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Psicologia ·

Psicanálise

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SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS VOLUME 10 OBSERVAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE UM CASO DE PARANOIA RELATADO EM AUTOBIOGRAFIA O CASO SCHREBER ARTIGOS SOBRE TÉCNICA E OUTROS TEXTOS 19111913 TRADUÇÃO PAULO CÉSAR DE SOUZA SUMÁRIO ESTA EDIÇÃO OBSERVAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE UM CASO DE PARANOIA DEMENTIA PARANOIDES RELATADO EM AUTOBIOGRAFIA O CASO SCHREBER 1911 INTRODUÇÃO I HISTÓRIA CLÍNICA II TENTATIVAS DE INTERPRETAÇÃO III SOBRE O MECANISMO DA PARANOIA PÓSESCRITO FORMULAÇÕES SOBRE OS DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO PSÍQUICO 1911 ARTIGOS SOBRE TÉCNICA O USO DA INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS NA PSICANÁLISE 1911 A DINÂMICA DA TRANSFERÊNCIA 1912 RECOMENDAÇÕES AO MÉDICO QUE PRATICA A PSICANÁLISE 1912 O INÍCIO DO TRATAMENTO 1913 RECORDAR REPETIR E ELABORAR 1914 OBSERVAÇÕES SOBRE O AMOR DE TRANSFERÊNCIA 1915 TIPOS DE ADOECIMENTO NEURÓTICO 1912 O DEBATE SOBRE A MASTURBAÇÃO 1912 ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE INCONSCIENTE NA PSICANÁLISE 1912 PRINCÍPIOS BÁSICOS DA PSICANÁLISE 1913 UM SONHO COMO PROVA 1913 SONHOS COM MATERIAL DE CONTOS DE FADAS 1913 O TEMA DA ESCOLHA DO COFRINHO 1913 DUAS MENTIRAS INFANTIS 1913 A PREDISPOSIÇÃO À NEUROSE OBSESSIVA 1913 PREFÁCIOS E TEXTOS BREVES 19111913 PREFÁCIO A O MÉTODO PSICANALÍTICO DE OSKAR PFISTER PREFÁCIO A OS TRANSTORNOS PSÍQUICOS DA POTÊNCIA MASCULINA DE MAXIM STEINER PREFÁCIO A RITOS ESCATOLÓGICOS DO MUNDO INTEIRO DE J G BOURKE RESENHA DE SOBRE PSICOLOGÍA Y PSICOTERAPIA DE CIERTOS ESTADOS ANGUSTIOSOS DE G GREVE O SIGNIFICADO DE UMA SEQUÊNCIA DE VOGAIS GRANDE É A DIANA DOS EFÉSIOS 4275 ESTA EDIÇÃO Esta edição das obras completas de Sigmund Freud pretende ser a primeira em língua portuguesa traduzida do original alemão e organizada na sequência cronológica em que apareceram originalmente os textos A afirmação de que são obras completas pede um esclarecimento Não se incluem os textos de neurologia isto é não psicanalíticos anteriores à criação da psicanálise Isso porque o próprio autor decidiu deixálos de fora quando se fez a primeira edição completa de suas obras nas décadas de 1920 e 30 No ent anto vários textos prépsicanalíticos já psicológicos serão incluídos nos dois primeiros volumes A coleção inteira será composta de vinte volumes sendo dezenove de textos e um de índices e bibliografia A edição alemã que serviu de base para esta foi Gesammelte Werke Obras completas publicada em Londres entre 1940 e 1952 Agora pertence ao catá logo da editora Fischer de Frankfurt que também recolheu num grosso volume intitulado Nachtragsband Volume suplementar inúmeros textos menores ou inéditos que haviam sido omitidos na edição londrina Apenas al guns deles foram traduzidos para a presente edição pois muitos são de caráter apenas circunstancial A ordem cronológica adotada pode sofrer pequenas alterações no interior de um volume Os textos considerados mais importantes do período coberto pelo volume cujos títulos aparecem na página de rosto vêm em primeiro lugar Em uma ou outra ocasião são reunidos aqueles que tratam de um só tema mas não foram publicados sucessivamente é o caso dos artigos sobre a técnica psicanalítica por exemplo Por fim os textos mais curtos são agrupa dos no final do volume Embora constituam a mais ampla reunião de textos de Freud os dezessete volumes dos Gesammelte Werke foram sofrivelmente editados talvez devido à penúria dos anos de guerra e de pósguerra na Europa Embora ordenados cronologicamente não indicam sequer o ano da publicação de cada trabalho O texto em si é geralmente confiável mas sempre que possível foi cotejado com a Studienausgabe Edição de estudos publicada pela Fischer em 196975 da qual consultamos uma edição revista lançada posteriormente Tratase de onze volumes organizados por temas como a primeira coleção de obras de Freud que não incluem vários textos secundários ou de conteúdo repetido mas incorporam traduzidas para o alemão as apresentações e notas que o inglês James Strachey redigiu para a Standard edition Londres Hogarth Press 195566 O objetivo da presente edição é oferecer os textos com o máximo de fidel idade ao original sem interpretações ou interferências de comentaristas e teóricos posteriores da psicanálise que devem ser buscadas na imensa biblio grafia sobre o tema Também informações sobre a gênese e a importância de cada obra podem ser encontradas na literatura secundária principalmente na biografia em três volumes de Ernest Jones lançada no Brasil pela Imago do Rio de Janeiro e no mencionado aparato editorial da Standard inglesa A ordem de publicação destas Obras completas não é a mesma daquela das primeiras edições alemãs pois isso implicaria deixar várias coisas relevantes para muito depois Decidiuse começar por um período intermediário e de pleno desenvolvimento das concepções de Freud em torno de 1915 e daí pro ceder para trás e para adiante Após o título de cada texto há apenas a referência bibliográfica da primeira publicação não a das edições subsequentes ou em outras línguas que interes sam tão somente a alguns especialistas Entre parênteses se acha o ano da pub licação original havendo transcorrido mais de um ano entre a redação e a pub licação a data da redação aparece entre colchetes As indicações bibliográficas do autor foram normalmente conservadas tais como ele as redigiu isto é não foram substituídas por edições mais recentes das obras citadas Mas sempre é 6275 fornecido o ano da publicação que no caso de remissões do autor a seus próprios textos permite que o leitor os localize sem maior dificuldade tanto nesta como em outras edições das obras de Freud As notas do tradutor geralmente informam sobre os termos e passagens de versão problemática para que o leitor tenha uma ideia mais precisa de seu sig nificado e para justificar em alguma medida as soluções aqui adotadas Nessas notas são reproduzidos os equivalentes achados em algumas versões es trangeiras dos textos em línguas aparentadas ao português e ao alemão Não utilizamos as duas versões das obras completas já aparecidas em português das editoras Delta e Imago pois não foram traduzidas do alemão e sim do francês e do espanhol a primeira e do inglês a segunda No tocante aos termos considerados técnicos não existe a pretensão de im por as escolhas aqui feitas como se fossem absolutas Elas apenas pareceram as menos insatisfatórias para o tradutor e os leitores e psicanalistas que empregam termos diferentes conforme suas diferentes abordagens e per cepções da psicanálise devem sentirse à vontade para conservar suas opções Ao ler essas traduções apenas precisarão fazer o pequeno esforço de substituir mentalmente instinto por pulsão instintual por pulsional repressão por recalque ou Eu por ego exemplificando No entanto essas palavras são poucas em número bem menor do que geralmente se acredita Esta edição não pretende ser definitiva pelo simples motivo de que um clássico dessa natureza nunca recebe uma tradução definitiva E tendo sido planejada por alguém que se aproximou de Freud pela via da linguagem e da literatura destinase não apenas aos estudiosos e profissionais da psicanálise mas a todos aqueles que em vários continentes leem e se exprimem nessa que um grande poeta português chamou de nossa clara língua majestosa e um eminente tradutor e poeta brasileiro qualificou de portocálido brasilírico idiomaterno 7275 pcs O tradutor agradece o generoso auxílio de Gisela Moreau que durante um ano lhe permitiu se dedicar exclusivamente à tradução deste volume 8275 OBSERVAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE UM CASO DE PARANOIA DEMENTIA PARANOIDES RELATADO EM AUTOBIOGRAFIA O CASO SCHREBER 1911 TÍTULO ORIGINAL PSYCHOANALYTISCHE BEMERKUNGEN ÜBER EINEN AUTOBIOGRAPHISCH BESCHRIEBENEN FALL VON PARANOIA DEMENTIA PARANOIDES PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM JAHRBUCH FÜR PSYCHOANALYTISCHE UND PSYCHOPATHOLOGISCHE FORSCHUNGEN ANUÁRIO DE PESQUISAS PSICANALÍTICAS E PSICOPATOLÓGICAS V 3 N 1 PP 968 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 239316 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE VII PP 133200 A investigação psicanalítica da paranoia oferece dificuldades especiais para nós médicos não ligados a instituições públicas Não podemos aceitar ou manter por longo tempo doentes assim pois a condição para nosso tratamento é a perspectiva de sucesso terapêutico Apenas excepcionalmente posso lançar um olhar mais detido à estrutura da paranoia seja quando a incerteza do dia gnóstico nem sempre fácil favorece a tentativa de influenciar o paciente seja quando apesar do diagnóstico seguro cedo aos pedidos da família e começo a tratar o indivíduo por algum tempo À parte isso naturalmente en contro paranoicos e dementes em bom número e deles adquiro tantas in formações sobre seus casos quanto outros psiquiatras mas via de regra isso não basta para chegar a conclusões psicanalíticas A investigação psicanalítica da paranoia não seria possível se os doentes não tivessem a peculiaridade de revelar ainda que de forma distorcida justa mente o que os demais neuróticos escondem como um segredo Dado que os paranoicos não podem ser impelidos a vencer suas resistências internas e de toda forma dizem apenas o que querem dizer precisamente no caso dessa afecção o relato escrito ou a história clínica impressa pode funcionar como substituto do conhecimento pessoal do doente Pareceme lícito então fazer interpretações psicanalíticas a partir do caso clínico de um paranoico enfermo de dementia paranoides que jamais conheci mas que redigiu ele mesmo sua história clínica e a levou ao conhecimento público de forma impressa Tratase do dr Daniel Paul Schreber expresidente da Corte de Apelação da Saxônia cujas Memórias de um doente dos nervos apareceram em 1903 e se estou bem informado despertaram grande interesse entre os psiquiatras É possível que o dr Schreber viva ainda hoje e que tenha se afastado do sistema de delírios que apresentou em 1903 de modo a achar incômodas estas obser vações sobre o seu livro Mas na medida em que ainda conserve a identidade de sua personalidade de hoje com a de então éme permitido invocar os próprios argumentos que o homem de espírito elevado de inteligência aguda e finos dons de observação1 contrapôs aos que buscavam dissuadilo da pub licação A esse respeito não deixei de levar em conta as objeções que parecem se opor a uma publicação tratase especialmente da consideração por algumas pessoas que ainda vivem Por outro lado creio que poderia ser valioso para a ciência e para o conhecimento de verdades religiosas possibilitar ainda dur ante a minha vida quaisquer observações da parte de profissionais sobre meu corpo e meu destino pessoal Diante dessa ponderação deve calarse qualquer escrúpulo de ordem pessoal2 Em outra passagem do livro ele afirma ter de cidido manter o propósito de publicálo ainda que seu médico o Geheimrat prof e dr Flechsig de Leipzig viesse a processálo por isso Ele solicita de Flechsig o que agora também eu solicito dele mesmo Espero que nesse caso também no espírito do conselheiro prof dr Flechsig o interesse científico pelo conteúdo das minhas Memórias prevaleça sobre eventuais suscetibilidades pessoais p 322 Embora neste trabalho eu cite literalmente todos os trechos das Memórias em que se baseiam minhas interpretações peço ao leitor que se familiarize antes com o livro mesmo que numa só leitura I HISTÓRIA CLÍNICA O dr Schreber relata Estive doente dos nervos duas vezes ambas em con sequência de uma excessiva fadiga intelectual a primeira vez por ocasião de uma candidatura ao Reichstag Parlamento quando eu era diretor do Tribunal de Província em Chemnitz a segunda vez por ocasião da inusitada sobrecarga de trabalho que enfrentei quando assumi o cargo de presidente da Corte de Apelação de Chemnitz que me tinha sido então recentemente trans mitido3 A primeira doença manifestouse no outono de 1884 e estava completa mente curada no final de 1885 Flechsig em cuja clínica o doente passou então 11275 seis meses definiu seu estado num parecer formal depois emitido como um ataque de severa hipocondria O dr Schreber assegura que essa enfermidade transcorreu sem qualquer incidente relativo ao domínio do sobrenatural4 Sobre os antecedentes e as circunstâncias de vida do paciente nem seus es critos nem os pareceres médicos a eles agregados informam suficientemente Eu não poderia sequer dizer qual a sua idade no momento em que adoeceu embora a elevada posição que alcançou na Justiça antes de adoecer pela se gunda vez garanta um certo limite inferior Ficamos sabendo que na época da hipocondria o dr Schreber estava casado havia muito tempo Ele diz Ainda mais profunda talvez foi a gratidão sentida por minha esposa que real mente reverenciava o dr Flechsig aquele que lhe devolveu seu marido e por esse motivo conservou durante anos seu retrato sobre sua escrivaninha p 36 E no mesmo lugar Depois da cura de minha primeira doença vivi oito anos no geral bem felizes ricos de honrarias exteriores e apenas passageira mente turvados pelas numerosas frustrações da esperança de ter filhos Em junho de 1893 foilhe comunicada sua iminente nomeação para presid ente da Corte de Apelação ele assumiu o cargo em 1o de outubro do mesmo ano Nesse intervalo5 lhe ocorreram alguns sonhos aos quais somente depois veio a dar importância Sonhou algumas vezes que sua antiga doença retorn ara o que no sonho o fez sentirse muito infeliz tanto quanto ficou feliz ao despertar por ter sido apenas um sonho Além disso teve uma vez no início da manhã num estado entre o sono e a vigília a ideia de que deveria ser real mente bom ser uma mulher se submetendo ao coito p 36 uma ideia que ele em plena consciência teria rejeitado com indignação O segundo adoecimento principiou no final de outubro de 1893 com uma tormentosa insônia que novamente o fez procurar a clínica de Flechsig onde no entanto seu estado piorou rapidamente A evolução posterior é registrada num parecer emitido pelo diretor da casa de saúde de Sonnenstein p 380 12275 No início da internação6 manifestava várias ideias hipocondríacas queixavase de sofrer um amolecimento cerebral de que morreria logo etc mas logo em seguida se acrescentaram ao quadro mórbido ideias de perseguição derivadas de alucinações que no início ainda se manifestavam esporadicamente ao mesmo tempo que começava a se mostrar uma notável hiperestesia grande sensibilidade à luz e ao barulho Mais tarde se torn aram mais frequentes as alucinações auditivas e acústicas que ao lado de distúrbios sensoriais comuns acabaram por dominar sua sensibilidade e seu pensamento consideravase morto e apodrecido doente de peste supunha que seu corpo fosse objeto de horríveis manipulações de todo tipo e como afirma ainda hoje sofria as coisas mais terríveis que se possam imaginar e tudo isso em nome de uma causa sagrada As ideias delirantes absorviam a tal ponto o doente que ele ficava horas e horas completamente rígido e imóvel estupor alucinatório inacessível a qualquer outra impressão e por outro lado essas ideias o atormentavam tanto que chegava a invocar a morte a ponto de tentar várias vezes afogarse no banho e exigir o cia nureto que lhe estava destinado Pouco a pouco as ideias delirantes assum iram um caráter místico e religioso ele se comunicava diretamente com Deus os diabos faziam das suas com ele via fenômenos milagrosos ouvia música sacra e finalmente acreditava estar vivendo em um outro mundo Acrescentemos que ele xingava diversas pessoas que acreditava teremno perseguido e prejudicado sobretudo Flechsig seu exmédico que chamou de assassino de alma e inúmeras vezes gritou pequeno Flechsig acentuando a primeira palavra p 383 Foi removido de Leipzig e após breve permanên cia em outra instituição chegou ao sanatório Sonnenstein próximo a Pirna em junho de 1894 ali ficando até que a doença tomou a forma definitiva Nos anos seguintes o quadro clínico se alterou de uma maneira que descreveremos melhor com as palavras do dr Weber diretor do sanatório 13275 Sem entrar em todos os pormenores do decurso da doença é suficiente notar como a partir da psicose inicial mais aguda que envolvia direta mente todas as áreas do psiquismo diagnosticada como delírio alucin atório emergiu de um modo cada vez mais decisivo e por assim dizer cristalizado o quadro paranoico que se vê hoje p 385 Por um lado ele havia desenvolvido um engenhoso sistema delirante que tem tudo para nos interessar e por outro lado sua personalidade havia se reconstruído e mostravase excetuando alguns distúrbios isolados à altura das tarefas da vida Assim relata o dr Weber em parecer de 1899 Desse modo abstraindose os sintomas psicomotores que se impõem de imediato como patológicos mesmo para o observador superficial o presid ente da Corte de Apelação sr dr Schreber não parece nem confuso nem psiquicamente inibido nem sensivelmente lesado em sua inteligência é sensato sua memória é excelente dispõe de uma considerável massa de conhecimentos não apenas sobre assuntos jurídicos mas também sobre muitas outras áreas e consegue reproduzilos em sequência ordenada de pensamentos interessase por política ciência arte etc e se ocupa con tinuamente desses temas e nesse sentido um observador que não est iver informado de seu estado geral dificilmente perceberá alguma coisa de anormal Apesar de tudo o paciente está tomado por ideias mórbidas que se fecharam em um sistema completo se tornaram mais ou menos fixas e parecem ser inacessíveis a uma correção através da interpretação e julga mento objetivos da situação real pp 3856 Assim mudado o paciente considerouse capaz de levar sua existência e tomou as medidas necessárias para revogar a tutela e obter sua dispensa da clínica O dr Weber se opôs a esse desejo e redigiu pareceres no sentido con trário mas não pôde senão descrever a pessoa e a conduta do paciente de modo favorável num parecer de 1900 14275 O signatário há nove meses durante as refeições cotidianas em sua casa tem tido farta oportunidade de conversar com o sr presidente Schreber sobre todos os assuntos possíveis Qualquer que fosse o tema da conversa naturalmente com exceção de suas ideias delirantes os problemas da administração do Estado e da Justiça política arte e literatura vida social ou o que quer que fosse sobre qualquer coisa o dr Schreber revelava vivo interesse conhecimentos profundos uma boa memória um julgamento pertinente e mesmo do ponto de vista ético uma concepção que não se po deria deixar de subscrever Mesmo nas conversas amenas com as senhoras presentes ele se mostrava cortês e amável e ao tratar certos temas de modo humorístico sempre revelou tato e decência nunca trazendo para a inocente conversa à mesa temas que não deveriam ser tratados ali mas sim nas visitas médicas pp 3978 Também num assunto de natureza econômica que envolvia interesses de toda a família ele interveio nessa época de forma competente e apropriada pp 401 510 Nas várias petições à justiça com que o dr Schreber se empenhava na sua liberação ele não negava absolutamente seu delírio e não escondia a intenção de publicar suas Memórias Pelo contrário enfatizava o valor de seus pensamentos para a religião e a invulnerabilidade deles ante a ciência de hoje ao mesmo tempo invocava a absoluta inocuidade p 430 de todas as ações a que o induzia o teor do seu delírio A agudeza e a precisão lógica desse homem reconhecido como paranoico levaram enfim ao seu triunfo Em julho de 1902 foi anulada a privação legal em que se achava o dr Schreber no ano seguinte apareceram em livro as Memórias de um doente dos nervos submetidas à cen sura no entanto e com valiosos trechos omitidos Na resolução que devolveu ao dr Schreber a liberdade o conteúdo de seu sistema delirante é resumido em poucas frases Considerase encarregado de 15275 salvar o mundo e devolver a ele a perdida beatitude Mas é algo que ele só pode realizar se antes se transformar de homem em mulher p 475 Uma exposição mais minuciosa do delírio em sua forma final pode ser lida no parecer de 1899 do dr Weber O sistema delirante do paciente culmina na ideia de que sua missão é a de redimir o mundo e devolver à humanidade a beatitude perdida Afirma ter chegado a essa tarefa por inspiração divina direta do mesmo modo que os profetas os nervos mais excitados como foram os seus durante muito tempo teriam a propriedade de exercer atração sobre Deus mas seria se não impossível pelo menos muito difícil exprimir essas coisas em lin guagem humana porque elas se situam além de toda e qualquer experiência humana e só a ele foram reveladas O essencial de sua missão redentora é que em primeiro lugar tem de ocorrer a sua transformação em mulher Não que ele queira se tornar mulher tratase antes de um dever com base na Or dem do Mundo ao qual não se pode fugir quando na verdade preferiria permanecer em sua honrada posição masculina na vida mas doravante o Além não poderá ser conquistado nem por ele nem por toda a humanidade restante a não ser através da sua transformação em uma mulher por meio de milagre divino Está certo de ser ele objeto exclusivo de milagres divi nos sendo desse modo o homem mais extraordinário que já viveu sobre a Terra há anos a toda hora e todo minuto ele experimenta esses milagres na própria carne comprovandoos também através de vozes que falam com ele Nos primeiros anos de sua doença teria sofrido distúrbios em certos órgãos do corpo que facilmente teriam levado à morte qualquer outra pess oa viveu muito tempo sem estômago sem intestinos quase sem pulmões com o esôfago dilacerado sem bexiga com as costelas esfaceladas algumas vezes teria engolido parte de sua laringe junto com a comida etc mas mil agres divinos raios sempre restauraram o que fora destruído e por isso ele enquanto for um homem será absolutamente imortal Aquelas 16275 experiências ameaçadoras há muito tempo já desapareceram e em com pensação sua feminilidade passou para o primeiro plano tratase aí de um processo de desenvolvimento que provavelmente exigirá decênios se não séculos até se completar e a cujo final dificilmente algum dos atuais homens vivos assistirá Tem a sensação de que já penetraram em massa no seu corpo nervos femininos a partir dos quais nascerão novos homens por fecundação direta de Deus Só então ele poderá morrer de morte natur al e recuperar a beatitude para si e para todos os homens Enquanto isso não apenas o Sol como também as árvores e os pássaros que seriam algo como restos miraculados de antigas almas humanas falavam com ele em sons humanos e por toda parte ao seu redor aconteciam coisas prodigiosas pp 3867 O interesse do psiquiatra por tais formações delirantes se esgota normal mente ao constatar a operação do delírio e sua influência na vida do paciente seu espanto não marca o início de sua compreensão Já o psicanalista partindo de seu conhecimento das psiconeuroses supõe que mesmo formações mentais tão extraordinárias tão afastadas do pensamento humano habitual tiveram origem nos mais universais e compreensíveis impulsos da vida psíquica e gostaria de conhecer tanto os motivos como as vias dessa transformação Com esse propósito ele buscará se aprofundar na história do desenvolvimento e nas particularidades do delírio a O autor do parecer médico destaca como os dois pontos principais o papel de Redentor e a transformação em mulher O delírio de ser o Redentor é uma fantasia nossa conhecida que frequentemente constitui o cerne da para noia religiosa Já o acréscimo de que a redenção deve ocorrer pela transform ação do indivíduo em mulher é algo incomum e surpreendente por distanciar se bastante do mito histórico que a fantasia do doente quer reproduzir É plausível imaginar acompanhando o parecer médico que a ambição de repres entar o Salvador é o que impulsiona esse complexo delirante e que a 17275 emasculação significaria apenas um meio para alcançar esse fim Embora isto possa apresentarse assim na configuração final do delírio o estudo das Memórias nos impõe uma concepção bem diferente Vemos que a transform ação em mulher emasculação era o delírio primário que ela foi considerada inicialmente um ato que acarretaria grave dano e perseguição e que apenas secundariamente veio a ligarse ao papel de Redentor Também se torna claro que antes ela deveria ocorrer para fins de abuso sexual e não a serviço de propósitos elevados Colocando de maneira formal um delírio de perseguição sexual foi posteriormente transformado para o paciente em delírio de gran deza religiosa O perseguidor era inicialmente o prof Flechsig o médico que o tratava depois substituído pelo próprio Deus Transcrevo aqui sem abreviálas as passagens das Memórias que com provam isso Desse modo foi preparada uma conspiração dirigida contra mim em março ou abril de 1894 que tinha como objetivo uma vez reconhecido o suposto caráter incurável de minha doença nervosa confiarme a um homem de tal modo que minha alma lhe fosse entregue ao passo que meu corpo numa compreensão equivocada da citada tendência inerente à Or dem do Mundo devia ser transformado em um corpo feminino e como tal entregue ao homem em questão7 para fins de abusos sexuais devendo finalmente ser deixado largado e portanto abandonado à putrefação p 56 A esse respeito do ponto de vista humano que ainda predominava em mim era inteiramente natural que visse meu verdadeiro inimigo apenas no prof Flechsig ou na sua alma mais tarde acrescentouse ainda a alma de von W sobre a qual se falará mais adiante considerando o poder de Deus como meu aliado natural acreditava que Deus estivesse numa situação difí cil apenas diante do prof Flechsig e por isso acreditava dever apoiálo com todos os meios imagináveis chegando até ao autossacrifício Que o próprio 18275 Deus fosse cúmplice se não instigador do plano que visava ao assassinato da minha alma e ao abandono do meu corpo como prostituta feminina é um pensamento que só muito mais tarde se impôs a mim e que em parte sejame permitido afirmar só me veio claramente à consciência durante a redação do presente ensaio p 59 Fracassaram todas as tentativas de cometer assassinato de alma de emasculação para fins contrários à Ordem do Mundo isto é para satisfação do desejo sexual de um ser humano e posteriormente as tentativas de destruição de meu entendimento Da luta aparentemente tão desigual entre um homem fraco e o próprio Deus saio vencedor embora após amargos sofrimentos e privações porque a Ordem do Mundo está do meu lado p 61 Na nota 34 relativa às palavras contrários à Ordem do Mundo ele anuncia a posterior mudança do delírio de emasculação e do relacionamento com Deus Mais adiante se explicará que uma emasculação para um outro fim em conformidade com a Ordem do Mundo é algo que está no reino da pos sibilidade e talvez até contenha a provável solução do conflito Essas afirmações são decisivas para a nossa concepção do delírio de emas culação e com isso para o entendimento do caso mesmo Acrescentese que as vozes ouvidas pelo paciente tratavam a sua transformação em mulher apenas como uma afronta sexual que lhes permitia zombar do enfermo Não raro os raios divinos aludindo à emasculação supostamente iminente acreditavam poder zombar de mim como Miss Schreber p 127 Isso quer ser um pres idente da Corte de Apelação e se deixa f8 Não se envergonha diante de sua esposa A natureza primária da fantasia de emasculação e sua independência inicial da ideia de Salvador é atestada além disso pela ideia já mencionada surgida no estado de meia sonolência de que deveria ser bom ser uma mulher 19275 submetendose ao coito p 36 Esta fantasia tornarase consciente no período de incubação da doença antes dos efeitos do trabalho excessivo em Dresden O mês de novembro de 1895 é indicado pelo próprio Schreber como a épo ca em que se produziu o nexo entre a fantasia de emasculação e a ideia de ser Redentor e desse modo preparouse o caminho para uma conciliação com a primeira Mas a partir daí tive a absoluta convicção de que a Ordem do Mundo exi gia imperiosamente de mim a emasculação quer isso me agradasse pessoal mente ou não e portanto por motivos racionais nada mais me restava senão me reconciliar com a ideia de ser transformado em mulher Naturalmente a emasculação só poderia ter como consequência uma fecundação por raios divinos com a finalidade de criar novos homens p 177 A transformação em mulher fora o punctum saliens o primeiro gérmen do sistema delirante ela também se revelou a única parte a subsistir após a recu peração e a única a conservar um lugar nos seus atos concretos depois de restabelecido A única coisa que pode soar como algo irracional aos olhos das outras pessoas é a circunstância apontada pelo senhor perito de que às vezes eu sou encontrado com o tronco seminu diante do espelho ou algum outro lugar enfeitado com adereços um tanto femininos fitas colares de bijuteria etc Mas isso só acontece quando estou só e nunca pelo menos até onde eu posso evitar na presença de outras pessoas p 429 Tais brincadeiras o sr juizpresidente confessou na mesma época julho de 1901 em que achou para definir a saúde prática que havia reconquistado es tas palavras pertinentes Há muito tenho perfeita noção de que as pessoas que vejo não são homens feitos às pressas mas pessoas reais e que por isso devo me conduzir frente a elas como um homem de bomsenso costuma se conduzir no relacionamento com outros homens p 409 Em contraste com esta en cenação concreta da fantasia de emasculação o enfermo nada fez para o 20275 reconhecimento de sua missão redentora além da publicação de suas Memórias b A atitude do nosso doente em relação a Deus é tão singular e cheia de contradições que é preciso haver muita confiança para se manter a expectativa de achar método nessa loucura Com o auxílio das declarações existentes nas Memórias devemos buscar orientação mais precisa sobre o sistema teológicopsicológico do dr Schreber e apresentar seus pontos de vista sobre os nervos a beatitude a hierarquia divina e os atributos de Deus em sua aparente delirante conexão Em todos os pontos da teoria notase a curiosa mistura de banalidade e inteligência de elementos tomados de empréstimo e originais A alma humana se acha contida nos nervos do corpo que devem ser ima ginados como estruturas de sutileza extraordinária comparáveis aos fios de costura mais sutis Alguns desses nervos são adequados apenas para receber percepções sensoriais e outros os nervos do entendimento operam tudo o que é psíquico sendo que cada nervo do entendimento representa toda a individualidade espiritual de uma pessoa e o maior ou menor número de nervos do entendi mento influencia apenas no lapso de tempo durante o qual as impressões po dem ser conservadas9 Enquanto os seres humanos consistem em corpo e nervos Deus é já de iní cio somente nervos No entanto os nervos de Deus não existem em número limitado como no corpo humano mas são infinitos ou eternos Possuem todas as propriedades dos nervos humanos em grau extremamente elevado Em sua capacidade de criar isto é de transfigurarse em todas as coisas possíveis do mundo criado eles chamamse raios Há uma íntima relação entre Deus e o céu estrelado ou o Sol10 Finda a obra da Criação Deus retirouse para uma distância enorme pp 11 252 e em geral abandonou o mundo a suas próprias leis Limitouse a at rair até Ele as almas dos que morrem Apenas de modo excepcional quis comunicarse com alguns seres humanos altamente dotados11 ou intervir com 21275 um milagre nos destinos do mundo Apenas depois da morte segundo a Or dem do Mundo há um relacionamento regular entre Deus e as almas human as12 Quando uma pessoa morre as partes de sua alma nervos são submetidas a um processo de purificação para serem finalmente reintegradas a Deus como vestíbulos do céu Assim é formado um eterno ciclo das coisas que subjaz à Ordem do Mundo p 19 Criando algo Deus aliena parte de si mesmo dá a uma parte de seus nervos uma forma alterada A perda daí result ante é compensada quando após centenas e milhares de anos os nervos beati ficados dos mortos são novamente juntados a Ele como vestíbulos do céu As almas acendradas no processo de purificação achamse no gozo da beatitude13 Nesse meiotempo elas atenuaram sua autoconsciência e fundiram se em unidades superiores com outras almas Almas importantes como a de um Goethe um Bismarck etc talvez conservem ainda por séculos a consciên cia de sua identidade até assimilaremse elas próprias a complexos de almas el evados como raios de Jeová para os antigos hebreus raios de Zoroastro para os persas Durante a purificação as almas aprendem a língua falada pelo próprio Deus a chamada língua fundamental um alemão algo arcaico mas vigoroso que se caracteriza principalmente por uma grande riqueza de eufem ismos p 1314 Deus mesmo não é uma entidade simples Sobre os vestíbulos do céu pairava o próprio Deus a quem em contraposição a esses reinos anteriores de Deus foi também dada a designação de reinos posteriores de Deus Os reinos posteriores de Deus estavam e ainda estão submetidos a uma bi partição peculiar segundo a qual se distinguiam um deus inferior Ariman e um deus superior Ormuz p 19 Sobre o significado dessa bipartição Schreber diz apenas que o deus inferior inclinavase de preferência para os povos de raça morena os semitas e o superior para os povos louros os arianos De fato não se pode exigir mais do conhecimento humano em tais al turas No entanto também somos informados de que o deus inferior e o 22275 superior apesar da existência em certo sentido da unidade da onipotência divina devem ser compreendidos como seres diferentes que têm mesmo na re lação de um com o outro o seu egoísmo particular e seu próprio instinto de autoconservação portanto cada um sempre procurando passar à frente do outro p 140 Também no estágio agudo da doença as duas entidades divi nas se comportaram de forma bem diferente em relação ao infeliz Schreber15 O juizpresidente Schreber fora nos tempos saudáveis um cético em coisas de religião pp 29 64 nunca pudera decidirse por uma sólida fé na existên cia de um Deus pessoal E desse fato da sua história pregressa ele chega a ex trair um argumento em apoio da plena realidade de seu delírio16 Mas quem ler o que segue sobre as características do Deus de Schreber terá de convir que a transformação gerada pela paranoia não foi profunda e que no redentor de agora persiste muita coisa do cético de outrora Pois na Ordem do Mundo há uma lacuna devido à qual a própria existên cia de Deus parece ameaçada Em virtude de circunstâncias que não vêm a ser explicadas os nervos de homens vivos sobretudo em estado de excitação muito intensa exercem tal atração sobre os nervos de Deus que Deus não pode mais livrarse deles e então é ameaçado em sua existência p 11 Esse caso ex tremamente raro verificouse com Schreber trazendo para ele os maiores so frimentos O instinto de autoconservação de Deus foi despertado p 30 e viuse que Ele estava muito longe da perfeição que lhe atribuem as religiões Todo o livro de Schreber é permeado pela amarga queixa de que Deus habitu ado ao trato com os mortos não compreende os vivos Mas reina aqui um malentendido fundamental que desde então atravessa toda a minha vida como um fio vermelho e que consiste justamente no fato de que Deus de acordo com a Ordem do Mundo não conhecia verdadeiramente o homem vivo nem precisava conhecer mas sim de acordo com a Ordem do Mundo só tinha relações com cadáveres p 55 de acordo com minhas convicções deve ser relacionada com o fato de que Deus por assim dizer não 23275 era capaz de lidar com homens vivos estando acostumado a lidar só com cadáveres ou em todo caso com homens adormecidos sonhando p 141 Incredibile scriptu gostaria de acrescentar e no entanto tudo é realmente ver dadeiro por menos que as pessoas possam imaginar uma incapacidade tão total de Deus para julgar corretamente os homens vivos e por mais tempo que eu tenha necessitado para me acostumar com essa ideia depois das inúmeras observações feitas a esse respeito p 246 Apenas devido a essa má compreensão dos homens vivos por parte de Deus pôde acontecer que o próprio Deus se tornasse o instigador da conspiração realizada contra Schreber que Ele o visse como idiota e o sujeitasse às mais duras provas p 264 A fim de escapar a esse juízo condenatório Schreber submeteuse a uma penosa compulsão de pensar Cada vez que deixo de pensar Deus considera imediatamente que se extinguiu minha capacidade in telectual que já ocorreu a esperada destruição do meu entendimento a idiotia e que com isso já está aberta a possibilidade de uma retirada p 206 O comportamento de Deus na questão do impulso a evacuar ou c sus cita uma indignação bastante forte A passagem é tão característica que a citarei na íntegra Para sua melhor compreensão antecipo que tanto os mil agres como as vozes partem de Deus isto é dos raios divinos Por causa do seu significado característico preciso ainda fazer algumas observações sobre a pergunta mencionada Por que o senhor não c por menos decente que seja o tema que sou constrangido a tratar Como tudo o mais no meu corpo também a necessidade de evacuação é provo cada por milagre isso acontece da seguinte maneira as fezes são empurra das para a frente às vezes também de novo para trás e quando em con sequência da evacuação já efetuada não há mais material suficiente lambuzase o orifício do meu traseiro com os poucos resíduos do conteúdo intestinal Tratase aqui de um milagre do deus superior que se repete pelo 24275 menos muitas dúzias de vezes por dia A isso se liga a ideia quase inconce bível para o homem e só explicável pelo completo desconhecimento que Deus tem do homem vivo como organismo a ideia de que o c seja de certo modo o último recurso isto é de que por meio do milagre da ne cessidade de c se atinja o objetivo da destruição do entendimento e se torne possível uma retirada definitiva dos raios Para chegar aos fundamen tos da origem dessa ideia pareceme necessário pensar na existência de um equívoco com relação ao significado simbólico do ato de evacuar ou seja quem chegou a ter uma relação correspondente à minha com os raios divi nos de certo modo está justificado a c sobre o mundo inteiro Mas ao mesmo tempo se revela aí toda a perfídia17 da política que se seguiu com relação a mim Quase toda vez que se provoca em mim por milagre a necessidade de evacuar enviase estimulando os nervos da pessoa em questão uma outra pessoa do meu ambiente ao banheiro para me impedir de evacuar esse é um fenômeno que durante anos obser vei um semnúmero milhares de vezes e de um modo tão regular que fica eliminada qualquer ideia de casualidade Então à pergunta Por que o sen hor não c me é dada a brilhante resposta Porque sou burro algo as sim A pena quase se recusa a escrever o enorme absurdo segundo o qual Deus em sua cegueira causada na realidade pelo seu desconhecimento da natureza humana chega ao ponto de supor que possa haver um homem que por burrice não consiga c coisa que qualquer animal consegue Quando então no caso de uma necessidade efetivamente evacuo para o que me sirvo de um balde dado que quase sempre encontro o banheiro ocupado isso se associa toda vez a um intensíssimo desdobramento da volúpia da alma A libertação da pressão provocada pela presença das fezes nos intestinos tem como consequência um intenso bemestar que é propor cionado aos nervos da volúpia o mesmo acontece no ato de urinar Por esse motivo sempre e sem exceção os raios ficavam unidos durante o ato de evacuar e urinar e justamente por essa mesma razão toda vez que me 25275 disponho a essas funções naturais procurase embora quase sempre em vão desfazer por milagre o impulso à evacuação e à micção p 22518 O estranho Deus de Schreber também é incapaz de aprender algo da exper iência Por causa de certas qualidades inerentes à essência de Deus parece ser impossível extrair para o futuro uma lição da experiência obtida desse modo p 186 Então Ele pode repetir anos a fio as mesmas provas milagres e vozes torturantes sem modificação até tornarse alvo de zombaria para o perseguido Disso resulta que em quase todas as coisas que acontecem em re lação a mim uma vez que os milagres perderam em grande parte seus efeitos terríveis de antigamente Deus me parece na maioria das vezes eminente mente ridículo ou pueril Disso resulta o meu comportamento em que fre quentemente sou obrigado por legítima defesa em alguns casos a fazer em voz alta o papel do que zomba de Deus p 33319 Essa crítica e revolta contra Deus no entanto depara em Schreber com uma enérgica corrente oposta que acha expressão em numerosas passagens Mas devo enfatizar novamente aqui do modo mais categórico que se trata apenas de um episódio que espero se encerrará no máximo com a minha morte e que portanto só é dado a mim e não aos outros homens o direito de zombar de Deus Para os outros homens Deus permanece o criador todopoderoso do céu e da Terra a causa primeira de todas as coisas e a salvação do seu futuro que merece adoração e a máxima vener ação ainda que algumas ideias religiosas tradicionais mereçam reti ficação p 333 Por isso há várias tentativas de justificar o comportamento de Deus para com ele que engenhosas como em toda teodiceia ora veem a explicação na natureza geral das almas ora na necessidade de autoconservação do próprio Deus e na influência enganadora da alma de Flechsig pp 601 e 160 No con junto porém a doença é vista como uma luta do homem Schreber contra 26275 Deus na qual o ser humano e fraco triunfa porque a Ordem do Mundo está do seu lado p 61 Os pareceres médicos levariam facilmente à conclusão de que temos no caso Schreber uma forma corrente da fantasia de redentor O paciente seria filho de Deus destinado a salvar o mundo de sua miséria ou da destruição que o ameaça etc Por essa razão cuidei de expor minuciosamente as peculiaridades da relação de Schreber com Deus A importância de tal relação para o resto da humanidade é bem pouco mencionada nas Memórias apenas na fase final do delírio Consiste essencialmente no fato de que nenhum morto pode alcançar a beatitude enquanto a maior parte dos raios de Deus é absorvida pela pessoa de Schreber em virtude da sua força de atração p 32 Também a identificação aberta com Jesus Cristo só aparece bem tarde pp 338 431 Uma tentativa de explicação do caso Schreber que não leve em conta essas peculiaridades de sua concepção de Deus essa mistura de traços de adoração e de revolta não tem possibilidade de ser correta Voltemonos agora para outro tema que se acha intimamente relacionado a Deus o da beatitude Também para Schreber a beatitude é a vida no Além a que a alma hu mana é elevada após a morte através da purificação Ele a descreve como um estado de gozo ininterrupto associado à contemplação de Deus Isso não é muito original mas somos surpreendidos pela distinção que ele faz entre uma beatitude masculina e uma feminina A beatitude masculina ficava um grau acima da feminina essa última parece constituirse predominantemente de um sentimento ininterrupto de volúpia p 1820 Outras passagens exprimem a coincidência de beatitude e volúpia em linguagem mais nítida e sem alusão à diferença de sexo e também não abordam esse elemento da beatitude que é a contemplação de Deus Por exemplo na p 51 com a natureza dos nervos de Deus graças à qual a beatitude é embora não exclusivamente uma sensação de volúpia extremamente intensa E na 281 A volúpia pode ser entendida como um aspecto da beatitude concedida antecipadamente ao 27275 homem e aos outros seres vivos de modo que a beatitude celeste seria essen cialmente elevação e continuação do prazer sensorial terrestre Essa concepção da beatitude não é absolutamente uma parte do delírio que se originou na primeira fase da doença e depois foi eliminada por ser incom patível com o restante Ainda na Fundamentação do recurso em julho de 1901 ele enfatiza como um grande conhecimento que adquiriu que há es treita relação ainda não reconhecida até agora pelos homens entre a volúpia e a beatitude das almas defuntas p 44221 Veremos de fato que essa estreita relação é a rocha sobre a qual o doente funda sua esperança de uma reconciliação final com Deus e de um término para seus sofrimentos Os raios de Deus perdem sua hostilidade quando ficam seguros de que serão absorvidos em seu corpo com volúpia da alma p 133 o próprio Deus exige encontrar nele volúpia p 283 e ameaça retirar seus raios se ele negligenciar o cultivo da volúpia e não puder oferecer Lhe o que demanda p 320 Esta surpreendente sexualização da beatitude celeste nos dá a impressão de que o conceito de beatitude de Schreber teria surgido da condensação dos dois principais significados da palavra alemã falecido e sensualmente feliz22 Mas ela também nos dará a oportunidade de submeter a exame a atitude de nosso paciente ante o erotismo ante as questões envolvidas no gozo sexual pois nós psicanalistas até hoje sustentamos a opinião de que as raízes de toda doença nervosa e psíquica devem ser buscadas sobretudo na vida sexual al guns de nós apenas com base na experiência outros devido também a consid erações teóricas Com as amostras aqui apresentadas do delírio de Schreber cabe afastar sem problemas o temor de que justamente essa paranoia seria o caso negativo há muito procurado em que a sexualidade tem papel irrelevante O próprio Schreber se exprime repetidas vezes como se fosse um partidário de nosso 28275 preconceito Sempre menciona nervosismo e viciosidade erótica de uma só vez como se as duas coisas fossem inseparáveis23 Antes de sua doença o juizpresidente Schreber era um homem de moral severa P 281 Poucas pessoas diz ele e não vejo razão para duvidar disso cresceram com princípios morais tão rigorosos como eu e poucas como eu posso afirmar a meu próprio respeito se impuseram ao longo de toda a sua vida tanta contenção de acordo com esses princípios principalmente no que se refere à vida sexual Após o grave conflito espiritual que se exteriori zou nos fenômenos da doença mudou a atitude para com o erotismo Ele se apercebeu de que o cultivo da volúpia era para ele uma obrigação e que apenas cumprindoa poderia terminar a séria luta desencadeada no seu interior e assim acreditava ao seu redor A volúpia se tornou como lhe asseguravam as vozes temente a Deus p 285 e ele lamentou apenas não estar em con dições de dedicarse ao cultivo da volúpia o dia inteiro p 28524 Eis então o resumo das mudanças efetuadas em Schreber pela doença con forme as duas direções principais do seu delírio Antes ele se inclinava à ascese sexual e duvidava de Deus após a doença passou a crer em Deus e entregarse à volúpia Mas assim como a fé readquirida era de natureza singular também a fruição sexual por ele conquistada era de caráter bem insólito Já não era liberdade sexual masculina mas sensação sexual feminina ele se colocava fem ininamente em relação a Deus sentiase mulher de Deus25 Nenhuma outra parte do delírio é tratada pelo paciente de modo tão minu cioso tão insistente poderíamos dizer como a sua alegada transformação em mulher Os nervos por ele absorvidos tomaram em seu corpo a caracter ística de nervos de volúpia femininos dando a esse corpo um cunho feminino e à sua pele em especial a maciez própria do sexo feminino p 87 Se pressiona levemente com os dedos alguma parte de seu corpo ele sente tais nervos sob a pele como estruturas de fios ou cordões que se acham sobretudo no peito onde na mulher estão os seios p 277 Fazendo uma pressão sobre essa 29275 estrutura eu consigo especialmente se penso em coisas femininas chegar a uma sensação de volúpia correspondente à feminina Ele tem certeza de que tais estruturas nada mais eram originalmente do que nervos de Deus que di ficilmente teriam perdido a propriedade de nervos ao passarem para seu corpo p 279 Através do que chama de desenhar imaginar visualmente ele é capaz de proporcionar para si e para os raios a impressão de que seu corpo é dotado de seios e outros órgãos femininos Desenhar um traseiro feminino no meu corpo honni soit qui mal y pense tornouse para mim um hábito de tal forma que eu o faço quase involuntariamente toda vez que me inclino p 233 Ele chega a afirmar ousadamente que qualquer pessoa que me vir de pé diante do espelho com a parte superior do corpo desnudada sobretudo se a ilusão for corroborada por algum acessório feminino terá a impressão in dubitável de um torso feminino p 280 Ele desafia os médicos a que o exam inem para constatar que seu corpo inteiro da sola dos pés à cabeça é perpas sado por nervos de volúpia o que segundo afirma ocorre apenas no corpo da mulher enquanto no homem pelo que sabe tais nervos se acham apenas nos órgãos sexuais e próximos a eles p 274 A volúpia espiritual que se desen volveu em seu corpo graças a esse acúmulo de nervos é tão forte que basta um mínimo esforço da imaginação quando ele está na cama para obter um bem estar dos sentidos que constitui um bem nítido prenúncio do gozo sexual da mulher no coito p 269 Se recordarmos o sonho tido no período de incubação da doença antes da mudança para Dresden ficará evidente que o delírio da transformação em mulher não é mais que a realização do teor daquele sonho Na época ele se re voltou contra esse sonho com masculina indignação e também pelejou inicial mente contra sua efetivação durante a enfermidade vendo a transformação em mulher como um ultraje que lhe destinavam com intenções hostis Mas houve um momento novembro de 1895 em que começou a se reconciliar com tal transformação e a vinculou a elevadas intenções por parte de Deus Desde 30275 então inscrevi em minha bandeira com plena consciência o cultivo da feminil idade p 178 Depois ele chegou à firme convicção de que Deus mesmo para Sua própria satisfação exigia dele a feminilidade Mas assim que eu se assim posso me expressar estou a sós com Deus para mim é uma necessidade fazer por todos os meios imagináveis com todo o empenho da minha energia intelectual em particular com a minha imaginação com que os raios divinos tenham do modo mais con tínuo possível ou uma vez que isso o homem não pode fazer pelo menos em certos momentos do dia tenham a impressão de uma mulher que se regala de gozo voluptuoso p 281 Por outro lado Deus exige um gozo contínuo correspondente às con dições de existência das almas de acordo com a Ordem do Mundo é meu dever proporcionarlhe esse gozo na forma de um abundante desenvolvi mento de volúpia de alma se ao fazêlo tenho um pouco de prazer sensual sintome justificado a recebêlo a título de um pequeno ressarci mento pelo excesso de sofrimentos e privações que há anos me é imposto pp 2823 acredito até baseandome nas impressões que recebi que posso expressar a opinião de que Deus jamais passaria a uma ação de retirada que é sempre nociva a meu bemestar físico e seguiria a atração sem qualquer resistência e com constante uniformidade se me fosse possível desempenhar sempre o papel da mulher no amplexo sexual comigo mesmo sempre deixar meu olhar recair sobre seres femininos ver sempre imagens femininas etc pp 2845 As duas partes principais do delírio de Schreber a transformação em mulh er e a relação privilegiada com Deus achamse ligadas no seu sistema pela at itude feminina frente a de Deus Tornase uma tarefa inescapável para nós demonstrar uma relação genética essencial entre essas duas partes de outro 31275 modo cairíamos com nossas explicações sobre o delírio de Schreber na mesma situação ridícula que Kant narrou numa imagem famosa da Crítica da razão pura a do homem que segura um coador sob um bode enquanto outro ordenha o animal II TENTATIVAS DE INTERPRETAÇÃO A partir de dois lados poderíamos tentar avançar na compreensão dessa história clínica paranoica nela desvendando os conhecidos complexos e forças instintuais da vida psíquica Das manifestações delirantes do próprio doente ou dos fatores que desencadearam a doença O primeiro caminho parece tentador desde que C G Jung nos deu o bril hante exemplo de interpretação de um caso muito mais difícil de dementia prae cox que exibia sintomas bem mais distantes do normal26 Também a elevada inteligência e a franqueza do doente nos parecem facilitar a resolução do prob lema por essa via Não raro é ele próprio quem nos fornece a chave ao acres centar a uma afirmação delirante como que casualmente um comentário citação ou exemplo ou contestar expressamente uma analogia que ocorreu a ele mesmo Nesse último caso basta ignorar o invólucro negativo como es tamos habituados a fazer na técnica psicanalítica tomar o exemplo como algo real a citação ou prova como fonte e nos acharemos de posse da tradução que buscávamos do modo de expressão paranoico para o normal Talvez seja opor tuno dar uma ilustração mais precisa dessa técnica Schreber se queixa de ser incomodado pelos pássaros miraculados ou pássaros falantes aos quais at ribui uma série de características notáveis pp 20814 Está convencido de que são formados de restos dos vestíbulos do céu ou seja de almas humanas beatificadas e cheios de ptomaína foram incitados contra ele Foram postos em condição de falar locuções aprendidas de cor e sem sentido que lhes 32275 foram inculcadas Toda vez que descarregam nele a ptomaína que trazem em si isto é que desfiam todas as frases que de certo modo lhes foram incul cadas em certa medida se dissolvem na sua alma com as palavras Sujeito danado ou Danação as únicas palavras que ainda são capazes de usar para exprimir um sentimento autêntico Não compreendem o sentido das palavras que falam mas têm uma sensibilidade natural para a semelhança sonora que não precisa ser completa Para eles não importa muito se alguém diz Santiago ou Cartago Chinesentum ou Jesum Christum Abendrot ou Atemnot Ariman ou Ackermann etc p 210 Ao ler essa descrição não podemos nos furtar ao pensamento de que deve referirse a garotas que estando de humor crítico gostamos de comparar a gansos a que atribuímos de maneira nada galante um cérebro de pássaro e das quais dizemos não saberem falar senão frases decoradas e que revelam sua falta de cultura pela confusão entre palavras estrangeiras que soam similar mente A expressão Sujeito danado a única que levam a sério seria então o triunfo do homem jovem que soube impressionálas E eis que algumas pági nas à frente p 214 deparamos com frases de Schreber que asseguram tal in terpretação A um grande número das demais almas de pássaros atribuí por brincadeira nomes de moças para distinguilas umas das outras dado que to das elas por sua curiosidade sua tendência à volúpia etc podem ser de imedi ato comparadas a mocinhas Esses nomes de moças foram então em parte captados pelos raios divinos e conservados para designar as respectivas almas de pássaros Essa interpretação nada laboriosa dos pássaros miracula dos fornece uma indicação para se compreender os enigmáticos vestíbulos do céu Não desconheço que é preciso boa dose de tato e de reserva quando no tra balho analítico nos afastamos dos casos típicos de interpretação e que o 33275 ouvinte ou leitor nos segue apenas até onde lhe permite sua familiaridade com a técnica psicanalítica É inteiramente justificado então cuidar para que um maior emprego de perspicácia não venha acompanhado de um menor grau de certeza e credibilidade Está na natureza dessa matéria que um psicanalista ex agere na prudência o outro na ousadia Somente após muitas tentativas e mel hor conhecimento do assunto podemos traçar as balizas corretas da legítima interpretação Trabalhando no caso Schreber a reserva me foi ditada pela cir cunstância de que as resistências à publicação das Memórias tiveram o efeito de subtrair a nosso conhecimento boa parte do material talvez a mais relevante para a compreensão do caso27 Assim por exemplo o capítulo iii da obra começa com este anúncio promissor Trato agora principalmente de alguns acontecimentos relativos a outros membros de minha família que se podem pensar como relacionados com o suposto assassinato de alma e que de qualquer modo trazem todos consigo uma marca mais ou menos enigmática dificilmente explicável por outras experiências humanas p 33 o qual é ime diatamente seguido desta frase entre parênteses O conteúdo subsequente do capítulo está suprimido por ser impróprio para publicação De modo que ficarei satisfeito se conseguir relacionar o núcleo da formação delirante com alguma segurança à sua origem em motivos humanos conhecidos Com tal propósito exporei agora mais uma pequena parte da história clínica que não foi devidamente apreciada nos pareceres embora o doente mesmo fizesse tudo para pôla em primeiro plano Refirome à relação de Schreber com seu primeiro médico o Geheimrat prof Flechsig de Leipzig Já sabemos que no começo o caso Schreber tinha o cunho de um delírio de perseguição que somente a partir da reviravolta na doença da conciliação foi atenuado As perseguições tornamse então cada vez mais suportáveis na emasculação que o ameaça o que há de ignominioso é suplantado pelo propósito dela que se acha em conformidade com a Ordem do Mundo Mas o 34275 autor de todas as perseguições é Flechsig e ele continua a instigálas ao longo de toda a doença28 Quanto ao que seria o malfeito de Flechsig e seus motivos isso é relatado pelo doente com imprecisão e obscuridade características que podem ser vis tas como sinal de um trabalho de formação delirante particularmente intenso se for lícito julgar a paranoia conforme o modelo do sonho que é bem mais conhecido Flechsig cometeu ou tentou cometer um assassinato de alma no doente um ato que seria comparável aos esforços do Diabo e dos demônios em apoderarse de sua alma e que talvez já estivesse prefigurado em eventos que ocorreram entre membros das famílias Flechsig e Schreber há muito fale cidos29 Bem gostaríamos de saber mais sobre o significado deste assassinato da alma mas nisso as fontes novamente silenciam de maneira tendenciosa p 28 Em quê consiste a verdadeira essência do assassinato de alma e por assim dizer a sua técnica nada posso dizer além do já indicado Acrescentaria ainda apenas seguese um trecho inadequado para publicação Devido a esta omis são permanece para nós obscuro o que se entende por assassinato da alma Mencionaremos adiante a única indicação a esse propósito que escapou à censura Seja como for logo sucedeu uma evolução do delírio que afetou a relação do doente com Deus sem alterar aquela com Flechsig Se até então ele enxergava seu verdadeiro inimigo apenas em Flechsig ou melhor na alma deste considerando a Onipotência divina sua aliada não pôde afastar o pensamento de que o próprio Deus era cúmplice senão instigador do plano urdido contra ele p 59 Mas Flechsig continuou como o primeiro sedutor a cuja influência Deus se sujeitara p 60 Ele soube com toda a sua alma ou parte dela elevarse ao céu e tornarse sem morrer e sem purificação prévia chefe dos raios p 5630 A alma de Flechsig conservou esse papel mesmo após o doente trocar a clínica de Leipzig pelo sanatório de Pierson A influên cia do novo ambiente expressouse no fato de que a ela juntouse como sendo 35275 a alma de W a alma do enfermeirochefe no qual o doente reconheceu um exvizinho31 Então a alma de Flechsig introduziu o fracionamento de alma que assumiu grandes dimensões Num certo momento havia de quarenta a sessenta subdivisões da alma de Flechsig duas partes maiores da alma foram chamadas de Flechsig superior e Flechsig médio p 111 Do mesmo modo portouse a alma de W do enfermeirochefe Às vezes era engraçado ver como apesar da aliança entre elas as duas almas se hostilizavam a arrog ância professoral de uma e o orgulho aristocrático da outra repelindose mu tuamente p 113 Nas primeiras semanas da estadia final em Sonnenstein verão de 1894 entrou em cena a alma do novo médico dr Weber e logo de pois sucedeu a mudança na evolução do delírio que viemos a conhecer como conciliação No último período em Sonnenstein quando Deus começou a apreciálo melhor realizouse uma devastação entre as almas que se haviam multiplicado de maneira importuna em consequência da qual a alma de Flechsig subsistiu apenas em uma ou duas formas e a de W numa única forma Esta logo desa pareceu inteiramente as divisões da alma de Flechsig que aos poucos per deram sua inteligência e seu poder foram então designadas como o Flechsig posterior e o partido do como seja Que a alma de Flechsig manteve sua importância até o fim é algo que vemos pelo prólogo a Carta aberta ao sr conselheiro prof dr Flechsig Nesse singular documento Schreber expressa a firme convicção de que o médico que nele influía tinha as mesmas visões e os mesmos esclarecimentos sobre coisas suprassensoriais que o doente e assegura de antemão que um ataque à honra do médico se acha muito longe dos seus propósitos O mesmo é repetido de modo sério e enfático nos requerimentos do doente pp 343 445 vêse que ele se empenha em separar a alma Flechsig do homem vivo que tem esse nome o Flechsig dos delírios do Flechsig em carne e osso32 36275 Partindo de uma série de casos de delírio de perseguição eu e outros estu diosos achamos que a relação entre o doente e seu perseguidor pode ser resolvida mediante uma fórmula simples33 A pessoa a que o delírio atribui tamanho poder e influência para cujas mãos convergem todos os fios do com plô seria no caso de ser expressamente nomeada a mesma que antes da doença tinha significado igualmente grande para a vida afetiva do paciente ou um substituto facilmente reconhecível A importância afetiva é projetada para fora como poder externo e o tom afetivo é transformado no oposto aquele agora odiado e temido por sua perseguição seria alguém amado e venerado anteriormente A perseguição registrada no delírio serviria antes de tudo para justificar a mudança afetiva no doente Consideremos desse ponto de vista as relações que havia antes entre o pa ciente e seu médico e perseguidor Flechsig Já sabemos que em 1884 e 1885 Schreber sofreu a primeira doença nervosa que decorreu sem qualquer incid ente relativo ao domínio do sobrenatural p 35 Durante esse estado quali ficado de hipocondria que não parece ter ultrapassado o âmbito de uma neurose Flechsig foi o médico do doente Schreber passou naquela época seis meses na clínica universitária de Leipzig Somos informados de que tendo se restabelecido ele guardou boa lembrança de seu médico O essencial foi que eu finalmente fiquei curado depois de uma longa viagem de convalescença e portanto só podia estar cheio de sentimentos de viva gratidão para com o prof Flechsig os quais expressei também através de uma ulterior visita e de hon orários na minha opinião adequados É certo que nas Memórias Schreber faz o elogio do primeiro tratamento de Flechsig não sem algumas restrições mas isto se compreende pelo fato de sua atitude haver se transformado no oposto do que era antes A seguinte passagem vinda imediatamente após a que acabamos de citar testemunha o calor do sentimento inicial pelo médico que o tratara com sucesso Ainda mais profunda talvez foi a