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Psicologia ·
Psicanálise
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SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS VOLUME 13 CONFERÊNCIAS INTrodutórias À PSICANÁLISE 19161917 TRADUÇÃO SERGIO TELLAROLI COMPANHIA DAS LETRAS SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS VOLUME 13 CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 19161917 TRADUÇÃO SERGIO TELLAROLI REVISÃO DA TRADUÇÃO PAULO CÉSAR DE SOUZA 3ª reimpressão COMPANHIA DAS LETRAS SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS EM 20 VOLUMES COORDENAÇÃO DE PAULO CÉSAR DE SOUZA 1 TEXTOS PRÉPSICANALÍTICOS 18861899 2 ESTUDOS SOBRE A HISTÓRIA 18931895 3 PRIMEIROS ESCRITOS PSICANALÍTICOS 18931899 4 A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS 1900 5 PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA E SOBRE OS SONHOS 1901 6 TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE ANÁLISE FRAGMENTÁRIA DE UMA HISTERIA O CASO DORA E OUTROS TEXTOS 19011905 7 O CHISTE E SUA RELAÇÃO COM O INCONSCIENTE 1905 8 O DELÍRIO E OS SONHOS NA GRAVIDA ANÁLISE DA FOBIA DE UM GAROTO DE CINCO ANOS O PEQUENO HANS E OUTROS TEXTOS 19061909 9 OBSERVAÇÕES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA O HOMEM DOS RATOS UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE LEONARDO DA VINCI E OUTROS TEXTOS 19091910 10 OBSERVAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE UM CASO DE PARANOIA RELATADO EM AUTOBIOGRAFIA O CASO SCHREBER ARTIGOS SOBRE TÉCNICA E OUTROS TEXTOS 19111913 11 TOTEM E TABU HISTÓRIA DO MOVIMENTO PSICANALÍTICO E OUTROS TEXTOS 19131914 12 INTRODUÇÃO AO NARCISISMO ENSAIOS DE METAPSICOLOGIA E OUTROS TEXTOS 19141916 13 CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 19151917 14 HISTÓRIA DE UMA NEUROSE INFANTIL O HOMEM DOS LOBOS ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER E OUTROS TEXTOS 19171920 15 PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EU E OUTROS TEXTOS 19201923 16 O EU E O ID AUTOBIOGRAFIA E OUTROS TEXTOS 19231925 17 INIBIÇÃO SINTOMA E ANGÚSTIA O FUTURO DE UMA ILUSÃO E OUTROS TEXTOS 19261929 18 O MALESTAR NA CIVILIZAÇÃO NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS E OUTROS TEXTOS 19301936 19 MOISÉS E O MONOTEÍSMO COMPÊNDIO DE PSICANÁLISE E OUTROS TEXTOS 19371939 20 ÍNDICES E BIBLIOGRAFIA PARA MAIS INFORMAÇÕES SOBRE OS VOLUMES PUBLICADOS ACESSE wwwcompanhiadasletrascombr Copyright da tradução 2014 by Sergio Tellaroli Copyright da organização 2014 by Paulo César Lima de Souza Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009 Os textos deste volume foram traduzidos de Gesammelte Werke volumes XI e XVI Londres Imago 1940 e 1950 A outra edição alemã referida é Studienausgabe volume I Frankfurt Fischer 2ooo O tradutor agradece o apoio do Colégio Europeu de Tradutores de Straelen EOK e do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico DAAD A tradução desta obra foi finalizada em Straelen na Alemanha entre os meses de maio e julho de 2013 Capa e projeto gráfico warrakloureiro Imagens das pp 3 e 4 obras da coleção pessoal de Freud Eros período helenístico Grécia terracota 10 em Guerreiro da Úmbria 00450 aC Itália bronze 208 em Freud Museum Londres Preparação Célia Euvaldo Índice remissivo Luciano Marchiori Revisão Carmen T S Costa MariseLeal Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro sP Brasil Freud Sigmund 86939 Obras completas volume 13 conferências introdutórias à psicanálise 19IÓ1917 I Sigmund Freud tradução Sergio Tellaroli revisão da tradução Paulo César de Souza 11 ed São Paulo Companhia das Letras 2014 Título original Gesammelte Werke ISBN 9788jJj924190 1 Freud Sigmund r861939 2 Psicanálise 3 Psicologia 4 Psicoterapia 1 Título 1402275 CDD10194 Índice para catá1ogo sistemático I Sigmund Freud Obras completas Psicologia analítica 1501954 2017 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ SA Rua Bandeira Paulista 702 cj p 04532oo2 São Paulo SP Telefone n 37073500 Fax n 37073501 Digitalizado para PDF por Zekittha Brasília 2272017 SUMÁRIO ESTA EDIÇÃO 9 CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 19161917 PREFÁCIO 14 PREFÁCIO À EDIÇÃO HEBRAICA r6 PRIMEIRA PARTE OS ATOS FALHOS 1916 1 INTRODUÇÃO 19 2 OS ATOS FALHOS 31 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO 2 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO 79 SEGUNDA PARTE OS SONHOS S DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES IIO 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO 133 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES r r 8 SONHOS DE CRIANÇAS 167 9 A CENSURA DOS SONHOS r83 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS 200 11 O TRABALHO DO SONHO 229 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS 247 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS 268 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS 287 15 INCERTEZAS E CRÍTICAS 308 TERCEIRA PARTE TEORIA GERAL DAS NEUROSES 1917 16 PSICANÁLISE E PSIOUIATRIA 325 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS 343 18 A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE 364 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO 381 20 A VIDA SEXUAL HUMANA 401 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS 424 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA 450 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS 475 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM oo 25 A ANGÚSTIA 519 26 A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO 545 27 A TRANSFERÊNCIA 570 28 A TERAPIA ANALÍTICA 593 ÍNDICE REMISSIVO 614 ESTA EDIÇÃO Esta edição das obras completas de Sigmund Freud pre tende ser a primeira em língua portuguesa traduzida do original alemão e organizada na sequência cronoló gica em que apareceram originalmente os textos A afirmação de que são obras completas pede um es clarecimento Não se incluem os textos de neurologia isto é não psicanalíticos anteriores à criação da psica nálise Isso porque o próprio autor decidiu deixálos de fora quando se fez a primeira edição completa de suas obras nas décadas de 1920 e 30 No entanto vários tex tos prépsicanalíticos já psicológicos serão incluídos nos dois primeiros volumes A coleção inteira será com posta de vinte volumes sendo dezenove de textos e um de índices e bibliografia A edição alemã que serviu de base para esta foi Ge sammelte Werke Obras completas publicada em Lon dres entre 1940 e 1952 Agora pertence ao catálogo da editora Fischer de Frankfurt que também recolheu num grosso volume intitulado Nachtragshand Volu me suplementar inúmeros textos menores ou inéditos que haviam sido omitidos na edição londrina Apenas alguns deles foram traduzidos para a presente edição pois muitos são de caráter apenas circunstancial A ordem cronológica adotada pode sofrer pequenas alterações no interior de um volume Os textos consi derados mais importantes do período coberto pelo vo lume cujos títulos aparecem na página de rosto vêm em primeiro lugar Em uma ou outra ocasião são reu 9 nidos aqueles que tratam de um só tema mas não foram publicados sucessivamente é o caso dos artigos sobre a técnica psicanalítica por exemplo Por fim os textos mais curtos são agrupados no final do volume Embora constituam a mais ampla reunião de textos de Freud os dezessete volumes dos Gesammelte Werke foram sofrivelmente editados talvez devido à penúria dos anos de guerra e de pósguerra na Europa Embora ordenados cronologicamente não indicam sequer o ano da publicação de cada trabalho O texto em si é geral mente confiável mas sempre que possível foi cotejado com a Studienausgabe Edição de estudos publicada pela Fischer em 196975 da qual consultamos uma edi ção revista lançada posteriormente Tratase de onze volumes organizados por temas como a primeira cole ção de obras de Freud que não incluem vários textos secundários ou de conteúdo repetido mas incorporam traduzidas para o alemão as apresentações e notas que o inglês ames Strachey redigiu para a Standard edition Londres Hogarth Press 195566 O objetivo da presente edição é oferecer os textos com o máximo de fidelidade ao original sem interpre tações de comentaristas e teóricos posteriores da psica nálise que devem ser buscadas na imensa bibliografia sobre o tema Informações sobre a gênese de cada obra também podem ser encontradas na literatura secundá ria Para questionamentos de pontos específicos e do próprio conjunto da teoria freudiana o leitor deve re correr à literatura crítica de M Macmillan Joel Paris F Cioffi J Van Rillaer E Gellner e outros 10 A ordem de publicação destas Ohras completas não é a mesma daquela das primeiras edições alemãs pois isso implicaria deixar várias coisas relevantes para mui to depois Decidiuse começar por um período inter mediário e de pleno desenvolvimento das concepções de Freud em torno de 1915 e daí proceder para trás e para adiante Após o título de cada texto há apenas a referência bibliográfica da primeira publicação não a das edições subsequentes ou em outras línguas que interessam tão somente a alguns especialistas Entre parênteses se acha o ano da publicação original havendo transcorrido mais de um ano entre a redação e a publicação a data da redação aparece entre colchetes As indicações biblio gráficas do autor foram normalmente conservadas tais como ele as redigiu isto é não foram substituídas por edições mais recentes das obras citadas Mas sempre é fornecido o ano da publicação que no caso de remis sões do autor a seus próprios textos permite que o leitor os localize sem maior dificuldade tanto nesta como em outras edições das obras de Freud As notas do tradutor geralmente informam sobre os termos e passagens de versão problemática para que o leitor tenha uma ideia mais precisa de seu significado e para justificar em alguma medida as soluções aqui ado tadas Nessas notas são reproduzidos os equivalentes achados em algumas versões estrangeiras dos textos em línguas aparentadas ao português e ao alemão Não utilizamos as duas versões das obras completas já apa recidas em português das editoras Delta e Imago pois li não foram traduzidas do alemão e sim do francês e do espanhol a primeira e do inglês a segunda No tocante aos termos considerados técnicos não existe a pretensão de impor as escolhas aqui feitas como se fossem absolutas Elas apenas pareceram as menos insatisfatórias para o tradutor e os leitores e psi canalistas que empregam termos diferentes conforme suas diferentes abordagens e percepções da psicanáli se devem sentirse à vontade para conservar suas op ções Ao ler essas traduções apenas precisarão fazer o pequeno esforço de substituir mentalmente instinto por pulsão instintual por pulsional repressão por recalque ou Eu por ego exemplificando No entanto essas palavras são poucas em número bem me nor do que geralmente se acredita PCS 12 A CONFERENCIAS INTRODUTORIAS À PSICANÁLISE 19161917 TÍTULO ORIGINAL VORLESUNGEN ZUR ENFÜHRUNG IN OE PSYCHOANALYSE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM TRÊS VOLUMES PARTES I E 11 LEIPZIG E VIENA HELLER 1916 PARTE 111 IDEM 1917 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKEXI PP 1497 TAMBÉM SE ACHA EM STUOENAUSGABEI PP 31445 PREFÁCIO O que aqui ofereço ao público como introdução à psi canálise não pretende de modo algum rivalizar com as apresentações gerais já existentes dessa área do co nhecimento Hitschmann Freuds Neurosenlehre 2ª ed 1913 Pfister Die psychoanalytische Methode 1913 Leo Kaplan Grundiüge der Psychoanalyse 1914 Régis e Hes nard La psychoanalyse des névroses et des psychoses Paris 1914 Adolf F Meijer De Behandeling van Zenuwfieken door PsychoAnalyse Amsterdam 1915 Tratase da re produção fiel de palestras que proferi em dois semestres nos invernos de 19156 e 19167 diante de uma audiên cia composta de médicos e leigos de ambos os sexos Todas as peculiaridades que chamarão a atenção dos leitores deste livro se explicam a partir das condições em que ele surgiu Não foi possível nesta exposição manter a fria serenidade de um tratado científico o ora dor precisou antes incumbirse de não deixar esmo recer a atenção dos ouvintes ao longo de palestras de quase duas horas Essa preocupação com o efeito mo mentâneo tornou inevitável que um mesmo assunto fos se tratado mais de uma vez por exemplo no contexto da interpretação dos sonhos e depois no dos problemas da neurose Ademais a ordenação do material fez com que muitos temas importantes como o do inconsciente não pudessem ser abordados exaustivamente num úni co ponto eles foram retomados e abandonados diversas vezes de acordo com as novas oportunidades surgidas de acrescentar algo a seu conhecimento 4 Quem está familiarizado com a literatura psicanalítica pouco encontrará nesta introdução que já não conhe ça de outras exposições hem mais detalhadas Contudo a necessidade de completar e resumir o tema obrigou o autor a recorrer a material não divulgado anteriormente na etiologia da angústia e nas fantasias histéricas Viena primavera de 1917 Freud PREFÁCIO À EDIÇÃO HEBRAICA Estas conferências foram proferidas nos anos de 1916 e 1917 elas correspondiam fielmente ao estágio em que se encontrava então a jovem ciência e continham mais do que seu título anunciava apresentavam não apenas uma introdução mas boa parte do conteúdo da psicaná lise na época É natural que hoje esse já não seja o caso Nesse meiotempo a teoria psicanalítica fez progressos a ela acrescentaramse elementos importantes como a decomposição da personalidade em Eu Supereu e Id uma profunda modificação da teoria dos instintos e uma melhor compreensão da origem da consciência moral e do sentimento de culpa Portanto as conferências tornaramse incompletas em alto grau somente agora adquirindo realmente o caráter de mera introdução Em outro sentido porém mesmo hoje não se tornaram ultrapassadas ou envelhecidas À exceção de umas pou cas alterações o que elas trazem continua merecendo crédito e é ensinado nos institutos de psicanálise Ao público de língua hebraica em especial à ju ventude ávida de conhecimento este livro apresenta a psicanálise na roupagem da língua antiquíssima que a vontade do povo judeu despertou para uma nova vida O autor tem boa ideia do trabalho que isso demandou do tradutor e não necessita reprimir a dúvida de que Traduzido de Gesammelte Werke v XVI pp 2745 No original Ich ÜherIch e Es cf nota sobre a versão desses termos no v 18 destas Obras completas p 213 Moisés e os profetas teriam julgado compreensíveis estas conferências em hebraico Aos descendentes deles po rém entre os quais ele mesmo se inscreve e para os quais este livro se destina ele pede que aos primei ros impulsos de crítica e desagrado não se apressem em reagir com repúdio A psicanálise traz tantas novidades e entre elas tanta coisa que contradiz opiniões tradicio nais e fere sentimentos profundamente arraigados que há de suscitar oposição a princípio Mas quem suspender seu juízo e se deixar influenciar pela totalidade dela tal vez adquira a convicção de que também essas novidades indesejadas são imprescindíveis e dignas de conheci mento se quiser entender a psique e a vida humana Viena dezembro de 1930 17 PRIMEIRA PARTE OS ATOS FALHOS 1916 L INTRODUÇÃO 1 INTRODUÇÃO Senhoras e senhores Não sei quanto cada um dos senho res sabe sobre psicanálise seja por intermédio de leituras ou de ouvir dizer Todavia os termos com que anunciei estas conferências introdução elementar à psicanáli se obrigamme a tratálos como se nada soubessem e necessitassem portanto de instrução preliminar Mas pressuponho ser do conhecimento de todos que a psicanálise é um procedimento por meio do qual se trata clinicamente os doentes dos nervos e doulhes logo um exemplo de como nessa área muito se dá di ferentemente do que ocorre nos demais domínios da medicina ou mesmo em franca oposição a estes Neles quando submetemos um doente a uma técnica médica que lhe é nova em geral minimizamos os problemas inerentes a ela e confiantes lhe asseguramos que o tra tamento em questão terá êxito Penso que é justificado fazêlo uma vez que nosso comportamento aumenta a probabilidade de sucesso Quando porém submetemos um neurótico a tratamento psicanalítico procedemos de modo diverso Mostramos a ele as dificuldades de nosso método o tempo que este vai demandar os esforços e sacrifícios que vai exigir e quanto ao sucesso dizemos não ser possível prometêlo com segurança porque ele dependerá do comportamento da compreensão da obediência e da persistência do próprio doente Temos é claro bons motivos para adotar uma conduta aparen temente tão atravessada que os senhores talvez venham a compreender mais adiante I OS ATOS FALHOS Apenas não se irritem se de início eu os tratar como neuróticos Na verdade desaconselho os senhores a me ouvir uma segunda vez É com esse propósito que pre tendo exporlhes as deficiências inerentes ao aprendizado da psicanálise e as dificuldades que se interpõem à formu lação de um juízo a seu respeito Vou mostrarlhes que tanto a formação prévia dos senhores como seu modo habitual de pensar só poderiam transformálos inevita velmente em adversários da psicanálise e quanto lhes custaria superar essa oposição instintiva a ela Decerto não posso prever a medida da compreensão para a psi canálise que minhas palestras despertarão nos senhores mas posso garantir que ouvilas não os capacitará a rea lizar nenhuma investigação psicanalítica nem os tornará aptos a conduzir semelhante tratamento Ainda assim caso haja entre os senhores alguém que não deseje se dar por satisfeito com um conhecimento passageiro do assun to mas que pelo contrário gostaria de se relacionar com a psicanálise de forma mais duradoura eu não apenas o desaconselho a assim proceder como o advirto expressa mente para que não o faça Do modo como estão as coisas hoje em dia escolher tal profissão destruiria toda e qual quer possibilidade de sucesso em alguma universidade e quando começasse a praticar a medicina esse alguém se veria numa sociedade que não compreende seus esforços que o contempla com desconfiança e hostilidade e que so bre ele atiçará todos os espíritos ruins que nela espreitam A partir dos fenômenos que acompanham a atual guerra na Europa os senhores talvez possam ter uma ideia apro ximada de quantas seriam as legiões desses espíritos 20 INTRODUÇÃO De todo modo sempre existem em bom número aquelas pessoas para as quais a despeito de tais des confortos tudo quanto pode se transformar em novos conhecimentos retém sua atratividade Havendo entre os senhores algumas pessoas desse tipo dispostas a des considerar meu conselho em contrário e a aqui reapa recer quando de minha próxima conferência elas serão bemvindas Todos porém têm o direito de saber quais as dificuldades da psicanálise às quais aludi Em primeiro lugar há as dificuldades relacionadas à instrução ao ensino da psicanálise Nas aulas de medici na os senhores se acostumaram a ver Veem o preparado anatômico o precipitado decorrente da reação quími ca e o encolhimento do músculo resultante do sucesso na estimulação de seus nervos Depois o doente lhes é apresentado aos sentidos com os sintomas de seu mal os produtos do processo de adoecimento e mesmo em numerosos casos os causadores da doença em estado isolado Nas disciplinas cirúrgicas testemunham as in tervenções mediante as quais se presta socorro ao enfer mo e podem até se exercitar na execução delas Mesmo na psiquiatria a apresentação do doente com sua mí mica facial alterada seu modo de falar e seu comporta mento abastece os senhores de toda uma variedade de observações que lhes deixa impressão profunda Assim o professor de medicina cumpre predominantemente o papel de um guia e intérprete a lhes acompanhar por um museu enquanto os senhores travam contato direto com os objetos e mediante sua própria percepção creem ha ver se convencido da existência dos novos fatos 21 I OS ATOS FALHOS Infelizmente isso tudo é diferente na psicanálise No tratamento psicanalítico não ocorrem senão trocas de palavras entre o analisando e o médico O paciente fala relata experiências passadas e impressões presentes se queixa confessa seus desejos e impulsos emocionais O médico ouve com atenção busca dirigir o curso dos pensamentos do paciente instigao compele sua atenção para determinadas direções dálhe explicações e observa as reações de compreensão ou repúdio que desse modo desperta no doente Parentes desinformados de nossos doentes aos quais só impressiona o que é visível e pal pável de preferência ações como as que vemos no cinema jamais perdem uma oportunidade de manifestar suas dúvidas acerca de como se pode fazer alguma coisa con tra a doença apenas com palavras Tratase de um modo de pensar pouco sensato e não muito coerente São aliás essas mesmas pessoas que têm certeza de que os doentes apenas imaginam seus sintomas Em sua origem as pa lavras eram magia e ainda hoje a palavra conserva muito de seu velho poder mágico Com palavras uma pessoa é capaz de fazer outra feliz ou de levála ao desespero é com palavras que o professor transmite seu conhecimento aos alunos e é também por intermédio das palavras que o orador arrebata a assembleia de ouvintes e influi sobre os juízos e as decisões de cada um deles Palavras evocam afetos e constituem o meio universal de que se valem as pessoas para influenciar umas às outras Não vamos pois subestimar o emprego das palavras na psicoterapia e sim nos dar por satisfeitos se pudermos ser ouvintes daquelas palavras que são trocadas entre o analista e seu paciente 22 L INTRODUÇÃO Mas tampouco isso podemos fazer A conversa que constitui o tratamento psicanalítico não admite ouvin tes e não se presta a demonstrações Podese é claro em uma aula de psiquiatria apresentar um neurastênico ou um histérico aos estudantes Ele relatará suas quei xas e sintomas mas nada além disso As comunicações de que necessita a análise o paciente só as faz median te uma particular ligação emocional com o médico tão logo notasse a presença de uma testemunha que lhe é indiferente ele se calaria Sim porque tais declarações dizem respeito ao que há de mais íntimo em sua vida psíquica a tudo o que como pessoa socialmente autô noma ele precisa ocultar dos outros e de resto a tudo o que como personalidade una ele não deseja admitir para si mesmo Portanto os senhores não podem assistir a um tra tamento psicanalítico Podem apenas ouvir acerca dele e assim tomar conhecimento da psicanálise apenas de ouvir falar no sentido mais estrito da expressão Me diante essa instrução de segunda mão por assim dizer condições bastante incomuns se apresentam para que os senhores possam formar um juízo Claro está que tudo depende em boa parte da credibilidade que possam conferir à sua fonte de informação Imaginemse por um momento não em uma aula de psiquiatria e sim de história em que o professor lhes fala sobre a vida e os feitos bélicos de Alexandre o Grande Que motivo teriam os senhores para acreditar na veracidade das informações do mestre A princípio a situação parece ainda mais desfavorável do que na 23 I OS ATOS FALHOS psicanálise uma vez que o professor de história assim como os senhores não participou das campanhas béli cas de Alexandre o psicanalista ao menos relata coisas nas quais desempenhou um papel Mas depois vêm as coisas que confirmam o historiador Ele pode remeter os senhores a relatos de antigos escritores contemporâ neos dos fatos ou mais próximos dos acontecimentos em questão isto é aos livros de Diodoro Plutarco Arriano etc e pode mostrarlhes as reproduções conservadas das moedas e estátuas do rei bem como passarlhes uma fotografia do mosaico da batalha de Issos que se acha em Pompeia A rigor todos esses documentos compro vam apenas que gerações anteriores já acreditavam na existência de Alexandre e na realidade de seus feitos o que também poderia suscitar a crítica dos senhores Essa crítica diria então que nem tudo que se relatou sobre Alexandre é digno de crédito ou verificável em seus de talhes mas não posso supor que os senhores deixariam a sala de aula duvidando da realidade de Alexandre o Grande Sua decisão seria determinada principalmente por duas ponderações a primeira delas é que o profes sor não possui nenhum motivo concebível para expor aos senhores como real algo que ele não acredita que o seja a segunda é que todos os livros de história dispo níveis relatam esses mesmos acontecimentos de manei ra semelhante Procedendo em seguida ao exame das fontes antigas os senhores levariam em consideração os mesmos fatores ou seja as possíveis motivações do informante e a coerência interna dos testemunhos No caso de Alexandre o resultado dessa prova com certe INTRODUÇÃO za seria tranquilizador mas é provável que viesse a ser outro em se tratando de personalidades como Moisés ou Nimrod As dúvidas que os senhores poderiam levan tar quanto à credibilidade do informante psicanalítico os senhores terão oportunidade de identificar com sufi ciente clareza mais adiante Agora têm o direito de perguntar se não existe cer tificação objetiva da psicanálise nem qualquer possibi lidade de demonstrála como pode alguém aprendêla afinal e se convencer da verdade de suas afirmações De fato esse aprendizado não é fácil nem são mui tos os que a aprenderam devidamente mas existe é claro um caminho possível para tanto Psicanálise é algo que aprendemos em primeiro lugar em nós mes mos mediante o estudo de nossa própria personalida de Não se trata propriamente daquilo a que chamam autoobservação embora possamos por necessidade classificálo dessa maneira Há toda uma série de fe nômenos psíquicos muito frequentes e conhecidos de todos que após alguma instrução sobre a técnica pode mos observar em nós mesmos e tornar objetos de aná lise É assim que obtemos a convicção que procuramos acerca da realidade dos processos que a psicanálise des creve e da correção das concepções psicanalíticas Des se modo no entanto certas barreiras se impõem a nosso progresso Avançaremos muito mais se nos deixarmos analisar por um analista qualificado experimentando os efeitos da análise em nosso próprio Eu e nos valen do da oportunidade de aprender com o outro a técnica mais refinada do procedimento Mas embora excelente I OS ATOS FALHOS é claro que esse caminho só pode ser percorrido por um indivíduo jamais por toda uma sala de aula Aos senhores meus ouvintes e não a ela cabe a responsabilidade por uma segunda dificuldade em sua relação com a psicanálise pelo menos na medida em que estudaram medicina Sua formação deu ao modo de pensar dos senhores certo direcionamento que o distan cia bastante da psicanálise Os senhores foram ensinados a fundamentar as funções do organismo e seus distúr bios na anatomia a explicálos com base na química e na física e a apreendêlos com base na biologia mas seu in teresse não foi dirigido para a vida psíquica na qual cul mina o funcionamento desse organismo de maravilhosa complexidade Por essa razão permaneceram alheios ao pensamento psicológico e se acostumaram a contemplá lo com desconfiança negandolhe o caráter científico e relegandoo aos leigos aos escritores aos filósofos da natureza e aos místicos Essa limitação é decerto dano sa à prática médica dos senhores uma vez que como é regra em todos os relacionamentos humanos o doente lhes apresentará em primeiro lugar sua fachada psíquica e receio que como castigo os senhores serão obrigados a deixar aos praticantes leigos da medicina aos curan deiros e aos místicos que tanto desprezam uma parte da influência terapêutica que almejam exercer Não ignoro a justificativa que temos de aceitar para esta deficiência em sua formação Falta a ciência filosó fica auxiliar que poderia ser de utilidade para os propó sitos médicos dos senhores Nem a filosofia especulativa nem a psicologia descritiva ou a chamada psicologia L INTRODUÇÃO experimental vinculada à fisiologia dos sentidos tal como são ensinadas nas escolas são capazes de lhes dizer algo de útil acerca da relação entre o físico e o psíquico o que lhes daria a chave para a compreensão de um pos sível distúrbio das funções psíquicas É certo que den tro da medicina a psiquiatria se ocupa em descrever os distúrbios psíquicos observados e agrupálos em deter minados quadros clínicos mas há momentos em que os próprios psiquiatras duvidam que suas exposições pura mente descritivas sejam merecedoras do nome de ciên cia Os sintomas que compõem esses quadros clínicos são desconhecidos em sua origem em seu mecanismo e em sua interrelação não lhes correspondem altera ções comprováveis do órgão anatômico da psique ou as alterações são tais que não contribuem para explicá los Tais distúrbios psíquicos só àdmitem influência te rapêutica quando podem ser identificados como efeitos colaterais de alguma afecção orgânica Essa é a lacuna que a psicanálise busca preencher Ela pretende fornecer à psiquiatria o fundamento psi cológico faltante espera descobrir o terreno comum a partir do qual se possa compreender a convergência do distúrbio físico e do psíquico Para tanto é necessário que ela se mantenha livre de todo e qualquer pressupos to anatômico químico ou fisiológico que lhe seja estra nho que trabalhe com conceitos auxiliares puramente psicológicos e é por essa mesma razão que receio ela lhes parecerá estranha inicialmente Quanto à próxima dificuldade não desejo culpar os senhores por ela nem sua formação prévia ou sua ati I OS ATOS FALHOS tude Em duas de suas formulações a psicanálise ofende o mundo inteiro e atrai sua aversão uma delas infringe uma preconcepção intelectual a outra uma preconcep ção de caráter estéticomoral Não subestimemos essas preconcepções elas são coisas poderosas expressões de desenvolvimentos úteis e mesmo necessários da huma nidade Forças afetivas operam em sua manutenção e a luta contra elas é dura A primeira dessas afirmações desagradáveis diz que os processos psíquicos são em si inconscientes e que os conscientes são meros atos isolados porções da tota lidade da vida psíquica Lembremse de que ao contrá rio disso estamos acostumados a identificar psíquico e consciente A consciência é tida por nós como nada me nos que o caráter definidor do psíquico e a psicologia como a doutrina dos conteúdos da consciência De fato essa equiparação nos parece tão óbvia que cremos perce ber qualquer contradição a ela como um verdadeiro con trassenso ainda assim a psicanálise não tem como não contradizêla porque não pode aceitar a identificação do consciente com o psíquico A definição do psíquico para a psicanálise é de que ele se compõe de processos tais como sentir pensar e querer e ela tem de postular a existência de um pensar inconsciente e de um que rer insciente Com isso porém ela perdeu de antemão a simpatia de todos os amigos da cientificidade sóbria atraindo para si a suspeita de constituirse de uma fan tástica doutrina secreta desejosa de construir no escuro e de pescar em águas turvas Naturalmente os senho res meus ouvintes ainda não têm como compreender 28 L INTRODUÇÃO com que direito posso caracterizar como preconcepção uma frase de caráter tão abstrato como O psíquico é o consciente tampouco lhes é possível intuir que desen volvimento há de ter levado à negação do inconsciente caso ele exista e que vantagem poderia ter advindo des sa negação Se equiparamos o psíquico ao consciente ou se o estendemos além disso é algo que parece uma dis cussão vazia mas posso lhes assegurar que a hipótese de processos psíquicos inconscientes abre o caminho para uma nova e decisiva orientação no mundo e na ciência Tampouco podem os senhores adivinhar a íntima relação que essa primeira ousadia da psicanálise guarda com a segunda ainda não mencionada Esta segunda tese que a psicanálise oferece como um de seus resul tados consiste na afirmação de que impulsos instintuais que só podem ser caracterizados como sexuais seja no sentido mais restrito ou mais amplo do termo desempe nham papel extraordinariamente grande e até hoje não avaliado a contento como causadores de doenças dos nervos e da mente E mais do que isso que esses mesmos impulsos sexuais contribuíram em não pouca medida para as mais elevadas criações culturais artísti cas e sociais do espírito humano Segundo minha experiência a aversão a esse resulta do da pesquisa psicanalítica é a fonte mais significativa da resistência com a qual ela depara Querem os senho res saber como explicamos isso Acreditamos que por pressão das necessidades da vida a civilização foi cria da à custa da satisfação instintual e em grande parte é constantemente recriada quando o indivíduo recém I OS ATOS FALHOS ingresso na comunidade humana novamente sacrifica a satisfação instintual em prol do todo Entre as forças instintuais assim empregadas os impulsos sexuais de sempenham papel importante eles são sublimados isto é desviados de suas metas sexuais e direcionados para metas socialmente mais elevadas não mais sexuais Essa construção no entanto é instável a domestica ção dos instintos sexuais é precária em cada indivíduo que se junta à obra da cultura persiste o perigo de que seus instintos sexuais se neguem a tal emprego A so ciedade não crê em ameaça maior à sua cultura do que aquela que viria da libertação dos instintos sexuais e do retorno destes a suas metas originais Ela não gosta portanto de ser lembrada dessa parte delicada de seus fundamentos não tem interesse nenhum em que seja reconhecida a força dos instintos sexuais e seja demons trada a cada indivíduo a importância da vida sexual ao contrário optou com propósito educativo por desviar a atenção de toda essa área É por essa razão que não tolera o já referido resultado da pesquisa psicanalítica o qual preferiria estigmatizar como esteticamente repug nante moralmente repreensível ou perigoso Contudo semelhantes objeções nada podem contra resultados do trabalho científico que se pretendem objetivos A diver gência precisa ser traduzida em termos intelectuais se há de ser expressa É da natureza humana porém que as pessoas tendam a considerar incorreto aquilo de que não gostam e então se torna fácil achar argumentos contrários A sociedade portanto transforma o desa gradável em incorreto contesta as verdades da psica 30 2 OS ATOS FALHOS nálise com argumentos lógicos e factuais mas oriundos de fontes afetivas e ante toda e qualquer tentativa de refutação apegase a críticas que são preconcepções Nós contudo senhoras e senhores podemos afir mar que não seguimos tendência nenhuma ao formu lar essa criticada tese Apenas quisemos dar expressão a um fato que acreditamos haver percebido após árduo trabalho Também reivindicamos o direito de rejeitar incondicionalmente a intromissão de tais considerações práticas no trabalho científico antes ainda de examinar mos se é justificado ou não o receio que pretende nos impor tais considerações Essas são pois algumas das dificuldades que os se nhores enfrentarão no trato com a psicanálise Isso é talvez mais do que o suficiente para um começo Se pu derem superar a impressão causada por elas daremos prosseguimento à exposição 2 OS ATOS FALHOS Senhoras e senhores Começamos não com pressu postos mas com uma investigação Como seu objeto escolhemos certos fenômenos muito frequentes muito conhecidos e muito pouco estudados os quais nada têm a ver com enfermidades uma vez que podem ser obser vados em toda pessoa saudável Refirome aos chama dos atos folhos como o lapso verhal Versprechen que ocorre quando alguém pretendendo dizer uma palavra diz outra em seu lugar ou quando isso lhe acontece ao 31 I OS ATOS FALHOS escrever podendo a pessoa notar ou não o equívoco ou como o lapso de leitura Verlesen que se dá quando em um texto impresso ou manuscrito lemos algo diferente do que está escrito ou o lapso de audição Verhoren em que se ouve algo diferente do que foi dito sem que é claro se possa atribuir o equívoco a um distúrbio or gânico da capacidade auditiva Outra série de fenôme nos semelhantes se baseia em um lapso de memória um esquecimento Vergessen que não é permanente mas temporário como quando alguém não consegue se lem brar de um nome que conhece e geralmente torna a re conhecer ou quando se esquece de pôr em prática uma intenção dela se lembrando posteriormente ou seja depois de a ter esquecido apenas em determinado mo mento Em uma terceira série desses fenômenos não se verifica o caráter temporário como é o caso por exem plo do extravio Verlegen que ocorre quando alguém guarda um objeto em determinado lugar e depois não logra reencontrálo ou algo análogo a perda Verlie ren do objeto Há aí um tipo de esquecimento que é tratado diferentemente dos demais porque em vez de ser considerado compreensível provoca perplexidade ou irritação A essas ocorrências juntamse ainda certos equívocos Irrtümer nos quais também está presente o caráter temporário por algum tempo acreditamos em algo que sabíamos antes e sabemos depois não é o que pensávamos além de toda uma gama de fe nômenos semelhantes conhecidos por nomes diversos Quase todos esses acontecimentos cujo íntimo pa rentesco se expressa em alemão na designação com o 32 2 OS ATOS FALHOS mesmo prefixo ver são de natureza desimportante e a maioria possui duração bastante fugaz sem gran de significado na vida das pessoas Raramente algum deles adquire certa importância prática como na perda de objetos Por isso eles não chamam muita atenção despertam somente pequenos afetos e assim por diante É pois para esses fenômenos que chamo agora a sua atenção Os senhores porém objetarão malhumorados Há tantos enigmas formidáveis no universo e no mundo psíquico tantas coisas assombrosas no terreno dos distúr bios psíquicos que demandam e merecem esclarecimen to que parece mesmo um capricho desperdiçar trabalho e interesse em semelhantes ninharias Se o senhor puder nos fazer compreender como é que uma pessoa de olhos e ouvidos saudáveis é capaz de em plena luz do dia ver e ouvir coisas que não existem ou se acreditar de súbito perseguida por aqueles que sempre lhe foram caros ou ainda se valer de argumentos os mais perspicazes em de fesa de invenções delirantes que hão de parecer absurdas a qualquer criança aí então teremos algum respeito pela psicanálise mas se tudo que ela pode fazer é explicar por que um orador eventualmente troca uma palavra por ou tra ou por que uma dona de casa não sabe onde guardou as chaves e outras futilidades desse tipo nesse caso temos melhor emprego para nosso tempo e interesse E eu lhes responderia tenham paciência senhoras e senhores Creio que sua crítica não está no caminho certo É verdade que a psicanálise não pode se gabar de jamais ter se ocupado de ninharias Ao contrário ge ralmente constituem objeto de seu exame aqueles even 33 I OS ATOS FALHOS tos modestos descartados pelas demais ciências como demasiado insignificantes o refugo por assim dizer do mundo dos fenômenos Em sua crítica porém não confundem os senhores a grandeza dos problemas com a notoriedade dos indícios Não há coisas muito impor tantes que sob certas circunstâncias e em determinados momentos só são capazes de se revelar mediante indí cios muito fracos Seria fácil para mim mencionar aqui diversas situações desse tipo A partir de que insignifi cantes indícios os senhores ou os jovens dentre os se nhores deduzem ter ganhado a afeição de uma dama Aguardam para tanto uma expressa declaração de amor um abraço apaixonado ou será que não lhes bas ta um olhar quase imperceptível aos outros um movi mento fugaz o prolongamento por um segundo de um aperto de mão E se como policiais os senhores parti cipassem da investigação de um homicídio esperariam de fato descobrir que o assassino deixou uma fotografia com endereço na cena do crime Não precisariam se dar por satisfeitos com pistas mais fracas e menos ób vias da pessoa que procuram Não subestimemos pois os pequenos indícios a partir deles talvez seja possível encontrar a pista de coisa maior De resto penso como os senhores que o direito primordial a nosso interesse pertence aos grandes problemas do mundo e da ciência Manifestar porém o claro propósito de se dedicar à in vestigação desse ou daquele grande problema em geral é de pouca utilidade Nesses casos com frequência não sabemos nem em que direção dar o primeiro passo No trabalho científico é mais promissor atacar o que se tem 34 2 OS ATOS FALHOS à mão aquilo para cuja pesquisa se abre um caminho Se fizermos isso com todo o rigor sem pressupostos ou expectativas e se tivermos sorte é possível que em decorrência dos nexos que vinculam todas as coisas inclusive as pequenas às grandes uma porta de acesso se abra para o estudo dos problemas maiores mesmo a partir de um trabalho despretensioso É o que eu diria a fim de fixar o interesse dos senho res na abordagem dos atos falhos aparentemente tão in significantes das pessoas saudáveis Recorramos agora a alguém que desconhece a psicanálise e perguntemos a ele que explicação dá para a ocorrência de tais coisas De início ele certamente dirá Ah são pequenas coincidências que não vale a pena explicar O que sig nifica isso Estará ele afirmando a existência de aconte cimentos pequenos a ponto de escapar ao encadeamen to de tudo que se passa no mundo acontecimentos que poderiam perfeitamente não ser como são Mas romper dessa forma o determinismo natural ainda que em um único ponto é o mesmo que abrir mão da totalidade da concepção científica do mundo A esse nosso amigo poderemos então apontar quão mais coerente consigo mesma é a concepção religiosa do mundo quando ela assegura enfaticamente que pardal nenhum cai do telha do a não ser por especial vontade divina Nosso amigo creio não desejará tirar essa conclusão de sua primeira resposta vai antes ceder e dizer que se os estudasse decerto encontraria explicações para semelhantes fe nômenos Seriam pequenos deslizes na função incor reções no desempenho psíquico causadas por fatores 35 I OS ATOS FALHOS explicáveis Assim uma pessoa que em geral é capaz de falar corretamente pode incorrer em lapsos verbais 1 quando ela se sente algo indisposta e cansada 2 quan do está agitada 3 quando outras coisas demandam for temente sua atenção É fácil confirmar essas alegações De fato o lapso verbal ocorre com particular frequên cia quando alguém está cansado com dor de cabeça ou na iminência de uma enxaqueca Nessas circunstâncias é fácil esquecermos nomes próprios Algumas pessoas estão acostumadas a perceber no esquecimento de um nome o sinal da enxaqueca que está vindo Tomados de agitação trocamos não apenas palavras mas objetos também apanhamos o objeto errado Vergreijen e dis traídos ou seja concentrados em outra coisa é notório como nos esquecemos da intenção que pretendíamos pôr em prática e cometemos toda sorte de atos involuntários Um exemplo conhecido de distração oferecenos o pro fessor da Fliegende Bliitter que esquece o guardachuva e pega o chapéu errado porque está pensando nos pro blemas de que vai tratar em seu próximo livro Cada um de nós conhece por experiência própria exemplos de intenções ou promessas esquecidas em razão de haver tido sua atenção fortemente desviada para outra coisa Tudo isso soa bastante compreensível e parece imu ne a toda e qualquer contestação Talvez não seja mui to interessante ou não tanto quanto esperávamos Mas examinemos mais de perto essas explicações para os Nome de um semanário humorístico As notas chamadas por as teriscos são sempre do tradutor as notas do autor são numeradas 2 OS ATOS FALHOS atos falhos As condições apontadas para a ocorrência de tais fenômenos não são da mesma espécie Indisposi ção e distúrbios circulatórios oferecem uma razão fisio lógica para a deterioração de nosso funcionamento nor mal agitação cansaço e distração são fatores de outra natureza que se poderia chamar psicofisiológica Não é difícil traduzir estes últimos em uma teoria Tanto o cansaço como a distração e mesmo talvez a agitação de forma geral provocam uma divisão da atenção que pode resultar na insuficiência da atenção dedicada à ta refa em pauta Essa tarefa pode assim ser facilmente perturbada ou mal executada Um leve adoecimento al terações no abastecimento de sangue no órgão nervoso central podem produzir esse mesmo efeito na medida em que influenciam de forma análoga o fator determi nante isto é a distribuição da atenção Em todos os casos tratarseia então dos efeitos de um distúrbio da atenção de causas orgânicas ou psíquicas Isso não parece prometer muito para nosso interesse psicanalítico e poderíamos nos sentir tentados a aban donar o tema Todavia quando aprofundamos nosso exame nem tudo nos atos falhos condiz com essa teoria da atenção ou pelo menos nem tudo se deixa explicar com naturalidade a partir dela A experiência nos diz que esses esquecimentos e ações equivocadas ocorrem também em pessoas que não estão cansadas distraídas ou nervosas e sim em seu estado inteiramente normal a menos que se deseje atribuirlhes uma agitação pos terior causada justamente pelos atos falhos mas que elas próprias não admitirão E pode não ocorrer sim 37 I OS ATOS FALHOS plesmente que uma ação seja garantida quando aumenta a atenção que lhe é dada e comprometida quando esta diminui Há um grande número de funções que execu tamos automaticamente às quais dedicamos pouquíssi ma atenção e que no entanto cumprimos com absolu ta segurança Uma pessoa que sai a passeio e mal sabe para onde está indo não deixa de seguir o caminho cor reto até seu destino sem se perder vergehen Em geral pelo menos ela o encontra O pianista experimentado toca as teclas certas sem pensar É claro que uma vez ou outra ele pode errar mas se a execução automática de uma peça aumentasse o perigo do erro precisamente o virtuose cuja execução é automatizada mediante muito exercício é quem estaria mais exposto a esse perigo O que observamos ao contrário é que mui tas ações são tanto mais bemsucedidas quanto menos atenção especial se presta a elas e que o percalço do ato falho pode ocorrer quando se atribui particular impor tância ao desempenho correto ou seja quando segu ramente não há desvio nenhum da atenção necessária Podese dizer então que ele seria efeito da agitação mas não compreendemos por que a agitação não have ria antes de intensificar a atenção voltada para aquilo que é pretendido com tanto interesse Quando em um discurso importante ou negociação oral alguém comete um lapso e diz o contrário do que tencionava dizer di ficilmente se poderá explicar esse ato falho com base na teoria psicofisiológica ou da atenção Além disso nos atos falhos há muitos pequenos fenô menos secundários incompreensíveis que as explicações 2 OS ATOS FALHOS oferecidas até o momento não ajudam a elucidar Quan do por exemplo uma pessoa se esquece temporariamen te de um nome ela se irrita quer lembrálo a todo custo e não consegue desistir desse intento Por que é tão raro que essa pessoa irritada consiga como tanto deseja di rigir sua atenção para o nome que como diz está na ponta da língua e que ela tão prontamente reconhece quando o pronunciam Há também casos em que os atos falhos se multiplicam se ligam uns aos outros ou se su cedem Esquecemonos por exemplo de um encontro marcado em seguida embora decididos a não esquecê lo uma segunda vez verificamos que por equívoco anotamos a hora errada Ou em busca de um atalho para o nome de que nos esquecemos fogenos um segundo nome o qual poderia nos ajudar a encontrar aquele pri meiro então em busca desse segundo nome escapanos um terceiro e assim por diante A mesma coisa é sabi do pode acontecer também com os erros tipográficos os quais podem ser entendidos como atos falhos do ti pógrafo Contase que um obstinado erro dessa nature za se infiltrou certa vez em um jornal socialdemocrata Na reportagem sobre determinada solenidade liase Dentre os presentes encontravase também Sua Alte za o Kornprin No dia seguinte intentouse corrigir o erro O jornal se desculpou explicando Naturalmente a palavra correta é Knorprinz Para esses casos a lín A palavra correta seria Kronprinr príncipe herdeiro ou lite ralmente da Coroa Kron Kornprin significa príncipe do grão e Knorprinr príncipe do nó da madeira 39 I OS ATOS FALHOS gua alemã reserva expressões como o diabinho da im prensa o duende da tipografia e outras as quais no entanto ultrapassam o escopo de uma teoria psicofisio lógica do erro tipográfico Não sei se é do conhecimento dos senhores mas o lapso verbal também pode ser provocado induzido por assim dizer por sugestão Uma pequena história dá testemunho disso Certa vez confiouse a um ator no vato o importante papel de anunciar ao rei em A donre la de Orléans de Schiller que o condestável devolve sua espada Der Connétable schickt sein Schwert 1urück Durante o ensaio porém um dos atores principais a título de brincadeira fez o tímido iniciante trocar vá rias vezes essa fala por outra O cocheiro devolve seu cavalo Der Komfortabel schickt sein Pford rurück Com isso alcançou seu objetivo na apresentação o infeliz novato debutou pronunciando de fato o anúncio modi ficado embora tivesse sido suficientemente advertido a não fazêlo ou talvez por isso mesmo A teoria da falta de atenção não dá conta de explicar todas essas pequenas características dos atos falhos Mas isso não significa que ela esteja errada Talvez lhe falte algo algum complemento que venha a tornála plena mente satisfatória Mas alguns dos atos falhos também podem ser considerados de outro ponto de vista Tomemos aquele que para nossos propósitos é o mais apropriado dos atos falhos o lapso verbal Pode ríamos muito bem escolher aqui o lapso da escrita ou o da leitura O que temos de reconhecer é que até o mo mento só nos perguntamos quando e em que circuns 40 2 OS ATOS FALHOS tâncias cometemos esse lapso tendo obtido resposta so mente para essa pergunta Podemos no entanto voltar nosso interesse para outra questão e nos perguntar por que o lapso ocorre precisamente dessa maneira e não de outra podemos pois levar em consideração o que vai expresso no lapso verbal Os senhores compreen dem que enquanto não respondermos a essa pergunta enquanto não esclarecermos o efeito desse lapso o fe nômeno permanece do ponto de vista psicológico uma coincidência ainda que se encontre para ele explicação fisiológica Ao cometer um lapso verbal eu obviamen te poderia fazêlo de infinitas maneiras seja trocando a palavra certa por uma dentre milhares de outras ou escolhendo um dos inúmeros modos de deformála Haverá pois algo a me impor uma maneira específica de me equivocar num caso determinado entre todas as maneiras possíveis ou será isso obra do acaso aconteci mento arbitrário não havendo talvez resposta sensata para essa pergunta Em 1895 dois autores Meringer e Mayer um fi lólogo e um psiquiatra tentaram abordar por esse lado o problema do lapso verbal Eles coletaram exem plos os quais classificaram de início em categorias me ramente descritivas Embora isso ainda não forneça é claro uma explicação pode nos ajudar a encontrar o caminho que conduz a ela As deformações que os lap sos verbais provocam no discurso pretendido foram por eles diferenciadas em permutas antecipações do som reverberações mesclas contaminações e substitui ções Vou expor aos senhores exemplos desses grupos I OS ATOS FALHOS principais estabelecidos por aqueles dois autores Ocor re um caso de permuta quando alguém diz a Milo de VA d VA d Ml enus em vez e a enus e 1 o permuta na or dem das palavras A antecipação de um som acontece quando em vez de Es war mir auf der Brust so schwer dizemos Es war mir auf der Schwest auf der Brust so schwer A reverberação é típica do malogrado brinde em alemão Ich fordere Sie auf aufdas Wohl unseres Chefi aufzustossen Essas três formas assumidas pelo lapso verbal não são tão frequentes Muito mais numerosos julgarão os senhores aqueles casos em que o lapso nasce de uma junção ou mescla como por exemplo quando na rua um cavalheiro se dirige a uma dama nos seguin tes termos Wenn Sie gestatten mein Friiulein mochte ich Sie geme hegleitdigen Na palavra mesclada figura claramente além de hegleiten acompanhar o verbo heleidigen ofender Digase de passagem o jovem ra paz não terá obtido grande sucesso com a dama Como exemplo de substituição Meringer e Mayer citam entre Es war mir auf der Brust so schwersignifica literalmente Pesou me pesavame tanto no peito Na antecipação apontada por Freud misturamse os fonemas do adjetivo schwer pesado e do substantivo Brust peito Em seguida o exemplo parte da frase Ich fordere Sie auj auf das Wohl unseres Chefi ru stossen que signi fica Convido os senhores a brindar stossen à saúde de nosso chefe Contudo o verbo utilizado aufrustossen significa arro tar No mesmo parágrafo Wenn Sie gestatten mein Friiulein mochte ich Sie gerne begleiten significaria Se me permite senho rita eu gostaria muito de acompanhála Por fim Ich gebe die Priiparate in den Briejlcasten é Eu deposito o preparado na caixa do correio Briefkasten em vez de na incubadora Brutkasten 42 2 OS ATOS FALHOS outras a formulação Ich gebe die Praparate in den Brief kasten em vez de in den Brutkasten A tentativa de explicação em que os dois autores ba seiam sua coleção de exemplos é bastante insuficiente Eles acreditam que os sons e as sílabas de uma palavra possuem valências diferentes e que a inervação do ele mento de maior valência pode perturbar o de valência menor Essa afirmação assentase evidentemente nas antecipações e reverberações sonoras as quais em si nem sequer acontecem com tanta frequência nos de mais produtos do lapso verbal esses sons preferenciais se é que eles existem nem sequer vêm ao caso Afinal os lapsos mais corriqueiros ocorrem quando em vez de uma palavra dizemos outra muito semelhante e essa semelhança basta a muitos como explicação para o lapso Um catedrático por exemplo ao assumir sua cátedra diz Ich bin nicht geneigt em vez de geeignet die Verdienste meines sehr geschiitten Vorgangers U wür digen Outro catedrático diz Beim weiblichen Genitale hat man trot vieler Versuchungen Pardon Versuche No caso da genitália feminina apesar de muitas tenta ções perdão tentativas Mas o tipo de lapso mais comum e aquele que mais chama a atenção é o que afirma justamente o contrário do pretendido É natural que aqui já estejamos distan Ich hin nicht geeignet die Verdienste meines sehr geschiitzten Vorgiin gers zu würdigen significa Não sou a pessoa adequada para louvar os méritos de meu valoroso antecessor A troca do verbo para ge neigt muda o sentido para Não estou inclinado a louvar 43 I OS ATOS FALHOS tes das relações entre os sons e dos efeitos provocados pela semelhança entre palavras em substituição a eles podemos invocar o fato de que opostos guardam forte parentesco conceitual um com o outro e se apresentam bastante próximos do ponto de vista da associação psico lógica Há exemplos históricos desse tipo de ocorrência Certa feita um presidente de nossa Câmara dos Depu tados abriu uma sessão da seguinte maneira Senhores deputados constato um número suficiente de membros na casa e declaro portanto encerrada a sessão De atuação tão sedutora quanto a da relação por oposição revelase também a de outras associações co muns as quais em certas circunstâncias podem aflorar de forma bastante inconveniente Contase por exem plo que em cerimônia por ocasião do matrimônio de uma filha de H Helmholtz com um filho do conheci do inventor e grande industrial W Siemens o famoso fisiologista Du BoisReymond ficou encarregado do discurso solene E concluiu seu brinde certamente bri lhante com as seguintes palavras Viva pois a nova empresa Siemens e Halske Esse naturalmente era o nome da velha empresa A combinação dos dois nomes decerto era tão conhecida dos berlinenses quanto Riedel e Beutel é dos vienenses Temos pois de acrescer a influência das associações de palavras àquelas exercidas pelas relações entre os sons e pela semelhança entre vocábulos Isso porém não basta Em uma série de casos não se consegue ex Riedel e Beutel era uma conhecida loja de roupas de Viena 44 2 OS ATOS FALHOS plicar o lapso observado sem antes levar em conside ração o que foi dito na frase anterior ou mesmo aquilo que foi apenas pensado De novo portanto um caso de reverberação como aquele destacado por Meringer só que a uma distância maior Devo confessar que de modo geral pareceme que agora estamos mais longe do que nunca da compreensão do lapso verbal Todavia espero não estar enganado ao afirmar que ao longo dessa investigação recéminiciada ganha mos todos uma nova impressão dos exemplos de lapso verbal impressão esta na qual valeria a pena nos de termos De início examinamos as condições em que o lapso acontece depois as influências que determinam o tipo de deformação operada por ele mas do produto em si do lapso verbal independentemente de sua origem ainda nem sequer tratamos Se nos decidimos a fazêlo precisamos encontrar enfim a coragem para dizer em alguns desses exemplos também aquilo que resulta do lapso verbal possui um sentido O que significa possui um sentido Pois bem isso quer dizer que o próprio produto do lapso talvez tenha o direito de ser considera do um ato psíquico pleno munido de objetivo próprio devendo assim ser compreendido como uma manifes tação dotada de conteúdo e significado Até o momento falamos sempre em atos falhos mas o que parece agora é que o ato falho pode por vezes constituir um ato abso lutamente normal uma ação que apenas se pôs no lugar de outra esperada ou pretendida Em alguns casos esse sentido próprio de que se reveste o ato falho parece de fato palpável e inconfun 45 I OS ATOS FALHOS dível Quando em suas palavras iniciais o presidente da Câmara dos Deputados encerra a sessão em vez de abrila tendemos a com base em nosso conhecimento da situação em que o lapso se verificou considerar significativo seu ato falho Ele não espera nada de proveitoso da sessão e ficaria feliz se pudesse encerrála de imediato Evidenciar esse sentido isto é o significado desse lapso verbal é coisa que não nos proporciona nenhuma dificuldade Ou quando uma dama em aparente sinal de aprovação pergunta a outra Diesen reizenden neuen Hut haben Sie sich wohl selbst aufgesetzt aí não há ciência neste mundo capaz de evitar que desse lapso verbal depredemos a manifestação de que o referido chapéu é uma Patzerei Outro exemplo encontrase no seguinte relato de uma senhora sabidamente enérgica Meu marido perguntou ao doutor que dieta seguir Mas o doutor respondeu que ele não precisa de dieta nenhuma que pode comer e beber o que eu quiser Aqui por outro lado o lapso é expressão inconfundível de um plano coerente Senhoras e senhores se verificarmos que não apenas alguns poucos e sim um número maior de lapsos verbais e atos falhos possui um sentido então será inevitável que esse sentido dos atos falhos de que ainda não falamos se torne para nós o mais interessante des 2 OS ATOS FALHOS locando legitimamente para segundo plano todas as demais considerações Se assim for poderemos deixar de lado todos os fatores fisiológicos e psicofisiológicos e nos dedicar à investigação puramente psicológica do sentido isto é do significado da intenção contida no ato falho Não deixaremos pois de examinar material mais amplo resultante de nossas observações tendo em vista essa expectativa Antes porém de nos dedicarmos a esse propósito eu gostaria de convidálos a seguir comigo uma outra pista Já aconteceu várias vezes de um escritor se servir de um lapso verbal ou de algum outro ato falho como instrumento de expressão literária Esse fato por si só há de constituir prova de que o literato entende o ato falho o lapso verbal por exemplo como portador de um sentido considerandose que afinal ele o pro duz deliberadamente O que ocorre não é que o escritor ou poeta se equivoque por acaso ao escrever e depois mantenha esse erro como um lapso cometido por sua personagem Por intermédio desse lapso ele quer nos dar a entender alguma coisa e podemos então verificar do que se trata se ele deseja sugerir que a personagem em questão está distraída cansada ou à beira de uma en xaqueca Não vamos é claro superestimar o lapso ver bal empregado pelo escritor como portador de sentido Na vida real esse lapso poderia perfeitamente não ter sentido nenhum constituir um acaso psíquico ou apenas em casos muito raros revelarse pleno de significado o escritor terseia aí reservado o direito de intelectualizá lo de dotálo de sentido apenas para utilizálo a favor 47 I OS ATOS FALHOS de seus próprios desígnios Não seria contudo de ad mirar se tivéssemos mais a aprender sobre o lapso verbal com o poeta do que com o filólogo ou o psiquiatra Um exemplo desse lapso encontrase em Wallenstein Piccolomini ato I cena 5 Na cena anterior Max Piccolomini toma o partido do duque com a máxima veemência louvando as bênçãos da paz que lhe é reve lada durante a viagem em que ele acompanha a filha de Wallenstein até o campo Com isso deixa absolutamen te perplexos seu pai e o enviado da corte Questenberg A cena 5 prossegue da seguinte maneira QUESTENBERG ó ai de nós Assim é então Amigo deixamolo ir assim Delirante em vez de prontamente chamálo De volta para que possamos logo abrirlhe Os olhos OTÁVIO retornando de profunda reflexão Os meus ele agora os abriu E vejo mais do que me alegraria ver QUESTENBERG 0 que há amigo OTÁVIO Maldita viagem QUESTENBERG Por quê O que há Wallenstein trilogia teatral do poeta dramaturgo ensaísta e historiador Friedrich Schiller 175918o 2 OS ATOS FALHOS OTÁVIO Vem Preciso Seguir de imediato a desafortunada pista Ver com meus próprios olhos vem quer leválo QUESTENBERG Mas o que há Para onde OTÁVIO apressado Até ela QUESTENBERG Até OTÁVIO corrigindose Até o duque Vamos Otávio pretendia dizer até ele zu ihm até o du que mas comete um lapso e por intermédio das pala vras até ela zu ihr revela a nós pelo menos ter identificado muito bem a influência que faz o jovem herói de guerra louvar a paz