário por um rebuscamento das palavras utilizadas mas preservou o efeito poético dialético e de provocar questões de Brecht COSTA 2003 p71 Mais informações sobre as comparações conferir o texto Três Bechts 2003 de Walter Carlos Costa publicado também na revista Fragmentos 125 Podemos remeter ao sentido do prestígio histórico ao qual se insurge Walter Benjamin ao propor uma história a contrapelo Ao atribuir tais realizações aos donos dos meios de produção ou aos reis haveria uma construção ideológica na acepção clássica do termo e constituiria uma alienação ao separar produto e produção Todos os três autores retomam essa discussão a fim de restituir através da arte a consciência de classe aos moldes das ideias comunistas do século XX segundo as quais esta seria a função do artista e do intelectual comunista Embora fosse do desejo de Vladimir Carvalho que seus filmes chegassem ao povo o cinema era uma ferramenta menos democrática no Brasil das décadas de 1960 e 1970 O acesso era particularmente mais difícil ainda para tais filmes feitos por intelectuais de esquerda que mal chegavam aos poucos cinemas Seus trabalhos visavam um público de estudantes e outros intelectuais no setor urbano pois havia poucos ou nenhum cinema no sertão nordestino e paraibano à época inviabilizando outra iniciativa 106 trabalho e o da apropriação do valor gerado pelo operário por seu patrão Valoriza o esforço operário afirmando este indivíduopersonagem social Confiramos essa proximidade Era ele que erguia casas Onde antes só havia chão Com um pássaro sem asas Ele subia com as casas Que lhe brotavam da mão De fato como podia Um operário em construção compreender por que um tijolo Valia mais do que um pão Naquela casa vazia Que ele mesmo levantara Um mundo novo nascia De que sequer suspeitava O operário emocionado Olhou sua própria mão Sua rude mão de operário De operário em construção126 O título da poesia traz o tema que guia e possibilita a narrativa a construção O poema se refere à construção das casas pelo operário e de si próprio no reconhecimento de seu trabalho127 Os objetos que podemos identificar nos fragmentos são casas chão pássaro mão operário tijolo pão mundo novo Alguns objetos estão na poesia de Brecht O pássaro representa o operário que desconhecendo seu próprio trabalho e a riqueza que gera deixa sua maisvalia ser obtida pelo patrão e não alcança seu voo permanece preso A imagem reforça como em Brecht a força e realização do trabalho que ergue edifícios O reconhecimento buscado em Brecht é histórico e em Vinicius de Moraes do próprio indivíduo Em O País de São Saruê objetos semelhantes ao dos referidos poetas podem ser identificados nos planos que já começamos a analisar ou na poesia que os acompanha Assim como são apresentados objetos que são partes da casa ou que podem construir uma tijolos os outros elementos estão todos presentes na composição desses planos As mãos dos sertanejos se movem a todo instante transportando objetos erigindo muros edificando a casa A poesia do filme menciona a construção da casa que brota do chão articulando a ideia de sua origem nas mãos calosas dos reis que nos lembra as mão de operários em construção de Vinícius de 126 Poesia disponível em httpwwwviniciusdemoraescombrptbrpoesiapoesiasavulsasooperarioem construcao Acesso em 17Jul2014 127 Consciência de si e para si é uma ideia central do marxismo O operário enxergaria a riqueza que produz com seu trabalho e como ela é apropriada por outro de diferente classe Este é um dos passos para a organização de classe almejada pelos comunistas Este passo subjetivo no entanto é alvo de grandes debates de vertentes mais clássicas como Louis Althusser ou mais culturais como o marxismo ocidental de Edward Palmer Thompson Há leituras que podem valorizar o papel estrutural função do posicionamento dos indivíduos no modo de produção ou sua dimensão subjetiva como os indivíduos através de experiências constituem uma identidade de classe na primeira tendência se aproximaria os marxistas clássicos e da segunda uma vertente cultural a grosso modo Não adentrando esse complexo debate basta compreender que seja qual for das acepções adotadas a consciência de classe é uma ideia fundamental para concepção de ação e independência política dos comunistas que buscaram orientar as práticas artísticas e culturais com maior ou menor controle dependendo do contexto para fomentar esse fenômeno Por fim o próprio artista era visto como um ser que podia ser alienado devendo procurar uma consciência artística que Leandro Konder em 1965 definiu como consciência de um indivíduo o artista que vive em uma determinada sociedade sujeito a injunções de toda espécie vinculado a uma determinada classe social sujeito à pressão de condições econômicas e obrigado a trabalhar dentro de uma determinada linha de condições culturais De modo que embora possa superar os limites de uma consciência filosófica e política alienada ela muito frequentemente é atingida pelas consequências das deformações ideológicas do artista KONDER 2009 p175 Assim a discussão sobre consciência ou não resvalava na própria identidade que era cobrada e buscada pelos comunistas e artistas 107 Moraes128 Diegeticamente a poesia do filme mostra apenas a ocupação do território até esse momento sem surgir antagonista humano para o sertanejo por isso o tema da luta de classes ainda não está presente Daí a permanência da qualificação dos sertanejos enquanto reis129 Os objetos da construção auxiliam na elaboração estética do tema trabalho segundo as convenções de diversas produções vinculadas ao ideário marxista presentes no Brasil da época Os camponeses embora não sejam operários representam outra classe que produz sua riqueza e que como exibirá depois o documentário tem seu trabalho apropriado por outro de classe Eles estão presentes no objeto humano que compõe os planos A performance desses homens na construção da casa traz um objeto que tanto representa a riqueza gerada pelo trabalho humano quanto um elemento civilizatório a transformação de um terreno selvagem em lar em moradia Por isso o último quadro que selecionamos mostra que após a casa cortase para um plano cujo enquadramento mostra um vilarejo Ou seja a casa individual representa o povoamento a ocupação sertaneja coletiva A casa filmada em si interessa menos que a ideia maior e abstrata que sua imagem suscita Assim afirmamos que Vladimir Carvalho se apropriou no documentário de temas e objetos presentes no estilo poético de outros artistas comunistas do período130 Fálo em imagens cinematográficas em elaboração própria O documentário tanto representa o trabalho autoral do cineasta quanto seu diálogo e inserção nos estilos artísticos da época Chico Buarque lançou no mesmo ano de O País de São Saruê o álbum Construção 1971 com uma música homônima Este é outro exemplo de obra que versa o tema da exploração do operário e usa dos objetos já referidos Na segunda estrofe do poema diz Subiu a construção como se fosse máquina Ergueu no patamar quatro 128 Interessante que aqui o termo rei se refere de maneira bem diversa o rei da poesia de Brecht representa os chefes de estado e a classe dominante na poesia de Jomar Morais Souto o termo rei se refere a um tempo mítico no qual os verdadeiros donos do lugar a dominavam os índios os populares Se a poesia de Brecht se opõe a autoridade através da imagem da realeza dominação a poesia do sertanejo usa essa imagem para remeter a uma legitimidade de posse e domínio semelhante a muitas histórias de tradição oral Não à toa o cordel e a cultura sertaneja estão ligados a uma forte herança medievoeuropéia identificada por diversos autores que se serve de mitos sobre reis rainhas etc Daí o contraste da construção poética dos dois textos que apesar de diversas propõem semelhante problematização a legitimidade de posse ou de construção de um grupo de homens contra outro Cabe ressaltar ainda que é o discurso fílmico de Vladimir Carvalho que trará a significação de luta classe mais fortemente algo que a poesia de Jomar Morais Souto não remeteria tão ostensivamente isolada Nesse sentido o filme é uma articulação de diversas mensagens e outros discursos que colados lado a lado criam uma rede nova de significações na qual podemos identificar o trabalho autoral e discursivo do cineasta 129 Vale ressaltar que na poesia e no enredo apresentado em imagens e sons até então a luta de classes não aparece diegeticamente Porém vimos que na introdução do filme quando foram apresentados seus temas gerais está indicada a relação de classe e o antagonismo homem versus homem Por isso afirmamos que se diegeticamente não se mostra a luta de classes a nível de discurso ela já estava presente 130 Vladimir Carvalho pode ter se apropriado de temas e elaborações das poesias e literatura comunista No entanto não nos é possível indicar a leitura de fato das obras indicadas Achamos mesmo assim certo o acesso do documentarista a poesia de Vinícius de Moraes e sabemos da disponibilidade da poesia brechtiana 108 paredes sólidas Tijolo por tijolo num desenho mágico Seus olhos embotados de cimento e lágrima Também para identificar o protagonista de sua narrativa Chico Buarque o distingue pelo seu trabalho O poema começa falando de sua saída de casa Até então este é um homem qualquer até que o verso o caracteriza enquanto operário O título reforça tal tema construção Seu trabalho está presente no erguer paredes e os tijolos são objetos que já identificamos antes Se os trabalhos de Brecht e de Vinícius de Moraes eram anteriores ao filme sendo discursos disponíveis a música de Chico Buarque demonstra que esses objetos e temas ainda eram correntes no início da década de 1970 Cabe indicar que não se quer aqui homogeneizar tais produções pelos seus temas mas indicar sintomas culturais como proposto por Panofsky Cada um dos três poetas possuem poesias com formas e conteúdos distintos autênticos e autorais Este esforço teórico demonstra a pertinência do trabalho na representação do sertanejo no documentário nossa tese A teoria marxista compreende o homem e sua especificidade através dessa em sua versão clássica afirmase que é a organização do trabalho que define os estágios e características das civilizações e mesmo sua cultura O documentário traz também um olhar contemplativo desse esforço sertanejo transformandoo em arte Os planos da construção são realizados com cuidado alcançando beleza abstrata Aos poucos uma casa se ergue e depois os planos mostram uma pequena fazenda habitada agora com criação de caprinos equinos em utilização crianças correndo uma civilização A câmera contempla esse povoamento A construção dessa sequência se aproxima da descrição da ocupação do território no Nordeste e Paraíba do geógrafo Manuel Correia de Andrade O processo foi realizado através de algumas medidas básicas para a formação das aldeias Geralmente os agricultores abriam clareiras na mata onde plantavam roçados e faziam uma choça que servia de abrigo nos dias de mais intenso trabalho e de local para guardar utensílios ANDRADE 2011 p155 Embora a menção do texto se refira à ocupação do brejo ela se encaixa nas imagens descritas A limpeza do terreno era um passo essencial para esse domínio do ambiente pelo homem Vimos como os planos apresentam um território com vegetação que se torna um espaço limpo aberto pela ação humana O espaço natural é humanizado civilizado As filmagens de sertanejos contemporâneos ao cineasta são relacionadas pela poesia aos indígenas estabelecendo uma relação de origem entre eles O sertanejo é identificado com um passado de ocupação deste território e com o indígena espoliado Ao mesmo tempo tematizase a dominação da natureza pelo homem através do trabalho algo menos presente na narrativa euclidiana que foi uma forte influência para Vladimir Carvalho Essa valorização do 109 trabalho enquanto objeto artístico foi uma característica presente a partir da influência do marxismo na arte brasileira o que identificamos enquanto um sintoma cultural Analisada a segunda sequência do documentário sobre a ocupação do território vamos para a terceira que traz outro aspecto da história sertaneja e sua ocupação a economia pecuária 46 A gente criada no árduo relacionamento com os bichos vaqueiro luta e arte O sertanejo se fixou na terra do sertão através da pecuária Entendemos a escolha de Vladimir Carvalho apresentar essa atividade no início do filme pelo caráter de base para a economia dessa região desde a colônia na gênese da civilização do couro A visão de sertão pecuário de Vladimir Carvalho possui duas influências referidas Capistrano de Abreu que fala sobre a civilização do couro e Euclides da Cunha e sua ideia do sertanejo como um forte O geógrafo Manuel Correia de Andrade indica que foram centros açucareiros que organizaram a arremetida para os sertões à cata de terra onde se fizesse a criação de gado indispensável ao fornecimento de animais de trabalho bois e cavalos aos engenhos e ao abastecimento dos centros urbanos em desenvolvimento 2011 p 183 O economista Celso Furtado compartilha dessa visão de que tal pecuária bovina extensiva foi uma projeção do açúcar Ressalta que a carne era o único artigo de consumo que tinha importância para ser suprimido internamente pois era parte da dieta dos escravos 1976 p 26 Além de ser uma fonte de energia aos engenhos que necessitavam de animais de tiro Havia portanto um contexto propício para a expansão dessa atividade Celso Furtado ressalta que era inviável criar gado na faixa litorânea dentro das próprias unidades produtoras de açúcar chegando o governo português a proibilas Havia um caráter itinerante e extensivo nessa cultura que se expandia quando ainda havia terra para ocupar131Assim a pecuária era uma atividade 131 Celso Furtado afirma que era inviável criar gado na faixa litorânea isto é dentro das próprias unidades produtoras de açúcar Os conflitos provocados pela penetração de animais em plantações devem ter sido grandes pois o próprio governo português as proibiu E foi a separação das duas atividades econômicas a açucareira e a criatória que deu lugar ao surgimento de uma economia dependente na própria região nordestina Na atividade de criação de gado a ocupação da terra era extensiva e até certo ponto itinerante O regime de águas e distâncias dos mercados exigiam periódicos deslocamentos da população animal sendo insignificante a fração das terras ocupadas de forma permanente As inversões fora do estoque de gado eram mínimas pois a densidade econômica do sistema em seu conjunto era baixíssima Por outro lado a forma mesma como se realiza a acumulação do capital dentro da economia criatória induzia a uma permanente expansão sempre que houvesse terras por ocupar independentemente das condições da procura A essas características se deve que a economia criatória se haja transformado num fator fundamental de penetração e ocupação do interior brasileiro 1976 p 27 Celso Furtado influenciou não apenas Vladimir Carvalho mas o próprio pensamento pecebista Esse caráter da importância do gado na ocupação é ressaltado por Caio Prado Júnior que também aponta a importância da mineração para esse processo que não foi um fato preponderante na Paraíba mas que teve sua importância na ocupação do grande sertão 2004 p 55 O sociólogo Francisco de Oliveira reconhece a importância da ocupação do sertão pela criação de gado mas indica que ela tinha pouca importância e 110 extensiva que necessitava de grandes espaços de terra participando do processo de ocupação do sertão132 Celso Furtado foi uma das leituras de Vladimir Carvalho à época do filme A maior influência sobre a região para o cineasta no entanto foi Capistrano de Abreu Ele afirma que às margens do Rio São Francisco se desenvolveu parte importante da criação bovina e a ocupação do sertão em sua relação com a expansão do gado necessária devido ao ambiente com menor disponibilidade de recursos naturais extraídos sem cultura O gado vacum dispensava a proximidade da praia pois como as vítimas dos bandeirantes a si próprio transportava das maiores distâncias e ainda com mais comodidade davase bem nas regiões impróprias ao cultivo da cana quer pela ingratidão do solo quer pela pobreza das matas sem as quais as fornalhas não podiam laborar pedia pessoal diminuto sem traquejamento especial consideração de alta valia num país de população rala multiplicandose sem interstício fornecia alimentação constante superior aos mariscos aos peixes e outros bichos de terra e água usados na marinha ABREU 2000 p151 Capistrano de Abreu reforça a distinção entre a cultura do açúcar e do gado indicando a diferença entre os recursos naturais litorâneos e no interior bem como o tipo de trabalho nessas atividades A pecuária necessitava de menor número de trabalhadores e fornecia uma alimentação constante e de boa qualidade O autor indica que apesar da fartura de carne e leite eram bastante difíceis as condições dos primeiros ocupadores do sertão que não eram os donos das sesmarias mas escravos ou prepostos faltavalhes outros alimentos para complementar sua alimentação 2000 p 153 Capistrano de Abreu descreve como Euclides da Cunha o cotidiano de trabalho do vaqueiro e suas atividades na fazenda cuidar do gado amansálo ferrálo dar fim a animais que ameaçassem sua criação como onças cobras e morcegos abrir cacimbas e bebedouros etc Aproximando cultura e produção afirma comenta sobre a época do couro De couro era a porta das cabanas o rude leito aplicado ao chão duro e mais tarde a cama para os partos de couro todas as cordas a borracha para carregar água o mocó ou alforje para levar comida a maca para guardar roupa a mochila para milhar cavalo a peia para prendêlo em viagem as bainhas de faca as broacas e surrões a roupa de entrar no mato os banguês para curtume ou para apurar o sal para os açudes o material de aterro era levado em couros puxados por juntas de bois que calcavam a terra com seu peso em couro pisavase tabaco para o nariz ABREU 2000 p 153 Essa relação entre a pecuária e a cultura material dos sertanejos é articulável com a expressão econômica afirmando que o Nordeste agrário nãoaçucareiro se definiu pela economia do algodão 2008 p 165167 132 O historiador paraibano José Octávio de Arruda Mello reforça tais afirmações De fato os bandeirantes percorrendo o curso dos rios se deslocassem com seu gado seguiase inevitavelmente a concentração destes currais campos cercados dotados de rústicas habitações de pauapique valoriza ainda a presença da economia pecuária como fator cultural na alimentação na vestimenta e no folclore 2013 p 7980 111 proposta do marxismo clássico de que o modo de produção define a sociedade e sua cultura A pecuária trabalho oferecia o caráter desse agrupamento humano O boi está presente também no próprio folclore e literatura regionais Essa interpretação do sertão está no documentário na qual identificamos a centralidade da influência marxista e de Capistrano de Abreu Na terceira sequência o documentário se ocupa de mostrar o homem sertanejo na civilização do couro e a cultura em seu redor Nela o filme elege como objeto central a atividade do vaqueiro Essa sequência se distingue das sequências da agricultura e da mineração nas quais mesmo tendo o trabalho como tema o enfoque é menos contemplativo que histórico ou sociológico133 É um capítulo rico em aspectos da cultura popular A presença desse tema no início do filme representa ainda uma introdução ao sertanejo Apresentada sua origem mostra suas características mais peculiares e presença contemporânea Ao final da sequência porém o documentário mostra seu declínio mantendo o jogo passadopresente através das imagens contemporâneas moldadas pela narrativa e sua montagem Sua cena inicial mostra dois vaqueiros montados em sua armadura de couro atravessando o pátio da fazenda de Acauã O áudio nos permite ouvir um cantador de toada Tenho a sela por assento meu gibão é minha tanga Sou José de Arimatéia No mundo sou conhecido Custo muito a chamar gado Mas quando chamo é bonito Toda bezerrama berra ouvindo o som do meu grito Boi lá CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 3 1155 1224 Os planos permanecem calmos mostrando os vaqueiros atravessando um rio Depois as imagens aceleram a ação dentro dos planos mostrandoos em meio ao mato evitando a galharia sertaneja abaixados Essa última cena se assemelha a uma encenação de Vidas Secas O ritmo das imagens se acelera ainda mais aumentando o contraste com o ritmo de até então A cantoria de José de Arimatéia descreve inicialmente suas vestes características a sela e seu gibão em seguida apresenta também seu ofício de vaqueiro afirmando que quando chama gado é bonito e eficiente pois toda bezerrama berra ouvindo o som de seu grito ou seja reconhecem sua autoridade de vaqueiro Em Os Sertões estarão presentes estes dois 133 A extração mineral também está presente no filme porém não se tornou objeto de nossa dissertação pois ela aparece menos por uma grande importância econômica que para mostrar devaneios dos sertanejos e ser uma metáfora do país rico de população pobre Sua construção é mais fabular que as demais Este é um tema a ser explorado futuramente e que pode ser identificado na forma como Vladimir Carvalho usou as entrevistas os recursos musicais a poesia e a construção dos planos nessas sequências Como um exemplo durante a entrevista com um dos pioneiros do ouro sem sincronia de som escutamos Pedro Alma falar sobre seu passado de exploração do ouro enquanto as imagens mostram o personagem falando com uma criança a seu lado que ri provocada pelos cineastas Ora sem sincronia entre imagem e som qualquer imagem poderia ser utilizada sem a necessidade da presença desestabilizadora das risadas da menina que retiram a seriedade do relato de Pedro Alma Esta foi uma escolha evidente da montagem e quiçá da própria filmagem A trilha sonora também é bastante fabulosa não reforçando a credibilidade da história 112 temas as vestes e o trabalho de vaqueiro Ambas são partes indicatórias dos costumes desse tipo sertanejo Cunha desescreve O seu aspecto recorda vagamente à primeira vista o de guerreiro antigo exausto da refrega As vestes são uma armadura Envolto no gibão de couro curtido de bode ou de vaqueta apertado no colete também de couro calçando as perneiras de couro curtido ainda muito justas cosidas às pernas e subindo até as virilhas articuladas em joelheiras de sola e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guardapés de pele de veado é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo Esta armadura porém de um vermelho pardo como se fosse de bronze flexível não tem cintilações não rebrilha ferida pelo sol É fosca e poenta Envolve ao combatente de uma batalha sem vitórias A sela da montaria feita por ele mesmo imita o lombilho riograndense mas é mais curta e cavada sem os apetrechos luxuosos daquele São acessórios uma manta de pele de bode um couro resistente cobrindo as ancas do animal peitorais que lhe resguardam o peito e as joelheiras apresilhadas às juntas Este equipamento do homem e do cavalo talhase à feição do meio Vestidos doutro modo não romperiam incólumes as caatingas e os pedregais cortantes CUNHA 2011 p122123 Euclides da Cunha descreve o vaqueiro como um guerreiro antigo em referência a um campeador medieval no entanto fatigado cansado de guerra descreve os materiais do gibão e chama essa roupa de couro de armadura valorizandoa mas atribuindo duas características negativas um anacronismo campeador medieval desgarrado em nosso tempo e ao mesmo tempo descreve como sem brilho tal vestimenta que a relaciona a uma batalha sem vitórias do sertanejo ou seja uma série de lutas nas quais não alcança glória mas que o desgasta Porém afirma que tal equipamento se ajusta ao meio sendo eficiente para o trabalho ou seja permitindolhe adentrar a caatinga e outros ambientes inóspitos Surge uma figura que é forte mas cansada um guerreiro porém de tipo anacrônico detentor de uma armadura eficiente mas sem brilhos maiores Construção antitética As construções de personagens de muitas obras de artistas ligados ao comunismo são elaboradas baseadas no trabalho operário como indicamos anteriormente Porém em O País de São Saruê a figura central não é um operário mas o sertanejo especialmente o agricultor o vaqueiro e o explorador do ouro134 Por isso a figura delineada nesta sequência não foi a do operário ou camponês mas o vaqueiro apresentado mediante a filmagem de seu trabalho Planos mostram o gado ao redor de um rio tangidos por vaqueiros Escutamos a continuação da cantoria a qual se soma o tilintar de sinos de gado valorizando a presença do 134 Por isso em entrevista nos extras do DVD de O País de São Saruê Vladimir Carvalho reconhece que seu documentário está dividido nos mundos animal vegetal e mineral referentes aos trabalhos da pecuária agricultura e mineração no sertão 113 boi nas imagens e no áudio A cena que se segue é a mais acelerada dentro do ambiente relativamente monótono das imagens do documentário135 Mostrase vaqueiros em gibão de couro amansando um touro brabo Usa maior número de planos com menores durações cada um gerando maior dinamicidade às cenas que são mais teatralizadas recorrendo à encenação136 O áudio não descreve o trabalho mas deixa que o espectador o contemple e o observe A cantoria traz outros temas deixando que a própria imagem em movimento descreva autonomamente o trabalho do vaqueiro Se a referida descrição de Euclides da Cunha inicia sua apresentação do vaqueiro como um trabalho ingrato e sem glórias O País de São Saruê exibe homens que alcançam grande eficiência e êxito no seu trabalho Enquanto isso a cantoria acaba e uma voz off traz informações sobre a pecuária no sertão Também se ouve uma música alegre e popular embalada por uma rabeca As imagens mostram um trabalho de esforço e sucesso e a música oferece um tom alegre que reforça a sensação de um sentimento positivo ao trabalho do vaqueiro Observemos planos que compõe a cena seguinte CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 3 1645 1704 À cena que apresenta o trabalho do vaqueiro sucede outra mostrando tradições populares de folgança o cavalomarinho Demonstrase sua popularidade pelo número de 135 Há várias maneiras de identificar o ritmo de um filme Chamamos de monótono aqui o ritmo da montagem baseado na quantidade de sucessão de planos em relação a uma mesma cena Embora o documentário tenha outros momentos mais acelerados em relação ao uso de maior número de planos eles em geral são a introdução e conclusão do filme que fazem mais parte da parte discursiva que diegética do filme Esse tema será objeto de maiores considerações no capítulo 4 136 Neste aspecto da representação este é um dos momentos do documentário em que este critério pode aproximálo da ficção Ao final do trabalho discutiremos essa localização do documentário entre sua dimensão documental e ficcionalizante 114 homens mulheres e especialmente crianças que assistem ao rústico espetáculo O sertanejo assiste a si mesmo pela cultura popular O primeiro plano mostra um grupo de bumbameuboi envolto pela multidão local A narração descreve Nascida e criadas no árduo relacionamento com os bichos as gentes do povo encontram no boi um motivo lúdico para a folgança E o trabalho penoso se transforma muitas vezes e vira lazer e divertimento numa inversão curiosa CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 3 1610 1625 Identificamos alguns elementos que nos interessam Na descrição dos costumes indicase a relação entre gentes do povo os sertanejos que nascem e crescem criadas em relação com o meio com os bichos daquela região Sendo o boi central para essa civilização do couro a cultura popular é também originada no próprio elemento do trabalho A expressão inversão curiosa reforça a oposição entre o trabalho penoso e o lazer e divertimento Essa construção não está apenas no conteúdo mas na forma Nessas cenas trabalho e folgança se relacionam através do contraponto entre imagens e áudio seja nos planos de trabalho penoso e música alegre ou quando planos alegres são acompanhados por descrição verbal dura pelos temas da cantoria ou pelas informações trazidas pela voz de deus Essa dimensão aproxima Vladimir Carvalho de Euclides da Cunha no sentido de construir a figura do vaqueiro de maneira ambígua porém sua dialética formação de tese e antítese é diferente da euclidiana na sua base teórica e no conteúdo selecionado Como vimos a antítese central para o escritor está na própria formação da raça enquanto para Vladimir Carvalho está na relação com o trabalho Se Euclides da Cunha fala em Hegel dialogando com sua base dialética muito embora o criticando por ter negligenciado os desertos e sertões como um lócus humano o documentarista se aproxima de uma dialética marxista Em seguida outro plano mostra um homem em mistura de vaqueiro e palhaço que desafia um boi lúdico artesanal Ele bate no boi com um pedaço de madeira e este o ataca com os chifres fazendo o palhaço dar cambalhotas que tiram risos da plateia Reproduzse a relação entre o boi e o homem no trabalho em que o último tenta dominar o primeiro137 A montagem sobrepõe tais cenas reforçando a relação entre essa expressão artística popular e o trabalho do vaqueiro A narração em voz over propõe uma maneira de ver mais explícita relacionando trabalho e contexto para explicar sua produção cultural Essa identificação do sertanejo e do vaqueiro por tais temas pode ser compreendida a partir dos discursos aos quais essa representação se apropria Por isso se Euclides da Cunha 137 Tratase aqui de um jogo entre uma elaboração da cultura popular e sua apropriação por Vladimir Carvalho em O País de São Saruê Interessanos para nossa análise mais como o documentarista se utiliza dela para elaborar um discurso que a construção da própria cultura popular 115 foi uma matriz reconhecidamente influente para o cineasta com a qual estamos colocando o filme em diálogo outro ponto central que representa também um ponto de inflexão e a originalidade do cineasta frente à influência euclidiana sua formação de cunho social com influências marxistas Como vimos a escola do partido é reconhecida pelo cineasta como um importante âmbito de formação sua atuação no Teatro Popular no CPC ou como repórter cobrindo temas para jornais locais ou do PCB tiveram influência em seu arcabouço intelectual Seu discurso documentário foca no trabalho e nas relações de classe o que nos leva a encaixá lo em relação à cultura política marxista da época Para Marx o homem e sua cultura são definidos por sua relação com os meios de produção em uma determinada ordem políticoeconômica138 O trabalho é entendido como a capacidade do homem de alterar a natureza agregando valor à matériaprima que modifica adaptandoa a suas necessidades139 A produção de riqueza e a transformação do mundo material são oriundas da categoria fundamental do trabalho a maneira como ele é organizado uma organização dos meios de produção é fator central para entender as relações humanas e sua organização hierarquização e produção cultural Essa é a base de roda a teoria marxista de entender a história as classes relações de trabalho arte e cultura Quando analisamos os planos de limpeza do terreno e construção de casas em O País de São Saruê apontamos elementos que constituíam a caracterização do homem filmado enquanto ser social Esses instrumentos foice facão etc o uniam à matéria natural possibilitando alterála Podemos articular esses objetos plásticos a um fragmento de Marx no qual indica a relação da produção material individual com aquela feita em sociedade Marx afirma que não há produção possível sem instrumento de produção esse instrumento será a mão Não há produção possível sem trabalho passado acumulado esse será a habilidade que o exercício repetido desenvolveu e fixou na mão do selvagem 1977 p 203 Aqui na construção semântica de Marx também vemos a articulação entre o elemento homem seu instrumento ele indica a mão mas podemos estender à foice por exemplo e ainda sua subjetivação de uma habilidade a repetição do selvagem 138 Afirma Marx em Contribuição à crítica da economia política 1859 na produção social de sua existência os homens estabelecem relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social política e intelectual o seu ser é o seu ser social que inversamente determina a sua consciência MARX 1977 p 24 139 Falamos aqui do que Marx chama de trabalho que cria valor de uso É um trabalho concreto e particular que consoante a forma e a matéria se divide numa variedade infinita de gêneros Afirma ainda que esse trabalho não é a única maneira de gerar riqueza mas que o é uma atividade que adapta a matéria a este ou àquele fim ele pressupõe pois necessariamente a matéria Há também o trabalho que gera valor de troca Ao contrário do anterior ele é social e não uma condição natural do gênero humano caracterizase pelo tempo de trabalho enquanto um trabalho geral abstrato e igual ou seja pela capacidade de criar produtos iguais e não pelo produto particular em si no seu valor de uso MARX 1977 p 39 116 Para Marx mesmo a arte está relacionada com o desenvolvimento de uma sociedade Por isso afirma que o difícil não é pensar como a arte grega e a epopeia estão ligadas a certas formas do desenvolvimento social mas como ainda proporcionam prazer estético e como ainda têm valores e modelos que nos transmitem algo hoje Para ele a arte grega e seu encanto não estão em contradição com o caráter primitivo da sociedade em que ela se desenvolveu mas se ligam justamente a tais condições que não poderiam repetirse MARX 1877 p 229 Como podemos ver a ligação entre o desenvolvimento de uma sociedade e sua produção artística serve tanto para confirmar uma regra geral sobre sua organização social quanto para indicar particularidades culturais Cada realidade deteria uma manifestação particular que pode ser entendida por um sistema geral que serve de matriz para essa teoria cuja categoria trabalho é central Se para o marxismo clássico essa relação é estabelecida entre estrutura econômica e superestrutura âmbito da ideologia essa foi uma postura assumida pela orientação oficial do CPC como podemos identificar pela seguinte passagem A arte quando vista no conjunto global dos fatos humanos não é mais do que um dos elementos constitutivos da superestrutura social juntamente com as concepções e instituições políticas jurídicas científicas religiosas e filosóficas existentes na sociedade Não vê a seguir que esta superestrutura longe de ter uma vida autônoma e uma direção própria independente de qualquer influxo exterior está ao contrário em estreita conexão com o conjunto das relações de produção que formam a estrutura econômica da sociedade MARTINS 2004 p 137 A figura do sertanejo e seus costumes foi uma imagem recorrente no cinema da década de 1960 Entre o Cinema Novo e o ciclo de documentário paraibano da década de 1960 uma vasta gama de literatura reproduziu essa imagem caracterizando essa região como Vidas Secas e A Bagaceira 1928 de José Américo de Almeida Esse sertão do trabalho dos costumes rústicos já constava no arcabouço cultural de Vladimir Carvalho ao viajar para o sertão da Paraíba Muito embora ele não soubesse o que iria encontrar também já esperava e procuraria imagens do sertão de suas memórias e de suas leituras O documentário se expande de maneira muito além dessa definição mais estreita marxista da relação entre estruturasuperestrutura Isso não quer dizer no entanto que ele não se aproprie em algum grau desse entendimento tornando porém em sua representação o sertão e sua cultura algo muito maior que um espaço econômicopolítico A origem do espaço de que se ocupa o documentário o sertão é construído através de filmagens contemporâneas articuladas a outros materiais de linguagens diversas poesia música cultura popular que orientados por uma montagem criam sentidos diversos daqueles elaborados originalmente O sertão do final da década de 1960 mostrado até então no documentário se serve de uma construção tão histórica quanto poética revelando a cultura 117 histórica na qual Vladimir se inseria A escolha narrativa de O País de São Saruê não foi históricolinear mas poética Ainda assim há elementos de cunho histórico e social reforçados pela própria construção poética do documentário Sua poeticidade está em consonância com um projeto político de transformação da realidade como veremos adiante A origem da região é apresentada pelas imagens contemporâneas que remetem metaforicamente a ocupação original do sertão através de muito labor lutas e opressões Esse discurso sobre o passado regional não era neutro ou inocente mas oferecia uma interpretação histórica pautada nas mudanças consideradas necessárias para o desenvolvimento e transformação da realidade nacional segundo a ideologia de comunistas e outros setores intelectuais brasileiros alinhados com o romantismo revolucionário da década de 19601970 As filmagens da época do filme permitem ao cineasta fazer um jogo passado presente apresentando sua origem poeticamente mas também articulando a persistência do atraso na região Apresenta métodos de produção arcaicos que requerem muito trabalho e que tem por obstáculo revezes climáticos Um povo cuja cultura se relaciona diretamente com o trabalho mas que está em decadência pela inserção de bens culturais alienígenas Uma região cuja opressão e exploração persistem desde há muito obstaculizando seu desenvolvimento140 No próximo capítulo apresentamos as relações de classe em outras sequências demonstrando mais fortemente os horizontes de expectativa oriundos da produção de O País de São Saruê Na estrutura geral do documentário há mais dois mundos do trabalho o cultivo do algodão e o ciclo do ouro O primeiro é exibido de maneira semelhante ao da pecuária mostrando seu trabalho na contemporaneidade à produção do documentário localizando ele historicamente e mostrando as contradições que o envolvem A sequência seguinte do ciclo do ouro possui um método diferente mais próximo do cinema verdade francês distinto das outras mais próximas ao documentário clássico flahertyano O elemento da entrevista ganhara espaço no documentário com a possibilidade som direto e a sequência sobre o ciclo do ouro mostra essencialmente os relatos sobre o finado ciclo do ouro na Paraíba Diferente dos anteriores ele fica entre realidade e fabulação proposta pela própria estrutura do documentário Optamos por nos cocentrar nos elementos da representação da pecuária e da agricultura Nestas duas sequências outros temas acerca da contradição do mundo do trabalho são desenvolvidos e são objetos do capítulo seguinte 140 O problema climático é apresentado e pode parecer até então o maior obstáculo ao homem porém o documentário desconstrói essa ideia mais à frente como apresentamos no capítulo seguinte A decadência da cultura e da civilização do couro está presente nesta sequência da pecuária porém é discutida mais explicitamente na sequência 8 que apresenta a feira de Sousa Nela se mostra a inserção dos bens culturais no sertão mostrando como os elementos culturais característicos vão se perdendo quando o sertão se torna um mercado mais conectado à economia mundial importando produtos básicos como a sandália de borracha Vladimir Carvalho usa como metáfora a troca da sandália de couro pela japonesa 118 Capítulo 5 A política em O País de São Saruê sertão trabalho e exploração No capítulo anterior analisamos a sequência que abre O País de São Saruê indicando a representação do espaço e do sertanejo centrada no conflito dele com seu ambiente o qual transforma através do trabalho Após o documentário abordar a pecuária são apresentadas as economias da agricultura de subsistência e produção do algodão e de extração de minérios de ouro e de outros minérios como a xelita Na etapa deste capítulo privilegiamos analisar o tema dos conflitos de classes no documentário por isso centraremos nossa atenção na sequência do algodão na qual nos parece mais presente este conflito Relacionamos o documentário ao projeto político pecebista ou seja à revolução nacional democrática que seria feita com forças nacionais progressistas e antiimperialistas do Brasil141 A sexta sequência aborda a produção de algodão no sertão mostrando o contrato de meação pelo qual se sustenta o poder do latifundiário sobre os trabalhadores pessimamente remunerados Esta sequência é onde a dominação de classe aparece de maneira mais explícita A sétima sequência já aborda a economia do algodão em etapa industrial e seus operários Ela possui um diferencial das demais analisadas pois após tempo considerável de filme usa de entrevista pela primeira vez Vladimir Carvalho inseriu um diálogo com o parlamentar e usineiro José Gadelha e através desse personagem problematiza ainda mais a contradição e o conflito entre patrão e empregados Nestas duas sequências o eixo do conflito entre homem e meio é transferido para homem versus homem Saltamos para a penúltima sequência Nela temos a última entrevista com o prefeito de Sousa Antônio Mariz Ele faz uma síntese sobre os problemas da economia sertaneja Afirma que a questão climática não é o único problema nem o mais grave do sertão mas a estrutura agrária Seu discurso é utilizado pelo documentário como uma síntese explícita do que foi apresentado durante o percurso fílmico em maior parte de maneira poética Por fim o documentário é concluído com uma sucessão de planos ao som da música tema As imagens são todas reutilizações mostrando personagens e objetos já introduzidos Elas são articuladas ao discurso verbal da música tema que apresenta outra síntese dos conflitos apresentados e o horizonte político de solução para o impasse não solucionado no filme Reforçase o caráter de dominação de classe para entender o sertão e seu povo 141 Indicamos aspectos de outros temas superficialmente dado nossos limites Temas como o imperialismo tão presente na sequência que mostra o voluntário americano Charles Foster no sertão ou o declínio da civilização do couro indicado na sequência da feira de Sousa poderão ser objetos de estudos futuros 119 Esse capítulo busca identificar os elementos de expressão a estética e o conteúdo propriamente dito para relacionálos ao discurso oficial pecebista sobre a questão agrária 51 O pensamento pecebista Antes de apresentar a análise do filme propriamente dita introduzimos os documentos que serviram de base para análise deste capítulo Começamos pela documentação oficial do Partido Comunista Brasileiro a fim de entender a visão institucional sobre os temas da luta de classes do rumo político brasileiro e de sua visão sobre o campo O PCB horizontes políticos A diretriz política assumida pelo partido a partir de 1954 e especialmente a partir de 1958 com o documento conhecido como Declaração de Março foi essencial para a relação entre artistas e PCB antes e durante o golpe militar contexto acompanhado por Vladimir Carvalho no partido e no CPC No final da década de 1940 e início da década de 1950 o PCB assumira uma política sectária e revolucionária oriunda da pressão exercida pelo retorno do partido à clandestinidade142 Porém o IV Congresso de 1954 e a Declaração de Março de 1958 demonstram um abandono dessa postura Essa mudança foi importante para a mudança no partido e em sua política cultural Consideramos a documentação entre 19541972 contemplando a elaboração de O País de São Saruê pois como indica Celso Frederico sobre a política cultural do PCB As tentativas então esboçadas para definir uma política cultural nos dez anos seguintes ao golpe militar só se tornam compreensíveis porém quando referidas ao longo do processo de desestalinização e superação do dogmatismo iniciado em fins da década de 1950 FREDERICO 1998 p 275 Nos antecedentes da Declaração de março estão diversos eventos dentre eles o impacto do suicídio de Getúlio e de sua carta testamento 1954 A partir daí a atitude perante o capital nacional e estrangeiro sofreu algumas alterações que podem ser identificadas na postura adotada pelo PCB no IV Congresso em 1954143 O partido assumiu a defesa de setores 142 O PCB teve a maior parte de sua trajetória na ilegalidade Antes do período em análise o PCB teve um período de legalidade de dois anos 19451947 143 O IV Congresso estava programado para ocorrer em 1947 no entanto devido às ações anticomunistas do Governo Dutra teve de ser adiado Ronald Chilcote aponta dentre várias características das teses para esse congresso que defendiam um período de desenvolvimento pacífico a substituição do fascismo pelo 120 progressistas brasileiros cujos interesses para eles estariam de acordo com a economia nacional e do povo Em vez da anterior defesa de uma expropriação indiscriminada do capital estrangeiro visavase agora apenas o confisco das empresas norte americanas FAUSTO 2007 p 499 e colocouse a possibilidade de atrair capital estrangeiro que auxiliasse no desenvolvimento independente da economia nacional em espécie de programa radical de desenvolvimento nacionalista para o qual o capital norteamericano e o latifúndio feudal eram obstáculos para impedir o progresso do país FAUSTO 2007 p 499144 Neste sentido sua posição perante o capital estrangeiro e o que se convencionou chamar de burguesia nacional vacilava entre a contradição básica do marxismo da luta de classes burguesia x operariado e a luta contra o imperialismo norteamericano que para a ideologia comunista145 substituía o fascismo enquanto inimigo prioritário no âmbito político internacional Esse foco no imperialismo também se articulava à aposta em uma aliança com a burguesia nacional e setores progressistas para o desenvolvimento do país não sem críticos internos dessa postura O partido ficaria entre duas posições uma de cunho mais radical propondo uma revolução e outra reformista defendendo mudanças através de uma atuação dentro do Estado burguês tendo assim maior peso na última a luta pela legalidade do partido que se encontrava na clandestinidade146 A partir do IV Congresso o PCB adotara a via reformista abandonando a perspectiva revolucionária interessados em obter a legalidade do partido e a participação no processo eleitoral Essa linha política se tornou conflitante com esses objetivos mais radicais Ronald Chilcote indica que houve quatro tarefas delineadas pelo programa luta contra o imperialismo imperialismo norteamericano como principal força reacionária internacional as contradições entre o monopolismo norteamericano e os povos coloniais e semicoloniais e com relação ao campo defendiam a reforma agrária através da Constituição Apontavam também a necessidade de encaminhar a revolução democrático burguesa no Brasil Esse Congresso no entanto só ocorreu em 1954 CHILCOTE 1982 p102103 144 Celso Frederico também corrobora com essa leitura afirmando que os comunistas deixaram para trás a política de recusa e enfrentamento e passaram a tentar interferir nos rumos do desenvolvimento através da pressão sobre o Estado e das campanhas nacionalistas pela encampação das empresas estrangeiras situadas nos setores estratégicos da economia No limite apostavam na viabilidade de um capitalismo monopolista de Estado e acreditavam ingenuamente ser este a antesala do socialismo 1998 p276 145 Ideologia aqui entendida não como um falseamento de uma realidade mas uma das instâncias do social referente a como os indivíduos constituem relações como representações Rosa Maria Godoy Silveira afirma que a produção ideológica tem existência material objetiva na medida em que toda sociedade e toda ação social necessitam de uma estrutura de sentido para se reproduzirem Portanto não se deve confundir ideologia com falsa consciência e alienação Aponta também a duplicidade da ideologia como forma de conhecimento na medida em que fornece ao homem certa inteligibilidade do mundo e porque o conhecimento sobre a ideologia permite em suma conhecer as relações sociais em que a mesma se concretiza e de dominação porque tendo por fundamento as condições objetivas da existência relações sociais de produção em uma sociedade de classes exprime as relações que as classes estabelecem entre si e a dominação que uma delas exerce sobre as demais 2009 p39 146 Ronald Chilcote afirma que uma aliança tácita entre PCB e PTB se delineava a partir de 1952 1982 p111 Essa aproximação do PCB com o PTB e com outras tendências nacionalistas evidenciase em seu apoio às candidaturas de Juscelino Kubitschek e João Goulart 121 norteamericano nacionalização das grandes propriedades rurais pelo confisco e distribuição da terra aos camponeses substituir o governo dos latifundiários e capitalistas por um governo democrático de libertação nacional e por fim formar uma frente antiimperialista e antifeudal para formação de um governo de coalizão CHILCOTE 1982 pp112113147 Essa postura política é importante para a compreensão de dois processos a referida maior aproximação entre intelectuais e artistas que caracterizou a história do PCB entre segunda metade da década de 1950 até o golpe militar bem como a politização da arte que marcou o país até o fechamento político do Ato Institucional n 5 Essa diretriz se manifestou diretamente na produção artística engajada pois sua produção visava interferir para a realização dessa transformação política nacionalista e denúncia de seus inimigos Foi essa perspectiva nacionallibertadora que aproximou o partido comunista de muitos setores da sociedade representando também uma busca de adaptação do PCB às mudanças modernizantes e à realidade política da época diminuindo a adoção imediata das diretrizes soviéticas Essa postura permaneceria em 1973 em pleno regime militar Essa posição política se articula ao romantismo revolucionário descrito antes Eram tais diretrizes que se articulavam às concepções de revolução e da questão agrária brasileira adotadas por muitos dos artistas vinculados ao PCB e ao CPC Daí a relação possível entre tais diretrizes partidárias e o discurso de O País de São Saruê Como vimos Vladimir Carvalho atuou no PCB e no CPC trabalhou para os jornais comunistas e reconhece a escola do partido como fundamental na sua formação Outro fator influenciou ainda mais a mudança no PCB a crise oriunda da denúncia do stalinismo no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética 1956148 Esse fenômeno afetou o movimento comunista internacional trazendo problemas e muitas cisões para o PCB149 gerando um posterior comedimento político e retorno à defesa de uma frente progressista em uma busca de manutenção da unidade partidária 147 Essa mudança ficou evidente com a Declaração de Março de 1958 Nela abandonavase o posicionamento mais esquerdista adotado com a orientação revolucionária de janeiro de 19481950 Nesse sentido a Declaração de Março de 1958 representou um divisor de águas para o PCB na década de 1950 Sobre o documento sintetiza Anita Leocádia Prestes a Declaração de março de 1958 representou uma virada na política dos comunistas brasileiros o abandono de uma orientação estreita e sectária cuja maior expressão fora o Manifesto de Agosto de 1950 Mas significou também a reafirmação da ideologia nacional libertadora cuja influência marcara a história desse partido PRESTES 2012 p 14 148 Segundo Chilcote foi apenas em 1958 que Prestes trouxe ao debate em março do XX Congresso e as denúncias contra Stálin Em outubro o PCB reconheceu sua omissão ao debate e avaliou que o partido precisava ser democratizado abrindo o debate dentro do partido Cf CHILCOTE 1982 p118 149 Com a denúncia dos crimes de Stálin e democratização do PCB houve uma divisão interna que a grosso modo foram conhecidas como o antigo núcleo dirigente chamado de fechadistas opondose a eles os abridistas ou renovadores pretendendo um debate aberto e o pântano ou grupo baiano que apoiaram os conservadores para derrotar os renovadores com o objetivo de conquistar os controles do partido CHILCOTE 1982 pp118119 Em meio aos embates gerados pelo debate que se fazia sobre o XX Congresso e as tentativas de fecharem o debate em nome da unidade do partido e da defesa dos princípios leninistas houve algumas cisões de militantes renovadores 122 Os rumos do PCB após 1958 seriam definidos por uma renovação no Comitê Central que incluía militantes não pertencentes à formação anterior150 O alagoano Alberto Passo Guimarães foi um desses novos dirigentes e uma forte influência do pensamento do partido comunista brasileiro sobre a questão agrária Em 1963 publicou Quatro séculos de latifúndio no qual se encontra os fundamentos da leitura majoritária da questão agrária no PCB De outro lado Caio Prado Júnior outro intelectual vinculado ao PCB critica a posição do partido acusando a direção de uma leitura apriorística e de desconhecimento da realidade brasileira incluída a questão agrária Em A Revolução Brasileira 1966151 escreve sua crítica às teorias a priori sobre a revolução no Brasil Defendia que a revolução deveria partir da conjuntura política e social imanente da realidade brasileira Esses dois intelectuais Caio Prado Júnior e Alberto Passos Guimarães representaram exemplos das divergências internas de entendimento do campo brasileiro O pensamento pecebista portanto não era monolítico 52 Dominação de classe A balança dos contentes pesa a sede dos magoados A análise centrase na representação do trabalho na colheita do algodão e da família camponesa sertaneja152 Nessa sequência é pautada a mecanização do trabalho e a divisão da sociedade em classes local e internacionalmente As metáforas da balança e de São Miguel Arcanjo no documentário se destacam153 A família camponesa A cultura do algodão foi importante para a economia nacional e paraibana particularmente para o sertão No entanto sua relevância econômica à época do documentário já se arrefecia havendo na década de 1970 tentativas de proteção dessa atividade que ainda 150 Mário Alves Giocondo Dias Armênio Guedes Jacob Gorender Alberto Passos Guimarães destaca Fausto não faziam parte da antiga formação do Comitê Central do PCB antes de 1958 Eles foram os responsáveis principais pela Declaração de Março de 1958 FAUSTO 2007 p510 151 Embora Caio Prado Júnior tenha sistematizado sua crítica no livro de 1966 ela já era conhecida pelo partido 152 Cabe ressaltar que sertanejo e camponês não são categorias iguais tampouco estamos pensando elas como iguais nesta análise Sertanejo se refere muito mais a uma identidade regional e a um recorte de um dos tipos nacionais enquanto camponês é uma denominação mais voltada para a relação dentro da estrutura econômicopolítica No entanto durante o documentário o sertanejo também é visto dentro de sua atuação enquanto operário ou camponês e portanto fazemos essas ligações entre a figura do sertanejo e a concepção de camponês pecebista através da qual se problematizava a conjuntura rural nas décadas de 19601970 153 O tema dessa análise já foi iniciado em trabalho publicado no Segundo Colóquio de História Arte 21 a 25 de maio de 2012 UFRPE com o título de A balança da injustiça em O País de São Saruê entre a fé e o capital Disponível em httpwww2coloquiodehistoriaearteblogspotcombr acesso em 26 de nov 2012 Há uma versão expandida esperando publicação sem data definida 123 hoje tem importância no nosso Estado O algodão é nativo da América e foi cultivado desde a colonização Ele chegou a ser utilizado como matéria prima para roupas de escravos e classes pobres inicialmente quando era uma cultura de expressão local insignificante e de valor econômico mínimo Este cenário muda na terceira metade do século XVIII quando começa a ser exportado PRADO 2004 p 148 Como a cana de açúcar teve sua cultura realizada no litoral a do algodão foi realizada no interior articuladamente à pecuária bovina Na Paraíba o algodão chegou a se tornar mais importante que o açúcar PRADO 2004 p 151 Baseada em Celso Mariz Marly Vianna afirma que o algodão já estaria no Cariri e no Rio do Peixe por volta de 1760 Afirma ainda que durante a crise de 18581860 quando houve uma queda no preço do algodão seu cultivo chegou às terras do Cariri A essa época já se havia notícias de plantações mais regulares e de algumas bolandeiras usadas para o descaroçamento VIANNA 2013 p 9295 154 O cultivo do algodão é o tema da quinta sequência que aborda o mundo vegetal ou seja a agricultura sertaneja apresentando a sobrevivência do plantador no contexto de dominação de classe Inicialmente é comentada por uma voz da Terra cujo texto foi encomendado ao poeta Jomar Souto para o filme Ela descreve o duro trabalho desse trabalhador um labor infeliz Evoca lutas de lusos e massacres cariris opondo as violências nessa terra às plumas branquinhas cor de giz que ela devolve ao ar Depois do desmatamento Depois da queima das urzes Depois de cruzes e cruzes Fincadas no esquecimento Depois das lutas com os lusos E massacres cariris Depois dos usos e abusos a minha terra infeliz devolve ao ar estas plumas branquinhas da cor de giz CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 6 2531 2555 Planos mostram a colheita realizada por homens e mulheres em meio a branco algodão e entre eles há um homem com roupas rasgadas Essa articulação de imagens reforça um efeito contraditório entre produção algodão e consumo as roupas velhas 154 A economia do algodão deve ser pensada em suas várias etapas Cabe apenas indicar que além do cultivo é importante o descaroçamento para extração da matériaprima e daí então sua venda ou transformação em tecido ou extração de seu óleo Quando posteriormente que no Brasil se desenvolveram as indústrias têxteis mudouse o cenário dessa economia no Brasil como veremos adiante 124 CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 6 2547 2611 Notese que primeiro um plano mostra o homem junto a outros trabalhadores que não estão vestidos de maneira maltrapilha porém é nele que a câmera se detém descendo aos poucos mostrando seu corpo todo até os pés O documentário usa um elemento metafórico em lugar de representação literal apontando uma contradição entre trabalho e consumo entre trabalho e pobreza presente naquela região Retomando o filme em nível de expressão temos uma sequência que mostra o homem colhendo o algodão com os pés sob o chão Nesse sentido os objetos colhedor e algodão dividem ambos o mesmo espaço porém o primeiro retira ao segundo sua roupa o branco As figuras negras dos trabalhadores assim como os algodões possuem uma estrutura plástica negra que se veste com o branco anunciado pela poesia anteriormente A poesia afirma que O apanhador que as apanha Sabe sim desde a raiz Quanto o branco no sol ganha Ou quanto perde o matiz O apanhador que as apanha colado à terra à raiz talvez se saia apanhado nesse labor infeliz Passa umas horas e às vezes As horas o sol esquenta E se sucedem às dezenas E viram dias e meses E vão virando alguns anos A vida toda a existência E o apanhador na cadência Mais de apanhado Que o dano De quem vive nesse afã Duro de Ministro ver É não ter o que comer Na terra de Canaã CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 6 2558 2712 Na poesia a oposição pobreza dos homens na riqueza do sertão está mais evidente A inversão apanhadorapanhado que aproxima algodão e colhedor também é reproduzida na fotografia os homens estão enraizados fotograficamente como plantas no chão como os algodoeiros também ornados de branco Suas vestes são fruto daquilo que tiram dessas plantas esperaríamos pela abundância de algodão nos planos anteriores que eles estivessem todos bem vestidos no entanto o homem maltrapilho representa esse trabalhador ficando tão nu quanto as plantas do algodão quando apanhadas E se a riqueza da planta seu algodão for comparada à riqueza do trabalho humano ambos saem apanhados pois este trabalhador não se torna rico com sua atividade Eis a riqueza estética dessa articulação dos 125 planos com a poesia de Jomar Souto Construções semelhantes metafóricas Na citação a parte do asterisco em diante consta na poesia de Jomar Souto mas não foi inclusa no filme Ainda assim a poesia apresenta o conteúdo que será apresentado por outras vias nessa sequência a relação entre a dureza do trabalho e a pobreza a fome no sertão Em O País de São Saruê o algodão é apresentado em um contexto de péssimas condições de trabalho e de pobreza Apesar disso essa economia já foi conhecida como ouro branco pela reconhecida riqueza que para muitos na Paraíba A cultura do algodão era realizada também por pequenos e médios agricultores e por isso atribuíase a ela um caráter democrático Todavia as relações entre agricultorlatifúndiocomerciantes não eram de uma real distribuição de riqueza Os pequenos agricultores sem direito a bons financiamentos eram sujeitos a relações de trabalho bastante desfavoráveis Gervácio Aranha aponta que a produção estava à mercê dos latifundiários que mantinham os trabalhadores sob seu poder e na cidade a circulação dessa mercadoria era controlada pelos comerciantes que compravam o algodão a baixos custos e garantiam altos lucros na revenda 1992 p 220155 Na base dessa economia estavam os agricultores e os operários da indústria aos quais restava a menor fatia do bolo enquanto latifundiários comerciantes e a indústria enriqueciam Em seguida uma cena mostra a família do homem maltrapilho voltando para casa após o trabalho mãe marido e filho em um plano médio a trilha sonora de música suave busca passar um sentimento de afetividade Mostrase eles em uma casa de taipa Um plano detalhe de um pássaro engaiolado e inquieto sugere a ideia de prisão Esse objeto é retomado insistentemente seja como parte de planos médios ou alternado em plano detalhe aos planos que mostram a família Os planos da casa pobre e rústica e da gaiola relacionam à pobreza uma situação da qual não se consegue escapar Em outra cena o homem de espingarda em mãos consegue uma pequeníssima presa O narrador em voz over descreve as relações de trabalho da região contextualizando Com a meação contrato em que o lavrador planta cultiva e colhe para dividir meio a meio com o dono da terra o fruto de um ano de trabalho não sobra terra tempo nem dinheiro para se cuidar da lavoura de subsistência Por isso nos meses secos quando escasseiam por completo os poucos víveres acumulados durante a safra os caboclos que não bateram em retirada apelam desesperadamente para a caça das ariscas e raras aves que ainda não emigraram fugindo da seca CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 6 2918 2946 155 Gervácio Aranha 1992 em sua dissertação de mestrado descreve a produção algodoeira paraibana articulandoa com a circulação de mercadorias especialmente quando Campina Grande se tornou um polo comercial de destaque especialmente com a presença do trem 126 Desta vez o drama do agricultor sertanejo não aparece ligado unicamente à seca como nas sequências já analisadas Ela está presente nos meses secos quando escasseiam por completo os poucos víveres acumulados durante a safra Sabemos por esse texto que as os víveres acumulados na safra período de fartura são poucos porém na referência sobre o contrato de meação mostra que há uma divisão que prejudica a sobrevivência do trabalhador A metade daquilo que produz é compartilhado com o dono da terra sobrando pouco para quem realiza o árduo trabalho ou em outras palavras impede a própria economia de subsistência como indica a voz over O filme apresenta de maneira explícita um método de exploração do trabalho do sertanejo popular articulada à metáfora deixada pelos planos do apanhador maltrapilho de algodão mas sem ainda fazer uma crítica aberta ao latifúndio Na relação de trabalho chamada de meação o agricultor divide sua produção mas existem outras como a morada na qual o trabalhador mora na propriedade do dono de terras realizando vários serviços Ambas eram denunciadas pela esquerda da época156 Após o rush algodoeiro os plantadores dificilmente sobreviviam apenas da cultura do algodão Segundo Manuel Correia de Andrade os agricultores sertanejos se uniram para produzir algodão e fazer plantação de subsistência A colheita e venda do algodão permitiam ao pobre trabalhador a aquisição de roupas e outros utensílios para a família Este era o modus vivendi do trabalhador sertanejo sem terras nas áreas da caatinga até quase os nossos dias Pelo calendário agrícola que expusemos observase que morando em uma propriedade tinha o trabalhador que dividir o seu trabalho entre o roçado próprio e o do patrão ANDRADE 2011 p 196 Nesta passagem percebemos o papel do algodão particularmente para conseguir roupas e utensílios para a família quando a alimentação era garantida diretamente pela agricultura O cultivo do algodão e a cultura de subsidência eram feitas simultaneamente de acordo com seus calendários 157 A divisão do roçado com o patrão é outro dado do cotidiano 156 A linha oficial do PCB atribuía a tais relações um status feudal O maior ideólogo dessa tese foi Alberto Passos Guimarães Caio Prado Júnior foi o crítico mais conhecido de tal posição divergindo sobre tal feudalidade mas denunciando as relações exploratórias como obstáculos para o desenvolvimento 157 Manuel Correia de Andrade descreve as culturas de subsistência e algodão Afirma que nos anos regulares os sertanejos em mutirão brocavam seus roçados limpavam a área para o plantio com foices e faziam a queima em fins de dezembro Com a chegada do inverno homem mulher e filhos faziam a semeadura de produtos como feijão ligeiro milho jerimum e melancia inicialmente e depois mandioca algodão milho e feijão depois Entre o primeiro e segundo plantios a família mantinha o roçado limpo enquanto o chefe trabalhava assalariado nas grandes e médias propriedades O salário era utilizado na aquisição da farinha que constituía com a caça do preá o alimento do cotidiano Até agosto eram colhidos e consumidos o milho o feijão o jerimum e a melancia Em setembro começavam a desfazer a mandioca a realizar a farinhada trabalho em que contava com a ajuda de parentes e amigos sendo a farinha guardada em sacos sobre jiraus existentes nas pequenas casas de taipa Esta 127 desses trabalhadores que também consta no documentário Porém diversamente somos informados pelo documentário que esse agricultor não tinha tempo nem terra para promover sua agricultura de subsistência A situação apresentada por Vladimir Carvalho bastante posterior ao auge do cultivo do algodão é diferente da elaborada por Manuel Correia de Andrade ela parece mais dura que a descrita pelo geógrafo A relação entre trabalhador e patrão se dava de maneiras diversas mas com o domínio do trabalhador pelo dono de terras como indicam Manuel Correia de Andrade e Gervácio Aranha158 O País de São Saruê no entanto aponta a meação ou seja o caso no qual há uma divisão da produção com o dono de terra Mais à frente o filme exibe a venda da produção do algodão e sua pesagem Este momento da pesagem é utilizado para criar tensão e problematizar a geração desigual de riqueza como mostramos adiante À cena que segue a pequena presa conseguida pelo sertanejo mostra a mulher cozinhando a magra caça A poesia de Souto retorna Asseo na trempe depois Dê ao menino um pedaço a sobra dá pra nós dois Amanhã vou para a rua vender plumas de algodão Volto de noite com a lua e rapaduras na mão CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 6 3043 3100 Sobre isso O filme articula a poesia com as imagens que mostram a pequenez da caça a rusticidade da casa e a roupa maltrapilha Esses elementos compõem um quadro de miserabilidade adquirindo grande efeito dramático Somos informados da luta pela sobrevivência desses pequenos agricultores a plantação de subsistência o cultivo familiar a caça para complementação da alimentação em tempos difíceis e a venda da produção do algodão Essas informações são trazidas por uma estética que causa forte impressão sobre o drama desses trabalhadores Ela almeja conseguir a simpatia do espectador e denunciar essa realidade FEITOSA 2012 p13 Constróise no filme a figura do agricultor do algodão homem pobre imagem da figura mal vestida mal alimentado na imagem da pequena caça em situação difícil que o oprime apanhador que sai apanhado da qual não consegue se emancipar alusão à prisão cooperação da farinhada é comumente chamada de ajutório A farinha devia ser consumida com parcimônia pois dela dependia o sustento da família até abril quando o roçado começava a dar jerimum melancia e as primeiras vagens de feijão ANDRADE 2011 p 196 Notese que em meio a sua descrição é indicado um momento no qual o trabalhador se torna assalariado complementando sua renda 158 O trabalho para o patrão era às vezes remunerado em dinheiro caso em que o morador necessitava pagar renda da terra que cultivava para si em dinheiro ou com parte da produção outras vezes ele tinha a terra para cultivar sem pagar rendas mas obrigavase a dar três dias de serviços gratuitos para o proprietário estando assim sujeito ao cambão A gama de relações era muito variável ANDRADE 2011 p 196 128 pela gaiola do pássaro Sobre tal construção a historiadora Shirly Souza em sua dissertação de mestrado indica que durante as cenas que apresentam essa família são mostradas galinhas gordas que poderiam servir de alimento a esses camponeses Todavia segundo a autora metaforicamente Vladimir Carvalho opta por incluir as aves em tais planos reforçando o caráter mais discursivo que de representação direta literal de seu filme159 A família nuclear do filme metaforiza a família camponesa sertaneja em geral Seu realismo está na crítica realizada no âmbito do discurso não necessariamente na literalidade das imagens Essa construção discursiva é semelhante à do catador maltrapilho de algodão No início desse conjunto de cenas sobre a família camponesa há outro dado valioso A música Acauã 1952 de José Dantas interpretada por Luís Gonzaga toca durante a cena da caça ela mistura alegria e tristeza no ritmo e na sua letra160 Ela diz Acauã acauã vive cantando Durante o tempo do verão No silêncio das tardes agourando Chamando a seca pro sertão Chamando a seca pro sertão Acauã Acauã Teu canto é penoso e faz medo Te cala acauã Que é pra chuva voltar cedo CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 6 2736 2835 Esta construção é semelhante à já indicada no Capítulo 2 acerca da crença popular sobre a relação entre seca e sinais naturais relacionados a aves Durval Muniz de Albuquerque Junior aponta que um dos temas das canções de Luís Gonzaga trata das crenças e superstições dos sertanejos indicando como exemplo Acauã Afirma ainda que Luís Gonzaga assume a identidade de um artista regional em 1943 representando o Nordeste e assumindo sua indumentária como a roupa do vaqueiro e o chapéu usado pelos cangaceiros Sua produção 159 Se observarmos atentamente toda essa sequência veremos que quando o casal chega ao terreiro de casa há algumas galinhas no quintal e passarinhos na gaiola que parecem maiores que a caça Se considerássemos o documentário como uma reprodução do real esses detalhes poderiam contradizer a situação de miséria dessa família Entretanto não há tal contradição porque essa sequência é uma miseenscène da própria miséria do sertanejo representada no filme por essa família nuclear pai mãe filho Por ser uma encenação explícita confessa é lembrada por JeanClaude Bernardet como uma reprodução do cotidiano feita a pedido do diretor em busca de um real perdido Ou ainda um caso exemplar que o diretor oferece ao público fazendo a passagem da parte para o todo Assim provavelmente o homem é visto como o responsável pela manutenção da família Apesar de a mulher trabalhar ao seu lado na colheita do algodão é ele quem sai para caçar quem traz o alimento para casa e quem lhe dá as ordens por meio do poema em off citado anteriormente Logo essa dramatização da miséria pretende despertar o sentimento de simpatia no espectador Afinal seria difícil algum espectador não se comover diante da dificuldade de um casal trabalhador em alimentar o próprio filho cuja única refeição é um pássaro minúsculo que possivelmente não irá matar a fome nem da criança No final da cena o silêncio é total Sem música Sem poema Apenas a troca de olhares entre o menino e o pai é o suficiente para sintetizar a miséria SOUZA 2010 p 2425 160 Luiz Gonzaga do Nascimento 19121989 foi um compositor popular brasileiro Tocava músicas identificadas com a cultura nordestina Sobre a obra de Luiz Gonzaga e a relação entre sertanejos e sua superstição relacionada às aves consultar a dissertação de mestrado em Ciências Sociais de José Farias dos Santos Luiz Gonzaga a musica como expressão do Nordeste 2004 129 era dirigida ao migrante nordestino radicado no Sul do país e ao público de capitais nordestinas que podia consumir discos Aponta que É necessário chamar a atenção no entanto para o fato de que não sendo o letrista de suas próprias composições embora delas participasse sendo parceiro de vários letristas seu trabalho não apresenta uma unidade de pontos de vista no que tange a uma postura política 2011 p 175 Durval Muniz de Albuquerque Junior ainda aponta que o espaço desenhado pelas canções de Gonzaga é sempre o do Nordeste e no Nordeste o do sertão Este espaço abstrato surge abordado por seus temas e imagens já cristalizados ligados à própria produção cultural popular a seca as retiradas as experiências de chuva a devoção aos santos o Padre Cícero o cangaço a valentia popular a questão da honra Um Nordeste do povo sofrido simples resignado devoto capaz de grandes sacrifícios Nordeste de homens que vivem sujeitos à natureza a seus ciclos quase animalizados em alguns momentos mas em outros capazes de produzir uma rica cultura 2011 p 181 Não acreditamos todavia que Vladimir Carvalho abrace todas essas características da representação de Nordeste elaborada nas músicas de Gonzaga que como vimos sequer tem unidade política O cineasta se apropriou desse texto aqui entendido como conteúdo e estética da canção Acauã tornandoa parte de seu discurso Por isso se algumas dentre as características do sertão de Gonzaga elencadas por Albuquerque estão no documentário a seca a devoção o sofrimento a simplicidade outras estão menos presentes como a resignação ou ausentes como a animalização do sertanejo Albuquerque reforça que a música de Gonzaga estabelece fronteiras entre o Sul e o Nordeste sertão havendo nela um caráter autodepreciativo do sertão de Gonzaga atrasado e cheio de problemas carente de salvação em contraponto com a civilizada e moderna cidade grande sulista Por outro lado elas cantavam um sertão de saudade ainda presente na identidade cultural popular e da não separação do homem e da natureza e de certos aspectos comunitários 2011 p 185 Em diversos aspectos se cruzam os sertões de Gonzaga e de Vladimir Carvalho como de um espaço poético onde o homem e a natureza estão próximos Porém o documentário não contrasta a vida na cidade grande com a vida no campo tampouco mostra o sertanejo popular como um sujeito a espera de salvação O filme identifica a exploração do homem pelo homem e insinua que cabe aos populares resolver tal situação A construção do discurso fílmico se apropria de elementos diversos da cultura seja popular ou 130 da indústria cultural tornandoos partes de seu discurso servindose de significações que eles remetem mas também as atualizando em um novo produto cultural A música fala do anúncio da ave de Acauã pelo seu canto dos tempos de seca Como vimos a voz over explicita em parte algo que a música traz a situação de seca e a procura de caça para alimentação dos sertanejos Ao mesmo tempo no momento em que o pai vai com sua espingarda conseguir a proteína de alguma ave a música diminui ouvimos a voz over para depois ouvir a canção retomada em um crescendo enquanto Luís Gonzaga imita o som do piado de acauã essa construção não é apenas interpretação nossa mas está explicitada no roteiro de O País de São Saruê Quando o homem aciona o gatilho ouvimos o tiro e o som da música cessa restando apenas estalidos secos até retomar à dramática poesia de Jomar Souto causando forte impacto A música não apenas fala do cotidiano sertanejo em estética regional mas também representa a metáfora do sertanejo como um forte já reforçada anteriormente pela poesia e imagens ouvindo o som de acauã anunciando fome e miséria o homem não baixa a cabeça mas vai atrás de comida atirando no próprio canto dessa ave no próprio anúncio de sua miséria161 Essa construção era de interpretação mais sofisticada não se encaixando em um discurso mais explicitamente político Era no entanto uma metáfora possível dentro dos limites impostos pela censura e que poderia ser entendida pelos círculos nos quais se almejava que o filme fosse exibido especialmente estudantil A canção de acauã é outro objeto discursivo que auxilia na construção do esquema geral sobre a vida do camponês e sua família Ocorre uma troca entre o discurso do filme e o prestígio de Gonzaga que é familiar aos seus ouvintes Facilitase a apreensão da realidade e reforçase sua validade por outras referências culturais Algodão e Arcanjos Uma cena alterna planos de um casal andando e planos detalhe de chão pedregoso e de vegetação espinhosa162 Interpretamos essa construção como referência à dureza da vida sertaneja Novos planos mostram uma imagem de São Miguel Arcanjo A poesia anuncia Nem me incomodo com a sede que vai me dar também não Faço fé que na parede quando eu pesar o algodão São Miguel se compadeça e mate mesmo 161 Sobre isso cabe ainda comentar que Bernardet analisa um filme Viramundo 1965 indicando semelhante uso da música que cabe a mesma indicação aqui A canção é escrita na primeira pessoa A generalização fazse pela apreensão de uma experiência coletiva expressar por um personagem mítico O cancionista reelabora em termos míticos portanto gerais abstratos e abrangentes o conjunto das experiências individuais similares das quais ele guarda o denominador comum BERNARDET 2003 p20 162 Interpretamos esse tipo de plano como uma referência a relação entre o homem e o meio hostil sertanejo 131 o dragão E dê um jeito que desça aqui pra junto da gente aquela outra balança que ele sustenta na mão pra pesar com segurança minhas plumas de algodão São Miguel está na sala lancetando um dragão e a balança não resvala para quem dá duro não Uma sagrada balança ele sustenta na mão Na outra mão uma balança lancetando um dragão Ele vai fazer mais justos os preços que as plumas dão Afinal custaram custos minhas ramas de algodão E ele sabe é dura a lida para quem vive no sertão CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 6 3130 3220 A poesia de Jomar Souto roga a S Miguel que seja aplicada sua justiça na pesagem do algodão A balança do arcanjo poderá pesar com segurança seu algodão Sugerese a existência de uma ameaça o dragão reforçado pelo desejo de segurança pede sensibilização para seu sofrimento que se compadeça combatendo o mal com sua lança e fazendo justiça signo da balança A injustiça é sugerida pelo valor oferecido ao produto do trabalho desses sertanejos o algodão163 Nenhum símbolo tem significação por si mas oferecemoslhe sentido a partir do contexto cultural que nos inserimos Alguns significados têm construção longa em camadas de cultura de décadas ou séculos Por isso faremos uma breve historicização da imagem de São Miguel Arcanjo a fim de entender seu uso no filme de Vladimir Carvalho Os anjos são reconhecidos como os mensageiros de Deus São Miguel é conhecido como o chefe das milícias angélicas aquele que manda Satanás e os outros anjos decaídos para os infernos São seres intermediários entre Deus e o mundo mencionados sob formas diversas nos textos acádios ugaritas bíblicos e outros CHEVALIER 2009 Muitas vezes foi definido como o vencedor de dragões E há ainda a crença na Idade Média da intervenção de anjos em situações de perigo ou nas guerras Nas orações e ladainhas de evocação a S Miguel é comum a solicitação de sua proteção contra Satanás Percebese então a função de S Miguel nos embates entre a vontade de Deus e a vontade do Diabo em cuja arena também nos encontramos fracos humanos164 163 Embora na imagem utilizada no documentário não esteja representado como um dragão na Idade Média era comum representar S Miguel em embate contra seres animalescos muitas vezes com um dragão representando o diabo CAMPOS 2004 p104 164 S Miguel é mencionado tanto no Antigo quanto no Novo Testamento Sua primeira representação figurativa identificada foi no mosaico presbiterial de S Apolinário Novo em Ravena no século VI A imagem mais popular de S Miguel o mostra pisando um ser misto de besta e homem o Diabo Essa iconografia não teria surgido no Ocidente antes do século IX e teve grande difusão durante a Idade Média A difusão do culto a S Miguel remete aos séculos V e IX na Europa Em Portugal o culto parece mais tardiamente à época de D João III no século XVI alcançando suas colônias Adalgisa Campos indica que a introdução das balanças se fez de maneira tardia a partir do século XIX vinculadas a uma mudança na visão sobre o purgatório da Igreja Católica no século XIII Cf CAMPOS 2004 Permaneceu um caráter escatológico pela inserção das balanças nas quais ficavam as almas representando o dia do julgamento daqueles que irão aos infernos ou aos céus pesados através de sua balança já a referência ao conflito entre o bem e o mal na sua representação figurativa pelo embate entre o anjo e o diabo também ficam Estes não foram deslocados do cotidiano do homem Assim há continuidade na presença da balança e da espadalança 132 Na imagem de S Miguel utilizada no filme ele pisa o demônio enquanto segura a balança e a espada nas mãos esquerda e direita respectivamente A balança é conhecida como símbolo da justiça da medida da prudência do equilíbrio porque sua função corresponde precisamente a pesagem dos atos CHEVALIER 2009 Como símbolo do julgamento ela se articula com uma aceitação da Justiça Divina Esse imaginário já estava presente na Antiguidade no Egito Antigo na figura de Osíris que pesava a alma dos mortos na iconografia cristã esse papel se refere a São Miguel Arcanjo do julgamento Entre os gregos antigos a balança também se relacionava à noção de julgamento de justiça de medida e de ordem Era representada por Têmis que rege o mundo segundo uma lei universal Têmis é representada com uma espada e uma balança nas mãos e muitas vezes com os olhos vendados símbolo da imparcialidade e não da cegueira HACQUARD 1996 Assim há proximidades entre São Miguel e Têmis não apenas a noção de justiça está ligada a ambos mas também a de medida entre o pecado e a virtude em S Miguel e da ordem S Miguel é aplicador da ordem divina sobre o desordeiro Satanás A figura de Têmis e de S Miguel se assemelham bem como da imagem que temos da justiça hoje No entanto há uma diferença apesar de ambos possuírem uma espada na mão e na outra uma balança há ausência da venda símbolo da imparcialidade na representação do arcanjo No pensamento cristão essa construção se encontra diversa há uma ordem divina a ser seguida e aplicada a ordem de Deus Não há necessidade de venda mas de enxergar claramente a lei divina Cabe ainda problematizar outro elemento o signo da espada Ligado ao estado militar e à bravura também tem função de poderio que pode ter caráter destrutivo ou construtivo Caso essa destruição seja aplicada contra a injustiça a maleficência e a ignorância tornase positiva É construtiva caso estabeleça a paz e a justiça Associada à balança se aproxima ao sentido de justiça separando o bem do mal e golpeando o culpado CHEVALIER 2009 Identificamos a espada enquanto um símbolo de poder e da mediação de conflitos o estabelecimento da paz e da justiça subentende a existência de um conflito Tais informações explicam a associação da balança e da espada em S Miguel juntas separam o bem do mal A justiça divina apoiada na vitória da vontade de deus sobre a do diabo o culpado Entendemos então que o filme apropriase de uma imagem religiosa para construir uma metáfora das ideias de justiça e do conflito da luta do bem contra o mal Relaciona a injustiça da pesagem do algodão à própria figura do Diabo Essa tensão embora não se diga no século XX Abordemos a importância desses signos na construção dessa imagem 133 com tais palavras pode ser entendida como a sugestão da dominação dos conflitos de classe Tais contradições de classe estavam configuradas no Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura da seguinte maneira Em nosso país as contradições cada vez mais agudas entre as forças produtivas em avanço e as relações de produção em atraso entre as classes vivendo de seu trabalho e as classes apropriando do trabalho alheio entre a nação despertando para a conquista de seu futuro histórico e o imperialismo desejando para si o império da história são as contradições que não podem deixar de se refletir em cada um dos aspectos da vida nacional e acentuar cada vez mais sua presença tanto no nível da infraestrutura quanto no da superestrutura ideológica MARTINS 2004 p 141142 Na citação estão presentes os elementos das diretrizes políticas oficiais do PCB que opõe a classe entre os agentes produtores e aqueles que se apropriam do trabalho do homem porém com um recorte nacional cujo obstáculo para o seu desenvolvimento econômico produtivo são o atraso e o imperialismo ambos presentes na infra e superestrutura Nessa sequência a exploração do homem pelo homem está presente no tema da injustiça Esse conflito é relacionado metaforicamente à luta do bem contra o mal cristalizada no imaginário religioso do sertanejo daí a inserção de uma imagem recorrente entre estes populares A balança uma metáfora para a injustiça concreta infraestrutural e o São Miguel Arcanjo articulando sua leitura superestrutural no entendimento popular e religioso do sertanejo Nessa sequência enquanto ouvimos a poesia são mostradas cenas de trabalhadores que andam por caminho pedregoso levando na mão não apenas o algodão mas uma foice e uma espingarda Não seria uma alusão a espada de S Miguel ambas armas e a quem caberia solucionar aquela situação Naquele contexto de Guerra Fria e de ditadura militar a imagem de populares com armas ainda mais associada à foice ou ao martelo poderia ser facilmente relacionada a revoluções comunistas165 Não à toa no processo de tentativas de liberar o filme pela censura a questão das armas foi motivo de problema O parecer de uma censora acusando o filme de namorar as armas deu mostras de que sua autora captara as mensagens subliminares de Saruê Não sem boa dose de ingenuidade eu havia introduzido referências às armas no cotidiano dos camponeses Há a caminhada de um sertanejo com espingarda e foice à mão homens apontando armas para o alto no mercado outros empunhando uma foice e um martelo em meio a uma roda de ferramentas Numa das cenas em que posou como ator meu irmão conversa com um 165 Lembremos que não tão distante em 1959 houve a revolução cubana e nos anos 19691971 foi o período de desmantelo de grupos guerrilheiros brasileiros cujo sonho era realizar uma guerrilha no campo A única que se desenvolveu ocorreu entre 1972 e 1974 a guerrilha do Araguaia RIDENTI 2000 p 41 134 camponês e casualmente devolvelhe um facão Essa pequena tomada eu reparti em três segmentos para atribuir o caráter de metáfora MATTOS 2008 p133 As armas estão presentes no cotidiano popular sertanejo independentemente de seu filme porém isso não impediu que assumissem caráter ideológico naquele contexto político Também serviram para Carvalho realizar efeitos narrativos e metáforas como os planos de seu irmão devolvendo um facão a um camponês repartido em três segmentos portanto houve uma intencionalidade neste processo de montagem Já apresentamos a centralidade histórica da economia algodoeira que justifica a escolha do tema por Vladimir Carvalho Porém cabe inserir mais informações para compreender melhor o contexto paraibano com o qual o documentário dialoga A sétima sequência é aberta com uma narração grave em voz over que informa sobre a produção de algodão Ela descreve sua intensificação no século XIX com a Guerra Civil nos Estados Unidos e sua inserção econômica no mercado internacional Entre 1750 e 1930 o algodão foi um dos principais produtos nordestinos Os avanços técnicos europeus no século XVII permitiram o melhor aproveitamento dessa matériaprima tornando a matéria prima industrial do momento entrando para o comércio internacional em proporções que este desconhecia ainda em qualquer outro ramo até então o linho e a lã eram os materiais mais utilizados para os mesmos fins PRADO 2004 p131 No século XIX com os estudos de Arruda Câmara o algodão passou também a ser utilizado pela extração do óleo de sua semente a abertura dos portos de Recife ligando a região ao comércio inglês e depois ao francês também ajudaram a impulsionar essa economia Celso Furtado chega a afirmar que o algodão chegou a representar 50 da produção cafeeira diferentemente da anterior relação de menos de 10 em 1929 isso se deve à crise do café que volvera capitais para a economia interna e mesmo para a economia exportadora166 Vale comentar que esse boom algodoeiro não foi exclusivo da América mas ocorreu 166 Porém o algodão Ao manterse a procura interna com maior firmeza que a externa o setor que produzia para o mercado interno passa a oferecer melhores oportunidades de inversão que o setor exportador Criase em consequência uma situação praticamente nova na economia brasileira que era a preponderância do setor ligado ao mercado interno no processo de formação de capital A capacidade produtiva dos cafezais foi reduzida a cerca da metade nos quinze anos que seguiram à crise Restringida a reposição parte dos capitais que haviam sido imobilizados em plantações de café foram desinvertidos desinvestidos Boa parte desses capitais não há dúvida a própria agricultura de exportação se encarregou de absorvêlos em outros setores particularmente o do algodão O preço mundial deste produto havia sido mantido durante a depressão em benefício dos produtores e exportadores norteamericanos Os produtores brasileiros não deixaram passar essa oportunidade pois já em 1934 o valor da produção algodoeira preços pagos por produtor correspondia a 50 por cento do valor da produção cafeeira enquanto em 1929 aquela relação havia sido de menos de 10 por cento FURTADO 1976 p 197198 135 em outros lugares como o Sul dos Estados Unidos mas também no Egito Peru e na Índia OLIVEIRA 2008 p 167 Cabe ressaltar que a desorganização econômica gerada pela Guerra de Secessão nos Estados Unidos abriu uma oportunidade de expansão econômica do algodão brasileiro pois eram estes grandes fornecedores desse produto Esse aumento da produção algodoeira a nível nacional chegou ao Sul que rivalizou e superou a produção nordestina Porém a época de ascensão indicada por Furtado não foi tão boa para a Paraíba que não conseguira competir com o algodão paulista RÊGO 2008 p 105 No entanto com o declínio dessa cultura no Brasil ela foi restringida a alguns pontos O país inteiro foi atingido pelo boom Não seria aliás mais que isto um acesso de febre momentânea Com o declínio dos preços que se verificará ininterruptamente desde o começo do séc XIX conseqüência sobretudo do considerável aumento da produção norteamericana e do aperfeiçoamento da técnica que o Brasil não acompanhou a nossa área algodoeira vai se restringindo e se estabilizará com índices muito baixos apenas em dois ou três pontos PRADO 2004 p 150 Manuel Correia de Andrade indica ainda que a importância do algodão no século XX teria sido mais se não fossem a crise de 19291930 a praga da lagarta rosada e a expansão dos algodoais paulistas 2011 p159 ampliando nesse debate os fatores de declínio dessa economia Porém Gervácio Aranha indica que entre 1920 e 1930 houve um aumento da exportação do produto na Paraíba que chegou a ocupar o primeiro lugar no estado 1992 p143 É nesse momento que chegam as multinacionais na Paraíba gerando mudanças Apesar de um pequeno desenvolvimento industrial entre 1920 e 1940 a Paraíba permaneceu em estado eminentemente agrário167 Nas décadas de 1940 e 1960 o setor primário teve papel fundamental para sua economia e o setor secundário um crescimento que foi obstaculizado com a integração interregional que prejudicou a industrialização do 167 No documento Uma Política de Desenvolvimento para o Nordeste elaborado por Celso Furtado no Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste GTDN o economista aponta que havia uma evacuação de divisas para o Sul do país Apesar de um consistente volume de exportações do Nordeste tais divisas geradas foram transferidas para outras regiões do país o eixo CentroSul dado a política de controle das importações do período que fazia com que o comércio entre as duas estabelecesse relações desiguais Cf PDNE 1959 p26 A eminência agrária não da Paraíba mas do Nordeste já constava em Josué de Castro autor de grande influência para Vladimir Carvalho em Geografia da Fome 1946 como uma denúncia das desigualdades regionais e do atraso é preciso não esquecer que no Nordeste 74 de sua população ativa se ocupa nas atividades primárias da agricultura enquanto no resto do Brasil esta média é de 61 apenas Daí a maior necessidade do nordestino dispor de mais terra em condições favoráveis para tornála produtiva Condições praticamente inexistentes no atual sistema agrário regional Para evidenciar esta situação basta uma cifra 50 da área total do Nordeste são açambarcados por 3 dos seus proprietários rurais e é por isto que mais de 50 das propriedades contam com mais de 500 hectares de terra Ao lado deste latifúndio há a pulverização dos pequenos retalhos de terra os minifúndios improdutivos CASTRO 1984 p260 136 Nordeste pela do Sul com as quais não conseguia competir CITTADINO 2006 p234238 Ainda assim esse setor desenvolvido foi presente nos gêneros têxteis que se relacionavam à produção do algodão Embora o clima do sertão seja adequado para o algodão as secas também prejudicavam essa cultura168 É interessante notar que o cultivo do algodão é simples e foi realizado em larga escala no sertão Combinouse com a estrutura fundiária da pecuária sertaneja a criação de gado é a atividade econômica mais ligada ao latifúndio pois os grandes proprietários são sempre principalmente pecuaristas e só subsidiariamente agricultores Esta regra só é quebrada nos brejos onde as condições climáticas são desfavoráveis à criação de bovinos e onde a propriedade está quase sempre muito dividida ANDRADE 2011 p159 169 O arrendatário era a figura que dividia sua renda com os grandes proprietários eram conhecidos localmente como foreiros LEWIN 1993 p 66 MEDEIROS 2000 p 333 Como dito no sertão era mais presente a figura do agregado e do meeiro que continham relações mais diretas com o dono das terras170 Os meeiros eram os trabalhadores contratados através da meação sobre essa condição comenta Linda Lewin A verdadeira meação prevalecia em ambas as zonas sertanejas onde predominavam as árvores perenes de algodão Os meeiros recebiam dos proprietários tanto sementes de algodão como de cereais em alguns casos recebiam empréstimos sem juros para comprálas Em troca o meeiro trabalhava dois ou três dias por semana nas terras do proprietário e hipotecava uma parcela predeterminada de sua própria colheita de algodão usualmente uma saca de algodão cru Se ocorresse um desastre e a colheita fracassasse o meeiro tornavase um prisioneiro do proprietário no ano seguinte não apenas uma mas duas sacas de algodão cru seriam exigidas O trabalho forçado por dívida estava portanto implícito na meação LEWIN 1993 p67 168 No documento Uma Política de Desenvolvimento Econômico para o Nordeste Celso Furtado indica que entre 1948 e 1953 o algodão nordestino foi seriamente prejudicado por fatores naturais mas também pela política cambial GTDN p40 Dessa maneira fatores climáticos administrativos e sociais se combinavam na difícil situação dessa economia estando na preocupação de diversos intelectuais das mais diversas áreas na época 169 Sobre a diferença entre Brejo e Sertão na Paraíba identifica Gervácio Aranha entre Agreste e Sertão algumas diferenças se faziam presentes entre as duas regiões Eis alguns exemplos 1 Se no Agreste além do agregado e do meeiro era comum a figura do arrendatário que fornecia uma parte significativa da renda fundiária destinada aos grandes proprietários no Sertão praticamente inexistia a figura do arrendatário 2 No Agreste predominava o algodão do tipo herbáceo aderente ao caroço também conhecido como seridó ou algodão de fibra longa 3 Se no Agreste a área cultivada com algodão correspondia a menos de um terço da área total cultivada na Paraíba no Sertão a área cultivada com esse produto correspondia a mais de dois terços dessa área total 1992 p121 170 Sobre essa pluralidade de formas de relação do trabalho comenta Linda Lewin A considerável fragmentação no interior da força de trabalho rural facilitou o controle dos proprietários locais sobre os moradores Existiam divisões entre foreiros meeiros e posseiros especialmente favorecidos ou moradores que desfrutavam de privilégios maiores 1993 p 65 137 O narrador em voz over aborda a concentração de renda e monopólio dos meios de produção na figura do dono de terras apontando que é essa figura também geralmente dono da usina Indica ainda os altos juros cobrados por ele aos plantadores que endividados permanecem sujeitos à obrigação de seguirem plantando indefinidamente sem nunca usufruírem o resultado de seu trabalho O financiamento era feito pelos próprios donos de terra que o utilizavam para aumentar seu domínio sobre os trabalhadores Desta maneira o apanhador que sai apanhado indicado pela poesia no começo da sequência referese não apenas à dureza do trabalho concreto mas das relações exploratórias a que estes homens estão submetidos Identificamos um discurso que articula o subdesenvolvimento da região à desigualdade no sertão mas apropriandose também da crítica ao latifúndio Enquanto a narração em voz over oferece essas informações na mesma sequência exibese a imagem de uma balança rústica de corda e madeira que mede com pedras o peso do algodão produzido Um popular observa pensativo tenso a balança que pesa o algodão A imagem de S Miguel aparece intercalada hora na totalidade hora repartida em planos detalhe da lança da espada do dragãodemônio que tem a seus pés Sobreposição insistente fica alguns segundos em total silêncio Essa construção aproxima a luta do bem contra o mal e o conflito de classes Essa construção é semelhante embora não posta em termos explícitos entre o pensamento comunista brasileiro que opõe latifúndio e camponês opressão e submissão justiça e injustiça Embora não seja utilizada a palavra camponês o sertanejo a substitui enquanto personagem social que confirma uma tese pecebista da situação de miséria e exploração no sertão brasileiro A balança rústica e antiquada representa o atraso da região que gera malefícios para a economia principalmente para os trabalhadores rurais Outra referência influenciou o documentário de Vladimir Carvalho especialmente a sequência sobre a exploração do ouro no sertão O Garimpo de São Vicente de João Lélis Apesar do tema diferente o autor faz o seguinte comentário ao abordar a pesagem do ouro Aos pés das áreas de exploração cada garimpeiro cessando o trabalho voe em procura do seu comprador para fazer a permuta do ouro colhido no serviço Aproximase dele que está junto a uma mesa onde a balança espera o peso do metal para moverse Depõe o apurado em cima da concha da balança Feito o ajusto do peso quase que ditado pelo comprador concluise a transação Recebe em dinheiro o que entregou em metal ao cambio do dia Não é obrigatória a transação sendo porém obrigatória a pesagem porque é por meio dela que o achador paga ao proprietário do terreno em que faz a exploração a importância de uma côngrua equivalente a dez por cento sobre o apurado LÉLIS 2000 p1314 Lélis reitera as relações desiguais da produção no sertão e como o documentário usa 138 o símbolo da balança e articula a questão da injustiça indicando o ajuste do peso ditado Se em O País de São Saruê a balança assume uma expressão metafórica no texto de Lélis ela é mais do histórico e concreto Sabemos que o ajuste do peso é feito pelo comprador cuja pesagem é obrigatória para que o garimpeiro receba sua pequena parte dez por cento pelo trabalho executado nas terras do dono da mina O sistema de exploração e remuneração é semelhante à realizada na cultura do algodão Em ambos o menos beneficiado é o trabalhador primário No filme a figura do dono dos meios de produção só aparece na sétima sequência quando se entrevista o industrial José Gadelha que a personifica Enquanto os planos articulam a venda da produção camponesa aos conflitos do bem e do mal na imagem de São Miguel Arcanjo em construção mais abstrata a narração sobrepõe informações concretas sobre esse conflito de classe com a grande fome de algodão provocada pela Guerra Civil nos Estados Unidos a preciosa pluma assumiu o mercado internacional e se firmou definitivamente Em Sousa por exemplo o centro mercantil mais expressivo das terras do Rio do Peixe existem quatro grandes usinas com um faturamento anual de cerca de setecentos mil cruzeiros cada uma soma apreciável se considerarmos o atraso e o empirismo dos meios de produção O cultivo do algodão é feito como já vimos em regime de meação Aquele que detém a posse da terra e via de regra é também o dono da usina tem o privilégio do crédito nos estabelecimentos bancários Com esses recursos os donos da terra financiam os seus moradores cobrando juros cinco vezes superiores ao recebido Os lavradores impossibilitados de resgatarem suas contas após a partilha meio a meio de sua safra assumem a dívida permanecendo sujeitos à obrigação de seguirem plantando indefinidamente sem nunca usufruírem o resultado de seu trabalho CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 6 32553425 A narração circunscreve o lugar da realidade filmada Sousa Afirma diretamente o caráter do atraso e o empirismo dos meios de produção Reforça a informação sobre o regime de meação dessa cultura e relaciona a figura do dono da terra ao dono da usina ressaltando seu apoio recebido dos bancos pelo privilégio do crédito Contrasta essa última informação com os empréstimos que estabelecem uma relação de servidão com o trabalhador rural que após a partilha injusta de sua produção assumem a dívida permanecendo sujeitos à obrigação de seguirem plantando indefinidamente sem nunca usufruírem o resultado de seu trabalho Esta última passagem evidencia a relação predatória e espoliação do trabalho do sertanejo concordando com as denúncias das teses comunistas bem como a necessidade de crédito para os camponeses e o atraso do modo de produção O dono de terras não é exibido plasticamente contudo sua figura é relacionada ao dono da usina figura central que é exibida 139 depois na sequência seguinte reforçando a relação entre essas personagens sociais A sobreposição de imagens que articulam São Miguel Arcanjo e o trabalho camponês é feita durante a narração quando o narrador fala no dono de terras e da relação desigual com o camponês Apesar das conclusões da análise já ter sido apresentada vale a pena retomar as imagens e conferir a sobreposição dos planos durante a montagem CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 6 3435 O primeiro plano sequência adentra a casa rústica na qual se pesa o algodão Ali se encontram na parede diversas imagens de santos católicos e de Jesus Cristo ao centro em destaque a imagem de São Miguel Arcanjo depois enquadrada completamente É exibida a contradição da situação da pesagem e a presença religiosa como exibem os planos seguintes e a narração em voz over Ao mesmo tempo caracteriza a religiosidade sertaneja sugerida 140 nesses e em outros planos durante o filme Em seguida a montagem joga uma sobreposição insistente de planos nos quais o homem olha tenso a balança com seu algodão em planos anteriores mostra ele colocando sua produção em um prato do instrumento e no outro pedras e a imagem de São Miguel Arcanjo em detalhes A tensão é aumentada pela presença dos elementos do cigarro da mão que segura a corda e pelo enquadramento que se aproxima do rosto do agricultor cada vez mais a cada plano alternado mostrando sua expressão tensa No último plano as cordas poderiam até sugerir uma prisão como barras de uma prisão semelhante à imagem da gaiola articulada anteriormente ao exibir a família camponesa A tais planos é articulado o discurso sonoroverbal sobre o contrato de meação da dívida infindável do sertanejo com o patrão materializando o contexto econômicosocial de injustiça e exploração sugerido em metáforas Alternadamente a imagem de São Miguel Arcanjo é quebrada para alcançar diversos significados a primeira mostra ele pisoteando o diabo remetendo a um conflito e a luta do bem contra o mal em seguida os detalhes mostram a face feiosa do diabo nesta hora se fala dos donos de terra o arcanjo empunhando a espada sugerindo a necessidade de lutar contra este inimigo e por fim a balança símbolo que como vimos cambia entre o símbolo da justiça mas também da injustiça Seria essa justiça ideológica e superestrutural como indicada por Carlos Estevam Martins no Anteprojeto do Manifesto do CPC ou seja um elemento da cultura popular que tenta compreender a realidade com os limites do povo O símbolo anda entre a concretude da balança rústica que efetivamente no filme denuncia uma situação de atraso e exploração e o de São Miguel Arcanjo que pode sugerir a necessidade de lutar por justiça eou a necessidade de sair do âmbito ideológico religião para a concretização no mundo social revolução Os efeitos de simpatia e rejeição nas figuras do arcanjo e do diabo também podem ser transferidos para a polarização exploradorexplorado sobreposta neste discurso O conteúdo da narração é idêntico às denúncias realizadas pelos comunistas a exploração dos latifundiários através das relações de trabalho no regime de meação pela posse da terra e pela ausência de um financiamento justo aos agricultores presentes na Declaração de Março PCB 1958 p13 Segundo Leonilde Medeiros a década de 1950 e 1960 foi um momento de visibilidade nos conflitos do campo O termo camponês passa de um mero adendo de até então para um esforço de organização desse setor após a queda do Estado Novo quando a reforma agrária ganhou maior centralidade MEDEIROS 2000 p 214 Nesse momento se consolidava a imagem da submissão do trabalhador ao latifundiário e seu inimigo o latifúndio 2000 p 219 Essa afirmação pode ser corroborada por Carlos Alberto Dória quando afirma que houve uma passagem na primeira metade da década de 1950 141 da questão das medidas de combate à seca à estrutura fundiária referindose a essa questão já em discurso de Getúlio Vargas em 1953 DÓRIA 2000 p 251 No processo de significação latifúndio não simbolizava mais apenas uma grande extensão de terra mas uma relação de exploração e opressão171 Contudo no documentário não ouvimos os termos camponês ou latifúndio Há menção a sertanejos tangerinos vaqueiros ou ao dono de terras Mas a voz do narrador verbal não usa tais termos talvez por uma opção de se aproximar ao vocabulário local ou pelo contexto de ditadura militar Porém como vimos o conteúdo de classe está presente em diversas formas construindo um discurso que problematiza a opressão entre latifúndio e camponês Daí a importância de uma análise estética e semissimbólica que nos auxilie a compreender o discurso elaborado de maneira alegórica e visual em O País de São Saruê172 Na Declaração de Março de 1958 o PCB apostava no desenvolvimento do capitalismo no Brasil enxergando que este seria necessário para a modernização e desenvolvimento das forças produtivas nacionais a revolução nacional e democrática para só então chegar ao socialismo uma visão etapista de processo histórico Apostavam nas reformas dentro do Estado Burguês capitalista através da luta por uma configuração interna de forças políticas que propiciassem tais mudanças a fim de alcançar o socialismo Sua política também detinha um cunho pacificista não propunham uma revolução insurrecional mas uma política de apoio ao movimento nacionalista para reformas e uma aliança de classes que incluía setores diversos como camponeses operários pequena burguesia urbana e uma burguesia nacional como chamavam um setor da burguesia interessado no progresso nacional e setores do próprio latifúndio Estas teses influenciaram não apenas nos discursos políticos e na linha dos militantes mas chegaram ao próprio imaginário e na produção cultural artística como identificamos em O País de São Saruê Apesar de toda a mudança na conjuntura do regime militar ainda em 1966 na publicação das Teses para o VI Congresso 1966 havia a proposta do partido de derrota da ditadura militar ainda por uma aliança com a burguesia nacional e através de um caminho 171 É interessante notar como Leonilde Medeiros mostra que o próprio processo de significação e construção do que era o camponês para fins políticos lançou mão de termos localmente conhecidos para se concretizar colonos moradores eram identificados como assalariados termos de significação mais adequado ao léxico revolucionário A divisão da produção a meia e a terça eram chamadas de parceria de arrendamento por exemplo Transformar tais relações précapitalistas semifeudais eram suas metas ou seja