gratidão sentida por minha esposa que realmente reverenciava no dr Flechsig aquele que lhe 37275 devolveu seu marido e por esse motivo conservou durante anos seu retrato sobre sua escrivaninha p 36 Como não podemos penetrar nas causas da primeira doença cuja com preensão seria indispensável para o esclarecimento da segunda que foi mais grave temos agora de lidar de alguma forma com circunstâncias descon hecidas Sabemos que no tempo de incubação da doença entre a nomeação de Schreber e sua posse no cargo de junho a outubro de 1893 houve repetidos sonhos em que a anterior doença dos nervos retornava E certa vez num es tado entre o sono e a vigília veiolhe a sensação de que afinal devia ser bom ser uma mulher submetendose ao coito Estes sonhos e esta fantasia são narra dos por Schreber em sucessão imediata se os relacionamos também no seu conteúdo podemos inferir que com a lembrança da doença foi igualmente despertada a lembrança do médico e que a postura feminina da fantasia dizia respeito a ele desde o início Ou talvez o sonho de que a doença retornara tivesse o significado de um anseio Gostaria de ver Flechsig novamente Nossa ignorância do conteúdo psíquico da primeira doença não nos permite avançar nesta direção Talvez restasse desse estado uma terna devoção ao médico que por razões desconhecidas intensificouse a ponto de chegar a uma inclinação erótica Imediatamente verificouse uma indignada rejeição da fantasia feminina ainda vista como impessoal um verdadeiro protesto masculino nas palavras mas não no sentido de Alfred Adler34 Mas na séria psicose que logo irrompeu a fantasia feminina impôsse resolutamente e basta corrigir levemente a característica imprecisão paranoica da linguagem de Schreber para perceber que o doente temia ser abusado sexualmente pelo médico Um acesso de libido homossexual ocasionou então esse adoecimento o objeto da mesma foi provavelmente desde o início Flechsig e a revolta contra esse impulso libidinal produziu o conflito de que se originaram as mani festações patológicas 38275 Por um instante me detenho ante uma maré de objeções e reproches Quem conhece a psiquiatria atual deve estar preparado para ouvir coisas duras Não seria uma irresponsável leviandade uma indiscrição e uma calúnia acusar de homossexualidade um homem de elevados padrões éticos como o juizpresidente licenciado Schreber Não o doente mesmo comunicou à so ciedade sua fantasia de transformarse em mulher e no interesse de uma maior compreensão ignorou suscetibilidades pessoais Assim ele próprio deunos o direito de nos ocupar dessa fantasia e a tradução que dela fizemos para a ter minologia médica nada acrescentou ao seu conteúdo Sim mas ele estava doente quando fez isso seu delírio de transformação em mulher foi uma ideia patológica Não esquecemos isso Lidamos de fato apenas com o sentido e a origem dessa ideia patológica Invocamos a própria distinção do dr Schreber entre o homem Flechsig e a alma Flechsig De modo algum lhe re criminamos ter ou não ter impulsos homossexuais nem se esforçar por reprimilos Os psiquiatras deveriam finalmente aprender com esse doente quando ele em todo o seu delírio se empenha em não confundir o mundo do inconsciente e o mundo da realidade Mas em nenhum lugar ele diz expressamente que a temida transformação em mulher devia realizarse em proveito de Flechsig Exato e não é difícil compreender por que nas Memórias destinadas a publicação que não preten diam ofender o homem Flechsig Schreber evitasse uma tão forte acusação Mas a atenuação da linguagem que tal consideração provoca não vai tão longe que possa mascarar o verdadeiro sentido da incriminação Podese afirmar que ela vem claramente expressa numa passagem como a seguinte p 56 Desse modo foi preparada uma conspiração dirigida contra mim em março ou abril de 1894 que tinha como objetivo uma vez reconhecido o suposto caráter incurável da minha doença nervosa confiarme a um homem 39275 de tal modo que minha alma lhe fosse entregue ao passo que meu corpo devia ser transformado em um corpo feminino e como tal entregue ao homem em questão para fins de abuso sexual 35 É supérfluo observar que jamais se menciona alguma outra pessoa que pudesse tomar o lugar de Flechsig No final da estadia em Leipzig surge o temor de que ele seria jogado aos enfermeiros para fins de abuso sexual p 98 A atitude feminina para com Deus admitida sem receio na evolução pos terior do delírio faz desaparecer as últimas dúvidas quanto ao papel original mente atribuído ao médico A outra objeção a Flechsig ressoa fortemente ao longo do livro Ele teria procurado cometer assassinato de alma em Schreber Já sabemos que a natureza desse crime não é clara para o próprio doente mas guarda relação com temas delicados cuja publicação foi excluída capítulo iii Um único fio nos leva aqui adiante O assassínio de alma é ilustrado com referências ao teor lendário do Fausto de Goethe ao Manfred de Byron ao Freischütz de Weber etc p 22 e um desses exemplos é lembrado em outra passagem Ao discutir a cisão de Deus em duas pessoas Schreber identifica o seu Deus inferior e o superior com Arimã e Ormuz p 19 e pouco adi ante faz a observação casual O nome Arimã também aparece por exemplo no Manfred de Lord Byron em conexão com um assassinato de alma p 20 Na obra mencionada não há o que se possa equiparar à venda da alma por Fausto e também a expressão assassinato de alma procurei ali em vão mas o núcleo e o segredo do poema é um incesto entre irmãos Aqui se rompe novamente esse curto fio36 Não afastando a possibilidade de retomar outras objeções no curso deste trabalho consideramonos agora justificados em ver a irrupção de um impulso homossexual como o fundamento da doença de Schreber Harmonizase com essa hipótese um detalhe digno de nota do caso clínico que de outra forma não se explicaria Ele teve outro colapso nervoso decisivo para o curso da doença quando sua mulher tirou rápidas férias para descanso próprio Até 40275 então ela havia passado diariamente várias horas ao seu lado almoçando com ele Ao voltar após uma ausência de quatro dias achouo tristemente alterado de maneira tal que não queria mais vêla Foi particularmente decisiva para o meu colapso mental uma ocasião em que numa única noite tive uma insólita quantidade de poluções cerca de meia dúzia p 44 Compreendemos que a simples presença da mulher exercia efeito protetor diante da atração dos ho mens ao seu redor e se admitimos que nos adultos uma polução não pode ocorrer sem participação psíquica agregaremos às poluções daquela noite fantasias homossexuais que permaneceram inconscientes Por que essa irrupção de libido homossexual veio ao paciente bem naquele período entre a nomeação e a mudança de residência isso não podemos descobrir sem um conhecimento mais apurado de sua vida Em geral a pessoa oscila toda a vida entre sentimentos heterossexuais e homossexuais e a frus tração ou desilusão de um lado costuma empurrála para o outro Quanto a isso nada sabemos no caso de Schreber mas não queremos deixar de sublinhar um fator somático que bem poderia ser relevante Na época dessa enfermidade o dr Schreber tinha 51 anos de idade achavase naquele momento crítico para a vida sexual em que após uma fase de intensificação a função sexual da mul her experimenta um forte recuo algo de importância tal que parece não excluir tampouco o homem também para este há um climatério com as predis posições a doença que o acompanham37 Imagino como deve parecer dúbia a hipótese de que o sentimento de simpa tia de um homem por seu médico possa eclodir fortalecido oito anos depois38 e dar ensejo a uma tão grave perturbação psíquica Mas quando essa hipótese se nos recomenda de alguma forma acho que não temos o direito de afastála por sua inverossimilhança interna em vez de experimentar até onde ela nos conduz Tal inverossimilhança pode ser temporária e advir do fato de a hipótese questionável ainda não estar inserida em nenhum contexto de ser a primeira com que nos aproximamos do problema Para aqueles que não sabem 41275 manter suspenso o julgamento e consideram intolerável a nossa hipótese é fá cil indicarmos uma possibilidade que a livra de seu caráter espantoso O senti mento de simpatia para com o médico pode muito bem se originar de um pro cesso de transferência pelo qual um investimento afetivo do doente foi trans posto de alguém que lhe é importante para a pessoa indiferente na realid ade do médico de modo que este aparece escolhido como substituto como sucedâneo de alguém muito mais próximo ao doente Falando de modo mais concreto o doente foi lembrado pelo médico da pessoa do irmão ou do pai reencontrou nele o irmão ou o pai e então já não surpreende que em determ inadas circunstâncias o anseio por esse substituto reapareça nele e opere com uma veemência que pode ser entendida apenas por sua proveniência e im portância original Em prol dessa tentativa de explicação pareceume que valia a pena descobrir se o pai do paciente ainda vivia na época de sua doença se havia um irmão e se este contava entre os vivos ou entre os beatos na mesma época Então fiquei satisfeito quando após demorada procura nas Memórias en contrei uma passagem em que o doente elimina essa incerteza com as seguintes palavras p 442 A memória de meu pai e de meu irmão é para mim tão sagrada como etc Portanto na época da segunda doença talvez também da primeira os dois já estavam mortos Não continuaremos a nos opor creio à suposição de que a doença foi oca sionada pelo surgimento de uma fantasia de desejo feminina homossexual passiva que tomava por objeto a pessoa do médico Uma forte resistência a essa fantasia ergueuse do lado da personalidade de Schreber e a luta defens iva que talvez pudesse igualmente realizarse de outras formas escolheu por razões que desconhecemos a forma do delírio de perseguição O indivíduo ansiado tornouse o perseguidor o conteúdo da fantasia de desejo tornouse o conteúdo da perseguição Presumimos que essa concepção esquemática tam bém será aplicável em outros casos de delírio persecutório O que distingue o 42275 caso Schreber de outros contudo é a evolução que toma e as mudanças que no curso dela experimenta Uma dessas mudanças é a substituição de Flechsig pela superior figura de Deus de início ela parece indicar uma intensificação do conflito um aumento da insuportável perseguição mas logo se verifica que ela prepara a segunda transformação e com esta a solução do conflito Se era impossível conciliarse com o papel de mulher fácil perante o médico não encontra a mesma resistên cia do Eu a tarefa de conceder ao próprio Deus a volúpia que ele pede A emasculação já não é uma desgraça vem a ser conforme à Ordem do Mundo toma seu lugar num grande contexto cósmico serve ao fim de uma recriação da humanidade decaída Novos homens saídos do espírito de Schreber venerarão como seu ancestral esse que se crê perseguido Assim é encontrado um expediente que satisfaz as duas partes em conflito O Eu foi compensado pela megalomania enquanto a fantasia de desejo feminina se impôs tornouse aceitável A luta e a doença podem cessar Mas a consider ação pela realidade fortalecida nesse meiotempo obriga a adiar esta solução para o futuro remoto a contentarse com uma satisfação de desejo assintótica digamos39 A transformação em mulher deverá ocorrer algum dia até lá a pessoa do dr Schreber permanecerá indestrutível Nos manuais de psiquiatria falase frequentemente de uma evolução da mania de grandeza a partir da mania de perseguição que sucederia da maneira seguinte O doente primariamente vítima da ilusão de ser perseguido por enormes poderes sente a necessidade de explicar para si mesmo tal perseguição e assim chega à hipótese de ele próprio ser uma personalidade grande digna dessa perseguição O desencadeamento da mania de grandeza é atribuído a um processo que podemos chamar de racionalização na feliz ex pressão utilizada por Ernest Jones Mas para nós é um procedimento nada psicológico atribuir a uma racionalização consequências afetivas tão agudas e por isso queremos claramente diferenciar nossa opinião daquela que vimos nos 43275 manuais Não reivindicamos neste momento conhecer a fonte da mania de grandeza Retornando ao caso Schreber temos de reconhecer que o esclarecimento da transformação do seu delírio oferece dificuldades extraordinárias Por quais caminhos e com que meios se efetua a passagem de Flechsig a Deus De onde retira ele a mania de grandeza que de modo afortunado lhe permite conciliar se com a perseguição ou em termos analíticos torna possível acolher a fantas ia de desejo que seria reprimida Nisso as Memórias nos fornecem uma primeira indicação ao mostrar que para o doente Flechsig e Deus estão na mesma categoria Ele entreouve numa fantasia uma conversa de Flechsig com a esposa em que este se apresenta como Deus Flechsig e é por ela con siderado louco p 82 mas também nos chama a atenção o seguinte elemento da formação delirante Assim como o perseguidor se divide em Flechsig e Deus quando olhamos o delírio em seu conjunto o próprio Flechsig se de compõe mais tarde em duas personalidades no Flechsig superior e médio e também Deus no Deus inferior e superior A decomposição de Flechsig vai ainda mais longe nos últimos estágios da doença p193 Uma tal decom posição é bem característica da paranoia Esta decompõe assim como a histeria condensa Ou melhor a paranoia dissocia novamente as condensações e iden tificações realizadas na fantasia inconsciente O fato de essa decomposição repetirse várias vezes em Schreber exprime de acordo com C G Jung40 a importância da pessoa em questão Todas estas cisões de Flechsig e Deus em várias pessoas significam portanto o mesmo que a divisão do perseguidor em Flechsig e Deus São duplicações da mesma significativa relação como Otto Rank percebeu nas formações míticas41 Para interpretar todos esses elementos restanos também lembrar a decomposição do perseguidor em Flechsig e Deus e conceber essa decomposição como reação paranoide a uma identificação antes existente entre os dois ou ao fato de pertencerem à mesma série Se o perseguidor de Flechsig foi certa vez uma pessoa amada também 44275 Deus é apenas o retorno de uma outra semelhantemente amada embora provavelmente mais importante Continuando esse curso de pensamento que parece justificado devemos dizer que a outra pessoa não pode ser senão o pai e com isto Flechsig é clara mente relegado ao papel de irmão mais velho acreditamos42 A fantasia fem inina que tanta resistência despertou no doente teria raízes então no anseio por pai e irmão intensificado eroticamente O anseio por este último passou mediante transferência para Flechsig o médico e reconduzido ao primeiro atingiuse uma acomodação do conflito A introdução do pai no delírio de Schreber nos parecerá justificada apenas se for proveitosa para a nossa compreensão ajudandonos a esclarecer detalhes ainda obscuros do delírio Bem nos lembramos dos traços peculiares encontra dos no Deus de Schreber e no relacionamento deste com seu Deus Era a mais singular mistura de crítica blasfema e indignação rebelde com respeitosa de voção Deus que havia sucumbido à corruptora influência de Flechsig era in capaz de aprender algo através da experiência não conhecia os seres humanos vivos porque sabia lidar apenas com cadáveres e manifestava seu poder em uma série de milagres que embora impressionassem eram insípidos e tolos Ora o pai do juizpresidente Schreber não fora um homem insignificante Era o dr Daniel Gottlob Moritz Schreber cuja memória é ainda hoje conser vada pelas associações Schreber particularmente numerosas na Saxônia um médico cujos esforços pelo desenvolvimento harmonioso da juventude pela ação conjunta de educação familiar e escolar pela utilização de cuidado cor poral e trabalho físico para aumentar o grau de saúde tiveram efeito duradouro sobre os seus contemporâneos43 Seu renome como criador da ginástica terapêutica na Alemanha é evidenciado pelas muitas edições que sua Ärztliche Zimmergymnastik Ginástica médica caseira teve entre nós Um pai como esse certamente se prestava à transfiguração em Deus na terna lembrança do filho ao qual logo foi arrebatado pela morte Em nosso sentimento há um abismo insuperável entre a personalidade de Deus e a de 45275 algum outro ser ainda que do indivíduo mais formidável Mas devemos lem brar que nem sempre foi assim Os deuses dos povos antigos achavamse bem mais próximos dos homens Entre os romanos o imperador que morria era normalmente divinizado Vespasiano homem prático e sóbrio exclamou em seu primeiro ataque de doença Ai de mim acho que vou me tornar um deus44 Conhecemos bem a atitude infantil do garoto em relação ao pai consiste da mesma aliança de reverente submissão e veemente indignação que vimos no relacionamento de Schreber com seu Deus é o modelo inconfundível fielmente copiado desse último Mas que o pai de Schreber fosse um médico um médico de alto renome e certamente venerado por seus pacientes explica os traços de caráter mais marcantes que Schreber enfatiza criticamente no seu Deus Há maior expressão de escárnio por tal médico do que afirmar que ele nada entende de homens vivos e sabe lidar apenas com cadáveres É da natureza de Deus certamente fazer milagres mas também um médico faz mil agres como dele afirmam seus clientes entusiasmados realiza curas miraculo sas Quando justamente esses milagres aos quais a hipocondria do doente forneceu o material revelamse pouco dignos de fé absurdos e em certa medida tolos somos lembrados da afirmação feita na Interpretação dos sonhos de que o absurdo no sonho exprime escárnio e desprezo45 Portanto ele serve aos mesmos fins na paranoia Quanto a outras objeções por exemplo de que Deus nada aprende por experiência é plausível imaginar que deparamos com o mecanismo da réplica infantil46 que devolve inalterada uma recriminação re cebida à pessoa que a fez similarmente as vozes mencionadas à página 23 levam a supor que a incriminação de assassínio de alma dirigida a Flechsig era originalmente uma autoacusação47 Animados pelo fato de a profissão paterna ajudar a esclarecer as particular idades do Deus de Schreber podemos agora ousar explicar através de uma in terpretação a singular composição do ser divino O mundo divino consiste já 46275 sabemos dos reinos anteriores de Deus também chamados vestíbulos do céu que contêm as almas dos falecidos e do Deus inferior e Deus superi or conjuntamente chamados de reinos posteriores de Deus p 19 Em bora saibamos que não poderemos resolver uma condensação aqui presente queremos utilizar a pista anteriormente obtida de que os pássaros miracula dos revelados como sendo meninas derivam dos vestíbulos do céu para reivindicar os reinos anteriores de Deus e vestíbulos do céu como símbolos da feminilidade e os reinos posteriores de Deus como símbolos da masculinidade Caso soubéssemos com certeza que o irmão falecido de Schreber era mais velho que ele poderíamos enxergar na decomposição de Deus em um Deus inferior e um superior a expressão da lembrança de que após a morte pre matura do pai o irmão mais velho assumiu o papel deste Nesse contexto enfim desejo mencionar o Sol que com seus raios ad quiriu tamanha importância na expressão do delírio Schreber tem uma relação toda peculiar com o Sol Este lhe fala em linguagem humana revelandose como ser animado ou como órgão de um ser ainda mais elevado que se acha por trás dele p 9 Um parecer médico nos informa que Schreber vocifera contra ele com palavras de insulto e ameaça p 38348 que lhe grita que ele tem de se esconder à sua presença Ele próprio comunica que o Sol empalidece diante de si49 A maneira como o Sol está ligado a seu destino se evidencia no fato de que apresenta significativas mudanças na aparência tão logo sucedem transformações em Schreber como nas primeiras semanas de sua estadia em Sonnenstein p 135 Schreber nos facilita a interpretação desse seu mito solar Ele identifica o Sol diretamente com Deus ora com o deus inferior Arimã50 ora com o superior p 137 No dia seguinte vi o deus superior Ormuz dessa vez não com meu olho espiritual mas com meu olho carnal Era o Sol não o Sol em sua aparência comum conhecida por todos os homens 47275 mas etc É algo coerente portanto que ele não o trate de forma diferente da que trata o próprio Deus Não sou responsável pela monotonia das soluções psicanalíticas quando afirmo que o Sol não é outra coisa do que um símbolo sublimado do pai O simbolismo aqui ultrapassa o gênero gramatical ao menos em alemão pois na maioria das línguas o Sol é masculino Sua contrapartida nesse reflexo do casal de genitores é a Mãe Terra como geralmente a designam Com fre quência achamos confirmação disso ao decompor psicanaliticamente fantasias patogênicas de neuróticos Aludirei apenas brevemente à relação com mitos cósmicos Uma de minhas pacientes que cedo havia perdido o pai e buscava encontrálo em tudo de grande e sublime da natureza fezme considerar provável que o hino Antes do nascer do Sol de Nietzsche seja expressão da mesma nostalgia51 Um outro paciente sucumbindo à neurose após a morte do pai teve o primeiro ataque de medo e vertigem quando trabalhava no jardim sob o sol com uma pá e ele mesmo sustentou a interpretação de que havia se angustiado porque seu pai o observara enquanto ele laborava sua mãe com um instrumento agudo Quando arrisquei uma prosaica objeção ele tornou mais plausível sua concepção ao informar que estando o pai ainda vivo ele já o comparava ao Sol certamente com intenção paródica Sempre que lhe pergun tavam para onde ia seu pai no verão ele respondia com as altissonantes palav ras do Prólogo no céu E a jornada prescrita Ele perfaz com andar de trovão Por indicação médica todo ano o pai se dirigia à estação de águas de Mari enbad Nesse paciente a postura infantil em relação ao pai se desenvolveu em dois tempos Enquanto o pai vivia plena revolta e clara discórdia imediata mente após sua morte uma neurose baseada em submissão escrava e obediên cia a posteriori 48275 Portanto também no caso Schreber nos achamos no familiar terreno do complexo paterno52 Se a luta com Flechsig revelouse para o doente um con flito com Deus temos de traduzilo num conflito infantil com o pai amado cu jas particularidades que não conhecemos determinaram o conteúdo do delírio Nada falta do material que normalmente é descoberto pela análise em casos assim tudo é representado por algum indício Nessas vivências infantis o pai surge como destruidor da satisfação buscada geralmente autoerótica que depois é frequentemente substituída na fantasia por outra menos inglória53 Na fase final do delírio de Schreber o impulso sexual infantil tem um grande triunfo a volúpia tornase temente a Deus o próprio Deus o pai não cansa de exigila do doente A mais temida ameaça do pai a castração realmente proporcionou o material para a fantasiadesejo de transformação em mulher primeiro combatida e depois aceita É nítida a alusão a uma culpa coberta pela formação substituta assassinato de alma O enfermeirochefe é visto como idêntico ao vizinho v W que segundo as vozes acusarao fal samente de onanismo p 180 As vozes dizem como que fundamentando a ameaça de castração p 127 Você deve ser representado como alguém en tregue à devassidão voluptuosa54 Por fim a coação de pensar a que se sub mete o doente p 47 porque supõe que Deus acreditará que ele tornouse um imbecil e se afastará dEle caso cesse de pensar por um momento Isso é uma reação que conhecemos por outras vias à ameaça ou temor de perder a razão55 graças à atividade sexual particularmente ao onanismo Dado o grande número de ideias delirantes hipocondríacas que o doente desenvolveu56 talvez não devamos atribuir maior peso ao fato de algumas delas coincidirem literal mente com os temores hipocondríacos dos onanistas57 Para quem for mais ousado que eu na interpretação ou tendo relações com a família Schreber souber mais acerca de pessoas e de pequenos incidentes não será difícil fazer remontar numerosos detalhes do delírio de Schreber a suas fontes descobrindolhes a significação apesar da censura a que as 49275 Memórias foram submetidas Temos necessariamente de nos satisfazer com esse vago esboço do material infantil com que o distúrbio paranoico repres entou o conflito Talvez me seja permitido acrescentar algo sobre as bases do conflito desen cadeado em relação à fantasia de desejo feminina Sabemos ser nossa tarefa es tabelecer um nexo entre o surgimento de uma fantasia de desejo e uma frus tração uma privação na vida real Ora o próprio Schreber admite uma tal privação Seu casamento de resto apresentado como feliz não lhe trouxe a bênção de filhos principalmente a de um filho homem que o consolasse pela perda de pai e irmão e sobre o qual pudesse verter a afeição homossexual in satisfeita58 Sua linhagem ameaçava se extinguir e parece que ele tinha bastante orgulho do berço e da família Os Flechsigs e os Schrebers perten ciam conforme a expressão empregada à mais alta nobreza celeste os Schrebers particularmente ostentavam o título de margraves da Toscana e da Tasmânia de acordo com um hábito das almas de se adornar com títulos terrenos pomposos p 2459 Depois de séria luta interior o grande Napoleão divorciouse de Josefina porque ela não podia dar continuidade à dinastia60 O dr Schreber pode haver formado a fantasia de que se fosse uma mulher teria mais êxito na geração de filhos e assim achou o caminho para colocarse de volta na posição feminina ante o pai dos primeiros anos de sua infância O delírio sempre adiado para o futuro de que com a sua emasculação o mundo seria povoado por novos homens saídos do espírito de Schreber p 288 destinavase igualmente portanto a remediar sua falta de filhos Se forem cri anças os homúnculos que o próprio Schreber acha tão enigmáticos será compreensível que eles se achem reunidos na sua cabeça em grande número p 158 são realmente filhos de seu espírito61 50275 III SOBRE O MECANISMO DA PARANOIA Até agora tratamos do complexo paterno que domina o caso Schreber e da fantasia ou desejo central da doença Em tudo isso nada caracteriza apenas o quadro clínico da paranoia não há nada que não pudéssemos achar em outros casos de neurose que neles não tenhamos realmente achado Temos de buscar a especificidade da paranoia ou da demência paranoica em outra coisa na forma peculiar assumida pelos sintomas e nossa expectativa é de que o respon sável por ela não serão os complexos mas o mecanismo da formação de sinto mas ou da repressão Diríamos que o caráter paranoico está em que para defenderse de uma fantasia de desejo homossexual reagese precisamente com um delírio persecutório de tal espécie É tanto mais significativo então que a experiência nos leve a atribuir justa mente à fantasia de desejo homossexual uma relação íntima e talvez constante com o quadro clínico da doença Desconfiando de minha própria experiência nos últimos anos investiguei precisamente essa questão com meus amigos C G Jung de Zurique e S Ferenczi de Budapeste em bom número de casos de paranoia observados por eles O material de investigação foram as histórias clínicas tanto de homens como de mulheres de raça profissão e nível social di versos e com surpresa vimos que no centro de todos esses casos reconheciase claramente a defesa contra o desejo homossexual que todos eles haviam malo grado na superação da sua homossexualidade inconscientemente reforçada62 Não era realmente o que esperávamos Pois justamente na paranoia a etiologia sexual não é óbvia em sua motivação se destacam sobretudo para o homem desprezos e agravos sociais Basta aprofundarmonos um pouco no entanto para reconhecer nessas injúrias sociais como o fator verdadeiramente atuante a participação dos componentes homossexuais da vida emocional Enquanto o 51275 comportamento normal nos impede um vislumbre das profundezas da vida psíquica podese duvidar que as relações emocionais do indivíduo com os outros na vida social tenham algo a ver com o erotismo de fato ou genetica mente O delírio é que regularmente põe a nu tais relações e faz remontar o sentimento social a suas raízes no desejo erótico grosseirosensual Também o dr Schreber cujo delírio culminou numa fantasia homossexual inconfundível não apresentara enquanto estava são conforme todos os relatos nen hum indício de homossexualidade no sentido vulgar Procurarei mostrar acreditando que isso não é supérfluo ou injusti ficável que o nosso atual conhecimento dos processos psíquicos adquirido mediante a psicanálise já nos permite compreender o papel do desejo homos sexual na formação da paranoia Pesquisas recentes63 chamaram nossa atenção para um estágio no desenvolvimento da libido pelo qual se passa no caminho do autoerotismo ao amor objetal64 Ele foi chamado de Narzissismus eu prefiro o termo Narzißmus talvez menos correto porém mais curto e que soa melhor Ele consiste no fato de o indivíduo em desenvolvimento que unificou seus in stintos sexuais que agem de forma autoerótica a fim de obter um objeto de amor primeiramente toma a si mesmo a seu próprio corpo como objeto de amor antes de passar à escolha de uma outra pessoa como objeto Uma tal fase mediadora entre autoerotismo e escolha objetal talvez seja imprescindível nor malmente parece que muitas pessoas ficam nela retidas por um tempo insolita mente longo e que muita coisa desse estado persiste em estágios posteriores de desenvolvimento Nesse Eumesmo tomado como objeto de amor os genitais podem já ser a coisa principal O prosseguimento desse caminho leva à escolha de um objeto com genitais semelhantes ou seja através da escolha objetal ho mossexual até à heterossexualidade Supomos que as pessoas que depois se tornam homossexuais manifestos nunca se libertaram da exigência de o objeto ter genitais como os seus nisso têm considerável influência as teorias sexuais infantis que inicialmente atribuem os mesmos genitais a ambos os sexos 52275 Uma vez alcançada a escolha heterossexual de objeto as tendências homos sexuais não são abolidas ou suspensas mas apenas desviadas da meta sexual e dirigidas para novas aplicações Juntamse a partes dos instintos do Eu e como componentes nelas apoiados constituem os instintos sociais representando assim a contribuição do erotismo à amizade à camaradagem ao sentido comunitário e ao amor pelos seres humanos em geral Dificilmente se de preende a partir das relações sociais normais entre os indivíduos a magnitude dessas contribuições oriundas de fontes eróticas com inibição da meta sexual Mas convém observar que justamente homossexuais manifestos e entre eles os que rejeitam as práticas sensuais destacamse pela intensa participação nos interesses gerais da humanidade surgidos mediante a sublimação do erotismo Nos Três ensaios de uma teoria da sexualidade expressei a opinião de que cada etapa no desenvolvimento da psicossexualidade traz uma possibilidade de fixação e com isso um ponto de predisposição Pessoas que não se despren deram inteiramente do estágio do narcisismo ou seja que têm ali uma fixação que pode atuar como predisposição à doença achamse expostas ao perigo de que um grande fluxo de libido não encontrando outro escoamento submeta os seus instintos sociais à sexualização fazendo assim recuar as sublimações conquistadas no curso do desenvolvimento Pode conduzir a um resultado desses tudo o que produz uma corrente libidinal que retrocede regressão tanto um fortalecimento colateral graças à decepção com a mulher um repres amento direto devido a fracassos nas relações sociais com os homens ambos casos de frustração como também uma elevação geral da libido muito forte para que pudesse achar saída pelos caminhos já abertos e que por isso rompe a barragem nos pontos fracos da construção Como vemos em nossas análises que os paranoicos buscam defenderse de tal sexualização de seus invest imentos instintuais sociais somos obrigados a supor que o ponto fraco de seu desenvolvimento deve estar no trecho entre autoerotismo narcisismo e ho mossexualidade que ali se acha a sua predisposição à doença predisposição 53275 talvez suscetível de uma definição mais precisa Teríamos de atribuir tal pre disposição à dementia praecox de Kraepelin ou esquizofrenia segundo Bleuler e esperamos obter elementos que nos permitam fundamentar as difer enças quanto a forma e desenlace entre as duas doenças com as diferenças re spectivas na fixação predisponente Se assim ousamos sustentar que o desejofantasia de amar um homem é o cerne do conflito na paranoia masculina não podemos esquecer que a confirm ação de uma hipótese tão relevante há de pressupor a investigação de grande número de todas as formas de paranoia Devemos estar preparados portanto para eventualmente limitar nossa afirmação a um único tipo da doença Mas não deixa de ser notável que as principais formas conhecidas da paranoia pos sam todas elas ser apresentadas como contradições à frase Eu um homem amo ele um homem e que de fato esgotem todas as formulações possíveis da contradição A afirmação Eu amo ele um homem é contrariada pelo a Delírio de perseguição pois este proclama Eu não o amo eu o odeio Essa contradição que no inconsciente65 não poderia ter outra expressão não pode tornarse consciente dessa forma no paranoico O mecanismo da formação de sintoma da paranoia requer que a percepção interna o sentimento seja substituída por uma percepção externa Assim a frase Eu o odeio se transforma por projeção nesta outra Ele me odeia me persegue o que então justifica que eu o odeie O sentimento in consciente impulsor aparece como dedução de uma percepção externa Eu não o amo eu o odeio porque e l e m e p e r s e g u e A observação não deixa dúvida de que o perseguidor não é outro senão o que foi amado antes b Outro elemento a que se recorre para a contradição é a erotomania que sem essa concepção permaneceria ininteligível Eu não o amo eu amo a ela 54275 E a mesma compulsão a projetar imprime esta mudança na frase Eu noto que ela me ama Eu não o amo é a ela que eu amo porque e l a m e a m a Muitos casos de erotomania podem dar a impressão de serem fixações het erossexuais exageradas ou distorcidas sem algum outro fundamento caso não se preste atenção ao fato de que essas paixões não têm início com a percepção interna de amar mas com aquela de ser amado vinda do exterior Nessa forma de paranoia a proposição intermediária Eu amo ela pode também tornarse consciente porque sua contradição à primeira frase não é frontal não é tão in suportável como aquela entre amar e odiar É sempre possível amar a ela além de a ele Desse modo pode acontecer que a frase substituta alcançada por pro jeção Ela me ama dê novamente lugar à proposição em língua fundament al Eu amo ela c Ainda um terceiro modo possível de contradição seria o delírio ci umento de que podemos estudar formas características no homem e na mulher α O delírio de ciúmes do alcoólatra O papel do álcool nessa afecção é para nós compreensível em todo aspecto Sabemos que essa bebida anula inib ições e desfaz sublimações Não é raro o homem ser impelido para o álcool por uma decepção com a mulher o que significa geralmente que ele vai para a taberna e para a companhia dos homens que lhe dão a satisfação emocional que lhe faltou em casa com a mulher Se esses homens tornamse objeto de um mais forte investimento libidinal em seu inconsciente ele se defende disso me diante a terceira forma de contradição Não sou eu que amo um homem ela o ama e desconfia da mulher em relação a todos os homens que esteve inclinado a amar A distorção através da projeção deixa de ocorrer aqui pois com a mudança do sujeito que ama o processo é lançado para fora do Eu Que a mulher ame os homens continua sendo algo da percepção externa que o indivíduo não 55275 ame mas odeie que não ame esta mas aquela pessoa são fatos da percepção interna β De modo inteiramente análogo produzse a paranoia ciumenta na mulher Não sou eu que amo as mulheres ele as ama A mulher ciumenta desconfia do marido em relação a todas as mulheres que a ela mesma agradam em virtude do seu narcisismo exacerbado predisponente e de sua homossexu alidade A influência da época da vida em que sucedeu a fixação evidenciase de modo claro na escolha dos objetos amorosos imputados ao marido são com frequência pessoas velhas inadequadas para um amor real revivescên cias das babás criadas amigas de infância ou irmãs que eram suas concor rentes diretas Seria de crer que uma frase composta de três termos como Eu o amo permitisse somente três espécies de contradição O delírio de ciúmes contradiz o sujeito o delírio de perseguição contradiz o verbo a erotomania o objeto No entanto é realmente possível uma quarta espécie de contradição a rejeição completa de toda a frase Eu não amo absolutamente não amo ninguém e essa frase parece psicolo gicamente equivalente à seguinte já que em algum lugar é preciso pôr sua li bido Eu amo apenas a mim Tal espécie de contradição nos proporciona o delírio de grandeza que podemos apreender como uma superestimação sexual do próprio Eu e assim pôr ao lado da conhecida superestimação do objeto amoroso66 Não é algo sem importância para outros aspectos da teoria da paranoia que se possa constatar um elemento de delírio de grandeza na maioria das out ras formas de doença paranoide É lícito supormos que o delírio de grandeza é em todo caso infantil e que na sua evolução posterior é sacrificado à so ciedade assim como nenhuma outra influência o reprime de maneira tão in tensa como uma paixão que se apodera fortemente do indivíduo 56275 Pois onde o amor desperta morre o Eu o sombrio déspota67 Após essa discussão sobre a inesperada importância do desejofantasia ho mossexual na paranoia voltemos aos dois fatores nos quais localizamos inicial mente o que é característico dessa forma de doença o mecanismo da formação de sintomas e o da repressão De início não estamos autorizados a supor que esses dois mecanismos sejam idênticos que a formação de sintomas proceda pela mesma via que a repressão o mesmo caminho sendo percorrido em direções opostas Semel hante identidade é também pouco provável mas vamos nos abster de qualquer afirmativa antes da investigação Na formação de sintomas da paranoia é notável antes de tudo a caracter ística que recebe o nome de projeção Uma percepção interna é suprimida e em substituição seu conteúdo vem à consciência após sofrer certa deform ação como percepção de fora Essa deformação consiste no delírio perse cutório numa transformação do afeto o que deveria ser sentido internamente como amor é percebido como ódio vindo do exterior Estaríamos inclinados a ver neste singular processo a coisa mais significativa da paranoia e absoluta mente patognomônico no que diz respeito a ela se não nos lembrássemos oportunamente que 1 a projeção não tem o mesmo papel em todas as formas da paranoia e que 2 ela não aparece somente na paranoia mas também em outras condições da vida psíquica e inclusive tem uma participação regular em nossa atitude para com o mundo externo Quando não procuramos as causas primeiras de certas sensações em nós mesmos como fazemos com outras mas as situamos fora também este processo normal recebe o nome de projeção Assim advertidos de que o entendimento da projeção tem a ver com problemas psicológicos mais gerais resolvemos guardar o estudo da projeção e com isso o do mecanismo da formação paranoica para outro contexto e voltamonos para a questão de que ideia podemos fazer do mecanismo da 57275 repressão na paranoia Já antecipo para justificar nossa renúncia momentânea que o modo do processo de repressão ligase mais intimamente à história do desenvolvimento da libido e à predisposição que ela traz do que o modo da formação de sintoma Na psicanálise fazemos derivar os fenômenos patológicos da repressão de maneira bastante geral Se examinarmos atentamente o que chamamos de repressão encontraremos motivo para decompor o processo em três fases que permitem uma boa distinção conceitual 1 A primeira fase consiste na fixação que precede e é condição para toda repressão O fato da fixação pode ser enunciado da seguinte forma um in stinto ou parte de um instinto não acompanha o desenvolvimento previsto como normal e graças a essa inibição no desenvolvimento permanece num estágio infantil A corrente libidinal em questão se comporta diante das form ações psíquicas posteriores como se fizesse parte do sistema do inconsciente como reprimida Já dissemos que em tais fixações dos instintos se acha a pre disposição para a futura doença e podemos acrescentar sobretudo a determ inação para o desfecho da terceira fase da repressão 2 A segunda fase da repressão é a repressão propriamente dita que até agora focalizamos preferencialmente Ela vem dos sistemas mais desen volvidos do Eu capazes de consciência e pode ser descrita na verdade como uma póspressão Dá impressão de algo essencialmente ativo enquanto a fixação apresentase de fato como um passivo ficar para trás Experimentam repressão os derivados psíquicos dos instintos que primariamente ficaram para trás quando o seu fortalecimento acarreta o conflito entre eles e o Eu ou os instintos sintonizados com o Eu ou as tendências psíquicas contra as quais se ergue por outros motivos uma forte aversão Mas essa aversão não teria por consequência a repressão caso não se produzisse um nexo entre as tendências desagradáveis a serem reprimidas e aquelas já reprimidas Os dois casos que aqui separamos podem na realidade ser menos claramente diferenciados e 58275 distinguirse apenas por uma contribuição maior ou menor dos instintos primariamente reprimidos 3 A terceira fase a mais importante no que toca os fenômenos patológicos é a do fracasso da repressão a da irrupção do retorno do reprimido Essa ir rupção ocorre a partir do ponto de fixação e consiste numa regressão do desen volvimento da libido até esse ponto Já mencionamos a multiplicidade de fixações são tantas quanto os estágios no desenvolvimento da libido Devemos estar preparados para semelhante multiplicidade dos mecanismos da repressão propriamente dita e daqueles da irrupção ou da formação de sintomas e já agora talvez possamos conjecturar que não será possível ligar todas essas multiplicidades apenas ao desenvolvi mento da libido É fácil perceber que com essa discussão tangenciamos o problema da escolha da neurose que porém não pode ser atacado sem trabalhos prelimin ares de outra espécie Lembremonos que já abordamos a fixação deixando para depois a formação de sintomas e limitemonos a averiguar se a análise do caso Schreber fornece alguma indicação quanto ao mecanismo de repressão propriamente dita vigente na paranoia No auge da doença formouse em Schreber sob influência de visões em parte de natureza terrificante e em parte de uma grandiosidade indescritível p 73 a convicção de que haveria uma grande catástrofe um fim de mundo Vozes lhe diziam que estava perdida a obra de um passado de 14 mil anos p 71 que a Terra duraria apenas mais 212 anos e na última parte de sua estadia na clínica de Flechsig ele achava que esse período já havia terminado Ele próprio era o único ser humano verdadeiro que ainda restava e as poucas figuras humanas que ele ainda via o médico os enfermeiros e pacientes afirmava serem homens feitos às pressas produzidos por milagre De vez em quando a corrente oposta abria caminho foilhe mostrada uma folha de jornal com a notícia de sua própria morte p 81 ele mesmo existira numa 59275 forma inferior e nela expirara suavemente p 73 Mas a configuração de delírio que mantinha o Eu e sacrificava o mundo revelouse de longe a mais forte Sobre as causas dessa catástrofe ele imaginou coisas diversas ora pensava numa glaciação devida a um retraimento do Sol ora numa destruição por terremotos em que como vidente ele tinha um papel fundamental semelhante ao que um outro vidente teria tido no terremoto de Lisboa em 1755 p 91 Ou então Flechsig era o culpado tendo espalhado medo e horror entre os homens com suas artes mágicas tendo destruído as bases da religião e causado a disseminação de um nervosismo e uma imoralidade gerais em con sequência da qual pestes devastadoras se abateram sobre os homens p 91 De todo modo o fim do mundo era consequência do conflito que irrompera entre ele e Flechsig ou segundo a etiologia adotada na segunda fase do delírio da ligação indissolúvel que se formara entre ele e Deus ou seja o resultado ne cessário de sua doença Anos depois quando o dr Schreber voltou à sociedade e não pôde descobrir nos livros partituras musicais e outros objetos que lhe retornavam às mãos nada compatível com a hipótese de um grande abismo temporal na história da humanidade admitiu que sua concepção não mais se sustentava não posso deixar de reconhecer que do ponto de vista externo tudo permaneceu como antes Mais adiante se discutirá se no entanto não se verificou uma profunda modificação interna p 85 Ele não podia duvidar que o mundo acabara durante a sua doença e o que via então já não era o mesmo mundo Em outras histórias clínicas também não é rara uma catástrofe mundial as sim durante o tumultuoso estágio da paranoia68 Com base em nossa con cepção de investimento libidinal e guiandonos pelo julgamento das outras pessoas como homens feitos às pressas não nos será difícil a explicação des sas catástrofes69 O doente retirou das pessoas de seu ambiente e do mundo ex terior o investimento libidinal que até então lhes dirigira com isso tudo para ele tornouse indiferente e sem relação e tem de ser explicado numa 60275 racionalização secundária como produzido por milagre feito às pressas O fim do mundo é a projeção dessa catástrofe interior seu mundo subjetivo acabou depois que retirou dele o seu amor70 Após a maldição com que Fausto se desliga do mundo o Coro dos Espíri tos canta Ai Com punho poderoso Destruíste O mundo belo Ele cai desmorona Um semideus o destroçou Mais poderoso Dos filhos da Terra Mais esplêndido Constróio de novo Em teu seio reconstróio71 E o paranoico o reconstrói não mais esplêndido é certo mas ao menos de forma a nele poder viver Ele o constrói mediante o trabalho de seu delírio O que consideramos produto da doença a formação delirante é na realidade tentativa de cura reconstrução Após a catástrofe a reconstrução tem sucesso maior ou menor nunca total nas palavras de Schreber uma profunda modificação interna verificouse no mundo Mas o sujeito readquiriu uma relação com as pessoas e coisas do mundo com frequência muito intensa ainda que possa ser hostil quando era antes afetuosa Diremos então que o processo de repressão consiste num desprenderse da libido em relação a pessoas e coisas antes amadas Ele se realiza em silêncio não temos notícia dele somos obrigados a inferilo dos eventos consecutivos O que se faz notar flagrantemente para 61275 nós é o processo de cura que desfaz a repressão e reconduz a libido às pessoas por ela abandonadas Ele se realiza na paranoia pela via da projeção Não foi correto dizer que a sensação interiormente suprimida é projetada para fora vemos isto sim que aquilo interiormente cancelado retorna a partir de fora A investigação minuciosa do processo de repressão que adiamos para outra oportunidade nos trará certeza quanto a isso Mas agora não deixaremos de estar satisfeitos pelo fato de a compreensão recémadquirida nos levar a uma série de novas discussões 1 A primeira nos diz que um desprendimento da libido pode não ocorrer exclusivamente na paranoia nem ter consequências tão desastrosas ali onde ocorrer mais É bem possível que o desprendimento da libido seja o mecan ismo essencial e regular de toda repressão nada saberemos a respeito en quanto outras enfermidades da repressão não forem submetidas a investigação análoga É certo que na vida psíquica normal e não só no luto realizamos constantemente esses desprendimentos da libido em relação a pessoas ou out ros objetos sem adoecer por isso Quando Fausto se desliga do mundo com aquelas maldições disso não resulta uma paranoia ou alguma neurose mas um estado de ânimo especial Portanto em si o desprendimento da libido não pode ser o fator psicogênico na paranoia fazse necessária uma característica espe cial que distinga a retração paranoica da libido de outras espécies do mesmo acontecimento Não é difícil sugerir qual pode ser essa característica Que emprego se faz da libido liberada mediante esse desprendimento Normal mente buscamos de imediato um substituto para a conexão anulada até esse substituto ser encontrado mantemos a libido livre flutuando na psique onde ela produz tensões e influi no ânimo na histeria o montante de libido liberado se transforma em inervações somáticas ou em angústia Na paranoia no ent anto há indícios clínicos de que a libido retirada ao objeto recebe um emprego especial Lembramos que a maioria dos casos de paranoia exibe algum delírio 62275 de grandeza e que o delírio de grandeza por si só pode constituir uma para noia Disso inferimos que na paranoia a libido liberada se volta para o Eu é utilizada para o engrandecimento do Eu Com isso atingese novamente o es tágio do narcisismo conhecido no desenvolvimento da libido no qual o próprio Eu era o único objeto sexual Por causa desse testemunho clínico supomos que os paranoicos trazem uma fixação no narcisismo e dizemos que o recuo da homossexualidade sublimada ao narcisismo indica o montante da re gressão característica da paranoia 2 Na história clínica de Schreber como em muitas outras pode se apoiar a objeção igualmente plausível de que o delírio de perseguição ante Flechsig surge nitidamente mais cedo do que a fantasia do fim do mundo de maneira que o suposto retorno do reprimido precederia a repressão mesma o que é ob viamente um contrassenso Devido a essa objeção temos que descer da consid eração mais geral à apreciação das circunstâncias reais certamente muito mais complicadas Devemos admitir a possibilidade de que tal desprendimento da libido seja tanto parcial um retraimento de um complexo particular como geral O parcial seria muito mais frequente e aquele que introduziria o geral já que em princípio é motivado apenas pelas influências da vida Então pode ser que tudo fique no desprendimento parcial ou que este venha a se tornar um geral que se manifeste claramente no delírio de grandeza No caso de Schreber o desprendimento da libido em relação à pessoa de Flechsig pode ter sido aquele primário a ele seguese logo o delírio que conduz novamente a li bido para Flechsig com sinal negativo como marca da repressão havida an ulando assim o trabalho da repressão O combate da repressão desencadeiase de novo mas dessa vez recorre a meios mais fortes à medida que o objeto de litígio se torna o mais importante do mundo exterior e de um lado quer atrair toda a libido para si de outro lado mobiliza todas as resistências contra si a luta pelo objeto vem a ser comparável a uma batalha geral no decurso da qual a vitória da repressão manifestase na convicção de que o mundo acabou e 63275 restou apenas o Eu Olhando as engenhosas construções que o delírio de Schreber ergueu em terreno religioso a hierarquia de Deus as almas provadas os vestíbulos do céu o Deus inferior e o superior podese medir retrospectivamente a riqueza de sublimações que foi destruída na catástrofe do desprendimento geral da libido 3 Uma terceira reflexão nascida no terreno das concepções aqui desen volvidas coloca a seguinte questão devemos tomar o desprendimento geral da libido em relação ao mundo externo como suficientemente eficaz para com ele explicar o fim do mundo ou nesse caso não deveriam bastar os investimen tos do Eu conservados para manter o vínculo com o mundo externo Seria preciso então ou fazer coincidir o que chamamos investimento libidinal in teresse de fontes eróticas com o interesse em geral ou considerar a possibilid ade de que um amplo distúrbio na alocação da libido também possa induzir um distúrbio correspondente nos investimentos do Eu Mas para a solução desses problemas ainda nos sentimos canhestros e desamparados Seria diferente se pudéssemos nos basear numa sólida teoria dos instintos Mas não dispomos de algo assim na verdade Percebemos o instinto como o conceitolimite entre o somático e o psíquico nele vemos o representante psíquico de poderes orgâni cos e aceitamos a distinção popular entre instintos do Eu e instinto sexual que nos parece condizer com a dupla posição biológica do ser individual que as pira tanto à sua própria conservação como à da espécie Mas tudo o mais são construções que erguemos e que de bom grado abandonamos a fim de nos orientarmos no emaranhado de obscuros processos psíquicos e das invest igações psicanalíticas de processos psíquicos patológicos esperamos justamente que nos obriguem a certas decisões nas questões da teoria dos instintos Devido ao caráter recente e isolado dessas investigações tal expectativa não pode ainda encontrar satisfação Não podemos afastar a possibilidade de que distúrbios da libido reajam sobre os investimentos do Eu nem tampouco o in verso que alterações anormais no Eu ocasionem distúrbio secundário ou 64275 induzido nos processos libidinais É mesmo provável que processos desse gênero constituam o caráter diferenciador da psicose O quanto disso se aplica à paranoia não é possível dizer atualmente Eu gostaria de enfatizar um único ponto Não se pode afirmar que o paranoico retirou completamente o seu in teresse do mundo externo mesmo no auge da repressão como há que se dizer de algumas outras formas de psicose alucinatória como a amentia de Meyn ert Ele percebe o mundo externo cogita razões para as mudanças é incitado a elaborar explicações os homens feitos à pressas pela impressão que dele recebe e por isso acho bem mais provável que sua relação alterada com o mundo se explique apenas ou sobretudo pelo fim do interesse libidinal 4 Dados os estreitos vínculos da paranoia com a dementia praecox não se pode fugir à questão de como uma tal concepção da primeira doença deve in fluir sobre a concepção da segunda Considero bem justificado o passo de Kraepelin de juntar grande parte do que antes se chamava paranoia com a catatonia e outras formas numa nova unidade para a qual a denominação dementia praecox porém foi uma escolha inadequada Também à designação do mesmo grupo de formas como esquizofrenia feita por Bleuler seria de ob jetar que o nome parece aplicável apenas quando esquecemos do seu signific ado literal Mas ele prejulga excessivamente utilizando uma característica postulada teoricamente para a denominação e ademais uma característica que não pertence somente a essa enfermidade nem pode ser tida como essencial à luz de outras concepções Mas tudo somado não importa muito como se de nomina um quadro clínico Mais essencial a meu ver é que se mantenha a paranoia como tipo clínico autônomo ainda que seu quadro frequentemente seja complicado por traços esquizofrênicos pois do ponto de vista da teoria da libido ela se diferenciaria da dementia praecox por uma outra localização da fix ação predisponente e um outro mecanismo do retorno do reprimido form ação de sintomas tendo em comum com ela a característica principal da repressão propriamente dita o desprendimento libidinal com regressão ao Eu 65275 Penso que o mais adequado seria dar à dementia praecox o nome de parafrenia que de conteúdo em si indeterminado exprime suas relações com a paranoia cuja denominação não muda e também recorda a hebefrenia que se inclui na dementia praecox Não seria relevante que esse nome já tenha sido proposto para outras coisas pois essas outras utilizações não se impuseram Abraham mostrou convincentemente op cit que a característica do afastamento da libido do mundo externo é muito clara na dementia praecox Dessa característica inferimos a repressão por desprendimento da libido Tam bém vemos a fase das alucinações turbulentas como uma fase de luta entre a repressão e uma tentativa de cura que pretende conduzir a libido novamente a seus objetos Com extraordinária agudeza analítica Jung percebeu nos delírios e estereotipias motoras da doença os restos de antigos investimentos objetais obstinadamente retidos Mas essa tentativa de cura que para um observador é a própria doença não recorre à projeção como na paranoia mas ao mecan ismo alucinatório histérico Eis uma das grandes diferenças em relação à paranoia ela é passível de explicação genética por outro lado O desfecho da dementia praecox quando a afecção não permanece muito parcial constitui a segunda diferença Esse desenlace é em geral menos favorável do que o da paranoia a vitória não cabe à reconstrução como nesta mas à repressão A re gressão vai não apenas até o narcisismo que se manifesta em delírio de gran deza mas até o pleno abandono do amor objetal e retorno ao autoerotismo in fantil De modo que a fixação predisponente deve situarse antes daquela da paranoia deve estar no começo do desenvolvimento que vai do autoerotismo ao amor objetal Além disso de maneira nenhuma é provável que os impulsos homossexuais encontrados frequentemente talvez invariavelmente na paranoia tenham papel da mesma importância na etiologia da dementia prae cox que é muito mais abrangente Nossas hipóteses sobre as fixações predisponentes na paranoia e na para frenia tornam compreensível que um caso tenha início com sintomas para noicos e se transforme em demência que manifestações paranoides e 66275 esquizofrênicas se combinem em qualquer proporção que apareça um quadro clínico como o de Schreber que merece o nome de uma demência paranoide apresentando caráter parafrênico pelo surgimento de fantasiadesejo e alucin ações e caráter paranoide pelo ensejo imediato o mecanismo de projeção e o desenlace Pois várias fixações podem ter sido deixadas para trás no desenvol vimento permitindo uma após a outra a irrupção da libido afastada primeiramente a adquirida depois e no curso posterior da doença a original mais próxima do ponto de partida Bem gostaríamos de saber a que condições se deve a solução relativamente favorável desse caso pois relutamos em atribuíla somente a algo tão casual como a melhora por mudança de local que sobreveio com a saída da instituição de Flechsig72 Mas as lacunas em nosso conhecimento das circunstâncias íntimas desse caso tornam impossível dar uma resposta a essa interessante pergunta Podese fazer a conjectura de que o matiz essencialmente positivo do complexo paterno a relação provavel mente tranquila com um pai excelente nos últimos anos possibilitou a recon ciliação com a fantasia homossexual e assim um desenlace semelhante à cura Como não receio a crítica e não fujo à autocrítica não tenho motivo para evitar a menção de uma analogia que no julgamento de muitos leitores pode ser prejudicial à nossa teoria da libido Os raios divinos de Schreber feitos de uma condensação de raios solares fibras nervosas e espermatozoides não são outra coisa senão os investimentos libidinais concretamente representados e projetados para fora e conferem ao seu delírio uma espantosa concordância com nossa teoria A crença de que o mundo vai acabar porque o Eu do pa ciente atrai para si todos os raios sua angustiosa preocupação depois durante o processo de reconstrução de que Deus possa interromper a conexão de raios com ele essas e outras particularidades da formação delirante de Schreber soam quase como percepções endopsíquicas dos processos cuja existência supus neste trabalho como fundamento para uma compreensão da paranoia Mas posso invocar o testemunho de um colega especialista de que desenvolvi 67275 a teoria da paranoia antes de conhecer o teor do livro de Schreber O futuro decidirá se na teoria há mais delírio do que eu penso ou se no delírio há mais verdade do que outros atualmente acreditam Por fim não quero encerrar este estudo que mais uma vez é apenas parte de um contexto maior sem lembrar as duas teses principais que a teoria libid inal das neuroses e psicoses aspira demonstrar que as neuroses resultam essen cialmente do conflito do Eu com o instinto sexual e que suas formas guardam as marcas da história do desenvolvimento da libido e do Eu PÓSESCRITO Tratando do caso clínico do juizpresidente Schreber ofereci deliberadamente o mínimo de interpretação e confio em que todo leitor instruído na psicanálise apreenda mais do material transmitido do que o que é dito expressamente que não lhe seja difícil juntar mais estreitamente os fios e chegar a conclusões que eu apenas insinuo Um acaso feliz que dirigiu a atenção de outros autores do mesmo volume para a autobiografia de Schreber permite imaginar também o quanto se pode ainda extrair do teor simbólico das fantasias e ideias delirantes desse inteligente paranoico73 Desde a publicação do estudo sobre Schreber um acréscimo fortuito em meus conhecimentos deixame agora em condição de apreciar melhor uma de suas afirmações delirantes e perceber como ela se relaciona ricamente à mitolo gia À página 71 eu menciono o vínculo especial que tem o doente com o Sol caracterizando este como um símbolo paterno sublimado O Sol lhe fala em linguagem humana dandose a conhecer como um ser animado Ele costuma xingar o Sol gritandolhe ameaças Assegura também que os seus raios empal idecem quando fala em voz alta na sua direção Após sua cura ele se gaba de 68275 poder olhar tranquilamente para o Sol e ficar apenas um pouco ofuscado o que naturalmente não era possível antes nota à página 139 do livro de Schreber É a esse delirante privilégio poder olhar o Sol sem ofuscar a vista que se relaciona o interesse mitológico Lemos em S Reinach74 que os naturalistas da Antiguidade atribuíam essa capacidade apenas às águias que habitando as altas regiões do ar vieram a ter íntima ligação com o céu o Sol e o relâm pago75 As mesmas fontes também dizem que a águia submete seus filhotes a uma prova antes de reconhecêlos como legítimos Quando eles não con seguem olhar para o Sol sem piscar são jogados para fora do ninho Não pode haver dúvidas quanto ao significado desse mito animal Certa mente se atribui aos animais o que é costume sagrado entre os homens O que a águia realiza com seus filhotes é um ordálio uma prova de descendência tal como nos relatos sobre povos diversos dos tempos antigos Os celtas que hab itavam as margens do Reno confiavam seus recémnascidos às águas do rio para verificar se eram realmente de seu sangue Na região da Trípoli de hoje a tribo dos psilos que se jactava de descender de cobras expunha seus filhos ao contato das cobras os legítimos rebentos da tribo não eram picados ou logo se recuperavam das consequências da picada76 A premissa de todas essas provas nos leva ao interior do pensamento totêmico dos povos primitivos O totem o animal ou força natural apreendida de forma animista de que a tribo crê des cender poupa os membros da tribo como sendo seus filhos tal como ele próprio é adorado e eventualmente poupado por eles como pai da tribo Nisso chegamos a coisas que me parecem destinadas a possibilitar uma compreensão psicanalítica das origens da religião A águia que faz seus filhotes olharem o Sol e exige que não sejam ofusca dos pela luz age como um descendente do Sol que submete os filhos à prova da linhagem E quando