Exemplo ainda mais impressionante descobriu O Rank em Shakespeare Está em O mercador de Veneza na famosa cena em que cabe ao feliz amante escolher entre três cofrinhos O melhor que posso fazer talvez seja ler para os senhores a breve passagem de Rank Um lapso verbal de fina motivação literária e em prego tecnicamente brilhante que tal como aquele apontado por Freud em Wallenstein mostra que os escritores conhecem o mecanismo e o sentido do ato falho e também pressupõem sua compreensão por parte do público encontrase em O mercador de Vene za de Shakespeare ato m cena 2 Graças a um feliz 49 I OS ATOS FALHOS acaso Pórcia obrigada pela vontade do pai à escolha de um cônjuge por sorteio escapou até o momento de seus pretendentes indesejados Como porém encon trou enfim em Bassânio o candidato pelo qual sente verdadeira afeição ela teme que como os demais ele seja traído pela sorte Também nesse caso ela gosta ria de lhe dizer poderá ele estar certo de seu amor mas o juramento feito impede Pórcia de dizêlo As sim estando ela tomada por esse conflito interior o poeta a faz dizer ao pretendente bemvindo Não te apresses por favor Espera um dia ou dois Antes de arriscar pois se errares na escolha Perderei tua companhia Portanto aguarda um pouco Algo me diz mas não é amor Que não devo te perder Poderia dizerte a escolha certa Mas quebraria um juramento O que jamais farei Poderás perderme Nesse caso lastimarei não ter pecado Não haver perjurado Malditos esses teus olhos Que me dominaram e dividiram Metade de mim é tua a outra metade tua Minha quero di1er mas sendo minha é também tua E assim toda tua Precisamente aquilo que ela desejaria apenas insinuar a ele porque não deveria dizêlo isto é que já an tes da escolha do cofrinho é toda sua e o ama 2 OS ATOS FALHOS isso o poeta dotado de maravilhosa sensibilidade psi cológica embute claramente no lapso e mediante esse recurso artístico logra tranquilizar tanto a insuportá vel incerteza do amante como a tensão do público de natureza semelhante acerca do resultado da escolha Notem ademais com que refinamento Pórcia concilia no final as duas afirmações contidas no lapso como ela anula a contradição existente entre elas mas por fim dá razão ao lapso Mas sendo minha é também tua E assim toda tua Vez por outra já aconteceu também de um pensador de um campo distante da medicina ter revelado em uma observação o sentido de um ato falho antecipandose a nosso esforço para esclarecêlo Todos aqui conhecem o espirituoso satírico Lichtenberg 17421799 sobre quem Goethe disse Onde ele faz um gracejo sempre se esconde um problema Às vezes a brincadeira tam bém traz à luz a solução do problema Em Witzige und satirische Einfolle Pensamentos espirituosos e satíricos 1853 Lichtenberg tem a seguinte frase Ele sempre lia Agamenon em vez de angenommen de tanto que havia lido Homero Eis aí na verdade a teoria completa do lapso de leitura Agamenon ou Agamêmnon é como se sabe um dos protago nistas da Ilíada de Homero angenommen significa suposto I OS ATOS FALHOS Em nosso próximo encontro veremos se podemos acompanhar os escritores em nossa concepção dos atos falhos 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO Senhoras e senhores Na última vez nos ocorreu abordar o ato falho não em relação ao ato intencionado por ele perturbado mas em si tivemos a impressão de que em certos casos os atos falhos parecem revelar sentido próprio e pondera mos que se pudéssemos comprovar mais amplamente que eles são de fato dotados de sentido esse sentido logo se tornaria mais interessante para nós do que o exame das circunstâncias em que o ato falho acontece Ponhamonos novamente de acordo acerca do que entenderemos por sentido de um processo psíquico Esse sentido nada mais é que a intenção a que esse processo serve e a posição dele em uma cadeia psíquica Para boa parte de nossas investigações podemos subs tituir sentido por intenção tendência Quan do acreditamos identificar no ato falho uma intenção deveuse isso a uma aparência ilusória ou a uma exalta ção poética do ato falho cometido Vamos nos ater aos exemplos de lapsos verbais e exa minar uma quantidade maior dessas ocorrências En tão encontraremos categorias inteiras de casos em que a intenção o sentido do lapso é evidente Em especial 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO aqueles em que se diz o contrário do que se pretendia di zer Em seu discurso de abertura da sessão o presidente diz Declaro encerrada a sessão A manifestação é ine quívoca O sentido e intenção de seu lapso é que o presi dente quer encerrar a sessão É o que ele próprio diz poderíamos acrescentar basta que o tomemos ao pé da letra Não levantem a objeção de que isso não é possível de que sabemos afinal que ele não queria encerrar e sim abrir a sessão e de que ele próprio a quem acaba mos de reconhecer como instância máxima pode con firmar que assim o desejava Os senhores se esquecem de que concordamos em antes de mais nada examinar o ato falho em si a relação dele com a intenção que o perturba só deve vir à baila mais tarde Do contrário os senhores estarão incorrendo em um erro de lógica que escamoteia o problema em pauta ou seja estarão beg ging the question como se diz em inglês Em outros casos nos quais o lapso não produz o opos to do que se queria dizer ainda assim pode ele comunicar o contrário do pretendido Por exemplo em Ich bin nicht geneigt die Verdienste meines Vorgiingers zu würdigen Não estou inclinado a louvar os méritos de meu anteces sor geneigt não é o contrário de geeignet mas resulta em uma clara confissão a qual está em franca oposição com a situação em que cabe ao orador se manifestar Citação de uma frase que se repete algumas vezes no ato II de As bodas de Figaro de Mozart e Lorenzo Da Ponte Freud cita a ver são alemã Er sagt es ja selbst o original italiano diz Il destino glielafo 53 I OS ATOS FALHOS Casos há também em que o lapso verbal simples mente acrescenta outro sentido àquele pretendido A manifestação soa aí como uma contração ou redução como uma condensação de várias frases em uma só Quando aquela senhora diz energicamente Ele pode comer e beber o que eu quiser é como se houvesse dito Ele pode comer e beber o que quiser mas ele lá tem querer Quem pode querer sou eu Com fre quência os lapsos verbais resultam em semelhantes re duções Assim é por exemplo quando em seguida a uma exposição sobre a fossa nasal o professor de ana tomia pergunta se todos entenderam o que ele disse e após concordância geral prossegue Eu não acredito porque mesmo numa cidade de um milhão de habitan tes podese contar em um dedo perdão podemse contar nos dedos de uma só mão aqueles que entendem a fossa nasal Também aí a fala abreviada possui um sentido ela afirma que só existe uma pessoa que com preende o assunto A esses grupos de casos em que o próprio ato fa lho revela seu sentido contrapõemse outros em que o lapso verbal não produz nada significativo e que por tanto contrariam vigorosamente nossas expectativas Quando em consequência de um lapso verbal alguém distorce um nome ou combina uma sequência inusual de sons essa ocorrência corriqueira parece já responder negativamente à pergunta sobre se todo ato falho pro duz sentido Contudo de um exame mais aproximado desses exemplos resulta uma fácil compreensão de tais deformações chegandose mesmo a verificar que não é 54 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO tão grande a diferença entre esses casos mais obscuros e os anteriores mais evidentes Perguntado sobre o estado de saúde de seu cavalo um senhor responde a das draut das dauert viel leicht noch einen Monat É isso dru isso dura ainda um mês talvez Indagado sobre o que havia querido dizer de fato ele explica ter pensado que aquela era uma história triste traurig o choque entre dauert e traurig tendo pois produzido a palavra inexistente draut Me ringer e Mayer Outra pessoa ao se queixar de determinados acon tecimentos diz Dann aber sind Tatsachen zum Vorsch weingekommen Perguntada a respeito do que havia dito ela confirma que pretendeu caracterizar os acon tecimentos em questão como Schweinereien porcarias Juntas as palavras Vorschein e Schweinerei deram ori gem à estranha Vorschwein Meringer e Mayer Lembremse também do caso daquele jovem que desejou begleitdigen a dama desconhecida Tomamos a liberdade de decompor a palavra utilizada em duas outras begleiten acompanhar e beleidigen ofender e nos sentimos seguros de nossa interpretação sem demandar confirmação para ela Por esses exemplos os senhores veem agora que também os casos mais obscu ros dos lapsos verbais se deixam explicar pela junção de duas intenções diversas ou seja pela interforência As diferenças entre tais casos resultam apenas do fato de A frase correta seria Dann aber sind Tatsachen Um Vorschein gekommen que significa Mas então certos fatos vieram à luz I OS ATOS FALHOS que às vezes uma intenção substitui a outra por comple to como nos lapsos que afirmam o contrário do preten dido ao passo que outras vezes ela se limita a defor mar ou modificar o que se queria dizer dando origem a construções mistas que em si parecem em maior ou menor grau plenas de sentido Cremos agora ter compreendido o segredo de um grande número de lapsos verbais Se nos ativermos a essa percepção poderemos compreender outros grupos também ainda enigmáticos para nós No caso da de formação de nomes por exemplo não podemos atribuí la sempre e somente à concorrência entre dois nomes parecidos mas diferentes Outra intenção no entanto não é difícil de adivinhar A deformação de um nome é coisa que ocorre também muitas vezes fora dos do mínios dos lapsos verbais ela visa fazer um nome soar mal ou a depreciálo e constitui uma conhecida moda lidade ou vício da injúria ao qual toda pessoa educa da logo aprende a renunciar ainda que não o faça de bom grado porque se permite ainda utilizálo com fre quência sob a forma de chiste embora muito pouco digno Como exemplo gritante e feio dessa deformação de nome basta mencionar que atualmente o nome do presidente da República da França Poincaré foi trans formado em Schweinskarré É natural portanto pres supormos também no lapso verbal a existência de tal Schweinskarré costeleta de porco lembremos que o Império AustroHúngaro estava em guerra com a França na Primeira Grande Guerra de 191418 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO propósito difamatório que prevalece na deformação do nome Explicações semelhantes se nos impõem para certos lapsos da fala de efeito cômico ou absurdo Em Ich fordere Sie auf auf das Wohl unseres Chefi aufcus tossen Convido os senhores a arrotar à saúde de nosso chefe a atmosfera solene é perturbada pela intromissão inesperada de uma palavra que suscita uma imagem de sagradável segundo o modelo de certos xingamentos e imprecações não podemos imaginar outra coisa senão que pretende expressarse aí uma vigorosa tendência contrária à suposta homenagem a qual deseja antes dizer Não creiam que estou falando sério Não dou a mínima para esse sujeito ou coisa parecida O mesmo vale para aqueles lapsos que transformam palavras ino fensivas em expressões inapropriadas e obscenas como apopos em vez de apropos ou Eischeissweihchen em lugar de Eiweissscheihchen Meringer e Mayer Conhecemos em muitas pessoas essa tendência a transformar deliberadamente palavras inofensivas em obscenas pelo prazer que assim obtêm Essa deforma ção é tida como espirituosa e na realidade toda vez que ouvimos alguém dizer coisa semelhante é necessário que em primeiro lugar descubramos se esse alguém o fez de propósito à maneira de um chiste ou se de fato cometeu um lapso verbal Apropos é a forma alemã da expressão francesa à propos a pro pósito apopos é um termo inexistente cunhado a partir de Popo que em português brasileiro corresponde a bumbum Eischeiss weibchen seria algo como mulherzinhacagaovo em vez de Eiweissscheibchen rodela de clara de ovo í7 I OS ATOS FALHOS Com essas considerações teríamos pois soluciona do sem grande esforço o enigma dos atos falhos Eles não são obra do acaso mas atos psíquicos sérios pos suem um sentido e nascem da conjunção ou melhor do confronto de duas intenções diferentes Agora po rém compreendo que os senhores queiram me cobrir de um semnúmero de perguntas e dúvidas que cumpre responder e resolver antes que possamos nos compra zer desse primeiro resultado de nosso trabalho Eu com certeza não quero instigálos a decisões precipitadas Assim submetamos todas as nossas considerações uma a uma a ponderação isenta O que desejariam os senhores me perguntar Se creio que essa explicação é válida para todos os casos de lapso verbal ou apenas para certo número deles Se é lícito estender essa compreensão para todos os mui tos tipos de atos falhos isto é para os lapsos de leitu ra de escrita de memória de extravio etc Que papel cumprem fatores como cansaço nervosismo distração distúrbio da atenção se os atos falhos são de natureza psíquica Além disso notase que das duas tendências neles concorrentes uma é sempre evidente ao passo que a outra nem sempre o é O que fazer então para desvendar esta última e quando julgamos têla desven dado como comprovar que não se trata de mera proba bilidade e sim de uma certeza Terão os senhores ainda outras perguntas Se não as têm prossigo com minhas ponderações Lembro a todos que na verdade os atos falhos em si não nos importam tanto que de seu estu do desejamos apenas aprender algo que seja utilizável 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO na psicanálise Por isso minha pergunta é a seguinte que intenções ou tendências são essas capazes de per turbar as pessoas dessa maneira e que relações guar dam essas tendências perturbadoras com aqueles aos quais elas perturbam Assim nosso trabalho recomeça após a solução do problema Seria essa então a explicação para todos os casos de lapso verbal Inclinome a acreditar que sim sobretu do porque sempre que se examina lapso semelhante a solução encontrada é a mesma Não se pode contudo comprovar que um lapso verbal não possa ocorrer sem a atuação de tal mecanismo Talvez possa para nós não faz diferença do ponto de vista teórico uma vez que permanecem válidas as conclusões que desejamos tirar para esta introdução à psicanálise e assim seria mes mo que apenas uma minoria dos lapsos da fala se sujei tasse a nossa concepção o que decerto não é o caso À pergunta seguinte sobre se podemos estender para os demais tipos de atos falhos o resultado que obtivemos para o lapso verbal desejo responder antecipadamen te que sim Os senhores mesmos se convencerão disso quando nos voltarmos para o exame de lapsos da escrita ou de quando nos equivocamos ao apanhar um objeto etc Contudo por razões técnicas sugiro aos senhores adiar esse trabalho até que tenhamos tratado ainda mais a fundo o próprio lapso verbal Resposta mais detalhada merece a pergunta sobre que importância têm ainda fatores como o distúrbio da circulação o cansaço o nervosismo a distração a teo ria do distúrbio da atenção todos eles ressaltados por 59 I OS ATOS FALHOS outros autores uma vez aceito o mecanismo psíquico do lapso verbal que aqui descrevemos Notem os senho res que não contestamos esses fatores É de resto pouco comum a psicanálise contestar o que outros afirmaram em geral ela apenas acrescenta algo novo ao que foi dito e vez por outra acontece de o novo elemento até então ignorado ser precisamente o essencial A influên cia que disposições fisiológicas ocasionadas por leve malestar distúrbios da circulação estados de esgota mento exercem na ocorrência do lapso verbal deve ser de pronto reconhecida a experiência pessoal e cotidia na poderá convencêlos de que assim é E no entanto quão pouco isso explica Acima de tudo elas não são condições necessárias para a ocorrência do ato falho O lapso verbal é igualmente possível em um estado de saú de perfeito e de pleno bemestar Portanto esses fatores físicos atuam apenas como facilitadores e favorecedores do mecanismo psíquico singular que produz o lapso ver bal Para explicar essa relação certa vez valime de um símile que repito agora porque não saberia substituílo por outro melhor Suponham que tendo me dirigido na escuridão da noite a um local deserto eu seja assaltado por um vagabundo que me leva o relógio e a carteira Em seguida como não vi com nitidez o rosto do ladrão dou queixa na delegacia mais próxima com as seguintes palavras A solidão e a escuridão acabam de me roubar de meus pertences O delegado de polícia pode então me dizer O senhor parece sustentar sem razão uma postura extremamente mecanicista Caracterizemos as sim o ocorrido sob o manto da escuridão e favorecido 6o 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO pela solidão um ladrão desconhecido arrebatoulhe ob jetos de valor No seu caso o fundamental me parece ser que encontremos o ladrão Depois talvez possamos recuperar o que ele lhe roubou Os fatores psicofisiológicos como a agitação a dis tração o distúrbio de atenção contribuem muito pouco para o propósito do esclarecimento São apenas fórmulas vazias biombos atrás dos quais não devemos deixar de olhar A questão é antes o que suscitou a agitação ou um particular desvio da atenção As influências dos sons as semelhanças entre as palavras e as associações habi tuais que elas propiciam devem ser vistas como significa tivas Todas elas facilitam o lapso verbal na medida em que indicam os caminhos que ele poderá trilhar Quan do porém vejo um caminho à minha frente decorre naturalmente daí que vou seguilo Faltame ainda um motivo para que eu me decida a trilhálo e além disso uma força que me leve adiante nesse caminho Assim tanto quanto as disposições físicas as relações entre os sons e entre as palavras são apenas favorecedores do lap so verbal incapazes de lhe prover verdadeira explicação Afinal considerem os senhores na imensa maioria dos casos meu discurso não se deixa perturbar pela cir cunstância de por semelhança fonêmica as palavras que utilizo lembrarem outras ou de estarem elas intimamen te vinculadas a seus antônimos ou ainda de suscitarem associações comuns Poderíamos talvez acompanhar o filósofo Wundt que nos informa que o lapso verbal ocorre quando em decorrência do esgotamento físico as tendências à associação levam a melhor sobre a intenção 6 I OS ATOS FALHOS geral do discurso A afirmação soaria muito bem se não a contrariasse a experiência que atesta que numa série de casos faltam os fatores somáticos que favorecem o lapso verbal e em outra os fatores associativos A pergunta seguinte dos senhores possui para mim interesse particular ou seja de que maneira é possível constatar as duas tendências a interferir uma com a ou tra Os senhores provavelmente não imaginam a impor tância capital que essa questão tem Uma dessas tendên cias a que sofre perturbação é sempre inequívoca não é mesmo A pessoa que comete o ato falho a conhece e admite Motivo para dúvidas e preocupações só nos pode oferecer a outra a tendência perturbadora Pois bem já vimos e os senhores decerto não se esqueceram dis to que em uma série de casos também essa segun da tendência é clara Ela é indicada pelo efeito do lapso quando temos a coragem de reconhecêlo como tal O presidente da Câmara ao dizer o oposto do que pre tendia deixa claro que deseja abrir a sessão mas deixa igualmente claro que gostaria de encerrála Isso é tão evidente que nada resta aí a interpretar Naqueles casos porém em que a tendência perturbadora apenas deforma a original sem manifestarse por completo como chegar à tendência perturbadora a partir da deformação Em uma primeira série de casos isso pode ser feito de maneira simples e segura ou seja da mesma manei ra como constatamos a tendência que sofreu perturba ção Esta nos é comunicada diretamente pelo orador o qual uma vez cometido o lapso restabelece de imediato a fala original pretendida Das draut nein das dauert 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO yielleicht noch einen Monat Isso dru não isso dura ainda um mês talvez Também a tendência deforma clara podemos ouvir dele próprio Perguntamos Por que o senhor disse dru Ele responde Queria di zer que se tratava de uma história triste traurig Da mesma forma no outro caso aquele em que o lapso produziu Vorschwein o orador confirma que de iní cio pretendia dizer Das ist eine Schweinerei Isso é uma porcaria mas se conteve e tomou outra direção Portanto a constatação da tendência perturbadora é aí tão segura e bemsucedida como a daquela que sofreu perturbação Não por acaso menciono aqui exemplos cujas comunicação e resolução não provêm de mim nem de nenhum de meus partidários Em ambos esses ca sos contudo certa intervenção se fez necessária para encontrar a solução Precisouse perguntar ao orador o porquê de seu lapso verbal o que ele saberia dizer sobre o lapso cometido Do contrário ele talvez tivesse deixado para trás o equívoco sem pretender explicálo Perguntado a esse respeito no entanto o orador deu a primeira explicação que lhe veio à mente Notem pois os senhores que essa pequena intervenção e seu sucesso já são uma psicanálise constituem o modelo de toda a investigação psicanalítica que vamos empreender Seria muita desconfiança de minha parte supor que no mesmo momento em que a psicanálise se apresenta diante dos senhores também a resistência a ela se ergue Os senhores não sentem vontade de objetar que a infor mação provinda da pessoa que cometeu o lapso carece de força comprobatória Naturalmente poderiam argu I OS ATOS FALHOS mentar ela procura responder ao pedido de explicação para o lapso razão pela qual vai dizer a primeira coisa que lhe vier à mente se esta lhe parecer uma explicação apropriada Isso contudo não prova que o lapso ocor reu pelo motivo apontado Ele tanto poderá ter ocorrido por esse motivo como por algum outro E ao orador que o cometeu poderia ocorrer outra explicação tão boa ou até mesmo mais adequada que a anterior É notável o pouco respeito que no fundo os senho res demonstram diante de um fato psíquico Suponham que alguém ao empreender uma análise química de determinada substância tenha chegado ao peso de um de seus componentes certa quantidade de miligramas Desse peso encontrado podemse extrair determinadas conclusões Pois bem creem os senhores que a algum químico ocorreria criticar tais conclusões com o argu mento de que a substância isolada poderia também ter outro peso Todos se curvam ao fato de que o peso é aquele mesmo e nenhum outro fato no qual confiantes baseiam ulteriores conclusões Diante porém do fato psíquico da explicação ocorrida ao orador os senhores não o julgam válido creem que outra explicação pode ria ter lhe ocorrido Acalentam assim a ilusão de uma liberdade psíquica à qual não desejam renunciar Nisso lamento estar em total discordância com os senhores Aqui as senhoras e os senhores cessarão de opor resistência mas apenas para retomála em outro pon to Assim prosseguirão Nós compreendemos que é técnica peculiar da psicanálise obter dos próprios ana lisandos a solução para seus problemas Tomemos en tão outro exemplo aquele do orador que exorta todos os presentes a arrotar aufstoßen à saúde do chefe O senhor diz que nesse caso a intenção perturbadora é a do insulto é ela que se opõe à manifestação de respeito Isso contudo é mera interpretação sua baseada em observações exteriores ao lapso verbal Se nesse caso o senhor perguntar àquele que perpetuou o lapso ele não confirmará que seu intuíto era o de insultar Pelo contrário negará com veemência semelhante intenção Diante de negativa tão clara por que o senhor não abandona sua interpretação não comprovada Sim aqui os senhores encontraram um forte argumento Ponhome a imaginar esse orador desconhecido é provável que ele seja um assistente do catedrático homenageado talvez já professor contratado um jo vem diante das melhores oportunidades da vida Quero inspecionálo saber se afinal não sentiu alguma coisa que contrariasse àquela exigência de homenagear o chefe Logo me vejo em maus lençóis Impaciente ele de súbito me ataca Chega o senhor pode me fazer essas perguntas ou vou me irritar Ainda vai acabar com minha carreira com essas suspeitas todas Eu disse arrotar aufstossen em vez de brindar anstoßen porque na mesma frase já tinha dito auf duas vezes É isso que Meringer chama de reverberação e não há mais nada a explicar aí o senhor me entende Basta Ora eis aí uma reação surpreendente uma negativa bastante enérgica Vejo que nada vou conseguir desse jovem mas penso comigo que ele revela um forte interesse pessoal em que seu ato falho não tenha significado nenhum Talvez os senhores I OS ATOS FALHOS também achem que não é certo ele de pronto reagir de forma tão rude a uma investigação meramente teórica mas por fim concluirão que o jovem na realidade há de saber o que pretendeu e o que não pretendeu dizer Pois bem será que sabe Essa talvez seja a pergunta a se fazer Agora os senhores por certo creem me ter nas mãos Então essa é sua técnica ouçoos dizer Quando a pessoa que cometeu o ato falho diz sobre ele alguma coisa que lhe convém o senhor o declara autoridade última e decisiva no assunto É o que ele próprio diz Mas quando o que ele diz não lhe interessa aí de súbi to o senhor afirma que essa declaração não tem valor que não precisamos acreditar nela Assim é na verdade Mas posso apresentar aos se nhores um caso semelhante no qual se procede de ma neira igualmente terrível Quando diante do juiz um acusado confessa seu crime o juiz acredita na confis são se contudo ele nega têlo cometido o juiz não lhe dá crédito Não fosse assim inexistiria a administração da justiça e a despeito de equívocos ocasionais os se nhores hão de concordar com esse sistema Então o senhor é o juiz e aquele que comete um ato falho o acusado a se apresentar à sua frente Um ato falho é portanto um delito Talvez não precisemos recusar nem mesmo essa com paração Mas vejam os senhores a que importantes dife renças chegamos ao nos aprofundar um pouco nos pro blemas aparentemente inofensivos propostos pelos atos falhos São diferenças que por enquanto nem sabemos 66 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO conciliar O que ofereço aos senhores é um compromis so temporário com base no símile do juiz e do acusado os senhores admitem que é indubitável o sentido de um ato falho quando quem o reconhece é o próprio anali sando em compensação eu admito aos senhores não ser possível comprovar diretamente o suposto significado quando o analisando se recusa a nos dar informação ou naturalmente quando ele não está disponível para nos fornecer essa informação Nesse caso como ocorre na administração da justiça dependeremos de indícios os quais poderão tornar uma decisão ora mais ora menos provável Em um tribunal uma condenação baseada em provas indiciárias se dá também por razões práticas Nós de nossa parte não temos essa necessidade nem por isso todavia somos obrigados a renunciar à explo ração de tais indícios Seria um equívoco acreditar que toda ciência se compõe apenas de proposições estrita mente comprovadas bem como seria injusto exigir que assim fosse Tal exigência só faz um espírito que tem ân sia de autoridade que necessita substituir seu catecismo religioso por outro ainda que científico Em seu catecis mo a ciência tem apenas algumas proposições apodícti cas o resto são afirmações que ela elevou a certos graus de probabilidade Contentarse com essas aproximações à certeza e na ausência das comprovações derradeiras ser capaz de dar continuidade ao trabalho construtivo é justamente um sinal do modo de pensamento científico Mas de onde extrair os fundamentos para nossas interpretações os indícios a corroborar nossa compro vação quando a própria declaração do analisando não I OS ATOS FALHOS esclarece o sentido do ato falho De diversas partes Em primeiro lugar da analogia com fenômenos exteriores aos atos falhos como por exemplo quando afirmamos que a deformação de um nome em um lapso verbal pos sui o mesmo significado difamatório de uma deturpação deliberada desse nome Além disso podemos extraílos da situação psíquica em que o ato falho ocorre de nosso conhecimento do caráter da pessoa que o comete e das impressões que afetaram essa pessoa antes de cometêlo às quais o ato falho constitui possivelmente uma reação Em regra procedemos de modo a formular nossa inter pretação do ato falho a partir de princípios gerais uma interpretação que será de início apenas uma conjectu ra uma sugestão de interpretação para a qual a seguir buscamos confirmação no exame da situação psíquica Por vezes precisamos esperar por acontecimentos futu ros anunciados por assim dizer pelo próprio ato falho a fim de obter a confirmação de nossa hipótese Demonstrar isso aos senhores não é tarefa que se torne mais fácil para mim se me atenho ao domínio dos lapsos verbais embora também aí haja bons exem plos O jovem desejoso de begleitdigen uma dama com certeza é tímido a senhora cujo marido pode comer e beber o que ela quiser eu a reputo uma daquelas mu lheres enérgicas a conduzir sua casa com mão de ferro Ou considerem o seguinte caso em uma assembleia geral da Concordia um jovem membro da associa ção profere um veemente discurso oposicionista no curso do qual se dirige aos diretores da instituição como Vorschussmitglieder membros da Vorschuss 68 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO aparentemente uma mistura de Vorstand direção e Ausschuss comitê Podemos supor ter se manifestado nele uma tendência perturbadora contrária a sua opo sição tendência esta apoiada talvez em algo que podia estar relacionado a um Vorschuss adiantamento E de fato descobrimos por nosso informante que o orador sempre necessitado de dinheiro havia acabado de so licitar um empréstimo Como intenção perturbadora manifestase aí com efeito o pensamento Modere sua oposição Essas são também as pessoas encarrega das de conceder o adiantamento Se contudo recorrer ao amplo domínio dos demais atos falhos poderei apresentar aos senhores toda uma rica coleção de evidências desse tipo Quando alguém esquece um nome que lhe é conhe cido ou tem muita dificuldade em guardálo por mais que se esforce é natural supormos que essa pessoa tem alguma coisa contra o portador do nome em questão e por isso não gosta de lembrálo Considerem agora as seguintes revelações sobre situações psíquicas em que tal ato falho ocorreu Um certo senhor Y apaixonouse perdidamente por uma dama que logo a seguir se casou com um senhor X Embora conheça o senhor X há muito tempo tendo com ele inclusive uma relação de negócios o senhor Y vivia esquecendo seu nome Muitas vezes quando que ria escrever ao senhor X precisava perguntar seu nome a outras pessoas1 1 Segundo C G Jung I OS ATOS FALHOS O senhor Y claramente não quer saber coisa nenhu ma de seu feliz rival Melhor é nem lembrar dele Ou uma dama pergunta ao médico sobre uma co nhecida comum mas a chama pelo nome de solteira Do sobrenome adotado após o casamento ela se esque ceu Confessa então ter ficado bastante insatisfeita com aquele casamento e não suportar o marido da amiga 2 Teremos ainda muito a dizer sobre outros aspectos do esquecimento de nomes No momento interessanos sobretudo a situação psíquica verificada quando do es quecimento De modo geral o esquecimento de intenções pode ser referido a uma tendência contrária que não dese ja pôr em prática o propósito em questão Assim pensa não apenas a psicanálise esse é também o entendimento comum a todas as pessoas aquele que todos professam na vida mas negam na teoria O benfeitor que se des culpa com seu protegido por ter se esquecido de atender a um pedido não tem sua justificativa aceita por ele O protegido pensará de imediato Ele pouco se importa Prometeu mas na verdade não quer fazer Em certas circunstâncias portanto também na vida real o esque cimento é malvisto a diferença entre o entendimento popular e o psicanalítico desses atos falhos parece ter sido abolida Imaginem uma dona de casa que recebe uma visita com as palavras Como Você veio hoje Eu me esqueci completamente de ter feito o convite para hoje Ou o jovem que tem de confessar à amada ter 2 Segundo A A Brill 70 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO esquecido de comparecer ao último encontro marcado Por certo ele não vai confessálo e sim inventar de im proviso obstáculos os mais improváveis os quais o te rão impedido de comparecer e mesmo desde então de dar qualquer notícia Em questões militares sabemos que a desculpa do esquecimento de nada adianta nem há de livrar ninguém de punição e só podemos consi derar justificado que assim seja Nesse caso de súbito todos estão de acordo em que certo ato falho é dotado de sentido e concordam também quanto a que sentido ele tem Por que então não são coerentes o bastante para estender esse entendimento aos demais atos falhos reconhecendoo de uma vez por todas Também para isso é evidente há uma resposta Se até mesmo os leigos pouco duvidam do sentido desse esquecimento de uma intenção tão menos sur presos ficarão os senhores ao descobrir que os poetas o empregam com idêntico significado Quem aqui já viu ou leu César e Cleópatra de Bernard Shaw há de se lembrar de que na última cena da peça um César de partida é atormentado pela ideia de que pretendia fazer algo de que agora já não se recorda Por fim revelase o que ele havia esquecido de se despedir de Cleópatra Esse pequeno expediente empregado pelo dramaturgo pretende atribuir ao grande César uma superioridade que ele não possuía nem almejava Fontes históricas di rão aos senhores que César determinou que trouxessem Cleópatra para Roma e que ali ela se encontrava na companhia de seu pequeno Cesário quando César foi assassinado ao que então Cleópatra fugiu da cidade 71 I OS ATOS FALHOS Os casos de esquecimento de uma intenção são em geral tão claros que pouca utilidade possuem para nos so propósito de extrair da situação psíquica indícios que apontem para o sentido de um ato falho Voltemos nossa atenção para uma modalidade de ato falho particular mente rica em significados e inescrutável aqueles ca sos em que perdemos um objeto ou não sabemos onde o guardamos Os senhores por certo não julgarão crí vel que na perda de um objeto uma casualidade que com frequência nos é dolorosa tenhamos nós pró prios participação deliberada Contudo observações como as que seguem existem em profusão Um jovem perde o lápis de que gostava muito Dias antes havia recebido uma carta do cunhado que terminava com as seguintes palavras No momento não tenho vontade nem tempo de apoiar tua leviandade e tua preguiça3 O lápis no entanto tinha sido presente desse mesmo cunhado Sem essa coincidência naturalmente não po deríamos afirmar que na perda do lápis tomou parte a intenção de se livrar do objeto Casos semelhantes são muito comuns Perdemos um objeto depois de nos in dispor com a pessoa que o deu a nós da qual não que remos mais nos lembrar ou então quando deixamos de gostar do objeto em si e passamos a procurar um pretexto para substituílo por outro melhor Com essa mesma predisposição contra o objeto nós o deixamos cair quebramos ou destruímos Podemos considerar coincidência o fato de às vésperas de seu aniversário 3 Segundo B Dattner 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO um escolar perder arruinar ou quebrar seu material como por exemplo sua mochila ou seu relógio Quem já passou muitas vezes pelo embaraço de não conseguir encontrar algo que guardou também não se dispõe a acreditar na intencionalidade desse equívoco Não são nada raros todavia os exemplos em que as cir cunstâncias que acompanham o extravio apontam para uma tendência a querer eliminar o objeto temporária ou permanentemente Um belo exemplo disso seria o episódio que relato em seguida Eis o que me contou um homem jovem Alguns anos atrás meu casamento passou por certos mal entendidos Eu achava minha esposa fria demais e embora reconhecesse de bom grado suas excelentes qualidades vivíamos uma vida conjunta desprovida de ternura Um dia voltando de um passeio ela me deu um livro que tinha comprado porque ele talvez me in teressasse Eu a agradeci por aquele sinal de atenção prometi lêlo guardei o livro e não o encontrava mais Passaramse meses em que vez por outra eu me lem brava do livro desaparecido e tentava em vão encontrá lo Uns seis meses mais tarde minha querida mãe que não morava conosco adoeceu Minha esposa deixou nossa casa para ir cuidar da sogra O estado de minha mãe tornouse sério dando a minha esposa a oportu nidade de mostrarme o que ela tinha de melhor Uma noite volto para casa cheio de admiração e gratidão por minha esposa Vou até minha escrivaninha abro deter minada gaveta sem nenhum propósito particular mas antes como se tomado por uma certeza sonâmbula e lá 73 I OS ATOS FALHOS dentro em cima de tudo o mais encontro o livro guar dado e desaparecido fazia tanto tempo Extinto o motivo também o extravio do objeto en controu seu fim Senhoras e senhores eu poderia multiplicar essa co leção de exemplos até o infinito Mas não é o que preten do fazer aqui De todo modo em meu trabalho Psicopa tologia da Yida cotidiana publicado pela primeira vez em 1901 os senhores encontrarão farta gama de casos para o estudo dos atos falhos 4 Todos esses exemplos produ zem sempre o mesmo resultado tornam provável que atos falhos possuam um sentido e mostram aos senho res como depreender ou confirmar esse sentido a partir das circunstâncias que o acompanham Hoje serei mais conciso porque nos propusemos apenas tirar proveito do estudo desses fenômenos visando a uma preparação para a psicanálise Assim devo ainda me aprofundar em apenas dois grupos de observações o dos atos falhos acumulados e combinados e o da confirmação de nossas interpretações por eventos posteriores Os atos falhos acumulados e combinados constituem por certo o ápice de seu gênero Fosse nossa preocupa ção provar que atos falhos podem ter um sentido basta ria termos nos restringido já de início a essa categoria porque nela o sentido se revela inequívoco até mes mo à percepção embotada e se impõe ao mais crítico dos juízos As manifestações acumuladas demonstram 4 Assim como nas compilações de Maeder em francês A A Brill inglês E Jones inglês e J Starcke holandês entre outras 74 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO uma obstinação que quase nunca sucede no acaso mas combina muito bem com o que é proposital Por fim a alternância das diversas modalidades de ato falho nos mostra o que nele é mais importante e essencial não a forma ou o meio de que se vale e sim a intenção à qual ele próprio serve e que há de ser realizada por cami nhos os mais diversos Quero pois apresentar aos se nhores um caso de esquecimento repetido Ernest Jones relata que certa vez escreveu uma carta e por motivos que ele próprio desconhecia esqueceua durante vá rios dias sobre a escrivaninha Por fim decidiu postá la mas recebeua de volta do Dead letter oflice porque se esquecera de endereçála Então depois de fazêlo levoua à caixa do correio mas dessa vez não tinha se los Foi enfim obrigado a reconhecer para si mesmo sua relutância em enviar aquela carta Em outro caso combinamse o apanhar equivocado de um objeto com seu extravio Uma senhora viaja para Roma na companhia do cunhado um famoso artista O visitante é bastante festejado pelos alemães que moram na cidade e entre outras coisas ganha de presente uma antiga medalha de ouro A senhora se irrita com o fato de o cunhado não saber apreciar devidamente a beleza da peça Substituída pela irmã ela volta para casa e ao desfazer as malas descobre que sem saber como levou consigo a medalha Por carta comunica o fato de ime diato ao cunhado e anuncia que no dia seguinte envia ria de volta para Roma a peça sequestrada No dia se guinte porém o objeto se revela tão bem guardado que lhe é impossível localizálo e despachálo A senhora 75 I OS ATOS FALHOS então se dá conta do significado daquela sua distra ção o desejo de ter a medalha para si 5 Já relatei aos senhores um exemplo da combinação de esquecimento e equívoco como alguém de início se esquece de um encontro marcado e depois para ter certeza de que não tornará a esquecêlo comparece ao encontro em horário diferente do combinado Um caso análogo extraído de sua própria experiência relatou me um amigo dotado de interesses não apenas cientí ficos mas também literários Contoume ele Alguns anos atrás aceitei minha eleição para o comitê de certa associação literária porque imaginei que a sociedade poderia me ajudar a levar ao palco uma peça de minha autoria Ainda que sem grande interesse eu participava regularmente das reuniões que aconteciam toda sexta feira Alguns meses atrás recebi enfim a garantia de que a peça seria encenada no teatro de F e desde então passou a acontecer com frequência de eu me esquecer das reuniões da associação Quando li o que você escreveu sobre essas coisas senti vergonha desse meu esqueci mento e recrimineime pela vileza de agora que não preciso mais daquela gente faltar às reuniões Resolvi pois não esquecer de modo algum o compromisso na sexta seguinte Lembravame a todo momento desse propósito até o momento em que pondoo em prática lá estava eu diante da porta da sala de reunião Para meu espanto ela estava fechada a reunião já tinha aca bado É que eu tinha errado o dia já era sábado 5 Segundo R Reitler 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO Seria muito interessante continuar elencando ob servações desse tipo mas sigo adiante Quero dar aos senhores uma ideia daqueles casos em que nossa inter pretação precisa aguardar confirmação posterior Compreensivelmente a condição principal para es ses casos é nosso desconhecimento da situação psíquica presente ou sua inacessibilidade Então nossa interpre tação tem apenas o valor de uma hipótese à qual nós próprios não desejamos atribuir importância demasiada Mais tarde porém algum acontecimento vem nos mos trar como era justificada aquela nossa interpretação ini cial Certa feita estando eu em visita a recémcasados ouvi da jovem mulher um relato sorridente de um acon tecimento No dia seguinte ao do retorno de viagem ela fora visitar a irmã solteira a fim de como nos velhos tempos irem juntas às compras enquanto o marido cui dava dos negócios De súbito um cavalheiro do outro lado da rua chamoulhe a atenção e ela cutucou a irmã dizendo Olhe lá vai o senhor L Ela havia se esque cido de que fazia algumas semanas aquele senhor era seu marido Estremeci com esse relato mas não ousei tirar dele nenhuma conclusão Só fui me lembrar desse pequeno episódio anos mais tarde depois de aquele ca samento ter tido desfecho dos mais desafortunados A Maeder contanos a história de uma senhora que na véspera de seu casamento esqueceuse de ir experi mentar o vestido de noiva dele se lembrando apenas ao anoitecer para desespero da costureira A esse esqueci mento ele vincula o fato de pouco depois a dama ha ver se separado do marido Conheço uma senhora hoje 77 I OS ATOS FALHOS separada que na administração de seus bens com fre quência assinava documentos com o nome de solteira muitos anos antes de voltar a adotálo Sei de mulheres que em viagem de núpcias perderam a aliança de casa mento e sei também que o curso de seu matrimônio aca bou por emprestar sentido a esse acaso Termino citando ainda outro exemplo gritante mas com melhor desfecho Contase que um famoso químico alemão não se casou porque se esqueceu do horário para o qual a cerimônia estava marcada dirigindose ao laboratório em vez de rumar para a igreja Teve a prudência de limitarse a essa única tentativa e morreu solteiro em idade avançada Talvez tenha ocorrido também aos senhores que nesses exemplos os atos falhos tomam o lugar dos augú rios ou presságios da Antiguidade De fato uma parte daqueles presságios constituíase de nada mais que atos falhos quando por exemplo alguém tropeçava ou caía Outra parte no entanto exibia características de acon tecimentos objetivos não de atos subjetivos Os senho res não acreditariam se eu lhes dissesse como é difícil às vezes no exame de determinado evento decidir se ele pertence a um ou outro grupo Com frequência um ato sabe muito bem se disfarçar de experiência passiva É provável que aqueles de nós que possuem longa experiência da vida admitam para si mesmos que teriam se poupado numerosas decepções e dolorosas surpresas se tivessem tido a coragem e a resolução necessárias para interpretar como presságios como sinais de uma inten ção ainda secreta os pequenos atos falhos em suas rela ções com outras pessoas Em geral não ousamos fazê 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO lo porque isso nos pareceria voltar à superstição pelo rodeio da ciência Além disso nem todos os presságios se verificam e os senhores entenderão com base em nossas teorias que nem todos eles precisam verificarse 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO Senhoras e senhores Que os atos falhos possuem sen tido é algo que podemos estabelecer como resultado de nossos esforços até o momento e tomar como base para o prosseguimento de nossa investigação Enfatize mos mais uma vez que não afirmamos e tampouco necessitamos desta afirmação para nossos fins que todo ato falho é dotado de sentido embora eu conside re isso provável Para nós basta demonstrar a existên cia de tal sentido com relativa frequência nas diferen tes formas que assume o ato falho Nesse aspecto aliás essas diferentes formas de ato falho se comportam de maneira diversa No lapso verbal da escrita etc é pos sível que haja casos de fundo puramente psicológico nas modalidades que se assentam no esquecimento o esquecimento de nomes e intenções o extravio e as sim por diante não posso acreditar nesse fundamen to quanto à perda de objetos é muito provável que em certos casos se possa reconhecêla como não intencio nal De modo geral os equívocos que ocorrem em nos sa vida deixamse explicar apenas em parte por nossos pontos de vista Tenham em mente essa restrição quan 79 I OS ATOS FALHOS do daqui em diante partirmos do princípio de que os atos falhos são atos psíquicos e surgem da interferência mútua de duas intenções Esse é o primeiro resultado da psicanálise Da ocor rência de tais interferências e da possibilidade de elas re dundarem em semelhantes fenômenos disso a psicolo gia até agora não tinha conhecimento Nós expandimos consideravelmente o domínio dos fenômenos psíquicos e conquistamos para o terreno da psicologia manifesta ções que antes não eram de sua alçada Detenhamonos ainda um momento na afirmação de que os atos falhos são atos psíquicos Ela diz mais que nossa outra afirmação a de que eles têm um senti do Não creio ela é antes mais vaga e mais ambígua Tudo aquilo que se pode observar na vida psíquica será ocasionalmente caracterizado como fenômeno psíquico Logo a questão passará a ser se uma manifestação psí quica resulta da influência direta de fatores físicos orgâ nicos materiais caso em que seu estudo não caberá à psicologia ou se ela deriva primeiramente de outros processos psíquicos por trás dos quais tem início em al guma parte a série de influências orgânicas É esse últi mo caso que temos em vista quando caracterizamos um fenômeno como um processo psíquico razão pela qual é mais apropriado formular nossa tese dizendo que o fenô meno em questão é rico em sentidos ou possui um senti do Por sentido entendemos significado intenção ten dência e posicionamento numa série de nexos psíquicos Há uma quantidade de outros fenômenos muito próximos dos atos falhos mas aos quais essa desig 8o 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO nação já não se aplica Nós os chamamos atos casuais ou sintomáticos Também eles exibem caráter de algo imotivado insignificante desimportante e mais cla ramente do que isso de algo supérfluo Diferenciaos dos atos falhos a ausência de uma outra intenção que em conflito com eles os perturbe Por outro lado sem que nenhuma fronteira os delimite esses atos se imis cuem nos gestos e movimentos com os quais contamos para expressar emoções Pertence à categoria dos atos casuais tudo aquilo que como se brincássemos e sem nenhum propósito aparente fazemos com nossas rou pas com partes de nosso corpo com objetos ao nosso alcance assim como a ausência dessas ações e além disso as melodias que cantarolamos para nós mesmos Sustento perante os senhores a afirmação de que to dos esses fenômenos são dotados de sentido e podem ser interpretados da mesma maneira que os atos falhos como pequenos indícios de outros processos psíquicos mais importantes como atos psíquicos de plena vali dade Não pretendo no entanto me deter nessa nova extensão dos domínios abarcados pelos fenômenos psí quicos mas sim retornar aos atos falhos que permitem elaborar com clareza muito maior as indagações que importam à psicanálise Vejamos pois quais as perguntas mais interessan tes que formulamos em relação aos atos falhos e ainda não respondemos Dissemos que eles resultam da in terferência mútua de duas intenções diversas das quais uma é a que sofreu perturbação ao passo que a outra é a perturbadora As intenções que sofreram perturba 8r I OS ATOS FALHOS ção não ensejam novas perguntas mas das intenções perturbadoras queremos saber em primeiro lugar que intenções são essas capazes de perturbar outras e em segundo como elas se relacionam com as intenções por elas perturbadas Permitamme ainda uma vez tomar o lapso verbal como representante de todo o gênero e responder à se gunda pergunta antes de me dedicar à primeira No lapso verbal a intenção perturbadora pode guar dar uma relação conteudística com aquela que sofreu perturbação Nesse caso ela contém uma contradição uma retificação ou um complemento a esta última Mais interessante e obscuro porém é o caso em que a inten ção perturbadora nada tem a ver do ponto de vista do conteúdo com aquela que sofreu perturbação Comprovações da primeira relação nós podemos encontrálas sem esforço nos exemplos que já conhecemos e em outros semelhantes a eles Em quase todos os casos em que o lapso verbal expressa o contrário do pretendi do a intenção perturbadora revelase o oposto daquela que sofreu perturbação e o ato falho é a representação do conflito entre duas inclinações incompatíveis Declaro a sessão aberta mas preferiria já têla encerrado é o sen tido do lapso do presidente da Câmara dos Deputados Um jornal político acusado de corrupção defendese em um artigo que deveria culminar nas seguintes palavras Nossos leitores testemunharão em nosso favor que sem pre defendemos da maneira menos egoísta in uneigen nütigster Weise o bem de todos Contudo o redator encarregado da defesa escreve da maneira mais egoísta 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO in eigennütrigster Weise Isso significa que ele pensou consigo Preciso escrever assim mas penso de outra maneira Um deputado ao exigir que a verdade seja dita rückhaltlos sem reservas ao imperador certamente escu ta uma voz interior que assustada com a ousadia comete um lapso e transforma rückhaltlos em rückgratlos covar demente sem espinha dorsal 6 Naqueles exemplos já conhecidos dos senhores que dão a impressão de uma contração ou redução o que temos são retificações acréscimos ou prolongamentos mediante os quais uma segunda tendência se impõe ao lado da primeira Sim coisas foram reveladas Es sind da Dinge rum Vorschein gekommen mas melhor é dizê lo de uma vez indecências Schweinereien foram re veladas daí a frase Es sind Dinge rum Vorschwein gekommen Ou as pessoas capazes de compreender o as sunto se podem contar nos dedos de uma só mão mas não na verdade uma única pessoa é capaz de compreendêlo daí contar em um dedo Ou meu marido pode comer e beber o que quiser mas o senhor sabe eu não tolero que ele queira alguma coisa daí a construção Ele pode comer e beber o que eu quiser Em todos esses casos o lapso verbal decorre do próprio conteúdo da intenção que sofreu perturbação ou se liga a ele O outro tipo de relação entre as intenções que inter ferem uma na outra causa estranheza Quando a inten ção perturbadora nada tem a ver com o conteúdo da quela que sofreu perturbação de onde vem ela afinal e 6 No Parlamento alemão em novembro de 1908 I OS ATOS FALHOS a que se deve o fato de se manifestar como perturbação exatamente ali A observação e somente ela pode aqui fornecer uma resposta permite identificar que a perturbação advém de um pensamento que a pessoa em questão entretinha pouco antes do fato e que então repercute dessa maneira independentemente de já ter ou não encontrado expressão no discurso Na realidade essa perturbação deve ser caracterizada portanto como reverberação mas não necessariamente como uma re verberação de palavras já ditas Também aqui está pre sente um nexo associativo entre aquilo que perturba e aquilo que é perturbado mas não se trata de um nexo dado pelo conteúdo e sim de um nexo artificial muitas vezes produzido por caminhos bastante forçados Ouçam um exemplo simples que eu próprio obser vei Em nosso belo maciço das Dolomitas certa vez en contrei duas senhoras vienenses vestidas como turistas Acompanheias um pouco e discutíamos os prazeres mas também os incômodos daquela vida de turistas Uma das senhoras admitiu que aquele modo de passar o dia tinha lá seus desconfortos É verdade disse ela que não é muito agradável caminhar o dia inteiro sob o sol e ficar com a blusa e a camiseta encharcadas Ao dizêlo ela precisou em certo ponto superar uma pe quena hesitação Depois prosseguiu Quando porém a gente chega nach Hose e pode se trocar Não ana lisamos esse lapso verbal mas penso que os senhores poderão facilmente compreendêlo A intenção daquela senhora era proceder a uma enumeração mais comple ta e dizer blusa camiseta e Hose calcinha Todavia 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO por uma questão de decoro ela não mencionara Hose Na próxima sentença então de conteúdo independente da anterior a palavra não dita surge como distorção de nach Hause em casa de sonoridade semelhante Podemos agora nos voltar para a pergunta princi pal cuja resposta viemos adiando já há um bom tem po que intenções são essas que de maneira inabitual se manifestam como perturbações de outras Bem elas decerto são muito variadas mas nosso desejo é encon trar aí um denominador comum Se examinarmos toda uma série de exemplos com esse fim eles logo se divi dirão em três grupos distintos Ao primeiro grupo per tencem aqueles casos em que a tendência perturbadora é conhecida de quem fala e além disso foi sentida por ele anteriormente ao lapso verbal Em Vorschwein o fa lante não apenas reconhece que seu veredicto sobre os acontecimentos em questão era o de que se tratava de Schweinereien como também que era sua intenção da qual recuou depois expressálo em palavras O segundo grupo se constitui dos casos em que o falante reconhece igualmente como sua a tendência perturba dora mas não sabe que pouco antes do lapso ela se encontrava ativa nele Aceita portanto nossa inter pretação de seu lapso mas em certa medida admirase ainda dela Exemplos desse comportamento podem ser encontrados mais facilmente talvez em outros atos fa lhos que não o lapso verbal No terceiro grupo a in terpretação dada à intenção perturbadora é rechaçada com veemência pelo falante que não apenas contesta abrigála em si anteriormente ao lapso como afirma I OS ATOS FALHOS também serlhe ela inteiramente estranha Lembrem se do exemplo de aufstossen e da negativa descortês que obtive do falante ao desvendar a intenção perturbadora Sabem os senhores que ainda não logramos chegar a um acordo quanto à compreensão desses casos Eu não atribuiria importância nenhuma à negativa do propo nente daquele brinde e sustentaria imperturbavelmente a minha interpretação Já os senhores penso eu sob o efeito da resistência do orador ponderam se não seria melhor renunciar à interpretação de tais atos falhos e dálos como atos puramente fisiológicos no sentido préanalítico da formulação Posso imaginar o que os assusta Minha interpretação encerra a hipótese de que é possível ao falante manifestar intenções que ele pró prio desconhece mas que posso depreender de indícios Diante de uma hipótese tão nova e de consequências tão graves os senhores se detêm Mas estabeleçamos uma coisa se os senhores desejam aplicar de forma coeren te essa concepção dos atos falhos reforçada por tantos exemplos é necessário que se decidam em favor dessa estranha hipótese Se não puderem fazêlo terão de re nunciar à compreensão ainda nem bem adquirida Detenhamonos um pouco mais naquilo que une os três grupos naquilo que é comum aos três meca nismos dos lapsos verbais Por sorte esse elemento comum é inequívoco Nos dois primeiros grupos a tendência perturbadora é reconhecida pelo falante no primeiro acrescentase a isso o fato de essa tendência haver se anunciado pouco antes do lapso Contudo nos dois casos ela foi rechaçada O folante se decidiu a não 86 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO transformála em palavras e é então que ocorre o lapso ver bal ou seja é então que a tendência rechaçada se converte contra a vontade do falante em manifestação na medida em que modifica a expressão da intenção por ele aprovada e se mistura a ela ou toma diretamente seu lugar Esse é portanto o mecanismo do lapso verbal A partir desse meu ponto de vista posso perfeita mente conciliar o que ocorre no terceiro grupo com o mecanismo acima descrito Preciso apenas supor que os três grupos se distinguem pelo alcance maior ou menor com que é rechaçada a intenção No primeiro grupo a intenção está presente e se faz notar anteriormente à ma nifestação do falante somente depois disso ela experi menta o repúdio do qual se ressarce no lapso verbal No segundo grupo esse repúdio exibe alcance maior antes ainda da manifestação a intenção já não se faz notar É curioso que nem isso a impeça de ser parte da causa do lapso Esse comportamento porém torna mais fácil ex plicar o que se passa no terceiro grupo A esse respeito ouso externar a suposição de que no ato falho pode também se manifestar uma tendência rechaçada há mais tempo talvez há muito tempo uma tendência que não é notada e que por isso mesmo pode ser negada pelo falante Mas ponham de lado o problema do terceiro grupo ainda assim a partir da observação dos outros casos os senhores decerto poderão tirar a conclusão de que a repressão da intenção de di1er algo é condição impres cindível para que o lapso verbal ocorra Podemos agora afirmar que fizemos novos pro gressos na compreensão dos atos falhos Sabemos não I OS ATOS FALHOS apenas que eles são atos psíquicos nos quais se podem reconhecer sentido e intenção e não apenas que decor rem da interferência mútua de duas intenções distintas mas também que em sua execução uma dessas inten ções precisa experimentar certo rechaço para que me diante a perturbação da outra possa manifestarse Ela mesma precisa ter sofrido perturbação antes que possa se transformar em intenção perturbadora Com isso naturalmente ainda não adquirimos uma compreensão completa dos fenômenos a que chamamos atos falhos Percebemos de imediato que novas perguntas surgem e de modo geral pressentimos que tanto mais motivos para novas perguntas aparecerão quanto mais avançar mos em nossa compreensão Podemos perguntar por exemplo por que tudo isso não se dá de forma mais simples Se há a intenção de rechaçar certa tendência em vez de executála esse rechaço deveria ser capaz de fazer com que nada daquela tendência ganhasse expres são ou então ele poderia falhar permitindo à tendência rechaçada expressão plena Os atos falhos no entanto são soluções de compromisso para cada uma das duas intenções eles significam a um só tempo sucesso e in sucesso parciais a intenção ameaçada não é reprimida por completo nem logra a não ser em casos isolados se impor incólume Podemos supor que condições especiais haveriam de ser necessárias para o surgimento dessas soluções de interferência ou compromisso mas não logramos nem sequer imaginar de que tipo elas po deriam ser Tampouco acredito que um maior aprofun damento no estudo dos atos falhos seria capaz de nos 88 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO revelar essas relações desconhecidas Antes disso será preciso ainda investigar outras áreas obscuras da vida psíquica somente as analogias com que aí depararemos poderão nos encorajar a propor aquelas hipóteses neces sárias a uma explicação mais abrangente dos atos falhos E tem mais Também o trabalho com pequenos indí cios como o que costumamos realizar continuamente nessa área contém seus próprios perigos Há uma en fermidade psíquica a paranoia combinatória na qual a utilização desses pequenos indícios desconhece limites e naturalmente não é meu desejo postular que as con clusões construídas sobre esse fundamento são todas corretas De tais perigos só pode nos oferecer proteção a ampla base de nossas observações a repetição de im pressões semelhantes colhidas nas mais diversas áreas da vida psíquica Abandonaremos aqui portanto a análise dos atos falhos Mas quero solicitar uma coisa aos senhores guardem na memória como modelo a maneira como abordamos esses fenômenos Desse exemplo os senho res podem depreender quais as intenções de nossa psi cologia Não queremos apenas descrever e classificar os fenômenos mas compreendêlos como sinais de um jogo de forças na psique como manifestação de ten dências dotadas de metas que trabalham em conso nância ou dissonância umas com as outras Esforçamo nos em obter uma concepção dinâmica dos fenômenos psíquicos Nessa nossa concepção os fenômenos per cebidos devem ficar em segundo plano perante tendên cias apenas supostas I OS ATOS FALHOS Não vamos portanto seguir nos aprofundando nos atos falhos mas podemos ainda realizar uma incursão por esse vasto domínio na qual reencontraremos