estabelecer jornada de oito horas repouso remunerado férias fim do desconto habitação consolidar as leis e carteira trabalhistas Já para os posseiros a defesa era da permanência na terra MEDEIROS 2000 p232233 172 O tema da reforma agrária também apareceu de maneira mais organizada a partir do IV Congresso de 1954 e na Declaração de Março foi proposta uma frente ampla no campo Essa frente antiimperialista e antifeudal como já indicamos anteriormente procurava unir diversos setores que eram considerados estratégicos para revolução nacional e democrática almejada pelo PCB 142 pacífico para a revolução GORENDER 1987 p 90 À época do filme ainda permanecia na linha oficial do partido essencialmente tal proposta bem como no imaginário e horizonte político de muitos militantes173 Essa discussão não era porém homogênea174 A década de 1950 conheceu um deslocamento do discurso climático para o social no entendimento da problemática rural camponesa aos quais podemos somar os exemplos do discurso de Getúlio em 1954 defendendo a desapropriação das terras marginais aos açudes públicos a publicação de uma série de reportagens de Antônio Callado mostrando a estrutura fundiária por trás do discurso da seca tudo isto fomentado pelas secas pelas quais passara o Nordeste em 1951 1952 e 1953 a cobrança de Josué de Castro então deputado federal por Pernambuco que cobrara ao executivo ações para mudar a estrutura econômica nacional pautando uma reforma agrária DÓRIA 2000 p 251253 Este último nos é particularmente interessante pois seu livro Geografia da Fome 1946 foi uma influência para Vladimir Carvalho indicada pelo cineasta para entender sua crítica em O País de São Saruê175 Josué de Castro indicava a relação entre o latifúndio e a miséria a baixa produtividade e o atraso da região tese presente em Geografia da Fome 1946 O geógrafo comunista mapeou a miséria no Brasil traçando um quadro dos tipos de alimentação no país e seus efeitos sociais Detémse bastante sobre o Nordeste sobre o qual afirma que A luta contra a fome do Nordeste não deve pois ser encarada em termos simplistas de luta contra a seca muito menos de luta contra os efeitos da seca Mas de luta contra o subdesenvolvimento em todo o seu complexo 173 Na Resolução Política de 1967 o PCB assumia a tática de uma frente antiditatorial com os mesmos setores ainda incluindo a burguesia nacional que teria uma oposição limitada GORENDER 1987 p 175 Assim mesmo em 1967 no regime militar ainda fazia parte da tática oficial do PCB a frente com setores progressistas incluindo a burguesia nacional como via para uma revolução pacífica nacional e democrática Em 1973 a documentação afirma que a ditadura militar se transformara de uma ditadura reacionária em uma ditadura fascista e o PCB propunha uma frente patriótica antifascista que também abrangia diversos setores Propõe que todas as forças prejudicadas pelo carácter fascista assumido pela ditadura militar se unam numa ampla frente patriótica antifascista incluindo desde a classe operária o campesinato a pequena burguesia urbana até os sectores da burguesia em choque com o regime desde as forças políticas oposicionistas até os sectores arenistas divergentes do carácter fascista do regime PCB 1973 p 216217 174 Entre os intelectuais do partido Alberto Passos Guimarães cuja elaboração teórica sobre o campo em Quatro séculos de latifúndio 1963 representava bem o pensamento oficial pecebista tinha opositores dentre os quais se tornara mais famoso Caio Prado Júnior ao realizar sua dura crítica ao partido em A revolução brasileira 1966 Os conflitos sobre a realidade rural brasileira no entanto antecediam essas publicações Outro elemento importante foram as dissidências do PCB durante a década de 1960 cujos grupos assumiam posições mais radicais rompendo com a saída nacional democrática preconizada pelo partido Muitos influenciados pela revolução cubana pelo foquismo ou pelo maoísmo propunham outras saídas seja a guerrilha urbana ou rural Daí que a centralidade ou não do campo ou qual era a luta a ser feita no campo armada sindical ou pela reforma agrária não eram consensuais entre essa esquerda brasileira 175 Afirmação realizada a uma pergunta nossa por Vladimir Carvalho em uma mesa redonda no 7º Fest Aruanda junto com as documentaristas Isa Grispum e Lúcia Murat moderado por Maria Rosário Caetano realizado em João Pessoa no dia 12 de dezembro de 2011 Programação disponível em httpwwwfestaruandacombrprogramacaophp Acesso em 16 de junho de 2014 143 regional expressão da monocultura e do latifúndio do feudalismo agrário e da subcapitalização na exploração dos recursos naturais da região A meu ver todo o sistema de fatores negativos que entravam as forças produtivas da região são oriundos da arcaica estrutura agrária aí reinante Todas as medidas e iniciativas não passarão de paliativos para lutar contra a fome enquanto não se proceder a uma reforma agrária racional que liberte as suas populações da servidão da terra pondo a terra a serviço de suas necessidades CASTRO 1984 p 260 Ainda na época do golpe militar havia uma opinião pública segundo a qual a estrutura agrária que beneficiava oligarquias nordestinas deveria ser alterada DÓRIA 2000 p 254 Josué de Castro foi uma influência reconhecidamente direta assim como Celso Furtado que também denunciava problemas na estrutura agrária nordestina Se os outros autores como Alberto Passos Guimarães e Caio Prado Júnior não foram necessariamente lidos pelo cineasta os quais são vistos como os maiores expoentes do debate comunista há que se destacar que essas ideias circulavam entre intelectuais e artistas vinculados ao romantismo revolucionário influenciando suas leituras sobre a realidade social brasileira A citação de Josué de Castro acima se aproxima da concepção de Alberto Passos Guimarães representante da ideologia oficial do partido sobre o campo Ambos encaram a região como subdesenvolvida por um feudalismo agrário e seu atraso Esse debate está no centro de nosso esforço de relacionar o documentário enquanto oriundo da formação do documentarista mas também um agente que procura se inserir no debate sobre a realidade brasileira e rural Enquanto se delineava a representação do Brasil do Milagre Econômico O País de São Saruê na contramão mostrou um país miserável e pobre No entanto cabe sempre ressaltar este documentário possui sua originalidade pela maneira poética e autêntica na própria linguagem cinematográfica e no conteúdo pela qual narra a realidade rural sertaneja O documentário não apenas reproduz uma ideologia mas a reelabora junta outras possibilidades e fornece uma elaboração sofisticada e artística diferente das outras que se identificavam enquanto discursos científicos 53 O gavião sobrevoa um reino desencantado a entrevista com José Gadelha O documentário passa de um âmbito mais geral para uma realidade mais particular na sétima sequência O País de São Saruê mostra Sousa e suas usinas Indica ainda a presença das multinacionais e aponta a força comercial daquela região Já no século XIX Sousa fazia parte do circuito mercantil estando em uma das principais rotas das carroças dos tropeiros que trafegavam com produtos para o comércio no 144 então centro comercial da Paraíba Campina Grande Sousa tinha relativo destaque na década de 1933 quando as rodovias foram melhoradas detendo um bom número de caminhões além de ser ligada à estrada de ferro pela qual circulavam as mercadorias no estado O destaque de Sousa é reconhecido ainda na década de 1960 e 1970 pois beneficiada pelas rodovias e pela energia elétrica era um dos lugares de concentração das atividades industriais176 Na época do documentário 1960 a Paraíba sofrera significativas transformações e o transporte precário do algodão que era realizado pelos tropeiros até 1940 foi substituído pelos caminhões Foi também uma época de substituição das pequenas prensas e bolandeiras a vapor onde descaroçavam e prensavam o algodão retirado pelas usinas que se tornaram mais presentes na produção algodoeira do estado ARANHA 1992 p 294295 Isso aumentou a concentração de riqueza e a evasão de investimentos para o exterior pois as usinas eram de empresas multinacionais Ao mesmo tempo o algodão não era mais um produto apenas de exportação mas direcionado a empresas têxteis brasileiras já consolidadas no Brasil Outro produto também extraído do algodão era o óleo Como vimos o primeira etapa desse processo o cultivo e colheita detinha menor riqueza e estava mais precarizada em todo o processo Adquirido a preços baixos pelas relações de poder que caracterizavam a região o produto era refinado e revendido fazendo a riqueza daqueles que estavam no setor comercial e industrial que detinham vinculação com o latifúndio A própria má distribuição de terra e ausência de financiamento eram fatores que permitiam a manutenção dessa dominação dos pequenos agricultores e da aquisição de seu produto a preços baixos Vimos que o documentário mostra na sexta sequência essa realidade do agricultor relacionandoa a luta do bem contra o mal nas figuras de São Miguel Arcanjo e do Satanás intermediados pela balança símbolo da justiça mas ao mesmo tempo também exibe uma relação econômica concreta enfrentada pelo sertanejo segundo o ideário político pecebista acerca da questão agrária da realidade camponesa brasileira As cenas seguintes mostram a etapa industrial da economia do algodão Vladimir Carvalho entrevista um latifundiário político e dono de usina José Gadelha177 Inicialmente 176 No governo de João Agripino 19651971 as rodovias e a energia elétrica foram preocupações do Estado visto que a carência de energia e de meios de transporte fazia com que as atividades industriais se concentrassem ou próximas ao litoral ou em alguns centros urbanos do Estado Sousa Patos e Campina Grande CITTADINO 2006 p 244 177 Os Gadelha representaram uma oligarquia paraibana que dominou Sousa durante um bom tempo José Paiva Gadelha é irmão de André Gadelha eleito como vicepresidente junto a Pedro Gondim um dos responsáveis pela intensificação da repressão aos camponeses à época do golpe militar na Paraíba À época das gravações do documentário no entanto Antônio Mariz seu opositor foi eleito prefeito de Sousa A família Gadelha ainda permaneceu atuando na política seja em Sousa ou na Paraíba como se vê por Salomão Benevides Gadelha filho de José Paiva Gadelha que assumiu a prefeitura de Sousa em meio mandato em 2002 e em um completo em 2004 Coordenou campanhas para deputado de Marcondes Gadelha e Léo Gadelha onde 145 os planos são articulados a uma voz over que informa sobre prejuízos trazidos para donos de terras e trabalhadores pela inserção de empresas estrangeiras na região Em seguida o áudio cede lugar à entrevista com José Gadelha Essa personagem fica entre uma ambiguidade de vítima do imperialismo e algoz dos trabalhadores locais Entendemos que isso se relaciona ao imaginário político da esquerda ligada ao PCB de uma possível aliança entre o proletariado rural e a burguesia localnacional para realizar um projeto nacional e democrático ainda presente da década de 1970 A entrevista com Gadelha possui sete minutos Vladimir Carvalho deixa o entrevistado à vontade para falar de si Gadelha fala sobre suas conquistas e de sua família suas realizações econômicas e políticas em Sousa e seu desejo de conseguir ser eleito como deputado federal 178 Através da montagem o discurso de autorrepresentativo de Gadelha assume no documentário a função de representar a ideologia dominante da elite do sertão Realizase uma crítica ao discurso de Gadelha que se torna o antagonista dos populares apresentados até então Analisamos essa construção do documentário levando em consideração a autorrepresentação de José Gadelha que almeja um cargo político e o uso subvertido dela pela montagem de Vladimir Carvalho Inicialmente chama nossa atenção três aspectos da trilha desta sequência o primeiro referese à música que acompanha a longa entrevista uma música alegre e regional ao som de pífano já ao final da entrevista surgem tambores fortes negros o segundo a fala de José Gadelha um homem que sabe como bem se expressar passando credibilidade sua entonação é tranquila afável simpática por fim a voz de Vladimir Carvalho presente no áudio da entrevista ouvimos suas perguntas registrando no documentário o diálogo entre entrevistador e entrevistado o que não era uma técnica recorrente no documentário brasileiro à época No áudio temos uma música simpática à Gadelha alegre mas que também não combina com o clima empostado de sua fala Ela também tem caráter popular Em nível de expressão há um contraste entre o som da música e a gravidade da fala de Gadelha possivelmente para reforçar este último caráter diminuindo sua credibilidade Esse contraste também é reiterado se compararmos expressão e conteúdo pois o tema da fala é sério as conquistas materiais de Gadelha e de sua família e a situação do homem no sertão contrastando com a sensação sugerida pela música Este contraste é mais profundo quando analisamos os planos imagens exibidos com o som Essa afirmação se torna mais possível pela existência de outras entrevistas As que são oferecidas maior credibilidade são de Charles ambos saíram vitoriosos Disputou ainda em 2010 o cargo de deputado estadual pelo PMDB 178 A transcrição do áudio da entrevista no filme se encontra disponível nos Anexos B p196 146 Foster e Antônio Mariz neste último por exemplo não há nenhum som competindo e as imagens reforçam a fala dele Comparamos o uso das entrevistas mais à frente Atemonos agora a como a entrevista de Gadelha é articulada aos elementos visuais da sequência Os planos dessa sequência mostram a usina a cidade José Gadelha e os operários da indústria algodoeira Observando os objetos dos enquadramentos temos essa tabela Quantidade de planos Observações Trabalhadores 15 Trabalhadores na indústria do algodão incluindo planos médios e closes José Gadelha 12 Planos médios de José Gadelha na SANBRA closes e seus veículos carro e avião Neutros 10 Mostram a cidade de Sousa ou a indústria com ou sem homens Mistos 02 Mostram José Gadelha e os trabalhadores juntos Total 39 Tabela construída a partir do roteiro de O País de São Saruê publicado pela Embrafilme em 1986 Organizamos os planos a partir da oposição entre trabalhadores e patrão Por isso são necessárias considerações sobre nossos critérios para a elaboração desta tabela Categorizamos como trabalhadores os planos que mostram homens em atividade na indústria do algodão Ficaram de fora planos que mostram homens mas que não estavam trabalhando diretamente nesta mesmo sendo possíveis funcionários da usina Os planos do patrão estão representados pela imagem de José Gadelha direta ou naqueles que o mostram chegando em um carro galaxie preto e ao final na sua partida em um jato particular mesmo quando se mostram apenas os veículos pois entendemos esses objetos como extensões da personagem Foram categorizados de planos mistos aqueles nos quais Gadelha aparece junto aos trabalhadores e de neutros aqueles nos quais são exibidas imagens da indústria e da cidade com ou sem homens que não estão em atividade na indústria e sem Gadelha Privilegiamos assim considerar planos de trabalhadores aqueles mais explícitos por temer que uma maior abrangência pudesse tornar pretensiosas ou invalidar nossas conclusões Os planos que mostram os trabalhadores somandoos em geral são mais longos e maiores em número que os que mostram Gadelha Durante eles ouvimos em grande parte a voz de José Gadelha sendo esta uma personagem que mesmo ausente em imagem está presente no som Quantificamos os planos para mostrar que ainda quando Gadelha fala sobre si suas conquistas e sua família Vladimir Carvalho privilegia mostrar os trabalhadores Uma 147 construção possível e mais interessada no conteúdo referente à figura de José Gadelha poderia mostrar o tema do discurso em imagens com fotografias da família por exemplo mas isso acontece muito pouco Em geral há imagens mostrando a cidade planos neutros e os trabalhadores estes últimos em maior número como indicamos Emerge daí significativos momentos de antítese entre som entrevista e imagem trabalhadores Nesse sentido Vladimir Carvalho se aproxima do que o teórico e cineasta russo Sergei Eisenstein propõe como uma dialética do cinema pela qual se criaria significações através da montagem no contraponto de elementos de antítese na sucessão de planos e no uso do som179 Essa indicação do plano estético também está presente no plano de conteúdo Seguem dos referidos planos dos trabalhadores e de José Gadelha 179 Sergei Eisentein 18981948 foi um russo cineasta e teórico do cinema dos mais importantes para a história do cinema Seus filmes revolucionaram a visão sobre cinema especialmente do processo de montagem Sobre a dialética da montagem tal discussão é indicada por Jacques Aumont e Michael Marie quando afirmam que esta noção era ampliada por Eisenstein não ficando restrita ao enquadramento sucessão de planos ou a imagem mas ao próprio uso de som Eisenstein pensou o som não de maneira redundante e submissa à imagem reforçando seu tema ou oferecendo uma impressão de realidade mas os sons participariam em pé de igualdade com a imagem e com certa autonomia na constituição de sentido que pode reforçar as imagens contradizêlas ou manter um discurso paralelo AUMONT MARIE 1995 p85 148 CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 7 3520 3710 O primeiro plano localiza o espaço concreto onde são mostradas as imagens uma usina filiada à SANBRA180 No segundo plano temos um homem levando um grande fardo de algodão valorizando a dificuldade do trabalho pelo tamanho espetacular do carregamento Depois temos alguns planos da chegada de carro de Gadelha descrita por Vladimir Carvalho no roteiro da seguinte maneira Um galaxie preto enorme luzindo ao sol entra pelo portão da fábrica É um contraste com o ambiente negrito do autor CARVALHO 1986 p 75 O carro realmente contrasta com o espaço de trabalho anterior rústico e difícil com seu brilho e luxo As roupas de José Gadelha e dos trabalhadores sua pose tranquila e relaxada em contraponto com os corpos tesos de trabalho em esforço físico contínuo as expressões também se opõem rígidas e tranquilas até mesmo suas cores Gadelha branco e os trabalhadores negros Nos três planos seguintes vemos Gadelha olhando dono da situação 1086 p75 como descreve Carvalho Nos três últimos planos vemos homens negros levando os sacos de algodão enquanto em outro plano Gadelha passeia tranquilamente em meio ao ambiente de trabalho Em nível de conteúdo podemos afirmar que se opõem a categoria geral patrão e trabalhador nas imagens de Gadelha e de seus funcionários seres concretos filmados respectivamente As imagens relaxadas e tranquilas de Gadelha andando pela sua fábrica cuja figura está em cenário aberto mostrando acima de si o céu ou espaço vazio opõese aos trabalhadores em esforço físico e sob opressão representada pelos fardos que levam sobre as costas peso que os oprime Ela é exibida após várias sequências que mostram a dureza da vida sertaneja e da sua miséria com indicações da apropriação do trabalho por outros Essa construção traz uma antipatia por Gadelha e uma simpatia pelos trabalhadores Essa oposição é construída de outras maneiras Examinemos outros planos significativos Cada linha da sequência da tabela representa uma cena 180 A SANBRA era uma filial estrangeira muito presente no Nordeste brasileiro atuando na área de circulação da mercadoria algodão Francisco de Oliveira 2008 p 169 e Gervácio Aranha 1992 chamam atenção para a presença desta e outras empresas estrangeiras aquele no Nordeste e este na Paraíba 149 CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 7 3816 4002 Na primeira um carro bonito chega acompanhado pelo enquadramento até que ele passa por trabalhadores A câmera permanece com os trabalhadores enquadrandoos enquanto assistimos a poeira deixada pelo carro se assentar Nessa construção estão opostos o carro de luxo e os trabalhadores Embora não seja necessariamente esse o carro de Gadelha ele é um objeto que foi relacionado ao patrão anteriormente Opõese conforto e esforço a posse riqueza e a necessidade de trabalho pobreza A passagem do carro deixando a poeira pra trás é uma construção muito utilizada no cinema com poeira ou com poças de água para demonstrar indiferença ou desprezo por aquele que dirige e quem está à margem na rua ou uma situação de marginalidade A figura do carro também mostra poder e domínio A imagem de um homem no carro como símbolo do poder força e vitalidade era comum em propagandas em meados do século XX e ainda hoje 150 A segunda linha da tabela mostra a oposição entre os closes de Gadelha e de uma trabalhadora as expressões reforçam o grande contraste entre patrão e empregado o leve sorriso de Gadelha seguido da tensão da senhora no close enquadramento utilizado para valorizar os sentimentos das personagens produz uma menor simpatia pelo primeiro Por fim a terceira linha faz uma construção parecida com uma já utilizada na sexta sequência este homem apesar de trabalhar com o algodão está vestindo uma curta roupa de péssima qualidade feita com restos de material no qual trabalha Reforçase o contraste entre produção e consumo já referido anteriormente mas também entre as vestes do proprietário que está bem vestido e de seu trabalhador maltrapilho A oposição construída é oprimidoopressor pobrezariqueza181 Não é apenas a figura particular histórica de José Gadelha que é apresentada mas uma oposição abstrata e geral entre patrão e operário Em síntese os planos alternados são trabalhados formando uma dialética entre eles opondo as figuras do opressor e do oprimido Dos 39 planos exibidos na sétima sequência predominam os planos que mostram os trabalhadores em péssimas condições realizando trabalhos difíceis e em más condições Eles são exibidos enquanto se ouve a entrevista de José Gadelha durante toda a sequência formando outra antítese Isso influencia a recepção do discurso de Gadelha que embora se apresentando da melhor maneira possível com fala bem articulada e demonstrando conhecer aquela realidade possui na contramão elementos sonoros leves que podem até passar despercebidos mas que influenciam na leitura a música de pífano e os tambores e o discurso apresentado em imagens as quais reforçam o caráter de denúncia pela predominância da imagem dos trabalhadores ao mesmo tempo compensam a predominância da voz do usineiro Mas de quê fala este sujeito José Gadelha fala sobre suas posses e as realizações para a gente de Sousa Seu tom de voz empostado combinado às imagens pode o tornar menos simpático ao público A entrevista se inicia apresentando o crescimento de sua família seu sucesso comercial182 Em 1933 iniciamos a nossa vida comercial arredando uma bolandeira do saudoso José Avelino de Oliveira no sítio Pompéia Em 1936 compramos um mecanismo à margem do rio do Peixe que circunda a nossa cidade ao falecido Júlio Marques de Melo Em 1958 transferimos este mecanismo 181 Vale ressaltar que como bem indica JeanClaude Bernardet é necessário uma predisposição para sentir simpatia ou antipatia pelos personagens Há uma variação inesperada no processo de recepção de um filme a depender do público Para o autor essa construção de uma simpatia ou antipatia é indicativa de um público potencial ao qual o filme se dirige 2003 p39 182 Apesar da entrevista ser exibida como se não houvesse cortes cabe sempre lembrar que o áudio também sofre edição no processo de montagem A entrevista certamente teve cortes pois se precisa selecionar o material de entrevista que geralmente é maior que o filme comporta tanto pelo tamanho como pelo interesse do cineasta Nesse processo podese mudar a ordem da fala e omitir alguns trechos 151 obsoleto para a cidade com novas instalações daí nasceu o nosso êxito na vida comercial Construímos mais uma fábrica de óleo construímos também uma fábrica de doces Montamos um cinema E agora estamos concluindo uma montagem de rádio que aliás está dando muito trabalho em face da politicagem mesquinha que se está travando em torno dela CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 7 3711 3800 Essa explanação mostra como a família alcançou consistente acúmulo de capital e expandiu seus investimentos na cidade usina de açúcar fábrica de óleo fábrica de doces um cinema e uma rádio Sua família possui grandes posses as quais não se resumem à indústria do algodão área comercial mas presentes em outras áreas industriais óleo doces e até midiática o cinema e a rádio183 Aliás o ano de 1933 é significativo pois A Paraíba até então a maior produtora de algodão perdeu após 1932 sua primazia A causa mais visível de tal decadência foi a grande seca daquele ano mas sua motivação profunda era a concorrência mais profissional e eficaz dos paulistas RÊGO 2008 p 105 Dessa maneira é possível que a aquisição de Gadelha fora possível nesse contexto de crise que não era restrita apenas ao algodão É significativo que Gadelha no discurso do filme não ressalta a produção do algodão apesar deste ser o tema do filme Seu discurso se concentra mais em uma propaganda de seus feitos para usos políticos Além disso sua participação na economia do algodão aparentemente era menos na produção que em seu circuito mercantil Vários médios e pequenos agricultores deviam vender a sua produção a José Gadelha industrial e atacadista que dali construía parte de suas riquezas Cabe ressaltar que após 1950 a indústria têxtil brasileira já estava desenvolvida e o algodão produzido no sertão era enviado diretamente para fábricas têxteis do Nordeste não sendo mais voltado em sua maior parte à exportação ARANHA 1992 p 170 Além disso além da fibra outro produto fazia a riqueza de alguns poucos o óleo do algodão De qualquer maneira a indicação de suas posses permitenos identificar seu poder econômico e poder político o que é mais explicitado em seguida Temos feito alguma coisa por nossa cidade já doamos a Sousa uma maternidade das mais bem equipadas do interior do estado Doamos um terreno para a escola de treinamento doamos um terreno para o DNOCS 183 No final da década de 1960 a TV ainda não detinha o poder de difusão que possui hoje Além disso não estava presente em todo o país especialmente nos interiores nordestinos Porém o rádio era um grande veículo de transmissão de informações e de ideologia assumindo grande papel político É importante ressaltar que o poder da família Gadelha então não se restringia ao poder econômico que já era enorme mas chegava ao âmbito político institucional e radiofônico ideológico 152 doamos um terreno para a construção do Hospital Regional de Sousa Doamos também um terreno para a construção da Coletoria de Sousa É um prédio pomposo que honra nossa cidade E há poucos meses atrás comprei um hotel o Gadelha Palace Hotel o terceiro do estado da Paraíba Isso com a finalidade única de ajudar à minha terra e à coletividade CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 7 3800 3845 José Gadelha procura se mostrar como um homem generoso que se preocupa com sua terra e seus habitantes Por isso apresenta suas doações de maneira altruísta No entanto este apadrinhamento era instrumento de poder político tais empreendimentos aumentavam sua influência na região O documentário não traz informações sobre a efetivação ou as intencionalidades do latifundiário com estas obras Ficamos apenas com sua versão Porém como vimos a sinceridade de suas intenções é um tanto questionada no documentário pela montagem na exibição das imagens das condições de seus próprios trabalhadores A figura da família e do coronel foram alvos de inúmeros trabalhos cujas contribuições podem ser interessantes para pensar a figura de José Gadelha Assim André Heráclito do Rêgo indica as contribuições de Victor Nunes Leal com Coronelismo enxada e voto 1949 para pensar elementos como que a vitalidade do poder dos coronéis em uma dada região era inversamente proporcional ao crescimento das cidades o isolamento sendo assim um fator fundamental na formação e na manutenção do fenômeno e que o coronelismo era um compromisso entre o poder privado decadente e o poder público reforçado Indica ainda que para Maria Isaura Pereira de Queiroz reforçou a fortuna e qualidades pessoais que possibilitavam ao indivíduo chegar a ter esse poder mas também o caráter carismático que lhe permitia obter a adesão afetiva e entusiástica de outros homens RÊGO 2008 p1617 Monique Cittadino indicou que os estudos posteriores a Leal transformaram faces do coronelismo o mando ou as práticas clientelísticas e assistencialistas no seu elemento definidor permitindo a historiografia trabalhar com a perspectiva da sobrevivência do coronelismo Para ela sobreviveram à Revolução de 1930 e posteriormente ao Estado Novo as permanências do arcaico num contexto que tendia a se modernizar Ou seja características presentes no coronelismo mas não exclusivas dele o poder local e o exercício do mando a presença do chefe político o controle do eleitorado através de práticas assistencialistas e clientelistas à existência de parentelas etc Uma série de elementos que embora presentes no coronelismo não permitem a afirmação da sua presença dos dias que correm CITTADINO 2006 p47 Por isso não encaixamos José Gadelha na figura de coronel podemos afirmar no 153 entanto a presença de elementos que sobreviveram às práticas características desse tipo sociológico sendo possível identificar em seu discurso elementos de uma parentela ao citar seu irmão que foi vicegovernador do Estado reafirmar as suas obras e doações a fim de conseguir empatia do público caracterizando um assistencialismo Sabemos por outras fontes sobre o poder dos Gadelha oligarquia que dominou a política de Sousa Era uma oligarquia ligada à economia do algodão e cuja presença parentelística na política persiste até hoje Na apresentação de si José Gadelha busca simpatia do público e mostrar conhecimento sobre seu redor Enumera suas doações de terrenos o que nos permite identificar que os Gadelha não apenas eram donos de terras significativas mas detinham poder político e prestígio social carisma que certamente sua família alcançara com esses investimentos Quando questionado sobre sua opinião acerca da situação do homem do campo responde que é uma gente sofrida e atribui esta situação a um desprotegimento dos governos federais estaduais e municipais Também afirma que falta crédito dos bancos para que eles possam se desenvolver Ainda diz que são uma gente que nunca deixou de ser endividada Aparentemente para Gadelha a solução para a pobreza está no auxílio do Estado ou dos bancos Pelo discurso do documentário apresentase no processo de cambão e na dificuldade de ter uma consistente agricultura de subsistência era difícil para o trabalhador levar uma vida sem miséria O discurso de Gadelha entra em discordância com os elementos anteriormente apresentados da pesagem do algodão da injustiça da balança sertaneja contradição provocada pela montagem de Vladimir Carvalho O endividamento era parte do sistema que prendia os agricultores aos favores dos donos de terras Isto é explicitado na sequência seis portanto antes desta entrevista com Gadelha Embora não dito diretamente que esta era a situação dos trabalhadores de Gadelha a montagem e a narração interior sugerem afirmando que esta era a realidade dos trabalhadores de Sousa e que o dono de terras era geralmente o dono da usina O historiador Gervácio Aranha mostra que essa era uma realidade na Paraíba indicando um padrão nas relações de trabalho na produção do algodão Os pequenos agricultores em sua maior parte trabalhavam em terras de outrem e não encontravam nenhuma facilidade de financiamento No Sertão por exemplo em geral esses agricultores estavam sujeitos à morada e conseguiam no máximo cultivar algodão de meia nas terras dos grandes proprietários apenas recebendo um adiantamento a título de empréstimo a ser pago com a metade conseguida na colheita Já os pequenos agricultores que trabalhavam em terra própria frequentemente se submetiam aos inúmeros intermediários que forneciam adiantamentos comprando o algodão ainda na folha Eles estavam espalhados por todo o Sertão ARANHA 1992 p 210211 154 Podemos identificar que a maior parte dos trabalhadores do algodão trabalhava nas terras de grandes proprietários morando em suas propriedades eou mantendo um vínculo de dominação pelo empréstimo que recebiam a ser pago com metade da colheita Outra possibilidade era dos pequenos agricultores que possuíam alguma terra mas que também se inseriam em uma relação de dominação ao se endividarem com os compradores de algodão Gervácio Aranha aponta ainda uma terceira situação do agricultor o trabalhador assalariado mais conhecido no Sertão da Paraíba como braço alugado Requisitado tão somente nos momentos de limpa corte da terra e colheita sua condição de vida no trabalho além de miserável era bastante instável O braço alugado na verdade ganhava pouco e trabalhava duro sendo considerado o mais miserável dentre os trabalhadores sertanejos sua condição de trabalhador de aluguel o tornava marcado por um certo estigma como se essa condição fosse uma espécie de marca registrada da inferioridade ARANHA 1992 p 212 Havia assim uma terceira possibilidade a mais miserável e mais mal vista localmente que era o trabalho assalariado ou o braço alugado Apesar dos já referidos instrumentos de dominação a morada e a propriedade de terra ofereciam aos agricultores alguma segurança que o assalariado não possuía Essas eram formas de trabalho predominantes na Paraíba indicadas por Gervácio Aranha Este era um ponto central para as diversas interpretações comunistas da realidade agrária brasileira quais eram as formas de trabalho predominantes no paísNordeste e como classificálas Capitalistas ou feudais Poderiam ser consideradas assalariadas ou não Este era um dos pontos centrais de divergência entre Caio Prado Júnior e Alberto Passos Guimarães Para Alberto Passos Guimarães as relações no Nordeste eram feudais pré capitalistas sendo necessário revolucionálas Nesse sentido para o autor as relações indicadas como a morada e o cambão estabeleciam uma relação de dominação feudal oriunda da formação feudal do país no processo de colonização184 Já para Caio Prado Júnior o Brasil se encontrava no capitalismo desde o início e acreditava que as relações apesar das formas diversas eram capitalistas e majoritariamente assalariadas afirmando que essa leitura era uma deformação seja conceitual seja da realidade brasileira PRADO JÚNIOR 1987 p 42 Esses autores divergiam naquilo que estava na ordem do dia da defesa comunista aquele centrava na reforma agrária e o último na consolidação das leis trabalhistas no campo185 184 Afirma Alberto Passos Guimarães em Quatro século de latifúndio 1963 Êsse conteúdo dinâmico e revolucionário na presente etapa da vida brasileira expressase pelo objetivo principal do movimento pela reforma agrária que é o de extirpar e destruir em nossa agricultura as relações de produção do tipo feudal e não as relações de produção do tipo capitalista GUIMARÃES 1989 p34 185 Recomendamos a leituras do historiador Raimundo Santos em Alberto Passos Guimarães num velho debate 155 Caio Prado Júnior não foi o único a tecer críticas à época à linha oficial pecebista ou à posição assumida por Alberto Passos Guimarães André Gunder Frank economista alemão e um dos teóricos da Teoria da Dependência em oposição ao desenvolvimentismo em seu texto publicado na Revista Brasiliense em 1964 A agricultura brasileira capitalismo e mito do feudalismo teceu críticas ao marxismo brasileiro que chamou de marxismo tradicional e à posição do PCB Estendeu sua crítica a outros PCs e intelectuais latinoamericanos Para ele a afirmação de que a América Latina começou sua história a partir do descobrimento com instituições feudais e que ainda as conserva mais de quatro séculos depois é falsa Indica que a agricultura é chamada de feudal na Segunda Declaração de Havana 1962 sem dúvida o mais incisivo e importante documento contemporâneo sobre a realidade econômica e política da América Latina FRANK 2005 p37186 Por isso essa leitura política não era apenas brasileira mas latina havendo debates nos veículos de discussão desse grupo político Essa crítica é retomada no recente texto Os comunistas e a ditadura burgomilitar os impasses da transição 2014 de Milton Pinheiro Em análise retroativa esse sociólogo e cientista político fez duras críticas à estratégia política adotada pelo PCB nesse período Indica que já em 1935 o PCB adquire uma cultura política cuja prática sindical não se voltará mais para a autonomia operária mas centrada em um espectro corporativo da ordem burguesa oriundo dessa visão de revolução burguesa e da necessidade de um pacto com os setores progressistas nacionais187 1994 ou Caio Prado Júnior na cultura política brasileira 2001 Há também o artigo A questão agrária brasileira 19501960 A análise histórica de Alberto Passos Guimarães e Caio Prado Júnior 2007 dos historiadores Ricardo Oliveira da Silva e Claudia Wasserman O Nordeste Problema Nacional para a esquerda 2000 de Carlos Alberto Dória no volume IV da Coleção História do Marxismo no Brasil é uma interessante contribuição para esse debate Outros documentos da época podem ser conferidos na coleção A questão agrária brasileira organizada por João Pedro Stedille particularmente no volume 1 há textos de Caio Prado Júnior e Alberto Passos Guimarães além de outros intelectuais da esquerda brasileira 186 André Frank desmonta essa tese seja do feudalismo ter antecedido ao capitalismo no Brasil ter coexistido com o capitalismo ou o capitalismo estar penetrando no feudalismo Para ele a formação era capitalista desde seu início Aponta carências na formação dos comunistas afirmando diversas confusões teóricas dentre elas uma ideia de que as relações de trabalho diversas seriam semifeudais Afirma baseado em Prado Ianni e Costa Pinto que vários supostos traços feudais da relação proprietáriotrabalhador são fachadas de uma exploração econômica essencialmente comercial FRANK 2005 p 53 capitalista Afirma que a interpretação dualista baseiase em equívocos importantes inclusive ao conteúdo semântico de termos feudal e capitalista Para Frank o capitalismo pode manter estruturas que aparentemente não sejam capitalistas mas elas no entanto estão fazendo parte do sistema e não podem ser supervalorizadas ao ponto de definir todo o sistema Elas fazem parte da adaptação e viabilização do próprio sistema capitalista Critica a estratégia de revolução nacional e democrática a reforma do capitalismo afirmando que a tática dos camponeses e seus aliados deveria ser destruir o capitalismo 187 Milton Pinheiro afirma que A batalha pela modernidade capitalista se aprofundará com a capitulação à burguesia nacional como parceiro conflitivo do longo processo de revolução burguesa perenizando a visão etapista da revolução brasileira e afirmando a necessidade de um pacto pelo desenvolvimento das forças produtivas passando de uma visão dogmática de ruptura para o afastamento de qualquer processo clássico de ruptura com a ordem do capital com a rara exceção da manifestação dessa ideia nos anos de 1950 A constante preocupação com a estabilidade democrática tornou o partido subalterno no processo 156 Por esse debate percebese que a visão dos comunistas sobre os projetos políticos para o país e as interpretações da realidade brasileira não eram homogêneos Há semelhanças no discurso fílmico de O País de São Saruê com algumas dessas ideias mas também contrastes O documentário assume uma identidade regional sertaneja que tanto poderia lhe render enfrentar melhor a censura como articular as denúncias sociais feitas pela esquerda Em certo sentido a representação de José Gadelha pode ser lida na perspectiva do projeto nacional democrático Embora ele seja mostrado como um grande inimigo do sertanejo e como uma figura de opressão por outro lado o reforço do tema do imperialismo tange uma visão que relativiza levemente seu papel na luta de classes pelo inimigo externo Para alguns autores haveria latifundiários progressistas com os quais se buscaria a estratégia da aliança de classes figuras da oligarquia local poderiam ser táticas Por isso Há uma leve ambiguidade que unem a figura de patrão dono de terras e usineiros no drama da seca ou na atuação imperialista Elas estão presentes no discurso em voz off e na canção de José de Arimatéia o vaqueiro que se refere à seca quando chora vaqueiro e patrão São dramas enfrentados pelos sertanejos ricos ou pobres embora não de maneira igual188 Quando José Gadelha em seu discurso delineia a genealogia de sua família indica que a família Gadelha está em Sousa desde o avô do entrevistado e que seu irmão mais velho André Gadelha foi vicegovernador do estado A família Gadelha é uma das oligarquias paraibanas Detém poder econômico e político mantendo seu domínio local Uma oligarquia significa que a autoridade se concentra nas mãos de poucos os quais podem ser de uma mesma classe social partido ou família Elas se mantêm unidas e solidárias não deixando espaço para a organização de partidos ou sindicatos que representem interesses contrários aos seus GUERRA 1993 p1819 Podemos afirmar que à época de elaboração de O País de São Saruê permaneciam oligarquias na Paraíba sob novos arranjos políticos189 Com o golpe militar em 1964 este dessas lutas Afirmação de uma visão autárquicoburguesa da soberania nacional Confirmação de um frentismo policlassista como instrumento de luta pela democracia Com todo esse arcabouço permeado pela cultura de que a democracia só virá pelo arranjo da conciliação e tensionado pela dúvida da opção entre povo e classe será vitoriosa na formulação do partido a política nacional libertadora e a revolução em etapas como via ao socialismo PINHEIRO 2012 p 214215 apud PINHEIRO 2014 p24 Para o autor o PCB permaneceu com uma visão conflitiva baseada na existência de uma burguesia nacional e com a preocupação com uma estabilidade democrática que tornou o partido subalterno no processo dessas lutas escolheu a política nacional libertadora e uma revolução em etapas como via para o socialismo optando por povo ligado à ideia de nação e não pelo recorte de classe baseado na economia política 188 A canção de José de Arimatéia obviamente não reflete a linha pecebista mas seu uso no filme sim 189 A historiadora Lúcia Guerra afirma que No Brasil o período áureo do Estado Oligárquico foi a Primeira República 18891930 apesar de algumas de suas características básicas extrapolarem esse período As oligarquias se redefiniram e utilizando novas formas de dominação de acordo com as conjunturas políticas e econômicas muitas delas sobrevivem até hoje GUERRA 1993 p 21 157 poder se reorganizou a fim de manter as estruturas locais dentro da nova ordem nacional O poder circulava entre famílias através de cargos políticos que eram atribuídos a membros da família ou próximos em troca de favores e compromissos perpetuando o poder nas mãos da elite GUERRA 1993 p43 Não podemos afirmar que na segunda metade do século XX havia nomeação por tempo indeterminado de cargos como a Prefeitura no entanto através de outros mecanismos de poder persuasão e influência a elite se mantinha nestes cargos 190 Em Política e Parentela na Paraíba um estudo de caso da oligarquia de base familiar 1993 Linda Lewin estuda os vínculos entre política e estrutura familiar em estudo de caso da oligarquia Pessoa sob liderança de Epitácio Pessoa entre 1912 e 1930 Para ela Apesar da Revolução de 1930 que deu início à era de Getúlio Vargas a política oligárquica sob muitos aspectos sobreviveu à era das oligarquias e continuou a ser uma força significativa inclusive no plano nacional Mais recentemente a urbanização a industrialização e a imposição do regime militar restringiram a política oligárquica ao plano local Longe de terem sido extirpadas portanto as raízes da oligarquia permaneceram implantadas até mesmo nos anos 1980 Em muitas localidades rurais onde a capitalização maciça da agricultura e a expulsão dos moradores ou colonos característica do Brasil desde a década de 1960 não ameaçou estruturas agrárias mais antigas os arranjos políticos historicamente associados àquelas estruturas freqüentemente resistiram LEWIN 1993 p 06 Encaixamos nessa identificação de permanência dos traços dessa política oligárquica de parentela o background não explicitado em O País de São Saruê ao apresentar a entrevista de José Gadelha Essa estrutura política parte de vínculos associativos baseados na família ou seja o vínculo informal de associação oligárquica pode incluir a amizade política LEWIN 1993 p 10 A família Gadelha apresenta forte presença na direção da prefeitura de Sousa e também em outros âmbitos da política paraibana Assim em 1960 o udenista conservador André Gadelha referido por José Gadelha como seu irmão na entrevista disputou e ganhou a 190 Lúcia Guerra indica que a região do São João do Rio do Peixe também teve uma continuidade de famílias porém indica essa presença ao menos até 1930 e não comenta o que ocorre posteriormente Não temos dados de como se instalou a oligarquia Gadelha mas é interessante que a data coincida com a chegada de Gadelha indicada na entrevista ou a indicação da reorganização das oligarquias em 1930 como indica André H do Rêgo Esta é uma pesquisa a ser feita e relacionada posteriormente Sobre a oligarquia préRevolução de 1930 comenta Lúcia Guerra São João do Rio do Peixe é outro exemplo típico da continuidade de algumas famílias no comando da política municipal Duas famílias ramificadas no sertão Dantas e Sá compartilharam o poder durante toda a Primeira República naquele município Em 1898 foi nomeado para SubPrefeito João Dantas de Oliveira e de 1908 até 1922 quem exerceu continuamente esse cargo foi Domingos Gonçalves Dantas A chefia política do município cabia ao Padre Joaquim Cirilo de Sá que foi deputado estadual em sete legislaturas seguidas 19041930 enquanto seu irmão Manoel Cirilo de Sá ocupou a Prefeitura de 1908 a 1922 GUERRA 1993 p 44 Não abordamos a sequência do filme que desenha a origem da modernização do sertão e de sua elite mas nela é indicada a presença da oligarquia dos Dantas e Sá Este é outro trabalho a ser feito posteriormente Na sequência outros elementos se mostram extremamente relevantes como a chegada do trem do primeiro automóvel e os costumes da elite de Acauã 158 vicepresidência do Estado da Paraíba em 1960191 Com o golpe de 1964 a repressão na cidade e no campo foi acentuada com José Gadelha de Oliveira como comandante geral das Forças Armadas COELHO 1994 p52192 Ainda recentemente a disputa pelo domínio de Sousa é indicada em jornais tais conflitos são referidos como atuais193 Um dado importante sobre esta sequência e sua relação com a penúltima sequência do documentário é que a oligarquia dos Gadelha teve seu ciclo de domínio em Sousa quebrado com a chegada de Antônio Mariz à Prefeitura José de Paiva Gadelha e Antônio Mariz são ambos entrevistados no documentário tornando patente um conflito político que não está explicitado pelo filme Buscamos contextualizar tais personagens sociais de O País de São Saruê problematizando o uso da entrevista e mostrando que não é feito da mesma forma pois suas falas são utilizadas pelo documentarista que possui uma posição política Para crescer economicamente José Gadelha se serviu do apoio de uma família rica e influente Parece que escapa a Gadelha essa contradição em seu discurso ou talvez por isso indique a necessidade de crédito Rosa M Godoy Silveira comenta sobre a posição assumida pela elite política nordestina do século XIX perante a crise regional que apesar da distância temporal parecenos ainda elucidativos sobre o discurso de Gadelha Os proprietários se retratam como vítimas pacientes de um processo que lhes aparece imageticamente imponderável Dessa forma deslocamse do processo isentamse dele camuflam o seu comprometimento com o mesmo Mas sabem de modo a não se caberem dúvidas o papel que querem exercer o de manter a sua dominação Aí então voltam a ser agentes da História mas que se negam a qualidade quando se empenham em reorganizar e submeter ao seu controle a mãodeobra através da sujeição dos homens livres como forma de reiterarem sua reprodução ameaçada pela crise enquanto classe hegemônica no espaço regional 2004 p 189 Alguns dos elementos da citação de Rosa M G Silveira não podem ser aplicados a José Gadelha ele não se coloca como vítima mas como parte do processo No entanto podemos afirmar que há o desejo de manter sua dominação e a negação do empenho em manter a mão de obra sob seu controle o que contudo é exibido pelo documentário O discurso de Gadelha não é apenas de um usineiro mas de um homem que pleiteia um cargo 191 Zabilo Gadelha André de Paiva Gadelha um portentoso comerciante de algodão em toda a área do Rio do Peixe sendo Sousa a sua cidade de nascimento 1994 COELHO p 46 192 O jornalista Evando Nóbrega afirma que O coronel Macário dos quadros do Exército mas comissionado junto à PM força auxiliar num posto imediatamente acima manifestavase muito prudente conciliador ponderado Até o jeito de falar manso pausado quase num cochicho ao pé do ouvido O coronel Gadelha que o substituiu era menos paciente com as estripulias à esquerda o mesmo ocorrendo com o major Pedro Belmont chefe da Polícia Civil 1994 p 160 193 Acessado em 10 de out de 2014 às 16h14 Endereço httpexpressopbcomtagfamiliagadelha 159 político como é provocado por Vladimir Carvalho Vladimir Carvalho Sr Gadelha para finalizar gostaria de lhe perguntar a que o senhor mais aspira na vida de agora por diante que já está um homem quase que um homem realizado praticamente Gadelha Ora meu caro realmente eu sou um homem realizado A única aspiração que eu tenho na vida é essa que estou fazendo disputando uma cadeira de deputado federal para no caso de ser eleito ajudar ao Nordeste e principalmente ao sertão paraibano e de modo muito especial à minha querida Sousa CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 7 4043 4116 Esta é a fala que conclui a entrevista assistimos então Gadelha se despedir da câmera de nós de seus trabalhadores de Sousa e sair voando em seu avião Essa construção final causa a impressão de um distanciamento daquela realidade que José Gadelha apenas observa discursa mas que deixa para trás em sua miséria A explicitação da disputa política demonstra a vinculação entre poder econômico e político contrapondose à imagem benevolente construída pelo Gadelha que até então não revelara suas intenções políticas ao menos na ordem apresentada pelo documentário Essa evidência nos permite questionar seu discurso e o desenvolvimento gerado para Sousa aparentemente apenas para ajudar sua gente Desta maneira o discurso de Gadelha detém as seguintes dimensões a constituise como uma representação do próprio consciente de um potencial político de seu discurso que deixa transparecer suas habilidades como homem de sapiência das palavras b a entrevista no entanto é editada e inserida em um contexto mais amplo em O País de São Saruê sendo um documento selecionado que permite uma leitura não de si autonomamente mas em sua inserção em uma trama de elaborações estéticocinematográficas que influenciam a maneira de ser visto c ela revela a existência de um debate de saberes com a qual procura dialogar seja na figura de José Gadelha que defende sua tese sobre o desenvolvimento do sertão em relação a outras propostas ou a do próprio documentarista que a utiliza como um dos elementos para defender sua tese Se aceitamos a afirmação de Silveira podemos afirmar que enquanto Gadelha procura omitir sua dominação Vladimir Carvalho tenta explicitála Os aspectos b e c são centrais pois nos permitem pensar O País de São Saruê e sua imagem de sertanejo e da questão agrária não como um documento que sustenta uma tese fechada em si mas em diálogo com uma rede de discursos ou melhor em uma economia simbólica acerca dos rumos para o desenvolvimento nacional entre os quais havia a ideologia comunista da década de 19601970 com uma visão de um lado unida e noutro heterogênea O País de São Saruê inicia seu discurso apresentando um espaço ocupado com lutas 160 e trabalho no qual as condições climáticas foram um forte obstáculo especialmente na figura da seca Em seguida apresenta outras dimensões dessa sociedade entre as quais se evidencia uma leitura da sociedade estratificada na sequência da extração do algodão Vimos como em nível de expressão e de conteúdo é tematizado o conflito entre capital e trabalho e a dominação de classe Para nós estão aqui as principais problemáticas pelas quais o documentário procura apresentar o subdesenvolvimento no grande sertão ou particular paraibano da questão essencialmente climática para um problema político da questão agrária 54 A questão agrária e o latifúndio a entrevista com Antônio Mariz Na penúltima sequência outra entrevista se torna importante no filme Antônio Mariz então prefeito de Sousa 19631968 fala sobre os obstáculos para o desenvolvimento do sertão e aponta como maior problema a questão do latifúndio Para nós seu discurso é tomado como locutor auxiliar auxiliando nas ideias que Vladimir Carvalho quer apresentar Problematizamos o horizonte de transformação da realidade rural apresentado pelo discurso de Mariz que remaneja explicitamente a centralidade do clima para o da estrutura agrária Antônio Mariz foi amigo de infância de Vladimir Carvalho e um dos financiadores do filme pois ofereceu alguns poucos recursos em troca de alguns favores ao cineasta Cf Capítulo II Ele se encaixava no ideário do PCB de uma classe média progressista com a qual faria frente contra o latifúndio Mariz era filiado ao PTB partido com o qual o PCB se aproximara no início da década de 1960 Antônio Mariz denuncia a indústria da seca e situa a questão agrária sob um prisma políticosocial não o restringindo ao aspecto climático Nesta sequência Antônio Mariz aborda o subdesenvolvimento sertanejo enquanto as imagens mostram situações tristes que ilustram a fala do prefeito ou reforçam seu aspecto dramático Inicia por exemplo afirmando que a gente sertaneja recorre à Prefeitura ao se deparar com problemas enquanto as imagens mostram uma enorme fila com populares e depois Mariz conversando com eles Enquanto fala da situação de tristeza e miséria planos mostram meninos magros e uma criança morta nos braços de seus pais Comenta que a seca não é o único problema da região e planos mostram fotografias de uma enchente e das crianças mortas com grandes barrigas dágua buscando emocionar o espectador As imagens corroboram com o discurso de Mariz diversamente da elaboração discursiva que indicamos na sequência de José Gadelha Após essa sequência a última mostra imagens que sintetizam ao som da música tema do documentário os argumentos apresentados pelo enredo O áudio dessa sequência é majoritariamente constituído pelo discurso de Antônio 161 Mariz semelhante à sequência com a entrevista de José Gadelha Em ambos o documentário evidencia a quem a voz pertence mas diversamente das outras entrevistas nas quais consta também a voz do entrevistador transparecendo a estrutura documentária e reforçando o caráter particular da fala o discurso de Mariz não sofre qualquer interrupção Essa fala representa mais um discurso enquanto aquele ato político produzido antes para impressionar uma plateia que uma entrevista Em certa medida o mesmo se aplicaria a entrevista com José Gadelha cuja fala pleiteava um cargo político porém nela ocorre diálogo e não monólogo A fala de Mariz não apresenta elementos estéticos que questionem seu conteúdo seja em áudio ou como vimos em imagem Assim a diferença central está no seu uso diverso pelo filme sem realizar antítese Além disso ele conclui o filme em lugar privilegiado de síntese Vladimir Carvalho o assume utilizandoo de maneira diferenciada em O País de São Saruê A esse uso diverso relacionamos ao que JeanClaude Bernardet chama de locutor auxiliar Na biografia de Vladimir Carvalho escrita por Carlos Mattos a partir de depoimentos do cineasta é destacado que Antônio Mariz foi vicepresidente da UNE 2008 p 114 Em 1963 candidatouse a prefeito de Sousa pelo PTB enfrentando o espaço eleitoral dominado pela família Gadelha Terminou sua administração em 1969 Segundo Inácio Leitão o discurso de campanha de Antônio Mariz para a prefeitura de Sousa foi inovador defendendo os trabalhadores explorados pelas usinas a adoção da Carteira de Trabalho o salário mínimo e as reformas de base de João Goulart bandeiras que também eram abraçadas pela política pecebista LEITÃO 2006 p 13 Havia assim certa proximidade ideológica entre Mariz e Vladimir Carvalho que justifica ao último assumir o discurso do prefeito ao final do filme A relação entre Antônio Mariz e a oligarquia Gadelha foi de muitos conflitos políticos Antônio Mariz por sua vez era também de uma oligarquia Monique Citaddino indica que a família Mariz era uma influente família do município de Sousa194 José Marques da Silva Mariz pai de Antônio Mariz era filho do segundo casamento do Dr Antônio Marques da Silva Mariz CITTADINO 2006 p 76 Havia assim uma disputa entre famílias e ambas tinham uma tradição política de influência em Sousa Durante o período militar sob chefia do Estado de Pedro Gondim 19601965 e 194 Vinculados aos liberais o Dr Antônio Mariz participou como deputado estadual da 1ª legislatura da República 189192 Em seguida foi deputado federal nas legislaturas de 189496 18971899 e 19001902 Voltando à Paraíba integrou a 9ª legislatura em 1920 e a 10ª em 1924 A vocação política ele herdou de seu pai o padre José Antônio Marques da Silva Guimarães que além do comando religioso exercia também a liderança política sobre o município de Sousa tendo sido vinculado ao partido liberal deputado provincial nas 1ª 183536 3ª 184041 e 7ª 184849 legislaturas do Império CITADDINO 2006 p 55 Com o Ato Institucional n 2 que excluía o pluripartidarismo deixando apenas duas siglas a ARENA e o MDB Mariz filiouse ao primeiro como era possível na dinâmica paraibana de política pois o MDB não representava necessariamente uma oposição Cf CITTADINO 1999 p 116117 162 depois de João Agripino 19651971 Antônio Mariz inicialmente teve problemas com o regime militar Ele se alinhava na Paraíba com as reformas de base propostas por João Goulart no período prégolpe Já prefeito de Sousa desobedeceu a seus partidários e realizou um comício de apoio ao Governo Federal no dia 1º de Abril de 1964 MACHADO 1991 p 105 OCTÁVIO 1994 p 122 Mariz foi investigado através de um IPM Inquérito Policial Militar preso em Sousa e levado a um quartel em João Pessoa As acusações de seus adversários contudo foram consideradas infundadas195 Seu viceprefeito Geraldo Sarmento era da oposição a Mariz e bem quisto pelos Gadelha sendo a denúncia uma estratégia política Por esses dados do percurso de Antônio Mariz até as gravações do filme fica evidente que sua presença no discurso do filme indica uma relação muito mais complexa não explícita no discurso do documentário Apesar de não haver referência direta no filme ao conflito dessas oligarquias Vladimir Carvalho colocou duas entrevistas de grupos políticos opostos assumindo uma posição ainda que sutil sobre seus discursos Para além da confluência ideológica e do abraço ao discurso de Mariz o cineasta assumiu posição na dinâmica política local paraibana A construção estética da penúltima sequência e o conteúdo do discurso de Mariz relacionamos à função da fala de Mariz enquanto o locutor auxiliar O discurso de Antônio Mariz também possui a característica de um homem que conhece a palavra Sua fala é pausada de tom sério grave e comovente Fala da situação de subdesenvolvimento do sertão e do sofrimento e necessidade dessa gente de recorrer à ajuda da Prefeitura Porém rompe com o discurso da seca relacionando a situação econômica da região ao problema da má distribuição de terra e renda Uma palavrachave importante presente na primeira frase da fala de Antônio Mariz subdesenvolvimento Mariz começa seu discurso ressaltando que o sertanejo recorre constantemente à Prefeitura seu espaço de atuação ou seja pede ajuda ao poder público Porém não atribui ao sertanejo um caráter indolente e preguiçoso Mas esse pedir permanente não revela ociosidade nem aversão ao trabalho como poderia parecer aos mais rigorosos ou intolerantes É antes a imagem 195 Livroulhe da situação o prestígio do senador João Agripino seu primo e amigo de Castello Branco e do general Golbery NÓBREGA 1994 p 186 O jornalista Jório Machado indica que o relatório do próprio Exército sobre o evento ressaltava as qualidades da administração de Antônio Mariz em Sousa e podava os excessos nas denúncias de seus adversários 1991 p 106107 Indicou ainda diretamente a rivalidade entre José Gadelha e Antônio Mariz Os adversários que já denunciavam o prefeito às instituições militares como subversivo aproveitaram a manifestação antigolpista da noite do dia 1 de abril para intensificar a pressão e conseguiram uma ordem de prisão contra o prefeito Mariz Antes o usineiro e grande latifundiário José Gadelha eleito posteriormente deputado federal líder da oposição ao prefeito tentou entregar Mariz por intermédio do Governador Pedro Gondim que recusou a proposta e ainda revelou a trama ao prefeito de quem era amigo pessoal p106 163 da pobreza regional que não decorre nem da natureza nem do temperamento nem da formação do povo Mas que é o fruto de longos erros acumulados na forma de explorar a terra na forma de criar e distribuir riquezas CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 12 1h1525 1h1608 O sertanejo para Mariz não é um ocioso nem avesso ao trabalho tampouco relaciona a causas naturais ao temperamento ou à formação do povo a origem dos problemas da região diversamente do que foi construído nas décadas anteriores Atribui o problema a longos erros acumulados na forma de explorar a terra na forma de criar e distribuir riquezas ou seja identifica um problema na forma da produção regional questões técnicas bem como uma má distribuição de terras e rendas a ausência de reforma agrária Até valoriza o sertanejo e sua relação com o problema que enfrenta Mas longe da seca e da enchente muito mais grave é o problema da estrutura agrária Nós temos porém tendência no sertão a captar somente o problema do clima E de fato existe um problema do clima a seca a enchente E então as secas jogam o povo nas ruas Faz com que esses camponeses humildes reverentes permanentemente em quem não se adivinha à primeira vista a fibra a coragem a decisão de viver e de crescer faz com que este povo perca esta aparente humildade e se revele em sua grandeza em sua força ao assaltar a feira ao invadir as lojas o comércio ao tomar a cidade ao bradar ao exigir os seus diretos CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 12 1h1618 1h1716 Nesse fragmento constam dois aspectos fundamentais a afirmação explícita de que o problema muito mais grave é o da estrutura agrária em vez do problema do clima e a valorização de Mariz à reação dos camponeses a perda da aparente humildade e a revelação da grandeza e da força do povo ao assaltar a feita invadir lojas o comércio dentre outras ações que caracteriza como um exigir de seus direitos Reconhece e prestigia o papel do sertanejo quando se move para uma atuação organizada ou reage à opressão que sofre No contexto do regime militar as manifestações contra o regime as greves e outras ações políticas foram caracterizadas como subversivas e tomadas como questão de segurança nacional O discurso de Mariz confronta essa visão A ação popular que poderia ser lida como vândala criminosa subversiva ou mesmo irracional ou ainda como fruto do temperamento antitético do sertanejo é apresentada por ele como uma exigência de direitos colocandoos em um patamar de ação legítima e cidadã O discurso de Antônio Mariz é oposto à ideologia do regime militar que defende a ordem sem questionamento e oprimiu a organização política e a aspectos já mencionados acerca do caráter do sertanejo como preguiçoso ou com temperamento naturalmente situado em extremos Os discursos de Antônio Mariz e José Gadelha exibem uma oposição nos contornos 164 apresentados o primeiro valoriza sua atitude coloca o sertanejo como aquele que exige direitos frente a uma opressão de cunho social o latifúndio o último o coloca como vítima de um descuido do Estado que deveria garantir fundos para sua emancipação não o vê como ator de sua independência política mas como digno de uma proteção Pelos discursos parece que José Gadelha se encaixa enquanto figura que tutela os pobres subjugandoos construção presente na ambiguidade da articulação discursoimagem que Mariz como uma figura mais progressista e que põe o embate no âmbito da estrutura social cuja articulação imagemdiscurso procura confirmar a pertinência das ideias de Mariz A questão agrária é colocada em primeiro plano para explicar o subdesenvolvimento e a reação popular escolha que demonstra uma confluência entre seu discurso e alguns elementos das teses pecebista e furtadianas sobre a região o problema deixa o âmbito da raça ou do clima para o âmbito econômicosocial Neste sentido Mariz abraça a matriz da década de 1950 que visou o desenvolvimento nacional enxergando na questão agrária um obstáculo e não mais centralizando o problema em questões étnicas ou climáticas196 Ainda que seja posteriormente à produção do filme vale ressaltar que Antônio Mariz como parlamentar defendeu a cultura do algodão LISBOA 2006 p 30 sendo uma figura que participou ativamente da discussão das políticas públicas para o Nordeste brasileiro 197 No seu discurso presente em O País de São Saruê Antônio Mariz afirma que o problema da seca não é mais tão central para a nova estrutura econômica do sertão apesar de indicar o grande prestígio da seca tão presente na cultura popular Por isso seu discurso problematiza mais o domínio das elites locais que endossa o discurso da indústria da seca pelo qual essa mesma elite conseguia se apropriar de recursos federais198 Quando Antônio Mariz questiona aquilo que podemos chamar de indústria da seca não está apenas indicando um medo da seca no imaginário popular mas está em diálogo com os debates políticos sobre a solução para viabilizar o sertão De acordo com a visão que 196 Discursos disponíveis na série Perfis Parlamentares Mariz n 51 organizada por Cláudia Lisboa apontam para sua posição frente aos conflitos agrários durante a ditadura militar ainda que não mais na época de elaboração do discurso de O País de São Saruê 197 Discursos nos quais o parlamentar defende podem ser conferidos na série Perfis Parlamentares Mariz 2006 n51 organizada por Cláudia Lisboa disponível no site da câmara dos Deputados HTTPbdcamaragovbr Antônio Mariz foi deputado federal entre os seguintes períodos 19711975 19751979 19791983 e 19871991 Além de assumir o mandato de senador entre 1991 a 1994 fonte httpwwwsenadogovbrsenadoressenadoresbiografiaaspcodparl84li49lcab19911995lf48 Acesso em 23Jun2014 198 Lúcia Guerra indica que houve duas leituras sobre a problemática sertaneja uma que situava a seca como a origem dos males do Sertão da Paraíba como Irineu Joffily e José Américo de Almeida e outra que oriunda na década de 1950 vê a seca a partir da estrutura sócioeconômica da região tendo expoentes como Celso Furtado ou Francisco de Oliveira GUERRA 1993 p 1415 Foi nessa última corrente ou matriz que se originou a crítica à indústria da seca à apropriação de recursos nacionais por uma elite local sem resolver concretamente os problemas sociais da seca 165 rompia com a explicação meramente climática para os problemas sociais nordestinos pauta suas origens sociais e políticas Por isso Mariz conclui da seguinte maneira sua fala Apenas o que digo é que a seca e a enchente não são o fundamento as causas profundas do subdesenvolvimento nordestino Eles existem mas são perfeitamente controláveis E de certa forma estão sendo controlados E felizmente tanto os governos como o povo já compreendem isto E hoje já olham para a terra do sertão sujeira a estas intempéries como uma terra capaz de criar uma grande civilização E o povo se identifica sic em sua capacidade de superar estes problemas menores do clima para estabelecer uma sociedade próspera uma terra rica de cuja riqueza participem todos CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 12 1h1915 1h2015 Antônio Mariz indica que o sertão é subdesenvolvido por uma questão agrária pela má produção e distribuição de riqueza O discurso de Mariz é utilizado por Vladimir Carvalho para retomar sua tese de um país rico mas subdesenvolvido como presente na música tema e especialmente na sequência sobre o ciclo do ouro no sertão Como indicamos as entrevistas e elementos de um filme são meios auxiliares para sua narração A utilização do discurso de Mariz no entanto é diferenciada das demais Na entrevista com os pioneiros do ouro por exemplo são presentes elementos que questionam na dialética imagem e som o conteúdo das afirmativas Enquanto Pedro Alma na décima sequência fala sobre sua aventura no ciclo do ouro Vladimir Carvalho questiona através das imagens a validade dessas informações Assim enquanto o homem fala na cadeira de balanço a câmera inclui no plano a imagem de sua neta que ri desconcertando a gravidade do discurso Em outro momento a trilha sonora também oferece a sensação de história fantástica relativizando o realismo do relato Entrevista ainda o pioneiro do ouro Zeca Inocêncio cuja fala humilde oferece pouca confiança pois contém episódios fabulosos como de um homem rico que colocara um dente de ouro em um bode Após essas entrevistas a voz over desconstrói uma possível credibilidade aos relatos O solo paraibano registra uma infinidade de ocorrências minerais Columbita bauxita xelita caulim pirita tório alguns radiativos Prefeitos de várias cidades bem como particulares fomentam pequenas explorações no intuito de um dia poderem realizar a emancipação de seus municípios silêncio O folheto da Viagem a São Saruê do romanceiro popular fala da existência de uma terra mitológica de riqueza e fartura Essa imagem parece se repetir pelo menos virtualmente nesses campos inflamando as imaginações e provocando às vezes ilusões definitivas CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 11 1h0603 1h0727 166 A sequência nove é sobre Charles Foster um voluntário de 23 anos que estava em Sousa fazendo um trabalho comunitário Suas imagens explicitam limites do diálogo com o estrangeiro dada a situação política da época A voz de Vladimir Carvalho questiona as razões para o atraso do Nordeste e sobre a Guerra do Vietnam e recebe respostas evasivas de Foster que diz não poder responder à primeira pergunta enquanto a imagem exibe o logotipo da Aliança para o Progresso e não saber de nada da segunda questão enquanto aparece um recorte de jornal da convocação do Peace Corps As imagens trazem elementos dos conflitos entre jovens americanos e a convocação para a Guerra do Vietnã e da Aliança para o Progresso em seu papel imperialista complementando ou confrontando o silêncio no discurso do entrevistado Sem adentrar nas realidades concretas suscitadas nessas outras sequências pois não é nosso objetivo agora percebese como as entrevistas possuem dinâmicas e usos diversos Já indicamos o processo de significação da relação imagem e som na sequência da entrevista de José Gadelha que opõe ao áudio verbal a opressão de classe em imagens Vimos que no discurso de Antônio Mariz não há questionamento de sua argumentação mas seu reforço Essa entrevista junto com a música que conclui o filme assume posição privilegiada de síntese do problema apresentado em O País de São Saruê O crítico de cinema JeanClaude Bernardet chama de locutor o que chamamos aqui de narrador com voz over199 Ele analisou o uso de entrevistas no documentário Viramundo 1965 indicando a existência de um locutor auxiliar um entrevistado que não assume o lugar de si como outros personagens no filme falando de sua própria experiência mas que fala do outro sem contraposição assumindo uma função de complementar o discurso fílmico Bernardet analisa alguns documentários da década de 1960 e identifica que as vozes são diversificadas não falam da mesma coisa e não falam do mesmo modo 2003 p 15200 Distingue a voz de operários populares de um operário qualificado e a voz over Diferencia as falas dos trabalhadores entrevistados limitadas ao âmbito de suas experiências particulares do locutor em voz over voz do saber e generalizante e a do operário qualificado que como um tipo de especialista demonstra um saber e auxilia a narração do filme201 199 Bernardet afirma que apenas não usa o termo voz over porque ele não era corrente a época 200 Na etapa que nos referimos Bernardet analisa em dois capítulos documentários de curta metragem estabelecendo modelos e indicando a função das diversas vozes nos filmes e suas relações em cada filme em particular Utilizamos suas indicações como base para pensar o mesmo problema em O País de São Saruê Estamos conscientes de que como Bernardet aponta a seleção de filmes muda a análise e que sua proposta não almeja um modelo geral A análise é construída a partir da lógica de cada filme em particular 201 Bernardet afirma que as falas dos entrevistados trabalhadores no filme Viramundo são as vozes da experiência Falam só de suas vivências nunca generalizam nunca tiram conclusões Ou porque não sabem ou porque não querem ou porque nada lhes é perguntado neste sentido Se por acaso um operário 167 Na dramaturgia dos documentários diante da câmera a pessoa representa a si mesma em função da filmagem faz o papel de si mesma BERNADET 2004 p22202 Nas entrevistas que contrapomos de José Gadelha e de Antônio Mariz este fala de si enquanto aquele fala do outro Gadelha está próximo às entrevistas do ciclo do ouro e de Charles Foster nas quais os indivíduos falam de suas experiências Esteticamente a presença em voz ou em imagens do documentarista reforça o caráter situacional e particular São entrevistas que evocam vivências particulares com ambiguidades em seu discurso e que podem soar curiosas um homem rico falando sobre o desenvolvimento em um filme caracterizado pela miserabilidade o choque de realidades tão diversas como dos voluntários norteamericanos nos confins do sertão ou os delírios do garimpo do ouro É possível identificar uma ruptura com a construção dos documentários que Vladimir Carvalho participou anteriormente como Aruanda e Romeiros da Guia A influência de Opinião Pública reconhecida pelo cineasta mostrase pelo uso diferenciado da entrevista em O País de São Saruê Uma das diferenças no uso da entrevista em Opinião Pública está em como se exploram as situações com maior desenvoltura e menor redução dos personagens a generaliza é para dizer besteira por exemplo que os nossos irmãos do Norte só pensam em matar e que o pessoal do Sul gosta de trabalhar dez doze horas por dia É apenas um ponto de vista que enquanto tal fica desqualificado como generalização Não podemos levar a sério o conteúdo dessa firmação podemos apenas tomála como um dado sobre quem a fez Ao emitir sua visão quem fala fala de si e o que diz continua sendo um dado da experiência imediata 2003 p 16 Essas entrevistas de trabalhadores em Viramundo mostram seus sujeitos enquanto limitados ao âmbito de suas experiências Diferentemente da voz over que Bernardet chama de locutor A voz do locutor é diferente É uma voz única enquanto os entrevistados são muitos Voz de estúdio sua prosódia é regular e homogênea não há ruídos ambientes suas frases obedecem à gramática e enquadramse na norma culta Outra característica o emissor dessa voz nunca é visto na imagem Ele pertence a um outro universo sonoro e visual mas um universo não especificado uma voz off cujo dono não se identifica Diferentemente dos entrevistados nada lhe é perguntado fala espontaneamente e nunca de si mas dos outros dos migrantes não apenas dos entrevistados mas dos migrantes no geral que vieram para São Paulo os que vemos no filme constituem uma pequena parcela deles O locutor não fala como eles Eles falam de si na primeira pessoa ele fala deles na terceira enquanto os migrantes falam de suas situações particulares ele fala deles no geral Dá números estatísticas são tantos que chegaram a São Paulo entre 1952 e 1962 tantos por cento que se dirigem para a agricultura tantos para a construção civil e a indústria Qualifica brevemente de zonas sociais mais atrasadas a região donde provém e esta a que chegam de formas sociais e urbanas mais avançadas e racionais do Brasil É a voz do saber de um saber generalizante que não encontra sua origem na experiência mas no estudo de tipo sociológico ele dissolve o indivíduo na estatística e diz dos entrevistados coisas que eles não sabem a seu próprio respeito Os entrevistados falam de uma história individual não se veem como número não provêm de zonas mais atrasadas nem se dirigem às zonas mais racionais provêm de lugares onde não conseguem cultivar a terra e sobreviver Se o saber é a voz do locutor os entrevistados não possuem nenhum saber sobre si mesmos O que informa o espectador sobre o real é o locutor pois dos entrevistados só obtemos uma história individual e fragmentada pelo menos quando se concebe o real como uma construção abstrata e abrangente 2003 pp 1617 202 Essa representação para a câmera espécie de atuação e simulacro de si não é feita igualmente mas depende de variáveis acertadas antes de ligar a câmera o acordo sobre o que falar a maneira como o entrevistador procede na conversa as habilidades e experiências do entrevistado em falar em público etc Não aprofundamos nisto pois não temos dados da diferença na preparação destas entrevistas mas certamente teve alguma influência a identificação ideológica e a maior intimidade entre o cineasta e Antônio Mariz 168 tipos sociais como nos documentários de modelo sociológico203 Nesse sentido parece que Vladimir Carvalho se aproximou dessa construção estética oriunda de uma técnica jornalística muito utilizada durante a ditadura militar A quase total transferência da exposição do tema e a total transferência do direito de opinar aos entrevistados aliada à ampla gama ideológica constituem uma técnica jornalística que se desenvolveu muito no Brasil durante a ditadura o articulista fica isento de se manifestar diretamente assume a tarefa aparentemente técnica de montar as entrevistas de combinar entre si os fragmentos de depoimentos BERNADET 2003 p79 Embora as personagens e suas entrevistas não tenham a desenvoltura de Opinião Pública identificamos uma mudança consistente na maneira de fazer documentário de Vladimir Carvalho que ficou mais marcada depois em filmes como A Pedra da Riqueza e Barra 68 O primeiro filhote de O País de São Saruê tem uma estrutura na qual a entrevista é essencial importando menos a realidade filmada que a reação do entrevistado às imagens204 Em Barra 68 ao entrevistar o antigo reitor da UnB durante o período militar que marcou grande intervenção nessa universidade Carvalho aparece apertando a campainha e conversando com o reitor Ele chega a questionar o papel assumido pelo reitor na administração o qual reage à ação provocando também o documentarista205 No entanto a entrevista com Antônio Mariz não possui iguais condições não há essa relativização imagética e sonora da intervenção do documentarista ou de elementos estéticos que valorizem seu caráter discursivo e particular Seu discurso se aproxima da voz over assumindo o status de locutor auxiliar indicado por Bernadet A fala de Gadelha e dos demais é particular e fragmentada já a de Mariz assume caráter sociológico e ganha prestígio enquanto voz do saber pois apesar de também ser particular comenta a realidade do outro e não a sua própria O aspecto subjetivo de seu discurso é menos presente pela construção de seu discurso e principalmente pelo uso que dele faz o filme O documentário assume sua voz não como objeto de investigação mas como parte de seu argumento Isso nos leva à questão central de que no filme a figura de José Gadelha além de seu caráter particular representa o outro de classe o latifúndio com seu discurso questionado Já 203 Daí que José Carlos Monteiro dizer que Vladimir Carvalho combinou formas tradicionais com o cinema verdade em O País de São Saruê MONTEIRO 1986 p143 204 Vladimir Carvalho entrevista um nordestino erradicado em Brasília que assiste às imagens captadas em uma mina na qual trabalhara antes de viajar para o Distrito Federal Para além da realidade da mina sua reação e comentários são a grande riqueza do filme 205 Em Barra 68 o exreitor provoca Vladimir Carvalho afirmando que quando questionado sobre a conduta de Vladimir Carvalho como professora na universidade devido ao seu perfil comunista o protegera 169 os pioneiros do ouro representam o tema da alienação como indicado pela relação estabelecida entre os devaneios do poeta em Viagem de São Saruê e as entrevistas Antônio Mariz no entanto representa o discurso assumido pelo próprio documentarista devido a sua proximidade ideológica sendo uma personagem menos questionada Podemos ainda relacionar ao exposto sobre as bandeiras rurais pecebistas um documento de Mariz de 1971 contemporâneo ao lançamento do filme Durante o discurso em que defendia ampliação da Assistência ao Trabalhador Rural referese da seguinte maneira aos trabalhadores rurais Os trabalhadores rurais historicamente relegados a condições subumanas de vida escravos na antigüidade servos da gleba nos regimes feudais massa de manobra de todas as revoluções são os últimos sempre a aceder à titularidade dos direitos sociais MARIZ 2006 p 37206 Destaca o atraso da legislação que se refere ao trabalho rural comparandoa com aquelas que regulam o trabalho urbano MARIZ 2006 p 3940 Denunciava no discurso aspectos aos quais o PCB se opunha a convivência com condições atrasadas de trabalho a ausência de direitos sociais a ampliação ou efetivação de direitos sociais Afirma ainda Não é o trabalhador rural incapaz de organizarse Não é ele reduzido ao silêncio pela ignorância a que está condenado Não é ele incapaz de reivindicar validamente Pois que pague o preço do desenvolvimento pois que aguarde para as calendas gregas a instalação de sociedade de afluência para a qual certamente nos predestinamos MARIZ 2006 p 4344 Não obstante o próprio Antônio Mariz defenderá a liberação de O País de São Saruê em 1976 É tempo também com certeza de reclamar da Censura a liberação de outro documentário de Vladimir O país de São Saruê Desde 1971 mofa nas prateleiras da burocracia interditado Realizado há cerca de dez anos Ariano Suassuna considerou o diretor uma revelação e o filme uma valiosa contribuição à cultura brasileira MARIZ 2006 p 93207 Mariz tece elogios à realidade apresentada pelo documentário e à sua construção estética afirmando que censurado segundo consta como pessimista contrário às idéias desenvolvimentistas do momento é hoje um documentário antigo mas afirma ainda que Se a denúncia implícita nas imagens encontrar ainda ressonância na realidade atual tanto melhor que sirva de advertência aos homens aos governos Não passou a época das reformas nem se concluiu a construção do Brasil com que sonham os brasileiros MARIZ 2006B p93 206 Originalmente foi publicado no Diário do Congresso Nacional Seção I de 14 de maio de 1971 207 Originalmente publicado no Diário do Congresso Nacional Seção I de 1o de junho de 1976 p 4624 170 Pelo demonstrado nesse discurso Antônio Mariz assume também a própria denúncia do documentário colocando sua atualidade e a pertinência das reformas defendidas ainda na década de 1960 antes do golpe militar Nesse sentido certa confluência ideológica era mútua Considerações sobre o uso da entrevista e o camponês em O País de São Saruê Cabem aqui algumas considerações sobre o uso da entrevista no que dizem respeito à presença de populares em O País de São Saruê Os agricultores e operários apresentados no filme não são entrevistados exceto na sequência do ciclo do ouro que temos o relato de Pedro Alma A entrevista neste documentário representa um momento de transição o filme tem uma parte estruturada sem o uso de entrevistas e outro com um uso ainda em construção pela ausência dos gravadores portáteis As entrevistas eram feitas portanto com dificuldades O documentário tem um discurso no qual as figuras dos sertanejos populares é apresentada na maioria das vezes por outros seja pela poesia de Jomar Moraes Souto pelo discurso imagético dos planos pela voz off e pelos personagens particulares que comentam sua realidade Charles Foster José Gadelha e Antônio Mariz Sua voz é praticamente ausente e nesse sentido O País de São Saruê não deixou de estar próximo a um tipo de filme que falava em nome de outro de classe Aproximase do que Bernadet chamou de uma construção de tipos sociológicos nos quais os atores sociais servem de matériaprima para construção de tipos Eles emprestam suas pessoas roupas expressões faciais e verbais ao cineasta que com elas molda o tipo construção abstrata desvinculada das pessoas com que ele se encontrou na primeira fase O tipo sociológico uma abstração é revestido pela aparência concreta da matériaprima tirada das pessoas o que resulta num personagem dramático Ficamos com a impressão de perfeita harmonia entre o tipo e a pessoa quando o tipo abstrato e geral é todo poderoso diante da pessoa singular que aniquila BERNADET 2003 p 24 Careceria de outro estudo para definir qual é exatamente esse tipo sociológico em comparação com a construção dos filmes indicados por Bernadet Todavia acredito que essa afirmação deva ser relativizada pelo aspecto de que em O País de São Saruê essa construção se dá menos explicitamente como em Viramundo que traz dados sobre uma realidade em um modelo clássico de documentário um tanto didático e com ar grave pois ele almeja uma construção poética dessa realidade No entanto permanece uma clara distinção na construção das personagens particulares e desses trabalhadores O que nos permite indicar dois aspectos 171 aqueles que possuem voz se aproximam da classe do próprio Vladimir Carvalho o que entra no jogo dessa representação e por outro lado essa forma diversa de tratamento também revela a historicidade de um filme que transita entre formas de fazer documentário e possibilidades tecnológicas Nos filmes posteriores do cineasta a presença da voz popular se torna mais presente e autônoma como nos relatos de Conterrâneos Velhos de Guerra que chegam a entrar em confronto com a fala do arquiteto de Brasília Oscar Niemeyer 55 O discurso do documentário A última sequência do documentário poderia ser incluída como uma segunda parte da penúltima sequência Separamos para fins analíticos contudo há uma continuidade ao fim da entrevista com o prefeito de Sousa começamos a ouvir a música tema do filme que ligada ao tema das afirmações de Antônio Mariz e as imagens faz uma síntese do documentário O discurso de Mariz é concluído de maneira otimista refutando a inviabilidade da região E hoje já olham os governos e o povo para a terra do sertão sujeira a estas intempéries como uma terra capaz de criar uma grande civilização E o povo se identifica sic em sua capacidade de superar estes problemas menores do clima para estabelecer uma sociedade próspera uma terra rica de cuja riqueza participem todos CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 12 1h1940 1h2015 Os problemas dos climas são exibidos como menores e ressalta o papel do povo na solução para uma sociedade próspera o que passa pela estrutura agrária como explicitara antes reafirmando a riqueza da terra e da necessidade dela participarem todos Mariz afirma o povo como agente dessa mudança e opõe a isso a estrutura fundiária aproximandose da oposição construída pelo documentário nas sequências do algodão na oposição do bem e do mal ou na de opressor José Gadelha versus oprimido operários Assim o discurso é concluído com uma síntese de aspecto classista embora não dito explicitamente classe Paralela a essa construção no final do discurso de Mariz já começamos a escutar a música tema do filme uma cantoria de caráter sertanejo iniciada com o seguinte verso O avião sobrevoa eh eh Um reino desencantado O gavião vê de longe eh eh As costelas de Eldorado Pra onde ele levou tudo Pra dentro de qual cercado Acauã e seus redores Num mesmo laço jogado CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequências 1213 1h1910 1h20 172 Além de servir de pontuação para indicar o fim do filme pois ela também abre o filme repõe o tema que abre o documentário amarrando metáforas agora mais claras à luz do enredo fílmico Na música a personagem avião que sobrevoa um reino desencantado é sobreposta a de um gavião que observa as costelas de Eldorado208 Essa sobreposição aviãogavião reino desencantadoEl Dorado relaciona tais objetos e os opõem O gavião é uma ave de rapina que sobrevoa para atacar certeiro sua presa A ela se alude o avião cuja única referência anterior consiste na figura de José Gadelha que usa esse veículo imagem retomada em um plano mais à frente que reforça tal interpretação No fim da estrofe a canção fala que o gavião roubou a riqueza e a levou para um cercado símbolo da propriedade privada A esse evento articula a decadência de Acauã e seus redores Afirma ainda Em cima daquela serra eh eh Tem um tesouro enterrado Com suas garras de aço eh eh O gavião voa baixo Ouro prata diamantes E o algodão em penachos Nascendo da terra seca E dos ossos desse riacho CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 13 1h2012 1h2046 Reforçando a rapinagem do gavião símbolos da riqueza como o ouro prata diamantes são relacionados ao algodão em penachos o ouro branco da região Vimos que o gavião se relaciona a figura de José Gadelha que representa genericamente a opressão e o latifúndio que pegam com suas garras tais riquezas A terra seca e os ossos são símbolos da pobreza e decadência aparentemente indicam miséria no entanto são deles que nascem tais benesses A miséria não surge pelo espaço desencantado mas pela rapinagem Essa música portanto faz uma síntese semelhante à apresentada por Antônio Mariz sendo utilizada também para costurar o discurso fílmico assumindo seus argumentos Junto à música imagens mostram elementos já apresentados pelo documentário Reforçase a relação de classe na conclusão do filme como vemos nesses planos 208 El Dorado é uma lenda indígena mal interpretada pelos espanhóis que acreditaram existir uma cidade de ouro na América Diversas explorações foram realizadas buscando essa cidade Pesquisas mais recentes no entanto apontam que o El Dorado não era um lugar mas uma pessoa No filme é utilizada para indicar um reino de riqueza mas que está em decadência daí seus restos serem os ossos de El Dorado 173 174 CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 13 1h2100 1h2210 Os seis primeiros planos se remetem a elementos já exibidos pelo documentário que resgata essa memória para fazer uma síntese Vemos um cemitério sertanejo que se articula com a ideia de um reino desencantado Assistimos novamente imagens como a construção da casa e operários da usina de algodão Por fim o Rio do Peixe indica o espaço e valoriza sua riqueza a água Vemos Charles Foster e depois um popular remando Em seguida a canção diz E a balança dos contentes eh eh eh Pesa a sede dos magoados repetindo enquanto vemos planos significativos populares com armas na mão símbolo de conflito José Gadelha chega à usina no seu carro ostentação popular olha a balança rústica em plano dramático já vimos como a balança representa o símbolo da opressão da pesa do algodão Em seguida sobrepõe insistentemente a imagem de São Miguel Arcanjo e da senhora trabalhando na usina do algodão retomando o símbolo da justiça e do conflito entre bem e mal Mais uma vez é relacionado um plano de Gadelha olhando dono da situação Esse plano articulase à construção anterior e à próxima um plano de populares catando algodão no chão com a câmera em contraplongé deixandoos em enquadramento que valoriza sua submissão enquanto o plano de Gadelha o deixa maior dominador Um plano de Gadelha acenando da janela do avião com sorriso é sobreposto a um plano de populares de rostos sérios assistindo ao bumba meu boi Por fim o caçador maltrapilho da pequena presa conclui o filme em vários planos até desferir um tiro contra o sol Tendo em vista a alusão ao gavião que voa alto poderíamos atribuir também este a uma reação à opressão do gavião avião José Gadelha latifúndioresquício feudalsituação de subdesenvolvimento 175 Considerações Finais No Capítulo 3 explicitamos a metodologia assumida para a análise de O País de São Saruê a partir da semiótica lançando mão dos conceitos de quadrado semiótico e de programas de base na construção de uma narrativa que visa a realização de uma performance Identificamos elementos da construção de uma representação do sertão baseada no mundo do trabalho e elaborada por Vladimir Carvalho cujas marcas podem ser identificadas em sua atitude ética nas filmagens e especialmente no processo de montagem Localizamos algumas influências para Vladimir Carvalho da literatura regional de Euclides da Cunha e do historiador Capistrano de Abreu problematizadas pela análise Relacionamos à subcultura política comunista cujo raio de influência chegou a outros intelectuais localizando o debate circundante nas instituições políticas que o cineasta se ligara durante a década de 1960 PCB e o CPC Apontamos o debate interno e a linha oficial do PCB contextualizando essas influências para sua leitura sobre a questão agrária brasileira Nosso tema eleito foi o mundo do trabalho Identificamos nas primeiras sequências de O País de São Saruê como o cineasta apresenta o espaço e o homem Há uma construção de um espaço físico hostil aos moldes euclidianos mas também afetuoso com um passado de opressão e exploração da população indígena que se relaciona com o surgimento do próprio sertanejo surgido em um contexto de imutabilidade primitivismo que sofreu transformações históricas com muitos conflitos sangue exploração e trabalho Apresentase então o sertanejo popular laborioso e de cultura peculiar em declínio a civilização do couro Em seguida analisamos as duas sequências que abordam a produção do algodão a primeira mostra o plantio e a segunda o caráter industrial Identificamos a centralidade da miséria das relações de classe da exploração do homem pelo homem e da precariedade da produção apresentada como injusta através de várias metáforas Essa denúncia social está sintetizada particularmente na metáfora da balança de São Miguel Arcanjo símbolo da luta do bem contra o mal da justiça contra a injustiça mas articulada à balança concreta da pesagem do algodão rústica real e símbolo da má remuneração do camponês sertanejo Na sequência seguinte na fase industrial é apresentado o antagonista da população popular sertaneja José Gadelha representação do dono de terras e parte da burguesia local Ele é depois relacionado ao gavião referido na música e nas imagens de abertura nas quais vemos uma ave de rapina em sobrevoo e retomado na sequência que conclui o filme Apresentamos seu discurso e contextualizamos a oligarquia dos Gadelha em Sousa tema não 176 explícito pelo documentário além de mostrar como o áudio e imagens de Gadelha e os planos dos operários foram montados de maneira a construir uma oposição de classe Por fim analisamos o uso das entrevistas contrapondo a entrevista de José Gadelha e de Antônio Mariz feitas de maneira desigual a primeira apresentada com ambiguidades e contrapontos e a segunda assumida pelo documentarista em discurso progressista que critica a estrutura fundiária do sertão Mostramos como a sequência de imagens que concluem o filme sintetiza a discussão realizada durante o filme colocando o sertanejo como agente de uma possível transformação social e antagonizandoo a José Gadelha que representa o latifúndio e da exploração fabril Ele é o gavião o outro de classe responsável por só restarem os ossos do El Dorado lamentados pela música tema de O País de São Saruê Cada sequência representa um pequeno episódio da narrativa e possuem diversos programas de base Como vimos primeiro se apresenta o espaço sequência dois com o antagonismo vida x solclima colocando em jogo a questão climática do sertão Em seguida o homem ocupa a terra e realiza sua performance da ocupação dominação da natureza mas logo surgem os conflitos da colonização e o massacre dos índios pelos bandeirantes A poesia de Jomar Morais Souto além de informar sobre tais eventos anuncia que um dia voltarão às mãos desses homens suas riquezas espoliadas Há portanto um programa de base que não se realiza a reconquista do produto do trabalho dos populares índiossertanejos pobres e outra em aberto a permanência da exploração pelo Gavião que sobrevoa as costas de El Dorado Inicialmente na sequência da pecuária os sertanejos se mostram em conflito com o clima para a realização de seu programa de base a sobrevivência Apresentase o tema da seca Nas sequências do algodão é apresentado outro conflito a exploração do homem pelo homem Como vimos ela é reforçada como uma luta de injustiças na metáfora que envolve São Miguel Arcanjo o Satanás e a balança Sugerese sutilmente a necessidade de uma luta O antagonista mais cruel o Satanás é relacionado sutilmente ao latifúndio e a exploração fabril Essa oposição é reforçada durante a sequência da usina de algodão que opõe Gadelha e seus trabalhadores ou seja empregados e patrão Por fim a penúltima sequência apresenta o discurso de Antônio Mariz assumido pelo próprio filme justificando o subdesenvolvimento do sertão pela estrutura fundiária Depois na última sequência as imagens embaladas pela canção tema reforçam a oposição de classe pelas metáforas já referidas Esta construção pode ser sintetizada nesse quadrado semiótico 177 Neste quadrado semiótico em nível de conteúdo estão opostas exploração e justiça desenvolvimento e subdesenvolvimento riqueza e miséria Vimos como tais elementos estão presentes no discurso documentário cruzandose hora explicitamente através da voz over ou do discurso de Antônio Mariz hora construídos esteticamente pela linguagem cinematográfica montagem e até pela própria construção interna dos outros materiais artísticos que o documentário lança mão poesias músicas imagens etc Temos a oposição desenvolvimento e subdesenvolvimento que relacionamos às teses pecebistas sobre os rumos nacionais para os quais o progresso brasileiro detinha um obstáculo o atraso e relações predatórias no campo brasileiro entre os quais se inclui o sertão O documentário constrói a nível estético as oposições exploração e justiça riqueza e miséria A primeira relacionamos especialmente a sequência do algodão na oposição criada com a balança São Miguel Arcanjo e o Satanás e a pesagem do algodão e também na oposição entre o discurso e as imagens que mostram o usineiro José Gadelha e os homens e mulheres que trabalham na SANBRA A oposição riqueza e miséria está na música tema do documentário sutilmente através de imagens como no início do documentário com a exibição de água antes de mostrar a secura do espaço ou na música falando de riquezas que um gavião levou para um cercado ou dramaticamente como a pequena caça que alimentaria a família sertaneja ou novamente na oposição dos planos de 178 Gadelha em seu carro luxuoso enquanto seus trabalhadores pobres e até maltrapilhos se esforçam na usina O gavião é um agente dessa miséria prendendo a riqueza e impedindo a existência de El Dorado ou seja o espaço de felicidade riqueza fartura o próprio São Saruê utópico da poesia de Manoel Camilo dos Santos ao qual se refere o título do documentário Misturados no plano semissimbólico ou seja nos significados construídos na relação entre conteúdo e estética há a possibilidade das performances da miséria e da riqueza A primeira se concretizaria através de diversos programas de base apresentados durante o documentário o gavião ao prender o tesouro ouro prata diamantes e o algodão em penachos em um cercado os bandeirantes ao tomarem as terras dos índios negando o reino que o sertão sempre quis José Gadelha ao continuar explorando seus operários e os cultivadores do algodão Mas vale lembrar que essas realizações de programas não encerram a narrativa de O País de São Saruê O documentário faz a denúncia de um lugar de miséria por tais performances todavia aponta caminhos para outras possibilidades deixando no ar uma possível utopia o sertanejo que atira contra o sol ou seria contra o gavião o sertanejo que atira contra o piado de acauã ou a figura ambígua de São Miguel Arcanjo Cabe voltar a essa produtiva metáfora do filme São Miguel Arcanjo é o único dentre as listadas oposições que está realizando sua performance ele pisa o Satanás Porém como vimos isso é mostrado em articulação com uma realidade concreta de injustiça a balança da filmagem que desvaloriza a produção do apanhador de algodão Além disso a poesia de Jomar Moraes Souto roga e pede ajuda a São Miguel Arcanjo portanto a imagem representa um desejo uma aspiração de justiça mesmo que a nível religioso do sertanejo Podemos somar a isso a discussão entre estrutura e superestrutura já indicada pois esta é uma performance que se quer realizar desejo religião e ideologia mas não concretizada exploração concreta nas filmagens Ainda assim a montagem do filme valoriza o símbolo do anjo que luta com sua espada contra o inimigo sugerindo a possibilidade de reagir contra a opressão Somamse a isto o discurso de Antônio Mariz um locutor auxiliar do documentário que valoriza o sertanejo enquanto agente da transformação política e o plano que conclui o filme do sertanejo atirando contra o sol ou contra o gavião A saída seria então a revolução ainda que nacional e democrática Há assim em O País de São Saruê não só uma denúncia social mas também um horizonte de utopia Como afirma Mattos em primeira pessoa sobre o cineasta entre Beckett e Brecht fico com Brecht O homem tem saída sim 2008 p 71 O filme se apropria de uma produção que entendia os sertanejos e suas características e o sertão e seu subdesenvolvimento através do obstáculo da concentração fundiária Esta foi uma cultura histórica muito forte que influenciou diversos artistas ligados ao romantismo 179 revolucionário Daí que tal cultura histórica se relacione a uma cultura política e que identifiquemos que o filme detinha uma vontade de intervenção política a fim de chamar atenção para o subdesenvolvimento suas causas mobilizando uma parcela da população especialmente estudantil para abraçar as bandeiras da reforma agrária da revolução nacional democrática e de um projeto político para o país Esta mobilização se fazia com um horizonte de expectativas que visava o fim da ditadura e construção de uma sociedade mais desenvolvida ou em utopia última na qual os meios de produção fossem socializados Por isso dentro de nossa hipótese de que Vladimir Carvalho elabora uma representação do sertão a partir do mundo do trabalho consideramos que a análise realizada das sequências mostra sua inserção na cultura política de influência marxista e pecebista e no fenômeno que Marcelo Ridenti 2000 chamou de romantismo revolucionário Mostramos como essa cultura política se apresenta no conteúdo e na estética do filme mesclandose com outros elementos da formação do cineasta Acreditamos ser esse um caminho bom e produtivo para a utilização do cinema como fonte histórica a procura de entender seus meandros estéticos e sua discussão com os discursos contemporâneos para a representação que elabora Essa ligação com a política no entanto não resume a elaboração do discurso fílmico Outras influências importantes como Euclides da Cunha foram centrais Daí que caiba comentar que O País de São Saruê e Os Sertões por exemplo aproximemse além dos elementos de conteúdo indicados no aspecto da linguagem Os Sertões chama atenção por uma tentativa de unir uma linguagem científica e artística representando um desafio encaixá lo em uma única categoria literária Em O País de São Saruê por sua vez há uma abordagem por vezes sociológica que apresenta dados científicos através da utilização da voz de deus cuja credibilidade de maneira cinematográfica aproximase da elaboração euclidiana Por outro lado ambos assumem forte caráter poético para apresentar a realidade sertaneja O filme pelos materiais utilizados como poesia canções e imagens mas também pela sua estrutura narrativa Encaixar O País de São Saruê entre ficção e documentário foi também um desafio Quando O País de São Saruê foi realizado queria ir além do núcleo de intelectuais de esquerda e disputar com o discurso do milagre econômico do regime militar Contudo sua liberação nove anos depois o deixou mais conhecido pela sua luta contra a censura que pelo seu conteúdo e estética a certa maneira atrasados em relação às mudanças já ocorridas Fizemos uma análise da construção narrativa e dos símbolos presentes nos planos nas sequências e nos sons do documentário O filme apresenta uma gênese do sertão e da problemática contemporânea daquela região em jogo presentepassado Para tanto inseriase em uma cultura cinematográfica que se relacionava com a influência de Robert Flaherty do 180 neorrealismo italiano e do Cinema Novo na prática artística de Vladimir Carvalho temas parcialmente trabalhados e passíveis de aprofundamento futuro No âmbito da cultura histórica além da citada formação partidária e literária a leitura de Capistrano de Abreu e de Josué de Castro são contribuições abordadas no decorrer da dissertação mostrando os entendimentos sobre a realidade rural sertaneja que nortearam o documentário em sua representação do sertão Nossa pesquisa almejou contribuir com as discussões sobre a relação entre Documentário e História recolocar a produção de Vladimir Carvalho cineasta da Paraíba estado no qual se localiza nossa instituição a Universidade Federal da Paraíba trazendo a discussão do cinema para o âmbito da produção local No século XXI mais do que nos anteriores as produções audiovisuais são centrais nos conflitos simbólicos sendo tal discussão de extrema importância para o historiador e para o professor de nosso tempo Além disso nossa pesquisa também representa uma pequena participação na reflexão tão atual também sobre a memória daqueles que resistiram à ditadura militar e se contrapuseram a ela bem como sobre a situação agrária cuja problemática da concentração fundiária não foi resolvida até hoje 181 REFERÊNCIAS Filmes A Bolandeira Direção e produção Vladimir Carvalho Brasil 1968 A Opinião Pública Direção Arnaldo Jabor Brasil 1967 A Pedra da riqueza Direção Vladimir Carvalho Brasil 1975 Aruanda Direção Linduarte Noronha Brasil 1960 de um verão Chronique dun été Direção Edgar Morin Jean Rouch France 1961 Deus e o Diabo na Terra do Sol Direção Glauber Rocha Brasil 1964 Homem de Aran Man of Aran Direção Robert Flaherty Reino Unido 1934 Nanook o esquimó Nanook of the North Direção Robert Flaherty Estados Unidos França 1922 O País de São Saruê Direção e produção Vladimir Carvalho Brasil 1971 Psicose Direção Alfred Hitchcock EUA 109 1960 Rio 40 graus Direção Nelson Pereira dos Santos Brasil 1955 Roma Cidade Aberta Roma Città ApertaDireção Roberto Rossellini Itália 1945 Literatura CUNHA E Os Sertões Ed especial Rio de Janeiro Nova Fronteira 2011 RAMOS Graciliano Vidas Secas 115ª Ed Rio de janeiro Record 2011 SOUTO Jomar Morais Breve roteiro para o Pais de São Saruê Via Rio do Peixe In SOUTO Jomar Morais Fazenda de Murmúrios João Pessoa Editora UniversitáriaUFPB 1980p2336 REGO José Lins do Menino de Engenho 84ª Ed Rio de Janeiro José Olympio 2002 Biografia e depoimentos MARINHO J Dos homens e das Pedras o ciclo de cinema documentário paraibano 1959 1979 de José Marinho Niterói EDUFF 1998 MATTOS C A Vladimir Carvalho Pedras na Lua e Pelejas no Planalto São Paulo Imprensa Oficial 2008 Entrevistas 182 CARVALHO Entrevista realizada em 03 Novembro de 2001 por Marília Franco Disponível em httpwwwmnemocinecombraruandavcarvalho3htm Acesso em 06 nov 2012 CARVALHO Entrevista realizada em por Alessandra de Paula em 24 de Outubro de 2007 Disponível em httpwwwalmanaquevirtualcombrlerphpid10773tipo23tipo2almanaquecot1 PHPSESSID0ce1d4a1e23aaa3a1240b53c32a72a02 Acesso em 15 ago 2013 CARVALHO Entrevista realizada em 28 de junho de 2004 Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural NEAD do Ministério do Desenvolvimento httpwwwneadgovbrportalneadnoticiasitemitemid4986219 Acesso em 15 de ago 2013 Documentos 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agrária no Brasil o debate na esquerda 1960 1980 São Paulo Expressão Popular 2005 P 35100 GUIMARÃES Alberto Passos Quatro séculos de latifúndio 6 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1989 1963 KONDER L Marxismo e Alienação contribuição para um estudo do conceito marxista de alienação 2ed São Paulo Expressão Popular 2009 1965 LÉLIS João O Garimpo de São Vicente Facsimilar de Ed De 1946 João PessoaPB Empório dos Livros 2000 MARIZ Antônio Programa de Assistência ao Trabalhador Rural Perfis Parlamentares Antônio Mariz In LISBOA Cláudia org Brasília Plenarium Editora da Câmara dos Deputados Coordenação de Publicações 