Schreber se gaba de poder olhar impunemente e sem ofuscamento para o Sol ele reencontra a expressão mitológica para seu vínculo com o Sol confirma a percepção que temos de seu Sol como símbolo do pai 69275 Se lembrarmos que na sua doença Schreber exprime livremente o seu orgulho familiar Os Schreber pertencem à mais alta nobreza celeste77 e que vimos na falta de filhos um motivo humano para ele adoecer com uma fantasiadesejo feminina ficará bastante claro o nexo entre o seu delirante privilégio e os fun damentos da sua doença Este breve suplemento à análise de um paranoico talvez demonstre como é justificada a afirmativa de Jung de que as forças produtoras de mitos da hu manidade não estão exauridas mas nos dias de hoje ainda geram nas neuroses os mesmos produtos psíquicos que nos tempos mais remotos Quero retomar uma sugestão que fiz no passado78 dizendo que o mesmo vale para as forças criadoras de religiões E acho que logo será o momento de ampliar uma tese que nós psicanalistas enunciamos há muito tempo de juntar ao seu conteúdo individual ontogeneticamente compreendido a complementação antropoló gica a ser apreendida filogeneticamente Dissemos que no sonho e na neurose encontramos de novo a criança com as peculiaridades de seu modo de pensar e de sua vida afetiva E acrescentaremos também o homem selvagem o primit ivo tal como ele nos aparece à luz da arqueologia e da etnologia 1 Essa autocaracterização que certamente não é incorreta achase à p 35 do livro de Schreber Denkwürdigkeiten eines Nervenkranken Leipzig Oswald Mutze 1903 Em todas as citações que Freud faz de Schreber é utilizado o texto da edição brasileira Memórias de um doente dos nervos Tradução e introdução de Marilene Carone Rio de Janeiro Paz e Terra 1995 1984 Não é preciso indicar aqui as páginas correspondentes na edição brasileira pois nela os números de páginas do original se encontram na margem esquerda do texto As notas chamadas por as terisco e as interpolações às notas do autor entre colchetes são de autoria do tradutor As not as do autor são sempre numeradas 2 Prólogo das Memórias Conselheiro do Estado antigo título honorífico na Áustria e na Alemanha 3 Memórias p 34 4 Ibid p 35 70275 5 Ou seja antes que tivesse efeito o trabalho excessivo de seu novo cargo a que ele atribuiu a doença 6 Na clínica do prof Flechsig em Leipzig 7 O contexto dessa e de outras passagens mostra que o indivíduo em questão do qual partiria o abuso não é outro senão Flechsig cf adiante 8 Essa omissão tal como outras peculiaridades de estilo reproduzo das Memórias Eu não veria razão para mostrar tanto pudor em assunto tão sério 9 Numa nota referente a essa teoria por ele mesmo sublinhada Schreber enfatiza a sua utilid ade para a explicação da hereditariedade O sêmen masculino contém um nervo do pai e se une a um nervo extraído do corpo materno surgindo uma nova unidade p 7 Então uma característica que se deve atribuir ao espermatozoide é transferida para os nervos o que torna provável que a origem dos nervos schreberianos esteja no âmbito de ideias da sexualidade Nas Memórias não é raro que uma nota incidental a uma teoria delirante contenha a desejada indicação sobre a gênese e portanto sobre o significado do delírio 10 Sobre isso ver adiante quando trato do Sol A equiparação ou melhor condensação de nervos e raios bem poderia ter se baseado na forma linear que têm em comum Aliás os nervosraios são tão criadores como os nervosespermatozoides 11 Na língua fundamental ver adiante isso é designado como entrar em conexão nervosa com eles 12 Depois veremos que a isso estão ligadas algumas críticas a Deus 13 Esta consiste essencialmente numa sensação de volúpia ver adiante 14 Durante a doença uma só vez foi dado ao paciente ver com o olhar espiritual a onipotência de Deus em sua completa pureza Nessa ocasião Deus pronunciou uma palavra bastante cor rente na língua fundamental palavra vigorosa mas pouco simpática Puta Luder no ori ginal ver nota da tradutora Marilene Carone op cit p 120 p136 15 Uma nota à p 20 dá a entender que uma passagem do Manfred de Byron foi determinante na escolha dos nomes divinos persas Depois encontraremos mais um indício da influência dessa obra 16 Pareceme de antemão psicologicamente impensável que no meu caso se tratasse de meras ilusões dos sentidos Pois a ilusão sensorial de estar em relação com Deus ou com almas defun tas só poderá naturalmente surgir em pessoas que no seu estado nervoso morbidamente excit ado já traziam consigo uma sólida fé em Deus e na imortalidade da alma Mas este pelo que ficou dito no início deste capítulo não foi o meu caso p 79 71275 17 Neste ponto uma nota procura atenuar o duro termo perfídia remetendo a uma das justi ficações para a conduta de Deus que ainda serão abordadas 18 Essa confissão do prazer na excreção que vimos ser um dos componentes autoeróticos da sexualidade infantil deve ser comparada às manifestações do garoto Hans na Análise da fo bia de um garoto de cinco anos 1909 Gesammelte Werke vii próximo ao final da parte ii 19 Tampouco na língua fundamental era sempre Deus o insultador mas ocasionalmente o insultado por exemplo Maldição não é fácil dizer que Deus se faz f p 194 20 Condiz inteiramente com a satisfação de desejos na vida alémtúmulo porém o fato de lá o ser humano livrarse finalmente da distinção entre os sexos Und jene himmlischen Gestalten Sie fragen nicht nach Mann und Weib E aquelas formas celestiais não perguntam por homem ou mulher Citação de Goethe Anos de aprendizagem de Wilhelm Meister livro viii cap 2 21 Sobre um possível significado mais profundo dessa descoberta de Schreber ver adiante Tratase da palavra selig para a qual os dicionários bilíngues alemãoportuguês oferecem as seguintes correspondências feliz bemaventurado beato falecido 22 Como exemplos extremos dos dois sentidos há a expressão mein seliger Vater meu saudoso pai e o trecho de uma ária de Don Giovanni Ja dein zu sein auf ewig wie selig werdich sein Sim sendo teu para sempre como serei feliz Mas não deixa de ser significativo que a nossa língua empregue a mesma palavra para situações tão diversas 23 Se em algum corpo celeste a podridão moral libertinagem voluptuosa ou talvez também o nervosismo tivessem tomado a humanidade de tal modo p 52 então pensa Schreber apoiandose nos relatos bíblicos de Sodoma e Gomorra do Dilúvio etc o mundo em questão teria tido um fim catastrófico notícia que disseminou terror e pânico entre os homens destruiu as bases da religião e provocou uma epidemia de nervosismo e imoralidade geral em consequência da qual a humanidade teria sido atingida por pestes devastadoras p 91 O príncipe dos infernos era portanto provavelmente para as almas aquele poder sinistro que teria se desenvolvido como uma força inimiga de Deus a partir de uma decadência moral da hu manidade ou de uma excessiva excitação dos nervos em consequência do excesso de civilização p 163 Freud não explicita que os itálicos foram acrescentados por ele não são do autor 72275 24 Em conexão com o delírio ele escreve p 179 Mas a atração perdia o caráter apavorante para os nervos em questão se e à medida que ao penetrarem no meu corpo nele encontravam a sensação da volúpia de alma da qual por seu turno eles tomavam parte Encontravam então no meu corpo um substituto de valor igual ou aproximado à sua perdida beatitude celeste que também consistia num gozo de tipo voluptuoso O primeiro período se acha em itálico no original segundo a tradução de Marilene Carone mas não na citação de Freud 25 Nota à p 4 na Introdução Algo análogo à concepção de Jesus Cristo por uma virgem imaculada isto é por uma mulher que nunca teve relações com um homem aconteceu no meu próprio corpo Já em duas ocasiões diferentes isso quando estava ainda no sanatório de Flechsig eu possuí órgãos genitais femininos embora desenvolvidos de modo incompleto e senti no corpo movimentos que correspondem aos primeiros sinais de vida do embrião hu mano Por milagre divino foram lançados no meu corpo os nervos de Deus correspondentes ao sêmen masculino produzindose assim uma fecundação Expressão francesa que significa amaldiçoado seja quem nisto põe malícia originalmente era a divisa da Ordem da Jarreteira criada por Eduardo iii da Inglaterra no século xiv 26 C G Jung Über die Psychologie der dementia praecox 1907 Ptomaína Leichengift em alemão literalmente veneno de cadáver Chinesentum seria a chinesidade tal como a palavra inglesa Christendom é cristandade Jesum Christum é corruptela de Jesus Christus Abendrot significa crepúsculo Atemnot dispneia Ackermann lavrador 27 Parecer do dr Weber p 402 Se se observar o conteúdo do seu texto se se considerar a quantidade de indiscrições que comete em relação a si mesmo e aos outros as descrições sem reservas das situações e processos os mais escabrosos e esteticamente quase impossíveis o uso das expressões mais escandalosas etc fica incompreensível que um homem que em geral se distingue pelo tato e sensibilidade refinada pretenda realizar um ato que o comprometeria gravemente diante dos outros a menos que etc Não se poderá exigir de uma história clínica que deve retratar uma natureza humana perturbada e sua luta para se restabelecer que tenha discrição e graça estética 28 Prólogo p viii carta aberta a Flechsig Ainda agora as vozes que falam comigo diaria mente em circunstâncias que sempre se repetem pronunciam o seu nome proclamandoo cen tenas de vezes como autor daqueles danos embora as relações pessoais que existiram entre nós durante certo tempo tenham passado há muito para um segundo plano por isso dificilmente eu teria qualquer motivo para me lembrar novamente da sua pessoa muito menos com qualquer espécie de sentimento rancoroso 73275 29 Pp 22 ss 30 Segundo outra versão significativa logo abandonada o prof Flechsig tinha se suicidado com um tiro em Weissenburg na Alsácia ou na prisão da polícia em Leipzig O paciente viu um cortejo fúnebre mas que não se movia na direção esperada conforme as localizações da clínica universitária e do cemitério Outras vezes Flechsig lhe apareceu em companhia de um policial ou falando com sua mulher e Schreber testemunhava essa conversa por meio de con exão nervosa nela o prof Flechsig designava a si mesmo ante sua mulher como deus Flech sig de forma que ela se inclinava a considerálo doido p 82 31 Sobre esse v W as vozes lhe diziam que num inquérito havia declarado intencionalmente ou por imprudência coisas falsas acerca dele culpandoo de onanismo como castigo agora tinha de cuidar do paciente 32 Por isso devo também reconhecer como algo possível que tudo o que foi relatado nos primeir os capítulos das minhas Memórias sobre fenômenos ligados ao nome de Flechsig se refira apen as à alma de Flechsig que deve ser distinguida do homem vivo e cuja existência particular é certamente segura mas inexplicável por vias naturais p 343 Não há espaço de uma linha entre esse parágrafo e o anterior na edição alemã utilizada Ges ammelte Werke Mas considerando que faz sentido um espaço nesse ponto e que ele se acha numa edição alemã mais recente Studienausgabe resolvemos incorporálo aqui e em alguns outros lugares 33 Cf Karl Abraham Die psychosexuellen Differenzen der Hysterie und der Dementia prae cox As diferenças psicossexuais entre a histeria e a dementia praecox Zentralblatt für Nerven heilkunde und Psychiatrie julho de 1908 Nesse trabalho o autor admite escrupulosamente que a nossa correspondência epistolar influiu no desenvolvimento de suas ideias 34 A Adler Der psychische Hermaphroditismus im Leben na vida und in der Neurose Fortschritte der Medizin Progressos da Medicina 1910 n 10 Segundo Adler o protesto mas culino participa da formação do sintoma no caso aqui abordado a pessoa protesta contra o sintoma já pronto 35 Os itálicos são meus 36 Acrescento o seguinte para substanciar a afirmação do texto Manfred diz ao demônio que quer arrebatálo à vida cena final my past power was purchased by no compact with thy crew meu poder passado foi adquirido sem pacto com a tua gente Portanto a venda da alma é explicitamente negada Esse equívoco de Schreber provavelmente indica algo Seria tentador 74275 aliás aproximar esse conteúdo do Manfred à relação incestuosa entre o poeta e sua meiairmã várias vezes assinalada e é digno de nota que a outra peça de Byron a formidável Caim se passe na família primordial em que o incesto entre irmãos não é alvo de censuras E não po demos deixar o tema do assassinato de alma sem recordar o seguinte trecho das Memórias antes se apontava Flechsig como autor do assassinato de alma ao passo que de um tempo para cá numa inversão deliberada da situação se quer me fazer passar por aquele que cometeu as sassinato de alma p 23 37 Devo o conhecimento da idade que tinha Schreber quando adoeceu à gentil informação dada por um de seus parentes que me foi transmitida pelo dr Stegmann de Dresden Mas não utilizei neste ensaio nenhum outro dado que não se ache no próprio texto das Memórias 38 O intervalo entre o primeiro e o segundo episódio da doença de Schreber 39 Apenas como possibilidades que entram aqui em consideração cito uma emasculação a ser ainda completada fazendo com que por meio da fecundação divina nasça em meu ventre uma descendência lêse no final do livro p 293 40 C G Jung Ein Beitrag zur Psychologie des Gerüchtes Uma contribuição à psicologia do boato Zentralblatt für Psychoanalyse v 3 1910 É provável que Jung esteja correto quando afirma que essa decomposição que corresponde a uma tendência geral da esquizofrenia é an aliticamente despotenciadora devendo impedir o surgimento de impressões fortes Mas a fala de uma de suas pacientes Ah o sr também é dr Jung hoje de manhã já esteve um homem aqui que disse ser o dr Jung pode ser traduzida como uma confissão Agora o sr me re corda outro da série de minhas transferências diverso do de sua visita anterior 41 O Rank Der Mythus von der Geburt des Helden O mito do nascimento do herói Schriften zur angewandten Seelenkunde Escritos de psicologia aplicada n v LeipzigViena 1909 42 Sobre isso nenhuma informação pôde ser obtida nas Memórias 43 Agradeço ao meu colega dr Stegmann de Dresden a cortesia de enviarme um número da revista intitulada Der Freund der SchreberVereine O Amigo das Associações Schreber Nele ano ii caderno x se acham por ocasião do centenário de nascimento do dr Schreber dados biográficos sobre o homenageado O dr Schreber pai nasceu em 1808 e morreu em 1861 com apenas 53 anos de idade Sei da fonte anteriormente mencionada que o nosso paciente tinha 19 anos então 44 Suetônio Vidas dos Césares cap 23 Essa divinização teve início com Júlio César Augusto se denominava em suas inscrições Divi filius filho de Deus 75275 45 A interpretação dos sonhos 2a ed p 267 Gesammelte Werke iiiii p 447 cap vi seção g vi 46 Semelha extraordinariamente a uma revanche desse tipo a anotação que o doente fez para si mesmo certo dia Qualquer tentativa de exercer uma influência educativa sobre o exterior de ve ser abandonada por ser votada ao fracasso p 188 O ineducável é Deus 47 ao passo que de um tempo para cá numa inversão deliberada da situação se quer me fazer passar por aquele que cometeu assassinato de alma etc A palavra alemã Vorhof átrio vestíbulo também designa uma parte dos genitais femininos Freud soube depois pelo mesmo colega que menciona em algumas notas o dr Stegmann de Dresden que o irmão de Schreber era três anos mais velho 48 O Sol é uma puta p 383 A palavra alemã para sol Sonne é feminina 49 P 139 nota De resto ainda hoje o Sol me proporciona uma imagem diferente da que eu tinha dele na época anterior à minha doença Seus raios empalidecem diante de mim quando falo em voz alta na sua direção Sou capaz de olhar para o Sol tranquilamente ficando só um pouco ofuscado ao passo que no tempo em que gozava de boa saúde não me era possível como aliás não é para os outros olhar para o Sol por mais de um minuto 50 P 88 Atualmente desde julho de 1894 esse deus é identificado com o Sol pelas vozes que falam comigo 51Assim falou Zaratustra parte iii Também Nietzsche conheceu o pai apenas quando criança No original Und seine vorgeschriebene Reise Vollendet er mit Donnergang Goethe Fausto versos 2456 52 Assim como a fantasia de desejo feminina de Schreber é apenas uma das configurações típicas do complexo nuclear infantil 53 Cf as observações sobre a análise do Homem dos ratos neste mesmo Jahrbuch v 1 1909 Impulso sexual infantil infantile Sexualstrebung O substantivo Strebung aqui num com posto cunhado por Freud não é usado no alemão de hoje mas seu sentido está relacionado ao do verbo streben esforçarse aspirar ambicionar Nas versões estrangeiras deste ensaio consultadas durante a elaboração desta encontramos tendencia fantasía evidentemente um lapso ed Amorrortu 4a reimpressão 1993 tensione tendance urge streving além daquelas que normalmente utilizamos duas em espanhol a da Biblioteca Nueva Madri e a da Amor rortu Buenos Aires a italiana da Boringhieri e a Standard inglesa recorremos também 76275 neste caso a uma francesa a da revista LUnebevue 1993 e à holandesa da editora Boom Am sterdã 1986 elas são citadas em ordem decrescente de proximidade ao português 54 Os sistemas de representar e anotar p 126 juntamente com as almas provadas apon tam para vivências da escola 55 P 206 nota Que esse era o objetivo visado foi algo admitido abertamente infinitas vezes na frase proveniente do deus superior ouvida por mim Queremos destruir o seu entendimento 56 Não quero omitir a observação de que para mim apenas será digna de confiança uma teoria da paranoia que consiga integrar os sintomas hipocondríacos que quase sempre acompanham a doença A hipocondria me parece ter em relação à paranoia a mesma posição da neurose de angústia em relação à histeria 57 P 154 Por esse motivo tentouse bombear a minha medula espinhal o que era feito pelos chamados homúnculos que me eram colocados nos pés Mais adiante darei maiores de talhes sobre esses homúnculos que possuíam certo parentesco com o fenômeno de mesmo nome já mencionado no capítulo vi via de regra eram dois de cada vez um pequeno Flechsig e um pequeno von W cujas vozes eu percebia nos meus pés V W é aquele de quem teria partido a acusação de onanismo Os homúnculos segundo o próprio Schreber são um dos mais notáveis e em determinados aspectos mais enigmáticos fenômenos p 157 Parecem ter se originado de uma condensação de crianças e espermatozoides 58 P 36 Depois da cura de minha primeira doença vivi oito anos em geral bem felizes com minha esposa ricos também de honrarias exteriores e apenas passageiramente turvados pelas numerosas frustrações da esperança de ter filhos 59 Após essa declaração que conserva no delírio a afável ironia dos tempos sãos ele rastreia os laços entre as famílias Flechsig e Schreber por séculos passados como um noivo que não en tendendo como pôde viver tantos anos sem saber da existência da amada insiste em havêla já conhecido no passado 60 Nisso cabe mencionar o protesto do paciente contra algumas afirmações do parecer médico Nunca apreciei a ideia de um divórcio ou deixei transparecer indiferença quanto ao prolonga mento do vínculo conjugal como se poderia supor lendo a expressão do laudo judicial se gundo a qual tenho sempre pronta a alusão ao fato de que minha esposa poderia se divorciar Esta citação é extraída dos autos do processo anexados às Memórias nos quais o paciente é referido na terceira pessoa verbal Freud pôs o verbo na primeira pessoa 77275 61 Cf a nota sobre a representação da descendência paterna e sobre o nascimento de Atenas no caso clínico do Homem dos ratos neste Jahrbuch v 1 p 410 Gesammelte Werke vii pp 44950 parte ii seção c As palavras fantasia ou desejo traduzem um só termo do original Wunschphantasie que lit eralmente significaria fantasiadesejo 62 Uma outra confirmação é a análise do paranoico J B realizada por A Maeder Psycholo gische Untersuchungen an dementia praecoxKranken Investigações psicológicas em enfer mos de dementia praecox Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologishche Forschungen v 2 1910 Lamento não ter lido esse trabalho quando redigi o meu 63 I Sadger Ein Fall von multipler Perversion mit hysterischen Absenzen Um caso de per versão múltipla com ausências histéricas Jahrbuch für psychoanalytische und psychopatholo gishche Forschungen v 2 B 1910 Freud Eine Kindheitserinnerung des Leonardo da Vinci Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci Schriften zur angewandten Seelenkunde ca derno vii 1910 p 5 64Três ensaios de uma teoria da sexualidade 1905 Gesammelte Werke v pp 4950 primeiro en saio seção 2a O z alemão tem som de ts de modo que a pronúncia do primeiro termo é algo como nartsissísmus que de fato não soa muito bem Freud então corta a penúltima sílaba da palav ra o que resulta no termo pronunciado como nartsísmus a letra ß equivale a dois s Nat uralmente em português não há esse problema narcisismo não soa mal já que o s tem som de z quando ocorre entre duas vogais 65 Na língua básica como diria Schreber 66Três ensaios de uma teoria da sexualidade 2a ed 1910 p 18 Gesammelte Werke v pp 4950 A mesma concepção e formulação achase em Abraham op cit e Maeder op cit 67 Denn wo die Lieb erwachet stirbt das Ich der finstere Despot Jalal alDin Rumi traduz ido por Rückert citado por Kuhlenbeck na introdução ao volume v das obras de Giordano Bruno Suprimida unterdrückt nas versões estrangeiras consultadas reprimida sofocada repressa réduite au silence suppressed onderdrukt Há estudiosos de Freud que preferem repressão para Unterdrückung e recalque para Verdrängung enquanto outros adotam supressão e repressão como aqui fizemos Em As palavras de Freud o vocabulário freudiano e suas versões São Paulo Companhia das Letras nova ed revista 2010 capítulo sobre esse 78275 termo procuramos mostrar que há argumentos para as duas opções e até mesmo para a não distinção entre Unterdrückung e Verdrängung às vezes usados alternadamente por Freud Póspressão Nachdrängen termo cunhado por Freud nas versões estrangeiras consulta das foi traduzido por impulso secundario esfuerzo de dar caza postrimozione repousser après coup afterpressure nadringen Cf A repressão 1915 onde ele também aparece 68 Uma espécie de fim do mundo com motivação diferente ocorre no auge do êxtase amor oso Tristão e Isolda de Wagner neste não é o Eu mas o objeto único que absorve todos os investimentos oferecidos ao mundo exterior 69 Cf Abraham Die psychosexuellen Differenzen der Hysterie und der dementia praecox Zentralblatt für Nervenheilkunde und Psychiatrie 1908 C G Jung Über die Psychologie der de mentia praecox 1907 O breve estudo de Abraham contém quase todos os pontos de vista es senciais deste trabalho sobre o caso Schreber 70 Talvez não apenas o investimento libidinal mas o interesse em geral isto é também os in vestimentos que procedem do Eu Ver mais adiante a discussão desse problema 71 Weh Weh du hast sie zerstört die schöne Welt mit mächtiger Faust sie stürzt sie zer fällt Ein Halbgott hat sie zerschlagen Mächtiger der Erdensöhne Prächtiger baue sie wieder in deinem Busen baue sie auf Goethe Fausto i versos 160721 cena 4 Investimentos do Eu Ichbesetzungen Em português e em alemão e também em inglês como registra Strachey essa expressão é ambígua pode significar tanto investimentos feitos no Eu como pelo Eu No contexto se depreende que ela tem o segundo significado Além disso Freud explicita o complemento quando a usa no primeiro sentido investimento do Eu com libido Ichbesetzung mit Libido lêse na Introdução ao narcisismo 1914 Alma cindida 72 Cf Riklin Über Versetzungsbesserungen Sobre melhoras por mudança de local Psychiatrischneurologische Wochenschrift 1905 n 168 Freud se refere ao volume da publicação em que saiu originalmente o trabalho 73 Cf C G Jung Wandlungen und Symbole der Libido Transformações e símbolos da li bido em S Reinach Cultes mythes et religions t iii Paris 1908 pp 164 e 207 S Spielrein Über den psychischen Inhalt eines Falles von Schizophrenie Sobre o conteúdo psíquico de um caso de esquizofrenia em Reinach op cit p 350 74 Cultes mythes et religions op cit p 80 citando Keller Tiere des Altertums Animais da Antiguidade 79275 75 Nos lugares mais altos dos templos eram postas imagens de águias como pararaios mági cos Reinach op cit 76 Ver referências em Reinach op cit t iii e t i p 74 77 Memórias p 24 Adel nobreza faz parte da Adler águia 78 Atos obsessivos e práticas religiosas 1907 80275 FORMULAÇÕES SOBRE OS DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO PSÍQUICO 1911 TÍTULO ORIGINAL FORMULIERUNGEN ÜBER DIE ZWEI PRINZIPIEN DES PSYCHISCHEN GESCHEHENS PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM JAHRBUCH FÜR PSYCHOANALYTISCHE UND PSYCHOPATHOLOGISCHE FORSCHUNGEN ANUÁRIO DE PESQUISAS PSICANALÍTICAS E PSICOPATOLÓGICAS V 3 N 1 PP 18 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 22938 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE III PP 1324 ESTA TRADUÇÃO FOI PUBLICADA ORIGINALMENTE NO JORNAL DE PSICANÁLISE SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE SÃO PAULO V 27 N 51 1994 NA PRESENTE EDIÇÃO O TEXTO FOI REVISADO ALGUMAS NOTAS DO TRADUTOR FORAM OMITIDAS E OUTRAS FORAM MODIFICADAS Há algum tempo notamos que toda neurose tem a consequência e provavel mente a tendência portanto de retirar o doente da vida real de afastálo da realidade Um fato como esse não poderia escapar tampouco à observação de Pierre Janet ele falou de uma perda de la fonction du réel da função do real como característica especial dos neuróticos mas sem desvelar o nexo dessa perturbação com as condições básicas da neurose1 Ao introduzir o processo de repressão na gênese das neuroses pudemos dis cernir esse nexo Os neuróticos dão as costas à realidade por considerála no todo ou em parte insuportável O tipo mais extremo desse afastamento da realidade aparece em alguns casos de psicose alucinatória nos quais se pro cura negar o acontecimento que provocou a loucura Griesinger Mas na ver dade todo neurótico faz o mesmo com algum fragmento da realidade2 E as sim nos defrontamos com a tarefa de investigar em seu desenvolvimento a re lação do neurótico e do próprio ser humano com a realidade desse modo ad mitindo no corpo de nossas teorias a significação psicológica do mundo ex terno real Na psicologia baseada na psicanálise habituamonos a tomar como ponto de partida os processos anímicos inconscientes cujas peculiaridades nos são conhecidas através da análise Nós os vemos como os mais antigos como primários vestígios de uma fase de desenvolvimento em que constituíam a ún ica espécie de processos anímicos É fácil distinguir a tendência principal a que estes processos primários obedecem ela é designada como princípio do prazer desprazer ou mais sinteticamente princípio do prazer Tais processos se em penham em ganhar prazer daqueles atos que podem suscitar desprazer a atividade psíquica se retira repressão Nossos sonhos noturnos nossa tendência quando acordados de fugir às impressões penosas são resíduos da dominação desse princípio e provas de seu poder Retomo linhas de pensamento que desenvolvi num outro lugar na seção geral da Interpretação dos sonhos ao supor que o estado de repouso psíquico foi inicialmente perturbado pelas exigências imperiosas das necessidades in ternas Nesse caso o pensado desejado foi simplesmente colocado de modo alucinatório tal como ainda hoje acontece a cada noite com nossos pensamen tos oníricos3 Apenas a ausência da satisfação esperada a decepção levou a que se abandonasse a tentativa de satisfação por meio alucinatório Em vez disso o aparelho psíquico teve que se decidir a formar uma ideia das reais cir cunstâncias do mundo exterior e se empenhar em sua real transformação Com isso foi introduzido um novo princípio de atividade psíquica já não se ima ginava o que era agradável mas sim o que era real ainda que fosse de sagradável4 Esse estabelecimento do princípio da realidade resultou ser um passo de enormes consequências 1 Primeiro as novas exigências tornaram necessária uma série de ad aptações do aparelho psíquico que devido à nossa compreensão insegura ou insuficiente podemos expor apenas por alto A maior significação da realidade externa elevou também a significação dos órgãos dos sentidos voltados para o mundo externo e da consciência a eles vin culada que além das qualidades de prazer e desprazer as únicas que até então lhe interessavam começou a apreender também as qualidades sensoriais Foi estabelecida uma função especial que devia examinar periodicamente o mundo exterior para que seus dados já fossem conhecidos quando surgisse uma ne cessidade interior inadiável a atenção Esta atividade vai ao encontro das impressões dos sentidos em vez de aguardar seu aparecimento É provável que ao mesmo tempo fosse instituído um sistema de registro cuja tarefa seria guardar os resultados dessa periódica atividade da consciência uma parte do que chamamos memória No lugar da repressão que excluía do investimento uma parte das ideias emergentes por gerarem desprazer colocouse o juízo imparcial que deveria resolver se uma determinada ideia era verdadeira ou falsa isto é se 83275 concordava ou não com a realidade e o fazia comparandoa com os traços de memória da realidade A descarga motora que sob o governo do princípio do prazer tinha servido para aliviar o aparelho anímico de aumentos de estímulos por meio de in ervações enviadas para o interior do corpo mímica expressões de afeto re cebeu uma nova função ao ser utilizada na modificação adequada da realidade Transformouse em ação A suspensão da descarga motora da ação que se tornou necessária foi ar ranjada mediante o processo de pensamento que se formou a partir do imaginar O pensar foi dotado de características que permitiram ao aparelho psíquico suportar a elevada tensão dos estímulos durante a suspensão da descarga Tratase na essência de uma ação experimental em que são deslocadas quan tidades menores de investimento com menor dispêndio descarga delas Isso requeria uma conversão dos investimentos livremente deslocáveis em investi mentos fixos o que foi alcançado ao se elevar o nível de todo o processo de in vestimento É provável que o pensar fosse originalmente inconsciente na me dida em que se elevou acima do mero imaginar e se voltou para as relações entre as impressões de objetos e apenas através da ligação a resíduos verbais tenha adquirido novas qualidades perceptíveis para a consciência 2 Uma tendência geral de nosso aparelho psíquico que pode ser relacion ada ao princípio econômico da poupança de gastos parece manifestarse no tenaz apego às fontes de prazer disponíveis e na dificuldade em renunciar a elas Com a introdução do princípio da realidade dissociouse um tipo de atividade de pensamento que permaneceu livre do teste da realidade e sub metida somente ao princípio do prazer5 É a atividade da fantasia que tem iní cio já na brincadeira das crianças e que depois prosseguindo como devaneio deixa de lado a sustentação em objetos reais 3 A substituição do princípio do prazer pelo princípio da realidade com as consequências psíquicas dela resultantes e que na presente exposição 84275 esquemática é resumida numa frase na realidade não se efetua de uma só vez e simultaneamente em todos os pontos Pois enquanto ocorre esse desenvolvi mento nos instintos do Eu os instintos sexuais se destacam deles de modo sig nificativo Os instintos sexuais se comportam a princípio autoeroticamente acham satisfação no próprio corpo e por isso não chegam à situação de frus tração que levou ao estabelecimento do princípio da realidade E quando mais tarde começa neles o processo de busca do objeto ele experimenta logo uma demorada interrupção no período de latência que retarda o desenvolvimento sexual até a puberdade Esses dois fatores autoerotismo e período de latên cia têm por consequência que o instinto sexual é detido em seu desenvolvi mento psíquico e permanece muito mais tempo sob o domínio do princípio do prazer ao qual em muitas pessoas não consegue jamais se subtrair Devido a essas condições criase uma relação mais estreita entre o instinto sexual e a fantasia por um lado e os instintos do Eu e atividades da consciên cia por outro Tanto em indivíduos sãos como em neuróticos esta relação se apresenta bem íntima embora tais considerações de psicologia genética nos façam reconhecêla como secundária A continuidade do autoerotismo é que torna possível se ater por tanto tempo à satisfação mais fácil com o objeto sexual momentânea e fantástica em lugar da satisfação real que demanda es forço e adiamento A repressão permanece todopoderosa no âmbito da fantas ia ela consegue inibir ideias in statu nascendi antes que sejam notadas pela consciência quando o seu investimento pode ocasionar o desprazer Esse é o ponto fraco de nossa organização psíquica que pode ser utilizado para fazer voltar ao domínio do princípio do prazer processos de pensamento que já se haviam tornado racionais Um elemento essencial da predisposição psíquica para a neurose é então fornecido pelo atraso em educar o instinto sexual na consideração da realidade e também pelas condições que tornam possível esse atraso 85275 4 Assim como o Eudeprazer não pode senão desejar trabalhar pela ob tenção de prazer e evitar o desprazer o Eurealidade necessita apenas buscar o que é útil e protegerse dos danos6 Na verdade a substituição do princípio do prazer pelo da realidade não significa a deposição do princípio do prazer mas a sua salvaguarda Abandonase um prazer momentâneo incerto quanto a seus resultados para ganhar no novo caminho um prazer seguro que virá depois A impressão endopsíquica produzida por essa substituição foi tão poderosa que se refletiu num mito religioso especial A doutrina da recompensa no outro mundo pela renúncia voluntária ou imposta aos prazeres terrenos não é mais que a projeção mítica dessa reviravolta psíquica Seguindo con sequentemente esse modelo as religiões puderam impor a renúncia absoluta ao prazer nesta vida em troca do ressarcimento numa vida futura mas uma su peração do princípio do prazer elas não obtiveram por esse meio A ciência es taria mais próxima de obtêlo mas oferece também prazer intelectual no tra balho e promete um ganho prático no final 5 A educação pode ser descrita sem hesitação como um incentivo à super ação do princípio do prazer à substituição dele pelo princípio da realidade ela pretende ajudar no processo de desenvolvimento que afeta o Eu recorre para isso a prêmios de amor oferecidos pelo educador e por isso falha se a criança mimada pensa que de todo modo possui esse amor e que em nenhuma circun stância o perde 6 A arte efetua por via peculiar uma reconciliação dos dois princípios O artista é originalmente um homem que se afasta da realidade por não poder aceitar a renúncia à satisfação dos instintos que ela inicialmente requer e con cede a seus desejos eróticos e ambiciosos inteira liberdade na fantasia Mas en contra o caminho de volta desse mundo de fantasia para a realidade ao trans formar suas fantasias por meio de dons especiais em realidades de um novo tipo valorizadas pelos homens como reflexos preciosos do real De certa maneira ele se torna assim o herói o rei o criador o favorito que desejava 86275 ser sem tomar o longo rodeio da efetiva mudança do mundo exterior Mas o consegue somente porque as outras pessoas partilham a sua insatisfação com a renúncia real exigida e porque tal insatisfação que resulta da substituição do princípio do prazer pelo da realidade é ela mesma parte da realidade7 7 Enquanto o Eu perfaz sua transformação de Eudeprazer em Eurealid ade os instintos sexuais experimentam as mudanças que os levam do autoerot ismo inicial até o amor objetal a serviço da procriação passando por várias fases intermediárias Se for correto que cada etapa desses dois cursos de desen volvimento pode se tornar a sede da predisposição para uma neurose posterior é natural supor que a decisão sobre a forma da doença posterior a escolha da neurose dependerá da fase do desenvolvimento do Eu e da libido em que ocorreu a inibição do desenvolvimento que predispõe à enfermidade Adquir em insuspeitada importância desse modo as características temporais dos dois desenvolvimentos ainda não estudadas o possível retardamento de um em re lação ao outro 8 A mais surpreendente característica dos processos inconscientes reprim idos à qual o investigador se habitua apenas com grande superação de si consiste em que neles a prova da realidade não conta a realidade do pensamento é equiparada à realidade externa o desejo à sua realização ao acontecimento tal como sucede naturalmente sob o domínio do velho princí pio do prazer Daí também a dificuldade em distinguir fantasias inconscientes de lembranças tornadas inconscientes Mas não nos deixemos induzir ao erro de transpor para formações psíquicas reprimidas os valores da realidade de subestimar por exemplo o papel das fantasias na formação dos sintomas pelo fato de não serem justamente realidades ou derivar de alguma outra fonte um sentimento de culpa neurótico por não se ter evidência de um crime real cometido Temos a obrigação de usar a moeda vigente no país que invest igamos no caso a moeda neurótica Procurese desvendar um sonho como este por exemplo Um homem que cuidou de seu pai numa prolongada e 87275 penosa doença mortal conta que nos meses seguintes ao falecimento sonhou repetidas vezes que o pai vivia novamente e falava com ele como antes mas ao mesmo tempo lhe doía muito que o pai já tivesse morrido e apenas não o soubesse Não resta outro caminho para compreender este sonho aparente mente absurdo senão acrescentar conforme o desejo do sonhador ou em consequência do seu desejo após as palavras que o pai já tivesse morrido e que ele o desejava após as últimas palavras O pensamento onírico é então o seguinte para ele é uma lembrança dolorosa ter tido que desejar a morte do pai como liberação enquanto ele ainda vivia e como seria terrível se ele tivesse suspeitado disso Tratase então do conhecido caso de autorrecriminações após a perda de uma pessoa querida e a recriminação diz respeito neste exem plo à significação infantil do desejo de morte relativo ao pai As deficiências deste pequeno ensaio mais preparatório do que conclusivo talvez sejam desculpadas em alguma medida se eu afirmar que são inevitáveis Nessas poucas páginas sobre as consequências psíquicas da adaptação ao princípio da realidade tive que anunciar pontos de vista que de preferência ainda manteria reservados e que demandarão esforços nada pequenos para serem fundamentados Mas quero crer que ao leitor benevolente não escapará onde também neste trabalho começa o domínio do princípio da realidade Tendência Tendenz no original na Standard inglesa trad James Strachey Standard edi tion Londres Hogarth Press 1958 se acha purpose propósito o que nos parece ques tionável A versão espanhola tradicional de LopezBallesteros Obras completas Madri Bibli oteca Nueva 3a ed 1973 omite o trecho que inclui a palavra e provavelmente a tendência portanto a omissão de palavras e de passagens inteiras é infelizmente algo comum nessa ver são espanhola 1 P Janet Les névroses Paris 1909 Bibliothèque de Philosophie Scientifique 2 Otto Rank apontou recentemente numa passagem de Schopenhauer uma intuição notavel mente clara dessa relação causal O mundo como vontade e representação v 2 cap 32 Ver Zen tralblatt für Psychoanalyse caderno 12 1910 Freud se refere aqui a uma contribuição de 88275 Rank publicada nesse número da Zentralblatt intitulada Schopenhauer über den Wahnsinn Schopenhauer sobre a loucura Na frase anterior ele menciona Wilhelm Griesinger 18171868 psiquiatra berlinense que já havia considerado a realização de desejos um traço ca racterístico das psicoses e dos sonhos No corpo de nossas teorias in das Gefüge unserer Lehren A palavra Gefüge pede um comentário pois sua semântica é mais sutil que a do termo português que empregamos ela designa os encaixes de uma construção as junções de um sistema em sentido concreto ou fig urado Das traduções consultadas duas também utilizaram corpo a antiga espanhola op cit e a francesa Anne Berman em La technique psychanalytique Paris puf 5a ed 1975 A nova tradução castelhana José L Etcheverry em Obras completas Buenos Aires Amorrortu 4a reimpressão da 2a ed 1993 que sempre busca a literalidade usa ensambladura a inglesa structure Esse último é um termo que Strachey usa com frequência para verter palavras diver sas o que de acordo com alguns críticos seria indicativo de uma tendência a interpretar a teoria freudiana de modo mais esquemático do que o permitido pelo original alemão Processos anímicos seelische Vorgänge Também se poderia dizer psíquicos pois não parece haver diferença no uso que Freud faz de psychisch e seelisch Como se sabe Bruno Bettelheim usou a palavra alma como pedra de toque em sua crítica da edição Standard inglesa Freud e a alma humana São Paulo Cultrix 1984 distinguindo na versão de Seele por mind um desvirtuamento da concepção freudiana Alguns anos depois Jean Laplanche em Traduzir Freud São Paulo Martins Fontes 1992 diferenciou resolutamente o psíquico do an ímico Uma refutação desses dois autores nessa questão específica pode ser lida em Paulo César de Souza As palavras de Freud o vocabulário freudiano e suas versões São Paulo Com panhia das Letras nova ed revista 2010 capítulo sobre a gênese da nova edição francesa 3 O estado de sono pode oferecer a imagem fiel da vida psíquica antes do reconhecimento da realidade pois tem como pressuposto a negação intencional da realidade o desejo de dormir 4 Tentarei complementar essa exposição esquemática com alguns detalhes Com razão se ob jetará que tal organização que se abandona ao princípio do prazer e negligencia a realidade do mundo externo não poderia se manter viva por um tempo mínimo de modo que nem sequer chegaria a nascer O emprego de uma ficção como essa se justifica porém pela observação de que o bebê se considerarmos igualmente o cuidado materno quase que realiza um sistema psíquico desse tipo Ele provavelmente alucina o atendimento de suas necessidades internas revela seu desprazer com o estímulo crescente e a ausência de satisfação através da descarga motora dos gritos e do esperneio e então experimenta a satisfação alucinada Mais tarde quando criança aprende a utilizar essas manifestações de descarga intencionalmente como 89275 meios de expressão Como o trato dos bebês é o modelo do posterior cuidado das crianças o domínio do princípio do prazer só pode realmente acabar quando há o completo desligamento psíquico dos pais Um bom exemplo de sistema psíquico isolado dos estímulos do mundo ex terno capaz de satisfazer autisticamente usando um termo de Bleuler suas necessidades de al imentação é oferecido pelo ovo de pássaro que tem a provisão de alimento contida na casca e para o qual o cuidado materno se limita ao fornecimento de calor Não verei como retificação mas como desenvolvimento do esquema em questão se forem exigidos para um sistema que vive de acordo com o princípio do prazer dispositivos mediante os quais ele possa furtarse aos estímulos da realidade Esses dispositivos são apenas o correlato da repressão que trata estímulos internos de desprazer como se fossem externos ou seja colocaos no mundo exterior 5 Como uma nação cuja riqueza se baseia na exploração de recursos do solo mas reserva um determinado território que deve ser deixado na condição original e poupado das mudanças trazidas pela cultura Yellowstone Park Eudeprazer Eurealidade LustIch RealIch omitimos o de na segunda expressão por razões de eufonia acreditando que o entendimento não será comprometido por isso as versões consultadas usam el Yo sometido al principio del plazer el Yo regido por el principio de la realidad yoplacer yorealidad moiplaisir moirealité pleasureego realityego Na presente edição das obras de Freud adotamos Eu para verter o Ich algo que já se admitia no Vocab ulário de psicanálise São Paulo Martins Fontes 11a ed revista e adaptada para o Brasil 1991 de todo modo este tradutor não conseguiria utilizar ego para verter o simples e corriqueiro Ich alemão 6 A vantagem do Eurealidade sobre o Eudeprazer foi muito bem expressa por Bernard Shaw com as seguintes palavras To be able to choose the line of greatest advantage instead of yielding in the direction of least resistance Ser capaz de escolher a linha de maior vantagem em vez de ceder na direção de menor resistência Man and superman a comedy and a philosophy Realidades de um novo tipo eine neue Art von Wirklichkeiten Na edição Standard v xii Londres 1958 p 224 se acha truths of a new kind verdades de um novo tipo Strachey mudou de forma injustificada a versão inglesa anterior que dizia a new kind of reality no sin gular o original é plural 7 Cf algo semelhante em Otto Rank Der Künstler O artista Leipzig e Viena 1907 O possível retardamento de um em relação ao outro deren mögliche Verschiebung gegenein ander nas versões consultadas y sus posibles desplazamientos recíprocos y su posible 90275 desplazamiento recíproco et la possibilité de leur déplacement lun par rapport à lautre and possible variations in their synchronization A primeira acepção do verbo verschieben é deslocar uma peça de mobília por exemplo Daí a costumeira versão de Verschiebung por desloca mento Mas esse termo também pode designar um deslocamento temporal um adiamento acepção testemunhada por exemplo no provérbio que diz Verschiebe nicht auf morgen was du heute kannst besorgen Não deixe para amanhã o que pode fazer hoje Logo passa a fazer sentido a versão à primeira vista surpreendente de Strachey synchronization e também a ex pressão variations in speed na versão inglesa anterior de M N Searl em Collected papers iv Londres 1925 perde algo de sua estranheza Um indício de que o deslocamento temporal seria a conotação pretendida por Freud nessa passagem está em que ele não usa a conjunção e ou seja está especificando as características temporais dos dois desenvolvimentos e não acrescentando algo mais que adquire insuspeitada importância 91275 O USO DA INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS NA PSICANÁLISE 1911 TÍTULO ORIGINAL DIE HANDHABUNG DER TRAUMDEUTUNG IN DER PSYCHOANALYSE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM ZENTRALBLATT FÜR PSYCHOANALYSE FOLHA CENTRAL DE PSICANÁLISE V 2 N 3 PP 10913 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 3507 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE ERGÄNZUNGSBAND VOLUME COMPLEMENTAR PP 14956 ESTA TRADUÇÃO FOI PUBLICADA ORIGINALMENTE EM JORNAL DE PSICANÁLISE SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE SÃO PAULO V 31 N 57 PP 25964 SETEMBRO DE 1998 ALGUMAS DAS NOTAS DO TRADUTOR FORAM OMITIDAS NA PRESENTE EDIÇÃO A Zentralblatt für Psychoanalyse pretende não só informar acerca dos pro gressos da psicanálise e publicar colaborações breves mas cumprir também as tarefas de expor claramente ao aprendiz o que já é conhecido e poupar tempo e esforço ao iniciante na prática psicanalítica oferecendolhe instruções adequa das De modo que a partir de agora também aparecerão nesta revista ensaios didáticos e de conteúdo técnico nos quais não será essencial que transmitam coisas novas A questão que hoje tenciono abordar não é a da técnica de interpretação dos sonhos Não se discutirá como interpretar sonhos e que valor dar à sua in terpretação mas apenas que utilização se deve fazer no tratamento psic analítico de doentes da arte da interpretação dos sonhos Sem dúvida podese proceder de maneiras diversas mas nunca é óbvia na psicanálise a resposta a questões técnicas Se existe mais de um caminho bom há também muitos ru ins e uma comparação de técnicas diversas é sempre esclarecedora mesmo quando não leva à escolha de um determinado método Quem chega à prática psicanalítica a partir da interpretação de sonhos mantém o interesse pelo conteúdo dos sonhos e procura então interpretar o mais completamente possível cada sonho que o doente lhe traz Mas logo verá que trabalha em condições bem diferentes e que entra em choque com as tare fas imediatas da terapia se tenta realizar seu propósito Se digamos o primeiro sonho do paciente revelouse extraordinariamente adequado para in troduzir as primeiras explicações a lhe serem dadas não tardam a surgir son hos tão compridos e obscuros que sua interpretação não pode ser consumada no limitado período de uma sessão Prosseguindo esse trabalho de inter pretação nos dias seguintes o médico ouvirá novos sonhos que terão de ser deixados para depois até que ele possa dar por resolvido o primeiro Ocasion almente a produção de sonhos é tão rica e tão hesitante o progresso do doente na compreensão deles que o analista não pode se furtar à ideia de que tal abundância de material seria apenas uma manifestação de resistência que se aproveita da experiência de que a terapia não pode dar conta do que lhe é as sim apresentado Mas nesse meiotempo a terapia ficou muito atrás do presente e perdeu o contato com a atualidade A semelhante técnica devese contrapor a regra de que para o tratamento é da maior importância conhecer a todo mo mento a superfície psíquica do doente estar a par dos complexos e das res istências que então foram nele ativados e da reação consciente a eles que gov ernará sua conduta Dificilmente será lícito descuidar esse objetivo terapêutico em favor do interesse na interpretação de sonhos Como agir então com a interpretação de sonhos na análise se tivermos presente essa regra Mais ou menos desta forma devemos nos contentar com a interpretação a que conseguimos chegar numa sessão e não ver como uma perda o fato de não conhecermos integralmente o conteúdo do sonho No dia seguinte não se deve prosseguir o trabalho de interpretação naturalmente mas apenas ao notar que entretanto nada mais se apresentou em primeiro plano ao paciente Pois assim não se faz exceção em favor de uma interpretação de sonho interrompida à regra de abordar sempre o que primeiro vem à cabeça do paciente Se novos sonhos aparecem antes de terminarmos com os anteriores voltemonos para essas mais recentes produções sem nos recrimin armos por negligenciar as mais antigas Se os sonhos se tornaram demasiado amplos e difusos devemos de antemão renunciar a uma solução completa Evitemos em geral mostrar especial interesse pela interpretação dos sonhos ou despertar no doente a crença de que o trabalho pararia caso ele não mais os trouxesse Senão correse o perigo de guiar a resistência para a produção onírica e provocar um esgotamento dos sonhos O analisando deve isto sim ser levado à convicção de que em todo caso a análise tem material para prosseguir trazendo ele sonhos ou não e independente do quanto nos ocupe mos deles Agora surge a pergunta não se renuncia a muito material valioso para a revelação do inconsciente ao fazer a interpretação de sonhos apenas com tais 94275 restrições de método A isso cabe responder que a perda não é tão grande quanto pode parecer antes de nos aprofundarmos na matéria Tenhamos claro por um lado que em casos severos de neurose qualquer produção onírica elaborada deve em princípio ser tida como não solucionável por completo Um sonho tal se baseia frequentemente em todo o material patogênico do caso que o médico e o paciente ainda não conhecem os chamados sonhos programáticos sonhos biográficos às vezes ele equivale a uma tradução para a linguagem onírica de todo o conteúdo da neurose Tentando interpretar um sonho desses todas as resistências presentes e ainda intactas entrarão em atividade e em breve porão um limite à compreensão A completa inter pretação de um sonho desses coincide justamente com a realização de toda a análise Tendoo registrado no começo da análise possivelmente o com preenderemos no fim da mesma muitos meses depois É o mesmo caso do en tendimento de um sintoma isolado do sintoma principal digamos A análise inteira serve ao esclarecimento dele durante o tratamento é preciso tentar apreender um após o outro ora esse ora aquele fragmento de significação do sintoma até podermos juntálos todos Portanto mais não se pode exigir de um sonho que sobrevém no começo da análise devemos nos dar por satisfei tos se na tentativa de interpretação já percebemos um único desejo patogênico Assim não renunciamos a nada exequível ao abandonar o propósito de uma completa interpretação de sonho Mas via de regra também nada per demos ao interromper a interpretação de um sonho mais antigo para nos diri girmos a um mais recente Vimos por bons exemplos de sonhos plenamente interpretados que várias cenas sucessivas do mesmo sonho podem ter o mesmo conteúdo que nelas se impõe com crescente nitidez Também vimos que vários sonhos ocorrendo na mesma noite talvez não passem de tentativas de representar o mesmo conteúdo de maneiras diversas Em geral podemos es tar certos de que todo desejo que hoje dá origem a um sonho retornará num outro sonho na medida em que não seja entendido e subtraído à dominação do 95275 inconsciente Assim frequentemente sucede que o melhor caminho para com pletar a interpretação de um sonho é deixálo e nos dedicarmos ao novo sonho que abriga o mesmo material em forma talvez mais acessível Sei que não apenas para o analisando mas também para o médico significa pedir muito abandonar as ideias conscientes intencionais durante o tratamento e entregarse totalmente a uma orientação que sempre nos parece casual Mas posso garantir que somos recompensados cada vez que nos decidimos a ter fé em nossas afirmações teóricas e nos convencemos a não disputar à direção do inconsciente o estabelecimento das conexões Portanto advogo que a interpretação de sonhos no tratamento analítico não seja praticada como uma arte em si mesma mas que o seu uso seja sub metido às regras técnicas que presidem a realização da terapia Naturalmente há ocasiões em que se pode agir de outro modo e ceder um tanto ao interesse teórico Mas é preciso saber o que se está fazendo Um outro caso a ser considerado apresentouse desde que passamos a ter maior confiança em nossa compreensão do simbolismo onírico vendonos mais independentes das asso ciações do paciente Um intérprete de sonhos particularmente hábil talvez se ache em condição de penetrar cada sonho do paciente sem ter de obrigálo ao demorado e trabalhoso escrutínio do sonho Para tal psicanalista não há port anto qualquer conflito entre as exigências da interpretação dos sonhos e as da terapia E também ele se sentirá tentado a explorála totalmente a cada vez comunicando ao paciente tudo o que discerniu em seus sonhos Com isso porém ele estará adotando uma metodologia que difere consideravelmente daquela regular como demonstrarei num outro contexto De todo modo para os iniciantes na prática psicanalítica não é aconselhável que tomem esse caso excepcional por modelo Em face dos primeiros sonhos comunicados pelo paciente enquanto ele nada aprendeu ainda sobre a técnica de traduzir sonhos todo analista se com porta como o superior intérprete de sonhos que imaginamos Estes sonhos 96275 iniciais são ingênuos por assim dizer eles revelam muito ao ouvinte tal como os sonhos dos chamados homens saudáveis Aqui surge a pergunta deve o médico imediatamente traduzir para o doente tudo o que ele próprio leu do sonho Ela não será respondida agora porém pois claramente se subordina a outra mais abrangente sobre em que fase do tratamento e em que marcha o doente deve ser iniciado pelo médico no conhecimento do que lhe está oculto na psique Quanto mais o paciente aprende sobre o exercício da interpretação de sonhos mais obscuros serão via de regra seus sonhos posteriores Todo saber adquirido sobre os sonhos serve também como advertência para a form ação de sonhos Nos trabalhos científicos sobre os sonhos que apesar do repúdio à inter pretação dos sonhos receberam um novo impulso através da psicanálise con stantemente se acha um cuidado bem supérfluo com a fiel conservação do texto do sonho que supostamente deve ser preservado das desfigurações e desgastes das horas diurnas seguintes E alguns psicanalistas parecem não se valer de modo coerente do conhecimento adquirido sobre as condições de formação dos sonhos quando encarregam o paciente de fixar por escrito cada sonho logo após o despertar Essa medida é supérflua na terapia e os doentes gostam de se valer de tal instrução para perturbar o próprio sono e empregar enorme zelo onde isso não é útil Pois tendo assim salvado laboriosamente o texto de um sonho que de outro modo seria apagado pelo esquecimento não é difícil darse conta de que com isso nada foi alcançado para o doente Não surgem associações relativas ao texto e o resultado é o mesmo que teríamos se o sonho não tivesse sido conservado Certamente o médico se inteirou de algo que de outra forma lhe teria escapado Mas não é a mesma coisa se é o médico ou o paciente que sabe de algo a importância dessa diferença para a técnica da psicanálise será por nós apreciada em outra ocasião Finalizando mencionarei um tipo especial de sonho que por suas con dições somente numa terapia analítica pode ocorrer e que talvez desconcerte ou desencaminhe o iniciante São os chamados sonhos confirmadores ou que 97275 seguem atrás facilmente acessíveis à interpretação e cuja tradução resulta apenas no que o tratamento já inferira do material das associações diurnas nos últimos dias É como se o paciente tivesse a amabilidade de nos trazer em forma de sonho justamente o que lhe sugerimos logo antes Sem dúvida o analista mais treinado não espera tais amabilidades do seu paciente ele toma tais sonhos como confirmações desejadas e constata que são observados apen as em determinadas condições da influência mediante o tratamento A grande maioria dos sonhos corre adiante da terapia de modo que uma vez despojados de tudo já conhecido e compreensível temse uma indicação mais ou menos clara do que até então permanecera oculto Terapia Kur A tradução de Kur por cura seria enganosa pois em português diferente mente de outras línguas latinas a palavra denota antes a recuperação da saúde do que o trata mento dela o resultado não o processo Strachey Standard edition Londres Hogarth Press 1958 usa method nessa frase mas em geral recorre a treatment que já se encontra na frase seguinte onde novamente aparece Kur Compreensão Einsicht termo de tradução notoriamente problemática correspondendo em geral ao inglês insight No caso porém está mais próximo de understanding e essa é de fato a versão preferida por Strachey nesse ponto Standard edition xii 93 Nas outras versões estrangeiras consultadas se encontram as seguintes opções penetración trad LLopezBalles teros y de Torres Obras completas ii Madri Biblioteca Nueva 3a ed 1973 p 1645 intelección Etcheverry em Obras completas Buenos Aires Amorrortu 4a reimpressão da 2a ed 1993 p 89 on ny voit plus rien Anne Berman em La technique psychanalytique Paris puf 5a ed 1975 p 46 inzicht Wilfred Oranje Nederlandse Editie Klinische Beschouwingen 4 Amsterdã Boom 1992 p 63 Desejo Wunschregung nas traduções consultadas impulso optativo moción de deseo émoi de désir wishful impulse wensimpuls Wunsch claramente aparentado ao inglês wish e ao holandês wens traduzse desde sempre por desejo O problema está em como verter Regung Com ex ceção do tradutor argentino os consultados recorreram a impulso Etcheverry foi certa mente influenciado pelos novos tradutores franceses que empregam motion Moção está lig ado etimologicamente a mover sem dúvida quem gosta de cinema não esquece a expressão inglesa para filmes motion pictures imagens em movimento Mas em português a palavra 98275 designa uma proposta feita numa assembleia é parte da linguagem políticoparlamentar nin guém a usa com o sentido de movimento Por isso utilizamos também impulso numa outra ocasião em que a traduzimos cf Recordar repetir e elaborar neste mesmo volume Aqui porém ela vem qualificada pelo substantivo que a precede e que com ela forma um com posto Impulso desejoso soaria deveras estranho Daí a versão por simplesmente desejo tendo em mente passagens onde Freud alterna por exemplo Trieb e Triebregung com o mesmo sentido O inconsciente Gesammelte Werke x p 276 parte iii cf também Nota sobre a tradução dos compostos alemães em Paulo César de Souza As palavras de Freud o vocabulário freudiano e suas versões São Paulo Companhia das Letras nova ed revista 2010 Ideias conscientes intencionais bewußte Zielvorstellungen O adjetivo bewußt significa con sciente o problema aqui está na versão do substantivo composto Ziel é literalmente alvo meta Vorstellung tem os sentidos de apresentação representação ideia noção imagem Por Zielvorstellung Freud entende o oposto de associações ou pensamentos espontâneos ou melhor a ausência de ideias conscientes intencionais é uma condição para que haja aqueles As demais traduções oferecem orientación consciente representacionesmeta consciente lidée des buts conscients conscious purposive aims bewuste doelvoorstellingen Cabe registrar que normal mente Strachey usa purposive idea Sobre as questões envolvendo a tradução de Vorstellung ver o capítulo dedicado a esse termo em As palavras de Freud op cit Escrutínio Bearbeitung elaboración idem paraphrase working over bewerking O termo alemão foi aqui traduzido excepcionalmente por escrutínio porque elaboração no caso indicaria antes o processo de fabricar ou tecer o sonho Do que lhe está oculto na psique no original des ihm seelisch Verhüllten nas versões consultadas de su psiquismo inconsciente de lo anímico que le está escondido les choses qui lui sont psychiquement dissimulées of what lies veiled in his mind van wat in zijn psyche verborgen ligt 99275 A DINÂMICA DA TRANSFERÊNCIA 1912 TÍTULO ORIGINAL ZUR DYNAMIK DER ÜBERTRAGUNG PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM ZENTRALBLATT FÜR PSYCHOANALYSE FOLHA CENTRAL DE PSICANÁLISE V 2 N 4 PP 16773 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 36474 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE ERGÄNZUNGSBAND VOLUME COMPLEMENTAR PP 15768 ESTA TRADUÇÃO FOI PUBLICADA ORIGINALMENTE EM JORNAL DE PSICANÁLISE SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE SÃO PAULO V 31 N 57 PP 2518 SETEMBRO DE 1998 ALGUMAS DAS NOTAS DO TRADUTOR FORAM OMITIDAS NA PRESENTE EDIÇÃO A transferência um tema quase inesgotável foi recentemente abordado de modo descritivo por W Stekel nesta Zentralblatt Desejo agora acrescentar al gumas observações que levem a entender como surge necessariamente a trans ferência numa terapia analítica e como ela chega a desempenhar seu conhecido papel no tratamento Tenhamos presente que todo ser humano pela ação conjunta de sua dis posição inata e de influências experimentadas na infância adquire um certo modo característico de conduzir sua vida amorosa isto é as condições que es tabelece para o amor os instintos que satisfaz então os objetivos que se coloca1 Isso resulta por assim dizer num clichê ou vários que no curso da vida é regularmente repetido novamente impresso na medida em que as cir cunstâncias externas e a natureza