coi sas conhecidas e descobriremos algumas novidades Deixemonos guiar aí pela subdivisão nos três grupos já propostos anteriormente os lapsos verbais com suas formas aparentadas que são os lapsos da escrita da lei tura da audição e da memória este último com suas subdivisões de acordo com o objeto esquecido no mes palavras estrangeiras intenções impressões os lapsos que cometemos ao apanhar guardar ou perder objetos Os equívocos na medida em que nos interes sam vinculamse em parte ao esquecimento e em parte aos lapsos que ocorrem ao apanharmos objetos Acerca do lapso verbal embora já o tenhamos trata do em detalhes temos ainda alguma coisa a acrescentar Ligamse a ele fenômenos afetivos menores que são de algum interesse Ninguém admite de bom grado têlo cometido além disso com frequência não ouvimos nossos próprios lapsos mas jamais deixamos de ouvir aqueles cometidos por outra pessoa Em certo sentido o lapso verbal é também contagioso não é fácil falar sobre ele sem também incorrer num lapso Suas formas mais insignificantes aquelas que nada têm de importan te a revelar sobre processos psíquicos ocultos deixam entrever com facilidade o que as motivou Quando por exemplo em decorrência de uma perturbação que aí se manifesta por um motivo qualquer uma pessoa pro nuncia como curta uma vogal longa ela estenderá al guma vogal curta subsequente cometendo assim novo 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO lapso verbal para compensar o anterior O mesmo acon tece quando ela pronuncia um ditongo de forma incor reta e negligente isto é um eu ou oi como ei o que fará a seguir será tentar reparar o erro e transformar em eu ou oi o próximo ei Papel decisivo parece desempenhar aí a consideração pelo interlocutor que não deve acre ditar que quem fala é desleixado no trato com a língua materna A segunda distorção compensadora tem jus tamente por propósito chamar a atenção do interlocutor para a primeira assegurandolhe assim que ela tam pouco escapou àquele que fala Os casos mais frequen tes simples e insignificantes de lapsos verbais consistem em contrações de palavras e antecipações sonoras que se manifestam em partes inconspícuas do discurso Em uma oração mais longa por exemplo o lapso verbal pode se dar pela antecipação da última palavra que se tencionava dizer Isso causa a impressão de certa im paciência para terminar a oração e de modo geral dá testemunho de alguma resistência a enunciar a oração ou mesmo o discurso em si Deparamos assim com casos limítrofes nos quais se confundem as diferenças entre a concepção psicanalítica do lapso verbal e o en tendimento que tem dele a fisiologia comum Nesses ca sos supomos a existência de uma tendência a perturbar aquela que é a intenção do discurso essa tendência no entanto anuncia apenas sua presença e não o que ela própria pretende A perturbação que ela suscita segue Os exemplos são da fonética alemã em que os ditongos eu e oi têm a mesma pronúncia ói e ei é pronunciado ai I OS ATOS FALHOS então certas influências sonoras e a atração exercida por associações podendo ser compreendida como algo que desvia a atenção daquela que era a intenção original da fala Contudo nem essa perturbação da atenção nem a propensão associativa agora em ação estão na essên cia do processo Esta permanece sendo a indicação da existência de uma intenção perturbadora do propósito do discurso mas dessa vez sua natureza não pode ser depreendida dos efeitos por ela produzidos ao contrário do que acontece em todos os casos mais pronunciados do lapso verbal O lapso de escrita de que passo a tratar agora assemelhase em tal medida ao verbal que dele não nos cabe esperar obter novas perspectivas Mas talvez ele tenha ainda uma pequena contribuição a dar Os pe quenos equívocos tão comuns que cometemos ao es crever as contrações as antecipações de palavras so bretudo as últimas de uma oração apontam também eles para uma relutância geral em escrever e para uma impaciência desejosa de terminar logo a frase efeitos mais pronunciados do lapso da escrita permitem identi ficar a natureza e a intenção da tendência perturbadora Quando encontramos um lapso desse tipo numa car ta normalmente o que sabemos é que nem tudo esta va em ordem com quem a redigiu o que no entanto se passava com essa pessoa nem sempre conseguimos estabelecer O lapso de escrita é com frequência tão pouco percebido por quem o cometeu como o verbal O que chama a atenção é o seguinte existem pessoas que têm por hábito reler toda carta que escrevem antes 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO de enviála outros não têm esse costume mas quando excepcionalmente o fazem sempre têm a oportunidade de encontrar e corrigir algum lapso evidente Como se explica isso É como se essas pessoas soubessem que cometeram um lapso ao escrever a carta Devemos real mente acreditar nisso Ao significado prático do lapso de escrita vinculase um problema interessante Os senhores talvez se lem brem do caso de um assassino H hábil na obtenção de culturas de agentes patogênicos altamente perigosos que conseguia de institutos científicos fazendose pas sar por bacteriologista e depois as utilizava para des sa maneira bastante moderna livrarse de pessoas que lhe eram próximas Pois esse mesmo homem certa vez se queixou por escrito à direção de um desses institu tos da ineficácia das culturas que lhe haviam sido en viadas mas cometeu um lapso ao fazêlo em lugar de em minhas experiências com camundongos Miiuse ou porquinhosdaíndia Meerschweinchen liase cla ramente em minhas experiências com seres humanos Menschen O lapso chamou a atenção dos médicos do instituto tanto quanto sei porém eles não tiraram daí nenhuma conclusão O que pensam os senhores Não deveriam ter os médicos tomado esse lapso da es crita como uma confissão e dado início assim a uma investigação mediante a qual teriam interrompido a tempo a obra do assassino Nesse caso o desconheci mento de nossa concepção dos atos falhos não foi causa de uma negligência de importante significado prático Bem creio que um tal lapso por certo termeia pare 93 I OS ATOS FALHOS ciclo deveras suspeito mas uma objeção de peso impe de seu emprego como confissão A questão não é tão simples assim O lapso da escrita com certeza constitui um indício mas em si ele não teria bastado para pôr em marcha uma investigação É certo que ele revela es tar o homem imbuído do pensamento de infectar seres humanos mas não é possível determinar se esse pen samento possui o valor de um claro propósito maléfico ou o de uma fantasia irrelevante na prática É até pos sível que aquele que comete semelhante lapso apresente a melhor das justificativas subjetivas para negar tal fan tasia e repudiála como algo totalmente estranho a sua pessoa Quando mais adiante abordarmos a diferen ça entre as realidades psíquica e material os senhores terão oportunidade de compreender ainda melhor tais possibilidades De novo tratase aqui de um caso em que um ato falho adquire posteriormente um significa do inesperado No lapso de leitura encontramos uma situação psí quica que claramente difere daquela verificada nos lap sos da fala e da escrita Nele uma das duas tendências concorrentes é substituída por um estímulo sensorial e se mostra talvez por isso mesmo menos resistente Aquilo que lemos não é produto de nossa própria vida psíquica como é o que tencionamos escrever A maio ria dos casos de lapsos de leitura consiste portanto em uma substituição Substituise a palavra a ser lida por outra sem que isso implique necessariamente uma re lação de conteúdo entre o texto e o resultado do lap so que em geral se assenta em alguma semelhança de 94 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO palavras O exemplo de Lichtenberg é o melhor desse grupo Agamemnon em vez de angenommen A fim de saber qual a tendência perturbadora aquela que provo cou o lapso de leitura podese aqui pôr de lado o texto que foi lido equivocadamente e dar início à investigação analítica com o auxílio de duas perguntas que ideia é a mais próxima do efeito produzido pelo lapso e em que situação ele ocorreu Por vezes apenas o conhecimen to desta última já basta para o esclarecimento do lapso como por exemplo quando alguém premido por cer tas necessidades perambula por uma cidade que lhe é desconhecida e em uma grande placa situada à altura de um primeiro andar lê a palavra Klosetthaus toale te Restalhe ainda apenas o tempo necessário para se admirar de a placa ter sido afixada em local tão alto antes que ele se aperceba de que a rigor ela diz Kor setthaus casa de espartilhos Em outros casos justa mente esse lapso de leitura que independe do conteúdo do texto demanda análise mais minuciosa à qual não se pode proceder sem experiência prévia na técnica psi canalítica e sem confiança nela Na maioria dos casos porém o esclarecimento de um lapso de leitura é tarefa mais fácil A palavra substituta como no exemplo de Agamenon logo revela o pensamento que desencadeou a perturbação Nestes tempos de guerra por exemplo onde quer que deparemos com palavras semelhantes é bastante comum lermos em seu lugar nomes de cidades comandantes e expressões militares que ressoam a todo momento ao nosso redor Aquilo que nos interessa e preocupa toma o lugar do que é desconhecido e ainda 95 I OS ATOS FALHOS desinteressante As imagens residuais dos pensamentos turvam toda nova percepção Tampouco faltam aos casos de lapso de leitura aque les de outro tipo em que o próprio texto lido desperta a tendência perturbadora mediante a qual então ele é em geral transformado em seu oposto Tendo lido algo indesejado a pessoa se convence por meio da análise de que o responsável pela alteração do que foi lido é um desejo intenso de rejeitálo Nos casos mais frequentes mencionados primeira mente faltam dois fatores aos quais atribuímos papel importante no mecanismo dos atos falhos o conflito entre duas tendências e o rechaço de uma delas que se ressarce disso mediante o efeito do ato falho Não se trata de dizer que no lapso de leitura encontramos algo que contrarie esses fatores mas a premência do pensa mento que conduz ao lapso é bastante mais notória que o rechaço que esse conteúdo possa ter sofrido anterior mente Esses dois fatores aliás são os que se nos apre sentam mais palpáveis nas diferentes situações em que ocorre o ato falho caracterizado pelo esquecimento O esquecimento de uma intenção tem explicação evi dente sua interpretação já dissemos não é contestada nem sequer pelos leigos A tendência que perturba a realização da intenção é sempre uma intenção contrária um não querer acerca do qual só nos resta saber por que não se expressa de outra maneira ou de modo menos velado A presença contudo dessa vontade contrária é indubitável Por vezes é possível adivinhar algo dos motivos que a obrigam a se ocultar mas às escondidas e 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO por intermédio do ato falho ela sempre alcança seu pro pósito ao passo que se externasse sua franca oposição com certeza seria rechaçada Quando entre intenção e execução imiscuise uma alteração importante da situa ção psíquica em consequência da qual já não caberia a realização daquela intenção o esquecimento desta foge ao âmbito do ato falho Nesse caso não nos admiramos mas antes compreendemos que teria sido supérfluo lem brar a intenção que foi temporária ou permanentemente apagada O esquecimento de uma intenção só pode ser chamado de ato falho quando não podemos acreditar que ela foi interrompida dessa forma De modo geral os casos de esquecimento de intenção são tão uniformes e transparentes que por isso mesmo não possuem interesse para nossa investigação Há dois pontos no entanto nos quais o estudo desse ato falho nos ensina algo de novo Dissemos que o esquecimento ou seja a não realização de uma intenção aponta para uma vontade contrária que lhe é hostil E assim é de fato mas de acordo com o que revelam nossas investigações essa vontade contrária pode ser de duas naturezas distintas ela pode ser direta ou indireta O significado desta últi ma modalidade se deixa explicar melhor por intermédio de um ou dois exemplos Quando diante de um terceiro um benfeitor se esquece de dizer uma palavra em favor de seu protegido isso pode se dar na verdade porque o referido benfeitor não está tão interessado em seu prote gido e portanto não sente grande vontade de interceder por ele De todo modo assim interpretará o protegido o esquecimento de seu benfeitor A questão contudo pode 97 I OS ATOS FALHOS ser mais complicada A vontade contrária à realização da intenção por parte do benfeitor pode ter outra origem e outro objeto Não é necessário que ela esteja relacionada a seu protegido ela pode antes estar voltada contra a pessoa junto à qual ele deveria interceder Os senhores veem portanto as dúvidas que também aqui se con trapõem à aplicação prática de nossas interpretações A despeito da interpretação correta do esquecimento há o risco de que o protegido nutra desconfiança demasiada e acabe por cometer grave injustiça contra seu benfeitor Outro exemplo é o de alguém que se esquece de um en contro ao qual havia prometido e pretendia comparecer A explicação habitual para tanto será a aversão pura e simples ao encontro com a pessoa em questão A análise todavia poderá comprovar que a tendência perturbadora não está relacionada à pessoa em si e sim ao local onde o encontro foi marcado se em razão de alguma lembrança dolorosa a ele vinculada a pessoa deseja evitálo Ou se alguém se esquece de postar uma carta a tendência contrária à postagem pode é certo assentar em seu con teúdo mas não se pode excluir a possibilidade de que a carta em si seja inofensiva tendo sucumbido àquela ten dência contrária apenas porque algo nela lembra outra carta escrita no passado a qual por sua vez oferece à vontade contrária um alvo direto de ataque Podese di zer então que a vontade contrária transferiuse da carta anterior em relação à qual ela se justificava para a atual com a qual ela nada tem a ver Veem pois os senhores que é necessário exercer moderação e cautela no emprego de nossas justificadas interpretações coisas 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO que se equivalem do ponto de vista psicológico podem na prática possuir significados diversos Fenômenos como esses decerto lhes parecerão bas tante incomuns Talvez os senhores tendam a supor nes sa vontade contrária indireta um processo que já se pode caracterizar como patológico Posso lhes garantir no entanto que ele também ocorre no âmbito da norma e da saúde De resto não me entendam mal De ma neira nenhuma desejo eu próprio admitir a não confia bilidade de nossas interpretações analíticas A referida pluralidade de significados presente no esquecimento de uma intenção persiste apenas enquanto não proce demos a uma análise do caso e o interpretamos apenas com base em nossos pressupostos gerais Uma vez em preendida a análise da pessoa em questão sempre des cobrimos com suficiente certeza se o esquecimento se deu por uma vontade contrária direta ou se decorreu de algum outro motivo Trato agora do segundo ponto que tem algo a nos ensinar Quando em uma grande quantidade de ca sos encontramos confirmação de que o esquecimen to de uma intenção remonta a uma vontade contrária criamos coragem para estender essa explicação a uma série de outros casos médicos que a pessoa analisada não confirma e sim nega a vontade contrária por nós desvendada Tomem como exemplo disso aqueles casos frequentes em que uma pessoa se esquece de devol ver livros emprestados ou de pagar contas ou dívidas contraídas Chegamos mesmo a acusála de pretender ficar com os livros ou de não querer pagar a dívida ao 99 I OS ATOS FALHOS passo que ela embora negue essa intenção não logra encontrar outra explicação para seu comportamento Prosseguimos então dizendo que ela possui sim a in tenção apenas não sabe disso e que nos basta o fato de a intenção se haver denunciado por meio do esqueci mento Todavia a pessoa em questão pode repetir que simplesmente se esqueceu Os senhores percebem aí uma situação idêntica àquela em que já nos vimos antes Se desejamos levar adiante de forma coerente nossas interpretações dos atos falhos que demonstramos ser tão múltiplas e justificadas é inevitável que avancemos rumo à suposição de que o ser humano abriga tendên cias capazes de entrar em ação sem que ele saiba da existência delas Ao admitilo contudo estaremos em contradição com todas as concepções predominantes tanto na vida como na psicologia O esquecimento de nomes próprios e de nomes estran geiros assim como o de palavras estrangeiras também se deixa remontar a uma intenção contrária a qual di reta ou indiretamente se volta contra o nome em pauta Já apresentei aos senhores vários exemplos de tal rejei ção direta A causação indireta no entanto é bastan te comum nesse caso e sua constatação demanda em geral análise cuidadosa Assim por exemplo nestes tempos de guerra que nos obrigaram a abrir mão de tantas de nossas simpatias de antes também a capacida de de lembrar nomes próprios foi bastante prejudicada em consequência das mais singulares associações Há pouco tempo aconteceume de eu não conseguir repro duzir o nome da inofensiva cidade morávia de Bisenz IOO da análise resultou que a culpa disso não era nenhuma hostilidade direta e sim a lembrança sonora do nome do Palazzo Bisenzì em Orvieto onde tantas vezes me hospedei de bom grado Como motivação para essa tendência contrária à lembrança de um nome apresentase aqui um princípio que mais adiante vai nos revelar toda a sua grandiosa importância como causa de sintomas neuróticos a aversão da memória a se lembrar de coisas vinculadas a sentimentos de desprazer sentimentos estes que a lembrança poderia reavivar Essa intenção de evitar o desprazer provocado pela memória ou por outros atos psíquicos essa fuga psíquica do desprazer nós podemos identificála como motivação última e eficaz não apenas do esquecimento de nomes mas também de muitos outros atos falsos como por exemplo as omissões e os equívocos Contudo o esquecimento de nomes parece particularmente favorecido por fatores psicofisiológicos razão pela qual ele se verifica também em casos nos quais não se consegue confirmar a interferência de um elemento de desprazer Mediante investigação analítica da pessoa que tende a esquecer nomes os senhores poderão constatar que os nomes não lhe fogem apenas porque ela própria não gosta de seus portadores ou porque lembram fatos desagradáveis mas também porque para ela o nome esquecido pertence a outro rol de associações com o qual guarda relações mais íntimas O nome é pois como que retido nesse outro rol e o acesso a ele é negado às demais associações momentaneamente ativadas Se os senhores se lembram dos artifícios da I OS ATOS FALHOS técnica mnemônica poderão constatar com alguma estranheza que as mesmas conexões estabelecidas deli beradamente para proteger um nome do esquecimento fazem também com que ele seja esquecido O exemplo mais óbvio disso são aqueles nomes próprios que como é compreensível possuem valores psíquicos bastante di ferentes para pessoas diferentes Tomem como exemplo um nome como Teodoro Para alguns dos senhores ele não possui nenhum significado especial para outros será o nome do pai de um irmão amigo ou o próprio nome A experiência analítica mostrará que no primei ro caso não há risco de esquecimento o portador do nome é um estranho no segundo caso as pessoas ten derão sempre a negar a um estranho o nome que parece reservado a alguém de sua íntima relação Suponham agora que a esse entrave associativo possa vir a se juntar a ação do princípio do desprazer e além disso um me canismo indireto e os senhores poderão então ter uma ideia correta da complexidade de que se reveste a causa do esquecimento temporário de um nome Uma análise apropriada no entanto descortinará por completo aos senhores todas essas complicações O esquecimento de impressões e experiências vividas mostra de modo ainda mais nítido e exclusivo que o esquecimento de nomes a atuação dessa tendência a afastar da memória o que é desagradável Naturalmen te esse tipo de esquecimento não pertence em toda a sua abrangência à categoria dos atos falhos ele só será um ato falho na medida em que avaliado com base em nossa experiência habitual resultar conspícuo ou in 102 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO justificado ou seja quando o esquecimento tiver por objeto por exemplo impressões demasiado recentes ou importantes ou então constitua uma ausência capaz de produzir uma lacuna em uma lembrança de resto com pleta Como e por que somos de modo geral capazes de nos esquecer inclusive de experiências que por cer to nos deixaram impressão profunda como aquelas da primeira infância esse é outro problema em que a de fesa contra impulsos desprazerosos embora desempe nhe algum papel nem de longe basta como explicação Que impressões desagradáveis tendem a ser esquecidas é fato que não se pode negar Psicólogos diversos já o apontaram e o grande Darwin ficou tão impressiona do com isso que adotou como regra de ouro registrar com especial cuidado observações que pareciam desfa voráveis a sua teoria porque estava convencido de que justamente essas não queriam se fixar em sua memória Quem ouve falar pela primeira vez nesse princípio da defesa contra o desprazer por meio do esquecimen to inclinase a objetar que em sua experiência preci samente o penoso é difícil de esquecer na medida em que contra a vontade da pessoa ele sempre volta para atormentála como acontece por exemplo com a lem brança de insultos e humilhações Também esse fato é correto mas a objeção não se aplica É importante que se comece logo a levar em consideração que a vida psíquica é praça e campo de batalha para tendências opostas ou expresso em termos não dinâmicos ela se compõe de contradições e pares de oposições Compro var a presença de determinada tendência não significa IOJ I OS ATOS FALHOS excluir outra oposta a ela há lugar suficiente para am bas Tudo depende de como essas oposições se posicio nam umas em relação às outras que efeitos decorrem de uma e de outra A perda e o extravio de objetos são fenômenos de par ticular interesse em razão de sua multiplicidade de signi ficados isto é da grande variedade de tendências a que esses atos falhos podem estar a serviço Comum a todos os casos é o desejo de perder o objeto diversos porém são a razão e o propósito Perdemos uma coisa quando ela se danificou quando temos a intenção de substituí la por outra melhor quando deixamos de gostar dela quando proveio de alguém com quem nossas relações se deterioraram ou quando foi adquirida em circunstân cias que não desejamos mais recordar Esquecer alguma coisa em algum lugar danificála ou quebrála podem também servir a esse mesmo propósito Na esfera da vida social a experiência mostraria que filhos indeseja dos ou ilegítimos são muito mais frágeis do que aqueles concebidos legitimamente Esse resultado não é produ zido pela técnica grosseira das chamadas fazedoras de anjos alguma negligência no cuidado com a criança é mais do que suficiente para alcançálo Com a preser vação das coisas pode suceder o mesmo que ocorre no cuidado com as crianças Tradução literal de Engelmacherinnen mas em alemão a palavra designa as mulheres que intencionalmente descuram das crianças bastardas que são pagas para cuidar a fim de embolsar o dinheiro e não apenas as abortadeiras como em português 104 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO A perda de objetos pode ocorrer também sem que o valor do objeto em si tenha diminuído em nada Isso é o que acontece quando se tem a intenção de sacrifi car uma coisa ao destino com o propósito de evitar uma perda que se teme A análise nos diz que semelhantes esconjurações do destino ainda são bastante comuns en tre nós Por isso nossa perda é com frequência sacrifí cio voluntário Da mesma forma essa perda pode tam bém servir a um propósito desafiador ou autopunitivo Em resumo é impossível abarcar as motivações mais remotas que atuam nessa nossa tendência a nos livrar mos de um objeto por intermédio da perda A ação errada assim como outros equívocos é com frequência empregada como um meio de realização de desejos que não devemos nos conceder A intenção mascarase de acaso feliz Assim é por exemplo quan do como sucedeu a um de nossos amigos alguém cla ramente a contragosto precisa tomar o trem para visitar um local fora da cidade e ao fazer a necessária baldea ção embarca erradamente num trem que o conduz de volta à cidade Ou quando em viagem desejosos de nos deter um pouco mais numa estação intermediária mas impossibilitados de fazêlo em virtude de certas obrigações ignoramos ou perdemos determinada cone xão o que acaba por obrigarnos à desejada interrupção da viagem Ou ainda como aconteceu a um paciente ao qual eu proibira de telefonar para sua amada mas que por engano perdido em pensamentos solici tou o número errado ao telefonar para mim e se viu de súbito ao telefone com a amada Um belo exemplo de 105 I OS ATOS FALHOS ação equivocada de importante consequência prática também nos traz o seguinte relato de um engenheiro a explicar a origem de um dano material Há algum tempo no laboratório da faculdade tra balhei com vários colegas em uma série de complicados experimentos de elasticidade um trabalho que havía mos assumido de livre e espontânea vontade mas que começou a demandar mais tempo do que esperávamos Um dia estava eu a caminho do laboratório com meu colega F que comentou como lhe desagradava perder tanto tempo justamente naquele dia no qual tinha tan tas outras coisas para fazer em casa Eu só pude concor dar com sua queixa e em alusão a um acontecimento da semana anterior complementei meio brincando To mara que a máquina pife de novo aí interrompemos o trabalho e vamos embora mais cedo De acordo com nossa divisão do trabalho o colega F ficou encarrega do de comandar a válvula de escape da prensa ou seja de mediante a abertura cuidadosa da válvula fazer escoar lentamente o fluido hidráulico desde o acumu lador até o cilindro da prensa hidráulica Ao condutor do experimento postado junto do manômetro cabia avisar quando a pressão correta fosse atingida ocasião em que alto e bom som ele diria Pare Dado esse comando porém F pôsse a girar a válvula com toda a força para a esquerda todas as válvulas sem ex ceção fecham para a direita Com isso a pressão total do acumulador passou de repente a agir sobre a prensa algo que os canos não estavam preparados para supor tar de modo que uma junção estourou de imediato 106 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO um defeito da máquina absolutamente inofensivo mas que nos obrigou a dar o trabalho por encerrado e ir para casa Característico desse episódio é no entanto que um tempo depois quando conversávamos sobre o ocor rido meu amigo F não se lembrava de jeito nenhum do comentário que eu havia feito do qual eu me lembrava com absoluta segurança Podese depreender desse relato que nem sempre é o inofensivo acaso que torna as mãos dos serviçais inimigos tão perigosos dos pertences que seus patrões mantêm em casa Mas os senhores podem também se perguntar se o acaso é sempre o responsável mesmo quando provocamos danos a nós mesmos e pomos em risco nossa integridade São sugestões cujo valor opor tunamente os senhores talvez possam avaliar à luz da análise de suas próprias observações Caros ouvintes Isso está longe de ser tudo que ha veria a dizer sobre atos falhos Ainda há muito a pes quisar e discutir Mas me dou por satisfeito se com as considerações a esse respeito expostas até o momento provoquei algum abalo nas concepções que os senhores abrigam e suscitei certa disposição para aceitar novas De resto resignome a deixálos diante de um assunto não esclarecido A partir do estudo dos atos falhos não podemos provar todas as nossas teses e tampouco de pendemos única e exclusivamente desse material Para nosso propósito o grande valor dos atos falhos reside no fato de serem eles fenômenos bastante frequentes fa cilmente observáveis em nós mesmos e cuja ocorrência não pressupõe de modo algum que estejamos doentes IIYJ I OS ATOS FALHOS Quero apenas abordar ainda uma das perguntas dos se nhores que permaneceu sem resposta se como vimos em tantos exemplos as pessoas chegam tão próximas da compreensão dos atos falhos se com frequência se comportam como se pudessem desvendar seu sentido como é possível que de modo geral elas os caracteri zem como casuais desprovidos de sentido e importân cia e ademais resistam com tanta veemência ao escla recimento psicanalítico desses mesmos fenômenos Os senhores têm razão Isso de fato salta aos olhos e demanda explicação Contudo em vez de lhes dar essa explicação vou conduzilos pouco a pouco às relações a partir das quais ela haverá de se impor aos senhores sem o meu auxílio 108 SEGUNDA PARTE OS SONHOS 11 OS SONHOS S DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES Senhoras e senhores Certo dia descobriuse que os sintomas que afligem determinados doentes dos ner vos possuem um sentido1 Com base nisso criouse o método de tratamento psicanalítico Nesse tratamento aconteceu de os pacientes revelarem seus sonhos em vez de apenas relatarem seus sintomas Assim nasceu a con jectura de que também esses sonhos têm um sentido Não vamos porém percorrer esse caminho históri co e sim a trilha inversa Vamos demonstrar o sentido dos sonhos como preparação para o estudo das neuro ses Essa inversão se justifica uma vez que o estudo do sonho não é apenas a melhor preparação para o das neu roses o próprio sonho é também um sintoma neurótico e aliás um sintoma que tem para nós a inestimável van tagem de se apresentar em todas as pessoas saudáveis De fato se todas as pessoas fossem saudáveis e apenas sonhassem nós poderíamos extrair de seus sonhos qua se todas as descobertas que a investigação das neuroses nos proporcionou Portanto os sonhos se tornam objeto da investi gação psicanalítica De novo um fenômeno comum e subestimado aparentemente sem nenhum valor prático I JosefBreuer nos anos I88o2 Cf a esse respeito as conferências que proferi nos Estados Unidos em I909 Cinco lições de psicaná lise e Contribuição à lzistória do movimento psicanalítico I 9 I 4 110 5 DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES como os atos falhos com os quais tem em comum o fato de ocorrer em pessoas saudáveis De resto po rém as condições para nosso trabalho são mais desfa voráveis nesse caso Os atos falhos foram apenas negli genciados pela ciência que pouco se preocupou com eles ocuparse deles todavia ao menos não constituía nenhuma vergonha Admitiase que podia haver coisa mais importante mas talvez seu estudo produzisse al gum resultado Ocuparse dos sonhos por outro lado além de pouco prático e supérfluo é verdadeiramente ignominioso seu estudo atrai o ódio ao que não é cien tífico desperta a suspeita de uma tendência pessoal ao misticismo Um médico dedicarse aos sonhos quando mesmo na neuropatologia e na psiquiatria há tanta coisa mais séria a investigar tumores do tamanho de uma maçã a comprimir o órgão responsável pela psique he morragias inflamações crônicas cuja ocorrência permi te demonstrar alterações histológicas com o auxílio do microscópio Não o sonho é demasiado insignificante um objeto indigno de investigação Além disso sua própria natureza desafia todas as exigências da investigação precisa Nem sequer do pró prio objeto se tem segurança quando se trata de estu dar os sonhos Uma ideia delirante por exemplo se nos apresenta com clareza e contornos definidos Eu sou o imperador da China diz em voz alta o doente Mas e no sonho Na maioria dos casos contálo já é impossível Quando alguém relata um sonho tem essa pessoa uma garantia de que o está relatando de forma correta Não estará antes modificandoo ao narrálo inventan 111 11 OS SONHOS do alguma coisa a mais compelido pela imprecisão da lembrança Da maioria dos sonhos nem somos capazes de nos lembrar uma vez que à exceção de pequenos fragmentos esquecemos o que sonhamos Haveremos pois de basear uma psicologia científica ou um método de tratamento de pessoas enfermas na interpretação de semelhante material É lícito que certo exagero nesse juízo desperte em nós suspeição As objeções ao sonho como objeto de pesquisa claramente vão longe demais Já deparamos com o argumento da insignificância ao tratar dos atos falhos Dissemos a nós mesmos então que coisas im portantes também podem se manifestar sob a forma de pequenos indícios No que tange à imprecisão do so nho essa é uma característica como qualquer outra não se pode prescrever o caráter que terão as coisas De resto há também sonhos que são claros e precisos E há outros objetos da investigação psiquiátrica que so frem desse mesmo caráter impreciso como ocorre por exemplo com muitos casos de imagens obsessivas de que se ocuparam respeitados e conceituados psiquia tras Quero lembrar aqui o último caso com que depa rei em minha atividade médica O doente se apresentou com as seguintes palavras Tenho uma sensação que é como se tivesse machucado ou desejado machucar um ser vivo uma criança Não um cachorro talvez Como se o tivesse jogado de uma ponte ou coisa pa recida Podemos remediar a dificuldade da lembrança incerta do sonho estabelecendo que como sonho há de valer precisamente aquilo que o sonhador conta inde II2 S DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES pendentemente do que ele possa ter esquecido ou mo dificado em sua memória E por fim não se pode nem mesmo afirmar que o sonho de modo geral é coisa desimportante Por experiência própria sabemos que o estado de espírito em que despertamos de um sonho pode se estender pelo restante do dia médicos já obser varam casos em que uma doença mental teve um sonho como ponto de partida retendo uma ideia delirante ori ginária desse mesmo sonho falase de personagens his tóricas que extraíram de um sonho o estímulo para fei tos importantes Assim sendo perguntamonos qual a origem do desdém dos círculos científicos pelo sonho Eu acredito que ele é uma reação à tendência a superestimálo verificada em épocas passadas É sabido que a reconstrução do passado não é tarefa fácil mas podemos afirmar com segurança permitamme o gracejo que nossos antepassados há três mil anos ou mais já sonhavam como nós sonhamos Tanto quanto sabemos os antigos em sua totalidade davam grande importância aos sonhos aos quais atribuíam também aplicação prática Extraíam deles sinais referentes ao futuro e neles buscavam augúrios Para os gregos e ou tros povos orientais empreender uma campanha militar sem um intérprete de sonhos pode por vezes ter pare cido tão impossível quanto hoje em dia sem aviões de reconhecimento Ao realizar suas conquistas Alexan dre o Grande levava em seu séquito os mais famosos intérpretes de sonhos A cidade de Tiro outrora ainda situada em uma ilha opôs ao rei resistência tão violenta que ele chegou a pensar em desistir de sitiála Então IIJ 11 OS SONHOS uma noite sonhou com um sátiro que dançava como em triunfo e ao relatar esse sonho a seus intérpretes foi informado de que ele anunciava sua vitória sobre a cidade Ordenou pois o ataque e assim ocupou Tiro Etruscos e romanos valiamse de outros métodos para sondar o futuro mas a interpretação dos sonhos foi cultivada e tida em alta conta ao longo de toda a épo ca helenísticaromana Da literatura que se ocupou do assunto restounos pelo menos a obra principal o livro de Artemidoro de Daldis datado como contemporâneo do imperador Adriano Como foi que a arte da inter pretação dos sonhos entrou em decadência e o próprio sonho caiu em descrédito não sei dizer aos senhores Nisso o Iluminismo não há de ter desempenhado gran de papel uma vez que a obscura Idade Média preservou fielmente coisas muito mais absurdas que a interpre tação dos sonhos dos antigos O fato é que o interes se no sonho degenerou pouco a pouco em superstição firmandose apenas entre os incultos O derradeiro abuso cometido contra a interpretação dos sonhos já em nossos dias busca extrair deles os números predes tinados a serem sorteados na loteria Em contrapartida a ciência exata dos dias atuais ocupouse repetidas ve zes do sonho sempre e apenas porém com o intuito de aplicar a ele suas teorias fisiológicas Para os médicos o sonho naturalmente não era um ato psíquico e sim a manifestação na vida psíquica de estímulos somáti cos Binz em 1878 declarou que o sonho é um pro cesso somático sempre inútil e na maioria dos casos francamente doentio acima do qual a alma do mundo 114 5 DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES e a imortalidade se erguem tão sublimes como o azul do éter sobre uma superfície arenosa recoberta de ervas daninhas no mais profundo dos vales Maury compa ra o sonho aos espasmos desordenados da dança de são Guido em contraposição aos movimentos coordenados do ser humano normal uma antiga comparação faz um paralelo entre o conteúdo do sonho e as notas que pro duziriam os dez dedos de uma pessoa não versada em música deslizando pelas teclas do piano Interpretar significa encontrar um sentido oculto mas não se pode falar nisso se concebemos de tal forma a operação do sonho Examinem os senhores como o descrevem Wundt Jodl e outros filósofos mais recen tes sua descrição se contenta em enumerar as discre pâncias entre a vida onírica e o pensamento em estado de vigília o que fazem com a intenção de diminuir o sonho destacando a desintegração das associações a supressão da crítica a exclusão de todo saber e outros indícios de um desempenho inferior A única contri buição valiosa para o conhecimento dos sonhos prove niente das ciências exatas relacionase à influência que estímulos corporais atuantes durante o sono exercem sobre o conteúdo onírico Temos dois grossos volu mes de um recémfalecido autor norueguês J Mour ly Vold ambos voltados à investigação experimental do sonho traduzidos para o alemão em 1910 e 1912 que se dedicam quase exclusivamente às consequências das mudanças de posição dos membros São louvados como modelos da investigação exata do sonho Podem os senhores imaginar o que a ciência exata diria se des n 11 OS SONHOS cobrisse que pretendemos tentar encontrar o sentido dos sonhos Talvez ela até já o tenha dito Mas não vamos nos deixar intimidar Se os atos falhos puderam ter um sentido também os sonhos podem ter e em muitos e muitos casos os atos falhos possuem um sentido que escapou à investigação exata Adotemos pois o juízo preliminar dos antigos e do povo e sigamos os passos dos velhos intérpretes de sonhos Antes de tudo precisamos nos orientar em nossa ta refa passar em revista o domínio dos sonhos O que é um sonho afinal É difícil dizêlo em uma única fra se Não procuraremos dar definição nenhuma se basta apontar para uma matéria já conhecida de todos De vemos no entanto ressaltar aquilo que é a essência do sonho Onde encontrála A diversidade é gigantesca no interior do quadro que abrange nossa área de estudo diversidade em todas as direções Essencial por certo será aquilo que pudermos apontar como comum a todos os sonhos A primeira coisa que todos os sonhos têm em co mum naturalmente é o fato de dormirmos quando so nhamos Sonhar é evidentemente nossa vida psíquica durante o sono uma vida psíquica que possui certas semelhanças com a do estado de vigília mas que em razão de grandes diferenças dessa também se aparta Esta era já a definição de Aristóteles Talvez sonho e sono guardem relação ainda mais próxima Um sonho pode nos acordar e é comum termos um sonho quando acordamos espontaneamente ou quando somos arran cados do sono Assim o sonho parece ser um estado n6 S DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES intermediário entre o sono e a vigília Isso tudo nos re mete ao sono Mas o que é o sono Temos aí um problema fisiológico ou biológico ain da bastante controvertido Não temos nenhum poder de decisão nessa matéria mas acho que podemos tentar uma caracterização psicológica do sono O sono é um estado em que nada quero saber do mundo exterior pelo qual já não tenho nenhum interesse Tratase de um estado que adentro na medida em que me afasto desse mundo exterior e me fecho a seus estímulos Além disso ador meço também quando estou cansado desse mundo Ao adormecer portanto digo ao mundo exterior Deixe me em paz quero dormir A criança faz o contrário Não quero dormir agora não estou cansado quero ver mais coisas A tendência biológica do sono parece ser pois propiciar repouso sua característica psicológica é a suspensão de interesse pelo mundo Nossa relação com o mundo ao qual viemos tão a contragosto parece implicar que não o suportamos sem interrupção Assim retiramonos temporariamente para aquele estado ante rior a nossa chegada isto é à existência no ventre ma terno No mínimo criamos para nós próprios condições muito semelhantes às de então calor escuridão e ausên cia de estímulos Alguns inclusive se enrolam como um pacote apertado e assumem ao dormir postura corporal parecida com a que tinham no ventre materno É como se o mundo não nos tivesse adultos por inteiro dois terços de nós está nele o outro terço ainda nem nas ceu Desse modo cada despertar pela manhã é como um novo nascimento Acerca desse estado que sucede II7 11 OS SONHOS ao sono costumamos dizer Sintome uma nova pes soa e ao dizêlo é provável que façamos uma ideia bastante equivocada do sentimento geral de um recém nascido que podese supor é de malestar Também acerca do nascimento dizemos Vir à luz Se o sono é isso então o sonho não consta de seu programa parece ao contrário um acréscimo impor tuno Acreditamos também que o sono desprovido de sonhos é o melhor de todos e o único correto No sono não deve haver nenhuma atividade psíquica havendo alguma atividade semelhante isso significa que não lo gramos restabelecer o estado de repouso fetal não con seguimos evitar em sua totalidade os restos de atividade psíquica Esses restos seriam o sonhar Assim sendo parece de fato que o sonho não precisa ter sentido ne nhum No caso dos atos falhos era diferente tratavase de atividades desempenhadas durante a vigília Quando durmo porém e interrompo toda e qualquer ativida de psíquica não logrando reprimir apenas restos dela não há necessidade nenhuma de que esses restos tenham algum sentido Não posso nem sequer fazer uso desse sentido uma vez que o restante de minha vida psíquica encontrase adormecido O que se tem então pode com efeito ser apenas reação espasmódica fenômenos psí quicos decorrentes de estímulos somáticos Os sonhos seriam portanto restos da atividade psíquica da vigília a perturbar o sono e nós poderíamos nos propor a aban donar de imediato tema tão inapropriado à psicanálise Contudo ainda que supérfluo o sonho existe e podemos tentar explicar essa existência a nós mesmos n8 5 DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES Por que a vida psíquica não adormece Provavelmen te porque alguma coisa não lhe dá sossego Estímulos atuam sobre ela que precisa reagir a eles O sonho é portanto o modo como a psique reage aos estímulos que atuam sobre o sono N atamos aqui uma porta de acesso à compreensão do sonho Podemos procurar em diversos sonhos aqueles estímulos desejosos de pertur bar o sono aqueles aos quais o sonho constitui reação Obteríamos assim a primeira característica comum a todos os sonhos Há outro traço comum Sim e ele é inegável mas muito mais difícil de apreender e descrever No sono os processos psíquicos exibem caráter bastante diverso daqueles do estado de vigília No sonho vivese toda sorte de coisas e se acredita nelas quando na verdade o que se vivenda é talvez nada mais que aquele úni co estímulo perturbador O que é vivido o é predomi nantemente por meio de imagens visuais Outros senti mentos podem desempenhar algum papel e até mesmo pensamentos podem aí se imiscuir os demais sentidos podem igualmente participar do vivido mas acima de tudo tratase de imagens Parte da dificuldade de se contar um sonho decorre do fato de termos de traduzir essas imagens em palavras O sonhador nos diz com fre quência Eu poderia desenhar o que sonhei mas não sei como relatálo Na realidade não se trata de uma atividade psíquica reduzida como a do idiota compara da à do gênio tratase sim de algo que é qualitativa mente diverso embora seja difícil dizer em que consiste essa diferença G T Fechner lança a hipótese de que o 11 OS SONHOS palco no qual os sonhos se desenrolam na psique se ria diferente daquele em que se dá a vida imaginativa Vorstellungslehen no estado de vigília É certo que não a compreendemos que não sabemos o que pensar disso mas tal conjectura reproduz de fato a impressão de estra nheza que a maioria dos sonhos nos transmite Também a comparação da atividade onírica com o desempenho de mãos nada musicais é aqui de pouca valia O piano afinal responderá sempre com as mesmas notas ao pas seio do acaso por suas teclas mesmo que essas notas não formem melodias Embora não seja compreendida to memos o cuidado de não perder de vista essa segunda característica comum a todos os sonhos Existem outras Se existem não as encontro vejo apenas diferenças por toda parte e em todos os aspec tos tanto no que se refere à duração aparente dos so nhos quanto no que toca a sua clareza à participação afetiva a sua persistência etc Essa variedade não é pro priamente o que esperaríamos encontrar numa defesa necessária débil e espasmódica ante um estímulo No que se refere à extensão há sonhos que são bem curtos contendo apenas uma imagem ou poucas imagens um único pensamento ou mesmo uma única palavra outros são de uma extraordinária riqueza de conteúdo ence nam romances inteiros e parecem durar muito tempo Existem sonhos que são tão nítidos quanto a experiên cia vivida tão nítidos que já despertos há algum tempo ainda não os reconhecemos como tais outros são in descritivelmente débeis além de sombrios e difusos de fato em um único e mesmo sonho as partes de extrema 120 5 DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES nitidez podem se alternar com aquelas difusas quase impalpáveis Sonhos podem ser perfeitamente sensatos ou ao menos coerentes e mesmo engenhosos de bele za fantástica outros por sua vez são confusos como que idiotas absurdos e com frequência francamente loucos Há sonhos que não nos impressionam nem um pouco e sonhos em que todos os afetos se apresentam uma dor que leva ao choro uma angústia que faz des pertar admiração encanto etc Na maioria das vezes os sonhos são esquecidos assim que despertamos ou então se conservam ao longo do dia de maneira que sua lembrança vai se tornando cada vez mais pálida e in completa até à noite outros sonhos como por exem plo os da infância perduram de tal forma que trinta anos depois permanecem na memória como uma expe riência recémvivida Sonhos podem como indivíduos surgir uma única vez e nunca mais aparecer ou podem se repetir inalterados ou com pequenas variações Em suma essa pouca atividade psíquica noturna dispõe de enorme repertório na verdade ela exibe à noite a mes ma capacidade que a psique demonstra durante o dia e no entanto nunca é a mesma coisa Poderseia tentar explicar toda essa gama variada de sonhos mediante a suposição de que ela corresponde a diversos estados intermediários entre o sono e a vigí lia a diversos estágios do sono incompleto Nesse caso porém paralelamente ao valor ao conteúdo e à nitidez da operação do sonho haveria de crescer também a cada sonho a clara compreensão de que se trata de um sonho uma vez que a psique vai aí se aproximando do I2I 11 OS SONHOS despertar não poderia pois acontecer de bem ao lado de um pedacinho nítido e sensato de sonho vir se po sicionar outro insensato e indistinto seguido de novo trabalho bemfeito Por certo a psique não seria capaz de alterar tão rapidamente a profundidade de seu sono Essa explicação não ajuda portanto a coisa não é tão simples assim Renunciemos por enquanto à busca do sentido do sonho e tentemos em vez disso abrir um caminho para uma melhor compreensão dele a partir daquilo que os sonhos têm em comum Da relação dos sonhos com o sono concluímos que o sonho é reação a um estímulo perturbador do sono Dissemos que esse é ademais o único ponto em que a psicologia experimental exa ta pode nos auxiliar ela nos dá a comprovação de que durante o sono estímulos são introduzidos no sonho Muitas investigações desse tipo já foram realizadas até aquela de Mourly Vold citada anteriormente além dis so é provável que cada um de nós possa confirmar esse resultado com base em uma ou outra observação pes soal Escolhi alguns experimentos mais antigos para co municar aqui Maury fez realizar tais experimentos em sua própria pessoa Enquanto dormia deramlhe água decolônia para cheirar ele sonhou que estava no Cai ro na loja de Giovanni Maria Farina e a isso se segui ram aventuras incríveis Ou beliscaramlhe levemente G M Farina 16851766 piemontês estabelecido em Colônia produziu uma loção que veio a se tornar conhecida como água de Colônia 122 S DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES a nuca e ele sonhou tanto com um curativo que lhe era aplicado como com um médico que o havia tratado na infância Ou ainda pingaramlhe água na testa e de súbito ele estava na Itália suava muito e bebia o vinho branco de Orvieto O que nos chama a atenção nesses sonhos gerados experimentalmente é algo que talvez possamos com preender com ainda maior clareza em outra série de sonhos estimulados Refirome a três sonhos relatados por um observador engenhoso Hildebrandt todos eles reações à campainha de um despertador Então saio a passear numa manhã de primavera e perambulo pelos campos verdejantes até uma aldeia vizinha Nela vejo numerosos habitantes em trajes festivos a caminho da igreja o hinário debaixo do braço Claro É domingo e o serviço religioso está para começar bem de manhãzinha Decido partici par dele mas antes acalorado vou me refrescar no cemitério que circunda a igreja Enquanto leio lápi des diversas ouço o sineiro subir à torre e no alto desta vejo o pequeno sino de aldeia que dará o si nal para o início do serviço Por um bom tempo ele permanece imóvel depois começa a balançar e de repente as badaladas ressoam claras e penetrantes tão claras e penetrantes que põem fim a meu sono O som dos sinos provém no entanto do despertador Uma segunda combinação É dia claro de in verno a neve erguese alta nas ruas Concordei em participar de um passeio de trenó mas tenho de es 123 11 OS SONHOS perar bastante até receber o anúncio de que o trenó está diante da minha porta Seguemse os prepa rativos para o embarque visto a pele apanho o abafo para os pés e por fim estou sentado em meu lugar Mas a partida demora até que as rédeas transmitam o sinal aos cavalos parados Então eles partem o balanço vigoroso dos guizos dá início a sua conhecida música de legiões de janízaros e com tamanha força que de pronto se esgarça a teia de ara nha do sonho De novo tratase de nada mais que o som estridente do despertador E um terceiro exemplo Vejo uma ajudante de cozinha caminhar pelo corredor com uma pilha de pratos rumo à sala de jantar A coluna de porcelana que leva nos braços me parece a ponto de se dese quilibrar Tome cuidado advirto essa pilha toda vai cair no chão Naturalmente não deixo de ouvir em resposta a obrigatória contestação a moça diz que está acostumada com aquilo etc Enquanto isso sigo acompanhando seu progresso com um olhar de preocupação E de fato na soleira da porta ela tro peça a louça frágil despenca espatifase no chão e se estilhaça em centenas de pedaços a seu redor Como porém não tardo em perceber a barulheira sem fim não é de fato um matraquear de louça e sim uma campainha E essa campainha percebo ao acordar é apenas o despertador cumprindo seu dever Esses três são sonhos graciosos têm um sentido não são incoerentes como os sonhos costumam ser Deles 124 5 DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES não temos portanto o que reclamar O que têm em comum é o fato de em cada um a situação culminar em um barulho que ao despertar se reconhece ser o do despertador Vemos aqui pois de que forma um so nho é gerado mas descobrimos outra coisa também O sonho não reconhece o despertador que não figura nele em vez disso substitui por outro o barulho dele interpreta o estímulo que interrompe o sono mas o faz a cada vez de um modo diferente Por que isso Não há resposta para essa pergunta o motivo parece ser arbi trário Compreender o sonho porém demandaria a ca pacidade de apontar o porquê da escolha desse barulho e de nenhum outro na interpretação do estímulo repre sentado pelo despertador De maneira análoga há que se objetar nos experimentos de Maury que se por um lado o estímulo introduzido de fato aparece no sonho por outro não se fica sabendo o porquê da forma que ele assume a qual não parece decorrer de modo algum da natureza do estímulo perturbador do sono Além dis so nas experiências de Maury em geral grande quan tidade de outro tipo de material onírico vem se juntar ao resultado direto do estímulo como por exemplo as aventuras incríveis do sonho da águadecolônia para as quais não se tem nenhuma explicação Considerem os senhores que esses sonhos que nos acordam ainda são os que nos oferecem as melhores oportunidades para a identificação da influência exerci da por estímulos exteriores perturbadores do sono Na maioria dos demais casos será mais difícil fazêlo Não é todo sonho que nos faz acordar e quando pela ma 2 11 OS SONHOS nhã nos lembramos de um sonho que tivemos como fazer para encontrar o estímulo perturbador que talvez tenha atuado durante a noite Certa feita logrei iden tificar a posteriori um tal estímulo sonoro naturalmente apenas em decorrência de circunstâncias especiais Cer ta manhã acordei numa cidade do Tiro com a certeza de haver sonhado que o papa tinha morrido Não sabia como explicar aquele sonho até que minha mulher me perguntou Você ouviu a barulheira terrível dos sinos vinda de todas as igrejas e capelas quando o dia esta va clareando Não eu não tinha ouvido nada meu sono é mais resistente mas graças àquela informação compreendi meu sonho Com que frequência estímulos assim podem levar o adormecido a sonhar sem que depois ele tenha notícia deles Talvez isso ocorra com muita frequência talvez não Se o estímulo já não pode ser comprovado não há como termos convicção dele De todo modo recuamos dessa avaliação dos estímulos exteriores perturbadores do sono a partir do momento em que tomamos conhecimento de que eles só podem explicar um pedacinho do sonho jamais a totalidade da reação onírica Nem por isso precisamos abandonar por completo essa teoria Ademais ela admite um prolongamento Claro está que não faz diferença o que perturba o sono e incentiva a psique a sonhar Se nem sempre se trata de um estímulo sensorial provindo de fora talvez a pertur bação provenha de um estímulo corporal de nossos ór gãos internos É uma suposição óbvia que corresponde também à mais popular das opiniões acerca da origem 126 S DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES dos sonhos Com frequência ouvimos dizer que os so nhos provêm do estômago Infelizmente também nesse caso podemos supor que muitas vezes ocorrerá de um estímulo somático atuante durante a noite não mais poder ser comprovado após o despertar tornandose assim indemonstrável Não ignoremos todavia as muitas experiências pessoais a corroborar a hipótese de que os sonhos derivam de um tal estímulo Em regra é incontestável que a situação de nossos órgãos internos pode influenciar o sonho A relação de tantos conteúdos oníricos com um enchimento da bexiga ou com um es tado de excitação dos órgãos genitais é tão clara que não se pode ignorála A partir desses casos transparentes chegamos a outros em que o conteúdo do sonho per mite no mínimo inferir justificadamente a atuação de estímulos somáticos na medida em que esse conteúdo apresenta algo que se pode compreender como elabora ção representação ou interpretação daqueles estímulos O pesquisador dos sonhos Scherner 1861 defendeu com particular ênfase a tese de que os sonhos derivam de estímulos provenientes de nossos órgãos internos e ilustroua com alguns belos exemplos Assim quan do ele vê num sonho duas fileiras de belos rapazes de cabelos loiros e tez delicada que belicosas e postadas uma defronte da outra partem para o ataque se atra cam tornam a se desvencilhar retornam à postura an terior e depois voltam a se atacar a interpretação das fileiras de rapazes como os dentes fala por si mesma e ela parece encontrar plena comprovação quando após a cena o sonhador extrai da mandíbula um dente com 127 11 OS SONHOS prido Também a interpretação de corredores compri dos estreitos e tortuosos como estímulo proveniente do intestino parece convincente e confirma a formula ção de Scherner segundo a qual o sonho busca acima de tudo representar o órgão emissor do estímulo com objetos semelhantes a ele Assim temos de estar prontos a admitir que no so nho estímulos internos podem desempenhar o mesmo papel que os externos Infelizmente a avaliação deles está sujeita às mesmas objeções Em grande parte dos casos a interpretação que aponta para um estímulo corporal permanece incerta ou indemonstrável Nem todo sonho apenas certo número deles na verdade desperta a suspeita de que estímulos internos pro venientes dos órgãos tiveram participação em seu sur gimento por fim estímulo somático interior e estímulo sensorial exterior revelamse ambos em igual medida incapazes de dizer mais sobre o sonho do que o que corresponde à reação direta ao estímulo em si De onde vem o restante do sonho permanece um mistério Atentemos porém para uma peculiaridade da vida onírica que sobressai do estudo do efeito provocado por tais estímulos O sonho não reproduz simplesmente o estímulo mas o elabora remete a ele o inclui em um contexto e o substitui por outra coisa Esse é um as pecto do trabalho do sonho que há de nos interessar porque talvez nos aproxime da essência dos sonhos Quando alguém faz uma coisa levado por um incentivo a obra realizada não se esgota no incentivo Macheth de Shakespeare por exemplo é peça de ocasião composta 128 para a entronização do rei que pela primeira vez reuniu as coroas dos três reinos Mas esse ensejo histórico dá conta do conteúdo do drama explicanos sua grandeza e seu mistério Talvez os estímulos externos e internos que atuam sobre a pessoa adormecida também sejam apenas incentivadores do sonho de cuja essência no entanto nada revelam A outra característica comum aos sonhos sua peculiaridade psíquica é por um lado de difícil apreensão e por outro não oferece nenhum ponto de apoio que possamos seguir Aquilo que vivemos no sonho nós o fazemos na maioria das vezes de forma visual Os estímulos podem oferecer alguma explicação para isso É na realidade o estímulo que vivenciamos Por que então o vivido se apresenta sob forma visual se apenas em raríssimos casos a estimulação dos olhos é que desencadeia o sonho Ou será possível demonstrar que quando sonhamos com falas é porque durante o sono uma conversa ou algum ruído semelhante penetrou nossos ouvidos Ouso descartar decisivamente essa possibilidade Se o que os sonhos têm em comum não nos permite avançar talvez seja o caso de examinarmos suas diferenças De modo geral eles com frequência são insensatos confusos e absurdos mas há também sonhos sensatos sóbrios e razoáveis Examinemos se os últimos sensatos podem nos dar alguma informação sobre os primeiros Vou relatar aos senhores o sonho sensato mais recente que me contaram o sonho de um rapaz Fui passear na Kärntnertstraße onde encontrei o senhor X com quem caminhei durante algum tempo Depois fui a um res 11 OS SONHOS taurante Duas senhoras e um senhor sentaramse à mi nha mesa De início aquilo me irritou e não quis nem olhar para eles Em seguida porém olhei para aquelas pessoas e descobri que eram muito simpáticas O ra paz acrescenta que na noite anterior havia estado de fato na Karntnerstrasse seu caminho habitual e tinha encontrado ali o senhor X A outra parte do sonho não se constitui de reminiscência direta guarda apenas certa semelhança com algo vivido no passado Outro sonho de características sóbrias é o de uma mulher O marido pergunta a ela Não devíamos mandar afinar o piano Ela responde Não vale a pena Precisamos mandar for rar os martelos também Esse sonho é a reprodução sem grandes modificações de uma conversa que a mulher e o marido haviam tido no dia anterior O que apren demos com esses sonhos sóbrios Nada a não ser que neles têm lugar repetições dos acontecimentos do dia ou alusões a eles Já seria alguma coisa se pudéssemos ge neralizar esse fato para todos os sonhos Não é porém o que acontece uma vez que também ele só se aplica a uma minoria de casos Na maioria dos sonhos não figura alusão nenhuma ao dia anterior e isso tampouco lança alguma luz nos sonhos insensatos e absurdos Tudo que sabemos é que deparamos com nova tarefa Não quere mos saber apenas o que um sonho diz mas quando ele o diz claramente como em nossos exemplos queremos sa ber também por que e para que esse elemento conhecido e recémvivenciado se repete nele Creio que os senhores tanto quanto eu devem estar cansados de continuar com tentativas como as que em IJO 5 DIFICULDADES E PRIMEIRASAPRDXIMAÇÕES preendemos até o momento Vemos pois que dedicar todo o interesse a um problema não basta quando não se conhece um caminho que possa levar à solução Até agora não encontramos esse caminho A psicologia ex perimental nada nos deu a não ser algumas apreciáveis informações sobre o significado dos estímulos como in centivadores dos sonhos Da filosofia só nos cabe mais uma vez esperar a recriminação arrogante pelo pouco valor intelectual de nosso objeto de pesquisa