2006 p3745 A 183 MARIZ Antônio Elogio ao filme Pedra da Riqueza sobre a vida do garimpeiro nordestino In Perfis Parlamentares Antônio Mariz LISBOA Cláudia org Brasília Plenarium Editora da Câmara dos Deputados Coordenação de Publicações 2006 P9293 B MARTINS C E Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura Março 1962 In Hollanda H B Impressões de Viagem CPC vanguarda e 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Roger Brasil Terra de Contrastes 8ª ed Rio de Janeiro Difel 1978 1957 BEHAR Regina M R Conterrâneos Velhos de Guerra o cinema escreve a história vista de baixo Cultura História e Historiografia legados e contribuições do século 20 Cláudia Engler Cury Elio Chaves Flores Raimundo Barroso Cordeiro Jr org João Pessoa Editora universitáriaUFPB 2010 pp183202 BENJAMIN Walter Sobre o conceito da História In WALTER B Magia e técnica arte e política ensaios sobre literatura e história da cultura Trad Sérgio Paulo Rouanet 7ªed São Paulo Brasiliense 1994 p222234 BERNARDES D M Notas sobre a formação social do Nordeste Lua Nova São Paulo 71 4179 2007 BERNARDET J C Cineastas e Imagens do Povo São Paulo Cia das Letras 2003 BERNARDET JeanClaude e GALVÃO Maria Rita O Nacional e o Popular na cultura brasileira Cinema São Paulo Brasiliense 1983 BOURDIEU P A identidade e a representação elementos para uma reflexão crítica sobre a ideia de região In BOURDIEU P O poder simbólico Rio de Janeiro Bertrand 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do cinema Mundial Campinas SP Papirus 2006 Coleção Campo Imagético p159177 191 APÊNDICE A TABELA DAS SEQUENCIAS DE O PAÍS DE SÃO SARUÊ TEMAS MATERIAIS VISUAIS MATERIAIS DE ÁUDIO DURAÇÃO SEQUENCIA 0 Créditos da remasterização do filme Informações sobre a remasterização do filme Nenhum 0 156 SEQUENCIA 1 Introdução do documentário Grandes Planos do sertão créditos e letreiros que oferecem informações sobre o filme e seus temas Músicatema de O País de São Saruê 156 0513 SEQUENCIA 2 Sertão espaço geográfico e ocupação Construção da civilização sertaneja Filmagens do espaço físico sertanejo Filmagens de homens trabalhando na limpeza do terreno construção de casas Declamação da poesia de Jomar Morais Souto 0513 1154 SEQUENCIA 3 O vaqueiro e sua cultura A seca Filmagens do trabalho de vaqueiros Filmagens do Cavalo Marinho Filmagens de gado doente sofrendo pela seca Locutor com voz de deus Cantoria do vaqueiro José de Arimatéia Música popular em rabeca e do Cavalo Marinho 1154 1915 SEQUENCIA 4 Capela de Acauã Filmagens da Capela de Acauã Declamação da poesia de Jomar Morais Souto 1915 2104 SEQUENCIA 5 Modernização do sertão Declínio da elite de Acauã Filmagens da Fazenda de Acauã Fotografias da família da fazenda de Acauã inauguração do trem de ferro primeiros carros ford cangaço Locutor com voz de deus Declamação da poesia de Jomar Morais Souto Som de piano toca uma polca 2104 2529 192 Primeiro contraste entre ricos e pobres no sertão construção da Igreja Matriz Filmagens de temas das fotografias nos tempos da filmagem Filmagem de banda que tocava na praça de Sousa Filmagens de um parque no sertão SEQUENCIA 6 Cultivo do algodão Família Camponesa Miséria Filmagens da colheita do algodão Filmagens de família de catadores de algodão Imagem de São Miguel Arcanjo submetendo um demônio Filmagens da pesa do algodão Narração da poesia de Jomar Morais Souto Locutor com voz de deus Música Acauã 1952 de Luís Gonzaga 2529 3447 SEQUENCIA 7 Etapa industrial da produção algodoeira A família de José Gadelha e sua usina de algodão Filmagens da usina de SANBRA e de seus trabalhadores Filmagens da cidade de Sousa Filmagens de José Gadelha Voz over locutor voz de deus Entrevista com José Gadelha 3448 4117 SEQUENCIA 8 Circulação de mercadorias Feira sertaneja Declínio da civilização do couro Filmagens da feira de Sousa Narração da poesia de Jomar Morais Souto Locutor com voz de deus Produtos industriais estrangeiros Música de Roberto Carlos Quero que vá tudo pro inferno 1965 Declamação da poesia de Jomar Morais Souto Locutor com voz de deus 4117 4531 SEQUENCIA 9 Voluntários norteamericanos no sertão e a Guerra do Vietnã Filmagens locais de Charles Foster na comunidade sertaneja Jornais Produtos industriais estrangeiros Era um Garoto 1967 pela banda de rock brasileira Os Incríveis Entrevista com Charles Foster 4531 5000 193 SEQUENCIA 10 Ciclo do ouro no sertão Filmagens espaço de mineração e entrevista com Pedro Alma e Zeca Inocêncio Filmagens de Chateaubriand Suassuna em casa e mostrando onde haveria minério em Catolé do Rocha Paraíba Vladimir Carvalho e sua equipe aparecem nas filmagens Filmagens de cidade fantasma Locução voz de deus Entrevistas com José Inocêncio e com Pedro Alma Declamação da poesia de Jomar Morais Souto Música ao fundo da entrevista fabulosa 5000 1h0500 SEQUENCIA 11 Extração de minérios no sertão Filmagens da cidade e equipe do filme em consulta com especialista em minérios Fotografia Jornal Locutor com voz de deus Sons de bichos Música com violino violão Música fabulosa Música regional Declamação da poesia de Jomar Morais Souto 1h0500 1h1402 SEQUENCIA 12 O povo sertanejo e o governo Síntese da questão agrária sertaneja Filmagens Fotografia retratos de populares enchente em Sousa Getúlio Vargas Música de Rabeca Entrevista com Antônio Mariz Música tema de O País de São Saruê 1h1402 1h20 SEQUENCIA 13 Conclusão do filme síntese fílmica Filmagens diversas exibidas durante o filme Foto de Getúlio Vargas Imagem São Miguel Arcanjo Letreiro fim Música tema de O País de São Saruê 1h206 194 ANEXO A FILMOGRAFIA DE O PAÍS DE SÃO SARUÊ Fonte wwwcinematecagovbr O PAÍS DE SÃO SARUÊ Outras remetências de título O SERTÃO DO RIO PEIXE Categorias Longametragem Sonoro Não ficção Material original 35mm BP 90min 2468m 24q Data e local de produção Ano 1971 País BR Cidade Rio de Janeiro Estado GB Certificados Certificado de Produto Brasileiro 075 de 24081971Certificado de Produto Brasileiro revalidado 332 de 101079 produtora Pilar Filmes Data e local de lançamento Data 19790811 19791105 19800815 Local Timóteo MG Rio de Janeiro RJ São Paulo SP Salas Ricamar Cinesesc Sinopse Há três séculos as terras secas do Nordeste foram conquistadas à grande nação dos índios Cariris pelos bandeirantes e colonos Distantes do Litoral estabeleceram as primeiras fazendas de gado desenvolvendo uma cultura pastoril e agrícola Após um grande desenvolvimento gerando um período de fausto essas fazendas caracterizadas pelo regime de senhores e servos estagnaramse economicamente Com o início de um novo ciclo econômico o do ouro em Minas Gerais essas regiões foram abandonadas mas seus proprietários deixaram atrás de si um imenso potencial de riqueza ainda inexplorado Trezentos anos depois essas terras permanecem tal como foram deixadas pelos seus pioneiros ocupantes À custa de muitas lutas os novos colonos tentam nelas sobreviver Documentário apoiado em entrevistas com sertanejos líderes políticos e empresários nos sertões da Paraíba Pernambuco Rio Grande do Norte e Ceará extraído do Guia de Filmes 79 Gênero Documentário Termos descritores Literatura Seca Nordeste Descritores secundários Literatura de cordel Termos geográficos Sousa PB Prêmios Prêmio Especial do Júri no Festival de Brasília 11 1978 Brasília DF Produção Companhias produtoras João Ramiro Mello Produções Cinematográficas Produção Carvalho Vladimir Mello João Ramiro Distribuição Companhias distribuidoras Embrafilme Empresa Brasileira de Filmes SA Argumentoroteiro Argumento Carvalho Vladimir Roteiro Carvalho Vladimir Estória Baseada no poema Viagem a São Saruê de Santos Manuel Camilo dos Direção Direção Carvalho Vladimir Assistência de direção Carvalho Walter Fotografia Direção de fotografia Clemente Manuel Câmera Clemente Manuel Montagem Montagem Leone Eduardo Assistente de montagem Genis Dora Música Música Nazareth Ernesto Siqueira José Gonzaga Luiz Vinicius Marcus Locação Fazenda Acauã oeste da Paraíba PE RN CE Identidadeselenco Gadêlha José usineiro e parlamentar Foster Charles Peace Corps Alma Pedro pioneiro do ouro Inocêncio Zeca ex garimpeiro Mariz Antônio Narração Pontes Paulo Conteúdo examinado S Fontes utilizadas CBTranscrição de letreirosCat 195 WLDCP ASCR WLCP ALSNDFBLM FRLFMECB Guia de Filmes 79 FBR16 Pressrelease FBR37 Fontes consultadas O Estado de S Paulo 10081980 LFMDCB Observações Letreiros iniciais Nos vales dos rios do Peixe e Piranhas no extremo oeste da Paraíba nordeste do Brasil espalhase por cêrca de 20 municípios numa área superior a 8000km2 uma população estimada em 500mil viventes Ricos e pobres são todos descendentes de colonos porugueses aí chegados no século XVII e de índios que durante a conquista formavam a confederação dos Cariris e foram dizimados pelos bandeirantes perdendo suas terras transformadas em datas e sesmarias A criação de gado e o rude trato da terra emprestaram a êsses vales uma feição cultural marcante e idêntica à que em geral se observa em todo sertão nordestino Mas desgraçadamente também nessas paragens uma minoria detem a posse da terra e dos bens que o esfôrço do homem retira dela O resultado é a injustiça e a humilhação Por isso qualquer semelhança com a história de outros sertões não é mera coincidência mas semelhança mesmo O Estado de S Paulo de 10081980 indica Rio de Janeiro e Brasília como local de lançamento em 11081979 e duração de 85 minutos ALSNDFBLM indica filme produzido em 1971 e só lançado em 1979 ASCR informa que este documentário foi ampliado de 16mm para 35mm com 90 minutos Informa também que após a sua montagem final recebeu o título PAÍS DE SÃO SARUÊ O e não mais SERTÃO DO RIO PEIXE O e que foi proibido pela Censura Federal sendo liberado apenas em 1979 LFMDCB estabelece as datas de 1967 e 1971 para o período correspondente entre a produção e o lançamento liberado pela Cesura Federal WLCP informa a existência do documentário em preto e branco de 65 minutos realizado em 1967 SERTÃO DO RIO PEIXE direção montagem e produção de Carvalho Vladimir Fotografia de Clemente Manoel E poematexto de Souto Jomar Morais de Tratase da versão anterior de PAÍS DE SÃO SARUÊ O Segundo WLDCP os primeiros passos foram dados em 1966 quando Carvalho Vladimir filmou algumas cenas da cidade de Sousa PB a pedido do então prefeito Mariz Antonio PAÍS DE SÃO SARUÊ O é uma versão maior mais profunda mais bela ainda de SERTÃO DO RIO PEIXE O concluído em 1968 e praticamente rodado naquela cidade Entre os objetivos de Carvalho Vladimir esteve o de mostrar as contradições do homem do campo a partir das lições colhidas com a existência das Ligas Camponesas Artesanal foi realizado num clima de documentar a dura realidade do campo Só posteriormente já com os elementos influenciadores do mundo de cordel é que ganhará os toques poéticos que o marcam definitivamente quase na fase final de sua montagem com a adição do material rodado entre 1969 e 1970 Concluído em 1971 e apesar de recebido com euforia foi vetado pelo governo por ferir a dignidade e os interesses nacionais E só voltaria a ser exibido em 1979 FRLFMECB estabelece a produção deste longametragem em três etapas 1966 quando foi interrompido pela chuva e teve de esperar que o sertão reapresentasse a mesma paisagem em 1967 quando pôde terminar as filmagens e no final de 1970 ano de conclusão do filme A mesma fonte informa existir uma primeira versão em 16mm com as filmagens de 1966 e com cerca de 50 minutos chamado SERTÃO DO RIO PEIXE O montada por Carvalho Vladimir de no Rio de Janeiro e exibida na Maison de France tendo participado do FESTIVAL DE VIÑA DEL MAR no Chile FBR37 informa o relançamento do filme em cópia restaurada durante o Festival de Brasília 37 2004 Brasília DF A mesma fonte acrescenta como produtor associado Coutinho Marcus Odilon Ribeiro Material examinado apresenta letreiros referente à restauração do filme em 20032004 por iniciativa do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro 196 ANEXO B MATERIAIS DE ÁUDIO TRANSCRITOS DE O PAÍS DE SÃO SARUÊ MÚSICA TEMA DE O PAÍS DE SÃO SARUÊ Em cima daquela serra eh eh tem um tesouro enterrado Com suas garras de aço eh eh o gavião voa baixo Ouro prata diamantes e o algodão em penacho Nascendo da terra seca e dos ossos desse riacho O avião sobrevoa é é um reino desencantado O gavião vê de longe as costelas de Eldorado E a balança dos contentes eh eh eh Pesa a sede dos magoados E a balança dos contentes eh eh eh Pesa a sede dos magoados CANTORIA D VAQUEIRO JOSÉ DE ARIMATÉIA Esse mundo de meu Deus é mesmo que uma balança Com a morte tudo se acaba com a vida tudo se alcança A vaquejada de Sousa não me sai da lembrança Uma coisa triste no mundo é uma seca no sertão O gado berra com fome é de cortar o coração Quando é mês de maio chora vaqueiro e patrão eh boi 197 ENTREVISTA COM JOSÉ GADELHA V Carvalho Seu Gadelha a família Gadelha é paraibana Gadelha Sim A família Gadelha é paraibana Entretanto somos descendentes do Ceará pois meu avô Manuel da Costa Gadelha emigrou muito jovem para a cidade de Sousa aí casando constituiu família e desta união nasceu meu pai Manuel Gadelha Filho que casouse com Joaquina de Paiva Gadelha e dessa união nasceram sete filhos quatro homens e três mulheres sendo o primeiro André Gadelha exvicegovernador do estado Clotário de Paiva Gadelha é este que lhe fala ambos sócios da firma André Gadelha Irmãos Em 1933 iniciamos a nossa vida comercial arredando uma bolandeira do saudoso José Avelino de Oliveira no sítio Pompéia Em 1936 compramos um mecanismo à margem do rio do Peixe que circunda a nossa cidade ao falecido Júlio Marques de Melo Em 1958 transferimos este mecanismo obsoleto para a cidade com novas instalações daí nasceu o nosso êxito na vida comercial Construímos mais uma fábrica de óleo construímos também uma fábrica de doces Montamos um cinema E agora estamos concluindo uma montagem de rádio que aliás está dando muito trabalho em face da politicagem mesquinha que se está travando em torno dela Temos feito alguma coisa por nossa cidade já doamos a Sousa uma maternidade das mais bem equipadas do interior do estado Doamos um terreno para a escola de treinamento doamos um terreno para o DNOCS doamos um terremo para a construção do Hospital Regional de Sousa Doamos também um terreno para a construção da Coletoria de Sousa É um prédio pomposo que honra nossa cidade E há poucos meses atrás comprei um hotel o Gadelha Palace Hotel o terceiro do estado da Paraíba Isso com a finalidade única de ajudar à minha terra e á coletividade V Carvalho Muito bem Que acha da atual situação do homem do campo na região sertaneja Gadelha A situação do homem do campo na região sertaneja é a mais precária possível É uma gente desprotegida dos poderes federais estaduais e municipais Não há ajuda do governo não há crédito para que essa gente possa se desenvolver E vive subjugada aos bancos particulares pois o crédito que o banco do Brasil e o Banco do Nordeste lhes dá é por demais insuficiente para atender às suas necessidades É uma gente que sofre tremendamente é uma gente que nunca deixou de ser gente endividada e não creio que dentro 198 de pouco tempo seja resolvido o problema dessa gente V Carvalho Seu Gadelha o senhor que falou do problema do homem do campo que experiência tem como agricultor Se tem Gadelha Ora meu querido eu na vida já fui tudo Eu fui vaqueiro já limpei meu roçado não por diletantismo mas por necessidade lidei muito tempo na lavoura Por isso minha experiência por isso a razão que eu digo que não há salvação para a gente do Nordeste isto é a gente que lida na agricultura se não houver ajuda do governo Que essa demagogia desses homens que andam por aí afora passe e venha a realidade da vida para ajudar a eles Eu já fiz de tudo como já disse na vida Eu já puxei cobra para os pés isto é já limpei meu roçado como lhe disse por necessidade Creio que lhe dizendo isto é o suficiente para você saber que eu sou um homem que já passei por todas as experiências da vida V Carvalho Sr Gadelha para finalizar gostaria de lhe perguntar a que o senhor mais aspira na vida de agora por diante que já está um homem quase que um homem realizado praticamente Gadelha Ora meu caro realmente eu sou um homem realizado A única aspiração que eu tenho na vida é essa que estou fazendo disputando uma cadeira de deputado federal para no caso de ser eleito ajudar ao Nordeste e principalmente ao sertão paraibano e de modo muito especial à minha querida Sousa 199 DISCURSO DE ANTÔNIO MARIZ Como prefeito de uma cidade do sertão vivo com o povo desta área o próprio drama do subdesenvolvimento Para a Prefeitura convergem todos os problemas da população Praticamente não se nasce não se sofre não se morre sem que a Prefeitura intervenha Parece curioso isso mas não é mais que o retrato da realidade Ao nascer é o batizado é o registro civil Se adoece é o remédio Ao morrer é o caixão em que se vai enterrar Tudo se vai pedir à Prefeitura Mas esse pedir permanente não revela ociosidade nem aversão ao trabalho como poderia parecer aos mais rigorosos ou intolerantes É antes a imagem da pobreza regional que não decorre nem da natureza nem do temperamento nem da formação do povo Mas que é o fruto de longos erros acumulados na forma de explorar a terra na forma de criar e distribuir riquezas Muitos pensarão à primeira vista que o problema do nordestino é só o problema da seca e raramente o problema das enchentes Mas longe da seca e da enchente muito mais grave é o problema da estrutura agrária Nós temos porém tendência no sertão a captar somente o problema do clima E de fato existe um problema do clima a seca a enchente E então as secas jogam o povo nas ruas Faz com que esses camponeses humildes reverentes permanentemente em quem não se adivinha à primeira vista a fibra a coragem a decisão de viver e de crescer faz com que este povo perca esta aparente humildade e se revele em sua grandeza em sua força ao assaltar a feira ao invadir as lojas o comércio ao tomar a cidade ao bradar ao exigir os seus diretos A seca a enchente já perderam muito do pavor que eles representavam antigamente mas a lenda permanece A seca de 1877 uma seca tão velha está ainda presente na memória do homem do sertão Ninguém se lembra mais que naquele tempo não havia estradas não havia comunicações não havia grandes açudes e por isso o pânico daquele tempo ainda hoje vale A seca tem um grande prestígio todos a temem com terror e pânico A enchente também causa grandes prejuízos Iguais até aos da própria seca Mas a enchente não faz medo o sertanejo reverencia a chuva e a enchente Ele não ousa indignarse contra a enchente A isto está condenado pelo medo permanente do estio Mesmo que o estio já não devesse causar tanto medo às novas condições econômicas à nova estrutura econômica do 200 sertão A seca os campos queimados a terra rachada os retirantes as cidades invadidas de famílias inteiras as obras paralisadas a má remuneração tudo isto existe é verdadeiro Como existe também o prejuízo da enchente A cidade inundada os baixios tomados as colheitas destruídas Estes são os problemas que de fato devem merecer a atenção dos governos Apenas o que digo é que não são o fundamento as causas profundas do subdesenvolvimento nordestino Eles existem mas são perfeitamente controláveis E de certa forma estão sendo controlados E felizmente tanto os governos como o povo já compreendem isto E hoje já olham para a terra do sertão sujeira a estas intempéries como uma terra capaz de criar uma grande civilização E o povo se identifica sic em sua capacidade de superar estes problemas menores do clima para estabelecer uma sociedade próspera uma terra rica de cuja riqueza participem todos 201 ANEXO C POESIA DE JOMAR MORAIS SOUTO REALIZADA PARA O DOCUMENTÁRIO O PAÍS DE SÃO SARUÊ Jomar Morais Souto é um poeta paraibano que nasceu em Santa Luzia do Sabugi em 1935 Ganhou em 1961 o Prêmio Augusto dos Anjos com os poemas de Pedra de Espera em 1985 ganhou o prêmio nacional de poesia no concurso Quarto Centenário da Paraíba com o Canto da Capitania Real de Nossa Senhora das Neves Foi contratado por Vladimir Carvalho seu admirador para fazer uma poesia para o documentário O País de São Saruê O cineasta mostrou as filmagens realizadas até então e um esboço de roteiro para que Jomar Souto se baseasse A poesia completa transcrita realizada para O País de São Saruê pode ser encontrada no livro de poesias de Jomar Morais Souto Fazenda de Murmúrios 1980 publicado pela Editora Universitária da Universidade Federal da Paraíba A poesia não foi utilizada em sua totalidade no filme e é possível identificar algumas pequenas mudanças no próprio documentário omissão de versos colocação de outros etc Vladimir Carvalho é uma admirador do trabalho de Jomar Morais Souto e considerou que o poema era muito extenso para conter todo no documentário o que considerou uma pena Outra trabalho do poeta foi utilizado por Vladimir Carvalho em A Bolandeira curta filmado durante o processo que culminaria em O País de São Saruê o cineasta utiliza a poesia homônima cujos belos versos oferecem uma bela poeticidade ao filme A Vladimir de Carvalho e Francisco Morais Souto No princípio o chão de seixos o deserto a galharia Entre nós as aves livres o resto o sol ganharia No princípio era o que sou fui o de sempre o que fui O mesmo vento de sempre meu pó vermelho ainda alui Às vezes vou nessas asas de acauãs e inhambus por sobre a ausência das casas nestes serrotes azuis Imensa múmia de cacto rarefiz a pele assim maleável nem ao tato dos bichos que moram em mim Rupestres marcas gravadas nestas pedras desde quando Excursões antecipadas às de Isabel e Fernando Serão precolombianos caracteres então Que planos nos altiplanos terá traçado a erosão Rupestres marcas gravadas variações sobre um tema configurando as imagens de algum concreto poema Rupestres marcas inscritas formas na forma em concreto formando coisas bonitas de algum estranho alfabeto Letras precolombianas de inarticulados sons Serão poemas pavanas ou indígenas canções Sabe a lembrança o acabado se não sabe saberia dos homens pra cá mandados por um certo Albergaria Uns subindo o Paraíba outros singrando o Piancó Os Ávila os Oliveira Domingos Jorge do Icó Dentro do mato os clamores dos bravos índios corridos eles únicos senhores destes sertões esquecidos Dentro do mato o tapuia entre cacto e concriz celebrando as aleluias do reino que sempre quis A acesa guerra que a garra do nativo sustentou As lamúrias da fanfarra que a dor do índio afinou Lá detrás daquela serra à sombra do marmoleiro penadas almas tapuias soletram flechas na noite para quem chegar primeiro No princípio o chão de seixos o deserto a galharia Entre nós as aves livres que o resto o sol ganharia Muito além daquela serra no meio do juremal caciques mortos divagam sobre o que é Bem e o que é Mal Sabe a lembrança o acabado se não sabe saberia Sabe inda mais o ditado de uma noite atrás de um dia Depois das datas de terra das antigas sesmarias doeram mugidos longos datados nas pradarias Abrindo o boi novas brechas entre os espinhos e as ervas ruminando ao sol nas glebas deste ciclo pastoril Como um boi atrás do outro os homens que também vão cravando espinhos e felpas nas palmas duras da mão Nas mãos calosas dos reis outro mundo em construção Uma hora um dia um mês e as casas brotam do chão Pedra sobre pedra tijolos no ar Agora os andaimes dos paus do lugar E o número suor que medra nos poros sem parar Pedra sobre pedra o copiá o oitão Casa bonita aquela um casarão Tijolo sobre tijolo e um todo singular A argamassa o reboco e um distante caiar É pau é pedra é pedreiro é plantador de plantar Foi cria e só primeiro Foi só cria o tempo inteiro Mas como cria e que cria Queria porque queria O tempo todo criar Pedra sobre pedra e o tempo a passar Pedra simplesmente pedra inclusive aquela pedra tumular 28 Da capela da Fazenda o silêncio e a solidão alguma alma merenda nestes confins de sertão Foramse a água e o vinho nem ficou sequer o pão Celebra o ermo sozinho a sua celebração Aqui no órgão a demora de uma aleluia vibrar O coral já foise embora resta o coro no lugar Seca igreja seca vida de tanta coisa a secar De que seca retorcida gemem a madeira o espaldar Das poucas cadeiras juntas nesse templo de Acauã Serão as almas defuntas de gente morta pagã De moça virgem morrida na clara luz da manhã Seca igreja seca vida seco templo de Acauã Primeiro os portugueses dando o golpe inicial trocando índios por reses no sertão colonial Depois fazendo as igrejas muito verbo muita cal e muita verba em bandejas da Fazenda Imperial 29 Fazendas também fazendo de gado bom pra curral e muito negro trazendo para açúcar de cristal Ressoam canto jesuítas inda no mesmo lugar No teto coisas bonitas Nossa Senhora no altar E no púlpito caladas lembranças sobreviventes Conspirações malfadadas contra lusos prepotentes Alguém não quer mais ser súdito da Coroa de Ultramar Conspira dentro do púlpito contra o jugo secular Virgem Santa em que estado Peregrino ainda estará Sabe a lembrança o acabado se não sabe saberá Nossa Senhora em estado de História ele hoje está Mudou de cor a Coroa Em que fronte ela andará Porque não plange este sino que há tanto calado está Saberá o Peregrino Saberá o Padre Sá Mudou de cor a Coroa Se não mudou mudará A liberdade anda à toa no sonho do Padre Sá 30 Sabe a lembrança o acabado se não sabe saberá Porque não plange este sino que há tanto calado está Depois do desmatamento depois da queima das urzes depois de cruzes e cruzes fincadas no esquecimento Depois das lutas com os lusos e massacres cariris depois dos usos e abusos a minha terra infeliz devolve ao ar estas plumas branquinhas da cor de giz O apanhador que as apanha sabe sim desde a raiz quanto o branco no sol ganha ou quanto perde a raiz Se não cuidar direitinho dela dele desde a cova quando ainda planta nova folha come o passarinho O apanhador que as apanha colado à terra à raiz talvez se saia apanhado nesse labor infeliz Passa umas horas e às vezes as horas o sol esquenta e se sucedem às dezenas e viram dias e meses 31 Doação da Família BOTÉLHO à APL E vão virando alguns anos a vida toda a existência E o apanhador na cadência mais de apanhado Que o dano de quem vive nesse afã duro de Ministro ver é não ter o que comer na terra de Canaã Ali adiante as ovelhas seus chocalhos sua lã e arribações em parelhas bicando pedras na chá O algodão que plantou que viu nascer de manhã e que a flor acompanhou desabrochando louçã tirou depois do casulo como quem colhe maçã tão condenado tão nulo para o lucro de amanhã o algodão que alvejou amaciou trabalhou vai ser fofo de divã vai misturarse com lã Vai servir a muito embalo o que não sei mais se é bom e alcochoado de Impala e almofada no Leblon Para além das cumeeiras dessas casas de Acauã sol a sol vidas inteiras consumidas nesse afã 32 Mecânicas garras de aço passam no céu de manhã levando plumas no espaço plumas e plumas e lã Mulher depene este pássaro Asseo na trempe depois Dê ao menino um pedaço que o resto dá pra nós dois Amanhã vou à cidade levar de novo algodão Um menino dessa idade não pode ficar sem pão Tenho fé na Santa Madre Maria da Conceição que na casa do compadre vai dar bom preço o algodão Nem me incomodo com a sede que vai me dar também não Faço fé que na parede quando pesar o algodão São Miguel se compadeça e mate mesmo o dragão e dê um jeito que desça pra junto de nós então Aquela outra balança que ele sustenta na mão e pese com segurança minhas plumas de algodão para eu ganhar com justiça o preço que as plumas dão e finalmente que sinta todo o meu drama o patrão 33 para ele ver como a linha é dura aqui no Sertão onde nem sequer farinha come a gente mais com a mão Na balança da Justiça que ele sustenta com a mão um dia vai ser pesado o cadáver do dragão A floresta dos fantasmas vai ficando para trás Agora eu passo tu passas como passa tudo o mais Como passam as criaturas democratas cordiais e também essas figuras tristes tangendo animais Carregando nas cangalhas sob climas tropicais mais valia com que valhas mais ou menos muito mais Agora eu passo e tu passas entre estes seres casmurros em filme virgem noturnos mastigando chicles passas Ouvindo os versos e a trilha sonora o som combinado A minha imagem rebrilha dançando no ar condicionado Agora eu passo e tu ficas Agora eu fico e tu passas Sempre no escuro as relíquias já se vão disseminadas Entre todos os mais vivos democratas exemplares que ostentam sob os tecidos dos ombros aos calcanhares A mesmíssima matéria que a inarredável miséria dos vermes vai acabar quando um dia na floresta de outros fantasmas em festa os vermes forem parar Só que parecem mais vivos olhe aí hum Mais altivos coisa muito natural São sempre assim mais tranquilos eretos nos seus tecidos o ar calmo cordial Olhe as curvas da alma fronte Olhe a linha do horizonte igualzinha à minha igual Na floresta dos fantasmas nas carcaças do areal no querosene das casas até no olhar do animal em tudo o mesmo fio No leito seco de um rio na lanterna do navio a mesma chama o pavio de iluminar o ponteiro o amor o travesseiro a ponte para outra ponte E a linha do horizonte igualzinha à minha igual 35 209 Lá na linha do horizonte o monte o algodaoal Das florestas dessas casas para a minha a dos fantasmas um simples toque um botão Um destino outro fadário um sorrir proprietário um chorar de escravidão Mecânicas garras de aço passam no céu de manhã levando plumas no espaço dentre essas nuvens de lã POEMAS DE ALEMCAMPO 36 209 ANEXO D CORDEL VIAGEM A SÃO SARUÊ DE MANOEL CAMILO DOS SANTOS Manoel Camilo dos Santos 19051979 nasceu em Guarabira ParaíbaTeve várias profissões comerciante ambulante cabo de rodagem e marceneiro antes de se tornar cantador Estabelceu em 1942 uma tipografia em Guarabira a Folhetaria Santos Em 1953 ela foi transferida para Campina Grande PB agora sob o nome de A Estrela da Poesia Viagem a São Saruê se tornou seu folhetim mais famoso chegando a ser traduzido para o francês para o livro Les Imaginaires 1979 Viagem a São Saruê Manoel Camilo dos Santos Doutor mestre pensamento me disse um dia Você Camilo vá visitar o país São Saruê pois é o lugar melhor que neste mundo se vê Eu que desde pequenino sempre ouvia falar nesse tal São Saruê destineime a viajar com ordem do pensamento fui conhecer o lugar Iniciei a viagem às duas da madrugada tomei o carro da brisa passei pela alvorada junto do quebrar da barra eu vi a aurora abismada Pela aragem matutina eu avistei bem defronte a irmã da linda aurora que se banhava na fonte já o sol vinha espargindo no além do horizonte Surgiu o dia risonho na primavera imponente as horas passavam lentas o espaço encandescente transformava a brisa mansa em um mormaço dolente Passei do carro da brisa para o carro do mormaço o qual veloz penetrou no além do grande espaço nos confins dos horizontes senti do dia o cansaço Enquanto a tarde caía entre mistérios e segredos a viração docilmente afagava os arvoredos os últimos raios do sol bordavam os altos penedos Morreu a tarde e a noite assumiu sua chefia deixei o mormaço e tomei o carro da neve fria vi os mistérios da noite esperando pelo dia Ao romper da nova aurora senti o carro parar olhei e vi uma praia sublime de encantar o mar revolto banhando as dunas da beiramar Mais adiante uma cidade como nunca vi igual toda coberta de ouro e forrada de cristal 210 ali não existe pobre é tudo rico em geral Uma barra de ouro puro servindo de placa eu vi com as letras de brilhante chegando mais perto eu li dizia São Saruê é este lugar aqui Quando avistei o povo fiquei de tudo abismado era um povo alegre e forte sadio e civilizado bom tratável e benfazejo por todos fui abraçado O povo em São Saruê tudo tem felicidade passa bem anda decente não há contrariedade sem precisar trabalhar e tem dinheiro à vontade Lá os tijolos das casas são de cristal e marfim as portas barras de prata fechaduras de rubim as telhas folhas de ouro e o piso de cetim Lá eu vi rios de leite barreira de carne assada lagoa de mel de abelhas atoleiro de coalhada açude de vinho quinado monte de carne guisada As pedras em São Saruê são de queijo e rapadura as cacimbas são café já coado e com quentura de tudo assim por diante existe grande fartura Feijão lá nasce no mato já maduro e cozinhado o arroz nasce nas várzeas já prontinho e despolpado peru nasce de escova sem comer vive cevado Galinha põe todo dia em vez de ovos é capão o trigo em vez de semente bota cachadas de pão manteiga lá cai das nuvens fazendo ruma no chão Os peixes lá são tão mansos com o povo acostumados saem do mar vêm paras as casas são grandes gordos e cevados é só pegar e comer pois todos vivem guisados Tudo lá é bom e fácil não precisa se comprar não há fome e nem doença o povo vive a gozar tem tudo e não falta nada sem precisar trabalhar Maniva lá não se planta nasce e em vez de mandioca bota cachos de beijus e palmas de tapioca milho a espiga é pamonha e o pendão é pipoca As canas em São Saruê em vez de bagaço é caldo umas são canos de mel outras açúcar refinado as folhas são cinturão de pelica preparado Os pés de chapéus de massa são tão grandes e carregados os de sapatos da moda têm cada cachos aloprados os pés de meias de seda chega vivem escangalhados Sítios de pés de dinheiros que faz chamar atenção os cachos de notas grandes chega arrasta pelo chão as moitas de prata e níquel são mesmo que algodão 211 Os pés de notas de contos carrega que encapota pode tirarse à vontade quanto mais velho mais bota além dos cachos que têm cascas e folhas tudo é nota Lá os pés de casimiras brim borracha e tropical raiom brim de linho e cáqui e de seda especial já botam as roupas prontas própria para o pessoal Lá quando nasce um menino não dar trabalho a criar já é falando e já sabe ler escrever e contar canta corre salta e faz tudo quanto se mandar Lá tem um rio chamado o banho da mocidade onde um velho de cem anos tomando banho à vontade quando sai fora parece ter 20 anos de idade Lá não se ver mulher feia e toda moça é formosa alva rica e bem decente fantasiada e cheirosa igual a um lindo jardim repleto de cravo e rosa É um lugar magnífico onde eu passei muitos dias passando bem e gozando prazer amor simpatias todo esse tempo ocupeime em recitar poesias Lá existe tudo quanto é de beleza tudo quanto é bom belo e bonito parece um lugar santo e bendito ou o jardim da Divina Natureza imita muito bem pela grandeza a terra da antiga promissão para onde Moises e Aarão conduzia o povo de Israel onde dizem que corria leite e mel e caía manjar do céu ao chão Tudo lá é festa e harmonia amor paz bemquerer felicidade descanso sossego e amizade prazer tranqüilidade e alegria na véspera deu sair naquele dia um discurso poético lá eu fiz me deram a mandado do juiz um anel de brilhante e de rubim no qual um letreiro diz assim feliz é quem visita este país Vou terminar avisando a qualquer um amiguinho que quiser ir para lá posso ensinar o caminho porém só ensino a quem me comprar um folhetinho 212 ANEXO E FILMOGRAFIA DE VLADIMIR CARVALHO Fontes MATTOS C A Vladimir Carvalho Pedras na Lua e Pelejas no Planalto São Paulo Imprensa Oficial 2008 Cinemateca Brasileira httpwwwcinematecagovbr Década de 1960 1962 Romeiros da Guia 35 mm PB 15 minutos Direção e roteiro João Ramiro Mello e Vladimir Carvalho Fotografia Hans Bantel Montagem João Ramiro Mello Música Pedro Santos Assistente de câmera Manuel Clemente Narração William Mendonça 1968 A Bolandeira 1635 mm PB 11 minutos Direção produção e roteiro Vladimir Carvalho Produtor associado Marcus Odilon Ribeiro Coutinho Fotografia Manuel Clemente Montagem João Ramiro Mello Poema Jomar Moraes Souto Narração Paulo Pontes 1968 O Sertão do Rio do Peixe 16 mm PB 50 minutos filme posteriormente absorvido por O País de São Saruê Direção e produção Vladimir Carvalho Fotografia Manuel Clemente Montagem Vladimir Carvalho Raimundo Pereira Década de 1970 1970 Vestibular 70 35 mm PB 14 minutos Direção e roteiro Vladimir Carvalho e Fernando Duarte Fotografia Fernando Duarte Heinz Förthman Miguel Freire Montagem Eduardo Leone Cecil Thiré Música Caetano Veloso Conrado Silva 1971 O País de São Saruê 1635 mm PB 85 minutos Direção produção e roteiro Vladimir Carvalho Produtor associado Marcus Odilon Ribeiro Coutinho Fotografia Manuel Clemente Montagem Eduardo Leone Música José Siqueira Marcus Vinícius Poema Jomar Moraes Souto Vozes Echio Reis poema Paulo Pontes narração Assistente de direção Walter Carvalho 1972 Incelência para um Trem de Ferro 35 mm Cor 20 minutos Direção produção e roteiro Vladimir Carvalho Produtor associado José Carlos Avellar Fotografia Walter Carvalho Montagem Adamastor Câmara Vladimir Carvalho Pesquisa Virginius da Gama e Mello Paulo Melo Narração Paulo Pontes Música Armorial Luiz Gonzaga cirandeiros 213 1973 O Espírito Criador do Povo Brasileiro 35 mm Cor 14 minutos Direção e roteiro Vladimir Carvalho Fotografia Fernando Duarte Montagem João Ramiro Mello Música VillaLobos Antônio Carlos Jobim Antônio Carlos Nóbrega Narração Paulo Pontes 1973 Itinerário de Niemeyer 16 mm PB 19 minutos Um filme de Maurice Capovilla som Fernando Duarte fotografia Hermano Penna Vladimir Carvalho Ricardo Moreira Cecil Thiré Manfredo Caldas montagem Estrutura e coordenação Vladimir Carvalho Música Villa Lobos Consultoria Luís Fisberg 1974 Vila Boa de Goyaz 35 mm Cor 14 minutos Direção e roteiro Vladimir Carvalho Fotografia Heinz Förthman Montagem João Ramiro Mello Narração Arnaldo Jabor Música Quinteto Violado Tonico do Padre anônimos 1975 A Pedra da Riqueza 35 mm PB 15 minutos Direção produção e roteiro Vladimir Carvalho Fotografia Manuel Clemente Fernando Duarte Montagem João Ramiro Mello Música Fernando Cerqueira Narrador José Laurentino 1975 Quilombo 16 mm Cor 23 minutos Direção pesquisa e roteiro Vladimir Carvalho Fotografia Walter Carvalho Montagem João Ramiro Mello Música Tonico do Padre Folia do Divino Narração Paulo Ponte 1976 Mutirão 16 mm Cor 19 minutos Direção produção e roteiro Vladimir Carvalho Fotografia Fernando Duarte Imagens adicionais Ronaldo Guerra Walter Carvalho Som Walter Goulart Montagem Manfredo Caldas 1977 Pankararu de Brejo dos Padres 16 mm Cor 35 minutos Direção e roteiro Vladimir Carvalho Fotografia Walter Carvalho Montagem Manfredo Caldas Pesquisa Cláudia Menezes Som direto Jom Tob Azulay 1979 Brasília Segundo Feldman 35 mm Cor 20 minutos Um filme de Vladimir Carvalho e Eugene Feldman Compilação estrutura e produção Vladimir Carvalho Fotografia Eugene Feldman Imagens adicionais Alberto Roseiro Cavalcanti Walter Carvalho Montagem Manfredo Caldas Depoimentos Athos Bulcão Luiz Perseghini Década de 1980 1982 O Homem de Areia 35 mm PB 116 minutos Direção pesquisa e roteiro Vladimir Carvalho Direção de produção Carlos Del Pino Fotografia Walter Carvalho Som direto Antonio César Montagem Ricardo Miranda Manfredo Caldas Música J Lins canções e hinos diversos Narração Fernanda Montenegro Mário Lago Entrevistadores Adalberto Barreto Gonzaga Rodrigues Natanael Alves Waldemar Solha 1984 Perseghini 16 mm Cor 21 minutos Direção e roteiro Vladimir Carvalho e Sérgio Moriconi Produção Vladimir Carvalho Fotografia Alberto Roseiro Cavalcanti Som direto Francisco Pereira Montagem Manfredo Caldas Pesquisa Gioconda Caputo 214 1984 O Evangelho Segundo Teotônio 35 mm CorPB 90 minutos Direção e roteiro Vladimir Carvalho Fotografia Chico Botelho Alberto Roseiro Cavalcanti Montagem João Ramiro Mello Música Marcus Vinícius Som direto Walter Rogério Chico Bororo Narração Ester Góes Direção de produção Armando Lacerda 1989 No Galope da Viola 16 mm Cor 15 minutos Direção e roteiro Vladimir Carvalho Produção Vladimir Carvalho Normando Santos Fotografia Manuel Clemente Montagem Eduardo Leone Música Otacílio Batista e Oliveira de Panelas Década de 1990 1990 A Paisagem Natural 35 mm Cor 20 minutos originalmente episódio do longa Brasília a Última Utopia Direção pesquisa e roteiro Vladimir Carvalho Produção José Pereira Fotografia Walter Carvalho Montagem Eduardo Leone Música VillaLobos Edino Krieger Gustav Holtz 1990 Conterrâneos Velhos de Guerra 1635 mm CorPB 175 minutos Direção roteiro e produção Vladimir Carvalho Fotografia Alberto Roseiro Cavalcanti David Pennington Fernando Duarte Jacques Cheuiche Marcelo Coutinho Waldir de Pina Walter Carvalho Música Zé Ramalho Poema Jomar Moraes Souto Montagem Eduardo Leone Som direto Chico Bororo Narração Othon Bastos 1996 Com os Pés no Futuro ZumZum 16 mmBetacam Cor 7 minutos Direção e roteiro Vladimir Carvalho Produção Manduka ZumZum Música Manduka Fotografia André Luís da Cunha Montagem Frederico Schmidt João Ramiro Mello 1997 Ariano Suassuna em AulaEspetáculo Betacam Cor 46 minutos Direção Vladimir Carvalho Fotografia Waldir de Pina André Luís da Cunha 1998 1998 Manejo Florestal Betacam Cor 30 minutos Direção Vladimir Carvalho Século XXI 2000 Barra 68 sem Perder a Ternura 35 mm CorPB 82 minutos Direção pesquisa e roteiro Vladimir Carvalho Produção executiva Manfredo Caldas Fotografia André Luís da Cunha Som direto Chico Bororo Montagem Manfredo Caldas Vladimir Carvalho Música Marcus Vinícius Luís Marçal Imagens adicionais Marcelo Coutinho Jacques Cheuiche Som direto adicional Paulo Seabra Ivan Capeller 2001 Pátria Amada Brasil Betacam Cor 30 minutos Direção Vladimir Carvalho e Manfredo Caldas Produção Mário Lúcio Brandão Fotografia Waldir de Pina Montagem Manfredo Caldas Som Ricardo Pinelli 215 2007 O Engenho de Zé Lins 35 mm Cor 84 minutos Direção produção pesquisa e roteiro Vladimir Carvalho Produção executiva Eduardo Albergaria Leonardo Edde Fotografia João Carlos Beltrão Jacques Cheuiche Walter Carvalho Waldir de Pina Fotografia adicional Karen Akerman Cristiana Grumbach Lula Carvalho Música Leo Gandelman José Siqueira Luiz Gonzaga André Moraes Montagem Renato Martins Vladimir Carvalho Som Jamal Shreim Osman Assis Narração Othon Bastos Elenco Ravi Ramos Lacerda 2011 Rock Brasília a era de ouro 35 mm Cor 111 minutos Direção Vladimir Carvalho Produção Marcus Ligocki Pesquisa e roteiro Vladimir Carvalho Fotografia André Carvalheira Fotografia adicional Música Montagem Sérgio Azevedo Vladimir Carvalho Som José Luiz Sasso Dirceu Lustosa Narração Elenco Análise de filme Brasil sobre conflitos internos O País de São Saruê por Vladimir Carvalho 1 Ficha técnica do filme O documentário O País de São Saruê de Vladimir Carvalho1 aborda a região sertaneja do Rio do Peixe que fica localizada no polígono nordestino da seca fazendo fronteira com os Estados Paraíba Pernambuco e Ceará e também o desenvolvimento das atividades econômicas realizadas na região A obra é inspirada no título de um cordel do autor paraibano Manoel Camilo dos Santos O País de São Saruê se trata de um filme intenso acerca da relação entre o homem e a terra além de suas lutas apresentando imagens realistas que representam as dificuldades de se sobreviver no sertão O documentário foi produzido em 1970 finalizado em 1971 sendo alvo de censura até o fim dos anos 1970 Em 1979 a obra foi liberada para exibição pelos órgãos de censura quando foi também selecionada para o Festival de Brasília e recebeu o prêmio especial do Júri 2 Estrutura narrativa O País de São Saruê de Vladimir Carvalho corresponde a um filme exibido em preto e branco e sem som direto O documentário se divide em três partes que estão interligadas entre si a terra em que há a apresentação do território o homem seu trabalho e cultura e a luta a partir de entrevistas sobre a vida das pessoas que habitam aquele território A estrutura sonora do documentário não ocorre por meio de um som direto e também está dividida em partes em que ocorre narração que algumas vezes é associada à figura de Deus exibição de poesia e músicas clássica brasileira folclórica e pop além das entrevistas Ao longo da obra de Vladimir Carvalho ocorre uma divisão em treze sequências A primeira sequência apresenta a terra em que são mostradas imagens do território sertanejo com características seca e árida Esta sequência tem o objetivo de 1 Nascido na cidade de Itabaiana no Estado da Paraíba em 1935 Vladimir Carvalho viveu grande parte de sua vida na região nordeste do Brasil Atualmente ele é professor da Universidade de Brasília e sua obra cinematográfica é formada por 23 documentários além de inúmeros prêmios Em Brasília criou a Associação Brasileira de Documentaristas e em 1994 fundou a Fundação Cinememória onde abriga todo o seu acervo introduzir ao espectador o lugar em que o filme irá se passar A fim de apresentar um pouco sobre a realidade social em que o documentário será baseado o diretor apresenta informações históricas acerca da região narrando informações sobre o processo de ocupação e colonização desse território reconhecendo a opressão sofrida pelos indígenas Cariris e também sua resistência A segunda sequência trata do Sertão como um espaço geográfico e de ocupação onde ocorre o estabelecimento da população sertaneja Nesta sequência podese observar filmagens em que aparecem homens limpando a terra e trabalhando na construção de casas Há ainda nesta parte a exibição de uma fazenda e a criação de caprinos o pastoreio e casarões A poesia de Jomar Morais Souto também aparece nesta sequência A terceira sequência retrata a realidade do vaqueiro através de seu trabalho e cultura Aqui aparece a questão da seca representada pela doença do gado e morte de um boi Há também a transformação da vida em arte Há a presença da cantoria do vaqueiro José de Arimatéia e de música popular O intuito de Vladimir Carvalho aqui é humanizar esse espaço ao dividilo em situações importantes a criação a luta a morte e por fim a transformação da vida em arte A quarta sequência se inicia com a exibição da Capela de Acauã Há uma narração sobre a história da casagrande de Acauã seu auge e sua relação com a revolução de 1817 além de características religiosas Além disso ocorre a recitação do poema de Jomar Morais Souto Na quinta sequência é mostrada a modernização no contexto do sertão É exibida a Fazenda de Acauã fotos da família dessa fazenda a inauguração do trem de ferro os primeiros carros Ford o cangaço e a construção da Igreja Matriz É introduzida uma diferença entre ricos e pobres no contexto do sertão Na estrutura sonora parece a recitação do poema de Jomar Morais Souto e o som de piano Nesta sequência o diretor se preocupa em exibir elementos da cultura material da casa grande de Acauã e também o cotidiano da elite reforçando as desigualdades e o processo de modernização da região A sexta sequência exibe o cultivo de algodão e a família camponesa que catavam algodão mostrando a miséria que enfrentavam Aparece uma imagem de São Miguel Arcanjo submetendo um demônio representando a luta do bem contra o mal Mais uma vez aparece o poema de Jomar Morais Souto e também a música Acauã de Luís Gonzaga O objetivo de Vladimir Carvalho nesta sequência é mostrar a exploração do homem que ocorre diante da desigualdade da região que fomenta pobreza e condições de trabalho ruins Nesse contexto a sequência sete trata da fase industrial da produção de algodão É exibida a família de José Gadelha e sua usina de algodão Enquanto a sexta sequência foca na vida dos trabalhadores a sexta mostra o contexto do latifundiário marcada pela entrevista com José Gadelha A oitava sequência mostra a circulação de mercadorias na região por meio da feira sertaneja a feira de Sousa na estrutura sonora aparece novamente a poesia de Jomar Morais Souto e a música de Roberto Carlos Quero que vá tudo pro inferno O diretor exibe a introdução dos produtos industriais estrangeiros no sertão mostrando mudanças em termos de modernidade na sociedade sem ignorar a persistência da pobreza Aparece também o declínio da civilização do couro A nona sequência aborda os voluntários norteamericanos no sertão e a Guerra do Vietnã É exibida uma entrevista com Charles Foster do Peace Corps que havia ido ao sertão realizar trabalho voluntário O diretor faz também uma analogia da realidade social do sertão com a guerra no Vietnã é exibida a música Era um Garoto da banda de rock brasileira Os Incríveis A décima sequência é marcada pelo ciclo do ouro no sertão retratando a mineração por meio de entrevistas com indivíduos importantes nesse contexto A primeira foi com Pedro Alma que abordou a grande riqueza existente naquela época e o processo de retirada A segunda foi com Zeca Inocêncio que apesar de ter trabalhado diretamente na retirada de ouro descreveu sua vivência em meio a esse processo de exploração de ouro Vladimir Carvalho e sua equipe apareceram nas filmagens desta sequência O poema de Jomar Morais Souto aparece assim como a música fabulosa Na décima primeira sequência o diretor aborda a extração de minérios no sertão como a bauxita caulim e xelita A equipe de produção do documentário aparece durante uma consulta com especialista em minérios São exibidas também as tentativas de Chateaubriand Suassuna em Catolé do Rocha de obter algum minério em sua fazenda O poema de Jomar Morais Souto aparece e a música fabulosa aparecem novamente Na sequência doze Vladimir Carvalho retrata o povo sertanejo e os impasses presentes no sertão que implicam na dificuldade de governar a região Aqui a desigualdade social e a questão política são entendidos como entrave para o desenvolvimento na região O intuito desta sequência é tentar gerar comoção no espectador ao exibir o drama que os sertanejos enfrentam marcado pelas cheias secas e falta de atendimento médico na região São exibidas uma entrevista com Antônio Mariz a música de Rabeca e a música tema de O País de São Saruê Finalmente a sequência treze do documentário exibe imagens que foram apresentadas ao longo do filme como a foto de Getúlio Vargas e a imagem de São Miguel Arcanjo Com isso pretendese criar uma síntese de caráter circular A conclusão da obra é marcada pelo lamento sertanejo e a silhueta de um camponês atirando ao sol ou gavião que representam seus inimigos 3 Teses O assunto principal abordado por Vladimir Carvalho em seu documentário é a demonstração dos problemas sociais enfrentados no sertão paraibano suas causas e principais características a partir da relação entre a terra o homem e a luta Nesse sentido o diretor aborda diversos temas que estão envoltos na problemática social do sertão 4 Palavras chave em relação às teses Ao abordar os problemas sociais existentes no sertão Vladimir Carvalho aborda a questão da seca que afeta tanto os homens quanto a pecuária que foi importante no desenvolvimento econômico da região Carvalho produz reflexões sobre a relação entre o sertão e o sertanejo que em meio às adversidades do território precisam se adaptar para sobreviver na região Além da pecuária o documentário aborda também outras atividades que tiveram relevância econômica na região como a agricultura por meio da produção de subsistência e algodoeira e a extração mineral de minérios e ouro Ao longo da obra apesar das mudanças nas atividades desempenhadas é perceptível uma característica constante no sertão a desigualdade social entre os sertanejos e a elite local que potencializa a pobreza e a miséria entre os trabalhadores Atrelado a isso Vladimir Carvalho aborda também as condições de trabalho desfavoráveis a que os sertanejos se submetem para sobreviverem na região Ademais o diretor expõe também além das questões climáticas os fatores políticos e econômicos como obstáculos para o desenvolvimento da região 5 Frases eou cenas de relevo que explicam as teses A relação entre a terra o homem e a luta está presente em maior ou menor grau ao longo de toda a obra Contudo algumas sequências se destacam um pouco mais para explicar essas questões A primeira sequência foi fundamental para introduzir o território que seria abordado ao longo do documentário fornecendo informações históricas sobre a região e mostrando os aspectos seco e áridos dessa região A sequência dois é importante por demonstrar o sertão enquanto um espaço geográfico de ocupação e consolidação da população sertaneja A sequência três se destaca por humanizar o sertão envolvendo momentos importantes como a criação a luta a morte e a transformação da vida em arte A sequência seis ao exibir a dinâmica da produção algodoeira retrata a exploração do homem pelo próprio homem as condições negativas de trabalho a desigualdade social e a pobreza A sétima sequência em contrapartida aborda o ponto de vista da classe oposta exploradora o latifundiário A décima segunda aborda de maneira comovedora as dificuldades enfrentadas pelos sertanejos diante das questões climáticas políticas e econômicas 6 Análise crítica Para analisar criticamente a obra O País de São Saruê é necessário considerar a influência e motivações pessoais de Vladimir Carvalho na elaboração do documentário além do contexto histórico daquele momento Por ter nascido e vivido grande parte de sua vida no nordeste Vladimir Carvalho foi bastante influenciado pela realidade rural e as questões sociais em torno dela Além da influência pessoal Carvalho ingressou na militância comunista e artística tendo participado das atividades do Partido Comunista Brasileiro Centro Popular de Cultura CPC e da União Nacional dos Estudantes UNE A produção do documentário ocorreu no contexto da Ditadura Militar no Brasil em que uma de suas políticas era a censura às produções artísticas consideradas como prejudiciais ao regime Apesar do filme O País de São Saruê ter apresentado uma crítica social não tão explícita quanto outras da época ele não foi impedido de ser censurado assim que foi estreado em 1971 Nesse sentido a obra de Vladimir Carvalho resistiu por cerca de uma década até ser liberada pelos órgãos de censura em 1979 e seguiu sendo um instrumento de resistência ao realizar uma denúncia de uma problema social mesmo diante de um contexto de um regime repressor como foi a Ditadura Militar Apesar de ser de certa forma influenciada inspirada no título do cordel de Manoel Camilo dos Santos O País de São Saruê de Vladimir Carvalho tem seu foco exibir os problemas sociais enfrentados pela população habitante do sertão paraibano rompendo com a utopia de um sertão caracterizado pela fartura e alegria como apontou dos Santos Nessa perspectiva o enfoque de Vladimir Carvalho é justamente mostrar a realidade sertaneja marcada pela miséria e exploração Sendo assim a fim de mostrar o verdadeiro sertão o documentário é exibido em treze sequências e se inicia a partir da introdução do território a ser abordado e a construção da sociedade naquela região Com isso Vladimir Carvalho mostra a realidade da população sertaneja abordando questões chave como o trabalho ao longo do desenvolvimento industrial do sertão durante a fase da pecuária agricultura e mineração Ao mostrar a coexistência dessas atividades e de situações de extrema pobreza e miséria Carvalho ressalta que a simples existência dessas atividades não é suficiente para superar as desigualdades sociais existentes rompendo assim com a ideia do milagre econômico na região Isso porque apesar do desenvolvimento dessas atividades a desigualdade se acentuou na região uma vez que há uma concentração de recursos na mão de poucos e uma carência deles por parte dos sertanejos Nesse sentido é possível perceber que o documentário realiza uma denúncia acerca da estrutura agrária na região do sertão A partir dessas sequências é possível perceber que a obra abarca três mundos representando o desenvolvimento econômico da região o animal marcado pela pecuária o vegetal da agricultura com foco na agricultura de subsistência e no algodão e o mineral diante da extração de minérios e ouro Assim sendo a dinâmica do sertão se estabelece a partir da identificação do espaço territorial o surgimento do homem nesse espaço com poder de transformação e o trabalho realizado pelo homem A dinâmica elaborada por Vladimir Carvalho em O País de São Saruê apresenta um caráter dualista por mostrar situações que denunciam problemáticas sociais e ao mesmo tempo apresenta uma narrativa poética e musical No fim do documentário o cineasta sugere uma solução para os problemas existentes no sertão ao exibir imagens e músicas referentes a essas problemáticas juntamente da foto de Getúlio Vargas defendendo assim uma saída por meio da política 7 Relacionar o filme com a realidade social Apesar de ser um filme dos anos 1970 O País de São Saruê apresenta características que dialogam com fatos que assolam a região desde a colonização Assim a obra se baseia nas relações existentes entre o homem e a natureza no contexto do sertão uma realidade social extremamente difícil marcada pela luta contra fatores climáticos políticos e econômicos Por ter um vínculo pessoal com o sertão e por suas convicções políticas baseadas nos ideais comunistas de luta pelos oprimidos pelo sistema capitalista Vladimir Carvalho retratou diversos aspectos da realidade social do sertão Com isso Carvalho buscou por meio desse documentário denunciar as injustiças sociais que afligiam o sertão naquela época e que por sinal ocorre até os dias de hoje Nessa perspectiva o documentário mostra os problemas sociais enfrentados no sertão paraibano além de suas causas e principais características por meio da relação entre a terra o homem e a luta A terra é mostrada como instrumento capaz de gerar recursos mas também de escassez e desigualdades é nela que ocorrem as relações de trabalho entre os homens que são marcadas pela exploração que marcam a atividade pecuária passam pela agricultura e se estendem até a extração de minérios e ouro Apesar das mudanças de atividades econômicas na região os sertanejos permanecem sobrevivendo em situações marcadas pela seca diante da escassez e desigualdade na distribuição de recursos pobreza e condições de trabalho desfavoráveis por conta da exploração da mão de obra e opressão existentes no sertão O homem foi mostrado capaz de transformar a natureza ao seu redor tendo participação essencial na construção da sociedade local Ademais o documentário expressa a relação entre os homens que é marcada muitas vezes pela exploração do homem pelo próprio homem Apesar de seu poder de transformação o homem não consegue superar essas dificuldades que ele enfrenta em seu cotidiano por não apresentarem uma posição de poder favorável em relação aos homens que os exploram A luta que o homem enfrenta é a sobrevivência em meio a esse cenário de dificuldades climáticas econômicas e políticas Carvalho demonstra ao longo de sua obra que sobreviver nesse ambiente é um ato de resistência Apesar de abordar os latifundiários a elite local e os exploradores minerais ao longo do filme o foco de Vladimir Carvalho é ressaltar o impacto dessas dinâmicas na intensificação das desigualdades existentes no sertão Além desses fatores o documentário traz ainda a questão do imperialismo a partir da inserção de produtos industrializados importados no contexto do sertão e da presença de voluntários advindos dos Estados Unidos para fugir da participação na Guerra do Vietnã introduzindo debates baseados na economia e política internacionais Uma das questões centrais no documentário é a estrutura agrária apontada como um dos fatores que dificultam o desenvolvimento da região como foi ressaltado pelo então prefeito de Sousa Antônio Mariz no fim do documentário A partir do sertão abordado no documentário Vladimir Carvalho realiza uma crítica ao fato do Brasil ser um país com grande potencial em se tornar rico por possuir diversos recursos como o próprio ouro que foi abordado no filme e ainda assim ser um país subdesenvolvido marcado por uma intensa desigualdade social 8 Conclusão Ao analisar o filme é possível visualizar que ele propõe uma reflexão crítica acerca da realidade social existente na região do sertão sugerindo assim discussões nos âmbitos sociológico político histórico e econômico sobre suas problemáticas O intuito do cineasta em abordar o sertão foi se distanciar das questões políticas diante do contexto da Ditadura Militar que se instaurou no país mas ainda assim analisar as questões socioeconômicas influenciadas pela exploração latifundiária e injustiça social que perpetuavam na região naquele momento histórico Nesse sentido cabe ressaltar a influência política do cineasta Vladimir Carvalho na abordagem dessas questões socioeconômicas que por se aproximar dos discursos de cunho comunista permitiu que ele tivesse um entendimento sobre a estrutura agrária que permitiu que ele a utilizasse para fundamentar as desigualdades sociais no sertão Carvalho teve influência de Euclides da Cunha a partir da obra Os Sertões e as relações existentes entre o homem e a terra Nesse sentido a obra de Vladimir Carvalho é estruturalmente marcada pela divisão da terra o homem e a luta uma vez que se inicia a partir da introdução da terra segue com a introdução do homem e suas transformações nesse território e termina com as lutas travadas por ele nessa terra Assim como da Cunha Carvalho introduz a ideia da terra como um espaço físico hostil e também cordial A estrutura sonora do documentário apesar de não apresentar som direto é marcada por uma narração as poesias e músicas que são utilizadas como uma respostas ao que está sendo mostrado visualmente e as entrevistas que também dialogam com as imagens do filme Ao demonstrar os problemas sociais que perpetuam no sertão O País de São Saruê vai além da ideia do sertão enquanto lugar de fartura e riqueza como expõe o cordel de Manoel Camilo dos Santos Apesar de apresentar o sertão o homem sertanejo e sua luta de maneira poética o documentário não romantiza essas relações Ao contrário Vladimir Carvalho aponta fatores que confrontam a existência do homem sertanejo a terra com aspecto seco o próprio homem que explora outros homens e fomenta os contrastes de classe e a questão agrária considerada como o maior impasse para o desenvolvimento da região O documentário foca nas relações de classe e exploração do homem pelo homem que geram miséria e injustiça Essa ideia de injustiça está presente na analogia ao longo do documentário em que é exibida a figura de São Miguel Arcanjo representando a luta do bem sendo marcado pela justiça contra o mal que é representado pela injustiça A obra é marcada por conflitos que o homem enfrenta inicialmente o clima árido do sertão com a ocupação do território surge a colonização e o massacre aos povos indígenas no contexto das atividades de pecuária a questão climática da seca aparece novamente na produção algodoeira há a exploração do homem pelo homem A partir disso a mensagem deixada por Vladimir Carvalho é que a história do sertanejo é marcada pela luta Nessa perspectiva a história se relaciona com a política por entender que ela por ser responsável pelos problemas do sertão é capaz de solucionálos Assim Vladimir tentou incentivar uma intervenção de cunho político capaz de reconhecer o subdesenvolvimento presente naquela região e de mobilizar parcialmente a população para se atentar às questões que envolvem a estrutura agrária do sertão Sendo assim um dos objetivos do documentário era ir além do grupo de intelectuais de esquerda no país visando também ir de encontro ao discurso do milagre econômico propagado pelo regime militar No entanto essa ideia foi inviabilizada pela censura da obra e quando a obra conseguiu ser de fato lançada estava de certa forma atrasada em meio às mudanças na sociedade Apesar de ser um filme da década de 1970 as questões abordadas por Vladimir Carvalho em O País de São Saruê continuam sendo pertinentes na atualidade uma vez que o sertão nordestino ainda enfrenta dificuldades como a seca a pobreza e sobretudo a ausência de políticas voltadas para a questão agrária 9 Bibliografia CARVALHO Vladimir O País de São Saruê Embrafilme 1971 FEITOSA André Fonseca Documentário e Cultura Histórica o sertão de trabalho e relações de classe em O País de São Saruê 1971 2014 IACSUFF CINE DEBATE O PAÍS DE SÃO SARUÊ Vladimir Carvalho 1971 2020 Disponível em httpswwwyoutubecomwatchvK6 zP2IRNqAabchannelCentrodeArtesUFF
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Texto de pré-visualização
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Documentário e Cultura Histórica o sertão de trabalho e relações de classe em O País de São Saruê 1971 André Fonseca Feitosa João Pessoa 2014 F311d Feitosa André Fonseca Documentário e cultura histórica o sertão de trabalho e relações de classe em O País de São Saruê 1971 André Fonseca Feitosa João Pessoa 2014 215f il Orientador Elio Chaves Flores Dissertação Mestrado UFPBCCHL 1 Carvalho Vladimir 1935 crítica e interpretação 2Historiografia 3 Cultura histórica 4 Sertão e sertanejos representação 5 Sertão e documentário UFPBBC CDU 9302043 André Fonseca Feitosa Documentário e Cultura Histórica o sertão de trabalho e relações de classe em O País de São Saruê 1971 Orientador Prof Dr Elio Chaves Flores Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História do Centro de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal da Paraíba UFPB em cumprimento às exigências para obtenção do título de Mestre em História Área de Concentração em História e Cultura Histórica Orientador Prof Dr Elio Chaves Flores João Pessoa agosto de 2014 André Fonseca Feitosa Documentário e Cultura Histórica o sertão de trabalho e relações de classe em O País de São Saruê 1971 Aprovada em 2014 Banca Examinadora Prof Dr Élio Chaves Flores Orientador Prof Dr Severino Cabral Filho Membro externo Profa Dra Telma Dias Fernandes Membro Interno Prof Dr Damião de Lima Suplente A todos que já se dedicaram ou se dedicam à transformação da humanidade em uma realidade mais solidária e amorosa Em particular a meu pai Alberto Ronaldo Pinheiro Feitosa e meu mestre Giovanni da Silva Queiroz AGRADECIMENTOS Agradeço ao Programa de PósGraduação em HistóriaUFPB e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES pela concessão de bolsa de estudos que possibilitou o desenvolvimento desta pesquisa À orientação exemplar do professor Elio Flores cujas contribuições foram fundamentais Agradeço a meu pai Alberto Ronaldo Pinheiro Feitosa pelo carinho por me ensinar o gosto pelo conhecimento e pela solidariedade A Arthemisa Gadelha por todo o carinho e zelo de mãe Agradeço a Ramon Limeira Arruda pela amizade pelo incentivo a entrar em um curso universitário pelos filmes e pelos livros compartilhados a Giovanni Queiroz pela amizade e generosidade acadêmica a André Ricardo Dias Santos Famigerado Saulo Carolina Barros Madruga Daniel Santana e Amana Martins pela amizade e trocas intelectuais às aulas saudosas de Solange Rocha e Regina Célia Gonçalves Aos mestres especialíssimos Regina Behar e Romero Venâncio cuja paixão pelo cinema foram fundantes desse trabalho A Telma Dias Fernandes criatura afetuosa e agradável também dedico um agradecimento especial pelas aulas e atenção Agradeço ainda a André Ricardo Dias a Elton Bruno de Oliveira e a Lucas Ramalho cujos ombros afetuosos foram importantes por demais a amizade e aprendizado com Mateus Vicente e Vinícius Gouveia que me ajudaram a expandir os horizontes para a vida ao mestre Roberto Miranda Rávi pelo yoga na Estação Ciência namastê aos excolegas de trabalho que me apoiaram a fazer o mestrado Ana Lígia Norma Cavalcante e Cláudia Xavier a Paulo Alves por todo o carinho e pelo apoio nessa reta final Por fim reforçar meus agradecimentos a Giovanni Queiroz Carolina Madruga Daniel Santana André Ricardo Dias e Paulo Alves Amo muito vocês RESUMO Esta pesquisa pretende analisar aspectos da representação de sertão e sertanejos no documentário O País de São Saruê 1971 de Vladimir Carvalho relacionando o discurso fílmico a cultura histórica e política que o cineasta se inseria Nossa hipótese é que tais representações são construídas a partir do mundo do trabalho Palavraschaves Vladimir Carvalho Cultura Histórica representação O País de São Saruê Sertão e Documentário ABSTRACT This work analises the representation of backland and its people on the documentary O País de São Saruê 1971 of Vladimir Carvalho We relate the film discourse to the historic and politic culture around its film maker Our hypothesis is that these representaions are build based on work category Palavraschaves Vladimir Carvalho Historic Culture representation O País de São Saruê Documentary Sumário CAPÌTULO 1 Primeiras Palavras diretrizes da pesquisa 10 CAPÍTULO 2 O País de São Saruê documento e documentário 23 CAPÍTULO 3 Planificação O País de São Saruê na cultura e na política das décadas de 1960 e 1970 34 CAPÍTULO 4 A terra de São Saruê o espaço e os homens 75 CAPÍTULO 5 A política em O País de São Saruê sertão trabalho e exploração 118 CONSIDERAÇÕES FINAIS 175 REFERÊNCIAS 181 APÊNDICE Tabela de sequências de O País de São Saruê 191 ANEXO A Ficha técnica de O País de São Saruê cinematecagovbr 194 ANEXO B Material de áudio transcritos de O País de São Saruê música tema do filme cantoria do vaqueiro José de Arimatéia entrevistas com José Gadelha e com Antônio Mariz 196 ANEXO C Poesia de Jomar Morais Souto para O País de São Saruê 201 ANEXO D Cordel Viagem a São Saruê de Manoel Camilo dos Santos 209 ANEXO Filmografia de Vladimir Carvalho 212 10 Capítulo 1 Primeiras palavras diretrizes da pesquisa O historiador não exige que as pessoas acreditem em sua palavra sob o pretexto de ser um profissional conhecedor de seu ofício embora seja o caso em geral mas fornece ao leitor a possibilidade de verificar suas afirmações Antoine Proust Doze Lições de História Nossa pesquisa tem como objetivo identificar as matrizes de discursos e práticas em O País de São Saruê 1971 que permitiram a Vladimir Carvalho elaborar uma identidade para o sertão e seus habitantes Relacionamos o documentário ao contexto de produções culturais ligadas ao Partido Comunista Brasileiro nas décadas de 1960 e 1970 que fomentaram uma cultura política particular Identificamos no filme matrizes de representações compartilhadas por artistas comunistas à época Isso permitiu contextualizar a inserção do filme nas disputas simbólicas da época através da análise estética de seu discurso O País de São Saruê é um documentário do cineasta paraibano Vladimir Carvalho O filme se configura em um documento histórico e simultaneamente em um texto autoral com possibilidade de diálogo e problematização para a História Analisamos quais elementos do documentário em sua linguagem cinematográfica planos sequências narrativa fotografia etc indicam uma elaboração política e estética que se relacionam ao ideário político sobre a realidade camponesa nas décadas de 1960 e 1970 Nossa hipótese é que a representação do sertão e do sertanejo é feita a partir da categoria trabalho Nosso recorte histórico se inicia em 1966 quando ele realiza as primeiras filmagens de O País de São Saruê e vai até 1971 quando conclui o filme Vladimir Carvalho é um cineasta nacional de destaque Participou da produção do filme Aruanda 1960 clássico no cerne do surgimento do Cinema Novo e realizou diversos documentários sobre a Paraíba como Romeiros da Guia 1962 e O Sertão do Rio do Peixe 1968 O País de São Saruê foi seu primeiro longametragem e marcou sua cinematografia Depois realizou outros longasmetragens como O Homem de Areia 1982 Engenho Zé Lins 2007 também de temas regionais e outros sobre a realidade do Distrito Federal onde atuou como professor como Conterrâneos Velhos de Guerra 1990 e Rock Brasília Era de Ouro 20111 1 O País de São Saruê sofreu quase uma década de censura pelo regime militar sendo liberado após bastante polêmica e exibido com imagens defasadas em relação à época Apesar disso recebeu o prêmio especial do júri em 1979 Vladimir Carvalho ganhou ainda outros prêmios como de melhor filme na sua categoria no Festival de Brasília em 1990 com Conterrâneos Velhos de Guerra Um de seus recentes trabalhos Rock Brasília foi vencedor do Festival de Cinema de Paulínia em 2011 como melhor documentário e foi finalista 11 O País de São Saruê é um documentário de longa metragem filmado na Paraíba que pretende mostrar a realidade do sertão em geral suas características físicas sua população e sua origem histórica e social Exibe as principais economias do nordeste semiárido a criação de gado o cultivo do algodão e a exploração de minérios Apresenta o problema do subdesenvolvimento regional deslocando sua explicação climática para a questão fundiária Filmado com poucos recursos O País de São Saruê aborda estes temas econômicos de maneira bastante poética Sofreu censura durante anos e quando liberado pela censura do regime militar estava defasado tecnicamente em relação à época trazendo prejuízos para sua recepção pelo público Ainda assim é reconhecido como um importante filme da cinematografia brasileira No âmbito da História Cultural representação apropriação e cultura histórica Nosso trabalho se encaixa no âmbito da História Cultural e Política2 Essa historiografia teve um grande crescimento na década de 1970 e se tornou uma das maiores vertentes entre historiadores A história passou a valorizar grupos locais e períodos particulares e entender seus valores específicos BURKE 2005 p8 Este não é um domínio homogêneo havendo nele diversas propostas de abordagens e objetos3 Entre tais proposições o historiador Roger Chartier defende uma história das representações definida assim podese pensar uma história cultural do social que tome por objecto a compreensão das formas e dos motivos ou por outras palavras das representações do mundo social que à revelia dos actores sociais traduzem as suas posições e interesses objectivamente confrontados e que paralelamente descrevem a sociedade tal como pensam que ela é ou como gostariam que fosse CHARTIER 1990 p194 Assim procuramos compreender estas formas e motivos que descrevem como os atores em três modalidades no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2012 melhor longametragem documentário melhor montagem documentário e melhor trilha sonora 2 A ampliação de objetos com a História Cultural trouxe uma renovação para historiografia que pode trabalhar com novos objetos fontes e abordagens das mais diversas A arte o cotidiano práticas de leitura se tornaram objetos mais comuns na historiografia e mesmo a política teve uma grande ampliação de abordagens A política passou a ser vista não mais circunscrita no âmbito institucional mas no cotidiano no cinema na propaganda etc Um trabalho que possui pesquisas do político sob abordagens diversas é Por uma história Política 1988 organizado pelo historiador francês René Remond 3 Peter Burke em O que é história cultural 2004 aponta uma história da história cultural mostrando suas diversas tendências e abordagens Periodizando em clássica século XIX história social da arte 1930 a descoberta da história da cultura popular em 1960 e a nova história cultural na década de 1970 4 Rosa Maria Godoy Silveira 2007 em A cultura histórica em representações sobre territorialidades identifica três tendências intelectuais francesas sobre a questão representacional Moscovici representando a Teoria da Representação Social seus avanços e propostas de entender o macro e micro através das representações sociais e individuais Deleuze e Guattari que refutam o pensamento representacional abraçando a multiplicidade e a contingência e por fim Paul Ricoeur que assume o pensamento representacional mas de maneira diferente de Moscovici e com ressalvas ao pensamento historiográfico valorizando seu referencial o quê o discurso historiográfico aborda através de seus vestígios p3839 12 sociais enxergavam a realidade histórica que se inseriam Assim Vladimir Carvalho realizou uma representação do sertão revelando como ele o via e como gostaria que fosse e que analisamos a partir de seu lugar social O discurso fílmico de O País de São Saruê parte de certa matriz de entendimento da realidade camponesa e de uma utopia almejada por artistas naquela época Para nossa empreitada dois conceitos de Chartier foram importantes representação e apropriação Para ele as representações constituem matrizes de discursos e práticas diferenciadas que têm por objetivo a construção do mundo social e como tal a definição contraditória das identidades tanto a dos outros como a sua 1990 p18 A apropriação se refere à maneira como os sujeitos históricos assumem outros discursos para elaborar suas próprias representações Assim identificamos os discursos e influências para Vladimir Carvalho na criação de O País de São Saruê Elas por sua vez revelaram que o filme se inseria entre disputas ideológicas do entendimento da realidade brasileira e sertaneja uma economia simbólica De acordo com o sociólogo Pierre Bourdieu o poder simbólico permite evitar o confronto físico direto conseguindo o equivalente pela força de mobilização que exerce através de suas maneiras de dar determinada visibilidade ao mundo social Esse poder depende do nível de reconhecimento de um discurso tornando as representações um campo de embate de disputa e de dominação O reconhecimento se liga à ignorância do caráter arbitrário desse poder que legitima uma visão arbitrária enquanto verdade única embora exercido por grupos sociais específicos que incutem identidades nada inocentes5 Sobre isso afirma Chartier As lutas por representação têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo se impõe ou tenta impor a sua concepção do mundo social os valores que são os seus domínios Por isso essa investigação sobre as representações supõenas como estando sempre colocadas num campo da concorrência cujos desafios se enunciam em termos de poder e dominação CHARTIER 1990 p17 Entender as representações é importante para perceber os mecanismos pelos quais se legitimam práticas ações poderes e dominações como a produção de um documentário e quais seus objetivos O conceito ainda possui outros desdobramentos interessantes Em A Fabricação do Rei a construção da imagem pública de Luís XVI 1992 Peter Burke investiga a construção do 5 Na sua teoria do poder simbólico Bourdieu analisa as relações de poder nos instrumentos que estruturam a sociedade língua arte produção intelectual o lugar social as hierarquias etc Na sua concepção de representação e de identidade identifica ambas como imersas em um campo de disputa para instituir uma realidade uma maneira de compreender o mundo Assim as representações são enunciados performativos que pretendem que aconteça aquilo que enunciam 2010 p118 Elas se inscrevem em um campo de disputa no qual o poder simbólico é capaz de constituir o dado pela enunciação de fazer ver e fazer crer de confirmar ou de transformar a visão de mundo e deste modo a acção sobre o mundo portanto o mundo poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força física física ou econômica graças ao efeito específico de mobilização só se exerce se for reconhecido quer dizer ignorado como arbitrário BOURDIEU 2010 p14 13 imaginário sobre o Rei Sol e identifica que a representação podia significar o desempenho de alguém em uma situação representar seu papel uma imagem que traz de volta objetos ausentes à memória ou à ideia ou ainda se referir a tomar o lugar de alguém a exemplo dos secretários que podiam substituir o rei ou até pinturas moedas etc Representar era tomar o lugar de alguém ou de uma ação mesmo que de si por isso Uma vantagem do termo representação é que ele pode se referir não só aos retratos visuais ou literários do rei à imagem projetada nos meios de comunicação ou por eles mas também a imagem recebida a imagem de Luís na imaginação coletiva ou como dizem os historiadores e antropólogos franceses as representações coletivas da época A desvantagem da expressão representações coletivas pelo menos em inglês é dar lugar à suposição de que todos têm imagens idênticas do rei ou até de que existe de fato uma imaginação coletiva segundo o modelo do inconsciente coletivo de Jung BURKE 1994 p21 Assim uma representação representa tanto as imagens plásticas visuais quanto as projetadas culturalmente através de meios diversos como o cinema Ao se elaborar uma representação buscase substituir representar uma determinada realidade pelo seu simulacro O País de São Saruê não é diferente e procura falar em nome de uma realidade o sertão brasileiro substituindo o real pelo referente sua representação como as pinturas de Luís XIV dada as proporções6 Como indicado por Burke as representações são coletivas e mesmo admitindo uma construção autoral do cineasta reconhecemos no filme imagens e discursos partilhados coletivamente à época tornandose parte desse tempo e de sua cultura histórica Aliás para Proust uma época tem um determinado vocabulário histórico em articulação com um sistema de representações que possibilitam os códigos para elaboração de textos7 A realidade camponesa no documentário igualmente se inscreve em uma moldura histórica8 Analisamos o filme a partir da identificação desse sistema de representações permitindonos historicizálo pelos temas que eram recorrentes na produção cultural de artistas de esquerda da época Trabalhamos portanto com um objeto da cultura histórica 6 São linguagens suportes e contextos evidentemente diferentes Aliás o cinema o faz de maneira mais eficiente uma vez que no cinema há uma coincidência entre referente e referencial efeito de realidade que permite maior grau de credibilidade à imagem cinematográfica como indicaremos no capítulo seguinte 7 O mesmo se aplica ao cinema que também se serve dessas fontes e que pode ser entendido pelas disponibilidades técnicas e linguísticas que lhe são próprias mas igualmente históricas 8 De forma mais geral qualquer texto servese do código de determinado sistema de representações que por sua vez utiliza determinado vocabulário Um relatório de presidente departamental ou regional da época da Restauração sobre a situação política e social de um departamento rural era inconsciente e imperceptivelmente distorcido por sua representação dos camponeses ele os observava de acordo com sua expectativa e conforme sua representação prévia lhe permitia acolher eventualmente ele menosprezava o que não estava inscrito no interior dessa moldura A interpretação de seu relatório supõe portanto que o historiador esteja atento ao sistema de representações adotado no interior dessa moldura assim para a interpretação dos textos tornase indispensável levar em consideração as representações coletivas PROUST 2008 p61 14 situandoo em uma moldura que tanto possibilitava leituras quanto as direcionava até certo ponto Aqui tornase evidente que essa representação adentra o campo da cultura política no qual os sujeitos usam seus conhecimentos e ações para influir nos rumos da história O País de São Saruê foi um filme realizado com vontade de transformar o meio social a partir de concepções e desejos oriundos de uma identidade social e política de Vladimir Carvalho História cultural cultura política cultura histórica e cultura cinematográfica Para essa espécie de onipresença da cultura neste trabalho é válido inserir uma ressalva A historiadora Rosa Maria Godoy Silveira chama atenção para o caráter vastíssimo que pode assumir o termo cultura histórica uma vez que toda cultura é histórica e tudo que é histórico é cultural Sugere enquanto Cultura Histórica um termo mais genérico que abarcaria as experiências vividas pela Humanidade e seus sentidos a produção pela Históriaprocesso que poderia ser diferenciado de Cultura Historiográfica como um conhecimento das experiências vividas pelas sociedades seus grupos e indivíduos em uma perspectiva temporal 2007 p42 Busca portanto separar a produção dos homens no tempo cultura histórica de uma produção dos historiadores cultura historiográfica afim de que a imprecisão dos conceitos não os faça perder sua eficácia epistemológica e o poder de delimitação dos campos O historiador Elio Flores no entanto propõe uma cisão que nos parece mais funcional para o objetivo de nosso trabalho Ele afirma que o discurso histórico não é de domínio único dos historiadores mas compartilhado por outros agentes sociais que elaboram representações históricas em diálogo com a historiografia e outros campos do mundo social9 Elio Flores reconhece que para além da instituição historiográfica e de suas práticas metodológicas características outros campos elaboram discursos históricos O conceito de cultura histórica toma como objetivo os discursos à margem da historiografia que representam as experiências humanas sob uma perspectiva temporal Consideramos que sua proposição permite delimitar melhor o específico da cultura que estamos analisando o caráter de cultura histórica ou seja histórico discursivo e ao mesmo tempo diferenciálo da produção historiográfica dos historiadores Essa opção também permite nos aproximar de Jacques Le Goff ao delimitar o objeto da história da história a cultura histórica ou mentalidade histórica que reconhece nas produções do imaginário uma das principais expressões da realidade histórica esse campo difuso de como se reage ao próprio passado por outro lado esta história indireta não se confunde para o autor com a história dos historiadores única que tem vocação científica 1990 p49 Esta é a distinção 9 Entendo por cultura histórica os enraizamentos do pensar historicamente que estão aquém e além do campo da historiografia e do cânone historiográfico Tratase da intersecção entre a história científica habilitada no mundo dos profissionais como historiografia dado que se trata de um saber profissionalmente adquirido e a história sem historiadores feita apropriada e difundida por uma plêiade de intelectuais ativistas editores cineastas documentaristas produtores culturais memorialistas e artistas que disponibilizam um saber histórico difuso através de suportes impressos audiovisuais e orais FLORES 2007 p 95 15 que norteia os limites entre cultura histórica e produção historiográfica neste trabalho Pensamos então O País de São Saruê enquanto um agente discursivo que elabora uma representação histórica do sertão fora da instituição historiográfica Nosso objeto se insere assim em um movimento amplo da ação política de artistas engajados no contexto das décadas de 1960 e 1970 Estão situados em uma moldura histórica e em uma cultura política explicitadas na análise fílmica Isso nos leva a conclusão de que as apropriações do filme são realizadas nos discursos possíveis em sua cultura geral e histórica disponibilidade que pode ser identificada por exemplo através das leituras e filmes assistidos por Vladimir Carvalho Buscamos compreender o documentário enquanto artefato que apesar de se constituir fora do campo historiográfico também elabora um discurso histórico em diálogo com a historiografia e que contribui para a constituição da cultura histórica sobre a região Esta participação porém não é inocente mas em campo de disputas simbólicas e de classe a fim de legitimar ações práticas no mundo social Espaço sertão campo e nordeste Apresentamos agora nossas escolhas teóricas sobre o conceito de regionalização que nos permite entender espaços como Nordeste e sertão O sociólogo marxista Francisco de Oliveira em Elegia para uma religião 1977 reconhece que existem diversas maneiras de se definir uma região e opta por uma perspectiva de formação do Nordeste pela reprodução do capital A região para ele é um espaço onde se imbricam dialeticamente uma forma especial de reprodução do capital e por conseqüência uma forma especial da luta de classes 2008 p148 Formadas a partir da divisão internacional do trabalho no capitalismo para Francisco de Oliveira elas são uma evidência histórica irrefutável 2008 p146 O trabalho de Francisco de Oliveira procura entender a relação entre o Estado e a sociedade brasileira e nordestina pelo planejamento regional através especialmente da criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste SUDENE Seu enfoque é essencialmente de economiapolítica entendendo que a passagem do eixo econômico brasileiro do Nordeste do algodão e do açúcar para o Sul do café e da indústria acarreta uma redefinição regional do trabalho no qual o primeiro espaço se estagna e outro mantém um crescimento O planejamento regional representou uma tentativa de conter tais disparidades Para ele o Nordeste da Sudene assume os contornos da ideologia da classe dominante da região da indústria 2008 p164 Durval Albuquerque Jr em A invenção do Nordeste e outras artes 1999 rompe com essa matriz de entendimento distanciandose de uma perspectiva econômicopolítica e 16 se concentra nos aspectos discursivos da regionalidade10 Essa construção foi elaboradacriada na decadência da sociedade préindustrial caracterizando um espaço que seria naturalmente oposto a modernização um espaço de atraso É uma identidade da qual o Nordeste deve se emancipar pois a construção de discursos identitários podem confundir elaborações discursivas com o que realmente somos ALBUQUERQUE 2011 p344 Propõe que devemos sempre libertar as imagens e enunciados do passado os temas que o constituíram os conceitos que o interpretaram de seu sentido óbvio problematizandoos p 348 Para o historiador se hoje o Nordeste parece ter existência evidente foi porém inventado Se para Francisco de Oliveira a identidade é construída na dialética entre uma estrutura e uma superestrutura Durval Muniz de Albuquerque Jr trabalha com uma documentação diversa mas tratada desierarquizada não fazendo diferenciação entre jornais filmes poesia ou música pois foram tomados como discursos produtores de realidade e ao mesmo tempo produzidos em determinadas condições históricas 2011 p45 A documentação não é prova no último mas material a ser problematizado enquanto expressão da regionalidade exibindose um contraste entre estas duas perspectivas Rosa Maria Godoy Silveira em O Regionalismo Nordestino 1981 analisa a formação da identidade nordestina articulando a reorganização econômica e internacional da produção capitalista e o surgimento de uma ideologia regionalista que demonstra a crise e conflitos entre as oligarquias iniciados no século XIX A historiadora trabalha com uma perspectiva de identidade montada de si para o outro que contempla os rearranjos internos da política nordestina em relação às mudanças nacionais11 Parecenos que esse texto abarca as dimensões simbólica e econômicopolítica articulando uma divisão do capital a nível internacional e nacional e oferecendo uma base estrutural para os discursos que são interpretados Porém isso não impede a autora de problematizálos historicamente enquanto expressões de uma regionalidade Consideramos pois que o texto de Silveira abarca aspectos de ambas as iniciativas apesar de ser escrito antes de A invenção do nordeste e outras artes Em Rosa M G Silveira a regionalidade não é uma pseudounidade cultural 10 Para ele no cruzamento de discursos políticos ou culturais sedimentouse uma ideia de Nordeste como espaço de área seca para uma identidade racial econômica social e cultural à parte realizada por intelectuais ligados à sociedade préindustrial em declínio que elaboraram textos e imagens para este espaço ancorandoo no entanto na contramão da história construindoo como um espaço reacionário às mudanças que estavam ocorrendo na sensibilidade social e mais ainda na sociabilidade com a emergência de um espaço burguês no Brasil 2011 p342 11 Rosa M Godoy se aproxima um pouco mais da abordagem de Oliveira e indica como as elites nordestinas conscientes do processo de mudanças do eixo econômico e político nacional argumentam sobre um espaço que lhes prejudicava os interesses o CentroSul porém não percebem a articulação desta transformação às mudanças no quadro da divisão internacional do trabalho Conclui que a ideologia regionalista surge como representação da crise na organização do espaço de uma fração açucareira da classe dominante brasileira em vias de subordinação a uma outra fração hegemônica comercialcafeeira SILVEIRA 2009 p17 17 geográfica e étnica como em Durval M A Albuquerque Jr 2011 p33 Para ele os discursos que instituem a realidade criticando que a História Regional procure legitimar a construção do espaço regional como continuidade histórica oferecendolhe base material Seu objetivo é questionar a própria ideia de região e a teia de poder que a institui 2011 p3912 Reconhecemos as contribuições trazidas esses autores para o debate sobre regionalidade que não é consensual e cujas divergências são parte do resultado produtivo das reflexões Mas cabe indicar a polivalente intelectual Maura Penna 1992 valiosa referência para esse debate Divergindo um tanto de Albuquerque Jr afirma que a região Nordeste é uma realidade visto que é um dado que permite os indivíduos se localizar no espaço e no meio social dando sentido ao mundo e a suas experiências Identifica a variação dos sentidos conforme o contexto histórico e a referência de região ou mesmo de indivíduo a partir de sua formação e vivências PENNA 1992 p47 Pensamos que o trabalho de historicização e desnaturalização dos discursos regionais é um passo importante para nosso trabalho embora não baste a si próprio daí a importância de trazer o debate de autores como Oliveira Silveira e Penna pois inserem as práticas discursivas em um debate político mais imediato que é bastante produtivo para pensar a regionalidade em O País de São Saruê A preocupação de Albuquerque Jr por outro lado é também interessante pois procura pensar a própria regionalidade no seu espaço na cultura histórica enquanto enunciados do passado de maneira bem mais radical que os referidos autores problematizando seus sentidos óbvios historicizandoos 13 Cabe também ressaltar que Albuquerque Jr na diversidade de fontes artísticas analisadas literatura artes plásticas cinema música apresenta matrizes de discursos sobre o Nordeste e identifica uma visão da região que foi muito desenvolvida pelos artistas comunistas a qual chama de território da revolta um Nordeste de miséria e injustiça social mas também de utopias ideário elaborado sob forte influência do pensamento marxista Cf ALBUQUERQUE 2011 p 237 Filmes como O Deus e o Diabo na Terra do Sol Vidas Secas Os Fuzis ou O País de São Saruê poderiam ser lidos por essa matriz de entendimento do espaço nordestino semiárido enquanto espaço da revolta Durante a análise no entanto articulamos mais profundamente ao conceito de romantismo revolucionário do sociólogo Marcelo Ridenti que pareceu mais produtivo 12 O regionalismo é muito mais do que uma ideologia de classe dominante de uma dada região Ele se apoia em práticas regionalistas na produção de uma sensibilidade regionalista numa cultura que são levadas a efeito e incorporadas por várias camadas da população e surge como elemento dos discursos destes vários segmentos Por isso procuramos nos afastar de fazer a chamada História Regional porque esta por mais que se diga crítica do regionalismo do discurso regionalista está presa ao seu campo de dizibilidade ALBUQUERQUE 2011 p39 Albuquerque Jr em sua perspectiva mais restritamente discursiva recebeu críticas como a de que parece descrever uma região que faz a si mesma BERNARDES 2007 p43 13 Nós utilizamos o conceito de cultura histórica pois achamos que a perspectiva de Albuquerque Jr pode ser vista assim mas não lemos o autor se referir dessa maneira 18 pois pensado para entender a produção artística de artistas engajados em nosso recorte Nossas categorias de análise são o sertão e sertanejo em O País de São Saruê Porém na perspectiva de trabalhar o documentário a partir da cultura política pecebista notamos que a visão sobre o campo do PCB na formação do cineasta perpassa seu entendimento de sertão Cruzar outras categorias portanto propiciou uma análise mais produtiva Reconhecemos que a região sertaneja também é uma construção discursiva reproduzida por uma diversidade de discursos midiáticos artísticos políticos intelectuais etc Acreditamos que ela também pode ser entendida pela divisão social do trabalho seja nacional enquanto uma região ocupada através da pecuária em relação a um espaço açucareiro por exemplo ou internacional quando se tornou um polo algodoeiro que cresceu e se apequenou perante as flutuações e atuações do capital internacional por exemplo Por outro lado o sertão possui características culturais que vão além do âmbito econômico em imaginário amplo poético identificável na literatura cinema etc Sobre a categoria sertão Nísia Trindade Lima afirma que no processo de formação de nossa nacionalidade houve a formação de um dualismo entre sertão e litoral Para ela sertanejo caboclo ou caipira foram objetos sociológicos importantes nesse desenvolvimento14 Um marco a construção dessa categoria foi Os Sertões 1902 de Euclides da Cunha A obra descreve o conflito de Canudos realizando um estudo geográfico e sociológico desse espaço buscando no sertanejo a essência nacional caracterizandoo como um forte místico e primitivo Cunha entendia tais características pela relação do homem com o meio natural Sua visão influenciou fortemente a produção cultural seguinte especialmente a literatura regional e o cinema das décadas de 1950 e 1960 incluindo a geração de Vladimir Carvalho15 A literatura ficcional reproduziu essa matriz em diversos livros entre os quais destacamos escritores comunistas como Graciliano Ramos e Jorge Amado que se tornaram grandes nomes da literatura dita regionalista16 O ensaísta Gilberto Freyre um dos grandes nomes que pensaram a região nordestina enfocou a região litorânea sua produção da canadeaçúcar e a cultura a ela ligada Ao escrever Nordeste 1937 o autor adverte que quem pensará o outro Nordeste da pecuária seco e árido o sertão será o sociólogo Djacir Menezes em Outro Nordeste 1937 Este aborda o espaço de clima seco das tragédias dos retirantes e do banditismo social 14 O homem do interior foi um dos objetos privilegiados nos textos de cunho sociológico produzidos na segunda metade do século XIX nas três primeiras décadas do século XX e na fase de e na fase de institucionalização universitária das ciências sociais que pode ser aproximadamente demarcada entre os anos de 1933 e 1964 LIMA 1999 p14 15 O livro está dividido em três partes a terra o homem e a luta A construção de O País de São Saruê se fez de maneira semelhante mostrando o espaço o homem e os problemas enfrentados por ele Vladimir Carvalho admite que essa leitura foi muito importante na sua formação em entrevista a Carlos Alberto de Mattos 29 disponível nos extras do DVD O País de São Saruê distribuído pela Videofilmes Tema do capítulo 3 16 Graciliano Ramos obteve grande impacto com o romance Vidas Secas 1938 que abordava o pequeno sertanejo e seu conflito com as longas estiagens que dificultavam sua sobrevivência No seu livro há não apenas uma questão de sobrevivência mas uma seca de sentimento de pensamento e de humanidade 19 bem diverso do Nordeste apresentado por Freyre Roger Bastide 1957 descreve um Brasil de contrastes que se mostra dentre outras formas pela diferença entre o Nordeste do açúcar e do semiárido17 Em Djacir Menezes ou Roger Bastide temos ainda elementos euclidianos muito presentes pretendendo caracterizar o sertão pela questão físicogeográfica clima solo o misticismo religioso o atraso da região e a separação do país em dualidades contrastantes Na década de 1960 os problemas do Nordeste ganham o status de questão nacional ou seja a região se configura como obstáculo para a integração e desenvolvimento nacionais O discurso do PCB e de Celso Furtado partiram dessa concepção Se Furtado pretendia resolver essa questão pelas reformas do Estado elaborando seu plano de ação para o desenvolvimento do Nordeste no pensamento pecebista nessa modernização deveria levar à proletarização do campo e à sua organização permitindo a revolução social meso que através de reformas18 Essas ideias eram parte daquela cultura histórica na qual se situa a construção de O País de São Saruê Vladimir Carvalho se serve de discursos sobre os conflitos de classe e de modernização da região sertaneja e elabora um discurso original artístico que se insere nestas disputas simbólicas De maneira muito geral podemos identificar o sertão e o semiárido para nossa análise como semelhantes pois servem para diferenciar a região da economia da canadeaçúcar litorânea da área onde predomina a produção do algodão e da pecuária no interior do Nordeste Reconhecemos no entanto que as categorias entre os autores são diversas Porém trabalhamos cruzandoas e reconhecendo suas influências na relação entre arte e política estabelecida em O País de São Saruê O sertão e sertanejos assim carregam uma marca de significação mais cultural enquanto o nordeste semiárido é uma categoria estritamente econômica e geográfica A Análise de O País de São Saruê O título do filme é uma referência ao cordel de Manoel Camilo dos Santos Viagem a São Saruê 1948 19 O documentário está dividido em 13 sequências20 Nossa análise temática foca a 17 Não se pode imaginar contraste mais violento do que o existente entre as duas regiões De um lado a terra escura pegajosa úmida cavada de sulcos embebida de água com árvores frutíferas mangueiras laranjeiras canaviais rios limosos De outro lado um caos de pedras cinzentas cravadas em desordem no chão de argila seca rachado pelo sol e vastas extensões de areia ardente BASTIDE 1978 p86 18 Celso Furtado em Operação Nordeste 1959 discutindo a desigualdade econômica das regiões identifica uma rede econômica que desprivilegia o Nordeste em favorecimento do Sul FURTADO 2009 p47 Enquanto isso o PCB considerava o Nordeste uma região feudal sendo a proletarização do camponês através de uma revolução nacional e democrática de conteúdo antiimperialista e antifeudal necessária GORENDER 1987 p30 Tal visão acreditava em um desenvolvimento por etapas oriunda de uma interpretação stalinista dos chamados países em desenvolvimento que deveriam consolidar o capitalismo para chegar ao socialismo No Capítulo 5 no entanto mostramos que havia divergências sobre tais leituras 19 O cordel próximo das epopeias narra a viagem do poeta a uma terra similar ao Éden um paraíso possível avesso da escravidão do sistema capitalista A busca desse paraíso foi motivada pelo seu intelecto devido às histórias contadas quando era criança cf PINHEIRO e LÚCIO 2001 p 47 Porém enquanto Manoel 20 apresentação do espaço espécie de gênesis da terra sertaneja e de seus homens o vaqueiro e o papel da pecuária no filme e na ocupação do sertão capítulo 4 a luta de classes e os conflitos políticos locais exibidos não literalmente no filme nas sequências do cultivo do algodão e da fase industrial dessa economia pulando para o discurso do prefeito de Sousa Antônio Mariz que conclui o documentário capítulo 5 Outros temas presentes no filme são indicados no percurso a modernização do sertão a presença do imperialismo a decadência da civilização do couro etc O documentário possui uma polifonia acentuada pois utiliza uma variedade de materiais discursivos para formar sua narrativa poesia música da jovem guarda rock música popular entrevistas fotografias jornais e outros elementos propriamente fílmicos Tais recursos e seus usos diversos pelo filme se tornaram objetos de nossa análise Para pensar os planos cinematográficos utilizamos o método iconográfico de Erwin Panofisky que embora elaborado para a análise de pinturas consideramos útil Dessa maneira buscamos chegar aos objetos de análise propostos por Panofisky como os estilos pelos quais podemos identificar maneiras como em um determinado contexto histórico se expressam objetos e eventos e tipos como se expressam em um contexto temas e conceitos através de objetos Panofisky sugere inicialmente uma descrição iconográfica que identifique objetos e ações literais nas imagens aqui nos planos e nos sons do filme em seguida propõe identificar convenções e temas para por fim interpretar os valores simbólicos em sentido mais profundo Assim os primeiros planos de O País de São Saruê 1971 inserem o espectador no espaço e cenário do filme De início identificamos e descrevemos tais planos chão pedregoso o cactos o céu limpo e ensolarado as aves voando Em seguida passamos para o plano de interpretação esses objetos compõem uma imagem do sertão seco e sua vegetação característica ou seja tanto localizam o espectador em um espaço geográfico quanto ressaltam qualidades peculiares Em terceiro nível relacionamos essa construção às elaborações discursivocinematográficas das décadas de 1960 e 1970 de uma região de problemáticas sociais e de um espaço de seca como presente em filmes como Vidas Secas 1963 e Deus e o Diabo na Terra do Sol 1964 21 Assim O País de São Saruê é parte de uma tradição de cinema social documentário que tem construção semelhante em outros filmes como aqueles do ciclo de documentário paraibano como Aruanda 1960 nos quais havia uma denúncia social através da representação da vida de camponeses e do campo nordestino como espaço de pobreza Ali identificamos os sintomas culturais ou símbolos que foram tendências comuns naquele contexto para expressar os temas e Camilo dos Santos constrói um lugar que saciaria as ânsias populares de uma felicidade terrena Vladimir Carvalho encontra um povo seu espaço e estruturas sociais que impedem a realização desses desejos Assim como afirma o cineasta o filme é um contraponto ao delírio do cordel CARVALHO 1986 p129 20 A estrutura do filme pode ser conferida no Apêndice A Tabela de sequências de O País de São Saruê com a tabela das sequências do filme 21 21 conteúdos da pobreza da seca e da dura realidade rural preocupações recorrentes da arte vinculada à esquerda brasileira na década de 1960 A essa produção podemos relacionar as convulsões campesinas da época e localizar a posição política desses cineastas sobre tais conflitos Utilizamos ainda a semiótica de Algirdas Julius Greimas baseados numa proposta de análise semissimbólica de Antônio Pietroforte Este estudioso da linguística apresenta em Semiótica visual os percursos do olhar 2007 uma proposta de análise semissimbólica ou seja um esquema semiótico que nos permite problematizar uma obra de arte e seus elementos visuais na sua relação entre conteúdo e forma reconhecendo que a última é capaz de criar sentidos Assim a forma não é apenas um veículo do conteúdo mas também constrói significações passíveis de problematização Seu sistema para análise de estruturas narrativas também foi de grande auxílio Visto que O País de São Saruê é um documentário bastante poético enfatizamos a análise estética conseguindo resultados mais satisfatórios A estrutura da divisão das sequências de O País de São Saruê se organiza de maneira a fazer espécie de narrativa históricomítica estabelecendo uma gênese uma problematização do presente e mesmo dando indicativos para o futuro Apresenta a origem da terra depois dos homens sua ocupação no espaço a construção da civilização sertaneja ou do couro através do trabalho os obstáculos e indicativos para sua superação Em Prisioneiros do Mito Cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil 19301956 Jorge Ferreira discorre sobre a cultura política dos comunistas entre 1930 e 1956 e traz teses interessantes ainda para nosso recorte temporal Indica como o pensamento comunista da época embora almeje a laicidade e a negação do pensamento religioso ainda estava preso a mitos teologias e hierofanias de sociedades tradicionais as quais permanecem em nostalgias nas imagens e nos desejos que traduzem em entusiasmos profundos de se viver em uma humanidade diferente FERREIRA 2002 p 25 Isso ajudou a perceber que o documentário se estrutura apresentando uma gênese problemáticas e obstáculos do mal o latifúndio e indicando caminhos para a realização de uma utopia Pela nossa hipótese essa elaboração foi realizada pela representação do sertão através do mundo do trabalho O País de São Saruê está dividido nos temas dos mundos animal mineral e vegetal articulados à ocupação e desenvolvimento histórico da região e neste percurso apresenta as contradições dos meios de produção no sertão paraibanobrasileiro22 Elegemos três matrizes de discursos apropriados pelo cineasta a partir das quais fizemos nossa análise uma concepção pecebista da região e seus problemas a tese marxista de que a cultura é construída a partir do mundo do trabalho e por fim a representação sociológica de Euclides da Cunha sobre o sertanejo A dissertação se divide da seguinte maneira 22 Vladimir Carvalho reconhece a divisão nos três mundos em entrevista concedida a Carlos Alberto de Mattos 29 disponível nos extras do DVD O País de São Saruê distribuído pela Videofilmes 22 No segundo capítulo apresentamos a relação cinema e história e comentamos a relação entre o documentário gênero fílmico e sua relação com o conceito historiográfico de documento justificando aspectos metodológicos utilizados para a análise de O País de São Saruê No terceiro capítulo levantamos dados préfílmicos contextualizando o processo de elaboração do filme a partir da formação de Vladimir Carvalho da conjuntura políticocultural e do processo de filmagens de O País de São Saruê Esses dados permitem pensar a cultura política e cinematográfica em que Carvalho se inseria e aspectos relevantes técnicos e préfílmicos da construção do documentário Descrevemos o período de produção de O País de São Saruê as gravações de Sertão do Rio do Peixe médiametragem que ampliado formou o filme que analisamos suas dificuldades econômicas e soluções e aspectos relevantes como os profissionais envolvidos na música e na poesia do filme dentre outros Constam nessa etapa elementos préfílmicos como o processo de filmagem e esboço de roteiro No quarto capítulo analisamos as três primeiras sequências que apresentam