dos objetos amorosos acessíveis o permitem e que sem dúvida não é inteiramente imutável diante de impressões recentes Nossas observações mostraram que somente uma parte desses impulsos que determinam a vida amorosa perfaz o desenvolvimento psíquico essa parte está dirigida para a realidade fica à disposição da personalidade consciente e con stitui uma porção desta Outra parte desses impulsos libidinais foi detida em seu desenvolvimento está separada tanto da personalidade consciente como da realidade pôde expandirse apenas na fantasia ou permaneceu de todo no in consciente de forma que é desconhecida para a consciência da personalidade Aquele cuja necessidade de amor não é completamente satisfeita pela realidade se voltará para toda pessoa nova com expectativas libidinais e é bem provável que as duas porções de sua libido tanto a capaz de consciência quanto a incon sciente tenham participação nessa atitude É perfeitamente normal e compreensível portanto que o investimento li bidinal de uma pessoa em parte insatisfeita mantido esperançosamente em prontidão também se volte para a pessoa do médico Conforme nossa premissa tal investimento se apegará a modelos se ligará a um dos clichês presentes no indivíduo em questão ou como podemos também dizer ele in cluirá o médico numa das séries que o doente formou até então Combina com os laços reais com o médico o fato de nessa inclusão ser decisiva a imago paterna para usar a feliz expressão de Jung2 Mas a transferência não se acha presa a esse modelo pode também suceder conforme a imago da mãe do irmão etc As peculiaridades da transferência para o médico em virtude das quais ela excede em gênero e medida o que se justificaria em termos sensatos e racionais tornamse inteligíveis pela consideração de que não só as expect ativas conscientes mas também as retidas ou inconscientes produziram essa transferência Sobre essa conduta da transferência não haveria mais o que dizer ou cismar se dois pontos de especial interesse para o analista não permanecessem inex plicados Em primeiro lugar não entendemos por que a transferência nos in divíduos neuróticos em análise ocorre muito mais intensamente do que em outros que não fazem psicanálise em segundo lugar continua sendo um en igma que a transferência nos apareça como a mais forte resistência ao trata mento enquanto fora da análise temos que admitila como portadora da cura como condição do bom sucesso Pois observamos e é uma observação que pode ser repetida à vontade que quando as associações livres de um pa ciente falham3 a interrupção pode ser eliminada com a garantia de que no mo mento ele se acha sob o domínio de um pensamento ligado à pessoa do médico ou a algo que lhe diz respeito Tão logo é feito esse esclarecimento a inter rupção acaba ou a situação muda a cessação dá lugar ao silenciamento do que ocorre ao paciente À primeira vista parece uma imensa desvantagem metodológica da psic análise o fato de nela a transferência ordinariamente a mais forte alavanca do sucesso tornarse o mais poderoso meio de resistência Olhando mais atenta mente porém ao menos o primeiro dos dois problemas é afastado Não é cor reto que durante a psicanálise a transferência surja de modo mais intenso e desenfreado que fora dela Em instituições onde os doentes de nervos são tratados não analiticamente observamse as maiores intensidades e as mais in dignas formas de uma transferência que beira a servidão e também o seu 102275 inequívoco matiz erótico Uma observadora sutil como Gabriele Reuter mostrou isso quando ainda não se falava em psicanálise num livro notável que deixa transparecer as melhores percepções da natureza e da origem das neur oses4 Essas características da transferência não devem portanto ser lançadas à conta da psicanálise mas atribuídas à neurose mesma O segundo problema continua de pé Esse problema a questão de por que a transferência nos surge como res istência na psicanálise devemos agora abordar Vejamos a situação psicoló gica do tratamento Uma precondição regular e indispensável de todo adoeci mento neurótico é o processo que Jung designou adequadamente como intro versão da libido5 Ou seja diminui a porção da libido capaz de consciência voltada para a realidade e aumenta no mesmo grau a porção afastada da real idade inconsciente que ainda pode alimentar as fantasias da pessoa mas que pertence ao inconsciente A libido no todo ou em parte tomou a via da re gressão e reanimou as imagos infantis6 A terapia analítica seguea então procurando achála tornála novamente acessível à consciência pôla a ser viço da realidade Ali onde a investigação psicanalítica depara com a libido re colhida em seus esconderijos uma luta tem de irromper todas as forças que causaram a regressão da libido se levantarão como resistências ao trabalho para conservar esse novo estado de coisas Pois se a introversão ou regressão da libido não fosse justificada por uma determinada relação com o mundo ex terior nos termos mais gerais pela frustração da satisfação e não fosse ad equada para o momento não poderia em absoluto efetuarse Mas as resistên cias que têm essa origem não são as únicas nem mesmo as mais fortes A li bido à disposição da personalidade sempre estivera sob a atração dos com plexos inconscientes mais corretamente das partes desses complexos que per tencem ao inconsciente e caiu na regressão porque a atração da realidade havia relaxado Para libertála essa atração do inconsciente tem que ser super ada isto é a repressão dos instintos inconscientes e de suas produções desde então constituída no indivíduo tem que ser eliminada Disso vem a parte 103275 maior bem maior da resistência que frequentemente faz a doença persistir mesmo quando o afastamento da realidade perdeu sua justificativa mo mentânea A psicanálise tem de lidar com as resistências das duas fontes A res istência acompanha o tratamento passo a passo cada pensamento cada ato do analisando precisa levar em conta a resistência representa um compromisso entre as forças que visam a cura e as aqui descritas que a ela se opõem Seguindo um complexo patogênico desde sua representação no consciente seja evidente na forma de sintoma seja bastante discreto até sua raiz no in consciente logo se chega a uma região em que a resistência vigora tão clara mente que a associação seguinte tem de levála em conta e aparecer como compromisso entre as suas exigências e as do trabalho de investigação É en tão segundo nossa experiência que surge a transferência Quando algo do material do complexo do conteúdo do complexo se presta para ser trans ferido para a pessoa do médico ocorre essa transferência ela produz a asso ciação seguinte e se anuncia mediante sinais de resistência como uma inter rupção por exemplo Dessa experiência inferimos que essa ideia transferencial irrompeu até à consciência antes de todas as outras associações possíveis porque satisfaz também a resistência Algo assim se repete inúmeras vezes no curso de uma análise Sempre que nos avizinhamos de um complexo patogênico a parte desse complexo capaz de transferência é empurrada para a consciência e defen dida com enorme tenacidade7 Após sua superação a dos outros componentes do complexo não traz maior dificuldade Quanto mais tempo dura uma terapia analítica e quanto mais claramente o analisando reconhecer que apenas distorções do material pato gênico não o protegem de ser revelado mais consequentemente ele se serve do tipo de distorção que claramente lhe oferece as maiores vantagens a distorção pela transferência Essas circunstâncias tendem para uma situação em que afi nal todos os conflitos têm que ser decididos no âmbito da transferência Assim a transferência na análise sempre nos aparece de imediato apenas como a mais poderosa arma da resistência e podemos concluir que a 104275 intensidade e a duração da transferência são efeito e expressão da resistência O mecanismo da transferência é explicado se o referimos à prontidão da li bido que permaneceu de posse de imagos infantis mas só chegamos ao es clarecimento de seu papel na terapia se abordamos os seus vínculos com a resistência Por que a transferência se presta assim admiravelmente a servir como meio de resistência Seria de crer que a resposta a essa pergunta deve ser fácil Pois é claro que a confissão de todo desejo proibido é especialmente dificultada quando deve ser feita à própria pessoa à qual ele diz respeito Tal imposição leva a situações que parecem quase inviáveis no mundo real É precisamente isso o que pretende alcançar o analisando quando faz coincidir o objeto de seus impulsos afetivos com o médico Uma reflexão mais atenta mostra porém que esse aparente ganho não pode trazer a solução do problema Uma relação de terno e dedicado afeto pode pelo contrário ajudar a vencer todas as dificuldades da admissão Em condições reais análogas costumase dizer Na sua frente não me envergonho a você posso falar tudo A transferência para o médico poderia igualmente facilitar a confissão não se compreendendo por que a dificulta A resposta a essa questão que repetidamente colocamos aqui não será ob tida mediante mais reflexão mas pelo que se aprende na investigação das res istências transferenciais da terapia Notase por fim que não é possível en tender o uso da transferência para a resistência se pensamos tão só em trans ferência É preciso resolverse a distinguir uma transferência positiva de uma negativa a transferência de sentimentos ternos daquela hostil e tratar diferentemente os dois tipos de transferência para o médico A transferência positiva decompõese ainda na dos sentimentos amigáveis ou ternos que são capazes de consciência e na dos prolongamentos destes no inconsciente Quanto aos últimos a psicanálise mostra que via de regra remontam a fontes eróticas de maneira que temos de chegar à compreensão de que todos os nos sos afetos de simpatia amizade confiança etc tão proveitosos na vida ligam 105275 se geneticamente à sexualidade e se desenvolveram por enfraquecimento da meta sexual a partir de anseios puramente sexuais por mais puros e não sen suais que se apresentem à nossa autopercepção consciente Originalmente só conhecemos objetos sexuais a psicanálise nos faz ver que as pessoas que em nossa vida são apenas estimadas ou respeitadas podem ser ainda objetos sexuais para o inconsciente dentro de nós A solução do enigma é portanto que a transferência para o médico presta se para resistência na terapia somente na medida em que é transferência negat iva ou transferência positiva de impulsos eróticos reprimidos Se abolimos a transferência tornandoa consciente apenas desligamos da pessoa do médico esses dois componentes do ato afetivo o outro componente capaz de con sciência e não repulsivo subsiste e é o veículo do sucesso na psicanálise exata mente como em outros métodos de tratamento Até então admitimos de bom grado que os resultados da psicanálise se basearam na sugestão mas devese entender por sugestão aquilo que juntamente com Ferenczi8 nela encon tramos a influência sobre um indivíduo por meio dos fenômenos de transfer ência nele possíveis Nós cuidamos da independência final do paciente ao util izar a sugestão para fazêlo realizar um trabalho psíquico que terá por con sequência necessária uma duradoura melhora da sua situação psíquica Podese ainda perguntar por que os fenômenos de resistência da transferên cia surgem somente na psicanálise e não num tratamento indiferenciado por exemplo em instituições A resposta é eles se mostram também ali mas têm de ser apreciados como tais A irrupção da transferência negativa é até mesmo frequente nas instituições Tão logo o doente cai sob o domínio da transferên cia negativa ele deixa a instituição sem ter mudado ou tendo piorado A trans ferência erótica não age tão inibidoramente em instituições pois ali como na vida é atenuada em vez de revelada Manifestase bem nitidamente como res istência à cura porém não ao tirar o doente da instituição pelo contrário ela o retém lá mas ao mantêlo afastado da vida Pois para a cura não 106275 importa se o doente internado supera essa ou aquela angústia ou inibição in teressa é que também na realidade de sua vida ele se livre delas A transferência negativa merece uma apreciação mais detalhada que não pode ser feita nos limites deste trabalho Nas formas curáveis de psiconeuroses ela se acha ao lado da transferência afetuosa com frequência dirigida simul taneamente à mesma pessoa para esse fato Bleuler cunhou a feliz expressão ambivalência9 Tal ambivalência de sentimentos parece normal até uma certa medida mas um alto grau de ambivalência dos sentimentos é sem dúvida uma peculiaridade dos neuróticos Na neurose obsessiva uma precoce sep aração dos pares de opostos parece ser característica da vida instintual e rep resentar uma de suas precondições constitucionais A ambivalência nas inclin ações afetivas é o que melhor explica a capacidade de os neuróticos porem suas transferências a serviço da resistência Quando a capacidade de transferência tornase essencialmente negativa como nos paranoicos acaba a possibilidade de influência e de cura Mas em toda essa discussão apreciamos até aqui apenas um lado do prob lema da transferência é necessário voltar nossa atenção para outro aspecto do mesmo tema Quem teve a impressão correta de como o analisando é lançado para fora de suas reais relações com o médico assim que cai sob o domínio de uma formidável resistência de transferência como ele então se permite a liber dade de ignorar a regra psicanalítica básica a de que se deve informar de maneira acrítica tudo o que vier à mente como esquece os propósitos com que iniciou o tratamento e como nexos e conclusões lógicas que pouco antes lhe haviam feito enorme impressão se lhe tornam indiferentes esse terá ne cessidade de explicar tal impressão a partir de outros fatores que não os men cionados aqui e eles não se acham distantes afinal resultam novamente da situação psicológica em que a terapia colocou o paciente Na busca da libido que se extraviou do consciente penetramos no âmbito do inconsciente As reações que obtemos trazem então à luz algumas das cara cterísticas dos processos inconscientes que chegamos a conhecer pelo estudo 107275 dos sonhos Os impulsos inconscientes não querem ser lembrados como a ter apia o deseja procurando isto sim reproduzirse de acordo com a atemporal idade e a capacidade de alucinação do inconsciente Tal como nos sonhos o doente atribui realidade e atualidade aos produtos do despertar de seus im pulsos inconscientes ele quer dar corpo a suas paixões sem considerar a situ ação real O médico quer leválo a inserir esses impulsos afetivos no contexto do tratamento e no da sua história a submetêlos à consideração intelectual e conhecêlos segundo o seu valor psíquico Essa luta entre médico e paciente entre intelecto e vida instintual entre conhecer e querer dar corpo desenrolase quase exclusivamente nos fenômenos da transferência É nesse campo que deve ser conquistada a vitória cuja expressão é a permanente cura da neurose É inegável que o controle dos fenômenos da transferência oferece as maiores dificuldades ao psicanalista mas não se deve esquecer que justa mente eles nos prestam o inestimável serviço de tornar atuais e manifestos os impulsos amorosos ocultos e esquecidos dos pacientes pois afinal é impossível liquidar alguém in absentia ou in effigie 1 Este é o momento de nos defendermos da injusta objeção de que teríamos negado a im portância dos fatores inatos constitucionais por ressaltarmos as impressões infantis Uma tal objeção deriva da estreiteza da necessidade causal das pessoas que contrariamente à configur ação habitual da realidade quer se satisfazer com um único fator causador A psicanálise manifestouse bastante acerca dos fatores acidentais da etiologia e pouco a respeito dos con stitucionais mas somente porque pôde contribuir com algo novo para aqueles enquanto sobre estes não sabia mais do que o que geralmente se sabe Nós nos recusamos a estabelecer em princípio uma oposição entre as duas séries de fatores etiológicos supomos isto sim uma reg ular colaboração de ambas para produzir o efeito observado αíµων και Τυχη Dis posição e Acaso determinam o destino de um ser humano raramente talvez nunca apenas um desses poderes Só individualmente será possível avaliar como se divide entre os dois a eficácia etiológica A série na qual se arranjam as magnitudes variáveis dos dois fatores também terá seus casos extremos Segundo o estágio de nosso conhecimento estimaremos de modo diverso a parte da constituição ou da experiência em cada caso individual mantendo o direito de 108275 modificar nosso juízo conforme a mudança em nossa compreensão Aliás podese ousar ver a constituição mesma como o precipitado das influências acidentais sobre a infinita série dos antepassados Expectativas libidinais libidinöse Erwartungsvorstellungen nas versões estrangeiras con sultadas durante a elaboração desta encontramos representaciones libidinosas trad L Lopez Ballesteros y de Torres Obras completas ii Madri Biblioteca Nueva 3a ed 1973 p 1648 representacionesexpectativa libidinosas trad José L Etcheverry Obras completas xii Buenos Aires Amorrortu 4a reimpressão da 2a ed 1993 p 98 un certain espoir libidinal trad Anne Berman La technique psychanalytique Paris puf 5a ed 1975 p 51 libidinal anticipatory ideas James Strachey Standard edition v xii Londres Hogarth Press 1958 p 100 libidineuze verwachtingsvoorstellingen Wilfred Oranje Nederlandse Editie Klinische Beschouwingen 4 Am sterdã Boom 1992 p 74 Optamos por usar apenas expectativa para traduzir Erwartungs vorstellung por entender que a palavra já compreende ideia ou representação seria es tranho falar de representações ou ideias expectantes 2Wandlungen und Symbole der Libido Transformações e símbolos da libido 1911 p 164 3 Quero dizer quando realmente cessam e não por exemplo quando ele silencia em virtude de um banal sentimento de desprazer 4Aus guter Familie De boa família Berlim 1895 5 Embora várias manifestações de Jung levem a pensar que ele vê nessa introversão algo carac terístico da dementia praecox que não tem a mesma importância em outras neuroses 6 Seria cômodo dizer que ela reinvestiu os complexos infantis mas não seria justo Justi ficável seria apenas as partes inconscientes desses complexos A natureza intrincada do as sunto deste trabalho torna tentador o exame de vários problemas vizinhos cujo esclarecimento seria de fato necessário para que pudéssemos falar inequivocamente dos processos psíquicos que aqui se descreve Tais problemas são a delimitação recíproca da introversão e da re gressão o ajustamento da teoria dos complexos à teoria da libido as relações do fantasiar com o consciente e o inconsciente assim como com a realidade etc Não preciso desculparme por haver resistido a essas tentações neste momento 7 Do que não é lícito concluir porém que em geral o elemento escolhido para a resistência transferencial tem uma importância patogênica particular Se numa batalha pela posse de uma pequena igreja ou de uma propriedade os soldados lutam com particular empenho não precis amos supor que a igrejinha seja um santuário nacional ou que a casa abrigue o tesouro do ex ército O valor dos objetos pode ser puramente tático existindo talvez durante uma batalha somente 109275 É explicado ist erledigt O verbo erledigen se traduz em princípio por resolver dar conta de liquidar nas versões consultadas queda explicado se averigua on explique is dealt with is geliquideerd 8 S Ferenczi Introjektion und Übertragung Introjeção e transferência Jahrbuch für Psy choanalyse v 1 1909 Fato Sachverhalt nas versões consultadas situación estado de cosas état de choses phe nomenon stand van saken 9 E Bleuler Dementia praecox oder Gruppe der Schizophrenien Aschaffenburgs Handbuch der Psychiatrie 1911 palestra sobre a ambivalência em Berna 1910 referida em Zentralblatt für Psychoanalyse v 1 p 266 Para os mesmos fenômenos Stekel havia sugerido a designação de bipolaridade Dar corpo agieren nas versões estrangeiras consultadas dar alimento actuar mettre en actes put into action ageren Erkennen um verbo que admite vários sentidos ou nuances de sentido como se vê pelas diferentes escolhas dos cinco tradutores a que recorremos estimar discernir apprécier under stand onderkennen reconhecer 110275 RECOMENDAÇÕES AO MÉDICO QUE PRATICA A PSICANÁLISE 1912 TÍTULO ORIGINAL RATSCHLÄGE FÜR DEN ARZT BEI DER PSYCHOANALYTISCHEN BEHANDLUNG PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM ZENTRALBLATT FÜR PSYCHOANALYSE FOLHA CENTRAL DE PSICANÁLISE V 2 N 9 PP 4839 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 37687 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE ERGÄNZUNGSBAND VOLUME COMPLEMENTAR PP 16980 ESTA TRADUÇÃO FOI PUBLICADA ORIGINALMENTE EM JORNAL DE PSICANÁLISE SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE SÃO PAULO V 32 N 5859 PP 42736 NOVEMBRO DE 1999 ALGUMAS DAS NOTAS DO TRADUTOR FORAM OMITIDAS NA PRESENTE EDIÇÃO As regras técnicas que ofereço me resultaram de longos anos de experiência depois de à própria custa encetar e abandonar outros caminhos Logo se notará que elas ou ao menos muitas delas podem se resumir a um único preceito Es pero que sua observância poupe esforços inúteis aos médicos que exercem a psicanálise e lhes permita evitar alguma omissão mas devo enfatizar que essa técnica revelouse a única adequada para a minha individualidade Não me at revo a contestar que uma personalidade médica de outra constituição seja levada a preferir uma outra atitude ante os pacientes e a tarefa a ser cumprida a A primeira tarefa com que se defronta o analista que atende mais de um paciente por dia lhe parecerá também a mais difícil Ela consiste em reter na memória todos os inúmeros nomes datas detalhes de lembranças pensamen tos espontâneos e produções patológicas que um paciente traz durante o trata mento no curso de meses e anos e não confundilos com material semelhante de outros pacientes analisados antes ou no mesmo período Quando temos que analisar diariamente seis oito pacientes ou mais a proeza mnemônica que isso implica despertará nas demais pessoas incredulidade admiração ou até mesmo pena De todo modo as pessoas estarão curiosas em relação à técnica que torna possível dominar tão grande material e esperarão que ela recorra a meios especiais No entanto essa técnica é bem simples Ela rejeita qualquer expediente como veremos mesmo o de tomar notas e consiste apenas em não querer not ar nada em especial e oferecer a tudo o que se ouve a mesma atenção flutu ante segundo a expressão que usei Assim evitamos uma fadiga da atenção que certamente não poderíamos manter por muitas horas ao dia e escapamos a um perigo que é inseparável do exercício da atenção proposital Pois ao in tensificar deliberadamente a atenção começamos também a selecionar em meio ao material que se apresenta fixamos com particular agudeza um ponto eliminando assim outro e nessa escolha seguimos nossas expectativas ou in clinações Justamente isso não podemos fazer seguindo nossas expectativas corremos o perigo de nunca achar senão o que já sabemos seguindo nossas in clinações com certeza falsearemos o que é possível perceber Não devemos es quecer que em geral escutamos coisas cujo significado será conhecido apenas posteriormente Como se vê o preceito de notar igualmente tudo é a necessária contra partida à exigência de que o analisando relate tudo o que lhe ocorre sem crít ica ou seleção Se o médico se comporta de outra maneira desperdiça em boa parte o ganho que resulta da obediência à regra fundamental da psicanálise por parte do paciente Para o médico a regra pode ser formulada assim manter toda influência consciente longe de sua capacidade de observação e entregarse totalmente à sua memória inconsciente ou expresso de maneira técnica escutar e não se preocupar em notar alguma coisa O que desse modo alcançamos satisfaz a todas as exigências durante o trata mento Os elementos do material que já formam um nexo ficarão à disposição consciente do médico outros ainda não relacionados caoticamente desorde nados parecem primeiro submersos mas emergem prontamente na consciên cia tão logo o paciente traz algo novo ao qual aqueles podem se ligar e medi ante o qual podem ter continuidade Então recebemos do analisando com um sorriso o imerecido cumprimento por uma memória extraordinária quando após bastante tempo reproduzimos um detalhe que provavelmente teria con trariado a intenção consciente de fixálo na memória Erros nesse processo de recordar sucedem apenas em momentos e circun stâncias em que somos perturbados pelo envolvimento pessoal ver adiante ficando muito aquém do ideal do analista portanto Mistura com o material de outros pacientes acontece raramente Numa eventual disputa com o analis ando sobre ele ter ou não dito certa coisa ou o modo como o disse geral mente o médico está certo1 113275 b Não posso recomendar que se tomem muitas notas durante as sessões que se redijam atas etc Além da impressão desfavorável que isso causa em al guns pacientes valem aqui as mesmas considerações que tecemos a respeito da atenção Ao redigir notas ou estenografar fazemos forçosamente uma seleção prejudicial do que ouvimos e ocupamos uma parte de nossa atividade mental que teria melhor emprego se aplicada na interpretação do material Podese admitir exceções a essa regra sem qualquer objeção no caso de datas textos de sonhos ou conclusões isoladas dignas de nota que facilmente são destaca dos do contexto e se prestam a um uso independente como exemplos Mas também isso não costumo fazer Redijo os exemplos à noite de memória após o trabalho os textos de sonhos que me interessam faço os pacientes registrar em após o relato do sonho c Tomar notas durante a sessão poderia ser justificado pela intenção de tornar o caso objeto de uma publicação científica Algo que em princípio não se pode proibir Mas devese ter em mente que protocolos exatos num caso clínico psicanalítico ajudam menos do que se poderia esperar A rigor osten tam a pseudoexatidão de que a moderna psiquiatria nos oferece exemplos notórios Geralmente são cansativos para o leitor e não conseguem substituir para ele a presença na análise A experiência mostra que o leitor se estiver dis posto a crer no analista lhe dará crédito também pelo pouco de elaboração que ele empreendeu no material mas se não pretender levar a sério a análise e o analista ignorará também protocolos fiéis do tratamento Este não parece ser o caminho para remediar a falta de evidência que se enxerga nos relatos psicanalíticos d Um dos méritos que a psicanálise reivindica para si é o fato de nela coin cidirem pesquisa e tratamento mas a técnica que serve a uma contradiz a partir de certo ponto o outro Não é bom trabalhar cientificamente um caso 114275 enquanto seu tratamento não foi concluído compor sua estrutura prever seu prosseguimento de quando em quando registrar o estado em que se acha como exigiria o interesse científico O êxito é prejudicado nesses casos desti nados de antemão ao uso científico e tratados conforme as necessidades deste enquanto são mais bemsucedidos os casos em que agimos como que sem propósito surpreendendonos a cada virada e que abordamos sempre de modo despreconcebido e sem pressupostos A conduta correta para o analista está em passar de uma atitude psíquica para outra conforme a necessidade em não especular e não cogitar enquanto analisa e submeter o material reunido ao trabalho sintético do pensamento apenas depois que a análise for concluída A distinção entre as duas atitudes não faria sentido se já tivéssemos todos os con hecimentos ou pelo menos os essenciais sobre a psicologia do incon sciente e sobre a estrutura das neuroses que podemos adquirir no trabalho psicanalítico Atualmente estamos ainda longe desse objetivo e não devemos nos interditar os meios de testar o que até agora aprendemos e de acrescentar coisas novas a isso e Recomendo enfaticamente aos colegas que no tratamento psicanalítico tomem por modelo o cirurgião que deixa de lado todos os seus afetos e até mesmo sua compaixão de ser humano e concentra suas energias mentais num único objetivo levar a termo a operação do modo mais competente possível Nas circunstâncias de hoje um afeto perigoso para o analista é a ambição terapêutica de realizar com seu novo e discutido método algo que tenha efeito convincente em outras pessoas Isso não apenas o coloca numa disposição pou co favorável para o trabalho como também o deixa inerme ante determinadas resistências do paciente cujo restabelecimento depende em primeiro lugar como se sabe do jogo de forças dentro dele A justificação para se requerer tal frieza de sentimentos do psicanalista está em que ela cria as condições mais vantajosas para as duas partes para o médico a desejável proteção de sua 115275 própria vida afetiva para o doente o maior grau de ajuda que hoje podemos dar Um antigo cirurgião teve por lema a seguinte frase Je le pensai Dieu le guérit Eu lhe fiz os curativos Deus o curou O analista deveria se contentar com algo assim f É fácil ver para qual objetivo essas diferentes regras convergem Elas pretendem criar para o médico a contrapartida da regra fundamental da psicanálise estabelecida para o analisando Assim como este deve comunicar tudo o que sua autoobservação capta suspendendo toda objeção lógica e afetiva que procure induzilo a fazer uma seleção também o médico deve colocarse na posição de utilizar tudo o que lhe é comunicado para os propósi tos da interpretação do reconhecimento do inconsciente oculto sem sub stituir pela sua própria censura a seleção a que o doente renunciou Expresso numa fórmula ele deve voltar seu inconsciente como órgão receptor para o inconsciente emissor do doente colocarse ante o analisando como o receptor do telefone em relação ao microfone Assim como o receptor transforma nova mente em ondas sonoras as vibrações elétricas da linha provocadas por ondas sonoras o inconsciente do médico está capacitado a partindo dos derivados do inconsciente que lhe foram comunicados reconstruir o inconsciente que determinou os pensamentos espontâneos do paciente No entanto se o médico for capaz de usar de tal forma seu inconsciente como instrumento na análise ele próprio tem que satisfazer em grande medida uma condição psicológica Ele não pode tolerar em si mesmo resistências que afastam de sua consciência o que foi percebido por seu inconsciente senão in troduziria na análise um novo tipo de seleção e distorção bem mais prejudicial do que a produzida pelo recurso à atenção consciente Para isso não basta que ele próprio seja um indivíduo aproximadamente normal podese exigir que ele tenha se submetido a uma purificação psicanalítica e tenha tomado conheci mento daqueles seus complexos que seriam capazes de perturbar a apreensão 116275 do que é oferecido pelo analisando Não se pode razoavelmente duvidar do efeito desqualificador dessas falhas próprias a cada repressão não resolvida do médico corresponde na expressão pertinente de Wilhelm Stekel um ponto cego na sua percepção psicanalítica Anos atrás dei a seguinte resposta à questão de como alguém pode tornar se psicanalista Pela análise dos próprios sonhos Tal preparação basta para muitas pessoas certamente mas não para todos que querem aprender a analis ar Além disso nem todos conseguem interpretar os próprios sonhos sem ajuda externa Incluo entre os muitos méritos da escola psicanalítica de Zurique ter reforçado essa condição e têla fixado na exigência de que todo in divíduo que queira efetuar análise em outros deve primeiramente submeterse ele próprio a uma análise com um especialista Quem levar a sério este tra balho deveria eleger esse caminho que promete várias vantagens o sacrifício de franquear a intimidade a um estranho sem que a enfermidade o obrigue a isso é amplamente recompensado A pessoa não apenas realiza muito mais rapidamente e com menor gasto afetivo a intenção de tomar conhecimento do que traz oculto em si mesma como adquire na própria carne por assim dizer impressões e convicções que procura em vão nos livros e nas conferências Por fim devese apreciar também o benefício da duradoura relação espiritual que costuma se estabelecer entre o analisando e aquele que o guia Uma tal análise de alguém praticamente sadio permanecerá inconclusa como é de se esperar Quem estimar o valor do autoconhecimento e da elev ação do autocontrole adquiridos por meio dela prosseguirá no exame analítico da própria pessoa em forma de autoanálise e se contentará com o fato de que tanto dentro de si como fora sempre deve esperar encontrar algo novo Mas quem como analista desdenhou a precaução de analisar a si mesmo não apenas se vê castigado com a incapacidade de aprender mais que uma certa medida de seus pacientes corre também um perigo mais sério e que 117275 pode se tornar perigo para os outros Ele facilmente cairá na tentação de pro jetar sobre a ciência como teoria de validade geral aquilo que em obscura percepção ele enxerga das peculiaridades de sua própria pessoa carreando descrédito para o método psicanalítico e desencaminhando os inexperientes g Acrescento mais algumas regras em que passo da atitude do médico para o tratamento do analisando É sem dúvida atraente para um psicanalista jovem e entusiasmado colocar muito de sua individualidade para arrastar consigo o paciente e eleválo acima dos limites de sua estreita personalidade Seria perfeitamente admissível e mesmo adequado para a superação das resistências ativas no doente que o médico lhe oferecesse um vislumbre dos próprios defeitos e conflitos mentais e lhe possibilitasse pôrse em pé de igualdade dandolhe notícias confidenciais de sua vida Pois uma confiança vale a outra e quem solicita intimidade de outro deve dála em troca Mas na relação psicanalítica muita coisa transcorre de modo diferente do que se esperaria conforme a psicologia da consciência A experiência não de põe a favor de uma técnica afetiva semelhante Também não é difícil ver que com ela abandonamos o terreno psicanalítico e nos aproximamos do trata mento por sugestão Conseguese que o paciente comunique mais cedo e mais facilmente o que ele próprio já sabe e o que resistências convencionais o fari am reter por algum tempo ainda Quanto a pôr a descoberto o que é incon sciente para o doente essa técnica não ajuda apenas o torna ainda mais in capaz de superar resistências mais profundas e em casos mais difíceis fracassa devido à insaciabilidade que foi despertada no paciente que então gostaria de inverter a relação e acha a análise do médico mais interessante do que a sua Também a resolução da transferência uma das principais tarefas do trata mento é dificultada por uma atitude íntima do médico de sorte que o eventual ganho do início é mais que contrabalançado afinal Não hesito portanto em 118275 rejeitar como defeituosa essa técnica O médico deve ser opaco para o analis ando e tal como um espelho não mostrar senão o que lhe é mostrado Na prática é certo que nada se pode objetar quando um psicoterapeuta mistura um quê de análise com uma parte de influência por sugestão para alcançar êxi tos visíveis em tempo mais curto tal como é necessário por exemplo em in stituições mas podese exigir que ele tenha dúvida acerca do que faz que saiba que o seu método não é o da verdadeira psicanálise h Outra tentação vem da atividade pedagógica que no tratamento psic analítico recai sobre o médico sem que haja intenção por parte dele Dissolvendose as inibições ao desenvolvimento ocorre naturalmente que o médico chegue à situação de indicar novas metas para as tendências liberadas É então compreensível que ele ambicione fazer algo extraordinário da pessoa em cuja libertação da neurose ele tanto se empenhou e prescreva elevados ob jetivos para os desejos dela Mas também aí o médico deveria se manter em xeque e orientarse mais pela aptidão do paciente do que por seus próprios desejos Nem todos os neuróticos possuem grande talento para a sublimação de muitos podemos supor que não teriam adoecido caso dispusessem da arte de sublimar seus instintos Se os pressionamos demasiadamente para a sublim ação e lhes tiramos as gratificações de instintos mais imediatas e cômodas em geral lhes tornamos a vida ainda mais difícil do que eles a sentem Como médi cos devemos sobretudo ser tolerantes com as fraquezas do doente temos de nos contentar em recuperar ainda que seja para alguém de não muito valor algo da capacidade de realização e de fruição A ambição pedagógica é tão pouco adequada quanto a terapêutica Há a considerar também que muitas pessoas adoecem precisamente na tentativa de sublimar seus instintos além do montante permitido por sua organização e que naqueles capacitados para a sublimação este processo costuma se efetuar por si mesmo tão logo as inib ições são vencidas pela análise Acho portanto que o esforço de regularmente 119275 usar o tratamento analítico para a sublimação de instintos é sempre louvável mas de modo algum aconselhável em todos os casos i Dentro de que limites devemos buscar a colaboração intelectual do anal isando no tratamento É difícil afirmar algo de aplicação geral neste ponto A personalidade do paciente é que decide em primeiro lugar Mas de todo modo se deve observar cautela e reserva É errado colocar tarefas para o analisando dizer que ele deveria juntar suas lembranças meditar sobre um determinado período de sua vida etc Ele tem que aprender isto sim o que para ninguém é fácil admitir que com a atividade mental dessa espécie com o esforço da vontade e da atenção não se resolve nenhum dos enigmas da neurose mas somente através da observância paciente da regra psicanalítica que manda afastar a crítica ao inconsciente e seus derivados De modo particularmente implacável devemos insistir nessa regra junto aos pacientes que praticam a arte de escapulir para o âmbito intelectual no tratamento e que então refletem bastante às vezes sabiamente sobre o seu estado poupandose de fazer al guma coisa para vencêlo Por isso não gosto que meus pacientes recorram à leitura de textos psicanalíticos peço que aprendam na sua própria pessoa e lhes garanto que desse modo saberão mais do que o que toda a literatura psic analítica poderia ensinarlhes Mas reconheço que nas condições de um inter namento em instituição pode ser muito vantajoso utilizar a leitura para pre parar os analisandos e para produzir uma atmosfera de influência Desaconselho enfaticamente que se procure o apoio e a aquiescência de pais ou parentes dandolhes uma obra de psicanálise para ler seja ela profunda ou introdutória Essa medida bemintencionada basta via de regra para fazer sur gir prematuramente a natural e cedo ou tarde inevitável oposição dos parentes ao tratamento psicanalítico de um dos seus de forma tal que o trata mento não chega a ter início 120275 Manifesto a esperança de que a progressiva experiência dos analistas levará em breve a um acordo quanto à técnica mais adequada para o tratamento dos neuróticos Com relação ao tratamento de parentes confesso minha perplexid ade e deposito bem pouca confiança no seu tratamento individual No original gleichschwebende Aufmerksamkeit Uma nota da Standard inglesa informa que ao dizer que já usou a expressão Freud alude provavelmente a uma passagem da Análise da fo bia de um garoto de cinco anos 1909 e que há uma ligeira diferença entre as duas passagens De fato no texto do Pequeno Hans Freud usa gleiche Aufmerksamkeit mesma atenção en quanto o adjetivo que agora emprega é também formado de schwebend do verbo schweben pairar Strachey utiliza evenlysuspended que parece ser a melhor versão não considerando a holandesa que pode usar um composto exatamente igual ao alemão gelijkzwevende A antiga tradução espanhola utiliza flotante a nova argentina optou por parejamente flotante e a antiga versão francesa acrescenta aspas ao adjetivo flottante O verbo aqui usado por Freud erkennen pode significar conhecer reconhecer discernir perceber por isso as versões estrangeiras variam descubrimos uno discernirá se révèle re cognized onderkend reconhecido 1 Com frequência o analisando afirma já ter dito algo enquanto podemos garantir com tran quila superioridade que o está fazendo pela primeira vez Então se verifica que o analisando já teve antes a intenção de dizêlo mas foi impedido por uma resistência ainda em ação A lem brança de tal intenção é para ele indistinguível da lembrança de sua realização Faço os pacientes registrarem após o relato do sonho lasse ich von den Patienten nach der Erzählung des Traumes fixieren Essa oração não é totalmente clara Por isso há divergências nas traduções consultadas hago que el mismo enfermo ponga por escrito su relato después de habérselo oído de palabra hago que los pacientes mismos los fijen por escrito sic entre chaves tras relatar el sueño Jabandonne au patient le soin de fixer luimême I get the patient to re peat them to me after he has related them so that I can fix them in my mind laak ik door de patiën ten na het vertellen van de droom vastleggen O problema é duplo o sentido do verbo fixieren é registrar por escrito ou fixar na memória e o agente desse verbo é o analista ou o paciente Os dois tradutores de língua espanhola concordam na primeira e na segunda opções re spectivamente as palavras por escrito entre chaves achamse no texto da edição argentina A tradutora francesa omite parte da oração mas também vê o paciente como sujeito de fixer e não especifica esse verbo mais que o original A versão inglesa é a que mais discrepa o analista fixa na mente o sonho que fez o paciente repetir Para o tradutor holandês está claro que a 121275 tarefa cabe ao paciente e o verbo que usa para verter fixieren é vastleggen aparentado ao alemão festlegen que significa assentar consignar Um professor alemão e professor de alemão que consultei acha bastante provável o sentido de registrar por escrito Compor sua estrutura seinen Aufbau zusammensetzen Alguns tradutores preferiram recon struir reconstituir para verter o verbo alemão reconstruir su estructura componer su edifício en reconstituer la structure to piece together its structure de loop ervan te construeren O significado literal de zusammensetzen é colocar junto nada nele recomenda o recurso ao prefixo re em português E lembremos do próprio título de um importante artigo técnico de Freud Con struções na análise Konstruktionen in der Analyse de 1937 Outro ponto passível de dis cussão nesse trecho é a versão de Aufbau por estrutura Aufbau pode significar também construção edifício montagem organização carroceria de automóvel Devese ter presente que a Standard inglesa emprega com relativa frequência o termo structure para traduzir diversas palavras alemãs e isso pode dar uma maior impressão de rigidez ou solidez das formações psíquicas do que a que o original nos transmite É talvez significativo que a edição holandesa a mais nova entre essas use a palavra loop curso equivalente ao alemão Lauf para Aufbau Trabalho sintético do pensamento no original synthetischen Denkarbeit nas traduções con sultadas labor mental de síntesis trabajo sintético del pensar travail de synthèse synthetic process of thought synthetische denkarbeid Energias mentais geistige Kräfte energías psíquicas fuerzas espirituales omissão na tradução francesa mental forces geesteskrachten Reconhecimento Erkennung no original nas versões estrangeiras consultadas descubrimi ento discernimiento découvrir recognizing doorgronden penetrar ver nota sobre erkennen na p 150 acima Percebido novamente o verbo erkennen agora no particípio descubierto discernido les perceptions perceived onderkend Tendências não traduz exatamente Strebungen substantivo atualmente não mais usado do verbo streben que significa esforçarse por aspirar a ambicionar os outros tradutores usam tendencias aspiraciones pulsions trends strevingen 122275 O INÍCIO DO TRATAMENTO 1913 NOVAS RECOMENDAÇÕES SOBRE A TÉCNICA DA PSICANÁLISE I TÍTULO ORIGINAL ZUR EINLEITUNG DER BEHANDLUNG WEITERE RATSCHLÄGE ZUR TECHNIK DER PSYCHOANALYSE I PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM INTERNATIONALE ZEITSCHRIFT FÜR ÄRZTLICHE PSYCHOANALYSE REVISTA INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE MÉDICA V 1 N 1 PP 110 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 45478 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE ERGÄNZUNGSBAND VOLUME COMPLEMENTAR PP 181203 ESTA TRADUÇÃO FOI PUBLICADA ORIGINALMENTE NO JORNAL DE PSICANÁLISE SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE SÃO PAULO V 29 N 54 SETEMBRO DE 1996 PP 15370 O TEXTO FOI REVISADO E ALGUMAS NOTAS DO TRADUTOR FORAM OMITIDAS NA PRESENTE EDIÇÃO Quem desejar aprender nos livros o nobre jogo do xadrez logo descobrirá que somente as aberturas e os finais permitem uma descrição sistemática exaustiva enquanto a infinita variedade de movimentos após a abertura desafia uma tal descrição Apenas o estudo diligente de partidas dos mestres pode preencher a lacuna na instrução As regras que podemos oferecer para o exercício do trata mento psicanalítico estão sujeitas a limitações parecidas Nas páginas que seguem procurarei reunir para uso do analista praticante algumas dessas regras acerca do início do tratamento Entre elas estão determ inações que podem parecer triviais e que provavelmente o são Para sua justi ficação vale dizer que são precisamente regras do jogo que têm de retirar seu significado do contexto maior do jogo Mas farei bem em designálas como recomendações e em não reivindicar sua obrigatoriedade A extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas a plasticidade de todos os processos anímicos e a riqueza de fatores determinantes resistem à mecaniza ção da técnica e permitem que um procedimento em geral correto permaneça eventualmente sem efeito e que um outro normalmente errado conduza ao objetivo Essas circunstâncias não impedem porém que se estabeleça uma conduta medianamente adequada para o médico Dei as indicações mais importantes para a escolha dos doentes em outro lugar1 alguns anos atrás De modo que não as repetirei aqui nesse meio tempo elas tiveram a aprovação de outros psicanalistas Mas acrescento que desde então me habituei tratandose de um doente que conheço pouco a aceitálo de início provisoriamente pelo período de uma ou duas semanas Havendo interrupção nesse período poupamos ao doente a dolorosa im pressão de uma tentativa de cura fracassada Fezse apenas uma sondagem para conhecer o caso e decidir se é apropriado para a análise Não dispomos de uma outra espécie de prova além desse ensaio conversas e perguntas durante a sessão mesmo que frequentes e prolongadas não poderiam substituílo Mas esse ensaio preliminar já é o começo da análise e deve seguir as regras da mesma Talvez se possa distinguilo por deixarmos o paciente falar sobretudo e lhe darmos apenas os esclarecimentos que forem indispensáveis à continu ação de sua narrativa O começo do tratamento com um período de prova de algumas semanas tem também uma motivação relacionada ao diagnóstico Frequentemente em face de uma neurose com sintomas histéricos ou obsessivos mas não demasia damente pronunciados e existindo há não muito tempo ou seja precisamente a forma que tenderíamos a ver como propícia para o tratamento devese admitir a dúvida de que o caso talvez corresponda a um estágio preliminar do que se chama dementia praecox esquizofrenia segundo Bleuler parafrenia se gundo a minha sugestão e que mais cedo ou mais tarde venha a exibir um quadro acentuado dessa afecção Eu questiono que seja sempre possível fazer a distinção Sei que há psiquiatras que hesitam bem menos no diagnóstico difer encial mas pude me convencer que também erram com a mesma frequência Ocorre que para o psicanalista o erro é mais funesto que para o assim chamado psiquiatra clínico Pois este não empreende seja num caso ou no outro algo de realmente proveitoso corre apenas o perigo de um erro teórico e seu dia gnóstico tem interesse apenas acadêmico Já o psicanalista comete num caso desfavorável um desacerto prático tornase culpado de um gasto inútil e de sacredita seu procedimento terapêutico Ele não pode manter sua promessa de cura caso o paciente sofra não de histeria ou de neurose obsessiva mas de par afrenia e então tem motivos particularmente fortes para evitar o erro dia gnóstico Num tratamento experimental de algumas semanas ele com frequên cia perceberá coisas suspeitas que poderão leválo a não prosseguir com a tentativa Infelizmente não posso afirmar que tal experiência permita via de re gra uma decisão segura é apenas mais uma boa precaução2 Longas entrevistas antes do início do tratamento uma terapia preliminar de outra espécie assim como um conhecimento anterior entre o médico e o futuro analisando têm nítidas consequências desfavoráveis para as quais se deve 125275 estar preparado Pois fazem o paciente encarar o médico com atitude transfer encial pronta que o médico tem de primeiro descobrir lentamente em vez de ter a oportunidade de observar a transferência nascer e crescer Desse modo o paciente tem uma dianteira por algum tempo algo que na terapia só lhe conce demos a contragosto Devese desconfiar de todos os que propõem adiar o começo do trata mento A experiência mostra que depois do prazo combinado eles não apare cem mesmo quando o motivo desse adiamento isto é a racionalização do propósito parece irrepreensível para o não iniciado Dificuldades especiais ocorrem quando há vínculos sociais ou de amizade entre o médico e o paciente que ingressa na análise ou entre suas famílias O psicanalista a quem se pede que receba em tratamento a esposa ou o filho de um amigo pode se preparar para o fato de que o empreendimento não im portando o resultado vai lhe custar a amizade E tem que fazer o sacrifício se não arranjar um substituto confiável Leigos e médicos que ainda confundem de bom grado a psicanálise e um tratamento por sugestão costumam atribuir grande valor à expectativa que o paciente traz para o novo tratamento Acham com frequência que não se terá muito trabalho com um doente que tem enorme confiança na psicanálise e está plenamente convencido de sua verdade e eficácia Com um outro será mais di fícil pois ele se mostra cético e em nada acredita até ver o resultado em sua própria pessoa Mas na realidade essa atitude dos doentes tem importância mínima sua temporária confiança ou desconfiança pouco significa ante as res istências internas que servem de âncora para a neurose Claro que a disposição confiante do paciente torna agradável o trato inicial com ele nós lhe agradecemos por isso mas o advertimos que sua prevenção favorável será destruída pela primeira dificuldade que surgir no tratamento E ao cético dire mos que a análise não requer confiança que ele pode ser crítico e desconfiado como quiser que não levaremos sua atitude à conta do seu julgamento pois 126275 ele não se acha em condição de formar um juízo confiável nessas questões sua desconfiança é justamente um sintoma ao lado de seus outros sintomas e não interferirá se ele apenas seguir conscientemente o que a regra do tratamento dele exigir Quem estiver familiarizado com a natureza da neurose não se espantará de ouvir que mesmo alguém habilitado a praticar a psicanálise em outros pode se comportar como qualquer mortal e será capaz de produzir as mais fortes res istências tão logo se torne ele mesmo objeto da análise Então mais uma vez percebemos a dimensão psíquica profunda e nada vemos de surpreendente no fato de a neurose se enraizar em camadas psíquicas em que a formação analít ica não penetrou Pontos importantes no começo da terapia analítica são as estipulações a re speito de tempo e dinheiro No tocante ao tempo sigo estritamente o princípio de contratar uma hora definida Cada paciente recebe uma determinada hora de meu dia de trabalho ela é sua ele é responsável por ela mesmo quando não a utiliza Essa determ inação que em nossa sociedade é vista como natural para um professor de lín gua ou de música pode parecer muito rígida ou indigna da profissão no caso de um médico As pessoas tenderão a lembrar os numerosos acasos que podem impedir o paciente de a cada vez chegar ao médico na mesma hora e pedirão que sejam levadas em conta as muitas doenças intercorrentes que podem sobrevir no curso de um longo tratamento analítico A minha resposta é não há outra maneira Com uma prática mais tolerante as desistências eventuais se multiplicam de tal forma que o médico vê ameaçada a sua existência materi al Na observância rigorosa dessa determinação porém verificase que imped imentos ocasionais não ocorrem absolutamente e enfermidades intercorrentes são raras Dificilmente nos vemos na situação de gozar um ócio de que nos en vergonharíamos podemos continuar o trabalho sem interrupções evitando a experiência penosa e desconcertante de sempre ver surgir uma pausa de que 127275 não temos culpa quando o trabalho prometia se tornar particularmente im portante e rico em conteúdo Somente após exercer por alguns anos a psicanál ise em severa obediência ao princípio da hora contratada é que nos persuadi mos realmente da importância do fator psicogênico na vida cotidiana das pess oas da frequência das doenças escolares e da insignificância do acaso Hav endo indubitáveis afecções orgânicas que certamente não podem ser excluídas pelo interesse psíquico do paciente em comparecer eu interrompo o tratamento considerome autorizado a dar outro emprego à hora liberada e aceito novamente o paciente tão logo ele se restabeleça e eu tenha uma outra hora livre Trabalho com os pacientes diariamente com exceção dos domingos e dias feriados ou seja normalmente seis vezes na semana Para casos leves ou con tinuação de tratamentos avançados bastam três horas por semana Fora isso limitações de tempo não são vantajosas nem para o médico nem para o pa ciente e no começo devem ser inteiramente rejeitadas Até mesmo inter rupções breves perturbam um pouco o trabalho costumávamos falar brin cando de uma crosta da segundafeira ao começar de novo após o descanso de domingo No trabalho pouco frequente há o perigo de não acompanharmos o ritmo das vivências reais do paciente de a terapia perder o contato com o presente e enveredar por caminhos secundários Ocasionalmente encontramos doentes aos quais é preciso dedicar mais tempo que a média de uma hora pois gastam a maior parte dessa hora para degelar e se tornar comunicativos Uma pergunta incômoda para o médico que o doente lhe dirige logo no começo é Quanto tempo vai durar o tratamento Quanto tempo o senhor precisa para me livrar de meu sofrimento Tendo proposto uma experiência de algumas semanas escapamos de uma resposta direta a essa pergunta ao prometer que depois do período experimental poderemos dar uma notícia mais segura Respondemos quase como Esopo na fábula quando o andarilho per gunta pela extensão do caminho e ouve a exortação Anda que é explicada com a justificativa de que é preciso antes conhecer o passo do andarilho para 128275 poder calcular a duração de sua viagem Esse expediente nos ajuda nas primeiras dificuldades mas a comparação não é boa pois o neurótico pode mudar seu andamento com facilidade e fazer progressos muito lentos às vezes A pergunta sobre a duração do tratamento é quase impossível de responder na verdade A falta de percepção dos doentes e a insinceridade dos médicos se juntam para que as mais desmedidas exigências sejam feitas à análise concedendolhe para isso um mínimo de tempo Ofereço como exemplo os seguintes dados da carta de uma senhora da Rússia que há poucos dias recebi Ela tem 53 anos de idade vem sofrendo há 23 anos há dez é incapaz de qualquer trabalho con stante Tratamentos em várias clínicas de nervos não conseguiram habilitá la para uma vida ativa Ela espera ser completamente curada pela psicanál ise sobre a qual leu alguma coisa Mas seu tratamento já custou tanto à sua família que ela não poderia permanecer mais que seis ou oito semanas em Vi ena Outra dificuldade está em que ela deseja desde o início manifestarse apenas por escrito pois tocar em seus complexos provocaria nela uma ex plosão ou a deixaria temporariamente muda Ninguém espera que se possa erguer uma pesada mesa com dois dedos como um leve banquinho ou con struir uma casa grande no mesmo intervalo de tempo que uma palhoça mas quando se trata de neuroses que não parecem estar incluídas no conjunto do pensar humano mesmo pessoas inteligentes esquecem que existe proporcion alidade entre tempo trabalho e êxito O que é aliás uma compreensível de corrência da ignorância profunda acerca da etiologia das neuroses Devido a essa ignorância a neurose lhes parece uma garota vinda de longe Não se sabe de onde veio por isso esperam que um belo dia desapareça Os médicos apoiam essa fácil confiança mesmo os informados entre eles deixam de estimar corretamente a severidade dos distúrbios neuróticos Um colega e amigo que tenho em alta conta por ter se voltado para a psicanálise após várias décadas de trabalho científico baseado em outras premissas 129275 escreveume certa vez O que necessitamos é um tratamento ambulatorial curto e cômodo para as neuroses obsessivas Não pude lhe fornecer isso envergonheime e procurei me desculpar com a observação de que provavel mente os especialistas em medicina interna ficariam também satisfeitos com uma terapia da tuberculose ou do câncer que reunisse essas vantagens Para dizêlo de modo mais direto a psicanálise requer longos períodos de tempo semestres ou anos inteiros mais longos do que espera o paciente Por isso temos a obrigação de revelar esse fato ao doente antes que ele se decida finalmente pelo tratamento Considero mais digno e também mais adequado se já de antemão o prevenimos sem pretender assustálo acerca dos sacrifícios e das dificuldades da terapia analítica privandoo assim de qualquer direito de afirmar depois que foi atraído para um tratamento cuja extensão e significado ele não conhecia Quem se deixa intimidar por essas informações se revelaria depois inapto sem dúvida É bom proceder a uma triagem desse tipo antes do início do tratamento Com o maior esclarecimento dos enfermos cresce tam bém o número dos que passam nessa primeira prova Eu me recuso a fazer os pacientes se comprometerem por um certo período com o tratamento permito a cada um interromper a terapia quando lhe aprouver mas não lhe escondo que uma ruptura depois de um breve trabalho não trará consigo nenhum êxito e facilmente poderá deixálo num estado in satisfatório como uma operação inacabada Nos primeiros anos de minha atividade psicanalítica eu tinha enorme dificuldade em fazer os doentes per severarem há tempos essa dificuldade se modificou agora tenho que me pre ocupar em induzilos a parar O encurtamento da terapia analítica é um desejo legítimo cuja realização como veremos é tentada por diversos caminhos Infelizmente um fator im portante o contraria a lentidão com que se efetuam mudanças psíquicas pro fundas e em última instância talvez a atemporalidade dos nossos processos inconscientes Quando os doentes se veem ante a dificuldade do enorme gasto 130275 de tempo na análise não é raro proporem um expediente para resolvêla Dividem seus males entre aqueles que consideram intoleráveis e os que descre vem como secundários dizendo Se o senhor puder me livrar deste por ex emplo dores de cabeça uma determinada angústia com o outro eu mesmo me arranjo na vida Nisso porém eles superestimam o poder seletivo da an álise Certamente o médico analítico pode fazer muito mas não é capaz de de terminar exatamente o que fará ocorrer Ele inicia um processo a dissolução das repressões existentes pode vigiálo promovêlo tirar obstáculos do cam inho e sem dúvida estragálo em boa parte também Mas no conjunto esse processo iniciado segue seu próprio caminho e não permite que se prescreva nem sua direção nem a sequência dos pontos que ataca O poder do analista sobre as manifestações da doença pode ser comparado à potência masculina O homem mais vigoroso é capaz de gerar toda uma criança mas não de fazer crescer no organismo feminino uma cabeça um braço ou uma perna não pode sequer determinar o sexo da criança Pois apenas inicia também um processo altamente complicado determinado por acontecimentos antigos que termina com o filho separandose da mãe Também a neurose de uma pessoa tem cara cterísticas de um organismo suas manifestações parciais não são independ entes uma da outra elas se condicionam costumam apoiarse mutuamente sofrese apenas de uma neurose não de várias que casualmente se encontram num indivíduo O doente ao qual livramos de um sintoma intolerável con forme seu desejo bem poderia descobrir que um sintoma que era ligeiro se ex acerbou até ficar intolerável Quem desejar separar o êxito tanto quanto for possível de suas condições sugestivas isto é transferenciais fará bem em re nunciar ao quê de influência seletiva sobre o resultado terapêutico que o médico talvez possua Os pacientes mais bemvindos ao psicanalista serão os que lhe pedirem saúde plena na medida em que puder ser alcançada e puser em à sua disposição todo o tempo que for necessário para o processo de 131275 restabelecimento É claro que somente em alguns casos podese esperar con dições tão favoráveis O próximo ponto sobre o qual se deve decidir no começo de um trata mento é o dinheiro os honorários do médico O analista não contesta que o dinheiro deve ser visto em primeiro lugar como meio de autopreservação e ob tenção de poder mas afirma que poderosos fatores sexuais estão envolvidos na apreciação do dinheiro Ele pode lembrar que as questões de dinheiro são tratadas pelos homens civilizados de modo semelhante ao das coisas sexuais com a mesma duplicidade falso pudor e hipocrisia Então ele já está decidido a não fazer igual a tratar assuntos de dinheiro diante do paciente com a mesma natural franqueza na qual pretende educálo em questões sexuais Ele demon stra ter se desembaraçado ele mesmo da falsa vergonha ao comunicar espon taneamente em quanto estima seu tempo Depois a prudência humana re comenda que não se deixem acumular grandes somas solicitando o pagamento a intervalos curtos e regulares mensalmente digamos Como se sabe o valor de um tratamento não é aumentado aos olhos do paciente quando se co bra bem pouco por ele Sabemos que essa não é a prática do médico de nervos e outros especialistas em nossa sociedade europeia Mas o psicanalista pode se pôr no lugar do cirurgião que é sincero e custoso porque dispõe de tratamen tos que ajudam Penso que é mais digno e eticamente mais irrepreensível de clarar suas reais exigências e necessidades em vez de como ainda hoje é cos tume entre os médicos fazer papel de filantropo desinteressado situação que certamente não lhe cabe e afligirse ou invectivar a falta de respeito e o afã de exploração do paciente Em prol de sua reivindicação de pagamento o analista alegará também que embora trabalhe muito jamais ganhará tanto como out ros especialistas da medicina Pelas mesmas razões ele deve se recusar a tratar alguém sem honorários e não fazer exceção