e às ciên cias ocultas não vamos recorrer A história e a opinião popular nos dizem que o sonho é pleno de significado e sentido e que ele olha para o futuro o que é difícil de aceitar e certamente impossível de provar Assim nossos esforços iniciais redundam em completa perplexidade Inesperadamente uma indicação nos chega de um lado para o qual até agora não havíamos olhado do uso da língua que nada tem de casual pois é o preci pitado de velhos conhecimentos embora não possa ser explorado sem cautela De fato a língua alemã conhece algo que chama de Tagtriiumen sonhar durante o dia Sonhos diurnos são fantasias produtos da fantasia fe nômenos bastante generalizados que se podem obser var tanto em pessoas saudáveis como nas enfermas e que podemos facilmente estudar em nós mesmos O que mais chama a atenção nessas construções fantasiosas é o fato de terem recebido o nome de sonhos diurnos pois não têm nenhuma das duas características comuns aos sonhos Já o nome contradiz sua relação com o sono e quanto à segunda característica comum não se vivenda nem se alucina coisa nenhuma nesses sonhos o que IJI 11 OS SONHOS se faz em vez disso é imaginar alguma coisa Sabemos que se trata de uma fantasia que não estamos vendo coisa alguma e sim pensando Os sonhos diurnos apa recem na prépuberdade com frequência já no final da infância e se estendem até a idade madura quando são ou abandonados ou mantidos até idade bastante avança da O conteúdo dessas fantasias é comandado por uma motivação bem transparente são cenas e acontecimen tos em que encontram satisfação as necessidades egoís tas de ambição de poder ou os desejos eróticos das pessoas Nos rapazes predominam em geral as fanta sias ligadas à ambição ao passo que nas mulheres que jogaram toda a sua ambição no sucesso amoroso pre valecem as fantasias eróticas Com muita frequência no entanto a carência erótica mostrase o pano de fun do também nos homens os seus êxitos e atos heroicos devem servir para conquistar a admiração e as graças das mulheres No mais os sonhos diurnos são bastan te variados e experimentam destinos os mais diversos Em pouco tempo cada um deles é abandonado e subs tituído por um novo ou é mantido desenvolvendose numa longa história e adaptandose às circunstâncias da vida Eles evoluem com o tempo por assim dizer e dele recebem uma marca temporal que atesta a influên cia exercida pela nova situação São ademais a maté ria bruta da produção poética porque é de seus sonhos diurnos que mediante certas reformulações disfarces e omissões o escritor inventa as situações que utiliza em seus contos romances peças de teatro O herói dos sonhos diurnos é todavia sempre o próprio sonhador 132 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA OA INTERPRETAÇÃO seja diretamente ou por intermédio de uma identifica ção transparente com outra pessoa Talvez os sonhos diurnos tenham esse nome gra ças à relação igual que mantêm com a realidade a fim de sugerir que seu conteúdo é tão pouco real como o dos sonhos Mas talvez o nome compartilhado se deva a uma característica psíquica desconhecida do sonho uma daquelas que procuramos É também possível que nos equivoquemos ao pretender utilizar essa igualdade de designação como algo significativo Só mais adiante isso poderá ser esclarecido S PRESSUPOSTOS E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO Senhoras e senhores Necessitamos portanto de um novo caminho de um método a fim de podermos se guir adiante na investigação dos sonhos Façolhes agora uma sugestão natural Admitamos como pressu posto de tudo o que segue que o sonho não é um fonô meno somático e sim psíquico O que isso significa os senhores sabem mas o que nos dá o direito de fazer essa suposição Nada assim como nada nos impede de fazêla A questão é se o sonho é um fenômeno somá tico ele não nos diz respeito ele pode nos interessar apenas sob a premissa de que é um fenômeno psíquico Trabalhemos pois com a hipótese de que assim é de fato e vejamos o que acontece O resultado de nosso 133 11 OS SONHOS trabalho decidirá se nos cabe sustentar essa hipótese e se portanto é lícito defendêla como um resultado O que pretendemos alcançar realmente o que visa nosso trabalho Queremos aquilo que toda ciência almeja ou seja compreender os fenômenos estabelecer um nexo entre eles e em última instância se possível expandir nosso poder sobre tais fenômenos Portanto prosseguimos o trabalho com a suposição de que o sonho é um fenômeno psíquico Nesse caso ele é obra e manifestação do sonhador mas uma mani festação que não nos diz nada que não entendemos O que fazem os senhores se eu der voz a uma manifesta ção que lhes seja incompreensível Os senhores me fa rão perguntas não é mesmo Por que não haveríamos então de fazer o mesmo perguntar ao sonhador o que seu sonho significa Os senhores se recordam que já nos vimos uma vez nessa mesma situação Isso aconteceu quando da inves tigação de certos atos falhos e especificamente de um caso de lapso verbal Ante a declaração Da sind Dinge rum Vorschwein gekommen perguntamos ou me lhor por sorte não fomos nós que perguntamos mas outros bem distantes da psicanálise o que o falan te havia querido dizer com sua fala incompreensível A resposta foi imediata Ele tivera a intenção de dizer que se tratava de Schweinereien porcarias mas rechaçara essa intenção em favor de outra mais branda Da sind Dinge rum Vorschein gekommen coisas foram revela das Na ocasião expliquei aos senhores que indagações como essa constituíam o modelo de toda investigação 134 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA OA INTERPRETAÇÃO psicanalítica e os senhores compreendem agora que a psicanálise se vale da técnica de tanto quanto possível receber de seus próprios analisandos a solução para seus enigmas Assim também o sonhador é quem deve nos dizer o que seu sonho significa É sabido contudo que as coisas não são tão simples no caso dos sonhos Nos atos falhos isso era possível em certo número de casos Depois deparamos com ou tros nos quais o indagado nada queria dizer ou mesmo revoltado repudiava a resposta que lhe propúnhamos Em se tratando do sonho os casos do primeiro tipo não existem o sonhador sempre alega não saber o que o sonho significa Repudiar nossa interpretação ele não pode porque não temos nenhuma a lhe oferecer Deve mos pois desistir de nossa tentativa Como o sonhador não sabe a resposta nós tampouco e um terceiro não tem como sabêla por certo a perspectiva de descobrila é nenhuma Sim se os senhores assim desejam desistam da tentativa Se todavia sua vontade é outra trilhemos juntos o caminho à nossa frente Digolhes pois que é bem possível e até mesmo bastante provável que o so nhador saiba sim o que seu sonho significa ele apenas não sabe que sabe e é por isso que crê não saber Os senhores chamarão minha atenção para o fato de que de novo introduzo uma hipótese que é já a segun da neste breve contexto e com isso reduzo enorme mente a pretensão de credibilidade de meu procedimen to Pressuponho que o sonho é um fenômeno psíquico pressuponho ademais que o ser humano abriga ele mentos psíquicos que ele conhece sem saber que conhe IJ5 11 OS SONHOS ce e assim por diante Basta então encarar a improba bilidade interna de cada uma dessas duas premissas para que tranquilamente se perca o interesse nas conclusões que delas poderiam resultar Contudo senhoras e senhores eu não os trouxe aqui para iludilos ou ocultarlhes o que quer que seja De fato anunciei Conferências elementares introdutórias à psicanálise mas não pretendi com isso oferecerlhes uma apresentação in usum Delphini capaz de lhes expor um contexto aplainado com todas as suas dificuldades cuidadosamente escondidas suas lacunas preenchidas e suas dúvidas encobertas a fim de leválos a crer sere namente ter aprendido alguma coisa nova Não preci samente por serem os senhores iniciantes quis mostrar lhes nossa ciência como ela é com seus desalinhos e durezas seus desafios e preocupações E isso porque bem sei que nenhuma outra ciência é e nem pode ser diferen te sobretudo em seus primeiros passos Sei também que em geral a instrução busca inicialmente ocultar do aluno essas dificuldades e imperfeições Com a psicanálise po rém isso não é possível De fato fiz aqui duas pressupo sições uma dentro da outra e quem julgar tudo isso de masiado penoso ou incerto ou quem estiver acostumado a certezas superiores e a deduções mais elegantes esse O adjetivo elementares foi omitido na publicação dessas con ferências Ou ad usum Delphini literalmente para uso do Delfim ex pressão que designava as edições dos livros clássicos expurgadas dos trechos mais picantes preparadas especialmente para o filho de Luís XIV 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO não precisa continuar nos acompanhando Com isso quero dizer apenas que tal pessoa não deve se ocupar de problemas psicológicos pois receio que não encontrará os caminhos exatos e seguros que está disposta a trilhar É também desnecessário que uma ciência que tem algo a oferecer busque granjear ouvintes e adeptos Seus re sultados é que devem trabalhar em seu favor e ela pode esperar até que eles tenham conquistado atenção para si Àqueles dentre os senhores que desejem prosseguir nesse assunto todavia cabe lembrar que minhas duas suposições não se revestem do mesmo valor A primeira a de que o sonho seria um fenômeno psíquico é a premissa que queremos provar mediante o sucesso de nosso trabalho a segunda já foi comprovada em outra área e apenas tomo a liberdade de transpôla para nos sos problemas Onde em que área terá sido obtida a comprovação da existência de um saber do qual o ser humano nada sabe como aquele que postulamos aqui para o sonha dor Seria um fato notável surpreendente modificador de nossa concepção da vida psíquica um fato que não precisaria se ocultar um fato aliás que se anula em sua própria denominação e que no entanto pretende ser algo real uma contradictio in adjecto Na verdade ele não se oculta Não é culpa sua que nada saibam dele ou que ninguém lhe dê a devida atenção Assim como tampouco é culpa nossa que todos esses problemas psi cológicos sejam condenados por pessoas que se manti veram distantes de todas as observações e experiências que foram decisivas nessa matéria 137 11 OS SONHOS Tal comprovação foi obtida na área dos fenômenos hipnóticos Quando em 1889 assisti às impressionan tes demonstrações de Liébeault e Bernheim em Nancy fui testemunha do seguinte experimento Um homem foi posto em estado de sonambulismo e nesse estado fizeramlhe passar por toda sorte de experiências aluci natórias e depois o acordaram de início ele parecia nada saber dos acontecimentos transcorridos durante seu sono hipnótico Bernheim instouo diretamente a relatar o que se passara com ele durante a hipnose Ele afirma va não ter lembrança nenhuma Mas Bernheim insistiu pressionouo asseguroulhe que ele sabia que devia se lembrar do que acontecera e de repente o homem hesitante começou a se lembrar De início lembrouse vagamente de uma das experiências sugeridas depois de outra e a lembrança foi se tornando cada vez mais clara e mais completa até que por fim toda ela retornou Se depois de algum tempo ele sabia o que se passara e na quele ínterim nada descobrira de nenhuma outra parte então é correto concluir que sabia daquelas lembranças também antes Apenas não tinha acesso a elas não sabia que sabia acreditava não saber Tratase pois do mes mo caso que supomos suceder com o sonhador Espero que os senhores estejam surpresos com esse fato e que me perguntem Por que o senhor não recor reu a essa comprovação antes ao falar dos atos falhos quando imputamos ao homem que cometera um lapso verbal intenções que ele desconhecia e negou possuir Se alguém crê nada saber de experiências vividas que traz realmente na memória já não é tão improvável que 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO tampouco saiba de outros processos psíquicos em seu interior Esse argumento por certo nos teria impressio nado e levado adiante na compreensão dos atos falhos Com certeza eu teria podido recorrer a ele anteriormen te mas guardeio para um momento no qual ele seria mais necessário Os atos falhos se revelaram em parte autoexplicativos e em parte advertiramnos que a fim de preservar a relação entre os fenômenos deveríamos supor a existência desses processos psíquicos de que nada sabemos No caso dos sonhos somos obrigados a buscar explicações em outra parte além disso conto com o fato de que aqui os senhores admitirão mais fa cilmente uma transposição a partir da hipnose É preci so que os senhores entendam como normal o estado em que cometemos um ato falho ele nada tem a ver com o estado hipnótico Por outro lado há um nítido paren tesco entre esse último e o sono que é a precondição para o sonho A hipnose de fato é descrita como um sono artificial dizemos Durma à pessoa que hipnoti zamos e as sugestões que fazemos são comparáveis aos sonhos do sono natural Em ambos os casos as situa ções psíquicas são realmente análogas No sono natu ral desinteressamonos de todo o mundo exterior no sono hipnótico do mundo inteiro menos da pessoa que nos hipnotizou com a qual permanecemos em contato Aliás o chamado sono de babá em que ela permanece em contato com o bebê e só é acordada por ele constitui uma contraparte normal do sono hipnótico Portanto a transposição para o sono normal de uma situação típica da hipnose não parece representar ousadia tão grande IJ9 11 OS SONHOS A suposição de que também no sonhador está presente um conhecimento daquilo que ele sonhou um conhe cimento que apenas lhe é inacessível e no qual por isso mesmo ele próprio não crê não é pura invenção E atentemos para o fato de que aqui se abre uma terceira porta para o estudo do sonho aos estímulos perturbado res do sono e aos sonhos diurnos acrescentamos agora os sonhos sugeridos do estado hipnótico Retornemos então talvez com maior confiança a nossa tarefa É pois bastante provável que o sonhador saiba de seu sonho tratase apenas de possibilitar a ele encontrar e comunicarnos esse saber Não vamos exi gir que nos diga de imediato o sentido do sonho mas sua origem o círculo de ideias e interesses do qual pro vém isso ele será capaz de identificar No caso do ato falho os senhores se lembram perguntamos ao orador como ele havia chegado à palavra equivocada Vorsch wein e a primeira resposta que lhe ocorreu deunos a explicação Nossa técnica no tocante ao sonho é bas tante simples uma imitação desse mesmo modelo De novo perguntamos ao sonhador o que o levou a ter seu sonho e outra vez sua primeira resposta há de ser vista como uma explicação Se ele crê ou não saber é uma di ferença que desconsideramos tratamos ambos os casos como se fossem um só Essa técnica é decerto muito fácil mas temo que ela venha a encontrar ferrenha oposição por parte dos se nhores que com certeza dirão Uma nova premissa a terceira E a mais improvável de todas Se perguntamos ao sonhador o que lhe ocorre em relação a seu sonho 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO justamente sua primeira associação deve nos dar a expli cação desejada Ora pode ser que não lhe ocorra coisa nenhuma ou sabe Deus o que lhe virá à cabeça Não podemos compreender em que se baseia tal expectativa Com efeito isso significaria depositar confiança dema siada em Deus num ponto em que seria mais adequado um maior juízo crítico Além disso um sonho não é ape nas uma palavra equivocada ele se compõe de muitos elementos A que associação haveremos de nos ater Os senhores têm razão em tudo que é secundário Um sonho distinguese de um lapso verbal também na diversidade de elementos A técnica precisa levar isso em consideração Então lhes sugiro a decomposição do sonho em seus diferentes elementos e que procedamos à investigação de cada um deles em separado se assim fizermos estará restabelecida a analogia com o lapso verbal Têm razão também os senhores quanto à possi bilidade de a resposta do sonhador para cada elemento isolado do sonho ser que nada lhe vem ao pensamento Há casos em que aceitamos essa resposta e mais adiante os senhores saberão quais são eles Curiosamente são casos em que certas associações podem ocorrer inclusi ve a nós mesmos De modo geral contudo contestare mos o sonhador se ele afirmar que nada lhe vem à men te insistiremos e lhe asseguraremos que alguma coisa há de lhe ocorrer e estaremos com a razão Algu ma ideia há de lhe ocorrer qualquer que seja ela para nós é indiferente Certas informações a que podería mos chamar históricas ele dará com grande facilidade Dirá por exemplo Isso é uma coisa que me aconteceu 11 OS SONHOS ontem como no caso dos dois sonhos sóbrios que conhecemos Ou Isso me lembra algo que aconte ceu há muito pouco tempo e desse modo vamos notar que as vinculações dos sonhos a impressões dos dias imediatamente anteriores é bem mais comum do que acreditamos de início Por fim o sonho o lembrará também de acontecimentos distantes ou mesmo de um passado bastante longínquo No essencial porém os senhores estão equivoca dos Se acham que é arbitrário supor que a primeira associação do sonhador tem de nos dar o que procura mos ou nos conduzir a ele se acreditam que essa poderá ser uma associação qualquer sem nenhuma vinculação com o que buscamos constituindo assim minha expectativa nesse sentido mera manifestação de minha confiança em Deus aí os senhores estarão cometen do um grande erro Anteriormente tomei a liberdade de repreendêlos por abrigarem uma crença profunda na liberdade e arbitrariedade psíquica que porém não é nada científica e só pode capitular ante a exigência de um determinismo predominante também na vida psí quica Peço aos senhores que respeitem como fato o so nhador inquirido ter respondido com uma associação e não com outra Mas não estou contrapondo uma crença a outra Podese comprovar que a associação produzida pelo sonhador não é arbitrária ou indeterminável nem está desvinculada daquilo que buscamos De fato há não muito tempo descobri sem aliás atribuir valor demasiado a esta descoberta que também a psicolo gia experimental produziu semelhantes comprovações 142 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO Devido à importância do tema solicitolhes atenção especial para ele Se peço a alguém que me diga o que lhe ocorre em relação a determinado elemento de um sonho estou pedindo a essa pessoa que ela se entregue a associações livres atendose a uma ideia inicial Isso pede um emprego específico da atenção que é bem diferente daquele da reflexão e que a exclui Alguns adotam essa atitude com facilidade outros exibem inépcia inacredi tável ao tentar fazêlo Há contudo um grau mais ele vado de liberdade de associação que se verifica quando abandono essa ideia inicial e estabeleço apenas que tipo de coisa deve ocorrer à pessoa quando especifico por exemplo que ela deixe lhe ocorrer livremente um nome próprio ou um número Esse pensamento espontâneo haveria de ser mais arbitrário mais imprevisível do que aquele resultante do emprego de nossa técnica Podese demonstrar no entanto que ele é sempre determinado rigorosamente por importantes atitudes internas que no momento em que têm efeito nos são desconhecidas tão desconhecidas quanto as tendências perturbado ras nos atos falhos ou as que provocam atos casuais Eu e muitos outros depois de mim já realizei repeti das investigações semelhantes algumas delas publicadas nas quais solicitei a pessoas que sem qualquer reserva deixassem vir à mente nomes e números Procedese aí de maneira a solicitar contínuas associações com os no mes que vão surgindo associações que portanto já não são inteiramente livres e sim vinculadas como os pensa mentos espontâneos ligados aos elementos de um sonho Prosseguese dessa maneira até que se esgote o ímpeto 143 11 OS SONHOS para produzilas Chegase então ao esclarecimento da motivação e do significado dos nomes mencionados es pontaneamente O resultado é sempre o mesmo o que essas experiências comunicam abrange com frequência rico material e requer extensas explanações As associa ções com números são talvez as mais comprobatórias elas transcorrem tão rapidamente e rumam com tão incrível segurança para uma meta velada que de fato causam perplexidade Vou comunicar aos senhores um único exemplo dessa análise de nomes pois de forma conveniente ele demanda pouco material No curso do tratamento de um homem jovem come ço a falar sobre esse tema e menciono que a despeito da aparente arbitrariedade a ninguém ocorre um nome que não seja rigorosamente condicionado pelas relações mais próximas pelas peculiaridades do sujeito da experiência e por sua situação momentânea Como ele duvida da mi nha afirmação sugiro que ele próprio faça de imediato a experiência Sei que ele possui relacionamentos bas tante numerosos e de toda sorte com mulheres e moças e creio portanto que ele disporá de escolha particular mente farta em se tratando de nomes femininos que po derão lhe ocorrer Ele está de acordo Para meu espanto ou talvez para espanto dele porém não sou alvo de uma avalanche de nomes de mulheres o rapaz permanece mudo por algum tempo e confessa então que um único nome e nenhum outro lhe vem à mente Albine Que curioso Mas a que você vincula esse nome Quantas Albines você conhece Estranhamente ele não conhe cia nenhuma mulher chamada Albine e nada mais lhe 144 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO ocorreu em relação àquele nome Podiase supor então que a análise fracassara mas não ela apenas já ter minara nenhuma outra associação se fazia necessária O próprio rapaz tinha a pele extraordinariamente clara e em nossas conversas ao longo do tratamento eu de brincadeira já o chamara repetidas vezes de albino tratávamos na época de estabelecer a porção feminina de sua constituição Ele próprio era pois aquela Albine a moça mais interessante naquele momento Do mesmo modo certas melodias que nos ocorrem subitamente se revelam condicionadas e pertencem a uma linha de pensamento que tem o direito de nos ocupar sem que saibamos dessa atividade Então é fá cil mostrar que nossa relação com a melodia vinculase a sua letra ou sua origem Devo no entanto tomar o cuidado de não estender essa afirmação a pessoas ver dadeiramente musicais com as quais por acaso não possuo experiência nenhuma Para essas pessoas o teor musical em si da melodia deve ser determinante para seu aparecimento Com certeza o primeiro caso é mais frequente Sei de um jovem a quem a melodia da Can ção de Páris de A bela Helena de resto encantadora perseguiu por algum tempo até que a análise chamou sua atenção para a concorrência atual entre o seu inte Id H 1 resse por uma a e por uma e ena La belle Hélene é uma ópera de J Offenbach Na mitologia gre ga Páris era pastor no monte Ida quando teve de julgar qual das três deusas Hera Atena e Afrodite era a mais bela Tendo julgado em favor de Afrodite ganhou como recompensa o amor da mais bela mulher do mundo Helena 11 OS SONHOS Se portanto aquilo que nos ocorre livremente é assim condicionado e posto em determinado contexto então estaremos certos em concluir que pensamentos espontâneos dotados de uma única vinculação a de uma ideia inicial não poderão ser menos condicio nados Com efeito a investigação nos mostra que além do vínculo que fornecemos mediante a ideia inicial es sas associações permitem reconhecer um outro com um grupo de pensamentos e interesses de alto teor afetivo os chamados complexos cuja atuação é naquele momen to desconhecida isto é inconsciente Pensamentos espontâneos com vínculos assim foram objeto de investigações experimentais bastante instruti vas que tiveram papel notável na história da psicanálise A escola de Wundt já nos dera o chamado experimento de associação em que o sujeito é incumbido de responder o mais rapidamente possível a uma palavraestímulo com uma reação qualquer Podese então estudar o intervalo transcorrido entre estímulo e reação a natureza da pala vra obtida como reação o eventual erro numa repetição posterior da mesma experiência etc A escola de Zurique sob a direção de Bleuler e Jung forneceu a explicação para as reações resultantes da experiência de associação solicitando ao sujeito da experiência que esclarecesse as suas reações mediante associações posteriores quando apresentassem algo notável Verificouse então que es sas reações notáveis eram determinadas de forma bas tante nítida pelos complexos do sujeito da experiência Com isso Bleuler e Jung construíram a primeira ponte entre a psicologia experimental e a psicanálise 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO Assim instruídos os senhores poderão dizer Re conhecemos agora que as associações livres são deter minadas e não arbitrárias como havíamos acreditado Admitimos o mesmo em relação àquilo que ocorre às pessoas diante de elementos do sonho Mas não é isso que nos importa O senhor afirma que o que ocorre ao sonhador em relação a um elemento do sonho será de terminado pelo pano de fundo psíquico desse mesmo elemento algo que não conhecemos E isso não nos parece ter sido comprovado Já esperamos que a asso ciação diante de um elemento do sonho se mostre de terminada por um dos complexos do sonhador mas de que nos adianta que seja assim Isso não nos conduz à compreensão do sonho e sim ao conhecimento desses chamados complexos como na experiência de associa ção A questão é o que eles têm a ver com o sonho Os senhores têm razão mas deixam de enxergar um fator e precisamente aquele em razão do qual não esco lhi a experiência de associação como ponto de partida desta exposição Nessa experiência a palavraestímulo a determinante da reação é escolhida arbitrariamente por nós A reação que se segue é pois um intermediá rio entre essa palavraestímulo e o complexo então des pertado do sujeito da experiência No sonho a palavra estímulo é substituída por alguma coisa que provém ela própria da vida psíquica do sonhador de fontes que lhe são desconhecidas algo que poderia facilmente ser um derivado do complexo Por isso não é propria mente fantasiosa a expectativa de que também as de mais associações vinculadas aos elementos do sonho 147 11 OS SONHOS sejam determinadas pelo mesmo complexo que o do próprio elemento e conduzam ao desvelamento deste Permitam que à luz de outro caso eu lhes mostre que as coisas são de fato como sugere nossa expectativa O esquecimento de nomes próprios oferece na realida de um modelo excelente para o que sucede na análise do sonho ocorre apenas que nesse caso encontra mos numa só pessoa o que na interpretação do sonho distribuise por duas Quando esqueço temporariamen te um nome ainda trago em mim a certeza de que sei esse nome aquela mesma certeza de que tratandose do sonhador só pudemos nos apropriar pela via do ex perimento de Bernheim Contudo o nome esquecido e no entanto sabido me é inacessível Refletir por mais que eu me esforce de nada adianta é o que a expe riência logo me diz A cada tentativa posso porém em lugar do nome esquecido deixar que me ocorram um ou vários nomes substitutos Quando um desses nomes me ocorre de forma espontânea tornase evidente a si milaridade dessa situação com a da análise do sonho Afinal tampouco o elemento do sonho é o correto ele é mero substituto de outra coisa da coisa verdadeira que não conheço mas que me cabe encontrar por in termédio da análise do sonho De novo a diferença está em que tendo esquecido um nome reconheço sem pensar o substituto como não verdadeiro ao passo que no caso do elemento do sonho precisamos nos empe nhar muito para alcançar essa compreensão Todavia também no esquecimento de nomes temse um cami nho para ir do sucedâneo ao verdadeiro e inconsciente 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA OA INTERPRETAÇÃO isto é ao nome esquecido Se concentro minha atenção nos nomes substitutos e sigo fazendo com que outros nomes me ocorram mais cedo ou mais tarde chego ao esquecido e descubro que os seus sucedâneos espontâ neos tanto quanto aqueles por mim evocados guar davam relação com o nome esquecido foram por ele determinados Quero apresentar aos senhores uma análise des se tipo Um dia noto que não consigo me lembrar do nome daquele pequeno país na Riviera cuja capital é Monte Carlo É irritante mas assim é Penso em tudo o que sei sobre o país no príncipe Albert da casa de Lusignan em seus casamentos em seu gosto pela pes quisa oceanográfica e no que mais consigo me lembrar mas de nada adianta Então paro de pensar e deixo que me ocorram nomes substitutos em lugar daquele es quecido Eles se sucedem com rapidez Monte Carlo é o primeiro depois vêm Piemonte Alhânia Montevidéu Colico Albânia é o primeiro a me chamar a atenção nes sa série mas ele é substituído de imediato por Montene gro provavelmente em razão da antonímia entre branco alhus e negro Percebo então que quatro desses no mes substitutos contêm uma mesma sílaba mon e de súbito encontro a palavra esquecida que digo em voz alta Mônaco Os nomes substitutos saíram de fato do nome esquecido os quatro primeiros da primeira síla ba o último traz de volta a sequência de sílabas e toda a sílaba final Ao mesmo tempo identifico com facili dade o que me privou por um tempo da lembrança do nome Mônaco está ligado a Munique que em italiano 149 11 OS SONHOS se chama Monaco Foi essa cidade que exerceu o efeito inibidor da lembrança Tratase por certo de um belo exemplo mas dema siado simples Em outros casos seria necessária uma série maior de nomes substitutos isso tornaria mais cla ra a analogia com a análise do sonho Vivi experiências desse tipo também Quando certa feita um amigo me convidou para beber um vinho italiano com ele acon teceu de na taberna ele se esquecer do nome do vi nho que pretendia pedir por dele guardar a melhor das lembranças De toda urna gama de disparatados nomes substitutos que lhe ocorreram em lugar do esquecido pude tirar a conclusão de que o pensamento numa certa Hedwig lhe havia roubado a lembrança do nome do vi nho E de fato ele não apenas me confirmou que expe rimentara o tal vinho pela primeira vez em companhia de urna Hedwig como também por intermédio dessa revelação reencontrou o nome que procurava À épo ca meu amigo gozava de um casamento feliz a Hedwig em questão pertencia a outros tempos dos quais ele não gostava de se lembrar O que é possível fazer quando esquecemos nomes há de ser possível também na interpretação de sonhos ou seja obter acesso ao material verdadeiro retido median te associações a partir de um sucedâneo Com base no exemplo do esquecimento de nomes podemos supor que as associações com um elemento do sonho serão deter minadas tanto pelo elemento do sonho como pelo mate rial autêntico e inconsciente por trás dele Teríamos com isso justificado em alguma medida nossa técnica IO 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES Senhoras e senhores Como veem não foi em vão que estudamos os atos falhos Graças a esse empenho con quistamos com base nas premissas que lhes indiquei duas coisas uma concepção do elemento do sonho e uma técnica interpretativa Essa concepção do elemento do sonho diz que ele é algo não verdadeiro um sucedâ neo de outra coisa desconhecida do sonhador similar à tendência do ato falho um sucedâneo de algo cujo sa ber o sonhador abriga mas que lhe é inacessível Nossa expectativa é a de poder transpor essa concepção para a totalidade do sonho que se constitui de tais elementos Nossa técnica consiste em permitir mediante a associa ção livre vinculada a esses elementos que surjam outras formações substitutivas a partir das quais possamos chegar ao que está oculto Sugiro agora aos senhores a introdução de uma mu dança em nossa nomenclatura que deverá facilitar nos sos movimentos Em vez de oculto inacessível não verdadeiro passaremos a nos valer da descrição correta e dizer inacessível à consciência do sonhador ou in consciente O que queremos dizer com isso nada mais é do que aquilo que lhes pode indicar a palavra esquecida ou a tendência perturbadora do ato falho isto é um conteúdo momentaneamente inconsciente É claro que em contrapo sição a isso podemos chamar conscientes aos elementos em si do sonho e às novas formações substitutivas obti 11 OS SONHOS das por meio de associação Os termos escolhidos ainda não se vinculam a nenhuma construção teórica O em prego da palavra inconsciente é irrepreensível como descrição pertinente e de fácil compreensão Se transpomos nossa concepção do elemento isola do para a totalidade do sonho resulta daí que o sonho como um todo é o sucedâneo deformado de outra coisa inconsciente e que a tarefa da interpretação do sonho consiste em encontrar esse algo inconsciente Disso decorrem de imediato três regras importantes que nos cumpre seguir ao longo do trabalho interpretativo 1 Não devemos nos preocupar com o que o sonho parece dizer seja isso algo compreensível ou absurdo claro ou confuso porque de maneira nenhuma esse é o material inconsciente que buscamos uma restrição plausível a essa regra se nos imporá mais adiante 2 nosso trabalho deve se concentrar em despertar as ideias substitutivas para cada elemento não devemos refletir a respeito delas nem examinálas à procura de um conteúdo adequado o quanto elas se afastam do elemento do sonho não deve ser motivo de preocupa ção 3 aguardemos até que o inconsciente oculto e pro curado apareça por si só exatamente como a palavra Mônaco no experimento que apresentei Agora compreendemos também que não faz dife rença que o sonho seja recordado muito ou pouco e sobretudo com que grau de fidelidade ou incerteza O sonho lembrado não é afinal a coisa verdadeira e sim um sucedâneo deformado que mediante o despertar de formações substitutivas há de nos ajudar a chegar mais 12 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES perto do verdadeiro a tornar consciente o inconsciente do sonho Se nossa lembrança já não é fiel o sucedâneo apenas lhe acrescenta nova deformação que tampouco poderá ser imotivada Podemos realizar o trabalho interpretativo em nos sos próprios sonhos ou nos de outras pessoas Quan do o efetuamos em nossos próprios sonhos na verdade aprendemos mais o processo resulta mais comprobató rio Se procuramos fazêlo notamos que algo se opõe a esse trabalho Não concedemos livre trânsito a tudo que nos ocorre Influências seletivas e averiguadoras se fazem valer Ao que nos vem à mente dizemos Não isso não combina não tem relação nenhuma a outra associação É absurdo demais a uma terceira Isso é completamente secundário Podemos assim observar de que forma com tais objeções sufocamos as associa ções até por fim banilas antes mesmo que elas tenham se apresentado com toda a clareza Por um lado portan to atemonos em demasia à ideia inicial ao elemento em si do sonho por outro perturbamos com nossa es colha o resultado da livre associação Se ao proceder à interpretação não estamos sozinhos se fazemos outra pessoa interpretar nosso sonho notamos muito clara mente outro motivo que empregamos para fazer essa escolha inadmissível Vez por outra diremos Não esse pensamento é desagradável demais não quero não posso comunicálo Objeções como essas é evidente põem em risco o êxito de nosso trabalho Temos de nos defender delas o que tratandose da interpretação de nossos próprios 11 OS SONHOS sonhos fazemos mediante o firme propósito de não ce der a elas Quando o sonho que interpretamos é de ou tra pessoa nós lhe impomos como regra inquebrantável que ela não deixe de nos comunicar nada do que lhe ocorre ainda que contra o pensamento haja as quatro objeções demasiado desimportante absurdo demais descabido ou embaraçoso demais para ser dito Ela prometerá obedecer a essa regra e teremos o direito de nos irritar se ela não cumprir o prometido A primeira explicação para isso que daremos a nós mesmos é a de que apesar de o termos asseverado com toda a auto ridade ela não entendeu o porquê da livre associação pensamos então em talvez ganhála por intermédio da teoria dandolhe artigos para ler ou enviandoa a pa lestras que possam transformála em adepta de nossas concepções sobre a livre associação Mas seremos pre servados desses erros pela observação de que ao inter pretarmos nossos próprios sonhos e podemos estar seguros de nossa própria convicção surgem as mes mas objeções críticas sobre certas coisas que nos ocor rem objeções estas que só mais tarde em uma segunda instância por assim dizer serão eliminadas Em vez de nos irritarmos com a desobediência do sonhador podemos nos valer dessas experiências para aprender algo novo com elas algo que é tanto mais importante quanto menos estamos preparados para ele Compreendemos que o trabalho da interpretação do sonho se realiza em face de uma resistência que lhe é oposta e cujas manifestações compõemse daquelas objeções críticas Essa resistência independe da convic 14 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES ção teórica do sonhador E aprendemos ainda mais do que isso Percebemos que tal objeção crítica nunca está com a razão Pelo contrário os pensamentos que tanto gostaríamos de suprimir revelamse sem exceção os mais importantes os mais decisivos para a descoberta do in consciente É verdadeiramente uma distinção quando um pensamento espontâneo é acompanhado de uma ob jeção desse tipo Essa resistência é algo inteiramente novo um fenô meno que encontramos com base em nossas premissas mas que não era parte delas Em nosso cálculo o novo fator não representa uma surpresa propriamente agradá vel Antevemos que ele não vai facilitar nosso trabalho Na verdade ele poderia mesmo nos convencer a aban donar todo esse nosso empenho em torno do sonho Uma coisa tão desimportante como o sonho e ainda por cima tamanhas dificuldades em vez de uma técnica pura e simples Por outro lado essas mesmas dificulda des poderiam nos estimular e fazer supor que o traba lho valerá a pena É comum depararmos com resistên cias sempre que desejamos avançar do sucedâneo que é o que o elemento do sonho significa em direção ao oculto e inconsciente É lícito portanto pensarmos que por trás desse sucedâneo ocultase algo importante Do contrário por que tantas dificuldades para conservar o ocultamento Quando uma criança não quer abrir o pu nho fechado para mostrar o que ele guarda então com certeza é algo impróprio que ela não deveria ter No momento em que introduzimos nesse quadro a noção dinâmica de uma resistência precisamos também 11 OS SONHOS levar em conta que esse fator é quantitativamente va riável Pode haver resistências maiores ou menores e estamos preparados para deparar com diferenças desse tipo ao longo de nosso trabalho Talvez devamos con jugar com essa uma outra descoberta que fazemos ao interpretar um sonho por vezes uma única associação ou apenas umas poucas já basta para nos conduzir do elemento do sonho a seu conteúdo inconsciente ao pas so que outras vezes longas cadeias de associações e a superação de muitas objeções críticas se fazem necessá rias para tanto Diremos a nós mesmos que essas diferenças estão relacionadas à grandeza variável da resistência e é pro vável que tenhamos razão Se a resistência é pequena o sucedâneo não se acha muito distante do conteúdo in consciente uma grande resistência porém traz consigo grandes deformações desse material inconsciente e as sim um longo caminho de volta desde o sucedâneo até o conteúdo inconsciente Agora talvez tenha chegado a hora de tomarmos um sonho para nele aplicar nossa técnica a fim de verificar se nossas expectativas em relação a ela se confirmam Sim mas que sonho escolher para isso Os senhores não vão acreditar na dificuldade que tenho para tomar essa decisão e ainda não posso fazêlos compreender a causa dessa dificuldade É evidente que devem existir sonhos que sofreram pouca deformação e o melhor seria come çarmos por eles Mas que sonhos se apresentam menos deformados Os compreensíveis e nada confusos dos quais já apresentei dois exemplos aos senhores Seria um 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES equívoco escolhêlos O exame mostra que esses sonhos sofreram um grau extremamente alto de deformação Se no entanto renuncio a uma condição específica e escolho um sonho qualquer é provável que os senhores fiquem muito decepcionados É possível que tenhamos de apon tar ou listar um número tão grande de associações vincu ladas a cada elemento do sonho que o trabalho acabará por resultar completamente impenetrável Se anotamos o sonho e contrapomos a ele o registro de todas as associa ções que ele suscitou o número destas pode facilmente ultrapassar em muito o texto onírico em si O mais profí cuo pareceria portanto escolher para a análise diversos sonhos curtos que possam ao menos cada um deles nos dizer ou confirmar alguma coisa Será essa nossa deci são a menos que a experiência nos indique onde encon trar de fato os sonhos menos deformados Todavia conheço também outro modo de facilitar nosso caminho Em vez de nos lançarmos à interpreta ção de sonhos inteiros vamos nos limitar a elementos isolados dos sonhos e observar a partir de uma série de exemplos como eles encontram explicação mediante o emprego de nossa técnica a Uma senhora conta que quando criança sonha va com bastante frequência que Deus tinha sobre a ca beça um chapéu pontiagudo de papel Como haverão os senhores de entender isso sem o auxílio da sonhadora Seu sonho soa completamente absurdo Deixa de sêlo porém quando a senhora relata que à mesa quando criança costumavam pôr um chapéu semelhante em sua cabeça porque ela não conseguia parar de olhar I 57 11 OS SONHOS para o prato dos irmãos queria ver se tinham recebido mais comida que ela O chapéu deveria pois servir de antolhos De resto uma informação histórica forneci da sem qualquer dificuldade A interpretação desse ele mento e por consequência de todo esse sonho breve resulta fácil com o auxílio de uma associação feita pela sonhadora Como tinham me dito que Deus era onis ciente e via tudo disse ela esse sonho só pode signi ficar que sei e vejo tudo como Deus mesmo quando tentam me impedir de fazêlo Tratase talvez de um exemplo demasiado simples h Uma paciente cética tem um sonho mais longo durante o qual certas pessoas lhe contam sobre meu li vro acerca do chiste e o elogiam bastante Depois men cionam algo sobre um canal talver outro livro em que aparece um canal alguma coisa relacionada a canal ela não sahe ao certo não está claro Com certeza os senhores tenderão a acreditar que o elemento canal fugirá à interpretação por ser ele pró prio tão indefinido E estão certos quanto à dificuldade que aí supõem mas essa dificuldade não decorre da fal ta da clareza a falta de clareza é que decorre de outro motivo o mesmo que torna difícil a interpretação Nada ocorre à sonhadora que ela seja capaz de vincular a canal eu é claro tampouco sei o que dizer Passado algum tempo na verdade no dia seguinte ela re lata terlhe ocorrido algo que taver esteja relacionado ao assunto Tratase de uma piada que alguém lhe con tou Em um navio entre Dover e Calais um conhecido escritor conversa com um inglês que em determina 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES do contexto cita a frase Du sublime au ridicule il ny a quun pas Do sublime ao ridículo há apenas um passo O escritor responde Oui le Pas de Calais O que ele quer dizer é que acha a França grandiosa e a Inglaterra ridícula O Pas de Calais no entanto é um canal o Ca nal da Mancha Se acho que essa associação tem relação com o sonho É claro que sim na realidade ela dá so lução ao elemento misterioso do sonho Ou os senhores duvidam que anteriormente ao sonho essa piada já es tava presente como conteúdo inconsciente de canal Supõem então que ele só foi acrescentado depois A associação que ocorreu à paciente dá testemunho de seu ceticismo um ceticismo que nela se oculta por trás de uma insistente admiração A resistência é provavel mente a razão para ambas as coisas tanto para a asso ciação tão hesitante como para a indefinição do corres pondente elemento do sonho Observem aqui a relação deste último com seu conteúdo inconsciente Ele é como um pedacinho desse inconsciente como uma alusão a ele mas seu isolamento tornouo incompreensível c Um paciente tem um sonho dotado de contextua lização mais extensa À volta de uma mesa de formato particular estão sentados diversos membros de sua fa mília etc Em relação à mesa o que lhe ocorre é que já havia visto móvel semelhante em visita a determinada família Seus pensamentos prosseguem nessa família pai e filho tinham um relacionamento especial ao que ele logo acrescenta que na verdade o mesmo acontece entre ele e seu pai A mesa portanto figura no sonho para caracterizar esse paralelo 11 OS SONHOS Esse paciente estava familiarizado havia tempo com as demandas da interpretação dos sonhos Um outro talvez tivesse se surpreendido com o fato de um detalhe tão insignificante como a forma de uma mesa ser toma do como objeto de pesquisa Na verdade não há nada que consideremos casual ou indiferente num sonho é justamente da explicação para detalhes tão ínfimos e imotivados que esperamos obter informação Os senho res talvez se admirem de o trabalho onírico ter se valido da escolha da mesa para dar expressão ao pensamento em nossa casa é éomo na deles Mas também isso es tará explicado se eu disser aos senhores que a família em questão tinha por sobrenome Tischler marceneiro Na medida em que nosso sonhador faz seus parentes tomarem lugar àquela mesa Tisch em alemão ele os declara Tischler também Notem de resto como a co municação de tais interpretações de sonhos nos torna necessariamente indiscretos Os senhores reconhecerão aí uma das dificuldades que sugeri existir na escolha de exemplos Teria sido fácil para mim substituir o presen te exemplo por outro mas provavelmente só teria evita do uma indiscrição à custa de outra É hora pareceme de introduzir aqui dois termos que há muito poderíamos ter empregado Àquilo que o sonho narra chamamos conteúdo manifosto do sonho ao conteúdo oculto ao qual nos cabe chegar pela via das associações damos o nome de pensamentos oníricos la tentes Atentemos pois para as relações entre conteúdo onírico manifesto e pensamentos oníricos latentes como elas se apresentam nesses exemplos Essas relações po 160 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES dem ser de caráter bastante diverso Nos exemplos a e h o elemento manifesto é parte dos pensamentos la tentes constituindo porém pequena porção deles Da grande construção psíquica amalgamada nos pensa mentos oníricos inconscientes um pedacinho também alcança o sonho manifesto sob a forma de fragmento ou em outros casos de uma alusão como uma rubrica uma abreviação em estilo telegráfico O trabalho interpreta tivo precisa reconstituir o todo a partir desse pedaço ou alusão o que conseguimos fazer muito bem no exemplo h Um dos tipos de deformação em que consiste o tra balho do sonho é pois a substituição por um fragmento ou alusão Em c além disso reconhecese outro tipo de relação o qual nos exemplos que se seguem vemos expresso de modo mais puro e nítido d O sonhador tira hervorziehen uma dama deter minada conhecida de detrás da cama Já na primeira coisa que lhe ocorre ele mesmo encontra o sentido des se elemento do sonho O significado é que ele dá prefi rência vorziehen à dama em questão e Outro sonha que seu irmão está dentro de uma caixa Sua primeira associação substitui caixa Kasten por armário Schrank a segunda fornece a interpretação o que o irmão está fazendo é se restringir sich einschranken f O sonhador escala uma montanha de cima da qual desfruta de uma vista ampla e extraordinária Isso soa in teiramente racional talvez não haja aí o que interpre tar tratandose de descobrir apenas a que reminiscên cia o sonho se refere e por que motivo ela foi evocada Mas os senhores se equivocam O que se revela é que 161 11 OS SONHOS esse sonho necessita tanto de interpretação quanto al gum outro mais confuso Com efeito nada ocorre ao sonhador acerca da escalada de uma montanha o que lhe vem à mente é que um conhecido está organizando um número da revista Rundschau ao pé da letra vista panorâmica dedicado a nossas relações com continen tes os mais longínquos O pensamento onírico latente é aqui portanto a identificação do sonhador com o Rundschauer aquele que olha em torno desfrutando da vista panorâmica Os senhores encontram aqui um novo tipo de re lação entre os elementos manifesto e latente do sonho Aquele não é bem uma deformação mas uma represen tação desse mediante uma imagem plástica concreta que tem na literalidade da palavra seu ponto de parti da Não obstante e por isso mesmo tratase de novo de uma deformação uma vez que já não sabemos em que imagem concreta a palavra teve origem razão pela qual não a reconhecemos quando é substituída pela imagem Se os senhores levarem em consideração que o sonho manifesto se constitui predominantemente de imagens visuais raras vezes de pensamentos ou pa lavras poderão adivinhar que cabe a esse tipo de relação importância especial na formação do sonho Veem também que por esse caminho tornase possí vel a uma grande série de pensamentos abstratos criar no sonho manifesto imagens substitutivas que afinal servem unicamente ao propósito do ocultamento Essa é a técnica dos conhecidos enigmas compostos de ima gens De onde vem a aparência de algo chistoso que tais 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES representações têm essa é uma questão especial de que não carece nos ocuparmos aqui Acerca de um quarto tipo de relação existente entre os elementos manifesto e latente devo me calar até que ela seja mencionada em nossa técnica Mesmo então não terei feito aos senhores uma enumeração completa mas isso é quanto basta para nossos propósitos Têm os senhores a coragem de se lançar agora à in terpretação de um sonho completo Façamos a tentati va e vejamos se estamos bem equipados para essa tare fa Naturalmente não vou escolher nenhum dos sonhos mais obscuros mas decerto optarei por um que traz bem marcadas as propriedades do sonho Pois bem Uma jovem dama casada há muitos anos sonha o seguinte Está no teatro com o marido e todo um lado da plateia está vario O marido conta a ela que Eise L e o noivo tamhém queriam ir mas só haviam encontrado lugares ruins três por um florim e cinquenta centavos os quais não puderam aceitar Não teria sido nenhuma desgra ça é o que pensa a jovem dama A primeira coisa que a sonhadora nos conta é que o pretexto para o sonho é mencionado no próprio con teúdo manifesto O marido de fato contara a ela que Elise L uma conhecida mais ou menos da mesma ida de tinha ficado noiva O sonho é uma reação a esse co municado Sabemos já que para muitos sonhos é fácil buscar justificativa em um episódio do dia anterior e que tais derivações são com frequência apontadas pelo sonhador sem nenhuma dificuldade Outras informa ções desse mesmo tipo para outros elementos do sonho 11 OS SONHOS manifesto nos são também fornecidas pela sonhadora Qual a procedência do detalhe segundo o qual todo um lado da plateia estava vazio Tratase de uma alusão a um fato real ocorrido na semana anterior Ela preten dera ir a um espetáculo teatral e por isso comprara in gressos antecipadamente e com tanta antecedência que precisara pagar uma taxa pela venda antecipada Quan do chegou ao teatro verificouse que sua preocupação havia sido desnecessária uma vez que um lado da pla teia estava quase vario Teria podido comprar os ingres sos no próprio dia do espetáculo O marido tampouco perdera a oportunidade de provocála por causa daque la precipitação E quanto ao preço um florim e cinquen ta centavos A informação provinha de outro contexto bem diferente que nada tinha a ver com o anterior mas que de novo fazia alusão a notícia recente Sua cunha da ganhara de presente do marido a soma de 150 florins e a parvalhona logo correra ao joalheiro para gastar o dinheiro numa joia De onde vem o número 3 Sobre isso a sonhadora não sabe o que dizer a não ser que aceitemos a associação que fez a noiva Elise L era três meses mais nova que ela que já estava casada fazia quase dez anos E quanto ao absurdo de se comprar três ingressos se são apenas duas pessoas A esse respeito a sonhadora não diz nada recusase a fazer qualquer outra associação e a dar mais informações Contudo ao nos relatar suas poucas associações a jovem dama nos deu tanto material que a partir dele é possível adivinhar seus pensamentos oníricos latentes Há de chamar a atenção que em suas comunicações 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES acerca do sonho surjam em vários lugares informações temporais precisas as quais fundamentam um ponto comum entre partes diversas do material Ela comprou cedo demais os ingressos para o teatro precipitouse em têlos à mão tanto assim que precisou pagar mais por isso A cunhada de modo similar apressase rumo ao joalheiro a fim de comprar uma joia com o dinheiro ga nho como se corresse o risco de se atrasar ao fazêlo Juntemos a esses tão enfáticos cedo demais e preci pitadamente o pretexto em si para o sonho a notícia segundo a qual a amiga apenas três meses mais jovem encontrara enfim um homem decente e a crítica ex pressa no xingamento dirigido à cunhada a de que aquela sua pressa era absurda e como que espon taneamente deparamos com a seguinte construção dos pensamentos oníricos latentes para os quais o sonho manifesto constitui maldisfarçado sucedâneo Foi um absurdo da minha parte ter me apressado tanto em me casar Pelo exemplo de Elise vejo agora que mesmo mais tarde teria arrumado um marido A pressa é representada por seu comportamento quan do da compra dos ingressos e pelo da cunhada ao com prar a joia O sucedâneo para o casamento surge aqui como a ida ao teatro Teríamos aí o pensamento prin cipal Talvez possamos seguir adiante embora com menor certeza porque nos pontos a seguir a análise não poderia prescindir das manifestações da sonhado ra Teria conseguido um lugar cem vezes melhor pelo mesmo dinheiro cento e cinquenta florins é cem ve zes mais que um florim e cinquenta centavos Se nos 11 OS SONHOS é lícito tomar o dinheiro pelo dote isso significaria a compra do marido com o dote tanto a joia como os ingressos ruins figurariam aqui no lugar do cônjuge Ainda mais desejável seria que precisamente o elemen to três ingressos tivesse algo a ver com um homem Nossa compreensão porém não chega a tanto Adivi nhamos apenas que o sonho expressa a suóestimação do marido e o arrependimento por ter se casado tão cedo Meu juízo é que ficaremos mais surpresos e confusos do que satisfeitos com o resultado dessa primeira inter pretação de um sonho Ela nos fornece dados demais de uma só vez mais do que aquilo com que no mo mento temos a capacidade de lidar Notamos já que não vamos esgotar os ensinamentos dessa interpretação Apressemonos pois em extrair daí a percepção da queles que reconhecemos como conhecimentos novos e seguros Em primeiro lugar é notável que nos pensamen tos latentes a ênfase principal recaia sobre o elemento da precipitação no sonho manifesto não encontramos sinal dele Sem a análise não poderíamos ter ideia de que esse fator desempenha um papel Parece portanto possível que justamente o principal aquilo que é central nos pensamentos inconscientes fique de fora do sonho manifesto Em razão disso a impressão que temos do sonho todo precisa ser profundamente transformada Em segundo lugar encontramos no sonho uma com binação sem sentido três por um florim e cinquenta Dos pensamentos oníricos extraímos a frase foi um absurdo ter me casado tão cedo Podese descartar a 166 8 SONHOS OE CRIANÇAS possibilidade de esse pensamento foi um absurdo ser representado no sonho manifesto pela inclusão neste de um elemento absurdo Em terceiro lugar um olhar comparativo ensina que a relação entre elementos mani festos e latentes não é de modo algum uma relação sim ples na qual um único elemento manifesto seja sempre o substituto de outro latente Antes é necessário que haja uma relação de conjunto entre esses dois campos dentro da qual um elemento manifesto pode representar vários elementos latentes ou um elemento latente pode ser substituído por diferentes elementos manifestos No que toca ao sentido do sonho e ao comportamen to da sonhadora em relação a ele haveria também muita coisa surpreendente a dizer Ela por certo reconhece a interpretação mas se espanta com seu resultado Não sabia que subestimava tanto seu marido e tampouco sabe por que o faz Nisso portanto ainda há muito de incompreensível Acredito realmente que ainda não es tamos equipados para interpretar um sonho e que ne cessitamos aprender mais e nos preparar melhor S SONHOS DE CRIANÇAS Senhoras e senhores Temos a impressão de que avan çamos depressa demais Recuemos um pouco Antes de empreendermos nossa recente tentativa de superar a difi culdade da deformação do sonho mediante nossa técnica havíamos dito a nós mesmos que melhor seria circundá r 11 OS SONHOS la atendonos àqueles sonhos em que a deformação não se apresenta ou se mostra em grau mínimo caso existam sonhos assim De novo isso representa um desvio na li nha evolutiva de nosso conhecimento uma vez que na realidade só notamos a existência dos sonhos livres de deformação depois de termos empregado com coerência nossa técnica interpretativa e de havermos efetuado aná lises completas dos sonhos deformados Os sonhos que procuramos se acham nas crianças Eles são curtos claros coerentes fáceis de entender e inequívocos e no entanto são indubitavelmente so nhos Não creiam os senhores que todos os sonhos in fantis são dessa mesma natureza Também a deforma ção do sonho tem início bem no começo da infância já se registraram sonhos de crianças de cinco a oito anos que traziam em si todas as características dos posterio res Se contudo os senhores se limitarem ao período que vai desde o início da atividade psíquica reconhe cível até o quarto ou quinto ano de vida reunirão uma série de sonhos possuidores do caráter que se pode cha mar de infantil podendo ainda encontrar exemplos iso lados desses mesmos sonhos nos anos finais da infância Na verdade sob certas condições até pessoas adultas têm sonhos idênticos àqueles típicos da infância Desses sonhos infantis podemos extrair com grande facilidade e grau de certeza esclarecimentos acerca da natureza do sonho que segundo esperamos hão de se mostrar decisivos e de validade universal 1 Para a compreensão desses sonhos não é necessá rio realizar nenhuma análise e tampouco empregar uma 68 8 SONHOS DE CRIANÇAS técnica Não precisamos questionar a criança que conta seu sonho Mas é preciso acrescentar algumas informa ções de sua vida Sempre deparamos com uma expe riência vivida no dia anterior a nos explicar seu sonho O sonho é a reação da vida psíquica durante o sono a essa experiência vivida durante o dia Vejamos alguns exemplos a fim de neles basear con clusões ulteriores a Um menino de 22 meses deve dar de presente de aniversário uma cesta de cerejas Claramente ele o faz muito a contragosto embora tenham lhe prometido que ele próprio ganharia algumas delas Na manhã seguinte ele conta seu sonho Hermann comeu todas as cerejas h Uma menina de três anos e três meses atravessa o lago pela primeira vez Na hora de desembarcar ela se recusa a deixar o barco e chora copiosamente Para ela a viagem de barco parece ter passado rápido demais Na manhã seguinte Essa noite estive no lago Por certo po demos complementar essa viagem durou mais tempo c Um garoto de cinco anos e três meses participa de uma excursão ao Escherntal junto de Hallstatt Tinha ouvido falar que Hallstatt ficava no sopé da Dachstein montanha pela qual demonstrara grande interesse Da casa no Aussee tinha uma bela vista da Dachstein e com o binóculo podiase ver lá no topo a Cabana de Si mony O menino se empenhara repetidas vezes para con seguir avistar a cabana com o binóculo não se sabe com que resultado A excursão começou em um clima alegre de muita expectativa Sempre que uma nova montanha surgia o garoto perguntava Essa aí é a Dachstein 11 OS SONHOS Seu humor ia piorando à medida que recebia um não como resposta até que se calou de vez e não quis seguir a pequena trilha até a cachoeira Acharam que estava can sado demais mas na manhã seguinte ele relatou com grande felicidade Essa noite sonhei que estivemos na Cabana de Simony Havia sido com essa expectativa portanto que ele tomara parte na excursão Acerca dos detalhes relatou apenas o que já tinha ouvido antes até lá em cima são seis horas subindo degraus Esses três sonhos bastam para nos fornecer todas as informações desejadas 2 Vemos que esses sonhos infantis não são despro vidos de sentido são atos psíquicos compreensíveis e ple namente válidos Lembremse do que lhes disse inicial mente sobre o juízo da medicina acerca dos sonhos a comparação com dedos não versados em música desli zando sobre as teclas do piano Não escapará aos senho res quão radicalmente esses sonhos infantis contrariam aquela concepção Seria contudo demasiado peculiar que justamente a criança seja capaz de feitos psíquicos plenos durante o sono enquanto um adulto se contenta com reações semelhantes a espasmos Temos ademais todas as razões para acreditar que a criança goza de um sono melhor e mais profundo 3 Esses sonhos são isentos de deformação e por isso não requerem trabalho interpretativo Aqui os sonhos manifesto e latente coincidem Assim a deformação não é da essência do sonho Suponho que isso tira um peso do coração dos senhores Todavia examinandoos mais de perto admitiremos haver uma porçãozinha de deforma 8 SONHOS DE CRIANÇAS ção certa diferença entre conteúdo onírico manifesto e pensamentos oníricos latentes também nesses sonhos 4 O sonho infantil é a reação a uma experiência vi vida durante o dia que deixou algum arrependimento algum anseio ou um desejo não realizado O sonho tra a realiação direta