o espaço e sua ocupação pelo homem A primeira introdutória traz a síntese da problemática a ser exibida e informações históricas sobre o sertão e o filme A segunda apresenta o espaço de maneira extremamente poética e a terceira o vaqueiro relacionando a pecuária à ocupação do espaço sertanejo Utilizamos aqui como documentos de apoio o livro Capítulos de História Colonial 1907 de Capistrano de Abreu Os Sertões 1902 de Euclides da Cunha e alguns textos marxistas e de artistas comunistas para contextualizações e relações de análise No quinto capítulo analisamos a representação de O País de São Saruê articulandoo aos debates sobre o campo do PCB na época cobrindo o período de revisão da esquerda brasileira pósgolpe militar e das tensões do regime Focamos três sequências a sexta que aborda o cultivo do algodão a sétima que aborda sua etapa industrial e a décima segunda que conclui o filme com um discurso de Antônio Mariz Mostramos como essas sequências se relacionam as discussões da esquerda e se posicionam no debate sobre o subdesenvolvimento do sertão Portanto esta dissertação está no âmbito da cultura cinematográfica e da cultura política Nosso recorte cinematográfico se refere ao documentário O País de São Saruê nosso documento Seu diretor Vladimir Carvalho está inserido em uma militância comunista que como mostramos adiante influenciou seu cinema Nossa base de articulação do filme voltouse para a influência do livro Os Sertões 1902 e de uma cultura política que enxergava o campo e os camponeses sob ótica econômico política específica 23 Capítulo 2 O País de São Saruê documento e documentário O documento desviado só volta a ser documento por uma operação crítica que o espectador não está habituado a fazer na situação de semihipnose que a participação da ficção requer Guy Gauthier Cinema o outro cinema a crítica é contrária à disposição normal da inteligência humana a tendência espontânea leva o homem a acreditar no que lhe é dito É natural aceitar todas as afirmações sobretudo uma afirmação escrita aplicar a crítica é portanto adotar um modo de pensamento contrário ao pensamento espontâneo uma atitude de espírito que não é natural Seignobos La Méthode historique appliquée aux sciences sociales As duas citações que abrem esse capítulo nos servem para defender a iniciativa deste trabalho Se a crítica documental do historiador pode ser vista como um destes movimentos contrários à disposição humana sendo um esforço a operação de desconfiar e avaliar as informações recebidas então a afirmação de Seignobos se assemelha ao dito por Guy Gauthier sobre que para perceber o aspecto documental em um filme é requerido deixar o estado de semi hipnose de quando seduzidos pelo cinema Ao historiador que trabalha com cinema estas são exigências básicas para analisar o discurso histórico de um filme ficcional ou não Se a tendência espontânea humana é acreditar no que lê ou vê o efeito de realidade característico do cinema reforça essa tendência pelo seu apelo realista verossímil e sedutor Ora se ao espectador a operação crítica é facultada não é ao historiador a quem cabe necessariamente esforçarse na crítica de sua fonte O caminho não natural do pensamento de desconfiar e enxergar os limites e possibilidades do discurso históricos nos produtos culturais é central para ir além da impressão imediata sugerida em um filme e seus artifícios eróticos dever pudico do historiador Assim apresentamos elementos da discussão dessa relação de sedução e distanciamento entre cinema e história através de duas categorias fundamentais para a história e para o cinema respectivamente documento e documentário Cinema e História Diversos historiadores discutiram a relação entre cinema e história entre os quais podemos destacar Pierre Sorlin Marc Ferro e Robert Rosenstone os brasileiros Marcos Napolitano Jorge Nóvoa ou na Paraíba Regina Behar Um número consistente de trabalhos no Programa de Pós Graduação em História da UFPB articularam estas searas nos quais vislumbramos diversas possibilidades desse diálogo Em Cinema e História uma imagem do Nordeste 2007 Rossana de Sousa Sorrentino 24 Lianza analisou A Canga 2001 discutindo a visão de Nordeste neste curta Carlos Adriano Ferreira de Lima 2008 analisou Hans Staden 1999 identificando a representação da sociedade Tupinambá Já Marcos José Melo 2012 problematizou a identidade oferecida ao continente africano no cinema contemporâneo através de diversos filmes Jônatas Xavier de Sousa 2013 analisou a representação da mulher torturada em Que bom te ver viva 1989 de Lúcia Murat 23 Como podemos perceber tais trabalhos abordaram realidades históricas diversas mas partiram de uma fundamentação comum que articula representação social e cinema semelhante ao nosso trabalho Isso não quer dizer que os filmes foram abordados igualmente os instrumentos analíticos variaram conforme a necessidade de cada filme e tema Em Que bom te ver viva por exemplo há uma construção documentária misturada a uma personagem ficcional alterego da cineasta Lúcia Murat que rendeu um trabalho de interpretação particular no trabalho de Jônatas Xavier Carlos Lima analisou um filme ficcional e histórico que procurou uma fidelidade naturalista na sua representação embora sem ambição de ser um filme histórico poderíamos indicar como um tanto semelhante o caso de A Canga porém o filme é problematizado a partir da visão de um Nordeste de Seca e de brutalidade Assim ainda se neste caminho recorrente as análises foram diversas não foi o único trajeto possível Por isso indicamos o trabalho de Adeilma Bastos Carneiro 2009 que fugiu ao problema representacional Sua pesquisa abordou o impulso oferecido pelo Núcleo de Documentação Cinematográfica da Universidade Federal da Paraíba 1979 à produção cinematográfica paraibana trabalhando o lócus de formação de cineastas e as opções ideológicas e estéticas abraçadas por eles A relação cinemahistória portanto abarca outras iniciativas história das escolas e técnicas do cinema história econômica do cinema história da recepção de filmes Apenas na década de 1970 o cinema foi incorporado institucionalmente pela disciplina histórica quando a História Cultural se consolidava frente à predominância da história serial e quantitativa Cf SILVA 2008 p118120 Marc Ferro foi o primeiro historiador a afirmar que um filme podia ser documento para a história ou agente histórico Após ele outros historiadores o admitiriam como Le Goff ao reconhecer o papel do cinema e outras mídias no avanço da relação entre homens e a história ressaltando sua importância no âmbito da cultura histórica 1990 p 49 Hoje crescermos em meio a grande profusão de sons e imagens difundidos pelos mais diversos meios midiáticos A linguagem cinematográficaaudiovisual parece tão natural que dificilmente nos perguntamos sobre seu surgimento seu funcionamento sua gramática ou suas figuras de linguagem salvo nos casos de produção audiovisual cinefilia ou no nosso caso 23 Os últimos trabalhos realizados no Programa de Pós Graduação em História da UFPB Quando nós somos os outros Hans Staden e a Cultura Histórica 2008 de Carlos Adriano Ferreira de Lima Paisagem cinematográfica O nudoc e a produção cultural nas décadas de 19801990 2013 de Adeilma Bastos Carneiro Como se fossem insetos África e ideologia no cinema contemporâneo 2012 de Marcos José de Melo Que bom te ver viva Memórias e Histórias de mulheres que sobreviveram à violência da ditadura 2013 de Jônatas Xavier de Souza 25 de pesquisa acadêmica24 Porém quando o cinema surgiu no final do século XIX não havia uma linguagem cinematográfica propriamente dita como atualmente Ela foi consolidada aos poucos surgindo teorias que buscavam explicála eou propunham maneiras de fazer cinema25 O historiador que pretende analisar filmes é importante conhecer as convenções da linguagem cinematográfica e os debates de seus teóricos assumindo cuidados epistemológicos necessários para tal pesquisa Munido do conhecimento de aspectos dessa linguagem cinematográfica que durante um século se afirma com léxico convenções e estéticas próprios o pesquisador realizará interpretações que sem esse aparato deixariam muito a desejar26 A linguagem cinematográfica não é inocente As escolhas técnicas e estéticas em um filme fornecem informações importantes sobre o cineasta sua obra e os efeitos almejados através da sétima arte O cineasta elabora seu discurso através da escolha de sons da fotografia dentre outros artifícios que se relacionam a ideologia assumida pelo artista Marc Ferro indica que o cinema tem um caráter de agente ativo no processo histórico pois desde que o cinema se tornou uma arte seus pioneiros passaram a intervir na História com filmes 2010 p15 e que os cineastas conscientes ou não estão a serviço de uma causa de uma ideologia reconhecendo que isso não exclui o fato de que haja entre eles existência de duros combates em defesa de suas próprias ideias 2010 p15 Por isso com base nos já mencionados conceitos de cultura histórica 24 Quando os primeiros experimentos de imagens em movimento surgiram e se tornaram populares eles estavam ligados a uma atividade de espetáculo de curiosidades Foi a partir do início do século XX que o que viria a ser considerado com sétima arte começou a desenvolver convenções narrativas que se tornaram predominantes permitindolhe ampliar seu público para um setor mais ilustrado e se industrializar COSTA 2006 p28 Por volta de 1907 o cinema construía convenções narrativas suas e um marco desse processo foram os filmes de D W Griffith que definiu muito do que se tornou clássico para cinema A seleção de artigos de História do Cinema Mundial organizada por Fernando Mascarello possui um bom panorama do percurso do cinema do século XIX às produções mais recentes suas origens e escolas As escolas e maneiras de fazer cinema se deram de uma maneira que podemos mapeálas no âmbito ficcional e documentário com certa independência embora frequentemente estes gêneros se influenciassem Assim como o cinema ficcional tem grandes cineastas como Hitchcock Chaplin Bergman e outros o documentário possui grandes nomes como Robert Flaherty Dziga Vertov John Grierson Alberto Cavalcanti e no Brasil Eduardo Coutinho Vladimir Carvalho Lúcia Murat dentre outros Se há correntes no cinema ficcional há também no documentário como o Cinema Direto o Cinema Verdade o Documentário Social etc Identificar os cineastas e as escolas que lhes influenciaram é fundamental no trabalho com documentário Essa diversidade pode ser conferida em O documentário um outro cinema 2011 de Guy Gauthier 25 A linguagem cinematográfica se tornou mais complexa na tentativa de atender um público burguês mais exigente Para tanto conferiu ao cinema uma maior respeitabilidade disputando para tanto o status de arte já alcançado por outros campos como o teatro e a literatura No âmbito científico também ocorreu esse embate uma vez que estavam ligados a pesquisa e a ciência a principal função e caráter atribuídos ao cinema no seu surgimento Tal debate se desdobrou pelo entendimento do que era o cinema forma de conhecimento produto de fruição artística ou simples entretenimento A imagem cinematográfica é objetiva ou manipulável Quais os limites da neutralidade do cinema ou do desejo por um cinema educativo científico artístico e como fazêlos Daí se engendrou duas categorias embora não sejam únicas que dominaram e dividiram a visão do cinema o cinema de ficção e o documentário No entanto com o passar do tempo as distinções entre esses dois gêneros se tornaram categorias mais e mais próximas confundindose 26 A expressão linguagem cinematográfica já consta na década de 1910 em textos de Ricciotto Canudo Louis Delluc Hugo Münsterberg ou de Kulechov e Pudovkin A produção nesse sentido cresceu depois na segunda metade do século XX com autores como Christian Metz e Jean Miltry Cf AUMONT 1995 p158169 26 de Elio Flores e de representação e de apropriação de Roger Chartier afirmamos que o cinema elabora representações e se apropria de discursos disponíveis em realidades históricas específicas que lhes oferece certa liberdade de elaborações e inserção nos debates de seu tempo Assim Ferro indica que as culturas recebem diferenciadamente as imagens cinematográficas outro fenômeno a ser analisado na perspectiva da diversidade na diacronia e na sincronia de suas civilizações O historiador Marcos Napolitano na mesma esteira indica que o historiador deve considerar os códigos internos de funcionamento do filme uma lógica interna ao filme sua linguagem convenções narrativas dentre outros e as representações da realidade histórica ou social nelas contidas NAPOLITANO 2005 p 237 ou seja identificar os discursos externos com os quais a fonte dialoga27 Em nossa análise relacionamos O País de São Saruê ao acesso de Vladimir Carvalho às discussões de intelectuais comunistas e outras literaturas Napolitano indica ainda a necessidade de se situar a linguagem cinematográfica em uma historicidade técnica e cultural pois os elementos técnicos e estéticos da obra proporcionam uma maior compreensão da realidade histórica ou social representadas no filme O País de São Saruê por exemplo teve limitações no uso de entrevistas pois a sincronia de som era recurso recente pouco utilizado no país Técnica e discurso se ligam e a interpretação perde seu potencial caso se separe a estética e o conteúdo de sua dimensão técnica podendo até ocorrer conclusões equivocadas Robert Rosenstone trouxe outra contribuição historiográfica importante para esse debate Critica os historiadores que se limitam a buscar a confirmação de informações historiográficas nos filmes como espécie de avaliadores de sua validade Propõe outra visão que identifique as contribuições do cinema para a sociedade que não estão circunscritas nos detalhes específicos mas no sentido abrangente do passado que elas transmitem as ricas imagens e metáforas visuais que elas nos fornecem para que pensemos historicamente Defende que entendam o filme não enquanto veículo para transmissão de verdades literais mas de verdades metafóricas que representam um comentário e desafio ao discurso histórico tradicional 2010 p 2324 Buscamos assim identificar as metáforas e comentários cinematográficos de O País de São Saruê entendendo que sua argumentação hora se cruza com a historiografia eou com a política mas que possui caráter original artístico apresentando ambiguidades que inclusive não podem e não querem ser resolvidas 27 Podemos pensar por exemplo que há especificidades estéticas e técnicas em Psicose 1960 de Hitchcock quando o diretor resolve montar um enredo com suspense e mistério que o leva a fazer determinadas escolhas de planos sons e sequências específicas para alcançar os efeitos desejados por outro lado a representação de um drama edipiano presente na narrativa não poderá ser explicado exclusivamente pela crítica interna desse documento para tanto será necessário problematizar as representações históricosociais nele contidas através de uma crítica externa que poderá levar em consideração por exemplo certa popularidade de teorias psicanalíticas nos Estados Unidos na década de 1950 27 Concluímos assim o filme se relaciona com as representações sociais e históricas carecendo de uma crítica que contemple suas dimensões técnica estética contextual e de linguagem mas também o situando no debate com outros agentes históricos de sua época Ao analisarmos a relação entre planos e os usos dos sons ou pontuarmos os elementos fílmicos individual ou relacionalmente não se tratará de cinefilia mas de iniciativa necessária para um melhor entendimento do discurso construído em O País de São Saruê28 Documentário e representação cinematográfica A distinção entre documentário e ficção não contempla a diversidade de produções cinematográficas todavia essa é ainda a forma mais popular de dividir o cinema29 Delineamos as especificidades desse cinema para mostrar os cuidados assumidos em nossa crítica documental e exibir algumas reflexões que esse esforço nos encaminhou A categoria documentário nos remete ao próprio status de objetividade do cinema na sua origem Podemos indicar dois aspectos desta questão o processo de captação das imagens que nos leva a entender como se configurou certo realismo com crença na neutralidade das imagens cinematográficas e a própria ideia de documento na época do surgimento da categoria documentário através da qual articulamos a noção de documento tão cara a história O cinema herdou da fotografia certo status de neutralidade e o fetiche do registro Acreditavase que as imagens fotográficas não recebiam intervenção da subjetividade humana uma vez que eram registradas por uma máquina sendo portanto neutras30 Cientistas ficaram animados com essa crença tentando legitimar o registro cinematográfico enquanto ferramenta 28 Assim concordamos com Marcos Silva e Jorge Nódoa quando dizem que Embora o historiador ou o cientista social não seja obrigado a se transformar num crítico de cinema para trabalhar com filmes ele tem a obrigação sim de entender os recursos narrativos e poéticos que um filme utiliza para identificar o que é mesmo que essa obra diz sobre seus temas e personagens Identificados os filmes como parte importante do universo documental trabalhado pelos professores eou pesquisadores de História documentos sobre a época em que o filme foi produzido e documentos sobre os temas e personagens que ele aborda como memória artística e representação impõese a necessidade de pensar sobre a materialidade expressiva desses documentos Não se trata de impor uma hierarquia entre documentos um filme é tão importante documentalmente quanto um discurso de greve ou um balanço de empresa tabelas de preços ou informações quantitativas sobre população mas de entender e aproveitar peculiaridades de gêneros e campos documentais SILVA 2008 pp0809 29 É comum encontrar referência a um cinema de nãoficção que englobaria também o documentário Porém como indica Hélio Godoy Assim por oposição ao que é ficcional tentase encontrar um campo onde o fazer documentário possa ser localizado Infelizmente nesse campo encontramse atualmente tantas outras formas audiovisuais que pela negação fica difícil chegar a alguma definição 2001 pp1516 Se o termo cinema de não ficção busca definir o documentário pela oposição à ficção que desfrutou de maior atenção dos estudiosos do cinema mantém a dificuldade de estabelecer um campo de pesquisa bem definido 30 A idéia de objetividade apresentada pelos primeiros fotógrafos era sustentada pelo argumento de que os próprios objetos deixam vestígios na chapa fotográfica quando ela é exposta à luz de tal forma que a imagem resultante não é o trabalho de mãos humanas mas sim do lápis da natureza BURKE 2004 p26 28 científica para produção de conhecimento ou para educação GAUTHIER 2011 p4231 A fotografia foi uma invenção que combinou descobertas anteriores da câmera obscura da perspectiva artificial que permitia oferecer maior nitidez a imagem e a fixação dos reflexos de luz utilizados na câmera obscura MACHADO 1984 p3032 Arlindo Machado mostra que o processo fotográfico é desde sua origem uma convenção e afirma que o realismo baseado na ideia de que a fotografia capta algo que existe externamente possui uma concepção ingênua p33 Critica inclusive as produções que se quiseram científicas como da antropologia Veio daí o nome de objetivas para as lentes fotográficas e cinematográficas Tais ideias chegaram a um dos maiores pensadores do cinema André Bazin que atribuiu um caráter ontológico a essa objetividade da câmera ao qual Machado critica dizendo que Conhecesse Bazin entretanto o verdadeiro significado da construção perspectiva que está embutida na câmera e ele teria o desprazer de verificar que nada é mais subjetivo do que as objetivas fotográficas porque o seu papel é personificar o olho do sujeito da representação p37 Não adentrando mais neste debate indicamos que suas raízes técnicas e interpretativas permitiram à imagem audiovisual forte apelo realista Sendo o documentário o gênero fílmico que talvez mais seja visto por esse suposto status tal discussão se torna válida para pensar o debate envolto na sua definição Além disso para além das definições técnicas os teóricos do cinema Jacques Aumont e Michel Marie 2006 afirmam que entre as diferenças que alicerçam a distinção entre ficção e documentário há uma situação de recepção que leva o espectador a adotar uma atitude mais documentarizante do que ficcionalizante neste tipo de gênero p86 O sociólogo Francisco Elinaldo Teixeira especialista em documentário comenta que este termo surgiu entre as décadas de 1920 e 1930 trazendo em si marcas da significação do campo das ciências humanas da segunda metade do século XIX para designar um conjunto de documentos com a consistência de prova a respeito de uma época TEIXEIRA 2006 p253 O gênero tem assim uma ligação com o debate historiográfico sobre documento histórico e seu caráter de prova e de objetividade desenvolvido pela escola metódica Tais historiadores se serviram de uma concepção com origem jurídica utilizada com fins científicos aproximando real e documento na qual este deteria os fatos históricos32 Por isso segundo Antoine Prost Robin 31 Guy Gauthier indica que na França no início do século XX a imagem em movimento foi utilizada para fins educativos como o no Museu pedagógico por exemplo e referencia que FélixLouis Regnault realizou o primeiro filme etnográfico em 1895 no mesmo mês da famosa projeção pública dos Lumiére 2011 p5051 32 No final do século XIX o principal vestígio do passado utilizado pelos historiadores da escola metódica ou positivistas era o documento oficial escrito Creditavam a esse material um caráter de prova e objetividade A palavra documento com o sentido de prova jurídica representação que se mantém até a atualidade já era usada pelos romanos tendo sido retomada na Europa Ocidental no século XVII Assim os historiadores positivistas ao se apropriarem do termo conservamlhe o sentido de prova agora não mais jurídica e sim 29 Collingwood critica que essa seria uma história de tesoura e cola feita com fatos préfabricados que os historiadores apenas encontravam em documentos Cf Prost 2008 p69 Assim bastaria ao historiador elencar os fatos históricos presentes nas testemunhas do passado os documentos33 Como vimos Francisco E Teixeira indica que o termo documentário surgiu para nomear um domínio específico do cinema trazendo a marca da concepção de documento oriunda das ciências humanas da segunda metade do século XIX Conclui que o documentário possui uma forte conotação representacional ou seja o sentido de um documento histórico que se quer veraz comprobatório daquilo que de fato ocorreu num tempo e espaços dados Atualmente quando se fala de documentário de imediato essa significação originária ainda vem à tona mas para logo em seguida se refratar numa multiplicidade de concepções e renomeações que converteu o campo num dos mais babélicos do cinema TEIXEIRA 2006 p253 As categorias documento e documentário têm nas origens semelhanças quanto à relação com o real que pretendiam Assim se no século XX a concepção de documento foi ampliada pela historiografia dos Annales incluindo materiais de diversos suportes como os visuais também houve mudanças significativas no documentário cujas narrativas questionaram sua própria expressão deixando de lado uma representação meramente objetiva questionando o estatuto objetivo desse cinema Essa ampliação das maneiras de fazer documentário ampliou suas indagações sobre os limites e possibilidades artísticos e científicos da representação desse gênero Ao documentário e à História perguntamos ciência ou arte34 Os historiadores Marcos Silva e Jorge Nódoa indicam que mudanças no conceito de documento e o início do trabalho sistemático de historiadores com cinema foi na mesma época Evidenciouse que o documento não é um objeto a ser interpretado pelo historiador sozinho mas uma modalidade de interpretação do mundo e de constituição de Memória Por isso concluem que estes profissionais dialogam com o cinema através de seus instrumentos próprios de trabalho a argumentação explicativa e demonstrativa os corpos conceituais e as tradições historiográficas SILVA 2008 p 9 Substituise uma concepção apassivante do documento para uma dialógica entre a representação documental do passado e o historiador a partir dos métodos e com status científico O próprio fato de nomear a palavra documento aos testemunhos históricos traduz uma concepção de história que confunde o real com o documento e o transforma em conhecimento histórico Captar o real nessa lógica cartesiana seria conhecer os fatos relevantes e fundamentais que si impõem por si mesmos ao conhecimento do pesquisador SÁSILVA DE ALMEIDA GUINDANI 2009 p7 33 Sobre essa visão do que foi a escola metódica o próprio Antoine Prost critica essa simplificação dos escritos de Seignobos Para ele Seignobos não se reconheceria em tal redução de suas ideias Cf Prost p 69 34 A relação entre documentário e o real é vasta havendo diferentes realismos Cineastas do Documentário Clássico e do Documentário Moderno possuem plurais posições sobre o filme e sua objetividade daí a diversidade de termos cinema do real cinemaverdade cinemadireto não ficção Cf TEIXEIRA 2006 30 instrumentos do último35 Essa representação se torna então objeto de pesquisa para o historiador Quando o cinema surgiu houve expectativas acerca de sua contribuição para a ciência e a História buscava se aproximar do método das ciências naturais defendendo sua objetividade pela noção de documento Esta concepção influenciou a categoria documentário e a visão sobre o conhecimento gerado pela imagem cinematográfica Por outro lado o cinema começou a se estabelecer enquanto arte e portanto da criação humana chocandose com algumas dessas fundamentações objetivistas36 Iniciavase uma tensão entre o cinema seu caráter narrativo e o real repartindo opiniões sobre sua natureza funções e métodos de análise Um exemplo de fotografia com apelo realista pode servir de suporte para situar melhor essa discussão sobre o documentário A fotografia de um menino pobre e com grande frio retirada por G Reijlander nos comove pela tristeza expressa Envolvidos pela estética e pelo apelo realista não imaginamos que o garoto de Wolverhampton foi vestido com farrapos teve seu rosto sujo de fuligem e remunerado para fazer aquela pose BURKE 2004 p28 Assim esse apelo realista que a imagem fotográfica ou cinematográfica oferece representa um risco O filme que em geral atribuise a origem do documentário Nanook o esquimó 1922 de Robert Flaherty possui semelhante polêmica Seus atores sociais representam no filme uma comunidade esquimó em extinção Eles porém já não tinham alguns dos hábitos solicitados e reconstituídos diante da câmera sob orientação de Flaherty NICHOLS 2009 p 3037 Se a realidade filmada não era toda autêntica ainda assim o cineasta elaborou uma representação sobre aquela realidade esquimó após muita pesquisa que inaugurou outra maneira de se relacionar com o cinema Daí que Peter Burke afirme que as fotografias podem ser consideradas evidência para a história na medida em que possuem valor documental e história pelo seu caráter de discurso sobre o passado Tal afirmação se aplica ao cinema também campo de saber fora do circuito profissional dos historiadores âmbito da cultura histórica Por isso para além da autenticidade ou objetividade de Nanook o esquimó e de qualquer documentário sua representação também é parte da história e pode ser objeto da historiografia uma vez que constitui um discurso sobre uma realidade 35 Esse encontro ocorre nas dimensões do lugar social do historiador de sua prática de pesquisa e de sua escrita como define Michel de Certau CERTEAU 1982 p 66 36 Nos anos 1950 quando as discussões ontológicas sobre o cinema atingiram seu ápice Edgar Morin propôs num dos primeiros estudos antropológicos a esse respeito que a metamorfose do cinematógrafo em cinema a passagem da mera técnica de registro visual para uma arte propriamente cinematográfica derase com a conquista da narratividade quando o cinema aprendeu a narrar nas primeiras décadas do século XX Nesse mesmo período mais especificamente a partir dos anos 1920 um corpus de idéias noções e proposições a respeito de um domínio que se queria divergente em seus propósitos métodos e maneiras de considerar a narrativa ganhava curso o domínio do documentário TEIXEIRA 2006 p254 37 Chamamos de atores sociais os participantes de documentários que atuam diante da câmera Eles podem ser solicitados para fazer uma cena do seu cotidiano ou mesmo ter filmada uma ação que aconteceria independente do cineasta Mesmo quando o ator não está reconstituindo uma ação para o cineasta sabemos que a presença da câmera altera a relação do indivíduo com sua performance 31 participando de uma economia simbólica fazendo parte da história cultural da humanidade38 Como vimos o apelo realista pode esconder facetas não realistas e não evidentes como em Nanook o esquimó No cinema o referente e sua representação coincidem levando a pensarmos que seu discurso não parte da imaginação de alguém mas que o exibido na tela é o próprio real A essa aparente ausência de mediação entre objeto e representação chamamos de efeito de real ROSSINI 2006 p116 Jacques Aumont e Michel Marie afirmam que o efeito de realidade faz com que o espectador mesmo ciente de que o que ele assiste não é o real acredite que aquilo existiu em algum momento 2003 p 92 O historiador deve procurar manter distância desse efeito de realidade e dos efeitos emotivos suscitados pelo cinema pois também podem influenciar sua análise ROSSINI 2006 p118 Esse efeito de real é ainda mais presente nos filmes documentários que se apropriam ainda mais do realismo suscitado pelo cinema Há ainda a estética dos filmes em elementos como a música fotografia narrativa ritmo dentre outros que procuram nos seduzir para interpretar as imagens sob certo ângulo Diversos processos participam da elaboração do discurso cinematográfico enquadramento iluminação montagem etc Porém nem sempre os filmes explicitam tais orientações estéticas e emotivas e suas imagens por mais que possuam uma dimensão documental não são testemunhos neutros da realidade O que não significa que esses filmes não ofereçam conhecimentos válidos Bill Nichols 2009 afirma que o documentário como outros discursos reivindica uma abordagem do mundo histórico e a capacidade de intervenção nele moldando a maneira pela qual o vemos Embora o cinema não possa ser aceito como igual da investigação científica 2009 p69 Esse cinema almeja tanto uma abordagem do mundo histórico quanto realizar uma intervenção nele remetendonos a centralidade do efeito de real nesse tipo de produção a crença da fidelidade do que se vê na tela ao real tornase campo de disputa O documentário é diferente assim do discurso científico pois possui maneiras objetivos e resultados diversos na sua produção de conhecimento Assim no já referido sobre cultura histórica reconhecemos que o documentário pode elaborar um discurso histórico embora diferente do historiográfico e que estabelece por outro lado assume uma relação com o público diferente dos filmes ficcionais O crítico e estudioso francês do cinema documentário Guy Gauthier 1995 comenta sobre a complexidade que envolve o termo documentário Para ele tanto o documentário quanto a ficção permitem conhecer algo da realidade e diferenciálos por essa relação não é suficiente para 38 Marcos Napolitano faz uma ressalva de dois extremos no uso de fontes audiovisuais Por um lado as fontes audiovisuais cinema televisão e registros sonoros em geral são considerados por alguns tradicional e erroneamente testemunhos quase diretos e objetivos da história de alto poder ilustrativo sobretudo quando possuem um caráter estritamente documental qual seja o registro direto de eventos e personagens históricos Por outro lado as fontes audiovisuais de natureza assumidamente artística filmes de ficção teledramartugia canções e peças musicais são percebidas muitas vezes sob o estigma de subjetividade absoluta impressões estéticas de fatos sociais objetivos que lhe são exteriores NAPOLITANO 2005 p235236 32 diferenciar tais categorias A extensa discussão sobre o que é real também torna difícil estabelecer como indicativo do que caracteriza esse cinema Mas aponta por exemplo outras possibilidades mais sólidas como a definição pelo roteiro âmbito no qual o documentário não pode propor de início um roteiro mas uma proposta GAUTHIER 2011 p 13 Mas isso não é simples e outros critérios utilizados para validar o realismo do documentário podem ser utilizados para invalidálo A diferença entre uso de atores profissionais ou não por exemplo não é suficiente para o qual propõe a diferença entre representar o papel de si e de outra pessoa entre simulacro e auto representação p14 Afirma que Esses grandes painéis de cinema onde os limites se confundem merecem não ser deixados de lado em virtude de uma ambivalência que é frequentemente a marca de sua originalidade A cadeia documental conforme esse procedimento nos leva a examinar sucessivamente o projeto não há roteiro e sim uma hipótese de roteiro a filmagem lá onde o documentarista define sua singularidade a montagem a reintegração parcial no cinema somente e o dispositivo espectatorial em que o espectador decide o status do filme GAUTHIER 2011 p17 Se a definição não nos permite plena clareza e consenso dos limites e distinções entre o documentário e a ficção encontrase justamente nesses meandros o mais interessante eventualmente desse gênero Baseado em Gauthier afirmamos que os critérios na análise da cadeia documental variam de caso a caso localizando as potencialidades ficcionalizantes e documentais de um filme Isso nos permite atender a versatilidade e pluralidade de construções narrativas que caracterizam o documentário moderno no qual se encaixa O País de São Saruê Há outras visões sobre documentário Hélio Augusto Godoy de Souza se posiciona de maneira mais centrada na possibilidade de investigação da prática documentária e sua capacidade de elaborar um conhecimento válido sobre o real Sua tese é de que o fazer documentário é uma atitude produtora de conhecimento não somente pelo ponto de vista do dispositivo tecnológico que revelaria fenômenos não observados pelo ser humano mas também pelo processo de participação investigativa no próprio fenômeno que se pretende conhecer SOUZA 2001 p21 Souza fundamenta sua proposta no grande nome da semiótica Charles Sanders Peirce e sua definição de signo e de semiose bem como em Jacob von Uexküll e seu conceito de Umwelt uma representação mental um universo subjetivo que é permitido pelo aparato biológico de qualquer ser vivo e que garante que aquele ser sobreviva no ambiente SOUZA 2001 p19 39 39 Segundo Godoy Souza a concepção triádica de signo em Pierce tem como partes constituintes objeto representamen sic e interpretante habilitam o conceito de signo como um instrumento para a análise da realidade através de imagens e sons significativos Daí deriva a noção de semiose a ação do signo Ao se assumir um ponto de vista pansemiótico onde qualquer comunicação verbal ou nãoverbal é semiose ampliase o campo de ação das idéias peirceanas SOUZA 2001 p17 33 Defende que o documentário é espécie de extensão da adaptação biológica humana pela cultura O documentário entre as inúmeras tendências audiovisuais pode então passar a ser considerado como uma das adaptações culturais desenvolvidas na evolução da espécie humana onde a questão do Conhecimento e da Realidade assume posição destacada Sua forma de produção aproximao do fazer investigativo que também está presente na ciência SOUZA 2001 p19 Apesar da interessante ideia de Hélio Souza não fundamentamos nosso trabalho na sua tese Se Gauthier ressalta a ambivalência da relação entre narrativa e realidade do documentário como algo interessante Souza se serve da Teoria Realista do Documentário para defender a proximidade desse gênero com a investigação científica Souza portanto diverge de Bill Nichols que separa categoricamente estes tipos de produção Por outro lado os três autores indicam a importância do método e da ética na produção documentária Estes dois aspectos nos pareceram diretrizes mais consensuais para a pesquisa com esse tipo de documento Por isso procuramos na formação e nas motivações de Vladimir Carvalho elementos para entender sua ética documentária e sua prática e método documentário em O País de São Saruê Entendemos portanto O País de São Saruê enquanto documentário ou seja oriundo de uma tradição com seus próprios expoentes e escolas Entre eles destacamos Robert Flaherty cujo cinema Vladimir Carvalho assume como inspiração Cf Capítulo 3 Apesar dessa influência clássica Carvalho se aproxima do documentário moderno abraçando elementos estéticos do neorrealismo italiano do cinemaverdade e do cinema novo brasileiro O País de São Saruê enquanto documento inserese em uma moldura histórica que nos permite analisálo enquanto um veículo grávido de discursividade histórica e enquanto obra de arte única e carregada de ambiguidades e poeticidade que sua estética propõe Daí que mesmo enquanto buscamos situálo em relação às convenções sociais artísticas e disponibilidades técnicas da época também o entendemos como um trabalho único e autêntico de Vladimir Carvalho Sua unidade não se perde enquanto elemento social tampouco ocorre o contrário No capítulo seguinte apresentamos o contexto histórico de produção de O País de São Saruê identificandoo na conjuntura cinematográfica nacional as mudanças políticas e o desenvolvimento artístico de Vladimir Carvalho Esses dados são essenciais para refletir sobre seu discurso e especialmente para pensar a atitude ética e a prática documentária de Vladimir Carvalho em um cinema de autoria que representou um marco importante no desenvolvimento artístico do documentário brasileiro 34 Capítulo 3 Planificação O País de São Saruê na cultura e na política das décadas de 1960 e 1970 O documentário O País de São Saruê 1971 de Vladimir Carvalho exibe os problemas sociais enfrentados no sertão paraibano Monta um quadro do cotidiano e cultura nordestinos contemporâneos à sua filmagem e alcança grande força poética e artística fugindo ao modelo mais tradicional de documentários clássicos e didáticos Essa particularidade está no próprio título que remete ao cordel A Viagem a São Saruê 1948 de Manoel Camilo dos Santos seus versos contam a história de um poeta que viaja para uma terra idílica em um sertão de fartura e de alegria40 O documentário no entanto mostra o oposto exibindo a miséria no sertão e as razões para esse cenário Interpretamos essa referência pela indicação que a conjuntura do filme seria o obstáculo para realização da utopia presente no cordel e a situação atual de uma terra de riqueza anterior que foi espoliada41 A narrativa pode ser dividida em três mundos o animal o vegetal e o mineral representando respectivamente as principais economias da região pecuária bovina e caprina agricultura do algodão e de subsistência e extração mineral de minérios e de ouro O filme começa identificando o espaço um sertão árido e hostil apresentado por meio de uma narrativa poética que identifica a região O homem surge nesse espaço transformando a natureza construindo casas cidades A narrativa se baseia no mundo do trabalho na transformação da natureza pelo homem articulando uma base de ideário marxista a uma visão euclidiana de Sertão do homem e de sua relação com o meio natural Carvalho atribui aos indígenas cariris a origem dos trabalhadores rurais indicando um passado de lutas Mostra ainda o vaqueiro e sua cultura adentrando no tema da pecuária o cotidiano de seu trabalho o folclore que o envolve e o grande obstáculo da seca Mostra a fazenda de Acauã espaço de uma finada opulência de uma elite decaída Logo temos a sequência sobre a agricultura abordando a produção do algodão e sua exploração pelos latifundiários locais mas 40 Manoel Camilo dos Santos foi um grande nome da literatura de cordel paraibana de origem popular trabalhava com seu pai no comércio ambulante tornase cantador e depois chega a assumir uma tipografia própria Algumas informações biográficas podem ser encontradas em httpwwwcasaruibarbosagovbr cordelManuelCamilomanuelCamilobiografiahtml Acesso em 28Jun2014 O cordel Viagem a São Saruê se encontra disponível no Anexo D p209 41 Esse tema está desenvolvido posteriormente A relação entre o documentário e o cordel foram trabalhadas no artigo De um lugar ao povo São Saruê viagem ou país publicado nos anais do II Encontro Regional de Literatura e II Simpósio de Iniciação à docência em Língua Portuguesa ocorrido em 19 a 23 de setembro de 2011 na Universidade Federal de Campina Grande 35 também de pobres e ricos pela inserção de empresas estrangeiras que prejudicou a todos Exibese também a penosa situação dos homens e mulheres populares e a agricultura de subsistência que muitas vezes insuficiente os levam a buscar outras formas de sobrevivência como parcas caças especialmente em tempos de seca Em outro momento o debate sobre o imperialismo é ampliado pelas sequências que mostram a circulação de produtos industrializados estrangeiros na feira de Sousa e na entrevista com um voluntário em trabalhos comunitários no sertão o norteamericano Charles Foster Mostrase assim tanto as relações entre o sertão e os EUA e indicações de seu contexto político quanto a desagregação cultural local pela inserção de bens culturais estrangeiros na troca das alparcatas de couro pelas sandálias japonesas por exemplo É o declínio da civilização do couro O mundo mineral é apresentado no ciclo do ouro A extração de ouro é apresentada de maneira fabulosa como uma ilusão popular que se perpetua e que poderia ser encontrada no próprio cordel A Viagem a São Saruê Esta sequência oferece uma espécie de síntese de um país potencialmente rico mas no entanto subdesenvolvido Por fim o filme conclui com um discurso do prefeito de Sousa Antônio Mariz sobre a problemática sertaneja no qual ele se refere ao problema da estrutura agrária como principal obstáculo para o desenvolvimento da região sintetizando a principal reflexão proposta pelo filme Traça um quadro penoso dos problemas e aponta uma maneira política de encarar o problema As imagens e a música da conclusão explicitam mais ainda o posicionamento político do cineasta Em síntese o discurso fílmico apropriase de uma visão euclidiana da terra do homem e de sua luta Apresenta de maneira poética a terra nordestina o homem sertanejo seus costumes aparência etc e sua luta o trabalho O primeiro antagonista do homem apresentado é o ambiente seco porém aos poucos o documentário apresenta a ocupação desse território o surgimento de uma elite e sua modernização bem como sua decadência Mostra a exploração do homem pelo homem na região e ampliase o debate para o âmbito da economia e política internacionais pelo tema do imperialismo na inserção de bens culturais e de consumo e na presença de jovens voluntários norteamericanos aparentemente fugindo da participação na Guerra do Vietnã Concluise afirmando que o maior obstáculo ao desenvolvimento da região é um problema político a questão agrária 20 Close up Vladimir Carvalho um documentarista sertanejo e revolucionário O País de São Saruê é um filme da década de 1970 mas que tem uma construção muito vinculada política e esteticamente aos ideários da década de 1960 Esse ideário pode ser entendido 36 pelo que Marcelo Ridenti chamou de romantismo revolucionário a fim de compreender a cultura de esquerda nas décadas de 1960 e 1970 Apresentamos breves dados da formação de Vladimir Carvalho permeada pelas suas experiências pessoais sua atuação política e artística que dialogavam com as diversas transformações pelas quais passava o Brasil Utilizamos especialmente duas obras Vladimir Carvalho pedras na lua e pelejas no asfalto 2008 de Carlos Alberto Mattos e Dos homens e das pedras o ciclo do cinema documentário paraibano 1959 1979 1998 dissertação de mestrado de José Marinho Carlos Alberto Mattos é um jornalista baiano crítico e pesquisador de cinema A biografia de Vladimir Carvalho elaborada por Mattos faz parte da Coleção Aplauso organizada pela Imprensa Oficial no Estado de São Paulo O texto é escrito em primeira pessoa característica da própria coleção a decisão sobre o depoimento de cada um na primeira pessoa mantém o aspecto de tradição oral dos relatos tornando o texto coloquial como se o biografado falasse diretamente com o leitor ALQUÉRES 2008 p 9 Essa escolha narrativa pretende tornar a leitura mais palatável e aproximar biografado e leitor É uma biografia que procura apresentar Vladimir Carvalho em seu contexto histórico descrevendo as experiências pessoais do cineasta e ligandoas à sua produção cinematográfica Utilizamos bastante este trabalho mas com ressalvas dado que é um texto escrito por Mattos apesar de escrito como uma fala do próprio Carvalho A dissertação de mestrado de José Marinho Dos homens e das pedras o ciclo do cinema documentário paraibano 1959 1979 foi outra preciosidade para nosso trabalho42 Marinho mostra o surgimento de um ciclo de documentários entre as décadas de 1950 e 1970 na Paraíba Aborda o contexto de discussões no âmbito cineclubista que formariam alguns nomes de destaque como Linduarte Noronha Vladimir Carvalho e Ipojuca Pontes Realiza também uma espécie de pequena biografia de seus expoentes como Linduarte Noronha Vladimir Carvalho e Rucker Vieira e analisa os principais clássicos dessa produção cinematográfica Aruanda 1960 O País de São Saruê 1971 Romeiros da Guia 1962 A cabra na região semiárida 1966 e Os homens do caranguejo 1968 Servese de uma série de depoimentos destes artistas concedidos ao autor Outra fonte digna de indicação foram os textos do jornalista Wills Leal43 Ele publicou obras como Cinema no Nordeste 1982 Cinema Província 1968 e Cinema na Paraíba Cinema da Paraíba 2007 As duas últimas auxiliaram na contextualização do cinema na Paraíba entre 1950 e 1970 Como Leal afirma sua obra é mais informativa que técnica sendo a primeira tentativa de apreender o fenômeno do cinema paraibano e o desejo de ser um depoimento 42 José Marinho atuou no teatro no cinema e na TV Na década de 1960 fez parte do Teatro de Cultura Popular TCP Participou como ator de diversos filmes incluindo Terra em Transe 1967 de Glauber Rocha Tornouse um acadêmico lecionando na Universidade Federal Fluminense UFF e sendo mestre pela Universidade de São Paulo USP 43 Wills Leal se formou em Filosofia na Faculdade de Filosofia de João Pessoa e depois bacharel em Língua e Literatura Francesas Leal é professor escritor e jornalista 37 pessoal sôbre o brotar o crescer e a projeção do cinema não só nos limites culturais e econômicos de uma província como no plano nacional LEAL 1968 p 5 Vladimir Carvalho é um documentarista paraibano que nasceu em Itabaiana na Paraíba em 1935 Destacamse na sua trajetória experiências pessoais no interior paraibano sua militância artística sua participação nas atividades do Partido Comunista Brasileiro no Centro Popular de Cultura CPC da União Nacional dos Estudantes UNE Em entrevista concedida ao Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural do Ministério do Desenvolvimento Agrário o cineasta comenta sobre sua origem itabaianense e sua inserção no cinema Nasci em Itabaiana PB na região da Caatinga litorânea onde a principal atividade produtiva era a pecuária Minha origem portanto permeia tudo o que fiz em cinema Já em Aruanda 1960 de Linduarte Noronha documentário que participei sobre comunidade de afrodescendentes ilhada no alto sertão paraibano reforçou essa minha tendência CARVALHO 200444 Vladimir Carvalho afirma que este é seu background e engajamento com a realidade rural Na sua obra cinematográfica são muito recorrentes os temas rurais ou a abordagem de eventos urbanos com um olhar voltado para o rural A trajetória de Carvalho está cindida com seu êxodo do Nordeste após o golpe militar quando se torna professor da UnB e sua cinematografia passa a dividir a paixão pelo Nordeste com Brasília45 Sobre a produção de longametragem de Vladimir Carvalho podemos afirmar que mesmo em Brasília volta seu olhar constantemente para o Nordeste É lá que realiza O País de São Saruê seu primeiro longametragem fechando um ciclo que começara na década de 1960 de um cinema de temática nordestina e de denúncia social Na década de 1980 seus dois citados 44 CARVALHO Entrevista realizada em 28 de junho de 2004 Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural NEAD do Ministério do Desenvolvimento httpwwwneadgovbrportalneadnoticiasitemitemid4986219 Acesso em 15 de ago 2013 45 Os filmes de Carvalho parecem refletir esse movimento migratório seus primeiros trabalhos são sobre a realidade paraibana todos na década de 1960 Romeiros da Guia 1962 A Bolandeira 1968 e O Sertão do Rio do Peixe 1968 Na década de 1970 já em Brasília temos a transição do cinema paraibano para o olhar que lança sobre seu novo lar o Distrito Federal Assim temos fechando o ciclo iniciado na década anterior O País de São Saruê 1971 e A Pedra da Riqueza 1975 somados a Incelência para um Trem de Ferro 1972 que falam sobre o Nordeste Carvalho começa então a fazer filmes também sobre a realidade da região do Planalto Central surgindo filmes diversificados como O Espírito Criador do Povo Brasileiro 1973 Itinerário de Niemeyer 1973 Vila Boa de Goyaz 1974 Quilombo 1975 Mutirão 1976 Pankakaru de Brejo dos Padres 1977 e Brasília Segundo Feldman 1979 todos curtas ou média metragens Apenas na década de 1980 Carvalho alcança fôlego suficiente para realizar novos longa metragens retomando a sua terra de origem com O Homem de Areia 1982 e com O Evangelho segundo Teotônio 1984 ambos voltados para a temas mais nordestinos Realiza curtas nesse período com Perseghini 1984 e No Galope da Viola 1989 A década de 1990 no entanto teria um longametragem que marcaria sua trajetória dessa vez filmando em Brasília mas com o olhar voltado para o Nordeste que ali existia Carvalho realiza Conterrâneos Velhos de Guerra 1990 Realiza curtas como A Paisagem Natural 1990 Com os pés no futuro zumzum 1996 e Ariano Suassuna em AulaEspetáculo 1997 e Manejo Florestal 1998 No século XXI realiza ainda o político longa Barra 68 Sem Perder a Ternura 2000 o nostálgico e biográfico Engenho Zé Lins 2007 e Rock Brasília 2011 38 longasmetragens mudam o tema não buscando mais o povo ou uma denúncia social da miséria mas retomam o olhar para seu espaço de origem agora focando o olhar em duas figuras nordestinas do coronel Teotônio ou do político e literato José Américo Conterrâneos Velhos de Guerra inaugura a década de 1990 após longa gestação e embora com tema e localidade diferentes seu olhar continua voltado para sua terrinha para seus conterrâneos com suas lentes a serviço dos candangos nordestinos que construíram Brasília desmistificando a capital do país exibindo sua ingratidão com os Severinos e Fabianos que a ergueram Seus últimos trabalhos demonstram sua dinamicidade seja documentarizando o escritor José Lins do Rego tão caro às suas lembranças e formação literária seja com o político Barra 68 Sem Perder a Ternura dando o troco à ditadura militar pelos anos de censura oferecidos a O País de São Saruê ou ainda no Rock Brasília no qual surpreendeu a crítica com um filme que tratava sobre música e rock retorquindo que seus filmes tinham rock afirmação confirmada no presente trabalho Concluímos que nos seus longasmetragens há uma predominância de temas políticos e de denúncia social olhando os de baixo particularmente os nordestinos Enumeramos elementos da trajetória pessoal que consideramos elucidativos sobre essa característica a a influência da literatura de autores como José Lins do Rego Graciliano Ramos Jorge Amado e Euclides da Cunha reconhecida em entrevistas e na biografia do autor c presença da cultura da civilização do couro na infância de Vladimir Carvalho que morava em um centro comercial de gado a Itabaiana da época e de seu avô materno que fabricava artigos de couro para vaqueiros e que era descendente dos Índios Cariris d a visão de mundo materialista de Vladimir Carvalho influenciada inicialmente pelo pai comunista Luís Carvalho pela militância do cineasta posteriormente no Partido Comunista Brasileiro e pelo aprendizado na escola do partido e sua participação e militância em organizações culturais vinculadas ou não ao PCB como grêmios literários cineclubes Teatro Socialista e o Centro Popular de Cultura CPC f sua atuação como jornalista para diversos jornais Paraibanos e também para a imprensa pecebista destacando a cobertura de conflitos sociais do campo g seu engajamento nos debates do cineclubismo paraibano das décadas de 1950 e 1960 ressaltando o contato com o documentário de Robert Flaherty O Homem de Aran 1934 e seu ingresso no ciclo documentarista nesta segunda década destacando a participação em Aruanda que representou um marco na filmografia brasileira h sua formação em Filosofia iniciada na Universidade Federal da Paraíba e concluída na Bahia i sua atuação no Centro Popular de Cultura especialmente na produção do filme 39 censurado Cabra Marcado pra Morrer 19641985 de Eduardo Coutinho j seu trabalho com artistas diversos como Caetano Veloso e Arnaldo Jabor Ao que nos interessa mais imediatamente gostaríamos de indicar que Vladimir Carvalho foi um homem em cuja infância houve uma primeira influência que indica um olhar solidário para questões sociais que se relaciona ao seu ingresso na militância comunista Relacionado a isto está o desenvolvimento de seu trabalho jornalístico conhecendo mais profundamente os problemas sociais do Nordeste por exemplo ao cobrir os conflitos das Ligas Camponesas para o jornal do PCB Novos Rumos Formouse em filosofia atuou em organizações culturais e teve contato com a literatura dita regionalista chegando finalmente ao debate e produção cinematográfica Era o que podemos chamar de um intelectual do partido figuras de ambígua relação com o PCB como mostramos adiante 22 Planomédio o cenáriopercurso de artistas comunistas e O País de São Saruê Em Prisioneiros do Mito cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil 1930 19562002 Jorge Ferreira realiza um trabalho sobre a cultura política e o imaginário dos comunistas entre as décadas de 1930 e 1950 Mostra elementos do cotidiano de militantes comunistas operários intelectuais e dirigentes e a construção do imaginário na vida partidária que permitiam suas práticas e características específicas Nessa discussão apresenta como a relação entre intelectuais e PCB era por vezes conflituosa Após 1945 com a redemocratização e fim da Segunda Guerra Mundial houve grande adesão dos intelectuais ao PCB FERREIRA p17846 Essa adesão se deu também com uma guinada para uma rígida concepção sobre arte e um esquematismo de produção cultural e no enquadramento e no controle de artistas e escritores É neste momento que o jdanovismo é assumido pelos comunistas e com ele o realismo socialista47 Nessa ótica o partido acreditava 46 No Brasil a grande adesão de intelectuais do PCB ocorreu após 1945 na conjuntura da democratização O desprezo que eles nutriam pelo fascismo o grande prestígio dos comunistas com o término da II Guerra e os ideais de racionalidade de progresso e da ciência que pareciam desprezados pela burguesia mas que agora surgiam como bandeiras da URSS atraíram um grande número de artistas e escritores ao marxismo FERREIRA 2002 p177 Indica ainda que a convivência com fluxos criativos fez com que de modo geral o PCB afirmarse com a modernidade artística também explicando tal adesão de intelectuais 47 Ferreira afirma ainda que na versão imposta por Andrei Jdanov o realismo socialista implicava a premissa de que o partido e somente ele era portador da única verdade em todas as dimensões da vida social inclusive na da arte somente os artistas e intelectuais que aceitaram o marxismoleninismo e se submeteram às diretrizes partidárias teriam crédito e confiança em suas atividades nas mais diversas expressões artísticas o essencial era exaltar operários e camponeses mitificandoos no gênero conhecido como histórico revolucionário o subjetivismo o abstracionismo o expressionismo e o formalismo deveriam ser recusados 40 que o papel do intelectual e do artista do partido segundo o jdanovismo era retratar com fidelidade e realismo a vida dos trabalhadores e denunciar desse modo a exploração e a miséria que sofriam Os dirigentes afirmavam que a função dos intelectuais era realizar obras sobre o povo categoria entendida a partir de uma leitura pecebista influenciada pelo marxismo soviético Outra característica indicada era de produzir uma arte acessível ao povo FERREIRA 2002 p181182 objetivo valorizado pelo partido na literatura de Jorge Amado Ferreira conclui que os revolucionários portanto não questionavam o valor e a importância social da arte mas sim o estilo a mensagem e a finalidade política da obra 2002 p183 Ferreira baseado em Strada afirma ainda que se por um lado o jdanovismo foi uma política repressiva e paralisadora de qualquer iniciativa criadora por outro também não se pode negar que o realismo socialista e a estética marxistaleninista também detiveram um caráter ativo e produtivo Artistas e intelectuais não aderiram a essa estética soviética passivamente mas também pelo fascínio que ela exerceu sobre muitos intelectuais internacionalmente48 No Brasil houve uma anterior aproximação desse grupo ao PCB em 1945 mas um afastamento em 1947 e uma grande reaproximação com a desestalinização49 Os intelectuais detinham uma ambiguidade na relação com o PCB eles eram alvo de admiração e exaltações mas também de desconfiança e desprezo por dirigentes e militantes O Partido queria o prestígio e apoio de intelectuais no entanto exigia que assumissem o marxismoleninismo nos moldes descritos por ele Não apenas determinouse regras para a produção artística e intelectual mas houve casos de perseguições a artistas dentro do PCB FERREIRA 2002 p191 Por isso Ferreira conclui que Ser intelectual em um partido comunista portanto era muito difícil Entre o elogio e a execração ele por sua origem de classe estava sempre sob suspeita A liberdade de expressão cultural o livre curso da criação artística a produção do conhecimento científico isenta de regras e as necessidades bem como qualquer inovação no campo do teatro da ópera da pintura do cinema da literatura da música e da comédia por fim toda a produção cultural na União Soviética era bela e superior e tudo o que vinha do Ocidente era decadente corrupto e imoral 2002 p180 48 O autor indica ainda que muitos autores considerados clássicos chegaram às mãos de grande número de leitores na URSS como Byron Balzac Dikens Victor Hugo Shakespeare Gabriel García Márquez Sobre o aspecto produtivo da arte soviética e seus problemas podese conferir em Da revolução cultural ao realismo socialista de Vittorio Strada no nono volume de História do Marxismo Eric Hobsbawn org publicado pela Paz e Terra 49 Entre 1958 e 1972 houve crescimento do partido e sua desestalinização na década de 1950 abraçando uma política antiimperialista e uma luta por reformas nacionalistas e democráticas As denúncias dos crimes de Stálin e os conflitos gerados na desestalinização do Partido contribuíram para um momento de crise que levou a divergências políticas programáticas e dissidências O marco inicial dessa mudança foi o documento conhecido como Declaração de Março de 1958 O PCB se tornou menos sectário aproximandose ainda mais dos setores intelectuais e artísticos e exercendo grande influência nas artes do período Nesse período houve uma significativa mudança na relação com intelectuais e artistas Para mais informações conferir Em Busca do Povo Brasileiro artistas da revolução do CPC à era da TV 2000 de Marcelo Ridenti 41 libertárias da imaginação não se adaptavam com as exigências da militância profissional e as apertadas amarras do stalinismojdanovismo O intelectual engajado o artista comprometido e o escritor politicamente disciplinado à direção do partido continuavam a produzir suas obras No entanto eles abdicavam do direito de expressão da autonomia cultural e da capacidade de imaginar livremente O intelectual comunista excessivamente comprometido deixava de ser um livrepensador FERREIRA 2002 p191 192 Contudo será que esse quadro traçado por Ferreira se aplica ao Vladimir Carvalho e sua obra O País de São Saruê A análise de Ferreira cobre até 1954 porém confrontando os dados com o sociólogo Marcelo Ridenti que cobre as décadas de 1960 e 1970 parecenos que diversos conflitos e ambiguidades permaneceram Porém não encontramos evidências de uma ausência de livrepensamento no trabalho do documentarista Houve sim uma forte adesão à formação oriunda do partido mas isso não limitou sua produção artística pelo contrário fez parte dos elementos que enriqueceram seu ofício Marcelo Ridenti indica como a linha política do PCB se centrava menos em uma revolução imediata que na junção das forças progressistas pelo fim do atraso contra o imperialismo e o latifúndio Mas afirma que no setor cultural uma das matrizes do romantismo revolucionário surgiu no interior do PCB particularmente no setor cultural RIDENTI 2000 p65 Afirma ainda que Com o fim do zdanovismo não havia diretrizes claras da direção do PCB para uma política cultural partidária Esta passou a ser formulada na prática por artistas e intelectuais do Partido ou próximos dele que estavam em sintonia com os movimentos sociais políticos e culturais do período talvez o tempo em que o PCB mais tenha influenciado a vida política e intelectual nacional quando ele preponderou no seio de uma esquerda que foi forte o suficiente para Roberto Schwarz falar numa hegemonia de esquerda no campo cultural 1978 RIDENTI 2000 p72 50 A maior flexibilidade de artistas vinculados ao partido não só auxiliou a relação destes com o PCB mas permitiu uma maior revitalização nas produções artísticas Podemos conferir na citação também como seus temas e preocupações estavam vinculados aos conflitos políticos e sociais da época Buscavase pensar os rumos do país e intervir para a efetivação de mudanças políticas nacionais através da arte Para tanto as produções refletiram sobre o que era o povo brasileiro procurando nas suas raízes projetar seu futuro de utopia A esse fenômeno Ridenti chamou de romantismo revolucionário 50 Marcos Napolitano em Cultura Brasileira Utopia e massificação 19501980 2000 enxerga o período de outra maneira apontando a multiplicidade que caracterizava a cultura brasileira no período Aponta outros elementos da indústria cultural presentes no período como as divas do rádio e o cinema de chanchada NAPOLITANO 2008 p89 42 Os artistas vinculados ao romantismo revolucionário utilizaram a arte como instrumento de transformação social Procuraram nos migrantes favelados e nos camponeses temas para pensar o homem novo nascido de uma vontade revolucionária Era um romantismo modernizante mas que queria também virtudes atribuídas a uma realidade précapitalista A autenticidade nacional era buscada no povo Queriam uma transformação social e viam na arte um instrumento de luta RIDENTI 2000 p 2527 Carlos Estevam Martins no Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura publicado em Março de 1962 descreve uma arte popular revolucionária como uma arte que se alinhava com a essência do povo No conceito de povo existia um recorte da nação e do popular os governados pelos outros e para os outros MARTINS 2004 p 149150 Durante a repressão do governo militar e o fechamento das vias de participação política e perseguição ao movimento sindical e aos partidos o setor artístico representou um espaço de forte resistência da esquerda Dois grandes exemplos foram o Show Opinião e os Festivais de MPB que se transformaram em verdadeiras arenas políticas Ao mesmo tempo houve o avanço da indústria cultural e com ela uma maior inserção de artistas na lógica de mercado para sobreviver Em geral após o golpe houve um gradativo afastamento de artistas e do PCB Podemos afirmar que houve uma vinculação e aproximação de Vladimir Carvalho ao ideário do romantismo revolucionário e encaixe no movimento artístico Contudo a segunda parte de maior aproximação de artistas à indústria cultural e ao afastamento dos artistas do PCB não ocorreu com o documentarista paraibano Não é lúcido afirmar que Vladimir Carvalho esteve ou esteja fora disso Contudo Vladimir Carvalho não se afastou do PCB e buscou resistir tanto à lógica da indústria cultural ou às acomodações de artistas ao regime a fim de garantir uma maior liberdade de produção Em entrevista o cineasta afirma que nunca trabalhara por encomenda e reforçou que só filma aquilo que lhe envolve que lhe comove Seus filmes partiram de propostas com as quais se identificou não era essa frescurinha da inspiração eu via que havia necessidade depois via que aquilo podia ser útil Eu sou um sertanejo eu sou um nordestino então se tinha a questão fundiária no país uma coisa que nunca se fez a reforma agrária se tinha gente sofrendo por causa disso se o latifúndio era algo pernicioso na economia nordestina e eu via assistia e conhecia aquele meio aquela realidade era a minha obrigação se eu me defini pelo documentário de dar aquele recado CARVALHO 200151 Por isso podemos ver como o caráter da finalidade política e social de sua arte era mais central que exatamente a sobrevivência dela para Vladimir Carvalho Isso também se deu pela possibilidade em muitos momentos de ganhar dinheiro por outras vias como o 51 CARVALHO Entrevista realizada em 03 Novembro de 2001 por Marília Franco Disponível em httpwwwmnemocinecombraruandavcarvalho3htm Acesso em 06 nov 2012 43 jornalismo ou dando aulas na UnB Essa última ofereceulhe uma flexibilidade financeira que permitiu realizar as filmagens de O País de São Saruê O historiador Rodrigo Patto Sá Motta indica em seu livro As Universidades e o Regime Militar 2014 que houve acomodações na política brasileira entre setores ligados à elite e o regime militar Essa seria uma tendência da sociedade brasileira uma cultura política de conciliar o velho e o novo e de não realizar rupturas mais radicais assim é forte entre nós brasileiros o recurso à conciliação à busca de soluções de compromisso que evitem o caminho de rupturas radicais Procurase acomodar os interesses de grupos em disputa em um jogo de mútuas concessões para evitar conflito agudo sobretudo quando os contendores principais pertencem às elites sociais Entretanto nem todos os agentes políticos fazem uso de tais estratégias e os que o fazem não são movidos por lógica férrea ou qualquer forma de determinismo pois em alguns contextos os apelos à conciliação não são bemrecebidos A conciliação e a acomodação fazem parte do repertório de estratégias à disposição dos que disputam os jogos de poder no Brasil ou seja elas integram a cultura política do país e como há larga tradição e vários exemplos bem sucedidos muitos líderes são incentivados a escolher tal caminho na esperança de construir projetos políticos estáveis MOTTA 2014 p1415 Com relação ao cinema na biografia escrita por Mattos há a insinuação desse tipo de atitude de acomodação ou conciliação às quais Vladimir Carvalho se orgulha de não ter participado Sobre os anos de censura que sofreram O País de São Saruê escreve Mattos em primeira pessoa sobre o documentarista que Tampouco admiti fazer concessões contra a integridade do filme como a sugerida por um amigo conciliador no sentido de introduzir um discurso do Presidente Médici em Recife Recuseime também a fazer uso das abomináveis sessões privadas para figurões da República em troca de promessas de cumplicidade para liberar Ao próprio Glauber Rocha neguei procuração para interceder em meu nome em 1977 quando ele enchia páginas do Correio Braziliense com sua apologia de Geisel e Golbery MATTOS 2008 p136 Dessa maneira há indícios das acomodações indicadas por Rodrigo Motta na política brasileira também entre artistas e o regime militar Mesmo Glauber Rocha que escreveu o famoso manifesto cinemanovista Eztetyka da Fome 1965 realizou algumas concessões pelo indicado no texto de Mattos Contudo desse tipo de influência ou estratégia de conciliação como outras Vladimir Carvalho manteve distância A militância no PCB não foi a única a influenciar Vladimir Carvalho em seu ideário romântico e revolucionário mas também em seu cotidiano refletiu leu pesquisou e participou 44 de muitos dos temas que filmou A importância dessas atuações para a abordagem da economia agrária em O País de São Saruê por exemplo pode ser identificado nesta passagem da biografia do cineasta realizada por Mattos e escrita em primeira pessoa Com o surgimento das ligas camponesas fazia frequentes viagens para dar assistência aos lavradores e suas famílias juntamente com médicos dentistas advogados economistas e agrônomos Cobria as ligas da Paraíba para o jornal Novos Rumos que o PCB editava no Rio Por conta de reuniões do setor estudantil do Partido fiz várias viagens ao Rio ainda nos anos 1950 Não posso negar que esse período de estudos e atividades com o aprofundamento contínuo dos conceitos disseminados pelo Partido teve uma enorme importância na minha formação Na minha e na de muita gente neste país Descontados alguns sectarismos e equívocos a escola do Partido como era chamada no jargão próprio estruturoume moralmente para a vida A insistência na esperança é um dos traços que dela herdei MATTOS 2008 p7071 Por isso a escola do partido é reconhecida por Vladimir Carvalho como uma importante influência para sua formação intelectual e moral Essa presença pode ser confirmada a nível estético e de conteúdo nos filmes de Vladimir Carvalho e particularmente em O País de São Saruê Isso fica evidente durante a análise do filme nos capítulos seguintes Cabe destacar que outros elementos da formação de Vladimir Carvalho como a formação literária não restrita à literatura do partido não eram monopólio do cineasta mas comum a muitos artistas engajados da época A nível de exemplo na introdução de Dos homens e das pedras o ciclo de cinema documentário paraibano 19591979 José Marinho afirma De Euclides da Cunha a Graciliano Ramos passando por José Américo de Almeida José Lins do Rego Josué de Castro Ariano Suassuna e Gilberto Freyre uma vasta produção cultural enunciou e denunciou as profundas contradições no sistema político e social da região Nordeste MARINHO 1998 p25 Esses artistas são referidos na biografia de Vladimir Carvalho e alguns em outras entrevistas como Josué de Castro Euclides da Cunha e Gilberto Freyre ou ainda foram personagens protagonistas de seus documentários como José Américo de Almeida e José Lins do Rego A forma no entanto como cada artista se apropria e utiliza tais influências são fenômenos autênticos e individuais Cabe ainda destacar a importância da Universidade Federal da Paraíba e seu pólo cineblubista na Faculdade de Filosofia que teve papel na formação do cinema paraibano em geral MARINHO 1998 p30 Em depoimento a José Marinho Wills Leal afirma que 45 todos nós éramos até certo ponto meio esquerda excetua Linduarte Noronha e Jomard Muniz de Britto o Vladimir o João Ramiro Todos nós fomos para a Faculdade de Filosofia éramos filósofos na época mas uma filosofia Bernanos até certo ponto mas até certo ponto também marxista LEAL Apud MARINHO 199831 Essa foi uma época de atuação de Vladimir Carvalho no âmbito da crítica cinematográfica no rádio em programa sobre cinema contribuindo para jornais Correio da Paraíba A União e A Tribuna do Povo e assumindo até a presidência da Associação dos Críticos Cinematográficos da Paraíba MATTOS 2008 p76 LEAL 1968 p44 Pela afirmação de Wills Leal podemos ver que esse núcleo paraibano sofria influência marxista 21 Planodetalhe documentarizar um filme de baixo uma escolha Essa seção aborda a escolha de fazer um documentário de baixo de Vladimir Carvalho Desenvolvemos o tema articulando a análise da primeira sequência que introduz os temas a serem abordados pelo documentário às intenções e formação política do documentarista Indicamos também os préfílmicos que também contextualizam as condições políticas e econômicas da produção do documentário Uma afirmação é central para nosso trabalho o homem faz escolhas Quando analisamos O País de São Saruê consideramos essencialmente que ele possui um caráter autoral52 Tal pressuposto torna essencial a reflexão sobre as motivações que levaram Vladimir Carvalho a realizar esse documentário e a problematização de suas elaborações estéticas e conteudísticas Optamos por não opor as influências sociais e históricas sofridas pelos indivíduos ao nível subjetivo mas eleger como nosso objeto de estudo essa articulação As características autorais são identificadas através de uma interpretação histórica e política da estética em um filme Através dessa análise chegamos a elementos de uma cultura política cristalizada em uma cultura cinematográfica Roberto Pattos Sá Motta define cultura da seguinte maneira 52 Shirly Ferreira de Souza 2010 mostra que Vladimir Carvalho não considera O País de São Saruê como um filme de autor mas apesar disso defende esta afirmação A autoria proposta pela crítica francesa da época indicavam a necessidade de uma unidade de obra a repetição de temas e a recorrência de traços estéticos que poderiam identificar um estilo seriam as características que definiriam o autor nesses moldes franceses o que inviabilizaria segundo a autora esse encaixe é uma insuficiência de grande produção de Vladimir Carvalho à época que permitisse identificar tais traços de autoria Por outro lado Shirly propõe que se considere a concepção de autoria dos cinemanovistas que pressupunham para tanto principalmente uma responsabilidade social e experimentação estética características que contemplam O País de São Saruê SOUZA 2010 8587 46 A definição conceitual de cultura é extremamente polêmica Contudo para nossos fins optamos por lançar mão de uma definição que mesmo não sendo consensual é pelo menos a mais corrente entre os estudos etnológicos Cultura então seria o conjunto complexo constituído pela linguagem comportamento valores crenças representações e tradições partilhados por determinado grupo humano e que lhe conferem uma identidade 1996 p93 Esse conceito de cultura nos ajuda a balizar o tema e abordagem de nosso trabalho Ao pensarmos em O País de São Saruê como um documento histórico identificamos nas representações contidas ali características culturais que articulam dois grupos comunistas e artistas Encontramos o fenômeno que Marcelo Ridenti chamou de romantismo revolucionário pelo qual se identifica um imaginário que podemos compreender pela análise de suas produções e pelo rastreamento de suas influências políticas e artísticas Assim articulase no nosso objeto de análise desde a circularidade de discussões do Partido Comunista Brasileiro sobre a realidade camponesa como o trabalho literário de um Euclides da Cunha ou a geografia social de Josué de Castro em Geografia da Fome 1947 Para Roberto Motta historiadores começaram a adotar o conceito de cultura em detrimento de mentalidades pois este possui uma imprecisão conceitual e também tendia a uma homogeneização exagerada das sociedades passando por cima de suas diferenças e especificidades já o conceito de cultura é mais consistente e permite uma maior apreensão do mesmo objeto as representações mentais Ao mesmo tempo respeitaria mais as particularidades dos grupos em uma sociedade 1996 p93 Por isso Roberto Motta afirma que o conceito de cultura política nosso objeto de discussão pode ser caracterizado como o conjunto de normas valores atitudes crenças linguagens e imaginário partilhados por determinado grupo e tendo como objeto fenômenos políticos 1996 p9553 Como 53 Cabe comentar que o conceito de cultura política possui também ainda uma complicada definição Nos textos lidos identificamos a inexistência de uma definição unívoca e precisa em fenômeno parecido com o conceito de cultura histórica Isso no entanto não impediu uma enorme produção de trabalhos que partem desta concepção para a construção de seus objetos de estudo O historiador norteamericano Ronald P Formisano em seu artigo The Concept of Political Culture 2001 indica as contribuições e influências da antropologia e da ciência política para o trabalho dos historiadores com o conceito de cultura política bem como os atritos com a última Ressalta a enorme produção de trabalhos empíricos em detrimento de uma busca de definição conceitual pelos historiadores realizando um levantamento dessa produção nos EUA Giacomo Sani no Dicionário de Política de Noberto Bobbio 2000 reforça esse caráter de ampliação do objeto político para além do estrito às instituições políticas e a da participação direta nas decisões do Estado para outros âmbitos de vivência do político como as crenças os ideais as normas e as tradições p306 Indica em acordo com Formisano e Roberto Motta a existência de subculturas ou seja especificidades de grupos que divergem entre si em uma mesma sociedade possuindo práticas políticas diferenciadas Nesse sentido retomando uma ampliação da noção de cultura política que se afastava de uma tendência no início de se restringir ao recorte nacional para identificar culturas políticas Isso é melhor explicado por Roberto Patto Sá Motta no artigo Desafios e Possibilidades na apropriação de cultura política pela historiografia 2009 O historiador indica que houve dois grupos de tendências do conceito um dos cientistas sociais norte americanos mais influenciados pela sociologia e pela psicologia e outro de autores franceses inspirados pela antropologia Estes últimos se diferenciaram dos primeiros pela rejeição etnocêntrica de teorizações baseadas em Almond e Verba expoentes dessa vertente que colocavam uma espécie de superioridade da cultura 47 identificamos estamos tratando de um imaginário que se relaciona aos comunistas o romantismo revolucionário e de um documentarista que era militante do PCB 54 Sobre isso Roberto Motta afirma que existem vetores sociais responsáveis pela reprodução das culturas políticas como família instituições educacionais corporações militares partidos e sindicatos Nada mais natural quando lidamos com uma categoria que pressupõe que as escolhas políticas dos indivíduos são determinadas por filiação a grupos eou tradições 2009 p23 Vladimir Carvalho era filiado como indicado ao PCB e manteve certa fidelidade ideológica e engajamento que podem ser identificados em entrevistas e também nos temas e estética de seus documentários Por isso seu trabalho artístico é um excelente espaço para uma problematização de manifestações da cultura política comunista brasileira no documentário nacional Servimonos da liberdade que a arte permite a diferentes leituras realizando uma interpretação nossa do filme por outro lado buscamos em O País de São Saruê também identificar interpretações pensadas a partir da intencionalidade do cineasta refletindo sobre o seu trabalho autoral o que lhe é particular no filme suas opções mas sem deixar de lado sua apropriação de outras elaborações artísticas o caráter geral que se refere aos sintomas culturais da época Procuramos fazer uma dialética entre o particular e o geral bem como entre nossa interpretação e àquela que achamos plausível de identificar como circunscrita nas intencionalidades políticas e artísticas do autor ou da lógica própria do documentário Perguntamonos por que Vladimir Carvalho resolveu fazer um filme na Paraíba sobre o sertão focando nos populares e nos conflitos sociais ali inscritos Esse problema abre o cívica ou democrática que contrastaria com outras mais atrasadas O grupo francês desenvolveu uma perspectiva mais centrada nas características diversas dentro de um mesmo povo rejeitando a homogeneização nacional implicada por essa outra vertente inspirados em Berstein e Sirinelli Focalizam assim em culturas políticas comunistas liberais socialistas dentre outras chamadas por Berstein de famílias políticas MOTTA 2009 p1920 O uso pelos historiadores foi aderido nas décadas de 1980 e 1990 havendo uma ampliação das possibilidades da História Política 54 Sobre a cultura socialista ou comunista Rodrigo Pattos Sá Motta afirma que no mundo contemporâneo constituiuse uma cultura política socialista que tendo se estabelecido entre o início e o meio do século XIX foi reproduzindose ao longo das décadas atravessou o século seguinte e está presente até hoje embora no momento viva uma séria crise A cultura socialista possui todos os elementos necessários para caracterizála enquanto tal valores atitudes crenças normas e um imaginário que têm garantido ao grupo uma forte identidade própria nos últimos cento e cinquenta anos 1996 p95 Sobre a cultura política comunista no Brasil existem diversos trabalhos destacamos na dissertação o Prisioneiros do Mito cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil 19301956 de Jorge Ferreira que abordou o imaginário no cotidiano de comunistas mas há uma série de outros trabalhos tratando inclusive da relação entre arte e política Um bom exemplo é a coletânea de artigos Comunistas Brasileiros cultura política e produção cultural 2013 organizada por Marcos Napolitano Rodrigo Czajka e Rodrigo Patto Sá Motta os trabalhos incluem análises de representações na pintura dramaturgia televisiva jornalismo e até em políticas culturais demonstrando como os enfoques da cultura política podem ser dos mais diversos e como a cultura política comunista influenciou fortemente artistas e intelectuais no Brasil 48 presente capítulo Não podendo focar nos conflitos das Ligas Camponesas ou outros conflitos do campo que se radicalizaram mesmo após a ditadura militar Vladimir Carvalho vai para o sertão onde poderia denunciar os problemas do modo de produção rural sertanejo de maneira segura Sua denúncia no entanto dialoga diretamente com a centralidade da questão agrária das teses comunistas sobre a realidade brasileira O conceito de apropriação visa uma história social das interpretações remetidas para as suas determinações fundamentais que são sociais institucionais culturais e inscritas nas práticas específicas que as produzem CHARTIER 1990 p26 Através desse conceito discutimos como o filme mobiliza discursos apropriação e produz uma interpretação representação uma leitura da realidade sertaneja em O País de São Saruê Ele nos auxilia a pensar como as leituras e experiências de Carvalho são apropriadas de maneira a elaborar um discurso que se serve por exemplo das leituras de Os Sertões Por sua vez os sintomas culturais são aquilo que Erwin Panofisky indica como formas pelas quais em determinadas condições históricas artistas expressaram certos conteúdos em temas e conceitos55 Há três dimensões de análise aplicadas às obras de arte diferenciadas por Panofsky que é interessante deixar bem claras A história dos estilos que consiste na maneira diversa que em um mesmo contexto histórico objetos e fatos são expressos em formas a história dos tipos a maneira pela qual sob condições históricas diferentes temas específicos e conceitos são expressos por objetos e fatos e por fim a história dos sintomas culturais que são as maneiras pelas quais sob condições históricas diferentes as tendências gerais e essenciais da mente humana foram expressas por temas específicos e conceitos PANOFSKY 1986 p0708 Panofsky e a História Cultural podem ser articulados na tentativa de entender as representações e suas apropriações como matrizes de discursos passíveis de identificação em sintomas culturais ou seja uma recorrência de temas que expressam conteúdos de dimensão discursiva Embora o autor pense uma 55 Panofisky e as etapas de seu método iconológico e iconográfico são melhor indicadas no capítulo seguinte Em artigo publicado na revista de história e estudos culturais Fênix a Professora de Arte da UFJF Raquel Quinet Pifano comenta o método de Panofisky ajudando a identificar melhor as ideias do autor Afirma que nas etapas do processo de interpretação de Panofisky há a identificação da história dos estilos como representam objetos em contextos históricos a história dos tipos quando se chega ao âmbito da convenção como temas e conceitos são representados através de objetos e fatos são as imagens Elas podem ser combinadas gerando alegorias ou histórias cuja análise remete à iconografia sendo necessário o cruzamento com outras fontes para interpretação de como essas formas de representar foram adquiridas Por fim a autora fala do nível iconológico de análise que busca uma compreensão mais profunda do objeto e que para Panofisky é apreendido pela determinação daqueles princípios subjacentes que revelam a atitude básica de uma nação de um período classe social crença religiosa ou filosófica qualificados por uma personalidade e condensados numa obra 1986 p52 Esse método mesmo pensado para a análise de pintura nos ajuda a sistematizar nosso pensamento pensado as imagens cinematográficas nestes três passos descrevendoas compreendendo sua maneira de representar em sua historicidade para por fim buscar entender o que revelam sobre um grupo social de artistas engajados entre os quais se inscreve o trabalho particular de Vladimir Carvalho inscrito no discurso de O País de São Saruê 49 linguagem iconográfica para imagens sem movimento aplicamos seus estudos para uma imagem em movimento cinematográfica Discurso aqui é entendido como o pensamento de determinados grupos em um contexto histórico uma ideologia sistematizado segundo uma certa lógica assumida pelos seus agentes Por isso podemos opor o discurso dos comunistas ao discurso dos militares por exemplo Identificase dentro da diversidade do pensamento particular dos agentes da palavra no Brasil da década de 1960 e 1970 uma lógica comum ao grupo Ou seja dentro das divergências entre Alberto Passos Guimarães e Caio Prado Júnior ambos pecebistas havia no entanto elementos discursivos comuns por exemplo ambos se apropriavam da ideia de luta de classes no entanto também interpretavam de maneira diversa qual era o modo de produção no Nordeste semifeudal para o primeiro e capitalista para o segundo Um intelectual costura seu discurso utilizando diferentes tecidos de outros Carvalho inicia o documentário com imagens do terreno sertanejo seco e árido56 Nessa sequência são apresentadas também informações históricas sobre a região identificando o processo de ocupação e colonização dessas terras trazendo a opressão sofrida aos indígenas Cariris e sua resistência57 Em imagens não temos a presença humana como objeto de filmagem Ainda assim os letreiros que fornecem dados históricos referentes aos homens da região e a poesia ao final também trazem o elemento humano Ao descrever essa sequência para Jomar Souto fazer a poesia que narra grande parte do filme Carvalho indica as imagens naturais que constarão nesses planos iniciais aves voando sobre um açude e basicamente paisagem natural sertaneja e ao final o que espera de contextualização histórica Poematexto fala da raça espoliada e extinta que habitou o sertão e das entradas portuguesas que a dizimaram quando fizeram sua marcha para o Oeste instalando os currais de gado que deram origem às primeiras fazendas sertanejas O domínio natural da cultura pastoril em relação ao trogloditismo da vida tribal A perda da liberdade com a tentativa de escravidão do primitivos habitantes A praia e a reação dos índios a grande guerra da 56 Shirly Ferreira de Souza em sua dissertação O sertão como dado São Saruê como aspiração o documentário O País de São Saruê entre a utopia e a política 2010 inicia sua análise de O País de São Saruê contando como em seu início os letreiros informam sobre a recuperação e contexto de censura do filme e que hoje eles são parte constituinte do filme O objetivo da mestranda era tratar dos silêncios no filme no período de censura o que tornou pertinente leválos em consideração Porém ao pensarmos no filme como um documento da década de 1960 e nos preocuparmos com sua construção narrativa para entender aquele período histórico preferimos abordar o enredo mais ligado à proposta original do filme ou seja a questão do modo de produção no sertão nordestino Por isso deixamos de lado as inserções informativas recentes inseridas no enredo do documentário em DVD País de São Saruê O Direção Vladimir Carvalho Marcus Odilon Coutinho Produções Rio de Janeiro RJ 1971 90 min Som Color Formato 35 mm Os dados completos do filme podem ser conferidos no Anexo A Ficha técnica de O País de São Saruê p194 57 Esta introdução cheia de referências históricas será trabalhada no próximo capítulo ao analisarmos de maneira mais ampla a narrativa elaborada no documentário 50 Confederação dos Cariris Vence o branco português o primeiro dominador estranho à terra CARVALHO 1986 p17 Identificamos o recorte social raças espoliadas aqui tanto étnico o substantivo se refere ao indígena quanto econômicopolítico representado pelo adjetivo Historicamente delimita a entrada portuguesa e o massacre na marcha para Oeste identificando tal processo com a origem das primeiras fazendas sertanejas da ocupação do espaço sertanejo do processo de formação da civilização do couro Ainda aponta a mudança da sedentarização da cultura pastoril diferenciandoa de um trogloditismo da vida tribal Por outro lado houve a perda da escravidão dos primitivos habitantes os índios que terminam vencidos pelos brancos mas não sem conflito na indicação da resistência Cariri Estes são elementos interpretativos da história colonial brasileira sertaneja e paraibana que são objetivados pelo cineasta Mostramos no capítulo seguinte sua realização em imagens cinematograficamente Podemos apenas adiantar que ao resultado final do filme a poesia não fala tão explicitamente quanto se poderia esperar da descrição dos conflitos no texto de Carvalho O poema oferece uma forma lírica que ameniza seu caráter de denúncia no filme ao menos se compararmos a possível opção que resultaria no uso de uma pesada e explícita voz over58 elemento comum do documentário clássico Na indicação para o poeta permanece um registro da intencionalidade política das indicações de Carvalho fornecendo subsídios para afirmarmos que O País de São Saruê detém uma abordagem de baixo59 Bill Nichols crítico e teórico do cinema que escreve sobre documentário afirma que o documentário libera uma análise histórica de uma realidade social 2009 p69 Nesse 58 Uso de uma voz em um filme cujo personagem não aparece em imagem Possui vários tipos a mais famosa em voz de deus cujo locutor não se apresenta mas possui um tom e treino oratório que conferem credibilidade científica para seu discurso 59 Assumimos aqui que há uma construção parecida àquela indicada pela historiadora Regina M Behar no artigo Conterrâneos Velhos de Guerra o cinema escreve a história vista de baixo 2010 No seu texto estão articulados cultura histórica e cinema demonstrando como Vladimir Carvalho realizou no documentário Conterrâneos Velhos de Guerra uma empreitada de uma contrahistória nos termos de Marc Ferro opondose à visão monumental predominante acerca da construção de Brasília através do uso do ponto de vista dos candangos que a construíram Lá no entanto o cineasta se vale especialmente de entrevistas mas não somente para construir esse discurso Em O País de São Saruê temos uma construção na qual há apenas uma entrevista com populares na sequência da mineração do ouro predominando o modelo de documentário eu falo sobre vocês Ainda assim acreditamos que a perspectiva adotada pelo cineasta pode ser indicada como uma perspectiva que assume um lugar de classe ou seja do intelectual que procura assumir a ideologia a identidade de classe daquilo que entendem como classe operária ou camponesa Em meio aos discursos do Brasil do milagre econômico tanto o filme também pode representar uma contra história como uma tentativa de um discurso de baixo ou aos moldes da história a contrapelo de Walter Benjamin na qual o historiador neste caso cineasta materialista histórico se afasta o máximo possível da tradição Ele considera como tarefa sua pentear a história a contrapelo BENJAMIN 1985 p157 Daí a conclusão de Regina Behar de que Vladimir Carvalho imigrante nordestino marxista cineasta preocupado com uma história vista de baixo interessava conhecer a história não contada interessava saber desses conterrâneos dos homens que como ele imigraram e com os quais compartilhavam uma identidade cultural e uma solidariedade de classe cujo compromisso se revela nessa trilogia documental pelos caminhos de Brasília BEHAR 2010 p198 51 sentido quando falamos aqui em uma perspectiva histórica de baixo pensamos no tipo de análise legitimada pelo documentário e não uma historiográfica ou seja a inscrição do filme no campo da cultura histórica como definido em Flores 2007 p 95 Vladimir Carvalho era militante do Partido Comunista Brasileiro e nunca escondera sua opção de classe ou seja de lutar por aqueles que considerava oprimidos pelo sistema social capitalista Apesar disso ele foi um intelectual que não veio da classe operária ou mesmo camponesa portanto não veio de baixo em um sentido classista marxista Seu pai um homem de certa leitura e de esquerda era figura influente na política e de considerável poder aquisitivo o que lhe fornecia um acesso privilegiado à cultura para ele e para seus filhos Não à toa Carlos Mattos ressalta na biografia do cineasta as leituras de Carvalho de José Lins do Rego na infância60 Apenas com a morte do pai Vladimir Carvalho necessitou trabalhar para ajudar nas despesas da família em sua juventude Ainda assim seus estudos foram garantidos chegando a fazer um curso superior de Filosofia Trabalhou a maior parte do tempo como jornalista que lhe garantia a sobrevivência e permitiu o engajamento no Partido Comunista Brasileiro e no Centro Popular de Cultura Quando fez as filmagens de O País de São Saruê estava atuando como professor universitário na UnB Portanto nessa trajetória Vladimir Carvalho era na verdade um homem simpático aos de baixo ou seja no jargão comunista participava de uma pequena burguesia que pendia para a luta das classes baixas Por isso quando falamos em documentário de baixo não pensamos em um cinema realizado por aqueles que são marginalizados economicamente pela sociedade como surgiu muito posteriormente mas em um documentário que faz uma opção temática classista por aqueles que seus realizadores consideravam de baixo a partir do imaginário da esquerda da época61 Pela trajetória de Carvalho pela cultura política que se inseria e pelos documentos e relatos nos quais se afirma suas intencionalidades com relação ao filme sabemos dos objetivos políticos e de certa concepção de realidade social que perpassa O País de São Saruê Havia um grupo social os sertanejos ou melhor uma classe camponeses a qual Carvalho tinha simpatia na elaboração de seu documentário Era para ela e por ela que ele fez seu filme Ele se aproxima da proposta do que Marc Ferro chamou de uma contra história uma história 60 Seu pai era um construtor compulsivo o qual Vladimir Carvalho assistiu no próprio terreno serem fabricados materiais de construção Sua família detinha relativas posses na época 61 Cabe como exemplo a diferença entre duas produções cinematográficas o Cinco Vezes Favela de 1962 realizado pelo CPC da UNE no qual militantes estudantis elaboraram uma representação da vida na favela a partir daquilo que entendiam daquela realidade e o Cinco Vezes Favela agora por nós mesmos de 2010 realizado sob produção de Carlos Diegues um dos diretores e produtores do filme anterior Diversamente ao anterior este último foi feito por moradores da própria favela Sua representação se aproxima mais de um cinema de baixo no sentido de ser produzido pelos de baixo que se colocam como tema 52 que se opõe à história oficial no que se refere à escolha temática que privilegia contar a história a partir de um ponto de vista daqueles que foram esquecidos no processo de modernização Cabe lembrar que um elemento central da tese dos intelectuais pecebistas era do atraso econômico e técnico do Nordeste O documentário se contrapunha a certa perspectiva da historiografia e da propaganda do regime militar ambos disseminadores de uma cultura histórica que privilegiava uma História do país centrada nos feitos de grandes homens políticos da elite brasileira ou dos grandes centros urbanos Esta foi uma escolha pessoal de Carvalho e ao mesmo tempo fazia parte de uma das peculiaridades e inovações do Cinema Novo e de muitos filmes ligados ao romantismo revolucionário trazer à tela pessoas humildes o povo Se hoje é relativamente comum a presença de temas como o sertão seco ou a favela nas produções audiovisuais atuais antes foi uma novidade temática que se consolidou no cinema da década de 19501960 Já entre as décadas de 1910 e 1930 encontravase no cinema tendências da representação da nacionalidade em temas rurais e urbanos No primeiro exaltavase a natureza e costumes do interior BERNARDET GALVÃO 1983 p25 Porém os autores indicam que o nacional não era vinculado necessariamente a uma imagem popular embora estivessem próximas p30 Foi apenas na década de 1930 que o popular enquanto retrato do povo surge em alguns poucos filmes do cinema nacional Os autores concluem que estes casos isolados não caracterizam uma preocupação sobre um cinema popular que surgiria apenas na década de 1950 década na qual já havia e se acentua uma aproximação entre intelectuais classe média e o PCB nossas considerações em torno de possíveis idéias sobre um cinema popular nos primeiros cinqüenta anos de cinema brasileiro são sobretudo produto de nossa preocupação com o tema mais do que decorrência do pouco que conhecemos do pensamento cinematográfico da época Em termos de reflexão sobre cinema brasileiro a idéia de popular adquire relevo e importância apenas nos anos 1950 e será de então por diante um dos temas predominantes no pensamento cinematográfico BERNARDET GALVÃO 1983 p3536 Foi na década anterior à produção de O País de São Saruê que se iniciou uma reflexão do pensamento cinematográfica na qual a ideia de popular ganhou importância e se tornou tema predominante de certo cinema Daí a sua centralidade no movimento Cinema Novista e outras produções que pensaram a nacionalidade a partir do indígena do negro ou do sertanejo Bernardet caracteriza da seguinte maneira o contexto da década de 1950 A situação política do país o desenvolvimento das esquerdas e das idéias nacionaldesenvolvimentistas a retomada da produção cinematográfica 53 brasileira após a quase estagnação nos anos 1940 o projeto da Vera Cruz a valorização do cinema como produção cultural digna a divulgação do ideário do neorealismo italiano a preocupação crescente das elites culturais brasileiras com o cinema levam a discussão sobre cinema no Brasil a adquirir uma originalidade que não tinham na primeira metade do século e a se politizar fortemente Neste contexto as idéias de nacional e de popular se imbricam uma na outra o que não acontecia anteriormente BERNARDET 1983 p62 Bernardet indica como o nacional desenvolvimentismo no âmbito político e o próprio movimento neorrealista italiano influenciou a arte As elites culturais refletiram sobre o cinema brasileiro alcançando uma originalidade não existente até então cuja uma das características era seu caráter politizado Nacionalidade se imbrica com a própria ideia de povo com a discussão sobre modernização e temas de cunho social O primeiro filme a trazer os favelados à cena foi Rio 40 graus 1955 pela influência do neorrealismo que foi importante para a construção do cinema engajado do período como destacamos anteriormente Já o tema do sertão já estava presente nas telas tendo já O Cangaceiro 1953 como um importante marco na elaboração dessa representação Aqui porém não se tratava de um cinema crítico e engajado mas uma espécie de western brasileiro62 Este filme foi criticado por não conter uma estética brasileira mas baseada nos moldes hollywoodianos portanto estrangeiros Um filme que mudou como se representava o sertão e sua miséria e cuja estética influenciou definitivamente a maneira de fazer cinema sobre tal realidade foi Vidas Secas 1963 de Nelson Pereira dos Santos Ao falarmos desses filmes estamos pensando no âmbito do cinema ficcional porém Vidas Secas já fora influenciado pela estética inaugurada na área do documentário com Aruanda 1960 que Carvalho participou da realização63 Podemos indicar mais uma vez essa circularidade de 62 O western é um gênero de cinema ficcional de grande popularidade nas décadas de 1950 1960 e ainda na década de 1970 É o estilo de filme de bangbang com ação e os tipos bem delimitados de mocinho e bandido Essa construção cinematográfica se vincula a uma ideologia norteamericana construída antes mesmo do cinema mas que ganhou grande repercussão mundial com a produção hollywoodiana Estereótipos sobre o índio a mulher e o homem branco e heterossexual defensor da propriedade privada fazem parte deste tipo de cinema Os defensores de um cinema nacional críticos aos modelos de Hollywood e à temática de tais filmes rejeitavam filmes que tentaram transformar o sertão brasileiro no Oeste estadunidense e o sertanejo no cowboy brasileiro como em O Cangaceiro Sobre as características e a construção histórico ideológica desse gênero podese conferir o texto Western de Fernando Simão Vugman em História do Cinema Mundial 2006 Sobre a popularização e reprodução desse modelo de cinema comenta Vugman Para muitos o Western é considerado o gênero cinematográfico norteamericano por excelência Com os primeiros filmes em que aparecem cowboys datando da virada do século XIX para o século XX o Western incluise entre os primeiros gêneros de filmes narrativos da história Se ao longo do século passado Hollywood tornouse a indústria do cinema hegemônico certamente os índios bandidos e mocinhos do Velho Oeste deram uma grande contribuição para o sucesso desse cinema entre o público norte americano e mundial Mas o sucesso do gênero não se limitou ao público sua influência sobre a cinematografia de outros países pode ser observada em filmes de samurais japoneses cangaceiros brasileiros em filmes indianos russos e mexicanos além é claro das francas imitações na Alemanha e na Itália VUGMAN 2006 p159 63 Carvalho indica que em Vidas Secas o fotógrafo Luís Carlos Barreto baseouse na luz estourada de Aruanda única forma de captar a dramaticidade da soalheira nordestina CARVALHO 1986 p125126 54 temas e maneiras de fazer cinema daquele período Elas nos ajudam a entender ainda na década de 1970 o fazer cinema de Carvalho Sobre essa história do sertão e do rural no cinema brasileiro comenta o próprio Vladimir Carvalho O cinema brasileiro sempre enfocou o rural desde a chanchada que traziam musicais com duplas caipiras e artistas como Jackson do pandeiro mas não traziam uma visão crítica A produção qualificada técnica e artisticamente da Vera Cruz também explorarou sic temas rurais como em Caiçara ou O Cangaceiro Mas até então não tinham a preocupação em se abrir para a realidade brasileira e nem traziam uma visão crítica do assunto Já o Cinema Novo redescobriu o Brasil e o campo era uma fonte muito rica de narrativas e temas Aquilo atraiu cineastas como Glauber Rocha Mas o ponto de conflito das tramas dos filmes estavam exatamente na questão da posse da terra 64 CARVALHO 2004 A novidade no rural neste contexto era sua abordagem a realidade brasileira vista sob uma visão crítica Os pontos de conflito eram centrados na questão da posse da terra O tema agrário era central As personagens chave para essas narrativas eram os camponeses Isso nos permite contextualizar a dedicatória a populares que começa o filme explicitando o posicionamento político e uma referência literal ao tema que era caro ao tipo de cinema do qual O País de São Saruê se ligava este filme é dedicado aos humildes lavradores vaqueiros tangerinos violeiros e retirantes que muitas vezes interromperam suas tarefas para nos ajudar a realizálo CARVALHO 1986 p 30 Longe de ser uma mera formalidade essa dedicatória institui um olhar aos temas apresentados pelo filme O sertão nesse sentido representou um espaço privilegiado para essas narrativas de baixo do período bem como a favela Como vimos o romantismo revolucionário serviase de elementos pré capitalistas para construir uma utopia no futuro havia duas tendências desses intelectuais que podemos considerar românticos uma de recriar o paraíso perdido no tempo presente estetizando ou poetizando o seu entorno ou ainda de encontrar o paraíso no presente porém no real em um espaço primitivo ou até exótico LÖWY SAYRE 1993 p24 Essas duas tendências estiveram presentes em muitos artistas ligados ao PCB que tanto estetizaram a realidade social a seu redor idealizando o povo quanto buscaram na alteridade do homem da favela do operário e principalmente no camponês a herança précapitalista perdida O sertão e o camponês foram temas privilegiados por esses intelectuais e artistas Ridenti afirma que A ligação com a literatura social de resgate do autêntico homem do povo brasileiro identificado com o sertanejo ou o migrante nordestino tão 64 Entrevista realizada em 28 de junho de 2004 Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural NEAD do Ministério do Desenvolvimento httpwwwneadgovbrportalneadnoticiasitemitemid4986219 Acesso em 15 de ago 2013 55 recorrente na filmografia dos cinemanovistas e também de cineastas do período não identificados com o Cinema Novo estava presente no projeto original do filme do CPC que Coutinho dirigia antes de tentar filmar o Cabra Marcado pra Morrer RIDENTI 2000 p 97 Esse volver do olhar de artistas ao camponês na busca das raízes e da autenticidade do homem e da cultura brasileira além de muito presente nesse período e no imaginário do CPC também era central no pensamento social da época Para a teoria desenvolvimentista que ganhou espaço nas décadas de 1950 e 1960 o Nordeste se torna o espaço do arcaísmo e do atraso espaço do subdesenvolvimento Celso Furtado foi seu grande locutor PENNA 1992 p28 Esse conjunto de teses influenciou fortemente o PCB Ridenti afirma ainda que as classes médias idealizavam o trabalhador rural tomando por vezes conotações caricatas ou míticas embora o autor também reconheça que houve uma real inserção no movimento dos trabalhadores RIDENTI 2000 p848965 Os filmes no cinema engajado da época que tematizou o homem do campo detém inúmeros exemplares seja em ficções como Vidas Secas Deus e o Diabo na Terra do Sol Os Fuzis ou em diversos filmes documentários como Viramundo os curtas produzidos pela caravana Farkas e o já citado ciclo de cinema paraibano O crítico de cinema JeanClaude Bernardet quando analisou documentários realizados nessa época em Cineastas e imagens do povo 1985 entre 1960 e 1980 afirma que os cineastas detinham uma atitude humilde em relação ao povo mas que sua linguagem não era popular 2003 p186 Este foi um dos desafios para pensar qual público era almejado por O País de São Saruê e qual sua atitude perante o povo como pudemos confirmar a afirmação de Bernardet pela dedicatória que abre O País de São Saruê Vladimir Carvalho se difere de alguns desses artistas e cineastas que eram muitas vezes homens da realidade urbana que se voltaram nessa época para a realidade rural Diversamente Vladimir Carvalho viera da Paraíba vira essa realidade e foi fazer filmes sobre o campo in loco A linguagem do filme porém não era necessariamente voltada para 65 Dois exemplos valiosos oferecidos pelo sociólogo o primeiro referese a uma visão caricata do camponês A tentativa de aproximação com o homem simples do campo ao mesmo tempo detentor de uma sabedoria inata e objeto de uma pedagogia revolucionária fica transparente no artigo Mutirão em Novo Sol no I Congresso Nacional de Camponeses de José de Oliveira Santos 1962 O artigo comenta a encenação da peça Mutirão em Novo Sol do CPC paulista na I Conferência de Lavradores do Estado de São Paulo 11 de novembro de 1961 e no I Congresso Nacional de Camponeses em Belo Horizonte 14 de novembro A narrativa afirma que 600 camponeses presenciaram o espetáculo no primeiro evento e outros 4 mil no segundo dá bem conta do imaginário das classes médias urbanas de esquerda da época sobre o trabalhador rural Talvez seja difícil encontrar texto mais exemplar do romantismo do CPC um povo que é simples sofrido sábio e maravilhoso inspirador de transformações sociais mas primitivo e desamparado devendo ser objeto da ação do teatro enquanto instrumento de extensão e elevações culturais A platéia camponesa revitalizaria a arte cênica que por sua vez envolveria o engajamento dos autênticos artistas do povo na luta de elevação cultural numa fase mais futura Santos 1962 RIDENTI 2000 p85 Por outro lado Ridenti também oferece uma contrapartida mostrando a inserção do romantismo revolucionário no movimento dos trabalhadores citando o exemplo da produção de textos de ficção de Francisco Julião famoso líder das ligas camponesas em 1955 p8889 56 esse povo Seus documentários objetivavam comunicar à classe média urbana especialmente estudantil afinal na época não havia cinema no sertão como hoje Contudo sua