para os colegas ou seus parentes Essa última exigência parece ir de encontro à camaradagem médica mas tenhase em vista que um 132275 tratamento gratuito significa bem mais para um psicanalista que para qualquer outro ou seja a subtração de parte considerável do tempo de que dispõe para ganhar a vida uma oitava uma sétima parte talvez durante muitos meses Um tratamento gratuito simultâneo lhe roubaria já um quarto ou um terço de sua capacidade de ganho o que seria equivalente ao efeito de um grave acidente traumático Perguntase então se a vantagem para o paciente compensa de algum modo o sacrifício do médico Creio poder arriscar um juízo a esse respeito pois durante uns dez anos dediquei uma hora por dia ocasionalmente duas a tratamentos gratuitos porque queria trabalhar com a menor resistência pos sível a fim de me orientar no estudo da neurose Mas não encontrei nisso as vantagens que procurava O tratamento gratuito aumenta bastante algumas resistências do neurótico nas mulheres jovens por exemplo a tentação que es tá contida na relação de transferência nos homens jovens a revolta contra o dever da gratidão que provém do complexo paterno e se inclui entre os mais sérios obstáculos à ajuda médica A ausência do efeito regulador proporcion ado pelo pagamento ao médico se faz sentir bastante penosamente toda a re lação se afasta do mundo real retirase ao paciente um bom motivo para se empenhar pelo fim do tratamento Podemos nos situar bem longe da condenação ascética do dinheiro e no entanto lamentar que a terapia analítica por razões externas e internas seja quase inacessível para os pobres Quanto a isso não há muito a fazer Talvez haja verdade na afirmação frequente de que sucumbe com menor facilidade à neurose aquele a quem as necessidades da vida fazem trabalhar duramente Indiscutível é sem dúvida uma outra experiência a de que um homem pobre que produziu uma neurose dificilmente se livra dela São muito bons os ser viços que ela lhe presta na luta pela autoafirmação o ganho secundário trazido pela doença é muito importante para ele A comiseração que as pessoas recus aram à sua necessidade material ele agora a reivindica em nome da neurose e pode se liberar da exigência de combater sua pobreza mediante o trabalho 133275 Quem ataca a neurose de um pobre com os meios da psicoterapia via de regra faz a comprovação de que o caso pede uma terapia prática inteiramente di versa do tipo que segundo a nossa tradição local era utilizado pelo imperador José ii É claro que ocasionalmente encontramos pessoas valiosas que não têm culpa de seu desamparo nas quais o tratamento gratuito não esbarra nesses ob stáculos e obtém resultados felizes Para a classe média o gasto de dinheiro exigido na psicanálise é excessivo apenas na aparência Sem considerar que são incomensuráveis de um lado saúde e capacidade de realização e de outro um moderado dispêndio fin anceiro somando os gastos infindáveis com sanatórios e tratamento médico e contrapondo a eles o acréscimo da capacidade de realização e aquisição após uma terapia analítica bemsucedida podese dizer que os doentes fizeram um bom negócio Não há nada mais caro na vida que a doença e a estupidez Antes de encerrar estas observações sobre o início do tratamento analítico direi algo a respeito de um certo cerimonial da situação em que é conduzida a terapia Eu mantenho o conselho de fazer o paciente deitar sobre um divã en quanto o analista fica sentado atrás dele fora de sua vista Esse arranjo tem um sentido histórico é vestígio do tratamento hipnótico a partir do qual se desen volveu a psicanálise Mas ele merece ser mantido por razões diversas De ime diato por um motivo pessoal que outros talvez partilhem comigo Eu não con sigo ser olhado por outras pessoas durante oito horas ou mais diariamente Como eu também me abandono ao curso de meus pensamentos inconscientes não quero que as expressões de meu rosto forneçam material para inter pretações do paciente ou influenciem o que ele tem a comunicar O paciente costuma apreender como uma privação a situação que lhe é imposta e se re volta contra ela em particular se o impulso de olhar o voyeurismo tem papel significativo em sua neurose Mas eu insisto nessa medida que tem o propósito e o resultado de impedir a inadvertida intromissão da transferência nos pensamentos espontâneos do paciente de isolar a transferência e fazer que no 134275 devido tempo ela se destaque nitidamente como resistência Sei que muitos an alistas atuam de outro modo mas não sei se nesta divergência há sobretudo ânsia de agir de outro modo ou alguma vantagem que encontraram nisso Uma vez acertadas desse modo as condições da terapia surge a questão de em que ponto e com que material se deve começar o tratamento Tudo considerado é indiferente o assunto com que se inicia o tratamento seja a história da vida do paciente a história de sua doença ou as recordações da infância Mas de toda maneira devese permitir que o paciente fale deixan do à sua escolha o ponto de partida Então lhe dizemos Antes que eu possa lhe dizer algo preciso saber muito sobre você por favor me conte o que sabe de você A única exceção diz respeito à regra fundamental da técnica psicanalítica que o paciente deve observar Já no início ele é informado acerca dela Ainda uma coisa antes de você começar Há um ponto em que seu relato deve ser diferente de uma conversa normal Enquanto geralmente se procura com razão manter um fio condutor naquilo que se expõe excluindo as associações e pensamentos secundários que perturbam a exposição para não ir do centésimo ao milésimo como se diz você deve proceder de outro modo Ob servará que durante o seu relato lhe ocorrerão pensamentos diversos que você gostaria de rejeitar devido a certas objeções críticas Estar tentado a dizer a si mesmo que isso ou aquilo não vem ao caso ou é totalmente irrelevante ou é absurdo e então não é preciso comunicálo Não ceda jamais a essa crítica e comuniqueo apesar disso ou melhor precisamente por isso porque você sente uma aversão àquilo A razão dessa regra a única que deve seguir na verdade você perceberá e compreenderá depois Portanto diga tudo o que lhe vier à mente Comportese por exemplo como um viajante que está sen tado à janela do trem e descreve para seu vizinho alojado no interior como se transforma a vista ante seus olhos Enfim não esqueça jamais que você 135275 prometeu sinceridade absoluta e nunca passe por cima de algo porque por al guma razão lhe é desagradável comunicálo3 Pacientes que calculam ter adoecido num determinado momento costumam abordar o que ocasionou a doença outros que não desconhecem os laços entre sua neurose e sua infância frequentemente começam pela exposição de toda a história de sua vida Não se deve esperar um relato sistemático de maneira al guma nem fazer nada para provocálo Cada pedacinho da história terá de ser contado novamente depois e somente com essas repetições aparecerão os complementos que fornecem os laços relevantes desconhecidos do paciente Existem pacientes que desde as primeiras sessões preparam cuidadosamente o que vão relatar supostamente para assegurar a melhor utilização do tempo de tratamento O que assim se disfarça de zelo é resistência Devese desacon selhar essa preparação que é realizada apenas para protegerse da emergência de pensamentos indesejados4 Por mais que o doente creia sinceramente na sua louvável intenção a resistência participará desse modo de preparação inten cional obtendo que o material mais precioso escape à comunicação Logo se perceberá que o paciente inventa outros meios de subtrair ao tratamento o que é exigido Ele pode digamos discutir diariamente a terapia com um amigo ín timo e abrigar nessa conversa todos os pensamentos que lhe viriam na presença do médico O tratamento possui então um vazamento por onde escorre justamente o melhor Será então oportuno recomendar ao paciente que trate sua análise como um assunto dele e de seu médico e que não informe outras pessoas a respeito dela por mais próximas ou mais curiosas que sejam Em estágios posteriores da terapia normalmente o paciente não fica sujeito a tentações desse tipo Não me oponho aos pacientes que querem manter seu tratamento em se gredo muitas vezes porque guardaram sua neurose em segredo Naturalmente é secundária a consideração de que devido a essa reserva os contemporâneos ignoram alguns dos mais belos casos de cura Sem dúvida a decisão de manter sigilo já revela um traço da história secreta do paciente 136275 Quando exortamos os pacientes no começo do tratamento a informar o menor número possível de pessoas em alguma medida os protegemos das muitas influências hostis que tentarão afastálo da análise Tais influências poderão ser nocivas no início do tratamento Mais tarde serão indiferentes em geral ou mesmo úteis para trazer à luz as resistências que desejam se ocultar Se durante a análise o paciente necessitar temporariamente de uma outra terapia clínica ou especializada é bem mais apropriado recorrer a um colega não psicanalista do que prestar essa outra assistência Tratamentos combina dos para padecimentos neuróticos de forte apoio orgânico são geralmente im praticáveis Os pacientes retiram seu interesse da análise tão logo lhes é mostrado um outro caminho que leve à cura O melhor é adiar o tratamento orgânico até a conclusão do psíquico dando precedência ao primeiro ele não teria sucesso na maioria dos casos Voltemos à questão do início do tratamento Volta e meia surgem pacientes que começam a terapia assegurando que nada lhes ocorre que pudessem re latar embora tenham diante de si intocada toda a história de sua vida e de sua doença Não devemos atender à solicitação de indicar aquilo que devem falar nem na primeira vez nem nas outras É preciso não esquecer aquilo com que estamos lidando Uma forte resistência passou a primeiro plano para defender a neurose temos que aceitar imediatamente o desafio e enfrentálo A afirm ação energicamente repetida de que não existe uma tal ausência de pensamen tos espontâneos no início de que se trata de uma resistência à análise logo obriga o paciente às confissões esperadas ou põe a descoberto uma parcela ini cial de seus complexos Não é bom sinal se ele tiver de confessar que ao ouvir a regra fundamental fez mentalmente a reserva de que entretanto não falaria isso ou aquilo Menos mal se ele precisar apenas comunicar a desconfiança que tem pela análise ou as coisas terríveis que escutou sobre ela Caso ele questione es sas e outras possibilidades semelhantes que lhe forem apresentadas podemos pressionálo a reconhecer que negligenciou determinados pensamentos que o 137275 ocupavam Ele pensou no tratamento em si mas em nada definido ou se ocupou da aparência da sala onde se encontra ou teve de pensar nos objetos do consultório e no fato de estar deitado num divã e tudo isso ele substitui pela palavra nada Essas indicações são compreensíveis tudo o que se liga à situação presente corresponde a uma transferência para o médico que resulta adequada para servir de resistência Então somos obrigados a começar com o desvelamento dessa transferência a partir dela encontramos rapidamente o caminho para penetrar no material patogênico do doente Mulheres que pelos acontecimentos de sua vida passada estão alertas para uma possível agressão sexual e homens com homossexualidade reprimida bastante forte serão os primeiros a recusarse aos pensamentos espontâneos no começo da análise Tal como a primeira resistência também os primeiros sintomas ou atos ocasionais dos pacientes podem reivindicar um interesse especial e revelar um complexo que governa a sua neurose Um jovem e espirituoso filósofo com refinada atitude estética apressase em alinhar o vinco da calça ao deitarse para a primeira sessão verificase que ele foi um coprófilo de grande requinte como se esperaria do futuro esteta Na mesma situação uma jovem se precipita em puxar a barra da saia sobre o tornozelo exposto e com isso revela o prin cipal daquilo que a análise descobrirá o seu orgulho narcísico pela beleza do corpo e suas tendências exibicionistas Um grande número de pacientes é contra a determinação de que se deitem enquanto o médico fica atrás deles sentado e fora da sua vista Eles pedem permissão para fazer o tratamento em outra posição geralmente porque não querem dispensar a visão do médico Via de regra isso é recusado mas não se pode impedilos de dizer algumas frases antes do começo da sessão ou de pois de anunciado o seu fim quando já se levantaram Assim eles dividem o tratamento em uma parte oficial durante a qual geralmente se comportam de maneira inibida e uma simpática em que falam de modo realmente livre comunicando todo tipo de coisas que eles mesmos não incluem no tratamento O médico não consente essa divisão por muito tempo ele atenta para o que é 138275 falado antes ou depois da sessão e ao aproveitálo na ocasião seguinte põe abaixo a parede divisória que o paciente tentou erguer Ela será novamente construída com o material de uma resistência de transferência Enquanto as comunicações e os pensamentos espontâneos do paciente ocorrerem sem interrupção não se deverá tocar no tema da transferência Para cuidar disso o mais delicado dos procedimentos esperase até que a transferência tenha se transformado em resistência A próxima questão que nos é colocada é essencial Ela diz Quando deve mos iniciar as comunicações ao analisando Quando é oportuno lhe revelar o significado oculto de seus pensamentos espontâneos iniciálo nos pressupostos e procedimentos técnicos da psicanálise A resposta tem de ser apenas depois que se estabeleceu no paciente uma transferência produtiva um rapport apropriado O primeiro objetivo do trata mento é ligálo à terapia e à pessoa do médico Para isso não é preciso senão lhe dar tempo Se testemunhamos um sério interesse por ele eliminamos as resistências que surgem no início e evitamos determinados erros o paciente estabelece uma tal ligação por si mesmo e associa o médico a uma das imagos daquelas pessoas de que estava acostumado a receber amor No entanto é pos sível desperdiçar esse primeiro sucesso se adotamos já no início uma outra pos tura que não a de empatia uma atitude moralizadora por exemplo ou se nos portamos como representante ou mandatário de uma parte interessada do outro cônjuge etc Essa resposta implica naturalmente a condenação do procedimento se gundo o qual comunicamos ao paciente as traduções dos seus sintomas tão logo atinamos com elas ou que até mesmo vê como um triunfo especial jogar lhe ao rosto estas soluções na primeira entrevista Um analista treinado não terá dificuldade em perceber claramente os desejos contidos de um doente já nas suas queixas e no relato da doença mas quanta presunção e leviandade é preciso para informar a um estranho que acabamos de conhecer e que ignora 139275 todos os pressupostos analíticos que ele se acha unido incestuosamente à sua mãe que abriga desejos de morte em relação à esposa que supostamente ama que carrega a intenção de enganar seu chefe e coisas semelhantes Soube que há psicanalistas que se gabam desses diagnósticos instantâneos e tratamentos expressos mas quero prevenir a todos contra esses exemplos Desse modo se obtém descrédito para si mesmo e a psicanálise despertando igualmente a mais forte oposição tenhase ou não acertado ou melhor quanto mais se tiver acer tado mais forte a resistência Via de regra a eficácia terapêutica será nenhuma mas o desencorajamento diante da análise será definitivo Mesmo em estágios posteriores do tratamento é necessário ter cautela a fim de não comunicar uma solução de sintoma ou tradução de desejo antes que o paciente esteja bem próximo dela de modo que baste um pequeno passo para ele mesmo se apoderar da solução No passado pude verificar frequentemente que a comu nicação prematura de uma solução trazia um final prematuro ao tratamento devido às resistências que eram subitamente despertadas e também graças ao alívio que a solução proporcionava Neste ponto será feita a objeção Nossa tarefa é então prolongar o trata mento em vez de concluílo o mais rápido possível O doente não sofre por insciência e incompreensão não há o dever de tornálo ciente wissend o mais breve possível tão logo o médico mesmo se torne ciente A resposta a essa questão exige um pequeno excurso a respeito da signi ficação do saber Wissen e do mecanismo da cura na psicanálise É certo que nos primeiros tempos da técnica psicanalítica numa postura in telectualista demos bastante valor ao fato de o doente saber o que tinha esque cido mal distinguindo entre o nosso saber e o dele Considerávamos muita sorte obter de uma outra pessoa informações sobre o trauma infantil esque cido dos pais de quem cuidava da criança ou do próprio sedutor por exem plo como se mostrou possível em alguns casos e nos apressávamos em levar ao conhecimento do doente a notícia e as provas de sua exatidão na segura 140275 expectativa de dar um rápido fim à neurose e ao tratamento Era grande o des apontamento quando o êxito esperado não se apresentava Como podia acontecer que o doente que agora sabia de sua vivência traumática agisse como se não soubesse mais do que antes Nem mesmo a lembrança do trauma reprimido vinha à tona após a comunicação e descrição dele Num caso determinado a mãe de uma garota histérica me revelou a exper iência homossexual que tivera grande influência na fixação dos ataques da ga rota A própria mãe havia flagrado a cena mas a doente a esquecera por com pleto embora já pertencesse à época da prépuberdade Pude então fazer uma experiência instrutiva Toda vez que repetia o relato da mãe diante da garota ela reagia com um ataque histérico e depois a informação era novamente es quecida Não havia dúvida de que a doente manifestava a mais forte resistência a um saber que lhe era imposto chegou a simular imbecilidade e amnésia total a fim de se proteger do que eu lhe comunicava Depois disso foi preciso retir ar do fato de saber em si a importância que lhe fora atribuída e colocar a ên fase nas resistências que haviam causado o não saber e que ainda então es tavam dispostas a defendêlo Diante dessas resistências o saber consciente era impotente mesmo quando não era novamente expulso O estranho comportamento dos doentes capazes de juntar um saber con sciente com o não saber permanece inexplicável para a chamada psicologia normal Para a psicanálise isso não oferece dificuldade devido a seu reconhe cimento do inconsciente mas o fenômeno descrito constitui um bom suporte para a concepção que aborda os processos psíquicos a partir de uma diferen ciação topográfica Os doentes sabem da vivência reprimida em seu pensamento mas falta a este a ligação com o lugar onde de algum modo se en contra a lembrança reprimida Uma modificação pode ocorrer apenas quando o processo de pensar consciente penetra até esse lugar e supera as resistências da repressão É como se o Ministério da Justiça promulgasse um decreto 141275 segundo o qual os delitos juvenis deveriam ser julgados com alguma leniência Enquanto esse decreto não chegar ao conhecimento dos tribunais municipais ou se os juízes municipais não tiverem a intenção de respeitar esse decreto preferindo sentenciar de forma independente não haverá qualquer mudança no tratamento dos delinquentes juvenis Acrescentemos para maior exatidão que a comunicação consciente do material reprimido não deixa de produzir efeito no doente Ela não manifestará o efeito desejado pôr fim aos sintomas mas terá outras consequências Primeiro estimulará resistências mas depois quando elas forem superadas um processo de pensamento no curso do qual se realiza finalmente o influxo esperado sobre a lembrança inconsciente Já é tempo de obtermos uma vista panorâmica do jogo de forças que puse mos em ação com o tratamento O primeiro móvel da terapia é o sofrimento do paciente e o desejo de cura daí resultante A magnitude dessa força motriz é diminuída por várias coisas que apenas no decorrer da análise se revelam sobretudo o ganho secundário da doença mas a força motriz mesma deve se conservar até o fim do tratamento cada melhora produz uma diminuição dela Por si só no entanto ela é incapaz de eliminar a doença para isso lhe faltam duas coisas não conhece os caminhos que se deve tomar para alcançar esse fim e não apresenta os montantes de energia necessários contra as resistências Ambas as faltas são remediadas pelo tratamento analítico Ele fornece as mag nitudes de afeto requeridas para a superação das resistências por meio da mo bilização das energias que se acham à disposição da transferência mediante comunicações oportunas mostra ao doente os caminhos por onde ele deve guiar essas energias A transferência pode frequentemente eliminar sozinha os sintomas de sofrimento mas isso apenas de maneira provisória precis amente enquanto ela dura Isto seria um tratamento sugestivo e não psicanál ise Ele merece este nome apenas quando a transferência utiliza a sua intensid ade para a superação das resistências Apenas então se torna impossível a 142275 doença mesmo quando a transferência dissolveuse novamente como é seu destino No decorrer do tratamento um outro fator favorável é despertado o in teresse e compreensão intelectual do doente Mas ele quase não conta em re lação às outras forças em luta seu valor é continuamente ameaçado devido à turbação do julgamento que procede das resistências De forma que restam a transferência e a instrução pela comunicação como as novas fontes de força que o doente deve ao analista No entanto ele se serve da instrução apenas na medida em que é levado a isso pela transferência e por esse motivo a primeira comunicação deve aguardar até que uma forte transferência se tenha estabele cido e também acrescentemos toda comunicação posterior até que seja elim inada a perturbação da transferência pelas resistências de transferência que aparecem uma após a outra 1 Sobre a psicoterapia 1905 2 Haveria muito a dizer sobre o tema da insegurança no diagnóstico sobre as chances da anál ise em formas leves de parafrenia e sobre as razões da similaridade entre as duas afecções mas não posso fazêlo aqui Bem gostaria acompanhando Jung de contrapor histeria e neurose ob sessiva como neuroses de transferência às afecções parafrênicas como neuroses de introver são se este uso não privasse o conceito de introversão da libido de seu único sentido justificado Alusão a um poema de Schiller que tem esse título Das Mädchen aus der Fremde Especialistas em medicina interna o termo original Internisten não tem equivalência em português traduzilo por clínicos gerais seria equivocado Um Internist é um especialista ou semiespecialista que se ocupa de medicina interna de uma área que reúne elementos da gast roenterologia cardiologia endocrinologia oncologia etc Os dicionários alemães e bilíngues apenas o definem como especialistas em doenças internas a solução que foi adotada na Standard inglesa enquanto as demais versões consultadas recorreram simplesmente a in ternistas e no caso da francesa a médecins Impulso de olhar Schautrieb nas versões consultadas el instinto visual pulsión de ver omis são na ed francesa instinct for looking O termo alemão Trieb é geralmente traduzido por 143275 instinto nesta edição Embora reconheçamos a insuficiência do termo português não vemos vantagem em introduzir o feio neologismo pulsão como argumentamos em As palavras de Freud op cit Trieb também admite o significado de impulso e recorremos a essa palavra quando a versão por instinto nos parece particularmente insatisfatória como nesse caso Expressão idiomática alemã significa como se nota pelo contexto afastarse muito de um tema 3 Sobre as nossas experiências com a regra fundamental da psicanálise haveria muito a dizer Eventualmente encontramos pessoas que se comportam como se elas mesmas tivessem feito es ta regra Outras a infringem desde o começo É indispensável e também vantajoso comunicá la nos primeiros estágios do tratamento mais tarde sob o domínio das resistências diminui a obediência a ela e sempre chega um momento em que o paciente a ignora É preciso lembrar se a partir da própria autoanálise como é irresistível a tentação de ceder aos pretextos da crít ica para rejeitar os pensamentos espontâneos Podemos nos convencer da pouca eficácia desses contratos que firmamos com o paciente ao apresentar a regra psicanalítica fundamental quando pela primeira vez surge algo íntimo a comunicar sobre uma terceira pessoa O paciente sabe que deve dizer tudo mas torna a discrição para com os outros em um novo obstáculo Devo dizer tudo realmente Pensei que isto se aplicava apenas ao que me diz respeito Nat uralmente é impossível levar a cabo um tratamento analítico no qual as relações do paciente com outras pessoas e os seus pensamentos acerca delas estão excluídos da comunicação Pour faire une omelette il faut casser des œufs Para fazer uma omelete é preciso quebrar os ovos Um homem correto esquece prontamente os segredos de gente desconhecida que não lhe parecem relevante saber Também não se pode admitir a exclusão de nomes de outro modo os relatos do paciente adquirem um ar nebuloso como as cenas de A filha natural de Goethe e não ader em à memória do médico além disso os nomes retidos impedem o acesso a todo tipo de re lações importantes Podemos deixar que nomes sejam reservados digamos até que o analis ando esteja mais familiarizado com o médico e o procedimento É bastante notável como toda a tarefa se torna impossível quando se permite a reserva num único ponto Mas pensemos no que ocorreria se entre nós vigorasse direito de asilo digamos num único lugar da cidade quanto tempo demoraria até que toda a canalha da cidade se reunisse naquele lugar Em certa ocasião tratei um alto funcionário que por juramento era impedido de comunicar certas coisas como segredos de Estado e fracassei com ele devido a essa restrição O tratamento psicanalítico deve sobreporse a todas as considerações porque a neurose e suas resistências não têm consideração 144275 4 Exceções podem ser admitidas apenas para dados como relações de parentesco períodos e lo cais de permanência operações etc Força motriz é o sentido tradicional dicionarizado de Triebkraft formado de Kraft força energia e Trieb impulso instinto Algumas das versões consultadas preferiram en fatizar o sentido específico desse último termo fuerza instintiva fuerza pulsional force instinc tuelle forza motrice motiveforce 145275 RECORDAR REPETIR E ELABORAR 1914 NOVAS RECOMENDAÇÕES SOBRE A TÉCNICA DA PSICANÁLISE II TÍTULO ORIGINAL ERINNERN WIEDERHOLEN UND DURCHARBEITEN WEITERE RATSCHLÄGE ZUR TECHNIK DER PSYCHOANALYSE II PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM INTERNATIONALE ZEITSCHRIFT FÜR ÄRZTLICHE PSYCHOANALYSE REVISTA INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE MÉDICA V 2 N 6 PP 48591 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE X PP 12636 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE ERGÄNZUNGSBAND VOLUME COMPLEMENTAR PP 20515 ESTA TRADUÇÃO FOI PUBLICADA ORIGINALMENTE NO JORNAL DE PSICANÁLISE SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE SÃO PAULO V 27 N 51 1994 NA PRESENTE EDIÇÃO O TEXTO FOI REVISADO ALGUMAS NOTAS DO TRADUTOR FORAM OMITIDAS E OUTRAS FORAM MODIFICADAS Não me parece desnecessário lembrar continuamente àqueles que estudam a psicanálise as profundas alterações que a técnica psicanalítica sofreu desde o início Na primeira fase a da catarse de Breuer o foco era colocado sobre o momento da formação do sintoma e havia o esforço persistente em fazer se re produzirem os processos psíquicos daquela situação para leválos a uma descarga mediante a atividade consciente Recordar e abreagir com o auxílio do estado hipnótico eram então as metas a serem alcançadas Em seguida de pois da renúncia à hipnose impôsse a tarefa de descobrir a partir dos pensamentos espontâneos do analisando o que ele não conseguia recordar A resistência seria contornada mediante o trabalho de interpretação e a comu nicação dos seus resultados ao doente mantinhase o foco sobre as situações em que se tinham formado os sintomas e aquelas que se verificavam por trás do momento em que surgira a doença a abreação caía para segundo plano parecendo substituída pelo dispêndio de trabalho que o analisando tinha que fazer na superação da crítica a seus pensamentos espontâneos a que era obri gado em obediência à regra ψα fundamental Por fim se formou a técnica coerente de agora na qual o médico renuncia a destacar um fator ou problema determinado e se contenta em estudar a superfície psíquica apresentada pelo analisando utilizando a arte da interpretação essencialmente para reconhecer as resistências que nela surgem e tornálas conscientes para o doente Verifica se então uma nova espécie de divisão de trabalho o médico desencobre as res istências desconhecidas para o doente sendo essas dominadas com frequência o doente relata sem qualquer dificuldade as situações e os nexos esquecidos O objetivo dessas técnicas permaneceu inalterado sem dúvida Em termos descritivos preenchimento das lacunas da recordação em termos dinâmicos superação das resistências da repressão Temos que permanecer gratos à velha técnica hipnótica por nos ter mostrado processos psíquicos da análise de modo isolado e esquemático Apenas assim pudemos adquirir o ânimo de criar nós mesmos situações com plicadas na terapia analítica e de mantêlas transparentes Naqueles tratamentos hipnóticos o recordar se configurava de forma bem simples O paciente se punha numa situação anterior que não parecia jamais se confundir com a presente comunicava os processos psíquicos da mesma até onde haviam permanecido normais e acrescentava o que podia resultar da transformação dos processos antes inconscientes em conscientes Neste ponto farei algumas observações que todo analista vê confirmadas em sua experiência O esquecimento de impressões cenas vivências reduzse em geral a um bloqueio delas Quando o paciente fala desse esquecimento raramente deixa de acrescentar Na verdade eu sempre soube apenas não pensava nisso Não raro ele expressa desapontamento por não lhe ocorrerem bastantes coisas que possa reconhecer como esquecidas em que nunca tenha pensado novamente desde que sucederam No entanto também esse anelo é satisfeito sobretudo nas histerias de conversão O es quecimento sofre ainda limitação se apreciarmos as lembranças encobridoras de presença universal Em não poucos casos tive a impressão de que a con hecida amnésia infantil para nós tão importante teoricamente é inteiramente contrabalançada pelas lembranças encobridoras Nestas se conserva não apen as algo essencial da vida infantil mas verdadeiramente todo o essencial É pre ciso apenas saber extraílo delas por meio da análise Elas representam os anos esquecidos da infância tão adequadamente quanto o conteúdo manifesto do sonho representa os pensamentos oníricos O outro grupo de eventos psíquicos que como atos puramente internos podem ser contrapostos às impressões e vivências as fantasias referências sentimentos conexões tem de ser considerado separadamente na sua relação com o esquecer e o recordar Nele sucede com particular frequência que seja lembrado algo que não poderia jamais ser esquecido pois em tempo al gum foi percebido nunca foi consciente e além disso parece não fazer nen huma diferença para o decurso psíquico se uma dessas conexões era con sciente e foi então esquecida ou se jamais alcançou a consciência A convicção 148275 que o doente adquire no curso da análise independe por completo de uma tal recordação Em especial nas várias formas da neurose obsessiva o esquecimento se lim ita geralmente à dissolução de nexos não reconhecimento de sequências ló gicas isolamento de recordações No caso de um tipo especial de vivências muito importantes que têm lugar nos primórdios da infância e que na época foram vividas sem compreensão mas depois a posteriori encontraram compreensão e interpretação em geral não é possível despertar a lembrança Através dos sonhos podese chegar a conhecêlas os motivos mais forçosos do conjunto da neurose nos obrigam a acreditar nelas e podemos igualmente nos convencer de que o analisando após superar suas resistências não invoca a ausência da sensação de lembrança sentimento de familiaridade para se recusar a aceitála Entretanto esse tema exige tamanha cautela crítica e traz tanta coisa nova e surpreendente que eu o reservarei para um tratamento à parte com material apropriado Aplicando a nova técnica restará muito pouco com frequência nada daquele transcurso agradavelmente suave Também surgem casos que até certo ponto se comportam como na técnica hipnótica e somente depois di vergem outros agem diferentemente desde o princípio Se nos detemos nesse último tipo para caracterizar a diferença é lícito afirmar que o analisando não recorda absolutamente o que foi esquecido e reprimido mas sim o atua Ele não o reproduz como lembrança mas como ato ele o repete naturalmente sem saber que o faz Por exemplo o analisando não diz que se lembra de haver sido teimoso e rebelde ante a autoridade dos pais mas se comporta de tal maneira diante do médico Não se lembra de que sua investigação sexual infantil não o levou a nada deixandoo perplexo e desamparado mas apresenta uma quantidade de sonhos e pensamentos confusos lamenta que nada dá certo para ele e vê como seu destino jamais concluir um empreendimento Não se lembra de ter se 149275 envergonhado bastante de certas atividades sexuais e ter sentido medo de que fossem descobertas mas mostra vergonha do tratamento a que se submete agora e procura escondêlo de todos etc Sobretudo ele começa a terapia com uma repetição desse gênero Fre quentemente ao comunicar a regra fundamental da psicanálise a um paciente com uma vida cheia de eventos e uma longa história de doença e solicitar que ele diga o que lhe ocorrer esperando que suas declarações fluam como uma torrente constatamos que ele nada diz Guarda silêncio e afirma que nada lhe ocorre Isto não é outra coisa naturalmente que a repetição de uma atitude homossexual que se evidencia como resistência contra qualquer recordação Enquanto ele permanecer em tratamento não se livrará desta compulsão de re petição por fim compreendemos que este é seu modo de recordar É natural que em primeira linha nos interesse a relação desta compulsão de repetição com a transferência e a resistência Logo notamos que a transferência mesma é somente uma parcela de repetição e que a repetição é transferência do passado esquecido transferência não só para o médico mas para todos os âmbitos da situação presente Devemos estar preparados portanto para o fato de que o analisando se entrega à compulsão de repetir que então substitui o impulso à recordação não apenas na relação pessoal com o médico mas tam bém em todos os demais relacionamentos e atividades contemporâneas de sua vida por exemplo quando no decorrer do tratamento escolhe um objeto amoroso toma para si uma tarefa começa um empreendimento Também a participação da resistência não é difícil de reconhecer Quanto maior a res istência tanto mais o recordar será substituído pelo atuar repetir Pois o re cordar ideal do que foi esquecido corresponde na hipnose a um estado em que a resistência foi totalmente afastada Se a terapia começa sob os auspícios de uma suave e discretamente positiva transferência ela permite inicialmente como na hipnose um aprofundar da recordação durante o qual mesmo os sin tomas patológicos silenciam mas se no decurso posterior a transferência se torna hostil ou muito intensa por isso necessitando de repressão 150275 imediatamente o recordar cede o lugar à atuação A partir de então as resistên cias determinam a sequência do que será repetido É do arsenal do passado que o doente retira as armas com que se defende do prosseguimento da terapia as quais temos de lhe arrancar peça por peça Vimos então que o analisando repete em vez de lembrar repete sob as con dições da resistência agora podemos perguntar o que repete ou atua ele de fato A resposta será que ele repete tudo o que das fontes do reprimido já se impôs em seu ser manifesto suas inibições e atitudes inviáveis seus traços patológicos de caráter Ele também repete todos os seus sintomas durante o tratamento E agora podemos ver que ao destacar a compulsão de repetição não adquirimos um novo fato mas uma concepção mais unificada Para nós se torna claro que a condição doente do analisando não pode cessar com o início da análise que devemos tratar sua doença não como assunto histórico mas como um poder atual Essa condição doente é movida pouco a pouco para o horizonte e o raio de ação da terapia e enquanto o doente a vivencia como algo real e atual devemos exercer sobre ela o nosso trabalho terapêutico que em boa parte consiste na recondução ao passado Fazer lembrar como sucedia na hipnose dava inevitavelmente a impressão de um experimento de laboratório Fazer repetir no tratamento analítico se gundo a nova técnica significa conjurar uma fração da vida real e por isso não pode ser inócuo e irrepreensível em todos os casos A isto se relaciona todo aquele problema de piorar durante a terapia frequentemente inevitável Antes de tudo a iniciação do tratamento leva o doente a mudar sua atitude consciente para com a doença Normalmente ele se contentou em lamentála desprezála como absurdo subestimála na sua importância e de resto deu prosseguimento ante as suas manifestações ao comportamento repressor à política de avestruz que praticava com as suas origens Pode então ocorrer que ele não saiba exatamente as precondições de sua fobia que não escute as palav ras corretas de suas ideias obsessivas ou não apreenda o verdadeiro propósito de seu impulso obsessivo Naturalmente isso não ajuda a terapia Ele tem de 151275 conquistar a coragem de dirigir sua atenção para os fenômenos de sua doença A própria doença não deve mais ser algo desprezível para ele mas sim tornar se um digno adversário uma parcela do seu ser fundamentada em bons motivos de que cabe extrair algo valioso para sua vida futura A reconciliação com o reprimido que se manifesta nos sintomas é assim preparada desde o iní cio mas também se admite uma certa tolerância para o estado enfermo Se esta nova relação com a doença torna mais agudos os conflitos e faz sobressaírem sintomas até então indistintos não é difícil consolar o doente com a obser vação de que isto é uma piora necessária e passageira e que não se pode li quidar um inimigo que está ausente ou não está próximo o bastante Mas a res istência pode explorar a situação para seus propósitos e querer abusar da per missão de estar doente Parece então dizer Olhe no que dá se eu concordo com essas coisas Não fiz bem em abandonálas à repressão Crianças e jovens em especial costumam se aproveitar da indulgência pela condição en ferma que a terapia requer para se regalar nos sintomas patológicos Outros perigos surgem do fato de que no curso da terapia podem chegar à repetição impulsos instintuais novos e mais profundos que ainda não se haviam imposto Afinal as ações realizadas pelo paciente fora da transferência podem trazer danos temporários à sua vida ou até ser escolhidas de modo a depreciar duradouramente a saúde a ser conquistada Podese facilmente justificar a tática que o médico deve adotar nesta situ ação Para ele o recordar à maneira antiga reproduzir no âmbito psíquico continua sendo a meta a que se apega embora saiba que na nova técnica isto não se pode alcançar Ele se dispõe para uma luta contínua com o paciente a fim de manter no âmbito psíquico todos os impulsos que este gostaria de diri gir para o âmbito motor e comemora como um triunfo da terapia o fato de conseguir mediante o trabalho da recordação dar solução a algo que o pa ciente gostaria de descarregar através de uma ação Quando a ligação pela transferência tornouse de algum modo aproveitável o tratamento chega a 152275 impedir que o paciente realize os atos de repetição mais significativos e a utiliz ar a intenção para aquilo in statu nascendi como material para o trabalho terapêutico O melhor modo de proteger o doente dos danos que traria a real ização de seus impulsos é obrigálo a não tomar decisões vitais durante a ter apia não escolher profissão ou objeto amoroso definitivo por exemplo e sim esperar o momento da cura para esses propósitos Nisso respeitamos de bom grado aquilo que na liberdade pessoal do analis ando é compatível com essas precauções não o impedindo de executar propós itos de menor importância embora tolos e não esquecendo que na verdade apenas a experiência e o prejuízo tornam alguém sábio Há também casos em que não podemos dissuadilo de empreender algo totalmente inadequado dur ante o tratamento e em que somente depois ele se torna brando e acessível ao trabalho analítico Ocasionalmente deve também suceder que não haja tempo de pôr as rédeas da transferência nos instintos indomados ou que o paciente num ato de repetição corte o laço que o liga ao tratamento Quero mencionar como exemplo extremo o caso de uma velha senhora que repetidamente aban donava a casa e o marido em estado de semiausência e ia para um lugar qualquer sem tomar consciência de algum motivo para essas fugas Ela ini ciou o tratamento com uma transferência afetuosa bem desenvolvida intensificoua com rapidez inquietante nos primeiros dias e ao final de uma se mana fugiu também de mim antes que eu tivesse tempo de lhe dizer algo que pudesse prevenir tal repetição No entanto o principal meio de domar a compulsão de repetição do pa ciente e transformála num motivo para a recordação está no manejo da trans ferência Tornamos esta compulsão inofensiva e até mesmo útil ao reconhecerlhe o seu direito ao lhe permitir vigorar num determinado âmbito Nós a admitimos na transferência como numa arena em que lhe é facultado se desenvolver em quase completa liberdade e onde é obrigada a nos apresentar 153275 tudo o que em matéria de instintos patogênicos se ocultou na vida psíquica do analisando Quando o paciente se mostra solícito a ponto de respeitar as con dições básicas do tratamento conseguimos normalmente dar um novo signific ado de transferência a todos os sintomas da doença substituindo sua neurose ordinária por uma neurose de transferência da qual ele pode ser curado pelo trabalho terapêutico Assim a transferência cria uma zona intermediária entre a doença e a vida através da qual se efetua a transição de uma para a outra O novo estado assumiu todas as características da doença mas representa uma enfermidade artificial em toda parte acessível à nossa interferência Ao mesmo tempo é uma parcela da vida real tornada possível por condições particular mente favoráveis porém e tendo uma natureza provisória Das reações de re petição que surgem na transferência os caminhos já conhecidos levam ao des pertar das recordações que após a superação das resistências se apresentam sem dificuldade Eu poderia me deter aqui se o título deste ensaio não me obrigasse à ex posição de mais um ponto da técnica psicanalítica Como se sabe a superação das resistências tem início quando o médico desvela a resistência jamais recon hecida pelo paciente e a comunica a ele Mas parece que os principiantes da an álise se inclinam a tomar esse início pelo trabalho inteiro Com frequência fui consultado a respeito de casos em que o médico se queixou de haver mostrado ao doente sua resistência sem que no entanto algo mudasse a resistência havia mesmo se fortalecido e toda a situação se turvado ainda mais Aparentemente a terapia não estava indo adiante Essa expectativa sombria resultou sempre er rada Em geral a terapia fazia progresso o médico tinha apenas esquecido que nomear a resistência não pode conduzir à sua imediata cessação É preciso dar tempo ao paciente para que ele se enfronhe na resistência agora conhecida para que a elabore para que a supere prosseguindo o trabalho apesar dela conforme a regra fundamental da análise Somente no auge da resistência 154275 podemos em trabalho comum com o analisando descobrir os impulsos instin tuais que a estão nutrindo de cuja existência e poder o doente é convencido mediante essa vivência O médico nada tem a fazer senão esperar e deixar as coisas seguirem um curso que não pode ser evitado e tampouco ser sempre acelerado Atendose a essa compreensão ele se poupará muitas vezes a ilusão de haver fracassado quando na realidade segue a linha correta no tratamento Na prática essa elaboração das resistências pode se tornar uma tarefa pen osa para o analisando e uma prova de paciência para o médico Mas é a parte do trabalho que tem o maior efeito modificador sobre o paciente e que dis tingue o tratamento psicanalítico de toda influência por sugestão Teoricamente podese comparála com a abreação dos montantes de afeto retidos pela repressão abreação sem a qual o tratamento hipnótico per manecia ineficaz Pensamentos espontâneos nossa tradução para freie Einfälle que nas versões estrangeiras consultadas duas em espanhol uma francesa a italiana da Boringhieri e a Standard inglesa aparece como ocurrencias espontáneas ocurrencias libres associazoni libere associations libres free associations para mais informações sobre o termo Einfall ver nossa tradução de Além do bem e do mal de Friedrich Nietzsche São Paulo Companhia das Letras 1992 ed de bolso 2005 nota 16 Na mesma frase não conseguia traduz versagte que os tradutores consultados vertem por no conseguía denegaba non riusciva narrivait pas failed O tradutor argentino usa deneg aba porque o verbo versagen se relaciona a Versagung que ele traduz por frustración ou denega ción cf J L Etcheverry Sobre la versión castellana volumen de presentación de las Obras com pletas de Sigmund Freud Buenos Aires Amorrortu 1978 p 137 Esse é um problema con stante ao se traduzir Freud devese buscar a máxima literalidade técnica ao risco de produzir textos pouco legíveis mas que no original fluem naturalmente A versão argentina optou pela literalidade total o que resultou num verdadeiro atentado à língua de Cervantes Nesse caso específico versagen denota o fracasso em realizar uma ação não se consegue fazer aquilo Por isso acompanhamos a coloquialidade das outras versões Ψα abreviatura do adjetivo psicanalítica pouco usada por Freud no entanto 155275 Eventos no original Vorgänge geralmente traduzida por processos mas que pode tam bém significar acontecimentos eventos o que parece ser o caso Referências sentimentos conexões Beziehungsvorgänge Gefühlsregungen Zusammen hänge nas versões consultadas las asociaciones lo sentimientos etc omissão procesos de referimiento mociones de sentimiento nexos i riferimenti gli impulsi emotivi le connessioni des idées connexes et des émois omissão processes of reference emotional impulses thoughtconnec tions O termo composto Beziehungsvorgänge significa literalmente atos ou processos de re lação de referência o que seria meio redundante em português Sobre a possibilidade ou conveniência de ocasionalmente verter um composto alemão por uma só palavra em nossa língua ver o apêndice B de As palavras de Freud op cit O mesmo se aplica à palavra seguinte Gefühlsregung composta de Gefühl sentimento sensação emoção e Regung mas este se gundo termo que a compõe traz uma dificuldade extra A tendência mais nova vinda de Paris é traduzilo por moção como em Triebregung moção pulsional essa pérola do jargão psicanalítico No entanto é preciso lembrar que embora etimologicamente relacionado a mover moção veio a significar tanto em francês como em português uma proposta ap resentada numa assembleia deliberativa por um de seus membros na definição de Domingos de Azevedo Grande dicionário francêsportuguês Lisboa Bertrand 8a ed 1984 Ninguém usa essa palavra com o sentido de movimento Em alemão o verbo regen significa mover agit ar uma variante dele é anregen estimular incitar Nossa tradução literal para Gefühlsregun gen seria impulsos emocionais mas no presente contexto devido à enumeração em que está inserido o termo as fantasias etc preferimos simplesmente sentimentos A posteriori em alemão nachträglich em itálico no original nas versões consultadas luego con efecto retardado a posteriori ultérieurement subsequently O termo original já foi objeto de boas discussões na literatura psicanalítica Nossa contribuição a esse debate se acha em As pa lavras de Freud op cit capítulo sobre nachträglich Os motivos mais forçosos do conjunto da neurose die zwingendsten Motive aus dem Gefüge der Neurose nas versões consultadas la estructura de la neurose omissão los más probatorios motivos extraídos de la ensambladura de la neurosis la structure même de la névrose apporte la preuve évidente de leur réalité omissão the most compelling evidence provided by the fabric of the neurosis A palavra Gefüge foi aqui traduzida por conjunto diferentemente de em outro texto deste volume Formulações sobre os dois princípios onde usamos corpo Strachey re corre a structure no outro texto e neste a fabric tecido trama também estrutura Quanto à palavra motivo traduz apenas uma das acepções de Motiv que também significa assunto tema recorrente cf Leitmotiv em música motivo condutor 156275 Terapia Kur no original nas versões estrangeiras cura idem cura cure treatment A tradução de Kur por cura é enganosa pois em português diferentemente de outras línguas latinas a palavra designa o resultado não o processo A versão de Strachey nos parece a mais adequada terapia é a palavra grega para tratamento Reservamos cura para traduzir Genesung do verbo genesen convalescer que aparecerá mais à frente nesse caso os tradutores de língua espanhola usam curación a tradutora francesa guérison o italiano guari gione e o inglês recovery Impulsos instintuais Triebregungen nas versões consultadas impulsos instintivos mociones pulsionales moti pulsionali émois instinctuels instinctual impulses cf nota sobre Wunschregung na p 127 e sobre Gefühlsregung na p 197 Dar solução a tradução aqui dada ao verbo erledigen que admite vários sentidos segundo o contexto o dicionário bilíngue de Udo Schau Porto Editora 1989 traz acabar despachar pôr em ordem regular solucionar resolver decidir combinar executar cumprir realizar afastar realizar entre as versões consultadas algumas são imprecisas derivar tramitar liquid are is disposed of Estado de semiausência Dämmerszustände nas versões estrangeiras consultadas estados de obnubilación estado crepuscular états confusionnels twilight state Agora conhecida nun bekannte nisso acompanhamos o texto da Studienausgabe que re toma o da primeira edição Nas edições posteriores a essa inclusive nos Gesammelte Werke isso foi alterado para unbekannte desconhecida o que faz menos sentido makes less good sense segundo Strachey que apontou a divergência e sugeriu a restauração depois adotada na Studienausgabe Elaborar durcharbeiten As traduções consultadas empregam elaborar reelaborar rielaborare élaborer interprétativement work through O termo alemão é formado pela preposição durch at ravés de de lado a lado e pelo verbo arbeiten trabalhar Em inglês a preposição through corresponde exatamente a durch são etimologicamente aparentadas descendem da mesma pa lavra na língua indogermânica que veio a dar origem ao inglês e ao alemão Mas o verbo é usado em maior número de situações ou seja tem mais significados do que o equivalente inglês Pode significar de acordo com o dicionário Duden Universalwörterbuch Mannheim Dudenverlag 1989 trabalhar sem pausa a noite inteira digamos ler a fundo estudar uma obra fazer bem e minuciosamente um trabalho abrir caminho trabalhosamente numa mul tidão numa selva por exemplo Os dois últimos sentidos seriam aqueles utilizados por Freud No Vocabulário da psicanálise Laplanche e Pontalis propõem o neologismo perlaborar pérlaborer no original francês para traduzir durcharbeiten e perlaboração para o substantivo 157275 Durcharbeitug São Paulo Martins Fontes 11a ed revista 1991 pp 33940 Eles argumentam que elaborar deve ser reservado para bearbeiten ou verarbeiten que também significam tra balhar elaborar em algumas das muitas acepções que esses verbos têm em português e francês É possível acrescentar outros argumentos em favor da opção de Laplanche e Pontalis A preposição latina per corresponderia à alemã durch como na frase Per ardua surgo Ergome por entre as dificuldades lema do estado da Bahia E também conotaria um reforço da ação a realizaçao completa de um trabalho como no verbo perfazer Mas nada disso com pensa o fato de perlaborar e perlaboração serem palavras estranhas verdadeiras pérolas de feiura com permissão do oxímoro que dificilmente adquirirão curso na língua portuguesa Por isso achamos preferível manter elaborar e elaboração confiando em que o sentido pretendido por Freud emergirá naturalmente do contexto em que aparecem O leitor ou pa ciente compreenderá o que significa elaborar ou trabalhar as resistências 158275 OBSERVAÇÕES SOBRE O AMOR DE TRANSFERÊNCIA 1915 NOVAS RECOMENDAÇÕES SOBRE A TÉCNICA DA PSICANÁLISE III TÍTULO ORIGINAL BEMERKUNGEN ÜBER DIE ÜBERTRAGUNGSLIEBE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM INTERNATIONALE ZEITSCHRIFT FÜR ÄRZTLICHE PSYCHOANALYSE REVISTA INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE MÉDICA V 3 N 3 PP 111 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE X PP 30621 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE ERGÄNZUNGSBAND VOLUME COMPLEMENTAR PP 21530 ESTA TRADUÇÃO FOI PUBLICADA ORIGINALMENTE NO JORNAL DE PSICANÁLISE SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE SÃO PAULO V 32 N 5859 1999 Todo iniciante na psicanálise provavelmente se assusta com as dificuldades que lhe aparecerão ao interpretar as associações do paciente e cuidar da re produção do reprimido Mas logo chega o momento de ele atribuir pouco val or a essas dificuldades e convencerse de que as únicas realmente sérias estão no uso da transferência Entre as situações que aí se apresentam quero destacar uma bem delimit ada e o faço tanto por sua frequência e real importância como por seu in teresse teórico Refirome ao caso em que uma paciente dá a entender por sinais inequívocos ou afirma diretamente que como qualquer outra mortal se apaixonou pelo médico que a analisa Esta situação tem seus aspectos dolor osos e cômicos e também sérios e é tão intrincada e diversamente condicion ada tão inevitável e de difícil solução que o seu estudo já teria há muito preenchido uma necessidade vital da técnica psicanalítica Mas como nem sempre estamos livres de cometer os erros que ridicularizamos nos outros até agora não nos apressamos em cumprir essa tarefa Deparamos sempre com o dever da discrição médica que na vida não se pode dispensar mas que não tem serventia na nossa ciência Uma vez em que a literatura psicanalítica também é parte da vida real há aqui uma contradição insolúvel Recentemente não fiz caso da discrição e mostrei como a mesma situação de transferência retardou o desenvolvimento da terapia psicanalítica em sua primeira década1 Para o leigo bemeducado o que o homem civilizado ideal é em relação à psicanálise os assuntos do amor são incomensuráveis com todo o resto ficam por assim dizer numa folha à parte que não tolera outras inscrições Se a paciente se enamora do médico o leigo achará que existem apenas duas saí das numa delas a mais rara todas as circunstâncias permitem a união duradoura e legítima dos dois na outra mais frequente médico e paciente se separam e abandonam como se um evento elementar o perturbasse o trabalho iniciado que deveria servir à recuperação Naturalmente há uma terceira saída imaginável que até parece compatível com o prosseguimento da terapia uma relação amorosa ilegítima e que não pretenda durar para sempre Mas tanto a moral convencional como a dignidade médica a tornam impossível Todavia o leigo solicitará que o analista o tranquilize assegurando claramente que esse terceiro caso está excluído É evidente que o ponto de vista do psicanalista deve ser outro Tomemos o caso do segundo desfecho para a situação que discutimos Médico e paciente se separam depois que ela se apaixona por ele a terapia é abandonada Mas logo a condição da paciente torna necessária uma segunda tentativa com outro psicanalista então ocorre que ela se sente apaixonada também por esse outro médico e interrompendo e começando de novo igual mente por um terceiro etc Esse fato que sem dúvida acontece e que é como se sabe um dos fundamentos da teoria psicanalítica permite duas avaliações uma vinda do médico que analisa a outra da paciente que necessita da análise Para o médico significa um valioso esclarecimento e um bom aviso quanto a uma possível contratransferência que nele se prepara Ele tem que recon hecer que a paixão da paciente é induzida pela situação analítica e não pode ser atribuída aos encantos de sua pessoa e que portanto não há motivo para ele ter orgulho de uma tal conquista como seria chamada fora da análise É sempre bom ser lembrado disso Para a paciente no entanto há uma altern ativa ou ela tem que renunciar a um tratamento psicanalítico ou deve aceitar como um destino inescapável que se apaixone pelo médico2 Não duvido que os familiares da paciente se declarem a favor da primeira das duas possibilidades de modo tão firme quanto o médico analista optará pela segunda Mas este me parece um caso em que a decisão não pode ser deix ada para a terna ou egoistamente ciumenta preocupação dos familiares O interesse da doente é que deve prevalecer O amor dos familiares não cura uma neurose O analista não precisa se impor mas pode se apresentar como indispensável para a obtenção de certos resultados Um parente que adotar a postura de Tolstói ante esse problema continuará em tranquila posse de sua mulher ou filha e aguentará que ela também conserve a sua neurose e a per turbação da capacidade de amar que esta implica Afinal a situação é parecida 161275 à de um tratamento ginecológico Aliás o pai ou marido ciumento se engana muito ao crer que a paciente deixará de se enamorar do médico se fizer para combater sua neurose um tratamento que não seja o psicanalítico A diferença será apenas que uma tal paixão destinada a permanecer inexpressa e não anal isada nunca prestará na cura da paciente a contribuição que a psicanálise ex trairia dela Conforme soube alguns médicos que praticam a análise costumam pre parar os pacientes para o surgimento da transferência amorosa ou até mesmo os exortam a apaixonarse pelo médico para que a análise progrida Não posso imaginar uma técnica mais tola Com isso o analista retira do fenômeno a convincente característica da espontaneidade e cria para si mesmo obstácu los de difícil superação À primeira vista é verdade nada leva a crer que da paixão surgida na transferência resultasse algo vantajoso para a terapia A paciente mesmo a mais dócil até então perde repentinamente o interesse e a compreensão pelo tratamento não querendo falar de outra coisa que não seu amor para o qual demanda correspondência Ela deixa de mostrar sintomas ou não lhes dá atenção chegando mesmo a dizer que está curada Há uma mudança completa de cenário como quando uma brincadeira dá lugar a uma realidade que ir rompe inesperadamente como um grito de Incêndio lançado no meio de uma apresentação teatral Para o médico que pela primeira vez tem tal exper iência não é fácil manter a situação analítica e escapar à ilusão de que o trata mento chegou de fato ao fim Mas com alguma reflexão podemos achar o caminho Tenhamos em mente sobretudo a suspeita de que tudo o que atrapalha a continuação da terapia pode ser uma manifestação de resistência Sem dúvida a resistência tem enorme participação no surgimento dessa impetuosa solicitação de amor Há muito se notava na paciente indícios de uma transferência afetuosa e era lí cito creditar a essa atitude para com o médico a sua docilidade a boa acolhida que dava às explicações analíticas a excepcional compreensão e elevada 162275 inteligência que demonstrava Eis que tudo isso desaparece a doente fica sem compreensão parece absorvida em sua paixão e tal mudança ocorre em geral num momento em que esperamos que ela admita ou recorde uma parte espe cialmente dolorosa e fortemente reprimida de sua história Logo havia muito ela estava apaixonada mas só então a resistência começa a se aproveitar disso para impedir a continuação da terapia para desviar todo o interesse do tra balho e pôr o analista em situação constrangedora Olhando mais atentamente notamos também a influência de motivos com plicadores dos quais alguns estão ligados ao amor pelo analista e outros são manifestações especiais da resistência Do primeiro tipo são o empenho da pa ciente em assegurar a si mesma que é irresistível em quebrantar a autoridade do médico através do seu rebaixamento a amante e obter todas as demais vantagens da satisfação amorosa Acerca da resistência podemos supor que eventualmente ela recorre à declaração de amor para colocar à prova o austero analista cuja complacência provocaria então uma reprimenda Mas sobretudo temos a impressão de que a resistência como um agent provocateur aumenta a paixão pelo analista e exagera a disposição para a entrega sexual a fim de in vocando os perigos de tal desregramento justificar mais enfaticamente o tra balho da repressão Essas coisas acessórias que podem não surgir em casos mais simples foram vistas por Alfred Adler como o essencial de todo o processo Como tem de se comportar o analista para não fracassar nesta situação quando está convencido de que a terapia deve ser levada adiante apesar dessa transferência amorosa e através dela Agora seria fácil eu afirmar amparandome na moral geralmente aceita que o analista nunca deve aceitar ou corresponder à ternura que lhe é ofere cida Ele teria de considerar que chegou o momento de advogar ante a mulher apaixonada as exigências éticas e a necessidade de renúncia e conseguir dela que abra mão de seu desejo e superando a parte animal de seu Eu prossiga com o trabalho da análise 163275 Mas eu vou decepcionar essas expectativas tanto a primeira como a se gunda delas A primeira porque não escrevo para a clientela e sim para médi cos que têm de lidar com sérias dificuldades e também porque no caso posso fazer remontar o preceito moral à sua origem isto é à adequação a um fim Achome aqui na feliz posição de substituir o decreto moral por consider ações de técnica analítica sem alterar o resultado Ainda mais decididamente rejeitarei a segunda expectativa mencionada Exortar a paciente a reprimir renunciar ou sublimar os instintos quando ela admite sua transferência amorosa não seria agir de maneira analítica e sim de maneira absurda Seria o mesmo que habilmente conjurar um espírito a sair do mundo subterrâneo e depois mandálo de volta sem lhe fazer perguntas Ter íamos apenas chamado o reprimido à consciência para depois novamente reprimilo amedrontados Tampouco deveríamos nos enganar a respeito do sucesso de tal procedimento É sabido que contra as paixões não valem muito as palavras sublimes A paciente só verá o desprezo e não deixará de se vingar por isso Também não posso aconselhar