não encoberta desse desejo Pensem agora em nossas explicações sobre o papel dos estímu los corporais externos ou internos como perturbadores do sono e incitadores de sonhos Chegamos a ele por meio de fatos absolutamente seguros mas não logramos elucidar dessa maneira senão uma pequena quantidade de sonhos Nesses sonhos infantis nada aponta para a influência de tais estímulos somáticos nisso não temos como nos equivocar uma vez que os sonhos são intei ramente compreensíveis e fáceis de apreender em sua totalidade Nem por isso contudo é necessário que de sistamos da etiologia dos estímulos no sonho Podemos tão somente nos perguntar por que desde o início nos esquecemos de que além dos corporais há também es tímulos psíquicos perturbadores do sono Sabemos afi nal que devemos a tais excitações a perturbação do sono do adulto na medida em que elas o impedem de produ zir a disposição psíquica para o sono ou seja a retirada do interesse no mundo Ele não quer interromper a vida preferindo antes dar continuidade ao trabalho nas coi sas que o ocupam razão pela qual não adormece Para a criança tal estímulo psíquico perturbador do sono é o desejo não resolvido ao qual ela reage com o sonho 5 Daí chegamos pelo caminho mais curto a uma informação importante sobre a função do sonho Como 11 OS SONHOS reação ao estímulo psíquico ele precisa ter o valor de uma resolução desse estímulo a fim de que este possa ser eliminado e o sono possa prosseguir De que forma o sonho possibilita dinamicamente essa resolução ain da não sabemos mas já podemos perceber que o sonho não perturba o sono como ele é acusado de fazer ele é antes o guardião do sono o eliminador das perturbações ao sono Embora acreditemos que teríamos dormido melhor se não fosse pelo sonho estamos errados na realidade sem o auxílio do sonho não teríamos nem sequer dormi do É mérito do sonho que tenhamos dormido bem Ele não deixa de nos incomodar um pouco da mesma forma como o guardanoturno com frequência é obrigado a fa zer algum ruído enquanto dá caça aos perturbadores da paz desejosos de nos acordar com seu barulho 6 Que um desejo seja o causador do sonho que a realização desse desejo seja o conteúdo do sonho é uma de suas características principais A outra caracterís tica igualmente constante é que o sonho não apenas dá expressão a um pensamento mas apresenta sob a forma de uma experiência alucinatória aquele desejo como realizado Quero atravessar o lago diz o desejo que enseja o sonho o sonho em si tem por conteúdo estou atravessando o lago Portanto uma diferença en tre os sonhos latente e manifesto uma deformação do pensamento onírico latente está presente também nes ses simples sonhos infantis tratase da transformação do pensamento em experiência 11i11ida Na interpretação do sonho cumpre sobretudo desfazer essa alteração Caso isso venha a se confirmar como uma característica das 8 SONHOS OE CRIANÇAS mais gerais do sonho então o fragmento relatado an teriormente yejo meu irmão dentro de uma caixa não se traduz por meu irmão se restringe e sim por eu gostaria que meu irmão se restringisse meu irmão pre cisa se restringir Das duas características gerais do so nho apresentadas aqui a segunda tem obviamente mais chance de ser aceita sem contestação do que a primeira Apenas mediante investigações bastante abrangentes poderemos assegurar que o causador do sonho há de ser sempre um desejo e não uma preocupação uma inten ção ou uma recriminação Isso no entanto não afetará a outra característica a de que o sonho não reproduz simplesmente esse estímulo mas o anula elimina re solve por meio de uma espécie de experiência vivida 7 A partir dessas características do sonho pode mos retomar a comparação do sonho com o ato falho Neste último diferenciamos a tendência perturbadora daquela que sofreu perturbação constituindo o ato fa lho um compromisso entre ambas O sonho inserese nesse mesmo esquema A tendência que sofreu pertur bação só pode ser a tendência a adormecer A tendência perturbadora é substituída nesse caso pelo estímulo psíquico ou digamos pelo desejo que demanda resolu ção porque não identificamos até o momento nenhum outro estímulo psíquico perturbador Também o sonho é resultado de um compromisso As pessoas dormem mas experimentam a eliminação de um desejo satisfa zem um desejo mas ao mesmo tempo prosseguem com o sono Ambas as coisas são em parte realizadas e em parte abandonadas 173 11 OS SONHOS 8 O senhores se lembram de que anteriormente nu trimos a esperança de obter acesso à compreensão dos problemas do sonho a partir do fato de que certas cons truções fantasiosas e bastante transparentes para nós são chamadas de sonhos diurnos Esses sonhos diurnos são na verdade realizações de desejos de desejos ambicio sos e eróticos que nos são bem conhecidos Mas ainda que vividamente representados são desejos pensados jamais vividos de forma alucinatória Das duas caracte rísticas principais do sonho os sonhos diurnos mantêm portanto aquela de que temos menos segurança ao pas so que a outra está ausente porque depende do sono e não é realizável no estado de vigília O uso da língua nos dá pois um sinal de que a realização do desejo é característica central do sonho Paralelamente a isso se a experiência vivida no sonho é apenas imaginação transformada possibilitada pelas condições do sono ou seja um sonhar diurno noturno compreendese de pronto que o processo de formação do sonho logra eliminar o estímulo noturno e proporcionar satisfação uma vez que também o sonho diurno é atividade ligada à satisfação e que só cultivamos por causa dela Além desse outros usos da língua se manifestam na mesma direção Conhecidos provérbios alemães dizem que o porco sonha com bolotas de carvalho e o ganso com milho ou perguntam com que sonha a galinha com milho Os provérbios portanto descem ainda mais indo da criança ao animal e afirmam que o conteúdo do sonho é a satisfação de uma necessidade Muitos usos idiomáticos parecem sugerir o mesmo como quando se 174 8 SONHOS DE CRIANÇAS diz da beleza que ela é de sonho ou quando afirmamos coisas como nem em sonho eu teria pensado nisso ou nem em meus sonhos mais ousados eu teria imagina do Nisso o uso da língua toma evidente partido É verdade que existem também sonhos angustiantes e so nhos de conteúdo embaraçoso ou indiferente mas estes não serviram de estímulo à língua Embora ela reconhe ça a existência de sonhos ruins o sonho em si é para ela apenas a doce realização de um desejo Tampouco encontramos um provérbio que nos assegure que o por co ou o ganso sonham com a própria morte Naturalmente é inconcebível que o caráter de realiza ção do desejo exibido pelo sonho não tenha sido notado pelos autores que escreveram sobre o assunto Na verdade muitas vezes esse caráter foi mencionado mas a ninguém ocorreu reconhecêlo como uma característica geral e fazer dele a pedra angular para a explicação dos sonhos Bem podemos imaginar o que os impediu de tomar esse caminho e falaremos sobre isso em mais detalhe Mas vejam os senhores toda a gama de explicações que extraímos da consideração dos sonhos infantis e quase sem esforço nenhum Depreendemos deles a fun ção do sonho como guardião do sono seu surgimento a partir de duas tendências concorrentes das quais uma permanece constante a demanda pelo sono ao passo que a outra almeja satisfazer um estímulo psíquico a prova de que o sonho é um ato psíquico pleno de senti do suas duas características principais a realização do desejo e a vivência alucinatória E ao descobrir tudo isso quase pudemos nos esquecer de que estávamos fa 175 11 OS SONHOS zendo psicanálise À parte a ligação estabelecida com os atos falhos nosso trabalho não exibiu nenhum cunho especificamente psicanalítico Qualquer psicólogo que nada saiba dos pressupostos da psicanálise poderia ter nos fornecido o mesmo esclarecimento acerca dos so nhos infantis Por que nenhum o fez Se só existissem sonhos como os infantis o proble ma estaria resolvido nossa tarefa teria sido cumprida e aliás sem inquirir o sonhador sem recorrer ao inconsciente e sem fazer uso da livre associação Aí está evidentemente a tarefa ainda a cumprir Repetidas vezes já nos ocorreu de características dadas como de validade geral se confirmarem apenas em certo tipo e certa quantidade de sonhos Para nós tratase assim de saber agora se as características gerais depreendidas dos sonhos infantis são mais duradouras se elas valem também para sonhos não transparentes cujo conteúdo manifesto não permite reconhecer nenhuma relação com algum desejo diurno que restou Acreditamos que esses outros sonhos sofreram uma abrangente defor mação e por isso não podem ser avaliados de pronto Imaginamos também que para o esclarecimento des sa deformação vamos precisar da técnica psicanalítica da qual pudemos prescindir na recémadquirida com preensão dos sonhos infantis Existe todavia ainda uma classe de sonhos que não se mostram deformados e que como os infantis podem facilmente ser reconhecidos como realizações de dese jos São aqueles que ao longo de toda a vida são pro vocados por necessidades somáticas imperativas como a 175 8 SONHOS DE CRIANÇAS fome a sede a necessidade sexual ou seja realizações de desejos como reação a estímulos somáticos internos As sim anotei um sonho de uma menina de dezenove meses que consistia em um cardápio do qual constava também o nome dela Anna F morangos morangos silvestres ovos mexidos mingau como reação a um dia de jejum motivado por um problema digestivo problema este que fora relacionado à fruta que figura duas vezes no sonho Ao mesmo tempo sua avó cuja idade somada à da neta perfazia setenta anos precisara jejuar um dia inteiro em razão do transtorno de um rim flutuante e na mesma noite sonhou que convidada à casa de alguém lhe ha viam servido os melhores petiscos Observações feitas em prisioneiros obrigados a passar fome e em pessoas que sofreram privações em viagens e expedições ensi nam que sob tais condições são constantes os sonhos em que figura a satisfação de tais necessidades É o que em Antarctic 1904 Otto Nordenskjold relata sobre a tripulação que passou o inverno com ele vol I pp 336 ss Bastante característico da direção tomada por nos sos pensamentos mais íntimos eram nossos sonhos que jamais haviam sido tão vívidos e numerosos como ago ra Mesmo aqueles dentre nossos camaradas que em ge ral quase nunca sonhavam tinham agora pela manhã quando trocávamos nossas últimas experiências nesse mundo da fantasia longas histórias para contar Todas elas tratavam do mundo exterior agora tão distante de nós embora com frequência adaptadas a nossa situação atual Na maior parte das vezes nossos sonhos gira vam em torno de comida e bebida Um de nós que se 177 11 OS SONHOS distinguia por participar de grandes almoços noturnos ficava felicíssimo quando de manhã podia contar que tinha feito uma refeição de três pratos outro sonhava com tabaco com montanhas inteiras de tabaco e outros ainda com o navio que a toda vela se aproximava pelo mar aberto Menção aqui merece também um outro so nho O carteiro vem trazer a correspondência e dá uma longa explicação sobre por que ela demorou tanto a che gar ele a teria entregado no endereço errado e somen te depois de muito esforço havia conseguido reavêla É claro que durante o sono nos ocupávamos de coisas ainda mais impossíveis mas a falta de fantasia em quase todos os sonhos tanto os que eu próprio sonhei como aqueles que me contaram era bastante notável Decer to seria de grande interesse psicológico que todos esses sonhos tivessem sido anotados Mas é fácil compreender o quanto ansiávamos pelo sono uma vez que ele podia nos oferecer o que cada um de nós mais ardentemen te desejava Cito ainda uma passagem extraída de Du Prel Mungo Park perto de morrer de sede em viagem pela África sonhava sem cessar com os vales e as prada rias abundantes em água de sua terra natal Da mesma forma Trenck atormentado pela fome na fortaleza de Magdeburgo viase cercado de opulentas refeições e George Back que participou da primeira expedição de Franklin sonhava constante e regularmente com ricos banquetes enquanto em consequência de terríveis pri vações aproximavase da morte por inanição É comum que vítima de sede noturna uma pessoa que tenha degustado pratos de forte tempero durante o 178 8 SONHOS DE CRIANÇAS jantar sonhe estar bebendo No sonho é decerto impos sível resolver uma necessidade mais forte de comida ou bebida o sonhador acorda sedento e precisa então to mar água de verdade Na prática é insignificante o que o sonho opera nesse caso mas não menos claro é que ele surge com o propósito de preservar o sono do estí mulo que compele ao despertar e à ação Com frequên cia porém tratandose de necessidades menos intensas sonhos de satisfação bastam para superálas Também sob a influência de estímulos sexuais o so nho proporciona satisfação mas esta revela peculiarida des dignas de nota Em razão de o instinto sexual ser um pouco menos dependente de seu objeto do que a fome e a sede a satisfação nos sonhos em que há polução pode ser real em virtude de certas dificuldades na relação com o objeto as quais mencionaremos mais adiante é muito comum que essa satisfação real se vincule a um conteúdo onírico obscuro ou deformado Como notou Otto Rank essa peculiaridade dos sonhos que apresen tam polução os torna objetos propícios para o estudo da deformação do sonho Nos adultos aliás todos os so nhos motivados por necessidade costumam conter além da satisfação algo que provém de fontes estimuladoras puramente psíquicas e que para sua compreensão de mandam interpretação De resto não é nosso desejo afirmar que os sonhos de realização de um desejo dos adultos moldados à se melhança dos infantis só ocorrem como reação às ne cessidades imperativas já mencionadas Conhecemos também sonhos curtos e claros dessa mesma natureza 179 11 OS SONHOS influenciados por certas situações dominantes os quais provêm de fontes estimuladoras indubitavelmente psí quicas Assim é por exemplo com os sonhos de impa ciência quando alguém já fez os preparativos para uma viagem uma apresentação teatral que lhe é importante uma palestra ou uma visita e sonha então com a rea lização antecipada de sua expectativa ou seja na noite anterior ao evento vêse já em seu destino no teatro ou em conversa com seu anfitrião O mesmo se verifica naqueles que com razão são chamados sonhos de con forto quando alguém que gostaria de prolongar o sono sonha já ter se levantado se lavado ou já estar na es cola ao passo que na realidade segue dormindo pre fere levantarse no sonho a fazêlo de verdade Nesses sonhos o desejo de dormir que já identificamos como partícipe constante da formação do sonho ganha clara expressão e se revela seu principal formador A necessi dade de dormir colocase com toda razão ao lado das outras grandes necessidades físicas Quero mostrar aos senhores mediante a reprodução de um quadro de Schwind que está na Galeria Schack de Munique com que propriedade o pintor apreendeu o surgimento de um sonho a partir de uma situação vi gente Tratase do Sonho do prisioneiro que não pode ria ter por conteúdo outra coisa senão sua libertação É muito próprio que a libertação ocorra por meio da janela porque dela penetra o estímulo de luz que põe fim ao sono do prisioneiro Os gnomos sobrepostos provavelmente representam as sucessivas posições que ele teria de assumir em sua escalada para alcançar a al r8o 8 SONHOS OE CRIANÇAS tura da janela e se não estou enganado se não atribuo ao artista demasiada intencionalidade o gnomo mais ao alto aquele que serra as grades fazendo portanto o que ele próprio gostaria de fazer ostenta os mesmos traços faciais do prisioneiro Em todos os sonhos à exceção dos infantis e da queles de tipo infantil a deformação como já afirmei se interpõe em nosso caminho como um impedimento De início não sabemos dizer se todos eles são realização de um desejo como supomos de seu conteúdo manifes to não depreendemos o estímulo psíquico que lhes deu origem e tampouco podemos provar que estão todos empenhados na abolição ou resolução desse estímulo Precisam ser interpretados isto é traduzidos é necessá rio desfazer a deformação substituir seu conteúdo ma nifesto pelo latente antes que possamos formar um juízo sobre se aquilo que descobrimos em relação aos sonhos infantis pode reivindicar validade para todos os sonhos 81 Moritz von Schwind O sonho do prisioneiro 9 A CENSURA DOS SONHOS 9 A CENSURA DOS SONHOS Senhoras e senhores A partir do estudo dos sonhos de crianças pudemos conhecer a gênese natureza e função do sonho Os sonhos são remoções de estímulos psíquicos perturbadores do sono pela via da satisfoção alucinatória Dos sonhos dos adultos no entanto logramos esclare cer um só grupo aquele formado pelos sonhos que de signamos de tipo infantil O que se passa com os demais ainda não sabemos e tampouco os compreendemos Por enquanto chegamos a uma conclusão cuja impor tância não queremos subestimar Sempre que um sonho é inteiramente compreensível ele se revela a realização alucinatória de um desejo Essa coincidência não pode ser casual nem irrelevante Com base em reflexões diversas e na analogia com nossa concepção dos atos falhos supomos que um so nho de outro tipo seja um sucedâneo deformado de um conteúdo conhecido e precisa ser relacionado a este pri meiramente A investigação e a compreensão dessa de formação do sonho constituem pois nossa próxima tarefa A deformação do sonho é que faz com que ele nos pareça estranho e incompreensível Queremos saber várias coisas a seu respeito em primeiro lugar de onde ela vem sua dinâmica em segundo o que ela faz e por fim como o faz Podemos afirmar também que a defor mação é obra do trabalho do sonho Vamos pois des crever o trabalho do sonho e remontálo às forças que nele atuam 11 OS SONHOS Ouçam agora o sonho que vou lhes contar Ele foi registrado por uma dama de nosso círculo2 e segundo informou ela provém de uma senhora de meiaidade bastante respeitada e culta Não se procedeu a nenhu ma análise desse sonho Nossa informante assinala que para psicanalistas ele não necessita de interpretação A própria sonhadora tampouco o interpretou mas julgou o e condenouo como se soubesse interpretálo uma vez que declarou sobre ele E coisa semelhante repug nante e estúpida como essa é o que sonha uma mulher de cinquenta anos que noite e dia não pensa senão em cuidar do filho Eis o sonho dos serviços amorosos Ela vai ao hospital número I da guarnição e dir ao guarda no portão que precisa folar com o médicochefo doutor fala um nome que lhe é desconhecido porque quer prestar serviços no hospital Ao dirêlo ela enfotira a palavra serviços de tal maneira que o subo ficial nota de pronto que se trata de serviços amorosos Como é uma senhora de idade ele depois de certa he sitação a deixa entrar Mas em vet de ir até o médico chefo ela chega a uma sala grande e escura na qual muitos oficiais e médicos militares se encontram em pé e sentados ao redor de uma mesa comprida Ela se di 2 A dra von HugHellmuth No original Liehesdienste que significa primariamente serviço feito por caridade ou por obséquio mas que adquire no contex to um sentido menos inocente pois Liehe é amor 9 A CENSURA DOS SONHOS rige a um médico e capitão que depois de umas pou cas palaYras a compreende perfoitamente No sonho o conteúdo textual de sua fola é Eu e muitas outras mulheres e moças de Viena estamos prontas a em prol dos soldados de toda a corporação e de seus oficiais sem distinção Aqui a fola no sonho se torna um murmúrio Que porém ela foi bem compreendida por todos os presentes é o que mostram a ela as expressões em parte constrangidas em parte maliciosas nos rostos dos oficiais A dama prossegue Sei que nossa decisão causa estranhera mas ela foi tomada com toda a seriedade No campo de batalha tampouco perguntam ao soldado se quer ou não morrer Seguese um silêncio embaraçoso de cerca de um minuto O médico e capitão passa o braço pela cintura da dama e dir Prerada senhora suponha que chegue de foto a acontecer de murmúrio Ela se esquiYa do braço do capitão enquanto pensa consigo São mesmo todos iguais Em seguida responde Deus do céu sou uma mulher de idade e talYe nem chegue a tanto De resto uma condição teria de ser respeita da a de que se leYe em consideração a idade isto é a de que jamais uma mulher de meiaidade e um garoto joyem murmúrio Isso seria paYOroso O médico responde Compreendo perfoitamente Alguns oficiais riem alto dentre eles um que na juYentude a cortejou A dama então deseja ser leYada à presença do médico chife seu conhecido a fim de pôr tudo em pratos lim pos Para seu grande espanto ocorrelhe então que ela não sabe o nome dele Ainda assim o médico a instrui com muita gentilera e respeito a subir até o segundo li OS SONHOS andar por uma estreita escada de forro de caracol que conduz da sala onde se encontram até o andar de cima Ao suhir a escada ela ouve um oficial dizer É uma decisão colossal tanto foz se uma mulher é jovem ou velha Meus parahéns I E com o sentimento de estar cumprindo um dever ela sohe por uma escada sem fim Esse mesmo sonho se repete mais duas vezes em poucas semanas com modificações insignificantes e que não lhe comprometem o sentido geral como in forma a própria dama Em seu caráter contínuo tratase de um sonho que equivale a uma fantasia diurna São poucas as rupturas e muitos detalhes de conteúdo poderiam ter sido clarifi cados com uma investigação o que como os senhores sabem não ocorreu O que chama a atenção e desperta nosso interesse é o fato de o sonho ter várias lacunas lacunas não de memória mas de conteúdo Em três passagens é como se o conteúdo tivesse sido apagado As falas onde aparecem tais lacunas são interrompidas por um murmúrio Como não fizemos uma análise do sonho tampouco temos a rigor o direito de dizer al guma coisa sobre seu sentido Há nele porém alusões a partir das quais se podem tirar certas conclusões como por exemplo na palavra serviços amorosos acima de tudo os pedaços das falas que antecedem os murmú rios pedem uma complementação que não poderia ser mais inequívoca Se inserimos ali esse complemento teremos do ponto de vista do conteúdo uma fantasia segundo a qual a sonhadora está disposta a cumprindo 86 9 A CENSURA DOS SONHOS um dever patriótico oferecer sua própria pessoa para a satisfação das necessidades amorosas dos militares tan to dos oficiais como da corporação em geral Sem dú vida é muito chocante um exemplo de uma despudo rada fantasia libidinosa a qual no entanto nem sequer acontece no sonho Justamente onde o contexto exigiria esta confissão se acha no sonho manifesto um murmú rio indefinido algo se perdeu ou foi reprimido Espero que os senhores reconheçam como óbvio ser essa natureza chocante o motivo pelo qual as pas sagens em questão foram suprimidas Onde porém encontram os senhores paralelos dessa ocorrência Em nossos dias não é necessário ir muito longe Apanhem qualquer jornal que trate de política e os senhores verão que aqui e ali o texto está ausente em seu lugar rebri lha o branco do papel Todos aqui sabem que se trata da censura à imprensa Nos trechos agora em branco estava escrito alguma coisa malvista pela autoridade censora razão pela qual ela foi eliminada Por certo é uma pena pensam os senhores porque era o mais inte ressante a melhor passagem do artigo Outras vezes a atuação da censura não se deu no texto já pronto O autor previu para quais passagens se haveria de esperar a objeção da censura e em razão dis so atenuouas preventivamente modificouas um pouco ou se deu por satisfeito com sugestões e alusões ao que de fato desejaria escrever Nesse caso o jornal não exibe pedaços em branco mas a partir de certos rodeios e obs curidades de expressão os senhores poderão adivinhar o experiente cuidado tomado de antemão com a censura 11 OS SONHOS Atenhamonos a esse paralelo O que afirmamos é que também as falas não ditas no sonho encobertas por murmúrio foram vítimas de censura Referimonos es pecificamente a uma censura do sonho à qual devemos atribuir algum papel na deformação Onde quer que lacunas apareçam no sonho manifesto elas se devem à censura do sonho Cabenos na verdade ir além disso e identificar como manifestação da censura a lembrança particularmente débil indefinida e duvidosa de um ele mento do sonho em meio a outros de desenvolvimento mais nítido Raras vezes porém essa censura se mani festa tão abertamente de modo tão ingênuo poder seia dizer como no exemplo do sonho dos servi ços amorosos Bem mais comum é que ela aconteça da outra forma isto é mediante a produção de atenuantes de sugestões e de alusões em lugar da coisa real Para uma terceira modalidade de atuação da censu ra não conheço paralelo no âmbito da vigente censura à imprensa Posso no entanto demonstrála no único sonho que analisamos até aqui Os senhores se lem bram do sonho dos três ingressos ruins por um florim e cinquenta Dos pensamentos latentes desse sonho constava com destaque o elemento precipitado cedo demais Seu significado era que havia sido absur do casarse tão cedo assim como absurdo fora com prar ingressos tão cedo e havia sido ridículo da parte da cunhada gastar o dinheiro com tanta pressa com prando com ele uma joia Desse elemento central dos pensamentos oníricos nada se transferiu para o sonho manifesto neste deslocamse para o centro a ida ao 188 9 A CENSURA DOS SONHOS teatro e a compra dos ingressos Esse deslocamento da ênfase esse reagrupamento dos elementos do sonho faz o sonho manifesto diferir tanto dos pensamentos oníricos latentes que ninguém suspeitaria da presença destes últimos por trás dos primeiros O deslocamento da ênfase é um dos principais meios de deformação do sonho ele confere ao sonho aquela estranheza em vir tude da qual o próprio sonhador não deseja reconhecê lo como seu Omissão modificação e reagrupamento do mate rial são portanto os efeitos produzidos pela atuação da censura e os meios empregados para a deformação do sonho A própria censura do sonho é a causadora ou uma das causadoras da deformação que ora exami namos Modificação e reordenamento é o que estamos acostumados a designar como deslocamento Após essas observações sobre os efeitos da censura do sonho voltemonos agora para sua dinâmica Es pero que os senhores não atribuam sentido demasiado antropomórfico ao termo julgando ser o censor dos sonhos um homúnculo severo ou um espírito que habi ta algum quartinho do cérebro e ali exerce sua função tampouco devem os senhores pensar em uma localiza ção imaginando uma central cerebral da qual parti ria tal influência censuradora passível de abolição caso a referida central sofresse dano ou fosse eliminada Por enquanto tratase apenas de um bom termo para de signar uma relação dinâmica Isso não nos impede de perguntar que tendências exercem semelhante influên cia e sobre quais tendências ela é exercida Não nos sur 11 OS SONHOS preenderá descobrir que já uma vez deparamos com a censura do sonho talvez sem reconhecêla Foi isso mesmo que aconteceu Lembremse de que tivemos uma surpresa quando começamos a empregar nossa técnica de livre associação Ao fazêlo senti mos uma resistência se opor a nossos esforços para a partir de um elemento do sonho chegar ao elemento inconsciente do qual ele é sucedâneo Essa resistência dissemos pode apresentar grandeza variável por ve zes é enorme outras vezes é minúscula Neste último caso nosso trabalho de interpretação só precisa ultra passar uns poucos estágios intermediários quando porém a resistência é grande então é necessário que atravessemos longas cadeias de associações vinculadas ao elemento somos conduzidos para bem longe dele e precisamos em nosso caminho superar todas as difi culdades que se apresentam como objeções críticas à as sociação feita Essa resistência que se nos opõe quando do trabalho interpretativo cabenos agora inserila no trabalho do sonho na qualidade de censura do sonho A resistência à interpretação é apenas a objetivação da censura do sonho Ela nos dá prova de que o poder da censura não se esgota na deformação extinguindose em seguida essa censura ao contrário persiste como instituição permanente e seu propósito é preservar a deformação Aliás assim como a resistência à interpre tação varia em sua grandeza de acordo com o elemento também a deformação produzida pela censura apresen ta grandeza variável em cada elemento de um mesmo sonho Se compararmos sonho manifesto e sonho la 9 A CENSURA DOS SONHOS tente veremos que alguns elementos latentes são eli minados por completo outros sofrem maior ou menor modificação e outros ainda permanecem inalterados ou podem ser intensificados e integrados ao conteúdo onírico manifesto Queríamos todavia examinar que tendências exer cem censura e contra quais tendências é dirigida Bem essa pergunta fundamental para a compreensão do so nho e talvez da própria vida humana é fácil de respon der se abarcarmos toda a série de sonhos submetidos a interpretação As tendências que exercem a censura são aquelas que o juízo desperto do sonhador reconhe ce aquelas com as quais ele se sente em concordância Tenham a certeza de que ao rejeitar uma interpretação correta de um sonho que tiveram os senhores o fazem pelos mesmos motivos pelos quais a censura do sonho entrou em ação a deformação se produziu e a interpre tação se fez necessária Pensem no sonho de nossa dama de cinquenta anos Ela acha seu sonho repugnante sem têlo interpretado teria ficado ainda mais indignada se a dra von Hug lhe houvesse comunicado algo da inter pretação inescapável e foi justamente por causa dessa sua condenação do próprio sonho que passagens cho cantes foram nele substituídas por murmúrios As tendências contra as quais a censura do sonho se volta devem ser descritas primeiramente do ponto de vista da própria instância que a exerce A partir dessa ótica só se poderá dizer que são de natureza condená vel que são ética estética e socialmente chocantes que são enfim coisas em que nem ousamos pensar ou em 11 OS SONHOS que só pensamos com repulsa Acima de tudo esses de sejos censurados e expressos de forma deformada são manifestações de um egoísmo sem limites nem conside ração E no entanto é o próprio Eu que está presente em cada sonho sempre como protagonista ainda que ele saiba se ocultar muito bem no conteúdo manifesto d h E d h os son os sse sacro egmsmo o son o por certo não está desconectado da atitude própria do sono que consiste afinal no desaparecimento de todo e qualquer interesse pelo mundo exterior O Eu liberto de todos os grilhões da ética sabese também em concordância com todas as reivindicações do anseio sexual tanto aquelas condenadas há tempos por nossa educação estética como as que contrariam por todas as exigências éticas de restrição O anseio por prazer a libido como dizemos escolhe seus obje tos sem qualquer escrúpulo e demonstra mesmo prefe rência pelos proibidos ou seja não apenas pela mulher do próximo como também e sobretudo por objetos incestuosos unanimemente sacralizados pelos seres hu manos a mãe e a irmã para os homens o pai e o irmão no caso das mulheres O próprio sonho de nossa dama de cinquenta anos é incestuoso uma vez que sua libido se volta inequivocamente para o filho Apetites que jul gamos distantes da natureza humana mostramse fortes o bastante para incitar sonhos Também o ódio grassa sem limites Desejos de vingança e de morte dirigidos contra pessoas próximas aquelas que mais amamos na Em italiano no texto sagrado egoísmo 9 A CENSURA DOS SONHOS vida como nossos pais irmãos cônjuge os próprios filhos não são nada incomuns Esses desejos censu rados parecem assomar em nós como se provenientes de um verdadeiro inferno após a interpretação quando já nos encontramos em estado de vigília não há censura que nos pareça dura o suficiente contra eles Mas não repreendam o sonho em si por esse conteú do mau Não se esqueçam de que ele tem a inofensiva e mesmo útil função de proteger o sono de toda perturba ção Essa maldade não é parte de sua essência Afinal os senhores sabem também da existência de sonhos re conhecíveis como de satisfação de desejos legítimos e de necessidades físicas urgentes Esses contudo não apre sentam deformação tampouco precisam dela porque podem cumprir sua função sem ofender as tendências éticas e estéticas do Eu Além disso tenham em mente que a deformação do sonho é proporcional a dois fato res por um lado ela é tanto maior quanto mais grave for o desejo a censurar e por outro quanto mais rigo rosas se apresentarem no momento as demandas da cen sura Assim sendo uma jovem mocinha educada com rigor e pudica vai deformar com censura implacável estímulos oníricos que nós médicos por exemplo ha veríamos de reconhecer como desejos libidinosos per mitidos e inofensivos desejos que a própria sonhadora entenderá dessa forma uma década mais tarde De resto ainda estamos longe de poder nos indignar com o resultado obtido por nosso trabalho interpretati vo Creio que ainda não o compreendemos bem mas acima de tudo cabenos a tarefa de protegêlo de cer 193 11 OS SONHOS tas objeções Não é nada difícil encontrar nele algum problema Nossas interpretações de sonhos foram feitas com base nas premissas que professamos anteriormen te isto é a de que todo sonho possui um sentido a de que podemos transpor do sono hipnótico para o normal a existência de processos psíquicos momentaneamente inconscientes e a de que todas as associações são de terminadas Se com base nessas premissas tivéssemos chegado a resultados plausíveis em nossa interpretação dos sonhos poderíamos dizer com razão que as premis sas estavam corretas Mas como afirmálo se os resul tados se apresentam como acabo de descrevêlos Se assim é o óbvio seria dizer são resultados impossíveis sem sentido nenhum e ao menos em parte bastante improváveis o que significa que algo estava errado nas premissas Ou o sonho não é um fenômeno psíquico ou não há nada de inconsciente em nosso estado normal ou ainda nossa técnica tem algum defeito Não é muito mais fácil e satisfatório aceitar que seja assim do que ad mitir todas as monstruosidades que supostamente des cobrimos com base em nossas premissas As duas coisas Seria sim mais fácil e mais satisfa tório mas nem por isso necessariamente mais correto Concedamonos tempo a questão ainda não admite um juízo definitivo Acima de tudo intensifiquemos a crítica a nossas interpretações Que seus resultados não causem alegria nem sejam agradáveis talvez não pese tanto assim Um argumento mais forte é o de que os so nhadores tendo nossa interpretação atribuído aos seus sonhos tais tendências dos desejos com boas razões as 194 9A CENSURA DOS SONHOS repudiam com toda a ênfase O quê dirá um A partir do meu sonho o senhor quer me provar que la mento o dinheiro que gastei no dote de minha irmã e na educação de meu irmão Mas não pode ser É só por meus irmãos que trabalho não tenho nenhum outro in teresse na vida a não ser cumprir meu dever para com eles como prometi sendo o mais velho à nossa fale cida mãe Uma senhora protestará Então eu desejo que meu marido morra Isso é um absurdo revoltan te Nós temos o mais feliz dos casamentos o senhor provavelmente não vai acreditar nisso e tem mais a morte dele tiraria de mim tudo que tenho neste mun do E um terceiro revidaria Tenho desejos sexuais com minha irmã Isso é ridículo Não tenho nenhum interesse nela nós nos damos mal e faz anos que não trocamos uma única palavra Talvez não atribuíssemos maior importância ao caso se esses sonhadores não confirmassem nem negassem as tendências que neles interpretamos poderíamos alegar que são coisas a seu respeito que eles próprios não sabem Mas o fato de eles sentirem que abrigam precisamente o desejo oposto ao interpretado e de poderem demonstrar mediante sua maneira de viver a predominância desse desejo contrá rio isso sim há de nos deixar desconfiados Não seria chegada a hora de abandonar por completo o trabalho na interpretação do sonho por terem seus resultados nos conduzido ad ahsurdum Não reitero que não é o caso Também esse argu mento mais forte desmorona quando o abordamos de forma crítica Pressupondose que existam tendências 11 OS SONHOS inconscientes na vida psíquica não possui força com probatória nenhuma a demonstração de que tendências opostas a elas são as predominantes na vida consciente Talvez a vida psíquica tenha lugar também para ten dências contrárias para contradições que existem lado a lado é mesmo possível que a predominância de um estímulo seja condição para o caráter inconsciente do estímulo contrário Ficase portanto com aquelas pri meiras objeções levantadas as de que os resultados da interpretação dos sonhos não são simples nem muito agradáveis À primeira cabe responder que nem todo o entusiasmo dos senhores pelo que é simples poderia re solver um único dos problemas do sonho é necessário portanto acostumarse a supor relações mais comple xas À segunda que os senhores evidentemente come tem uma injustiça ao se valer de sentimentos de bem estar ou repugnância como motivadores de um juízo científico Que importância tem o fato de os resultados da interpretação dos sonhos lhes parecerem desagradá veis ou mesmo vergonhosos e repugnantes Ça nempê che pas dexister Isso não impede que as coisas existam ouvi meu mestre Charcot responder certa vez quando eu ainda era um jovem estudante em situação pareci da É necessário ter humildade pôr de lado as próprias simpatias e antipatias se desejamos descobrir o que é real neste mundo Se um físico fosse capaz de provar aos senhores que a vida orgânica na Terra tem pouquíssimo tempo para escapar a um congelamento total ousariam os senhores revidar Não pode ser Essa perspectiva é muito desagradável Penso por certo que se cala 9 A CENSURA DOS SONHOS riam até que outro físico surgisse e demonstrasse ter havido um erro nas premissas ou nos cálculos daquele primeiro Quando repudiam o que lhes é desagradável o que fazem é antes repetir o mecanismo da formação do sonho em vez de compreendêlo e superálo Talvez os senhores prometam agora ignorar o ca ráter repugnante dos desejos oníricos censurados e retrocedam para o argumento de que é afinal impro vável que se destine espaço tão amplo para o mal na constituição humana Mas a própria experiência dos se nhores lhes dará o direito de fazer essa afirmação Não quero falar aqui sobre como os senhores se veem mas terão encontrado tamanha benevolência em seus supe riores e concorrentes tamanho espírito cavalheiresco em seus inimigos e tão pouca inveja em seu círculo de conhecidos a ponto de precisarem se sentir obrigados a contestar a porção de egoísmo e maldade na natureza humana Não conhecem os senhores o grau de desco medimento e de inconfiabilidade da média dos homens em todas as questões relativas à vida sexual Ou não sabem que todos os abusos e excessos com que sonha mos à noite são cotidianamente cometidos por seres hu manos em estado de vigília sob a forma de crimes O que faz a psicanálise senão confirmar as antigas pala vras de Platão que declarou serem os bons aqueles que se contentam com apenas sonhar com aquilo que os ou tros os maus fazem de fato Voltem agora o olhar do plano individual para o da grande guerra que segue devastando a Europa e pen sem nas brutalidade crueldade e hipocrisia imensas que 197 11 OS SONHOS hoje se espraiam pelo mundo da cultura Acreditam mesmo os senhores que um punhado de gananciosos e de aliciadores inescrupulosos teria conseguido libertar tantos espíritos maus não contassem eles com a cum plicidade dos milhões de aliciados Creem pois sob tais circunstâncias poder defender a exclusão do mal da constituição psíquica do ser humano Os senhores me repreenderão por julgar a guerra de maneira unilateral dirão que ela trouxe à tona também o que há de mais belo e mais nobre no homem sua co ragem heroica sua capacidade de sacrifício pessoal sua sensibilidade social Com certeza mas não sejam cúm plices da injustiça que com tanta frequência já se come teu contra a psicanálise recriminandoa por negar uma coisa porque afirma outra Não é nossa intenção negar as nobres aspirações da natureza humana nem jamais fizemos nada para diminuirlhes o valor Ao contrário mostro aos senhores não apenas os desejos oníricos maus e censurados mas também a censura que os re prime e os torna irreconhecíveis Se nos detivemos um pouco no que há de mau no ser humano e o enfatizamos com veemência foi só porque outros o negam o que não torna melhor mas apenas incompreensível nossa vida psíquica Se portanto abandonarmos a valoração ética unilateral decerto lograremos encontrar a fórmu la mais correta para a relação entre o mal e o bem na natureza humana Aí está portanto Não precisamos abandonar os re sultados de nosso trabalho na interpretação dos sonhos ainda que sejamos obrigados a julgálos desconcertan 9 A CENSURA DOS SONHOS 11 OS SONHOS compreensão do fenômeno Então estamos preparados para aceitar que na vida psíquica existem processos e tendências de que nada sabemos há muito tempo nada sabemos desde sempre talvez O inconsciente adquire assim um novo sentido para nós O momentâneo ou temporário desaparece de sua natureza talvez se trate de uma inconsciência permanente e não apenas de uma latência momentânea Voltaremos é claro a tratar também desse assunto em outra oportunidade 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS Senhoras e senhores Descobrimos que a deformação do sonho que nos turva sua compreensão é conse quência de uma atividade censória dirigida contra dese jos inconscientes inadmissíveis Todavia naturalmente não afirmamos que a censura é o único fator ao qual se deve a deformação do sonho e de fato o prossegui mento de nosso estudo nos possibilita descobrir que dela participam outros fatores Isso equivale a dizer que mesmo excluindo a censura onírica não seríamos capa zes de compreender os sonhos o sonho manifesto ainda não seria idêntico aos pensamentos oníricos latentes Esse outro fator que torna o sonho obscuro que também contribui para a deformação do sonho nós o descobrimos ao nos dar conta de uma lacuna em nossa técnica Já admiti aos senhores que com efeito por ve zes nada ocorre aos analisandos que eles sejam capazes 200 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS de associar a certos elementos do sonho É verdade que isso não ocorre tão frequentemente como afirmam em muitos casos a associação pode ser obtida através da perseverança Ainda assim casos há em que a associa ção não se apresenta ou em que mesmo que por fim a obtenhamos não corresponde ao que dela esperáva mos Isso tem um significado especial quando aconte ce durante um tratamento psicanalítico um significado que não nos interessa aqui mas o mesmo pode suceder também na interpretação dos sonhos de uma pessoa normal ou quando interpretamos nossos próprios so nhos Nesses casos quando nos convencemos de que a insistência de nada adianta verificamos por fim que essa ocorrência indesejada se repete em relação a cer tos elementos do sonho e começamos a identificar um novo padrão onde de início acreditávamos ter percebi do apenas uma falha excepcional da técnica Assim somos tentados a interpretar nós mesmos esses elementos mudos do sonho a empreender uma tradução deles com nossos próprios meios Somos então levados a reconhecer que toda vez que ousamos fazer essa substituição obtemos um sentido satisfatório ao passo que enquanto não nos decidimos a assim inter vir o sonho permanece desprovido de sentido e a ca deia é interrompida O acúmulo de casos parecidos se encarrega então de munir nossas tentativas de início tímidas da necessária certeza Apresentolhes essas considerações de forma algo es quemática o que é admissível para propósitos didáticos mas minha exposição nada falseia ela apenas simplifica 201 11 OS SONHOS Desse modo obtemos traduções constantes para uma série de elementos do sonho ou seja algo muito parecido com as que encontramos nos livros populares dedicados ao assunto Os senhores não terão se esque cido de que em nossa técnica associativa jamais apare cem substitutos constantes para os elementos do sonho De pronto os senhores dirão que esse caminho interpretativo lhes parece ainda mais incerto e ques tionável que o anterior por meio da livre associação Mas temos ainda algo a acrescentar De fato quando pela experiência já coletamos tais substituições cons tantes em número suficiente acabamos por dizer a nós mesmos que na verdade deveríamos ter chegado a tais porções da interpretação do sonho à custa de nos so próprio conhecimento que elas na realidade po deriam ter sido compreendidas sem as associações do sonhador De onde haveríamos de conhecer seu signi ficado isso é o que vamos ver na segunda metade de nossa discussão Chamamos de simbólica tal relação constante entre um elemento do sonho e sua tradução e ao elemento do sonho em si um símbolo do pensamento onírico in consciente Os senhores se lembram de que anterior mente ao analisar as relações entre elementos do so nho e a coisa autêntica por trás deles distingui três relações desse tipo a da parte pelo todo a da alusão e a da ilustração mediante imagens Anunciei então uma quarta que não nomeei Esta é pois a simbólica que agora introduzo A ela se relacionam discussões mui to interessantes que abordarei antes de expor nossas 202 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS observações específicas sobre o simbolismo O simbo lismo é talvez o capítulo mais notável da doutrina dos sonhos Antes de mais nada na medida em que os símbolos constituem traduções fixas eles realizam em certa medi da o ideal tanto da interpretação dos sonhos dos antigos como da interpretação popular do qual nos afastamos bastante com o emprego de nossa técnica Em determi nadas circunstâncias eles nos permitem interpretar um sonho sem inquirir o sonhador o qual de todo modo nada teria a dizer sobre o símbolo Conhecendose os símbolos oníricos usuais e além disso a pessoa do so nhador as condições em que ele vive e as impressões anteriores ao sonho podese muitas vezes interpretar um sonho sem maiores dificuldades traduzilo dire tamente por assim dizer Tal proeza é lisonjeira para o intérprete e impressiona o sonhador ela contrasta agradavelmente com o árduo trabalho inquisitivo Mas não se deixem seduzir por isso Realizar proezas não é nossa tarefa A interpretação baseada no conhecimento dos símbolos não constitui técnica capaz de substituir o procedimento associativo nem pode se equiparar a este é apenas seu complemento produzindo resultados que o alimentam Todavia no que tange ao conhecimento da situação psíquica do sonhador considerem que os se nhores não interpretarão apenas sonhos de pessoas que conhecem bem que em geral não saberão dos aconte cimentos diurnos que provocaram o sonho e que serão as associações dos analisandos a lhes informar sobre aquilo a que chamamos situação psíquica 203 11 OS SONHOS É ademais bastante curioso inclusive em relação a questões que mencionaremos mais adiante que de novo a mais veemente resistência se tenha feito ouvir contra a existência dessa relação simbólica entre o so nho e o inconsciente Mesmo pessoas de grande julga mento e reputação que concordaram amplamente com a psicanálise se recusam a seguila nisso Tanto mais curioso se revela esse comportamento quando se con sidera que em primeiro lugar o simbolismo não é pró prio apenas dos sonhos nem característico deles e em segundo que o simbolismo dos sonhos não foi desco berto pela psicanálise embora ela não careça de desco bertas surpreendentes Desejandose demarcar seu iní cio em tempos modernos é ao filósofo K A Scherner 1861 que se há de atribuir a descoberta do simbolismo dos sonhos A psicanálise apenas corroborou suas des cobertas modificandoas radicalmente porém Agora os senhores desejarão saber algo sobre a es sência desse simbolismo onírico assim como ouvir exemplos dele Relatolhes de bom grado tudo que sei mas confesso que nossa compreensão não vai tão longe quanto gostaríamos Em essência essa relação simbólica é uma compara ção mas não uma comparação qualquer Pressentimos que ela possui condicionalidade particular mas não sabemos dizer no que consiste essa condicionalidade Nem tudo aquilo com que podemos comparar um obje to ou um acontecimento figura no sonho como símbolo de um ou de outro Além disso o sonho tampouco se vale de símbolos para o que quer que seja ele os em 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS prega apenas para certos elementos dos pensamentos oníricos latentes Limitações existem portanto tanto em um caso como no outro É preciso admitir também que por enquanto não há como delimitar com preci são o conceito de símbolo que se confunde com os de substituição representação e que tais aproximandose ainda do de alusão Quando se tem uma série de símbo los a comparação que a fundamenta fazse óbvia Mas há outros conjuntos de símbolos diante dos quais somos obrigados a nos perguntar onde estaria o denominador comum o tertium comparationis da suposta comparação Examinandoos mais de perto é possível que o descu bramos mas ele pode também permanecer oculto É também singular sendo o símbolo uma comparação que essa não se deixe desvendar por intermédio da as sociação e que o sonhador a desconheça ou seja que ele se sirva da comparação sem saber dela E mais que mesmo depois de apresentado a ela o sonhador não se sinta nem sequer inclinado a reconhecêla Os senhores veem portanto que essa relação simbólica se constitui de uma comparação muito especial cujo fundamento ainda não compreendemos com clareza Mais adiante talvez possamos encontrar indícios daquilo que por ora desconhecemos Não é grande a extensão de coisas que podem en contrar no sonho representação simbólica O corpo humano como um todo os pais os filhos os irmãos o nascimento e a morte a nudez e ainda algumas ou tras A única representação da pessoa humana como um todo que é típica ou seja que se encontra com regu 11 OS SONHOS laridade é sua representação como uma casa como o percebeu Scherner que desejou mesmo atribuir a esse símbolo um significado extraordinário e indevido Acontece nos sonhos de às vezes com prazer às vezes com receio descermos pela fachada de uma casa Aque las fachadas que possuem paredes lisas são homens as que apresentam saliências e sacadas nas quais podemos nos segurar são mulheres Os pais figuram nos sonhos como imperadores ou imperatri1es reis ou rainhas ou en tão como outras figuras de respeito o sonho é nisso bastante reverente Menos afetuoso ele se revela no tra to com filhos e irmãos simbolizados por pequenos ani mais ou insetos O nascimento quase sempre encontra representação relacionada a água mergulhase na água ou saise dela resgatase uma pessoa da água ou se é resgatado por ela ou seja temse com essa pessoa uma relação maternal A morte é substituída nos sonhos pela partida por uma viagem de trem o estar morto por uma série de alusões obscuras como que hesitantes a nudez por roupas e uniformes Os senhores podem ver como aqui se confundem as fronteiras entre as representações simbólica e alusiva Em comparação com essa escassez de símbolos há de chamar a atenção o fato de objetos e conteúdos de outro âmbito encontrarem representação em um sim bolismo bastante rico Refirome ao âmbito da vida se xual dos órgãos genitais dos acontecimentos e relações sexuais A imensa maioria dos símbolos que aparecem nos sonhos compõese de símbolos sexuais Verificase aí uma notável desproporção os conteúdos designados 206 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS são poucos mas os símbolos para eles existem em quan tidade extraordinária de tal forma que cada um deles pode ser expresso por símbolos numerosos e quase equivalentes Da interpretação resulta assim algo que provoca generalizada irritação em contraposição com a diversidade apresentada nos sonhos as interpretações dos símbolos são bastante monótonas Isso desagrada todo aquele que toma conhecimento dessa monotonia mas o que se há de fazer Como essa é a primeira vez nestas conferências que falamos de conteúdos da vida sexual devo prestar con tas aos senhores sobre que tratamento pretendo dar a esse tema A psicanálise não vê motivo para dissimu lações e alusões julga não ser necessário que nos en vergonhemos de abordar assunto tão importante crê portanto que correto e decente é chamar as coisas pelo nome e espera assim manter distantes quaisquer pen samentos paralelos perturbadores O fato de estarmos falando a uma plateia composta de membros de ambos os sexos nada modificará nessa nossa postura Assim como não existe ciência in usum delphini tampouco existe ciência para mocinhas e as damas que aqui se en contram já indicaram mediante sua presença nesta sala de aula que desejam ser equiparadas aos homens Para o órgão genital masculino portanto o sonho possui uma série de representações a que podemos cha mar simbólicas e nas quais o denominador comum da comparação é em geral bastante óbvio Para a genitá lia masculina de forma geral tem importância simbó lica acima de tudo o sagrado número três Sua compo 11 OS SONHOS nente mais notória e de interesse para ambos os sexos o membro masculino encontra substitutos simbólicos antes de mais nada naquelas coisas que lhe são seme lhantes na forma ou seja compridas e verticalmente sa lientes como bengalas guardachuvas estacas árvores e coisas assim além disso em objetos que compartilham com o designado a propriedade de penetrar no corpo e ferir ou seja armas pontiagudas de toda sorte focas punhais lanças sahres assim como armas de fogo fu ris pistolas e revólveres estes em virtude de sua forma símbolos bastante apropriados Nos sonhos angustiados das moças a perseguição por um homem portando faca ou arma de fogo desempenha importante papel Esse é talvez o caso mais recorrente de simbolismo onírico o qual os senhores podem agora facilmente traduzir De fácil compreensão é também a substituição do membro masculino por objetos dos quais jorra água como tor neiras regadores chaforires ou por objetos capazes de alongarse como luminárias suspensas lapiseiras e assim por diante O fato de lápis hastes para pena de escrever lixas de unha martelos e outros instrumentos serem sím bolos sexuais masculinos inequívocos também se liga a um aspecto conhecido do órgão A propriedade notável do membro masculino que lhe permite erguerse contra a força da gravidade o que é parte do fenômeno da ereção leva à sua repre sentação simbólica mediante halões de ar aviões e mais recentemente o dirigível de Zeppelin O sonho no en tanto conhece ainda outra forma bem mais expressiva de simbolizar a ereção Ele transforma o membro se 208 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS xual no essencial da pessoa e a faz voar ela própria Não se deixem impressionar com o fato de que os sonhos em que estamos voando com frequência tão belos e tão conhecidos de todos nós só possam ser interpretados como sonhos de excitação sexual geral como sonhos de ereção Entre os pesquisadores psicanalistas P Fedem pôs essa interpretação acima de qualquer dúvida mas também Mourly Vold tão elogiado por sua sobriedade e condutor daqueles experimentos nos quais braços e pernas do sonhador eram posicionados artificialmente chegou a essa mesma conclusão em suas investigações embora efetivamente distanciado da psicanálise ou mes mo ignorante talvez de sua existência Não transfor mem em objeção o fato de também as mulheres terem esse mesmo tipo de sonho Lembremse antes de que nossos sonhos se pretendem realizações de desejos e de que o desejo de ser homem consciente ou inconscien te é bastante frequente nas mulheres E o fato de que seja possível as mulheres realizarem esse desejo com as mesmas sensações que o homem não deve desconcer tar ninguém que seja versado em anatomia Afinal a mulher possui em sua genitália um pequeno membro semelhante ao masculino e esse membrozinho o clitó ris chega a desempenhar papel idêntico ao do membro maior masculino tanto na infância como na idade que precede a primeira relação sexual Entre os símbolos sexuais masculinos menos com preensíveis estão certos répteis e peixes sobretudo o fa moso símbolo da cobra Por certo não é fácil explicar como foi que chapéus e casacos vieram a ter esse mesmo 11 OS SONHOS emprego mas seu significado simbólico é inquestioná vel Por fim podemos nos perguntar ainda se é lícito caracterizar como simbólica a substituição do órgão sexual masculino por outro membro isto é o pé ou a mão Creio que o contexto e as contrapartes femininas nos obrigam a fazêlo A genitália feminina é representada simbolicamente por todos aqueles objetos que partilham sua propriedade de encerrar um espaço oco que pode abrigar alguma coi sa dentro de si Ou seja poços grutas e cavernas assim como vasos e garrafos caixas latas malas caixinhas cai xotes holsas holsos e assim por diante Barcos pertencem também a essa categoria Outros símbolos guardam mais relação com o ventre materno que com a genitália feminina Esse é o caso dos armários dos fornos e sobre tudo dos quartos O simbolismo do quarto resvala no da casa com portas e portão a simbolizar a abertura genital Certos materiais também simbolizam a mulher como a madeira o papel e os objetos compostos desses mate riais como a mesa e o livro No que tange aos animais ao menos o caracol e o marisco devem ser citados como símbolos femininos inconfundíveis das partes do corpo humano a hoca representa a abertura genital no âm bito das edificações temos a igreja e a capela Como os senhores podem ver nem todos os símbolos são igual mente compreensíveis À genitália cabe acrescentar os seios que como os hemisférios maiores do corpo feminino encontram re presentação nas maçãs nos pêssegos e nas frutas em ge ral Os pelos que recobrem a região genital de ambos os 210 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS sexos o sonho os descreve como um hosque ou matagal A complicada topografia dos órgãos sexuais femininos torna compreensível que com muita frequência eles sejam representados como uma paisagem com rochas floresta e águas ao passo que o mecanismo impressio nante do aparato sexual masculino faz com que toda sorte de máquinas complicadas o simbolizem Um símbolo digno de nota da genitália feminina é a caixinha de joiasjoia e tesouro são também nos sonhos designações da pessoa amada doces são uma representa ção frequente do prazer sexual A autossatisfação obtida com nossa própria genitália é sugerida por todo tipo de atividade lúdica Spielen inclusive tocar piano Repre sentações simbólicas requintadas da masturbação são o desli1ar e o escorregar assim como o arrancar um galho Um símbolo onírico particularmente notável constitui a queda ou a extração de dentes Em primeiro lugar ela por certo significa castração como castigo pela mas turbação Representações particulares do intercurso se xual são no sonho menos numerosas do que se poderia esperar pelo que foi dito até aqui Atividades rítmicas como dançar caYalgar e escalar merecem menção assim como experiências violentas como ser atropelado Além dessas simbolizamno certos trahalhos manuais e natu ralmente a ameaça com armas Os senhores não devem imaginar que o emprego e a tradução desses símbolos sejam coisas muito simples Deparamos aí com toda sorte de coisas a contrariar nos sa expectativa Parece quase inacreditável por exemplo que essas representações simbólicas com frequência não 2II 11 OS SONHOS distingam nitidamente os sexos Vários símbolos signi ficam pura e simplesmente um órgão genital tanto faz se masculino ou feminino Assim é por exemplo com a criança pequena o filho ou filha pequena Outras ve zes um símbolo predominantemente masculino pode ser usado para representar a genitália feminina ou vice versa Não se compreende esse mecanismo até que se tenha adquirido uma visão profunda do desenvolvi mento das representações sexuais nas pessoas Em di versos casos essa ambiguidade dos símbolos pode ser apenas aparente excetuamse também desse emprego bissexual os símbolos mais evidentes como armas hol sas e cazxas Quero agora partindo não do objeto representado mas do próprio símbolo dar aos senhores um panorama daquelas áreas das quais os símbolos sexuais são em ge ral extraídos e desejo acrescentar ainda alguns comen tários adicionais sobretudo no tocante aos símbolos possuidores de um denominador comum incompreen sível Um tal símbolo obscuro é por exemplo o chapéu ou talvez tudo que usamos para cobrir a cabeça em ge ral seu significado é masculino mas ele pode ser femi nino também Da mesma forma o casaco representa um homem nem sempre talvez com conotação genital Os senhores são livres para perguntar por quê A graYata que pende do pescoço e não é utilizada pelas mulheres é um claro símbolo masculino Roupa de baixo bran ca e roupa de cama em geral são símbolos femininos Yestimentas e unifOrmes substituem como já dissemos a nudez as formas do corpo sapatos e chinelos represen 212 10 O SIMBOLISMO OOS SONHOS tam a genitália feminina mesa e madeira já foram men cionadas como símbolos enigmáticos mas certamente femininos Escadas sejam elas de mão ou de madeira e escadarias assim como a locomoção sobre elas são símbolos seguros da relação sexual A um exame mais detalhado o caráter rítmico dessa locomoção salta aos olhos como denominador comum bem como talvez o crescimento da excitação a crescente falta de ar à medi da que se sobe por elas Já falamos aqui da paisagem como representação da genitália feminina Montanhas e rochas são símbolos do membro masculino o jardim é símbolo frequente da ge nitália feminina As frutas não representam os filhos e sim os seios Animais selvagens significam excitação se xual assim como maus instintos paixões Botões e flores designam a genitália feminina ou em especial a virgin dade Não se esqueçam de que os botões são de fato os