linguagem era mais acessível que de filmes do Glauber Rocha66 Tendo em vista os dados expostos a construção do que seriam esses de baixo perpassa por três questões essenciais as experiências pessoais do diretor na Paraíba suas intenções políticas vinculadas à atuação no PCB e a sua formação literária A representação desses de baixo possui origem política mas configurada em elaboração fílmica Certamente Carvalho entrou em contato com esses homens e mulheres reais que filmou no entanto ao elaborar seu filme o registro artístico dessa realidade foi organizado de maneira a formar um discurso de Carvalho não a realidade em si mas seu simulacro Ao dedicar o filme aos populares Carvalho faz uma opção de classe mas não apenas isso deixou explícito para o espectador essa opção Durante o filme essa oposição de classe foi desenvolvida embora de maneira menos explícita dado o contexto de ditadura militar e do desejo de que o filme chegasse às telas de cinema alcançando um público de classe média Além da opção temática há outra opção que é pertinente comentar a opção pelo documentário Esse tipo específico de cinema possui uma elaboração diferenciada e peculiaridades que incidem diretamente na forma de narrar na sua estética bem como na maneira como se convencionou recepcionarver esse tipo de cinema A forma pela qual se enxerga esse tipo de filme influencia tanto sua recepção da escolha de ir ver um filme documentário até a forma como se realiza esse tipo de produção como sua produção a maneira pela qual se elabora o filme bem como a escolha em realizar tal tipo de cinema Tornase importante pensar a categoria documentário em sua própria historicidade ou seja em como Vladimir Carvalho lidava com a realização desse tipo de cinema Embora a categoria documentário não seja consensual havendo outras propostas de classificação neste momento nos concentramos em como esse cineasta enxergava esse tipo de produção Sabemos que vários artistas da década de 1960 especialmente aqueles ligados ao 66 Durval Muniz de Albuquerque 1999 problematiza as leituras sobre o Nordeste propondo uma representação desse espaço como território da revolta tomando como corpus documental produções vinculadas ao imaginário marxista como os romances de trinta e incluindo o Cinema Novo Diferentemente de Ridenti afirma que o Nordeste dessa produção é construído como espaço das utopias como lugar do sonho com um novo amanhã p207 enfocando a relação de ruptura com o passado para diferenciar de autores saudosistas como Gilberto Freyre Parecenos que essa leitura entra em sutis conflitos em diversos pontos com a proposta do romantismo revolucionário de Ridenti No entanto Albuquerque em seu texto reconhece a eleição temática como algo de escolha e produção de sentido desses intelectuais problematizando essa transformação 57 Cinema Novo foram influenciados pelas escolas neorrealista italiana e nouvelle vague francesa Embora ambas fossem escolas de filmes ficcionais foram importantes na formação em geral de tais artistas O neorrealismo italiano lançou mão de atores e cenários reais se aproximando em muito de elementos que definiam o documentário não utilização de atores reais filmagem de cenários reais etc O neorrealismo era um cinema que almejava uma finalidade política e social denunciando uma Itália pós Segunda Guerra ou as barbaridades fascistas Quanto à nouvelle vague houve uma dinamização dos elementos cinematográficos na maneira de narrar e a valorização da figura do diretor como autor Parece significativo que assim como os neorrealistas procurouse fazer um cinema dentro dos limites materiais que se dispunha Muitos cineastas tinham poucos recursos e para registrar o que acontecia na Itália fascista e pósfascismo Foram usados negativos de origens e qualidades diversas Os filmes neorrealistas se valorizaram mais pelo caráter político e histórico que por questões técnicas muito embora isso não retire o valor estético de tais produções que contaram com grandes nomes do cinema como Roberto Rosselini Entre a nouvelle vague e o neorrealismo parecenos que o último surtiu maior influência sobre o ciclo de documentário paraibano Sabemos que tais discussões chegaram até esses documentaristas Sobre o assunto relata Vladimir Carvalho Eu gostava muito também do Neorealismo mesmo que a informação desse cinema chegasse de forma um pouco retardatária O que acontece Eu achava que cinema era filme de ficção Até que um dia baixou no Recife um crítico carioca chamado Jonas com uma série de filmes clássicos antológicos do cinema mundial entre eles filmes russos como Outubro do Eisenstein filmes de Marcel Carné dos ingleses enfim dez filmes que ele exibia e discutia E junto ele trouxe um longametragem eu ouvia falar vagamente em Flaherty mas não sabia o que era E de repente me aparece O Homem de Aran Aquilo foi como uma revelação para mim foi algo definidor Por quê Era um filme que não tinha atores tais como a gente concebe enredo dramático préestabelecido nada do que a gente está acostumado a receber em filme de ficção E era lindíssimo um filme com mais de uma hora portanto com a mesma duração de um filme de ficção e prendia a atenção só com aquele idílio a relação do homem com a natureza CARVALHO 2001 67 Sabemos que o neorrealismo italiano chegou aos cinéfilos e futuros cineastas paraibanos através do cineclube católico montado pelo Pe Antônio Fragoso68 Vladimir 67 CARVALHO Entrevista realizada em 03 Novembro de 2001 por Marília Franco Disponível em httpwwwmnemocinecombraruandavcarvalho3htm Acesso em 06 nov 2012 68 Sobre isso afirma Carlos Mattos escrevendo em primeira pessoa na biografia sobre Vladimir Carvalho eu já freqüentava o cineclube comandado pelo Padre Antônio Fragoso muito ligado ao engajamento social da Igreja Padre Fragoso por sinal comungava da tradição romana que muito estimulou o cineclubismo dos anos 1950 e 1960 por conta de uma visão do cinema como ferramenta de esclarecimento do rebanho católico Esse dado não é estranho a minha formação 58 Carvalho teve contato com filmes de Eisenstein em Recife e mais importante ainda Robert Flaherty O Homem de Aran 1934 é uma referência muito forte para o cineasta que sempre a indica em diversas entrevistas Robert Flaherty é considerado por muitos o pai do documentário com Nanook o esquimó 1920 Robert Flaherty e Nanook o esquimó são marcos no documentário especialmente no modelo clássico de documentário O filme já trazia no seio a grande polêmica sobre o status de objetividade do documentário Almejava mostrar os costumes de um povo distante e diferente do europeu os esquimós porém apesar da euforia acerca do caráter objetivo do filme sabese que houve representação para as câmeras de costumes que os atores sociais não praticavam mais como a pesca de leões marinhos com arpão gerando grande polêmica Essa discussão sobre representação no documentário e seus limites com a ficção foi alvo de substantiva produção de teóricos do cinema69 Retomamos o tema depois no momento cabe apenas indicar que para além do efetivo realismo ou não do documentário flahertyano este foi uma influência importante para Vladimir Carvalho Flaherty é tão valorizado pelo documentarista que no site da Fundação Cinememória criada por Carvalho em 1994 em Brasília um texto biográfico do paraibano afirma se que a opção pelo documentário foi feita já em 1950 ao assistir ao Homem de Aran ou seja muito antes de efetivamente ter conseguido filmar alguma coisa Robert Flaherty foi uma apropriação que se encaixou muito bem com a motivação temática e engajada de Vladimir Carvalho O documentarista se apropriou de tais leituras e do cinema documental de Flaherty para elaborar seus próprios filmes a fim de falar de uma realidade que conhecia de maneira a certo modo romântica pelas suas memórias infantis de maneira profissional com suas pesquisas jornalísticas e atuação no CPC e ainda com o acúmulo de leituras teóricas e discussões no PCB sobre a questão agrária brasileira Cabe comentar também que a década de 1960 foi um momento de debates político culturais e no qual o documentário brasileiro foi inovado tecnicamente e teoricamente floresceu proporcionando novos voos para os cineastas A possibilidade de sincronia de som com a chegada Leituras importantes para essa nova compreensão do cinema foram os artigos da Revista Cinema editada em Belo Horizonte o livro Cine Social do espanhol José María García Escudeiro e o ensaio Significação do Far West de Octavio de Faria Ali estava todo um mundo além do mero divertimento A partir de então torneime espectador inveterado do neorealismo italiano do cinema verista francês do expressionismo alemão dos clássicos soviéticos 2008 p75 69 O cinema possui grandes teóricos Muitos escreveram sobre cinema como na década de 1910 Ricciotto Canudo Louis Delluc Kulechov e Pudovkin A produção nesse sentido cresceria posteriormente tendo como destaques na segunda metade do século XX autores como Christian Metz e Jean Miltry já na crítica acadêmica Muitos cineastas também foram teóricos do cinema como Sergei Eisenstein Pier Paolo Pasolini dentre outros No Brasil alguns nomes da crítica cinematográfica são JeanClaude Bernardet e Ismail Xavier Há também uma profusão de autores sobre documentário especificamente entre os quais podemos destacar Bill Nichols Guy Gauthier e brasileiros como Fernão Pessoa Ramos Hélio Godoy e Francisco Elinaldo Teixeira 59 de equipamentos móveis resultou em novidades estilísticas e técnicas que foram utilizadas apropriadas aqui para dar voz ao povo cf RAMOS 2004 p 8184 BERNARDET 2003 p281285 Daí que o crítico de cinema JeanClaude Bernardet aponte que houve na década de 1960 um apogeu do documentário de modelo sociológico uma vertente engajada e que buscava dialogar sobre e com o povo Cf BERNARDET 2003 p12 Esse cinema entrou em declínio no final da década de 1960 e início da década de 1970 Muitos cineastas engajados enveredaram pelo cinema ficcional como Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha No entanto Vladimir Carvalho e outros paraibanos se definiram pelo documentário Com as atuações em diferentes trabalhos produção roteiro diretor auxiliar montagem em diversos filmes durante a década de 1960 Vladimir Carvalho pode realizar seu primeiro longametragem de sua completa autoria O País de São Saruê Sua escolha pelo documentário se dava por um recado que queria oferecer que para o diretor tanto lhe realizava mais artisticamente quanto se encaixava em seus anseios políticos e sociais Como indicamos podemos afirmar que esse cinema optou tematicamente pelos de baixo Os entraves e soluções objetivos para as filmagens do projeto de O País de São Saruê são abordados na etapa seguinte 23 Planosequência fazer um filme em um país subdesenvolvido No contexto político da década de 1960 no âmbito da esquerda colocavase em xeque o modelo soviético de socialismo abrindo espaço para alternativas libertadoras terceiro mundistas O Brasil se modernizava e os diversos grupos políticos discutiam seus projetos para essa transformação Concomitantemente houve uma proletarização das camadas médias da população instaurando a sociedade de consumo no Brasil O país vivia a tensão da Guerra Fria acompanhava os horrores da Guerra do Vietnã e a surpresa do Maio de 68 eclodia o movimento hippie lutas armadas espalhavamse por diversos países O Brasil acompanhava um processo de democratização da vida nacional uma radicalização dos movimentos sindicais e camponeses e uma mobilização grande em torno das reformas de base de João Goulart interrompidas pelo Golpe de 1964 Foi nesse contexto que houve a referida efervescência artísticacultural tão ligada aos debates políticos da época O regime militar no entanto fechou as vias de participação política direta reprimindo particularmente os partidos e sindicatos A cultura se tornou o baluarte da atuação política no país70 Porém isso mudaria em dezembro de 1968 o Ato Institucional nº 5 1968 representou 70 Ridenti mostrou como em várias entrevistas muitos artistas afirmavam que atuavam na esfera cultural por impossibilidade de fazer política demonstrando o porque entre 1964 e 1969 arte e política se tornaram ainda 60 maiores dificuldades para a arte engajada Muitos artistas e intelectuais se aproximaram da luta armada nesses anos de chumbo Era um contexto bem diverso da década de 1960 o que fez com que muitos cineastas se voltassem para própria linguagem da sétima arte Em Cineastas e Imagens do Povo Bernardet aponta tipologias para o documentário brasileiro a partir de certas escolhas estéticas que dialogavam com o contexto histórico do Brasil durante o período militar Aponta como o cinema impedido pela censura de se voltar para temas sociais muitas vezes optou por abordagens metalinguísticas Nesse sentido embora não seja o caso de Vladimir Carvalho isso acabou por se resvalar em seu cinema Em O País de São Saruê há uma construção poética da narrativa mais sofisticada que nos filmes anteriores que pode ser relacionada a uma influência indireta dessas transformações Um bom exemplo desse movimento foi o filme filhote de O País de São Saruê A Pedra da Riqueza 1975 que para além da realidade da extração mineira de xelita na Paraíba realiza uma complexa discussão do próprio cinema Cf OU 2011 Cf FEITOSA 201271 Embora tenha existido uma tendência de muitos documentaristas se voltarem à problematização da linguagem documentária o que pode ser entendido pelo contexto político também é pertinente ressaltar que esse é um movimento anterior ao golpe a nível internacional no qual muitos filmes documentários buscavam novas formas de expressão Um expoente desse fenômeno no Brasil foi Opinião Pública 1965 de Arnaldo Jabor que trouxe aqui inovações já propostas na França Devido à perseguição do regime após a censura de Cabra Marcado Para Morrer Carvalho deixa o Nordeste e vai para o Rio de Janeiro Mesmo nesse contexto Vladimir Carvalho não parou de trabalhar participando de filmes como O grito da terra 1964 como assistente de montagem e Rio Capital do Cinema como assistente de direção Atua também como assistente de direção em Opinião Pública experiência bastante significativa Esse filme foi um marco no documentário brasileiro pela maneira mais despojada de filmar mais flexível em relação ao roteiro e o uso de som direto tecnologia que era recente no Brasil Opinião Pública foi influenciado pelo método do cinema verdade francês abusando das entrevistas com grande espontaneidade sem precedentes no documentário nacional72 A partir mais íntimas 2000 p5455 Contudo vale ressaltar esta não era uma regra e Vladimir Carvalho não se encaixa pois atuava na esfera cultural muito antes 71 Analisamos brevemente o curta em trabalho apresentado no Encontro Estadual de História 27 e 30 de novembro de 2012 ANPUHPB UFCG em Cajazeiras Paraíba em 2012 72 A expressão foi proposta por Edgar Morin e por Jean Rouch no Manifesto publicado por ocasião da distribuição de seu filme Chronique dun été Crônica de um verão 1960 Tratavase de propor um novo tipo de cinema documentário utilizando a exemplo dos cineastas americanos em torno de Robert Drew e dos cineastas canadenses da ONF as novas técnicas leves Não se tratava apenas de uma evolução mas de uma nova atitude estética e moral os cineastas participam da evolução da pesquisa e da filmagem eles não procuram esconder a câmera nem o microfone eles intervêm diretamente no desenrolar do filme passando do estatuto de autores ao de narradores e de personagens Correlativamente a Câmera é concebida como um 61 do ponto de vista da classe média carioca abordou temas da política e do cotidiano explorando a representação dessas personagens sociais Esse trabalho teve importante relevância na trajetória de Carvalho refletindose em O País de São Saruê que se tornou um filme menos preso ao roteiro que buscou explorar entrevistas e que ainda mostra o próprio documentarista no filme embora de maneira menos ostensiva que na realizada pelos franceses em Crônica de um verão Com o aprendizado em Opinião Pública e com dinheiro que ganhou na produção do documentário Vladimir Carvalho resolve filmar na Paraíba MATTOS 2008 p113 Iniciase aqui o trabalho como diretor do cineasta possuindo caráter autoral em um contexto político e em condições financeiras que teriam forte influência nos seus trabalhos da década de 1970 A questão financeira os parcos recursos para realização de seus filmes como indica Leal perseguiu o documentarista LEAL 2007 p181 Nessa empreitada realizou quatro filmes Sertão do Rio do Peixe 1968 O País de São Saruê 1971 A Bolandeira 1968 e A Pedra da Riqueza 1975 Os dois últimos são filhotes de O País de São Saruê pois foram curtas que surgiram durante as gravações do filme pai e O Sertão do Rio do Peixe foi ampliado para fazer O País de São Saruê motivo pelo qual daremos maior atenção ao processo de filmagem dessa obra73 Essa iniciativa teve elementos que são importantes para pensar a filmagem de O País de São Saruê a ausência de recursos o apoio de Antônio Mariz e o retorno àquela atmosfera sertaneja que como vimos marcou sua infância em Itabaiana Podemos identificar tais elementos no comentário de José Marinho sobre essa iniciativa do cineasta Carvalho preparase para se tornar diretor e produtor de seus próprios filmes Com algumas idéias e uma velha câmera Bell Howell 16mm emprestada parte para o sertão onde pretende estabelecer contatos com um amigo de infância Antônio Mariz prefeito da cidade de Souza no sertão paraibano Corre o ano de 1966 nos pés um par de sapato gasto pelo tempo e na mochila somente uma muda de calça e duas camisas Agora irá rever os centauros em seus cavalos ligeiros em busca dos bois brabos a que tantas vezes assistiu ainda menino nas ruas de Itabaiana MARINHO 1998 p94 95 instrumento de revelação da verdade dos indivíduos e do mundo É também portanto como pesquisa sobre o mundo real que o cinemaverdade pretende se opor ao cinema de ficção definido o contrário como cinema da mistificação e da mentira RAMOS F P 2004 p5051 Este cinema no entanto será uma influência mais forte posteriormente 73 Em síntese sumária que inevitavelmente ofusca a grande riqueza que representam os dois curtas A Bolandeira pode ser apresentada como um filme sobre a produção de açúcar E A Pedra da Riqueza que fala sobre extração de xelita em uma mina no sertão problematizando a questão da alienação no cinema e no trabalho É interessante que aparentemente uma maneira de fazer cinema vai se desenhando entre os três filmes em A Bolandeira o filme é mais parecido com o modelo de Aruanda de narrar embora já mais poético essa estética é ampliada em O País de São Saruê e mais forte em A Pedra da Riqueza Por isso o último filme é fortemente metalinguístico problematizando o próprio fazer documentário 62 No contexto de repressão da ditadura militar Vladimir Carvalho não poderia filmar no cenário dos conflitos das Ligas Camponesas como desejaria Porém para abordar as contradições do Nordeste poderia ir para o sertão enfrentando a propaganda ufanista da ditadura militar opondose à ideologia da história oficial Sobre essa iniciativa comenta Mattos Havia tempos cultivava o germe da idéia de um documentário sobre as contradições das relações de produção na Paraíba sobre a exploração do homem disfarçada nos informativos do governo e da Sudene ou escamoteada no falso conceito de Novo Nordeste Mas a hora não aconselhava movimentos bruscos Meros dois anos após a experiência das ligas camponesas o Cabra Marcado pra Morrer e o golpe de 1964 era ainda temeroso filmar na vigiada zona dos canaviais Pensei então no sertão profundo área do algodão e da pecuária onde a imobilidade econômica perpetuava um quadro de miséria e uma prática rural bastante primitiva MATTOS 2008 p113 Carvalho continua um trabalho que procurará denunciar as injustiças sociais de sua terra de origem vinculadas a sua formação marxista oriunda de suas experiências no CPC e no jornal do Partido Nesse processo ainda com a lembrança viva das dificuldades enfrentadas neste episódio Carvalho opta por ir ao sertão afastandose da região litoral nordestina cenário das Ligas Camponesas Mudança de tema não por mera intencionalidade mas por circunstâncias políticas Há que se ressaltar uma significativa mudança no cenário político e cultural de até então Mário Ortiz Ramos indica como na década de 1960 a questão nacional era pensada em termos de aliança de classes ou de frente política e cultural porém na década de 1970 é o Estado que comanda a questão nacional elidindo obviamente a relação classe nação arvorandose a guardião de uma comunidade indivisa seus interesses tomados como os interesses de todos O nacional e a realidade nacional são vistos como dois todos harmoniosos que não apresentam nem conflitos internos e nem se contrapõem em seus fundamentos à dominação externa RAMOS 1983 p 93 Dessa forma com o AI5 a produção cinematográfica documentária de cunho social encontrou grandes obstáculos esbarrando em um sistema ideológico e estatal que lhe vetou os parcos recursos e lhe censurava a produção em nome de uma unidade nacional Por isso ao tentar conseguir recursos com o governador João Agripino Filho Vladimir Carvalho não conseguiu atribuindo à censura em bloco do regime À época para sobreviver mais uma vez Vladimir Carvalho voltase para o jornalismo escrevendo para o Correio da Paraíba CARVALHO Apud Marinho 1998 p 95 Vladimir Carvalho resolveu então ir ao sertão para fazer um filme sobre o trabalho 63 desenvolvido por Antônio Mariz na prefeitura de Sousa mas acaba assumindo outra proposta a hipótese de roteiro nas palavras de Gauthier de um trabalho sobre os meios de produção no sertão Assim antes das filmagens de O Sertão do Rio do Peixe Vladimir Carvalho realiza outro trabalho como indica Mattos escrevendo em primeira pessoa Consultando amigos e influências acabei por chegar a Antonio Mariz ex vicepresidente da UNE e então prefeito petebista varguista do município de Sousa no extremo oeste do estado Ele me contratou para filmar o desfile de Sete de Setembro em Sousa com uma câmera Bell Howell pertencente ao Serviço de Cinema Educativo Exibimos o pequeno registro em praça pública e satisfeito Mariz acenou com hospedagem uma viatura e algum dinheiro para os negativos com que eu começaria a filmar a região MATTOS 2008 p114115 Assim houve uma estratégia para além da mera amizade para conseguir o apoio de Mariz realizando uma espécie de serviço mostrando seu trabalho inicialmente com o registro do Sete de Setembro em Souza A hospedagem viatura e o dinheiro eram insuficientes e os negativos foram conseguidos com trabalho A câmera emprestada pelo Serviço de Cinema Educativo era quase imprestável CARVALHO 1986 p128 Esse apoio não viabilizaria por completo a produção do filme gerando a necessidade de diversas soluções para a falta de instrumentos que permitissem uma produção mais sofisticada Uma citação de Mattos em primeira pessoa ajuda a exemplificar essa característica das filmagens Filmávamos do jeito que fosse possível ora com negativos de várias marcas e procedências ora com película sem qualquer indicação Um lote que comprei soube depois era de filmes vencidos do consulado dos EUA em Recife Isso resultou numa imagem muito precária que bem ou mal assumimos como dado estético Eu não diferenciava muito o filme de um certo artesanato que no Nordeste é feito do lixo industrial Certa feita esquecemos por algumas horas várias latas de filme sobre um lajedo expostas ao sol resultando na alteração química do material já filmado MATTOS 2008 p115 Os negativos obtidos provavelmente a baixo custo pois seus recursos eram limitados foram problemáticos pois com diversas procedências e sem poder negligenciar material houve até a utilização de negativos vencidos e de qualidades distintas Essa montagem precária foi assumida como dado estético prática que já presente em outros filmes realizados com recursos limitados como Vidas Secas ou Aruanda74 Alguns eventos 74 Vidas secas é uma adaptação do romance de Graciliano Ramos para o cinema de Nelson Pereira dos Santos Foi também realizada com limitados recursos embora com mais recursos provavelmente que O País de São Saruê A estética da miséria do cinema paraibano influenciou o Cinema Novo Soluções estéticas como essas eram parte de uma tendência do cinema que procurava assumir a miséria terceiro mundista 64 inesperados também influenciaram o filme como a exposição dos negativos ao sol já que não podiam refazer as filmagens Esses contratempos também foram assumidos como dado estético A afirmação de Vladimir Carvalho que enxergava no filme algo do artesanato nordestino feito com lixo industrial visto que o cinema é uma arte industrial é bem emblemática do que era fazer esse cinema com poucos recursos todo o material era válido e a precariedade do filme se tornava parte da própria composição da história desse filme mas também relacionando tal qualidade à região As dificuldades em se fazer arte e cinema enfrentadas por artistas nordestinos se torna outro dado75 Ainda outros aspectos da produção merecem indicação a fim de deixar claros outros dados dessa precariedade de recursos e suas soluções estéticas A não disposição de recurso ao som direto para fazer entrevistas como as realizadas em A Opinião Pública levaram Vladimir Carvalho solucionar a questão com a inauguração do que chamou de som indireto ele gravava os sons das personagens em outro espaço separadamente e incluía com as imagens sem sincronia alguma Outra solução foi necessária para obstáculos pela ausência de instrumentos para fazer a iluminação em lugares fechados e escuros que não tinham acesso à luz elétrica Assim Vladimir Carvalho para filmar nos casebres escurecidos pela fuligem da lenha queimada só contavam com a iluminação natural que procuravam reforçar retirando algumas telhas ou usando rebatedores76 estes últimos feitos com lousas de grupos escolares de Souza que a equipe cobria com papel metalizado MATTOS 2008 p116 Em 1966 e 1967 nas épocas de estiagem gravou três horas de filme que compõe O Sertão do Rio do Peixe 1968 médiametragem que foi ampliado mais tarde tornandose O País de São Saruê77 Quando retorna ao Rio de Janeiro com os copiões para montar os filmes A Bolandeira e O Sertão do Rio do Peixe Vladimir Carvalho passa uma difícil fase financeira com família morando no subúrbio e ganhando um salário de gari nas redações dos jornais CARVALHO Apud LEAL 2007 p183 O Sertão do Rio do Peixe foi exibido na Maison de France e foi selecionado para o 75 Em outra entrevista Vladimir Carvalho se comenta sobre uma ajuda de custo conseguida com um amigo para ir ao Rio de Janeiro realizar a montagem de Sertão do Rio do Peixe Com auxílio de outro amigo Virgínius da Gama e Melo consegui uma pequena ajuda financeira e voltei para o Rio em princípios de 1968 Então com esse material e com as entrevistas realizadas eu montei uma versão do filme de cerca de cinqüenta minutos que se chamou Sertão do Rio do Peixe CARVALHO Apud Marinho 1998 p95 76 Instrumento pelo qual se utiliza uma luz indireta fazendo com que algum instrumento receba uma luz artificial ou natural e reflita sobre aquilo que se quer filmar 77 Antes de realizar O Sertão do Rio do Peixe Vladimir Carvalho finaliza o curta A Bolandeira que foi sua primeira experiência como diretor A história aborda a produção da cada de açúcar em engenhos de madeira no sertão da Paraíba mostrando suas origens históricas seu processo de trabalho e circulação de seus produtos na feira O filme se utilizou das gravações realizadas para o filme até que Carvalho viu que ali possuía um filme independente 65 Festival de Viña del Mar no Chile e também em uma mostra organizada pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna Vladimir Carvalho pôde ir para o Chile e seu festival onde conheceu mais do cinema latino e fez contatos com outros cineastas mas isso só foi possível porque teve direito à passagem visto que sua situação financeira não permitia grandes gastos Comenta sobre isso Vindo do Chile fiz vida normal no Rio trabalhando no Diário de Notícias Vivia muito mal estava ruim de vida porque o cinema que pretendia fazer não dava camisa a ninguém Isso em 1968 1969 Não tinha recursos não tinha como me sustentar com o salário do Diário de Notícias falido até o último pingo de chumbo CARVALHO apud MARINHO 1998 p96 No segundo semestre de 1969 no entanto aparece uma saída para suas dificuldades financeiras Vladimir Carvalho é convidado por Fernando Duarte78 que na época dava aulas no curso de cinema da Universidade de Brasília UnB para ir trabalhar com ele na universidade a fim de fundar um centro de produção de documentários MATTOS 2008 p155 MARINHO 1998 p97 Comenta Wills Leal A ida para Brasília permitiu ao cineasta uma certa estabilidade o que não tinha tido até então LEAL 2007 p182 Cabe o comentário de Carvalho sobre sua reação ao ser convidado para Brasília Aceitei incontinenti pois o tipo de cinema que queria fazer só poderia ter continuidade sob a proteção de instituições de organismos que pudessem nos subvencionar olhando mais o aspecto cultural do que o comercial Eu já havia percebido que a política do INC em relação ao curtametragem não ia dar em nada eu me endividara com A Bolandeira CARVALHO apud LEAL 2007 p183 Já em Brasília retoma várias vezes à Paraíba a fim de ampliar O Sertão do Rio do Peixe para o que se tornou O País de São Saruê Apenas na segunda viagem filmou as cenas adicionais que tornaram possível a montagem de O País de São Saruê No processo final até as filmagens realizadas na cidade de Souza do comício de Sete de Setembro foram incluídas As filmagens de Vladimir Carvalho para o filme foram feitas em algumas etapas primeiro as duas viagens em 1966 e 1967 quanto captou o material que rendeu o média metragem Sertão do Rio do Peixe Após esse filme sentiu necessidade de ampliar o filme realizando O País de São Saruê Com a estabilidade oferecida pelo trabalho como professor na UnB Vladimir Carvalho pode continuar o projeto de seu filme retornando com recursos 78 Fernando Duarte carioca nascido em 1937 foi o fotógrafo da primeira tentativa de realizar Cabra Marcado pra Morrer e foi assistente de câmera em Cinco Vezes Favela 1961 Fez parceria com Vladimir Carvalho em várias atividades na UnB e em filmes nos documentários Vestibular 70 1970 O Espírito Criador do Povo Brasileiro 1973 Itinerário de Niemeyer 1973 A Pedra da Riqueza 1975 Mutirão 1976 e Conterrâneos Velhos de Guerra 1990 66 próprios CARVALHO 1986 p129 Em 1970 fazem as filmagens da sequência dos minérios quando intuí a visão de um país à margem potencialmente rico mas vivendo na mais crassa pobreza CARVALHO 1986 p129 Temos aqui outro indicativo de que a hipótese de roteiro era desenvolvida durante as próprias filmagens as quais geravam novas ideias novas possibilidades de prosseguimento do filme Cabe ressaltar que o documentário não é apenas formado pelas filmagens in loco mas por uma série de outros documentos e materiais oriundos de pesquisa encomenda ou do acaso Com relação ao material visual temos as filmagens os letreiros fotografias pinturas e jornais As filmagens podem ser realizadas in loco ou também de arquivo como o é indiretamente planos filmados para Antônio Mariz em registro que acabaram sendo utilizados pelo documentário Chamamos de letreiros as imagens de comunicação essencialmente verbal escrita de alguns planos Elas são os recursos mais literais do documentário incluise aqui créditos informações sobre a remasterização ou inserção de informações sobre a realidade e o documentário Com relação às fotografias estão incluídas fotografias profissionais as realizadas in loco como algumas fotografias realizadas por Walter Carvalho conjuntamente com a filmagem na sequência sobre extração mineral e que estão sobrepostas encontradas in loco como as fotografias já existentes na Fazenda de Acauã a fotografia de Getúlio Vargas no gabinete de Antônio Mariz ou as fotografias de arquivo de uma enchente muitas conseguidas pelo diretor com famílias sertanejas Pinturas a exemplo da imagem de São Miguel Arcanjo na casa de um popular ou de Nossa Senhora na capela de Acauã Cabe reforçar que estamos nos referindo às fotografias que são inseridas na totalidade do ecrã tornandose um plano fílmico sejam inteiras ou em detalhe Os jornais por fim aparecem em vários momentos inserindo imagens ou elementos verbográficos com apelo histórico e documental como o jornal que fala da convocação do Vietnã durante a entrevista com o voluntário estrangeiro Charles Foster que vive no sertão Quanto aos materiais sonoros temos música sons artificiais declamação de poesia locutor em voz over e entrevistas Em música temos diversos elementos desde rock música da jovem guarda ou o som de uma rabeca Podemos dividir em três grupos música popular a cantoria do vaqueiro José de Arimatéia por exemplo música de estúdio como Acauã de Luís Gonzaga e música encomendada para o filme como a música tema de O País de São Saruê produzida por Marcus Vinícius e José Siqueira Chamamos de sons artificiais sons que são inseridos na montagem embora busquem oferecer a sensação de que são os sons escutados durante as filmagens por exemplo temos o som de sinos de gado quando são exibidos bois porém não houve gravação do som in loco sendo essa uma construção realizada na montagem declamação de poesia na voz de Echio Reis de uma poesia encomendada para o 67 filme a João Moraes Souto que entra nos materiais utilizados pelo filme mas que não é nem necessariamente auditivo ou visual embora apresentado da primeira forma Temos também o locutor em voz over na voz de Paulo Pontes que oferece informações do filme elaboradas pelo diretor E por último as entrevistas inseridas em som indireto ou seja não sincronizadas com a imagem que são de pioneiros do ouro Pedro Alma Zeca Inocêncio e Suassuna do usineiro Gadelha e do prefeito de Sousa Antônio Mariz As sequências de O País de São Saruê Dividimos o filme em treze sequências entre as quais ignoramos uma que foi inserida com a digitalização do filme pois não foi pensada por Vladimir Carvalho no período que analisamos79 Apresentar essa sistematização é importante pois justifica nossas escolhas temáticas e a divisão do documentário em grandes unidades significativas Como afirma Jacques Aumont a divisão do documentário em sequências é uma convenção da crítica que detém um lado arbitrário Para dividir um filme em partes recorrese a elementos do próprio enredo e do filme ao sabor dos temas para a análise que se quer construir Como dito elencamos o critério de elementos de conteúdo e da linguagem que nos oferecem pistas de uma coerência entre as partes passível de ser identificada por raccords e também pela conclusão de pequenos temas que formam o discurso ou a narrativa maior Usamos também como base a própria divisão como indicamos do Vladimir Carvalho no copião para Jomar Moraes Souto orientando de forma extra fílmica essa empreitada Guy Gauthier indica que para analisar o caráter ficcional e documental de um documentário fazse necessário analisar sua cadeia documental que consiste em observar o projeto do filme a filmagem a montagem e o dispositivo espectatorial Essa análise é apresentada posteriormente no decorrer da dissertação Na presente etapa apresentamos o projeto do filme ou seja a hipótese que norteou Vladimir Carvalho para as filmagens em vez de um roteiro Diferente de um filme ficcional que comumente se pode prender a um roteiro 79 Shirly Ferreira de Souza em sua dissertação O sertão como dado São Saruê como aspiração o documentário O País de São Saruê entre a utopia e a política 2010 discute os processos de silenciamento da censura a partir de O País de São Saruê Os créditos que iniciam o filme nessa ótica são importantes para a autora que diz Assim a ação dos militares e a censura produziram silenciamentos na produção de sentidos desses sujeitos por meio de seus filmes No entanto como reflete Orlandi não há força que pare o silêncio Ele se desloca para outro lugar ou outro tempo carregando a marca da interdição Tanto em Cabra 84 como em O País de São Saruê esse deslocamento de sentido está explícito na própria película No primeiro como parte da trama o reencontro do cineasta com seus personagens Só ele poderia voltar e filmar os participantes de Cabra 64 A força do filme está justamente no silêncio que os militares impuseram aos jovens barbudos pois ele se calou temporariamente voltou a falar quando foi possível em 1984 No segundo foi inserido nos créditos iniciais do filme a interdição pelo qual passou Assim enquanto eles durarem seja no suporte em película ou em DVD serão testemunhas do processo de silenciamento ao qual foram submetidos 2010 p84 68 prévio o documentário parte de uma hipótese de problema pesquisa e até mesmo de roteiro mas este último só vai se definindo no decorrer das filmagens e no processo de montagem Isso justifica que Vladimir Carvalho diga que foi filmar ao afresco ou seja filmando um tanto por acaso o que encontrava Isso fica mais flagrante com o curta A Pedra da Riqueza e a Bolandeira que foram filmes elaborados em função das imagens coletadas pelo diretor que não esperava necessariamente encontrar os temas desses filmes O mesmo aconteceu em outros filmes como a denúncia de um massacre de candangos em Conterrâneos velhos de guerra que forneceu outros elementos para o documentário Tais eventualidades demonstram que um filme especialmente o documentário e particularmente desse documentarista são construídos no próprio processo Em O País de São Saruê não foi diferente e da hipótese de roteiro ao resultado final muita coisa se alterou no processo A partir destes elementos da cadeia documental o projeto do filme e suas filmagens acreditamos que se afirma o caráter mais documental que ficcional do filme Mattos comenta em primeira pessoa sobre as duas primeiras viagens para as filmagens do que renderia O Sertão do Rio do Peixe e O País de São Saruê que não havia roteiro mas apenas anotações e a intenção de espelhar o passado com o presente Eu sabia que encontraria fósseis do que aconteceu um ou dois séculos atrás 2008 p115 Não havia um roteiro mas uma hipótese de roteiro anotações esparsas No entanto isso não quer dizer que o filme foi todo feito ao acaso mas que havia ideias oriundas de uma pesquisa anterior ou de como seria o documentário Um espelhar do passado e do presente é passível de identificação no resultado final de O País de São Saruê Em entrevista a Carlos Mattos nos extras de O País de São Saruê Carvalho comenta o processo de formação anterior ao filme que lhe influenciaram para fazer o documentário O cineasta comenta que lê ao menos duas vezes por ano Os Sertões Comenta ainda sobre seu desejo de registrar aspectos de uma civilização que não mudara na sua forma desde a colônia e que desaparecia naquela época Outra leitura importante foi a de Capistrano de Abreu como consta em algumas de suas entrevistas e na sua biografia realizada por Mattos O historiador realiza em Capítulos de História Colonial 1907 uma obra que aborda as origens do sertanejo na mestiçagem entre índios e colonizadores Essa sua visão se aproxima da realidade presente em O País de São Saruê quando Carvalho informa nos letreiros iniciais sobre as origens daquela região Outra leitura importante foi a de João Lélis O Garimpo de São Vicente indicada por Mattos em primeira pessoa 69 Em 1970 decidi enfiarme na caatinga mais uma vez tendo em mira O País de São Saruê A essa altura eu já havia me mudado para Brasília e meu irmão Walter para o Rio Com ele na assistência de direção e no still e de novo com Manuel Clemente na câmera saí em busca daquilo que José Américo chamara de o país mineral Fui procurar o garimpo de São Vicente descrito em livro de João Lélis e encontrei uma cidadefantasma habitada por portadores de hanseníase 2008 p12580 O livro de João Lélis influenciou Vladimir Carvalho bem como a leitura de José Américo particularmente na busca da economia de extração mineral Isso nos serviu de fonte para pensar a formação do diretor e de seu discurso O País de São Saruê Porém cabe ressaltar que apesar desse conhecimento prévio a realidade o surpreendia no que ele encontrava Quando entrevista Gadelha por exemplo não se sabe exatamente o que dirá o sertanejo tampouco é garantido na viagem que encontraria o sertão tal qual pesquisou O roteiro é feito por uma hipótese que se altera no percurso Assim a busca pelo Garimpo de São Vicente revelou uma cidade fantasma que o documentarista não esperava encontrar Para pensar essa hipótese de roteiro um documento nos auxiliará o texto que serviu de mote para a produção da poesia de Jomar Moraes Souto Como vimos a declamação dessa obra por Echio Reis foi utilizada como trilha sonora em boa parte do documentário Quando Vladimir Carvalho mostra o copião do filme para o poeta havia já um roteiro elaborado após algumas filmagens e o material continha dez sequências81 Vladimir Carvalho a essa altura já fizera uma organização de algumas filmagens e facilitava a existência do médiametragem Sertão do Rio do Peixe O resultado no entanto ficou diverso do planejado aumentouse o número de sequências havendo exclusão de uma e inclusão de novas A sequência referente à produção de produtos da cana de açúcar foi retirada e dela Vladimir Carvalho fez o curta A Bolandeira Ela separava as sequências da capela de Acauã e de sua Casa Grande que ficaram juntas Na nossa divisão das sequências ficamos em dúvida entre mantêla como uma única sequência cujo tema era histórico e falava de Acauã de uma maneira geral Porém uma observação mais atenta mostra que elas possuem certa independência somada à tentativa de manter uma certa fidelidade à separação elaborada pelo 80 João Lélis 19091954 foi um historiador paraibano do IHGP nascido em Alagoa Nova Formouse em Direito no Recife em 1937 e trabalhou como redator e redator da A União e como diretor do Diário do Povo em 1929 cobrindo os movimentos revolucionários de 1930 Teve também uma atuação política chegando a participar em 1946 da Comissão que elaborou a Constituição do Estado da Paraíba Ingressou no IHGP em julho de 1946 Disponível em httpihgpnetmemorial5htmCADEIRA Nº 21 Acesso em 04Jul2014 Escreveu o livro O Garimpo de São Vicente 1946 no qual expõe aspectos sociais do surto de ouro ocorrido na microrregião do Piancó ao sul de Sousa na Paraíba Sua escrita no entanto não monstra fontes ou uma característica historiográficoacadêmica aproximandose mais da escrita do jornalismo 81 Uma sequência representa um conjunto de cenas com uma coerência interna a qual podemos atribuir um caráter de espécie de capítulo de um filme Geralmente possui um tema específico que junto dos demais monta uma narrativa mais ampla Estou me baseando no esquema de mote para a poesia de Jomar Moares Souto encomendada por Vladimir Carvalho para o filme Sendo essa uma divisão do próprio diretor achei pertinente utilizála para entender a estrutura do roteiro do filme 70 cineasta no citado documento optamos por separálas Através da análise de seus elementos cinematográficos percebemos que há uma coerência estética e temática que as separa na primeira se fala da tristeza e do sofrimento e dos anseios do padre Luiz José Correia de Sá e de Frei Caneca82 Na seguinte falase da elite de Acauã em um tempo de riqueza de maneira saudosa Mostrase os progressos da região à época a chegada dos carros Ford e a existência das linhas férreas Essa separação temática poderia não ser satisfatória no entanto ambas possuem trilhas sonoras que as diferem quando não estamos ouvindo a declamação da poesia ou as informações sobre a região em voz over escutamos na Igreja soar de tambores em música pagã e na da elite uma polca animada Entre as duas há um raccord que as separa que é a imagem da Santa que gira vertiginosamente ao som de tambores até se corta para um plano da Casa Grande em silêncio Ao resultado as mantivemos como diferentes sequências Entendemos que a divisão do filme tem um caráter arbitrário e que deve buscar em elementos cinematográficos e temáticos uma divisão adequada como indicado pelos teóricos do cinema Jacques Aumont e Michel Marie Incluiuse duas novas sequências ambas falando sobre exploração mineral no sertão Elas mostram o ciclo do ouro e oferecem algumas informações gerais sobre a existência de extração de outros minérios como a bauxita e xelim na região Ainda nessas viagens mais material foi filmado rendendo o curta A Pedra da Riqueza outro filhote de O País de São Saruê Essas sequências décima e décima primeira não constam no esboço elaborado para Jomar Souto Moraes pois foram filmadas posteriormente A poesia não contempla essas temáticas Algumas passagens muito pequenas da poesia em relação às demais foram inseridas mas majoritariamente o áudio é oriundo de entrevistas em som indireto Outros elementos do roteiro original foram alterados e são passíveis de identificar pela comparação entre esse texto e o resultado disponível em DVD mas não nos ateremos a detalhálo mais pormenorizadamente tendo em vista que não é central para nosso objetivo Nossa divisão do documentário ficou assim Primeira sequência A terra Carvalho exibe imagens do terreno sertanejo seco e árido Traz informações históricas sobre a região identificando o processo de ocupação e colonização desse espaço identificando a opressão sofrida pelos indígenas Cariris e sua 82 Frei Caneca é um nome de prestígio no Nordeste pelas suas referências históricas de líder político e religioso sendo relacionado à Revolução Pernambucana de 1817 Acauã foi propriedade do padre Luiz José Correia de Sá que participou da revolta de 1817 e que chegou a abrigar o frei Caneca o revoltoso frei Caneca em 1824 Sobre a importância histórica de Acauã há menções nos sítios do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional IPHAN e no sítio do Patrimônio de Influência Portuguesa HPIP ressaltase o caráter histórico e arquitetônico da fazenda de Acauã que foi propriedade da família Sá até 1928 Endereços httpwwwhpiporgDefaultptHomepageObraa954 Acesso em 28072014 e httpwwwiphangovbransnettemaconsultaaspLinhatchistgifCod1507 Acesso em 28072014 71 resistência Ela tem função de introduzir o espectador no espaço físico no qual a realidade social será apresentada pelo documentário ao mesmo tempo o faz estabelecendo uma gênese começando a contar a história desse espaço e de seu povo Segunda sequência o homem e a luta é exibida a ocupação da terra pelo homem Inicialmente vemos camponeses limpando o terreno depois construindo casas depois a câmera mostra uma fazenda e a criação de caprinos o pastoreio casarões pessoas pilando Na terceira sequência mostrase o mundo animal ou seja o trabalho do vaqueiro seu canto e seu cotidiano vaquejando pelo mato tangendo o gado amansando bois brabos Exibi se a transformação desse trabalho em folguedo pela arte o bumbameuboi o cavalomarinho Na conclusão o tema da seca é colocado através da apresentação da morte de um boi tempo das perdas seca na terra e na alma CARVALHO 1986 p19 Essa sequência indica a humanização do espaço e é dividida pelo momento de criação o trabalho que cria cidades etc a luta do cotidiano a morte a seca o boi morto e a sublimação dessa vida em arte Quarta sequência mostrase a capelinha da fazenda de Acauã A narração historiciza a casagrande de Acauã seu apogeu e relação com a revolução de 1817 Também se indicou os aspectos religiosos mostrando uma capela e sua arte O poema se refere ao Padre Sá revolucionário dono de Acauã CARVALHO 1986 p19 Quinta sequência mostra elementos restantes da cultura material da casa grande de Acauã Mostrase fotos e remetese ao cotidiano da elite que vivia ali e o processo de modernização pelo qual passou a região Estabelece ao final algumas referências à população humilde estabelecendo um contraste Sexta sequência mostra a produção algodoeira no sertão e a miséria e pobreza que estavam submetidos seus camponeses Essa exibição é particular mas ao mesmo tempo generalizante pois não se refere unicamente aos trabalhadores desse tipo de atividade O tema aqui é a exploração do homem pelo homem que se manifesta na informação sobre como ocorre essa produção a pobreza em que vivem os trabalhadores a rusticidade do trabalho a pesagem do algodão remetendo à desigualdade e à injustiça na região e também à religiosidade sertaneja como alusão à luta do bem contra o mal Sétima sequência inicialmente mostra José Gadelha e sua situação na exploração do homem pelo homem Após a sequência anterior mostrar a vida do camponês emerge o latifundiário A luta de classes é sugerida particularmente pela montagem Oitava sequência mostra a feira de Sousa a babel nordestina Mostra pobreza e inserção dos bens de consumo estrangeiros no sertão as mudanças de uma modernidade recente e o declínio da civilização do couro um forte contraste entre o arcaico e o moderno Nona sequência entrevista com Charles Foster do Peace Corps formado em 72 ciências políticas que veio ao sertão fazer trabalho voluntário Carvalho aproveita para indicar conexões à guerra no Vietnã ligando a realidade do sertão aos conflitos políticos mundiais Décima sequência mostra a extração do ouro no sertão através de entrevistas com pioneiros desta época ou seja de 1940 quando se descobria ouro por acaso no sertão enquanto a guerra se desenrolava na Europa A primeira entrevista é com Pedro Alma que fala sobre a riqueza grande que existia e de como fazia para retirar ouro o documentário mostra de maneira fabulosa contrastando com a descrição histórica ou sociológica de até então Também entrevista o humilde Zeca Inocêncio que não trabalhou diretamente no ouro mas descreve as coisas que viu na exploração do ouro Décima primeira aborda a extração mineral no sertão de materiais como a bauxita caulim e xelita e apresenta as tentativas de Chateaubriand Suassuna em Catolé do Rocha de conseguir algum minério em sua fazenda Décima segunda sequência mostra a dificuldade de governar no sertão e faz uma apresentação das causas dos problemas enfrentadas no sertão Contrapõese no discurso verbal a problemática climática a desigualdade social e a questão política como obstáculos para o desenvolvimento da região É também uma sequência na qual as imagens buscam comover o espectador ao drama vivido pelos sertanejos cheias secas ausência de atendimento médico etc Conclui no entanto com palavras de esperança de Mariz Décima terceira sequência conclui o filme com espécie de síntese em contínuo giratório Traz as imagens construídas durante o filme concluindo com o lamento sertanejo e a silhueta de um camponês atirando ao sol seu inimigo ou seria ao gavião que observou tudo do alto e cuja montagem alude ao avião de José Gadelha e a poesia ao gavião que levou a riqueza para dentro de um cercado Esta cena dotada de intensa carga metafórica é um dos objetos de conclusão de nossa análise Por essa descrição superficial do documentário identificamos alguns temas importantes a seca as dificuldades e adaptações feitas pelo homem para viver no sertão a pecuária agricultura e extração mineral a luta de classes a ocupação histórica e social do território semiárido as condições de trabalho e sobrevivência no sertão contemporâneo ao filme o declínio da cultura popular o imperialismo o problema político e econômico para o desenvolvimento da região etc Em geral esses temas se relacionam com o debate sobre o Nordeste realizado pela esquerda e pelo Partido Comunista Brasileiro especialmente na década de 1960 A representação dos conflitos agrários no sertão em O País de São Saruê se liga às concepções de campo e Nordeste especialmente semiárido da esquerda comunista e da influência cepalina e furtadiana O latifúndio por exemplo é um tema que seria pensado o campo em geral porém há os problemas mais específicos da região e mais indicados como 73 presentes na região semiárida o problema climático e o atraso dos meios de produção por exemplo Esse será nossa base de articulação na segunda parte de nossa análise Em entrevistas e textos que comentam o filme no entanto outras produções culturais se mostraram importantes para a compreensão do filme e constam no trabalho Utilizamos outras referências importantes durante nossa análise o documentário O Homem de Aran 1934 de Robert Flaherty Os Sertões 1902 de Euclides da Cunha Capítulos de História Colonial 1907 de Capistrano de Abreu dentre outros A fim de fazer um recorte mais preciso que permita uma análise melhor delimitada concentramonos nos seguintes temas o sertão e o sertanejo lidos a partir da matriz discursiva euclidiana a representação do mundo do trabalho relacionando à teoria e imaginário marxistas e a questão agrária ou seja as dimensões políticoeconômicas que obstaculizam o desenvolvimento do semiárido nordestino83 Esses temas procuram ser interpretados à luz das discussões contemporâneas ao filme almejando interpretar o filme na sua historicidade Esse olhar nos permite enxergar que Vladimir Carvalho elabora uma representação do sertão e do sertanejo especialmente do trabalhador sertanejo que mescla uma pluralidade de leituras e fazeres culturais mas centrada no mundo do trabalho e na questão agrária pensados pelo PCB O filme não chama de camponês os trabalhadores da agricultura assim como apresenta operários na indústria do algodão ou pioneiros do ouro que não se encaixariam nessa categoria Em geral falamos em sertanejos pensando no popular sertanejo vaqueiro agricultor operário fazendo ressalvas ao aparecer figuras como José Gadelha um latifundiário também sertanejo de origem geográfica e identidade cultural semelhante A rigor não era consenso para os comunistas uma definição do que tornava alguém camponês tal debate é extenso e não há referência ao termo no documentário enfocamos portanto nos elementos discursivos do documentário sem aprofundar discussões pecebistas que não fossem auxiliar na compreensão do discurso fílmico84 Pretendemos assim mostrar como uma cultura cinematográfica um fazer estético fílmico pode ser entendida pelo 83 Houve um discurso que explicava esse fenômeno pelo viés climático Na década de 1950 emerge a denúncia da estrutura agrária e da indústria da seca Outros estudos apontam como outros setores como a atuação de empresas estrangeiras investimento em uma economia de exportação apropriação de divisas pelo setor mercantil ou a própria tarifação de produtos importados influenciaram nesse processo Se a concentração fundiária é um dos principais obstáculos ele não explica por completo os problemas enfrentados no semiárido nordestino Essa discussão é apresentada no quarto capítulo 84 Uma boa coletânea de documentos que exemplifica essa profusão de ideias é A questão agrária lançada pela Editora Expressão Popular Nos diversos textos apresentamse explicações de cunho histórico e econômico que se aproximam e depois se distanciam nos critérios para estabelecer as definições do que seriam camponeses e para definir as relações de trabalho com o latifúndio Além disso ao cruzar com outras discussões da sociologia como a respeito da relação do camponês com sua identidade esse debate se torna ainda mais complexo pois os comunistas pretendiam oferecer uma identidade que também se relacionasse com uma já existente na região daí a tentativa de entender as categorias regionais como foro cambão a partir de termos próprios trabalho assalariado relações feudais etc Essa discussão é realizada no quarto capítulo 74 arcabouço e debate político contemporâneos a seu diretor uma cultura política Elegemos sequências que representaram maior importância aos temas eleitos Trabalhamos com as sequências iniciais que mostram o espaço sua ocupação e o mundo da pecuária e da agricultura sequências 01 02 03 06 e 07 e que sintetizam o debate apresentado sequências 01 12 e 13 Mostramos como Vladimir Carvalho introduz inicialmente a região e seu trabalho traçando um panorama social e histórico do sertão e o trabalho que nele o homem exerce para sobreviver depois indica os conflitos climáticos e de classe ali existentes para por fim apresentar o que considera o mais grave impedimento ao desenvolvimento da região a questão agrária ou latifundiária Tendo em vista nossos objetivos temáticos elegemos algumas sequências organizadas nos capítulos seguintes para nossa análise do discurso do filme Para entendermos o discurso de O País de São Saruê a partir de uma estetização cinematográfica de elementos oriundos de uma cultura política e literária elegemos a representação de sertão e sertanejo no documentário Nossa hipótese é de que o eixo central dessa representação é o mundo do trabalho este é o centro da discussão do quarto capítulo Nele analisamos a representação do sertão e do sertanejo pelo mundo do trabalho a partir da apresentação inicial do sertão e do trabalho de seus habitantes Problematizamos essa construção cinematográfica a partir de seus elementos estéticos cruzando com a literatura e elementos da cultura marxista Nesta etapa um de nossos interlocutores principais foi Os Sertões de Euclides da Cunha Focamos nas quatro primeiras sequências nas quais há uma introdução do espaço e de seus trabalhadores No quinto capítulo aprofundamos o caráter da discussão política para o desenvolvimento da região servindose de documentos do PCB e do CPC e das publicações de alguns dos intelectuais do partido como Alberto Passos Guimarães e Caio Prado Júnior A análise dos elementos discursivos cinematográficos foi feita a partir desse corpus focando nas sequências do algodão na qual se apresenta mais fortemente o tema da luta de classes e se entrevista o latifundiário José Gadelha e as últimas sequências particularmente a que possui uma entrevista com Antônio Mariz que comenta longamente sobre o problema do subdesenvolvimento sertanejo 75 Capítulo 4 A terra de São Saruê o espaço e os homens 41 A análise do filme semiótica cinema e história Os enredos de documentários geralmente assumem etapas comuns a outras modalidades narrativas a apresentação do espaço o cenário e dos personagens de conflitos e de um desfecho Em O País de São Saruê as primeiras sequências introduzem seus protagonistas o sertão e os sertanejos A construção estética dessa etapa é o alvo da análise deste capítulo Podemos afirmar que o filme constrói uma narrativa que se baseia também em certa dualidade Nossa chave interpretativa o marxismo embora busque uma dialética também se serve largamente de muitas tradições de construção dualista Utilizamos o método interpretativo do quadrado semiótico do teórico Algirdas Julius Greimas que trabalha com dualidades Este método é essencialmente interpretativo e nos serve para problematizar a estética de O País de São Saruê Buscamos entender o documentário pela articulação entre estética e conteúdo preocupados em identificar elementos políticos presentes Interessamonos mais pela realidade construída pelo filme sua representação que pela confirmação ou não dos seus elementos históricos Utilizamos a semiótica greimasiana a partir da adaptação de Antônio Pietroforte em Semiótica Visual os percursos do olhar 2012 na qual o autor sistematizou e aplicação do percurso gerativo de sentido e do quadrado semiótico Pietroforte faz ainda diversas análises semióticas em pinturas fotografias esculturas dentre outras linguagens Utilizamos sua proposta e metodologia adaptandoa para a análise de O País de São Saruê Outra contribuição que nos auxiliou a fundamentar essa escolha pela semiótica foram considerações do Grupo µ ao pensar em uma teoria própria para a imagem85 A obra Traité Du signe visuel pour une rhétorique de limage 1992 escrita pelo grupo afirmam que a função semiótica não é buscada exclusivamente na relação entre significante e significado mas na relação estabelecida entre eles uma articulação ambígua qualidade central e objeto para a análise GRUPO µ 1993 p 24 Baseado na psicologia Gestalt os estudiosos desse grupo afirmam que a forma não é natural não existe por si mesma mas é percebida Ela é uma ordem do espírito humano um modelo sendo a ordem uma coincidência parcial ou total do que é percebido como 85 O Grupo µ 1967 agrupa de maneira intedisciplinar linguístistas e semiólogos da Universidade de Lieja na Bélgica Foi formado inicialmente por Jacques Dubois Francis Édeline JeanMarie Klinkenberg Philippe Minguet Francis Pire Hadelin Trinon Esse símbolo µ remete a inicial da palavra metáfora O grupo representou uma das tentativas dos anos 1960 de propor uma teoria espécie de gramática própria da imagem Utilizamos a tradução espanhola de Traité du Signe visuel pour une rhétorique de limage 1992 titulada Tratado Del signo visual para una retórica de la imagen 76 um modelo deduzindo que a imagem pode ser ordenada para um espectador que possui um modelo e não para aquele que não o possui GRUPO µ 1993 p 37 86 Buscar os modelos estéticos e matrizes de discursos também modelos e entender sua articulação se torna o objetivo central de nossa análise pois podem ser entendidos como parte de uma moldura histórica A semiótica greimasiana se apresenta como uma ferramenta útil O método de análise de imagens de Greimas propõe e distingue plano de conteúdo e plano de expressão Esses planos são definidos por Pietroforte de maneira geral como O plano de conteúdo referese ao significado do texto ou seja como se costuma dizer em semiótica ao que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz O plano de expressão referese à manifestação desse conteúdo em um sistema de significação verbal não verbal ou sincrético PIETROFORTE 2012 p 11 Para o Grupo µ o plano da expressão e o de conteúdo seguem regras em cada semiótica particular Ao propor uma semiótica visual afirma que a expressão será um conjunto de estímulos visuais e o conteúdo será simplesmente o universo semântico 1993 p 4187 A distinção para fins analíticos entre forma e conteúdo permite que articulemos a apresentação de uma realidade social do sertão de O País de São Saruê conteúdo com a estética a expressão forma pela qual Vladimir Carvalho problematiza tal conteúdo No âmbito historiográfico é comum se visar apenas o plano de conteúdo preocupandose com o que se diz e sua validade No entanto adotamos a proposta da História Cultural procurando as maneiras pelas quais grupos neste caso artistas ligados à esquerda oferecem uma visibilidade a temas em sua historicidade Assumimos a proposta de Robert A Rosenstone 2010 quando propõe maior análise das maneiras pela qual o cinema mostra temas históricos e a de Marc Ferro 2010 quando afirma a centralidade da estética e da linguagem cinematográfica para seu uso como fonte pelo historiador A semiótica visual se encaixou bem a nosso objetivo pois foge de um decalque da linguística às imagens procurando o que é específico no visual pois como afirma o Grupo µ é comum na explicitação do visual realizada de maneira verbal o esquecimento do significante visual esvaziando o estatuto semiótico da imagem 1993 p2288Entendemos uma 86 Llamamos orden a la coincidência parcial o total de lo percibido con un modelo de donde se deduce que una imagen puede ser ordenada para un espectador que posee un modelo y no para otro que no lo posee Es el lector el que hace la lectura 87 Tradução nossa En resumen para que se pueda hablar de semiótica hacen falta dos planos el de la expresión y el del contenido segmentados siguiendo reglas que varían com cada semiótica particular y que estos planos se correspondan En una semiótica visual la expresión será un conjunto de estímulos visuales y el contenido será simplemente el universo semântico 1993 p41 88 Cabe comentar que encontramos poucos trabalhos que articulem a semiótica greimasiana à história aliás a semiótica é pouco utilizada pelos historiadores Dentre os elementos das dificuldades teóricas próprias da semiótica também podemos explicar a pouca utilização por uma crença de que a semiótica é um instrumento que desconsidera o contexto Nesse sentido alguns autores que falaram sobre a semiótica de Greimas foram bastante elucidativos dada a complexidade teórica de utilizar essa ferramenta poderosa mas complexa As acadêmicas de 77 construção discursiva no documentário através de uma dimensão de expressão e de conteúdo contemplando a plasticidade dos planos e o princípio de que o cinema é imagem em movimento O modelo do quadrado semiótico visa representar as relações estabelecidas no percurso gerativo de sentido O sentido é estabelecido por uma rede de relações entre os elementos do conteúdo O quadrado semiótico por meio de operações de afirmação e de negação sistematiza uma rede fundamental de relações de contradição contrariedade e implicação Há também uma geração de um termo complexo gerado pela simultaneidade dos termos simples afirmados e um termo neutro gerado pela simultaneidade de suas negações PIETROFORTE 2012 p 14 A narrativa ocorre por meio de transformações quando um elemento se transforma em outro um gato com fome que come um rato e se transforma em um gato sem fome por exemplo Identificar essa transformação é parte do processo objetivado pelo modelo teórico a nível narrativo do percurso gerativo de sentido Uma ação que transforma elementos define um programa enunciativo Uma narrativa complexa é composta por diversos programas enunciativos Realizar um programa de base representa uma performance que para se realizar pode requerer outros programas de base Isso tudo se refere ao plano de conteúdo Todavia em muitos enunciados o plano de expressão não apenas expressa um conteúdo mas passam a fazer sentido sendo articulados a uma forma de conteúdo A isso chamamos de semissimbolismo Quando isto ocorre a análise buscará entender qual o conteúdo gerado e como se articula no plano de expressão Em nível de exemplo podemos relacionar ao conto Chapeuzinho Vermelho temos letras Ana Cristina Fricke Matte e Gláucia Muniz Proença sugerem que tomemos como texto a junção de um plano de conteúdo o do discurso estudado por meio do percurso gerativo de sentido com um plano de expressão verbal não verbal ou sincrético MATTE LARA 2009 p340 ou seja é no percurso gerativo de sentido na relação entre significado e significante que a análise identificará como se manifestam discursos seja na estética plano de expressão ou de conteúdo lembrando que ambos se mostram no próprio texto Isto quer dizer que em O País de São Saruê buscamos no próprio discurso fílmico a dimensão discursiva no quê e como diz Daí a conclusão das autores de que o contexto na semiótica é tomado como os outros textos em que o objeto em análise dialoga examinando tais coerções nos próprios textos e não como uma instância externa a que os textos remeteriam MATTE LARA 2009 p340 Nosso trabalho faz essa análise porém extrapola esse objetivo semiótico pois não se trata aqui de um trabalho de semiótica mas historiográfico articulando os resultados da análise semióticaestética a uma textualidade também externa Se a semiótica não nega essa dimensão histórica mas apenas optou por privilegiar uma dimensão intradiscursiva nós por nossa vez optamos por aqui utilizar instrumentos semióticos mas sem almejar a geração de sentido interna ao texto em si mas para um trabalho historiográfico ou seja mais contextual o que como vimos não é impossível Ainda sobre o tema da contextualidade possível na semiótica afirmam a semiótica possui recursos extremamente organizados para a análise do contexto Contexto sem esses recursos é um conceito vago e infinito impossível de ser analisado senão arbitrariamente Admitimos que a análise do contexto é sempre parcial e portanto é preciso definir que contexto estamos falando MATTE LARA 2009 p347 Sobre seu uso no âmbito da arte comentam ainda que os estudos semióticos são preponderantemente focados no plano da expressão o plano do conteúdo é geralmente abordado de forma bastante impressionista Em casos como esse a interdisciplinaridade é bastante profícua já que permite integrar os avanços dos estudos semióticos do plano do conteúdo com os estudos do plano da expressão provenientes do campo das artes sobre o objeto em questão MATTE LARA p348 Podemos sugerir que uma abordagem desse tipo interdisciplinar nada mais seja do que uma contextualização teórica do objeto que explora um contexto externo em textos teóricos ou um contexto situacional em textos sobre história da arte Cabe observar que se trata de uma contextualização bem mais complexa do que aquela que simplesmente insere novos objetos de análise MATTES LARA 2009 p348 78 duas possibilidades de programas de base levar os doces para a vovó ou ser comida pelo lobo No entanto para impedir a menina de chegar ao seu destino o lobo lança mão de uma tentação desviandoa de seu destino O lobo realiza uma de suas performances mas ela é apenas uma para realizar seu programa de base maior devorar a menina Ao final da fábula outros programas de base são acionados e o lobo termina na versão mais difundida pego pelo caçador que salva Chapeuzinho Vermelho e sua avó Entre a dualidade vida e morte a vida de chapeuzinho vermelho afirma a morte do lobo e vice versa Isto ficará mais claro durante nossa análise Cristina Pompa baseada em Michael de Certeau diferencia o lugar de um espaço o primeiro se refere a uma configuração de posições implicando certa estabilidade na coexistência de seus elementos o segundo é mais dinâmico animado por movimentos ali desdobrados é um lugar praticado transformado pelos relatos e pelas crônicas Pensamos o sertão em O País de São Saruê por essa perspectiva de como o documentário interpreta significa visibiliza esse espaço 42 O Sertão de Vladimir Carvalho A sequência que inicia O País de São Saruê utiliza três elementos letreiros filmagens de paisagem e a música tema do filme Os letreiros são alternados com planos que mostram um açude sertanejo no qual aves de arribação pousam e voam em bando daquele lugar Outros planos mostram a paisagem sertaneja seu céu e sua terra Somos apresentados rapidamente ao espaço sertanejo que será melhor desenvolvido durante todo o filme A música tema possui voz e violão em estilo regional Ela fala sobre um reino desencantado e de um gavião que levou a riqueza de um lugar deixando apenas as costelas do Eldorado A riqueza é referida como o algodão ouro prata diamantes À alegria de alguns é relacionada à tristeza de outros Além de reforçar o caráter regional das imagens pela estética da música sua letra introduz temas que serão desenvolvidos pelo documentário apropriação da riqueza por uns a riqueza na região seja por uma elite local ou pelo imperialismo As metáforas no entanto ficam mais claras ao final do filme após os temas serem desenvolvidos Essa canção abre e conclui o documentário por isso voltaremos mais detalhadamente na conclusão da análise O terceiro elemento são os letreiros Apresentados em estética de xilogravura ou seja com caráter regional eles introduzem mais explicitamente os temas e trazem informações históricas sobre a região Esse letreiro é um dos elementos mais literalmente históricos Ele apresenta a versão historiográfica para a gênese da região para em seguida na próxima sequência fazêlo de maneira poética Os dois primeiros parágrafos dos letreiros afirmam Êste filme é dedicado aos humildes lavradores vaqueiros tangerinos violeiros e 79 retirantes que muitas vêzes interromperam suas tarefas para nos ajudar a realizá lo Nos vales dos rios de Peixe e Piranhas no extremo oeste da Paraíba Nordeste do Brasil espalhase por cerca de 20 municípios numa área superior a oito mil quilômetros quadrados uma população estimada em 500 mil viventes O País de São Saruê Sequência 1 355 Já nos referimos no primeiro parágrafo ao caráter de baixo do documentário no capítulo anterior O segundo parágrafo oferece dados bem diretos e objetivos sobre o espaço das filmagens sua localização vales dos rios de Peixe e Piranhas no extremo oeste da Paraíba Nordeste do Brasil o tamanho do espaço e a quantidade de sua população Eles mostram a população indicada pelo documentário pois em vinte municípios se espalham 500 mil pessoas No parágrafo seguinte são inseridos dados mais históricos e interpretativos Ricos e pobres são todos descendentes de colonos portugueses aí chegados no século XVII e de índios que durante a conquista formaram a Confederação dos Cariris e foram dizimados pelos bandeirantes perdendo suas terras transformadas em datas e sesmarias CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 1 414 Somos apresentados à origem étnica e cultural da população colonos portugueses e os indígenas Ao mesmo tempo já é exibido o conflito entre esses dois grupos presente na dualidade entre os termos colonos e índios e reforçado pela afirmação que os últimos formaram a Confederação dos Cariris para se defender dos bandeirantes mas que perderam suas terras Apresentase a origem da população e da questão agrária A ocupação do território a época da América Portuguesa em torno do médio e baixo São Francisco e suas áreas vizinhas foi realizado a partir da economia colonial Houve assim uma separação entre litoral e interior naquele predominando a cultura da cana de açúcar pela proximidade com os cursos fluviais e dos portos de embarque e neste a pecuária cujo caráter expansivo se adaptou às regiões interioranas 89 A Paraíba da segunda metade do século XVII era povoada majoritariamente por índios MELLO 2013 p 79 de diversos grupos entre os quais se destacam os tupis cariris e tarairiús Na região das filmagens indicada no letreiro havia os dois últimos grupos de indígenas Cariri era um termo para designar inúmeras tribos e algumas estiveram às margens do rio do Peixe outro grupo os tarairiús também constava na região representada no filme no rio Piranhas MELLO 2013 p 7172 Para José Octávio de Arruda Mello foram os tarairiús os responsáveis pela 89 Chamamos de América Portuguesa ao cenário histórico habitado por indígenas e ocupado pelos colonos principalmente de origem portuguesa durante o período colonial O Brasil nação é uma construção posterior ocorrida com a vinda da família real e a mudança de status administrativopolítico de colônia para Império Com vista a tal discussão já realizada pela historiografia buscamos respeitála fazendo essa distinção em nosso texto Da mesma maneira se faz necessário distinguir o que chamamos hoje de Nordeste que é uma criação uma territorialização do século XX mas que não existia à época de ocupação do sertão 80 chamada Confederação dos Cariris a reação indígena na defesa de suas terras Isso gerou a Guerra dos Bárbaros de 1680 a 1730 Dizimados o autor afirma que os sobreviventes na maioria foram para o Ceará e o Rio Grande do Norte havendo na Paraíba menor contribuição indígena à civilização sertaneja que nesses estados p 78 Pedro Puntoni problematiza a ideia de uma Confederação dos Cariris e o próprio termo tapuia indicando que foi um termo bastante vulgarizado em manuais escolares que assumem uma percepção de que os tapuias do semiárido se resumiam em um só grupo étnico o dos cariris 2002 p 78 Indica que Irineu Joffily divulgou essa ideia e que ela foi partilhada pelo historiador Capistrano de Abreu p 7879 Sabemos que Capítulos de História Colonial 1907 escrita pelo último foi uma das leituras reconhecidas por Vladimir Carvalho para o entendimento do sertão O livro indica os conflitos entre colonos e indígenas no processo de colonização e ocupação do território sertanejo Podemos identificar assim como um discurso parte de uma cultura histórica e historiográfica mais tarde problematizada por autores como Puntoni90 Segundo Capistrano de Abreu havia uma maior parte de tronco Cariri entre as tribos Elas tiveram conflitos por não ceder suas terras ou por assaltos ao gado dos colonos Capistrano de Abreu afirma que estes conflitos foram menos sanguinolentos que os anteriores das bandeiras pois havia menor necessidade de braços para o trabalho e também não havia tanta repugnância a tal trabalho bem como existência de terras devolutas para onde os indígenas podiam migrar Mas ainda afirma que Entretanto muitos foram escravizados refugiaramse outros em aldeias dirigidas por missionários acostaramse outros à sombra de homens poderosos cujas lutas esposaram e cujos ódios serviram 2000 p152 Parece significativo que uma cultura históricahistoriográfica valorizava esse levante como um elemento que demonstrava a ação de enfrentamento dos indígenas Vladimir Carvalho nas leituras de Capistrano de Abreu parece ter abraçado essa ideia servindose da representação 90 O sertão foi explorado primeiramente pelas entradas das bandeiras em busca de ouro e pedras preciosas ou na caça de mão de obra indígena que se extinguia no litoral Durante muito tempo permaneceu uma visão romântica do bandeirante no entanto autores como Capistrano de Abreu foram críticos dessa visão mostrando a violência sofrida pelos indígenas que tiveram suas terras espoliadas Todavia também os indígenas foram alvos de mitificações Cristina Pompa baseada em Pedro Puntoni indica que a Confederação dos Cariris era mais produto do olhar europeu constando por isso na documentação colonial e chegando à historiografia indígena Houve um esforço do governo geral em formalizar a repressão aos diversos grupos indígenas chamados de Tapuias que também podem ser identificados com os chamados Cariris que entravam em contato e conflito com as fronteiras causando problemas ao desenvolvimento da economia colonial Os indígenas tiveram comportamentos diversos saqueando atacando colonos em vinganças fazendo alianças diversas ou tentando conviver com eles Embora os combates possam ser vistos como reações e resistências segundo Pompa parece que não podemos fornecer o caráter de um levante de índios contra os colonos POMPA 2003 p 27071 Neste sentido ambos os autores divergem sobre este aspecto da Confederação Cariri A ideia divulgada por Irineu Joffily e abraçada por Capistrano de Abreu e outros autores no entanto também teve outras versões Puntoni aponta que Câmara Cascudo se referia à confederação dos cariris como um termo romântico afirmando que não houvera plano comum ou unidade de chefia preferindo chamála de Guerra dos Índios 2002 p 79 Ressalta a arbitrariedade das fontes que nos permitem apenas conhecer o olhar do conquistador devido a lacuna de fontes que com a visão dos indígenas 81 de um espaço permeado de conflitos e injustiças já no século XVII O povo pobre e explorado sertanejo da década de 1960 nas suas filmagens possui sua origem nos subjugados índios do século XVII A seleção desse conteúdo e a busca nos de baixo como temas da exploração do homem pelo homem ou de resistências populares demonstram as intencionalidades políticas do documentarista e sua intersecção com a historiografia e a cultura histórica disponíveis A apresentação do indígena não apenas indica um aspecto da origem étnica do sertanejo mas também as raízes da questão agrária do sertão O documentário indica que as terras indígenas foram transformadas em datas e sesmarias nesse processo de ocupação territorial ou seja desapropriadas de seus donos originais Este é o mal original ou o ovo da serpente dos conflitos agrários na região para o documentário Sabemos que Capistrano de Abreu foi uma influência da historiografia para Vladimir Carvalho Este autor que para muitos inaugura uma escrita propriamente historiográfica no Brasil não poderia fugir a sua historicidade possuindo influências de um evolucionismo social Por isso o autor ao falar sobre os animais sertanejos em sua relação com o indígena afirma que Estes animais nem um pareceu próprio ao indígena para colaborar na evolução social dando leite fornecendo vestimenta ou auxiliando o transporte apenas domesticou um ou outro os mimbabas da língua geral De caça e principalmente de pesca era composta sua alimentação animal Possuía agricultura incipiente de mandioca de milho de várias frutas Como eramlhe desconhecidos os metais o fogo produzido pelo atrito fazia quase todos os ofícios do ferro A plantação e colheita a cozinha a louça as bebidas fermentadas competiam às mulheres encarregavamse os homens das derrubadas das pescarias das caçadas e da guerra ABREU 2000 p 39 Capistrano de Abreu pelo citado baseia sua leitura do indígena ao molde europeu de vida e de civilização Para a evolução social do indígena haveria a necessidade de haver um entorno semelhante ao europeu para desenvolver uma cultura semelhante Ele se encaixa bem com algumas ideias de Euclides da Cunha também detentor de certo determinismo do social pelo ambiental Ambos os autores poderiam ser articulados com o entendimento do marxismo popularizado na década de 19501960 sobre o mundo social A evolução social de certa maneira para aquele marxismo consistia na passagem do estado primitivo ao capitalismo e depois ao socialismo O Nordeste era o espaço do atraso no qual permaneciam relações e práticas arcaicas em obstáculo para a concretização do capitalismo no Brasil e consequentemente do socialismo Capistrano de Abreu reconhece a presença dos índios Cariris na população brasileira e sertaneja e atribui a eles características que podemos relacionar às que comumente se combinam com o imaginário sobre o sertanejo 82 Se agora examinarmos do meio sobre esses povos naturais não se afigura a indolência o seu principal característico Indolente o indígena era sem dúvida mas também capaz de grandes esforços podia dar e deu muito de si O principal efeito dos fatores antropogeográficos foi dispensar a cooperação A mesma ausência de cooperação a mesma incapacidade de ação incorporada e inteligente limitada apenas pela divisão do trabalho e suas consequências parece terem os indígenas legado aos seus sucessores ABREU 2000 p 41 Da indolência ao grande esforço Essa representação do indígena Cariri ou também do tapuia já existia à época da colonização Ela se combina ao sertanejo de antíteses de Euclides da Cunha que o define exatamente como um homem inerte mas capaz de grandes proezas físicas Teria o sertanejo em O País de São Saruê tais características Este capítulo responde esta questão Retomando o letreiro que abre o filme esta é a última parte A criação do gado e o rude trato da terra emprestaram a esses vales uma feição cultural marcante e idêntica à que em geral se observa em todo o sertão nordestino também nessas paragens uma minoria detém a posse da terra e dos bens que o esforço do homem retira dela O resultado é a injustiça e a humilhação Por isso qualquer semelhança com a história de outros sertões não é mera coincidência mas semelhança mesmo CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 1 435 Reconhecendo na pecuária sertaneja a origem de sua feição cultural afirma que essa não é uma particularidade da área das filmagens mas de todo o sertão Vladimir Carvalho indica que a temática apresentada e filmada em uma realidade particular paraibana possui um caráter geral caracterizando todo o sertão Explicita o problema da luta de classes a minoria que detém a posse da terra e dos bens que o esforço do homem retira dela Essa referência se aproxima da construção em oposição básica da teoria marxista e sua oposição de classes entre os que possuem meios de produção e os que necessitam vender sua força de trabalho Assim um exemplo dessa construção é a descrição de Engels em Princípios do comunismo 1847 que daria origem ao Manifesto Comunista 1848 o autor indica justamente um processo em que os proletários sempre existiram mas que foi intensificado com a Revolução Industrial Opõe no capitalismo a classe dos grandes capitalistas que em todos os países civilizados já estão de posse exclusiva de todos os meios de subsistência das matériasprimas e dos instrumentos máquinas fábricas etc necessários à produção dos meios de existência Essa é a classe dos burgueses isto é a burguesia e em seguida a classe dos despossuídos dos que em virtude do desapossamento são obrigados a vender seu trabalho aos burgueses para receber em troca os meios necessários à sua subsistência Essa é chamada classe dos proletários isto é o proletariado 2005 p 44 As riquezas são produzidas pelo proletariado que vende sua força de trabalho para os donos de terras que se apropriam dessa riqueza gerada O documentário afirma que o resultado 83 desse fenômeno social é a injustiça e humilhação qualificandoa e posicionandose frente ao conflito para por fim ressaltar o caráter geral que objetiva seu documentário qualquer semelhança com a história de outros sertões não é mera coincidência mas semelhança mesmo Daí duas conclusões essenciais a centralidade da questão agrária e da luta de classes para as relações que são exibidas no documentário e de que o sertão particular filmado por Vladimir Carvalho foi apresentado para afirmar uma tese mais geral sobre o problema da terra em todo o sertão brasileiro O sertão de Vladimir Carvalho se exibe especialmente nas relações de trabalho e nos conflitos de classe apresentados nas próximas sequências do documentário nas quais essa temática foi desenvolvida 43 A imensa múmia de cactos sertão espaço de seca e de luta Na primeira sequência os planos iniciais mostram aves chegando e deixando um açude em terras agrestes do sertão apresentando um contraste entre riqueza e pobreza Embora o filme vá se servir das imagens consolidadas do sertão como espaço da seca opta por começar o filme com imagens que possuem água símbolo de riqueza frente à realidade árida do sertão A essas imagens se alternam letreiros ambos embalados por uma música cuja letra nos oferece uma síntese uma apresentação do que tratará o documentário Ela por sua vez também traz esse contraste entre riqueza e pobreza A princípio podemos não prestar muito atenção nela pois nossa atenção deve ser dividida entre a música e os letreiros que trazem muitas informações Porém ela é tão importante que também conclui o filme sintetizando junto às imagens finais o tema central do filme Analisaremos a música posteriormente No momento cabe indicar que o conflito entre riqueza e pobreza já se encontra na abertura do filme que sugere em metáforas os elementos da exploração do homem pelo homem da riqueza e da pobreza do espaço sertanejo A essa altura fazse necessário considerações sobre o processo de montagem De maneira simplificada a montagem consiste na combinação e organização de certa quantidade de imagens principalmente mas também de sons e inscrições gráficas Esse processo ao que nos interessa inclui duas dimensões essenciais a sucessão desses elementos em um tempo a sucessão de planos que podem incluir em si imagens inscrições gráficas e ser acompanhados de sons e a organização interna dos elementos de um plano sua duração e sua composição Cf AUMONT 1995 p 5360 Cabe ainda comentar que embora exista a profissão do montador e exista uma figura específica em O País de São Saruê estamos considerando neste conceito ampliado de montagem que a figura de Carvalho enquanto diretor também foi fundamental no processo de montagem ou seja a montagem não é encarada aqui como mera 84 ação técnica de cortar o objeto físico o negativo do filme e colocálo em determinada ordem mas enquanto processo de criação e organização intelectual desses elementos de maneira a produzir uma narrativa O conceito de quadro pode nos elucidar e ampliar essa questão O quadro desempenha em graus bem diferentes dependendo dos filmes um papel muito importante na composição da imagem especialmente quando a imagem é imóvel Alguns filmes manifestam uma preocupação com o equilíbrio e a expressividade da composição no quadro que nada fica a dever à pintura De um modo geral podese dizer que a superfície retangular que o quadro delimita e que também se chama às vezes por extensão de quadro é um dos primeiros materiais sobre os quais o cineasta trabalha AUMONT 1995 p 20 Por tal afirmação podemos dizer que o plano representa um espaço delimitado por um quadro que por sua vez representa um recorte da realidade realizado pelo cineasta Esse recorte não é inocente mas realizado em um momento de criação na qual a seleção dos elementos da imagem seu ângulo sua iluminação gerarão diferentes efeitos estéticos e portanto discursivos Elaborase assim um discurso fílmico Assim analisamos como a composição de um plano realizada na montagem e pensada de maneira fotográfica representa um processo de elaboração discursiva Isso requer admitir que o processo de montagem não esteja apenas na mesa de montagem mas na própria filmagem91 Os elementos de composição dos planos serão objetos de análise daquilo que constitui o texto fílmico seja no nível de conteúdo ou no nível de expressão92 Por isso seus objetos como são exibidos iluminação disposição do espaço etc também são considerados Após essa sequência introdutória O País de São Saruê apresenta o sertão Planos apresentam esse cenário onde se desenrolam as ações de outras personagens seu espaço geográfico sua vegetação sua aridez 91 Em A Estética do Filme 1995 p 5960 Jacques Aumont afirma que a organização interna da própria unidade do plano é pensada antes da filmagem No entanto não nos referimos dessa maneira pelo fato de sua análise da estética fílmica privilegiar como bem admite filmes ficcionais Reconhecendo no entanto a dimensão ficcional do documentário e de sua organização podemos afirmar que a elaboração da fotografia terá momentos de maior ou menor planejamento anterior à filmagem a depender da situação Nesse momento inicial de nossa análise de imagens essencialmente naturais havia maior liberdade de planejamento da filmagem por exemplo que as imagens gravadas no calor do momento que podem variar de dificuldade homens trabalhando há movimento intenso ou o encontro com sertanejos que lamentam a morte de uma criança uma situação inusitada e que registra algo ocorrido naquele momento 92 Chamo de texto fílmico a unidade de discurso fílmico uma combinação de códigos de linguagem cinematográfica AUMONT MARIE 2011 p 88 Também chamarei de discurso fílmico a mesma noção quando quiser denotar melhor seu caráter seu aspecto de elaboração discursiva do documentário 85 CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 2 514 650 As figuras exibidas mostram uma parte da primeira sequência Elas aparecem imediatamente após as cenas que descrevemos O primeiro plano é constituído por dois campos de profundidade mais próximo à câmera há uma árvore sem folhas retorcida e ao fundo o céu com o sol no canto superior do enquadramento cujos raios atravessam todo o espaço da fotografia preenchendo tanto o céu quanto se sobrepondo ao negro dos contornos da árvore A luz do sol estoura toda a iluminação da imagem Esse plano que inicia é muito importante pois introduz ao tema que compõe as imagens em seguida Em nível dos temas apresentados na imagem o sol e uma árvore apresentase a oposição sol x seres vivos93 A nível fotográfico nível de expressão há a mesma oposição no jogo de luz e sombra o alto contraste entre o preto e o branco ajuda a reforçar o embate entre o sol e os objetos que fustiga sejam eles seres vivos ou objetos inanimados Esse plano é 93 Utilizei seres vivos para poder incluir as plantas os animais selvagens e o homem em um mesmo grupo que é oposto ao clima desse ambiente geográfico 86 mostrado com o áudio de um som ambiente de vento e pássaros sem grandes barulhos reforçando o caráter realista e natural desse início Também prepara o expectador para a voz grave de Echio Reis que narra o poema de Jomar Souto Sobre a poesia Carvalho diz A cadência do poema uma forma próxima do épico antiga grega também sertaneja de se narrar a História marca todo o longo prólogo como uma voz da Terra um monólogo do Sertão CARVALHO 1986 p 12 É pertinente comentar como essa voz da Terra remete à relação entre homem e meio tão cara à tradição de representação do sertão A divisão de Os Sertões em o homem a terra e a luta está sugerida na estrutura do filme que inicia com um prólogo do Sertão apresentando em seguida os sertanejos e seus revezes Cabe ressaltar em nível de expressão que quando os raios brancos de sol na fotografia ocupam a maior parte do fundo em segundo plano também ultrapassam os contornos da árvore em primeiro plano94 Estes dois objetos na fotografia que também compõe o discurso fílmico entram em disputa pelo espaço fotográfico O branco invade o negro que em nível de conteúdo representam o sol e a árvore respectivamente Essa articulação representa o conflito natural entre vida e morte seca e vegetação vida que será desdobrado em outros significados no decorrer do documentário Em seguida as quatro figuras mostram dois planos que apresentam a paisagem seca do sertão mostrase pedras cactos a vegetação rasteira e o solo pedregoso e começam com a luz estourada ou seja com excesso de iluminação como vemos pela brancura inicial desses planos porém aos poucos vão diminuindo a recepção de luz de maneira que a imagem vai escurecendo na medida em que aumentam os tons de cinza e de preto detalhes dos elementos de vegetação ganham relevo e nitidez95 Seguidos ao primeiro plano que descrevemos estes planos continuam a apresentar o espaço enquanto exibem seu conflito com o sol o símbolo do clima seco do sertão em conflito com a vegetação e o solo a terra Essa diminuição da luz permite ver mais detalhes das imagens A brancura mais uma vez disputa com as sombras e o 94 Diferenciamos nível de expressão forma e nível de conteúdo tema O nível de expressão se referirá a maneira estética como são apresentados elementos plásticos e sonoros O nível de conteúdo os objetos e temas que se referem Plano aqui se refere a uma dimensão de profundidade da fotografia e não a referida unidade fílmica Uma fotografia ou mesmo um plano cinematográfico podem contar diferentes campos de profundidade denominados planos nos quais podem aparecer diferentes objetos que apesar de se manifestarem em uma superfície plana assumem diferentes posições em relação à proximidade da lente da câmera que os registra 95 O aumento ou diminuição da abertura do receptor de luz da câmera cinematográfica permite manipular o efeito estético da luz natural Além dessa maneira outros meios são utilizados como refletores ou rebatedores Sobre isso Vladimir Carvalho comenta que por ausência de recursos utilizou como rebatedores quadros de escola cobertos com espécie de papel laminado Por meio desse instrumento ele rebatia a luz natural para iluminar os objetos que queria representar Utilizar a luz natural do sertão extremamente forte também foi outro desafio não só para o cineasta como para outros anteriores Cf BERNARDET Tendo em vista as limitações da produção e da própria iluminação Carvalho e João Ramiro o fotógrafo de O País de São Saruê elaboraram soluções estéticas para uma maneira de melhor expressar o sertão Assim temos uma espécie de consenso entre as possibilidades técnicas e naturais das filmagens e outra da elaboração artísticoestética no filme Analisamos a nível de expressão esse âmbito estético 87 negro que nos permitem ver a terra e a vegetação sertaneja como que indicando que aquele atrapalha a existência deste O excesso de branco nos impede de ver nitidamente a própria imagem quase a tornando apenas um quadro branco sem objetos A ausência de objetos poderia significar no nível de expressão e pensando no quadrado semiótico de Greimas o não preto que é não objeto ou não vegetação não solo não terra Embora usualmente se atribua o preto à morte e o branco à vida a leitura do significado das imagens em nível de expressão deve ser realizada pela lógica interna à imagem e pela sua pertinência Neste caso parece evidente que houve uma inversão dessas usuais significações atribuídas a tais cores Para entender melhor essa construção de oposições explicaremos nosso uso do método de análise de um sistema semissimbólico de Greimas Seu quadrado semiótico permite compreender o percurso gerativo de sentido sistematizando o processo semântico em questão Esse modelo é construído a partir de oposições identificadas no planonível de conteúdo e no planonível de expressão Em nível de expressão a oposição luz e sombra nosso quadrado ficou da seguinte maneira As linhas verticais relacionam os termos à sua negação preto não preto branco não branco As linhas horizontais relacionam os termos opostos ou seja preto branco e suas negações As duas linhas diagonais no centro do quadro o x estabelecem uma relação de sentido e possibilidade de percurso o preto que se afirma no não branco e o branco no não preto As linhas são caminhos que indicam as possibilidades narrativas quando um dos elementos consegue realizar a ação pela qual se afirma ou ao contrário quando é negado Por isso temos aqui percursos possíveis e excludentes o preto pode se tornar não preto e afirmar o branco que realizaria sua performance porém o percurso contrário também pode acontecer Estabelecemos em nível de conteúdo por sua vez outra oposição vegetação x sol às 88 quais relacionamos outra instância de significado vida e morte Neste caso colocaremos ambas as dimensões no quadrado semiótico complexificandoo A vegetação se opõe ao sol Como explicamos anteriormente tais elementos por uma construção histórica e discursiva podem se referir à morte e à vida no sertão Por isso sobrepomos esta outra oposição A negação de um constitui a afirmação do outro96 Neste conflito o sol e a vegetação podem realizar a sua performance a vegetação pode negar o sol que remete aqui à seca e afirmar a vida Do contrário o sol pode realizar sua performance a seca e afirmar a morte Transpondo plano de conteúdo ao plano de expressão teremos 96 Obviamente estamos aqui abordando a construção de sentido no filme Não estamos afirmando que a negação do sol necessário para todos os seres vivos seja a vida e que o documentário afirme isto Mas que a nível do sentido que se atribui a tais objetos enquanto imagens podemos afirmar tal conclusão pois o sol forte sertanejo é visto como um obstáculo a vida Toda imagem cinematográfica ou não ao ser evocada é carregada de sentido ou seja remete a elementos que não se reduzem ao seu referente imediato Isso permite uma vasta gama de produção de sentido no cinema por vezes ambíguos Por exemplo Charles Chaplin em Tempos Modernos 1936 coloca um plano de uma passeata seguido de um rebanho de ovelhas estabelecendo uma relação de sentido que não se resumiria aos animais em si mas ao sentido conotativo que se dá a eles como de massa ou talvez do cordeiro cristão 89 No esquema sobrepomos plano de conteúdo e plano de expressão A vegetação que simboliza a vida no sertão precisa negar o sol forte a seca para realizar sua performance e afirmar a vida Em nível de expressão temos a luz e a sombra que definem a visão desses objetos em conflito reforçando essa oposição a nível plástico A vegetação se opõe ao branco do sol luz que perfura e disputa espaço com os contornos negros da árvore definidos pelas sombras A negação do negro é também da vegetação e da vida O filme porém não apresenta um desfecho mas exibe o conflito em nível de expressão 97 Por fim cabe ressaltar que se para nossa análise foi necessário recorrer a uma reflexão pormenorizada e semiótica da fotografia Estes são também elementos essencialmente cinematográficos pois os planos ostentam movimentos impossíveis à fotografia seja dos raios brancos do sol que ora ultrapassam o contorno da árvore e ora não espetandoas como espinhos ou no movimento no qual o excesso de luz permite ver os detalhes das imagens à medida que diminui98 Os planos seguintes se referem a travellings que mostram mais da vegetação pedras cactos etc O último plano das figuras representa um açude secando devido à estiagem São um conjunto de imagens padrão largamente utilizadas pelo cinema na década de 1960 para mostrar a realidade de seca sertaneja já consolidadas nas artes plásticas e literatura Acessam portanto uma rede de significados anteriormente sedimentados A imagem de uma reserva de água que se seca último quadro das imagens não possui pássaros que voam por mera gratuidade Esta imagem foi reproduzida pela literatura referindose às maneiras dos sertanejos avaliarem a chegada da seca Estão presentes em autores lidos por Vladimir Carvalho como José Lins do Rego Graciliano Ramos José Américo de Almeida e Euclides da Cunha Assim afirma Cunha sobre a capacidade do sertanejo de adivinhar o flagelo da seca Do mesmo passo nota que os dias estuando logo ao alvorecer transcorrem abrasantes à medida que as noites vão tornando cada vez mais frias A atmosfera absorvelhe com avidez de esponja o suor na fronte enquanto a armadura de couro sem mais a flexibilidade primitiva se lhe endurece aos ombros esturrada rígida feito uma couraça de bronze E ao descer das 97 Porém a nível de curiosidade no próprio contorno dos cactos a oposição branco e negro está representada essa planta também é símbolo da vida na medida em que é vegetação porém é símbolo também da hostilidade do sertão de seu clima seco da própria seca não à toa é utilizada em westerns e outros filmes ambientados em ambientes áridos Se seus contornos são delineados pelas sombras seus espinhos são exibidos através do branco símbolo essencial da hostilidade sertaneja como descrito por Euclides da Cunha sobre um espaço que espeta os homens que ali vivem Dessa maneira o próprio elemento mais hostil dessa planta reforça a oposição construída a nível de expressão na oposição dessas duas cores e da sombra e da luz 98 Cabe fazer uma ressalva que ao se referir à imagem em movimento não se fala apenas de elementos que se movimentam no espaço enquadrado ou diegético da filmagem mas a própria mudança de cores iluminação mesmo em uma paisagem estática também é apenas possível no cinema 90 tardes dia a dia menores e sem crepúsculos considera entristecido nos ares em bandos as primeiras aves emigrantes transvoando a outros climas É o prelúdio de sua desgraça CUNHA 2011 p 136 As aves emigrantes ou de arribação são um sintoma cultural recorrente nas descrições das maneiras do sertanejo identificar a seca Embora descrevendo o litoral fértil da canade açúcar José Lins do Rego também expõe essa imagem em Menino de Engenho 1932 99 Chamavam de arribaçãs as rolas sertanejas que desciam batidas pela seca para o litoral Vinham em bando como uma nuvem muito no alto a espreitar um poço de água para a sede de seus dias de travessia E quando avistavam faziam a aterrissagem em magote escurecendo a areia branca do rio Nós ficávamos a espreita de cacete na mão para o massacre Matávamos a cacetadas como se elas não tivessem asas para voar A seca comeralhes o instinto natural de defesa REGO 2002 p 47 Essa imagem aparece em Vidas Secas no capítulo O mundo coberto de penas O mulungu do bebedouro cobriase de arribações Mau sinal provavelmente o sertão ia pegar fogo Vinham em bandos arranchavamse nas árvores da beira do rio descansavam bebiam e como em redor não havia comida seguiam viagem para o sul O casal agoniado sonhava desgraças O sol chupava os poços e aquelas excomungadas levavam o resto da água queriam matar o gado RAMOS 2011 p 109 Quando Vladimir Carvalho utiliza tais imagens está inserido dentro dos sintomas culturais que podem ser identificados na literatura e que agora eram trazidos para as telas com a inserção da figura do sertanejo como tema dos filmes100 Em nível de fotografia e luz cabe indicar a análise de JeanClaude Bernardet sobre os critérios utilizados na década de 1950 para indicar a nacionalidade de filmes brasileiros Analisando publicações em jornais e revistas especialmente em São Paulo o crítico de cinema monta um quadro dos critérios utilizados para indicar aquilo que se valorizava ou não 99 Embora esta menção não seja no sertão as aves de arribação chegam ao litoral após fugirem da seca em busca de água Neste sentido elas nos servem como indicação desse sintoma cultural Na literatura que remete ao Nordeste de opulência de autores como José Lins do Rego Jorge Amado ou Gilberto Freyre há menção mesmo que rápida aos retirantes oriundos do sertão O Outro Nordeste como nomearia Djacir Menezes também deixou sua marca na literatura que descrevia o litoral 100 Todo historiador que tenta identificar símbolos essenciais de um artista ou de uma obra de arte o faz a partir de sua visão de mundo Os sintomas culturais seriam aquilo que Panofsky sugeriu como um filtro para tal empreitada ajudando a garantir a validade das afirmações do pesquisador Assim sendo o homem um ser que entende o mundo através de símbolos que instituem uma maneira de ver o mundo o historiador buscará em outros documentos da civilização na qual a obra de arte está inserida vestígios que permitam identificar tendências políticas poéticas e religiosas filosóficas e sociais da personalidade período ou do país em questão PIFANO 2010 p 9 Buscamos em outros documentos elementos que permitem entender símbolos em sinais visuais e sonoros do filme ou mesmo abstratos a nível de conteúdo e que servem para identificar símbolos culturais e apropriação de outros discursos pelo O País de São Saruê 91 como um cinema nacional ideal na crítica da década de 1950 Em certo momento após indicar diversos temas de forma e conteúdo indica que Benedito J Duarte valoriza ou não na fotografia e luz de alguns filmes que mostram o sertão Para ele uma luz mais crua e áspera que mostrasse o caráter inóspito e inconformado das caatingas seria mais adequada que uma luz estilizada como a de O Cangaceiro 1953 Os autores dessa iluminação seriam estrangeiros que embora técnicos competentes não se tinham assimilado à luz e à feição da terra que os chamara Valoriza por isso a fotografia de Canto do Mar 1952 e de O Saci 1951 que segundo ele têm a autenticidade de uma peça documentária representam realmente o homem e a natureza de determinadas regiões do Brasil DUARTE Apud BERNARDET 1983 p109 A discussão sobre a luz não é um mero capricho ou diletantismo mas um dado importante estético e uma preocupação recorrente no período pois como vimos a iluminação foi um dos pontos destacados em Aruanda e reutilizados em Vidas Secas Esse é um elemento constituinte dessa cultura cinematográfica brasileira que como indicado por Bernardet possuía uma relação com a imagem que se tinhaqueria construir do país e como se pensava que ela deveria ser realizada pelo cinema Cultura cinematográfica e cultura política se entrelaçam No âmbito acadêmico Fernão Pessoa Ramos no artigo Cinema Verdade no Brasil 2004 afirma que A fotografia de Rucker Vieira em Aruanda é um dos pontos altos do documentário com tonalidades toscas e estouradas captando a dureza do sertão RAMOS 2004 p 85 e afirma mais à frente que A imagem do povo e da natureza nordestina tão cara ao primeiro Cinema Novo surge finalmente estampada na tela comentando da intensa repercussão do filme em temática e estética no Brasil da época101 Essas soluções estéticas da iluminação presentes na fotografia reforçam uma identidade do espaço sertanejo através de temas e objetos que remetem ao seu clima seco É uma elaboração cinematográfica de um tema já desenvolvido noutras artes A década de 1960 na qual se iniciaram as filmagens de O País de São Saruê foi um momento no qual uma vertente engajada do cinema brasileiro foi marcada pela presença do campo e da questão agrária Por isso Celso Frederico sobre a produção desse cinema afirma que Os cineastas preocupados em refletir a realidade brasileira tinham como referência e modelos disponíveis o romance socialregional produzido a 101 Foi na década de 1960 a publicação do manifesto Eztétyka da Fome 1965 de Glauber Rocha que justamente articulava o imaginário do Cinema Novo a uma vontade política o próprio Vladimir Carvalho assume a influência de Deus e o Diabo na Terra do Sol 1964 filme extremamente político e metafórico na construção de O País de São Saruê Cultura cinematográfica e política se ligavam de maneira muito forte e característica nesse período e principalmente nos cineastas engajados 92 partir da Revolução de 1930 mais rico e expressivo do que o romance urbano tudo naturalmente filtrado pelo clima político do pré64 FREDERICO 1998 p 277278 Tendo em vista o contexto político brasileiro e as perspectivas revolucionárias da esquerda da época os cineastas se voltaram para os modelos disponíveis o romance regional fecundado pela influência de Euclides da Cunha102 Durval Muniz de Albuquerque Júnior mostra como tais imagens reproduzidas por essa literatura e outras áreas artísticas durante o século XX detém uma ligação com uma matriz euclidiana que divulgou certa imagem da região a partir de Os Sertões 1902103 Euclides da Cunha caracteriza a caatinga a caatinga o afoga o viajante que passa por ela abrevialhe o olhar agride o e estonteiao enlaçao na trama espinescente e não o atrai repulsao com as folhas urticantes com o espinho com os gravetos estalados em lanças e desdobraselhe na frente léguas e léguas imutável no aspecto desolado árvore sem folhas de galhos estorcidos e secos revoltos entrecruzados apontando rijamente no espaço ou estirandose flexuosos pelo solo lembrando um bracejar imenso de tortura da flora agonizante O sol é inimigo que é forçoso evitar iludir ou combater Ajustase sobre os sertões o cautério das secas esterilizamse os ares urentes empedrase o chão gretando recrestado ruge o nordeste nos ermos e como um cilício dilacerador a caatinga estende sobre a terra as ramagens de espinhos CUNHA 2011 p 50 A caatinga símbolo do sertão da seca é construída como um espaço de embate agonia espinhos flora agonizante galhos retorcidos de tortura O sol é um inimigo que não pode ser combatido é um oponente à