um meiotermo que pareceria a alguns par ticularmente sábio que consiste em afirmar que correspondemos aos afetos carinhosos da paciente e ao mesmo tempo evitar a realização física dessa ternura até conseguirmos guiar a relação para uma rota mais tranquila e pôla em um nível mais elevado Minha objeção a esse expediente é que o tratamento psicanalítico se baseia na veracidade Aí reside boa parte do seu efeito educat ivo e do seu valor ético É perigoso abandonar esse fundamento Quem se habituou à técnica psicanalítica já não é capaz de recorrer às mentiras e logros que um médico em geral necessita e costuma se trair quando tenta fazêlo com a melhor das intenções Como exigimos do paciente a mais estrita veracidade colocaremos em jogo toda a nossa autoridade se por ele formos flagrados nos afastando da verdade Além disso a experiência de resvalar para sentimentos ternos em relação à paciente não é inteiramente inócua Não nos controlamos tão bem a ponto de alguma vez subitamente não irmos mais longe que o 164275 pretendido Acho portanto que não devemos renegar a neutralidade que conquistamos ao subjugar a contratransferência Já dei a entender que a técnica analítica exige que o médico recuse à pa ciente necessitada de amor a satisfação pela qual anseia A terapia tem de ser conduzida na abstinência não estou me referindo simplesmente à privação física e tampouco à privação de tudo o que se deseja pois provavelmente nen hum paciente suportaria isso Quero é estabelecer como princípio que deve mos deixar que a necessidade e o anseio continuem a existir na paciente como forças impulsionadoras do trabalho e da mudança e não procurar mitigálos através de sucedâneos E não poderíamos lhe dar senão sucedâneos pois devido a sua condição ela não é capaz de verdadeira satisfação Admitamos que o princípio de que a terapia analítica deve se realizar na privação ultrapassa em muito o caso em questão e pede uma discussão apro fundada que defina os limites em que pode ser aplicado Evitaremos fazêlo aqui no entanto para nos atermos o máximo possível à situação de que parti mos Que ocorreria se o médico agisse de outra forma e aproveitasse a liber dade que ambos talvez tivessem para corresponder ao amor da paciente e atender sua necessidade de afeição Se assim fizer calculando que tal solicitude lhe garantiria o domínio sobre a paciente e a levaria a cumprir as tarefas do tratamento e assim libertarse duradouramente da neurose a experiência lhe mostrará que ele calculou mal A paciente atingiria sua meta ele não alcançaria a dele Apenas sucederia com o médico e a paciente o que acontece na divertida anedota do pastor e do agente de seguros Por solicitação dos familiares um agente de seguros ateu gravemente doente recebe a visita de um religioso que deve convertêlo antes que morra A conversa dura tanto tempo que os familiares esperando do lado de fora começam a ter esperanças Finalmente se abre a porta do quarto O ateu não se converteu mas o pastor saiu segurado Seria um grande triunfo para a paciente se a sua proposta de amor tivesse efeito e uma completa derrota para o tratamento Ela alcançaria aquilo que 165275 todos os doentes procuram fazer na análise transformar em ato repetir na vida o que devem somente recordar reproduzir como material psíquico e manter no âmbito psíquico3 No curso posterior da relação amorosa a doente manife staria todas as inibições e reações patológicas de sua vida amorosa sem que fosse possível corrigilas e encerraria o doloroso episódio com arrependi mento e com enorme reforço de sua tendência à repressão A relação amorosa destrói a suscetibilidade à influência pelo tratamento analítico uma combin ação das duas coisas é algo impensável Logo a gratificação dos anseios amorosos da paciente é tão funesta para a análise quanto a supressão dos mesmos O caminho do psicanalista é um outro para o qual não há modelos na vida real É preciso cuidar para não nos afastar mos da transferência amorosa não afugentála ou estragála para a paciente e também abstermonos de modo igualmente firme de corresponder a ela Conservamos a transferência amorosa mas a tratamos como algo irreal como uma situação a ser atravessada na terapia e reconduzida às suas origens incon scientes e que deve ajudar a pôr na consciência e portanto sob o controle o que há de mais escondido na vida amorosa da paciente Quanto mais dermos a impressão de ser à prova de toda tentação mais seremos capazes de extrair da situação o seu conteúdo analítico A paciente cuja repressão sexual não foi ab olida apenas impelida para trás se sentirá então segura o bastante para trazer à luz todas as suas condições para o amor todas as fantasias de seu anseio sexual todas as características de sua paixão e a partir delas abrirá por si mesma o caminho até os fundamentos infantis de seu amor É verdade que essa tentativa de manter a transferência amorosa para o tra balho analítico sem satisfazêla fracassará com um tipo de mulheres São aquelas de uma passionalidade elementar que não tolera sucedâneos são cri aturas da natureza que não aceitam o psíquico em vez do material que nas palavras do poeta são acessíveis apenas à lógica da sopa com argumentos de almôndegas Com pessoas assim nos vemos diante da opção ou dar amor em troca ou receber a hostilidade da mulher desprezada Em nenhum dos dois 166275 casos observamos o interesse da terapia Teremos que recuar sem obter su cesso ruminando o problema de como a capacidade para a neurose pode se ali ar a uma tão inflexível necessidade de amor A maneira de fazer outras pacientes não tão violentas adotarem pouco a pouco a atitude analítica terá se revelado a muitos analistas de forma igual Enfatizamos acima de tudo a inconfundível participação da resistência nesse amor Uma verdadeira paixão tornaria a paciente maleável e aumentaria a sua disposição a resolver os problemas do seu caso simplesmente porque o homem que ama o exige Assim ela escolheria de bom grado o caminho que leva a completar o tratamento a fim de se tornar valiosa para o médico e pre parar a realidade em que a inclinação amorosa poderia ter seu lugar Em vez disso a paciente se mostra obstinada e desobediente perde todo o interesse na terapia e claramente não respeita as bem fundamentadas convicções do an alista Ela produz assim uma resistência sob a forma aparente de paixão e além disso não se incomoda em leválo ao que as pessoas chamam de beco sem saída Pois se ele a recusar como requerem o dever e o entendimento ela poderá se fazer de desprezada e por vingança e por raiva furtarse à cura nas mãos dele como faz agora graças à suposta paixão Um segundo argumento contra a autenticidade desse amor consiste em que ele não possui uma só característica nova oriunda da situação presente mas se constitui inteiramente de repetições e decalques de reações anteriores infantis inclusive Nós nos dispomos a provar isso mediante uma análise detalhada do comportamento amoroso da paciente Se ainda juntamos a esses argumentos a necessária dose de paciência em geral conseguimos superar a situação e continuar o trabalho seja com uma paixão moderada ou com ela transformada trabalho cuja meta é então revelar a escolha infantil de objeto e as fantasias que em torno dela se tecem Mas agora quero examinar criticamente esses argumentos e levantar a questão de se ao utilizálos falamos a verdade à paciente ou em nosso aperto 167275 refugiamonos em evasivas e distorções Em outras palavras a paixão que se torna manifesta na terapia analítica não deve ser tida como real Acho que dissemos a verdade à paciente mas não ela inteira sem consider ação pelos resultados De nossos dois argumentos o primeiro é o mais forte O papel da resistência no amor de transferência é indiscutível e bastante con siderável Mas a resistência não criou esse amor depara com ele servese dele e exagera suas manifestações A autenticidade do fenômeno não é compro metida pela resistência Já o nosso segundo argumento é bem mais fraco é verdade que essa paixão consiste de novas edições de velhos traços e repete reações infantis Mas este é o caráter essencial de toda paixão Não existe paixão que não repita modelos infantis É justamente o condicionamento in fantil que lhe confere o caráter compulsivo que lembra o patológico O amor de transferência possui talvez um grau menor de liberdade que o amor con hecido como normal que sucede na vida deixando reconhecer mais a de pendência do padrão infantil mostrandose menos flexível e capaz de modi ficação mas isso é tudo e não é o essencial Em que mais devemos reconhecer a autenticidade de um amor Na sua efi ciência sua utilidade para atingir a meta amorosa Nesse ponto o amor de transferência não parece ficar atrás de nenhum outro temos a impressão de que dele poderíamos conseguir tudo Vamos resumir então Não temos o direito de recusar o caráter de amor genuíno à paixão que surge no tratamento analítico Se ela parece pouco normal isto se explica pelo fato de que também a paixão fora da análise lembra antes os fenômenos psíquicos anormais do que os normais De todo modo há alguns traços que lhe garantem uma posição especial Ela é em primeiro lugar provocada pela situação analítica em segundo é bastante intensificada pela resistência que domina tal situação em terceiro carece enormemente de con sideração pela realidade é menos sensata menos preocupada com as con sequências mais cega na avaliação da pessoa amada do que costumamos 168275 admitir para uma paixão normal Mas não podemos esquecer que justamente esses traços desviantes da norma constituem o essencial numa paixão Para a conduta do médico é a primeira das três peculiaridades do amor de transferência que é decisiva Ele evocou essa paixão ao introduzir o trata mento analítico para curar a neurose ela é para ele a inevitável consequência de uma situação médica como o desnudamento de um doente ou a comu nicação de um segredo vital Assim está claro para ele que não pode tirar vantagem pessoal dela A disposição da paciente não faz diferença apenas coloca toda a responsabilidade na pessoa do médico Pois a doente como ele deve saber não estava preparada para nenhum outro mecanismo de cura Após superar com sucesso todas as dificuldades ela frequentemente confessa a ex pectativa e fantasia com que iniciou o tratamento a de que se se comportasse bem no final seria recompensada com a ternura do médico Motivos éticos se juntam aos técnicos para impedir que o médico dê amor à paciente Ele deve manter em vista o objetivo de que essa mulher prejudicada em sua capacidade amorosa por fixações infantis chegue a dispor livremente dessa função de tão inestimável importância para ela e que não a dissipe na terapia guardandoa para a vida real após o tratamento quando as exigências desta se fazem sentir Ele não pode representar com ela o episódio da corrida de cachorros em que uma réstia de salsichas é exposta como prêmio e que um galhofeiro estraga lançando uma única salsicha na pista Os cachorros então se jogam sobre ela esquecendo a corrida e as salsichas que esperam o vencedor no ponto de chegada Não digo que para o médico seja sempre fácil manterse nos limites que lhe são prescritos pela ética e pela técnica Sobretudo aqueles jovens e ainda não atados por laços fortes acharão difícil a tarefa Sem dúvida o amor sexual é uma das principais coisas da vida e a união de satisfação física e psíquica no gozo do amor é uma de suas culminâncias Todas as pessoas ex ceto alguns esquisitos fanáticos sabem disso e pautam sua vida conforme isso apenas na ciência há pudor demais para admitilo Por outro lado é penoso para o homem fazer o papel de quem recusa e rejeita quando uma mulher 169275 solicita o amor e apesar da neurose e da resistência há um fascínio incom parável numa nobre mulher que confessa a sua paixão Não é o desejo crua mente sensual da paciente que produz a tentação Isso desperta antes repulsa e pede tolerância para ser admitido como fenômeno natural São talvez os dese jos mais sutis da mulher inibidos na meta que trazem o perigo de fazer es quecer a técnica e a missão médica em troca de uma bela vivência Mas ceder continua fora de questão para o analista Por mais que ele valor ize o amor tem que apreciar mais ainda a oportunidade de alçar a paciente a um estágio decisivo de sua vida Ela deve aprender com ele a superar o princí pio do prazer a renunciar a uma satisfação próxima porém inaceitável social mente em favor de uma mais distante talvez bastante incerta mas psicológica e socialmente inatacável Para atingir tal superação ela deve ser conduzida pelas priscas eras de seu desenvolvimento psíquico e por essa via conquistar aquele aumento de liberdade psíquica mediante o qual a atividade psíquica consciente no sentido sistemático se distingue da inconsciente O psicoterapeuta analítico tem portanto um triplo combate a travar em seu íntimo contra os poderes que buscam tirálo do nível analítico fora da an álise contra os adversários que lhe contestam a importância das forças mo trizes sexuais e lhe proíbem utilizarse delas em sua técnica psicanalítica e na análise contra os seus pacientes que no início agem como os adversários mas depois revelam a superestimação da vida sexual que os domina e querem prendêlo com sua passionalidade socialmente indomada Os leigos de cuja atitude ante a psicanálise falei no princípio sem dúvida verão nessas discussões sobre o amor de transferência uma oportunidade de chamar a atenção do mundo para o perigo desse método terapêutico O psican alista sabe que trabalha com as energias mais explosivas e que necessita da cautela e escrupulosidade de um químico Mas alguma vez se proibiu aos químicos de lidar com materiais explosivos perigosos é certo mas indispensá veis em sua eficácia É notável que a psicanálise tenha de conquistar nova mente para si todas as licenças que há muito foram concedidas a outras 170275 atividades médicas Certamente não acho que se deva abandonar os métodos inofensivos de tratamento Eles bastam para muitos casos e afinal a comunid ade humana tem tão pouca necessidade do furor sanandi furor de curar quanto de qualquer outro fanatismo Mas é subestimar grosseiramente as psiconeuroses quanto a sua origem e a sua importância prática crer que essas doenças seriam derrotadas com meios pequenos e inofensivos Não na prática médica sempre haverá lugar para o ferrum e para o ignis fogo ao lado da medicina medicamento e do mesmo modo será imprescindível a psicanálise acurada não diluída que não receia manipular os mais perigosos impulsos psíquicos e dominálos para o bem do paciente 1 Contribuição à história do movimento psicanalítico 1914 2 Sabese que a transferência pode se manifestar por outros sentimentos menos ternos o que não será abordado neste ensaio Adequação a um fim Zweckmäßigkeit palavra de difícil tradução O substantivo Zweck sig nifica finalidade desígnio o adjetivo zweckmäßig conforme a um fim adequado para atingilo com a junção do sufixo substantivador keit chegouse ao termo aqui usado por Freud que os dicionários alemãoportuguês costumam verter por utilidade caráter apropri ado conveniência oportunidade e que nas versões estrangeiras consultadas foi traduzido da seguinte forma educación sic erro de impressão a un fin condición de adecuado al fin op portunité expediency doelmatigheid Triebunterdrückung no original nas traduções consultadas yugular sus instintos sofocar lo pul sional étouffer sa pulsion suppress her instincts haar driften te onderdrukken Sobre a possível dis tinção entre Verdrängung repressão recalque e Unterdrückung supressão repressão ver Laplanche e Pontalis Vocabulário da psicanálise São Paulo Martins Fontes 11a ed 1991 verbetes recalque e repressão Luiz Alberto Hanns Dicionário comentado do alemão de Freud Rio de Janeiro Imago 1996 verbete recalque repressão e Paulo César de Souza As palavras de Freud op cit capítulo sobre Verdrängung Indifferenz no original mas pelo contexto notase que a versão mais adequada é a não literal o que também perceberam alguns outros tradutores neutralidad indiferencia indifférence neutrality neutraliteit 3 Ver o artigo Recordar repetir e elaborar 1914 171275 Nas edições argentina e holandesa uma nota informa que esta é uma citação do poema Die Wanderratten Os ratos errantes de Heinrich Heine citação um pouco imprecisa pois o verso diz Suppenlogik mit Knödelgründen motivos de almôndega em vez de Knödelargumenten Preparar a realidade die Realität vorbereiten nas versões consultadas preparar la realid ad preparar la realidad objetiva prepararsi a quella realtà aménager une réalité prepare herself for real life de realiteit voor te bereiden O verbo é transitivo direto e o seu objeto é Realität mas os tradutores italiano e inglês recorreram a uma solução que parece mais natural Desejos Wunschregungen tendencias mociones de deseo émois de désir wishes wensim pulsen Foi usado um termo simples para traduzir um composto alemão cf nota sobre Wun schregung p 127 Forças motrizes sexuais sexuelle Triebkräfte fuerzas instintivas sexuales fuerzas pul sionales sexuales pulsions sexuelles sexual instinctual forces drijfkrachten Poderia ser também forças ou energias instintuais sexuais mas preferimos lembrar a versão tradicional de Trieb kraft encontrada em dicionários bilíngues força motriz Sobre a discutida questão instinto ou pulsão ver capítulo sobre Trieb em As palavras de Freud op cit Segundo uma nota de James Strachey tratase de alusão a uma frase atribuída a Hipócrates As enfermidades que os medicamentos não curam o ferro a faca cura as que o ferro não pode curar o fogo cura e as que o fogo não pode curar devem ser tidas por totalmente incurá veis Aforismos vii 87 172275 TIPOS DE ADOECIMENTO NEURÓTICO 1912 TÍTULO ORIGINAL ÜBER NEUROTISCHE ERKRANKUNGSTYPEN PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM ZENTRALBLATT FÜR PSYCHOANALYSE FOLHA CENTRAL DE PSICANÁLISE V 2 N 6 PP 297302 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 32130 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE VI PP 21526 Nas páginas seguintes será exposto com base em impressões adquiridas em piricamente que mudanças de condições determinam a irrupção de uma neur ose nas pessoas com predisposição para isso Portanto trataremos dos fatores que ocasionam a doença pouco se falará das formas da doença Esta ap resentação de tais fatores se diferencia de outras pela característica de que to das as mudanças enumeradas dizem respeito à libido da pessoa Pois recon hecemos através da psicanálise que as vicissitudes da libido são decisivas para a doença ou a saúde nervosa Também não se abordará o conceito de predis posição nesse contexto Justamente a pesquisa psicanalítica nos possibilitou demonstrar que a predisposição neurótica se acha na história do desenvolvi mento da libido e referir os fatores nela atuantes a variedades inatas de con stituição sexual e a influências do mundo externo vividas na tenra infância a A causa imediata mais evidente mais encontrável e também mais com preensível para o adoecimento neurótico achase no fator externo que pode ser geralmente designado como frustração O indivíduo era saudável enquanto sua necessidade de amor era satisfeita por um objeto real do mundo externo tornase neurótico quando esse objeto lhe é retirado sem que ache um substi tuto para ele Aqui a felicidade coincide com saúde a infelicidade com neur ose Mais do que ao médico a cura cabe ao destino que pode arranjar um sub stituto para a perdida possibilidade de satisfação Para esse tipo em que provavelmente se inclui a maioria das pessoas a possibilidade de adoecer surge apenas com a abstinência o que nos dá uma medida de como podem ser significativas para ocasionar as neuroses as re strições culturais no acesso à satisfação A frustração tem efeito patogênico por represar a libido e submeter o indivíduo a uma prova quanto tempo ele suportará esse aumento da tensão psíquica e que caminhos tomará para livrar se dela Há apenas duas possibilidades de manter a saúde numa persistente frustração real da satisfação transformar a tensão psíquica em energia ativa que permaneça voltada para o mundo exterior e afinal obtenha dele uma real satisfação da libido ou renunciar à satisfação libidinal sublimando a libido represada e usandoa para alcançar metas que já não são eróticas e escapam à frustração O fato de ambas as possibilidades se concretizarem nas vidas hu manas mostra que infelicidade não coincide com neurose e que apenas a frus tração não decide quanto à saúde ou a doença dos que atinge O efeito imedi ato da frustração consiste em ativar fatores predisponentes até então inoperantes Quando eles existem de forma suficientemente desenvolvida há o perigo de a libido tornarse introvertida1 Ela se afasta da realidade que perdeu valor para o indivíduo pela renitente frustração e voltase para a vida da fantasia na qual cria novas formações de desejo e reanima os traços de formações anteri ores esquecidas Em consequência da íntima relação entre a atividade da fantasia e o material infantil reprimido e tornado inconsciente presente em cada indivíduo e graças à isenção da prova da realidade que desfruta a vida da fantasia2 a libido pode retroceder mais e pela via da regressão achar trilhas in fantis e aspirar a metas que lhes correspondam Se essas tendências incompatí veis com o estado atual da individualidade adquirem intensidade bastante chegase a um conflito entre elas e a outra parte da personalidade que continu ou em relação com a realidade Esse conflito se resolve por formação de sinto mas e termina em adoecimento manifesto O fato de todo o processo se origin ar da frustração real se espelha no resultado de que os sintomas com que o solo da realidade é novamente alcançado representam satisfações substitutivas b O segundo tipo de causa imediata para o adoecimento não é tão óbvio como o primeiro e pôde ser descoberto somente com aprofundados estudos analíticos ligados à teoria dos complexos da escola de Zurique3 Nele o indiví duo não adoece devido a uma mudança no mundo externo que fez a frustração tomar o lugar da satisfação mas por um esforço interno de buscar a satisfação acessível na realidade Adoece com a tentativa de adequarse à realidade e 175275 cumprir as exigências desta no que depara com insuperáveis dificuldades internas Convém distinguir de modo claro os dois tipos de adoecimento mais claro do que a observação geralmente permite No primeiro tipo sobressai uma mudança no mundo externo no segundo a tônica recai sobre uma mudança in terna Conforme o primeiro tipo adoecese por uma vivência conforme o se gundo por um processo de desenvolvimento No primeiro caso há a tarefa de renunciar à satisfação e o indivíduo adoece por sua incapacidade de resistên cia no segundo a tarefa é trocar uma espécie de satisfação por outra e a pess oa fracassa por sua rigidez No segundo caso existe de antemão o conflito entre o esforço de permanecer como é e o de mudar conforme novos intuitos e novas exigências da realidade no primeiro caso ele surge apenas depois que a libido represada escolheu outras possibilidades incompatíveis de satisfação O papel do conflito e da anterior fixação da libido é bem mais óbvio no segundo que no primeiro tipo no qual essas fixações inutilizáveis podem se produzir eventualmente devido apenas à frustração externa Um jovem que até então havia satisfeito sua libido com fantasias que res ultavam em masturbação e que agora quer trocar esse regime próximo do au toerotismo pela escolha de um objeto real uma garota que dedicava toda a sua afetividade ao pai ou irmão e que agora deve por um candidato à sua mão tornarse cônscia de desejos libidinais até então inconscientes incestuosos uma mulher que gostaria de renunciar a suas inclinações polígamas e fantasias de prostituição a fim de tornarse uma fiel companheira para seu marido e uma perfeita mãe para seu filho todos eles adoecem pelos mais louváveis esforços quando as antigas fixações são fortes o bastante para oporse a um deslocamento no que mais uma vez tornamse decisivos os fatores da predis posição constituição e vivência infantil Podese dizer que todos sofrem o des tino da pequena árvore do conto dos Grimm que desejava ter folhas difer entes Do ponto de vista higiênico que naturalmente não é o único a ser considerado aqui poderíamos desejar apenas que continuassem tão 176275 imaturos medíocres e ineptos como eram antes da doença A mudança a que os doentes aspiram mas realizam imperfeitamente ou não chegam a realizar tem normalmente o valor de um progresso no sentido da vida real É diferente quando medimos com padrão ético vemos as pessoas adoecerem com igual frequência se descartam um ideal ou se pretendem atingilo Não obstante as diferenças bem claras dos dois tipos de adoecimento descritos eles coincidem no essencial e podem ser reunidos facilmente numa unidade O adoecimento por frustração pode também ser visto como incapa cidade para adequação à realidade no caso isto é em que a realidade frustra a satisfação da libido O adoecimento nas condições do segundo tipo leva a um caso especial de frustração Nisso é verdade nem toda espécie de satisfação é frustrada pela realidade mas justamente a que o indivíduo declara ser a única possível para ele e a frustração não parte diretamente do mundo externo e sim primariamente de determinadas tendências do Eu mas a frustração continua a ser o dado comum e abrangente Em virtude do conflito que logo aparece no segundo tipo as duas espécies de satisfação a habitual e a desejada são igual mente inibidas chegase ao represamento da libido com as consequências dele advindas tal como no primeiro caso Os eventos psíquicos que levam à form ação de sintomas são no segundo tipo mais visíveis do que no primeiro pois as fixações patogênicas da libido não necessitam produzirse já eram ativas na época da saúde Em geral existia já uma certa medida de introversão da libido poupase alguma regressão ao estágio infantil pelo fato de o desenvolvimento não ter completado seu curso c O próximo tipo que descreverei como adoecimento por inibição do desenvolvimento parece uma exacerbação do segundo tipo de adoecimento com as exigências da realidade Não haveria uma necessidade teórica de diferenciálo e sim prática pois se trata de pessoas que adoecem quando ultra passam os anos irresponsáveis da infância nunca atingindo uma fase de saúde 177275 isto é de praticamente ilimitada capacidade de realização e fruição O essencial do processo predisponente é bem nítido nesses casos A libido nunca abandon ou as fixações infantis as exigências da realidade não se apresentam de súbito ao indivíduo que amadureceu totalmente ou em parte mas surgem pelo fato mesmo de envelhecer pois é óbvio que mudam continuamente com a idade da pessoa O conflito cede lugar à insuficiência mas todas as nossas demais per cepções nos levam a postular também aqui um esforço de superar as fixações infantis de outro modo o desenlace do processo não poderia jamais ser a neur ose mas apenas um infantilismo estacionário d Assim como o terceiro tipo nos mostrou quase isolada a condição pre disponente o quarto dirige a nossa atenção para um outro fator que intervém em todos os casos e por isso mesmo pode ser facilmente ignorado numa con sideração teórica Vemos adoecerem pessoas até então saudáveis às quais não aconteceu nenhuma experiência nova cuja relação com o mundo externo não se modificou de forma que o seu adoecimento dá uma impressão de espon taneidade Uma observação mais atenta desses casos nos mostra porém que nelas houve uma mudança à qual devemos atribuir elevada importância no surgimento da doença Por haverem atingido um certo período da vida e con forme processos biológicos regulares a quantidade de libido na sua economia psíquica sofreu um aumento que por si só basta para romper o equilíbrio da saúde e criar as condições para a neurose Como se sabe esses incrementos mais ou menos súbitos da libido estão associados normalmente à puberdade e à menopausa a uma certa idade nas mulheres em algumas pessoas eles podem manifestarse também em periodicidades ainda não conhecidas O repres amento da libido é aí o fator primário ele se torna patogênico em virtude da frustração relativa por parte do mundo externo que ainda permitiria satisfação a uma exigência libidinal menor A libido insatisfeita e represada pode abrir novamente as vias para a regressão e atiçar os mesmos conflitos que veri ficamos em caso de absoluta frustração externa Dessa maneira somos 178275 lembrados que não podemos desconsiderar o fator quantitativo em nenhuma reflexão sobre as causas da doença Todos os outros fatores frustração fix ação inibição do desenvolvimento ficam sem efeito enquanto não tocam a uma certa medida de libido e provocam um represamento libidinal de determ inada altura É certo que não podemos mensurar essa medida de libido que nos parece indispensável para um efeito patogênico podemos postulála depois que se apresentou a doença resultante Apenas numa direção somos capazes de determinála mais precisamente podemos supor que não é uma questão de quantidade absoluta mas da proporção entre o montante de libido atuante e a quantidade de libido com que o Eu individual pode lidar ou seja manter sob tensão sublimar ou aplicar diretamente Por isso um aumento relativo da quantidade de libido pode ter os mesmos efeitos que um acréscimo absoluto Um enfraquecimento do Eu por doença orgânica ou por uma demanda espe cial de sua energia será capaz de fazer surgirem neuroses que de outro modo permaneceriam latentes apesar de toda predisposição A importância que devemos conceder à quantidade de libido na causação da doença condiz providencialmente com duas teses básicas da teoria das neur oses a que a psicanálise nos conduziu Primeiro a tese de que as neuroses originamse do conflito entre o Eu e a libido segundo a compreensão de que não há diferença qualitativa entre as condições da saúde e as da neurose de que os indivíduos sãos têm de pelejar com as mesmas tarefas de subjugação da libido apenas saindose melhor nelas Resta dizer algumas palavras sobre a relação entre esses tipos e a nossa ex periência Se tomo o conjunto dos doentes que atualmente analiso devo con statar que nenhum deles exemplifica um dos quatro tipos de forma pura Vejo atuando em cada um isto sim um quê de frustração juntamente com certa in capacidade de adequarse às exigências da realidade a inibição do desenvolvi mento que coincide com a rigidez das fixações deve ser considerada em todos eles e não se pode jamais esquecer a quantidade de libido como afirmei há 179275 pouco Verifico mesmo que em vários desses pacientes a enfermidade surgiu em acessos entre intervalos de saúde e que cada um destes acessos pode ser li gado a um tipo diferente de causa imediata O estabelecimento desses quatro tipos não tem alto valor teórico portanto eles são apenas caminhos diversos para produzir determinada constelação patogênica na economia psíquica isto é o represamento da libido que o Eu não pode impedir com seus próprios re cursos sem sofrer danos Mas a situação mesma tornase patogênica devido somente a um fator quantitativo não constitui algo novo para a vida psíquica e não é criada pela intervenção de uma causa patológica Uma certa importância prática haveremos de reconhecer nos tipos de adoe cimento Em alguns casos eles podem ser observados na forma pura não ter íamos notado o terceiro e o quarto tipos se não consistissem nas únicas causas imediatas da doença em várias pessoas O primeiro tipo nos evidencia a poder osa influência do mundo externo o segundo o peso não menos importante da peculiaridade do indivíduo que se contrapõe àquela influência A patologia não pôde fazer justiça ao problema da causa imediata das neuroses enquanto se esforçou apenas por decidir se tais afecções eram de natureza endógena ou exógena A toda informação que indicava a importância da abstinência no mais amplo sentido como causa imediata ela opunha a objeção de que outras pessoas aguentavam as mesmas vicissitudes sem ficar doentes Mas se queria destacar a peculiaridade do indivíduo como essencial para a doença ou a saúde tinha de aceitar a admoestação de que pessoas com essa peculiaridade podem continuar sadias por todo o tempo desde que lhes seja permitido conservar tal peculiaridade A psicanálise nos recomendou abandonar a infecunda oposição entre fatores externos e internos destino e constituição e nos ensinou a regu larmente procurar a causa do adoecimento neurótico numa determinada situ ação psíquica que pode se produzir por diferentes caminhos 180275 1 Conforme um termo introduzido por C G Jung Formações de desejo Wunschbildunge nas versões estrangeiras consultadas deseos formaciones de deseo formazioni di desiderio wishful structures 2 Cf minhas Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico 1911 3 Cf Jung Die Bedeutung des Vaters für das Schicksal des Einzelnen O significado do pai para o destino do indivíduo Jahrbuch für Psychoanalyse v 1 1909 Tratase na verdade segundo uma nota da versão italiana de um poema infantil de Friedrich Rückert 17881866 181275 O DEBATE SOBRE A MASTURBAÇÃO 1912 INTRODUÇÃO E EPÍLOGO TÍTULO ORIGINAL ZUR EINLEITUNG DER ONANIEDISKUSSION SCHLUSSWORT PUBLICADO ORIGINALMENTE EM DIE ONANIE DISKUSSIONEN DER WIENER PSYCHOANALYTISCHEN VEREINIGUNG A MASTURBAÇÃO DISCUSSÕES DA SOCIEDADE PSICANALÍTICA DE VIENA V 2 WIESBADEN BERGMANN 1912 PP IIIIV E 13240 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 33245 INTRODUÇÃO Os debates da Sociedade Psicanalítica de Viena não pretendem eliminar dis cordâncias ou alcançar decisões Unidos por uma concepção básica semelhante dos mesmos fatos os participantes ousam exprimir claramente suas diversas posições individuais sem a preocupação de converter o ouvinte que pensa diferentemente É possível que algumas coisas tenham sido mal comunicadas ou malentendidas o resultado final porém foi que cada qual recebeu uma clara impressão das opiniões divergentes das suas e por sua vez transmitiu as suas aos outros O debate sobre a masturbação do qual apenas se publicam trechos aqui durou vários meses e desenvolveuse de modo que cada participante fazia uma exposição que era seguida de uma discussão detalhada Nesta publicação fo ram incluídas apenas as exposições não as ricas discussões em que eram ap resentadas e combatidas as divergências De outra forma este volume al cançaria uma extensão que provavelmente seria um obstáculo à sua difusão A escolha do tema não requer justificativas neste tempo em que finalmente procurase submeter à indagação científica também os problemas da sexualidade humana Repetições das mesmas ideias e afirmativas foram in evitáveis afinal elas traduzem concordâncias Quanto às muitas discrepâncias entre as concepções dos debatedores não podia ser tarefa do editor resolvê las e tampouco procurar escondêlas Esperamos que nem as repetições nem as discrepâncias venham a afastar o interesse dos leitores Foi nosso intuito mostrar nessa ocasião em que rumos a pesquisa dos problemas da masturbação foi impulsionada pelo surgimento da abordagem psicanalítica O êxito de nosso intuito será indicado pelo aplauso e talvez ainda mais claramente pela crítica dos nossos leitores Viena verão de 1912 EPÍLOGO Senhores Os membros mais antigos deste grupo recordarão que há alguns anos pro curamos organizar um debate coletivo como este um simpósio como dizem os colegas americanos sobre o tema da masturbação Naquele tempo houve divergências tão significativas entre as opiniões que não nos atrevemos a tornar públicas as discussões Desde então todos nós aqueles e os novos membros estivemos em contato permanente com os fatos observados e em contínua troca de ideias esclarecendo nossos pontos de vista e situandoos num terreno comum de modo que tal empreendimento já não parece tão ousado Pareceme realmente que as nossas concordâncias sobre o tema da mas turbação são agora mais fortes e profundas do que as divergências que con tinuam sendo inegáveis Algumas das aparentes contraposições são geradas pela multiplicidade de considerações que os senhores desenvolveram tratandose na verdade de pontos de vista que podem perfeitamente coexistir Permitamme que lhes apresente uma síntese sobre os pontos em que pare cemos estar de acordo ou em desacordo Todos estariam de acordo em relação a a a importância da fantasia que acompanha ou representa o ato masturbatório b a importância do sentimento de culpa ligado à masturbação qualquer que seja a sua origem c a impossibilidade de indicar um determinante qualitativo para a nocivid ade da masturbação nisso o acordo não é unânime Diferenças de opinião não resolvidas apareceram a quanto à negação do fator somático nos efeitos da masturbação 184275 b quanto à rejeição da nocividade da masturbação c quanto à origem do sentimento de culpa que alguns dos senhores acham que advém diretamente da insatisfação e outros levam em consideração fatores sociais ou a postura da personalidade no momento d quanto à ubiquidade da masturbação infantil Por fim subsistem consideráveis incertezas quanto a ao mecanismo do efeito nocivo da masturbação caso este se verifique b à relação etiológica da masturbação com as neuroses atuais Na maioria dos pontos em que discordamos agradecemos à crítica de nosso colega Wilhelm Stekel baseada numa experiência ampla e independ ente Certamente deixamos ainda muita coisa para ser constatada e esclarecida por uma futura multidão de observadores e estudiosos mas consolemonos com o fato de que trabalhamos de maneira reta e com espírito largo e en cetamos rumos que também serão seguidos pela pesquisa vindoura De minhas próprias contribuições aos problemas que nos ocupam os sen hores não devem esperar muito Conhecem minha preferência pelo tratamento fragmentário de um assunto com ênfase nos pontos que me parecem mais soli damente estabelecidos Não tenho nada de novo a oferecer nenhuma nova solução apenas algumas repetições de coisas que afirmei antes algumas palav ras em defesa dessas antigas colocações contra ataques do meio psicanalítico e também umas poucas observações que ocorreriam a um ouvinte de suas comunicações Como sabem eu diferenciei a masturbação de acordo com as idades em 1 masturbação do lactente incluindo todas as atividades autoeróticas que servem à satisfação sexual 2 a masturbação infantil que originandose diretamente da anterior já se fixa em determinadas zonas erógenas e 3 a mas turbação da puberdade que ou se segue imediatamente à masturbação infantil ou dela é separada pelo período de latência Em algumas das exposições que aqui ouvi não se fez completa justiça a essa separação temporal A suposta 185275 unidade da masturbação sugerida pela terminologia médica ocasionou várias generalizações quando uma diferenciação conforme essas três épocas da vida seria mais justificada Também lamentei o fato de não termos podido consider ar a masturbação feminina tanto quanto a masculina e acho que ela bem merece um estudo especial e que justamente nela há um destaque das modi ficações determinadas pela idade Passo agora às objeções levantadas por Reitler contra meu argumento teleológico sobre a ubiquidade da masturbação do lactente Reconheço que esse argumento deve ser abandonado Se os Três ensaios de uma teoria da sexu alidade vierem a ter uma nova edição ela não mais incluirá a afirmação crit icada Deixarei de querer adivinhar as intenções da natureza e me satisfarei com a descrição dos fatos Também me parece razoável e relevante a observação de Reitler de que certos dispositivos do aparelho genital peculiares ao ser humano tenderiam a impedir o intercurso sexual na infância Mas neste ponto surgem minhas dúvi das A oclusão da cavidade sexual feminina e a inexistência de um osso peniano que assegurasse a ereção dirigemse apenas contra o coito não contra as excit ações sexuais Reitler parece ter uma visão muito antropomórfica do modo como a natureza persegue sua meta como se nela se tratasse da realização co erente de uma única intenção a exemplo das obras humanas Pelo que vemos no entanto em geral há uma série de objetivos que correm paralelamente nos processos naturais sem excluírem uns aos outros Se é para falarmos da natureza em termos humanos devemos dizer que ela nos parece ser aquilo que em relação a uma pessoa chamaríamos de incoerente Acho que Reitler não deveria dar tanto peso a seus próprios argumentos teleológicos O emprego da teleologia como hipótese heurística tem suas dificuldades nunca sabemos em casos particulares se deparamos com uma harmonia ou com uma desarmonia É como quando se coloca um prego numa parede não sabemos se topamos com um tijolo ou uma concavidade 186275 Na questão do vínculo entre masturbação e poluções de um lado e a assim chamada neurastenia do outro achome em oposição a Stekel como muitos dos senhores e nessa discordância mantenho posições anteriores com uma re strição que depois assinalarei Não vejo motivo que nos faça renunciar à dis tinção entre neuroses atuais e psiconeuroses e posso apenas qualificar de tóx ica a gênese dos sintomas daquelas Nisso o colega Stekel realmente me parece estender em demasia o conceito de psicogênese Minha concepção é ainda aquela a que cheguei mais de quinze anos atrás de que as duas neuroses atuais neurastenia e neurose de angústia talvez a hipocondria propriamente dita deva ser considerada a terceira neurose atual demonstram complacência somática pelas psiconeuroses fornecem o material excitatório que é então se lecionado e travestido psiquicamente de modo que falando em termos gerais o núcleo do sintoma psiconeurótico o grão de areia no centro da pérola é constituído por uma manifestação sexual somática Certamente isso é mais claro para a neurose de angústia e sua relação com a histeria do que para a neurastenia acerca da qual ainda não foram feitas investigações psicanalíticas cuidadosas Na neurose de angústia como puderam os senhores verificar fre quentemente no fundo é um fragmento da excitação não descarregada rela cionada ao coito que aparece como sintoma de angústia ou fornece o núcleo de uma formação de sintoma histérico O colega Stekel partilha com vários autores de fora da psicanálise a inclin ação de rejeitar as diferenciações morfológicas que fizemos no emaranhado das neuroses e colocálas todas sob uma só rubrica a da psicastenia digamos Nisso já o contradissemos várias vezes e mantemos a expectativa de que as diferenças clínicomorfológicas se revelarão preciosas como indícios ainda não compreendidos de processos essencialmente distintos Se ele justificada mente responde que encontrou nos assim chamados neurastênicos os mes mos complexos e conflitos que nos outros neuróticos esse argumento não diz respeito ao ponto em questão Há muito sabemos que os mesmos complexos e conflitos serão também achados em todos os sadios e normais Sim 187275 habituamonos a supor em todo indivíduo civilizado um certo grau de repressão de impulsos perversos erotismo anal homossexualidade etc assim como um quê de complexo paterno e materno e outros complexos mais tal como na análise elementar de um corpo orgânico esperamos demonstrar a presença de carbono hidrogênio oxigênio nitrogênio e algum enxofre O que diferencia os corpos orgânicos entre si é a quantidade relativa desses elementos e a constituição das ligações que estabelecem entre si Dessa maneira nos indi víduos normais e nos neuróticos a questão não é a existência dos complexos e conflitos mas se estes se tornaram patogênicos e caso tenham se tornado que mecanismos empregaram para isso O essencial de minha teoria sobre as neuroses atuais que formulei no pas sado e defendo hoje em dia está na afirmação apoiada em experimento de que não podemos decompor analiticamente seus sintomas como fazemos com os psiconeuróticos Ou seja que a obstipação a dor de cabeça o cansaço dos assim chamados neurastênicos não admitem ser referidos histórica ou simbol icamente a vivências efetivas não podem ser entendidos como satisfações sexuais substitutivas como compromissos entre impulsos opostos diferente mente dos sintomas psiconeuróticos que às vezes parecem de igual natureza Não acredito que se consiga derrubar essa tese com ajuda da psicanálise Por outro lado hoje admito o que então não podia acreditar que um tratamento analítico pode ter influência curativa indireta sobre os sintomas atuais ou fazendo com que os malefícios atuais sejam mais bem suportados ou pondo o indivíduo enfermo em condição de subtrairse a tais malefícios atuais através de mudança do regime sexual Estas são sem dúvida perspectivas desejáveis para o nosso interesse terapêutico Mas se na questão teórica das neuroses atuais for demonstrado enfim que estou errado saberei me consolar com o progresso do nosso conhecimento que necessariamente tira o peso das opiniões de um indivíduo Os senhores perguntarão agora por que tendo uma percepção tão louvável de minha pró pria falibilidade eu não cedo às novas sugestões e prefiro repetir o já 188275 conhecido espetáculo do homem velho que se atém às suas opiniões A res posta é que ainda não reconheço a evidência a que deveria ceder Em anos pas sados meus pontos de vista sofreram várias mudanças que não deixei de torn ar públicas Por causa delas fizeramme recriminações tal como agora me re criminarão por minha insistência Não que essas ou aquelas me desencorajem Mas sei que tenho um destino a cumprir não posso a ele me furtar e não neces sito ir ao seu encontro Ficarei à sua espera e enquanto isso minha atitude para com a nossa ciência será a mesma que aprendi a ter no passado É a contragosto que me posiciono sobre a questão da nocividade da mas turbação frequentemente abordada pelos senhores pois essa não é uma abord agem conveniente dos problemas que nos ocupam Mas talvez todos tenhamos de fazer assim O mundo parece não se interessar por outra coisa que não a masturbação Como bem sabem tivemos como convidado nas primeiras noites em que discutimos o tema um prestigioso pediatra da nossa cidade O que procurou ele saber de nós em repetidas perguntas Apenas até que ponto a masturbação é prejudicial e por que prejudicaria uns e não outros De modo que temos de fazer nossa pesquisa se pronunciar acerca desta necessidade prática Confesso que também nisso não partilho a opinião de Stekel apesar das muitas observações audazes e corretas que ele nos fez sobre a questão Para ele a nocividade da masturbação é só um preconceito absurdo que apenas devido à estreiteza pessoal não abandonamos resolutamente Mas eu acho que se encararmos o problema sina ira et studio sem cólera nem parcialidade tanto quanto isso nos for possível deveremos declarar isto sim que tal posicionamento contraria nossos pontos de vista fundamentais acerca da eti ologia das neuroses A masturbação corresponde essencialmente à atividade sexual infantil e sua permanência em idade mais madura Vemos as neuroses como oriundas do conflito entre os impulsos sexuais de um indivíduo e suas outras tendências do Eu Alguém poderia então dizer Para mim o fator patogênico dessa relação etiológica se acha apenas na reação do Eu à sua 189275 sexualidade Com isso estaria afirmando que toda pessoa poderia manterse livre de neurose se quisesse satisfazer sem restrições as suas tendências sexuais Mas é claramente arbitrário e também inadequado assim decidir e não con ceder que também as tendências sexuais mesmas partilhem do caráter pato gênico No entanto se os senhores admitirem que os impulsos sexuais podem agir de modo patogênico já não poderão negar esse sentido à masturbação que consiste apenas na efetivação de tais impulsos instintuais sexuais Certa mente poderão em todo caso em que a masturbação pareça patogênica fazer o efeito remontar mais além aos instintos que se manifestam na masturbação e às resistências que se voltam contra esses instintos De fato a masturbação não é algo psicológica ou somaticamente derradeiro não é um efetivo agente é apenas um nome para certas atividades no entanto por mais que remontemos atrás nosso juízo acerca das causas da doença permanece ligado com justiça a essa atividade Não esqueçam também que a masturbação não equivale simplesmente à atividade sexual que é essa atividade em certas condições re stritivas Também é possível então que justamente essas particularidades da atividade masturbatória sejam portadoras de seu efeito patogênico Assim mais uma vez passamos dos argumentos para a observação clínica e esta nos recorda que não devemos apagar a rubrica efeitos nocivos da mas turbação De todo modo nas neuroses encontramos casos em que a masturb ação trouxe danos Esses danos parecem ocorrer de três formas a organicamente por um mecanismo desconhecido em que devem ser levadas em conta as considerações acerca de imoderação e satisfação inad equada que os senhores fizeram não poucas vezes b pelo estabelecimento de um padrão psíquico na medida em que não se tem de buscar a modificação do mundo externo para satisfazer uma grande necessidade c ao possibilitar a fixação de metas sexuais infantis e a permanência no in fantilismo psíquico Com isso há a predisposição para se cair na neurose 190275 Como psicanalistas temos de nos interessar enormemente por esse resultado da masturbação refirome naturalmente à masturbação na puberdade e à que prossegue depois desse tempo Tenhamos presente o significado que a masturbação adquire como execução da fantasia esse domínio que se interpôs entre a vida conforme o princípio do prazer e aquela conforme o princípio da realidade como a masturbação possibilita realizar na fantasia manifestações sexuais e sublimações que não são progressos mas apenas compromissos nocivos É certo que o mesmo compromisso na importante observação de Stekel torna inofensivas graves inclinações perversas e afasta as piores con sequências da abstinência Segundo minha experiência médica uma duradoura redução da potência não deve ser excluída da gama de consequências da masturbação embora eu conceda a Stekel que em bom número de casos ela pode se revelar apenas apar ente Justamente esse efeito da masturbação não pode ser colocado entre os danos simplesmente Uma certa diminuição da potência masculina e do ânimo brutal a ela relacionado é bastante útil culturalmente Facilita para o homem civilizado a observância das virtudes da moderação e da confiabilidade sexual que lhe são exigidas Ser virtuoso gozando de inteira potência é geralmente imaginado como tarefa difícil Se esta afirmação lhes parecer cínica acreditem que não foi feita com cin ismo Pretende ser apenas uma descrição sóbria não se importando de provo car aborrecimento ou satisfação Também a masturbação tem como muitas coisas mais les défauts de ses vertus os defeitos de suas virtudes e inver samente les vertus de ses défauts Se desenredamos um tema complicado com interesse prático parcial em sua utilidade ou nocividade temos que admitir tais achados pouco agradáveis Creio por outro lado que é vantajoso distinguir o que podemos chamar de danos diretos causados pela masturbação daquilo que deriva indiretamente da resistência e revolta do Eu contra essa atividade sexual Essas últimas con sequências não cheguei a abordar aqui 191275 Agora algumas palavras inevitáveis sobre a segunda das questões penosas que nos foram dirigidas Supondo que a masturbação venha a ser nociva em que condições e em que indivíduos ela se mostra nociva Como a maioria dos senhores tendo a desaprovar uma resposta geral a essa pergunta Ela coincide em parte com outra questão abrangente relativa a quando a atividade sexual em geral se torna patogênica para um indivíduo Se deixamos de lado essa parte restanos uma questão específica relacionada às características da masturbação enquanto modalidade particular de satisfação sexual Caberia agora repetir o que já é conhecido e foi apresentado em outro contexto avaliar a influência do fator quantitativo e a conjugação de vários elementos que atuam de forma patogênica e teríamos sobretudo de conceder um grande espaço às assim chamadas disposições constitucionais do indivíduo Mas admitamos trabalhar com elas não é coisa fácil Costumamos inferir uma predisposição individual ex post depois do fato posteriormente quando a pessoa está doente nós lhe atribuímos essa ou aquela predisposição Não temos como descobrila antes Nisso fazemos como o rei escocês de um ro mance de Victor Hugo que se gabava de um meio infalível de reconhecer uma bruxa Ele deixava a mulher suspeita cozinhando em água fervente e então provava a sopa Conforme o sabor decidia Sim era uma bruxa ou Não essa não era Eu poderia também chamar sua atenção para um tema que foi muito pouco abordado em nossas conversas o da masturbação inconsciente Refirome à masturbação no sono em estados anormais em ataques Lembramse como muitos ataques histéricos trazem o ato masturbatório de forma oculta ou irre conhecível depois que o indivíduo renunciou a esse tipo de satisfação e quan tos sintomas de neurose obsessiva tendem a substituir ou repetir esse modo de satisfação sexual que foi proibido no passado Vários dos senhores terão tido como eu a experiência do grande avanço que significa o fato de o paciente voltar à masturbação durante o tratamento ainda que não pretenda ficar perenemente nessa etapa infantil Posso ainda lhes recordar que um número 192275 significativo de neuróticos justamente dos mais graves evitou a masturbação nos períodos históricos de que tem lembrança ao passo que podemos demon strar pela psicanálise que de maneira nenhuma essa atividade sexual lhes era estranha nos seus remotos e esquecidos primeiros anos de vida Mas acho melhor pararmos aqui Afinal todos concordamos em que esse tema é quase inesgotável Complacência somática somatisches Entgegenkommen segundo Strachey foi a expressão usada por Freud ao explicar o mecanismo da histeria no Caso Dora 1905 as versões con sultadas usam facilitación somática solicitación somática compiacenza somatica e somatic compliance 193275 ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE INCONSCIENTE NA PSICANÁLISE 1912 TÍTULO ORIGINAL EINIGE BEMERKUNGEN ÜBER DEN BEGRIFF DES UNBEWUSSTEN IN DER PSYCHOANALYSE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM INTERNATIONALE ZEITSCHRIFT FÜR ÄRZTLICHE PSYCHOANALYSE REVISTA INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE MÉDICA V 1 N 2 PP 11723 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 4309 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE III PP 2536 Gostaria de expor em poucas palavras e do modo mais claro possível que sen tido se atribui ao termo inconsciente na psicanálise e apenas na psicanálise Uma ideia ou qualquer outro elemento psíquico pode estar agora presente na minha consciência e desaparecer no momento seguinte pode nova mente retornar após um intervalo de tempo e isso como dizemos a partir da lembrança não em consequência de uma nova percepção sensorial Para levar em conta esse fato vimonos obrigados a supor que a ideia estava presente em nosso espírito também durante o intervalo ainda que permanecesse latente na consciência Sob que forma pode haver existido enquanto presente na vida psíquica e latente na consciência acerca disso não temos como fazer conjecturas Neste ponto devemos estar preparados para a objeção filosófica de que a ideia latente não existiu como objeto da psicologia mas como disposição física para a recorrência do mesmo fenômeno psíquico ou seja a mencionada ideia Mas a isso podemos replicar que uma tal teoria extrapola bastante a área da psicologia propriamente que apenas contorna o problema ao manter que consciente e psíquico são noções idênticas e que evidentemente está er rada em negar à psicologia o direito de aclarar com seus próprios meios um de seus fatos mais corriqueiros o da memória Vamos então chamar de consciente à ideia que se acha presente em nossa consciência e da qual nos apercebemos e admitir apenas este sentido para o termo consciente já as ideias latentes se tivermos motivo para supor que existem na psique como no caso da memória serão designadas com o termo inconsciente Uma ideia inconsciente então é uma ideia que não notamos mas cuja ex istência estamos dispostos a aceitar com base em outros indícios e provas Isso poderia ser visto como um trabalho descritivo ou classificatório bem desinteressante se nenhuma outra informação fosse levada em conta para o nosso julgamento além dos fatos da memória ou da associação por elos incon scientes Mas o conhecido experimento da sugestão póshipnótica nos faz insistir na importância da distinção entre consciente e inconsciente e parece aumentarlhe o valor Nessa experiência tal como foi realizada por Bernheim uma pessoa é colo cada em estado hipnótico e depois despertada Enquanto se achava nesse es tado sob a influência do médico foilhe dada a ordem de executar uma de terminada ação num momento preciso meia hora depois por exemplo Uma vez desperta tudo indica que voltou à plena consciência e à disposição mental habitual não havendo lembrança do estado hipnótico mas o impulso de ex ecutar aquela ação impõese ao espírito no momento predeterminado e ela é realizada conscientemente embora não se saiba por quê Dificilmente poder íamos descrever de outro modo o fenômeno senão dizendo que a intenção es tava presente no espírito da pessoa em forma latente ou inconscientemente até o instante fixado em que se tornou consciente Todas as outras ideias associadas a esta a ordem a influência do médico a lembrança do estado hipnótico permaneceram inconscientes também Podemos aprender ainda mais com tal experiência Somos levados a uma concepção dinâmica do fenômeno em vez de puramente descritiva A ideia da ação ordenada durante a hipnose não se tornou apenas um objeto da con sciência em determinado instante mas produziu também efeito e este é o as pecto que mais chama a atenção no fato ela foi traduzida em ação tão logo a consciência deuse conta de sua presença Como a verdadeira incitação a agir é a ordem do médico dificilmente não se admitirá que também a ideia da ordem foi eficiente No entanto esse último pensamento não foi recebido na consciência como sucedeu com seu derivado a ideia da ação ele permaneceu inconsciente e por isso foi ao mesmo tempo eficiente e inconsciente A sugestão póshipnótica é um produto de laboratório um fato gerado arti ficialmente Mas se adotarmos a teoria dos fenômenos histéricos apresentada por Pierre Janet e elaborada por Breuer e por mim teremos à disposição 196275 muitos fatos naturais que mostram o caráter psicológico da sugestão pós hipnótica de maneira ainda mais distinta e clara A psique do paciente histérico é cheia de pensamentos que produzem efeito mas são inconscientes deles procedem todos os sintomas O traço que realmente mais chama a atenção na constituição psíquica histérica é ser gov ernada por ideias inconscientes Quando uma mulher histérica vomita pode fazêlo em consequência da ideia de estar grávida No entanto ela não tem conhecimento dessa ideia embora esta possa facilmente ser descoberta em sua psique e tornada consciente para ela por meio de um dos procedimentos técni cos da psicanálise Quando faz os gestos e movimentos convulsivos que com põem seu ataque não chega a imaginar conscientemente as ações por ela in tentadas e as observa talvez com os sentimentos de um espectador não en volvido Entretanto a análise consegue mostrar que ela desempenhava seu pa pel na reprodução dramática de uma cena de sua vida cuja recordação durante o ataque era inconscientemente eficaz O mesmo predomínio de ideias incon scientes eficientes é desvendado na análise como o essencial na psicologia de todas as demais formas de neurose Com a análise dos fenômenos neuróticos aprendemos portanto que um pensamento latente ou inconsciente não é fraco necessariamente e que a sua presença na psique permite provas indiretas da maior força quase equivalentes à prova direta fornecida pela consciência Sentimonos justificados em fazer nossa classificação harmonizarse com esse acréscimo em nossos conhecimen tos introduzindo uma distinção fundamental entre diferentes tipos de pensamentos latentes e inconscientes Estávamos habituados a pensar que todo pensamento latente era assim devido à sua fraqueza e que se tornava con sciente ao obter força Agora adquirimos a convicção de que há determinados pensamentos latentes que não penetram na consciência por mais fortes que se jam Por isso chamaremos os pensamentos latentes do primeiro grupo de pré conscientes enquanto reservamos o termo inconsciente no sentido próprio para o segundo grupo que estudamos nas neuroses O termo inconsciente que 197275 até aqui utilizamos apenas em sentido descritivo recebe agora um sentido mais amplo Não designa somente pensamentos latentes em geral mas aqueles em especial que têm certo caráter dinâmico ou seja os que se conservam longe da consciência apesar de sua intensidade e eficácia Antes de prosseguir minha discussão desejo considerar duas objeções que provavelmente serão levantadas neste ponto A primeira podese formular da seguinte maneira em vez de adotarmos a hipótese de pensamentos incon scientes dos quais nada sabemos seria melhor supor que a consciência pode ser dividida de modo que alguns pensamentos ou outros eventos psíquicos podem formar uma consciência à parte que se desprendeu da massa principal da atividade psíquica consciente e tornouse alheia a ela Conhecidos casos patológicos como o do dr Azam parecem bem adequados para demonstrar que a divisão da consciência não é uma ilusão fantástica Permitamme observar contra essa teoria que ela apenas se aproveita de um abuso da palavra consciente Não temos o direito de ampliar o sentido dessa palavra de forma tal que venha a designar também uma consciência de que o próprio dono nada sabe Se os filósofos têm dificuldade em crer na ex istência de um pensamento inconsciente pareceme ainda mais discutível a ex istência de uma consciência inconsciente Os casos descritos como sendo di visão da consciência tal como o do dr Azam podem ser mais bem designados como movimento da consciência em que esta função ou o que quer que seja oscila entre dois diferentes complexos psíquicos que alternadamente tornamse conscientes e inconscientes A outra objeção provável seria que aplicamos na psicologia de pessoas normais conclusões retiradas principalmente do exame de estados patológicos A ela podemos responder com um fato de que temos conhecimento mediante a psicanálise Certos distúrbios funcionais que ocorrem muito frequentemente entre pessoas normais como lapsus linguae equívocos de memória e de lin guagem esquecimento de nomes etc podem facilmente ser ligados à atuação de fortes pensamentos inconscientes tal como os sintomas neuróticos 198275 Depararemos com um segundo argumento ainda mais convincente numa outra parte desta discussão Diferenciando pensamentos préconscientes e inconscientes somos levados a abandonar o âmbito da classificação e a formar uma opinião sobre as relações funcionais e dinâmicas na atividade da psique Achamos um préconsciente que produz efeito que sem dificuldade se