órgãos genitais das plantas O quarto nós já o conhecemos como símbolo A re presentação pode aqui se expandir na medida em que as janelas e as entradas e saídas de um quarto assumem o significado das aberturas do corpo O quarto estar aberto ou fichado inserese também nessa simbologia e a chave que o abre é decerto um símbolo masculino Esse seria pois o material que compõe o simbo lismo dos sonhos Ele não se apresenta completo po deríamos tanto aprofundálo como expandilo Mas creio que o que temos parecerá mais que suficiente aos senhores e poderá mesmo irritálos Os senhores per guntarão Então quer dizer que eu vivo cercado de 213 11 OS SONHOS símbolos sexuais Todos os objetos que me circundam todas as roupas que visto todas as coisas que pego nas mãos tudo isso é sempre um símbolo sexual e nada mais Por certo motivos não faltam para que formu lemos perguntas admiradas e a primeira delas é De onde afinal extrair o significado desses símbolos oníri cos sobre os quais o próprio sonhador não nos dá infor mação nenhuma ou apenas informação insuficiente Minha resposta de fontes as mais diversas dos con tos de fada e dos mitos de contos burlescos e chistes do folclore isto é do conhecimento das tradições dos costumes dos provérbios e das cantigas populares do uso poético e do uso cotidiano da língua Por toda parte encontramos o mesmo simbolismo e em mui tos desses lugares nós o compreendemos sem maiores explicações Se examinarmos essas fontes em detalhe uma a uma encontraremos tantos paralelos com o sim bolismo onírico que só poderemos nos convencer da correção de nossas interpretações Segundo Scherner como já dissemos o corpo hu mano com frequência encontra na simbologia da casa sua representação no sonho Dando sequência a essa simbologia temos ainda janelas portas e portões as entradas para as cavidades do corpo bem como fachadas lisas ou dotadas de sacadas e saliências onde nos segurar Esse mesmo simbolismo contudo é o que encontramos no uso cotidiano da língua alemã quan do em tom familiar saudamos um conhecido como al tes Haus casa velha quando falamos em repreender alguém valendonos da expressão eins aufi Dachl geben 214 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS dar um safanão no telhado ou quando dizemos de uma pessoa que algo está errado em seu Oberstübchen quartinho de cima Em anatomia aliás as aberturas do corpo são chamadas Leibespforten portais do corpo De início surpreendenos que nossos pais figurem nos sonhos como casais reais ou imperiais Mas isso tem paralelo nos contos de fada Não nos vem à mente de súbito que muitos deles começam com as palavras era uma vez um rei e uma rainha e que isso nada mais significa senão era uma vez um pai e uma mãe Em linguagem familiar e brincalhona chamamos nossos fi lhos de príncipes e o primogênito é chamado prínci pe herdeiro O próprio rei se denomina pai da pátria E em tom de brincadeira chamamos crianças pequenas de Würmer minhocas e cheios de compaixão dizemos das arme Wurm a pobre minhoca Voltemos agora ao simbolismo da casa Quando em sonho nos valemos das saliências de uma casa para nos segurar isso não lembra a conhecida expressão idiomá tica alemã utilizada para designar seios bem desenvolvi dos Sie hat etwas rum Anhalten Nela a gente tem onde segurar Nesse mesmo domínio temos ainda outra ex pressão popular que diz Sie hat viel Holr vor dem Haus Ela tem muita madeira na frente da casa É como se a linguagem popular viesse em auxílio de nossa interpreta ção de que madeira é um símbolo feminino maternal Sobre a madeira há mais a dizer Não nos é possí vel compreender como foi que esse material veio a re presentar o caráter maternal feminino É possível no entanto que uma comparação entre as línguas venha 215 11 OS SONHOS nos ajudar A palavra alemã Holz madeira tem a mes ma raiz da palavra grega vÀTJ que significa matéria matériaprima Estaríamos aqui pois diante do caso nada incomum em que a designação genérica para ma terial acabaria por ser utilizada para designar um ma terial específico Madeira é também o nome de uma ilha no Atlântico O nome dado pelos portugueses quando de seu descobrimento se devia ao fato de à época a ilha apresentarse coberta de florestas Na língua portugue sa madeira é a palavra para Holz Os senhores hão de reconhecer que madeira com uma pequena alteração nada mais é que a palavra latina materia que constitui a designação genérica para material Materia por sua vez deriva de mater mãe O material de que uma coisa se constitui é por assim dizer sua mãe Essa antiga con cepção segue viva portanto no uso simbólico da ma deira como representante do maternal e do feminino No sonho o nascimento é em geral expresso me diante uma relação com a água Mergulhar na água ou emergir dela significa parir ou ser parido Não nos es queçamos de que esse símbolo se assenta duplamente sobre uma verdade histórica de nossa evolução Por um lado e esta é a verdade mais distante todos os mamí feros terrestres inclusive os antepassados do homem originaramse de animais aquáticos por outro todo mamífero todo ser humano passou na água a primeira fase de sua existência isto é mergulhado como embrião no líquido amniótico do ventre materno tendo saído da água ao nascer Não estou afirmando que o sonhador sabe disso o que defendo é ao contrário que ele não 216 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS precisa sabêlo Há outra coisa que o sonhador sabe provavelmente porque lhe contaram na infância e rea firmo que também neste caso o saber em nada con tribuiu para a construção do símbolo Quando criança contaramlhe que é a cegonha que traz os bebês mas de onde ela os traz Do lago da fonte ou seja também da água Quando informaram isso a um de meus pacientes na infância ele era um pequeno conde na época ele desapareceu por uma tarde inteira Por fim foram encontrálo deitado à beira do lago do castelo com o rosto voltado para a água a espiar com fervor ele queria ver se conseguia enxergar as criancinhas lá no fundo Nos mitos sobre o nascimento dos heróis que O Rank submeteu a análise comparativa o mais anti go é o do rei Sargão da Acádia e data de cerca de 28oo aC abandono e resgate na água desempenham pa pel predominante Rank reconheceu neles representa ções do nascimento análogas às que ocorrem nos sonhos Quando em um sonho resgatamos uma pessoa da água dela nos tornamos mãe ou fazemonos mãe simplesmen te No mito uma pessoa que salva uma criança da água declarase sua verdadeira mãe Em um conhecido chiste perguntase ao garoto judeu inteligente quem era a mãe de Moisés Ele responde sem titubear A princesa De jeito nenhum repreendemlhe ela só o tirou da água É o que ela diz ele replica provando assim ter encon trado a interpretação correta do mito No sonho partir em viagem significa morrer Quan do uma criança pergunta pelo paradeiro de um morto de quem sente falta é costume dizermos que a pessoa 217 11 OS SONHOS falecida foi viajar Mais uma vez eu gostaria de refutar a crença que afirma ter esse símbolo onírico se originado da desculpa utilizada com as crianças O poeta se ser ve dessa mesma relação simbólica quando fala do além como país não descoberto do qual nenhum viajante no traveller jamais regressou Também no cotidiano é corriqueiro falarmos em última viagem Quem co nhece o rito dos antigos sabe como a velha crença dos egípcios levava a sério a ideia da viagem à terra dos mortos Chegaram até nós vários exemplares do Livro dos mortos que era dado à múmia em viagem como se fosse um guia A partir do momento em que os locais de sepultamento foram separados daqueles de moradia essa última viagem dos mortos fezse de fato real Tampouco o simbolismo relativo à genitália é coisa peculiar apenas aos sonhos Cada um dos senhores terá algum dia cometido a descortesia de chamar a uma mu lher alte Schachtel caixa velha talvez sem saber estar se servindo de um símbolo genital O Novo Testamento diz A mulher é um vaso frágil As escrituras sagra das dos judeus em seu estilo tão próximo do poético estão repletas de expressões de um simbolismo sexual nem sempre bem compreendido e cuja interpretação no Cântico dos Cânticos por exemplo já conduziu a di versos malentendidos Na literatura hebraica posterior é bastante difundida a representação da mulher como uma casa nesta a porta representa a abertura genital Quando por exemplo ela não é mais virgem o homem Cf Hamlet ato m cena 1 218 10 O SIMBOLISMO OOS SONHOS se queixa de ter encontrado a porta aberta A mesa como símbolo da mulher também ocorre nessa mesma literatura A esposa diz do marido Arrumei a mesa para ele mas ele a virou Virar a mesa daria origem a crianças paralíticas Extraí esses exemplos de um ensaio escrito por L Levy de Bmo intitulado A simbologia sexual da Bíblia e do Talmud São os etimologistas que nos fazem crer que os bar cos em nossos sonhos representam as mulheres eles afirmam que em sua origem a palavra Schiffbarco designava vaso de barro ou seja era o mesmo que Schaffgamela A lenda grega de Periandro de Corinto e sua mulher Melissa oferecenos confirmação de que o forno representa a mulher e seu ventre Segundo o relato de Heródoto quando a fim de ter alguma notí cia dela o tirano conjurou a sombra de sua esposa a quem amava loucamente mas assassinou por ciúme a falecida comprovou sua identidade dizendolhe que ele Periandro tinha enfiado seu pão em fomo gela do um modo velado de se referir a um fato que não podia ser do conhecimento de mais ninguém Na An tropophyteia editada por F S KrauB e fonte insubstituí vel de tudo quanto diz respeito à vida sexual dos povos lemos que em certa região da Alemanha dizse da mu lher que pariu que seu fomo se partiu A preparação Em Zeitschrifi für Sexualwissenschafi Revista de Sexologia v I 1914 Heródoto História v92 Periandro se relacionara com ela já morta 219 11 OS SONHOS do fogo e tudo o que tem a ver com ela está impregnado de simbolismo sexual A chama é constantemente o ór gão genital masculino ao passo que o fogo ou o fogão é o colo feminino Se os senhores se surpreenderam com a frequência com que a paisagem é empregada no sonho para repre sentar a genitália feminina aprendam com os mitolo gistas qual foi o papel desempenhado pela Mãe Terra no ideário e nos cultos da Antiguidade e como esse sim bolismo determinou a concepção de agricultura Que no sonho o quarto representa uma mulher isso os se nhores tenderão a inferir do uso cotidiano da língua alemã em que Frau é substituído por Frauenrimmer ou seja faz com que a pessoa humana seja representada pelo espaço destinado a ela De modo semelhante fala mos em Sublime Porta ao nos referir ao sultão e a seu governo o próprio nome dado ao soberano no antigo Egitojàraó nada mais significa que grande recinto No antigo Oriente os recintos entre os portões duplos da cidade são locais de reunião à maneira das praças do mercado no mundo clássico Creio porém que essa derivação é por demais superficial Pareceme mais provável que o quarto tenha se tornado símbolo da mu lher em razão de ser o espaço que circunda os homens Que casa tem esse mesmo significado já sabemos da mitologia e da linguagem poética nos é lícito inferir que também cidade hurgo castelo e fortalera simbolizam a Frauenrimmer que significa literalmente quarto aposento de mulher é um sinônimo meio pejorativo de Frau mulher 220 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS mulher A questão poderia ser facilmente solucionada considerandose os sonhos daquelas pessoas que não falam nem entendem alemão Nos últimos anos tratei sobretudo pacientes de outras línguas e creio me lem brar de que em seus sonhos Zimmer aposento tinha igualmente o significado de Frauenrimmer ainda que sua língua não possuísse expressão análoga Há outros indícios de que a relação simbólica é capaz de ultrapas sar barreiras linguísticas o que aliás já foi expresso por G H von Schubert velho estudioso dos sonhos em 1814 Todavia nenhum de meus sonhadores des conhecia inteiramente a língua alemã razão pela qual cumpreme deixar essa diferenciação àqueles psicana listas que em outras terras possam coletar experiências com pessoas monolíngues Entre as representações simbólicas do órgão genital masculino não há praticamente nenhuma que não seja recorrente no uso jocoso vulgar ou poético da língua sobretudo entre os poetas da Antiguidade clássica In cluo aqui não só os símbolos que figuram nos sonhos mas símbolos novos também como as ferramentas em pregadas em diversos afazeres à frente de todas o arado No mais ao tratar da representação simbólica do masculino aproximamonos de um terreno bastante ex tenso e controverso do qual por razões de economia queremos nos manter distantes Desejo pois dedicar algumas observações apenas à simbologia do número 3 que por assim dizer não se encaixa no quadro geral Se esse número não deve a própria simbologia a seu caráter sagrado é questão que permanece em aberto Certo pa 221 11 OS SONHOS rece apenas que muitas das coisas tripartites que ocor rem na natureza derivam de tal significado simbólico seu emprego em brasões e emblemas como é o caso da folha do trevo Meras estilizações do órgão genital mas culino seriam também o chamado lírio francês tripar tido e o tríscele que figura no brasão singular de duas ilhas tão distantes entre si como a Sicília e a ilha de Man três pernas semidobradas que partem de um centro Na Antiguidade imagens do membro masculino eram consideradas a mais poderosa defesa apotropaea contra influências ruins e ligase a isso o fato de todos os amu letos de nosso tempo serem facilmente reconhecíveis como símbolos genitais ou sexuais Examinemos esses amuletos em geral usados sob a forma de pequenos pendentes prateados o trevo de quatro folhas o porco o cogumelo a ferradura a escada o limpachaminés O trevo de quatro folhas substituiu o de três na reali dade o apropriado a servir como símbolo o porco é um velho símbolo da fertilidade o cogumelo é sem dúvi da um símbolo fálico havendo mesmo aqueles que de vem seu nome científico à inequívoca semelhança com o membro masculino phallus impudicus a ferradura reproduz o contorno da abertura genital feminina e o limpachaminés portando sua escada faz companhia aos demais símbolos porque ele realiza um daqueles traba lhos com os quais o ato sexual é vulgarmente compara do cf Anthropophyteia Sua escada nós a conhecemos nos sonhos como símbolo sexual auxilianos aqui o uso cotidiano da língua alemã que nos mostra o emprego do verbo steigen escalar trepar com conotação sexual 222 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS Dizemos por exemplo den Frauen nachsteigen correr atrás das mulheres e ein alter Steiger um velho mulhe rengo Em francês língua em que a palavra para de grau é marche encontramos expressão análoga para um velho femeeiro un vieux marcheur Que o ato sexual de muitos animais maiores pressuponha escalar montar na fêmea provavelmente tem relação com isso A expressão arrancar um galho das Abreissen ei nes Astes como representação simbólica para a mas turbação não se revela apenas em concordância com designações vulgares para o ato masturbatório mas possui também paralelos mitológicos Particularmente curiosa no entanto é a representação da masturbação ou melhor do castigo para tanto a castração me diante a queda ou a extração de dentes porque encon tramos para isso uma contrapartida etnológica que pou quíssimos sonhadores hão de conhecer Não me parece haver dúvida de que a circuncisão praticada por tantos povos é um equivalente e um substituto da castração Relatamnos agora que certas tribos primitivas austra lianas praticam a circuncisão como rito de passagem à puberdade para festejar a virilidade do jovem ao pas so que outras vivendo bem próximas das primeiras substituem esse ato pela extração de um dente Com esses exemplos concluo minha exposição São apenas exemplos sabemos mais sobre o tema e os se nhores podem imaginar quão mais rica e interessante seria uma tal coletânea de exemplos colhida não por diletantes como nós mas por especialistas de fato em mitologia antropologia linguística ou folclore Algu 223 11 OS SONHOS mas conclusões agora se impõem que não podem ser definitivas mas nos darão muito o que pensar Em primeiro lugar deparamos com o fato de o so nhador ter à disposição um modo de expressão sim bólico que em estado de vigília ele não conhece nem reconhece Isso é tão espantoso quanto descobrirem os senhores que sua criada compreende sânscrito embora saibam que ela nasceu em uma aldeia da Boêmia e ja mais aprendeu essa língua Não é fácil lidar com esse fato a partir de nossas concepções psicológicas Tudo que podemos dizer é que o conhecimento dessa sim bologia é inconsciente ou seja que ele pertence à vida intelectual inconsciente do sonhador Mas tampouco esse dado nos basta Até aqui só havíamos precisado admitir a existência de aspirações inconscientes aque las das quais temporária ou permanentemente nada sabemos Agora porém tratase de mais de conhe cimentos inconscientes de relações de pensamento e comparações entre diferentes objetos o que resulta em que a todo momento um deles pode substituir o outro Essas comparações não são refeitas a cada vez mas es tão prontas e à disposição isso é o que se depreende do fato de elas serem as mesmas para pessoas diferentes e mesmo talvez de permanecerem as mesmas em dife rentes línguas De onde vem o conhecimento dessas relações sim bólicas O uso cotidiano da língua cobre apenas uma pequena parte delas Os variados paralelos com outras áreas são de modo geral desconhecidos do sonhador nós mesmos tivemos de nos esforçar para encontrálos 10 O SIMBOLISMO OOS SONHOS Em segundo lugar essas relações simbólicas não são coisa peculiar ao sonhador ou ao trabalho do sonho me diante o qual elas ganham expressão Já descobrimos que desse mesmo simbolismo se servem os mitos e os contos de fada os provérbios e as cantigas populares o uso cor riqueiro da língua e a fantasia poética O âmbito dessa simbologia é extraordinariamente grande o simbolismo dos sonhos constitui apenas uma pequena parte dele e não seria conveniente abordar toda essa problemática a partir do sonho Muitos dos símbolos empregados em outras partes não figuram no sonho ou nele aparecem raras vezes e vários dos símbolos oníricos não estão pre sentes em todos os outros domínios mas como viram os senhores somente aqui e ali Temos a impressão de estar diante de uma velha e já desaparecida forma de expres são da qual em diferentes domínios elementos variados permaneceram um aqui outro ali um terceiro talvez sob forma ligeiramente modificada em vários domínios Lembrome aqui da fantasia de um interessante doente mental que imaginou uma língua básica da qual todas essas relações simbólicas seriam resquícios Em terceiro lugar há de saltar aos olhos dos senho res que esse simbolismo não é apenas sexual nos outros domínios mencionados ao passo que no sonho os símbolos são empregados quase exclusivamente para dar expressão a objetos e relações de caráter sexual Tampouco isso é fácil de explicar Teriam símbolos de significado sexual original encontrado outro uso mais Cf o Caso Schreber 19u 11 OS SONHOS tarde e estaria ligada a isso a atenuação da represen tação simbólica em outros tipos de representação Es sas perguntas são claramente irrespondíveis a partir do estudo apenas do simbolismo onírico Podemos apenas nos ater à suposição de que existe uma estreita relação entre os símbolos verdadeiros e a sexualidade Em anos recentes recebemos importante aceno nes sa direção Um linguista Hans Sperber de Upsala cujo trabalho não possui nenhum vínculo com a psica nálise afirmou que coube às necessidades sexuais de sempenhar o papel mais significativo no surgimento e no desenvolvimento posterior da linguagem Seus sons iniciais serviam ao propósito da comunicação e de cha mar o parceiro sexual o ulterior desenvolvimento das raízes da linguagem teria acompanhado as diversas mo dalidades de trabalho dos primeiros seres humanos O trabalho era realizado em conjunto e acompanhado da repetição ritmada de manifestações de linguagem Com isso um interesse sexual se teria vinculado a ele O ho mem primitivo teria por assim dizer tornado o traba lho aceitável ao tratálo como equivalente e substituto da atividade sexual Assim a palavra proferida durante o trabalho conjunto possuiria dois significados ela de signava tanto o ato sexual como o trabalho equiparado a esse ato Com o tempo a palavra teria se desprendido de Cf H Sperber Über den Einfluss sexueller Momente auf Entstehung und Entwicklung der Sprache Sobre a influência de fatores sexuais na gênese e desenvolvimento da linguagem ma go v r 1912 226 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS seu significado sexual e se fixado nesse trabalho Gera ções mais tarde o mesmo aconteceria com nova palavra dotada de significado sexual e aplicada também a um novo tipo de trabalho Desse modo toda uma série de raízes da linguagem se teria formado todas de origem sexual mas todas elas tendo perdido esse significado Se está correta essa hipótese aqui sintetizada abrese para nós uma possibilidade de entendimento do simbolismo onírico Compreenderíamos por que no sonho que preserva algo dessa situação antiquíssima há uma quantidade tão extraordinária de símbolos para o se xual e por que armas e ferramentas em geral sempre representam os homens ao passo que a matéria em si e o material trabalhado representam as mulheres A re lação simbólica seria resquício da antiga identidade da palavra coisas que no passado tinham o mesmo nome dos órgãos genitais poderiam agora no sonho aparecer como símbolos desses mesmos órgãos A partir dos paralelos que traçamos para o simbo lismo onírico os senhores podem também avaliar a característica da psicanálise que contribui para torná la objeto de interesse geral como jamais a psicologia ou a psiquiatria lograram ser No trabalho psicanalítico tecemse relações com muitas outras ciências humanas e o estudo dessas relações promete frutos valiosos para a mitologia para a linguística para o folclore para a etnopsicologia e para o estudo da religião Os senhores julgarão pois compreensível que desse solo psicanalíti co tenha brotado uma revista que se propôs como tarefa exclusiva o cultivo de tais relações a revista mago fun 227 11 OS SONHOS dada em 1912 e dirigida por Hanns Sachs e Otto Rank Em todas essas relações a psicanálise atua como a parte doadora mais do que receptora É certo que isso lhe é vantajoso porque torna mais familiares seus estranhos resultados na medida em que eles reaparecem em outras esferas do conhecimento mas em regra é a psicanáli se que provê os métodos e pontos de vista técnicos cuja aplicação naquelas outras áreas há de se mostrar frutífe ra A vida psíquica do indivíduo nos fornece na inves tigação psicanalítica os esclarecimentos que nos permi tem solucionar muitos dos enigmas da vida das massas humanas ou ao menos lançar sobre eles a luz correta De resto ainda nem disse aos senhores sob que cir cunstâncias podemos obter uma visão mais aprofunda da daquela suposta língua básica em que âmbito a maior parte dela se preservou Enquanto não dispuse rem desse saber os senhores não poderão apreciar todo o significado dessa matéria Esse âmbito é o da neurose seu material são os sintomas e as demais manifestações dos doentes dos nervos para cujo esclarecimento e tra tamento a psicanálise foi criada Minha quarta consideração retorna pois a nosso ponto de partida e nos conduz à via prescrita Disse mos que mesmo que a censura do sonho não existis se ele não nos seria facilmente compreensível porque nos veríamos diante da tarefa de traduzir sua linguagem simbólica para a linguagem de nosso pensamento em estado de vigília O simbolismo é portanto ao lado da censura onírica um segundo fator independente da deformação do sonho É plausível supor no entan 11 O TRABALHO DO SONHO to que é confortável para a censura do sonho servirse desse simbolismo uma vez que ele conduz ao mesmo fim à estranheza e à incompreensibilidade do sonho Logo se mostrará se dando prosseguimento ao es tudo do sonho não haveremos de deparar com um novo fator a contribuir para a deformação Mas eu não gosta ria de deixar o tema do simbolismo onírico sem ainda uma vez mencionar o enigma que é o fato de esse tema ter encontrado tanta resistência entre as pessoas cultas se é tão inquestionável a difusão do simbolismo no mito na religião na arte e na linguagem A relação com a se xualidade não seria mais uma vez responsável por isso 11 O TRABALHO DO SONHO Senhoras e senhores Compreendidas a censura do so nho e a representação simbólica é certo que o tema da deformação ainda não está dominado por completo mas os senhores têm agora condições de compreender a maioria dos sonhos Para tanto basta que se valham das duas técnicas complementares evocar no sonhador associações que os conduzam do conteúdo substituto ao verdadeiro e a partir de seu próprio conhecimento tro car os símbolos por seus significados Mais tarde trata remos de algumas incertezas que aí seguem Podemos agora retomar um trabalho que já inten tamos realizar ainda que com meios insuficientes ao examinar as relações entre os elementos do sonho e seus 11 OS SONHOS conteúdos reais Constatamos naquele momento quatro relações principais a da parte com o todo a da aproxi mação ou alusão a da relação simbólica e a da repre sentação plástica das palavras Em escala maior é o que voltaremos a fazer mediante a comparação do conteúdo manifesto do sonho com o conteúdo latente que encon tramos pela via da interpretação Espero que os senhores nunca mais confundam essas duas coisas Se conseguirem fazer isso provavelmente já terão avançado mais na compreensão dos sonhos do que a maioria dos leitores de minha Interpretação dos sonhos Lembremse mais uma vez que o trabalho que trans forma o sonho latente em manifesto é chamado trabalho do sonho A operação que avança na direção contrária a que pretende conduzir do sonho manifesto ao latente é nosso trabalho de interpretação O trabalho interpretati vo deseja anular o trabalho do sonho Os sonhos de tipo infantil aqueles reconhecidos como de evidente realiza ção de desejos passaram em certa medida por esse tra balho do sonho ou seja pela transformação do desejo em realidade e em geral dos pensamentos em imagens visuais Eles não necessitam de interpretação basta que revertamos essas duas transformações Nos demais so nhos porém o trabalho do sonho abrange ainda o que chamamos de deformação e é essa deformação que cabe ao trabalho interpretativo desfazer Tendo comparado diversas interpretações vejome em condições de expor resumidamente aos senhores o que o trabalho do sonho faz com o material contido nos pensamentos oníricos la tentes Peçolhes porém que não busquem compreen 2JO 11 0 TRABALHO DOSONHO der demais o que segue A descrição que lhes faço deve ser ouvida com serena atenção A primeira realização do trabalho do sonho é a con densação Entendemos por isso o fato de o sonho manifes to encerrar menos conteúdo que o latente constituindo se portanto em uma espécie de tradução abreviada deste último A condensação pode vez por outra não ocorrer mas em geral está presente e com frequência é enorme Ela jamais inverte essa relação isto é jamais acontece de o sonho manifesto ser mais abrangente e rico em conteúdo que o latente A condensação se dá na medida em que I certos elementos latentes são ex cluídos 2 apenas um fragmento dos vários complexos do sonho latente figuram no manifesto 3 elementos la tentes que possuem algo em comum apresentamse reu nidos no sonho manifesto ou seja fundemse em uma única unidade Se assim o desejarem os senhores podem reservar o termo condensação para designar apenas esse último processo Seus efeitos são bem fáceis de demonstrar Se pensarem em seus próprios sonhos os senhores não te rão dificuldade de se lembrar da condensação de diver sas pessoas em uma só Essa pessoa composta de uma mistura terá por exemplo a aparência de A mas esta rá vestida como B estará executando uma tarefa que lembra C mas saberemos que se trata de D Natural mente com essa construção mista é realçado algo que as quatro pessoas têm em comum Assim como ocorre com pessoas podese também produzir uma mistura de objetos ou localidades uma vez obedecida a condição 2JI 11 OS SONHOS de que esses objetos ou localidades compartilhem de algo que o sonho latente acentua É como a construção de um conceito novo e fugaz que tem como núcleo esse elemento em comum Em regra a sobreposição dessas individualidades condensadas dá origem a uma imagem desfocada e indistinta como quando batemos várias fo tografias valendonos de uma única e mesma chapa A produção dessas construções mistas deve ser de grande importância para o trabalho do sonho uma vez que podemos demonstrar que na falta dos necessários elementos comuns estes são produzidos deliberada mente como ocorre por exemplo quando da escolha da expressão verbal para um pensamento Nós já tive mos contato com tais condensações e construções mis tas elas desempenharam um papel na origem de vários casos de lapso verbal Lembremse do rapaz que mani festou o desejo de hegleitdigen uma dama Além disso temos chistes cuja técnica construtiva remete a conden sação semelhante Mas excetuandose esses casos é lí cito afirmar que esse procedimento é incomum e causa estranheza É certo que a construção dessas misturas humanas que ocorrem nos sonhos tem sua contraparti da em muitas criações de nossa fantasia que facilmente combina em uma unidade aquilo que em nossa expe riência não se coaduna esse é o caso por exemplo dos centauros e dos animais fabulosos da antiga mitologia ou das pinturas de Bõcklin A fantasia criadora não é capaz de inventar coisa nenhuma o que ela faz é reunir componentes estranhos entre si Mas o singular no pro ceder do trabalho do sonho é que o material de que ele 232 11 O TRABALHO 00 SONHO dispõe são pensamentos que podem alguns deles ser repulsivos e inaceitáveis mas que são corretamente formados e expressos Esses pensamentos são levados pelo trabalho do sonho a tomar outra forma e é notá vel e incompreensível que nessa tradução nessa trans posição como que para outra escrita ou língua sejam aplicados os expedientes da fusão e da combinação Isso porque em regra uma tradução se empenha em atentar para as singularidades presentes no texto e em manter separadas as coisas semelhantes O trabalho do sonho se empenha justamente no contrário como sucede no chiste ele busca uma palavra ambígua capaz de conden sar pensamentos diferentes e oferecer a eles um ponto de encontro Não é necessário que compreendamos de imediato essa caraterística mas ela pode se revelar sig nificativa para o entendimento do trabalho do sonho Embora a condensação torne o sonho impenetrável não se tem a impressão de que ela seja um efeito da cen sura do sonho Preferível seria antes relacionála a fa tores mecânicos ou econômicos Mas de toda forma a censura se beneficia dela As realizações da condensação podem ser extraordi nárias Com seu auxílio às vezes é possível juntar dois pensamentos bem diferentes num único sonho mani festo de modo que se chegue a uma interpretação apa rentemente suficiente de um sonho e não se note uma possível superinterpretação No que toca aos vínculos entre os sonhos latente e manifesto a condensação pode também acarretar o fim de toda relação simples entre os elementos de um e de 233 11 OS SONHOS outro Um elemento manifesto corresponde ao mesmo tempo a vários elementos latentes no sentido inverso um elemento latente pode ter participação em vários elementos manifestos à maneira portanto de um en trelaçamento Na interpretação de um sonho descobri mos também que as associações feitas com determinado elemento manifesto não surgem necessariamente em se quência É frequente que tenhamos de esperar até que a totalidade do sonho tenha sido interpretada Assim o trabalho do sonho fornece um tipo bastan te incomum de transcrição dos pensamentos oníricos não uma tradução palavra por palavra ou signo por signo tampouco uma seleção conforme determinadas regras por exemplo se reproduzisse apenas as con soantes de uma palavra e excluísse as vogais e nem aquilo que poderíamos chamar de um representante isto é um mesmo elemento que seja sempre escolhido para representar vários outros O que ele nos dá é outra coisa bem mais complicada A segunda realização do trabalho do sonho é o des locamento Sobre ele por sorte já vimos algo e sabemos que é inteiramente obra da censura do sonho Ele se manifesta de duas formas na primeira um elemento la tente não é substituído por um seu componente próprio e sim por algo mais distante isto é por uma alusão na segunda a ênfase psíquica passa de um elemento im portante para outro irrelevante fazendo com que o so nho tenha outro centro e assim pareça estranho A substituição por uma alusão ocorre também em nosso pensamento no estado de vigília mas há uma 234 11 O TRABALHO DO SONHO diferença Quando pensamos acordados essa alusão precisa ser facilmente compreensível e a substituição deve guardar uma relação de conteúdo com a coisa real Também o chiste se vale com frequência da alusão ele abandona o requisito da associação conteudística e o substitui por associações externas insólitas como entre outras a homofonia e a polissemia Mantém contudo o requisito da compreensibilidade o chiste perderia todo o seu efeito se o caminho de volta da alusão ao real não resultasse fácil No sonho todavia a alusão a serviço do deslocamento libertouse dessas duas restrições Ela se liga ao elemento que substitui por meio de relações extrínsecas e remotas razão pela qual é ininteligível e quando revertida seu significado mais parece um chiste malsucedido ou uma explicação bastante forçada Com efeito a censura do sonho só atinge seu objetivo quan do logra tornar irreconhecível o caminho desde a alu são até a coisa real Como meio de expressão do pensamento o desloca mento da ênfase é um recurso inaudito No pensamento em estado de vigília nós o admitimos apenas de vez em quando a fim de obter um efeito cômico Posso evocar nos senhores a impressão de desatino que esse deslo camento provoca lembrando uma anedota Em certa aldeia havia um ferreiro que cometeu um crime digno de pena de morte O tribunal decidiu que ele deveria pagar pelo crime mas como aquele era o único ferreiro da aldeia e portanto indispensável e como a aldeia dis punha de três alfaiates um dos alfaiates foi enforcado em seu lugar 235 11 OS SONHOS A terceira realização do trabalho do sonho é a mais interessante psicologicamente Ela consiste na conver são de pensamentos em imagens visuais Estabeleçamos desde já que nem tudo nos pensamentos oníricos expe rimenta essa conversão muita coisa conserva sua for ma original e figura também no sonho manifesto como pensamento ou saber Além disso imagens visuais não são a única forma na qual se convertem os pensamen tos Mas elas são por certo o essencial na formação do sonho Essa porção do trabalho do sonho é a segunda mais constante como sabemos e no que diz respeito aos elementos oníricos isolados já tomamos conheci mento da representação plástica das palavras Está claro que essa não é uma realização fácil Para ter uma ideia de sua dificuldade imaginem terem os senhores assumido a tarefa de substituir por uma série de ilustrações as palavras de um importante artigo de jornal versando sobre política Os senhores serão pois lançados de volta da escrita alfabética para a pictórica Pessoas e coisas mencionadas poderão facilmente e tal vez até com vantagem ser substituídas por imagens as dificuldades aparecerão porém na representação de to das as palavras abstratas e de todas aquelas partes do discurso que indicam relações de pensamento como partículas conjunções e que tais No caso das palavras abstratas os senhores recorrerão a toda sorte de artifí cios Vão por exemplo dar ao texto do artigo nova re dação que talvez soe mais inusitada mas que contenha elementos mais concretos e mais aptos à representação Depois hão de se lembrar que a maioria das palavras 11 O TRABALHO DO SONHO abstratas compõese de palavras concretas que perde ram sua coloração motivo pelo qual tanto quanto pos sível recorrerão ao significado concreto original dessas palavras Ficarão felizes em poder representar o pos suir Besitren de um objeto mediante um sentarse real e físico em cima dele Daraufiitren Assim faz tam bém o trabalho do sonho Sob tais circunstâncias não haverão de ter os senhores grandes pretensões quanto à exatidão da representação Por isso mesmo permitirão também ao trabalho do sonho que ele substitua um ele mento tão difícil de ilustrar como por exemplo a que bra de um matrimônio ou adultério Ehebruch rup tura do casamento por outro tipo de quebra Bruch a de uma perna Beinbruch3 Desse modo conseguirão 3 Enquanto eu revisava as provas destas páginas o acaso me pôs nas mãos uma notícia de jornal que reproduzo aqui como um ines perado comentário ao que foi dito acima cASTIGO DIVINO Um hraço quehrado pelo adultério A sra Anna M esposa de um reservista processou a sra Klementine K por adultério A acusação afirma que K entreteve com Karl M um relacionamento passível de punição enquanto seu próprio marido estava no campo de batalha de onde inclusive lhe enviava mensal mente setenta coroas K já teria recebido muito dinheiro do marido da demandante ao passo que ela própria afirma precisar viver com o filho em uma situação de fome e miséria Companheiros do marido terlheiam revelado que K e M teriam visitado tavernas e se embebedado até tarde da noite Certa feita a acusada teria mesmo perguntado ao marido da demandante na presença de vá rios soldados se ele não iria se separar logo da velha para ir morar com ela A própria zeladora de K teria visto diversas vezes o ma rido da demandante vestido muito à vontade em casa de K Ontem perante um juiz de Leopoldstadt K negou conhecer M e haver tido com ele qualquer relação íntima 237 11 OS SONHOS em certa medida equilibrar as esquisitices da escrita pictórica quando se trata de substituir a alfabética Para a representação daquelas partes do discurso que indicam relações de pensamento como um por que um portanto ou um mas os senhores não poderão contar com semelhante auxílio Na conversão em imagens essas componentes do texto se perdem Da mesma forma o trabalho do sonho dissolve o conteúdo dos pensamentos oníricos nos objetos e ações que eram sua matéria bruta Os senhores poderão ficar satisfeitos se de alguma maneira tiverem a possibilidade de nos mais sutis detalhes das imagens indicar certas relações que em si mesmas não admitem representação É as sim que o trabalho do sonho logra expressar muito do conteúdo dos pensamentos oníricos latentes por meio de peculiaridades formais do sonho manifesto da ela Contudo a testemunha Albertine M declarou que K teria beijado o marido da demandante tendo sido flagrada por ela pró pria ao fazêlo Em audiência anterior M na condição de testemunha já ha via negado possuir relações íntimas com a acusada Mas ontem em carta ao juiz a testemunha retratouse das declarações feitas anteriormente e admitiu ter tido um relacionamento amoroso com K até junho passado Na audiência anterior ele teria negado sua relação com a acusada apenas porque esta lhe havia procurado an teriormente a seu depoimento e suplicado de joelhos para que ele a salvasse e nada dissesse Hoje escreveu a testemunha sintome compelido a oferecer a este tribunal confissão plena uma vez que quebrei meu braço esquerdo o que me parece ser castigo divino pela falta que cometi O juiz constatou que o ato sujeito a punição já prescreveu ao que a demandante retirou a acusação seguindose a liberação da acusada 11 O TRABALHO DO SONHO reza ou obscuridade desse conteúdo manifesto de sua decomposição em várias partes e de outros expedien tes semelhantes O número de sonhos parciais em que um sonho se decompõe equivale em geral ao núme ro de temas principais aos grupos de pensamentos no sonho latente Um breve sonho inicial com frequência relacionase com o sonho principal pormenorizado que lhe sucede à maneira de uma introdução ou da exposi ção de um motivo uma oração subordinada nos pensa mentos oníricos é substituída no sonho manifesto pela inserção de uma mudança de cena e assim por diante A forma em si dos sonhos portanto não é de modo algum irrelevante também ela requer interpretação Múltiplos sonhos em uma mesma noite costumam ter todos eles o mesmo significado e indicam o empenho por lidar de maneira cada vez melhor com um estímulo de intensi dade crescente Nos próprios sonhos isolados um ele mento de particular dificuldade pode encontrar repre sentação em dobretes isto é em símbolos diversos Na comparação continuada dos pensamentos oníri cos com os sonhos manifestos que os substituem des cobrimos muitas coisas para as quais não estávamos preparados como por exemplo que também a insen satez e a absurdidade dos sonhos podem ter significado Nesse ponto de fato a oposição entre as concepções médica e psicanalítica do sonho se aguçam em grau inaudito De acordo com a primeira o sonho é insensa Em linguística palavras de significado diverso e de mesma eti mologia como tenro e terno 239 li OS SONHOS to porque a atividade da psique sonhadora perdeu todo senso crítico na nossa concepção ao contrário o sonho só se torna insensato quando precisa dar representação a uma crítica o juízo isso é absurdo contida nos pensamentos oníricos O sonho da ida ao teatro já conhecido dos senhores três ingressos por um florim e cinquenta é um bom exemplo disso O juízo nele ex presso reza foi ahsurdo ter me casado tão cedo No trabalho interpretativo também descobrimos a que correspondem aquelas dúvidas e incertezas que o sonhador tantas vezes nos comunica sobre se deter minado elemento apareceu no sonho se se tratava de fato desse elemento ou de algum outro Essas dúvidas e incertezas em geral não têm correspondente nos pensa mentos oníricos latentes elas resultam inteiramente da atuação da censura do sonho e equivalem a uma tentati va de expurgo não inteiramente bemsucedida Entre nossos achados mais surpreendentes está o modo como o trabalho do sonho lida com oposições no mate rial latente Já sabemos que concordâncias nesse material são substituídas por condensações no sonho manifesto Pois as oposições recebem o mesmo tratamento dado às concordâncias e são expressas com particular predileção pelo mesmo elemento manifesto Um elemento do sonho manifesto que encerra uma oposição pode tanto significar ele próprio quanto seu contrário ou então as duas coisas ao mesmo tempo Somente o sentido poderá decidir qual tradução haveremos de escolher A isso se liga o fato de não haver no sonho uma representação para o não ou ao menos não uma representação inequívoca 240 11 O TRABALHO 00 SONHO Uma analogia bemvinda para esse estranho compor tamento do trabalho do sonho nos é oferecida pela evo lução das línguas Diversos linguistas afirmam que nas línguas mais antigas oposições como fracoforte claro escuro grandepequeno eram expressas por palavras de mesma raiz O sentido antitético das palavras primiti vas Assim no egípcio antigo lcen significava original mente forte e fraco Na fala as pessoas se valiam da entonação e dos gestos para se guardar de malentendidos no emprego de palavras tão ambivalentes na escrita faziamno mediante o acréscimo do chamado determina tivo ou seja de uma imagem que não era pronunciada Ken no sentido de forte era pois escrita mediante o acréscimo da imagem de um homenzinho em pé em se guida à palavra se o sentido pretendido era o de fraco a imagem que se seguia era a de um homem sentado dis plicentemente Apenas mais tarde mediante ligeiras mo dificações feitas na palavra primitiva homófona surgiram duas designações diferentes para os sentidos opostos que ela encerrava Do lcen significando fortefraco nasceu assim um lcen forte e um lcan fraco Abundantes resquícios desses antigos sentidos opostos de uma mes ma palavra conservaramse não apenas nos derradeiros desenvolvimentos das línguas antigas mas também em línguas mais novas e ainda vivas Quero lhes dar aqui al guns exemplos extraídos de K Abel 1884 Cf a longa resenha que Freud publicou sobre o trabalho de Abel com o mesmo título dele Sobre o sentido antitético das palavras primitivas 1910 241 11 OS SONHOS O latim possui essas palavras ainda e sempre ambi valentes como é o caso de altus alto e baixo e sacer sacro e sacrílego Exemplos de modificação de uma mesma raiz são clamare gritar e clam baixo quieto em segredo siccus seco e succus suco bem como no alemão Stimme voz e stumm mudo Quando comparamos línguas aparentadas os exem plos resultantes são muitos Em inglês loclc trancar em alemão Loch buraco Lücke lacuna Em inglês cleave fender em alemão klehen colar A palavra inglesa without comsem é hoje em pregada no sentido de sem Que além de significar acréscimo with possuía também o sentido se subtração isso é o que ainda hoje se depreende de compostos como withdraw retirar e withhold reter Algo semelhante acontece com a palavra alemã wieder Ainda outra peculiaridade do trabalho do sonho en contra paralelo na evolução das línguas No egípcio an tigo assim como em línguas posteriores acontecia de a sequência de fonemas das palavras de mesmo sentido se inverter Exemplos disso no inglês e no alemão são Topf e pot panela hoat barco e tuh banheira hurry pressa e Ruhe calma Balken viga e Klohen tora cluh por rete wait esperar e tiiuwen demorarse Ou no latim e no alemão capere e packen apanhar ren e Niere rim Tais inversões abordadas aqui em palavras isoladas ocorrem de formas variadas por obra do trabalho do sonho A inversão de sentido a substituição pelo con trário já conhecemos Além disso encontramos nos 11 0 TRABALHO DOSONHO sonhos inversão de situações da relação entre duas pes soas ou seja como num mundo ao revés No sonho com relativa frequência é a lebre que atira no caçador Além disso verificamos nele inversões na sequência dos acontecimentos de sorte que um fato causador su cede em vez de preceder o fato seguinte É como a en cenação de uma peça em um teatro de quinta categoria em que o herói tomba antes que dos bastidores seja disparado o tiro que deve matálo Há também sonhos nos quais toda a ordem dos elementos encontrase in vertida de forma que para extrair daí um sentido a interpretação deve considerar em primeiro lugar o que vem por último e por último o que vem primeiro Os senhores se lembram de que em nossos estudos sobre o simbolismo dos sonhos entrar ou cair na água significa o mesmo que emergir dela isto é parir ou ser parido e subir ou descer uma escada significam a mesma coisa É inegável a vantagem que a deformação do sonho é capaz de extrair dessa liberdade de representação É lícito que caracterizemos esses traços do trabalho do sonho como arcaicos Também eles estão presos a an tigos sistemas de expressão línguas e escritas e trazem consigo as mesmas dificuldades de que falaremos mais adiante em contexto crítico Antes porém façamos mais algumas considerações No trabalho do sonho tratase evidentemente de con verter em imagens sensoriais a maioria delas de nature za visual os pensamentos latentes vertidos em palavras Ora nossos pensamentos se originaram de imagens sen soriais desse tipo Seu primeiro material e seus estágios 243 11 OS SONHOS preliminares foram impressões dos sentidos ou melhor dizendo imagens mnemônicas delas Apenas depois ligaramse a elas palavras que por sua vez foram enfei xadas em pensamentos Assim o trabalho do sonho sub mete os pensamentos a um tratamento regressivo rever te seu desenvolvimento e essa regressão precisa deixar pelo caminho toda nova aquisição ocorrida no percurso que vai das imagens mnemônicas até os pensamentos Esse seria pois o trabalho do sonho Diante dos processos de que tomamos conhecimento ao examiná lo o interesse no sonho manifesto haveria de regredir consideravelmente Mas quero ainda dedicar algumas considerações a este último que é o único de que temos conhecimento direto É natural que o sonho manifesto perca importância para nós Há de nos parecer indiferente se ele se mostra bem composto ou se dissolve em uma série de imagens isoladas e desconectadas E mesmo que nos revele um ex terior aparentemente significativo sabemos que este sur giu através da deformação do sonho e com o conteúdo interno do sonho só poderá guardar relação tão pouco or gânica como aquela que a fachada de uma igreja italiana guarda com sua planta e estrutura Outras vezes também essa fachada do sonho possui seu significado reproduzin do um componente importante dos pensamentos oníricos latentes sob forma pouco ou nada deformada Isso con tudo não temos como saber antes de submeter o sonho à interpretação e a partir daí formar um juízo acerca do grau de deformação ocorrido Dúvida semelhante se ve rifica quando dois elementos parecem guardar íntima re 11 O TRABALHO 00 SONHO lação no sonho Essa relação aparente pode conter valiosa indicação para que também no sonho latente juntemos os equivalentes desses elementos outras vezes porém aquilo que os pensamentos integram o sonho separa De modo geral devemos nos abster da pretensão de explicar uma parte do sonho manifesto com base em outra como se o sonho tivesse sido concebido de forma coerente e constituísse uma representação pragmática Na maioria dos casos ele é antes comparável a uma brecha calcária que composta de fragmentos unidos por meio de um cimento natural forma desenhos que não integravam as pedras que lhe deram origem Com efeito há uma parte do trabalho do sonho a chamada elaboração secundária que cuida de produzir um todo mais ou menos coerente a partir dos resultados imedia tos do trabalho do sonho Com frequência ela organiza o material de acordo com um sentido inteiramente equi vocado e realiza inserções onde lhe parece necessário Por outro lado cumpre não superestimar o trabalho do sonho isto é não lhe atribuir feitos demasiados As operações listadas acima esgotam suas atividades mais que condensar deslocar dar representação plástica e de pois submeter o todo a uma elaboração secundária ele não pode fazer Juízos críticas expressões de perplexi dade conclusões nada disso é obra do trabalho do so nho e apenas raras vezes manifestação de uma reflexão sobre o sonho na maioria dos casos tratase de porções dos pensamentos oníricos latentes que modificadas em I maior ou menor grau e adaptadas ao contexto penetram no sonho manifesto O trabalho do sonho tampouco é 11 OS SONHOS capaz de compor falas À exceção de uns poucos casos que podemos indicar as falas nos sonhos constituem imi tações ou combinações de falas ouvidas ou pronunciadas no dia anterior que se inscreveram nos pensamentos la tentes como material ou como incitadoras do sonho O trabalho do sonho também não é capaz de fazer contas cálculos que figurem no sonho manifesto são em geral combinações de números falsas operações que não pos suem nenhum sentido aritmético ou mais uma vez são apenas cópias de contas dos pensamentos oníricos laten tes Assim sendo não é de admirar que o interesse volta do para o trabalho do sonho logo almeje afastarse dele em direção àqueles pensamentos oníricos latentes que deformados em maior ou menor grau o sonho manifesto acaba por revelar Não se pode contudo justificar que esse novo enfoque chegue ao ponto de na consideração teórica tomar pelo sonho em si o que são na verdade pensamentos oníricos latentes e que conduza a afirma ções acerca do primeiro que só podem ter validade em relação a este último É singular que os resultados da psi canálise possam ser empregados tão equivocadamente ensejando tal confusão Sonho só se pode chamar o resultado do trabalho do sonho ou seja a forma que esse trabalho dá aos pensamentos latentes O trabalho do sonho é um processo de natureza bas tante singular de um tipo do qual até o momento não se conhece nada igual na vida psíquica Condensações des locamentos e conversões regressivas de pensamentos em imagens como as que ele opera são novidades cujo mero conhecimento já recompensa abundantemente o empenho 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS psicanalítico Mais uma vez os senhores podem depreen der dos paralelos com o trabalho do sonho os vínculos que os estudos psicanalíticos revelam com outras áreas em especial com a evolução das línguas e do pensamento Mas uma ideia do real significado dessas descobertas os senhores só poderão ter ao tomar conhecimento de que os mecanismos da formação dos sonhos são modelares para a forma como surgem os sintomas neuróticos Sei também que ainda não podemos ter uma visão geral dos novos ganhos para a psicologia decorrentes desses trabalhos Queremos apenas assinalar as novas provas que eles fornecem da existência de atos psíquicos inconscientes tais são de fato os pensamentos oníri cos latentes e como a interpretação dos sonhos pro mete um amplo e insuspeitado acesso ao conhecimento da vida psíquica inconsciente Agora porém é chegada a hora de expor aos senhores em detalhes com uma variedade de exemplos breves de sonhos aquilo para o qual os preparei em linhas gerais 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS Senhoras e senhores Não fiquem decepcionados se mais uma vez eu lhes apresentar apenas fragmentos de interpretações de sonhos em vez de convidálos a participar da interpretação de um belo sonho comple to Dirão os senhores que depois de tantos preparati vos constituiria esse um direito adquirido convicção 247 11 OS SONHOS que expressariam argumentando que depois da bem sucedida interpretação de milhares de sonhos deve ria nos ser possível há tempos reunir uma coleção de ótimos exemplos para demonstrar todas as nossas afir mações sobre o trabalho do sonho e os pensamentos oníricos Sim mas são muitas as dificuldades que me impedem de realizar esse desejo Antes de mais nada devo confessar que não existe ninguém cuja principal ocupação seja interpretar so nhos Quando então nos ocupamos de interpretálos Vez por outra podemos nos dedicar sem nenhuma intenção particular aos sonhos de algum conhecido ou durante algum tempo à análise de nossos próprios sonhos a fim de nos preparar para o trabalho psicana lítico Na maioria dos casos porém os sonhos de que nos ocupamos são aqueles dos doentes de nervos em tratamento psicanalítico Esses sonhos oferecem ma terial extraordinário que nada fica a dever aos sonhos das pessoas saudáveis mas em razão da técnica de tra tamento vemonos obrigados a subordinar sua inter pretação às intenções terapêuticas e assim a abandonar toda uma série de sonhos tão logo tenhamos extraído deles algo de útil para o tratamento em questão Muitos dos sonhos que ocorrem ao longo da terapia subtraem se a uma interpretação completa Como eles nascem da grande quantidade de um material psíquico que ainda não conhecemos sua compreensão só se torna possível depois de encerrada a terapia Além disso a comunica ção desses sonhos iria requerer o desvelamento de todos os segredos de uma neurose o que não é o caso pois foi 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS justamente como preparação para o estudo das neuroses que abordamos o sonho Creio que os senhores renunciariam de bom grado a esse material e prefeririam ouvir a explicação para seus próprios sonhos ou para aqueles de pessoas saudáveis Mas isso tampouco é possível em razão do conteúdo de tais sonhos Não podemos expor de forma tão inconsi derada nem a nós mesmos nem a outra pessoa de cuja confiança gozamos e isso é o que demandaria a inter pretação detalhada de seus sonhos que como os senho res sabem envolveria os aspectos mais íntimos de sua personalidade Além dessa dificuldade relativa à obten ção do material a comunicação de tais sonhos implicaria uma outra Os senhores bem sabem que o sonho parece estranho até ao próprio sonhador que dirá a quem não o conhece Contudo nossa literatura especializada não carece de análises boas e pormenorizadas Eu próprio publiquei algumas relacionadas a determinados casos clínicos Talvez o mais belo exemplo de interpretação de um sonho seja aquele relatado por Otto Rank contendo dois sonhos interrelacionados de uma jovem Impressa sua descrição ocupa duas páginas a análise no entan to compreende 76 páginas Eu precisaria talvez de todo um semestre para conduzilos por semelhante trabalho Quando nos dedicamos a um sonho mais longo que te nha sido alvo de deformação mais intensa precisamos dar tantos esclarecimentos recorrer a tão extenso mate rial relativo a associações e lembranças entrar por tan tos desvios que uma palestra a seu respeito resultaria demasiado abrangente e insatisfatória Então peço aos 11 OS SONHOS senhores que se contentem com aquilo que podemos rea lizar mais facilmente isto é com o relato de pequenos pedaços dos sonhos de pessoas neuróticas nos quais pos samos isolar uma coisa ou outra Mais fáceis de demons trar são os símbolos oníricos e certas peculiaridades da representação onírica regressiva Vou indicar aos senho res por que julguei digno de comunicação cada um dos sonhos que relato a seguir 1 Um sonho que consiste apenas de duas breves imagens O tio do sonhador fuma um cigarro embora seja sábado Uma mulher alisa e acaricia o sonhador como se ele fosse seu filho No tocante à primeira imagem o sonhador judeu observa que seu tio é um homem religioso que jamais fez nem faria algo tão pecaminoso Com relação à mu lher da segunda imagem nada lhe ocorre a não ser sua própria mãe Evidentemente cumpre aqui relacionar essas duas imagens ou esses dois pensamentos Mas como Uma vez que o sonhador contestou expressa mente a realidade da atitude do tio é natural que intro duzamos aqui um se Se meu tio um homem santo fumasse um cigarro em pleno sábado então seria igual mente lícito que eu me deixasse acariciar por minha mãe Isso só pode significar que a carícia da mãe é coi sa tão proibida como é para o judeu devoto fumar no sábado Os senhores se lembram de eu lhes ter dito que no trabalho do sonho ficam suspensas todas as relações entre os pensamentos oníricos estes se dissolvem em material bruto e é tarefa da interpretação restabelecer as relações omitidas 250 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS 2 Em virtude de minhas publicações sobre o sonho acabei de certa maneira me tornando um consultor pú blico para questões relacionadas a esse assunto razão pela qual recebo há muitos anos correspondência das mais variadas partes na qual sonhos me são relatados ou submetidos para avaliação Sou grato claro a to dos aqueles que além do sonho me enviam material adicional que torne possível a interpretação bem como àqueles que me encaminham sua própria interpretação Pertence a esta última categoria o sonho a seguir de 1910 enviado por um estudante de medicina de Muni que Faço uso dele para mostrar aos senhores como é inacessível à compreensão um sonho antes que o so nhador nos tenha dado informações sobre ele Suponho na verdade que no fundo os senhores julguem ideal a interpretação que se vale de um significado simbólico e que prefeririam pôr de lado a técnica associativa Meu propósito é libertálos desse equívoco danoso 13 de julho de 1910 Perto do amanhecer tive o se guinte sonho Estou descendo de hicicleta uma rua de Tühingen quando um dachshund marrom vem correndo atrás de mim e me morde o calcanhar Pouco adiante des ço da hicicleta sentome numa escada e começo a golpear o animal cujos dentes seguem cravados em mim Nem a mordida nem a cena toda me causam sentimentos desa gradáveis Defronte estão sentadas duas ou três senhoras mais velhas que me ohservam com um sorrisinho Então acordo e como tantas vezes ocorre o sonho todo está claro para mim nesse momento de transição para a vigília 11 OS SONHOS Símbolos nos são aqui de pouca valia Mas o sonhador relata Recentemente apaixoneime por uma moça só de vêla na rua mas não tive oportunidade de fazer contato com ela Gostaria muito que o dachshund me oferecesse essa oportunidade porque gosto bastante de animais e achei simpática essa característica dela tam bém Ele acrescenta ainda que com grande habilida de e para espanto frequente dos espectadores já inter veio repetidas vezes em brigas de cachorros Ficamos sabendo portanto que a moça de que ele gostou pode ser vista constantemente na companhia de um cachorro dessa raça particular A moça foi excluída do sonho ma nifesto que mantém apenas o cachorro associado a ela Talvez as senhoras mais velhas a sorrir para ele figu rem no lugar dela O restante de seu relato no entanto não basta para esclarecer esse ponto O fato de ele estar de bicicleta no sonho é repetição direta da situação que tem na lembrança todas as vezes que encontrou a moça com o cachorro ele estava andando de bicicleta 3 Quando alguém perde um de seus parentes mais queridos os sonhos que essa pessoa tem por algum tempo são de um tipo especial em que a consciência dessa morte estabelece um notável compromisso com a necessidade de trazer de volta à vida o ente queri do Nesses sonhos por vezes o falecido está morto e no entanto segue vivendo porque não sabe que está morto morreria sim se soubesse disso Outras vezes apresentase semimorto e semivivo e cada um desses estados tem seus indícios particulares Não podemos caracterizar esses sonhos como simplesmente absurdos 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS uma vez que o retorno à vida não é mais inadmissível em um sonho do que por exemplo nos contos de fada onde é bastante comum Até onde logrei analisálos verifiquei que esses sonhos podem ter uma solução ra cional mas que o desejo pio de trazer o morto de volta à vida sabe se valer dos meios mais estranhos Expo nho aos senhores agora um sonho desse tipo que pa rece bem estranho e absurdo e cuja análise exibirá aos senhores muito daquilo para o qual nossas explicações teóricas