própria vida A vegetação sertaneja é mostrada como hostil aos viventes a esse sentido se soma os símbolos dos galhos retorcidos do chão ressecado gretado e do sol As imagens do filme se assemelham a essa construção literária reelaborando tais temas na fotografia em sua iluminação e no uso da imagem em movimento Este segundo aspecto fica mais claro nos próximos planos do documentário ao som da narração da poesia de Jomar Souto na voz empostada e grave de Echio Reis Ela corta o silêncio de até então oferece um tom poético e dramático à sequência comovendo para a realidade exibida As imagens mostram a vegetação sertaneja na luta para sobreviver A poesia reforçar esse caráter e oferece mais dramaticidade às imagens comovendo o espectador a um 102 O romance regional se refere a uma gama de escritores que se voltaram para o Nordeste seja o litorâneo ou o semiárido Dentre tais autores podemos destacar Jorge Amado José Lins do Rego José Américo de Almeida e Graciliano Ramos Os três últimos são influências reconhecidas para Vladimir Carvalho encontrandose nos dois últimos obras que tratam diretamente da realidade sertaneja 103 Embora Durval Muniz de Albuquerque não se ocupou da categoria sertão mas se preocupava com a invenção do Nordeste utilizamos sua análise para entender a construção das imagens de um Nordeste seco que generaliza toda a região pela generalização desse recorte geográfico e por aquilo que se reproduziu enquanto característico do semiárido nordestino 93 espaço de solidão de tristeza Solidão era alimento e aves no céu sempre iam O vento às vezes levava nos descampados além lembranças tristes de graça que ninguém sabe de quem CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 1 559 6 09 O sertão é apresentado como um espaço de permanência imutabilidade onde sempre se encontrou a seca e que é hostil até aos bichos que nele residiam No princípio era o que sou Fui o de sempre o que fui O mesmo vento de sempre meu pó vermelho inda alui Imensa múmia de cacto rarefiz pele assim maleável nem ao tato dos bichos que moram em mim Maleável nem às chagas que às vezes o sol inventa cuspindo fogo nas raras represas dágua barrenta CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 1 648 705 Os planos articulados às impressionantes palavrasimagens que descrevem o sertão imensa múmia de cacto que cospe fogo e possui água barrenta reforçam a matriz euclidiana já descrita A terra hostil até aos bichos é castigada pelo sol que lhe causa chagas Reforçase o sentido já referido na construção da fotografia e iluminação dos planos que começam essa sequência O sertão é representado como um espaço físico imutável originalmente seco Os três primeiros versos remetem a um espaço de permanência O narrador do filme constrói o personagem principal o sertão de duas maneiras através das imagens como vimos e através de uma voz poética que fala por ele De início essa poesia assume a voz do próprio sertão que fala sobre si Sua primeira apresentação remete a um estado de imutabilidade pois seu estado de origem o princípio é o mesmo que é no tempo diegético Nos dois primeiros versos ocorre um jogo entre substantivos e tempos verbais que articulam temporalidades diferentes tornando iguais as situações em um tempo original mítico e a atualidade da realidade fílmica princípio tempo passado e sou tempo presente a mesma relação está para o verbo ser no passado fui e o substantivo abstrato sempre que remete à junção entre as temporalidades do ontem do hoje e quiçá do futuro A essa última união entre um passado mítico um presente concreto a realidade documental do filme e uma projeção de futuro entendemos a permanência do clima o qual não pode ser alterado A múmia é outro significante que remete a ausência de água termo facilmente relacionado ao modelo de preservação de cadáveres egípcios que ficavam completamente secos e assim preservados Uma múmia de cactos qualidade que atribui caráter regional local e que é hostil seja pelos espinhos dessa planta ou pela afirmação de que não é maleável nem aos bichos que moram em mim O sertão é apresentado como esse espaço 94 rígido de solo e clima inflexíveis hostis à vida Reforçando o aspecto do sol que o fustiga chegando a criar chagas mas que a ele resiste já que nem a ele é maleável apresenta também o espaço de um forte o nordeste semiárido assim como o sertanejo euclidiano é um forte A poesia ainda alude às represas de água barrenta expressão que une dois significantes que representam a vida no primeiro e a morte no segundo pois a água desejável ao homem é a água límpida símbolo de pureza e vida Ao mesmo tempo emerge outra ambiguidade o barro também pode ser o símbolo da origem da vida na mitologia cristã A água barrenta carregaria essa dupla significação bem como todo esse pedaço da poesia pois se o sertão é um espaço de difícil sobrevivência também é apresentado como um personagem que não morre apesar de tantos obstáculos e do próprio sol que lhe queima desde tempos imemoráveis A poesia assume então algumas funções que cabe ressaltar A primeira que indicamos é o reforço do discurso oferecido pelas imagens sobre o sertão através das palavras que constroem imagens de um espaço seco outra função é estabelecer uma temporalidade que até agora só poderíamos deduzir pela ordem da organização fílmica se estamos no começo do filme poderia estar no começo do enredo da história que narrada o que não é absolutamente regra ela indica que estamos em um tempo de origem um tempo mítico104 além disso oferece um sentido de tristeza e solidão comovem o espectador emotivamente para sua realidade Essas duas últimas funções não estão a serviço da imagem mas constroem junto com a imagem um significado105 Imediatamente à referência desse espaço de tristeza e sequidão106 de água barrenta107 104 Esta ideia de tempo mítico será melhor trabalhada mais à frente ao abordarmos os diferentes locutores e efeitos narrativos de O País de São Saruê 105 O som também participa como dito do processo de montagem Na produção de O País de São Saruê não houve uso de som direto pois a tecnologia era difícil de conseguir à época no Brasil Assim seus sons foram montados ou seja inseridos nas imagens Isso se torna evidente nas narrações em voz over na qual o dono da voz não aparece durante o filme trazendo informações e declamando a poesia de Jomar Morais Souto no entanto mesmo os sons ambientes que buscam oferecer a sensação de ouvir o som natural da região são também gravações Eles são organizados como em todo o processo de montagem de maneira a oferecer determinados sentidos e sensações sendo parte do discurso fílmico 106 Na verdade a poesia publicada e versão declamada no filme não são iguais Foram realizadas diversos recortes trocando estrofes de lugar e sendo necessário selecionar o que entraria no filme Assim a anterior referência Maleável nem às chagas que às vezes o sol inventa cuspindo fogo nas raras represas dágua barrenta não consta na versão completa da obra que tivemos acesso Isso nos leva a algumas divagações houve a inserção de versos ou Jomar Morais Souto publicou o poema também com modificações Essa questão no entanto é secundária para nós pois nos interessa mais o resultado final do texto fílmico Quando falamos no poeta nos referimos a esse híbrido entre a obra de Jomar Morais Souto e o resultado no filme A poesia na íntegra pode ser conferida no Anexo C p201 107 Tendo em vista que água barrenta não consta no poema original cabe indicar aqui a água substância na qual surgiu a vida que compõe maior parte do homem e que é relacionada a vida na literatura e nos mitos No contexto semiárido e seu constante medo das estiagens a água representa vida e sua ausência a morte O homem na mitologia cristã nasceu do barro Quando no filme a poesia fala nas raras represas dágua barrenta pode se referir no sentido mais denotativo às raras reservas de água ou em sentido mais figurativo como a poesia pressupõe ao surgimento do homem que veio da água e do barro ou ainda às espaçadas civilizações do sertão seja na contemporaneidade do filme seja à época indígena que a poesia se refere imediatamente As represas de água barrenta poderiam ser os nichos humanos naquele contexto hostil No 95 emergirão os outros personagens principais do sertão os homens seus habitantes O documentário mostra que mesmo em clima e vegetações tão hostis ou servindose dessa turva água barrenta ali surge vida trabalho e arte Em um filme de cerca de uma hora e vinte minutos 1h20 os sete primeiros minutos não exibem o homem em imagens O espaço é portanto um elemento bastante significativo do documentário As imagens que mostram aves de arribação o sol a vegetação representandoos como elementos de um espaço imutável e hostil à vida pautam o conflito entre vida e morte Emerge então a figura humana 44 Os antigos reis do lugar ocupação do território sertanejo Desse espaço sertanejo castigado pela sua condição climática algo emerge na diegese do documentário que quebra essa imutabilidade trágica108 No princípio era o silêncio quando a terra amanhecia e entre nós as aves livres o resto o sol ganharia Outrora pontas de lançamento marcavam cruzes no ar Em torno do fogo a dança dançavam os reis do lugar Dentro do mato o tapuia entre cantos de concriz celebrando as aleluias do reino que sempre quis109 CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 2 707 734 O homem aparece simbolizado pelos índios que se reuniam em torno do fogo a dançar os reis do lugar são os donos do reino encantado que o narrador da poesia a própria terra sempre quis A descrição pesada e triste do espaço é quebrada pela alegria e riqueza da chegada dos homens os índios em um reino antigo de felicidade e encanto Os homens são apresentados pela poesia sob duas características atribuídas ao indígena a alegria simbolizada pela dança em torno do fogo e pela celebração de aleluias e pelo caráter guerreiro simbolizado pela lança arma indígena aludida pela figura de linguagem pontas de lançamento Ao caráter sofrido e quieto da terra a poesia traz os homens com o contraste da luta e da festa Eles rompem a quietude Montase uma oposição entre o silêncio e a morte representada por tudo aquilo que o sol ganhava exceto as aves que podiam voar para longe e filme a segunda estrofe que se segue a esse verso se refere à presença humana no sertão como que antecipada pela referida figura de linguagem Essa interpretação é útil adiante 108 É importante ressaltar novamente a diferença entre diegese e discurso fílmico Diegese se refere ao enredo proposto pelo filme o mundo elaborado pelo filme Embora esse conceito seja usualmente utilizado para a ficção utilizamos aqui para pensar no mundo do documentário como a realidade segundo a qual o texto apresenta com os dados e visibilidades que ela fornece e da forma como apresenta Se na diegese o homem surge neste momento no discurso fílmico ele apareceu novamente pois já foi referido nas inscrições gráficas que iniciaram o filme contextualizando o filme 109 Os versos entre a expressão Outrora e reis do lugar não foram encontrados na poesia publicada 96 a dinamicidade que o homem traz ao sertão Esses homens os indígenas tapuias realizam o próprio desejo da terra construindo o reino que a terra sempre quis As aleluias assumem outra dupla função simbolizam um canto religioso e de alegria mas que colocado no plural pode se referir à diversidade divina dos indígenas politeístas portanto anteriores ao encontro com o branco cristão e a catequese Esse verso caracteriza o homem dessa terra o tapuia110 Esse verso que analisamos é declamado enquanto se ouve uma música popular animada embalada ao som de pífano contrastando com o anterior silêncio permeado pela voz grave e empostada de Echio Reis111 Também a nível sonoro o filme apresenta a terra de maneira triste e árida e os índios homens que habitaram a terra na origem de maneira alegre As imagens que se seguem são de planos médios permitindo englobar o homem e o meio As primeiras figuras humanas no filme são mostradas em relação com o meio natural a vegetação sertaneja Embora a poesia fale sobre os tapuias somos apresentados a homens contemporâneos à produção do filme sertanejos populares trabalhadores que podemos identificar pelas roupas e pelos objetos de trabalho em mãos foices facões etc Metaforicamente utilizase a dialética de imagens e sons para ligar o elemento dos tapuias aos sertanejos atuais não apenas ligando figuras históricas e sociais mas duas temporalidades a origem e o tempo contemporâneo da filmagem Neste sentido identificamos elementos essenciais para nossa análise a uma relação ambígua entre a terra e o homem representada em uma relação de domínio mas também de proteção e conflito b uma distinção entre a imutabilidade da terra e a dinâmica humana c a origem dos sertanejos relacionada ao caráter indígena d o conflito entre natureza e homem no qual o segundo domina a primeira através do trabalho e a ligação a nível diegético da narrativa de duas dimensões temporais para construir uma espécie de gênese Tais elementos podem ser entendidos à luz da referida matriz euclidiana Em Os Sertões há exatamente esta relação ambígua entre o homem e o meio Seu livro a fim de contar a história do conflito de Canudos começa com uma caracterização do meio o sertão para apresentar o homem relacionando raça e meio em acordo com a cultura histórica da época e em seguida descrever sob essa ótica os eventos de Canudos112 Utilizando de modelos 110 Na Paraíba convencionouse dividir os indígenas em duas categorias os tupis e os cariris ou tapuias Os tupis eram índios que tinham uma língua de matriz comum que dá o nome ao grupo Podem ser identificados dois grupos na Paraíba os potiguaras e tabajaras Estes dois estavam em constante conflito Os tabajaras foram os primeiros a ter contato à época da colonização criando laços com os portugueses Os cariris ou tapuias existiam em maior número e ocupavam a área do sertão 111 O pífano é uma flauta transversal aguda parecida com um flautim Ela tem timbre intenso e estridente É originário da Europa Medieval e tradicional em regiões do Nordeste fazendo parte de uma cultura popular nas quais é confeccionada por populares e tocada de ouvido sem partitura 112 Nísia Trindade Lima afirma que nos textos de Euclides da Cunha encontramos a tentativa de tipificação sistemática do homem brasileiro com ênfase na dimensão ecológica ou seja em sua relação com o ambiente 1999 p 31 97 narrativos do documentário clássico especialmente flahertyano O País de São Saruê faz construção semelhante apresentando o meio o homem e depois sua luta Porém o filme não aborda um confronto militar e declarado como Canudos mas o conflito cotidiano do sertanejo com o ambiente natural e com o mundo do trabalho em uma sociedade de classes Se tanto Vladimir Carvalho quanto Euclides da Cunha constroem a ideia de um sertanejo caracterizado em relação com o meio no escritor o clima e a mestiçagem serão os grandes motores históricos para esse entendimento do social O escritor se inseria em um momento de recente abolição dos escravos no Brasil o que gerou um forte impacto nas reflexões de intelectuais sobre a identidade nacional Nísia Trindade Lima indica que Raça e herança colonial são temas importantes e centrais do pensamento social brasileiro nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX LIMA 1999 p27113 No contexto das teorias raciais do final do século XIX e início do século XX Os Sertões explica questões psicológicas e comportamentais através de postulados étnicos com base na formação racial do Brasil negros indígenas e portugueses A mestiçagem negra não teve o mesmo peso que a indígena na formação do sertanejo por isso Euclides da Cunha foca muito mais no último Para o autor a mestiçagem foi na maioria dos casos prejudicial CUNHA 2011 p 113 sendo diferentes as misturas ocorridas no sertão e na cidade no primeiro houve uma homogeneização que levou a raça única do sertanejo114 Nessa comparação valoriza a mestiçagem sertaneja cujo isolamento teria sido benéfico para Cunha na luta entre as raças há uma eliminação lenta da raça inferior para ele negros e indígenas que se dilui no cruzamento Nesse caminho surgem mestiços mutilados inevitáveis do conflito que perdura que possuem qualidades negativas Pois neste caso a raça forte não destrói pelas armas esmagaa a raça fraca pela civilização Conclui sobre os sertanejos Ora os nossos rudes patrícios dos sertões do Norte forraramse a esta última O abandono em que jazeram teve função benéfica Libertouos da adaptação penosíssima a um estádio social superior e simultaneamente evitou que descambassem para as aberrações e vícios dos meios adiantados A fusão entre eles operouse em circunstâncias mais compatíveis com os elementos inferiores O fator étnico preeminente transmitindolhes as tendências civilizadoras não lhes impôs a civilização Este fato destaca fundamentalmente a mestiçagem dos sertões da do litoral 113 Nísia Trindade Lima indica também que a geração após a Proclamação da República 1889 adotava um estilo de abordagem que opunha dois brasis Esse tipo de elaboração pode ser encontrado em Euclides da Cunha e mesmo em autores posteriores como Alberto Torres Oliveira Vianna e Gilberto Freyre 1999 p28 Essa influência pode ser identificada na própria ideia presente no título Brasil terra de contrastes de Roger Bastide ou no Outro Nordeste de Djacir Menezes cujo título polariza com o Nordeste de Gilberto Freyre 114 Euclides da Cunha afirma Ora toda essa população perdida num recanto dos sertões lá permaneceu até agora reproduzindose livre de elementos estranhos como que insulada e realizando por isso mesmo a máxima intensidade de cruzamento uniforme capaz de justificar o aparecimento de um tipo mestiço bem definido completo CUNHA 2011 p 109 e ainda A uniformidade sob estes vários aspectos é impressionadora O sertanejo do norte é inegavelmente o tipo de uma subcategoria étnica já constituída CUNHA 2011 p 113 98 São formações distintas senão pelos elementos pelas condições do meio O contraste entre ambas ressalta ao paralelo mais simples O sertanejo tomando em larga escala do selvagem a intimidade com o meio físico que ao invés de deprimir enrija o seu organismo potente reflete na índole e nos costumes das outras raças formadoras apenas aqueles atributos mais ajustáveis à sua fase social incipiente CUNHA 2011 p 117 Com esta base Euclides da Cunha defendeu que o sertanejo possui características específicas em antítese não é um degenerado mas um retrógrado CUNHA 2011 p 116 é um forte mas aparentemente fatigado aparência de cansaço que ilude entre extremos impulsos e apatias longas CUNHA 2011 p 119 Cunha aproxima sertanejo do vaqueiro e podemos afirmar que também valem as características que atribui ao último forte esperto resignado e prático herdadas tanto pela formação racial quanto pelo contexto seco e triste no qual sobrevive Ressalta ainda sua servidão inconsciente que permite que mesmo com os patrões distantes sejam bastante leais Indica ainda a religiosidade e misticismo desse grupo Em O País de São Saruê a caracterização do sertanejo não é centrada na questão racial mas na relação do homem com o meio através do trabalho Não há menção sobre as teorias raciais nem tentativa estética tão forte de relacionálas Há no máximo a indicação da origem sertaneja no elemento indígena Também mostra o sertanejo como um forte porém não como fatigado nem degenerado ou retrógrado Valorizao pelo trabalho A figura do vaqueiro e a figura do sertanejo agricultor estão dispostas e são exibidas como duas possibilidades da vida sertaneja valorizando um aspecto não tão presente no romance euclidiano As características da servidão da religiosidade e da relação com a seca estão em dimensões próximas mas não iguais A relação ambígua entre homem e meio em Euclides é inicialmente semelhante à construída por Vladimir Carvalho Se o livro trata de longas descrições do solo da vegetação e do clima os planos e a narração poética apresentados neste capítulo apresentam tais conteúdos através de som e imagem Euclides da Cunha apresenta e interpreta esses personagens sociais segundo as teorias sociológicas que abraçara em sua época assim como Vladimir Carvalho Assim a matriz euclidiana é reelaborada autoralmente em linguagem cinematográfica e na apropriação de outras fontes intelectuais do cineasta Apresenta em imagem o que é descrito verbalmente no livro Interpreta esteticamente esse habitat e seus homens explicando a relação entre seus elementos formadores115 A terra em Os Sertões é exibida como hostil dura mas também como um elemento 115 Cabem dois comentários aqui A centralidade da relação homem e meio ou seja animal e habitat para Euclides da Cunha no livro mas também a influência de outras leituras de Vladimir Carvalho e da própria prática cinematográfica O cineasta teve como um reconhecido grande mestre nos estudos e no fazer documentário o professor de geografia e cineasta Linduarte Noronha Em suas aulas foram apresentadas autores como Franz Boas destacados na biografia do documentarista de O País de São Saruê 99 ao qual o sertanejo especialmente o vaqueiro está adaptado116 Daí o conflito apresentado com o sol e com uma terra seca hostil à vida mas que ao mesmo tempo deseja o homem como dito pela poesia durante a introdução desse espaço Se no filme o sertão fala em primeira pessoa através da poesia dizendo que o reino da alegria e de trabalho dos indígenas era o que sempre quis no romance de Euclides da Cunha o escritor mostra como o sertão é uma terra que castiga seus homens o heroísmo tem nos sertões para todo o sempre perdidas tragédias espantosas Não há revivêlas ou episodiálas Surgem de uma luta que ninguém descreve a insurreição da terra contra o homem 2011 p137 Se aqui apresenta um duro quadro de luta do homem com a terra em outro momento nas origens históricas da ocupação do sertão mostra a ambiguidade dessa relação Batidos pelo português pelo negro e pelo tupi coligados refluindo ante o número os indômitos Cariris encontraram proteção singular naquele colo duro da terra escalavrado pelas tormentas endurado pela ossamenta rígida das pedras ressequido pelas soalheiras esvurmando espinheirais e caatingas Ali se amorteciam caindo no vácuo das chapadas onde ademais nenhuns indícios se mostravam dos minérios apetecidos os arremessos das bandeiras A tapuiretama misteriosa ataviarase para o estoicismo do missionário As suas veredas multívias e longas retratavam a marcha lenta torturante e dolorosa dos apóstolos As bandeiras que a alcançavam decampavam logo seguindo rápidas fugindo buscando outras paragens CUNHA 2011 p111 Os indígenas tapuias ocupando o sertão e sobrevivendo às investidas das bandeiras encontraram na terra sertaneja um refúgio ao qual seus inimigos não conseguiam se adaptar Apesar disso essa terra é apresentada como um colo duro da terra escalavrado pelas tormentas endurado pela ossamenta rígida das pedras ressequido pelas soalheiras esvurmando espinheirais e caatingas ou seja um lugar de sequidão dureza espinhos rústico de se viver O substantivo colo materno e acolhedor em referência à ocupação do sertão é apresentado com elementos nada confortáveis e receptivos Esta ambiguidade como vimos está presente na elaboração estética do filme mostrase um espaço duro mas que abraça o sertanejo porém não indica a proteção desse espaço ao indígena como Cunha o acolhimento está presente na afeição do espaço ao indígena A oposição terra e homem é mais forte em Os Sertões que em O País de São Saruê Isto se explica pela diferença fundamental nas visões dos autores no escritor o homem é definido pela sua relação com o meio já no cineasta o homem se entende em relação com o trabalho e com outros homens na relação de classes Ao identificar a origem indígena do homem sertanejo exibido em seu cotidiano de 116 Euclides da Cunha ressalta que o sertanejo é o vaqueiro relegando pequeno espaço para um sertanejo essencialmente agricultor pela própria característica da terra na crença do romancista CUNHA 2011 p 125 100 trabalho durante o filme Vladimir Carvalho propõe que a exploração e sujeição dos indígenas no processo de colonização quando o nosso continente inicia uma relação com o mundo capitalista europeu é semelhante ou mesmo episódio anterior do sofrimento dos sertanejos à época do documentário exibidos pelas suas filmagens As oposições discursivas euclidianas e do cineasta se referem a uma dicotomia maior entre vida e morte Essa dicotomia é um conflito presente no fio narrativo dessas duas elaborações artísticas 45 Mundo em construção a terra se humaniza pelo trabalho Já indicamos a diferença entre a concepção do homem em Os Sertões e O País de São Saruê No entanto não foi realizada uma análise sobre a representação desse homem social no documentário Demonstraremos esta construção pela análise da segunda sequência quando aparece a primeira imagem humana no documentário Os planos mostram homens limpando a terra A paisagem é alterada CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 2 715 CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 2 736 Em outro plano vemos homens cortando a vegetação com uma foice Aos poucos modificam a paisagem limpando o plano que estava cheio de plantas 101 O País de São Saruê Sequência 2 745 841 Nos dois primeiros planos seis primeiros quadros há um sertanejo cortando cactos símbolo da agressividade do sertão Conforme ele corta o cactos o plano fica mais limpo podemos vêlo melhor a vegetação que dominava a frente do plano é substituída pela figura do homem que ocupa o seu lugar Constróise a oposição cacto natureza hostil espinho e homem na qual o homem realiza sua performance dominando a natureza O segundo plano mostra semelhante construção desta vez com dois planos de profundidade o céu limpo atrás com os vales verdes ao fundo no qual predomina a branquidão do céu e no primeiro plano de profundidade mais próximo da câmera a sombra de uma árvore e um sertanejo sombreado Constróise a oposição aí em nível de conteúdo homem x natureza Em nível de expressão temos a árvore que preenche a fotografia À medida que o homem realiza sua performance cortando a árvore dominando a natureza o plano se torna mais limpo pela ação do corte mudando a fotografia como podemos ver no último quadro Além disso temos uma oposição entre os dois elementos móveis desse plano um se mantém de pé o homem e o outro cai por chão sendo dominado a árvore Ambos os planos descritos constroem artisticamente essa oposição homem x natureza no qual aquele domina esta ou seja transforma o espaço representado pela vegetação A foice representa um instrumento de trabalho sendo um objeto que qualifica os personagens e que permite o domínio humano sobre a natureza O documentário não apresenta 102 qualquer homem mas sertanejos camponeses117 A poesia indica Nas mãos calosas dos reis outro mundo em construção Uma hora um dia um mês e as casas brotam do chão CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 2 845 853 Essa passagem indica os reis à época da ocupação aqueles que realizaram o povoamento com trabalho enfatizado pela expressão mãos calosas Também indica que construíam um outro mundo que entendemos de duas maneiras a construção de uma civilização não mais indígena mas sertaneja oue uma mudança no âmbito natural para o humano Pode ser interpretado ainda como a mudança do estágio de desenvolvimento das forças produtivas segundo o marxismo ou seja a passagem de um modo de produção mais arcaico no Brasil com os indígenas ao modo de produção feudal ou capitalista118 O substantivo e objeto casas são o símbolo máximo da ocupação de uma terra espinhosa que vira lar moradia O homem vence a terra e nela se fixa dandolhe feição nova O País de São Saruê Sequência 2 857 1001 Nesta construção temos homens trabalhando construindo casas Sem antagonistas eles realizam sua performance e erigem um casarão A câmera procura mostrar este trabalho e 117 A foice é um símbolo amplamente utilizado no imaginário comunista para indicar os camponeses compondo o famoso símbolo comunista que une a foice trabalho rural e o martelo operário 118 A posição dos comunistas sobre o status do modo de produção que estava o sertão era para alguns capitalismo para outros situação feudal Este tema é trabalhado no capítulo seguinte 103 brinca com as formas e relevos da construção com expressividade fotográfica sofisticada Temos assim dois objetos representados homens matériaprima madeira barro tijolos os quais pouco a pouco transformam em uma casa Na dimensão discursiva o aparentemente simples registro artístico da construção pode ser exibido em complexa rede de sentidos Panofsky propõe a identificação de estilos mostrando como objetos e eventos se expressam pictoricamente em momentos históricos Esse processo permite identificar os estilos ou seja a maneira pela qual em um contexto histórico se convencionou expressar representar temas e conceitos plasticamente Este método foi útil para trabalhar elementos dos planos ou mesmo construções mais amplas do documentário Porém estendemos os princípios teóricos de Panofsky e aplicamos na construção de imagens também literáriopoéticas pois seu método foi criado para as artes plásticas Mas utilizamos essa categoria também para pensar a articulação entre a expressão sonora e poética do documentário às leituras literárias de Vladimir Carvalho A fim de chegar a uma análise iconológica Panofsky propõe alguns passos Inicialmente fazse necessário uma descrição préiconográfica que consiste em identificar os eventos e objetos representados âmbito descritivo da forma No segundo passo a análise iconográfica fazse necessário ir além da experiência comum e levar em consideração o locus histórico da obra de arte compreendendo as convenções das imagens Por exemplo podemos identificar ao primeiro nível préiconográfico um leão de boca aberta Mas um leão de boca aberta pode significar agressividade força rei da selva as possibilidades são muitas Porém restringimos esse número enxergando objetos e eventos segundo a forma pela qual são expressos por outros artistas em um contexto histórico Chegase ao âmbito dos estilos Depois em análise iconográfica profunda podemos identificar como um mesmo artista expressa temas de maneiras específicas Panofsky propõe portanto identificar os estilos ou seja como em um contexto histórico temas específicos foram representados de determinadas maneiras sendo essencial a descrição de temas e objetos Por isso vamos indicar uma possibilidade de relação que se não é apresentado exaustivamente neste trabalho visto que este não é nosso objetivo imediato permite mostrar proximidades expressivas de O País de São Saruê com outras produções artísticas de comunistas e suas expressões comuns Os planos descritos acima exibiam a ocupação do sertão pelos sertanejos através dos objetos homem casa tijolo barro madeira Os planos valorizam esse tema seja pela sua duração relativamente generosa a própria escolha desse tema e pelo posicionamento da câmera quando utilizam diversas tomadas em contraplongée valorizando os homens e a casa 104 construída119 Esta é a identificação préiconográfica Esse tema foi bastante utilizado em outras produções artísticas No documentário Aruanda cujo cenário é de uma terra afastada da cidade daquilo que chamaríamos de civilização urbana ocidental encontra um pequeno grupo humano e mostra seu cotidiano ambiente e trabalho Se a construção de casas não está ostensivamente presente em Aruanda há uma sugestão de construção vemos planos da construção de cercas com madeira e barro realização seguida de outro plano com crianças encostadas a uma parede comendo farinha trabalho realizado Todavia não há o processo exibido como em O País de São Saruê no qual a construção vira um tema Apesar disso havia o trabalho humano O trabalho com barro e a transformação da natureza pelas mãos humanas literalmente foi tema recorrente no cinema documentário ao qual se ligava Vladimir Carvalho120 Mas relacionando a outros artistas engajados podemos relacionar essa tendência documentária a outra dimensão que Vladimir Carvalho se aproximava caracterizando melhor sua particularidade Para tanto utilizamos três exemplos significativos Bertolt Brecht121 no Teatro em Perguntas de um operário que lê 1935 Vinícius de Moraes122 na poesia O Operário em construção 1956 e Chico Buarque123 na música Construção 1971 Escolhemos estes homens por três razões essenciais A primeira se refere a seus ofícios são todos poetas o que os aproxima para nossa interpretação da estrutura formal tanto da poesia de Jomar Souto Moraes quanto do próprio O País de São Saruê que detém uma linguagem poética Todos eles são reconhecidos homens de esquerda que se dedicaram à militância 119 Chamamos de contraplongée a filmagem com posicionamento da câmera de baixo para cima Esse posicionamento gera efeitos que podem variar segundo a vontade do diretor e o contexto fílmico ao final da montagem Geralmente se usa para valorizar personagens que se quer engradecer pois em tal posicionamento parecem maiores do que realmente são Esta é uma convenção clássica do cinema 120 A nível imediatamente cinematográfico cabe comentar que não vemos casas sendo construídas em O Homem de Aran Porém há este tema em Nanook o Esquimó 1922 do mesmo diretor considerado por muitos a obra que inaugura o documentário Porém sua presença é diferente mostrando a solução provisória de Nanook em construir um iglu para passar uma noite enquanto a exibição de um tema exótico 121 Bertolt Brecht 18981956 foi um grande escritor de poesias e peças de teatro bem como um teórico sobre esta última arte Suas peças foram um marco no teatro do mundo inteiro e possuíam forte teor revolucionário Brecht se exilou quando Hitler chegou ao poder na Alemanha em 1933 Viajou por diversos países até chegar aos Estados Unidos lá enfrentou problemas devido à sua opção ideológica durante a Guerra Fria Sabemos que textos seus já eram publicados no Brasil desde a década de 1960 a exemplo de Sobre Teatro publicado na revista Estudos Sociais no número 8 em julho de 1960 RIDENTI 2000 p82 122 Vinícius de Moraes 19131980 foi um jornalista diplomata poeta e compositor brasileiro Participou do movimento da Bossa Nova cujo valor artístico é internacionalmente reconhecido Escreveu poesias de diversos matizes muitas com teor revolucionário Em 1969 foi afastado do cargo diplomático devido ao Ato Institucional Número 5 pela ditadura militar brasileira 123 Chico Buarque de Hollanda 1944 é um poeta e compositor brasileiro de grande importância para a cultura de nosso país Sua produção foi importante estética e politicamente para a música brasileira participando do movimento da Bossa Nova Era próximo da esquerda na década de 1960 fazendo parte de artistas que se encaixaram no que Ridenti denominou de romantismo revolucionário Durante a ditadura militar se auto exilou na Itália devido ao clima político do país mas voltou em 1970 Através de sua música elaborava críticas ao regime Muitas conseguiram passar pela censura se tornando bastante conhecidas Foi parceiro de Vinícius de Moraes 105 sofrendo contratempos políticos Por fim são todos historicamente ligados a Vladimir Carvalho que já leu Brecht e podemos deduzir teve acesso a Vinícius de Moraes e Chico Buarque dada sua centralidade na cultura brasileira na época e ainda hoje Em Brecht a referida poesia questiona quem trabalhou nas grandes construções comemoradas pela humanidade As Sete Portas de Tebas a Babilônia ou a Muralha da China por exemplo124 A poesia critica que a história apresente estes eventos como produtos prontos sem identificar seus atores ordinários os operários ou atribuindo estes feitos aos grandes líderes A poesia opõe o trabalho do operário ao silêncio historiográfico Quem construiu Tebas a das sete portas Nos livros vem o nome dos reis Os reis arrastaram os blocos de pedra Babilônia muitas vezes destruída Quem a reconstruiu tantas vezes Em que casas Da Lima auriradiosa moravam seus obreiros BRECHT trad CAMPOS 1995 p147 A poesia se inicia opondo tal silêncio à figura de um operário específico um construtor de casas cidades O primeiro verbo exibido na tradução é o verbo construir Os objetos além dos sujeitos históricos são portas pedras casas obreiros Seus eventos são construir transportar reconstruir morar Estes objetos foram utilizados para elaborar essa imagem do trabalho que contrasta com a riqueza dos grandes e o esquecimento relegado aos operários Todos os sete elementos citados são relacionados ao trabalho no sentido marxista ou seja transformação da matériaprima que segundo a cultura marxista gera valor e riqueza no entanto como vemos na poesia são outros aqueles que se enriquecem materialmente e usufruem do prestígio125 A crítica poética de Brecht utilizou para isso estes objetos e temas Vinícius de Moraes de modo semelhante na poesia O Operário em construção 1956 elabora crítica próxima e usa objetos e temas similares aos de Brecht Há em ambas a centralidade da expressão construção como vemos no título Opõe o mundo da alienação do 124 O poema Perguntas ao Operário que Lê foi publicado em 1935 por Bertold Brecht Esse poema chegou ao Brasil em 1966 publicado na revista Tempo Brasileiro em uma tradução de Haroldo de Campos e duas posteriores não acessíveis à época do filme traduzidas por Edmundo Moniz 1982 e Paulo César Souza 1986 Por isso utilizamos a tradução de Haroldo Campos republicada pela revista Fragmentos em 1995 Dentre as três traduções o texto de Haroldo Campos ficou com efeito mais literário por um rebuscamento das palavras utilizadas mas preservou o efeito poético dialético e de provocar questões de Brecht COSTA 2003 p71 Mais informações sobre as comparações conferir o texto Três Bechts 2003 de Walter Carlos Costa publicado também na revista Fragmentos 125 Podemos remeter ao sentido do prestígio histórico ao qual se insurge Walter Benjamin ao propor uma história a contrapelo Ao atribuir tais realizações aos donos dos meios de produção ou aos reis haveria uma construção ideológica na acepção clássica do termo e constituiria uma alienação ao separar produto e produção Todos os três autores retomam essa discussão a fim de restituir através da arte a consciência de classe aos moldes das ideias comunistas do século XX segundo as quais esta seria a função do artista e do intelectual comunista Embora fosse do desejo de Vladimir Carvalho que seus filmes chegassem ao povo o cinema era uma ferramenta menos democrática no Brasil das décadas de 1960 e 1970 O acesso era particularmente mais difícil ainda para tais filmes feitos por intelectuais de esquerda que mal chegavam aos poucos cinemas Seus trabalhos visavam um público de estudantes e outros intelectuais no setor urbano pois havia poucos ou nenhum cinema no sertão nordestino e paraibano à época inviabilizando outra iniciativa 106 trabalho e o da apropriação do valor gerado pelo operário por seu patrão Valoriza o esforço operário afirmando este indivíduopersonagem social Confiramos essa proximidade Era ele que erguia casas Onde antes só havia chão Com um pássaro sem asas Ele subia com as casas Que lhe brotavam da mão De fato como podia Um operário em construção compreender por que um tijolo Valia mais do que um pão Naquela casa vazia Que ele mesmo levantara Um mundo novo nascia De que sequer suspeitava O operário emocionado Olhou sua própria mão Sua rude mão de operário De operário em construção126 O título da poesia traz o tema que guia e possibilita a narrativa a construção O poema se refere à construção das casas pelo operário e de si próprio no reconhecimento de seu trabalho127 Os objetos que podemos identificar nos fragmentos são casas chão pássaro mão operário tijolo pão mundo novo Alguns objetos estão na poesia de Brecht O pássaro representa o operário que desconhecendo seu próprio trabalho e a riqueza que gera deixa sua maisvalia ser obtida pelo patrão e não alcança seu voo permanece preso A imagem reforça como em Brecht a força e realização do trabalho que ergue edifícios O reconhecimento buscado em Brecht é histórico e em Vinicius de Moraes do próprio indivíduo Em O País de São Saruê objetos semelhantes ao dos referidos poetas podem ser identificados nos planos que já começamos a analisar ou na poesia que os acompanha Assim como são apresentados objetos que são partes da casa ou que podem construir uma tijolos os outros elementos estão todos presentes na composição desses planos As mãos dos sertanejos se movem a todo instante transportando objetos erigindo muros edificando a casa A poesia do filme menciona a construção da casa que brota do chão articulando a ideia de sua origem nas mãos calosas dos reis que nos lembra as mão de operários em construção de Vinícius de 126 Poesia disponível em httpwwwviniciusdemoraescombrptbrpoesiapoesiasavulsasooperarioem construcao Acesso em 17Jul2014 127 Consciência de si e para si é uma ideia central do marxismo O operário enxergaria a riqueza que produz com seu trabalho e como ela é apropriada por outro de diferente classe Este é um dos passos para a organização de classe almejada pelos comunistas Este passo subjetivo no entanto é alvo de grandes debates de vertentes mais clássicas como Louis Althusser ou mais culturais como o marxismo ocidental de Edward Palmer Thompson Há leituras que podem valorizar o papel estrutural função do posicionamento dos indivíduos no modo de produção ou sua dimensão subjetiva como os indivíduos através de experiências constituem uma identidade de classe na primeira tendência se aproximaria os marxistas clássicos e da segunda uma vertente cultural a grosso modo Não adentrando esse complexo debate basta compreender que seja qual for das acepções adotadas a consciência de classe é uma ideia fundamental para concepção de ação e independência política dos comunistas que buscaram orientar as práticas artísticas e culturais com maior ou menor controle dependendo do contexto para fomentar esse fenômeno Por fim o próprio artista era visto como um ser que podia ser alienado devendo procurar uma consciência artística que Leandro Konder em 1965 definiu como consciência de um indivíduo o artista que vive em uma determinada sociedade sujeito a injunções de toda espécie vinculado a uma determinada classe social sujeito à pressão de condições econômicas e obrigado a trabalhar dentro de uma determinada linha de condições culturais De modo que embora possa superar os limites de uma consciência filosófica e política alienada ela muito frequentemente é atingida pelas consequências das deformações ideológicas do artista KONDER 2009 p175 Assim a discussão sobre consciência ou não resvalava na própria identidade que era cobrada e buscada pelos comunistas e artistas 107 Moraes128 Diegeticamente a poesia do filme mostra apenas a ocupação do território até esse momento sem surgir antagonista humano para o sertanejo por isso o tema da luta de classes ainda não está presente Daí a permanência da qualificação dos sertanejos enquanto reis129 Os objetos da construção auxiliam na elaboração estética do tema trabalho segundo as convenções de diversas produções vinculadas ao ideário marxista presentes no Brasil da época Os camponeses embora não sejam operários representam outra classe que produz sua riqueza e que como exibirá depois o documentário tem seu trabalho apropriado por outro de classe Eles estão presentes no objeto humano que compõe os planos A performance desses homens na construção da casa traz um objeto que tanto representa a riqueza gerada pelo trabalho humano quanto um elemento civilizatório a transformação de um terreno selvagem em lar em moradia Por isso o último quadro que selecionamos mostra que após a casa cortase para um plano cujo enquadramento mostra um vilarejo Ou seja a casa individual representa o povoamento a ocupação sertaneja coletiva A casa filmada em si interessa menos que a ideia maior e abstrata que sua imagem suscita Assim afirmamos que Vladimir Carvalho se apropriou no documentário de temas e objetos presentes no estilo poético de outros artistas comunistas do período130 Fálo em imagens cinematográficas em elaboração própria O documentário tanto representa o trabalho autoral do cineasta quanto seu diálogo e inserção nos estilos artísticos da época Chico Buarque lançou no mesmo ano de O País de São Saruê o álbum Construção 1971 com uma música homônima Este é outro exemplo de obra que versa o tema da exploração do operário e usa dos objetos já referidos Na segunda estrofe do poema diz Subiu a construção como se fosse máquina Ergueu no patamar quatro 128 Interessante que aqui o termo rei se refere de maneira bem diversa o rei da poesia de Brecht representa os chefes de estado e a classe dominante na poesia de Jomar Morais Souto o termo rei se refere a um tempo mítico no qual os verdadeiros donos do lugar a dominavam os índios os populares Se a poesia de Brecht se opõe a autoridade através da imagem da realeza dominação a poesia do sertanejo usa essa imagem para remeter a uma legitimidade de posse e domínio semelhante a muitas histórias de tradição oral Não à toa o cordel e a cultura sertaneja estão ligados a uma forte herança medievoeuropéia identificada por diversos autores que se serve de mitos sobre reis rainhas etc Daí o contraste da construção poética dos dois textos que apesar de diversas propõem semelhante problematização a legitimidade de posse ou de construção de um grupo de homens contra outro Cabe ressaltar ainda que é o discurso fílmico de Vladimir Carvalho que trará a significação de luta classe mais fortemente algo que a poesia de Jomar Morais Souto não remeteria tão ostensivamente isolada Nesse sentido o filme é uma articulação de diversas mensagens e outros discursos que colados lado a lado criam uma rede nova de significações na qual podemos identificar o trabalho autoral e discursivo do cineasta 129 Vale ressaltar que na poesia e no enredo apresentado em imagens e sons até então a luta de classes não aparece diegeticamente Porém vimos que na introdução do filme quando foram apresentados seus temas gerais está indicada a relação de classe e o antagonismo homem versus homem Por isso afirmamos que se diegeticamente não se mostra a luta de classes a nível de discurso ela já estava presente 130 Vladimir Carvalho pode ter se apropriado de temas e elaborações das poesias e literatura comunista No entanto não nos é possível indicar a leitura de fato das obras indicadas Achamos mesmo assim certo o acesso do documentarista a poesia de Vinícius de Moraes e sabemos da disponibilidade da poesia brechtiana 108 paredes sólidas Tijolo por tijolo num desenho mágico Seus olhos embotados de cimento e lágrima Também para identificar o protagonista de sua narrativa Chico Buarque o distingue pelo seu trabalho O poema começa falando de sua saída de casa Até então este é um homem qualquer até que o verso o caracteriza enquanto operário O título reforça tal tema construção Seu trabalho está presente no erguer paredes e os tijolos são objetos que já identificamos antes Se os trabalhos de Brecht e de Vinícius de Moraes eram anteriores ao filme sendo discursos disponíveis a música de Chico Buarque demonstra que esses objetos e temas ainda eram correntes no início da década de 1970 Cabe indicar que não se quer aqui homogeneizar tais produções pelos seus temas mas indicar sintomas culturais como proposto por Panofsky Cada um dos três poetas possuem poesias com formas e conteúdos distintos autênticos e autorais Este esforço teórico demonstra a pertinência do trabalho na representação do sertanejo no documentário nossa tese A teoria marxista compreende o homem e sua especificidade através dessa em sua versão clássica afirmase que é a organização do trabalho que define os estágios e características das civilizações e mesmo sua cultura O documentário traz também um olhar contemplativo desse esforço sertanejo transformandoo em arte Os planos da construção são realizados com cuidado alcançando beleza abstrata Aos poucos uma casa se ergue e depois os planos mostram uma pequena fazenda habitada agora com criação de caprinos equinos em utilização crianças correndo uma civilização A câmera contempla esse povoamento A construção dessa sequência se aproxima da descrição da ocupação do território no Nordeste e Paraíba do geógrafo Manuel Correia de Andrade O processo foi realizado através de algumas medidas básicas para a formação das aldeias Geralmente os agricultores abriam clareiras na mata onde plantavam roçados e faziam uma choça que servia de abrigo nos dias de mais intenso trabalho e de local para guardar utensílios ANDRADE 2011 p155 Embora a menção do texto se refira à ocupação do brejo ela se encaixa nas imagens descritas A limpeza do terreno era um passo essencial para esse domínio do ambiente pelo homem Vimos como os planos apresentam um território com vegetação que se torna um espaço limpo aberto pela ação humana O espaço natural é humanizado civilizado As filmagens de sertanejos contemporâneos ao cineasta são relacionadas pela poesia aos indígenas estabelecendo uma relação de origem entre eles O sertanejo é identificado com um passado de ocupação deste território e com o indígena espoliado Ao mesmo tempo tematizase a dominação da natureza pelo homem através do trabalho algo menos presente na narrativa euclidiana que foi uma forte influência para Vladimir Carvalho Essa valorização do 109 trabalho enquanto objeto artístico foi uma característica presente a partir da influência do marxismo na arte brasileira o que identificamos enquanto um sintoma cultural Analisada a segunda sequência do documentário sobre a ocupação do território vamos para a terceira que traz outro aspecto da história sertaneja e sua ocupação a economia pecuária 46 A gente criada no árduo relacionamento com os bichos vaqueiro luta e arte O sertanejo se fixou na terra do sertão através da pecuária Entendemos a escolha de Vladimir Carvalho apresentar essa atividade no início do filme pelo caráter de base para a economia dessa região desde a colônia na gênese da civilização do couro A visão de sertão pecuário de Vladimir Carvalho possui duas influências referidas Capistrano de Abreu que fala sobre a civilização do couro e Euclides da Cunha e sua ideia do sertanejo como um forte O geógrafo Manuel Correia de Andrade indica que foram centros açucareiros que organizaram a arremetida para os sertões à cata de terra onde se fizesse a criação de gado indispensável ao fornecimento de animais de trabalho bois e cavalos aos engenhos e ao abastecimento dos centros urbanos em desenvolvimento 2011 p 183 O economista Celso Furtado compartilha dessa visão de que tal pecuária bovina extensiva foi uma projeção do açúcar Ressalta que a carne era o único artigo de consumo que tinha importância para ser suprimido internamente pois era parte da dieta dos escravos 1976 p 26 Além de ser uma fonte de energia aos engenhos que necessitavam de animais de tiro Havia portanto um contexto propício para a expansão dessa atividade Celso Furtado ressalta que era inviável criar gado na faixa litorânea dentro das próprias unidades produtoras de açúcar chegando o governo português a proibilas Havia um caráter itinerante e extensivo nessa cultura que se expandia quando ainda havia terra para ocupar131Assim a pecuária era uma atividade 131 Celso Furtado afirma que era inviável criar gado na faixa litorânea isto é dentro das próprias unidades produtoras de açúcar Os conflitos provocados pela penetração de animais em plantações devem ter sido grandes pois o próprio governo português as proibiu E foi a separação das duas atividades econômicas a açucareira e a criatória que deu lugar ao surgimento de uma economia dependente na própria região nordestina Na atividade de criação de gado a ocupação da terra era extensiva e até certo ponto itinerante O regime de águas e distâncias dos mercados exigiam periódicos deslocamentos da população animal sendo insignificante a fração das terras ocupadas de forma permanente As inversões fora do estoque de gado eram mínimas pois a densidade econômica do sistema em seu conjunto era baixíssima Por outro lado a forma mesma como se realiza a acumulação do capital dentro da economia criatória induzia a uma permanente expansão sempre que houvesse terras por ocupar independentemente das condições da procura A essas características se deve que a economia criatória se haja transformado num fator fundamental de penetração e ocupação do interior brasileiro 1976 p 27 Celso Furtado influenciou não apenas Vladimir Carvalho mas o próprio pensamento pecebista Esse caráter da importância do gado na ocupação é ressaltado por Caio Prado Júnior que também aponta a importância da mineração para esse processo que não foi um fato preponderante na Paraíba mas que teve sua importância na ocupação do grande sertão 2004 p 55 O sociólogo Francisco de Oliveira reconhece a importância da ocupação do sertão pela criação de gado mas indica que ela tinha pouca importância e 110 extensiva que necessitava de grandes espaços de terra participando do processo de ocupação do sertão132 Celso Furtado foi uma das leituras de Vladimir Carvalho à época do filme A maior influência sobre a região para o cineasta no entanto foi Capistrano de Abreu Ele afirma que às margens do Rio São Francisco se desenvolveu parte importante da criação bovina e a ocupação do sertão em sua relação com a expansão do gado necessária devido ao ambiente com menor disponibilidade de recursos naturais extraídos sem cultura O gado vacum dispensava a proximidade da praia pois como as vítimas dos bandeirantes a si próprio transportava das maiores distâncias e ainda com mais comodidade davase bem nas regiões impróprias ao cultivo da cana quer pela ingratidão do solo quer pela pobreza das matas sem as quais as fornalhas não podiam laborar pedia pessoal diminuto sem traquejamento especial consideração de alta valia num país de população rala multiplicandose sem interstício fornecia alimentação constante superior aos mariscos aos peixes e outros bichos de terra e água usados na marinha ABREU 2000 p151 Capistrano de Abreu reforça a distinção entre a cultura do açúcar e do gado indicando a diferença entre os recursos naturais litorâneos e no interior bem como o tipo de trabalho nessas atividades A pecuária necessitava de menor número de trabalhadores e fornecia uma alimentação constante e de boa qualidade O autor indica que apesar da fartura de carne e leite eram bastante difíceis as condições dos primeiros ocupadores do sertão que não eram os donos das sesmarias mas escravos ou prepostos faltavalhes outros alimentos para complementar sua alimentação 2000 p 153 Capistrano de Abreu descreve como Euclides da Cunha o cotidiano de trabalho do vaqueiro e suas atividades na fazenda cuidar do gado amansálo ferrálo dar fim a animais que ameaçassem sua criação como onças cobras e morcegos abrir cacimbas e bebedouros etc Aproximando cultura e produção afirma comenta sobre a época do couro De couro era a porta das cabanas o rude leito aplicado ao chão duro e mais tarde a cama para os partos de couro todas as cordas a borracha para carregar água o mocó ou alforje para levar comida a maca para guardar roupa a mochila para milhar cavalo a peia para prendêlo em viagem as bainhas de faca as broacas e surrões a roupa de entrar no mato os banguês para curtume ou para apurar o sal para os açudes o material de aterro era levado em couros puxados por juntas de bois que calcavam a terra com seu peso em couro pisavase tabaco para o nariz ABREU 2000 p 153 Essa relação entre a pecuária e a cultura material dos sertanejos é articulável com a expressão econômica afirmando que o Nordeste agrário nãoaçucareiro se definiu pela economia do algodão 2008 p 165167 132 O historiador paraibano José Octávio de Arruda Mello reforça tais afirmações De fato os bandeirantes percorrendo o curso dos rios se deslocassem com seu gado seguiase inevitavelmente a concentração destes currais campos cercados dotados de rústicas habitações de pauapique valoriza ainda a presença da economia pecuária como fator cultural na alimentação na vestimenta e no folclore 2013 p 7980 111 proposta do marxismo clássico de que o modo de produção define a sociedade e sua cultura A pecuária trabalho oferecia o caráter desse agrupamento humano O boi está presente também no próprio folclore e literatura regionais Essa interpretação do sertão está no documentário na qual identificamos a centralidade da influência marxista e de Capistrano de Abreu Na terceira sequência o documentário se ocupa de mostrar o homem sertanejo na civilização do couro e a cultura em seu redor Nela o filme elege como objeto central a atividade do vaqueiro Essa sequência se distingue das sequências da agricultura e da mineração nas quais mesmo tendo o trabalho como tema o enfoque é menos contemplativo que histórico ou sociológico133 É um capítulo rico em aspectos da cultura popular A presença desse tema no início do filme representa ainda uma introdução ao sertanejo Apresentada sua origem mostra suas características mais peculiares e presença contemporânea Ao final da sequência porém o documentário mostra seu declínio mantendo o jogo passadopresente através das imagens contemporâneas moldadas pela narrativa e sua montagem Sua cena inicial mostra dois vaqueiros montados em sua armadura de couro atravessando o pátio da fazenda de Acauã O áudio nos permite ouvir um cantador de toada Tenho a sela por assento meu gibão é minha tanga Sou José de Arimatéia No mundo sou conhecido Custo muito a chamar gado Mas quando chamo é bonito Toda bezerrama berra ouvindo o som do meu grito Boi lá CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 3 1155 1224 Os planos permanecem calmos mostrando os vaqueiros atravessando um rio Depois as imagens aceleram a ação dentro dos planos mostrandoos em meio ao mato evitando a galharia sertaneja abaixados Essa última cena se assemelha a uma encenação de Vidas Secas O ritmo das imagens se acelera ainda mais aumentando o contraste com o ritmo de até então A cantoria de José de Arimatéia descreve inicialmente suas vestes características a sela e seu gibão em seguida apresenta também seu ofício de vaqueiro afirmando que quando chama gado é bonito e eficiente pois toda bezerrama berra ouvindo o som de seu grito ou seja reconhecem sua autoridade de vaqueiro Em Os Sertões estarão presentes estes dois 133 A extração mineral também está presente no filme porém não se tornou objeto de nossa dissertação pois ela aparece menos por uma grande importância econômica que para mostrar devaneios dos sertanejos e ser uma metáfora do país rico de população pobre Sua construção é mais fabular que as demais Este é um tema a ser explorado futuramente e que pode ser identificado na forma como Vladimir Carvalho usou as entrevistas os recursos musicais a poesia e a construção dos planos nessas sequências Como um exemplo durante a entrevista com um dos pioneiros do ouro sem sincronia de som escutamos Pedro Alma falar sobre seu passado de exploração do ouro enquanto as imagens mostram o personagem falando com uma criança a seu lado que ri provocada pelos cineastas Ora sem sincronia entre imagem e som qualquer imagem poderia ser utilizada sem a necessidade da presença desestabilizadora das risadas da menina que retiram a seriedade do relato de Pedro Alma Esta foi uma escolha evidente da montagem e quiçá da própria filmagem A trilha sonora também é bastante fabulosa não reforçando a credibilidade da história 112 temas as vestes e o trabalho de vaqueiro Ambas são partes indicatórias dos costumes desse tipo sertanejo Cunha desescreve O seu aspecto recorda vagamente à primeira vista o de guerreiro antigo exausto da refrega As vestes são uma armadura Envolto no gibão de couro curtido de bode ou de vaqueta apertado no colete também de couro calçando as perneiras de couro curtido ainda muito justas cosidas às pernas e subindo até as virilhas articuladas em joelheiras de sola e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guardapés de pele de veado é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo Esta armadura porém de um vermelho pardo como se fosse de bronze flexível não tem cintilações não rebrilha ferida pelo sol É fosca e poenta Envolve ao combatente de uma batalha sem vitórias A sela da montaria feita por ele mesmo imita o lombilho riograndense mas é mais curta e cavada sem os apetrechos luxuosos daquele São acessórios uma manta de pele de bode um couro resistente cobrindo as ancas do animal peitorais que lhe resguardam o peito e as joelheiras apresilhadas às juntas Este equipamento do homem e do cavalo talhase à feição do meio Vestidos doutro modo não romperiam incólumes as caatingas e os pedregais cortantes CUNHA 2011 p122123 Euclides da Cunha descreve o vaqueiro como um guerreiro antigo em referência a um campeador medieval no entanto fatigado cansado de guerra descreve os materiais do gibão e chama essa roupa de couro de armadura valorizandoa mas atribuindo duas características negativas um anacronismo campeador medieval desgarrado em nosso tempo e ao mesmo tempo descreve como sem brilho tal vestimenta que a relaciona a uma batalha sem vitórias do sertanejo ou seja uma série de lutas nas quais não alcança glória mas que o desgasta Porém afirma que tal equipamento se ajusta ao meio sendo eficiente para o trabalho ou seja permitindolhe adentrar a caatinga e outros ambientes inóspitos Surge uma figura que é forte mas cansada um guerreiro porém de tipo anacrônico detentor de uma armadura eficiente mas sem brilhos maiores Construção antitética As construções de personagens de muitas obras de artistas ligados ao comunismo são elaboradas baseadas no trabalho operário como indicamos anteriormente Porém em O País de São Saruê a figura central não é um operário mas o sertanejo especialmente o agricultor o vaqueiro e o explorador do ouro134 Por isso a figura delineada nesta sequência não foi a do operário ou camponês mas o vaqueiro apresentado mediante a filmagem de seu trabalho Planos mostram o gado ao redor de um rio tangidos por vaqueiros Escutamos a continuação da cantoria a qual se soma o tilintar de sinos de gado valorizando a presença do 134 Por isso em entrevista nos extras do DVD de O País de São Saruê Vladimir Carvalho reconhece que seu documentário está dividido nos mundos animal vegetal e mineral referentes aos trabalhos da pecuária agricultura e mineração no sertão 113 boi nas imagens e no áudio A cena que se segue é a mais acelerada dentro do ambiente relativamente monótono das imagens do documentário135 Mostrase vaqueiros em gibão de couro amansando um touro brabo Usa maior número de planos com menores durações cada um gerando maior dinamicidade às cenas que são mais teatralizadas recorrendo à encenação136 O áudio não descreve o trabalho mas deixa que o espectador o contemple e o observe A cantoria traz outros temas deixando que a própria imagem em movimento descreva autonomamente o trabalho do vaqueiro Se a referida descrição de Euclides da Cunha inicia sua apresentação do vaqueiro como um trabalho ingrato e sem glórias O País de São Saruê exibe homens que alcançam grande eficiência e êxito no seu trabalho Enquanto isso a cantoria acaba e uma voz off traz informações sobre a pecuária no sertão Também se ouve uma música alegre e popular embalada por uma rabeca As imagens mostram um trabalho de esforço e sucesso e a música oferece um tom alegre que reforça a sensação de um sentimento positivo ao trabalho do vaqueiro Observemos planos que compõe a cena seguinte CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 3 1645 1704 À cena que apresenta o trabalho do vaqueiro sucede outra mostrando tradições populares de folgança o cavalomarinho Demonstrase sua popularidade pelo número de 135 Há várias maneiras de identificar o ritmo de um filme Chamamos de monótono aqui o ritmo da montagem baseado na quantidade de sucessão de planos em relação a uma mesma cena Embora o documentário tenha outros momentos mais acelerados em relação ao uso de maior número de planos eles em geral são a introdução e conclusão do filme que fazem mais parte da parte discursiva que diegética do filme Esse tema será objeto de maiores considerações no capítulo 4 136 Neste aspecto da representação este é um dos momentos do documentário em que este critério pode aproximálo da ficção Ao final do trabalho discutiremos essa localização do documentário entre sua dimensão documental e ficcionalizante 114 homens mulheres e especialmente crianças que assistem ao rústico espetáculo O sertanejo assiste a si mesmo pela cultura popular O primeiro plano mostra um grupo de bumbameuboi envolto pela multidão local A narração descreve Nascida e criadas no árduo relacionamento com os bichos as gentes do povo encontram no boi um motivo lúdico para a folgança E o trabalho penoso se transforma muitas vezes e vira lazer e divertimento numa inversão curiosa CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 3 1610 1625 Identificamos alguns elementos que nos interessam Na descrição dos costumes indicase a relação entre gentes do povo os sertanejos que nascem e crescem criadas em relação com o meio com os bichos daquela região Sendo o boi central para essa civilização do couro a cultura popular é também originada no próprio elemento do trabalho A expressão inversão curiosa reforça a oposição entre o trabalho penoso e o lazer e divertimento Essa construção não está apenas no conteúdo mas na forma Nessas cenas trabalho e folgança se relacionam através do contraponto entre imagens e áudio seja nos planos de trabalho penoso e música alegre ou quando planos alegres são acompanhados por descrição verbal dura pelos temas da cantoria ou pelas informações trazidas pela voz de deus Essa dimensão aproxima Vladimir Carvalho de Euclides da Cunha no sentido de construir a figura do vaqueiro de maneira ambígua porém sua dialética formação de tese e antítese é diferente da euclidiana na sua base teórica e no conteúdo selecionado Como vimos a antítese central para o escritor está na própria formação da raça enquanto para Vladimir Carvalho está na relação com o trabalho Se Euclides da Cunha fala em Hegel dialogando com sua base dialética muito embora o criticando por ter negligenciado os desertos e sertões como um lócus humano o documentarista se aproxima de uma dialética marxista Em seguida outro plano mostra um homem em mistura de vaqueiro e palhaço que desafia um boi lúdico artesanal Ele bate no boi com um pedaço de madeira e este o ataca com os chifres fazendo o palhaço dar cambalhotas que tiram risos da plateia Reproduzse a relação entre o boi e o homem no trabalho em que o último tenta dominar o primeiro137 A montagem sobrepõe tais cenas reforçando a relação entre essa expressão artística popular e o trabalho do vaqueiro A narração em voz over propõe uma maneira de ver mais explícita relacionando trabalho e contexto para explicar sua produção cultural Essa identificação do sertanejo e do vaqueiro por tais temas pode ser compreendida a partir dos discursos aos quais essa representação se apropria Por isso se Euclides da Cunha 137 Tratase aqui de um jogo entre uma elaboração da cultura popular e sua apropriação por Vladimir Carvalho em O País de São Saruê Interessanos para nossa análise mais como o documentarista se utiliza dela para elaborar um discurso que a construção da própria cultura popular 115 foi uma matriz reconhecidamente influente para o cineasta com a qual estamos colocando o filme em diálogo outro ponto central que representa também um ponto de inflexão e a originalidade do cineasta frente à influência euclidiana sua formação de cunho social com influências marxistas Como vimos a escola do partido é reconhecida pelo cineasta como um importante âmbito de formação sua atuação no Teatro Popular no CPC ou como repórter cobrindo temas para jornais locais ou do PCB tiveram influência em seu arcabouço intelectual Seu discurso documentário foca no trabalho e nas relações de classe o que nos leva a encaixá lo em relação à cultura política marxista da época Para Marx o homem e sua cultura são definidos por sua relação com os meios de produção em uma determinada ordem políticoeconômica138 O trabalho é entendido como a capacidade do homem de alterar a natureza agregando valor à matériaprima que modifica adaptandoa a suas necessidades139 A produção de riqueza e a transformação do mundo material são oriundas da categoria fundamental do trabalho a maneira como ele é organizado uma organização dos meios de produção é fator central para entender as relações humanas e sua organização hierarquização e produção cultural Essa é a base de roda a teoria marxista de entender a história as classes relações de trabalho arte e cultura Quando analisamos os planos de limpeza do terreno e construção de casas em O País de São Saruê apontamos elementos que constituíam a caracterização do homem filmado enquanto ser social Esses instrumentos foice facão etc o uniam à matéria natural possibilitando alterála Podemos articular esses objetos plásticos a um fragmento de Marx no qual indica a relação da produção material individual com aquela feita em sociedade Marx afirma que não há produção possível sem instrumento de produção esse instrumento será a mão Não há produção possível sem trabalho passado acumulado esse será a habilidade que o exercício repetido desenvolveu e fixou na mão do selvagem 1977 p 203 Aqui na construção semântica de Marx também vemos a articulação entre o elemento homem seu instrumento ele indica a mão mas podemos estender à foice por exemplo e ainda sua subjetivação de uma habilidade a repetição do selvagem 138 Afirma Marx em Contribuição à crítica da economia política 1859 na produção social de sua existência os homens estabelecem relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social política e intelectual o seu ser é o seu ser social que inversamente determina a sua consciência MARX 1977 p 24 139 Falamos aqui do que Marx chama de trabalho que cria valor de uso É um trabalho concreto e particular que consoante a forma e a matéria se divide numa variedade infinita de gêneros Afirma ainda que esse trabalho não é a única maneira de gerar riqueza mas que o é uma atividade que adapta a matéria a este ou àquele fim ele pressupõe pois necessariamente a matéria Há também o trabalho que gera valor de troca Ao contrário do anterior ele é social e não uma condição natural do gênero humano caracterizase pelo tempo de trabalho enquanto um trabalho geral abstrato e igual ou seja pela capacidade de criar produtos iguais e não pelo produto particular em si no seu valor de uso MARX 1977 p 39 116 Para Marx mesmo a arte está relacionada com o desenvolvimento de uma sociedade Por isso afirma que o difícil não é pensar como a arte grega e a epopeia estão ligadas a certas formas do desenvolvimento social mas como ainda proporcionam prazer estético e como ainda têm valores e modelos que nos transmitem algo hoje Para ele a arte grega e seu encanto não estão em contradição com o caráter primitivo da sociedade em que ela se desenvolveu mas se ligam justamente a tais condições que não poderiam repetirse MARX 1877 p 229 Como podemos ver a ligação entre o desenvolvimento de uma sociedade e sua produção artística serve tanto para confirmar uma regra geral sobre sua organização social quanto para indicar particularidades culturais Cada realidade deteria uma manifestação particular que pode ser entendida por um sistema geral que serve de matriz para essa teoria cuja categoria trabalho é central Se para o marxismo clássico essa relação é estabelecida entre estrutura econômica e superestrutura âmbito da ideologia essa foi uma postura assumida pela orientação oficial do CPC como podemos identificar pela seguinte passagem A arte quando vista no conjunto global dos fatos humanos não é mais do que um dos elementos constitutivos da superestrutura social juntamente com as concepções e instituições políticas jurídicas científicas religiosas e filosóficas existentes na sociedade Não vê a seguir que esta superestrutura longe de ter uma vida autônoma e uma direção própria independente de qualquer influxo exterior está ao contrário em estreita conexão com o conjunto das relações de produção que formam a estrutura econômica da sociedade MARTINS 2004 p 137 A figura do sertanejo e seus costumes foi uma imagem recorrente no cinema da década de 1960 Entre o Cinema Novo e o ciclo de documentário paraibano da década de 1960 uma vasta gama de literatura reproduziu essa imagem caracterizando essa região como Vidas Secas e A Bagaceira 1928 de José Américo de Almeida Esse sertão do trabalho dos costumes rústicos já constava no arcabouço cultural de Vladimir Carvalho ao viajar para o sertão da Paraíba Muito embora ele não soubesse o que iria encontrar também já esperava e procuraria imagens do sertão de suas memórias e de suas leituras O documentário se expande de maneira muito além dessa definição mais estreita marxista da relação entre estruturasuperestrutura Isso não quer dizer no entanto que ele não se aproprie em algum grau desse entendimento tornando porém em sua representação o sertão e sua cultura algo muito maior que um espaço econômicopolítico A origem do espaço de que se ocupa o documentário o sertão é construído através de filmagens contemporâneas articuladas a outros materiais de linguagens diversas poesia música cultura popular que orientados por uma montagem criam sentidos diversos daqueles elaborados originalmente O sertão do final da década de 1960 mostrado até então no documentário se serve de uma construção tão histórica quanto poética revelando a cultura 117 histórica na qual Vladimir se inseria A escolha narrativa de O País de São Saruê não foi históricolinear mas poética Ainda assim há elementos de cunho histórico e social reforçados pela própria construção poética do documentário Sua poeticidade está em consonância com um projeto político de transformação da realidade como veremos adiante A origem da região é apresentada pelas imagens contemporâneas que remetem metaforicamente a ocupação original do sertão através de muito labor lutas e opressões Esse discurso sobre o passado regional não era neutro ou inocente mas oferecia uma interpretação histórica pautada nas mudanças consideradas necessárias para o desenvolvimento e transformação da realidade nacional segundo a ideologia de comunistas e outros setores intelectuais brasileiros alinhados com o romantismo revolucionário da década de 19601970 As filmagens da época do filme permitem ao cineasta fazer um jogo passado presente apresentando sua origem poeticamente mas também articulando a persistência do atraso na região Apresenta métodos de produção arcaicos que requerem muito trabalho e que tem por obstáculo revezes climáticos Um povo cuja cultura se relaciona diretamente com o trabalho mas que está em decadência pela inserção de bens culturais alienígenas Uma região cuja opressão e exploração persistem desde há muito obstaculizando seu desenvolvimento140 No próximo capítulo apresentamos as relações de classe em outras sequências demonstrando mais fortemente os horizontes de expectativa oriundos da produção de O País de São Saruê Na estrutura geral do documentário há mais dois mundos do trabalho o cultivo do algodão e o ciclo do ouro O primeiro é exibido de maneira semelhante ao da pecuária mostrando seu trabalho na contemporaneidade à produção do documentário localizando ele historicamente e mostrando as contradições que o envolvem A sequência seguinte do ciclo do ouro possui um método diferente mais próximo do cinema verdade francês distinto das outras mais próximas ao documentário clássico flahertyano O elemento da entrevista ganhara espaço no documentário com a possibilidade som direto e a sequência sobre o ciclo do ouro mostra essencialmente os relatos sobre o finado ciclo do ouro na Paraíba Diferente dos anteriores ele fica entre realidade e fabulação proposta pela própria estrutura do documentário Optamos por nos cocentrar nos elementos da representação da pecuária e da agricultura Nestas duas sequências outros temas acerca da contradição do mundo do trabalho são desenvolvidos e são objetos do capítulo seguinte 140 O problema climático é apresentado e pode parecer até então o maior obstáculo ao homem porém o documentário desconstrói essa ideia mais à frente como apresentamos no capítulo seguinte A decadência da cultura e da civilização do couro está presente nesta sequência da pecuária porém é discutida mais explicitamente na sequência 8 que apresenta a feira de Sousa Nela se mostra a inserção dos bens culturais no sertão mostrando como os elementos culturais característicos vão se perdendo quando o sertão se torna um mercado mais conectado à economia mundial importando produtos básicos como a sandália de borracha Vladimir Carvalho usa como metáfora a troca da sandália de couro pela japonesa 118 Capítulo 5 A política em O País de São Saruê sertão trabalho e exploração No capítulo anterior analisamos a sequência que abre O País de São Saruê indicando a representação do espaço e do sertanejo centrada no conflito dele com seu ambiente o qual transforma através do trabalho Após o documentário abordar a pecuária são apresentadas as economias da agricultura de subsistência e produção do algodão e de extração de minérios de ouro e de outros minérios como a xelita Na etapa deste capítulo privilegiamos analisar o tema dos conflitos de classes no documentário por isso centraremos nossa atenção na sequência do algodão na qual nos parece mais presente este conflito Relacionamos o documentário ao projeto político pecebista ou seja à revolução nacional democrática que seria feita com forças nacionais progressistas e antiimperialistas do Brasil141 A sexta sequência aborda a produção de algodão no sertão mostrando o contrato de meação pelo qual se sustenta o poder do latifundiário sobre os trabalhadores pessimamente remunerados Esta sequência é onde a dominação de classe aparece de maneira mais explícita A sétima sequência já aborda a economia do algodão em etapa industrial e seus operários Ela possui um diferencial das demais analisadas pois após tempo considerável de filme usa de entrevista pela primeira vez Vladimir Carvalho inseriu um diálogo com o parlamentar e usineiro José Gadelha e através desse personagem problematiza ainda mais a contradição e o conflito entre patrão e empregados Nestas duas sequências o eixo do conflito entre homem e meio é transferido para homem versus homem Saltamos para a penúltima sequência Nela temos a última entrevista com o prefeito de Sousa Antônio Mariz Ele faz uma síntese sobre os problemas da economia sertaneja Afirma que a questão climática não é o único problema nem o mais grave do sertão mas a estrutura agrária Seu discurso é utilizado pelo documentário como uma síntese explícita do que foi apresentado durante o percurso fílmico em maior parte de maneira poética Por fim o documentário é concluído com uma sucessão de planos ao som da música tema As imagens são todas reutilizações mostrando personagens e objetos já introduzidos Elas são articuladas ao discurso verbal da música tema que apresenta outra síntese dos conflitos apresentados e o horizonte político de solução para o impasse não solucionado no filme Reforçase o caráter de dominação de classe para entender o sertão e seu povo 141 Indicamos aspectos de outros temas superficialmente dado nossos limites Temas como o imperialismo tão presente na sequência que mostra o voluntário americano Charles Foster no sertão ou o declínio da civilização do couro indicado na sequência da feira de Sousa poderão ser objetos de estudos futuros 119 Esse capítulo busca identificar os elementos de expressão a estética e o conteúdo propriamente dito para relacionálos ao discurso oficial pecebista sobre a questão agrária 51 O pensamento pecebista Antes de apresentar a análise do filme propriamente dita introduzimos os documentos que serviram de base para análise deste capítulo Começamos pela documentação oficial do Partido Comunista Brasileiro a fim de entender a visão institucional sobre os temas da luta de classes do rumo político brasileiro e de sua visão sobre o campo O PCB horizontes políticos A diretriz política assumida pelo partido a partir de 1954 e especialmente a partir de 1958 com o documento conhecido como Declaração de Março foi essencial para a relação entre artistas e PCB antes e durante o golpe militar contexto acompanhado por Vladimir Carvalho no partido e no CPC No final da década de 1940 e início da década de 1950 o PCB assumira uma política sectária e revolucionária oriunda da pressão exercida pelo retorno do partido à clandestinidade142 Porém o IV Congresso de 1954 e a Declaração de Março de 1958 demonstram um abandono dessa postura Essa mudança foi importante para a mudança no partido e em sua política cultural Consideramos a documentação entre 19541972 contemplando a elaboração de O País de São Saruê pois como indica Celso Frederico sobre a política cultural do PCB As tentativas então esboçadas para definir uma política cultural nos dez anos seguintes ao golpe militar só se tornam compreensíveis porém quando referidas ao longo do processo de desestalinização e superação do dogmatismo iniciado em fins da década de 1950 FREDERICO 1998 p 275 Nos antecedentes da Declaração de março estão diversos eventos dentre eles o impacto do suicídio de Getúlio e de sua carta testamento 1954 A partir daí a atitude perante o capital nacional e estrangeiro sofreu algumas alterações que podem ser identificadas na postura adotada pelo PCB no IV Congresso em 1954143 O partido assumiu a defesa de setores 142 O PCB teve a maior parte de sua trajetória na ilegalidade Antes do período em análise o PCB teve um período de legalidade de dois anos 19451947 143 O IV Congresso estava programado para ocorrer em 1947 no entanto devido às ações anticomunistas do Governo Dutra teve de ser adiado Ronald Chilcote aponta dentre várias características das teses para esse congresso que defendiam um período de desenvolvimento pacífico a substituição do fascismo pelo 120 progressistas brasileiros cujos interesses para eles estariam de acordo com a economia nacional e do povo Em vez da anterior defesa de uma expropriação indiscriminada do capital estrangeiro visavase agora apenas o confisco das empresas norte americanas FAUSTO 2007 p 499 e colocouse a possibilidade de atrair capital estrangeiro que auxiliasse no desenvolvimento independente da economia nacional em espécie de programa radical de desenvolvimento nacionalista para o qual o capital norteamericano e o latifúndio feudal eram obstáculos para impedir o progresso do país FAUSTO 2007 p 499144 Neste sentido sua posição perante o capital estrangeiro e o que se convencionou chamar de burguesia nacional vacilava entre a contradição básica do marxismo da luta de classes burguesia x operariado e a luta contra o imperialismo norteamericano que para a ideologia comunista145 substituía o fascismo enquanto inimigo prioritário no âmbito político internacional Esse foco no imperialismo também se articulava à aposta em uma aliança com a burguesia nacional e setores progressistas para o desenvolvimento do país não sem críticos internos dessa postura O partido ficaria entre duas posições uma de cunho mais radical propondo uma revolução e outra reformista defendendo mudanças através de uma atuação dentro do Estado burguês tendo assim maior peso na última a luta pela legalidade do partido que se encontrava na clandestinidade146 A partir do IV Congresso o PCB adotara a via reformista abandonando a perspectiva revolucionária interessados em obter a legalidade do partido e a participação no processo eleitoral Essa linha política se tornou conflitante com esses objetivos mais radicais Ronald Chilcote indica que houve quatro tarefas delineadas pelo programa luta contra o imperialismo imperialismo norteamericano como principal força reacionária internacional as contradições entre o monopolismo norteamericano e os povos coloniais e semicoloniais e com relação ao campo defendiam a reforma agrária através da Constituição Apontavam também a necessidade de encaminhar a revolução democrático burguesa no Brasil Esse Congresso no entanto só ocorreu em 1954 CHILCOTE 1982 p102103 144 Celso Frederico também corrobora com essa leitura afirmando que os comunistas deixaram para trás a política de recusa e enfrentamento e passaram a tentar interferir nos rumos do desenvolvimento através da pressão sobre o Estado e das campanhas nacionalistas pela encampação das empresas estrangeiras situadas nos setores estratégicos da economia No limite apostavam na viabilidade de um capitalismo monopolista de Estado e acreditavam ingenuamente ser este a antesala do socialismo 1998 p276 145 Ideologia aqui entendida não como um falseamento de uma realidade mas uma das instâncias do social referente a como os indivíduos constituem relações como representações Rosa Maria Godoy Silveira afirma que a produção ideológica tem existência material objetiva na medida em que toda sociedade e toda ação social necessitam de uma estrutura de sentido para se reproduzirem Portanto não se deve confundir ideologia com falsa consciência e alienação Aponta também a duplicidade da ideologia como forma de conhecimento na medida em que fornece ao homem certa inteligibilidade do mundo e porque o conhecimento sobre a ideologia permite em suma conhecer as relações sociais em que a mesma se concretiza e de dominação porque tendo por fundamento as condições objetivas da existência relações sociais de produção em uma sociedade de classes exprime as relações que as classes estabelecem entre si e a dominação que uma delas exerce sobre as demais 2009 p39 146 Ronald Chilcote afirma que uma aliança tácita entre PCB e PTB se delineava a partir de 1952 1982 p111 Essa aproximação do PCB com o PTB e com outras tendências nacionalistas evidenciase em seu apoio às candidaturas de Juscelino Kubitschek e João Goulart 121 norteamericano nacionalização das grandes propriedades rurais pelo confisco e distribuição da terra aos camponeses substituir o governo dos latifundiários e capitalistas por um governo democrático de libertação nacional e por fim formar uma frente antiimperialista e antifeudal para formação de um governo de coalizão CHILCOTE 1982 pp112113147 Essa postura política é importante para a compreensão de dois processos a referida maior aproximação entre intelectuais e artistas que caracterizou a história do PCB entre segunda metade da década de 1950 até o golpe militar bem como a politização da arte que marcou o país até o fechamento político do Ato Institucional n 5 Essa diretriz se manifestou diretamente na produção artística engajada pois sua produção visava interferir para a realização dessa transformação política nacionalista e denúncia de seus inimigos Foi essa perspectiva nacionallibertadora que aproximou o partido comunista de muitos setores da sociedade representando também uma busca de adaptação do PCB às mudanças modernizantes e à realidade política da época diminuindo a adoção imediata das diretrizes soviéticas Essa postura permaneceria em 1973 em pleno regime militar Essa posição política se articula ao romantismo revolucionário descrito antes Eram tais diretrizes que se articulavam às concepções de revolução e da questão agrária brasileira adotadas por muitos dos artistas vinculados ao PCB e ao CPC Daí a relação possível entre tais diretrizes partidárias e o discurso de O País de São Saruê Como vimos Vladimir Carvalho atuou no PCB e no CPC trabalhou para os jornais comunistas e reconhece a escola do partido como fundamental na sua formação Outro fator influenciou ainda mais a mudança no PCB a crise oriunda da denúncia do stalinismo no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética 1956148 Esse fenômeno afetou o movimento comunista internacional trazendo problemas e muitas cisões para o PCB149 gerando um posterior comedimento político e retorno à defesa de uma frente progressista em uma busca de manutenção da unidade partidária 147 Essa mudança ficou evidente com a Declaração de Março de 1958 Nela abandonavase o posicionamento mais esquerdista adotado com a orientação revolucionária de janeiro de 19481950 Nesse sentido a Declaração de Março de 1958 representou um divisor de águas para o PCB na década de 1950 Sobre o documento sintetiza Anita Leocádia Prestes a Declaração de março de 1958 representou uma virada na política dos comunistas brasileiros o abandono de uma orientação estreita e sectária cuja maior expressão fora o Manifesto de Agosto de 1950 Mas significou também a reafirmação da ideologia nacional libertadora cuja influência marcara a história desse partido PRESTES 2012 p 14 148 Segundo Chilcote foi apenas em 1958 que Prestes trouxe ao debate em março do XX Congresso e as denúncias contra Stálin Em outubro o PCB reconheceu sua omissão ao debate e avaliou que o partido precisava ser democratizado abrindo o debate dentro do partido Cf CHILCOTE 1982 p118 149 Com a denúncia dos crimes de Stálin e democratização do PCB houve uma divisão interna que a grosso modo foram conhecidas como o antigo núcleo dirigente chamado de fechadistas opondose a eles os abridistas ou renovadores pretendendo um debate aberto e o pântano ou grupo baiano que apoiaram os conservadores para derrotar os renovadores com o objetivo de conquistar os controles do partido CHILCOTE 1982 pp118119 Em meio aos embates gerados pelo debate que se fazia sobre o XX Congresso e as tentativas de fecharem o debate em nome da unidade do partido e da defesa dos princípios leninistas houve algumas cisões de militantes renovadores 122 Os rumos do PCB após 1958 seriam definidos por uma renovação no Comitê Central que incluía militantes não pertencentes à formação anterior150 O alagoano Alberto Passo Guimarães foi um desses novos dirigentes e uma forte influência do pensamento do partido comunista brasileiro sobre a questão agrária Em 1963 publicou Quatro séculos de latifúndio no qual se encontra os fundamentos da leitura majoritária da questão agrária no PCB De outro lado Caio Prado Júnior outro intelectual vinculado ao PCB critica a posição do partido acusando a direção de uma leitura apriorística e de desconhecimento da realidade brasileira incluída a questão agrária Em A Revolução Brasileira 1966151 escreve sua crítica às teorias a priori sobre a revolução no Brasil Defendia que a revolução deveria partir da conjuntura política e social imanente da realidade brasileira Esses dois intelectuais Caio Prado Júnior e Alberto Passos Guimarães representaram exemplos das divergências internas de entendimento do campo brasileiro O pensamento pecebista portanto não era monolítico 52 Dominação de classe A balança dos contentes pesa a sede dos magoados A análise centrase na representação do trabalho na colheita do algodão e da família camponesa sertaneja152 Nessa sequência é pautada a mecanização do trabalho e a divisão da sociedade em classes local e internacionalmente As metáforas da balança e de São Miguel Arcanjo no documentário se destacam153 A família camponesa A cultura do algodão foi importante para a economia nacional e paraibana particularmente para o sertão No entanto sua relevância econômica à época do documentário já se arrefecia havendo na década de 1970 tentativas de proteção dessa atividade que ainda 150 Mário Alves Giocondo Dias Armênio Guedes Jacob Gorender Alberto Passos Guimarães destaca Fausto não faziam parte da antiga formação do Comitê Central do PCB antes de 1958 Eles foram os responsáveis principais pela Declaração de Março de 1958 FAUSTO 2007 p510 151 Embora Caio Prado Júnior tenha sistematizado sua crítica no livro de 1966 ela já era conhecida pelo partido 152 Cabe ressaltar que sertanejo e camponês não são categorias iguais tampouco estamos pensando elas como iguais nesta análise Sertanejo se refere muito mais a uma identidade regional e a um recorte de um dos tipos nacionais enquanto camponês é uma denominação mais voltada para a relação dentro da estrutura econômicopolítica No entanto durante o documentário o sertanejo também é visto dentro de sua atuação enquanto operário ou camponês e portanto fazemos essas ligações entre a figura do sertanejo e a concepção de camponês pecebista através da qual se problematizava a conjuntura rural nas décadas de 19601970 153 O tema dessa análise já foi iniciado em trabalho publicado no Segundo Colóquio de História Arte 21 a 25 de maio de 2012 UFRPE com o título de A balança da injustiça em O País de São Saruê entre a fé e o capital Disponível em httpwww2coloquiodehistoriaearteblogspotcombr acesso em 26 de nov 2012 Há uma versão expandida esperando publicação sem data definida 123 hoje tem importância no nosso Estado O algodão é nativo da América e foi cultivado desde a colonização Ele chegou a ser utilizado como matéria prima para roupas de escravos e classes pobres inicialmente quando era uma cultura de expressão local insignificante e de valor econômico mínimo Este cenário muda na terceira metade do século XVIII quando começa a ser exportado PRADO 2004 p 148 Como a cana de açúcar teve sua cultura realizada no litoral a do algodão foi realizada no interior articuladamente à pecuária bovina Na Paraíba o algodão chegou a se tornar mais importante que o açúcar PRADO 2004 p 151 Baseada em Celso Mariz Marly Vianna afirma que o algodão já estaria no Cariri e no Rio do Peixe por volta de 1760 Afirma ainda que durante a crise de 18581860 quando houve uma queda no preço do algodão seu cultivo chegou às terras do Cariri A essa época já se havia notícias de plantações mais regulares e de algumas bolandeiras usadas para o descaroçamento VIANNA 2013 p 9295 154 O cultivo do algodão é o tema da quinta sequência que aborda o mundo vegetal ou seja a agricultura sertaneja apresentando a sobrevivência do plantador no contexto de dominação de classe Inicialmente é comentada por uma voz da Terra cujo texto foi encomendado ao poeta Jomar Souto para o filme Ela descreve o duro trabalho desse trabalhador um labor infeliz Evoca lutas de lusos e massacres cariris opondo as violências nessa terra às plumas branquinhas cor de giz que ela devolve ao ar Depois do desmatamento Depois da queima das urzes Depois de cruzes e cruzes Fincadas no esquecimento Depois das lutas com os lusos E massacres cariris Depois dos usos e abusos a minha terra infeliz devolve ao ar estas plumas branquinhas da cor de giz CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 6 2531 2555 Planos mostram a colheita realizada por homens e mulheres em meio a branco algodão e entre eles há um homem com roupas rasgadas Essa articulação de imagens reforça um efeito contraditório entre produção algodão e consumo as roupas velhas 154 A economia do algodão deve ser pensada em suas várias etapas Cabe apenas indicar que além do cultivo é importante o descaroçamento para extração da matériaprima e daí então sua venda ou transformação em tecido ou extração de seu óleo Quando posteriormente que no Brasil se desenvolveram as indústrias têxteis mudouse o cenário dessa economia no Brasil como veremos adiante 124 CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 6 2547 2611 Notese que primeiro um plano mostra o homem junto a outros trabalhadores que não estão vestidos de maneira maltrapilha porém é nele que a câmera se detém descendo aos poucos mostrando seu corpo todo até os pés O documentário usa um elemento metafórico em lugar de representação literal apontando uma contradição entre trabalho e consumo entre trabalho e pobreza presente naquela região Retomando o filme em nível de expressão temos uma sequência que mostra o homem colhendo o algodão com os pés sob o chão Nesse sentido os objetos colhedor e algodão dividem ambos o mesmo espaço porém o primeiro retira ao segundo sua roupa o branco As figuras negras dos trabalhadores assim como os algodões possuem uma estrutura plástica negra que se veste com o branco anunciado pela poesia anteriormente A poesia afirma que O apanhador que as apanha Sabe sim desde a raiz Quanto o branco no sol ganha Ou quanto perde o matiz O apanhador que as apanha colado à terra à raiz talvez se saia apanhado nesse labor infeliz Passa umas horas e às vezes As horas o sol esquenta E se sucedem às dezenas E viram dias e meses E vão virando alguns anos A vida toda a existência E o apanhador na cadência Mais de apanhado Que o dano De quem vive nesse afã Duro de Ministro ver É não ter o que comer Na terra de Canaã CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 6 2558 2712 Na poesia a oposição pobreza dos homens na riqueza do sertão está mais evidente A inversão apanhadorapanhado que aproxima algodão e colhedor também é reproduzida na fotografia os homens estão enraizados fotograficamente como plantas no chão como os algodoeiros também ornados de branco Suas vestes são fruto daquilo que tiram dessas plantas esperaríamos pela abundância de algodão nos planos anteriores que eles estivessem todos bem vestidos no entanto o homem maltrapilho representa esse trabalhador ficando tão nu quanto as plantas do algodão quando apanhadas E se a riqueza da planta seu algodão for comparada à riqueza do trabalho humano ambos saem apanhados pois este trabalhador não se torna rico com sua atividade Eis a riqueza estética dessa articulação dos 125 planos com a poesia de Jomar Souto Construções semelhantes metafóricas Na citação a parte do asterisco em diante consta na poesia de Jomar Souto mas não foi inclusa no filme Ainda assim a poesia apresenta o conteúdo que será apresentado por outras vias nessa sequência a relação entre a dureza do trabalho e a pobreza a fome no sertão Em O País de São Saruê o algodão é apresentado em um contexto de péssimas condições de trabalho e de pobreza Apesar disso essa economia já foi conhecida como ouro branco pela reconhecida riqueza que para muitos na Paraíba A cultura do algodão era realizada também por pequenos e médios agricultores e por isso atribuíase a ela um caráter democrático Todavia as relações entre agricultorlatifúndiocomerciantes não eram de uma real distribuição de riqueza Os pequenos agricultores sem direito a bons financiamentos eram sujeitos a relações de trabalho bastante desfavoráveis Gervácio Aranha aponta que a produção estava à mercê dos latifundiários que mantinham os trabalhadores sob seu poder e na cidade a circulação dessa mercadoria era controlada pelos comerciantes que compravam o algodão a baixos custos e garantiam altos lucros na revenda 1992 p 220155 Na base dessa economia estavam os agricultores e os operários da indústria aos quais restava a menor fatia do bolo enquanto latifundiários comerciantes e a indústria enriqueciam Em seguida uma cena mostra a família do homem maltrapilho voltando para casa após o trabalho mãe marido e filho em um plano médio a trilha sonora de música suave busca passar um sentimento de afetividade Mostrase eles em uma casa de taipa Um plano detalhe de um pássaro engaiolado e inquieto sugere a ideia de prisão Esse objeto é retomado insistentemente seja como parte de planos médios ou alternado em plano detalhe aos planos que mostram a família Os planos da casa pobre e rústica e da gaiola relacionam à pobreza uma situação da qual não se consegue escapar Em outra cena o homem de espingarda em mãos consegue uma pequeníssima presa O narrador em voz over descreve as relações de trabalho da região contextualizando Com a meação contrato em que o lavrador planta cultiva e colhe para dividir meio a meio com o dono da terra o fruto de um ano de trabalho não sobra terra tempo nem dinheiro para se cuidar da lavoura de subsistência Por isso nos meses secos quando escasseiam por completo os poucos víveres acumulados durante a safra os caboclos que não bateram em retirada apelam desesperadamente para a caça das ariscas e raras aves que ainda não emigraram fugindo da seca CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 6 2918 2946 155 Gervácio Aranha 1992 em sua dissertação de mestrado descreve a produção algodoeira paraibana articulandoa com a circulação de mercadorias especialmente quando Campina Grande se tornou um polo comercial de destaque especialmente com a presença do trem 126 Desta vez o drama do agricultor sertanejo não aparece ligado unicamente à seca como nas sequências já analisadas Ela está presente nos meses secos quando escasseiam por completo os poucos víveres acumulados durante a safra Sabemos por esse texto que as os víveres acumulados na safra período de fartura são poucos porém na referência sobre o contrato de meação mostra que há uma divisão que prejudica a sobrevivência do trabalhador A metade daquilo que produz é compartilhado com o dono da terra sobrando pouco para quem realiza o árduo trabalho ou em outras palavras impede a própria economia de subsistência como indica a voz over O filme apresenta de maneira explícita um método de exploração do trabalho do sertanejo popular articulada à metáfora deixada pelos planos do apanhador maltrapilho de algodão mas sem ainda fazer uma crítica aberta ao latifúndio Na relação de trabalho chamada de meação o agricultor divide sua produção mas existem outras como a morada na qual o trabalhador mora na propriedade do dono de terras realizando vários serviços Ambas eram denunciadas pela esquerda da época156 Após o rush algodoeiro os plantadores dificilmente sobreviviam apenas da cultura do algodão Segundo Manuel Correia de Andrade os agricultores sertanejos se uniram para produzir algodão e fazer plantação de subsistência A colheita e venda do algodão permitiam ao pobre trabalhador a aquisição de roupas e outros utensílios para a família Este era o modus vivendi do trabalhador sertanejo sem terras nas áreas da caatinga até quase os nossos dias Pelo calendário agrícola que expusemos observase que morando em uma propriedade tinha o trabalhador que dividir o seu trabalho entre o roçado próprio e o do patrão ANDRADE 2011 p 196 Nesta passagem percebemos o papel do algodão particularmente para conseguir roupas e utensílios para a família quando a alimentação era garantida diretamente pela agricultura O cultivo do algodão e a cultura de subsidência eram feitas simultaneamente de acordo com seus calendários 157 A divisão do roçado com o patrão é outro dado do cotidiano 156 A linha oficial do PCB atribuía a tais relações um status feudal O maior ideólogo dessa tese foi Alberto Passos Guimarães Caio Prado Júnior foi o crítico mais conhecido de tal posição divergindo sobre tal feudalidade mas denunciando as relações exploratórias como obstáculos para o desenvolvimento 157 Manuel Correia de Andrade descreve as culturas de subsistência e algodão Afirma que nos anos regulares os sertanejos em mutirão brocavam seus roçados limpavam a área para o plantio com foices e faziam a queima em fins de dezembro Com a chegada do inverno homem mulher e filhos faziam a semeadura de produtos como feijão ligeiro milho jerimum e melancia inicialmente e depois mandioca algodão milho e feijão depois Entre o primeiro e segundo plantios a família mantinha o roçado limpo enquanto o chefe trabalhava assalariado nas grandes e médias propriedades O salário era utilizado na aquisição da farinha que constituía com a caça do preá o alimento do cotidiano Até agosto eram colhidos e consumidos o milho o feijão o jerimum e a melancia Em setembro começavam a desfazer a mandioca a realizar a farinhada trabalho em que contava com a ajuda de parentes e amigos sendo a farinha guardada em sacos sobre jiraus existentes nas pequenas casas de taipa Esta 127 desses trabalhadores que também consta no documentário Porém diversamente somos informados pelo documentário que esse agricultor não tinha tempo nem terra para promover sua agricultura de subsistência A situação apresentada por Vladimir Carvalho bastante posterior ao auge do cultivo do algodão é diferente da elaborada por Manuel Correia de Andrade ela parece mais dura que a descrita pelo geógrafo A relação entre trabalhador e patrão se dava de maneiras diversas mas com o domínio do trabalhador pelo dono de terras como indicam Manuel Correia de Andrade e Gervácio Aranha158 O País de São Saruê no entanto aponta a meação ou seja o caso no qual há uma divisão da produção com o dono de terra Mais à frente o filme exibe a venda da produção do algodão e sua pesagem Este momento da pesagem é utilizado para criar tensão e problematizar a geração desigual de riqueza como mostramos adiante À cena que segue a pequena presa conseguida pelo sertanejo mostra a mulher cozinhando a magra caça A poesia de Souto retorna Asseo na trempe depois Dê ao menino um pedaço a sobra dá pra nós dois Amanhã vou para a rua vender plumas de algodão Volto de noite com a lua e rapaduras na mão CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 6 3043 3100 Sobre isso O filme articula a poesia com as imagens que mostram a pequenez da caça a rusticidade da casa e a roupa maltrapilha Esses elementos compõem um quadro de miserabilidade adquirindo grande efeito dramático Somos informados da luta pela sobrevivência desses pequenos agricultores a plantação de subsistência o cultivo familiar a caça para complementação da alimentação em tempos difíceis e a venda da produção do algodão Essas informações são trazidas por uma estética que causa forte impressão sobre o drama desses trabalhadores Ela almeja conseguir a simpatia do espectador e denunciar essa realidade FEITOSA 2012 p13 Constróise no filme a figura do agricultor do algodão homem pobre imagem da figura mal vestida mal alimentado na imagem da pequena caça em situação difícil que o oprime apanhador que sai apanhado da qual não consegue se emancipar alusão à prisão cooperação da farinhada é comumente chamada de ajutório A farinha devia ser consumida com parcimônia pois dela dependia o sustento da família até abril quando o roçado começava a dar jerimum melancia e as primeiras vagens de feijão ANDRADE 2011 p 196 Notese que em meio a sua descrição é indicado um momento no qual o trabalhador se torna assalariado complementando sua renda 158 O trabalho para o patrão era às vezes remunerado em dinheiro caso em que o morador necessitava pagar renda da terra que cultivava para si em dinheiro ou com parte da produção outras vezes ele tinha a terra para cultivar sem pagar rendas mas obrigavase a dar três dias de serviços gratuitos para o proprietário estando assim sujeito ao cambão A gama de relações era muito variável ANDRADE 2011 p 196 128 pela gaiola do pássaro Sobre tal construção a historiadora Shirly Souza em sua dissertação de mestrado indica que durante as cenas que apresentam essa família são mostradas galinhas gordas que poderiam servir de alimento a esses camponeses Todavia segundo a autora metaforicamente Vladimir Carvalho opta por incluir as aves em tais planos reforçando o caráter mais discursivo que de representação direta literal de seu filme159 A família nuclear do filme metaforiza a família camponesa sertaneja em geral Seu realismo está na crítica realizada no âmbito do discurso não necessariamente na literalidade das imagens Essa construção discursiva é semelhante à do catador maltrapilho de algodão No início desse conjunto de cenas sobre a família camponesa há outro dado valioso A música Acauã 1952 de José Dantas interpretada por Luís Gonzaga toca durante a cena da caça ela mistura alegria e tristeza no ritmo e na sua letra160 Ela diz Acauã acauã vive cantando Durante o tempo do verão No silêncio das tardes agourando Chamando a seca pro sertão Chamando a seca pro sertão Acauã Acauã Teu canto é penoso e faz medo Te cala acauã Que é pra chuva voltar cedo CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 6 2736 2835 Esta construção é semelhante à já indicada no Capítulo 2 acerca da crença popular sobre a relação entre seca e sinais naturais relacionados a aves Durval Muniz de Albuquerque Junior aponta que um dos temas das canções de Luís Gonzaga trata das crenças e superstições dos sertanejos indicando como exemplo Acauã Afirma ainda que Luís Gonzaga assume a identidade de um artista regional em 1943 representando o Nordeste e assumindo sua indumentária como a roupa do vaqueiro e o chapéu usado pelos cangaceiros Sua produção 159 Se observarmos atentamente toda essa sequência veremos que quando o casal chega ao terreiro de casa há algumas galinhas no quintal e passarinhos na gaiola que parecem maiores que a caça Se considerássemos o documentário como uma reprodução do real esses detalhes poderiam contradizer a situação de miséria dessa família Entretanto não há tal contradição porque essa sequência é uma miseenscène da própria miséria do sertanejo representada no filme por essa família nuclear pai mãe filho Por ser uma encenação explícita confessa é lembrada por JeanClaude Bernardet como uma reprodução do cotidiano feita a pedido do diretor em busca de um real perdido Ou ainda um caso exemplar que o diretor oferece ao público fazendo a passagem da parte para o todo Assim provavelmente o homem é visto como o responsável pela manutenção da família Apesar de a mulher trabalhar ao seu lado na colheita do algodão é ele quem sai para caçar quem traz o alimento para casa e quem lhe dá as ordens por meio do poema em off citado anteriormente Logo essa dramatização da miséria pretende despertar o sentimento de simpatia no espectador Afinal seria difícil algum espectador