transporta para a consciência e um incon sciente que produz efeito que permanece inconsciente e parece cortado da consciência Não sabemos se essas duas espécies de atividade psíquica são desde o princípio idênticas ou essencialmente contrárias mas podemos nos perguntar por que deveriam tornarse diferentes no curso dos processos psíquicos A essa questão a psicanálise dá uma resposta clara e decidida Para o produto do inconsciente eficaz não é de maneira nenhuma impossível penetrar na con sciência mas isso requer um certo esforço Ao tentar fazêlo em nós mesmos temos a nítida sensação de uma defesa que deve ser superada e ao provocar isso num paciente obtemos inequívocos sinais do que chamamos de resistência contra isso Desse modo vemos que o pensamento inconsciente é excluído da consciência por forças vivas que se opõem à sua acolhida enquanto nada ob stam a outros pensamentos préconscientes A psicanálise não deixa espaço para duvidar que a rejeição de pensamentos inconscientes é provocada apenas pelas tendências corporificadas no seu conteúdo A teoria mais provável que podemos formar nesse estágio de nosso saber é a que segue O inconsciente é uma fase regular e inevitável dos processos que fundamentam nossa atividade psíquica todo ato psíquico começa inconsciente e pode permanecer assim ou desenvolverse rumo à consciência segundo encontre resistência ou não A distinção entre atividade préconsciente e inconsciente não é primária mas produzse apenas depois que a defesa entra em jogo Somente então ganha valor teórico e prático a diferença entre pensamentos préconscientes que aparecem na consciência e a qualquer instante podem a ela retornar e pensamentos inconscientes que não podem fazêlo Uma analogia tosca 199275 porém adequada para esta relação que supomos entre a atividade consciente e a inconsciente nos aparece no campo da fotografia O primeiro estágio da fo tografia é o negativo toda imagem fotográfica tem de passar pelo processo negativo e alguns desses negativos que superaram bem a prova são ad mitidos no processo positivo que conclui com a imagem Mas a diferenciação entre atividade préconsciente e inconsciente e o con hecimento da barreira que as separa não é o último nem o mais significativo resultado da investigação psicanalítica da psique Há um produto psíquico que se acha nas pessoas mais normais e que no entanto oferece uma notável ana logia com as mais selvagens produções da loucura e que os filósofos não com preenderam mais do que a loucura mesma Refirome aos sonhos A psicanál ise se baseia na análise do sonho a interpretação dos sonhos é o trabalho mais completo que a jovem ciência realizou até agora Um caso típico de formação de sonho pode ser descrito da seguinte forma uma série de pensamentos é des pertada pela atividade mental do dia e conserva algo de sua eficácia mediante a qual escapa à diminuição geral de interesse que introduz o sono e que con stitui a preparação mental para dormir Durante a noite esta série de pensamentos consegue ligarse a um dos desejos inconscientes que desde a in fância sempre existem na psique do sonhador mas que habitualmente são rep rimidos e excluídos de sua vida consciente Com a força emprestada por essa ajuda inconsciente os pensamentos os vestígios diurnos tornamse de novo eficazes e emergem na consciência em forma de sonho Três coisas sucederam portanto 1 os pensamentos experimentaram uma transformação um disfarce e dis torção que representa a participação do aliado inconsciente 2 os pensamentos conseguiram ocupar a consciência num momento em que ela não devia lhes ser acessível 3 um pedaço do inconsciente emergiu na consciência o que normalmente não seria possível 200275 Aprendemos a arte de descobrir os restos diurnos e os pensamentos oníricos latentes comparandoos ao conteúdo manifesto do sonho somos capazes de formar um juízo sobre as mudanças que perfizeram e sobre a maneira como estas se realizaram Os pensamentos oníricos latentes não se diferenciam absolutamente dos produtos de nossa atividade psíquica consciente habitual Eles merecem o nome de pensamentos préconscientes e podem de fato haver sido con scientes em algum instante da vida desperta Mas ligandose às tendências in conscientes durante a noite foram por estas assimilados como que rebaixados à condição de pensamentos inconscientes e sujeitados às leis que regem a atividade inconsciente Eis aqui a oportunidade de aprender o que não poder íamos saber com base em reflexões ou a partir de outra fonte que as leis da atividade psíquica inconsciente se distinguem em boa medida daquelas da atividade consciente Mediante o trabalho com detalhes adquirimos conheci mento das peculiaridades do inconsciente e podemos esperar aprender mais ainda por meio de uma mais profunda investigação dos processos da formação do sonho Essa indagação mal chegou à sua metade e não é possível expor os resulta dos até agora obtidos sem entrar nos problemas altamente intrincados da inter pretação dos sonhos Mas não gostaria de pôr termo a essa discussão sem apontar para a mudança e o progresso na compreensão do inconsciente que devemos ao estudo psicanalítico dos sonhos O inconsciente nos parecia inicialmente tão só uma característica misteri osa de determinado processo psíquico agora significa mais para nós é um in dício de que este participa da natureza de certa categoria psíquica conhecida de nós por outros traços mais significativos e de que pertence a um sistema de atividade psíquica que merece a nossa plena atenção O valor do inconsciente como índice ultrapassou em muito a sua importância como atributo O sistema que se dá a conhecer pela marca distintiva de serem inconscientes os processos que o compõem é por nós chamado de o Inconsciente na falta de expressão 201275 melhor e menos ambígua Proponho para sua designação as letras Ics abrevi atura da palavra inconsciente Este é o terceiro e mais importante sentido que o termo inconsciente ad quiriu na psicanálise Como informa James Strachey na sua introdução a este trabalho no volume xii da Standard edition Londres Hogarth Press 1958 ele foi escrito originalmente em inglês a convite da Society for Psychical Research de Londres e publicado nos Proceedings dessa instituição em 1912 No ano seguinte foi editado em alemão na Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse assinado por Freud e sem indicação de que fora traduzido do inglês por Hanns Sachs amigo e discípulo de Freud algo revelado por Ernest Jones em sua biografia de Freud Ao ser in cluído nos cinco volumes dos Collected papers em 1925 o texto inglês foi ligeiramente atualiz ado na terminologia Por causa dessas vicissitudes Strachey afirma que não possuímos um texto inteiramente confiável reliable deste ensaio embora reconheça que tanto a revisão como a tradução foram benfeitas e provavelmente passaram pelas mãos de Freud Achou por bem então reproduzir a primeira versão inglesa tal como apareceu em 1912 chamando a atenção para algumas diferenças terminológicas em notas de rodapé Na presente edição deci dimos utilizar como base o texto alemão recorrendo a notas para apontar as ocasionais diver gências entre o texto inglês o original alemão e a nossa versão Diferentemente de Strachey não acreditamos que o texto seja unreliable devido à sua dupla gênese acreditamos isto sim que sua pretensa unreliability decorre de uma imprecisão terminológica inerente à psicanálise conforme sustentamos no livro As palavras de Freud op cit Acrescentese que em sua jus tificativa para reproduzir o original inglês Strachey não considera que a versão alemã foi reeditada cinco vezes inclusive em duas coleções das obras completas de Freud os Gesammelte Schriften Escritos completos v v 1924 e os Gesammelte Werke v viii 1943 Vorstellung no texto alemão conception na versão inglesa As três outras versões consultadas a castelhana da Amorrortu a italiana da Boringhieri e a francesa da puf tradução Anne Berman usam representação discuto os problemas que envolvem a tradução desse termo em As palavras de Freud op cit capítulo sobre Vorstellung Alle anderen mit dieser Vorstellung assoziierten Ideen em alemão All the other ideas associated with this conception em inglês Tendo vertido Vorstellung por ideias suprimimos a palavra Ideen Auffassung em alemão view na versão inglesa concepción concezione vue nas outras consultadas 202275 Nesta frase ideias é tradução de Vorstellungen na frase seguinte Freud usa Idee evidente mente com o mesmo sentido Na frase anterior pensamentos Gedanken é também empregado como sinônimo de Vorstellungen No texto inglês está ideas onde se lê Gedanken no alemão depois se usa um pronome e por fim novamente Idea Eventos psíquicos tradução aqui dada a Seelenvorgänge A palavra Vorgang é geralmente vertida por processo como está nas versões argentina italiana e francesa mas admite tam bém o sentido de evento que nos pareceu caber melhor aqui No texto inglês achase psych ical acts Movimento Wandern substantivação do verbo que significa andar vagar Em inglês usouse shifting nas outras versões consultadas migración vagabondare migration Processos psíquicos psychische Vorgänge na versão inglesa psychical action Defesa Abwehr repulsion no texto inglês Ocupar besetzen occupy no texto inglês Nas demais traduções consultadas investir occu pare occuper 203275 PRINCÍPIOS BÁSICOS DA PSICANÁLISE 1913 O ORIGINAL ALEMÃO DESTE TEXTO É DADO COMO PERDIDO FOI PUBLICADO PRIMEIRAMENTE NUMA VERSÃO INGLESA ON PSYCHOANALYSIS EM AUSTRALASIAN MEDICAL CONGRESS TRANSACTIONS OF THE NINTH SESSION V 2 PARTE 8 1913 PP 83942 TRATASE DE UMA COMUNICAÇÃO ENVIADA AO REFERIDO CONGRESSO EM 1911 MAS PUBLICADA EM SUAS ATAS APENAS DOIS ANOS DEPOIS A PRESENTE VERSÃO FOI FEITA COTEJANDOSE A TRADUÇÃO INGLESA E A ALEMÃ FEITA POR ANNA FREUD A PARTIR DAQUELA O TÍTULO QUE AQUI LHE DAMOS É UMA FORMA LIGEIRAMENTE ABREVIADA DO TÍTULO QUE RECEBEU NA EDIÇÃO ALEMÃ ÜBER GRUNDPRINZIPIEN UND ABSICHTEN DER PSYCHOANALYSE SOBRE PRINCÍPIOS BÁSICOS E INTENÇÕES DA PSICANÁLISE EM GESAMMELTE WERKE NACHTRAGSBAND VOLUME SUPLEMENTAR PP 7248 Em resposta ao amável convite do secretário de sua seção de neurologia e psiquiatria quero solicitar a atenção deste congresso para o tema da psicanál ise que atualmente é objeto de interesse na Europa e nos Estados Unidos A psicanálise é uma disciplina singular em que se combinam um novo tipo de pesquisa das neuroses e um método de tratamento com base nos resultados daquele Desde já enfatizo que ela não é fruto da especulação mas da exper iência e portanto é inacabada enquanto teoria Mediante suas próprias inquir ições cada qual pode se persuadir da correção ou incorreção das teses nela presentes e contribuir para seu desenvolvimento No início da psicanálise se acha uma publicação conjunta minha e de Breuer os Estudos sobre a histeria de 1895 Partindo da histeria o âmbito de trabalho da psicanálise estendeuse para muitos outros distúrbios psíquicos Vejo como precursores da psicanálise os trabalhos de Charcot sobre a histeria traumática as investigações de fenômenos hipnóticos por Liébault e Bernheim e os estudos de Janet sobre processos psíquicos inconscientes Não demoraram a aparecer diferenças entre as concepções de Janet e a psicanálise pois esta a não ligava a histeria a uma degeneração constitucional hereditária b oferecia em vez de uma mera descrição uma explicação dinâmica baseada na interação das forças psíquicas e c atribuía a dissociação psíquica cuja im portância fora reconhecida por Janet não a um fracasso congênito da síntese psíquica mas a um processo psíquico especial chamado de repressão Provouse que os sintomas histéricos são restos reminiscências de pro fundas experiências afetivas que foram subtraídas à consciência cotidiana e que sua forma é determinada de uma maneira que não permite descarga mo tora por particularidades do efeito traumático das experiências Assim as per spectivas terapêuticas estão na possibilidade de anular essa repressão fazendo com que parte do material psíquico inconsciente se torne consciente e diminuindo seu efeito patogênico Nossa concepção é dinâmica pois vê os processos psíquicos como deslocamentos de energia psíquica que podem ser avaliados pelo montante de seu efeito sobre os elementos afetivos Isso é muito importante na histeria em que os sintomas aparecem pela conversão isto é pela transformação de impulsos psíquicos em inervações somáticas As primeiras pesquisas psicanalíticas e tentativas de tratamento recorreram ao método hipnótico Após o abandono da hipnose adotouse a associação livre em que o paciente permanece em seu estado de consciência normal Isso tornou possível a aplicação do procedimento a um número bem maior de casos de histeria a outras neuroses e também a pessoas sadias Por outro lado foi necessário desenvolver uma técnica especial de interpretação a fim de extrair conclusões do material revelado na associação livre O trabalho de inter pretação nos levou à certeza de que as dissociações psíquicas são geradas e mantidas por resistências internas Então parece justo concluir que as disso ciações se ligam estreitamente a conflitos internos nos quais o impulso subja cente ao sintoma cedeu à repressão Para resolver o conflito e desse modo curar a neurose requerse a orientação de um médico treinado na psicanálise Pudemos mostrar partindo disso que os sintomas patológicos de todas as neuroses são os produtos finais desses conflitos que levaram à repressão e à cisão da psique Segundo o mecanismo psíquico que entra em ação os sinto mas podem ser a formações substitutivas para impulsos reprimidos b form ações de compromisso entre o reprimido e as forças repressoras c formações reativas como salvaguarda contra o retorno do reprimido Nossas pesquisas se estenderam também às condições que determinam se os conflitos psíquicos levarão à repressão isto é à dissociação causada dinam icamente ou se terão um desfecho normal Sustentamos na psicanálise que esses conflitos sempre se dão entre os instintos sexuais no mais amplo sentido da palavra e os desejos e tendências do restante do Eu Nas neuroses são os instintos sexuais que sucumbem à repressão e assim constituem o mais im portante material para a sintomatologia Os sintomas neuróticos são nesse sentido disfarçadas formações substitutivas para satisfações sexuais 206275 No que toca a predisposição para a neurose a psicanálise acrescentou às in fluências somáticas e hereditárias até então reconhecidas uma outra o fator infantil Vimonos obrigados a relacionar a vida psíquica do paciente à sua primeira infância e chegamos à conclusão de que inibições do desenvolvi mento psíquico infantilismos têm importante papel na predisposição para a neurose Nossas investigações da vida sexual nos ensinaram sobretudo que realmente existe algo como uma sexualidade infantil que o instinto sexual é constituído de uma série de instintos parciais e atravessa um complicado curso de desenvolvimento cujo resultado final após muitas restrições e transform ações é a sexualidade normal dos adultos As enigmáticas perversões do in stinto sexual que ocorrem nos adultos aparecem como inibições do desenvolvi mento fixações ou distorções Assim as neuroses são o negativo das perversões O desenvolvimento cultural que se impõe à humanidade torna necessárias as restrições e repressões dos impulsos sexuais requerendo maior ou menor sacrifício conforme a constituição individual É raro que o desenvolvimento ocorra sem problemas e os distúrbios que se apresentam devido à constitu ição individual ou a incidentes sexuais prematuros deixam alguma predis posição para futuras neuroses Essas predisposições podem não ter efeito se a vida adulta transcorrer de modo tranquilo e satisfatório mas se tornam pato gênicas se as condições impedirem a satisfação da libido ou pedirem exagera damente a sua supressão Nossas pesquisas sobre a atividade sexual das crianças levaram a apro fundar a concepção do instinto sexual baseandoa não em suas metas mas em suas fontes O instinto sexual possui em grande medida a capacidade de se des viar do objetivo sexual original e se voltar para outros mais elevados não mais sexuais sublimação Assim o instinto é capaz de fazer importantes con tribuições para as conquistas sociais e artísticas da humanidade O que constitui a principal característica e diferencia a psicanálise de outras concepções da vida mental patológica é o reconhecimento da atuação 207275 simultânea de três fatores infantilismo sexualidade e repressão A psic análise também mostra que não há diferença fundamental mas apenas de grau entre a vida psíquica das pessoas normais dos neuróticos e dos psicóticos Uma pessoa normal tem de passar pelas mesmas repressões e lidar com as mes mas formações substitutivas a diferença é que a solução dos conflitos se realiza mais facilmente e com melhores resultados Assim o método psicanalítico de investigação pode ser aplicado igualmente à explicação de fenômenos psíqui cos normais e possibilitou descobrir a íntima relação entre produtos patológi cos e processos psíquicos da vida normal como os sonhos os pequenos lapsos cotidianos e fenômenos valiosos como os chistes os mitos e as obras de arte Destes o que estudamos mais a fundo foram os sonhos e chegamos à seguinte fórmula geral O sonho é a realização disfarçada de um desejo reprimido A interpretação dos sonhos tem como objetivo a eliminação do disfarce que so freram os pensamentos do sonhador Além disso presta valiosa ajuda na téc nica psicanalítica constituindo o melhor método para penetrar na vida psíquica inconsciente Nos círculos médicos especialmente nos psiquiátricos existe a tendência de se opor às teorias da psicanálise sem um verdadeiro estudo ou aplicação prática delas Isto se deve não apenas à espantosa novidade dessas teorias e ao contras te que elas apresentam às concepções até agora mantidas pelos psiquiatras mas também ao fato de os pressupostos e a técnica da psicanálise serem muito mais ligados ao campo da psicologia do que ao da medicina Não se pode contestar porém que os ensinamentos puramente médicos e não psicológicos con tribuíram muito pouco até aqui para um entendimento da vida psíquica O progresso da psicanálise é também retardado pelo medo que sente o obser vador médio de enxergarse em seu próprio espelho Os homens de ciência tendem a confrontar resistências emocionais com argumentos convencendo se assim do que desejam ser convencidos Quem não quiser ignorar uma ver dade fará bem em desconfiar de suas antipatias e analisar primeiramente a si mesmo se pretende submeter ao exame crítico a teoria da psicanálise 208275 Não creio que nessas poucas frases eu tenha conseguido dar uma imagem clara dos princípios básicos e das intenções da psicanálise Acrescentarei uma lista das principais publicações sobre o tema cujo estudo proporcionará mais amplo esclarecimento àqueles cujo interesse eu tenha despertado 1 Breuer e Freud Studien über Hysterie Estudos sobre a histeria Viena Franz Deuticke 1895 Parte desse livro foi vertida para o inglês pelo dr A A Brill em Selected papers on hysteria and other psychoneuroses Nova York 1909 2 Freud Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie Três ensaios de uma teoria da sexualidade Viena 1905 Tradução inglesa do dr Brill Three contributions to the sexual theory Nova York 1910 3 Freud Zur Psychopathologie des Alltagslebens Psicopatologia da vida co tidiana Berlim S Karger 3a ed 1910 4 Freud Die Traumdeutung A interpretação dos sonhos Viena 1900 3a ed 1911 5 Freud The origin and development of psychoanalysis American Journal of Psychology abril de 1910 Também em alemão Über Psychoanalyse Sobre a psicanálise Cinco conferências proferidas na Clark University Worcester Massachusetts 1909 6 Freud Der Witz und seine Beziehung zum Unbewußten O chiste e sus re lação com o inconsciente Viena 1905 7 Freud Sammlung kleiner Schriften zur Neurosenlehre Coleção de pequenos textos sobre a teoria das neuroses Viena 18831906 8 Idem segunda coleção Viena 1909 9 Hitschmann Freuds Neurosenlehre A teoria freudiana das neuroses Vi ena 1911 10 C G Jung Diagnostische Assoziationsstudien Estudos diagnósticos de associação 2 vols 190610 209275 11 C G Jung Über die Psychologie der Dementia Praecox Sobre a psicolo gia da dementia praecox 1907 12 Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen Anuário de Pesquisas Psicanalíticas e Psicopatológicas publicado por E Bleuler e S Freud editado por Jung Desde 1909 13 Schriften zur angewandten Seelenkunde Escritos de psicologia aplicada Viena Franz Deuticke Desde 1907 11 partes por Freud Jung Abraham Pfister Rank Jones Riklin Graf Sadger 14 Zentralblatt für Psychoanalyse Folha Central de Psicanálise editado por A Adler e W Stekel Wiesbaden J Bergmann Desde setembro de 1910 Em vez de as dissociações psíquicas se acha na versão de Anna Freud o fenômeno da cisão da consciência No lugar de os desejos e tendências do restante do Eu se acha na versão de Anna Freud e as outras partes da personalidade Sintomatologia adotamos aqui o termo da tradução de Anna Freud a versão inglesa diz a gênese dos sintomas seguido de vírgula e desta oração substituindo a que se lê na presente versão que podem ser vistos consequentemente como substitutos para satisfações sexuais Na versão de Anna Freud foram acrescentadas nesse ponto as seguintes palavras isto é para satisfações que reconhecemos como não sexuais inibidas na meta Na versão inglesa se acha a única diferença é que lida com esses eventos com menor di ficuldade e maior sucesso 210275 UM SONHO COMO PROVA 1913 TÍTULO ORIGINAL EIN TRAUM ALS BEWEISMITTEL PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM INTERNATIONALE ZEITSCHRIFT FÜR ÄRZTHICHE PSYCHOANALYSE REVISTA INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE MÉDICA V 1 N 1 PP 738 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE X PP 1122 Uma senhora sofrendo de mania de dúvida e cerimonial obsessivo exige de suas enfermeiras que não a percam de vista um só momento senão ficaria cis mando no que teria feito de proibido enquanto não era vigiada Uma noite ao repousar no sofá acha que a enfermeira de serviço adormeceu Então per gunta Você me via a enfermeira num sobressalto responde Sim claro A doente tem agora motivo para mais uma dúvida e após um instante repete a pergunta A enfermeira reitera que sim nesse momento o jantar é trazido por uma outra servente Isto aconteceu numa sextafeira à noite Na manhã seguinte a enfermeira narra um sonho que dissipa as dúvidas da paciente sonho Alguém lhe deu uma criança a mãe viajou e ela perdeu a criança Andando pela rua pergunta às pessoas se a viram Chega a uma grande extensão de água vai por uma estreita passarela Depois acrescenta Nessa passarela surgiulhe de repente como uma miragem a figura de outra enfermeira Então se acha num local que lhe é familiar e lá encontra uma mulher que conheceu quando menina que era vendedora numa loja de alimentos e depois casouse Ela pergunta à mulher que está diante de sua porta Você viu a criança Mas a mulher não se interessa pela pergunta e lhe conta que agora está separada do marido acrescent ando que também no casamento nem tudo é felicidade Então ela acorda tranquil izada achando que a criança estará certamente com uma vizinha análise A paciente supôs que o sonho diz respeito à dormida que a enfer meira negou O que esta lhe falou a propósito do sonho sem ser perguntada permitiulhe fazer uma interpretação suficiente na prática ainda que incom pleta em vários pontos Eu mesmo ouvi apenas o relato da senhora não falei com a enfermeira Após a interpretação da paciente acrescentarei algumas coisas a partir da compreensão geral que temos das leis da formação dos sonhos A enfermeira diz que a criança do sonho a faz pensar num trabalho que lhe deu muita satisfação Foi o de uma criança que não podia enxergar devido a uma infecção ocular blenorrágica Mas a mãe dessa criança não viajou também cuidava dela E sei que meu marido que tem essa enfermeira em alta conta entregoume à sua guarda ao despedirse e que ela então lhe prometeu dar atenção a mim como a uma criança Além disso pela análise da paciente notamos que com a exigência de que não a percam de vista ela mesma pôsse de volta na infância Ela perdeu a criança continua a paciente significa que não me viu perdeume de vista É uma confissão de que realmente dormiu um tanto e não me disse a verdade O trecho do sonho em que a enfermeira pergunta pela criança às pessoas da rua ficou obscuro para a senhora mas quanto a outros elementos do sonho manifesto ela dá boas explicações No caso da grande extensão de água ela pensa no rio Reno mas diz que era muito maior que o Reno Lembrase então que na noite anterior eu li em voz alta a história de Jonas e a baleia e conteilhe que eu própria tinha visto certa vez uma baleia no canal da Mancha Creio que a água é o mar ou seja uma alusão à história de Jonas Acho também que a passarela estreita vem da mesma história escrita em dialeto e de forma divertida Nela um professor de religião conta aos alunos a maravilhosa aventura de Jonas e um menino faz a objeção de que ela não seria possível já o professor mesmo lhes disse em outra ocasião que a baleia tem uma garganta tão estreita que pode engolir somente ani mais bastante pequenos O professor saiuse com a resposta de que Jonas era um judeu e os judeus se introduzem em qualquer lugar Minha enfer meira é uma pessoa religiosa mas inclinada a dúvidas na religião e recrimineime porque talvez tivesse lhe despertado dúvidas com a leitura Na passarela estreita ela vê surgir uma outra enfermeira que conhece Ela já me contou a história dessa outra ela se afogou no Reno porque a haviam mandado embora do trabalho no qual fora culpada de alguma coisa1 Ela receia então ser mandada embora por ter adormecido E no dia 213275 seguinte depois de relatar o sonho ela chorou amargamente quando lhe perguntei o motivo respondeu de forma rude Isto a senhora sabe tão bem quanto eu e agora não terá mais confiança em mim Como o aparecimento da enfermeira que se afogou era um acréscimo e aliás de uma nitidez particular deveríamos ter aconselhado à senhora que ini ciasse a interpretação nesse ponto Essa primeira metade do sonho também foi acompanhada de forte angústia segundo o relato da protagonista na segunda metade teve início a sensação de tranquilidade com que acordou Na parte seguinte do sonho continua analisando a senhora vejo mais uma prova segura da minha opinião de que ele trata do incid ente da noite de sextafeira pois a mulher que havia sido vendedora numa loja de alimentos só poderia ser a garota que trouxe o jantar Faço a obser vação de que a enfermeira havia se queixado de náuseas o dia inteiro A pergunta que ela faz à mulher Você viu a criança procede evid entemente da minha Você me via que lhe fiz pela segunda vez justamente quando a garota entrava com os pratos Também no sonho perguntase duas vezes pela criança O fato de a mulher não responder não se interessar interpretaríamos como uma depreciação da outra servente em favor daquela que sonha que se coloca acima da outra no sonho justamente porque luta com reproches por sua falta de atenção A mulher que aparece no sonho não se separou realmente do marido Essa passagem vem da história da outra garota que por decisão dos pais é mantida afastada separada do homem que deseja casar com ela A frase que diz que nem tudo no casamento corre bem é provavelmente um consolo utilizado em conversas entre as duas Esse consolo tornase mode lo para outro com que o sonho termina A criança vai ser encontrada Deste sonho eu concluí que a enfermeira adormeceu de fato naquela noite e por isso receava ser despedida Então não tive mais dúvidas de minha própria percepção Aliás depois de narrar o sonho ela disse lamentar não ter trazido nenhum livro de sonhos Quando afirmei que esses livros 214275 contêm as piores superstições replicou que não era supersticiosa mas todas as coisas desagradáveis de sua vida lhe ocorreram sempre numa sextafeira Além disso ela agora me trata mal mostrase irritadiça melindrosa e faz cenas Devemos admitir que essa senhora interpretou e avaliou corretamente o sonho de sua enfermeira Como é frequente na interpretação de sonhos da psicanálise devem ser considerados na tradução do sonho não apenas os res ultados da associação mas também as circunstâncias em que ele é narrado o comportamento do sonhador antes e após a análise do sonho e tudo o que ele diz ou deixa transparecer mais ou menos simultaneamente na mesma sessão analítica Se tomarmos a suscetibilidade da enfermeira sua referência à sexta feira como dia funesto etc confirmaremos o juízo de que o sonho contém a admissão de ela ter realmente adormecido quando negou que o fizera e por isso teme ser despedida por sua cliente2 Este sonho que teve para a senhora um valor prático estimula o nosso in teresse teórico em duas direções É certo que ele termina com uma frase con soladora mas no essencial inclui uma confissão importante para o relaciona mento da enfermeira com a paciente Como pode um sonho que afinal deve servir para satisfazer um desejo substituir uma confissão que nem mesmo é vantajosa para aquela que o tem Deveríamos conceder que além dos sonhos de desejo e angústia existam sonhos de confissão e também de advertência de reflexão de adaptação e assim por diante Admito não compreender ainda por que a atitude contrária a essa tentação na minha Interpretação dos sonhos encontra reservas da parte de tantos psican alistas alguns deles eminentes Distinguir entre sonhos de desejo confissão advertência adaptação etc não me parece ter mais sentido do que a diferen ciação dos especialistas médicos em ginecologistas pediatras e odontologistas admitida por necessidade Tomo a liberdade de repetir de forma bastante sucinta o que afirmei sobre isso na Interpretação dos sonhos3 215275 Podem agir como perturbadores do sono e formadores do sonho os chama dos vestígios diurnos pensamentos investidos de afeto do dia anterior ao sonho que resistiram em alguma medida à diminuição de energia pelo sono Esses vestígios diurnos são descobertos ao relacionarmos o sonho mani festo aos pensamentos oníricos latentes são partes destes incluemse port anto entre as atividades da vida desperta conscientes ou inconscientes que puderam prosseguir durante o sono Correspondendo à multiplicidade dos processos de pensamento no consciente e no préconsciente esses vestígios di urnos têm os significados mais diversos podem ser desejos ou temores não resolvidos e também desígnios cogitações advertências tentativas de ad aptação a tarefas iminentes etc Nisso pareceria justificada a classificação dos sonhos de que se fala conforme o teor que neles descobrimos pela inter pretação Mas esses vestígios diurnos não são ainda o sonho faltalhes o que nele é essencial Por si só não são capazes de produzir um sonho A rigor são apenas material psíquico para o trabalho do sonho assim como estímulos sen soriais e corporais fortuitos ou condições introduzidas experimentalmente constituem o seu material somático Atribuirlhes o papel principal na form ação do sonho significa repetir em novo lugar o erro prépsicanalítico de que os sonhos se explicariam por uma má digestão ou pressão em algum ponto da pele Assim pertinazes são os erros científicos e sempre dispostos a retornar com novas máscaras uma vez rechaçados Até onde percebemos as coisas temos de afirmar que o fator essencial na construção do sonho é um desejo inconsciente via de regra infantil agora rep rimido que consegue achar expressão nesse material somático ou psíquico também nos vestígios diurnos portanto e lhes empresta uma força que lhes permite ingressar na consciência também durante a pausa noturna do pensamento O sonho é sempre a realização desse desejo inconsciente não im portando o que mais contenha reflexão advertência confissão qualquer outro elemento da riqueza da vida diurna préconsciente que não resolvido persiste noite adentro É esse desejo inconsciente que dá ao trabalho do sonho 216275 o seu caráter peculiar como elaboração inconsciente de um material précon sciente O psicanalista pode caracterizar o sonho apenas como produto do tra balho onírico os pensamentos oníricos latentes ele não pode adscrever ao sonho mas sim ao refletir préconsciente embora os tenha conhecido apenas interpretando o sonho A elaboração secundária pela instância consciente é aqui incluída no trabalho do sonho ainda que a separemos nada muda nesta concepção Diríamos então que o sonho no sentido psicanalítico compreende o trabalho onírico propriamente e a elaboração secundária de seu produto A conclusão a ser tirada dessas ponderações é que não se pode situar o caráter de realização de desejo do sonho no mesmo nível do seu caráter de advertência confissão tentativa de solução etc sem negar o ponto de vista de uma di mensão psíquica profunda ou seja o ponto de vista da psicanálise Voltemos agora ao sonho da enfermeira para demonstrar o caráter pro fundo da satisfação de desejo que ele contém Já antecipamos que a inter pretação feita pela senhora não é completa houve partes do sonho de que ela não pôde dar conta Além do mais ela sofre de uma neurose obsessiva que é minha impressão dificulta o entendimento dos símbolos oníricos tal como a dementia praecox o facilita Mas o nosso conhecimento do simbolismo dos sonhos nos permite com preender passagens não interpretadas deste sonho e perceber um sentido mais profundo por trás daquelas já interpretadas Deve nos chamar a atenção que certo material usado pela enfermeira venha do complexo de parir de ter filhos A grande extensão de água o Reno o canal da Mancha em que foi vista a baleia é provavelmente a água de onde vêm as crianças Ela chega até lá em busca da criança O mito de Jonas que levou à determinação dessa água o problema de como ele a criança passa pela fenda estreita incluemse no mesmo contexto A enfermeira que magoada se jogou no Reno que entrou na água também achou em seu desespero da vida um consolo sexualsimbólico naquele tipo de morte A estreita passarela na qual lhe vem ao encontro a 217275 aparição pode também ser interpretada como um símbolo genital embora eu deva admitir que nos falta um conhecimento mais preciso dele O desejo de ter um filho parece ser então aquilo que do inconsciente vem formar o sonho e nenhum outro parece mais adequado para consolar a enfer meira da dolorosa situação real Vão me despedir vou perder a criança de que cuido Que importa Vou arranjar um filho próprio carnal Talvez aquela passagem não interpretada em que ela pergunta a todos na rua pela cri ança esteja relacionada a isso então seria traduzida desta forma mesmo que eu tenha que me oferecer na rua conseguirei um filho Uma atitude desafi adora da enfermeira até então oculta manifestase aqui de repente e apenas com ela se harmonizaria esta confissão Sim eu fechei os olhos e comprometi minha reputação de enfermeira Agora vou perder o trabalho Eu serei idiota a ponto de me afogar como fez X Não não serei mais enfermeira quero me casar ser mulher ter um filho meu nada me impedirá de fazer isso Tal tradução se justifica pela consideração de que ter um filho é a expressão in fantil do desejo de relação sexual também ante a consciência ela pode ser escolhida para expressar eufemisticamente esse chocante desejo De modo que a confissão desvantajosa para a sonhadora à qual ela mostrava certa inclinação na vida diurna foi tornada possível no sonho ao ser aproveitada por um traço de caráter latente para produzir a satisfação de um desejo infantil Podemos imaginar que essa característica tem íntimo nexo temporal e de conteúdo com o desejo de ter filho e o prazer sexual Uma nova indagação junto à senhora a quem devo a primeira parte dessa interpretação forneceu as seguintes notícias inesperadas sobre as vicissitudes da vida da enfermeira Antes de adotar essa profissão ela quis desposar um homem que ardorosamente a cortejava mas renunciou a ele devido à objeção de uma tia com a qual mantém singular relação mistura de dependência e de safio Essa tia que lhe frustrou o casamento é a superiora de uma ordem de irmãs enfermeiras A moça sempre a teve por modelo e está ligada a ela tam bém por considerações de herança mas opôsse à sua vontade não 218275 ingressando na ordem que a tia lhe reservava A atitude desafiadora que trans parece no sonho diz respeito à tia portanto Já atribuímos origem eróticoanal a esse traço de caráter e podemos supor que interesses pecuniários a fazem de pender da tia lembramos também que as crianças privilegiam a teoria do nas cimento anal Esse elemento do desafio infantil talvez nos permita supor um nexo mais íntimo entre a primeira e a última cena do sonho A exvendedora de alimentos do sonho é a outra servente da senhora que entrou no quarto com o jantar no momento em que ela perguntava Você me via Mas ao que parece foilhe reservado o papel geral da competidora hostil É depreciada como babá pois não se interessa em absoluto pela criança perdida responde falando de seus próprios assuntos Para ela é deslocada então a indiferença ante a pessoa de que cuida que a sonhadora começava a ter A ela são atribuídos o casamento infeliz e a separação que a sonhadora mesma devia recear em seus mais secretos desejos Mas sabemos que a tia é que a separou do noivo Então a vendedora de alimentos figura não necessariamente isenta de significado simbólico infantil pode representar a tiasuperiora aliás não muito mais velha que a sonhadora e que para ela assumiu o papel tradicional da mãecom petidora Uma boa confirmação de tal interpretação está na circunstância de o local familiar do sonho no qual ela encontra essa pessoa diante de sua porta ser justamente o local onde essa tia vive e exerce a função de superiora Devido à não proximidade entre o analista e o objeto da análise é aconsel hável não penetrar mais fundo na trama deste sonho Mas podemos dizer que até onde foi acessível à interpretação ele apresentou riqueza de confirmações e de novos problemas Talvez não haja correspondência exata em português para a palavra alemã aqui traduzida por enfermeira Pflegerin Pfleger no masculino é aquela que cuida de um doente sem ter a formação profissional da enfermeira para a qual se usa o termo Krankenschwester em 219275 alemão As versões deste trabalho em castelhano italiano e francês usam a mesma palavra nossa e a edição inglesa emprega nurse Uma alternativa seria o termo cuidadora que em bora artificial começa a ser usado nos meios psiquiátricos 1 Neste ponto fui culpado de uma condensação do material que pude corrigir graças a uma re visão do manuscrito com a senhora que fez o relato A enfermeira que surge como uma apar ição na passarela não fora culpada de coisa alguma no trabalho Foi despedida porque a mãe da criança tendo que viajar explicou que preferia durante sua ausência uma pessoa mais velha mais confiável portanto para cuidar da criança A isto juntouse uma segunda história de uma outra enfermeira que realmente fora despedida por sua negligência mas não havia se afogado por isso O material necessário para a interpretação do elemento onírico acha se repartido em duas fontes como não raro acontece Minha memória realizou a síntese que le vou à interpretação De resto na história da enfermeira que morreu afogada se encontra o fat or da partida da mãe que a senhora relacionou à partida de seu marido Como se vê uma sobredeterminação que prejudica a elegância da interpretação 2 Alguns dias depois a enfermeira admitiu a uma outra pessoa que havia dormido naquela noite e assim justificou a interpretação da senhora 3 Gesammelte Werke iiiii pp 599 ss Pensamentos investidos de afeto do dia anterior ao sonho affektbesetzte Denkvorgänge des Traumtages no original O termo Vorgang no plural Vorgänge pode significar tanto um processo como um acontecimento um evento num processo Por isso esta passagem é vertida de maneira um pouco diversa em algumas traduções consultadas procesos ideativos con carga afectiva procedentes del dia anterior ao sueño procesos de pensamiento del día del sueño investidos de afecto pensieri affettivamente investiti della giornata che ha preceduto il sogno cathected thoughtprocesses from the dreamday A criança de que cuido traduçãoparáfrase literal de mein Pflegekind O termo designa na verdade a pessoa em geral que é objeto de cuidados apareceu uma vez antes quando foi traduzido por cliente 220275 SONHOS COM MATERIAL DE CONTOS DE FADAS 1913 TÍTULO ORIGINAL MÄRCHENSTOFFE IN TRÄUMEN PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM INTERNATIONALE ZEITSCHRIFT ÄRZTLICHER PSYCHOANALYSE REVISTA INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE MÉDICA V 1 N 2 PP 14751 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE X PP 29 Não surpreende que também a psicanálise mostre a importância que os contos tradicionais têm para a vida psíquica de nossas crianças Em alguns indivíduos a lembrança de suas histórias favoritas tomou o lugar das próprias recordações da infância eles converteram as histórias em lembranças encobridoras Elementos e situações tirados desses contos achamse frequentemente nos sonhos Na interpretação dos trechos respectivos ocorre ao analisando a história cuja significação ligase a eles Darei aqui dois exemplos desse fato costumeiro Mas as relações das histórias com a infância e a neurose dos que sonham podem ser apenas insinuadas com o risco de destruir nexos preciosos para o analista I Sonho de uma jovem senhora que poucos dias antes recebera a visita de seu marido Está num quarto inteiramente marrom Há uma pequena porta que dá para uma escada íngreme e por ela sobe ao quarto um estranho homenzinho de cabelo branco meio calvo e de nariz vermelho que dança à sua frente no quarto faz gestos cômicos e desce novamente pela escada Veste uma roupa cinza que permite recon hecer todas as formas Correção Veste um longo casaco preto e uma calça cinza Análise A descrição física do homenzinho corresponde muito bem à do seu sogro1 Mas de imediato lhe ocorre a história de Rumpelstichen que dança comicamente como o sujeito do sonho revelando assim o seu nome à rainha Mas com isso perdeu o direito ao primogênito dela e em sua raiva parte a si mesmo em dois No dia anterior ao sonho ela mesma tinha se enraivecido com seu marido e exclamado Eu podia partilo em dois O aposento marrom traz alguma dificuldade inicialmente Ocorrelhe apenas a sala de refeições dos seus pais que é revestida de madeira marrom e em seguida ela fala de camas em que não é confortável dormir a dois Há alguns dias quando se conversava sobre camas de outros países ela falou algo muito impróprio ingenuamente segundo afirma que fez as pessoas dar em gargalhadas Agora o sonho já é compreensível O aposento marrom2 é a cama e pelo nexo com a sala de refeições uma cama de casal3 Ela se acha portanto na cama do casal O visitante deveria ser o seu jovem marido que após uma aus ência de meses a procura para desempenhar seu papel no leito conjugal Mas inicialmente é o pai do marido o sogro Por trás dessa primeira interpretação se enxerga um conteúdo puramente sexual em nível mais profundo O aposento é agora a vagina O aposento es tá dentro dela o contrário no sonho O homenzinho que faz caretas e se comporta comicamente é o pênis a porta estreita e a escada íngreme atestam a concepção de que a situação representa o coito Estamos habituados a que uma criança simbolize o pênis mas compreenderemos que há sentido em que o pai seja aí utilizado para representar o pênis A solução da parte que resta do sonho nos dará certeza em nossa inter pretação Ela própria diz que a roupa cinza meio transparente é um preservat ivo Podemos notar que uma das coisas que instigaram esse sonho foi o in teresse em evitar a concepção a preocupação de que a visita do esposo tivesse deixado a semente de um segundo filho O casaco preto um casaco assim fica muito bem em seu marido Ela quer convencêlo a sempre vestir um em vez do que normalmente usa Portanto é com o casaco preto que ela gosta de ver seu marido Casaco preto e calça cinza isto quer dizer a partir de duas camadas diversas e superpostas É vestido desse modo que quero você É assim que me agrada Rumpelstichen se liga aos pensamentos oníricos relativos ao presente os restos diurnos através de uma bela oposição No conto ele surge para tirar à rainha o seu primeiro filho o homenzinho do sonho surge como pai porque trouxe provavelmente um segundo filho Mas Rumpelstichen também dá acesso à camada mais profunda infantil dos pensamentos oníricos O sujeito 223275 bizarro cujo nome não é sequer sabido cujo segredo se gostaria de conhecer que pode fazer artifícios extraordinários transformar palha em ouro no con to a raiva que se tem a ele na verdade a seu dono ao qual se inveja que o possua a inveja do pênis das meninas estes são elementos cuja relação com as bases da neurose como já disse deve apenas ser tocada rapidamente aqui Também fazem parte do tema da castração os cabelos cortados do homenzinho do sonho Quando em exemplos claros atentase para o que sonhador faz com o con to de fada e em que lugar o insere então se ganhará talvez algumas pistas para a interpretação que ainda falta desses contos II Um homem jovem cuja referência para as lembranças infantis é o fato de que os pais trocaram a fazenda em que viviam por outra antes de ele completar cinco anos de idade relata o seguinte sonho o mais antigo que teve quando ainda estava na primeira fazenda Sonhei que é noite e que estou deitado em minha cama ela ficava com os pés para a janela diante da janela havia uma fileira de velhas nogueiras Sei que era inverno quando sonhei e era noite De repente a janela se abre sozinha e vejo com grande pavor que na grande nogueira diante da janela estão sentados alguns lobos brancos Eram seis ou sete Os lobos eram inteiramente brancos e pareciam antes raposas ou cães pastores pois tinham caudas grandes como as raposas e suas orelhas estavam em pé como as dos cães quando prestam atenção a algo Com muito medo evidentemente de ser comido pelos lobos gritei e acordei Minha babá correu até minha cama para ver o que tinha aconte cido Demorou algum tempo até eu me convencer que tinha sido apenas um sonho tão nítida e tão natural me pareceu a imagem da janela se 224275 abrindo e os lobos sentados na árvore Finalmente me tranquilizei me senti como tendo escapado de um perigo e tornei a dormir A única ação do sonho era a abertura da janela pois os lobos estavam sentados bem quietos nos galhos da árvore sem qualquer movimento à direita e à esquerda do tronco e olhavam para mim Era como se me diri gissem toda a sua atenção Acho que este foi meu primeiro sonho angusti ado Na época eu tinha três quatro no máximo cinco anos de idade Desde então e até os onze ou doze anos sempre tive medo de ver algo terrível no sonho Ele dá então um desenho da árvore com os lobos que confirma sua descrição A análise do sonho traz o seguinte material à luz Ele sempre ligou esse sonho à recordação de que nesses anos da infância tinha um medo enorme da figura de um lobo num livro de fadas A irmã mais velha e sempre superior costumava zombar dele mostrandolhe justamente essa imagem por qualquer pretexto ao que ele começava a gritar de pavor Nessa figura o lobo estava erguido com uma pata à frente as garras à mostra e as orelhas alertas Ele acha que essa imagem serviu de ilustração à história do Chapeuzinho Vermelho Por que os lobos são brancos Isto o faz pensar nas ovelhas das quais se mantinham grandes rebanhos nos arredores da casa Ocasionalmente o pai o levava para ver esses rebanhos e toda vez ele ficava orgulhoso e contente Mais tarde provavelmente pouco antes da época do sonho segundo in formações obtidas uma peste irrompeu nesses rebanhos O pai mandou buscar um discípulo de Pasteur que vacinou as ovelhas mas elas morreram em número ainda maior depois da vacinação Como podem os lobos estar na árvore Acerca disso lhe ocorre uma história que o avô tinha contado Não consegue se lembrar se antes ou depois do sonho mas o conteúdo indica que foi antes A história é a seguinte Um al faiate está sentado trabalhando quando se abre a janela e um lobo pula para dentro da sala O alfaiate bate nele com sua vara de medida não corrigese 225275 o paciente agarrao pela cauda e a arranca de modo que o lobo foge apavor ado Algum tempo depois o alfaiate vai à floresta e vê de repente um bando de lobos que se aproxima então busca refúgio numa árvore Primeiro os lobos ficam sem ação mas aquele mutilado que está entre eles e quer se vingar do alfaiate faz a sugestão de que um suba no outro até que o último alcance o al faiate Ele mesmo é velho e robusto quer ser a base da pirâmide Os lobos fazem assim mas o alfaiate reconhece o visitante castigado e de repente grita como antes Pega o grisalho pelo rabo O lobo sem rabo se apavora com a lembrança e corre e os outros caem no chão Nesse conto se acha a árvore em que os lobos estão sentados no sonho Mas ele contém igualmente uma inequívoca referência ao complexo de castração O lobo velho foi privado de sua cauda pelo alfaiate Nos lobos do sonho as caudas de raposa são talvez compensações para essa ausência de cauda Por que são seis ou sete lobos Esta pergunta parecia não ter resposta até que lancei a dúvida de que sua imagem angustiante viesse de fato do Cha peuzinho Vermelho Essa história dá ocasião para duas ilustrações apenas o encontro do Chapeuzinho Vermelho com o lobo na floresta e a cena em que o lobo fica deitado na cama com a touca da vovó Tinha de haver um outro con to por trás da recordação da imagem Então ele achou que só podia ser a história do Lobo e os sete cabritinhos Nela se encontra o número sete mas também o seis pois o lobo come somente seis cabritos o sétimo se esconde na caixa do relógio Também o branco surge nessa história pois o lobo faz o padeiro embranquecer sua pata depois que os cabritinhos o haviam recon hecido pela pata cinzenta na sua primeira visita Aliás os dois contos têm muito em comum Em ambos há a devoração o corte da barriga a retirada dos que foram devorados e sua substituição por pedras e por fim a morte do lobo mau No conto dos cabritinhos há também a árvore Depois da refeição o lobo se deita sob uma árvore e dorme roncando Ainda me ocuparei deste sonho em outra parte devido a uma circunstância particular e então poderei interpretálo e apreciálo mais demoradamente É o 226275 primeiro sonho angustiado que ele recordou da infância e seu conteúdo to mado com outros sonhos que seguiram e com certos acontecimentos da infân cia do sonhador desperta um interesse bem particular Aqui nos limitamos à relação entre o sonho e duas histórias que têm muito em comum o Chapeuz inho Vermelho e O lobo e os sete cabritinhos A impressão que esses con tos produziram no menino se exteriorizou numa autêntica zoofobia que se dis tingue de casos semelhantes apenas pelo fato de que o bicho angustiante não era um objeto de fácil percepção pelos sentidos como um cavalo ou um ca chorro mas conhecido somente de narrativas e livros ilustrados Num outro momento discutirei que explicação têm essas zoofobias e que significação lhes atribuir De antemão observo apenas que essa explicação con diz bastante com o caráter principal exibido pela neurose do sonhador em épo cas posteriores de sua vida O medo do pai fora o mais forte motivo de seu ad oecimento e a postura ambivalente para com todo substituto do pai dominou sua vida e sua conduta durante o tratamento Se o lobo era apenas o primeiro substituto do pai para meu paciente é de se perguntar se as histórias do lobo que devora os cabritinhos e do Chapeuzinho Vermelho têm outro conteúdo secreto que não o medo infantil do pai4 Além disso o pai de meu paciente tinha a peculiaridade do insulto afetuoso que tantas pessoas demonstram no convívio com os filhos e a ameaça brincalhona que diz vou te comer pode ter sido expressa várias vezes no período inicial em que o pai que depois se tornou severo costumava acariciar e brincar com o filhinho Uma de minhas pacientes contou que os seus dois filhos nunca puderam gostar do avô porque ele costumava apavorálos com a brincadeira afetuosa de que iria cortar suas barrigas 1 Exceto pelo detalhe do cabelo curto pois o sogro tem cabelo comprido 2 A madeira como se sabe é frequentemente um símbolo feminino maternal materia em latim Madeira ilha da etc cf A interpretação dos sonhos cap vi seção E 227275 3 Pois cama e mesa representam o casamento 4 Cf a semelhança entre esses dois contos de fadas e o mito de Cronos destacada por O Rank Völkerpsychologische Parallelen zu den infantilen Sexualtheorien Paralelos etnopsicológi cos às teorias sexuais infantis Zentralblatt für Psychoanalyse v 2 p 8 228275 O TEMA DA ESCOLHA DO COFRINHO 1913 TÍTULO ORIGINAL DAS MOTIV DER KÄSTCHENWAHL PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM IMAGO V 2 N 3 PP 25766 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE X PP 2337 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE X PP 18193 Duas cenas de Shakespeare uma divertida e uma trágica deramme recente mente a oportunidade de colocar e resolver um pequeno problema A cena divertida é a escolha entre os três cofrinhos feita pelos pretendentes em O mercador de Veneza A bela e sabida Pórcia se acha obrigada pela vont ade de seu pai a tomar por esposo somente aquele entre os candidatos à sua mão que escolher o cofrinho certo Os três cofrinhos são de ouro de prata e de chumbo o certo é aquele que contém seu retrato Bassânio o terceiro dos pretendentes decidese pelo de chumbo e assim ganha a noiva cuja afeição já lhe pertencia antes desse teste do destino Cada um dos candidatos havia justi ficado a sua escolha mediante um discurso no qual louvava o metal que preferia e depreciava os outros dois Nisso a tarefa mais difícil coube ao ter ceiro o que ele pôde dizer para exaltar o chumbo em detrimento do ouro e da prata não foi suficiente e pareceu forçado Se deparássemos com uma fala semelhante na prática psicanalítica suspeitaríamos de razões secretas por trás da justificativa insatisfatória Shakespeare não inventou ele mesmo a profecia da escolha do cofrinho tomoua de uma história das Gesta romanorum na qual uma garota faz a mesma escolha para conquistar o filho do imperador1 Também nesse caso o terceiro metal o chumbo é que traz a sorte Não é difícil perceber que encon tramos aqui um velho tema que requer interpretação e investigação de suas origens Uma primeira conjectura sobre o possível significado da escolha entre ouro prata e chumbo logo é corroborada por uma afirmação de Eduard Stucken2 que se ocupou do assunto num contexto bem amplo Ele diz Quem são os três pretendentes de Pórcia é algo que se torna claro a partir do que escolhem o príncipe do Marrocos escolhe a caixa de ouro ele é o Sol o prín cipe de Aragão prefere a caixa de prata ele é a Lua Bassânio escolhe a caixa de chumbo ele é o Filho da Estrela Para sustentar essa interpretação ele cita um episódio da epopeia estoniana Kalewipoeg no qual os três candidatos aparecem claramente como filhos do Sol da Lua e da Estrela o primogênito da Estrela Polar e a noiva cabe novamente ao terceiro De modo que o nosso pequeno problema levou a um mito astral Pena que não possamos concluir com essa explicação Nossa indagação continua pois não cremos como alguns estudiosos dos mitos que estes tenham caído do céu mas julgamos como Otto Rank3 que foram projetados no céu após terem se originado em outra parte sob condições inteiramente humanas É para esse teor humano que se volta o nosso interesse Vejamos novamente o nosso material Tanto na epopeia estoniana como na história das Gesta romanorum tratase de uma garota que escolhe entre três can didatos e na cena do Mercador de Veneza aparentemente a mesma coisa mas também surge nessa última algo como uma inversão do tema um homem escolhe entre três cofrinhos Se estivéssemos lidando com um sonho logo pensaríamos que os cofres são também mulheres símbolos do que é essencial na mulher e portanto da própria mulher assim como estojos bocetas cestas latas etc Se nos permitirmos supor uma tal substituição simbólica igualmente no mito a cena do Mercador de Veneza tornase realmente a inversão de que suspeitamos De um só golpe como em geral sucede apenas nas fábulas despi mos o nosso tema da roupagem astral e agora vemos que ele é humano um homem escolhe entre três mulheres Mas esse é também o conteúdo de outra cena de Shakespeare num de seus dramas mais impressionantes que não trata da escolha de uma noiva mas que por muitas semelhanças ocultas ligase à escolha dos cofrinhos no Mercador O velho rei Lear resolve enquanto ainda vive dividir seu reino entre suas três filhas conforme a medida do amor que cada uma demonstrar por ele As duas mais velhas Goneril e Regan desfazemse em juras e protestos de amor e a terceira Cordélia recusase a fazêlo Ele deveria reconhecer e recompensar esse amor discreto e mudo mas não o percebe rechaça Cordélia e divide o reino entre as duas outras para desgraça sua e de todos Não temos aí de novo a cena da escolha entre três mulheres das quais a mais jovem é a excelente a melhor 231275 De imediato nos ocorrem outras cenas que têm o mesmo conteúdo em mi tos fábulas e obras literárias O pastor Páris tem de escolher entre três deusas das quais afirma que a terceira é a mais bonita A Gata Borralheira é igual mente a mulher mais jovem que o filho do rei prefere às duas mais velhas Psiquê na fábula de Apuleio é a mais jovem e bela de três irmãs Psiquê que por um lado é venerada como Afrodite em forma humana por outro lado é tratada por essa deusa como a Gata Borralheira por sua madrasta deve pôr em ordem um monte de grãos misturados e o faz com o auxílio de pequenos ani mais pombas no caso da Gata Borralheira formigas no de Psiquê4 Quem quiser explorar mais essa matéria certamente achará outras configurações do mesmo motivo que conservam os mesmos traços essenciais Contentemonos com Cordélia Afrodite a Gata Borralheira e Psiquê As três mulheres das quais a terceira é a preferida hão de ser vistas como de al gum modo semelhantes quando são apresentadas como irmãs Não deve nos confundir o fato de em Lear serem três filhas isso talvez signifique apenas que Lear deve ser mostrado como um homem idoso Não se poderia normal mente fazer um velho escolher entre três mulheres por isso elas são suas filhas Mas quem são essas três irmãs e por que deve a escolha recair sobre a ter ceira Se pudéssemos responder a essa pergunta estaríamos de posse da inter pretação procurada Ora já recorremos a técnicas psicanalíticas ao explicar os três cofrinhos como simbolizando três mulheres Se temos a ousadia de prosseguir dessa forma encetamos um caminho que inicialmente nos conduz ao imprevisto e ao incompreensível mas que por alguns rodeios talvez nos leve a um fim Pode nos chamar a atenção que a terceira a favorita em vários casos pos sui além da beleza certas peculiaridades São características que parecem tender para alguma unidade sem dúvida não podemos esperar encontrálas igualmente marcantes em todos os exemplos Cordélia se faz apagada e sem 232275 brilho como o chumbo fica muda ama e silencia A Gata Borralheira se esconde de modo a não ser encontrada Talvez possamos equiparar o esconderse ao silenciar Estes seriam apenas dois dos cinco casos que reunim os Mas uma alusão desse tipo se acha curiosamente também em outros dois Decidimos comparar a teimosa e reticente Cordélia ao chumbo E dele se diz subitamente na breve fala de Bassânio durante a escolha do cofrinho Thy paleness moves me more than eloquence plainness segundo outra leitura Isto é tua singeleza me toca mais do que a natureza rumorosa dos outros dois Ouro e prata são sonoros o chumbo é mudo como Cordélia real mente que ama e silencia5 Nas antigas narrativas gregas do julgamento de Páris não se fala de tal re serva por parte de Afrodite Cada uma das três deusas dirigese ao rapaz e pro cura obter seu voto com promessas Mas uma elaboração bem moderna desta cena põe novamente à luz de forma singular o traço que destacamos na ter ceira mulher No libreto de La belle Hélène Páris relata o comportamento de Afrodite nessa competição de beleza após as solicitações das outras duas deusas A terceira oh a terceira A terceira nada falou Assim mesmo o prêmio recebeu Se decidirmos concentrar na mudez as peculiaridades dessa terceira mul her a psicanálise nos dirá que nos sonhos a mudez é uma costumeira repres entação da morte6 Há mais de dez anos um homem muito inteligente comunicoume um sonho que para ele demonstrava a natureza telepática dos sonhos Viu um 233275 amigo ausente do qual havia muito não recebia notícias e recriminoulhe en ergicamente o silêncio O amigo não respondeu Depois se verificou que aproximadamente na época do sonho ele dera fim à própria vida Deixemos de lado o problema da telepatia não parece haver dúvida nesse caso que a mudez tornouse representação da morte no sonho Também ocultarse não ser encontrado como sucede três vezes ao príncipe na Gata Borralheira é um inconfundível símbolo da morte no sonho do mesmo modo a palidez notável de que a paleness do chumbo nos faz lembrar numa das leituras do texto de Shakespeare7 Transpor essas interpretações da linguagem dos sonhos para o modo de expressão do mito que nos ocupa será bastante mais fácil se pudermos tornar verossímil que a mudez deve ser interpretada como signo da morte também em outras produções que não o sonho Neste ponto recorro a um dos contos dos irmãos Grimm o de número nove intitulado Os doze irmãos8 Um rei e uma rainha tinham doze filhos todos homens Então falou o rei Se o décimo terceiro filho for uma menina os garotos terão que morrer Na expectativa desse nascimento ele manda preparar doze caixões Os doze filhos fogem para uma floresta escondida com o auxílio da mãe e juram matar toda menina que encontrarem Nasce uma menina que cresce e um dia fica sabendo pela mãe que teve doze irmãos Ela decide procurálos e encontra na floresta o mais novo que a reconhece e pretende ocultála devido ao juramento dos irmãos A irmã diz então Eu morrerei feliz se desse modo puder salvar meus irmãos Mas os irmãos a recebem afetuosamente ela fica com eles e passa a cuidar de sua casa Num pequeno jardim próximo à casa há doze lírios A menina os colhe a fim de presentear um a cada irmão Nesse instante os irmãos se transformam em corvos e desaparecem juntamente com a casa e o jardim Os corvos são pássarosalmas o assassínio dos doze irmãos pela irmã é representado nova mente pela colheita das flores como antes pelo caixão e o desaparecimento dos irmãos A garota que mais uma vez se dispõe a salvar da morte os irmãos agora tem de ficar muda por sete anos sem poder pronunciar uma única 234275 palavra Ela se submete a essa prova que a faz correr perigo de vida ou seja ela morre pelos irmãos como prometera antes de encontrálos Perseverando na mudez ela consegue finalmente resgatar os corvos De igual modo no conto dos seis cisnes os irmãos transformados em pássaros são resgatados pela mudez da irmã isto é são restituídos à vida A garota