os prepararam Tratase do sonho de um ho mem que perdeu o pai há muitos anos O pai está morto mas foi exumado e sua aparência é ruim Desde então segue vivendo e o sonhador for de tudo para que o pai não o perceha Depois disso o sonho em questão passa a tratar de outras coisas aparentemente bem diferentes O pai morreu disso sabemos A exumação não cor responde à realidade que de todo modo não conta mui to em relação ao resto Mas o sonhador relata depois de regressar do enterro do pai um dente começou a lhe doer Seu desejo era tratar esse dente de acordo com o que prescreve a religião judaica se um dente o incomo da arranqueo Assim sendo ele foi a um dentista Este porém lhe disse Não se arranca um dente assim É pre ciso ter paciência com ele Vou aplicar algo para matálo Daqui a três dias o senhor volta e aí extraímos Essa extração diz o sonhador de repente é a exumação Teria ele razão Não se trata bem disso e sim de coisa semelhante já que o que é extraído não é o dente em si 11 OS SONHOS mas o que está morto nele A julgar por outras experiên cias todavia inexatidões como essa devemos admitir no trabalho do sonho O sonhador teria então condensa do o pai falecido e o dente que havia sido morto mas não extraído fundira ambos numa mesma unidade Não admira pois que o sonho manifesto apresente algo sem sentido afinal nem tudo que se diz do dente se aplica ao pai Onde estaria o tertium comparationis entre dente e pai que torna possível essa condensação E no entanto assim deve ter sido porque o sonhador prossegue dizendo que sabe que sonhar com a queda de um dente significa a perda de um membro da família Sabemos que essa interpretação popular é incorre ta ou no mínimo correta apenas em sentido burlesco Tanto mais surpreendente será então redescobrir o tema assim abordado por trás dos outros segmentos do conteúdo do sonho Sem ser solicitado a fazêlo o sonhador começa em seguida a falar da enfermidade e da morte do pai assim como de sua relação com ele O pai sofrera uma longa enfermidade cujo tratamento havia custado muito di nheiro a ele o filho Este porém nunca achara nada daquilo demasiado nunca se impacientara nem nutrira o desejo de que tudo acabasse logo O sonhador se gaba de sua genuína piedade judaica em relação ao pai da rigorosa obediência da lei judaica Não chama a atenção aí uma contradição nos pensamentos que pertencem ao sonho Ele havia identificado o dente com o pai No tocante ao dente queria proceder segundo a lei judaica que determinava a extração caso o dente provocasse 24 12ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS dor ou incômodo Também em relação ao pai pretendia ter agido conforme os preceitos dessa lei nesse caso no entanto ela reza que não se dê atenção aos gastos ou aborrecimentos que se suporte toda dificuldade e não se tenha nenhuma intenção hostil contra o objeto que provoca a dor A concordância entre as duas atitudes não seria mais convincente se de fato o sonhador ti vesse desenvolvido em relação ao pai sentimentos se melhantes aos que abrigara contra o dente doente ou seja se tivesse desejado que uma morte rápida pusesse fim àquela existência supérflua dolorosa e dispendiosa Não tenho dúvida de que essa era na realidade sua postura em relação ao pai ao longo da demorada enfer midade e de que as alardeadas reafirmações de pieda de religiosa servem ao propósito de desviálo de tais lembranças Em condições assim o desejo da morte do genitor costuma despertar e se recobrir da máscara de uma ponderação compassiva tal como Para ele seria apenas um alívio Notem porém que aqui ultrapassa mos uma barreira no interior dos próprios pensamentos oníricos latentes A primeira parte deles por certo este ve inconsciente apenas durante algum tempo isto é durante a formação do sonho ao passo que as emo ções hostis voltadas contra o pai talvez tenham estado inconscientes desde sempre é possível que provenham da infância e que ao longo da enfermidade do pai te nham aqui e ali de um modo tímido e dissimulado adentrado sorrateiramente a consciência Com certeza ainda maior podemos dizer o mesmo de outros pensa mentos latentes que deram contribuições inequívocas 11 OS SONHOS ao conteúdo do sonho Das emoções hostis ao pai não encontramos sinal no sonho Mas se procuramos a raiz dessa hostilidade na infância lembramos que a angústia relativa ao pai se instala porque este já nos primeiros anos se opõe à atividade sexual do menino como por razões sociais também faz nos anos que se seguem à puberdade Essa relação com o pai também se aplica ao nosso sonhador Em seu amor por ele misturamse res peito e medo vindos da intimidação sexual prematura O complexo da masturbação explica então as de mais frases do sonho manifesto Se por um lado sua aparência é ruim faz alusão a outra fala do dentista que afirma resultar ruim a aparência quando se per de um dente naquela posição por outro a frase se refere também à aparência ruim por meio da qual o jovem na puberdade trai ou receia trair sua atividade sexual exagerada No sonho manifesto o sonhador não sem sentir alívio transfere a aparência ruim de si para o pai uma das inversões do trabalho do sonho conhe cida dos senhores Ele segue vivendo coincide tan to com o desejo de trazer o pai de volta à vida como com a promessa do dentista de poupar o dente Bastan te refinada é a oração o sonhador faz de tudo para que o pai não o perceba assim construída para nos levar a complementar não perceba que está morto Mas o único complemento que faz sentido resulta mais uma vez do complexo da masturbação em que é natural que o jovem tudo faça para ocultar do pai sua vida sexual Lembremse por fim de que sempre devemos interpre tar os chamados sonhos com estímulo dentário com 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS referência à masturbação e ao medo do castigo decor rente dessa prática Os senhores veem agora como surgiu esse sonho incompreensível ou seja a partir da produção de uma condensação singular e enganadora da omissão de to dos os pensamentos centrais ao encadeamento do pen samento latente e da criação de formações substitutivas de significado ambíguo para os pensamentos mais pro fundos e temporalmente distantes 4 Já tentamos várias vezes nos aproximar daqueles sonhos sóbrios e banais que nada contêm de absurdo ou estranho mas que levantam a questão por que so nhamos com coisas tão indiferentes Quero portanto expor um novo exemplo desse tipo três sonhos inter li gados que uma jovem senhora teve numa mesma noite a Ela caminha pelo vestíbulo de sua casa bate a cabeça no lustre que pende baixo do teto e começa a sangrar Não se trata de uma reminiscência nem de nada que tenha de fato ocorrido A informação que a sonhadora fornece leva a outros caminhos bem diversos O se nhor sabe como os cabelos me caem em grande quanti dade Filha disseme ontem minha mãe se continuar assim sua cabeça vai ficar lisa como um bumbum A cabeça representa aqui portanto a outra extremidade do corpo O significado simbólico do lustre nós podemos compreender sem precisar de ajuda todo objeto expansí vel simboliza o membro masculino Estamos pois dian te de um sangramento na extremidade inferior do corpo que resulta do choque com o pênis Isso ainda poderia ser ambíguo Mas as demais associações indicam que se 257 11 OS SONHOS trata da crença de que o sangramento menstrual adviria da relação sexual com o homem um elemento de teo ria sexual em que muitas moças imaturas acreditam h Ela vê no vinhedo uma vala profunda que sahe ter se originado de uma árvore arrancada Comenta a esse res peito que a árvore lhe falta Quer dizer com isso que no sonho não viu a árvore mas essa mesma formulação dá expressão a outro pensamento que garante completa mente a interpretação simbólica O sonho se refere a ou tra das teorias sexuais infantis à crença de que original mente as meninas possuíam o mesmo órgão genital que os meninos e de que sua configuração posterior teve ori gem por meio da castração o arrancar de uma árvore c Ela está diante da gaveta de sua escrivaninha e a co nhece tão hem que sahe de imediato se alguém mexeu ali Como toda gaveta caixote ou caixa a gaveta da escri vaninha representa a genitália feminina Ela sabe que se pode reconhecer na genitália os indícios do ato sexual ou de um simples toque como ela crê e teme há tem pos uma tal comprovação de culpa Creio que nesses três sonhos a ênfase recai sobre o saher A sonhadora se lembra de suas investigações sexuais infantis de cujos resultados tanto se orgulhava na época 5 De novo um pouco de simbolismo Desta vez no entanto é necessário que eu comece com um breve re lato prévio da situação psíquica Depois de uma noite de amor com uma mulher um senhor descreve sua parcei ra como uma daquelas naturezas maternais nas quais no trato amoroso com o homem o desejo de ter um filho se impõe de forma irresistível As circunstâncias 28 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS desse encontro porém requerem a precaução de que a ejaculação ocorra fora do ventre feminino Ao acordar na manhã seguinte a mulher relata o sonho a seguir Um oficial com um boné vermelho corre atrás dela na rua Em fuga ela sobe uma escada ele segue atrás Sem JOlego ela chega em casa e bate a porta Ele permanece do lado de fora e como ela pode ver pelo olho mágico sentase num banco e chora Nessa perseguição por parte do oficial com o boné vermelho e na resfolegante subida da escada os se nhores decerto reconhecem uma representação do ato sexual O fato de a sonhadora se fechar para o perse guidor pode lhes servir como exemplo daquelas inver sões tão empregadas no sonho pois na realidade foi o homem quem se absteve da conclusão do ato amoroso Também o pesar da mulher é deslocado para seu parcei ro que afinal é quem chora no sonho um choro que ao mesmo tempo sugere a ejaculação Os senhores alguma vez terão ouvido dizer que se gundo a psicanálise todos os sonhos têm um significado sexual Agora se veem numa posição que lhes permite formar um juízo a respeito da incorreção dessa crítica Conheceram os sonhos que expressam desejos os que tratam da satisfação das necessidades mais evidentes fome sede anseio por liberdade e conheceram tam bém os sonhos de bemestar e impaciência assim como os de pura ganância e egoísmo Mas que aqueles bastante deformados manifestam sobretudo não exclusiva mente repetimos desejos sexuais isso os senhores podem guardar como resultado da pesquisa psicanalítica 11 OS SONHOS 6 Tenho um motivo especial para coletar exem plos do emprego dos símbolos nos sonhos Em nosso primeiro encontro reclamei da dificuldade de efetuar demonstrações no ensino da psicanálise e portanto de despertar convicções e desde então os senhores certa mente concordam comigo Contudo as afirmações iso ladas da psicanálise guardam entre si relação tão íntima que a convicção pode facilmente espraiarse de um pon to específico para uma porção maior do todo Podese dizer da psicanálise que basta lhe dar a mão e ela já nos pega pelo braço Quem aceitar a explicação para os atos falhos não poderá pela via da lógica furtarse a crer em tudo o mais Um segundo ponto igualmente acessí vel da psicanálise é dado pelo simbolismo dos sonhos Vou apresentar aos senhores o sonho já publicado de uma mulher do povo cujo marido é policial e que com certeza nunca ouviu falar no simbolismo dos sonhos ou na psicanálise Julguem os senhores se a interpretação que se vale de símbolos sexuais pode ser chamada de arbitrária e forçada Então alguém invadiu a casa e com medo ela chamou por um policial Este porém em amigável companhia de dois vagabundos tinha ido a uma igre ja cuja porta de entrada tinha vários degraus Atrás da igreja erguiase um monte e lá em cima uma espessa floresta O policial exibia capacete gorjal e casaco Ti nha uma barba castanha e cerrada Os dois vagabun dos que o haviam acompanhado pacificamente leva vam aventais em forma de saco amarrados em torno do 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS quadril Diante da igreja um caminho conduria até o monte De ambos os lados ele estava tomado por gra ma e matagal cada ver mais densos os quais no topo transformavamse em verdadeira floresta Os senhores podem reconhecer sem esforço os símbolos empregados O órgão genital masculino é representado por uma tríade de pessoas o feminino pela paisagem com capela monte e floresta Outra vez os senhores en contram os degraus como símbolo do ato sexual O que no sonho é chamado de monte leva o mesmo nome em anatomia isto é mons veneris ou monte de Vênus 7 Outro sonho solucionável mediante o emprego de símbolos tanto mais notável e comprobatório pelo fato de o próprio sonhador ter traduzido todos eles embora não possuísse nenhum conhecimento teórico prévio re lativo à interpretação dos sonhos Tratase de um com portamento bastante incomum cujos determinantes não são bem conhecidos Ele vai passear com o pai em um local que com cer tera é o Prater pois vêse a rotunda e diante dela uma construção menor à qual se prende um balão que aparenta estar bastante flácido O pai lhe pergunta para que serve tudo aquilo embora admirado com a pergunta o filho lhe explica Depois chegam a um pátio em que se estende uma grande chapa de latão O pai quer arran car um bom pedaço dela mas olha em tomo para ver se O grande parque público de Viena 11 OS SONHOS ninguém vai perceber O filho lhe di1 que hasta pedir ao vigia e ele poderá então levar um pedaço sem nenhum problema Uma escadaria desce do pátio para dentro de um poço cujas paredes revestemse de um estofomento macio como uma poltrona de couro No fim do poço há uma plataforma mais comprida e em seguida começa um novo poço O próprio sonhador interpreta A rotunda é minha genitália o balão defronte meu pênis sobre cuja fla cidez tenho motivos para reclamar Isso nos permite detalhar a tradução a rotunda seria o traseiro que as crianças em geral incluem na genitália a construção menor diante dela o escroto No sonho o pai lhe per gunta o que é tudo aquilo ou seja perguntalhe sobre o propósito e o funcionamento dos órgãos genitais In verter os fatos de forma que seja o filho a perguntar é aqui um passo óbvio Como na realidade ele nunca fez tal pergunta ao pai devemos entender esse pensa mento onírico como um desejo ou tomálo como uma oração condicional Se eu tivesse pedido esclareci mentos sexuais a meu pai Logo encontraremos a complementação para esse pensamento em outro ponto do sonho O pátio no qual se estende a chapa de latão não deve ser em princípio tomado simbolicamente sua origem é o local de trabalho do pai Por uma questão de dis crição usei latão em lugar do material que o pai de fato comercializa sem com isso alterar em nada o teor restante do sonho O sonhador entrou na loja do pai 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS e ficou bastante chocado com as práticas incorretas em que se baseia boa parte de seu ganho A continuação desse pensamento onírico poderia ser Se eu tivesse perguntado ele teria me enganado assim como faz com seus clientes Para o desejo de arrancar um pe daço da chapa de latão que serve aqui de representa ção da desonestidade nos negócios o próprio sonhador nos dá pela segunda vez uma explicação ele significa a masturbação Disso sabemos há tempos e ademais a explicação combina muito bem com o fato de o segredo da masturbação vir expresso por seu contrário pode se afinal praticar o ato abertamente Vem pois ao encontro de nossas expectativas o fato de a atividade masturbatória ser atribuída ao pai assim como a formu lação da pergunta na primeira cena do sonho O poço o sonhador o interpreta de pronto como a vagina e o faz recorrendo ao macio estofamento das paredes Que o ato de descer a escada tanto quanto subir por ela pre tende descrever o coito no interior da vagina é algo que eu mesmo acrescento Para os detalhes representados pela plataforma mais comprida que se segue ao primeiro poço e mais adian te pela presença de novo poço o sonhador nos fornece explicação autobiográfica Por algum tempo teve re lações sexuais mas parou de têlas em razão de certas inibições agora espera poder retomálas com o auxílio do tratamento 8 Os dois sonhos que relato a seguir ambos de um estrangeiro com forte inclinação para a poligamia co munico aos senhores como prova de que nosso Eu está 11 OS SONHOS presente em todos os nossos sonhos mesmo naqueles em que ele se oculta ao conteúdo manifesto Nestes so nhos as malas simbolizam as mulheres a Ele parte em viagem sua bagagem é levada de car ro até a estação são muitas malas amontoadas dentre as quais duas grandes malas pretas que se parecem com mos truários Em tom de consolo diz a alguém Bom elas só vão comigo até a estação Na realidade ele costuma viajar com muita ba gagem da mesma forma como relata muitas histórias sobre mulheres durante o tratamento As duas malas pretas correspondem a duas mulheres negras que no momento desempenham papel central em sua vida Uma delas quis viajar para Viena onde ele já se encon trava a meu conselho ele enviara um telegrama a ela dissuadindoa de fazêlo b Uma cena na alfândega Um companheiro de via gem abre sua mala e indiforente fumando um cigarro diz Não tem nada aí dentro O funcionário da alfândega pa rece acreditar nele mas toma a enfiar a mão dentro dela e encontra algo proibidíssimo Resignado o viajante então d AT h fi tz L v ao a o que azer O viajante é ele próprio o funcionário da alfânde ga sou eu Em geral ele é muito honesto em suas con fissões mas decidira não me contar sobre um novo e recéminiciado relacionamento com uma dama porque podia supor e com razão que ela não me era desconhe cida Ele transfere para um estranho a situação embara çosa de ver comprovada sua culpa de maneira que ele próprio parece não figurar no sonho 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS 9 A seguir um exemplo de um símbolo que ainda não mencionei Ele encontra sua irmã em companhia de duas amigas também irmãs Estende a mão para as duas mas não para a própna irmã O sonho não se vincula a nenhum acontecimento real Na verdade os pensamentos do sonhador o levam de volta a uma época em que pensava muito em uma observação que havia feito a de que os seios das me ninas demoram muito a se desenvolver As duas irmãs são portanto os seios ele gostaria muito de apanhálos nas mãos não fosse sua própria irmã IO Aqui um exemplo da simbologia da morte no sonho Ele caminha com duas pessoas cujos noÍnes sabe mas dos quais se esqueceu ao acordar sobre uma passarela de forro íngreme e bastante alta De repente as duas pessoas desaparecem e ele Yê um homem de aspecto fontasmagóri co com um boné e temo de linho Perguntalhe se é o men sageiro que tra os telegramas Não É o carroceiro Não Então ele segue adiante sentese ainda muito angustia do no sonho e depois de acordar dá sequência a ele fantasiando que a ponte de ferro de súbito desmorona e ele próprio mergulha no abismo Pessoas que enfatizamos não conhecer ou de cujo nome nos esquecemos são em geral aquelas muito próximas de nós O sonhador tem dois irmãos tives se ele desejado a morte deles seria justo que o medo da morte agora o atormentasse Acerca do mensagei ro afirma que essas pessoas sempre trazem notícias nefastas A julgar pelo uniforme poderia tratarse ain 11 OS SONHOS da de um acendedor de lampiões responsável também por apagálos ou seja da mesma forma que o gênio da morte apaga a tocha Ao carroceiro associa o poema de Uhland sobre a viagem marítima do rei Carlos Kiinig Karls Meerfahrt e se lembra de uma viagem marítima repleta de perigos feita em companhia de dois cama radas na qual ele fez o mesmo papel do rei no poema Em relação à ponte de ferro ocorrelhe um acidente re cente e a frase tola que diz ser a vida uma ponte pênsil u Como outro exemplo de representação da morte podemos citar o seguinte sonho Um senhor desconhecido entrega a ele um cartão de visitas com bordas pretas 12 Em muitos aspectos o sonho a seguir será do in teresse dos senhores embora ele tenha como uma de suas premissas um estado neurótico Ele viaja pela estrada de forro O trem para em campo aberto Ele acredita que um desastre está para acontecer é necessário buscar refúgio e percorre todos os compartimen tos do trem matando cada um que encontra cobrador ma quinista etc Juntase a isso a lembrança de uma história conta da por um amigo Num trem que seguia pela Itália um compartimento estava sendo utilizado para transportar um louco Por descuido porém permitiram a outro viajante acomodarse ali O louco matou esse viajante Nesse poema de Johann Ludwig Uhland 17871862 o rei Car los e seus doze cavaleiros são surpreendidos por uma tempestade numa viagem à Terra Santa cada um dos cavaleiros se lamenta enquanto o rei calado guia o barco em segurança até o porto 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS O sonhador se identifica com esse louco e justifica seu ato com uma imagem obsessiva que de vez em quando o atormenta a de que precisa eliminar os que sabem Depois no entanto ele próprio encontra motivação melhor para seu sonho No dia anterior tornara a ver no teatro a moça com quem queria se casar mas da qual se afastara porque ela lhe dera motivo para ciúmes Pela intensidade que seu ciúme é capaz de atingir se ria de fato loucura de sua parte pretender casarse com ela Ou seja ele a considera tão pouco confiável que em razão de seu ciúme precisaria matar todos os que lhe cruzassem o caminho Caminhar por uma série de quartos compartimentos no presente caso é um símbolo já conhecido da condição de casado contrapo sição à monogamia Sobre a parada do trem num campo aberto e o medo de um acidente ele conta que certa vez quando ocorreu de um trem se deter assim subitamente na via férrea e fora da estação uma jovem mulher que também viaja va nele explicou que talvez um choque fosse iminente para o que a medida mais apropriada a tomar seria pôr as pernas para cima Pôr as pernas para cima era uma atitude que também havia desempenhado um papel nos muitos passeios e excursões pela natureza que nos pri meiros e felizes tempos de seu relacionamento amoroso ele havia feito com aquela moça Um novo argumento para pensar que ele tinha de ser louco para se casar com ela agora Mas que ele mantinha o desejo de cometer tal loucura disso eu podia estar certo em razão de meu conhecimento da situação 11 OS SONHOS 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS Senhoras e senhores Retornemos mais urna vez nossa conclusão de que o trabalho do sonho sob a influência da censura transpõe os pensamentos oníricos latentes para outro modo de expressão Os pensamentos latentes não são mais do que aqueles conhecidos e conscientes que ternos acordados o novo modo de expressão nos é em múltiplos aspectos incompreensível Dissemos que ele recorre a estados de nosso desenvolvimento intelec tual que já superamos há muito tempo corno a lingua gem irnagética o recurso aos símbolos e talvez a rela ções anteriores ao desenvolvimento de nossa linguagem discursiva Por isso chamamos o modo de expressão do trabalho do sonho de arcaico ou regressivo Os senhores podem tirar daí a conclusão de que do estudo mais aprofundado do trabalho do sonho haveria de ser possível extrair valiosos esclarecimentos acerca dos primeiros passos não tão bem conhecidos de nos so desenvolvimento intelectual Espero que assim seja mas até o momento esse trabalho ainda não teve iní cio Essa préhistória à qual o trabalho do sonho nos reconduz é dupla por um lado a préhistória individual de nossa infância por outro na medida em que cada in divíduo de algum modo repete abreviadarnente na in fância todo o desenvolvimento da espécie humana ela é também a préhistória filogenética Se somos capazes de determinar que porção dos processos psíquicos latentes advérn da préhistória individual e que porção da pré 268 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS história filogenética isso é algo que não considero impossível Assim pareceme a referência simbólica não aprendida pelo indivíduo tem o direito de ser con siderada herança filogenética Contudo essa não é a única característica arcaica do sonho Por experiência própria os senhores decerto co nhecem a curiosa amnésia que recobre nossa infância Refirome ao fato de que nossos primeiros anos de vida até cinco seis ou oito anos de idade não deixam na memória os mesmos rastros que nossas vivências posteriores Por certo encontramos uma ou outra pes soa que pode se gabar de possuir uma lembrança contí nua desde a mais tenra infância até os dias atuais mas a situação contrária aquela das lacunas na memória é incomparavelmente mais comum Esse é um fato creio que nunca despertou o devido assombro Aos dois anos uma criança já fala bem logo se mostra capaz de lidar com situações psíquicas complicadas e diz coisas que muitos anos mais tarde outras pessoas lhe relatarão mas das quais ela própria se esqueceu Nos primeiros anos de vida no entanto a memória apresenta desem penho melhor porque está menos sobrecarregada que em anos posteriores Além disso não há motivo para considerar a função da memória tarefa psíquica parti cularmente elevada ou difícil Pelo contrário mesmo entre pessoas de capacidade intelectual bastante baixa encontramos indivíduos possuidores de boa memória Como uma segunda peculiaridade sobreposta a essa primeira devo porém mencionar que desse vazio da memória que abarca os primeiros anos da infância 11 OS SONHOS sobressaem algumas lembranças bem preservadas em geral percebidas plasticamente as quais não possuem justificativa para sua preservação Com o material for necido pelas impressões que chegam até nós em nossa vida posterior a memória procede de forma a efetuar uma seleção Ela conserva o que é importante e descar ta o irrelevante Algo diferente ocorre com as memórias preservadas da infância Elas não correspondem neces sariamente a experiências importantes daqueles anos nem mesmo àquelas que do ponto de vista da criança haveriam de parecer importantes Muitas vezes são tão banais e insignificantes que admirados nos pergunta mos por que justamente detalhes como esses escaparam do esquecimento Com o auxílio da análise já procurei em outro momento abordar o mistério da amnésia in fantil e dos resquícios de memória que a interrompem tendo chegado à conclusão de que na verdade também na criança apenas o que é importante permanece na me mória O que ocorre é que mediante os processos da condensação e muito particularmente do deslocamento já conhecidos dos senhores esse conteúdo importante se faz representar na memória por coisas aparentemente irrelevantes Por essa razão denominei essas memórias infantis lembranças encobridoras mediante análise minu ciosa podese obter delas tudo que foi esquecido No tratamento psicanalítico é comum depararmos com a tarefa de preencher as lacunas dessas memórias infantis sempre que em alguma medida o tratamento é bemsucedido ou seja com bastante frequência conseguimos trazer de volta à luz o conteúdo dessas 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS lembranças da infância encobertas pelo esquecimento São impressões que jamais foram esquecidas de fato mas apenas tornaramse inacessíveis latentes abriga das no domínio do inconsciente Pode ocorrer todavia de elas emergirem dali de forma espontânea o que de fato acontece no contexto dos sonhos O que se verifica é que a vida onírica conhece o caminho que dá acesso a essas experiências infantis latentes Belos exemplos dis so encontramse registrados na literatura especializa da e eu próprio logrei contribuir com um deles Certa feita em determinado contexto sonhei com uma pes soa que provavelmente me prestara um serviço e que eu podia ver com clareza diante de mim Era um homem zarolho de pouca estatura gordo a cabeça afundada nos ombros Depreendi do contexto que se tratava de um médico Por sorte pude perguntar a minha mãe ainda viva à época que aparência tinha o médico de minha cidade natal que deixei aos três anos de idade descobri assim que ele era zarolho baixinho gordo e tinha a cabeça enfiada nos ombros fiquei sabendo também por ocasião de que acidente já esquecido ele me prestara auxílio O fato de dispor desse material es quecido dos primeiros anos da infância é pois outro traço arcaico do sonho Pois bem Essa informação se vincula a outro dos enigmas com que deparamos até agora Os senhores se lembram com que espanto descobrimos que os instiga dores dos sonhos seriam desejos sexuais decididamente maus e dissolutos os quais tornaram necessárias a cen sura e a deformação do sonho Quando interpretamos 271 11 OS SONHOS um tal sonho para o sonhador e ele próprio como ocor re na melhor das hipóteses não ataca nossa interpreta ção é comum que nos pergunte de onde provém seme lhante desejo uma vez que ele o percebe como estranho e conscientemente pensa o contrário Não precisamos hesitar em demonstrar essa origem Tais desejos maus vêm do passado em geral de um passado não muito dis tante É possível mostrar que embora não o sejam mais eles já foram conhecidos e conscientes A mulher cujo sonho significa que ela queria ver morta a filha única de dezessete anos descobre sob nossa orientação que de fato alimentou no passado esse desejo de morte A filha é fruto de um casamento infeliz e logo desfeito Quando ainda a carregava no ventre a mãe certa vez teve um acesso de raiva motivado por uma cena áspera com o marido e pôsse a esmurrar com violência a própria bar riga a fim de matar a criança lá dentro Quantas mães que hoje amam seus filhos com ternura talvez até com ternura demasiada não os conceberam a contragosto e já não desejaram que a vida que carregavam dentro de si não se desenvolvesse E quantas não transformaram esse desejo em diferentes ações felizmente inofensivas O desejo de morte contra a pessoa amada posterior mente tão enigmático tem sua origem portanto no iní cio do relacionamento com ela Também ao pai cujo sonho autoriza a interpretação de que ele desejava a morte de seu primogênito querido é preciso lembrar que no passado esse desejo não lhe era estranho Quando a criança ainda era um bebê o homem insatisfeito com sua escolha matrimonial pen 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS sava com frequência que caso aquele pequeno ser que nada significava para ele viesse a falecer ele teria de volta sua liberdade e faria melhor uso dela A mesma origem se deixa comprovar para grande número de se melhantes sentimentos de ódio são lembranças de algo que pertence ao passado que já foi consciente e teve seu papel na vida psíquica Os senhores se inclinarão a tirar daí a conclusão de que não havendo mudanças simila res na relação com uma pessoa mantendose idêntico o significado dessa relação desde o princípio não pode haver desejos nem sonhos como os expostos acima Es tou disposto a concordar com esse raciocínio mas que ro lembrar que não é o conteúdo literal do sonho e sim seu significado após a interpretação que os senhores têm de levar em conta Pode acontecer de o sonho ma nifesto sobre a morte de uma pessoa amada ter apenas vestido uma máscara assustadora significando porém algo bem diverso ou pode ocorrer de a pessoa amada ser apenas um sucedâneo enganoso de outra Essa mesma questão no entanto despertará nos se nhores uma outra pergunta muito mais séria Os se nhores dirão Se esse desejo de morte um dia esteve presente e é confirmado pela memória isso não constitui explicação nenhuma como o desejo foi superado há muito tempo ele só pode estar presente hoje no incons ciente como lembrança desprovida de todo e qualquer afeto e não como estímulo poderoso Nada aponta nesta última direção Por que então ele é lembrado em so nho Na realidade essa pergunta se justifica mas a tentativa de esclarecêla nos levaria demasiado longe e 273 11 OS SONHOS nos obrigaria a tomar partido em relação a um dos pon tos mais importantes da doutrina dos sonhos Eu po rém me vejo obrigado a permanecer nos limites de nos sa discussão e a exercer certa contenção Preparemse os senhores para essa restrição temporária Contentemo nos com a prova efetiva de que esse desejo superado é comprovadamente o causador do sonho e prossigamos com nossa investigação sobre se outros desejos maus também admitem a mesma derivação do passado Permaneçamos nos desejos de eliminação que em boa parte dos casos podemos fazer remontar ao egoís mo irrestrito do sonhador Com frequência é possível demonstrar o papel de tal desejo na formação do sonho Sempre que na vida alguém se interpõe em nosso ca minho e isso frequentemente há de acontecer dada a complexidade das relações hoje em dia o sonho logo se revela disposto a matálo tratese de pai mãe irmãos cônjuge ou algo semelhante Espantados com essa perversidade da natureza humana por certo nos sa tendência inicial não foi a de aceitar sem relutância esse resultado da interpretação dos sonhos Uma vez porém apontado o passado como local onde buscar a origem desses desejos não tardamos em descobrir o pe ríodo do passado individual em que tal egoísmo e tais desejos nada mais têm de estranho mesmo quando vol tados contra aqueles mais próximos de nós É precisa mente a criança e sobretudo naqueles primeiros anos de vida mais tarde encobertos pela amnésia que com frequência exibe esse egoísmo em sua forma mais extre ma exibindo também claros sinais dele ou melhor di 274 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS zendo resquícios de um tal egoísmo A criança aprende em primeiro lugar a amar a si mesma apenas mais tar de aprende também a amar os outros e a sacrificar algo de seu Eu em favor deles Mesmo aquelas pessoas que ela parece amar desde o princípio ela as ama somente porque precisa delas porque delas não pode prescindir ou seja por motivos ditados pelo egoísmo Mais tarde então o impulso amoroso apartase do egoísmo Foi de fato com o egoísmo que ela aprendeu a amar Nesse sentido será instrutivo comparar sua postu ra ante os irmãos com aquela em relação aos pais A criança pequena não ama necessariamente seus irmãos com frequência é evidente que não os ama Não resta dúvida de que os odeia como concorrentes e é sabido como essa postura em geral continua sem interrupção por longos anos até o amadurecimento e mesmo além É comum que ela seja substituída por uma postura mais terna ou melhor dizendo que esta última venha se sobrepor à primeira de todo modo a hostilidade parece ser em geral a postura mais antiga Podese facilmen te observála em crianças de dois anos e meio a quatro ou cinco anos quando estas ganham a companhia de um irmãozinho Na maioria das vezes o irmão é rece bido de forma bastante inamistosa São bem comuns manifestações como Não gosto dele que a cegonha o leve de volta Em seguida a mais velha se vale de toda e qualquer oportunidade para rebaixar o recém chegado e mesmo tentativas de machucálo atentados diretos não constituem nada de inaudito Se a diferen ça de idade é pequena quando do despertar de ativi 275 11 OS SONHOS dades psíquicas mais intensas a criança mais velha já se verá diante do concorrente e se arranjará com ele Se essa diferença é maior é possível que o novo irmão desperte alguma simpatia por ser considerado desde o princípio um objeto interessante uma espécie de bo neco com vida e sobretudo nas meninas a partir de uma diferença de oito anos ou mais podem entrar em cena sentimentos protetores e maternais Dizendoo todavia com sinceridade quando por trás de um sonho descobrimos o desejo da morte dos irmãos raras vezes precisamos considerálo enigmático sem esforço seu modelo poderá ser encontrado na primeira infância ou também com razoável frequência nos anos posteriores de convivência É provável que inexista um quarto dividido por duas ou mais crianças que esteja livre de intensos conflitos entre seus ocupantes Os motivos são a concorrência pelo amor dos pais pela propriedade comum pelo es paço físico disponível Os sentimentos hostis voltam se tanto contra os irmãos mais velhos como contra os mais novos Creio ter sido Bernard Shaw quem disse Se há alguém que uma jovem dama inglesa odeia mais que sua mãe é sua irmã mais velha Nessa manifesta ção porém há algo que julgamos estranho O ódio e a concorrência entre irmãos é coisa que se necessário poderíamos julgar compreensível mas como podem sentimentos de ódio invadir a relação entre filha e mãe entre genitores e filhos Também do ponto de vista dos filhos essa última é certamente mais favorável É o que demanda nos 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS sa expectativa julgamos bem mais repulsiva a falta de amor entre pais e filhos que entre irmãos É como se no primeiro caso sacralizássemos uma coisa que no segundo deixamos que seja profana Contudo a obser vação cotidiana pode nos mostrar com que frequência as relações sentimentais entre pais e filhos adultos ficam distantes do ideal proposto pela sociedade quanta hos tilidade elas abrigam e poderiam expressar não fosse pela contenção exercida pelos impulsos de respeito e ternura Os motivos para tanto são conhecidos de todos e sua tendência é separar aqueles do mesmo sexo a filha de sua mãe e o filho do pai A filha encontra na mãe a autoridade que lhe restringe a vontade e se encarrega da tarefa de imporlhe a renúncia à liberdade sexual exigi da pela sociedade em casos particulares encontra tam bém a concorrente que se opõe a ser desalojada O mes mo se repete de modo ainda mais gritante entre filho e pai Para o filho o pai incorpora toda a pressão social suportada a contragosto o pai impedelhe o acesso ao exercício da própria vontade ao prazer sexual precoce e no caso de bens familiares comuns ao gozo desses bens Tratandose do herdeiro de um trono a espera pela morte do pai ganha dimensões que chegam às raias do trágico Menos ameaçado parece o relacionamento de pai e filha e de mãe e filho Este último fornece os mais puros exemplos de inalterável ternura não pertur bada por nenhum tipo de consideração egoísta Por que falo dessas coisas que afinal parecem ba nais e conhecidas de todos Porque é inequívoca a ten dência a negar sua importância em nossa vida e a com 11 OS SONHOS muito mais frequência do que isto efetivamente aconte ce dar por realizado o ideal exigido pela sociedade Mas é melhor o psicólogo dizer a verdade do que deixar essa tarefa a cargo dos cínicos Seja como for essa negação aplicase apenas à vida real As obras literárias e teatrais têm liberdade para utilizar os temas que decorrem da perturbação desse ideal No caso de um grande número de seres humanos portanto não temos por que nos admirar quando um sonho revela o desejo de eliminar os pais em especial aquele do mesmo sexo É lícito supormos que esse de sejo também existe no estado de vigília e por vezes até sob forma consciente quando lhe é dado mascararse de outra motivação como no caso do sonhador de nosso exemplo 3 e de sua compaixão com o sofrimento desne cessário do pai Raras vezes a hostilidade sozinha domi na essa relação bem mais comum é que ela se oculte por trás dos sentimentos de ternura que a reprimem e que aguarde até que um sonho venha por assim dizer isolá la Aquilo que o sonho magnífica por exibilo de forma isolada torna a encolherse depois quando seguindo se à interpretação nós o inserimos no contexto da vida H Sachs Mas encontramos esse desejo onírico tam bém em contextos em que ele não se justifica e nos quais o adulto em estado de vigília jamais o reconheceria A razão para isso é que o motivo mais profundo e frequen te para o afastamento sobretudo entre pessoas do mes mo sexo fazse valer já desde a primeira infância Refirome à concorrência amorosa com clara ênfase no caráter sexual O filho começa ainda pequeno a de 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS senvolver particular ternura pela mãe a qual considera sua e a sentir o pai como o concorrente que contesta essa sua única propriedade da mesma forma a filha pe quena vê a mãe como uma pessoa que perturba sua rela ção de ternura com o pai e ocupa um posto que ela pró pria poderia muito bem ocupar De nossas observações só podemos depreender como remontam aos primeirís simos anos essas posturas a que denominamos complexo de Édipo porque o mito de Édipo realiza atenuandoos em medida insignificante os dois desejos extremos que resultam da situação do filho o de matar o pai e o de ter a mãe como esposa Não pretendo afirmar que o com plexo de Édipo esgote a relação dos filhos com os pais que pode facilmente ser muito mais complicada Ade mais esse complexo pode revelar maior ou menor força em seu desenvolvimento e pode também experimentar uma reversão Ele é no entanto um fator constante e muito importante da vida psíquica infantil correse antes o risco de subestimar que o de superestimar sua influência e os desenvolvimentos dele decorrentes De resto as crianças que apresentam essa postura edipiana reagem com frequência a um estímulo proveniente dos pais que em sua escolha amorosa muitas vezes se dei xam levar pela diferença entre os sexos de modo que o pai dá preferência à filha ao passo que a mãe prefere o filho ou verificandose um esfriamento da relação ma trimonial faz dele o substituto para o objeto desvalori zado de seu amor Não se pode afirmar que o mundo tenha sido muito grato à pesquisa psicanalítica pela descoberta do com 11 OS SONHOS plexo de Édipo Pelo contrário essa revelação desper tou nos adultos a mais veemente resistência e aqueles que perderam a oportunidade de repudiar essa relação sentimental malvista ou estigmatizada posteriormente repararam essa dívida com reinterpretações que priva ram o complexo de seu valor Tenho a imutável convic ção de que nisso não há o que repudiar ou embelezar Precisamos habituarnos ao fato que o próprio mito grego reconhece como um destino inelutável É in teressante notar por outro lado que banido da vida o complexo de Édipo foi entregue à literatura posto à sua livre disposição por assim dizer Em um cuida doso estudo Otto Rank mostrou como justamente o complexo de Édipo forneceu à poesia dramática nu merosos temas elaborados mediante infindáveis mo dificações atenuações e dissimulações isto é por meio de deformações como aquelas com as quais travamos conhecimento como obras da censura Estamos pois autorizados a atribuir esse complexo de Édipo também àqueles sonhadores que tiveram a sorte de em sua vida posterior escapar aos conflitos com os genitores e em íntima conexão com ele encontramos o que chamamos de complexo da castração a reação à intimidação ou à contenção atribuída ao pai da atividade sexual precoce da primeira infância Tendo centrado nossas investigações até o momento no estudo da vida psíquica infantil podemos nutrir a esperança de que também a origem da outra porção dos desejos oníricos proibidos os impulsos sexuais ex cessivos encontre explicação pela mesma via Então 280 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS nos sentimos estimulados a estudar também o desenvol vimento da vida sexual infantil e ao fazêlo descobri mos a partir de fontes diversas o seguinte acima de tudo constitui um equívoco insustentável negar que as crianças possuam vida sexual e supor que a sexualida de tenha seu início apenas na época da puberdade com o amadurecimento dos órgãos genitais Pelo contrário a criança tem desde o princípio uma rica vida sexual que se distingue em vários aspectos da vida sexual posterior tida como normal Aquilo que na vida dos adultos caracterizamos como perverso desviase do normal nos seguintes pontos em primeiro lugar pela desconsideração da barreira entre espécies o abismo entre seres humanos e animais em segundo pela ul trapassagem da barreira do nojo e em terceiro da bar reira do incesto a proibição de buscar satisfação sexual com parentes próximos em quarto por avançar sobre a barreira que separa membros de um mesmo sexo e em quinto pela transferência do papel genital para outros órgãos e partes do corpo Essas barreiras não se acham todas presentes desde o início mas vão se erguendo pouco a pouco ao longo do desenvolvimento e da edu cação A criança pequena está livre delas Ela ainda não conhece nenhum grave abismo entre seres humanos e animais a altivez com que o homem se aparta do ani mal é algo que ela só adquire mais tarde De início ela tampouco revela possuir nojo dos excrementos o que só lentamente e sob o peso da educação aprende a sentir Além disso não atribui grande importância à diferença entre os sexos supõe isto sim que ambos têm a mesma 11 OS SONHOS conformação genital Seus primeiros desejos sexuais e sua curiosidade ela os dirige às pessoas mais próximas que por outros motivos são também as que mais ama ou seja pais irmãos e aqueles que cuidam dela Por fim verificase na criança pequena algo que mais tarde no auge de um relacionamento amoroso torna a irrom per o prazer ela não espera obtêlo apenas dos órgãos sexuais espera sim que muitas outras partes do cor po se revistam da mesma sensibilidade e transmitam sensações análogas de prazer desempenhando assim o papel dos órgãos genitais Podese portanto atribuir à criança uma perversão polimorfa se todos esses im pulsos exibem apenas traços de atividade isso se deve em parte à baixa intensidade deles se comparada àque la que atingem na vida adulta e em parte ao fato de a educação reprimir de pronto e de forma enérgica todas as manifestações sexuais infantis Essa repressão tem prosseguimento por assim dizer na teoria na medida em que os adultos se empenham em ignorar uma parte das manifestações sexuais infantis e por meio da rein terpretação despir outra parte de sua natureza sexual até poderem negar o todo Com frequência as mesmas pessoas que no quarto esbravejam com rigor contra as travessuras sexuais das crianças defendem depois à es crivaninha a pureza sexual delas Onde quer que crian ças sejam deixadas à própria sorte ou se vejam sujeitas à influência da sedução elas em geral produzem exem plos consideráveis de atividade sexual perversa Natu ralmente os adultos têm razão em não tratar com rigor aquilo que entendem como criancice ou brincadei 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS ra a criança afinal não pode ser julgada nem por um tribunal dos costumes nem pela lei como pessoa plena e responsável Não obstante essas coisas existem e têm seu significado tanto como indícios de uma constitui ção congênita quanto como causa e fomento de desen volvimentos posteriores Elas nos dão informações im portantes sobre a vida sexual infantil e assim sendo sobre a vida sexual dos seres humanos como um todo Quando portanto por trás de nossos sonhos deforma dos deparamos com todos esses desejos perversos isso significa apenas que também nesse âmbito o sonho lo grou regressar ao estado da infância Ênfase particular entre esses desejos proibidos me recem aqueles de natureza incestuosa isto é os que têm por alvo a relação sexual com pais e irmãos Sabem hem os senhores a repugnância que a sociedade humana sen te ou pelo menos alega sentir por uma tal relação e o peso que possuem as proibições a vetar essa prática Esforços gigantescos já foram feitos para explicar esse horror ao incesto Alguns supõem serem preocupações de ordem reprodutiva por parte da natureza que ganham representação psíquica nessa proibição uma vez que o cruzamento consanguíneo resultaria numa piora das características raciais outros afirmam que a convivên cia desde a primeira infância afastaria o desejo sexual Nos dois casos no entanto a evitação do incesto estaria assegurada o que torna incompreensível a necessidade da proibição rigorosa a qual apontaria antes para a presença de um forte desejo As investigações psicana líticas concluíram sem sombra de dúvida que a escolha 11 OS SONHOS amorosa incestuosa é na verdade a primeira a escolha regular e que apenas mais tarde instalase a resistência a ela cuja origem não deve estar na psicologia individual Reunamos agora todo o auxílio que nosso exame aprofundado da psicologia infantil nos trouxe para a compreensão do sonho Descobrimos não apenas que o sonho tem acesso ao material esquecido das experiên cias vividas na infância mas vimos também que a vida psíquica das crianças com todas as suas peculiarida des seu egoísmo sua escolha amorosa incestuosa etc segue existindo no sonho ou seja no inconsciente e que o sonho nos reconduz toda noite a esse estágio infantil Isso vem reforçar para nós que o inconsciente da vida psíquica é o infontil Começa a diminuir portanto aquela estranha impressão de que o ser humano encer ra muita coisa de ruim Essa terrível maldade é sim plesmente o estágio inicial primitivo infantil da vida psíquica o qual podemos ver em ação na criança mas que nela ignoramos em parte devido a sua pequena dimensão e em parte não tratamos com rigor porque não exigimos das crianças padrões éticos elevados Na medida em que o sonho regride a esse estágio ele nos dá a impressão de ter trazido à luz o que há de mau em nós Mas é apenas uma impressão enganosa pela qual nos deixamos assustar Não somos tão maus quanto nos inclinávamos a supor após interpretar os sonhos Se os impulsos maus dos sonhos são apenas infan tilismo um retorno aos momentos iniciais de nosso desenvolvimento ético na medida em que o sonho no tocante a nossos pensamentos e sentimentos sim 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS plesmente nos torna outra vez crianças então não precisamos nos envergonhar racionalmente desses so nhos maus Sucede que o racional é somente parte da vida psíquica muito mais se passa na psique que não é racional e assim é que irracionalmente nos enver gonhamos de tais sonhos Nós os submetemos à cen sura onírica sentimos vergonha e irritação quando excepcionalmente um desses desejos logra ainda que deformado penetrar em nossa consciência e nos obri ga a reconhecêlo envergonhamonos por vezes dos sonhos deformados como se pudéssemos compreendê los Lembremse os senhores do veredicto indignado daquela distinta senhora sobre seu sonho não interpre tado acerca dos serviços amorosos O problema por tanto ainda não está resolvido e é possível que prosse guindo com o exame da maldade no sonho cheguemos a outro juízo e a outra avaliação da natureza humana Como resultado de toda essa investigação fizemos duas descobertas que todavia configuram apenas o iní cio de novos enigmas propõem novas dúvidas A pri meira é que a regressão do trabalho do sonho não é uma regressão apenas formal é também do material Ela não só traduz nossos pensamentos numa forma de expres são primitiva como também reaviva as peculiaridades de nossa psique primitiva a velha supremacia do Eu os impulsos iniciais de nossa vida sexual e mesmo nosso velho patrimônio intelectual se puder ser vista como tal a referência simbólica A segunda descoberta é que todo esse elemento infantil que um dia predominou e reinou absoluto temos hoje de situar no inconsciente e nossas 11 OS SONHOS concepções deste se modificam e se ampliam O incons ciente deixa de ser uma designação para aquilo que no momento se encontra latente ele passa a ser um reino psíquico particular com desejos próprios forma de expressão própria e mecanismos psíquicos que lhe são peculiares e que não vigoram em nenhuma outra parte Contudo os pensamentos oníricos latentes os quais de preendemos da interpretação dos sonhos não pertencem a esse reino eles são antes de um tipo que poderíamos ter também em estado de vigília E no entanto são in conscientes Como se resolve pois essa contradição Começamos a suspeitar que nisso deve se fazer uma separação Na formação do sonho algo que provém de nossa vida consciente e que compartilha as característi cas desta resíduos ou vestígios diurnos é o nome que damos a esse algo juntase a outra coisa provenien te daquele reino do inconsciente O trabalho do sonho se realiza entre essas duas partes A influência exercida sobre os resíduos diurnos pelo inconsciente que a eles se junta encerra sem dúvida a condição para a regres são Essa é a descoberta mais profunda sobre a essência do sonho a que podemos chegar aqui antes de explo rar outros domínios psíquicos Contudo logo chegará a hora de darmos ao caráter inconsciente dos pensamentos oníricos latentes um outro nome a fim de diferenciálo daquele inconsciente que pertence ao reino do infantil Podemos é claro lançar também a seguinte per gunta o que obriga a atividade psíquica durante o sono a uma tal regressão Por que sem essa regressão ela não dá conta dos estímulos psíquicos que perturbam o 286 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS sono E se em razão da censura do sonho ela precisa se servir do disfarce que lhe propicia a velha e agora incompreensível forma de expressão que proveito lhe traz reanimar antigos e já superados impulsos psíqui cos desejos e traços de caráter ou seja a regressão material que vem se juntar à formal A única resposta satisfatória seria dizer que apenas dessa maneira pode um sonho se formar que do ponto de vista dinâmico a anulação do estímulo onírico não é possível de outra maneira No momento porém não temos o direito de dar semelhante resposta 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS Senhoras e senhores Devo lembrarlhes mais uma vez o caminho percorrido até agora De que maneira apli cando nossa técnica deparamos com a deformação do sonho e pensamos primeiramente em contornála e ir buscar as informações decisivas sobre a natureza do sonho nos sonhos infantis Como a seguir munidos dos resultados dessa investigação atacamos diretamen te a deformação do sonho e assim espero a superamos pouco a pouco Agora porém precisamos admitir que o que encontramos em um e outro desses caminhos não coincide inteiramente Nossa tarefa passa a ser juntar e conciliar esses dois resultados De um e de outro lado veionos a constatação de que em essência o trabalho do sonho consiste na con 11 OS SONHOS versão de pensamentos numa experiência alucinatória vivida Como isso é possível já constitui um belo enig ma que no entanto é um problema da psicologia geral motivo pelo qual não deve ocuparnos aqui A partir dos sonhos infantis ficamos sabendo que o trabalho do sonho pretende mediante a realização de um dese jo eliminar um estímulo psíquico perturbador do sono Em relação aos sonhos deformados não pudemos fazer nenhuma afirmação semelhante não antes de apren der a interpretálos Desde o início porém nossa ex pectativa era a de poder reunir os sonhos deformados e os infantis sob um mesmo enfoque Essa expectativa se cumpriu pela primeira vez a partir da percepção de que na verdade todos os sonhos são sonhos infantis todos eles trabalham com o material infantil com os impulsos psíquicos e os mecanismos infantis Uma vez que con sideramos resolvida a questão da deformação do sonho precisamos agora investigar se a concepção de realiza ção de desejos vale também para os sonhos deformados Há pouco submetemos uma série de sonhos a análi se sem no entanto levar em consideração a realização de desejos Estou convencido de que ao longo dessa análise uma pergunta há de se ter imposto aos senho res onde está a realização de desejos que se supõe ser o objetivo do trabalho do sonho Essa pergunta é im portante de fato é a pergunta que nos fazem nossos críticos leigos Como os senhores sabem a humanidade possui uma resistência intuitiva a novidades intelectuais Entre as manifestações dessa resistência encontrase a imediata redução da novidade a um alcance mínimo 288 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS sua compressão de preferência em uma palavrachave Para a nova doutrina do sonho a expressão realização de desejos tornouse essa palavrachave O leigo per gunta onde está a realização do desejo Imediatamente após ter ouvido que o sonho é uma tal realização de de sejo e já ao fazer a pergunta ele a rejeita Ocorrelhe de pronto um semnúmero de experiências oníricas pró prias nas quais o sonhar se vincula a um desprazer e até mesmo uma grave angústia razão pela qual a afirmação da doutrina psicanalítica dos sonhos lhe soa bastante improvável É fácil para nós responderlhe que nos so nhos deformados a realização do desejo não tem como ser evidente que é necessário antes procurála não há como apontála antes da interpretação do sonho Sabe mos também que nesses sonhos deformados lidamos com desejos proibidos repudiados pela censura desejos cuja existência é a própria causa da deformação o mo tivo da intervenção por parte da censura do sonho Mas é difícil explicar ao crítico leigo que não se perguntar pela realização do desejo antes de haver interpretado o sonho Ele sempre se esquecerá disso Na verdade sua rejeição à teoria da realização dos desejos nada mais é do que consequência da censura do sonho um sucedâ neo da rejeição dos desejos oníricos censurados e um produto dela É natural que também nós sintamos necessidade de explicar a nós mesmos a existência de tantos sonhos de conteúdo embaraçoso e em particular de sonhos de angústia Ao fazêlo deparamos pela primeira vez com o problema dos afetos no sonho o qual mereceria um 11 OS SONHOS estudo à parte estudo este do qual infelizmente não po demos nos ocupar aqui Se o sonho é a realização de um desejo então sensações incômodas haveriam de ser impossíveis nele Nisso os críticos leigos parecem ter razão Mas é preciso levar em conta três tipos de com plicação em que os leigos não pensaram Em primeiro lugar é possível que o trabalho do so nho não tenha conseguido produzir a realização plena de um desejo de tal modo que reste ainda no sonho manifesto uma porção do afeto incômodo presente nos pensamentos oníricos A análise precisaria mostrar en tão que esses pensamentos oníricos eram ainda muito mais incômodos que o sonho configurado a partir deles Isso sempre conseguimos demonstrar Admitimos en tão que o trabalho do sonho não alcançou seu objetivo da mesma forma como sonhar que estamos bebendo não atinge o propósito de saciar a sede Permanecemos com sede e precisamos acordar para beber água Mas foi um sonho genuíno não abriu mão de nada de sua essência Cabe dizer ut desint vires tamen est laudanda voluntas Ao menos a intenção claramente reconhecível perma nece louvável Insucessos como esse não são aconte cimento raro Contribui para isso o fato de ser muito mais difícil para o trabalho do sonho alterar o sentido dos afetos que o dos conteúdos às vezes os afetos são muito resistentes Ocorre pois de o trabalho do sonho transformar o conteúdo incômodo dos pensamentos Embora faltem as forças a vontade deve ser louvada Ovídio Epístolas do Ponto livro m 4 79 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS oníricos em realização de desejo mas de não obstante o afeto incômodo se impor sem ter sofrido alteração ne nhuma Nesses sonhos o afeto não corresponde absolu tamente ao conteúdo e nossos críticos podem dizer que o sonho tanto não é realização de desejo que mesmo um conteúdo inofensivo pode nele ser sentido de forma in cômoda A essa observação irrefletida replicaremos que é justamente nesses sonhos que a tendência à realização do desejo se revela mais nítida porque isolada O erro decorre do fato de o desconhecimento das neuroses le var à crença de que conteúdo e afeto guardam relação bastante íntima o que impede a compreensão de que um conteúdo pode ser alterado sem que se altere a cor respondente manifestação do afeto A seguir um segundo fator negligenciado pelo lei go bem mais importante e de alcance mais profundo A realização de um desejo deveria certamente resultar em prazer mas cabe a pergunta para quem Natural mente para quem tem o desejo É sabido no entanto que o sonhador possui uma relação muito especial com seus desejos ele os reprova censura em suma não gosta deles Assim sendo sua realização não pode lhe proporcionar prazer mas apenas o contrário disso A experiência mostra então que esse contrário aparece sob a forma da angústia o que ainda é preciso esclare cer Em sua relação com os desejos oníricos portanto o sonhador só pode ser equiparado a um somatório de duas pessoas ligadas por uma forte comunhão Em vez de proceder a uma explicação recorro a um conhecido conto de fada no qual os senhores encontrarão a mes 11 OS SONHOS ma situação Uma boa fada promete realizar três desejos de um pobre casal marido e mulher O casal fica ra diante e se propõe escolher com cautela esses três dese jos Mas levada pelo aroma de salsichas fritas que exala da cabana ao lado a mulher deseja algumas daquelas mesmas salsichas que de pronto surgem à sua frente O primeiro desejo foi realizado O marido por sua vez fica bravo e nesse seu rancor deseja ver as salsichas penduradas no nariz da esposa o que também aconte ce não há agora quem seja capaz de remover dali as sal sichas Realizouse o segundo desejo que no entanto é o desejo do homem à mulher a realização desse desejo é bastante desagradável Os senhores sabem como ter mina o conto Como os dois são no fundo uma coisa só marido e mulher o terceiro desejo só pode ser o de que as salsichas desapareçam do nariz da esposa Nós poderíamos nos valer desse mesmo conto de fada em vários outros contextos no presente caso ele serve para ilustrar a possibilidade de que a realização do desejo de um possa conduzir ao desprazer de outro caso os dois estejam em desacordo Não será difícil agora obtermos uma melhor com preensão dos sonhos de angústia Faremos uso apenas de mais uma observação para a seguir nos decidir por uma hipótese para a qual apontam vários indícios A observação é a de que os sonhos de angústia exibem muitas vezes um conteúdo que prescinde inteiramente da deformação e por assim dizer escapa à censura O sonho de angústia é muitas vezes a realização desvela da de um desejo por certo não de um desejo aceitável 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS e sim de um desejo condenável Em lugar da censura surge o desenvolvimento da angústia Se de um sonho infantil se pode dizer que ele é a realização às claras de um desejo admissível