não se comover diante da dificuldade de um casal trabalhador em alimentar o próprio filho cuja única refeição é um pássaro minúsculo que possivelmente não irá matar a fome nem da criança No final da cena o silêncio é total Sem música Sem poema Apenas a troca de olhares entre o menino e o pai é o suficiente para sintetizar a miséria SOUZA 2010 p 2425 160 Luiz Gonzaga do Nascimento 19121989 foi um compositor popular brasileiro Tocava músicas identificadas com a cultura nordestina Sobre a obra de Luiz Gonzaga e a relação entre sertanejos e sua superstição relacionada às aves consultar a dissertação de mestrado em Ciências Sociais de José Farias dos Santos Luiz Gonzaga a musica como expressão do Nordeste 2004 129 era dirigida ao migrante nordestino radicado no Sul do país e ao público de capitais nordestinas que podia consumir discos Aponta que É necessário chamar a atenção no entanto para o fato de que não sendo o letrista de suas próprias composições embora delas participasse sendo parceiro de vários letristas seu trabalho não apresenta uma unidade de pontos de vista no que tange a uma postura política 2011 p 175 Durval Muniz de Albuquerque Junior ainda aponta que o espaço desenhado pelas canções de Gonzaga é sempre o do Nordeste e no Nordeste o do sertão Este espaço abstrato surge abordado por seus temas e imagens já cristalizados ligados à própria produção cultural popular a seca as retiradas as experiências de chuva a devoção aos santos o Padre Cícero o cangaço a valentia popular a questão da honra Um Nordeste do povo sofrido simples resignado devoto capaz de grandes sacrifícios Nordeste de homens que vivem sujeitos à natureza a seus ciclos quase animalizados em alguns momentos mas em outros capazes de produzir uma rica cultura 2011 p 181 Não acreditamos todavia que Vladimir Carvalho abrace todas essas características da representação de Nordeste elaborada nas músicas de Gonzaga que como vimos sequer tem unidade política O cineasta se apropriou desse texto aqui entendido como conteúdo e estética da canção Acauã tornandoa parte de seu discurso Por isso se algumas dentre as características do sertão de Gonzaga elencadas por Albuquerque estão no documentário a seca a devoção o sofrimento a simplicidade outras estão menos presentes como a resignação ou ausentes como a animalização do sertanejo Albuquerque reforça que a música de Gonzaga estabelece fronteiras entre o Sul e o Nordeste sertão havendo nela um caráter autodepreciativo do sertão de Gonzaga atrasado e cheio de problemas carente de salvação em contraponto com a civilizada e moderna cidade grande sulista Por outro lado elas cantavam um sertão de saudade ainda presente na identidade cultural popular e da não separação do homem e da natureza e de certos aspectos comunitários 2011 p 185 Em diversos aspectos se cruzam os sertões de Gonzaga e de Vladimir Carvalho como de um espaço poético onde o homem e a natureza estão próximos Porém o documentário não contrasta a vida na cidade grande com a vida no campo tampouco mostra o sertanejo popular como um sujeito a espera de salvação O filme identifica a exploração do homem pelo homem e insinua que cabe aos populares resolver tal situação A construção do discurso fílmico se apropria de elementos diversos da cultura seja popular ou 130 da indústria cultural tornandoos partes de seu discurso servindose de significações que eles remetem mas também as atualizando em um novo produto cultural A música fala do anúncio da ave de Acauã pelo seu canto dos tempos de seca Como vimos a voz over explicita em parte algo que a música traz a situação de seca e a procura de caça para alimentação dos sertanejos Ao mesmo tempo no momento em que o pai vai com sua espingarda conseguir a proteína de alguma ave a música diminui ouvimos a voz over para depois ouvir a canção retomada em um crescendo enquanto Luís Gonzaga imita o som do piado de acauã essa construção não é apenas interpretação nossa mas está explicitada no roteiro de O País de São Saruê Quando o homem aciona o gatilho ouvimos o tiro e o som da música cessa restando apenas estalidos secos até retomar à dramática poesia de Jomar Souto causando forte impacto A música não apenas fala do cotidiano sertanejo em estética regional mas também representa a metáfora do sertanejo como um forte já reforçada anteriormente pela poesia e imagens ouvindo o som de acauã anunciando fome e miséria o homem não baixa a cabeça mas vai atrás de comida atirando no próprio canto dessa ave no próprio anúncio de sua miséria161 Essa construção era de interpretação mais sofisticada não se encaixando em um discurso mais explicitamente político Era no entanto uma metáfora possível dentro dos limites impostos pela censura e que poderia ser entendida pelos círculos nos quais se almejava que o filme fosse exibido especialmente estudantil A canção de acauã é outro objeto discursivo que auxilia na construção do esquema geral sobre a vida do camponês e sua família Ocorre uma troca entre o discurso do filme e o prestígio de Gonzaga que é familiar aos seus ouvintes Facilitase a apreensão da realidade e reforçase sua validade por outras referências culturais Algodão e Arcanjos Uma cena alterna planos de um casal andando e planos detalhe de chão pedregoso e de vegetação espinhosa162 Interpretamos essa construção como referência à dureza da vida sertaneja Novos planos mostram uma imagem de São Miguel Arcanjo A poesia anuncia Nem me incomodo com a sede que vai me dar também não Faço fé que na parede quando eu pesar o algodão São Miguel se compadeça e mate mesmo 161 Sobre isso cabe ainda comentar que Bernardet analisa um filme Viramundo 1965 indicando semelhante uso da música que cabe a mesma indicação aqui A canção é escrita na primeira pessoa A generalização fazse pela apreensão de uma experiência coletiva expressar por um personagem mítico O cancionista reelabora em termos míticos portanto gerais abstratos e abrangentes o conjunto das experiências individuais similares das quais ele guarda o denominador comum BERNARDET 2003 p20 162 Interpretamos esse tipo de plano como uma referência a relação entre o homem e o meio hostil sertanejo 131 o dragão E dê um jeito que desça aqui pra junto da gente aquela outra balança que ele sustenta na mão pra pesar com segurança minhas plumas de algodão São Miguel está na sala lancetando um dragão e a balança não resvala para quem dá duro não Uma sagrada balança ele sustenta na mão Na outra mão uma balança lancetando um dragão Ele vai fazer mais justos os preços que as plumas dão Afinal custaram custos minhas ramas de algodão E ele sabe é dura a lida para quem vive no sertão CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 6 3130 3220 A poesia de Jomar Souto roga a S Miguel que seja aplicada sua justiça na pesagem do algodão A balança do arcanjo poderá pesar com segurança seu algodão Sugerese a existência de uma ameaça o dragão reforçado pelo desejo de segurança pede sensibilização para seu sofrimento que se compadeça combatendo o mal com sua lança e fazendo justiça signo da balança A injustiça é sugerida pelo valor oferecido ao produto do trabalho desses sertanejos o algodão163 Nenhum símbolo tem significação por si mas oferecemoslhe sentido a partir do contexto cultural que nos inserimos Alguns significados têm construção longa em camadas de cultura de décadas ou séculos Por isso faremos uma breve historicização da imagem de São Miguel Arcanjo a fim de entender seu uso no filme de Vladimir Carvalho Os anjos são reconhecidos como os mensageiros de Deus São Miguel é conhecido como o chefe das milícias angélicas aquele que manda Satanás e os outros anjos decaídos para os infernos São seres intermediários entre Deus e o mundo mencionados sob formas diversas nos textos acádios ugaritas bíblicos e outros CHEVALIER 2009 Muitas vezes foi definido como o vencedor de dragões E há ainda a crença na Idade Média da intervenção de anjos em situações de perigo ou nas guerras Nas orações e ladainhas de evocação a S Miguel é comum a solicitação de sua proteção contra Satanás Percebese então a função de S Miguel nos embates entre a vontade de Deus e a vontade do Diabo em cuja arena também nos encontramos fracos humanos164 163 Embora na imagem utilizada no documentário não esteja representado como um dragão na Idade Média era comum representar S Miguel em embate contra seres animalescos muitas vezes com um dragão representando o diabo CAMPOS 2004 p104 164 S Miguel é mencionado tanto no Antigo quanto no Novo Testamento Sua primeira representação figurativa identificada foi no mosaico presbiterial de S Apolinário Novo em Ravena no século VI A imagem mais popular de S Miguel o mostra pisando um ser misto de besta e homem o Diabo Essa iconografia não teria surgido no Ocidente antes do século IX e teve grande difusão durante a Idade Média A difusão do culto a S Miguel remete aos séculos V e IX na Europa Em Portugal o culto parece mais tardiamente à época de D João III no século XVI alcançando suas colônias Adalgisa Campos indica que a introdução das balanças se fez de maneira tardia a partir do século XIX vinculadas a uma mudança na visão sobre o purgatório da Igreja Católica no século XIII Cf CAMPOS 2004 Permaneceu um caráter escatológico pela inserção das balanças nas quais ficavam as almas representando o dia do julgamento daqueles que irão aos infernos ou aos céus pesados através de sua balança já a referência ao conflito entre o bem e o mal na sua representação figurativa pelo embate entre o anjo e o diabo também ficam Estes não foram deslocados do cotidiano do homem Assim há continuidade na presença da balança e da espadalança 132 Na imagem de S Miguel utilizada no filme ele pisa o demônio enquanto segura a balança e a espada nas mãos esquerda e direita respectivamente A balança é conhecida como símbolo da justiça da medida da prudência do equilíbrio porque sua função corresponde precisamente a pesagem dos atos CHEVALIER 2009 Como símbolo do julgamento ela se articula com uma aceitação da Justiça Divina Esse imaginário já estava presente na Antiguidade no Egito Antigo na figura de Osíris que pesava a alma dos mortos na iconografia cristã esse papel se refere a São Miguel Arcanjo do julgamento Entre os gregos antigos a balança também se relacionava à noção de julgamento de justiça de medida e de ordem Era representada por Têmis que rege o mundo segundo uma lei universal Têmis é representada com uma espada e uma balança nas mãos e muitas vezes com os olhos vendados símbolo da imparcialidade e não da cegueira HACQUARD 1996 Assim há proximidades entre São Miguel e Têmis não apenas a noção de justiça está ligada a ambos mas também a de medida entre o pecado e a virtude em S Miguel e da ordem S Miguel é aplicador da ordem divina sobre o desordeiro Satanás A figura de Têmis e de S Miguel se assemelham bem como da imagem que temos da justiça hoje No entanto há uma diferença apesar de ambos possuírem uma espada na mão e na outra uma balança há ausência da venda símbolo da imparcialidade na representação do arcanjo No pensamento cristão essa construção se encontra diversa há uma ordem divina a ser seguida e aplicada a ordem de Deus Não há necessidade de venda mas de enxergar claramente a lei divina Cabe ainda problematizar outro elemento o signo da espada Ligado ao estado militar e à bravura também tem função de poderio que pode ter caráter destrutivo ou construtivo Caso essa destruição seja aplicada contra a injustiça a maleficência e a ignorância tornase positiva É construtiva caso estabeleça a paz e a justiça Associada à balança se aproxima ao sentido de justiça separando o bem do mal e golpeando o culpado CHEVALIER 2009 Identificamos a espada enquanto um símbolo de poder e da mediação de conflitos o estabelecimento da paz e da justiça subentende a existência de um conflito Tais informações explicam a associação da balança e da espada em S Miguel juntas separam o bem do mal A justiça divina apoiada na vitória da vontade de deus sobre a do diabo o culpado Entendemos então que o filme apropriase de uma imagem religiosa para construir uma metáfora das ideias de justiça e do conflito da luta do bem contra o mal Relaciona a injustiça da pesagem do algodão à própria figura do Diabo Essa tensão embora não se diga no século XX Abordemos a importância desses signos na construção dessa imagem 133 com tais palavras pode ser entendida como a sugestão da dominação dos conflitos de classe Tais contradições de classe estavam configuradas no Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura da seguinte maneira Em nosso país as contradições cada vez mais agudas entre as forças produtivas em avanço e as relações de produção em atraso entre as classes vivendo de seu trabalho e as classes apropriando do trabalho alheio entre a nação despertando para a conquista de seu futuro histórico e o imperialismo desejando para si o império da história são as contradições que não podem deixar de se refletir em cada um dos aspectos da vida nacional e acentuar cada vez mais sua presença tanto no nível da infraestrutura quanto no da superestrutura ideológica MARTINS 2004 p 141142 Na citação estão presentes os elementos das diretrizes políticas oficiais do PCB que opõe a classe entre os agentes produtores e aqueles que se apropriam do trabalho do homem porém com um recorte nacional cujo obstáculo para o seu desenvolvimento econômico produtivo são o atraso e o imperialismo ambos presentes na infra e superestrutura Nessa sequência a exploração do homem pelo homem está presente no tema da injustiça Esse conflito é relacionado metaforicamente à luta do bem contra o mal cristalizada no imaginário religioso do sertanejo daí a inserção de uma imagem recorrente entre estes populares A balança uma metáfora para a injustiça concreta infraestrutural e o São Miguel Arcanjo articulando sua leitura superestrutural no entendimento popular e religioso do sertanejo Nessa sequência enquanto ouvimos a poesia são mostradas cenas de trabalhadores que andam por caminho pedregoso levando na mão não apenas o algodão mas uma foice e uma espingarda Não seria uma alusão a espada de S Miguel ambas armas e a quem caberia solucionar aquela situação Naquele contexto de Guerra Fria e de ditadura militar a imagem de populares com armas ainda mais associada à foice ou ao martelo poderia ser facilmente relacionada a revoluções comunistas165 Não à toa no processo de tentativas de liberar o filme pela censura a questão das armas foi motivo de problema O parecer de uma censora acusando o filme de namorar as armas deu mostras de que sua autora captara as mensagens subliminares de Saruê Não sem boa dose de ingenuidade eu havia introduzido referências às armas no cotidiano dos camponeses Há a caminhada de um sertanejo com espingarda e foice à mão homens apontando armas para o alto no mercado outros empunhando uma foice e um martelo em meio a uma roda de ferramentas Numa das cenas em que posou como ator meu irmão conversa com um 165 Lembremos que não tão distante em 1959 houve a revolução cubana e nos anos 19691971 foi o período de desmantelo de grupos guerrilheiros brasileiros cujo sonho era realizar uma guerrilha no campo A única que se desenvolveu ocorreu entre 1972 e 1974 a guerrilha do Araguaia RIDENTI 2000 p 41 134 camponês e casualmente devolvelhe um facão Essa pequena tomada eu reparti em três segmentos para atribuir o caráter de metáfora MATTOS 2008 p133 As armas estão presentes no cotidiano popular sertanejo independentemente de seu filme porém isso não impediu que assumissem caráter ideológico naquele contexto político Também serviram para Carvalho realizar efeitos narrativos e metáforas como os planos de seu irmão devolvendo um facão a um camponês repartido em três segmentos portanto houve uma intencionalidade neste processo de montagem Já apresentamos a centralidade histórica da economia algodoeira que justifica a escolha do tema por Vladimir Carvalho Porém cabe inserir mais informações para compreender melhor o contexto paraibano com o qual o documentário dialoga A sétima sequência é aberta com uma narração grave em voz over que informa sobre a produção de algodão Ela descreve sua intensificação no século XIX com a Guerra Civil nos Estados Unidos e sua inserção econômica no mercado internacional Entre 1750 e 1930 o algodão foi um dos principais produtos nordestinos Os avanços técnicos europeus no século XVII permitiram o melhor aproveitamento dessa matériaprima tornando a matéria prima industrial do momento entrando para o comércio internacional em proporções que este desconhecia ainda em qualquer outro ramo até então o linho e a lã eram os materiais mais utilizados para os mesmos fins PRADO 2004 p131 No século XIX com os estudos de Arruda Câmara o algodão passou também a ser utilizado pela extração do óleo de sua semente a abertura dos portos de Recife ligando a região ao comércio inglês e depois ao francês também ajudaram a impulsionar essa economia Celso Furtado chega a afirmar que o algodão chegou a representar 50 da produção cafeeira diferentemente da anterior relação de menos de 10 em 1929 isso se deve à crise do café que volvera capitais para a economia interna e mesmo para a economia exportadora166 Vale comentar que esse boom algodoeiro não foi exclusivo da América mas ocorreu 166 Porém o algodão Ao manterse a procura interna com maior firmeza que a externa o setor que produzia para o mercado interno passa a oferecer melhores oportunidades de inversão que o setor exportador Criase em consequência uma situação praticamente nova na economia brasileira que era a preponderância do setor ligado ao mercado interno no processo de formação de capital A capacidade produtiva dos cafezais foi reduzida a cerca da metade nos quinze anos que seguiram à crise Restringida a reposição parte dos capitais que haviam sido imobilizados em plantações de café foram desinvertidos desinvestidos Boa parte desses capitais não há dúvida a própria agricultura de exportação se encarregou de absorvêlos em outros setores particularmente o do algodão O preço mundial deste produto havia sido mantido durante a depressão em benefício dos produtores e exportadores norteamericanos Os produtores brasileiros não deixaram passar essa oportunidade pois já em 1934 o valor da produção algodoeira preços pagos por produtor correspondia a 50 por cento do valor da produção cafeeira enquanto em 1929 aquela relação havia sido de menos de 10 por cento FURTADO 1976 p 197198 135 em outros lugares como o Sul dos Estados Unidos mas também no Egito Peru e na Índia OLIVEIRA 2008 p 167 Cabe ressaltar que a desorganização econômica gerada pela Guerra de Secessão nos Estados Unidos abriu uma oportunidade de expansão econômica do algodão brasileiro pois eram estes grandes fornecedores desse produto Esse aumento da produção algodoeira a nível nacional chegou ao Sul que rivalizou e superou a produção nordestina Porém a época de ascensão indicada por Furtado não foi tão boa para a Paraíba que não conseguira competir com o algodão paulista RÊGO 2008 p 105 No entanto com o declínio dessa cultura no Brasil ela foi restringida a alguns pontos O país inteiro foi atingido pelo boom Não seria aliás mais que isto um acesso de febre momentânea Com o declínio dos preços que se verificará ininterruptamente desde o começo do séc XIX conseqüência sobretudo do considerável aumento da produção norteamericana e do aperfeiçoamento da técnica que o Brasil não acompanhou a nossa área algodoeira vai se restringindo e se estabilizará com índices muito baixos apenas em dois ou três pontos PRADO 2004 p 150 Manuel Correia de Andrade indica ainda que a importância do algodão no século XX teria sido mais se não fossem a crise de 19291930 a praga da lagarta rosada e a expansão dos algodoais paulistas 2011 p159 ampliando nesse debate os fatores de declínio dessa economia Porém Gervácio Aranha indica que entre 1920 e 1930 houve um aumento da exportação do produto na Paraíba que chegou a ocupar o primeiro lugar no estado 1992 p143 É nesse momento que chegam as multinacionais na Paraíba gerando mudanças Apesar de um pequeno desenvolvimento industrial entre 1920 e 1940 a Paraíba permaneceu em estado eminentemente agrário167 Nas décadas de 1940 e 1960 o setor primário teve papel fundamental para sua economia e o setor secundário um crescimento que foi obstaculizado com a integração interregional que prejudicou a industrialização do 167 No documento Uma Política de Desenvolvimento para o Nordeste elaborado por Celso Furtado no Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste GTDN o economista aponta que havia uma evacuação de divisas para o Sul do país Apesar de um consistente volume de exportações do Nordeste tais divisas geradas foram transferidas para outras regiões do país o eixo CentroSul dado a política de controle das importações do período que fazia com que o comércio entre as duas estabelecesse relações desiguais Cf PDNE 1959 p26 A eminência agrária não da Paraíba mas do Nordeste já constava em Josué de Castro autor de grande influência para Vladimir Carvalho em Geografia da Fome 1946 como uma denúncia das desigualdades regionais e do atraso é preciso não esquecer que no Nordeste 74 de sua população ativa se ocupa nas atividades primárias da agricultura enquanto no resto do Brasil esta média é de 61 apenas Daí a maior necessidade do nordestino dispor de mais terra em condições favoráveis para tornála produtiva Condições praticamente inexistentes no atual sistema agrário regional Para evidenciar esta situação basta uma cifra 50 da área total do Nordeste são açambarcados por 3 dos seus proprietários rurais e é por isto que mais de 50 das propriedades contam com mais de 500 hectares de terra Ao lado deste latifúndio há a pulverização dos pequenos retalhos de terra os minifúndios improdutivos CASTRO 1984 p260 136 Nordeste pela do Sul com as quais não conseguia competir CITTADINO 2006 p234238 Ainda assim esse setor desenvolvido foi presente nos gêneros têxteis que se relacionavam à produção do algodão Embora o clima do sertão seja adequado para o algodão as secas também prejudicavam essa cultura168 É interessante notar que o cultivo do algodão é simples e foi realizado em larga escala no sertão Combinouse com a estrutura fundiária da pecuária sertaneja a criação de gado é a atividade econômica mais ligada ao latifúndio pois os grandes proprietários são sempre principalmente pecuaristas e só subsidiariamente agricultores Esta regra só é quebrada nos brejos onde as condições climáticas são desfavoráveis à criação de bovinos e onde a propriedade está quase sempre muito dividida ANDRADE 2011 p159 169 O arrendatário era a figura que dividia sua renda com os grandes proprietários eram conhecidos localmente como foreiros LEWIN 1993 p 66 MEDEIROS 2000 p 333 Como dito no sertão era mais presente a figura do agregado e do meeiro que continham relações mais diretas com o dono das terras170 Os meeiros eram os trabalhadores contratados através da meação sobre essa condição comenta Linda Lewin A verdadeira meação prevalecia em ambas as zonas sertanejas onde predominavam as árvores perenes de algodão Os meeiros recebiam dos proprietários tanto sementes de algodão como de cereais em alguns casos recebiam empréstimos sem juros para comprálas Em troca o meeiro trabalhava dois ou três dias por semana nas terras do proprietário e hipotecava uma parcela predeterminada de sua própria colheita de algodão usualmente uma saca de algodão cru Se ocorresse um desastre e a colheita fracassasse o meeiro tornavase um prisioneiro do proprietário no ano seguinte não apenas uma mas duas sacas de algodão cru seriam exigidas O trabalho forçado por dívida estava portanto implícito na meação LEWIN 1993 p67 168 No documento Uma Política de Desenvolvimento Econômico para o Nordeste Celso Furtado indica que entre 1948 e 1953 o algodão nordestino foi seriamente prejudicado por fatores naturais mas também pela política cambial GTDN p40 Dessa maneira fatores climáticos administrativos e sociais se combinavam na difícil situação dessa economia estando na preocupação de diversos intelectuais das mais diversas áreas na época 169 Sobre a diferença entre Brejo e Sertão na Paraíba identifica Gervácio Aranha entre Agreste e Sertão algumas diferenças se faziam presentes entre as duas regiões Eis alguns exemplos 1 Se no Agreste além do agregado e do meeiro era comum a figura do arrendatário que fornecia uma parte significativa da renda fundiária destinada aos grandes proprietários no Sertão praticamente inexistia a figura do arrendatário 2 No Agreste predominava o algodão do tipo herbáceo aderente ao caroço também conhecido como seridó ou algodão de fibra longa 3 Se no Agreste a área cultivada com algodão correspondia a menos de um terço da área total cultivada na Paraíba no Sertão a área cultivada com esse produto correspondia a mais de dois terços dessa área total 1992 p121 170 Sobre essa pluralidade de formas de relação do trabalho comenta Linda Lewin A considerável fragmentação no interior da força de trabalho rural facilitou o controle dos proprietários locais sobre os moradores Existiam divisões entre foreiros meeiros e posseiros especialmente favorecidos ou moradores que desfrutavam de privilégios maiores 1993 p 65 137 O narrador em voz over aborda a concentração de renda e monopólio dos meios de produção na figura do dono de terras apontando que é essa figura também geralmente dono da usina Indica ainda os altos juros cobrados por ele aos plantadores que endividados permanecem sujeitos à obrigação de seguirem plantando indefinidamente sem nunca usufruírem o resultado de seu trabalho O financiamento era feito pelos próprios donos de terra que o utilizavam para aumentar seu domínio sobre os trabalhadores Desta maneira o apanhador que sai apanhado indicado pela poesia no começo da sequência referese não apenas à dureza do trabalho concreto mas das relações exploratórias a que estes homens estão submetidos Identificamos um discurso que articula o subdesenvolvimento da região à desigualdade no sertão mas apropriandose também da crítica ao latifúndio Enquanto a narração em voz over oferece essas informações na mesma sequência exibese a imagem de uma balança rústica de corda e madeira que mede com pedras o peso do algodão produzido Um popular observa pensativo tenso a balança que pesa o algodão A imagem de S Miguel aparece intercalada hora na totalidade hora repartida em planos detalhe da lança da espada do dragãodemônio que tem a seus pés Sobreposição insistente fica alguns segundos em total silêncio Essa construção aproxima a luta do bem contra o mal e o conflito de classes Essa construção é semelhante embora não posta em termos explícitos entre o pensamento comunista brasileiro que opõe latifúndio e camponês opressão e submissão justiça e injustiça Embora não seja utilizada a palavra camponês o sertanejo a substitui enquanto personagem social que confirma uma tese pecebista da situação de miséria e exploração no sertão brasileiro A balança rústica e antiquada representa o atraso da região que gera malefícios para a economia principalmente para os trabalhadores rurais Outra referência influenciou o documentário de Vladimir Carvalho especialmente a sequência sobre a exploração do ouro no sertão O Garimpo de São Vicente de João Lélis Apesar do tema diferente o autor faz o seguinte comentário ao abordar a pesagem do ouro Aos pés das áreas de exploração cada garimpeiro cessando o trabalho voe em procura do seu comprador para fazer a permuta do ouro colhido no serviço Aproximase dele que está junto a uma mesa onde a balança espera o peso do metal para moverse Depõe o apurado em cima da concha da balança Feito o ajusto do peso quase que ditado pelo comprador concluise a transação Recebe em dinheiro o que entregou em metal ao cambio do dia Não é obrigatória a transação sendo porém obrigatória a pesagem porque é por meio dela que o achador paga ao proprietário do terreno em que faz a exploração a importância de uma côngrua equivalente a dez por cento sobre o apurado LÉLIS 2000 p1314 Lélis reitera as relações desiguais da produção no sertão e como o documentário usa 138 o símbolo da balança e articula a questão da injustiça indicando o ajuste do peso ditado Se em O País de São Saruê a balança assume uma expressão metafórica no texto de Lélis ela é mais do histórico e concreto Sabemos que o ajuste do peso é feito pelo comprador cuja pesagem é obrigatória para que o garimpeiro receba sua pequena parte dez por cento pelo trabalho executado nas terras do dono da mina O sistema de exploração e remuneração é semelhante à realizada na cultura do algodão Em ambos o menos beneficiado é o trabalhador primário No filme a figura do dono dos meios de produção só aparece na sétima sequência quando se entrevista o industrial José Gadelha que a personifica Enquanto os planos articulam a venda da produção camponesa aos conflitos do bem e do mal na imagem de São Miguel Arcanjo em construção mais abstrata a narração sobrepõe informações concretas sobre esse conflito de classe com a grande fome de algodão provocada pela Guerra Civil nos Estados Unidos a preciosa pluma assumiu o mercado internacional e se firmou definitivamente Em Sousa por exemplo o centro mercantil mais expressivo das terras do Rio do Peixe existem quatro grandes usinas com um faturamento anual de cerca de setecentos mil cruzeiros cada uma soma apreciável se considerarmos o atraso e o empirismo dos meios de produção O cultivo do algodão é feito como já vimos em regime de meação Aquele que detém a posse da terra e via de regra é também o dono da usina tem o privilégio do crédito nos estabelecimentos bancários Com esses recursos os donos da terra financiam os seus moradores cobrando juros cinco vezes superiores ao recebido Os lavradores impossibilitados de resgatarem suas contas após a partilha meio a meio de sua safra assumem a dívida permanecendo sujeitos à obrigação de seguirem plantando indefinidamente sem nunca usufruírem o resultado de seu trabalho CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 6 32553425 A narração circunscreve o lugar da realidade filmada Sousa Afirma diretamente o caráter do atraso e o empirismo dos meios de produção Reforça a informação sobre o regime de meação dessa cultura e relaciona a figura do dono da terra ao dono da usina ressaltando seu apoio recebido dos bancos pelo privilégio do crédito Contrasta essa última informação com os empréstimos que estabelecem uma relação de servidão com o trabalhador rural que após a partilha injusta de sua produção assumem a dívida permanecendo sujeitos à obrigação de seguirem plantando indefinidamente sem nunca usufruírem o resultado de seu trabalho Esta última passagem evidencia a relação predatória e espoliação do trabalho do sertanejo concordando com as denúncias das teses comunistas bem como a necessidade de crédito para os camponeses e o atraso do modo de produção O dono de terras não é exibido plasticamente contudo sua figura é relacionada ao dono da usina figura central que é exibida 139 depois na sequência seguinte reforçando a relação entre essas personagens sociais A sobreposição de imagens que articulam São Miguel Arcanjo e o trabalho camponês é feita durante a narração quando o narrador fala no dono de terras e da relação desigual com o camponês Apesar das conclusões da análise já ter sido apresentada vale a pena retomar as imagens e conferir a sobreposição dos planos durante a montagem CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 6 3435 O primeiro plano sequência adentra a casa rústica na qual se pesa o algodão Ali se encontram na parede diversas imagens de santos católicos e de Jesus Cristo ao centro em destaque a imagem de São Miguel Arcanjo depois enquadrada completamente É exibida a contradição da situação da pesagem e a presença religiosa como exibem os planos seguintes e a narração em voz over Ao mesmo tempo caracteriza a religiosidade sertaneja sugerida 140 nesses e em outros planos durante o filme Em seguida a montagem joga uma sobreposição insistente de planos nos quais o homem olha tenso a balança com seu algodão em planos anteriores mostra ele colocando sua produção em um prato do instrumento e no outro pedras e a imagem de São Miguel Arcanjo em detalhes A tensão é aumentada pela presença dos elementos do cigarro da mão que segura a corda e pelo enquadramento que se aproxima do rosto do agricultor cada vez mais a cada plano alternado mostrando sua expressão tensa No último plano as cordas poderiam até sugerir uma prisão como barras de uma prisão semelhante à imagem da gaiola articulada anteriormente ao exibir a família camponesa A tais planos é articulado o discurso sonoroverbal sobre o contrato de meação da dívida infindável do sertanejo com o patrão materializando o contexto econômicosocial de injustiça e exploração sugerido em metáforas Alternadamente a imagem de São Miguel Arcanjo é quebrada para alcançar diversos significados a primeira mostra ele pisoteando o diabo remetendo a um conflito e a luta do bem contra o mal em seguida os detalhes mostram a face feiosa do diabo nesta hora se fala dos donos de terra o arcanjo empunhando a espada sugerindo a necessidade de lutar contra este inimigo e por fim a balança símbolo que como vimos cambia entre o símbolo da justiça mas também da injustiça Seria essa justiça ideológica e superestrutural como indicada por Carlos Estevam Martins no Anteprojeto do Manifesto do CPC ou seja um elemento da cultura popular que tenta compreender a realidade com os limites do povo O símbolo anda entre a concretude da balança rústica que efetivamente no filme denuncia uma situação de atraso e exploração e o de São Miguel Arcanjo que pode sugerir a necessidade de lutar por justiça eou a necessidade de sair do âmbito ideológico religião para a concretização no mundo social revolução Os efeitos de simpatia e rejeição nas figuras do arcanjo e do diabo também podem ser transferidos para a polarização exploradorexplorado sobreposta neste discurso O conteúdo da narração é idêntico às denúncias realizadas pelos comunistas a exploração dos latifundiários através das relações de trabalho no regime de meação pela posse da terra e pela ausência de um financiamento justo aos agricultores presentes na Declaração de Março PCB 1958 p13 Segundo Leonilde Medeiros a década de 1950 e 1960 foi um momento de visibilidade nos conflitos do campo O termo camponês passa de um mero adendo de até então para um esforço de organização desse setor após a queda do Estado Novo quando a reforma agrária ganhou maior centralidade MEDEIROS 2000 p 214 Nesse momento se consolidava a imagem da submissão do trabalhador ao latifundiário e seu inimigo o latifúndio 2000 p 219 Essa afirmação pode ser corroborada por Carlos Alberto Dória quando afirma que houve uma passagem na primeira metade da década de 1950 141 da questão das medidas de combate à seca à estrutura fundiária referindose a essa questão já em discurso de Getúlio Vargas em 1953 DÓRIA 2000 p 251 No processo de significação latifúndio não simbolizava mais apenas uma grande extensão de terra mas uma relação de exploração e opressão171 Contudo no documentário não ouvimos os termos camponês ou latifúndio Há menção a sertanejos tangerinos vaqueiros ou ao dono de terras Mas a voz do narrador verbal não usa tais termos talvez por uma opção de se aproximar ao vocabulário local ou pelo contexto de ditadura militar Porém como vimos o conteúdo de classe está presente em diversas formas construindo um discurso que problematiza a opressão entre latifúndio e camponês Daí a importância de uma análise estética e semissimbólica que nos auxilie a compreender o discurso elaborado de maneira alegórica e visual em O País de São Saruê172 Na Declaração de Março de 1958 o PCB apostava no desenvolvimento do capitalismo no Brasil enxergando que este seria necessário para a modernização e desenvolvimento das forças produtivas nacionais a revolução nacional e democrática para só então chegar ao socialismo uma visão etapista de processo histórico Apostavam nas reformas dentro do Estado Burguês capitalista através da luta por uma configuração interna de forças políticas que propiciassem tais mudanças a fim de alcançar o socialismo Sua política também detinha um cunho pacificista não propunham uma revolução insurrecional mas uma política de apoio ao movimento nacionalista para reformas e uma aliança de classes que incluía setores diversos como camponeses operários pequena burguesia urbana e uma burguesia nacional como chamavam um setor da burguesia interessado no progresso nacional e setores do próprio latifúndio Estas teses influenciaram não apenas nos discursos políticos e na linha dos militantes mas chegaram ao próprio imaginário e na produção cultural artística como identificamos em O País de São Saruê Apesar de toda a mudança na conjuntura do regime militar ainda em 1966 na publicação das Teses para o VI Congresso 1966 havia a proposta do partido de derrota da ditadura militar ainda por uma aliança com a burguesia nacional e através de um caminho 171 É interessante notar como Leonilde Medeiros mostra que o próprio processo de significação e construção do que era o camponês para fins políticos lançou mão de termos localmente conhecidos para se concretizar colonos moradores eram identificados como assalariados termos de significação mais adequado ao léxico revolucionário A divisão da produção a meia e a terça eram chamadas de parceria de arrendamento por exemplo Transformar tais relações précapitalistas semifeudais eram suas metas ou seja estabelecer jornada de oito horas repouso remunerado férias fim do desconto habitação consolidar as leis e carteira trabalhistas Já para os posseiros a defesa era da permanência na terra MEDEIROS 2000 p232233 172 O tema da reforma agrária também apareceu de maneira mais organizada a partir do IV Congresso de 1954 e na Declaração de Março foi proposta uma frente ampla no campo Essa frente antiimperialista e antifeudal como já indicamos anteriormente procurava unir diversos setores que eram considerados estratégicos para revolução nacional e democrática almejada pelo PCB 142 pacífico para a revolução GORENDER 1987 p 90 À época do filme ainda permanecia na linha oficial do partido essencialmente tal proposta bem como no imaginário e horizonte político de muitos militantes173 Essa discussão não era porém homogênea174 A década de 1950 conheceu um deslocamento do discurso climático para o social no entendimento da problemática rural camponesa aos quais podemos somar os exemplos do discurso de Getúlio em 1954 defendendo a desapropriação das terras marginais aos açudes públicos a publicação de uma série de reportagens de Antônio Callado mostrando a estrutura fundiária por trás do discurso da seca tudo isto fomentado pelas secas pelas quais passara o Nordeste em 1951 1952 e 1953 a cobrança de Josué de Castro então deputado federal por Pernambuco que cobrara ao executivo ações para mudar a estrutura econômica nacional pautando uma reforma agrária DÓRIA 2000 p 251253 Este último nos é particularmente interessante pois seu livro Geografia da Fome 1946 foi uma influência para Vladimir Carvalho indicada pelo cineasta para entender sua crítica em O País de São Saruê175 Josué de Castro indicava a relação entre o latifúndio e a miséria a baixa produtividade e o atraso da região tese presente em Geografia da Fome 1946 O geógrafo comunista mapeou a miséria no Brasil traçando um quadro dos tipos de alimentação no país e seus efeitos sociais Detémse bastante sobre o Nordeste sobre o qual afirma que A luta contra a fome do Nordeste não deve pois ser encarada em termos simplistas de luta contra a seca muito menos de luta contra os efeitos da seca Mas de luta contra o subdesenvolvimento em todo o seu complexo 173 Na Resolução Política de 1967 o PCB assumia a tática de uma frente antiditatorial com os mesmos setores ainda incluindo a burguesia nacional que teria uma oposição limitada GORENDER 1987 p 175 Assim mesmo em 1967 no regime militar ainda fazia parte da tática oficial do PCB a frente com setores progressistas incluindo a burguesia nacional como via para uma revolução pacífica nacional e democrática Em 1973 a documentação afirma que a ditadura militar se transformara de uma ditadura reacionária em uma ditadura fascista e o PCB propunha uma frente patriótica antifascista que também abrangia diversos setores Propõe que todas as forças prejudicadas pelo carácter fascista assumido pela ditadura militar se unam numa ampla frente patriótica antifascista incluindo desde a classe operária o campesinato a pequena burguesia urbana até os sectores da burguesia em choque com o regime desde as forças políticas oposicionistas até os sectores arenistas divergentes do carácter fascista do regime PCB 1973 p 216217 174 Entre os intelectuais do partido Alberto Passos Guimarães cuja elaboração teórica sobre o campo em Quatro séculos de latifúndio 1963 representava bem o pensamento oficial pecebista tinha opositores dentre os quais se tornara mais famoso Caio Prado Júnior ao realizar sua dura crítica ao partido em A revolução brasileira 1966 Os conflitos sobre a realidade rural brasileira no entanto antecediam essas publicações Outro elemento importante foram as dissidências do PCB durante a década de 1960 cujos grupos assumiam posições mais radicais rompendo com a saída nacional democrática preconizada pelo partido Muitos influenciados pela revolução cubana pelo foquismo ou pelo maoísmo propunham outras saídas seja a guerrilha urbana ou rural Daí que a centralidade ou não do campo ou qual era a luta a ser feita no campo armada sindical ou pela reforma agrária não eram consensuais entre essa esquerda brasileira 175 Afirmação realizada a uma pergunta nossa por Vladimir Carvalho em uma mesa redonda no 7º Fest Aruanda junto com as documentaristas Isa Grispum e Lúcia Murat moderado por Maria Rosário Caetano realizado em João Pessoa no dia 12 de dezembro de 2011 Programação disponível em httpwwwfestaruandacombrprogramacaophp Acesso em 16 de junho de 2014 143 regional expressão da monocultura e do latifúndio do feudalismo agrário e da subcapitalização na exploração dos recursos naturais da região A meu ver todo o sistema de fatores negativos que entravam as forças produtivas da região são oriundos da arcaica estrutura agrária aí reinante Todas as medidas e iniciativas não passarão de paliativos para lutar contra a fome enquanto não se proceder a uma reforma agrária racional que liberte as suas populações da servidão da terra pondo a terra a serviço de suas necessidades CASTRO 1984 p 260 Ainda na época do golpe militar havia uma opinião pública segundo a qual a estrutura agrária que beneficiava oligarquias nordestinas deveria ser alterada DÓRIA 2000 p 254 Josué de Castro foi uma influência reconhecidamente direta assim como Celso Furtado que também denunciava problemas na estrutura agrária nordestina Se os outros autores como Alberto Passos Guimarães e Caio Prado Júnior não foram necessariamente lidos pelo cineasta os quais são vistos como os maiores expoentes do debate comunista há que se destacar que essas ideias circulavam entre intelectuais e artistas vinculados ao romantismo revolucionário influenciando suas leituras sobre a realidade social brasileira A citação de Josué de Castro acima se aproxima da concepção de Alberto Passos Guimarães representante da ideologia oficial do partido sobre o campo Ambos encaram a região como subdesenvolvida por um feudalismo agrário e seu atraso Esse debate está no centro de nosso esforço de relacionar o documentário enquanto oriundo da formação do documentarista mas também um agente que procura se inserir no debate sobre a realidade brasileira e rural Enquanto se delineava a representação do Brasil do Milagre Econômico O País de São Saruê na contramão mostrou um país miserável e pobre No entanto cabe sempre ressaltar este documentário possui sua originalidade pela maneira poética e autêntica na própria linguagem cinematográfica e no conteúdo pela qual narra a realidade rural sertaneja O documentário não apenas reproduz uma ideologia mas a reelabora junta outras possibilidades e fornece uma elaboração sofisticada e artística diferente das outras que se identificavam enquanto discursos científicos 53 O gavião sobrevoa um reino desencantado a entrevista com José Gadelha O documentário passa de um âmbito mais geral para uma realidade mais particular na sétima sequência O País de São Saruê mostra Sousa e suas usinas Indica ainda a presença das multinacionais e aponta a força comercial daquela região Já no século XIX Sousa fazia parte do circuito mercantil estando em uma das principais rotas das carroças dos tropeiros que trafegavam com produtos para o comércio no 144 então centro comercial da Paraíba Campina Grande Sousa tinha relativo destaque na década de 1933 quando as rodovias foram melhoradas detendo um bom número de caminhões além de ser ligada à estrada de ferro pela qual circulavam as mercadorias no estado O destaque de Sousa é reconhecido ainda na década de 1960 e 1970 pois beneficiada pelas rodovias e pela energia elétrica era um dos lugares de concentração das atividades industriais176 Na época do documentário 1960 a Paraíba sofrera significativas transformações e o transporte precário do algodão que era realizado pelos tropeiros até 1940 foi substituído pelos caminhões Foi também uma época de substituição das pequenas prensas e bolandeiras a vapor onde descaroçavam e prensavam o algodão retirado pelas usinas que se tornaram mais presentes na produção algodoeira do estado ARANHA 1992 p 294295 Isso aumentou a concentração de riqueza e a evasão de investimentos para o exterior pois as usinas eram de empresas multinacionais Ao mesmo tempo o algodão não era mais um produto apenas de exportação mas direcionado a empresas têxteis brasileiras já consolidadas no Brasil Outro produto também extraído do algodão era o óleo Como vimos o primeira etapa desse processo o cultivo e colheita detinha menor riqueza e estava mais precarizada em todo o processo Adquirido a preços baixos pelas relações de poder que caracterizavam a região o produto era refinado e revendido fazendo a riqueza daqueles que estavam no setor comercial e industrial que detinham vinculação com o latifúndio A própria má distribuição de terra e ausência de financiamento eram fatores que permitiam a manutenção dessa dominação dos pequenos agricultores e da aquisição de seu produto a preços baixos Vimos que o documentário mostra na sexta sequência essa realidade do agricultor relacionandoa a luta do bem contra o mal nas figuras de São Miguel Arcanjo e do Satanás intermediados pela balança símbolo da justiça mas ao mesmo tempo também exibe uma relação econômica concreta enfrentada pelo sertanejo segundo o ideário político pecebista acerca da questão agrária da realidade camponesa brasileira As cenas seguintes mostram a etapa industrial da economia do algodão Vladimir Carvalho entrevista um latifundiário político e dono de usina José Gadelha177 Inicialmente 176 No governo de João Agripino 19651971 as rodovias e a energia elétrica foram preocupações do Estado visto que a carência de energia e de meios de transporte fazia com que as atividades industriais se concentrassem ou próximas ao litoral ou em alguns centros urbanos do Estado Sousa Patos e Campina Grande CITTADINO 2006 p 244 177 Os Gadelha representaram uma oligarquia paraibana que dominou Sousa durante um bom tempo José Paiva Gadelha é irmão de André Gadelha eleito como vicepresidente junto a Pedro Gondim um dos responsáveis pela intensificação da repressão aos camponeses à época do golpe militar na Paraíba À época das gravações do documentário no entanto Antônio Mariz seu opositor foi eleito prefeito de Sousa A família Gadelha ainda permaneceu atuando na política seja em Sousa ou na Paraíba como se vê por Salomão Benevides Gadelha filho de José Paiva Gadelha que assumiu a prefeitura de Sousa em meio mandato em 2002 e em um completo em 2004 Coordenou campanhas para deputado de Marcondes Gadelha e Léo Gadelha onde 145 os planos são articulados a uma voz over que informa sobre prejuízos trazidos para donos de terras e trabalhadores pela inserção de empresas estrangeiras na região Em seguida o áudio cede lugar à entrevista com José Gadelha Essa personagem fica entre uma ambiguidade de vítima do imperialismo e algoz dos trabalhadores locais Entendemos que isso se relaciona ao imaginário político da esquerda ligada ao PCB de uma possível aliança entre o proletariado rural e a burguesia localnacional para realizar um projeto nacional e democrático ainda presente da década de 1970 A entrevista com Gadelha possui sete minutos Vladimir Carvalho deixa o entrevistado à vontade para falar de si Gadelha fala sobre suas conquistas e de sua família suas realizações econômicas e políticas em Sousa e seu desejo de conseguir ser eleito como deputado federal 178 Através da montagem o discurso de autorrepresentativo de Gadelha assume no documentário a função de representar a ideologia dominante da elite do sertão Realizase uma crítica ao discurso de Gadelha que se torna o antagonista dos populares apresentados até então Analisamos essa construção do documentário levando em consideração a autorrepresentação de José Gadelha que almeja um cargo político e o uso subvertido dela pela montagem de Vladimir Carvalho Inicialmente chama nossa atenção três aspectos da trilha desta sequência o primeiro referese à música que acompanha a longa entrevista uma música alegre e regional ao som de pífano já ao final da entrevista surgem tambores fortes negros o segundo a fala de José Gadelha um homem que sabe como bem se expressar passando credibilidade sua entonação é tranquila afável simpática por fim a voz de Vladimir Carvalho presente no áudio da entrevista ouvimos suas perguntas registrando no documentário o diálogo entre entrevistador e entrevistado o que não era uma técnica recorrente no documentário brasileiro à época No áudio temos uma música simpática à Gadelha alegre mas que também não combina com o clima empostado de sua fala Ela também tem caráter popular Em nível de expressão há um contraste entre o som da música e a gravidade da fala de Gadelha possivelmente para reforçar este último caráter diminuindo sua credibilidade Esse contraste também é reiterado se compararmos expressão e conteúdo pois o tema da fala é sério as conquistas materiais de Gadelha e de sua família e a situação do homem no sertão contrastando com a sensação sugerida pela música Este contraste é mais profundo quando analisamos os planos imagens exibidos com o som Essa afirmação se torna mais possível pela existência de outras entrevistas As que são oferecidas maior credibilidade são de Charles ambos saíram vitoriosos Disputou ainda em 2010 o cargo de deputado estadual pelo PMDB 178 A transcrição do áudio da entrevista no filme se encontra disponível nos Anexos B p196 146 Foster e Antônio Mariz neste último por exemplo não há nenhum som competindo e as imagens reforçam a fala dele Comparamos o uso das entrevistas mais à frente Atemonos agora a como a entrevista de Gadelha é articulada aos elementos visuais da sequência Os planos dessa sequência mostram a usina a cidade José Gadelha e os operários da indústria algodoeira Observando os objetos dos enquadramentos temos essa tabela Quantidade de planos Observações Trabalhadores 15 Trabalhadores na indústria do algodão incluindo planos médios e closes José Gadelha 12 Planos médios de José Gadelha na SANBRA closes e seus veículos carro e avião Neutros 10 Mostram a cidade de Sousa ou a indústria com ou sem homens Mistos 02 Mostram José Gadelha e os trabalhadores juntos Total 39 Tabela construída a partir do roteiro de O País de São Saruê publicado pela Embrafilme em 1986 Organizamos os planos a partir da oposição entre trabalhadores e patrão Por isso são necessárias considerações sobre nossos critérios para a elaboração desta tabela Categorizamos como trabalhadores os planos que mostram homens em atividade na indústria do algodão Ficaram de fora planos que mostram homens mas que não estavam trabalhando diretamente nesta mesmo sendo possíveis funcionários da usina Os planos do patrão estão representados pela imagem de José Gadelha direta ou naqueles que o mostram chegando em um carro galaxie preto e ao final na sua partida em um jato particular mesmo quando se mostram apenas os veículos pois entendemos esses objetos como extensões da personagem Foram categorizados de planos mistos aqueles nos quais Gadelha aparece junto aos trabalhadores e de neutros aqueles nos quais são exibidas imagens da indústria e da cidade com ou sem homens que não estão em atividade na indústria e sem Gadelha Privilegiamos assim considerar planos de trabalhadores aqueles mais explícitos por temer que uma maior abrangência pudesse tornar pretensiosas ou invalidar nossas conclusões Os planos que mostram os trabalhadores somandoos em geral são mais longos e maiores em número que os que mostram Gadelha Durante eles ouvimos em grande parte a voz de José Gadelha sendo esta uma personagem que mesmo ausente em imagem está presente no som Quantificamos os planos para mostrar que ainda quando Gadelha fala sobre si suas conquistas e sua família Vladimir Carvalho privilegia mostrar os trabalhadores Uma 147 construção possível e mais interessada no conteúdo referente à figura de José Gadelha poderia mostrar o tema do discurso em imagens com fotografias da família por exemplo mas isso acontece muito pouco Em geral há imagens mostrando a cidade planos neutros e os trabalhadores estes últimos em maior número como indicamos Emerge daí significativos momentos de antítese entre som entrevista e imagem trabalhadores Nesse sentido Vladimir Carvalho se aproxima do que o teórico e cineasta russo Sergei Eisenstein propõe como uma dialética do cinema pela qual se criaria significações através da montagem no contraponto de elementos de antítese na sucessão de planos e no uso do som179 Essa indicação do plano estético também está presente no plano de conteúdo Seguem dos referidos planos dos trabalhadores e de José Gadelha 179 Sergei Eisentein 18981948 foi um russo cineasta e teórico do cinema dos mais importantes para a história do cinema Seus filmes revolucionaram a visão sobre cinema especialmente do processo de montagem Sobre a dialética da montagem tal discussão é indicada por Jacques Aumont e Michael Marie quando afirmam que esta noção era ampliada por Eisenstein não ficando restrita ao enquadramento sucessão de planos ou a imagem mas ao próprio uso de som Eisenstein pensou o som não de maneira redundante e submissa à imagem reforçando seu tema ou oferecendo uma impressão de realidade mas os sons participariam em pé de igualdade com a imagem e com certa autonomia na constituição de sentido que pode reforçar as imagens contradizêlas ou manter um discurso paralelo AUMONT MARIE 1995 p85 148 CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 7 3520 3710 O primeiro plano localiza o espaço concreto onde são mostradas as imagens uma usina filiada à SANBRA180 No segundo plano temos um homem levando um grande fardo de algodão valorizando a dificuldade do trabalho pelo tamanho espetacular do carregamento Depois temos alguns planos da chegada de carro de Gadelha descrita por Vladimir Carvalho no roteiro da seguinte maneira Um galaxie preto enorme luzindo ao sol entra pelo portão da fábrica É um contraste com o ambiente negrito do autor CARVALHO 1986 p 75 O carro realmente contrasta com o espaço de trabalho anterior rústico e difícil com seu brilho e luxo As roupas de José Gadelha e dos trabalhadores sua pose tranquila e relaxada em contraponto com os corpos tesos de trabalho em esforço físico contínuo as expressões também se opõem rígidas e tranquilas até mesmo suas cores Gadelha branco e os trabalhadores negros Nos três planos seguintes vemos Gadelha olhando dono da situação 1086 p75 como descreve Carvalho Nos três últimos planos vemos homens negros levando os sacos de algodão enquanto em outro plano Gadelha passeia tranquilamente em meio ao ambiente de trabalho Em nível de conteúdo podemos afirmar que se opõem a categoria geral patrão e trabalhador nas imagens de Gadelha e de seus funcionários seres concretos filmados respectivamente As imagens relaxadas e tranquilas de Gadelha andando pela sua fábrica cuja figura está em cenário aberto mostrando acima de si o céu ou espaço vazio opõese aos trabalhadores em esforço físico e sob opressão representada pelos fardos que levam sobre as costas peso que os oprime Ela é exibida após várias sequências que mostram a dureza da vida sertaneja e da sua miséria com indicações da apropriação do trabalho por outros Essa construção traz uma antipatia por Gadelha e uma simpatia pelos trabalhadores Essa oposição é construída de outras maneiras Examinemos outros planos significativos Cada linha da sequência da tabela representa uma cena 180 A SANBRA era uma filial estrangeira muito presente no Nordeste brasileiro atuando na área de circulação da mercadoria algodão Francisco de Oliveira 2008 p 169 e Gervácio Aranha 1992 chamam atenção para a presença desta e outras empresas estrangeiras aquele no Nordeste e este na Paraíba 149 CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 7 3816 4002 Na primeira um carro bonito chega acompanhado pelo enquadramento até que ele passa por trabalhadores A câmera permanece com os trabalhadores enquadrandoos enquanto assistimos a poeira deixada pelo carro se assentar Nessa construção estão opostos o carro de luxo e os trabalhadores Embora não seja necessariamente esse o carro de Gadelha ele é um objeto que foi relacionado ao patrão anteriormente Opõese conforto e esforço a posse riqueza e a necessidade de trabalho pobreza A passagem do carro deixando a poeira pra trás é uma construção muito utilizada no cinema com poeira ou com poças de água para demonstrar indiferença ou desprezo por aquele que dirige e quem está à margem na rua ou uma situação de marginalidade A figura do carro também mostra poder e domínio A imagem de um homem no carro como símbolo do poder força e vitalidade era comum em propagandas em meados do século XX e ainda hoje 150 A segunda linha da tabela mostra a oposição entre os closes de Gadelha e de uma trabalhadora as expressões reforçam o grande contraste entre patrão e empregado o leve sorriso de Gadelha seguido da tensão da senhora no close enquadramento utilizado para valorizar os sentimentos das personagens produz uma menor simpatia pelo primeiro Por fim a terceira linha faz uma construção parecida com uma já utilizada na sexta sequência este homem apesar de trabalhar com o algodão está vestindo uma curta roupa de péssima qualidade feita com restos de material no qual trabalha Reforçase o contraste entre produção e consumo já referido anteriormente mas também entre as vestes do proprietário que está bem vestido e de seu trabalhador maltrapilho A oposição construída é oprimidoopressor pobrezariqueza181 Não é apenas a figura particular histórica de José Gadelha que é apresentada mas uma oposição abstrata e geral entre patrão e operário Em síntese os planos alternados são trabalhados formando uma dialética entre eles opondo as figuras do opressor e do oprimido Dos 39 planos exibidos na sétima sequência predominam os planos que mostram os trabalhadores em péssimas condições realizando trabalhos difíceis e em más condições Eles são exibidos enquanto se ouve a entrevista de José Gadelha durante toda a sequência formando outra antítese Isso influencia a recepção do discurso de Gadelha que embora se apresentando da melhor maneira possível com fala bem articulada e demonstrando conhecer aquela realidade possui na contramão elementos sonoros leves que podem até passar despercebidos mas que influenciam na leitura a música de pífano e os tambores e o discurso apresentado em imagens as quais reforçam o caráter de denúncia pela predominância da imagem dos trabalhadores ao mesmo tempo compensam a predominância da voz do usineiro Mas de quê fala este sujeito José Gadelha fala sobre suas posses e as realizações para a gente de Sousa Seu tom de voz empostado combinado às imagens pode o tornar menos simpático ao público A entrevista se inicia apresentando o crescimento de sua família seu sucesso comercial182 Em 1933 iniciamos a nossa vida comercial arredando uma bolandeira do saudoso José Avelino de Oliveira no sítio Pompéia Em 1936 compramos um mecanismo à margem do rio do Peixe que circunda a nossa cidade ao falecido Júlio Marques de Melo Em 1958 transferimos este mecanismo 181 Vale ressaltar que como bem indica JeanClaude Bernardet é necessário uma predisposição para sentir simpatia ou antipatia pelos personagens Há uma variação inesperada no processo de recepção de um filme a depender do público Para o autor essa construção de uma simpatia ou antipatia é indicativa de um público potencial ao qual o filme se dirige 2003 p39 182 Apesar da entrevista ser exibida como se não houvesse cortes cabe sempre lembrar que o áudio também sofre edição no processo de montagem A entrevista certamente teve cortes pois se precisa selecionar o material de entrevista que geralmente é maior que o filme comporta tanto pelo tamanho como pelo interesse do cineasta Nesse processo podese mudar a ordem da fala e omitir alguns trechos 151 obsoleto para a cidade com novas instalações daí nasceu o nosso êxito na vida comercial Construímos mais uma fábrica de óleo construímos também uma fábrica de doces Montamos um cinema E agora estamos concluindo uma montagem de rádio que aliás está dando muito trabalho em face da politicagem mesquinha que se está travando em torno dela CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 7 3711 3800 Essa explanação mostra como a família alcançou consistente acúmulo de capital e expandiu seus investimentos na cidade usina de açúcar fábrica de óleo fábrica de doces um cinema e uma rádio Sua família possui grandes posses as quais não se resumem à indústria do algodão área comercial mas presentes em outras áreas industriais óleo doces e até midiática o cinema e a rádio183 Aliás o ano de 1933 é significativo pois A Paraíba até então a maior produtora de algodão perdeu após 1932 sua primazia A causa mais visível de tal decadência foi a grande seca daquele ano mas sua motivação profunda era a concorrência mais profissional e eficaz dos paulistas RÊGO 2008 p 105 Dessa maneira é possível que a aquisição de Gadelha fora possível nesse contexto de crise que não era restrita apenas ao algodão É significativo que Gadelha no discurso do filme não ressalta a produção do algodão apesar deste ser o tema do filme Seu discurso se concentra mais em uma propaganda de seus feitos para usos políticos Além disso sua participação na economia do algodão aparentemente era menos na produção que em seu circuito mercantil Vários médios e pequenos agricultores deviam vender a sua produção a José Gadelha industrial e atacadista que dali construía parte de suas riquezas Cabe ressaltar que após 1950 a indústria têxtil brasileira já estava desenvolvida e o algodão produzido no sertão era enviado diretamente para fábricas têxteis do Nordeste não sendo mais voltado em sua maior parte à exportação ARANHA 1992 p 170 Além disso além da fibra outro produto fazia a riqueza de alguns poucos o óleo do algodão De qualquer maneira a indicação de suas posses permitenos identificar seu poder econômico e poder político o que é mais explicitado em seguida Temos feito alguma coisa por nossa cidade já doamos a Sousa uma maternidade das mais bem equipadas do interior do estado Doamos um terreno para a escola de treinamento doamos um terreno para o DNOCS 183 No final da década de 1960 a TV ainda não detinha o poder de difusão que possui hoje Além disso não estava presente em todo o país especialmente nos interiores nordestinos Porém o rádio era um grande veículo de transmissão de informações e de ideologia assumindo grande papel político É importante ressaltar que o poder da família Gadelha então não se restringia ao poder econômico que já era enorme mas chegava ao âmbito político institucional e radiofônico ideológico 152 doamos um terreno para a construção do Hospital Regional de Sousa Doamos também um terreno para a construção da Coletoria de Sousa É um prédio pomposo que honra nossa cidade E há poucos meses atrás comprei um hotel o Gadelha Palace Hotel o terceiro do estado da Paraíba Isso com a finalidade única de ajudar à minha terra e à coletividade CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 7 3800 3845 José Gadelha procura se mostrar como um homem generoso que se preocupa com sua terra e seus habitantes Por isso apresenta suas doações de maneira altruísta No entanto este apadrinhamento era instrumento de poder político tais empreendimentos aumentavam sua influência na região O documentário não traz informações sobre a efetivação ou as intencionalidades do latifundiário com estas obras Ficamos apenas com sua versão Porém como vimos a sinceridade de suas intenções é um tanto questionada no documentário pela montagem na exibição das imagens das condições de seus próprios trabalhadores A figura da família e do coronel foram alvos de inúmeros trabalhos cujas contribuições podem ser interessantes para pensar a figura de José Gadelha Assim André Heráclito do Rêgo indica as contribuições de Victor Nunes Leal com Coronelismo enxada e voto 1949 para pensar elementos como que a vitalidade do poder dos coronéis em uma dada região era inversamente proporcional ao crescimento das cidades o isolamento sendo assim um fator fundamental na formação e na manutenção do fenômeno e que o coronelismo era um compromisso entre o poder privado decadente e o poder público reforçado Indica ainda que para Maria Isaura Pereira de Queiroz reforçou a fortuna e qualidades pessoais que possibilitavam ao indivíduo chegar a ter esse poder mas também o caráter carismático que lhe permitia obter a adesão afetiva e entusiástica de outros homens RÊGO 2008 p1617 Monique Cittadino indicou que os estudos posteriores a Leal transformaram faces do coronelismo o mando ou as práticas clientelísticas e assistencialistas no seu elemento definidor permitindo a historiografia trabalhar com a perspectiva da sobrevivência do coronelismo Para ela sobreviveram à Revolução de 1930 e posteriormente ao Estado Novo as permanências do arcaico num contexto que tendia a se modernizar Ou seja características presentes no coronelismo mas não exclusivas dele o poder local e o exercício do mando a presença do chefe político o controle do eleitorado através de práticas assistencialistas e clientelistas à existência de parentelas etc Uma série de elementos que embora presentes no coronelismo não permitem a afirmação da sua presença dos dias que correm CITTADINO 2006 p47 Por isso não encaixamos José Gadelha na figura de coronel podemos afirmar no 153 entanto a presença de elementos que sobreviveram às práticas características desse tipo sociológico sendo possível identificar em seu discurso elementos de uma parentela ao citar seu irmão que foi vicegovernador do Estado reafirmar as suas obras e doações a fim de conseguir empatia do público caracterizando um assistencialismo Sabemos por outras fontes sobre o poder dos Gadelha oligarquia que dominou a política de Sousa Era uma oligarquia ligada à economia do algodão e cuja presença parentelística na política persiste até hoje Na apresentação de si José Gadelha busca simpatia do público e mostrar conhecimento sobre seu redor Enumera suas doações de terrenos o que nos permite identificar que os Gadelha não apenas eram donos de terras significativas mas detinham poder político e prestígio social carisma que certamente sua família alcançara com esses investimentos Quando questionado sobre sua opinião acerca da situação do homem do campo responde que é uma gente sofrida e atribui esta situação a um desprotegimento dos governos federais estaduais e municipais Também afirma que falta crédito dos bancos para que eles possam se desenvolver Ainda diz que são uma gente que nunca deixou de ser endividada Aparentemente para Gadelha a solução para a pobreza está no auxílio do Estado ou dos bancos Pelo discurso do documentário apresentase no processo de cambão e na dificuldade de ter uma consistente agricultura de subsistência era difícil para o trabalhador levar uma vida sem miséria O discurso de Gadelha entra em discordância com os elementos anteriormente apresentados da pesagem do algodão da injustiça da balança sertaneja contradição provocada pela montagem de Vladimir Carvalho O endividamento era parte do sistema que prendia os agricultores aos favores dos donos de terras Isto é explicitado na sequência seis portanto antes desta entrevista com Gadelha Embora não dito diretamente que esta era a situação dos trabalhadores de Gadelha a montagem e a narração interior sugerem afirmando que esta era a realidade dos trabalhadores de Sousa e que o dono de terras era geralmente o dono da usina O historiador Gervácio Aranha mostra que essa era uma realidade na Paraíba indicando um padrão nas relações de trabalho na produção do algodão Os pequenos agricultores em sua maior parte trabalhavam em terras de outrem e não encontravam nenhuma facilidade de financiamento No Sertão por exemplo em geral esses agricultores estavam sujeitos à morada e conseguiam no máximo cultivar algodão de meia nas terras dos grandes proprietários apenas recebendo um adiantamento a título de empréstimo a ser pago com a metade conseguida na colheita Já os pequenos agricultores que trabalhavam em terra própria frequentemente se submetiam aos inúmeros intermediários que forneciam adiantamentos comprando o algodão ainda na folha Eles estavam espalhados por todo o Sertão ARANHA 1992 p 210211 154 Podemos identificar que a maior parte dos trabalhadores do algodão trabalhava nas terras de grandes proprietários morando em suas propriedades eou mantendo um vínculo de dominação pelo empréstimo que recebiam a ser pago com metade da colheita Outra possibilidade era dos pequenos agricultores que possuíam alguma terra mas que também se inseriam em uma relação de dominação ao se endividarem com os compradores de algodão Gervácio Aranha aponta ainda uma terceira situação do agricultor o trabalhador assalariado mais conhecido no Sertão da Paraíba como braço alugado Requisitado tão somente nos momentos de limpa corte da terra e colheita sua condição de vida no trabalho além de miserável era bastante instável O braço alugado na verdade ganhava pouco e trabalhava duro sendo considerado o mais miserável dentre os trabalhadores sertanejos sua condição de trabalhador de aluguel o tornava marcado por um certo estigma como se essa condição fosse uma espécie de marca registrada da inferioridade ARANHA 1992 p 212 Havia assim uma terceira possibilidade a mais miserável e mais mal vista localmente que era o trabalho assalariado ou o braço alugado Apesar dos já referidos instrumentos de dominação a morada e a propriedade de terra ofereciam aos agricultores alguma segurança que o assalariado não possuía Essas eram formas de trabalho predominantes na Paraíba indicadas por Gervácio Aranha Este era um ponto central para as diversas interpretações comunistas da realidade agrária brasileira quais eram as formas de trabalho predominantes no paísNordeste e como classificálas Capitalistas ou feudais Poderiam ser consideradas assalariadas ou não Este era um dos pontos centrais de divergência entre Caio Prado Júnior e Alberto Passos Guimarães Para Alberto Passos Guimarães as relações no Nordeste eram feudais pré capitalistas sendo necessário revolucionálas Nesse sentido para o autor as relações indicadas como a morada e o cambão estabeleciam uma relação de dominação feudal oriunda da formação feudal do país no processo de colonização184 Já para Caio Prado Júnior o Brasil se encontrava no capitalismo desde o início e acreditava que as relações apesar das formas diversas eram capitalistas e majoritariamente assalariadas afirmando que essa leitura era uma deformação seja conceitual seja da realidade brasileira PRADO JÚNIOR 1987 p 42 Esses autores divergiam naquilo que estava na ordem do dia da defesa comunista aquele centrava na reforma agrária e o último na consolidação das leis trabalhistas no campo185 184 Afirma Alberto Passos Guimarães em Quatro século de latifúndio 1963 Êsse conteúdo dinâmico e revolucionário na presente etapa da vida brasileira expressase pelo objetivo principal do movimento pela reforma agrária que é o de extirpar e destruir em nossa agricultura as relações de produção do tipo feudal e não as relações de produção do tipo capitalista GUIMARÃES 1989 p34 185 Recomendamos a leituras do historiador Raimundo Santos em Alberto Passos Guimarães num velho debate 155 Caio Prado Júnior não foi o único a tecer críticas à época à linha oficial pecebista ou à posição assumida por Alberto Passos Guimarães André Gunder Frank economista alemão e um dos teóricos da Teoria da Dependência em oposição ao desenvolvimentismo em seu texto publicado na Revista Brasiliense em 1964 A agricultura brasileira capitalismo e mito do feudalismo teceu críticas ao marxismo brasileiro que chamou de marxismo tradicional e à posição do PCB Estendeu sua crítica a outros PCs e intelectuais latinoamericanos Para ele a afirmação de que a América Latina começou sua história a partir do descobrimento com instituições feudais e que ainda as conserva mais de quatro séculos depois é falsa Indica que a agricultura é chamada de feudal na Segunda Declaração de Havana 1962 sem dúvida o mais incisivo e importante documento contemporâneo sobre a realidade econômica e política da América Latina FRANK 2005 p37186 Por isso essa leitura política não era apenas brasileira mas latina havendo debates nos veículos de discussão desse grupo político Essa crítica é retomada no recente texto Os comunistas e a ditadura burgomilitar os impasses da transição 2014 de Milton Pinheiro Em análise retroativa esse sociólogo e cientista político fez duras críticas à estratégia política adotada pelo PCB nesse período Indica que já em 1935 o PCB adquire uma cultura política cuja prática sindical não se voltará mais para a autonomia operária mas centrada em um espectro corporativo da ordem burguesa oriundo dessa visão de revolução burguesa e da necessidade de um pacto com os setores progressistas nacionais187 1994 ou Caio Prado Júnior na cultura política brasileira 2001 Há também o artigo A questão agrária brasileira 19501960 A análise histórica de Alberto Passos Guimarães e Caio Prado Júnior 2007 dos historiadores Ricardo Oliveira da Silva e Claudia Wasserman O Nordeste Problema Nacional para a esquerda 2000 de Carlos Alberto Dória no volume IV da Coleção História do Marxismo no Brasil é uma interessante contribuição para esse debate Outros documentos da época podem ser conferidos na coleção A questão agrária brasileira organizada por João Pedro Stedille particularmente no volume 1 há textos de Caio Prado Júnior e Alberto Passos Guimarães além de outros intelectuais da esquerda brasileira 186 André Frank desmonta essa tese seja do feudalismo ter antecedido ao capitalismo no Brasil ter coexistido com o capitalismo ou o capitalismo estar penetrando no feudalismo Para ele a formação era capitalista desde seu início Aponta carências na formação dos comunistas afirmando diversas confusões teóricas dentre elas uma ideia de que as relações de trabalho diversas seriam semifeudais Afirma baseado em Prado Ianni e Costa Pinto que vários supostos traços feudais da relação proprietáriotrabalhador são fachadas de uma exploração econômica essencialmente comercial FRANK 2005 p 53 capitalista Afirma que a interpretação dualista baseiase em equívocos importantes inclusive ao conteúdo semântico de termos feudal e capitalista Para Frank o capitalismo pode manter estruturas que aparentemente não sejam capitalistas mas elas no entanto estão fazendo parte do sistema e não podem ser supervalorizadas ao ponto de definir todo o sistema Elas fazem parte da adaptação e viabilização do próprio sistema capitalista Critica a estratégia de revolução nacional e democrática a reforma do capitalismo afirmando que a tática dos camponeses e seus aliados deveria ser destruir o capitalismo 187 Milton Pinheiro afirma que A batalha pela modernidade capitalista se aprofundará com a capitulação à burguesia nacional como parceiro conflitivo do longo processo de revolução burguesa perenizando a visão etapista da revolução brasileira e afirmando a necessidade de um pacto pelo desenvolvimento das forças produtivas passando de uma visão dogmática de ruptura para o afastamento de qualquer processo clássico de ruptura com a ordem do capital com a rara exceção da manifestação dessa ideia nos anos de 1950 A constante preocupação com a estabilidade democrática tornou o partido subalterno no processo 156 Por esse debate percebese que a visão dos comunistas sobre os projetos políticos para o país e as interpretações da realidade brasileira não eram homogêneos Há semelhanças no discurso fílmico de O País de São Saruê com algumas dessas ideias mas também contrastes O documentário assume uma identidade regional sertaneja que tanto poderia lhe render enfrentar melhor a censura como articular as denúncias sociais feitas pela esquerda Em certo sentido a representação de José Gadelha pode ser lida na perspectiva do projeto nacional democrático Embora ele seja mostrado como um grande inimigo do sertanejo e como uma figura de opressão por outro lado o reforço do tema do imperialismo tange uma visão que relativiza levemente seu papel na luta de classes pelo inimigo externo Para alguns autores haveria latifundiários progressistas com os quais se buscaria a estratégia da aliança de classes figuras da oligarquia local poderiam ser táticas Por isso Há uma leve ambiguidade que unem a figura de patrão dono de terras e usineiros no drama da seca ou na atuação imperialista Elas estão presentes no discurso em voz off e na canção de José de Arimatéia o vaqueiro que se refere à seca quando chora vaqueiro e patrão São dramas enfrentados pelos sertanejos ricos ou pobres embora não de maneira igual188 Quando José Gadelha em seu discurso delineia a genealogia de sua família indica que a família Gadelha está em Sousa desde o avô do entrevistado e que seu irmão mais velho André Gadelha foi vicegovernador do estado A família Gadelha é uma das oligarquias paraibanas Detém poder econômico e político mantendo seu domínio local Uma oligarquia significa que a autoridade se concentra nas mãos de poucos os quais podem ser de uma mesma classe social partido ou família Elas se mantêm unidas e solidárias não deixando espaço para a organização de partidos ou sindicatos que representem interesses contrários aos seus GUERRA 1993 p1819 Podemos afirmar que à época de elaboração de O País de São Saruê permaneciam oligarquias na Paraíba sob novos arranjos políticos189 Com o golpe militar em 1964 este dessas lutas Afirmação de uma visão autárquicoburguesa da soberania nacional Confirmação de um frentismo policlassista como instrumento de luta pela democracia Com todo esse arcabouço permeado pela cultura de que a democracia só virá pelo arranjo da conciliação e tensionado pela dúvida da opção entre povo e classe será vitoriosa na formulação do partido a política nacional libertadora e a revolução em etapas como via ao socialismo PINHEIRO 2012 p 214215 apud PINHEIRO 2014 p24 Para o autor o PCB permaneceu com uma visão conflitiva baseada na existência de uma burguesia nacional e com a preocupação com uma estabilidade democrática que tornou o partido subalterno no processo dessas lutas escolheu a política nacional libertadora e uma revolução em etapas como via para o socialismo optando por povo ligado à ideia de nação e não pelo recorte de classe baseado na economia política 188 A canção de José de Arimatéia obviamente não reflete a linha pecebista mas seu uso no filme sim 189 A historiadora Lúcia Guerra afirma que No Brasil o período áureo do Estado Oligárquico foi a Primeira República 18891930 apesar de algumas de suas características básicas extrapolarem esse período As oligarquias se redefiniram e utilizando novas formas de dominação de acordo com as conjunturas políticas e econômicas muitas delas sobrevivem até hoje GUERRA 1993 p 21 157 poder se reorganizou a fim de manter as estruturas locais dentro da nova ordem nacional O poder circulava entre famílias através de cargos políticos que eram atribuídos a membros da família ou próximos em troca de favores e compromissos perpetuando o poder nas mãos da elite GUERRA 1993 p43 Não podemos afirmar que na segunda metade do século XX havia nomeação por tempo indeterminado de cargos como a Prefeitura no entanto através de outros mecanismos de poder persuasão e influência a elite se mantinha nestes cargos 190 Em Política e Parentela na Paraíba um estudo de caso da oligarquia de base familiar 1993 Linda Lewin estuda os vínculos entre política e estrutura familiar em estudo de caso da oligarquia Pessoa sob liderança de Epitácio Pessoa entre 1912 e 1930 Para ela Apesar da Revolução de 1930 que deu início à era de Getúlio Vargas a política oligárquica sob muitos aspectos sobreviveu à era das oligarquias e continuou a ser uma força significativa inclusive no plano nacional Mais recentemente a urbanização a industrialização e a imposição do regime militar restringiram a política oligárquica ao plano local Longe de terem sido extirpadas portanto as raízes da oligarquia permaneceram implantadas até mesmo nos anos 1980 Em muitas localidades rurais onde a capitalização maciça da agricultura e a expulsão dos moradores ou colonos característica do Brasil desde a década de 1960 não ameaçou estruturas agrárias mais antigas os arranjos políticos historicamente associados àquelas estruturas freqüentemente resistiram LEWIN 1993 p 06 Encaixamos nessa identificação de permanência dos traços dessa política oligárquica de parentela o background não explicitado em O País de São Saruê ao apresentar a entrevista de José Gadelha Essa estrutura política parte de vínculos associativos baseados na família ou seja o vínculo informal de associação oligárquica pode incluir a amizade política LEWIN 1993 p 10 A família Gadelha apresenta forte presença na direção da prefeitura de Sousa e também em outros âmbitos da política paraibana Assim em 1960 o udenista conservador André Gadelha referido por José Gadelha como seu irmão na entrevista disputou e ganhou a 190 Lúcia Guerra indica que a região do São João do Rio do Peixe também teve uma continuidade de famílias porém indica essa presença ao menos até 1930 e não comenta o que ocorre posteriormente Não temos dados de como se instalou a oligarquia Gadelha mas é interessante que a data coincida com a chegada de Gadelha indicada na entrevista ou a indicação da reorganização das oligarquias em 1930 como indica André H do Rêgo Esta é uma pesquisa a ser feita e relacionada posteriormente Sobre a oligarquia préRevolução de 1930 comenta Lúcia Guerra São João do Rio do Peixe é outro exemplo típico da continuidade de algumas famílias no comando da política municipal Duas famílias ramificadas no sertão Dantas e Sá compartilharam o poder durante toda a Primeira República naquele município Em 1898 foi nomeado para SubPrefeito João Dantas de Oliveira e de 1908 até 1922 quem exerceu continuamente esse cargo foi Domingos Gonçalves Dantas A chefia política do município cabia ao Padre Joaquim Cirilo de Sá que foi deputado estadual em sete legislaturas seguidas 19041930 enquanto seu irmão Manoel Cirilo de Sá ocupou a Prefeitura de 1908 a 1922 GUERRA 1993 p 44 Não abordamos a sequência do filme que desenha a origem da modernização do sertão e de sua elite mas nela é indicada a presença da oligarquia dos Dantas e Sá Este é outro trabalho a ser feito posteriormente Na sequência outros elementos se mostram extremamente relevantes como a chegada do trem do primeiro automóvel e os costumes da elite de Acauã 158 vicepresidência do Estado da Paraíba em 1960191 Com o golpe de 1964 a repressão na cidade e no campo foi acentuada com José Gadelha de Oliveira como comandante geral das Forças Armadas COELHO 1994 p52192 Ainda recentemente a disputa pelo domínio de Sousa é indicada em jornais tais conflitos são referidos como atuais193 Um dado importante sobre esta sequência e sua relação com a penúltima sequência do documentário é que a oligarquia dos Gadelha teve seu ciclo de domínio em Sousa quebrado com a chegada de Antônio Mariz à Prefeitura José de Paiva Gadelha e Antônio Mariz são ambos entrevistados no documentário tornando patente um conflito político que não está explicitado pelo filme Buscamos contextualizar tais personagens sociais de O País de São Saruê problematizando o uso da entrevista e mostrando que não é feito da mesma forma pois suas falas são utilizadas pelo documentarista que possui uma posição política Para crescer economicamente José Gadelha se serviu do apoio de uma família rica e influente Parece que escapa a Gadelha essa contradição em seu discurso ou talvez por isso indique a necessidade de crédito Rosa M Godoy Silveira comenta sobre a posição assumida pela elite política nordestina do século XIX perante a crise regional que apesar da distância temporal parecenos ainda elucidativos sobre o discurso de Gadelha Os proprietários se retratam como vítimas pacientes de um processo que lhes aparece imageticamente imponderável Dessa forma deslocamse do processo isentamse dele camuflam o seu comprometimento com o mesmo Mas sabem de modo a não se caberem dúvidas o papel que querem exercer o de manter a sua dominação Aí então voltam a ser agentes da História mas que se negam a qualidade quando se empenham em reorganizar e submeter ao seu controle a mãodeobra através da sujeição dos homens livres como forma de reiterarem sua reprodução ameaçada pela crise enquanto classe hegemônica no espaço regional 2004 p 189 Alguns dos elementos da citação de Rosa M G Silveira não podem ser aplicados a José Gadelha ele não se coloca como vítima mas como parte do processo No entanto podemos afirmar que há o desejo de manter sua dominação e a negação do empenho em manter a mão de obra sob seu controle o que contudo é exibido pelo documentário O discurso de Gadelha não é apenas de um usineiro mas de um homem que pleiteia um cargo 191 Zabilo Gadelha André de Paiva Gadelha um portentoso comerciante de algodão em toda a área do Rio do Peixe sendo Sousa a sua cidade de nascimento 1994 COELHO p 46 192 O jornalista Evando Nóbrega afirma que O coronel Macário dos quadros do Exército mas comissionado junto à PM força auxiliar num posto imediatamente acima manifestavase muito prudente conciliador ponderado Até o jeito de falar manso pausado quase num cochicho ao pé do ouvido O coronel Gadelha que o substituiu era menos paciente com as estripulias à esquerda o mesmo ocorrendo com o major Pedro Belmont chefe da Polícia Civil 1994 p 160 193 Acessado em 10 de out de 2014 às 16h14 Endereço httpexpressopbcomtagfamiliagadelha 159 político como é provocado por Vladimir Carvalho Vladimir Carvalho Sr Gadelha para finalizar gostaria de lhe perguntar a que o senhor mais aspira na vida de agora por diante que já está um homem quase que um homem realizado praticamente Gadelha Ora meu caro realmente eu sou um homem realizado A única aspiração que eu tenho na vida é essa que estou fazendo disputando uma cadeira de deputado federal para no caso de ser eleito ajudar ao Nordeste e principalmente ao sertão paraibano e de modo muito especial à minha querida Sousa CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 7 4043 4116 Esta é a fala que conclui a entrevista assistimos então Gadelha se despedir da câmera de nós de seus trabalhadores de Sousa e sair voando em seu avião Essa construção final causa a impressão de um distanciamento daquela realidade que José Gadelha apenas observa discursa mas que deixa para trás em sua miséria A explicitação da disputa política demonstra a vinculação entre poder econômico e político contrapondose à imagem benevolente construída pelo Gadelha que até então não revelara suas intenções políticas ao menos na ordem apresentada pelo documentário Essa evidência nos permite questionar seu discurso e o desenvolvimento gerado para Sousa aparentemente apenas para ajudar sua gente Desta maneira o discurso de Gadelha detém as seguintes dimensões a constituise como uma representação do próprio consciente de um potencial político de seu discurso que deixa transparecer suas habilidades como homem de sapiência das palavras b a entrevista no entanto é editada e inserida em um contexto mais amplo em O País de São Saruê sendo um documento selecionado que permite uma leitura não de si autonomamente mas em sua inserção em uma trama de elaborações estéticocinematográficas que influenciam a maneira de ser visto c ela revela a existência de um debate de saberes com a qual procura dialogar seja na figura de José Gadelha que defende sua tese sobre o desenvolvimento do sertão em relação a outras propostas ou a do próprio documentarista que a utiliza como um dos elementos para defender sua tese Se aceitamos a afirmação de Silveira podemos afirmar que enquanto Gadelha procura omitir sua dominação Vladimir Carvalho tenta explicitála Os aspectos b e c são centrais pois nos permitem pensar O País de São Saruê e sua imagem de sertanejo e da questão agrária não como um documento que sustenta uma tese fechada em si mas em diálogo com uma rede de discursos ou melhor em uma economia simbólica acerca dos rumos para o desenvolvimento nacional entre os quais havia a ideologia comunista da década de 19601970 com uma visão de um lado unida e noutro heterogênea O País de São Saruê inicia seu discurso apresentando um espaço ocupado com lutas 160 e trabalho no qual as condições climáticas foram um forte obstáculo especialmente na figura da seca Em seguida apresenta outras dimensões dessa sociedade entre as quais se evidencia uma leitura da sociedade estratificada na sequência da extração do algodão Vimos como em nível de expressão e de conteúdo é tematizado o conflito entre capital e trabalho e a dominação de classe Para nós estão aqui as principais problemáticas pelas quais o documentário procura apresentar o subdesenvolvimento no grande sertão ou particular paraibano da questão essencialmente climática para um problema político da questão agrária 54 A questão agrária e o latifúndio a entrevista com Antônio Mariz Na penúltima sequência outra entrevista se torna importante no filme Antônio Mariz então prefeito de Sousa 19631968 fala sobre os obstáculos para o desenvolvimento do sertão e aponta como maior problema a questão do latifúndio Para nós seu discurso é tomado como locutor auxiliar auxiliando nas ideias que Vladimir Carvalho quer apresentar Problematizamos o horizonte de transformação da realidade rural apresentado pelo discurso de Mariz que remaneja explicitamente a centralidade do clima para o da estrutura agrária Antônio Mariz foi amigo de infância de Vladimir Carvalho e um dos financiadores do filme pois ofereceu alguns poucos recursos em troca de alguns favores ao cineasta Cf Capítulo II Ele se encaixava no ideário do PCB de uma classe média progressista com a qual faria frente contra o latifúndio Mariz era filiado ao PTB partido com o qual o PCB se aproximara no início da década de 1960 Antônio Mariz denuncia a indústria da seca e situa a questão agrária sob um prisma políticosocial não o restringindo ao aspecto climático Nesta sequência Antônio Mariz aborda o subdesenvolvimento sertanejo enquanto as imagens mostram situações tristes que ilustram a fala do prefeito ou reforçam seu aspecto dramático Inicia por exemplo afirmando que a gente sertaneja recorre à Prefeitura ao se deparar com problemas enquanto as imagens mostram uma enorme fila com populares e depois Mariz conversando com eles Enquanto fala da situação de tristeza e miséria planos mostram meninos magros e uma criança morta nos braços de seus pais Comenta que a seca não é o único problema da região e planos mostram fotografias de uma enchente e das crianças mortas com grandes barrigas dágua buscando emocionar o espectador As imagens corroboram com o discurso de Mariz diversamente da elaboração discursiva que indicamos na sequência de José Gadelha Após essa sequência a última mostra imagens que sintetizam ao som da música tema do documentário os argumentos apresentados pelo enredo O áudio dessa sequência é majoritariamente constituído pelo discurso de Antônio 161 Mariz semelhante à sequência com a entrevista de José Gadelha Em ambos o documentário evidencia a quem a voz pertence mas diversamente das outras entrevistas nas quais consta também a voz do entrevistador transparecendo a estrutura documentária e reforçando o caráter particular da fala o discurso de Mariz não sofre qualquer interrupção Essa fala representa mais um discurso enquanto aquele ato político produzido antes para impressionar uma plateia que uma entrevista Em certa medida o mesmo se aplicaria a entrevista com José Gadelha cuja fala pleiteava um cargo político porém nela ocorre diálogo e não monólogo A fala de Mariz não apresenta elementos estéticos que questionem seu conteúdo seja em áudio ou como vimos em imagem Assim a diferença central está no seu uso diverso pelo filme sem realizar antítese Além disso ele conclui o filme em lugar privilegiado de síntese Vladimir Carvalho o assume utilizandoo de maneira diferenciada em O País de São Saruê A esse uso diverso relacionamos ao que JeanClaude Bernardet chama de locutor auxiliar Na biografia de Vladimir Carvalho escrita por Carlos Mattos a partir de depoimentos do cineasta é destacado que Antônio Mariz foi vicepresidente da UNE 2008 p 114 Em 1963 candidatouse a prefeito de Sousa pelo PTB enfrentando o espaço eleitoral dominado pela família Gadelha Terminou sua administração em 1969 Segundo Inácio Leitão o discurso de campanha de Antônio Mariz para a prefeitura de Sousa foi inovador defendendo os trabalhadores explorados pelas usinas a adoção da Carteira de Trabalho o salário mínimo e as reformas de base de João Goulart bandeiras que também eram abraçadas pela política pecebista LEITÃO 2006 p 13 Havia assim certa proximidade ideológica entre Mariz e Vladimir Carvalho que justifica ao último assumir o discurso do prefeito ao final do filme A relação entre Antônio Mariz e a oligarquia Gadelha foi de muitos conflitos políticos Antônio Mariz por sua vez era também de uma oligarquia Monique Citaddino indica que a família Mariz era uma influente família do município de Sousa194 José Marques da Silva Mariz pai de Antônio Mariz era filho do segundo casamento do Dr Antônio Marques da Silva Mariz CITTADINO 2006 p 76 Havia assim uma disputa entre famílias e ambas tinham uma tradição política de influência em Sousa Durante o período militar sob chefia do Estado de Pedro Gondim 19601965 e 194 Vinculados aos liberais o Dr Antônio Mariz participou como deputado estadual da 1ª legislatura da República 189192 Em seguida foi deputado federal nas legislaturas de 189496 18971899 e 19001902 Voltando à Paraíba integrou a 9ª legislatura em 1920 e a 10ª em 1924 A vocação política ele herdou de seu pai o padre José Antônio Marques da Silva Guimarães que além do comando religioso exercia também a liderança política sobre o município de Sousa tendo sido vinculado ao partido liberal deputado provincial nas 1ª 183536 3ª 184041 e 7ª 184849 legislaturas do Império CITADDINO 2006 p 55 Com o Ato Institucional n 2 que excluía o pluripartidarismo deixando apenas duas siglas a ARENA e o MDB Mariz filiouse ao primeiro como era possível na dinâmica paraibana de política pois o MDB não representava necessariamente uma oposição Cf CITTADINO 1999 p 116117 162 depois de João Agripino 19651971 Antônio Mariz inicialmente teve problemas com o regime militar Ele se alinhava na Paraíba com as reformas de base propostas por João Goulart no período prégolpe Já prefeito de Sousa desobedeceu a seus partidários e realizou um comício de apoio ao Governo Federal no dia 1º de Abril de 1964 MACHADO 1991 p 105 OCTÁVIO 1994 p 122 Mariz foi investigado através de um IPM Inquérito Policial Militar preso em Sousa e levado a um quartel em João Pessoa As acusações de seus adversários contudo foram consideradas infundadas195 Seu viceprefeito Geraldo Sarmento era da oposição a Mariz e bem quisto pelos Gadelha sendo a denúncia uma estratégia política Por esses dados do percurso de Antônio Mariz até as gravações do filme fica evidente que sua presença no discurso do filme indica uma relação muito mais complexa não explícita no discurso do documentário Apesar de não haver referência direta no filme ao conflito dessas oligarquias Vladimir Carvalho colocou duas entrevistas de grupos políticos opostos assumindo uma posição ainda que sutil sobre seus discursos Para além da confluência ideológica e do abraço ao discurso de Mariz o cineasta assumiu posição na dinâmica política local paraibana A construção estética da penúltima sequência e o conteúdo do discurso de Mariz relacionamos à função da fala de Mariz enquanto o locutor auxiliar O discurso de Antônio Mariz também possui a característica de um homem que conhece a palavra Sua fala é pausada de tom sério grave e comovente Fala da situação de subdesenvolvimento do sertão e do sofrimento e necessidade dessa gente de recorrer à ajuda da Prefeitura Porém rompe com o discurso da seca relacionando a situação econômica da região ao problema da má distribuição de terra e renda Uma palavrachave importante presente na primeira frase da fala de Antônio Mariz subdesenvolvimento Mariz começa seu discurso ressaltando que o sertanejo recorre constantemente à Prefeitura seu espaço de atuação ou seja pede ajuda ao poder público Porém não atribui ao sertanejo um caráter indolente e preguiçoso Mas esse pedir permanente não revela ociosidade nem aversão ao trabalho como poderia parecer aos mais rigorosos ou intolerantes É antes a imagem 195 Livroulhe da situação o prestígio do senador João Agripino seu primo e amigo de Castello Branco e do general Golbery NÓBREGA 1994 p 186 O jornalista Jório Machado indica que o relatório do próprio Exército sobre o evento ressaltava as qualidades da administração de Antônio Mariz em Sousa e podava os excessos nas denúncias de seus adversários 1991 p 106107 Indicou ainda diretamente a rivalidade entre José Gadelha e Antônio Mariz Os adversários que já denunciavam o prefeito às instituições militares como subversivo aproveitaram a manifestação antigolpista da noite do dia 1 de abril para intensificar a pressão e conseguiram uma ordem de prisão contra o prefeito Mariz Antes o usineiro e grande latifundiário José Gadelha eleito posteriormente deputado federal líder da oposição ao prefeito tentou entregar Mariz por intermédio do Governador Pedro Gondim que recusou a proposta e ainda revelou a trama ao prefeito de quem era amigo pessoal p106 163 da pobreza regional que não decorre nem da natureza nem do temperamento nem da formação do povo Mas que é o fruto de longos erros acumulados na forma de explorar a terra na forma de criar e distribuir riquezas CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 12 1h1525 1h1608 O sertanejo para Mariz não é um ocioso nem avesso ao trabalho tampouco relaciona a causas naturais ao temperamento ou à formação do povo a origem dos problemas da região diversamente do que foi construído nas décadas anteriores Atribui o problema a longos erros acumulados na forma de explorar a terra na forma de criar e distribuir riquezas ou seja identifica um problema na forma da produção regional questões técnicas bem como uma má distribuição de terras e rendas a ausência de reforma agrária Até valoriza o sertanejo e sua relação com o problema que enfrenta Mas longe da seca e da enchente muito mais grave é o problema da estrutura agrária Nós temos porém tendência no sertão a captar somente o problema do clima E de fato existe um problema do clima a seca a enchente E então as secas jogam o povo nas ruas Faz com que esses camponeses humildes reverentes permanentemente em quem não se adivinha à primeira vista a fibra a coragem a decisão de viver e de crescer faz com que este povo perca esta aparente humildade e se revele em sua grandeza em sua força ao assaltar a feira ao invadir as lojas o comércio ao tomar a cidade ao bradar ao exigir os seus diretos CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 12 1h1618 1h1716 Nesse fragmento constam dois aspectos fundamentais a afirmação explícita de que o problema muito mais grave é o da estrutura agrária em vez do problema do clima e a valorização de Mariz à reação dos camponeses a perda da aparente humildade e a revelação da grandeza e da força do povo ao assaltar a feita invadir lojas o comércio dentre outras ações que caracteriza como um exigir de seus direitos Reconhece e prestigia o papel do sertanejo quando se move para uma atuação organizada ou reage à opressão que sofre No contexto do regime militar as manifestações contra o regime as greves e outras ações políticas foram caracterizadas como subversivas e tomadas como questão de segurança nacional O discurso de Mariz confronta essa visão A ação popular que poderia ser lida como vândala criminosa subversiva ou mesmo irracional ou ainda como fruto do temperamento antitético do sertanejo é apresentada por ele como uma exigência de direitos colocandoos em um patamar de ação legítima e cidadã O discurso de Antônio Mariz é oposto à ideologia do regime militar que defende a ordem sem questionamento e oprimiu a organização política e a aspectos já mencionados acerca do caráter do sertanejo como preguiçoso ou com temperamento naturalmente situado em extremos Os discursos de Antônio Mariz e José Gadelha exibem uma oposição nos contornos 164 apresentados o primeiro valoriza sua atitude coloca o sertanejo como aquele que exige direitos frente a uma opressão de cunho social o latifúndio o último o coloca como vítima de um descuido do Estado que deveria garantir fundos para sua emancipação não o vê como ator de sua independência política mas como digno de uma proteção Pelos discursos parece que José Gadelha se encaixa enquanto figura que tutela os pobres subjugandoos construção presente na ambiguidade da articulação discursoimagem que Mariz como uma figura mais progressista e que põe o embate no âmbito da estrutura social cuja articulação imagemdiscurso procura confirmar a pertinência das ideias de Mariz A questão agrária é colocada em primeiro plano para explicar o subdesenvolvimento e a reação popular escolha que demonstra uma confluência entre seu discurso e alguns elementos das teses pecebista e furtadianas sobre a região o problema deixa o âmbito da raça ou do clima para o âmbito econômicosocial Neste sentido Mariz abraça a matriz da década de 1950 que visou o desenvolvimento nacional enxergando na questão agrária um obstáculo e não mais centralizando o problema em questões étnicas ou climáticas196 Ainda que seja posteriormente à produção do filme vale ressaltar que Antônio Mariz como parlamentar defendeu a cultura do algodão LISBOA 2006 p 30 sendo uma figura que participou ativamente da discussão das políticas públicas para o Nordeste brasileiro 197 No seu discurso presente em O País de São Saruê Antônio Mariz afirma que o problema da seca não é mais tão central para a nova estrutura econômica do sertão apesar de indicar o grande prestígio da seca tão presente na cultura popular Por isso seu discurso problematiza mais o domínio das elites locais que endossa o discurso da indústria da seca pelo qual essa mesma elite conseguia se apropriar de recursos federais198 Quando Antônio Mariz questiona aquilo que podemos chamar de indústria da seca não está apenas indicando um medo da seca no imaginário popular mas está em diálogo com os debates políticos sobre a solução para viabilizar o sertão De acordo com a visão que 196 Discursos disponíveis na série Perfis Parlamentares Mariz n 51 organizada por Cláudia Lisboa apontam para sua posição frente aos conflitos agrários durante a ditadura militar ainda que não mais na época de elaboração do discurso de O País de São Saruê 197 Discursos nos quais o parlamentar defende podem ser conferidos na série Perfis Parlamentares Mariz 2006 n51 organizada por Cláudia Lisboa disponível no site da câmara dos Deputados HTTPbdcamaragovbr Antônio Mariz foi deputado federal entre os seguintes períodos 19711975 19751979 19791983 e 19871991 Além de assumir o mandato de senador entre 1991 a 1994 fonte httpwwwsenadogovbrsenadoressenadoresbiografiaaspcodparl84li49lcab19911995lf48 Acesso em 23Jun2014 198 Lúcia Guerra indica que houve duas leituras sobre a problemática sertaneja uma que situava a seca como a origem dos males do Sertão da Paraíba como Irineu Joffily e José Américo de Almeida e outra que oriunda na década de 1950 vê a seca a partir da estrutura sócioeconômica da região tendo expoentes como Celso Furtado ou Francisco de Oliveira GUERRA 1993 p 1415 Foi nessa última corrente ou matriz que se originou a crítica à indústria da seca à apropriação de recursos nacionais por uma elite local sem resolver concretamente os problemas sociais da seca 165 rompia com a explicação meramente climática para os problemas sociais nordestinos pauta suas origens sociais e políticas Por isso Mariz conclui da seguinte maneira sua fala Apenas o que digo é que a seca e a enchente não são o fundamento as causas profundas do subdesenvolvimento nordestino Eles existem mas são perfeitamente controláveis E de certa forma estão sendo controlados E felizmente tanto os governos como o povo já compreendem isto E hoje já olham para a terra do sertão sujeira a estas intempéries como uma terra capaz de criar uma grande civilização E o povo se identifica sic em sua capacidade de superar estes problemas menores do clima para estabelecer uma sociedade próspera uma terra rica de cuja riqueza participem todos CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 12 1h1915 1h2015 Antônio Mariz indica que o sertão é subdesenvolvido por uma questão agrária pela má produção e distribuição de riqueza O discurso de Mariz é utilizado por Vladimir Carvalho para retomar sua tese de um país rico mas subdesenvolvido como presente na música tema e especialmente na sequência sobre o ciclo do ouro no sertão Como indicamos as entrevistas e elementos de um filme são meios auxiliares para sua narração A utilização do discurso de Mariz no entanto é diferenciada das demais Na entrevista com os pioneiros do ouro por exemplo são presentes elementos que questionam na dialética imagem e som o conteúdo das afirmativas Enquanto Pedro Alma na décima sequência fala sobre sua aventura no ciclo do ouro Vladimir Carvalho questiona através das imagens a validade dessas informações Assim enquanto o homem fala na cadeira de balanço a câmera inclui no plano a imagem de sua neta que ri desconcertando a gravidade do discurso Em outro momento a trilha sonora também oferece a sensação de história fantástica relativizando o realismo do relato Entrevista ainda o pioneiro do ouro Zeca Inocêncio cuja fala humilde oferece pouca confiança pois contém episódios fabulosos como de um homem rico que colocara um dente de ouro em um bode Após essas entrevistas a voz over desconstrói uma possível credibilidade aos relatos O solo paraibano registra uma infinidade de ocorrências minerais Columbita bauxita xelita caulim pirita tório alguns radiativos Prefeitos de várias cidades bem como particulares fomentam pequenas explorações no intuito de um dia poderem realizar a emancipação de seus municípios silêncio O folheto da Viagem a São Saruê do romanceiro popular fala da existência de uma terra mitológica de riqueza e fartura Essa imagem parece se repetir pelo menos virtualmente nesses campos inflamando as imaginações e provocando às vezes ilusões definitivas CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 11 1h0603 1h0727 166 A sequência nove é sobre Charles Foster um voluntário de 23 anos que estava em Sousa fazendo um trabalho comunitário Suas imagens explicitam limites do diálogo com o estrangeiro dada a situação política da época A voz de Vladimir Carvalho questiona as razões para o atraso do Nordeste e sobre a Guerra do Vietnam e recebe respostas evasivas de Foster que diz não poder responder à primeira pergunta enquanto a imagem exibe o logotipo da Aliança para o Progresso e não saber de nada da segunda questão enquanto aparece um recorte de jornal da convocação do Peace Corps As imagens trazem elementos dos conflitos entre jovens americanos e a convocação para a Guerra do Vietnã e da Aliança para o Progresso em seu papel imperialista complementando ou confrontando o silêncio no discurso do entrevistado Sem adentrar nas realidades concretas suscitadas nessas outras sequências pois não é nosso objetivo agora percebese como as entrevistas possuem dinâmicas e usos diversos Já indicamos o processo de significação da relação imagem e som na sequência da entrevista de José Gadelha que opõe ao áudio verbal a opressão de classe em imagens Vimos que no discurso de Antônio Mariz não há questionamento de sua argumentação mas seu reforço Essa entrevista junto com a música que conclui o filme assume posição privilegiada de síntese do problema apresentado em O País de São Saruê