decidiu firmemente salvar os irmãos ainda que lhe custasse a vida e como esposa do rei novamente põe em risco sua vida por não abandonar sua mudez para defenderse de acusações maldosas Certamente as fábulas nos forneceriam ainda outras provas de que a mudez deve ser entendida como representação da morte Se podemos acompanhar esses indícios a terceira das irmãs entre as quais se realiza a escolha seria uma morta Mas ela pode também ser outra coisa ou seja a morte mesma a deusa da morte Graças a um deslocamento que está longe de ser raro as caracter ísticas que uma divindade dispensa aos homens é atribuída a ela mesma Tal deslocamento nos surpreenderá menos ainda no caso da deusa da morte pois na concepção e representação moderna que aqui seria prenunciada a morte mesma é apenas um morto Se a terceira das irmãs é a deusa da morte então conhecemos as irmãs São aquelas que personificam o Destino as Moiras Parcas ou Nornas das quais a terceira se chama Átropo isto é a Inexorável Deixemos de lado momentaneamente a questão de como inserir em nosso mito a interpretação encontrada e busquemos nos estudiosos da mitologia al guma informação sobre a origem e o papel das deusas do Destino9 A mais antiga mitologia grega em Homero conhece apenas uma Μοĩρα personificando o Destino inevitável O posterior desenvolvimento dessa Moira numa associação de três divindades duas mais raramente ocorreu provavel mente com base em outras figuras divinas a que se aparentavam as Moiras as Graças e as Horas 235275 As Horas foram originalmente deusas das águas do céu que dispensam a chuva e o orvalho das nuvens de que cai a chuva e sendo as nuvens vistas como algo tecido resultou que essas deusas tinham o caráter de tecedoras de pois associado às Moiras Nos países mediterrâneos mimados pelo Sol é da chuva que depende a fertilidade do solo e por isso as Horas se transformaram em divindades da vegetação A elas se deviam a beleza das flores e a riqueza dos frutos e foram dotadas de uma série de traços encantadores e agradáveis Tornaramse as representantes divinas das estações do ano e talvez por isso tenham chegado a três se a natureza sagrada do número três não bastar como explicação Pois esses povos antigos diferenciavam só três estações inicial mente inverno primavera e verão Apenas na época grecoromana acrescentouse o outono então a arte frequentemente mostrava as Horas em número de quatro A relação com o tempo foi mantida para as Horas depois velavam sobre os momentos do dia como antes sobre as estações do ano por fim seu nome limitouse a designar a hora do dia heure ora As Nornas da mitologia alemã essencialmente afins às Horas e Moiras exibem nos seus nomes esta significação temporal Mas era inevitável que a essência destas divindades fosse concebida mais profundamente e transposta para a regularidade com que mudam as estações assim as Horas tornaramse guardiãs das leis naturais e da ordem sagrada que em sequência inalterável faz retornar as mesmas coisas na natureza Tal conhecimento da natureza refletiu de volta sobre a concepção da vida humana O mito natural transformouse em mito humano as deusas do Tempo fizeramse deusas do Destino Mas esse aspecto das Horas manifestou se apenas nas Moiras que zelam sobre a ordem necessária da vida humana de forma tão inexorável como as Horas sobre a regularidade da natureza O in elutável rigor das leis a relação com a morte e o declínio que tinham sido evitados nas amáveis figuras das Horas imprimiramse então nas Moiras 236275 como se o homem sentisse toda a seriedade das leis naturais apenas quando tem de sujeitarlhes a própria pessoa Também os nomes das três tecelãs foram significativamente compreen didos pelos mitólogos A segunda Laquese parece indicar o casual dentro da regularidade10 nós diríamos a experiência assim como Átropo designa o inelutável a morte restando para Cloto o significado de disposição inata fatal Agora é o momento de voltar ao tema que interpretamos o da escolha entre as três irmãs Com desgosto perceberemos a que ponto se tornam incom preensíveis as situações ao inserirmos nelas a interpretação encontrada e as contradições que surgem no seu conteúdo aparente A terceira das irmãs deve ser a deusa da morte a morte mesma mas no julgamento de Páris é a deusa do amor no conto de Apuleio uma beldade comparável a esta no Mercador a mulher mais bela e mais inteligente em Lear a única filha fiel Pode haver contradição mais completa No entanto talvez se ache próxima uma contra dição ainda maior Ela existe de fato se a cada vez se escolhe livremente entre as mulheres em nosso tema e se a escolha recai sobre a morte que ninguém escolhe afinal pois dela cada um se torna fatalmente vítima No entanto contradições de uma determinada espécie substituições por algo inteiramente oposto não oferecem dificuldade séria ao trabalho de inter pretação analítico Não invocaremos o fato de que opostos nas formas de ex pressão do inconsciente como no sonho são frequentemente representados pelo mesmo elemento Mas recordaremos que há na vida psíquica motivos que levam à substituição pelo contrário na chamada formação reativa e poderemos achar a recompensa para nosso trabalho justamente na devassa de tais motivos ocultos A criação das Moiras é consequência da percepção que lembra ao homem que também ele é um pedaço da natureza e por isso sujeito à inalterável lei da morte Algo no homem tinha de se rebelar contra esta sujeição pois apenas muito a contragosto ele renuncia à sua posição privilegi ada Sabemos que o homem usa a sua atividade imaginativa para a satisfação 237275 dos seus desejos que a realidade não satisfaz Desse modo a sua fantasia revoltouse contra a percepção incorporada no mito das Moiras e criou um mi to dele derivado em que a deusa da morte é substituída pela deusa do amor e o que a ela equivale em forma humana A terceira das irmãs já não é a morte é a mais bela a melhor a mais desejável e mais digna de amor entre as mulheres E tal substituição não era difícil tecnicamente fora preparada por uma antiga ambivalência realizouse conforme um antiquíssimo nexo que por muito tempo não seria esquecido A deusa do amor que então assumia o lugar da deusa da morte já fora antes identificada com ela A grega Afrodite ainda não dispensava inteiramente o vínculo com o mundo inferior apesar de há muito haver cedido o seu papel ctônico a outras divindades a Perséfone a Ártemis Hécate de três formas As grandes divindades maternais dos povos do Oriente parecem ter sido todas elas tanto geradoras como destruidoras tanto deusas da vida e da fecundidade como deusas da morte Assim a substituição por um contrário no desejo em nosso tema reconduz a uma identidade remotíssima A mesma consideração dá resposta à pergunta de como o elemento da escolha veio a fazer parte do mito das três irmãs Novamente houve aqui uma inversão pautada pelo desejo A escolha se acha no lugar da necessidade da fatalidade Assim o homem supera a morte que reconheceu com seu intelecto Não se pode imaginar um mais poderoso triunfo da realização de desejo Escolhese ali onde na realidade obedecese à coação e a escolhida não é a horrível mas a bela e desejável Olhando mais atentamente percebemos que as distorções do mito original não são profundas o bastante para apagar seus vestígios A livre escolha entre as três irmãs não é realmente uma livre escolha pois precisa cair sobre a ter ceira senão ocorrerá toda espécie de infortúnio como em Lear A mais bela e melhor que tomou o lugar da deusa da morte conservou traços que têm algo de inquietante de modo que a partir deles poderíamos imaginar o que se acha oculto11 238275 Até aqui acompanhamos o mito e sua transformação e esperamos haver in dicado os motivos secretos dessa transformação Agora podemos voltar nosso interesse para a utilização que o poeta faz desse tema Temos a impressão de que nele há uma redução do tema ao mito original de modo que o seu tocante significado diminuído pela distorção é novamente sentido por nós Por meio dessa atenuação da distorção do parcial retorno ao elemento original o poeta suscita em nós um efeito mais profundo Para evitar malentendidos quero dizer que não é minha intenção negar que o drama do rei Lear pretende enfatizar duas sábias lições a de que não se deve renunciar a seus bens e seus direitos ainda em vida e de que se deve aprender a não aceitar lisonjas como se fossem dinheiro vivo Essas e outras advertências similares realmente decorrem da peça mas não me parece pos sível explicar o tremendo efeito de Lear pela impressão que tais pensamentos produzem ou supor que os motivos pessoais do escritor se esgotariam na in tenção de apresentar esses ensinamentos Também as sugestões de que ele quis nos expor a tragédia da ingratidão cujas ferroadas ele provavelmente sentiu na própria pele e de que o efeito da peça repousaria no fator puramente formal da roupagem artística não me parecem substituir a compreensão que nos é aberta ao apreciar o tema da escolha entre as três irmãs Lear é um homem velho Por isso as três irmãs surgem como suas filhas dissemos antes A relação paterna da qual poderiam emanar fecundos estímu los dramáticos não é explorada mais nesse drama Mas Lear é não apenas um velho é também um moribundo A peculiar premissa da divisão da herança perde assim a estranheza Mas esse homem fadado a morrer não quer renunciar ao amor da mulher ele quer ouvir o quanto é amado Recordemos a perturb adora cena final um dos pontos culminantes da tragédia no teatro moderno Lear traz o corpo de Cordélia nos braços Cordélia é a morte Se invertemos a situação ela se torna compreensível e familiar É a deusa da morte que leva do campo de batalha o herói que morreu como a Valquíria na mitologia alemã A perene sabedoria na indumentária de um mito antiquíssimo aconselha ao 239275 homem idoso que renuncie ao amor e escolha a morte reconciliandose com a necessidade de morrer O poeta nos torna mais próximo o antigo tema ao fazer que um homem envelhecido e moribundo escolha entre as irmãs A elaboração regressiva que empreendeu com o mito distorcido pela transformação imposta pelo desejo faz transparecer a tal ponto o seu velho sentido que talvez nos permita uma in terpretação superficial alegórica das três figuras femininas desse tema Pode se dizer que são representados nele os três laços inevitáveis que o homem tem com a mulher com a genitora a companheira e a destruidora ou as três formas que assume para ele a imagem da mãe no curso da vida a própria mãe a amada por ele escolhida segundo a imagem daquela e enfim a mãe Terra que de novo o acolhe em seu seio Mas é em vão que o velho ambiciona o amor da mulher tal como primeiramente recebeu da mãe apenas a terceira das criaturas do Destino a silenciosa deusa da morte o tomará em seus braços Compilação medieval anônima de histórias 1 G Brandes William Shakespeare Paris 1896 2 E Stucken Astralmythen Mitos astrais Leipzig 1907 p 655 3 O Rank Der Mythus von der Geburt des Helden O mito do nascimento do herói Leipzig e Viena 1909 pp 8 ss 4 Agradeço ao dr Otto Rank a indicação de tais coincidências 5 Na tradução de Schlegel tal referência é perdida e é mesmo transformada no oposto Dein schlichtes Wesen spricht beredt mich an Tua natureza singela me fala de modo eloquente 6 Também na Sprache des Traumes Linguagem do sonho de Stekel Wiesbaden 1911 é apresentada como símbolo da morte 7 Stekel op cit 8 Edição da Reclam v i p 50 1918 9 O que segue foi achado no dicionário de mitologia grega e romana de Roscher nos verbetes correspondentes Ausführliches Lexikon der griechischen und römischen Mythologie Leipzig 18841937 240275 O termo alemão é Stunde por isso Freud acrescenta as designações em francês e italiano entre parênteses 10 J Roscher citando Preller e Robert Griechische Mythologie 11 Também Psiquê em Apuleio conserva bastantes traços que lembram sua relação com a morte Seu casamento é celebrado como um funeral ela tem que descer ao mundo inferior e depois cai num sono que semelha a morte Otto Rank Sobre a significação de Psiquê como divindade primaveril e como noiva da morte o termo alemão para morte Tod é do gênero masculino ver A Zinzow Psyche und Eros Halle 1881 Num outro conto dos Grimm n 179 A pastora de gansos na fonte se acha como na Gata Borralheira a alternância de beleza e feiura na terceira filha na qual bem se pode ver uma alusão à sua dupla natureza antes e depois da substituição Ela é rejeitada pelo pai após um teste quase igual ao de Rei Lear Tal qual suas irmãs ela deve declarar como gosta do pai mas não acha outra expressão do seu amor além da comparação com o sal gentilmente comu nicado pelo dr Hanns Sachs 241275 DUAS MENTIRAS INFANTIS 1913 TÍTULO ORIGINAL ZWEI KINDERLÜGEN PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM INTERNATIONALE ZEITSCHRIFT FÜR ÄRZTLICHE PSYCHOANALYSE REVISTA INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE MÉDICA V 1 N 4 PP 35962 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 4217 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE V PP 22934 Podemos compreender que crianças mintam quando ao fazêlo imitam as mentiras dos adultos Mas certo número de mentiras de crianças bemeducadas têm significação especial e devem fazer refletir os que as educam em vez de irritálos Essas mentiras ocorrem por influência de motivos amorosos in tensos e têm graves consequências quando provocam um malentendido entre a criança e a pessoa que ama I Uma garota de sete anos de idade no segundo ano escolar pediu algum din heiro ao pai a fim de comprar tintas para pintar ovos de Páscoa O pai se recu sou a darlhe dinheiro argumentando que não o tinha Pouco depois ela lhe solicita dinheiro para colaborar na aquisição de uma coroa para o funeral da princesa reinante que vem de falecer Cada criança da escola deve contribuir com cinquenta pfennig O pai lhe dá dez marcos ela faz sua contribuição e deixa nove marcos na escrivaninha do pai tendo usado os restantes cinquenta pfennig na compra das tintas que esconde no seu armário de brinquedos Dur ante a refeição o pai pergunta desconfiado o que fez ela com os cinquenta pfennig que faltavam se não comprou as tintas com eles Ela nega mas seu irmão dois anos mais velho e com quem ela pretendia pintar os ovos a de nuncia Encontram as tintas em seu armário O pai irado entrega a culpada à mãe para que a castigue o que é feito energicamente Depois a própria mãe se comove ao notar o quanto a menina se desespera Ela lhe faz carinhos após a surra levaa para um passeio a fim de consolála Mas os efeitos dessa exper iência que a paciente mesma designa como uma virada em sua infância mostramse irrevogáveis Até então ela era uma criança travessa e confiante tornase tímida e hesitante Na época de seu noivado tem acessos de fúria para si mesma incompreensíveis quando a mãe procura mobília e enxoval O din heiro é seu pensa ninguém mais pode fazer compras com ele Há pouco tempo casada tem vergonha de solicitar que o marido pague suas despesas pessoais e distingue de maneira supérflua entre o seu dinheiro e o dele Durante o tratamento sucede às vezes que as remessas do marido atrasem de sorte que ela fica sem meios numa cidade que não é a sua Depois que certa vez me contou isso fizlhe prometer que me tomaria emprestada a pequena soma de que necessitasse caso se repetisse a situação Ela promete isso mas na dificuldade financeira seguinte não mantém a promessa preferindo empenhar suas joias Explica que não pode tomar dinheiro de mim A apropriação dos cinquenta pfennig na infância tinha um significado que o pai não podia imaginar Algum tempo antes de frequentar a escola ela havia protagonizado uma cena singular com dinheiro Uma vizinha amiga a enviara a uma loja com uma pequena soma para comprar algo juntamente com o seu filho ainda menor que ela Após a compra ela ia trazendo o troco por ser a mais velha Mas ao deparar com a criada da vizinha na rua jogou o dinheiro ao chão Na análise desse ato para ela mesma inexplicável ocorreulhe Judas que jogou fora as moedas de prata que recebera pela traição ao Senhor Ela afirma estar certa de que aprendeu a história da Paixão antes da idade escolar Mas como podia identificarse com Judas Aos três anos e meio ela tinha uma babá a quem era muito apegada Essa babá estabeleceu relações eróticas com um médico cujo consultório visitava juntamente com a menina Ao que parece a menina testemunhou diferentes situações sexuais Não é certo que o médico tenha dado dinheiro à moça mas sem dúvida a moça dava pequenas moedas à criança para garantir seu silêncio com as quais ela fazia compras provavelmente de guloseimas na volta para casa É também possível que o próprio médico desse dinheiro à menina de vez em quando Apesar disso ela traiu a babá à mãe por ciúme Brincou de forma tão ostensiva com os tostões recebidos que a mãe lhe perguntou a origem daquele dinheiro A babá foi despedida Tomar dinheiro de alguém teve então para ela muito cedo o significado de entrega corporal de relação amorosa Receber dinheiro do pai tinha o valor de 244275 uma declaração de amor A fantasia de o pai ser seu amado era tão sedutora que com o auxílio dela o desejo infantil das tintas para os ovos de Páscoa sobrepôsse facilmente à proibição Mas ela não podia confessar que se apro priara do dinheiro tinha de negar porque o motivo do ato para ela mesma in consciente não era confessável O castigo do pai foi portanto uma rejeição da ternura que lhe era oferecida um repúdio e destruiu seu ânimo No trata mento irrompeu um severo estado depressivo cuja resolução levou à lem brança que venho de comunicar quando certa vez me vi obrigado a copiar o repúdio solicitandolhe que não me trouxesse mais flores Para um psicanalista é desnecessário enfatizar que nessa pequena vivência da garota encontramos um desses casos tão frequentes de persistência do erotismo anal da infância na vida amorosa adulta Também o desejo de colorir os ovos deriva da mesma fonte II Uma mulher agora seriamente enferma devido a uma frustração na vida foi outrora uma garota bastante capaz sincera boa e virtuosa e mais tarde uma terna esposa Mas antes nos primeiros anos de vida fora uma criança teimosa e insatisfeita e enquanto passava rapidamente para uma bondade e escrupu losidade excessiva houve acontecimentos ainda na escola primária que na época da enfermidade a levariam a fazerse graves recriminações julgandoos prova de uma radical abjeção Conforme sua lembrança naquele tempo ela se jactava e mentia com frequência Uma vez a caminho da escola uma colega lhe disse orgulhosamente Ontem no almoço tivemos sorvete Ao que ela re spondeu Ora lá em casa temos sorvete todo dia Na verdade ela não en tendeu o que significava ter sorvete na refeição conhecia gelo apenas em blo cos tal como é transportado mas imaginou que aquilo fosse algo distinto e não queria ficar atrás da coleguinha 245275 Quando tinha dez anos de idade o professor de desenho passoulhes a tarefa de traçar um círculo apenas com o lápis Mas ela usou um compasso produziu facilmente um círculo perfeito e o mostrou à sua vizinha triunfante Veio o professor ouviu a gabolice notou as marcas do compasso no círculo e pediu explicações à menina Ela negou terminantemente que o tivesse usado não fez caso da evidência e fechouse num obstinado silêncio O professor teve uma conversa a respeito disso com o pai a conduta normalmente exemplar da menina fez com que não tomassem medidas quanto a esse fato As duas mentiras foram motivadas pelo mesmo complexo Sendo a maior de cinco irmãos a garota desenvolveu bastante cedo uma afeição extraordin ariamente forte pelo pai que depois lhe estragaria a felicidade na vida adulta Logo veio a descobrir que o pai tão amado não tinha a grandeza que ela se in clinava a lhe atribuir Tinha de lutar com dificuldades financeiras não era tão poderoso ou nobre como ela supunha Mas não podia tolerar essa diminuição do seu ideal Pôs toda a sua ambição no homem amado como fazem as mul heres e apoiar o pai contra o mundo ficou sendo o seu mais forte motivo Então se jactava ante as colegas para não ter que diminuir o pai Quando mais tarde aprendeu a traduzir sorvete no almoço por glace estava aberto o caminho para que a repreensão por esta reminiscência levasse a um medo de pedaços e estilhaços de vidro O pai era um excelente desenhista e muitas vezes havia despertado encanto e admiração nos filhos com mostras de seu talento Identificandose com o pai ela desenhou na escola aquele círculo que pôde fazer apenas de modo fraudu lento É como se quisesse gabarse Vejam o que meu pai consegue fazer A consciência de culpa ligada à excessiva inclinação pelo pai achou expressão na tentativa de fraude uma confissão era impossível pelo mesmo motivo que na observação anterior teria sido a confissão do oculto amor incestuoso Não devemos dar pouco valor a tais episódios da vida infantil Seria um grave erro prognosticar a partir dessas faltas de crianças o desenvolvimento de um caráter imoral Mas elas estão relacionadas aos mais fortes motivos da 246275 alma infantil e anunciam predisposições para vicissitudes posteriores ou futur as neuroses O antigo centavo alemão A palavra alemã para sorvete Eis equivalente ao inglês ice tendo a mesma pronúncia signi fica primariamente gelo O termo francês glace gelo que também significa sorvete é adotado em algumas re giões de língua alemã para designar o sorvete e tem pronúncia igual ao alemão Glas que sig nifica vidro 247275 A PREDISPOSIÇÃO À NEUROSE OBSESSIVA 1913 CONTRIBUIÇÃO AO PROBLEMA DA ESCOLHA DA NEUROSE TÍTULO ORIGINAL DIE DISPOSITION ZUR ZWANGSNEUROSE EIN BEITRAG ZUM PROBLEM DER NEUROSENWAHL PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM INTERNATIONALE ZEITSCHRIFT ÄRZTLICHER PSYCHOANALYSE REVISTA INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE MÉDICA V 1 N 6 PP 52532 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 44152 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE VII PP 10517 Sem dúvida o problema de por que um indivíduo adoece de uma neurose se inclui entre aqueles que devem ser respondidos pela psicanálise Mas é provável que a resposta seja obtida apenas quando se resolver outro problema mais específico saber por que esta ou aquela pessoa tem uma determinada neurose e não outra Esse é o problema da escolha da neurose Que sabemos até agora sobre esse problema Na verdade uma única tese geral se acha estabelecida quanto a isso Diferenciamos as causas patológicas relativas à neurose entre aquelas que o ser humano traz consigo para a vida e aquelas que a vida lhe traz entre as constitucionais e as acidentais sendo ne cessária via de regra a ação conjunta de ambas para que se produza a doença Ora a tese que enunciamos diz que as razões que decidem a escolha da neur ose são inteiramente do primeiro tipo isto é da natureza das predisposições e independem das vivências de efeito patogênico Onde devemos buscar a origem dessas predisposições Temos reparado que as funções psíquicas em questão sobretudo a função sexual mas tam bém várias importantes funções do Eu perfazem um longo e complicado desenvolvimento até alcançarem o estado característico do adulto normal Supomos que tais desenvolvimentos não ocorrem sempre de modo impecável que a função total sofre uma alteração progressiva Quando uma parte dela fica no estágio anterior produzse um ponto de fixação ao qual a função pode regredir no caso de adoecimento por um distúrbio externo Logo nossas predisposições são também inibições do desenvolvimento A analogia com os fatos da patologia geral de outras doenças confirma esta nossa concepção Mas ante a questão de quais fatores podem provocar esses distúr bios do desenvolvimento o trabalho psicanalítico se detém e confia o prob lema à pesquisa biológica1 Foi com essas premissas que ousamos alguns anos atrás abordar o prob lema da escolha da neurose Nossa orientação de trabalho que é deduzir as condições normais estudando os seus distúrbios levounos a escolher um ponto de partida muito especial e inesperado A sequência em que as principais formas das psiconeuroses são habitualmente expostas histeria neurose ob sessiva paranoia dementia praecox corresponde ainda que não muito ex atamente à ordem temporal em que tais doenças aparecem na vida As formas histéricas podem ser observadas já na primeira infância a neurose obsessiva geralmente mostra seus sintomas no segundo período da infância dos seis aos oito anos e as duas outras psiconeuroses que reuni sob o nome de parafrenia manifestamse apenas depois da puberdade e na maturidade Es sas últimas afecções revelaramse as primeiras acessíveis à nossa investigação das predisposições que resultam na escolha da neurose As características comuns a ambas a mania de grandeza o distanciamento do mundo dos objetos e a dificuldade de transferência fizeramnos concluir que a fixação que a elas predispõe deve ser buscada num estágio de desenvolvimento da libido anterior ao estabelecimento da escolha de objeto isto é na fase do autoerotismo e do narcisismo Essas formas de doença que aparecem tão tarde remontam a inib ições e fixações bem remotas portanto Isso nos levaria a supor que a predisposição à histeria e à neurose obsessiva as duas neuroses de transferência em que os sintomas formamse cedo localizase nas fases mais recentes do desenvolvimento libidinal Mas onde se acharia nelas a inibição do desenvolvimento e sobretudo qual seria a difer ença de fases que fundamentaria a predisposição à neurose obsessiva em con traste com a histeria Durante um bom tempo não se pôde verificar nada sobre isso e as tentativas que eu fizera antes para descobrir essas duas predisposições por exemplo de que a histeria podia ser determinada pela passividade e a neurose obsessiva pela atividade na vivência infantil logo tiveram de ser rejeitadas como falhas Então volto ao terreno da observação clínica individual Por muito tempo estudei uma paciente cuja neurose sofrera uma transformação insólita Teve início como franca histeria de angústia após uma vivência traumática e conservou esse caráter por alguns anos Mas um dia se transformou subita mente numa grave neurose obsessiva Um caso desses tinha de ser significativo 250275 em mais de um aspecto Por um lado poderia talvez reivindicar o valor de um documento bilíngue mostrando como um idêntico teor é expresso em lingua gens diferentes pelas duas neuroses Por outro lado ameaçava contradizer nossa teoria da predisposição através da inibição no desenvolvimento a menos que se quisesse admitir a hipótese de que uma pessoa traga consigo mais que um único ponto fraco no seu desenvolvimento libidinal Eu achei que não tinha o direito de rechaçar esta possibilidade mas mantive uma enorme ex pectativa quanto à compreensão do caso Quando ela chegou no curso da análise pude ver que a situação era bem diferente da que imaginara A neurose obsessiva não era outra reação ao mesmo trauma que havia despertado a histeria de angústia mas reação a uma segunda vivência que tirou a importância da primeira Logo uma exceção discutível é certo à nossa tese de que a escolha da neurose independe das experiências Infelizmente não posso por razões conhecidas detalhar a história clínica do caso como gostaria devendo limitarme às informações que seguem A paciente era até adoecer uma mulher feliz quase plenamente satisfeita Queria muito ter filhos por motivos de uma fixação infantil de desejo e caiu doente ao saber que não poderia têlos do marido a quem amava exclusiva mente A histeria de angústia com que reagiu a essa frustração correspondeu como ela pôde logo entender à rejeição de fantasias de sedução em que trans parecia o renitente desejo de um filho Ela fez tudo para não deixar o marido perceber que adoecera devido à frustração por ele causada Mas não foi sem boas razões que afirmei que todo indivíduo tem em seu próprio inconsciente um instrumento com que pode interpretar as manifestações do inconsciente em outra pessoa O marido entendeu sem confissão ou explicação o que signi ficava a angústia da esposa magoouse sem demonstrálo e reagiu neurotica mente por sua vez fracassando pela primeira vez no ato conjugal Logo depois partiu em viagem a mulher acreditou ser definitiva a sua impotência e produziu no dia anterior ao seu retorno os primeiros sintomas obsessivos 251275 O conteúdo da neurose obsessiva era uma penosa compulsão à lavagem e à limpeza e medidas protetoras extremamente enérgicas contra lesões graves que outras pessoas deveriam temer de sua parte ou seja formações reativas frente a impulsos eróticoanais e sádicos Em tais formas teve de se exprimir a sua ne cessidade sexual depois que sua vida genital perdeu todo o valor graças à im potência do único homem que contava para ela Aqui se insere o novo fragmento de teoria que formulei que é claro só aparentemente baseiase nessa única observação e na verdade resume grande soma de impressões anteriores que somente depois dessa última experiência puderam permitir uma compreensão Achei que meu esquema de desenvolvi mento da função libidinal necessitava de um acréscimo No começo eu difer enciara apenas a fase do autoerotismo em que os instintos parciais procuram a satisfação do prazer no próprio corpo cada um por si e depois a reunião de to dos os instintos parciais para a escolha de objeto sob o primado dos genitais a serviço da reprodução Como sabemos a análise das parafrenias obrigounos a interpolar aqui um estágio de narcisismo em que a escolha de objeto já se realizou mas o objeto ainda coincide com o próprio Eu Agora vemos ne cessidade de reconhecer um outro estágio antes da configuração final no qual os instintos parciais já se reuniram para a escolha de objeto o objeto já se coloca como outro ante a própria pessoa mas o primado das zonas genitais ainda não se instaurou Os instintos parciais que dominam essa organização pré genital da vida sexual são os eróticoanais e os sádicos Sei que toda colocação desse tipo soa estranha no início Somente pela descoberta de seus vínculos com nosso saber anterior ela se torna familiar e afinal seu destino é com frequência ser admitida como uma inovação pequena e há muito suspeitada Com essa expectativa passemos a discutir então a or dem sexual prégenital a Já foi notado por muitos observadores e agora enfaticamente sublinhado por Ernest Jones o papel extraordinário que têm os impulsos de ódio e 252275 erotismo anal na sintomatologia da neurose obsessiva2 Ora isso decorre diretamente da nossa colocação se são tais instintos parciais que na neurose assumiram novamente a representação dos instintos genitais dos quais foram precursores durante o desenvolvimento Neste ponto se encaixa o fragmento da história clínica de nosso caso que até agora deixamos de lado A vida sexual da paciente começou na mais tenra infância com fantasias sádicas de surra Depois de serem suprimidas houve um período de latência excepcionalmente longo em que a menina experi mentou um elevado desenvolvimento moral sem despertar para os sentimen tos sexuais femininos Com o casamento ainda jovem viveu um período de atividade sexual normal sendo uma esposa feliz durante vários anos até que a primeira grande frustração lhe trouxe a neurose histérica Com a subsequente perda de valor da vida genital a sua vida sexual como dissemos recuou ao es tágio infantil do sadismo Não é difícil precisar a característica que separa este caso de neurose obses siva dos outros mais frequentes que têm início mais cedo e transcorrem de maneira crônica com exacerbações de maior ou menor evidência Nesses out ros casos a organização sexual que contém a predisposição à neurose obses siva se estabelece e jamais é inteiramente superada neste nosso caso ela foi primeiro substituída pelo estágio de desenvolvimento mais elevado e depois reativada por regressão deste b Se partindo de nossa colocação procuramos vínculos no âmbito da bio logia não podemos esquecer que a oposição entre masculino e feminino que é introduzida pela função reprodutora ainda não pode estar presente no estágio da escolha de objeto prégenital Encontramos em seu lugar a oposição entre tendências com meta ativa ou passiva que mais tarde se fundirá com a oposição dos sexos A atividade é fornecida pelo ordinário instinto de apodera mento que chamamos de sadismo ao encontrálo a serviço da função sexual também na vida sexual normal plenamente desenvolvida ele tem importantes 253275 serviços auxiliares a cumprir A corrente passiva é alimentada pelo erotismo anal cuja zona erógena corresponde à antiga indiferenciada cloaca A ênfase nesse erotismo anal no estágio de organização prégenital deixará no homem uma significativa predisposição à homossexualidade quando for atingido o próximo estágio da função sexual aquele do primado dos genitais A edi ficação dessa última fase sobre a anterior e a consequente remodelação dos in vestimentos libidinais oferece à investigação psicanalítica os mais interess antes problemas Podese achar que um modo de se subtrair a todas as dificuldades e com plicações envolvidas é negar uma organização prégenital da vida sexual e fazêla coincidir e mesmo iniciar com a função genital e reprodutiva Então se diria das neuroses considerando os inequívocos resultados da investigação psicanalítica que o processo da repressão sexual as força a exprimir tendências sexuais por meio de outros instintos não sexuais sexualizando compensatoria mente esses últimos Assim procedendo o pesquisador situase fora da psicanálise Achase novamente onde se encontrava antes da psicanálise e tem de renunciar à compreensão do nexo entre saúde perversão e neurose que ela nos proporciona A psicanálise depende em absoluto do reconhecimento dos instintos sexuais parciais das zonas erógenas e da expansão que assim se ob teve do conceito de função sexual em contraste com o mais estreito de fun ção genital Além disso basta a observação do desenvolvimento normal da criança para rechaçar uma tentação como essa c No campo do desenvolvimento do caráter encontraremos as mesmas forças instintuais que vimos atuando nas neuroses Mas uma clara separação teórica entre os dois é dada pela circunstância de que falta no tocante ao caráter o que é próprio do mecanismo da neurose o malogro da repressão e o retorno do reprimido Na formação do caráter a repressão ou não atua ou at inge sem dificuldade a sua meta substituir o reprimido por formações reativas 254275 e sublimações Daí os processos da formação de caráter serem menos transpar entes e acessíveis à análise do que os neuróticos Mas precisamente na esfera do desenvolvimento do caráter encontramos uma boa analogia com o caso que descrevemos isto é um reforço da hipótese da organização sexual prégenital eróticoanal É algo sabido e que dá margem a muitas queixas que fequentemente as mulheres mudam seu caráter de forma peculiar depois que abandonam suas funções genitais Tornamse briguentas espezinhadoras e arrogantes avarentas e cobiçosas mostram as sim traços tipicamente sádicos e eróticoanais que não tinham na época de sua feminilidade Em todos os tempos autores de comédias e sátiras dirigiram in vectivas à bruxa velha em que se tornou a menina graciosa a mulher apaix onada a mãe delicada Entendemos que tal mudança de caráter corresponde ao estágio prégenital sádicoeróticoanal em que descobrimos a predisposição à neurose obsessiva Ele seria então não apenas o precursor da fase genital mas com frequência também o sucessor e substituto depois que os genitais cumpriram sua função A comparação entre essa mudança de caráter e a neurose obsessiva impres siona Nos dois casos vêse a obra da regressão no primeiro regressão plena após repressão ou supressão facilmente realizada no caso da neurose con flito esforço em não admitir a regressão formações reativas contra ela e form ações sintomáticas mediante compromissos dos dois lados cisão das atividades psíquicas em passíveis de consciência e inconscientes d Nossa colocação de uma organização sexual prégenital é incompleta em dois sentidos Primeiro não considera o comportamento de outros instintos parciais no qual muito haveria para investigar e mencionar e contentase em enfatizar o saliente primado do sadismo e do erotismo anal Em especial quanto ao impulso de saber Wisstrieb temos a impressão frequente de que poderia mesmo substituir o sadismo no mecanismo da neurose obsessiva Pois ele é no fundo um rebento sublimado elevado ao plano intelectual do 255275 instinto de apoderamento sua rejeição na forma da dúvida tem grande papel no quadro da neurose obsessiva A segunda ausência é bem mais significativa Sabemos que a predisposição histórica para uma neurose é completa somente quando considera tanto a fase de desenvolvimento do Eu em que sobrevém a fixação como a do desenvol vimento da libido Mas a nossa colocação referiuse apenas a esta e portanto não inclui todo o conhecimento que devemos exigir Os estágios de desenvol vimento dos instintos do Eu nos são pouco conhecidos até agora sei apenas de uma tentativa promissora de aproximarse de tais questões por parte de Fer enczi3 Não sei se parecerá muito ousado supor acompanhando as pistas exist entes que deve ser incluída na predisposição à neurose obsessiva uma aceler ação temporal do desenvolvimento do Eu ante o desenvolvimento libidinal Tal antecipação requereria a escolha de objeto por influência dos instintos do Eu enquanto a função sexual ainda não atingiu sua última configuração e as sim deixaria uma fixação no estágio da ordem sexual prégenital Levando em conta que os neuróticos obsessivos têm que desenvolver uma supermoral para defender o seu amor objetal da hostilidade que por trás dele espreita estare mos inclinados a ver certo grau dessa antecipação do desenvolvimento do Eu como típica da natureza humana e achar que a aptidão para a gênese da moral baseiase na circunstância de no desenvolvimento o ódio ser precursor do amor Este seria talvez o significado de uma frase de Wilhelm Stekel que na época pareceume incompreensível segundo a qual o ódio e não o amor é a relação emocional primária entre os seres humanos4 e Após o que foi dito resta para a histeria uma íntima relação com a última fase do desenvolvimento libidinal caracterizada pela primazia dos genitais e pelo advento da função reprodutiva Na neurose histérica essa conquista su cumbe à repressão com a qual não se acha ligada uma regressão ao estágio prégenital Mais ainda que na neurose obsessiva nela são óbvias as falhas ao 256275 determinar a predisposição resultantes da nossa ignorância do desenvolvi mento do Eu Por outro lado não é difícil mostrar que uma diferente regressão a um nível anterior também sucede na histeria A sexualidade da menina se acha como sabemos sob o domínio de um órgão diretor macho o clitóris e muitas vezes comportase como a do menino Uma última onda de desenvolvimento na época da puberdade tem de remover essa sexualidade masculina e erguer a vagina derivada da cloaca à condição de zona erógena dominante Ora é bastante comum que na neurose histérica das mulheres ocorra uma reativação dessa sexualidade masculina reprimida contra a qual se volta então a luta de fensiva dos instintos sintonizados com o Eu Mas seria prematuro iniciar aqui a discussão dos problemas da predisposição histérica 1 Depois que os trabalhos de Wilhelm Fliess revelaram a importância biológica de certos per íodos de tempo tornouse concebível que perturbações do desenvolvimento remontem a mudanças temporais nas ondas de desenvolvimento Segundo informa James Strachey no volume xii da Standard inglesa essa afirmação se en contra no final da sexta parte do ensaio O inconsciente de 1915 2 E Jones Haß und Analerotik in der Zwangsneurose Ódio e erotismo anal na neurose ob sessiva Internationale Zeitschrift für ärztliche Psychoanalyse v 1 1913 caderno 5 Depois de serem suprimidas no original Nach deren Unterdrückung cf nota à p 88 3 S Ferenczi Entwicklungsstufen des Wirklichkeitssinnes Estágios de desenvolvimento do sentido da realidade Internationale Zeitschrift für ärztliche Psychoanalyse v 1 1913 caderno 2 4 W Stekel Die Sprache des Traumes 1911 p 536 Instintos sintonizados com o Eu ichgerechte Triebe nas versões estrangeiras consultadas duas em espanhol da Biblioteca Nueva e da Amorrortu a italiana da Boringhieri e a Standard inglesa los instintos aliados del yo las pulsiones acordes com el yo le pulsioni in sintonia com lIo the egosyntonic instincts 257275 PREFÁCIO A O MÉTODO PSICANALÍTICO DE OSKAR PFISTER A psicanálise nasceu no terreno da medicina como um método terapêutico para o tratamento de algumas doenças nervosas que foram denominadas fun cionais e que com certeza cada vez maior foram percebidas como con sequências de transtornos da vida afetiva Ela realiza seu propósito eliminar as manifestações desses transtornos os sintomas baseandose na premissa de que elas não são os únicos desenlaces possíveis e definitivos de determina dos processos psíquicos e por isso põe a descoberto na recordação do pa ciente a história do desenvolvimento desses sintomas revivifica os processos que lhes subjazem e os conduz sob direção médica a um desenlace mais fa vorável A psicanálise colocouse os mesmos objetivos terapêuticos que o tratamento hipnótico introduzido por Liébault e Bernheim que após uma longa e difícil luta conseguira um lugar na técnica dos especialistas em nervos Mas ela se aprofunda bem mais na estrutura do mecanismo psíquico e busca obter influências duradouras e mudanças firmes nos seus objetos Em sua época o tratamento por sugestão hipnótica logo ultrapassou o campo da utilização médica e colocouse a serviço da educação de jovens A acreditarmos nos relatos ele se mostrou eficaz na eliminação de defeitos in fantis Kinderfehler hábitos corporais inconvenientes e traços de caráter que resistem aos demais tratamentos Na época ninguém se admirou ou se ofendeu com essa ampliação do seu emprego que no entanto somente através da pesquisa psicanalítica se fez inteiramente compreensível Pois agora sabemos que muitas vezes os sintomas patológicos não são outra coisa senão formações substitutivas para inclinações ruins isto é imprestáveis e que as condições para esses sintomas são instituídas na infância e juventude no período em que o ser humano é objeto da educação quer as doenças se manifestem ainda na juventude ou apenas numa época posterior da vida Educação e terapia se acham numa relação que podemos delinear A edu cação cuida para que certas disposições e tendências da criança não produzam nada que seja nocivo para o indivíduo e a sociedade A terapia entra em ação quando essas disposições já resultaram em indesejáveis sintomas patológicos O outro desenlace possível de que as inclinações imprestáveis não levem às formações substitutivas dos sintomas mas a diretas perversões do caráter é quase inacessível à terapia e geralmente se furta à influência do educador A educação é uma profilaxia que deve evitar ambos os desenlaces o da neurose e o da perversão a psicoterapia procura desfazer o mais frágil dos dois e con stituir uma espécie de póseducação Em vista disso impõese naturalmente a pergunta devese utilizar a psic análise para os fins da educação como a sugestão hipnótica foi usada em seu tempo As vantagens seriam óbvias Por um lado o educador se acha pre parado para perceber graças ao seu conhecimento das predisposições humanas gerais da infância quais as inclinações infantis que ameaçam ter um desenlace indesejável e se a psicanálise influi em tais direções do desenvolvimento ele pode usála antes que apareçam os sinais de um desenvolvimento desfavorável Logo pode agir profilaticamente com ajuda da psicanálise numa criança ainda sadia Por outro lado pode notar os primeiros sinais de um desenvolvi mento rumo à neurose ou à perversão e resguardar a criança do prosseguimento nesse rumo num tempo em que ela por várias razões nunca é levada ao médico Só podemos achar que uma tal atividade psicanalítica por parte do educador e do pastor seu equivalente nos países protestantes seria inestimável e poderia com frequência tornar supérflua a atividade do médico Cabe perguntar apenas se o exercício da psicanálise não pressupõe um treino médico que o educador e o pastor necessariamente não têm ou se out ros fatores não contrariam a intenção de pôr a técnica psicanalítica em outras 260275 mãos que não as dos médicos Confesso que não vejo tais obstáculos O exer cício da psicanálise requer muito mais preparação psicológica e livre discerni mento humano do que instrução médica A maioria dos médicos não se acha equipada para o exercício da psicanálise e fracassou inteiramente ao avaliar esse método terapêutico O educador e o pastor são obrigados pelas exigên cias de suas profissões a ter os mesmos cuidados considerações e discrições que o médico está habituado a manter e o fato de normalmente lidarem com jovens talvez os torne mais aptos a compreender sua vida psíquica Em ambos os casos porém a garantia de uma aplicação inofensiva do método analítico só pode ser dada pela personalidade daquele que analisa Ao aproximarse do terreno da anormalidade psíquica o educador será obrigado a familiarizarse com os conhecimentos psiquiátricos mais indis pensáveis e também a consultar o médico quando a avaliação do distúrbio e o seu prognóstico parecerem duvidosos Numa série de casos somente a col aboração entre o educador e o médico poderá conduzir ao êxito Num único ponto a responsabilidade do educador talvez exceda a do médico Via de regra este lida com formações psíquicas já cristalizadas e en contra na individualidade já estabelecida do enfermo um limite para sua inter venção mas também uma garantia da independência dele O educador porém trabalha com material plástico sensível a toda impressão e deve imporse a obrigação de não formar a jovem psique de acordo com seus ideais próprios mas sim conforme as predisposições e possibilidades inerentes ao objeto Desejamos que o emprego da psicanálise na educação cumpra as esperanças que educadores e médicos nela colocam justificadamente Um livro como o de Pfister que procura levar a análise ao conhecimento dos educadores terá en tão o reconhecimento das gerações vindouras Título original Geleitwort zu Die psychoanalytische Methode von Oskar Pfister Leipzig Julius Klinkhardt 1913 Traduzido de Gesammelte Werke x pp 44850 261275 PREFÁCIO A OS TRANSTORNOS PSÍQUICOS DA POTÊNCIA MASCULINA DE MAXIM STEINER O autor dessa pequena monografia que trata da patologia e terapia da impot ência psíquica do homem pertence ao pequeno número de médicos que logo reconheceram a importância da psicanálise para a sua especialidade e desde en tão nunca cessaram de aprimorarse na teoria e técnica da análise Sabemos que só uma pequena parte das doenças neuróticas que agora percebemos como consequências de distúrbios da função sexual é abordada na neurop atologia mesma A maioria delas é incluída entre as enfermidades do órgão que é afetado pelo distúrbio neurótico Ora é justo e conveniente que também o tratamento desses sintomas ou síndromes seja confiado ao especialista o único que pode fazer um diagnóstico diferencial relativo à afecção orgânica delimit ar o elemento orgânico do neurótico no caso de formas mistas e de modo geral dar esclarecimentos sobre o reforço mútuo dos dois fatores patológicos Mas se não quisermos que as doenças nervosas dos órgãos sejam considera das simples apêndices das doenças materiais dos mesmos órgãos negligên cia que estão longe de merecer por sua frequência e peso prático então o especialista ocupese ele do estômago do coração ou do aparelho urogenital deve ser capaz de utilizar não só os seus conhecimentos médicos gerais e aqueles especiais de sua área mas também as considerações percepções e téc nicas do médico de nervos Significará um grande progresso terapêutico quando o médico não mais dispensar um paciente acometido de afecção nervosa de um órgão com estas palavras O senhor não tem nada são apenas os nervos Ou com esta outra recomendação não muito melhor Vá a um especialista em doenças nervosas ele lhe indicará uma hidroterapia ligeira Certamente devemos antes esperar que um médico possa compreender e tratar os distúrbios nervosos de sua área do que exigir que um médico de nervos se torne um especialista universal em todos os órgãos em que as neuroses produzem sintomas Podese imaginar então que somente as neuroses com sintomas essencialmente psíquicos per manecerão no domínio do médico de nervos Não está longe é nossa esperança o tempo em que será generalizada a percepção de que não se pode entender e tratar nenhum distúrbio nervoso caso não se recorra aos pontos de vista e frequentemente às técnicas da psicanálise Essa afirmação talvez pareça um pretensioso exagero atualmente mas ouso prever que está fadada a se tornar um lugarcomum Um mérito do autor desta obra será sempre o de não haver esperado esse tempo para introduzir a psic análise na terapia das doenças nervosas da sua área de especialização Título original Vorwort zu Die psychischen Störungen der männlichen Potenz von Dr Maxim Steiner Leipzig und Wien Franz Deuticke 1913 Traduzido de Gesammelte Werke x pp 4512 263275 PREFÁCIO A RITOS ESCATOLÓGICOS DO MUNDO INTEIRO DE J G BOURKE Em 1885 quando me achava em Paris como discípulo de Charcot o que mais me atraía além das aulas do mestre eram as lições e demonstrações de Brouar del Ele costumava nos mostrar com o material de autópsias do necrotério quanta coisa é digna de saber para um médico que a ciência porém não se in clina a levar em conta Certa vez ao discorrer sobre as características que nos levam a perceber classe caráter e origem de um cadáver anônimo ele disse Les genous sales sont le signe dune fille honête Os joelhos sujos são sinal de uma moça direita Ele via os joelhos sujos como atestado da virtude da moça Essa informação de que a limpeza corporal se relaciona antes ao pecado que à virtude me ocorreria frequentemente depois quando mediante o trabalho psicanalítico adquiri compreensão do modo como os indivíduos civilizados lidam atualmente com o problema da sua corporalidade Eles se veem inco modados por tudo que lembre muito claramente a natureza animal do ser hu mano Querem imitar os anjos perfeitíssimos que na cena final do Fausto lamentam Restanos um terrenal resíduo que penosamente carregamos e mesmo sendo de amianto jamais se tornaria limpo Mas como sempre estarão muito longe dessa perfeição escolheram o ex pediente de negar ao máximo esse incômodo resíduo terrestre de ocultálo uns aos outros embora cada qual o conheça no outro e de subtraílo à atenção e proteção que pode reivindicar como parte integrante do seu ser Não há dúvida de que seria mais vantajoso reconhecêlo e dignificálo tanto quanto sua natureza o permitir Não é nada simples enxergar e descrever as consequências que teve para a cultura esse tratamento dado ao penoso resíduo terrestre cujo núcleo são as funções que podemos denominar sexuais e excrementícias Vamos destacar apenas a consequência que aqui nos toca mais de perto de que foi vedado à ciência ocuparse desses aspectos proibidos da vida humana de modo que os que estudam tais coisas são considerados quase tão indecentes quanto os que realmente agem de forma indecente No entanto a psicanálise e os estudos de folclore não se deixaram intimidar e transgrediram também essas proibições e então puderam nos ensinar muita coisa indispensável para o conhecimento do ser humano Se nos limitamos aqui às investigações sobre o elemento excrementício podemos informar como principal resultado da pesquisa psicanalítica que a criatura humana é obrigada a repetir em seu desenvolvimento inicial aquelas transformações na atitude do homem ante os excrementos que provavelmente começaram quando o Homo sapiens se levantou da mãe Terra Nos primeiros anos de vida não há indício de pudor devido às funções excrementais de nojo ante os excre mentos O bebê tem grande interesse por essas e outras excreções de seu corpo gosta de ocuparse delas e extrai variado prazer dessa ocupação En quanto partes de seu corpo e produtos de seu organismo os excrementos partilham do alto apreço que denominamos narcísico que a criança dedica a tudo referente à sua pessoa Ela tem digamos orgulho de suas fezes e as utiliza para sua autoafirmação diante dos adultos Sob a influência da edu cação os instintos e inclinações coprofílicas da criança sucumbem pouco a pou co à repressão ela aprende a mantêlos secretos a envergonharse deles e a sentir nojo ante os objetos deles A rigor porém o nojo nunca vai ao ponto de 265275 dizer respeito às próprias fezes limitase a condenar esses produtos quando são de outros O interesse que até então ligavase aos excrementos passa para outros objetos por exemplo das fezes para o dinheiro que só tardiamente se torna significativo para a criança Importantes contributos na formação do caráter se desenvolvem ou se reforçam a partir da repressão das tendên cias coprofílicas A psicanálise também diz que o interesse da criança pelas fezes não se dis tingue inicialmente dos interesses sexuais a separação entre os dois surge apenas mais tarde e permanece incompleta a afinidade original assentada pela anatomia humana ainda transparece em muitos pontos no adulto normal Afinal não devemos esquecer que tais desenvolvimentos como quaisquer outros não podem produzir um resultado imaculado um quê da antiga pre dileção é conservado uma parte das tendências coprofílicas atua também na vida posterior manifestandose nas neuroses perversões hábitos e más maneiras dos adultos Os estudos de folclore encetaram caminhos de pesquisa bem diferentes mas chegaram aos mesmos resultados que o trabalho psicanalítico Eles mostram como é incompleta a repressão das tendências coprofílicas em épocas e povos diversos e o quanto o tratamento da matéria fecal em outros estágios de cultura se acha próximo da maneira infantil Mas também demonstram a persistência dos primitivos interesses coprofílicos verdadeiramente inerradicá veis ao expor ante o nosso olhar espantado a multiplicidade de empregos em ritos mágicos costumes populares cultos religiosos e artes médicas mediante a qual a velha estima pelas excreções humanas adquiriu nova expressão Tam bém a relação dessa esfera com a vida sexual parece ter se conservado plena mente Está claro que tal promoção de nossos conhecimentos não representa perigo algum para a nossa moralidade A maior parte do que sabemos sobre o papel dos excrementos na vida hu mana se acha reunido na obra Scatologic rites of all nations de J G Bourke 266275 Tornála acessível aos leitores alemães portanto é um empreendimento não só ousado mas também meritório Título original Geleitwort zu Der Unrat in Sitte Brauch Glauben und Gewohnheitsrecht der Völker A imundície nos usos costumes e crenças e no direito consuetudinário dos povos título alemão de Scatologic rites of all nations von John Gregory Bourke Ethnologischer Ver lag Leipzig 1913 Traduzido de Gesammelte Werke x pp 4535 No original Uns bleibt ein Erdenrest zu tragen peinlich und wärer von Asbest er ist nicht reinlich Fausto ii parte 5 No original se acha Sekretionen secreções o mais correto porém seria excreções Exkretionen 267275 O SIGNIFICADO DE UMA SEQUÊNCIA DE VOGAIS Com frequência já foram levantadas objeções à afirmação de Stekel de que nos sonhos e pensamentos espontâneos os nomes escondidos devem ser sub stituídos por outros que em comum com eles têm apenas a sequência de vo gais Mas quanto a isso a história da religião nos oferece uma notável analogia Entre os antigos hebreus o nome de Deus era tabu não devia ser nem pronun ciado nem escrito um exemplo de maneira nenhuma único da importância especial dos nomes nas culturas arcaicas Tal proibição foi tão bem observada que até hoje a vocalização das quatro letras do nome de Deus per manece desconhecida O nome é pronunciado Jeová tomandose emprestados os signos vocálicos do termo Adonai senhor que não era proibido S Reinach Cultes mythes et religions Paris 1908 t i p 1 Título original Die Bedeutung der Vokalfolge publicado primeiramente em Zentralblatt für Psychoanalyse v 2 1911 Traduzido de Gesammelte Werke viii p 348 GRANDE É A DIANA DOS EFÉSIOS A antiga cidade grega de Éfeso na Ásia Menor cujas ruínas foram objeto re centemente de notória pesquisa da antropologia austríaca era sobretudo famosa na Antiguidade pelo grandioso templo dedicado a Ártemis Diana Emigrantes jônicos apoderaramse talvez no século viii da cidade havia muito habitada por povos asiáticos nela encontraram o culto de uma antiga divindade materna possivelmente denominada Oupis e a identificaram com Ártemis divindade de sua terra Conforme a evidência das escavações ao longo dos séculos foram erguidos vários templos em honra da divindade naquele local Dessa série de templos o quarto foi destruído pelo demente Erostrato no incêndio por ele provocado no ano de 356 na noite em que nas ceu Alexandre o Grande Foi depois reconstruído mais esplêndido do que nunca Com sua profusão de sacerdotes magos peregrinos com suas lojas em que eram oferecidos amuletos suvenires exvotos a cidade comercial de Éfeso podia ser comparada à moderna Lourdes Por volta do ano 54 de nossa era o apóstolo Paulo chegou a Éfeso para uma permanência de vários anos Pregou fez milagres e conquistou muitos seguidores no povo Perseguido e acusado pelos judeus separouse deles e fundou uma comunidade cristã independente A difusão de sua doutrina começou a prejudicar o ofício dos ourives que fabricavam para os fiéis e romeiros que vinham de toda parte as lembranças do local sagrado as pequenas reproduções de Ártemis e seu templo1 Paulo era um judeu muito severo para deixar que a antiga divindade subsistisse com outro nome ao lado da sua para rebatizála como haviam feito os invasores jônicos com a deusa Oupis Os piedosos artesãos e artistas da cidade começaram a temer por sua deusa e seu ofício Revoltaramse e gritando repetidamente Grande é a Diana dos efésios afluíram pela rua principal Arcadiana até o teatro onde seu líder Demétrio fez um discurso incendiário contra os judeus e con tra Paulo A custo as autoridades conseguiram apaziguar a multidão garant indo que a majestade da grande deusa era intocável e estava acima de qualquer ataque2 A igreja que Paulo fundou em Éfeso não lhe permaneceu fiel por muito tempo Caiu sob a influência de um homem chamado João personalidade que levantou sérios problemas para a crítica Talvez fosse o autor do Apocalipse que abunda em invectivas contra o apóstolo Paulo A tradição o identifica com o apóstolo João a quem se atribui o quarto evangelho Segundo esse evan gelho Jesus crucificado gritou para seu discípulo predileto indicando Maria Eis a tua mãe e dali em diante João a levou consigo Assim se João foi para Éfeso também Maria foi para lá Portanto em Éfeso foi erguida junto à igreja do apóstolo a primeira basílica em honra à nova divindade materna dos cristãos cuja existência foi testemunhada já no século iv A cidade tinha nova mente sua grande deusa a não ser o nome pouco havia mudado Também os ourives tiveram novamente trabalho fazendo reproduções do templo e da divindade para os novos peregrinos Apenas a função de Ártemis que se exprimia no atributo kourotrofos que cria ou alimenta os garotos passou para um santo Artemidoro protetor das mulheres que dão à luz Depois houve a conquista da cidade pelo Islã e por fim seu declínio e abandono em virtude do assoreamento do rio Mas a grande deusa de Éfeso não desistiu Ainda em nossa época apareceu como Santa Virgem a uma piedosa garota alemã Katharina Emmerich em Dulmen descreveulhe sua viagem para Éfeso os objetos da casa onde lá viveu e morreu o formato de sua cama etc E a casa e a cama foram realmente encontradas como a Virgem as descrevera e voltaram a ser a destinação de romarias dos fiéis Segundo F Sartiaux Villes mortes dAsie mineure Paris 1911 270275 1 Ver o poema de Goethe volume 2 da SophienAusgabe p 195 Freud se refere ao poema com o mesmo título do presente texto título retirado de Atos dos Apóstolos 19 28 nesse poema um velho ourives de Éfeso continua trabalhando numa estatueta da deusa pagã en quanto na cidade se fala de um novo deus 2 Atos dos Apóstolos 19 Título original Gross ist die Diana der Epheser publicado primeiramente em Zentralblatt für Psychoanalyse v 2 1911 traduzido de Gesammelte Werke viii pp 3601 Conforme a in dicação entre parênteses no final do texto tratase apenas de um resumo do que Freud achou sobre o tema no livro de F Sartiaux Pequena cidade da região da Vestfália na Alemanha 271275 SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS EM 20 VOLUMES COORDENAÇÃO DE PAULO CÉSAR DE SOUZA 1TEXTOS PRÉPSICANALÍTICOS 18861899 2ESTUDOS SOBRE A HISTERIA 18931895 3PRIMEIROS ESCRITOS PSICANALÍTICOS 18931899 4A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS 1900 5PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA E SOBRE OS SONHOS 1901 6TRÊS ENSAIOS DE UMA TEORIA DA SEXUALIDADE FRAGMENTO DA ANÁLISE DE UM CASO DE HISTERIA O CASO DORA E OUTROS TEXTOS 19011905 7O CHISTE E SUA RELAÇÃO COM O INCONSCIENTE 1905 8O DELÍRIO E OS SONHOS NA GRADIVA ANÁLISE DA FOBIA DE UM GAROTO DE CINCO ANOS O PEQUENO HANS E OUTROS TEXTOS 19061909 9OBSERVAÇÕES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA O HOMEM DOS RATOS UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE LEONARDO DA VINCI E OUTROS TEXTOS 19091910 10OBSERVAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE UM CASO DE PARANOIA RELATADO EM AUTOBIOGRAFIA O CASO SCHREBER ARTIGOS SOBRE TÉCNICA E OUTROS TEXTOS 19111913 11TOTEM E TABU HISTÓRIA DO MOVIMENTO PSICANALÍTICO E OUTROS TEXTOS 19131914 12INTRODUÇÃO AO NARCISISMO ENSAIOS DE METAPSICOLOGIA E OUTROS TEXTOS 19141916 13CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 19151917 14HISTÓRIA DE UMA NEUROSE INFANTIL O HOMEM DOS LOBOS ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER E OUTROS TEXTOS 19171920 15PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EU E OUTROS TEXTOS 19201923 16O EU E O ID ESTUDO AUTOBIOGRÁFICO E OUTROS TEXTOS 19231925 17INIBIÇÃO SINTOMA E ANGÚSTIA O FUTURO DE UMA ILUSÃO E OUTROS TEXTOS 19261929 18O MALESTAR NA CIVILIZAÇÃO NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS E OUTROS TEXTOS 19301936 19MOISÉS E O MONOTEÍSMO COMPÊNDIO DE PSICANÁLISE E OUTROS TEXTOS 19371939 20ÍNDICES E BIBLIOGRAFIA Copyright da tradução 2010 by Paulo César Lima de Souza Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009 Os textos deste volume foram traduzidos de Gesammelte Werke volumes viii e x Londres Imago 1943 e 1946 Os títulos originais estão na página inicial de cada texto A outra edição alemã referida é Studienausgabe Frankfurt Fis cher 2000 Capa e projeto gráfico warrakloureiro Imagens das pp 3 e 4 Eros Grécia séc ii aC 15x38cm Balsamarium Itália Central séc iii aC 3x94cm Freud Museum Londres Preparação Célia Euvaldo Revisão Huendel Viana Carmen S da Costa Ana Maria Barbosa ISBN 9788580860375 Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz ltda Rua Bandeira Paulista 702 cj 32 04532002 São Paulo sp Telefone 11 37073500 Fax 11 37073501 wwwcompanhiadasletrascombr