O crítico de cinema JeanClaude Bernardet chama de locutor o que chamamos aqui de narrador com voz over199 Ele analisou o uso de entrevistas no documentário Viramundo 1965 indicando a existência de um locutor auxiliar um entrevistado que não assume o lugar de si como outros personagens no filme falando de sua própria experiência mas que fala do outro sem contraposição assumindo uma função de complementar o discurso fílmico Bernardet analisa alguns documentários da década de 1960 e identifica que as vozes são diversificadas não falam da mesma coisa e não falam do mesmo modo 2003 p 15200 Distingue a voz de operários populares de um operário qualificado e a voz over Diferencia as falas dos trabalhadores entrevistados limitadas ao âmbito de suas experiências particulares do locutor em voz over voz do saber e generalizante e a do operário qualificado que como um tipo de especialista demonstra um saber e auxilia a narração do filme201 199 Bernardet afirma que apenas não usa o termo voz over porque ele não era corrente a época 200 Na etapa que nos referimos Bernardet analisa em dois capítulos documentários de curta metragem estabelecendo modelos e indicando a função das diversas vozes nos filmes e suas relações em cada filme em particular Utilizamos suas indicações como base para pensar o mesmo problema em O País de São Saruê Estamos conscientes de que como Bernardet aponta a seleção de filmes muda a análise e que sua proposta não almeja um modelo geral A análise é construída a partir da lógica de cada filme em particular 201 Bernardet afirma que as falas dos entrevistados trabalhadores no filme Viramundo são as vozes da experiência Falam só de suas vivências nunca generalizam nunca tiram conclusões Ou porque não sabem ou porque não querem ou porque nada lhes é perguntado neste sentido Se por acaso um operário 167 Na dramaturgia dos documentários diante da câmera a pessoa representa a si mesma em função da filmagem faz o papel de si mesma BERNADET 2004 p22202 Nas entrevistas que contrapomos de José Gadelha e de Antônio Mariz este fala de si enquanto aquele fala do outro Gadelha está próximo às entrevistas do ciclo do ouro e de Charles Foster nas quais os indivíduos falam de suas experiências Esteticamente a presença em voz ou em imagens do documentarista reforça o caráter situacional e particular São entrevistas que evocam vivências particulares com ambiguidades em seu discurso e que podem soar curiosas um homem rico falando sobre o desenvolvimento em um filme caracterizado pela miserabilidade o choque de realidades tão diversas como dos voluntários norteamericanos nos confins do sertão ou os delírios do garimpo do ouro É possível identificar uma ruptura com a construção dos documentários que Vladimir Carvalho participou anteriormente como Aruanda e Romeiros da Guia A influência de Opinião Pública reconhecida pelo cineasta mostrase pelo uso diferenciado da entrevista em O País de São Saruê Uma das diferenças no uso da entrevista em Opinião Pública está em como se exploram as situações com maior desenvoltura e menor redução dos personagens a generaliza é para dizer besteira por exemplo que os nossos irmãos do Norte só pensam em matar e que o pessoal do Sul gosta de trabalhar dez doze horas por dia É apenas um ponto de vista que enquanto tal fica desqualificado como generalização Não podemos levar a sério o conteúdo dessa firmação podemos apenas tomála como um dado sobre quem a fez Ao emitir sua visão quem fala fala de si e o que diz continua sendo um dado da experiência imediata 2003 p 16 Essas entrevistas de trabalhadores em Viramundo mostram seus sujeitos enquanto limitados ao âmbito de suas experiências Diferentemente da voz over que Bernardet chama de locutor A voz do locutor é diferente É uma voz única enquanto os entrevistados são muitos Voz de estúdio sua prosódia é regular e homogênea não há ruídos ambientes suas frases obedecem à gramática e enquadramse na norma culta Outra característica o emissor dessa voz nunca é visto na imagem Ele pertence a um outro universo sonoro e visual mas um universo não especificado uma voz off cujo dono não se identifica Diferentemente dos entrevistados nada lhe é perguntado fala espontaneamente e nunca de si mas dos outros dos migrantes não apenas dos entrevistados mas dos migrantes no geral que vieram para São Paulo os que vemos no filme constituem uma pequena parcela deles O locutor não fala como eles Eles falam de si na primeira pessoa ele fala deles na terceira enquanto os migrantes falam de suas situações particulares ele fala deles no geral Dá números estatísticas são tantos que chegaram a São Paulo entre 1952 e 1962 tantos por cento que se dirigem para a agricultura tantos para a construção civil e a indústria Qualifica brevemente de zonas sociais mais atrasadas a região donde provém e esta a que chegam de formas sociais e urbanas mais avançadas e racionais do Brasil É a voz do saber de um saber generalizante que não encontra sua origem na experiência mas no estudo de tipo sociológico ele dissolve o indivíduo na estatística e diz dos entrevistados coisas que eles não sabem a seu próprio respeito Os entrevistados falam de uma história individual não se veem como número não provêm de zonas mais atrasadas nem se dirigem às zonas mais racionais provêm de lugares onde não conseguem cultivar a terra e sobreviver Se o saber é a voz do locutor os entrevistados não possuem nenhum saber sobre si mesmos O que informa o espectador sobre o real é o locutor pois dos entrevistados só obtemos uma história individual e fragmentada pelo menos quando se concebe o real como uma construção abstrata e abrangente 2003 pp 1617 202 Essa representação para a câmera espécie de atuação e simulacro de si não é feita igualmente mas depende de variáveis acertadas antes de ligar a câmera o acordo sobre o que falar a maneira como o entrevistador procede na conversa as habilidades e experiências do entrevistado em falar em público etc Não aprofundamos nisto pois não temos dados da diferença na preparação destas entrevistas mas certamente teve alguma influência a identificação ideológica e a maior intimidade entre o cineasta e Antônio Mariz 168 tipos sociais como nos documentários de modelo sociológico203 Nesse sentido parece que Vladimir Carvalho se aproximou dessa construção estética oriunda de uma técnica jornalística muito utilizada durante a ditadura militar A quase total transferência da exposição do tema e a total transferência do direito de opinar aos entrevistados aliada à ampla gama ideológica constituem uma técnica jornalística que se desenvolveu muito no Brasil durante a ditadura o articulista fica isento de se manifestar diretamente assume a tarefa aparentemente técnica de montar as entrevistas de combinar entre si os fragmentos de depoimentos BERNADET 2003 p79 Embora as personagens e suas entrevistas não tenham a desenvoltura de Opinião Pública identificamos uma mudança consistente na maneira de fazer documentário de Vladimir Carvalho que ficou mais marcada depois em filmes como A Pedra da Riqueza e Barra 68 O primeiro filhote de O País de São Saruê tem uma estrutura na qual a entrevista é essencial importando menos a realidade filmada que a reação do entrevistado às imagens204 Em Barra 68 ao entrevistar o antigo reitor da UnB durante o período militar que marcou grande intervenção nessa universidade Carvalho aparece apertando a campainha e conversando com o reitor Ele chega a questionar o papel assumido pelo reitor na administração o qual reage à ação provocando também o documentarista205 No entanto a entrevista com Antônio Mariz não possui iguais condições não há essa relativização imagética e sonora da intervenção do documentarista ou de elementos estéticos que valorizem seu caráter discursivo e particular Seu discurso se aproxima da voz over assumindo o status de locutor auxiliar indicado por Bernadet A fala de Gadelha e dos demais é particular e fragmentada já a de Mariz assume caráter sociológico e ganha prestígio enquanto voz do saber pois apesar de também ser particular comenta a realidade do outro e não a sua própria O aspecto subjetivo de seu discurso é menos presente pela construção de seu discurso e principalmente pelo uso que dele faz o filme O documentário assume sua voz não como objeto de investigação mas como parte de seu argumento Isso nos leva à questão central de que no filme a figura de José Gadelha além de seu caráter particular representa o outro de classe o latifúndio com seu discurso questionado Já 203 Daí que José Carlos Monteiro dizer que Vladimir Carvalho combinou formas tradicionais com o cinema verdade em O País de São Saruê MONTEIRO 1986 p143 204 Vladimir Carvalho entrevista um nordestino erradicado em Brasília que assiste às imagens captadas em uma mina na qual trabalhara antes de viajar para o Distrito Federal Para além da realidade da mina sua reação e comentários são a grande riqueza do filme 205 Em Barra 68 o exreitor provoca Vladimir Carvalho afirmando que quando questionado sobre a conduta de Vladimir Carvalho como professora na universidade devido ao seu perfil comunista o protegera 169 os pioneiros do ouro representam o tema da alienação como indicado pela relação estabelecida entre os devaneios do poeta em Viagem de São Saruê e as entrevistas Antônio Mariz no entanto representa o discurso assumido pelo próprio documentarista devido a sua proximidade ideológica sendo uma personagem menos questionada Podemos ainda relacionar ao exposto sobre as bandeiras rurais pecebistas um documento de Mariz de 1971 contemporâneo ao lançamento do filme Durante o discurso em que defendia ampliação da Assistência ao Trabalhador Rural referese da seguinte maneira aos trabalhadores rurais Os trabalhadores rurais historicamente relegados a condições subumanas de vida escravos na antigüidade servos da gleba nos regimes feudais massa de manobra de todas as revoluções são os últimos sempre a aceder à titularidade dos direitos sociais MARIZ 2006 p 37206 Destaca o atraso da legislação que se refere ao trabalho rural comparandoa com aquelas que regulam o trabalho urbano MARIZ 2006 p 3940 Denunciava no discurso aspectos aos quais o PCB se opunha a convivência com condições atrasadas de trabalho a ausência de direitos sociais a ampliação ou efetivação de direitos sociais Afirma ainda Não é o trabalhador rural incapaz de organizarse Não é ele reduzido ao silêncio pela ignorância a que está condenado Não é ele incapaz de reivindicar validamente Pois que pague o preço do desenvolvimento pois que aguarde para as calendas gregas a instalação de sociedade de afluência para a qual certamente nos predestinamos MARIZ 2006 p 4344 Não obstante o próprio Antônio Mariz defenderá a liberação de O País de São Saruê em 1976 É tempo também com certeza de reclamar da Censura a liberação de outro documentário de Vladimir O país de São Saruê Desde 1971 mofa nas prateleiras da burocracia interditado Realizado há cerca de dez anos Ariano Suassuna considerou o diretor uma revelação e o filme uma valiosa contribuição à cultura brasileira MARIZ 2006 p 93207 Mariz tece elogios à realidade apresentada pelo documentário e à sua construção estética afirmando que censurado segundo consta como pessimista contrário às idéias desenvolvimentistas do momento é hoje um documentário antigo mas afirma ainda que Se a denúncia implícita nas imagens encontrar ainda ressonância na realidade atual tanto melhor que sirva de advertência aos homens aos governos Não passou a época das reformas nem se concluiu a construção do Brasil com que sonham os brasileiros MARIZ 2006B p93 206 Originalmente foi publicado no Diário do Congresso Nacional Seção I de 14 de maio de 1971 207 Originalmente publicado no Diário do Congresso Nacional Seção I de 1o de junho de 1976 p 4624 170 Pelo demonstrado nesse discurso Antônio Mariz assume também a própria denúncia do documentário colocando sua atualidade e a pertinência das reformas defendidas ainda na década de 1960 antes do golpe militar Nesse sentido certa confluência ideológica era mútua Considerações sobre o uso da entrevista e o camponês em O País de São Saruê Cabem aqui algumas considerações sobre o uso da entrevista no que dizem respeito à presença de populares em O País de São Saruê Os agricultores e operários apresentados no filme não são entrevistados exceto na sequência do ciclo do ouro que temos o relato de Pedro Alma A entrevista neste documentário representa um momento de transição o filme tem uma parte estruturada sem o uso de entrevistas e outro com um uso ainda em construção pela ausência dos gravadores portáteis As entrevistas eram feitas portanto com dificuldades O documentário tem um discurso no qual as figuras dos sertanejos populares é apresentada na maioria das vezes por outros seja pela poesia de Jomar Moraes Souto pelo discurso imagético dos planos pela voz off e pelos personagens particulares que comentam sua realidade Charles Foster José Gadelha e Antônio Mariz Sua voz é praticamente ausente e nesse sentido O País de São Saruê não deixou de estar próximo a um tipo de filme que falava em nome de outro de classe Aproximase do que Bernadet chamou de uma construção de tipos sociológicos nos quais os atores sociais servem de matériaprima para construção de tipos Eles emprestam suas pessoas roupas expressões faciais e verbais ao cineasta que com elas molda o tipo construção abstrata desvinculada das pessoas com que ele se encontrou na primeira fase O tipo sociológico uma abstração é revestido pela aparência concreta da matériaprima tirada das pessoas o que resulta num personagem dramático Ficamos com a impressão de perfeita harmonia entre o tipo e a pessoa quando o tipo abstrato e geral é todo poderoso diante da pessoa singular que aniquila BERNADET 2003 p 24 Careceria de outro estudo para definir qual é exatamente esse tipo sociológico em comparação com a construção dos filmes indicados por Bernadet Todavia acredito que essa afirmação deva ser relativizada pelo aspecto de que em O País de São Saruê essa construção se dá menos explicitamente como em Viramundo que traz dados sobre uma realidade em um modelo clássico de documentário um tanto didático e com ar grave pois ele almeja uma construção poética dessa realidade No entanto permanece uma clara distinção na construção das personagens particulares e desses trabalhadores O que nos permite indicar dois aspectos 171 aqueles que possuem voz se aproximam da classe do próprio Vladimir Carvalho o que entra no jogo dessa representação e por outro lado essa forma diversa de tratamento também revela a historicidade de um filme que transita entre formas de fazer documentário e possibilidades tecnológicas Nos filmes posteriores do cineasta a presença da voz popular se torna mais presente e autônoma como nos relatos de Conterrâneos Velhos de Guerra que chegam a entrar em confronto com a fala do arquiteto de Brasília Oscar Niemeyer 55 O discurso do documentário A última sequência do documentário poderia ser incluída como uma segunda parte da penúltima sequência Separamos para fins analíticos contudo há uma continuidade ao fim da entrevista com o prefeito de Sousa começamos a ouvir a música tema do filme que ligada ao tema das afirmações de Antônio Mariz e as imagens faz uma síntese do documentário O discurso de Mariz é concluído de maneira otimista refutando a inviabilidade da região E hoje já olham os governos e o povo para a terra do sertão sujeira a estas intempéries como uma terra capaz de criar uma grande civilização E o povo se identifica sic em sua capacidade de superar estes problemas menores do clima para estabelecer uma sociedade próspera uma terra rica de cuja riqueza participem todos CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 12 1h1940 1h2015 Os problemas dos climas são exibidos como menores e ressalta o papel do povo na solução para uma sociedade próspera o que passa pela estrutura agrária como explicitara antes reafirmando a riqueza da terra e da necessidade dela participarem todos Mariz afirma o povo como agente dessa mudança e opõe a isso a estrutura fundiária aproximandose da oposição construída pelo documentário nas sequências do algodão na oposição do bem e do mal ou na de opressor José Gadelha versus oprimido operários Assim o discurso é concluído com uma síntese de aspecto classista embora não dito explicitamente classe Paralela a essa construção no final do discurso de Mariz já começamos a escutar a música tema do filme uma cantoria de caráter sertanejo iniciada com o seguinte verso O avião sobrevoa eh eh Um reino desencantado O gavião vê de longe eh eh As costelas de Eldorado Pra onde ele levou tudo Pra dentro de qual cercado Acauã e seus redores Num mesmo laço jogado CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequências 1213 1h1910 1h20 172 Além de servir de pontuação para indicar o fim do filme pois ela também abre o filme repõe o tema que abre o documentário amarrando metáforas agora mais claras à luz do enredo fílmico Na música a personagem avião que sobrevoa um reino desencantado é sobreposta a de um gavião que observa as costelas de Eldorado208 Essa sobreposição aviãogavião reino desencantadoEl Dorado relaciona tais objetos e os opõem O gavião é uma ave de rapina que sobrevoa para atacar certeiro sua presa A ela se alude o avião cuja única referência anterior consiste na figura de José Gadelha que usa esse veículo imagem retomada em um plano mais à frente que reforça tal interpretação No fim da estrofe a canção fala que o gavião roubou a riqueza e a levou para um cercado símbolo da propriedade privada A esse evento articula a decadência de Acauã e seus redores Afirma ainda Em cima daquela serra eh eh Tem um tesouro enterrado Com suas garras de aço eh eh O gavião voa baixo Ouro prata diamantes E o algodão em penachos Nascendo da terra seca E dos ossos desse riacho CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 13 1h2012 1h2046 Reforçando a rapinagem do gavião símbolos da riqueza como o ouro prata diamantes são relacionados ao algodão em penachos o ouro branco da região Vimos que o gavião se relaciona a figura de José Gadelha que representa genericamente a opressão e o latifúndio que pegam com suas garras tais riquezas A terra seca e os ossos são símbolos da pobreza e decadência aparentemente indicam miséria no entanto são deles que nascem tais benesses A miséria não surge pelo espaço desencantado mas pela rapinagem Essa música portanto faz uma síntese semelhante à apresentada por Antônio Mariz sendo utilizada também para costurar o discurso fílmico assumindo seus argumentos Junto à música imagens mostram elementos já apresentados pelo documentário Reforçase a relação de classe na conclusão do filme como vemos nesses planos 208 El Dorado é uma lenda indígena mal interpretada pelos espanhóis que acreditaram existir uma cidade de ouro na América Diversas explorações foram realizadas buscando essa cidade Pesquisas mais recentes no entanto apontam que o El Dorado não era um lugar mas uma pessoa No filme é utilizada para indicar um reino de riqueza mas que está em decadência daí seus restos serem os ossos de El Dorado 173 174 CARVALHO O País de São Saruê 1971 Sequência 13 1h2100 1h2210 Os seis primeiros planos se remetem a elementos já exibidos pelo documentário que resgata essa memória para fazer uma síntese Vemos um cemitério sertanejo que se articula com a ideia de um reino desencantado Assistimos novamente imagens como a construção da casa e operários da usina de algodão Por fim o Rio do Peixe indica o espaço e valoriza sua riqueza a água Vemos Charles Foster e depois um popular remando Em seguida a canção diz E a balança dos contentes eh eh eh Pesa a sede dos magoados repetindo enquanto vemos planos significativos populares com armas na mão símbolo de conflito José Gadelha chega à usina no seu carro ostentação popular olha a balança rústica em plano dramático já vimos como a balança representa o símbolo da opressão da pesa do algodão Em seguida sobrepõe insistentemente a imagem de São Miguel Arcanjo e da senhora trabalhando na usina do algodão retomando o símbolo da justiça e do conflito entre bem e mal Mais uma vez é relacionado um plano de Gadelha olhando dono da situação Esse plano articulase à construção anterior e à próxima um plano de populares catando algodão no chão com a câmera em contraplongé deixandoos em enquadramento que valoriza sua submissão enquanto o plano de Gadelha o deixa maior dominador Um plano de Gadelha acenando da janela do avião com sorriso é sobreposto a um plano de populares de rostos sérios assistindo ao bumba meu boi Por fim o caçador maltrapilho da pequena presa conclui o filme em vários planos até desferir um tiro contra o sol Tendo em vista a alusão ao gavião que voa alto poderíamos atribuir também este a uma reação à opressão do gavião avião José Gadelha latifúndioresquício feudalsituação de subdesenvolvimento 175 Considerações Finais No Capítulo 3 explicitamos a metodologia assumida para a análise de O País de São Saruê a partir da semiótica lançando mão dos conceitos de quadrado semiótico e de programas de base na construção de uma narrativa que visa a realização de uma performance Identificamos elementos da construção de uma representação do sertão baseada no mundo do trabalho e elaborada por Vladimir Carvalho cujas marcas podem ser identificadas em sua atitude ética nas filmagens e especialmente no processo de montagem Localizamos algumas influências para Vladimir Carvalho da literatura regional de Euclides da Cunha e do historiador Capistrano de Abreu problematizadas pela análise Relacionamos à subcultura política comunista cujo raio de influência chegou a outros intelectuais localizando o debate circundante nas instituições políticas que o cineasta se ligara durante a década de 1960 PCB e o CPC Apontamos o debate interno e a linha oficial do PCB contextualizando essas influências para sua leitura sobre a questão agrária brasileira Nosso tema eleito foi o mundo do trabalho Identificamos nas primeiras sequências de O País de São Saruê como o cineasta apresenta o espaço e o homem Há uma construção de um espaço físico hostil aos moldes euclidianos mas também afetuoso com um passado de opressão e exploração da população indígena que se relaciona com o surgimento do próprio sertanejo surgido em um contexto de imutabilidade primitivismo que sofreu transformações históricas com muitos conflitos sangue exploração e trabalho Apresentase então o sertanejo popular laborioso e de cultura peculiar em declínio a civilização do couro Em seguida analisamos as duas sequências que abordam a produção do algodão a primeira mostra o plantio e a segunda o caráter industrial Identificamos a centralidade da miséria das relações de classe da exploração do homem pelo homem e da precariedade da produção apresentada como injusta através de várias metáforas Essa denúncia social está sintetizada particularmente na metáfora da balança de São Miguel Arcanjo símbolo da luta do bem contra o mal da justiça contra a injustiça mas articulada à balança concreta da pesagem do algodão rústica real e símbolo da má remuneração do camponês sertanejo Na sequência seguinte na fase industrial é apresentado o antagonista da população popular sertaneja José Gadelha representação do dono de terras e parte da burguesia local Ele é depois relacionado ao gavião referido na música e nas imagens de abertura nas quais vemos uma ave de rapina em sobrevoo e retomado na sequência que conclui o filme Apresentamos seu discurso e contextualizamos a oligarquia dos Gadelha em Sousa tema não 176 explícito pelo documentário além de mostrar como o áudio e imagens de Gadelha e os planos dos operários foram montados de maneira a construir uma oposição de classe Por fim analisamos o uso das entrevistas contrapondo a entrevista de José Gadelha e de Antônio Mariz feitas de maneira desigual a primeira apresentada com ambiguidades e contrapontos e a segunda assumida pelo documentarista em discurso progressista que critica a estrutura fundiária do sertão Mostramos como a sequência de imagens que concluem o filme sintetiza a discussão realizada durante o filme colocando o sertanejo como agente de uma possível transformação social e antagonizandoo a José Gadelha que representa o latifúndio e da exploração fabril Ele é o gavião o outro de classe responsável por só restarem os ossos do El Dorado lamentados pela música tema de O País de São Saruê Cada sequência representa um pequeno episódio da narrativa e possuem diversos programas de base Como vimos primeiro se apresenta o espaço sequência dois com o antagonismo vida x solclima colocando em jogo a questão climática do sertão Em seguida o homem ocupa a terra e realiza sua performance da ocupação dominação da natureza mas logo surgem os conflitos da colonização e o massacre dos índios pelos bandeirantes A poesia de Jomar Morais Souto além de informar sobre tais eventos anuncia que um dia voltarão às mãos desses homens suas riquezas espoliadas Há portanto um programa de base que não se realiza a reconquista do produto do trabalho dos populares índiossertanejos pobres e outra em aberto a permanência da exploração pelo Gavião que sobrevoa as costas de El Dorado Inicialmente na sequência da pecuária os sertanejos se mostram em conflito com o clima para a realização de seu programa de base a sobrevivência Apresentase o tema da seca Nas sequências do algodão é apresentado outro conflito a exploração do homem pelo homem Como vimos ela é reforçada como uma luta de injustiças na metáfora que envolve São Miguel Arcanjo o Satanás e a balança Sugerese sutilmente a necessidade de uma luta O antagonista mais cruel o Satanás é relacionado sutilmente ao latifúndio e a exploração fabril Essa oposição é reforçada durante a sequência da usina de algodão que opõe Gadelha e seus trabalhadores ou seja empregados e patrão Por fim a penúltima sequência apresenta o discurso de Antônio Mariz assumido pelo próprio filme justificando o subdesenvolvimento do sertão pela estrutura fundiária Depois na última sequência as imagens embaladas pela canção tema reforçam a oposição de classe pelas metáforas já referidas Esta construção pode ser sintetizada nesse quadrado semiótico 177 Neste quadrado semiótico em nível de conteúdo estão opostas exploração e justiça desenvolvimento e subdesenvolvimento riqueza e miséria Vimos como tais elementos estão presentes no discurso documentário cruzandose hora explicitamente através da voz over ou do discurso de Antônio Mariz hora construídos esteticamente pela linguagem cinematográfica montagem e até pela própria construção interna dos outros materiais artísticos que o documentário lança mão poesias músicas imagens etc Temos a oposição desenvolvimento e subdesenvolvimento que relacionamos às teses pecebistas sobre os rumos nacionais para os quais o progresso brasileiro detinha um obstáculo o atraso e relações predatórias no campo brasileiro entre os quais se inclui o sertão O documentário constrói a nível estético as oposições exploração e justiça riqueza e miséria A primeira relacionamos especialmente a sequência do algodão na oposição criada com a balança São Miguel Arcanjo e o Satanás e a pesagem do algodão e também na oposição entre o discurso e as imagens que mostram o usineiro José Gadelha e os homens e mulheres que trabalham na SANBRA A oposição riqueza e miséria está na música tema do documentário sutilmente através de imagens como no início do documentário com a exibição de água antes de mostrar a secura do espaço ou na música falando de riquezas que um gavião levou para um cercado ou dramaticamente como a pequena caça que alimentaria a família sertaneja ou novamente na oposição dos planos de 178 Gadelha em seu carro luxuoso enquanto seus trabalhadores pobres e até maltrapilhos se esforçam na usina O gavião é um agente dessa miséria prendendo a riqueza e impedindo a existência de El Dorado ou seja o espaço de felicidade riqueza fartura o próprio São Saruê utópico da poesia de Manoel Camilo dos Santos ao qual se refere o título do documentário Misturados no plano semissimbólico ou seja nos significados construídos na relação entre conteúdo e estética há a possibilidade das performances da miséria e da riqueza A primeira se concretizaria através de diversos programas de base apresentados durante o documentário o gavião ao prender o tesouro ouro prata diamantes e o algodão em penachos em um cercado os bandeirantes ao tomarem as terras dos índios negando o reino que o sertão sempre quis José Gadelha ao continuar explorando seus operários e os cultivadores do algodão Mas vale lembrar que essas realizações de programas não encerram a narrativa de O País de São Saruê O documentário faz a denúncia de um lugar de miséria por tais performances todavia aponta caminhos para outras possibilidades deixando no ar uma possível utopia o sertanejo que atira contra o sol ou seria contra o gavião o sertanejo que atira contra o piado de acauã ou a figura ambígua de São Miguel Arcanjo Cabe voltar a essa produtiva metáfora do filme São Miguel Arcanjo é o único dentre as listadas oposições que está realizando sua performance ele pisa o Satanás Porém como vimos isso é mostrado em articulação com uma realidade concreta de injustiça a balança da filmagem que desvaloriza a produção do apanhador de algodão Além disso a poesia de Jomar Moraes Souto roga e pede ajuda a São Miguel Arcanjo portanto a imagem representa um desejo uma aspiração de justiça mesmo que a nível religioso do sertanejo Podemos somar a isso a discussão entre estrutura e superestrutura já indicada pois esta é uma performance que se quer realizar desejo religião e ideologia mas não concretizada exploração concreta nas filmagens Ainda assim a montagem do filme valoriza o símbolo do anjo que luta com sua espada contra o inimigo sugerindo a possibilidade de reagir contra a opressão Somamse a isto o discurso de Antônio Mariz um locutor auxiliar do documentário que valoriza o sertanejo enquanto agente da transformação política e o plano que conclui o filme do sertanejo atirando contra o sol ou contra o gavião A saída seria então a revolução ainda que nacional e democrática Há assim em O País de São Saruê não só uma denúncia social mas também um horizonte de utopia Como afirma Mattos em primeira pessoa sobre o cineasta entre Beckett e Brecht fico com Brecht O homem tem saída sim 2008 p 71 O filme se apropria de uma produção que entendia os sertanejos e suas características e o sertão e seu subdesenvolvimento através do obstáculo da concentração fundiária Esta foi uma cultura histórica muito forte que influenciou diversos artistas ligados ao romantismo 179 revolucionário Daí que tal cultura histórica se relacione a uma cultura política e que identifiquemos que o filme detinha uma vontade de intervenção política a fim de chamar atenção para o subdesenvolvimento suas causas mobilizando uma parcela da população especialmente estudantil para abraçar as bandeiras da reforma agrária da revolução nacional democrática e de um projeto político para o país Esta mobilização se fazia com um horizonte de expectativas que visava o fim da ditadura e construção de uma sociedade mais desenvolvida ou em utopia última na qual os meios de produção fossem socializados Por isso dentro de nossa hipótese de que Vladimir Carvalho elabora uma representação do sertão a partir do mundo do trabalho consideramos que a análise realizada das sequências mostra sua inserção na cultura política de influência marxista e pecebista e no fenômeno que Marcelo Ridenti 2000 chamou de romantismo revolucionário Mostramos como essa cultura política se apresenta no conteúdo e na estética do filme mesclandose com outros elementos da formação do cineasta Acreditamos ser esse um caminho bom e produtivo para a utilização do cinema como fonte histórica a procura de entender seus meandros estéticos e sua discussão com os discursos contemporâneos para a representação que elabora Essa ligação com a política no entanto não resume a elaboração do discurso fílmico Outras influências importantes como Euclides da Cunha foram centrais Daí que caiba comentar que O País de São Saruê e Os Sertões por exemplo aproximemse além dos elementos de conteúdo indicados no aspecto da linguagem Os Sertões chama atenção por uma tentativa de unir uma linguagem científica e artística representando um desafio encaixá lo em uma única categoria literária Em O País de São Saruê por sua vez há uma abordagem por vezes sociológica que apresenta dados científicos através da utilização da voz de deus cuja credibilidade de maneira cinematográfica aproximase da elaboração euclidiana Por outro lado ambos assumem forte caráter poético para apresentar a realidade sertaneja O filme pelos materiais utilizados como poesia canções e imagens mas também pela sua estrutura narrativa Encaixar O País de São Saruê entre ficção e documentário foi também um desafio Quando O País de São Saruê foi realizado queria ir além do núcleo de intelectuais de esquerda e disputar com o discurso do milagre econômico do regime militar Contudo sua liberação nove anos depois o deixou mais conhecido pela sua luta contra a censura que pelo seu conteúdo e estética a certa maneira atrasados em relação às mudanças já ocorridas Fizemos uma análise da construção narrativa e dos símbolos presentes nos planos nas sequências e nos sons do documentário O filme apresenta uma gênese do sertão e da problemática contemporânea daquela região em jogo presentepassado Para tanto inseriase em uma cultura cinematográfica que se relacionava com a influência de Robert Flaherty do 180 neorrealismo italiano e do Cinema Novo na prática artística de Vladimir Carvalho temas parcialmente trabalhados e passíveis de aprofundamento futuro No âmbito da cultura histórica além da citada formação partidária e literária a leitura de Capistrano de Abreu e de Josué de Castro são contribuições abordadas no decorrer da dissertação mostrando os entendimentos sobre a realidade rural sertaneja que nortearam o documentário em sua representação do sertão Nossa pesquisa almejou contribuir com as discussões sobre a relação entre Documentário e História recolocar a produção de Vladimir Carvalho cineasta da Paraíba estado no qual se localiza nossa instituição a Universidade Federal da Paraíba trazendo a discussão do cinema para o âmbito da produção local No século XXI mais do que nos anteriores as produções audiovisuais são centrais nos conflitos simbólicos sendo tal discussão de extrema importância para o historiador e para o professor de nosso tempo Além disso nossa pesquisa também representa uma pequena participação na reflexão tão atual também sobre a memória daqueles que resistiram à ditadura militar e se contrapuseram a ela bem como sobre a situação agrária cuja problemática da concentração fundiária não foi resolvida até hoje 181 REFERÊNCIAS Filmes A Bolandeira Direção e produção Vladimir Carvalho Brasil 1968 A Opinião Pública Direção Arnaldo Jabor Brasil 1967 A Pedra da riqueza Direção Vladimir Carvalho Brasil 1975 Aruanda Direção Linduarte Noronha Brasil 1960 de um verão Chronique dun été Direção Edgar Morin Jean Rouch France 1961 Deus e o Diabo na Terra do Sol Direção Glauber Rocha Brasil 1964 Homem de Aran Man of Aran Direção Robert Flaherty Reino Unido 1934 Nanook o esquimó Nanook of the North Direção Robert Flaherty Estados Unidos França 1922 O País de São Saruê Direção e produção Vladimir Carvalho Brasil 1971 Psicose Direção Alfred Hitchcock EUA 109 1960 Rio 40 graus Direção Nelson Pereira dos Santos Brasil 1955 Roma Cidade Aberta Roma Città ApertaDireção Roberto Rossellini Itália 1945 Literatura CUNHA E Os Sertões Ed especial Rio de Janeiro Nova Fronteira 2011 RAMOS Graciliano Vidas Secas 115ª Ed Rio de janeiro Record 2011 SOUTO Jomar Morais Breve roteiro para o Pais de São Saruê Via Rio do Peixe In SOUTO Jomar Morais Fazenda de Murmúrios João Pessoa Editora UniversitáriaUFPB 1980p2336 REGO José Lins do Menino de Engenho 84ª Ed Rio de Janeiro José Olympio 2002 Biografia e depoimentos MARINHO J Dos homens e das Pedras o ciclo de cinema documentário paraibano 1959 1979 de José Marinho Niterói EDUFF 1998 MATTOS C A Vladimir Carvalho Pedras na Lua e Pelejas no Planalto São Paulo Imprensa Oficial 2008 Entrevistas 182 CARVALHO Entrevista realizada em 03 Novembro de 2001 por Marília Franco Disponível em httpwwwmnemocinecombraruandavcarvalho3htm Acesso em 06 nov 2012 CARVALHO Entrevista realizada em por Alessandra de Paula em 24 de Outubro de 2007 Disponível em httpwwwalmanaquevirtualcombrlerphpid10773tipo23tipo2almanaquecot1 PHPSESSID0ce1d4a1e23aaa3a1240b53c32a72a02 Acesso em 15 ago 2013 CARVALHO Entrevista realizada em 28 de junho de 2004 Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural NEAD do Ministério do Desenvolvimento httpwwwneadgovbrportalneadnoticiasitemitemid4986219 Acesso em 15 de ago 2013 Documentos 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Brasil 2010 p 107132 Sobre o poder simbólico In BOURDIEU P O poder simbólico Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2010 P 717 BURKE Peter A fabricação do rei a construção da imagem pública de Luís XIV Rio de Janeiro Jorge Zahar 1994 O que é história cultural Trad Sério Goes de Paula Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2005 Testemunha ocular história e imagem Trad Vera Maria Xavier dos Santos revisão técnica Daniel Aarão Reis Filho Bauru SP EDUSC 2004 CAMPOS A A 2004 São Miguel as Almas do Purgatório e as balanças iconografia e veneração na Época Moderna Memorandum 7 102127 Disponível em httpwwwfafichufmgbrmemorandumartigos07campos01htm Acesso em 23052012 CAMPOS Haroldo de Breve Antologia de Bertold Brecht Fragmentos Vol 5 N1 1995 pp 185 143155 Revista Fragmentos ISSNe 21757992 Florianópolis Santa Catarina Brasil CASTRO J de Geografia da fome o dilema brasileiro pão ou aço Rio de Janeiro Edições Antares 1984 CERTEAU M de A escrita da história Rio de Janeiro Forense 1982 CHARTIER R A História Cultural entre práticas e representações Lisboa Difel Rio de Janeiro Bertrand 1990 CHEVALIER J et al Dicionário de símbolos mitos sonhos costumes gestos formas figuras cores números Tradução de Vera da Costa e Silva et al 23 ed Rio de Janeiro José Olympio 2009 CHILCOTE Ronald Partido Comunista Brasileiro conflito e integração 19221974 Rio de Janeiro Graal 1982 CITTADINO Monique A Política Paraibana e o Estado Autoritário 19641986 In SILVEIRA e outros Estrutura de Poder na Paraíba João Pessoa UniversitáriaUFPB 1999 Coleção História Temática da Paraíba v4 Poder local e Ditadura Militar o Governo João Agripinio Paraíba 1965 1971 Bauru SP Edusc 2006 Coleção História COELHO Nélson A Cronologia dos fatos na visão de um repórter In GUEDES Nonato OCTÁVIO J et al O jogo da verdade revolução de 64 30 anos depois João PessoaPB A União Ed 1994 p4557 COSTA Flávia Cesarino Primeiro Cinema In MASCARELLO F org História do cinema Mundial Campinas SP Papirus 2006 p1754 Coleção Campo Imagético COSTA Walter Carlos Três Brechts In Revista Fragmentos V 25 Florianópolis juldez 2003 ISSNe 21757992 p 069076 DÓRIA Carlos Alberto O Nordeste problema nacional para a esquerda In IV História do Marxismo no Brasil João Quartin Moraes org Campinas SP Editora da UNICAMP 2000p249268 ENGELS Princípios do comunismo In BOGO Ademar org Teoria da Organização Política escritos de Engels Marx Lênin Rosa Mao São Paulo Expressão Popular 2005 P41 66 1847 FAUSTO Boris CASTRO Ângela de O Brasil Republicano v10 sociedade e política 19301964 9ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2007 FEITOSA André A balança da injustiça em O País de São Saruê entre a fé e o capital In Segundo Colóquio de História e Arte 2012 RecifePE Anais Recife URFPE 2012 Disponível em http2coloquiodehistoriaearteblogspotcombr acesso em 25 nov 2012 ISBN 9788579461286 Da Paraíba para a lua trabalho capital e alienação em A Pedra da Riqueza In XV Encontro Estadual de História ANPUHPB História e Sociedade saberes em 186 diálogo ANPUHPBCFPUFCGUFPBUEPB Anais Cajazeiras Universidade Federal de Campina Grande 2012 Disponível em httpwwwxvanpuhpbcombr acesso em 02 de jul de 2013 ISSN 9788589674676 O documentário enquanto fonte histórica possibilidades e problemáticas In XXVII Simpósio Nacional de História ANPUH Resumo disponível em httpwwwsnh2013anpuhorgsimposioviewIDSIMPOSIO1160 FERREIRA Jorge Prisioneiros do Mito cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil 19301956 Niterói EdUFF Rio de Janeiro MAUAD 2002 FERRO M Cinema e História Tradução Flávia Nascimento São Paulo Paz e Terra 2010 A História vigiada Trad D S Pinheiro São Paulo Martins Fontes 1988 FLORES H C Dos feitos e dos ditos História e Cultura Histórica Saeculum Revista e História João Pessoa PPGHUFPB n16 janjun 2007 p 83102 FORMISANO Ronald P The Concept of Political Culture Journal of Interdisciplinary History xxxi3 Winter 2001 p393426 FREDERICO C A Politica Cultural dos Comunistas In João Quartim de Moraes Org História marxismo no Brasil 1 ed 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Trindade Lopes Lisboa Asa 1996 LEAL Wills Cinema Província João PessoaPB A IMPRENSA 1968 Cinema na Paraíba Cinema da Paraíba João PessoaPB Gráfica Santa Marta 2007 187 LEITÃO Inácio Mariz um depoimento In LISBOA Cláudia org Brasília Plenarium Editora da Câmara dos Deputados Coordenação de Publicações 2006p1126 LEWIN Linda Política e parentela na Paraíba um estudo de caso da oligarquia de base familiar Rio de Janeiro Record 1993 LIMA N T Um sertão chamado Brasil Rio de Janeiro Revan IUPERJ UCAM 1999 LISBOA Cláudia O parlamentar Antõnio Mariz In Perfis parlamentares Antônio Mariz LISBOA Cláudia org Brasília Plenarium Editora da Câmara dos Deputados Coordenação de Publicações 2006 P2736 LÖWY Michael SAYRE Robert Romantismo e política trad Eloísa de Araújo Oliveira Rio de Janeiro Paz e Terra 1993 MACHADO Arlindo A Ilusão Especular introdução à fotografia São Paulo Ed Brasiliense 1984 MACHADO Jório 1964 A opressão dos quartéis João Pessoa Editora o Combate 1991 MARINHO J Dos homens e das Pedras o ciclo de cinema documentário paraibano 19591979 Niterói EDUFF 1998 MARX Karl Contribuição à crítica da Economia Política São Paulo Martins Fontes 1977 MATTE Ana Cristina Fricke LARA Gláucia Muniz Proença Um panorama da Semiótica greimasiana In Alfa revista de linguistica São Paulo 2009 V 53 Núm 2 Pág 339350 MATTOS C A Vladimir Carvalho Pedras na Lua e Pelejas no Planalto São Paulo Imprensa Oficial 2008 MEDEIROS Leonilde Servolo de Luta por terra e organização dos trabalhadores rurais a esquerda no campo nos anos 5060 In MORAES João Quartin org IV História do Marxismo no Brasil Campinas SP Editora da UNICAMP 2000 P211248 MELLO José Octácio de Arruda Do populismo radical ao desenlace na Paraíba In MELLO J et al O jogo da verdade revolução de 64 30 anos depois João PessoaPB A União Ed 1994 P 93125 História da Paraíba 12ªed João Pessoa A União 2013 MOTTA Rodrigo P Sá Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela historiografia In MOTTA Rodrigo p Sá Culturas políticas na história novos estudos Belo Horizonte MG Argventvm 2009 p1338 X Encontro Regional de História da ANPUHMG Minas Trezentos Anos Um Balanço Historiográfico MARIANA 22 22 A 26 DE JULHO DE 1996 LPH REVISTA DE história política e o conceito de cultura política Rodrigo Patto Sá Motta p 92100 As Universidades e o Regime Militar 1ªed Rio de Janeiro Zahar 2014 188 NAPOLITANO Marcos Cultura Brasileira utopia e massificação 19501980 3ªEd São Paulo Contexto 2008 Repensando a História A História depois do papel In PINSKY Carla Bassanezi Org Fontes Históricas São Paulo Contexto 2005 p235289 NICHOLS Bill Introdução ao documentário 4ªed Campinas SP Papirus 2009 Campo Imagético NÓBREGA Evandro Algo do que a imprensa viu e não viu entre o prégolpe de 64 e o Ano de 68 In MELLO J et al O jogo da verdade revolução de 64 30 anos depois João PessoaPB A União Ed 1994 P127 204 OLIVEIRA F Noiva da revolução Elegia para uma religião Sudene Nordste Planejamento e conflitos de classe São Paulo Boitempo 2008 OU Mirian A Pedra da Riqueza e seus Espectadores Disponível em httpwwwintercomorgbrpapersregionaissudeste2011resumosR2404611pdf Acesso em 03 nov 2012 PANOFSKY E Iconografia e Iconologia Uma introdução ao estudo da arte da Renascença In Significado nas Artes Visuais Tradução Maria Clara F Kneese e J Guinsburg São Paulo Perspectiva 2ª ed 1986 p 4765 PENNA Maura O que faz ser Nordestino identidades sociais interesses e o escândalo Erundina São Paulo Cortez 1992 PIETROFORTE Antônio Semiótica visual os percursos do olhar 3ªed São Paulo Contexto 2012 PIFANO Raquel Quinet História da arte como história das imagens a iconologia de Erwin Panokisky Revista Fênix e Estudos Culturais SetOutNov Dez de 2010 Vol7 Ano VII N3 ISSN 18076971 PINHEIRO Helder LÚCIO Ana Cristina Marinho Cordel na sala de aula São Paulo Duas Cidades 2001 Literatura e Ensino 2 PINHEIRO Pinheiro Os comunistas e a ditadura burgomilitar os impasses da transição In Ditadura o que resta da transição São Paulo Boitempo 2014 p1560 POMPA Cristina Religião como Tradução missionários tupi e tapuia no Brasil colonial Edusc São Paulo 2003 PRADO JÚNIOR Caio Formação do Brasil contemporâneo colônia 23ªed São Paulo Brasiliense 2004 PRESTES Anita Leocadia Luiz Carlos Prestes o combate por um partido revolucionário 19581990 São Paulo Expressão Popular 2012 PROST A Doze lições sobre a história Belo Horizonte Autêntica Editora 2008 PUNTONI Pedro A Guerra dos Bárbaros povos indígenas e a colonização do sertão 189 nordeste do Brasil 16501720 São Paulo HICITECEDUSP 2002 RAMOS F P Cinema Verdade no Brasil In TEIXEIRA F org Documentário no Brasil tradição e transformação São Paulo Summus 2004 RAMOS J M O Cinema estado e lutas culturais anos 50 60 70 Rio de Janeiro Paz e Terra 1983 RÊGO André Heráclito do Família e Coronelismo no Brasil uma história de poder São Paulo A Girafa Editora 2008 RIDENTI M Em Busca do Povo Brasileiro artistas da revolução do CPC à era da TV Rio de Janeiro Record 2000 ROSENSTONE Robert A A história 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representações sociais no cinema 2ªed Rio de JaneiroApicuri 2008 P 117160 SILVEIRA R M G O regionalismo nordestino existência e consciência da desigualdade regional Edição FacSimilar João Pessoa Editora Universitária da UFPB 2009 SILVEIRA Rosa Maria Godoy A cultura histórica em representações sobre territorialidades Saeculum Revista e História João Pessoa PPGHUFPB n16 janjun 2007 p3346 SOUZA Hélio Augusto Godoy de Documentário realidade e semiose os sistemas audiovisuais como fontes de conhecimento São Paulo Annablume Fapesp 2001 SOUZA Shirly Ferreira de S O sertão como dado São Saruê como aspiração o documentário O País de São Saruê entre a utopia e a política Campinas SP UNICAMP 2010 TEIXEIRA Francisco Elinaldo Documentário Moderno In MASCARELLO F org 190 História do cinema Mundial Campinas SP Papirus 2006 Coleção Campo Imagético VIANNA Marly de Almeida Gomes O Município de Campina Grande 18401905 Campina Grande EDUUFCG 2013 VUGMAN Fernando Simão Western In MASCARELLO F org História do cinema Mundial Campinas SP Papirus 2006 Coleção Campo Imagético p159177 191 APÊNDICE A TABELA DAS SEQUENCIAS DE O PAÍS DE SÃO SARUÊ TEMAS MATERIAIS VISUAIS MATERIAIS DE ÁUDIO DURAÇÃO SEQUENCIA 0 Créditos da remasterização do filme Informações sobre a remasterização do filme Nenhum 0 156 SEQUENCIA 1 Introdução do documentário Grandes Planos do sertão créditos e letreiros que oferecem informações sobre o filme e seus temas Músicatema de O País de São Saruê 156 0513 SEQUENCIA 2 Sertão espaço geográfico e ocupação Construção da civilização sertaneja Filmagens do espaço físico sertanejo Filmagens de homens trabalhando na limpeza do terreno construção de casas Declamação da poesia de Jomar Morais Souto 0513 1154 SEQUENCIA 3 O vaqueiro e sua cultura A seca Filmagens do trabalho de vaqueiros Filmagens do Cavalo Marinho Filmagens de gado doente sofrendo pela seca Locutor com voz de deus Cantoria do vaqueiro José de Arimatéia Música popular em rabeca e do Cavalo Marinho 1154 1915 SEQUENCIA 4 Capela de Acauã Filmagens da Capela de Acauã Declamação da poesia de Jomar Morais Souto 1915 2104 SEQUENCIA 5 Modernização do sertão Declínio da elite de Acauã Filmagens da Fazenda de Acauã Fotografias da família da fazenda de Acauã inauguração do trem de ferro primeiros carros ford cangaço Locutor com voz de deus Declamação da poesia de Jomar Morais Souto Som de piano toca uma polca 2104 2529 192 Primeiro contraste entre ricos e pobres no sertão construção da Igreja Matriz Filmagens de temas das fotografias nos tempos da filmagem Filmagem de banda que tocava na praça de Sousa Filmagens de um parque no sertão SEQUENCIA 6 Cultivo do algodão Família Camponesa Miséria Filmagens da colheita do algodão Filmagens de família de catadores de algodão Imagem de São Miguel Arcanjo submetendo um demônio Filmagens da pesa do algodão Narração da poesia de Jomar Morais Souto Locutor com voz de deus Música Acauã 1952 de Luís Gonzaga 2529 3447 SEQUENCIA 7 Etapa industrial da produção algodoeira A família de José Gadelha e sua usina de algodão Filmagens da usina de SANBRA e de seus trabalhadores Filmagens da cidade de Sousa Filmagens de José Gadelha Voz over locutor voz de deus Entrevista com José Gadelha 3448 4117 SEQUENCIA 8 Circulação de mercadorias Feira sertaneja Declínio da civilização do couro Filmagens da feira de Sousa Narração da poesia de Jomar Morais Souto Locutor com voz de deus Produtos industriais estrangeiros Música de Roberto Carlos Quero que vá tudo pro inferno 1965 Declamação da poesia de Jomar Morais Souto Locutor com voz de deus 4117 4531 SEQUENCIA 9 Voluntários norteamericanos no sertão e a Guerra do Vietnã Filmagens locais de Charles Foster na comunidade sertaneja Jornais Produtos industriais estrangeiros Era um Garoto 1967 pela banda de rock brasileira Os Incríveis Entrevista com Charles Foster 4531 5000 193 SEQUENCIA 10 Ciclo do ouro no sertão Filmagens espaço de mineração e entrevista com Pedro Alma e Zeca Inocêncio Filmagens de Chateaubriand Suassuna em casa e mostrando onde haveria minério em Catolé do Rocha Paraíba Vladimir Carvalho e sua equipe aparecem nas filmagens Filmagens de cidade fantasma Locução voz de deus Entrevistas com José Inocêncio e com Pedro Alma Declamação da poesia de Jomar Morais Souto Música ao fundo da entrevista fabulosa 5000 1h0500 SEQUENCIA 11 Extração de minérios no sertão Filmagens da cidade e equipe do filme em consulta com especialista em minérios Fotografia Jornal Locutor com voz de deus Sons de bichos Música com violino violão Música fabulosa Música regional Declamação da poesia de Jomar Morais Souto 1h0500 1h1402 SEQUENCIA 12 O povo sertanejo e o governo Síntese da questão agrária sertaneja Filmagens Fotografia retratos de populares enchente em Sousa Getúlio Vargas Música de Rabeca Entrevista com Antônio Mariz Música tema de O País de São Saruê 1h1402 1h20 SEQUENCIA 13 Conclusão do filme síntese fílmica Filmagens diversas exibidas durante o filme Foto de Getúlio Vargas Imagem São Miguel Arcanjo Letreiro fim Música tema de O País de São Saruê 1h206 194 ANEXO A FILMOGRAFIA DE O PAÍS DE SÃO SARUÊ Fonte wwwcinematecagovbr O PAÍS DE SÃO SARUÊ Outras remetências de título O SERTÃO DO RIO PEIXE Categorias Longametragem Sonoro Não ficção Material original 35mm BP 90min 2468m 24q Data e local de produção Ano 1971 País BR Cidade Rio de Janeiro Estado GB Certificados Certificado de Produto Brasileiro 075 de 24081971Certificado de Produto Brasileiro revalidado 332 de 101079 produtora Pilar Filmes Data e local de lançamento Data 19790811 19791105 19800815 Local Timóteo MG Rio de Janeiro RJ São Paulo SP Salas Ricamar Cinesesc Sinopse Há três séculos as terras secas do Nordeste foram conquistadas à grande nação dos índios Cariris pelos bandeirantes e colonos Distantes do Litoral estabeleceram as primeiras fazendas de gado desenvolvendo uma cultura pastoril e agrícola Após um grande desenvolvimento gerando um período de fausto essas fazendas caracterizadas pelo regime de senhores e servos estagnaramse economicamente Com o início de um novo ciclo econômico o do ouro em Minas Gerais essas regiões foram abandonadas mas seus proprietários deixaram atrás de si um imenso potencial de riqueza ainda inexplorado Trezentos anos depois essas terras permanecem tal como foram deixadas pelos seus pioneiros ocupantes À custa de muitas lutas os novos colonos tentam nelas sobreviver Documentário apoiado em entrevistas com sertanejos líderes políticos e empresários nos sertões da Paraíba Pernambuco Rio Grande do Norte e Ceará extraído do Guia de Filmes 79 Gênero Documentário Termos descritores Literatura Seca Nordeste Descritores secundários Literatura de cordel Termos geográficos Sousa PB Prêmios Prêmio Especial do Júri no Festival de Brasília 11 1978 Brasília DF Produção Companhias produtoras João Ramiro Mello Produções Cinematográficas Produção Carvalho Vladimir Mello João Ramiro Distribuição Companhias distribuidoras Embrafilme Empresa Brasileira de Filmes SA Argumentoroteiro Argumento Carvalho Vladimir Roteiro Carvalho Vladimir Estória Baseada no poema Viagem a São Saruê de Santos Manuel Camilo dos Direção Direção Carvalho Vladimir Assistência de direção Carvalho Walter Fotografia Direção de fotografia Clemente Manuel Câmera Clemente Manuel Montagem Montagem Leone Eduardo Assistente de montagem Genis Dora Música Música Nazareth Ernesto Siqueira José Gonzaga Luiz Vinicius Marcus Locação Fazenda Acauã oeste da Paraíba PE RN CE Identidadeselenco Gadêlha José usineiro e parlamentar Foster Charles Peace Corps Alma Pedro pioneiro do ouro Inocêncio Zeca ex garimpeiro Mariz Antônio Narração Pontes Paulo Conteúdo examinado S Fontes utilizadas CBTranscrição de letreirosCat 195 WLDCP ASCR WLCP ALSNDFBLM FRLFMECB Guia de Filmes 79 FBR16 Pressrelease FBR37 Fontes consultadas O Estado de S Paulo 10081980 LFMDCB Observações Letreiros iniciais Nos vales dos rios do Peixe e Piranhas no extremo oeste da Paraíba nordeste do Brasil espalhase por cêrca de 20 municípios numa área superior a 8000km2 uma população estimada em 500mil viventes Ricos e pobres são todos descendentes de colonos porugueses aí chegados no século XVII e de índios que durante a conquista formavam a confederação dos Cariris e foram dizimados pelos bandeirantes perdendo suas terras transformadas em datas e sesmarias A criação de gado e o rude trato da terra emprestaram a êsses vales uma feição cultural marcante e idêntica à que em geral se observa em todo sertão nordestino Mas desgraçadamente também nessas paragens uma minoria detem a posse da terra e dos bens que o esfôrço do homem retira dela O resultado é a injustiça e a humilhação Por isso qualquer semelhança com a história de outros sertões não é mera coincidência mas semelhança mesmo O Estado de S Paulo de 10081980 indica Rio de Janeiro e Brasília como local de lançamento em 11081979 e duração de 85 minutos ALSNDFBLM indica filme produzido em 1971 e só lançado em 1979 ASCR informa que este documentário foi ampliado de 16mm para 35mm com 90 minutos Informa também que após a sua montagem final recebeu o título PAÍS DE SÃO SARUÊ O e não mais SERTÃO DO RIO PEIXE O e que foi proibido pela Censura Federal sendo liberado apenas em 1979 LFMDCB estabelece as datas de 1967 e 1971 para o período correspondente entre a produção e o lançamento liberado pela Cesura Federal WLCP informa a existência do documentário em preto e branco de 65 minutos realizado em 1967 SERTÃO DO RIO PEIXE direção montagem e produção de Carvalho Vladimir Fotografia de Clemente Manoel E poematexto de Souto Jomar Morais de Tratase da versão anterior de PAÍS DE SÃO SARUÊ O Segundo WLDCP os primeiros passos foram dados em 1966 quando Carvalho Vladimir filmou algumas cenas da cidade de Sousa PB a pedido do então prefeito Mariz Antonio PAÍS DE SÃO SARUÊ O é uma versão maior mais profunda mais bela ainda de SERTÃO DO RIO PEIXE O concluído em 1968 e praticamente rodado naquela cidade Entre os objetivos de Carvalho Vladimir esteve o de mostrar as contradições do homem do campo a partir das lições colhidas com a existência das Ligas Camponesas Artesanal foi realizado num clima de documentar a dura realidade do campo Só posteriormente já com os elementos influenciadores do mundo de cordel é que ganhará os toques poéticos que o marcam definitivamente quase na fase final de sua montagem com a adição do material rodado entre 1969 e 1970 Concluído em 1971 e apesar de recebido com euforia foi vetado pelo governo por ferir a dignidade e os interesses nacionais E só voltaria a ser exibido em 1979 FRLFMECB estabelece a produção deste longametragem em três etapas 1966 quando foi interrompido pela chuva e teve de esperar que o sertão reapresentasse a mesma paisagem em 1967 quando pôde terminar as filmagens e no final de 1970 ano de conclusão do filme A mesma fonte informa existir uma primeira versão em 16mm com as filmagens de 1966 e com cerca de 50 minutos chamado SERTÃO DO RIO PEIXE O montada por Carvalho Vladimir de no Rio de Janeiro e exibida na Maison de France tendo participado do FESTIVAL DE VIÑA DEL MAR no Chile FBR37 informa o relançamento do filme em cópia restaurada durante o Festival de Brasília 37 2004 Brasília DF A mesma fonte acrescenta como produtor associado Coutinho Marcus Odilon Ribeiro Material examinado apresenta letreiros referente à restauração do filme em 20032004 por iniciativa do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro 196 ANEXO B MATERIAIS DE ÁUDIO TRANSCRITOS DE O PAÍS DE SÃO SARUÊ MÚSICA TEMA DE O PAÍS DE SÃO SARUÊ Em cima daquela serra eh eh tem um tesouro enterrado Com suas garras de aço eh eh o gavião voa baixo Ouro prata diamantes e o algodão em penacho Nascendo da terra seca e dos ossos desse riacho O avião sobrevoa é é um reino desencantado O gavião vê de longe as costelas de Eldorado E a balança dos contentes eh eh eh Pesa a sede dos magoados E a balança dos contentes eh eh eh Pesa a sede dos magoados CANTORIA D VAQUEIRO JOSÉ DE ARIMATÉIA Esse mundo de meu Deus é mesmo que uma balança Com a morte tudo se acaba com a vida tudo se alcança A vaquejada de Sousa não me sai da lembrança Uma coisa triste no mundo é uma seca no sertão O gado berra com fome é de cortar o coração Quando é mês de maio chora vaqueiro e patrão eh boi 197 ENTREVISTA COM JOSÉ GADELHA V Carvalho Seu Gadelha a família Gadelha é paraibana Gadelha Sim A família Gadelha é paraibana Entretanto somos descendentes do Ceará pois meu avô Manuel da Costa Gadelha emigrou muito jovem para a cidade de Sousa aí casando constituiu família e desta união nasceu meu pai Manuel Gadelha Filho que casouse com Joaquina de Paiva Gadelha e dessa união nasceram sete filhos quatro homens e três mulheres sendo o primeiro André Gadelha exvicegovernador do estado Clotário de Paiva Gadelha é este que lhe fala ambos sócios da firma André Gadelha Irmãos Em 1933 iniciamos a nossa vida comercial arredando uma bolandeira do saudoso José Avelino de Oliveira no sítio Pompéia Em 1936 compramos um mecanismo à margem do rio do Peixe que circunda a nossa cidade ao falecido Júlio Marques de Melo Em 1958 transferimos este mecanismo obsoleto para a cidade com novas instalações daí nasceu o nosso êxito na vida comercial Construímos mais uma fábrica de óleo construímos também uma fábrica de doces Montamos um cinema E agora estamos concluindo uma montagem de rádio que aliás está dando muito trabalho em face da politicagem mesquinha que se está travando em torno dela Temos feito alguma coisa por nossa cidade já doamos a Sousa uma maternidade das mais bem equipadas do interior do estado Doamos um terreno para a escola de treinamento doamos um terreno para o DNOCS doamos um terremo para a construção do Hospital Regional de Sousa Doamos também um terreno para a construção da Coletoria de Sousa É um prédio pomposo que honra nossa cidade E há poucos meses atrás comprei um hotel o Gadelha Palace Hotel o terceiro do estado da Paraíba Isso com a finalidade única de ajudar à minha terra e á coletividade V Carvalho Muito bem Que acha da atual situação do homem do campo na região sertaneja Gadelha A situação do homem do campo na região sertaneja é a mais precária possível É uma gente desprotegida dos poderes federais estaduais e municipais Não há ajuda do governo não há crédito para que essa gente possa se desenvolver E vive subjugada aos bancos particulares pois o crédito que o banco do Brasil e o Banco do Nordeste lhes dá é por demais insuficiente para atender às suas necessidades É uma gente que sofre tremendamente é uma gente que nunca deixou de ser gente endividada e não creio que dentro 198 de pouco tempo seja resolvido o problema dessa gente V Carvalho Seu Gadelha o senhor que falou do problema do homem do campo que experiência tem como agricultor Se tem Gadelha Ora meu querido eu na vida já fui tudo Eu fui vaqueiro já limpei meu roçado não por diletantismo mas por necessidade lidei muito tempo na lavoura Por isso minha experiência por isso a razão que eu digo que não há salvação para a gente do Nordeste isto é a gente que lida na agricultura se não houver ajuda do governo Que essa demagogia desses homens que andam por aí afora passe e venha a realidade da vida para ajudar a eles Eu já fiz de tudo como já disse na vida Eu já puxei cobra para os pés isto é já limpei meu roçado como lhe disse por necessidade Creio que lhe dizendo isto é o suficiente para você saber que eu sou um homem que já passei por todas as experiências da vida V Carvalho Sr Gadelha para finalizar gostaria de lhe perguntar a que o senhor mais aspira na vida de agora por diante que já está um homem quase que um homem realizado praticamente Gadelha Ora meu caro realmente eu sou um homem realizado A única aspiração que eu tenho na vida é essa que estou fazendo disputando uma cadeira de deputado federal para no caso de ser eleito ajudar ao Nordeste e principalmente ao sertão paraibano e de modo muito especial à minha querida Sousa 199 DISCURSO DE ANTÔNIO MARIZ Como prefeito de uma cidade do sertão vivo com o povo desta área o próprio drama do subdesenvolvimento Para a Prefeitura convergem todos os problemas da população Praticamente não se nasce não se sofre não se morre sem que a Prefeitura intervenha Parece curioso isso mas não é mais que o retrato da realidade Ao nascer é o batizado é o registro civil Se adoece é o remédio Ao morrer é o caixão em que se vai enterrar Tudo se vai pedir à Prefeitura Mas esse pedir permanente não revela ociosidade nem aversão ao trabalho como poderia parecer aos mais rigorosos ou intolerantes É antes a imagem da pobreza regional que não decorre nem da natureza nem do temperamento nem da formação do povo Mas que é o fruto de longos erros acumulados na forma de explorar a terra na forma de criar e distribuir riquezas Muitos pensarão à primeira vista que o problema do nordestino é só o problema da seca e raramente o problema das enchentes Mas longe da seca e da enchente muito mais grave é o problema da estrutura agrária Nós temos porém tendência no sertão a captar somente o problema do clima E de fato existe um problema do clima a seca a enchente E então as secas jogam o povo nas ruas Faz com que esses camponeses humildes reverentes permanentemente em quem não se adivinha à primeira vista a fibra a coragem a decisão de viver e de crescer faz com que este povo perca esta aparente humildade e se revele em sua grandeza em sua força ao assaltar a feira ao invadir as lojas o comércio ao tomar a cidade ao bradar ao exigir os seus diretos A seca a enchente já perderam muito do pavor que eles representavam antigamente mas a lenda permanece A seca de 1877 uma seca tão velha está ainda presente na memória do homem do sertão Ninguém se lembra mais que naquele tempo não havia estradas não havia comunicações não havia grandes açudes e por isso o pânico daquele tempo ainda hoje vale A seca tem um grande prestígio todos a temem com terror e pânico A enchente também causa grandes prejuízos Iguais até aos da própria seca Mas a enchente não faz medo o sertanejo reverencia a chuva e a enchente Ele não ousa indignarse contra a enchente A isto está condenado pelo medo permanente do estio Mesmo que o estio já não devesse causar tanto medo às novas condições econômicas à nova estrutura econômica do 200 sertão A seca os campos queimados a terra rachada os retirantes as cidades invadidas de famílias inteiras as obras paralisadas a má remuneração tudo isto existe é verdadeiro Como existe também o prejuízo da enchente A cidade inundada os baixios tomados as colheitas destruídas Estes são os problemas que de fato devem merecer a atenção dos governos Apenas o que digo é que não são o fundamento as causas profundas do subdesenvolvimento nordestino Eles existem mas são perfeitamente controláveis E de certa forma estão sendo controlados E felizmente tanto os governos como o povo já compreendem isto E hoje já olham para a terra do sertão sujeira a estas intempéries como uma terra capaz de criar uma grande civilização E o povo se identifica sic em sua capacidade de superar estes problemas menores do clima para estabelecer uma sociedade próspera uma terra rica de cuja riqueza participem todos 201 ANEXO C POESIA DE JOMAR MORAIS SOUTO REALIZADA PARA O DOCUMENTÁRIO O PAÍS DE SÃO SARUÊ Jomar Morais Souto é um poeta paraibano que nasceu em Santa Luzia do Sabugi em 1935 Ganhou em 1961 o Prêmio Augusto dos Anjos com os poemas de Pedra de Espera em 1985 ganhou o prêmio nacional de poesia no concurso Quarto Centenário da Paraíba com o Canto da Capitania Real de Nossa Senhora das Neves Foi contratado por Vladimir Carvalho seu admirador para fazer uma poesia para o documentário O País de São Saruê O cineasta mostrou as filmagens realizadas até então e um esboço de roteiro para que Jomar Souto se baseasse A poesia completa transcrita realizada para O País de São Saruê pode ser encontrada no livro de poesias de Jomar Morais Souto Fazenda de Murmúrios 1980 publicado pela Editora Universitária da Universidade Federal da Paraíba A poesia não foi utilizada em sua totalidade no filme e é possível identificar algumas pequenas mudanças no próprio documentário omissão de versos colocação de outros etc Vladimir Carvalho é uma admirador do trabalho de Jomar Morais Souto e considerou que o poema era muito extenso para conter todo no documentário o que considerou uma pena Outra trabalho do poeta foi utilizado por Vladimir Carvalho em A Bolandeira curta filmado durante o processo que culminaria em O País de São Saruê o cineasta utiliza a poesia homônima cujos belos versos oferecem uma bela poeticidade ao filme A Vladimir de Carvalho e Francisco Morais Souto No princípio o chão de seixos o deserto a galharia Entre nós as aves livres o resto o sol ganharia No princípio era o que sou fui o de sempre o que fui O mesmo vento de sempre meu pó vermelho ainda alui Às vezes vou nessas asas de acauãs e inhambus por sobre a ausência das casas nestes serrotes azuis Imensa múmia de cacto rarefiz a pele assim maleável nem ao tato dos bichos que moram em mim Rupestres marcas gravadas nestas pedras desde quando Excursões antecipadas às de Isabel e Fernando Serão precolombianos caracteres então Que planos nos altiplanos terá traçado a erosão Rupestres marcas gravadas variações sobre um tema configurando as imagens de algum concreto poema Rupestres marcas inscritas formas na forma em concreto formando coisas bonitas de algum estranho alfabeto Letras precolombianas de inarticulados sons Serão poemas pavanas ou indígenas canções Sabe a lembrança o acabado se não sabe saberia dos homens pra cá mandados por um certo Albergaria Uns subindo o Paraíba outros singrando o Piancó Os Ávila os Oliveira Domingos Jorge do Icó Dentro do mato os clamores dos bravos índios corridos eles únicos senhores destes sertões esquecidos Dentro do mato o tapuia entre cacto e concriz celebrando as aleluias do reino que sempre quis A acesa guerra que a garra do nativo sustentou As lamúrias da fanfarra que a dor do índio afinou Lá detrás daquela serra à sombra do marmoleiro penadas almas tapuias soletram flechas na noite para quem chegar primeiro No princípio o chão de seixos o deserto a galharia Entre nós as aves livres que o resto o sol ganharia Muito além daquela serra no meio do juremal caciques mortos divagam sobre o que é Bem e o que é Mal Sabe a lembrança o acabado se não sabe saberia Sabe inda mais o ditado de uma noite atrás de um dia Depois das datas de terra das antigas sesmarias doeram mugidos longos datados nas pradarias Abrindo o boi novas brechas entre os espinhos e as ervas ruminando ao sol nas glebas deste ciclo pastoril Como um boi atrás do outro os homens que também vão cravando espinhos e felpas nas palmas duras da mão Nas mãos calosas dos reis outro mundo em construção Uma hora um dia um mês e as casas brotam do chão Pedra sobre pedra tijolos no ar Agora os andaimes dos paus do lugar E o número suor que medra nos poros sem parar Pedra sobre pedra o copiá o oitão Casa bonita aquela um casarão Tijolo sobre tijolo e um todo singular A argamassa o reboco e um distante caiar É pau é pedra é pedreiro é plantador de plantar Foi cria e só primeiro Foi só cria o tempo inteiro Mas como cria e que cria Queria porque queria O tempo todo criar Pedra sobre pedra e o tempo a passar Pedra simplesmente pedra inclusive aquela pedra tumular 28 Da capela da Fazenda o silêncio e a solidão alguma alma merenda nestes confins de sertão Foramse a água e o vinho nem ficou sequer o pão Celebra o ermo sozinho a sua celebração Aqui no órgão a demora de uma aleluia vibrar O coral já foise embora resta o coro no lugar Seca igreja seca vida de tanta coisa a secar De que seca retorcida gemem a madeira o espaldar Das poucas cadeiras juntas nesse templo de Acauã Serão as almas defuntas de gente morta pagã De moça virgem morrida na clara luz da manhã Seca igreja seca vida seco templo de Acauã Primeiro os portugueses dando o golpe inicial trocando índios por reses no sertão colonial Depois fazendo as igrejas muito verbo muita cal e muita verba em bandejas da Fazenda Imperial 29 Fazendas também fazendo de gado bom pra curral e muito negro trazendo para açúcar de cristal Ressoam canto jesuítas inda no mesmo lugar No teto coisas bonitas Nossa Senhora no altar E no púlpito caladas lembranças sobreviventes Conspirações malfadadas contra lusos prepotentes Alguém não quer mais ser súdito da Coroa de Ultramar Conspira dentro do púlpito contra o jugo secular Virgem Santa em que estado Peregrino ainda estará Sabe a lembrança o acabado se não sabe saberá Nossa Senhora em estado de História ele hoje está Mudou de cor a Coroa Em que fronte ela andará Porque não plange este sino que há tanto calado está Saberá o Peregrino Saberá o Padre Sá Mudou de cor a Coroa Se não mudou mudará A liberdade anda à toa no sonho do Padre Sá 30 Sabe a lembrança o acabado se não sabe saberá Porque não plange este sino que há tanto calado está Depois do desmatamento depois da queima das urzes depois de cruzes e cruzes fincadas no esquecimento Depois das lutas com os lusos e massacres cariris depois dos usos e abusos a minha terra infeliz devolve ao ar estas plumas branquinhas da cor de giz O apanhador que as apanha sabe sim desde a raiz quanto o branco no sol ganha ou quanto perde a raiz Se não cuidar direitinho dela dele desde a cova quando ainda planta nova folha come o passarinho O apanhador que as apanha colado à terra à raiz talvez se saia apanhado nesse labor infeliz Passa umas horas e às vezes as horas o sol esquenta e se sucedem às dezenas e viram dias e meses 31 Doação da Família BOTÉLHO à APL E vão virando alguns anos a vida toda a existência E o apanhador na cadência mais de apanhado Que o dano de quem vive nesse afã duro de Ministro ver é não ter o que comer na terra de Canaã Ali adiante as ovelhas seus chocalhos sua lã e arribações em parelhas bicando pedras na chá O algodão que plantou que viu nascer de manhã e que a flor acompanhou desabrochando louçã tirou depois do casulo como quem colhe maçã tão condenado tão nulo para o lucro de amanhã o algodão que alvejou amaciou trabalhou vai ser fofo de divã vai misturarse com lã Vai servir a muito embalo o que não sei mais se é bom e alcochoado de Impala e almofada no Leblon Para além das cumeeiras dessas casas de Acauã sol a sol vidas inteiras consumidas nesse afã 32 Mecânicas garras de aço passam no céu de manhã levando plumas no espaço plumas e plumas e lã Mulher depene este pássaro Asseo na trempe depois Dê ao menino um pedaço que o resto dá pra nós dois Amanhã vou à cidade levar de novo algodão Um menino dessa idade não pode ficar sem pão Tenho fé na Santa Madre Maria da Conceição que na casa do compadre vai dar bom preço o algodão Nem me incomodo com a sede que vai me dar também não Faço fé que na parede quando pesar o algodão São Miguel se compadeça e mate mesmo o dragão e dê um jeito que desça pra junto de nós então Aquela outra balança que ele sustenta na mão e pese com segurança minhas plumas de algodão para eu ganhar com justiça o preço que as plumas dão e finalmente que sinta todo o meu drama o patrão 33 para ele ver como a linha é dura aqui no Sertão onde nem sequer farinha come a gente mais com a mão Na balança da Justiça que ele sustenta com a mão um dia vai ser pesado o cadáver do dragão A floresta dos fantasmas vai ficando para trás Agora eu passo tu passas como passa tudo o mais Como passam as criaturas democratas cordiais e também essas figuras tristes tangendo animais Carregando nas cangalhas sob climas tropicais mais valia com que valhas mais ou menos muito mais Agora eu passo e tu passas entre estes seres casmurros em filme virgem noturnos mastigando chicles passas Ouvindo os versos e a trilha sonora o som combinado A minha imagem rebrilha dançando no ar condicionado Agora eu passo e tu ficas Agora eu fico e tu passas Sempre no escuro as relíquias já se vão disseminadas Entre todos os mais vivos democratas exemplares que ostentam sob os tecidos dos ombros aos calcanhares A mesmíssima matéria que a inarredável miséria dos vermes vai acabar quando um dia na floresta de outros fantasmas em festa os vermes forem parar Só que parecem mais vivos olhe aí hum Mais altivos coisa muito natural São sempre assim mais tranquilos eretos nos seus tecidos o ar calmo cordial Olhe as curvas da alma fronte Olhe a linha do horizonte igualzinha à minha igual Na floresta dos fantasmas nas carcaças do areal no querosene das casas até no olhar do animal em tudo o mesmo fio No leito seco de um rio na lanterna do navio a mesma chama o pavio de iluminar o ponteiro o amor o travesseiro a ponte para outra ponte E a linha do horizonte igualzinha à minha igual 35 209 Lá na linha do horizonte o monte o algodaoal Das florestas dessas casas para a minha a dos fantasmas um simples toque um botão Um destino outro fadário um sorrir proprietário um chorar de escravidão Mecânicas garras de aço passam no céu de manhã levando plumas no espaço dentre essas nuvens de lã POEMAS DE ALEMCAMPO 36 209 ANEXO D CORDEL VIAGEM A SÃO SARUÊ DE MANOEL CAMILO DOS SANTOS Manoel Camilo dos Santos 19051979 nasceu em Guarabira ParaíbaTeve várias profissões comerciante ambulante cabo de rodagem e marceneiro antes de se tornar cantador Estabelceu em 1942 uma tipografia em Guarabira a Folhetaria Santos Em 1953 ela foi transferida para Campina Grande PB agora sob o nome de A Estrela da Poesia Viagem a São Saruê se tornou seu folhetim mais famoso chegando a ser traduzido para o francês para o livro Les Imaginaires 1979 Viagem a São Saruê Manoel Camilo dos Santos Doutor mestre pensamento me disse um dia Você Camilo vá visitar o país São Saruê pois é o lugar melhor que neste mundo se vê Eu que desde pequenino sempre ouvia falar nesse tal São Saruê destineime a viajar com ordem do pensamento fui conhecer o lugar Iniciei a viagem às duas da madrugada tomei o carro da brisa passei pela alvorada junto do quebrar da barra eu vi a aurora abismada Pela aragem matutina eu avistei bem defronte a irmã da linda aurora que se banhava na fonte já o sol vinha espargindo no além do horizonte Surgiu o dia risonho na primavera imponente as horas passavam lentas o espaço encandescente transformava a brisa mansa em um mormaço dolente Passei do carro da brisa para o carro do mormaço o qual veloz penetrou no além do grande espaço nos confins dos horizontes senti do dia o cansaço Enquanto a tarde caía entre mistérios e segredos a viração docilmente afagava os arvoredos os últimos raios do sol bordavam os altos penedos Morreu a tarde e a noite assumiu sua chefia deixei o mormaço e tomei o carro da neve fria vi os mistérios da noite esperando pelo dia Ao romper da nova aurora senti o carro parar olhei e vi uma praia sublime de encantar o mar revolto banhando as dunas da beiramar Mais adiante uma cidade como nunca vi igual toda coberta de ouro e forrada de cristal 210 ali não existe pobre é tudo rico em geral Uma barra de ouro puro servindo de placa eu vi com as letras de brilhante chegando mais perto eu li dizia São Saruê é este lugar aqui Quando avistei o povo fiquei de tudo abismado era um povo alegre e forte sadio e civilizado bom tratável e benfazejo por todos fui abraçado O povo em São Saruê tudo tem felicidade passa bem anda decente não há contrariedade sem precisar trabalhar e tem dinheiro à vontade Lá os tijolos das casas são de cristal e marfim as portas barras de prata fechaduras de rubim as telhas folhas de ouro e o piso de cetim Lá eu vi rios de leite barreira de carne assada lagoa de mel de abelhas atoleiro de coalhada açude de vinho quinado monte de carne guisada As pedras em São Saruê são de queijo e rapadura as cacimbas são café já coado e com quentura de tudo assim por diante existe grande fartura Feijão lá nasce no mato já maduro e cozinhado o arroz nasce nas várzeas já prontinho e despolpado peru nasce de escova sem comer vive cevado Galinha põe todo dia em vez de ovos é capão o trigo em vez de semente bota cachadas de pão manteiga lá cai das nuvens fazendo ruma no chão Os peixes lá são tão mansos com o povo acostumados saem do mar vêm paras as casas são grandes gordos e cevados é só pegar e comer pois todos vivem guisados Tudo lá é bom e fácil não precisa se comprar não há fome e nem doença o povo vive a gozar tem tudo e não falta nada sem precisar trabalhar Maniva lá não se planta nasce e em vez de mandioca bota cachos de beijus e palmas de tapioca milho a espiga é pamonha e o pendão é pipoca As canas em São Saruê em vez de bagaço é caldo umas são canos de mel outras açúcar refinado as folhas são cinturão de pelica preparado Os pés de chapéus de massa são tão grandes e carregados os de sapatos da moda têm cada cachos aloprados os pés de meias de seda chega vivem escangalhados Sítios de pés de dinheiros que faz chamar atenção os cachos de notas grandes chega arrasta pelo chão as moitas de prata e níquel são mesmo que algodão 211 Os pés de notas de contos carrega que encapota pode tirarse à vontade quanto mais velho mais bota além dos cachos que têm cascas e folhas tudo é nota Lá os pés de casimiras brim borracha e tropical raiom brim de linho e cáqui e de seda especial já botam as roupas prontas própria para o pessoal Lá quando nasce um menino não dar trabalho a criar já é falando e já sabe ler escrever e contar canta corre salta e faz tudo quanto se mandar Lá tem um rio chamado o banho da mocidade onde um velho de cem anos tomando banho à vontade quando sai fora parece ter 20 anos de idade Lá não se ver mulher feia e toda moça é formosa alva rica e bem decente fantasiada e cheirosa igual a um lindo jardim repleto de cravo e rosa É um lugar magnífico onde eu passei muitos dias passando bem e gozando prazer amor simpatias todo esse tempo ocupeime em recitar poesias Lá existe tudo quanto é de beleza tudo quanto é bom belo e bonito parece um lugar santo e bendito ou o jardim da Divina Natureza imita muito bem pela grandeza a terra da antiga promissão para onde Moises e Aarão conduzia o povo de Israel onde dizem que corria leite e mel e caía manjar do céu ao chão Tudo lá é festa e harmonia amor paz bemquerer felicidade descanso sossego e amizade prazer tranqüilidade e alegria na véspera deu sair naquele dia um discurso poético lá eu fiz me deram a mandado do juiz um anel de brilhante e de rubim no qual um letreiro diz assim feliz é quem visita este país Vou terminar avisando a qualquer um amiguinho que quiser ir para lá posso ensinar o caminho porém só ensino a quem me comprar um folhetinho 212 ANEXO E FILMOGRAFIA DE VLADIMIR CARVALHO Fontes MATTOS C A Vladimir Carvalho Pedras na Lua e Pelejas no Planalto São Paulo Imprensa Oficial 2008 Cinemateca Brasileira httpwwwcinematecagovbr Década de 1960 1962 Romeiros da Guia 35 mm PB 15 minutos Direção e roteiro João Ramiro Mello e Vladimir Carvalho Fotografia Hans Bantel Montagem João Ramiro Mello Música Pedro Santos Assistente de câmera Manuel Clemente Narração William Mendonça 1968 A Bolandeira 1635 mm PB 11 minutos Direção produção e roteiro Vladimir Carvalho Produtor associado Marcus Odilon Ribeiro Coutinho Fotografia Manuel Clemente Montagem João Ramiro Mello Poema Jomar Moraes Souto Narração Paulo Pontes 1968 O Sertão do Rio do Peixe 16 mm PB 50 minutos filme posteriormente absorvido por O País de São Saruê Direção e produção Vladimir Carvalho Fotografia Manuel Clemente Montagem Vladimir Carvalho Raimundo Pereira Década de 1970 1970 Vestibular 70 35 mm PB 14 minutos Direção e roteiro Vladimir Carvalho e Fernando Duarte Fotografia Fernando Duarte Heinz Förthman Miguel Freire Montagem Eduardo Leone Cecil Thiré Música Caetano Veloso Conrado Silva 1971 O País de São Saruê 1635 mm PB 85 minutos Direção produção e roteiro Vladimir Carvalho Produtor associado Marcus Odilon Ribeiro Coutinho Fotografia Manuel Clemente Montagem Eduardo Leone Música José Siqueira Marcus Vinícius Poema Jomar Moraes Souto Vozes Echio Reis poema Paulo Pontes narração Assistente de direção Walter Carvalho 1972 Incelência para um Trem de Ferro 35 mm Cor 20 minutos Direção produção e roteiro Vladimir Carvalho Produtor associado José Carlos Avellar Fotografia Walter Carvalho Montagem Adamastor Câmara Vladimir Carvalho Pesquisa Virginius da Gama e Mello Paulo Melo Narração Paulo Pontes Música Armorial Luiz Gonzaga cirandeiros 213 1973 O Espírito Criador do Povo Brasileiro 35 mm Cor 14 minutos Direção e roteiro Vladimir Carvalho Fotografia Fernando Duarte Montagem João Ramiro Mello Música VillaLobos Antônio Carlos Jobim Antônio Carlos Nóbrega Narração Paulo Pontes 1973 Itinerário de Niemeyer 16 mm PB 19 minutos Um filme de Maurice Capovilla som Fernando Duarte fotografia Hermano Penna Vladimir Carvalho Ricardo Moreira Cecil Thiré Manfredo Caldas montagem Estrutura e coordenação Vladimir Carvalho Música Villa Lobos Consultoria Luís Fisberg 1974 Vila Boa de Goyaz 35 mm Cor 14 minutos Direção e roteiro Vladimir Carvalho Fotografia Heinz Förthman Montagem João Ramiro Mello Narração Arnaldo Jabor Música Quinteto Violado Tonico do Padre anônimos 1975 A Pedra da Riqueza 35 mm PB 15 minutos Direção produção e roteiro Vladimir Carvalho Fotografia Manuel Clemente Fernando Duarte Montagem João Ramiro Mello Música Fernando Cerqueira Narrador José Laurentino 1975 Quilombo 16 mm Cor 23 minutos Direção pesquisa e roteiro Vladimir Carvalho Fotografia Walter Carvalho Montagem João Ramiro Mello Música Tonico do Padre Folia do Divino Narração Paulo Ponte 1976 Mutirão 16 mm Cor 19 minutos Direção produção e roteiro Vladimir Carvalho Fotografia Fernando Duarte Imagens adicionais Ronaldo Guerra Walter Carvalho Som Walter Goulart Montagem Manfredo Caldas 1977 Pankararu de Brejo dos Padres 16 mm Cor 35 minutos Direção e roteiro Vladimir Carvalho Fotografia Walter Carvalho Montagem Manfredo Caldas Pesquisa Cláudia Menezes Som direto Jom Tob Azulay 1979 Brasília Segundo Feldman 35 mm Cor 20 minutos Um filme de Vladimir Carvalho e Eugene Feldman Compilação estrutura e produção Vladimir Carvalho Fotografia Eugene Feldman Imagens adicionais Alberto Roseiro Cavalcanti Walter Carvalho Montagem Manfredo Caldas Depoimentos Athos Bulcão Luiz Perseghini Década de 1980 1982 O Homem de Areia 35 mm PB 116 minutos Direção pesquisa e roteiro Vladimir Carvalho Direção de produção Carlos Del Pino Fotografia Walter Carvalho Som direto Antonio César Montagem Ricardo Miranda Manfredo Caldas Música J Lins canções e hinos diversos Narração Fernanda Montenegro Mário Lago Entrevistadores Adalberto Barreto Gonzaga Rodrigues Natanael Alves Waldemar Solha 1984 Perseghini 16 mm Cor 21 minutos Direção e roteiro Vladimir Carvalho e Sérgio Moriconi Produção Vladimir Carvalho Fotografia Alberto Roseiro Cavalcanti Som direto Francisco Pereira Montagem Manfredo Caldas Pesquisa Gioconda Caputo 214 1984 O Evangelho Segundo Teotônio 35 mm CorPB 90 minutos Direção e roteiro Vladimir Carvalho Fotografia Chico Botelho Alberto Roseiro Cavalcanti Montagem João Ramiro Mello Música Marcus Vinícius Som direto Walter Rogério Chico Bororo Narração Ester Góes Direção de produção Armando Lacerda 1989 No Galope da Viola 16 mm Cor 15 minutos Direção e roteiro Vladimir Carvalho Produção Vladimir Carvalho Normando Santos Fotografia Manuel Clemente Montagem Eduardo Leone Música Otacílio Batista e Oliveira de Panelas Década de 1990 1990 A Paisagem Natural 35 mm Cor 20 minutos originalmente episódio do longa Brasília a Última Utopia Direção pesquisa e roteiro Vladimir Carvalho Produção José Pereira Fotografia Walter Carvalho Montagem Eduardo Leone Música VillaLobos Edino Krieger Gustav Holtz 1990 Conterrâneos Velhos de Guerra 1635 mm CorPB 175 minutos Direção roteiro e produção Vladimir Carvalho Fotografia Alberto Roseiro Cavalcanti David Pennington Fernando Duarte Jacques Cheuiche Marcelo Coutinho Waldir de Pina Walter Carvalho Música Zé Ramalho Poema Jomar Moraes Souto Montagem Eduardo Leone Som direto Chico Bororo Narração Othon Bastos 1996 Com os Pés no Futuro ZumZum 16 mmBetacam Cor 7 minutos Direção e roteiro Vladimir Carvalho Produção Manduka ZumZum Música Manduka Fotografia André Luís da Cunha Montagem Frederico Schmidt João Ramiro Mello 1997 Ariano Suassuna em AulaEspetáculo Betacam Cor 46 minutos Direção Vladimir Carvalho Fotografia Waldir de Pina André Luís da Cunha 1998 1998 Manejo Florestal Betacam Cor 30 minutos Direção Vladimir Carvalho Século XXI 2000 Barra 68 sem Perder a Ternura 35 mm CorPB 82 minutos Direção pesquisa e roteiro Vladimir Carvalho Produção executiva Manfredo Caldas Fotografia André Luís da Cunha Som direto Chico Bororo Montagem Manfredo Caldas Vladimir Carvalho Música Marcus Vinícius Luís Marçal Imagens adicionais Marcelo Coutinho Jacques Cheuiche Som direto adicional Paulo Seabra Ivan Capeller 2001 Pátria Amada Brasil Betacam Cor 30 minutos Direção Vladimir Carvalho e Manfredo Caldas Produção Mário Lúcio Brandão Fotografia Waldir de Pina Montagem Manfredo Caldas Som Ricardo Pinelli 215 2007 O Engenho de Zé Lins 35 mm Cor 84 minutos Direção produção pesquisa e roteiro Vladimir Carvalho Produção executiva Eduardo Albergaria Leonardo Edde Fotografia João Carlos Beltrão Jacques Cheuiche Walter Carvalho Waldir de Pina Fotografia adicional Karen Akerman Cristiana Grumbach Lula Carvalho Música Leo Gandelman José Siqueira Luiz Gonzaga André Moraes Montagem Renato Martins Vladimir Carvalho Som Jamal Shreim Osman Assis Narração Othon Bastos Elenco Ravi Ramos Lacerda 2011 Rock Brasília a era de ouro 35 mm Cor 111 minutos Direção Vladimir Carvalho Produção Marcus Ligocki Pesquisa e roteiro Vladimir Carvalho Fotografia André Carvalheira Fotografia adicional Música Montagem Sérgio Azevedo Vladimir Carvalho Som José Luiz Sasso Dirceu Lustosa Narração Elenco Análise de filme Brasil sobre conflitos internos O País de São Saruê por Vladimir Carvalho 1 Ficha técnica do filme O documentário O País de São Saruê de Vladimir Carvalho1 aborda a região sertaneja do Rio do Peixe que fica localizada no polígono nordestino da seca fazendo fronteira com os Estados Paraíba Pernambuco e Ceará e também o desenvolvimento das atividades econômicas realizadas na região A obra é inspirada no título de um cordel do autor paraibano Manoel Camilo dos Santos O País de São Saruê se trata de um filme intenso acerca da relação entre o homem e a terra além de suas lutas apresentando imagens realistas que representam as dificuldades de se sobreviver no sertão O documentário foi produzido em 1970 finalizado em 1971 sendo alvo de censura até o fim dos anos 1970 Em 1979 a obra foi liberada para exibição pelos órgãos de censura quando foi também selecionada para o Festival de Brasília e recebeu o prêmio especial do Júri 2 Estrutura narrativa O País de São Saruê de Vladimir Carvalho corresponde a um filme exibido em preto e branco e sem som direto O documentário se divide em três partes que estão interligadas entre si a terra em que há a apresentação do território o homem seu trabalho e cultura e a luta a partir de entrevistas sobre a vida das pessoas que habitam aquele território A estrutura sonora do documentário não ocorre por meio de um som direto e também está dividida em partes em que ocorre narração que algumas vezes é associada à figura de Deus exibição de poesia e músicas clássica brasileira folclórica e pop além das entrevistas Ao longo da obra de Vladimir Carvalho ocorre uma divisão em treze sequências A primeira sequência apresenta a terra em que são mostradas imagens do território sertanejo com características seca e árida Esta sequência tem o objetivo de 1 Nascido na cidade de Itabaiana no Estado da Paraíba em 1935 Vladimir Carvalho viveu grande parte de sua vida na região nordeste do Brasil Atualmente ele é professor da Universidade de Brasília e sua obra cinematográfica é formada por 23 documentários além de inúmeros prêmios Em Brasília criou a Associação Brasileira de Documentaristas e em 1994 fundou a Fundação Cinememória onde abriga todo o seu acervo introduzir ao espectador o lugar em que o filme irá se passar A fim de apresentar um pouco sobre a realidade social em que o documentário será baseado o diretor apresenta informações históricas acerca da região narrando informações sobre o processo de ocupação e colonização desse território reconhecendo a opressão sofrida pelos indígenas Cariris e também sua resistência A segunda sequência trata do Sertão como um espaço geográfico e de ocupação onde ocorre o estabelecimento da população sertaneja Nesta sequência podese observar filmagens em que aparecem homens limpando a terra e trabalhando na construção de casas Há ainda nesta parte a exibição de uma fazenda e a criação de caprinos o pastoreio e casarões A poesia de Jomar Morais Souto também aparece nesta sequência A terceira sequência retrata a realidade do vaqueiro através de seu trabalho e cultura Aqui aparece a questão da seca representada pela doença do gado e morte de um boi Há também a transformação da vida em arte Há a presença da cantoria do vaqueiro José de Arimatéia e de música popular O intuito de Vladimir Carvalho aqui é humanizar esse espaço ao dividilo em situações importantes a criação a luta a morte e por fim a transformação da vida em arte A quarta sequência se inicia com a exibição da Capela de Acauã Há uma narração sobre a história da casagrande de Acauã seu auge e sua relação com a revolução de 1817 além de características religiosas Além disso ocorre a recitação do poema de Jomar Morais Souto Na quinta sequência é mostrada a modernização no contexto do sertão É exibida a Fazenda de Acauã fotos da família dessa fazenda a inauguração do trem de ferro os primeiros carros Ford o cangaço e a construção da Igreja Matriz É introduzida uma diferença entre ricos e pobres no contexto do sertão Na estrutura sonora parece a recitação do poema de Jomar Morais Souto e o som de piano Nesta sequência o diretor se preocupa em exibir elementos da cultura material da casa grande de Acauã e também o cotidiano da elite reforçando as desigualdades e o processo de modernização da região A sexta sequência exibe o cultivo de algodão e a família camponesa que catavam algodão mostrando a miséria que enfrentavam Aparece uma imagem de São Miguel Arcanjo submetendo um demônio representando a luta do bem contra o mal Mais uma vez aparece o poema de Jomar Morais Souto e também a música Acauã de Luís Gonzaga O objetivo de Vladimir Carvalho nesta sequência é mostrar a exploração do homem que ocorre diante da desigualdade da região que fomenta pobreza e condições de trabalho ruins Nesse contexto a sequência sete trata da fase industrial da produção de algodão É exibida a família de José Gadelha e sua usina de algodão Enquanto a sexta sequência foca na vida dos trabalhadores a sexta mostra o contexto do latifundiário marcada pela entrevista com José Gadelha A oitava sequência mostra a circulação de mercadorias na região por meio da feira sertaneja a feira de Sousa na estrutura sonora aparece novamente a poesia de Jomar Morais Souto e a música de Roberto Carlos Quero que vá tudo pro inferno O diretor exibe a introdução dos produtos industriais estrangeiros no sertão mostrando mudanças em termos de modernidade na sociedade sem ignorar a persistência da pobreza Aparece também o declínio da civilização do couro A nona sequência aborda os voluntários norteamericanos no sertão e a Guerra do Vietnã É exibida uma entrevista com Charles Foster do Peace Corps que havia ido ao sertão realizar trabalho voluntário O diretor faz também uma analogia da realidade social do sertão com a guerra no Vietnã é exibida a música Era um Garoto da banda de rock brasileira Os Incríveis A décima sequência é marcada pelo ciclo do ouro no sertão retratando a mineração por meio de entrevistas com indivíduos importantes nesse contexto A primeira foi com Pedro Alma que abordou a grande riqueza existente naquela época e o processo de retirada A segunda foi com Zeca Inocêncio que apesar de ter trabalhado diretamente na retirada de ouro descreveu sua vivência em meio a esse processo de exploração de ouro Vladimir Carvalho e sua equipe apareceram nas filmagens desta sequência O poema de Jomar Morais Souto aparece assim como a música fabulosa Na décima primeira sequência o diretor aborda a extração de minérios no sertão como a bauxita caulim e xelita A equipe de produção do documentário aparece durante uma consulta com especialista em minérios São exibidas também as tentativas de Chateaubriand Suassuna em Catolé do Rocha de obter algum minério em sua fazenda O poema de Jomar Morais Souto aparece e a música fabulosa aparecem novamente Na sequência doze Vladimir Carvalho retrata o povo sertanejo e os impasses presentes no sertão que implicam na dificuldade de governar a região Aqui a desigualdade social e a questão política são entendidos como entrave para o desenvolvimento na região O intuito desta sequência é tentar gerar comoção no espectador ao exibir o drama que os sertanejos enfrentam marcado pelas cheias secas e falta de atendimento médico na região São exibidas uma entrevista com Antônio Mariz a música de Rabeca e a música tema de O País de São Saruê Finalmente a sequência treze do documentário exibe imagens que foram apresentadas ao longo do filme como a foto de Getúlio Vargas e a imagem de São Miguel Arcanjo Com isso pretendese criar uma síntese de caráter circular A conclusão da obra é marcada pelo lamento sertanejo e a silhueta de um camponês atirando ao sol ou gavião que representam seus inimigos 3 Teses O assunto principal abordado por Vladimir Carvalho em seu documentário é a demonstração dos problemas sociais enfrentados no sertão paraibano suas causas e principais características a partir da relação entre a terra o homem e a luta Nesse sentido o diretor aborda diversos temas que estão envoltos na problemática social do sertão 4 Palavras chave em relação às teses Ao abordar os problemas sociais existentes no sertão Vladimir Carvalho aborda a questão da seca que afeta tanto os homens quanto a pecuária que foi importante no desenvolvimento econômico da região Carvalho produz reflexões sobre a relação entre o sertão e o sertanejo que em meio às adversidades do território precisam se adaptar para sobreviver na região Além da pecuária o documentário aborda também outras atividades que tiveram relevância econômica na região como a agricultura por meio da produção de subsistência e algodoeira e a extração mineral de minérios e ouro Ao longo da obra apesar das mudanças nas atividades desempenhadas é perceptível uma característica constante no sertão a desigualdade social entre os sertanejos e a elite local que potencializa a pobreza e a miséria entre os trabalhadores Atrelado a isso Vladimir Carvalho aborda também as condições de trabalho desfavoráveis a que os sertanejos se submetem para sobreviverem na região Ademais o diretor expõe também além das questões climáticas os fatores políticos e econômicos como obstáculos para o desenvolvimento da região 5 Frases eou cenas de relevo que explicam as teses A relação entre a terra o homem e a luta está presente em maior ou menor grau ao longo de toda a obra Contudo algumas sequências se destacam um pouco mais para explicar essas questões A primeira sequência foi fundamental para introduzir o território que seria abordado ao longo do documentário fornecendo informações históricas sobre a região e mostrando os aspectos seco e áridos dessa região A sequência dois é importante por demonstrar o sertão enquanto um espaço geográfico de ocupação e consolidação da população sertaneja A sequência três se destaca por humanizar o sertão envolvendo momentos importantes como a criação a luta a morte e a transformação da vida em arte A sequência seis ao exibir a dinâmica da produção algodoeira retrata a exploração do homem pelo próprio homem as condições negativas de trabalho a desigualdade social e a pobreza A sétima sequência em contrapartida aborda o ponto de vista da classe oposta exploradora o latifundiário A décima segunda aborda de maneira comovedora as dificuldades enfrentadas pelos sertanejos diante das questões climáticas políticas e econômicas 6 Análise crítica Para analisar criticamente a obra O País de São Saruê é necessário considerar a influência e motivações pessoais de Vladimir Carvalho na elaboração do documentário além do contexto histórico daquele momento Por ter nascido e vivido grande parte de sua vida no nordeste Vladimir Carvalho foi bastante influenciado pela realidade rural e as questões sociais em torno dela Além da influência pessoal Carvalho ingressou na militância comunista e artística tendo participado das atividades do Partido Comunista Brasileiro Centro Popular de Cultura CPC e da União Nacional dos Estudantes UNE A produção do documentário ocorreu no contexto da Ditadura Militar no Brasil em que uma de suas políticas era a censura às produções artísticas consideradas como prejudiciais ao regime Apesar do filme O País de São Saruê ter apresentado uma crítica social não tão explícita quanto outras da época ele não foi impedido de ser censurado assim que foi estreado em 1971 Nesse sentido a obra de Vladimir Carvalho resistiu por cerca de uma década até ser liberada pelos órgãos de censura em 1979 e seguiu sendo um instrumento de resistência ao realizar uma denúncia de uma problema social mesmo diante de um contexto de um regime repressor como foi a Ditadura Militar Apesar de ser de certa forma influenciada inspirada no título do cordel de Manoel Camilo dos Santos O País de São Saruê de Vladimir Carvalho tem seu foco exibir os problemas sociais enfrentados pela população habitante do sertão paraibano rompendo com a utopia de um sertão caracterizado pela fartura e alegria como apontou dos Santos Nessa perspectiva o enfoque de Vladimir Carvalho é justamente mostrar a realidade sertaneja marcada pela miséria e exploração Sendo assim a fim de mostrar o verdadeiro sertão o documentário é exibido em treze sequências e se inicia a partir da introdução do território a ser abordado e a construção da sociedade naquela região Com isso Vladimir Carvalho mostra a realidade da população sertaneja abordando questões chave como o trabalho ao longo do desenvolvimento industrial do sertão durante a fase da pecuária agricultura e mineração Ao mostrar a coexistência dessas atividades e de situações de extrema pobreza e miséria Carvalho ressalta que a simples existência dessas atividades não é suficiente para superar as desigualdades sociais existentes rompendo assim com a ideia do milagre econômico na região Isso porque apesar do desenvolvimento dessas atividades a desigualdade se acentuou na região uma vez que há uma concentração de recursos na mão de poucos e uma carência deles por parte dos sertanejos Nesse sentido é possível perceber que o documentário realiza uma denúncia acerca da estrutura agrária na região do sertão A partir dessas sequências é possível perceber que a obra abarca três mundos representando o desenvolvimento econômico da região o animal marcado pela pecuária o vegetal da agricultura com foco na agricultura de subsistência e no algodão e o mineral diante da extração de minérios e ouro Assim sendo a dinâmica do sertão se estabelece a partir da identificação do espaço territorial o surgimento do homem nesse espaço com poder de transformação e o trabalho realizado pelo homem A dinâmica elaborada por Vladimir Carvalho em O País de São Saruê apresenta um caráter dualista por mostrar situações que denunciam problemáticas sociais e ao mesmo tempo apresenta uma narrativa poética e musical No fim do documentário o cineasta sugere uma solução para os problemas existentes no sertão ao exibir imagens e músicas referentes a essas problemáticas juntamente da foto de Getúlio Vargas defendendo assim uma saída por meio da política 7 Relacionar o filme com a realidade social Apesar de ser um filme dos anos 1970 O País de São Saruê apresenta características que dialogam com fatos que assolam a região desde a colonização Assim a obra se baseia nas relações existentes entre o homem e a natureza no contexto do sertão uma realidade social extremamente difícil marcada pela luta contra fatores climáticos políticos e econômicos Por ter um vínculo pessoal com o sertão e por suas convicções políticas baseadas nos ideais comunistas de luta pelos oprimidos pelo sistema capitalista Vladimir Carvalho retratou diversos aspectos da realidade social do sertão Com isso Carvalho buscou por meio desse documentário denunciar as injustiças sociais que afligiam o sertão naquela época e que por sinal ocorre até os dias de hoje Nessa perspectiva o documentário mostra os problemas sociais enfrentados no sertão paraibano além de suas causas e principais características por meio da relação entre a terra o homem e a luta A terra é mostrada como instrumento capaz de gerar recursos mas também de escassez e desigualdades é nela que ocorrem as relações de trabalho entre os homens que são marcadas pela exploração que marcam a atividade pecuária passam pela agricultura e se estendem até a extração de minérios e ouro Apesar das mudanças de atividades econômicas na região os sertanejos permanecem sobrevivendo em situações marcadas pela seca diante da escassez e desigualdade na distribuição de recursos pobreza e condições de trabalho desfavoráveis por conta da exploração da mão de obra e opressão existentes no sertão O homem foi mostrado capaz de transformar a natureza ao seu redor tendo participação essencial na construção da sociedade local Ademais o documentário expressa a relação entre os homens que é marcada muitas vezes pela exploração do homem pelo próprio homem Apesar de seu poder de transformação o homem não consegue superar essas dificuldades que ele enfrenta em seu cotidiano por não apresentarem uma posição de poder favorável em relação aos homens que os exploram A luta que o homem enfrenta é a sobrevivência em meio a esse cenário de dificuldades climáticas econômicas e políticas Carvalho demonstra ao longo de sua obra que sobreviver nesse ambiente é um ato de resistência Apesar de abordar os latifundiários a elite local e os exploradores minerais ao longo do filme o foco de Vladimir Carvalho é ressaltar o impacto dessas dinâmicas na intensificação das desigualdades existentes no sertão Além desses fatores o documentário traz ainda a questão do imperialismo a partir da inserção de produtos industrializados importados no contexto do sertão e da presença de voluntários advindos dos Estados Unidos para fugir da participação na Guerra do Vietnã introduzindo debates baseados na economia e política internacionais Uma das questões centrais no documentário é a estrutura agrária apontada como um dos fatores que dificultam o desenvolvimento da região como foi ressaltado pelo então prefeito de Sousa Antônio Mariz no fim do documentário A partir do sertão abordado no documentário Vladimir Carvalho realiza uma crítica ao fato do Brasil ser um país com grande potencial em se tornar rico por possuir diversos recursos como o próprio ouro que foi abordado no filme e ainda assim ser um país subdesenvolvido marcado por uma intensa desigualdade social 8 Conclusão Ao analisar o filme é possível visualizar que ele propõe uma reflexão crítica acerca da realidade social existente na região do sertão sugerindo assim discussões nos âmbitos sociológico político histórico e econômico sobre suas problemáticas O intuito do cineasta em abordar o sertão foi se distanciar das questões políticas diante do contexto da Ditadura Militar que se instaurou no país mas ainda assim analisar as questões socioeconômicas influenciadas pela exploração latifundiária e injustiça social que perpetuavam na região naquele momento histórico Nesse sentido cabe ressaltar a influência política do cineasta Vladimir Carvalho na abordagem dessas questões socioeconômicas que por se aproximar dos discursos de cunho comunista permitiu que ele tivesse um entendimento sobre a estrutura agrária que permitiu que ele a utilizasse para fundamentar as desigualdades sociais no sertão Carvalho teve influência de Euclides da Cunha a partir da obra Os Sertões e as relações existentes entre o homem e a terra Nesse sentido a obra de Vladimir Carvalho é estruturalmente marcada pela divisão da terra o homem e a luta uma vez que se inicia a partir da introdução da terra segue com a introdução do homem e suas transformações nesse território e termina com as lutas travadas por ele nessa terra Assim como da Cunha Carvalho introduz a ideia da terra como um espaço físico hostil e também cordial A estrutura sonora do documentário apesar de não apresentar som direto é marcada por uma narração as poesias e músicas que são utilizadas como uma respostas ao que está sendo mostrado visualmente e as entrevistas que também dialogam com as imagens do filme Ao demonstrar os problemas sociais que perpetuam no sertão O País de São Saruê vai além da ideia do sertão enquanto lugar de fartura e riqueza como expõe o cordel de Manoel Camilo dos Santos Apesar de apresentar o sertão o homem sertanejo e sua luta de maneira poética o documentário não romantiza essas relações Ao contrário Vladimir Carvalho aponta fatores que confrontam a existência do homem sertanejo a terra com aspecto seco o próprio homem que explora outros homens e fomenta os contrastes de classe e a questão agrária considerada como o maior impasse para o desenvolvimento da região O documentário foca nas relações de classe e exploração do homem pelo homem que geram miséria e injustiça Essa ideia de injustiça está presente na analogia ao longo do documentário em que é exibida a figura de São Miguel Arcanjo representando a luta do bem sendo marcado pela justiça contra o mal que é representado pela injustiça A obra é marcada por conflitos que o homem enfrenta inicialmente o clima árido do sertão com a ocupação do território surge a colonização e o massacre aos povos indígenas no contexto das atividades de pecuária a questão climática da seca aparece novamente na produção algodoeira há a exploração do homem pelo homem A partir disso a mensagem deixada por Vladimir Carvalho é que a história do sertanejo é marcada pela luta Nessa perspectiva a história se relaciona com a política por entender que ela por ser responsável pelos problemas do sertão é capaz de solucionálos Assim Vladimir tentou incentivar uma intervenção de cunho político capaz de reconhecer o subdesenvolvimento presente naquela região e de mobilizar parcialmente a população para se atentar às questões que envolvem a estrutura agrária do sertão Sendo assim um dos objetivos do documentário era ir além do grupo de intelectuais de esquerda no país visando também ir de encontro ao discurso do milagre econômico propagado pelo regime militar No entanto essa ideia foi inviabilizada pela censura da obra e quando a obra conseguiu ser de fato lançada estava de certa forma atrasada em meio às mudanças na sociedade Apesar de ser um filme da década de 1970 as questões abordadas por Vladimir Carvalho em O País de São Saruê continuam sendo pertinentes na atualidade uma vez que o sertão nordestino ainda enfrenta dificuldades como a seca a pobreza e sobretudo a ausência de políticas voltadas para a questão agrária 9 Bibliografia CARVALHO Vladimir O País de São Saruê Embrafilme 1971 FEITOSA André Fonseca Documentário e Cultura Histórica o sertão de trabalho e relações de classe em O País de São Saruê 1971 2014 IACSUFF CINE DEBATE O PAÍS DE SÃO SARUÊ Vladimir Carvalho 1971 2020 Disponível em httpswwwyoutubecomwatchvK6 zP2IRNqAabchannelCentrodeArtesUFF