e do sonho deformado comum que corresponde à realização dissimulada de um dese jo reprimido para o sonho de angústia vale apenas a fórmula que o declara realização às claras de um desejo reprimido A angústia é o sinal de que o desejo reprimi do se mostrou mais forte que a censura de que ele im pôs a ela ou estava prestes a fazêlo a realização desse desejo Nós compreendemos que o que para ele é realização de desejo para nós que estamos do lado da censura do sonho só pode ser motivo para sensações incômodas e para a defesa A angústia que aparece no sonho é se quiserem os senhores angústia ante a força desses desejos normalmente subjugados Por que essa defesa surge sob a forma de angústia isso não se pode depreender apenas do estudo dos sonhos claramente a angústia precisa ser estudada de outros pontos de vista É lícito supor que o que afirmamos acerca dos so nhos não deformados de angústia valha também para aqueles sonhos que sofreram deformação parcial assim como para todos os sonhos que nos causam desprazer e cujas sensações incômodas provavelmente correspon dem a aproximações à angústia O sonho de angústia é costumeiramente também um sonho que nos desperta é comum interrompermos o sono antes que o desejo reprimido tenha imposto sua plena realização apesar da censura Nesse caso o serviço prestado pelo sonho fracassou mas nem por isso alterouse a sua essência 293 11 OS SONHOS Comparamos o sonho a um guardanoturno ou a um guardião ao qual cabe proteger nosso sono de perturba ções Também ao guardanoturno porém acontece de despertar os que dormem quando ele se sente fraco de mais para sozinho afugentar a perturbação ou o perigo Ainda assim logramos por vezes permanecer dormin do mesmo quando o sonho começa a se tornar preo cupante e a se voltar na direção da angústia Dizemos a nós mesmos É só um sonho E seguimos dormindo Quando ocorre de o desejo no sonho se ver em con dições de sobrepujar a censura A condição para isso pode ser preenchida tanto pelo próprio desejo como pela censura do sonho O desejo pode por razões des conhecidas se tornar demasiado forte mas a impressão que se tem é de que a culpa por esse deslocamento na correlação de forças cabe o mais das vezes à censura do sonho Já vimos que a intensidade da atuação da cen sura varia caso a caso cada elemento é tratado com um grau diferente de rigor Gostaríamos agora de acrescen tar a isso outra suposição a de que a censura é variável e não aplica sempre o mesmo rigor a um elemento ofen sivo Se já ocorreu de ela se sentir impotente frente a um desejo onírico que ameaça surpreendêla em vez de se servir da deformação ela se valerá do último recurso que lhe resta abandonar o sono mediante o desenvolvi mento da angústia Nisso nos chama a atenção que nem sabemos ainda por que esses desejos maus e rejeitados se manifestam precisamente no período noturno e nos perturbam o sono A resposta não pode estar senão em uma hipótese 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS que remonta à natureza do sono Durante o dia a dura pressão da censura pesa sobre tais desejos em geral impossibilitandoos de se manifestar mediante qual quer ação À noite como todos os demais interesses da vida psíquica essa censura se recolhe ou no mínimo é consideravelmente reduzida em favor do desejo úni co de dormir É a essa diminuição da censura durante o período noturno que os desejos proibidos devem a possibilidade de tornar a se agitar Doentes dos nervos que padecem de insônia nos confessam que de início sua insônia era deliberada não ousavam adormecer porque tinham medo de seus sonhos isto é das con sequências dessa diminuição da censura Os senhores podem facilmente perceber que esse recolhimento da censura não significa nenhum descuido crasso O sono paralisa nossa mobilidade ainda que comecem a se agitar nossas intenções más nada podem produzir se não um sonho que é praticamente inofensivo e é esse fato tranquilizador que nos lembra a observação mui to sensata do adormecido pertinente à noite mas não à vida psíquica É só um sonho Sonhemos pois e sigamos dormindo Quanto à terceira complicação descurada pelos lei gos se os senhores se lembram da concepção de que o sonhador que luta contra seus desejos pode ser equipa rado a um somatório de duas pessoas diferentes mas de algum modo intimamente ligadas compreenderão tam bém a possibilidade de a realização do desejo produzir algo que causa imenso desprazer uma punição Aqui o conto dos três desejos pode mais vez nos ajudar na 295 11 OS SONHOS explicação As salsichas fritas no prato constituem rea lização direta do desejo da primeira pessoa a esposa as salsichas no nariz dela atendem ao desejo da segunda pessoa o marido mas são também o castigo pelo desejo tolo expressado pela mulher Encontraremos nas neuro ses a motivação para o terceiro desejo o único que resta no conto de fada Tais tendências punitivas existem em grande quantidade na vida psíquica dos seres huma nos elas são bastante fortes e podese atribuir a elas parte da responsabilidade pelos sonhos incômodos Os senhores talvez objetem que desse modo pouco resta da tão falada realização de desejos Mas a um exame mais aprofundado terão de admitir que estão errados Diante da multiplicidade de coisas que veremos mais adiante o sonho poderia ser e é segundo muitos au tores a solução realização de desejosrealização da angústiarealização da punição é bastante restrita A isso se acrescenta o fato de a angústia ser o oposto direto do desejo de opostos se apresentarem bastante próximos nas associações e de no inconsciente como vimos ambos coincidirem Ademais a punição é tam bém realização de um desejo o desejo do outro da pes soa que exerce a censura No todo portanto não fiz nenhuma concessão à objeção dos senhores à teoria da realização de desejos É nossa obrigação porém demonstrar a presença da realização de desejos em todo e qualquer sonho defor mado uma tarefa a que não pretendemos nos furtar Retornemos ao sonho já interpretado dos três ingressos ruins para o teatro por um florim e cinquenta com o 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS qual já aprendemos várias coisas Espero que os senho res ainda se lembrem dele Uma dama à qual o marido relata durante o dia que a amiga dela Elise três meses mais nova tinha ficado noiva sonha que foi ao teatro com seu marido Um lado da plateia está quase vazio O marido lhe diz que Elise e o noivo também queriam ir ao teatro mas não puderam porque só encontraram in gressos ruins três por um florim e cinquenta A mulher comenta que aquilo não teria sido nenhuma desgraça Descobrimos que os pensamentos oníricos referemse à irritação da dama por ter se casado tão cedo e a sua in satisfação com o marido Podemos nos permitir a curio sidade acerca de como esses pensamentos tristes foram reelaborados para constituir a realização de um desejo e que rastros deixaram no sonho manifesto Sabemos já que os elementos cedo demais e precipitadamente foram eliminados do sonho pela censura A plateia vazia é uma alusão a isso O enigmático três por um florim e cinquenta énos agora com o auxílio do simbolis mo que aprendemos a interpretar mais compreensível 4 Com efeito o três significa um homem e o elemento manifesto é de fácil tradução ele significa comprar um marido com o dinheiro do dote Teria podido comprar um cem vezes melhor com o dinheiro do meu dote O ato de se casar é claramente substituído pela ida ao teatro Comprar ingressos cedo demais figura no so 4 Deixo de mencionar aqui outra interpretação plausível para esse três no tocante à mulher sem filhos porque esta análise não apre sentou material para isso 297 11 OS SONHOS nho em lugar de casarse cedo demais Essa substitui ção no entanto é obra da realização de desejo Nossa sonhadora nem sempre estivera tão insatisfeita com seu casamento como naquele dia no qual recebeu a notícia do noivado da amiga Até então sentia orgulho de seu casamento e se julgava favorecida diante da amiga Mo ças ingênuas costumam demonstrar sua alegria com o fato de estando noivas poderem em breve ir ao teatro para assistir a todas as peças antes proibidas isto é de que logo lhes será permitido ver tudo Esse prazer de olhar ou curiosidade que aqui se manifesta por certo era de início um prazer sexual de olhar voltado para a vida sexual dos pais sobretudo tendo posteriormen te se transformado em forte motivação para a jovem a se casar cedo Desse modo a ida ao teatro tornase um substituto alusivo evidente para o casamento Em sua presente irritação com o casamento precoce a jovem dama retoma portanto à época em que esse casamento precoce era realização de um desejo porque satisfazia seu prazer de olhar e levada por esse antigo desejo substitui o casamento pela ida ao teatro Podemos dizer que não escolhemos exatamente o exemplo mais confortável para demonstrar a realização de um desejo oculto De maneira análoga procedería mos com outros sonhos deformados Não posso fazêlo diante dos senhores quero apenas exprimir a convic ção de que esse procedimento sempre terá êxito Mas vou me deter um pouco mais neste ponto da teoria A experiência me ensinou que ele é um dos mais ameaça dos de toda a teoria do sonho e que está ligado a muitas 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS contradições e malentendidos Além disso os senhores talvez ainda tenham a impressão de que já retirei par te do que havia dito antes ao afirmar que o sonho é um desejo realizado ou o contrário disso uma angústia ou uma punição concretizada e acharão que talvez seja uma oportunidade para arrancarme novas concessões Também já ouvi a objeção de que exponho coisas que me parecem evidentes de forma demasiado sucinta e portanto não convincente Quando alguém nos acompanhou até aqui na inter pretação dos sonhos e aceitou tudo o que ela produziu não é raro que se detenha diante da questão da realiza ção de desejos e pergunte Admitindose que o sonho sempre tenha um sentido e que ele possa ser revelado por meio da técnica psicanalítica por que é que esse sentido a despeito de todas as evidências precisa ser constantemente encaixado na fórmula da realização de um desejo Por que o sentido do pensamento noturno não poderia ser tão multifacetado como o do pensamen to diurno ou seja por que o sonho não pode correspon der ora a um desejo realizado ora como o senhor mes mo diz ao contrário disso a um temor concretizado Ou por que ele não pode ser ainda expressão de uma intenção uma advertência uma reflexão com seus prós e contras ou uma repreensão um aviso da consciência uma tentativa de nos preparar para uma tarefa iminente etc Por que sempre um desejo ou no máximo o con trário dele Podese julgar que uma diferença nesse ponto não seria relevante se há concordância em tudo mais Já 11 OS SONHOS basta que tenhamos encontrado o sentido do sonho e os caminhos para reconhecêlo comparado a isso é de me nor importância que tenhamos restringido demais esse sentido Mas não é bem assim Aqui um malentendido afeta a essência de nosso conhecimento sobre o sonho e põe em perigo seu valor para a compreensão das neuro ses Aquela espécie de condescendência tão apreciada no comércio a afabilidade como a chamam não tem lugar na prática científica sendo antes prejudicial Como de costume nesses casos minha primeira res posta ao porquê de o sonho não ter significado múlti plo no sentido empregado acima é Não sei por que não seria assim Não teria nada contra isso Por mim que seja pois Mas um pequeno detalhe contrapõese a essa concepção mais ampla e confortável do sonho na realidade não é assim Minha segunda resposta enfati zará que não me é estranha a hipótese de que o sonho corresponda a múltiplas formas de pensamento e opera ções intelectuais Certa vez registrei num caso clínico um sonho que se repetiu por três noites consecutivas e depois nunca mais retornou expliqueio argumentan do que o sonho em questão correspondia a uma inten ção e que uma vez cumprida essa intenção o sonho não precisava se repetir Mais tarde publiquei um sonho que correspondia a uma confissão Como posso agora portanto me contradizer e afirmar que o sonho é sem pre e apenas um desejo realizado Faço isso para não permitir um ingênuo mal entendido que pode nos custar o fruto de todo o nosso empenho para compreender o sonho um malentendido JOO 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS que confunde o sonho com os pensamentos oníricos la tentes e diz do primeiro algo que se aplica somente ao último É correto que o sonho pode representar e ser substituído por tudo aquilo que enumeramos antes uma intenção uma advertência uma reflexão uma pre paração uma tentativa de solucionar um problema etc Olhando atentamente porém os senhores vão perce ber que tudo isso só vale para os pensamentos oníricos latentes que foram transformados no sonho Com as interpretações dos sonhos os senhores veem que o pen samento inconsciente do ser humano é que se ocupa de intenções preparações reflexões etc a partir dos quais o trabalho do sonho faz os sonhos Caso no momen to os senhores não estejam interessados no trabalho do sonho mas tenham isto sim grande interesse no tra balho do pensamento inconsciente humano eliminem o trabalho do sonho e digam do sonho o que é pratica mente correto que ele corresponde a uma advertência a uma intenção e assim por diante Na atividade psica nalítica assim é com frequêhcia na maioria das vezes esforçamonos por destruir a forma do sonho e inserir em seu lugar no contexto os pensamentos latentes de que se originou Incidentalmente a partir dessa apreciação dos pen samentos oníricos latentes vemos que todos os atos psíquicos mencionados altamente complexos podem ocorrer inconscientemente um resultado grandioso e também desconcertante Voltando porém ao nosso assunto os senhores só têm razão se tiverem claro para si mesmos que se va JOI 11 OS SONHOS leram de uma forma abreviada de expressão e se não acreditarem que a referida multiplicidade de sentidos deve se aplicar à essência do sonho Quando falam em sonho os senhores só podem estar se referindo ou ao sonho manifesto isto é ao produto do trabalho do sonho ou no máximo ao próprio trabalho do so nho isto é àquele processo psíquico que dá forma ao sonho manifesto a partir dos pensamentos oníricos latentes Qualquer outro uso da palavra provoca uma confusão conceitual que só pode causar dano Se com suas afirmações os senhores visam aos pensamentos la tentes por trás dos sonhos então digamno diretamen te sem encobrir o problema do sonho com a formulação vaga que utilizam Os pensamentos oníricos latentes são a matéria com a qual o trabalho do sonho trans forma o sonho manifesto Por que confundir a matéria com o trabalho que lhe dá forma Se o fizerem terão os senhores alguma vantagem sobre aqueles que só co nhecem o produto do trabalho e não sabem explicar sua origem ou como ele é feito A única coisa essencial no tocante aos sonhos é o trabalho do sonho que atuou sobre o material dos pen samentos Não temos o direito de ignorálo na teoria embora possamos negligenciálo em certas situações práticas A observação analítica mostra além disso que o trabalho do sonho jamais se limita a traduzir os pensamentos na forma de expressão arcaica ou regres siva conhecida dos senhores Ele sempre acrescenta algo que não faz parte dos pensamentos latentes do dia mas que é o verdadeiro motor da formação do sonho 302 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS Esse acréscimo imprescindível é o desejo igualmente inconsciente para cuja realização o conteúdo onírico é remodelado O sonho pode portanto ser qualquer coisa quando os senhores levam em conta apenas os pensamentos que ele representa advertência intenção preparação etc mas ele sempre será também a reali zação de um desejo inconsciente se contemplado como resultado do trabalho do sonho Um sonho portanto nunca é simplesmente uma intenção ou uma advertên cia mas sempre uma intenção etc traduzida para um modo de expressão arcaico com o auxílio de um desejo inconsciente e reconfigurada para realizar esse desejo Uma de suas características o da realização de um de sejo é constante a outra pode variar pode ser um de sejo também de modo que o sonho com o auxílio de um desejo inconsciente apresenta como realizado um desejo latente do dia Eu compreendo tudo isso muito bem mas não sei se consegui tornálo compreensível aos senhores E tam bém tenho dificuldade para lhes demonstrar isso Por um lado tal não é possível sem a análise cuidadosa de muitos sonhos por outro esse tópico que é dos mais delicados e importantes de nossa concepção do sonho não pode ser apresentado de forma convincente sem que eu me refira a coisas de que tratarei mais adiante Creem os senhores que dada a íntima correlação de todas as coisas pode mos penetrar muito profundamente na natureza de uma delas sem termos nos preocupado com outras de natureza similar Como nada sabemos ainda dos sintomas neuró ticos os parentes mais próximos do sonho somos JOJ 11 OS SONHOS obrigados também aqui a nos contentar com o que ob tivemos Quero apenas explicar ainda um exemplo aos senhores e fazer uma nova consideração Retomemos aquele sonho ao qual já retornamos várias vezes o sonho dos três ingressos para o teatro por um florim e cinquenta Posso garantir aos senho res que de início escolhi esse exemplo sem nenhum propósito especial Os pensamentos oníricos latentes já são conhecidos a irritação da mulher pela pressa em se casar provocada pela notícia de que somente agora a amiga ficou noiva a subestimação do marido a ideia de que ela poderia ter conseguido outro melhor se tivesse esperado O desejo que transformou esses pensamen tos em sonho também nos é conhecido é o prazer de olhar de poder ir ao teatro muito provavelmente uma ramificação da antiga curiosidade de por fim descobrir o que acontece quando se é casado Em crianças é sabi do essa curiosidade se volta em geral para a vida sexual dos pais tratase portanto de um impulso instintual infantil ou na medida em que persiste até mais tarde de um impulso instintual com raízes que chegam até a infância Contudo a notícia recebida durante o dia não ensejou o despertar desse prazer de olhar mas apenas da irritação e do arrependimento De início esse impul so não fazia parte dos pensamentos oníricos latentes e pudemos incluir o resultado da interpretação do sonho no tratamento analítico sem leválo em consideração Em si tampouco a irritação podia transformarse em sonho O pensamento Foi um absurdo ter me casado tão cedo só pôde transformarse em sonho depois de 304 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS haver despertado o antigo desejo de poder ver enfim o que ocorre no casamento Então esse desejo deu for ma ao conteúdo do sonho substituindo o casamento pela ida ao teatro e essa forma foi a da realização de um desejo anterior Eu posso ir ao teatro e ver tudo que é proibido mas você não pode eu sou casada você tem de esperar Dessa maneira a situação presente foi invertida e um velho triunfo foi posto no lugar da derrota recente Incidentalmente a satisfação do desejo de olhar mesclouse à satisfação do egoísmo competi tivo Essa satisfação determina o conteúdo manifesto do sonho no qual a sonhadora está realmente sentada no interior do teatro enquanto a amiga não conseguiu entrar A essa situação de satisfação sobrepõemse na qualidade de uma modificação inapropriada e incom preensível aquelas porções do conteúdo do sonho por trás das quais se ocultam os pensamentos oníricos laten tes A interpretação do sonho deve prescindir de tudo que serve para representar a realização do desejo res tabelecendo os penosos pensamentos oníricos latentes a partir dessas alusões A nova consideração que apresento é a de chamar a atenção dos senhores para os pensamentos oníricos latentes que agora passaram a primeiro plano Não devem se esquecer de que em primeiro lugar eles são inconscientes em segundo são inteligíveis e coerentes entre si de maneira que podem ser entendidos como reações compreensíveis àquilo que motivou o sonho e em terceiro de que podem ser equivalentes a qualquer impulso psíquico ou operação intelectual Com mais ri 11 OS SONHOS gor do que fiz antes vou denominálos resíduos diurnos quer o sonhador os reconheça ou não Vou distinguir entre resíduos diurnos e pensamentos oníricos laten tes designando como pensamentos oníricos latentes em conformidade com nosso uso anterior tudo o que ficamos sabendo ao interpretar um sonho ao passo que os resíduos diurnos são apenas uma parte desses pen samentos Nossa concepção é pois a de que aos resí duos diurnos veio se juntar algo que também pertencia ao inconsciente um desejo forte mas reprimido e ape nas esse desejo é que possibilitou a formação do sonho A atuação desse desejo sobre os resíduos diurnos dá origem ao restante dos pensamentos oníricos latentes àquela parte deles que já não deve parecer racional e compreensível para a vida em estado de vigília Para caracterizar a relação dos resíduos diurnos com o desejo inconsciente já me servi de uma comparação que posso apenas repetir aqui Todo empreendimen to necessita de um capitalista que cubra os gastos e de um empreendedor que tenha a ideia e saiba executála No caso da formação do sonho o papel do capitalista é sempre desempenhado apenas pelo desejo inconsciente é ele que provê a energia psíquica para a formação do sonho O empreendedor é o resíduo diurno que decide sobre o emprego dos fundos É possível também que o próprio capitalista tenha a ideia e o conhecimento ne cessário ou que o empreendedor disponha do capital Isso simplifica a situação prática mas dificulta a com preensão teórica Na economia sempre se decompõe essa pessoa em seus dois aspectos o capitalista e o em J06 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS preendedor o que restabelece a situação básica da qual partiu nossa comparação Na formação do sonho tam bém há essas mesmas variações que os senhores mes mos poderão imaginar Não podemos avançar aqui pois provavelmente os senhores são incomodados já há algum tempo por uma dúvida que merece ser ouvida Os resíduos diurnos perguntarão são de fato inconscientes no mesmo sen tido que o desejo inconsciente que tem de juntarse a eles para tornálos capazes de produzir um sonho É correta essa suspeita Eis o ponto crucial da questão Eles não são inconscientes no mesmo sentido O de sejo presente no sonho pertence a outro inconsciente àquele que reconhecemos como de origem infantil do tado de mecanismos especiais Seria inteiramente apro priado separar essas duas modalidades de inconsciente mediante diferentes designações Para isso no entan to é melhor esperar até que nos familiarizemos com o domínio dos fenômenos neuróticos Se a noção de um inconsciente já é criticada como fantasia o que se dirá se admitirmos que nos contentamos somente com dois Paremos por aqui Mais uma vez os senhores ouvi ram uma exposição incompleta Mas não é auspicioso pensar que este saber tem continuação que será produ zida por nós mesmos ou por outros depois de nós E quanto a nós não aprendemos bastantes coisas novas e surpreendentes C Interpretação dos sonhos cap vn seção C onde essa compa ração é desenvolvida 307 11 OS SONHOS 15 INCERTEZAS E CRÍTICAS Senhoras e senhores Não vamos abandonar o domínio dos sonhos sem tratar das dúvidas e incertezas mais cos tumeiras que se relacionam às novidades e concepções expostas até aqui Ouvintes atentos entre os senhores já terão reunido algum material dessa natureza 1 Talvez tenham ficado com a impressão de que apesar da correta observância da técnica nosso trabalho interpretativo do sonho dá margem a tantas incertezas que se torna impossível uma tradução segura do sonho manifesto nos pensamentos oníricos latentes Alega rão que em primeiro lugar nunca saberemos se deter minado elemento do sonho deve ser entendido em seu significado genuíno ou como símbolo já que as coisas empregadas como símbolo não deixam de ser elas mes mas Mas não havendo apoio objetivo para a decisão a interpretação sempre ficará entregue nesse ponto ao arbítrio de quem interpreta o sonho Além disso em ra zão da coincidência de opostos no trabalho do sonho permanecerá sempre indeterminado se certo elemento onírico deve ser entendido em sentido positivo ou ne gativo como ele próprio ou como seu contrário Nova oportunidade para o exercício do arbítrio por parte do intérprete Em terceiro lugar devido às frequentes in versões de todo tipo que ocorrem no sonho o intérprete terá liberdade para fazer tal inversão no trecho do sonho que lhe aprouver Por fim os senhores mencionarão ter ouvido que raras vezes estamos seguros de que a inter J08 i S INCERTEZAS E CRÍTICAS pretação encontrada é a única possível Corremos o risco de não considerar uma superinterpretação do sonho que é perfeitamente admissível Nessas circunstâncias concluirão os senhores deixase um amplo espaço para o arbítrio do intérprete o que parece incompatível com a certeza objetiva de seus resultados Ou então poderão também supor o erro não está no sonho as deficiências de nossa interpretação se deveriam a incorreções de nos sos pressupostos e concepções Todo esse material dos senhores é irrepreensível mas creio que ele não justifica a dupla conclusão de que por um lado a interpretação dos sonhos como nós a realizamos está entregue ao arbítrio e por outro de que as deficiências nos resultados põem em questão a justeza de nosso procedimento Se em vez de arbítrio falássemos em habilidade experiência ou capacidade de compreensão do intérprete eu teria de concordar com os senhores De fato não podemos prescindir de um tal fator pessoal sobretudo nas tarefas mais difíceis da interpretação dos sonhos Mas não é diferente em ou tras áreas do trabalho científico Não há meio de evitar que uma pessoa maneje pior do que outra determina da técnica ou a explore melhor De resto o que parece arbítrio na interpretação dos símbolos por exemplo é eliminado pelo fato de o nexo dos pensamentos oníri cos entre si o do sonho com a vida do sonhador e toda a situação psíquica em que o sonho ocorre apontarem geralmente para uma única possibilidade interpretativa e rejeitarem como inúteis as demais A conclusão de que as imperfeições da interpretação dos sonhos resultariam 11 OS SONHOS na incorreção de nossas postulações é invalidada pela observação de que a ambiguidade ou indeterminação do sonho revelase antes uma propriedade que neces sariamente se esperaria que ele tivesse Lembremonos de que já afirmamos que o trabalho do sonho realiza uma tradução dos pensamentos oníricos em um modo de expressão primitivo análogo à escrita pictórica Mas todos esses sistemas de expressão primiti vos têm indeterminações e ambiguidades sem que por isso tenhamos o direito de pôr em dúvida sua utilidade A coincidência de opostos no trabalho do sonho os se nhores sabem é análoga ao assim chamado sentido an titético das palavras primitivas que se acha nas línguas mais antigas O linguista K Abel 1884 a quem deve mos essa consideração pedenos que não acreditemos que a comunicação que uma pessoa fazia a outra por in termédio de palavras tão ambivalentes era por esse mo tivo ambígua No contexto da fala a entonação e o ges to deviam tornar indubitável qual dos opostos o falante tinha em mente ao fazer sua comunicação Na escrita onde ele não está presente o gesto era substituído pelo acréscimo de uma figura não pronunciada por exemplo o desenho de um homenzinho displicentemente senta do ou perfeitamente ereto de acordo com o significado pretendido para o ambíguo ken da escrita hieroglífica fraco ou forte Assim evitavase o malentendido a despeito da ambiguidade dos sons e dos sinais Os antigos sistemas de expressão como as escri tas das línguas mais antigas permitem reconhecer uma quantidade de indeterminações que não admitiríamos JIO S INCERTEZAS E CRÍTICAS em nossa escrita atual Assim em certas escritas semí ticas escrevemse apenas as consoantes das palavras as vogais omitidas cabe ao leitor inserilas de acordo com seu conhecimento e com o contexto A escrita hieroglífi ca não procede exatamente dessa maneira mas de modo muito semelhante razão pela qual a pronúncia do egíp cio antigo permaneceu desconhecida para nós A escrita sagrada dos egípcios revela ainda outras indetermina ções Nelas cabe ao arbítrio do escritor por exemplo decidir se deseja enfileirar as imagens da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita A fim de poder lêla é necessário aterse à direção para a qual apontam os rostos das figuras pássaros etc O escritor no entan to podia ainda dispor os signos pictóricos na vertical e no caso das inscrições em objetos menores fatores como o gosto e o aproveitamento do espaço podiam ainda de terminar outras modificações na sequência dos sinais Por certo o mais perturbador da escrita hieroglífica é que ela desconhece a separação de palavras As imagens dispõemse lateralmente a igual distância uma da outra e não há como saber se uma figura pertence à palavra an terior ou à seguinte já na escrita cuneiforme dos persas uma cunha oblíqua atua como separadora de palavras Uma língua e escrita muito antiga mas ainda utiliza da por 400 milhões de pessoas é a chinesa Não creiam os senhores que entendo alguma coisa dela instruíme a seu respeito apenas porque esperava encontrar analogias com as indeterminações do sonho E não me equivoquei em minha expectativa A língua chinesa está repleta de indeterminações que poderiam até nos inspirar medo JII 11 OS SONHOS Como é sabido ela se compõe de um número de sons si lábicos que são pronunciados sozinhos ou em combina ções de dois sons Um dos dialetos principais possui cer ca de quatrocentos desses sons Como seu vocabulário é estimado em aproximadamente 4 mil palavras resulta daí que cada som tem em média dez significados dife rentes alguns menos outros mais Todo um número de expedientes é utilizado para escapar da ambiguida de pois somente pelo contexto não é possível adivinhar qual dos dez significados do som silábico o falante quer transmitir ao seu interlocutor Entre esses expedientes estão a união de duas sílabas em uma só palavra e o em prego de quatro tons diferentes na pronúncia das pró prias sílabas Para nossa comparação mais interessante ainda é o fato de a língua chinesa praticamente não pos suir uma gramática Não é possível dizer se as palavras monossilábicas são substantivos verbos ou adjetivos e ausentes estão também as modificações pelas quais se poderia reconhecer gênero número caso tempo ou modo Tratase pois de uma língua composta apenas de material bruto por assim dizer assim como a lingua gem do nosso pensamento é decomposta em seu mate rial bruto pelo trabalho do sonho que se abstém de ex pressar as relações entre componentes A língua chinesa deixa a cargo do interlocutor a decisão acerca de como compreender cada caso de indeterminação decisão na qual ele é guiado pelo contexto Anotei um exemplo de um provérbio chinês que traduzido ao pé da letra diz Pouco ver muito admirar Jll i S INCERTEZAS E CRÍTICAS Não é difícil compreendêlo O provérbio pode signifi car quanto menos se viu mais se encontra para admi rar ou muito tem a admirar aquele que pouco viu Naturalmente não se trata de decidir qual das duas traduções diferentes apenas na gramática está corre ta A despeito dessas indeterminações asseguramnos que a língua chinesa é um excelente meio de expressão do pensamento Portanto a indeterminação não conduz necessariamente à ambiguidade Temos de admitir porém que a situação objetiva do sistema de expressão do sonho é bem mais desfavorá vel que aquela de todas essas línguas e escritas antigas Estas afinal visam fundamentalmente à comunicação isto é foram feitas para serem sempre compreendidas por quaisquer caminhos e meios Esse é precisamente o caráter que escapa ao sonho O sonho não pretende di zer nada a ninguém não é um veículo de comunicação ao contrário ele quer permanecer incompreendido Por isso mesmo não devemos nos admirar nem nos desespe rar caso verifiquemos que nele certo número de ambi guidades e indeterminações escapam a uma decisão A título de ganho indiscutível de nossa comparação resta nos apenas a percepção de que tais indeterminações que se pretendeu utilizar como objeção à validade de nossas interpretações de sonhos são antes característi ca regular de todos os sistemas de expressão primitivos Até onde vai na realidade a compreensibilidade do sonho é algo que só se verifica pela prática e a experiên cia Ela é bastante ampla creio e a comparação dos re sultados obtidos por analistas treinados confirma minha JIJ 11 OS SONHOS opinião Sabese que o público leigo também aquele afeito à ciência se compraz em exibir superior ceticis mo ante as dificuldades e incertezas de uma realização científica Injustamente acredito Talvez nem todos os senhores saibam que uma situação parecida ocorreu na história da decifração das inscrições assíriobabilônicas Nela houve época em que a opinião pública esteve mui to perto de declarar fantasistas os decifradores da escri ta cuneiforme e um engodo toda a sua pesquisa Mas em 1857 a Royal Asian Society fez um teste decisivo Ela convidou quatro dos mais respeitados pesquisado res da escrita cuneiforme Rawlinson Hincks Fox Talbot e Oppert a fazer traduções independentes de uma inscrição recémdescoberta e enviálas à Socieda de em envelope lacrado então após comparar as qua tro leituras declarouas coincidentes o bastante para justificar a confiança nos resultados alcançados até ali e a esperança de novos progressos Pouco a pouco o escárnio dos leigos cultos teve fim e a segurança na leitura dos documentos em escrita cuneiforme cresceu enormemente desde então 2 Uma segunda série de dúvidas vinculase pro fundamente à impressão da qual é provável que tampouco os senhores estejam livres de que certo número de soluções que fomos levados a propor na interpretação dos sonhos seriam forçadas artificiais inverossímeis ou seja de que pareceriam não apenas violentas como também cômicas e até zombeteiras Tais manifestações são tão frequentes que quero aqui escolher uma ao acaso a última de que tomei conheci 314 S INCERTEZAS E CRÍTICAS mento Ouçam pois Há pouco tempo na Suíça livre um chefe de departamento perdeu seu posto em razão de seu trabalho na área psicanalítica Tendo ele inter posto recurso um jornal de Berna trouxe a público o parecer das autoridades universitárias sobre seu caso Desse parecer extraio algumas frases relativas à psica nálise Além disso surpreende o caráter elaborado e artificial de muitos exemplos que se encontram também no já mencionado livro do dr Pfister em Zurique Só pode ser mesmo espantoso que um chefe de departa mento aceite sem crítica todas essas afirmações e pseu doevidências Essas frases são apresentadas como a de cisão de alguém que julga com serenidade Eu diria antes que essa serenidade sim é artificial Examine mos mais de perto essas declarações na esperança de que alguma reflexão e algum conhecimento do assunto tampouco prejudiquem um julgamento sereno É verdadeiramente animador observar com que ra pidez e segurança alguém é capaz de julgar uma questão delicada da mais profunda psicologia com base em suas primeiras impressões As interpretações lhe parecem ar tificiais e forçadas ou seja não lhe agradam e por isso estão erradas a interpretação em si é desprovida de va lor Nem mesmo um pensamento fugidio chega a aventar a outra possibilidade isto é a de que as interpretações teriam boas razões para lhe parecer assim ao que se vin cularia então a pergunta seguinte que razões são essas O assunto em julgamento relacionase na essência aos resultados do deslocamento que os senhores ficaram conhecendo como o expediente mais eficaz empregado 11 OS SONHOS pela censura do sonho Com o auxílio do deslocamen to a censura do sonho cria as formações substitutivas a que chamamos alusões Tratase contudo de alusões não facilmente reconhecíveis como tais cujo caminho de volta até o elemento real é difícil de encontrar e que se vinculam a esse elemento real mediante associações as mais singulares incomuns e extrínsecas Em todos esses casos porém tratase de coisas que devem per manecer ocultas destinadas ao encobrimento e é isso que a censura do sonho almeja Algo que foi escondido não se pode esperar encontrar em seu lugar no posto que lhe cabe Nesse aspecto aqueles que hoje se encar regam de vigiar as fronteiras são mais inteligentes que as autoridades universitárias suíças Em busca de docu mentos e anotações eles não se contentam em exami nar pastas e maletas mas consideram a possibilidade de que espiões e contrabandistas carreguem material tão inapropriado em esconderijos os mais recônditos de sua vestimenta ou por exemplo entre as solas duplas de suas botas Se encontram aí o material escondido então é porque a procura foi de fato forçada mas também foi muito bemsucedida Se reconhecemos como possíveis as ligações mais distantes e singulares por vezes até de aspecto cômi co ou engraçado entre um elemento latente do sonho e seu substituto manifesto é porque ao fazêlo esta mos agindo de acordo com ricas experiências adquiri das a partir de exemplos cuja resolução em geral não fomos nós a descobrir Muitas vezes é impossível che gar a tais interpretações por conta própria nenhuma JI6 i S INCERTEZAS E CRÍTICAS pessoa sensata poderia adivinhar a conexão existente Ou o sonhador nos dá a tradução de pronto mediante associação direta o que ele pode fazer porque foi nele que se produziu a formação substitutiva ou nos fornece tanto material que a solução em vez de deman dar especial perspicácia acabará por se impor por si só Caso o sonhador não nos auxilie de alguma dessas duas maneiras o elemento manifesto em questão nos per manecerá para sempre incompreensível Permitam que eu exponha aos senhores ainda outro exemplo ocorrido recentemente Durante o tratamento uma de minhas pacientes perdeu o pai Desde então ela se vale de toda e qualquer oportunidade para devolvêlo à vida em so nhos Num deles o pai aparece em certo contexto de resto desinteressante e diz São onre e quinre são onre e meia são quinre para o meiodia Como interpreta ção dessa singularidade ocorre à paciente apenas que o pai gostava de ver os filhos adultos obedecerem pon tualmente ao horário das refeições conjuntas Isso por certo tinha a ver com o elemento do sonho mas não permitia conclusão nenhuma quanto à origem desse elemento Havia a suspeita justificada pela situação do tratamento na época de que uma revolta crítica cuida dosamente reprimida contra o amado e venerado pai tinha participação naquele sonho Na sequência poste rior de suas associações aparentemente já distante do sonho a sonhadora relata que no dia anterior muito se falara de psicologia em sua presença e um parente havia dito O Urmensch homem primitivo segue vi vendo em todos nós Agora acreditamos compreender 317 11 OS SONHOS Aquilo havia dado a ela excepcional oportunidade de mais uma vez fazer reviver o pai falecido No sonho portanto transformouo num Uhrmensch homem das horas a dizer os quartos de hora faltantes para o horá rio do almoço Os senhores terão dificuldade em negar a semelhan ça desse exemplo com um chiste e com efeito já acon teceu muitas vezes de se pensar que o chiste do sonha dor era de quem interpretava o sonho Existem outros exemplos em que não é fácil decidir se estamos lidando com um chiste ou um sonho Mas os senhores se lem bram de que tivemos essa mesma dúvida em relação a vários lapsos da fala ao tratarmos dos atos falhos Um homem relata como sonho que seu tio lhe deu um beijo enquanto estavam os dois sentados no automóvel do tio De pronto o sonhador acrescenta a interpretação o so nho significa autoerotismo um termo da teoria da libido que designa a satisfação sem a presença de objeto exte rior Terá o homem se permitido fazer uma brincadeira conosco e nos contado como sonho uma piada que lhe ocorrera Não creio ele de fato sonhou aquilo Mas de onde vem essa espantosa semelhança Na época essa pergunta me afastou um tanto de meu caminho ao me impor a necessidade de submeter o próprio chiste a um exame aprofundado Revelouse no tocante à gênese do chiste que uma linha préconsciente de pensamento é submetida momentaneamente à elaboração incons ciente da qual então emerge como chiste Sob a in fluência do inconsciente o pensamento sofre a atuação dos mecanismos que nele imperam a condensação e JI8 S INCERTEZAS E CRÍTICAS o deslocamento ou seja daqueles mesmos processos que vimos atuar no trabalho do sonho e é a essa ca racterística comum que devemos atribuir a semelhança entre o chiste e o sonho onde quer que ela se verifique Contudo o involuntário chiste onírico não nos ofere ce o ganho em prazer que o chiste proporciona Por que razão isso o estudo dos chistes poderá ensinar aos se nhores O chiste onírico parece uma piada ruim não nos faz rir deixanos indiferentes Mas nisso também seguimos os passos da antiga in terpretação dos sonhos que à parte muitas inutilida des nos legou vários bons exemplos de interpretações que nós mesmos não seríamos capazes de superar Re lato agora aos senhores um importante sonho histórico o qual com algumas discrepâncias Plutarco e Artemi doro de Daldi atribuem a Alexandre o Grande Quan do o rei sitiava a cidade de Tiro 322 aC defendida com obstinação certa vez sonhou com um sátiro dan çante O intérprete de sonhos Aristandro que integra va o exército interpretoulhe o sonho decompondo a palavra sátiros em aà TÚJOÇ tua é Tiro garantin do assim que o rei triunfaria sobre a cidade Em ra zão dessa interpretação Alexandre determinou que se prosseguisse com o sítio e acabou por tomar a cidade A interpretação que parece artificial revelouse correta 3 Posso imaginar que lhes causará particular im pressão ouvir que objeções a nossa concepção do sonho são levantadas também por pessoas que como psicana listas ocuparamse mais detidamente da interpretação dos sonhos Teria sido insólito que ninguém se apro 11 OS SONHOS veitasse de tão rico incentivo para cometer novos erros e assim com o auxílio de confusões conceituais e de generalizações injustificadas surgiram afirmações que não ficam muito a dever em matéria de incorreção à concepção que a medicina tem do sonho Uma delas os senhores já conhecem Ela afirma que o sonho se ocupa de tentativas de adaptação ao presente e da solução de tarefas futuras seguindo pois uma tendência pros pectiva A Maeder Já mencionamos que essa afirma ção repousa na confusão entre o sonho em si e os pen samentos oníricos latentes ou seja tem como premissa ignorar o trabalho do sonho Como caracterização da atividade intelectual inconsciente categoria à qual per tencem os pensamentos oníricos latentes ela por um lado não constitui novidade e por outro não esgota o assunto pois a atividade intelectual inconsciente cuida de muito mais que da preparação do futuro Uma con fusão bem pior parece estar na base da asserção de que por trás de todo sonho se acha a cláusula da morte Não sei bem o que essa formulação quer dizer mas su ponho que por trás dela esteja a confusão do sonho com a personalidade do sonhador Uma generalização injustificada extraída de uns poucos bons exemplos está presente na afirmação de que todo sonho admite duas interpretações a assim chamada psicanalítica que apresentamos aqui e a ana gógica que ignora os impulsos instintuais e visa repre sentar os feitos psíquicos mais elevados H Silberer Tais sonhos existem mas não se conseguirá estender essa concepção nem mesmo à maioria dos sonhos De 320 15 1NCERTEZAS E CRÍTICAS pois de tudo o que os senhores ouviram aqui há de parecerlhes totalmente incompreensível ademais a afirmação de que todos os sonhos devem ser interpre tados de forma bissexual como pontos de encontro de duas correntes a serem denominadas masculina e femi nina A Adler É claro que também existem sonhos assim que talvez os senhores descubram mais adiante são construídos como certos sintomas histéricos Men ciono todas essas descobertas de novas características gerais do sonho a fim de alertálos contra elas ou ao menos não lhes deixar dúvidas sobre o que penso delas 4 Um dia o valor objetivo da investigação dos so nhos pareceu questionado pela observação de que pa cientes submetidos a análise ajustavam o conteúdo de seus sonhos à teoria preferida de seu médico Assim uma parte deles sonhava sobretudo com impulsos ins tintuais de caráter sexual outra com a busca do po der e ainda outra até mesmo com o renascimento W Stekel O peso dessa observação é minimizado pela re flexão de que os homens já sonhavam antes que houves se um tratamento psicanalítico que pudesse guiar seus sonhos e de que as pessoas ora em tratamento costuma vam sonhar também antes dele O que há de verdadeiro nessa novidade logo se percebe como óbvio e também como irrelevante para a teoria do sonho Os resíduos diurnos incitadores do sonho vêm dos fortes interesses da vida desperta Se as palavras do médico e os estímu los que proporciona se tornam significativos para o ana lisando entram na esfera dos resíduos diurnos podem fornecer estímulos psíquicos para a formação do sonho J21 11 OS SONHOS tal como os outros interesses do dia ainda pendentes e carregados de afeto sua atuação se assemelha à dos estímulos somáticos que agem durante o sono sobre a pessoa adormecida Como esses outros instigadores do sonho também os pensamentos instigados pelo médi co podem aparecer no conteúdo manifesto do sonho ou ter sua presença demonstrada no conteúdo latente Sabemos afinal que sonhos podem ser gerados expe rimentalmente ou melhor que uma parte do material onírico pode ser introduzida no sonho Nessa influência que exerce em seu paciente o analista não desempenha papel diferente daquele do condutor de tal experiência como Mourly Vold que dispunha os membros dos par ticipantes das experiências em determinadas posições Muitas vezes é possível influenciar o tema do sonho mas jamais se consegue interferir no quê o sonhador vai sonhar O mecanismo do trabalho do sonho e o de sejo onírico inconsciente são imunes a toda influência externa Ao tratar dos sonhos de estímulo somático já notamos que as singularidades e a autonomia da vida onírica se revelam no modo como o sonho reage aos es tímulos corporais ou psíquicos introduzidos Portanto a afirmação aqui em pauta que pretende pôr em dúvida a objetividade da pesquisa acerca do sonho também se baseia numa confusão aquela entre o sonho e o ma terial onírico Isso senhoras e senhores era o que eu queria lhes dizer sobre os problemas ligados aos sonhos Certa mente adivinham que omiti muitas coisas e que tive de tratar quase todos os pontos de forma incompleta Isso 322 i S INCERTEZAS E CRÍTICAS se deve à relação dos fenômenos oníricos com aqueles das neuroses Estudamos o sonho como introdução à teoria das neuroses o que certamente foi mais correto do que fazer o inverso Mas assim como o sonho nos prepara para a compreensão das neuroses uma correta apreciação dele por outro lado pode ser obtida apenas após o conhecimento dos fenômenos neuróticos Não sei o que os senhores pensarão disso mas devo lhes garantir que não lamento haver empenhado boa parte do seu interesse e do tempo de que dispomos na abordagem dos problemas do sonho Nenhum outro objeto pode nos propiciar tão rapidamente a convicção sobre a justeza das afirmações de que depende a psica nálise São necessários meses e até mesmo anos de tra balho árduo para mostrar que os sintomas de um caso de enfermidade neurótica possuem um sentido servem a uma intenção e decorrem das vicissitudes da vida do enfermo Por outro lado algumas horas de esforço po dem ser suficientes para provar que o mesmo vale para um sonho inicialmente confuso e incompreensível e assim para confirmar todas as premissas da psicanáli se o caráter inconsciente dos processos psíquicos os mecanismos especiais a que eles obedecem e as forças instintuais que neles se manifestam E se considera mos a radical analogia entre a construção do sonho e a do sintoma neurótico e ao mesmo tempo a rapidez da transformação que faz do sonhador uma pessoa des perta e sensata adquirimos a certeza de que também a neurose repousa apenas na alteração do jogo de forças entre os poderes da vida psíquica J2J TERCEIRA PARTE TEORIA GERAL DAS NEUROSES 1917 16 PSICANÁLISE E PSIOUIATRIA 16 PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA Senhoras e senhores Alegrome em revêlos após um ano para darmos prosseguimento a nossas discussões No ano passado apresenteilhes o tratamento dado pela psicanálise aos atos falhos e aos sonhos neste ano gos taria de iniciálos no entendimento das manifestações neuróticas que como logo descobrirão têm muito em comum com ambos Mas digolhes já de antemão que desta vez não posso lhes conceder a mesma posição de antes em relação a mim No ano passado empenhava me em não dar nenhum passo sem a concordância dos senhores discuti muita coisa submetime a objeções e de fato reconheci o bom senso dos senhores como instância decisiva Agora isso não será mais possível e por uma razão muito simples Atos falhos e sonhos não lhes eram fenômenos desconhecidos era possível dizer que os senhores tinham tanta experiência deles quanto eu ou que não havia dificuldade em obterem tal expe riência Mas o âmbito das manifestações neuróticas não lhes é familiar Como não são médicos não possuem outra via de acesso a ele senão minhas comunicações e de que serve o melhor juízo se não há também familia ridade com a matéria em julgamento Mas não entendam este meu anúncio como se eu pretendesse dar palestras dogmáticas e requerer sua fé incondicional Esse malentendido seria uma grave injustiça contra a minha pessoa Não quero despertar convicções quero fornecer estímulos e abalar pre 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES conceitos Se por desconhecer o material os senhores não têm condições de julgar não devem crer nem con denar Devem escutar e permitir que o que lhes é rela tado produza efeito Não é tão fácil adquirir convicções ou se chegamos a elas sem fazer esforço logo se mos tram desprovidas de valor e capacidade de resistência Direito à convicção possui apenas aquele que assim como eu trabalhou muitos anos no mesmo material e viveu ele próprio repetidas vezes as mesmas novas e surpreendentes experiências De que servem no cam po intelectual as convicções apressadas as conversões fulminantes os repúdios momentâneos Percebem os senhores que o coup de foudre o amor à primeira vista provém de um âmbito bastante diverso o afetivo Nem sequer pedimos a nossos pacientes que sejam convictos ou adeptos da psicanálise Com frequência isso os tor na suspeitos para nós Um ceticismo benévolo é a pos tura que mais desejamos ver neles Portanto procurem também os senhores deixar que a concepção psicanalí tica juntamente com a popular ou a psiquiátrica cresça calmamente dentro de si até surgirem oportunidades para que elas se influenciem se meçam uma à outra e possam então conciliarse numa decisão Por outro lado não pensem que aquilo que lhes apre sento como a concepção psicanalítica é um sistema basea do na especulação Decorre isto sim da experiência é expressão direta da observação ou resultado da elabora ção da experiência Se essa elaboração ocorreu de forma satisfatória e justificada é algo que se mostrará com o avanço dessa ciência de minha parte passadas quase 16 PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA duas décadas e meia e já avançado em anos permito me afirmar sem jactância que tais observações foram o produto de um trabalho árduo intenso e aprofundado Muitas vezes tive a impressão de que nossos oposito res não queriam levar em conta essa origem de nossas afirmações como se acreditassem que são ideias pura mente subjetivas a que outros poderiam opor o que lhes aprouvesse Não compreendo inteiramente essa postu ra Talvez ela venha do fato de em geral um médico não ter muito contato com os doentes dos nervos de não ouvir atentamente o que têm a dizer de modo que não considera a possibilidade de extrair algo de valor de suas manifestações e portanto de fazer observações aprofundadas Prometo aos senhores que no decorrer de minhas palestras pouco vou polemizar em especial com indivíduos Não posso me convencer da verdade da máxima que afirma ser o conflito o pai de todas as coi sas Creio que ela provém da sofística grega e tal como esta falha por superestimar a dialética Pareceme ao contrário que a chamada polêmica científica é de modo geral bastante infrutífera além de quase sempre ser conduzida em nível altamente pessoal Até poucos anos atrás eu podia me gabar de ter entrado em uma disputa científica de fato apenas com um pesquisador Lõwen feld de Munique Terminamos ficando amigos o que somos até hoje Mas nunca mais fiz isso por não ter cer teza de que o desfecho seria o mesmo Os senhores por certo julgarão que tal recusa em participar de uma discussão acadêmica dá testemunho de uma grande inacessibilidade a objeções é sinal de 327 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES teimosia ou como se diz no polido jargão científico extravagante pertinácia O que eu gostaria de respon der é que se os senhores vierem a adquirir uma con vicção com base em trabalho tão árduo também terão o direito de se apegar a essa convicção com alguma te nacidade Além disso posso dizer que ao longo de meu trabalho modifiquei minhas opiniões acerca de pontos relevantes altereias substituías por outras sempre é claro tornando pública essa mudança E qual foi o resultado dessa sinceridade Alguns nem sequer toma ram conhecimento dessas correções que eu próprio fiz e me criticam ainda hoje por teses que há muito tempo já não significam o mesmo para mim Outros me cen suram justamente por essas mudanças em razão das quais me declaram de pouca confiança Quem já mudou de opinião algumas vezes não merece crédito nenhum porque torna evidente que pode ter se equivocado tam bém em suas afirmações mais recentes não é assim Por outro lado quem se aferra inamovível ao que afirmou certa vez ou quem não se deixa demover com suficiente rapidez daquilo que declarou é chamado de teimoso e obstinado O que fazer diante dessas impu tações contraditórias da crítica a não ser permanecer o que se é e se comportar em concordância com o próprio juízo Assim me decidi também eu que não admito que me impeçam de modelar e corrigir minhas doutrinas em consonância com o que demanda o avanço de mi nha experiência Em minhas descobertas fundamentais não encontrei o que mudar até o momento e espero que tampouco venha a encontrar 16 PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA Devo portanto expor aos senhores a concepção psicanalítica das manifestações neuróticas Para isso pareceme indicado estabelecer ligações com os fenô menos já tratados tanto em razão das analogias como dos contrastes Recorro a uma ação sintomática em que já vi muitas pessoas incorrerem nas sessões comigo O analista não sabe bem o que fazer com aquelas pessoas que vão a seu consultório e em quinze minutos ex põem todas as mazelas de sua vida Nosso conhecimen to mais aprofundado torna dificil para nós dizer como qualquer outro médico O senhor não tem nada E emendar o conselho Faça um leve tratamento hidro terápico Perguntado sobre o que fazia com os pacien tes que o procuravam um colega nosso encolheu os ombros e respondeu infligialhes uma multa de tantas coroas pelo desperdício de tempo Portanto não há de surpreender os senhores que mesmo no caso de psi canalistas ocupados a consulta não costume ser muito animada Eu mandei trocar a porta simples que separa a sala de espera de meu consultório por portas duplas as quais reforcei ainda com um revestimento de feltro A intenção por trás desse expediente não tem nada de duvidosa Com efeito acontece muito de pessoas pro cedentes da sala de espera não fecharem as portas pe las quais passam quase sempre aliás deixam abertas ambas as portas Tão logo percebo essa negligência insisto em tom inamistoso para que o paciente retorne e faça o que deixou de fazer quer se trate de um ca valheiro elegante ou de uma dama muito bem vestida A impressão que isso causa é a de um pedantismo ina 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES propriado Já cheguei mesmo a vez por outra fazer má figura com tal exigência no caso de pessoas incapazes de tocar uma maçaneta e que apreciam ver seu acompa nhante pouparlhes de semelhante contato Na maioria dos casos porém eu estava com a razão porque uma pessoa que assim se comporta que deixa aberta a porta que separa a sala de espera do consultório médico pertence ao populacho e merece ser recebida com hostilidade Não tomem partido agora antes de ouvir o restante É que essa negligência do paciente só ocorre se ele estava sozinho na sala de espera tendo deixado pois uma sala vazia atrás de si ela jamais acontece se em sua espera ele estava acompanhado de outros de estranhos Nesse último caso sabe muito bem que é do seu interesse não ser ouvido enquanto fala com o médi co razão pela qual jamais se esquece de fechar cuidado samente as duas portas Assim a negligência do paciente não é condiciona da de modo casual nem desprovido de sentido ela não é desimportante porque como veremos lança luz sobre a relação entre o paciente que entra no consultório e seu médico O paciente pertence à grande massa daqueles que requerem uma autoridade mundana dos que querem ser deslumbrados e intimidados Talvez tenha mandado perguntar pelo telefone qual o horário mais favorável para a visita ao médico ele se preparou para enfrentar uma multidão de pessoas em busca de ajuda como diante de uma filial do Café Julius Meinl Agora porém aden tra uma sala de espera vazia e além disso de decoração bastante modesta e isso o abala Tem de fazer o médico 330 16 PSICANÁLISE E PSIOUIATRIA pagar pelo respeito supérfluo que pretendia lhe dispen sar e então abstémse de fechar as portas entre sala de espera e consultório Com isso quer dizer o seguin te ao médico Ora não tem ninguém aqui e é provável que enquanto eu estiver aqui não apareça mesmo mais ninguém Durante a consulta se comportaria também de forma impolida e desrespeitosa não tivesse sua arro gância sido refreada logo de início com uma reprimenda Nessa análise de uma pequena ação sintomática os senhores não encontram nada que já não conhecessem ela não é obra do acaso mas pelo contrário possui uma motivação um sentido e uma intenção faz parte de um contexto psíquico especificável e na condição de um pequeno indício dá testemunho de um processo psí quico mais importante Acima de tudo porém revela que o processo assim indicado é desconhecido da cons ciência daquele que o realiza uma vez que nenhum dos pacientes que deixou abertas as duas portas seria capaz de admitir que por meio dessa negligência pretendeu expressar seu menosprezo por minha pessoa Vários é provável se lembrariam de ter se decepcionado ao en trar na sala de espera vazia mas o vínculo entre essa impressão e a ação sintomática a seguir permaneceu desconhecido de sua consciência Agora acrescentemos a essa pequena análise de uma ação sintomática observações que fiz junto a um doente dos nervos Escolho para tanto observações que trago ain da frescas na memória e que além disso se deixam apre sentar aqui com relativa brevidade Certo grau de minúcia é imprescindível numa exposição como a que se segue 331 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES Um jovem oficial que volta para casa para gozar um curto período de férias me pede para tratar de sua so gra a qual vivendo em condições as mais felizes está arruinando a própria vida e a dos seus em razão de uma ideia disparatada Então travo conhecimento com uma bemconservada senhora de 53 anos de idade de natu reza amigável e simples que sem relutância me faz o relato a seguir Ela vive no campo e tem um casamento dos mais felizes com o marido que dirige uma grande fábrica Não tem palavras suficientes para louvar o amo roso cuidado do cônjuge Casouse por amor há trinta anos e desde então jamais experimentou qualquer tris teza briga ou motivo para ciúme Os dois filhos estão bem casados o marido pai de seus filhos movido por um senso de dever ainda não deseja aposentarse Há um ano aconteceu então o inacreditável algo que ela própria não compreendia recebeu uma carta anônima que acusava seu excepcional marido de ter um caso com uma jovem Ela acreditou de pronto na carta e desde então acabarase sua felicidade Detalho a seguir o cur so aproximado dos acontecimentos Ela tinha uma em pregada com a qual discutia intimidades talvez com de masiada frequência A empregada perseguia outra moça com uma hostilidade verdadeiramente odiosa porque esta última fora bem mais longe na vida embora fos se de origem igual à sua Em vez de ir trabalhar como empregada essa segunda moça havia conseguido ob ter uma formação na área comercial fora trabalhar na fábrica e em decorrência da falta de pessoal e graças a convites dos superiores tinha avançado para uma boa 332 16 PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA posição Agora morava na própria fábrica tinha con tato com todos os cavalheiros e era até chamada de se nhorita A outra a empregada que ficara para trás na vida naturalmente revelavase mais do que disposta a falar mal da antiga colega de escola Certo dia nossa dama conversava com a empregada sobre um velho ca valheiro que ali estivera em visita do qual se sabia que não morava com a esposa e que tinha um caso com ou tra mulher A dama não sabe como aquilo foi acontecer mas de repente disse Para mim seria a pior coisa do mundo descobrir que o meu bom marido tem um caso No dia seguinte recebeu pelo correio uma carta anô nima que escrita com letra de mão disfarçada lhe co municava exatamente aquilo que por assim dizer ela conjurara A senhora concluiu é provável que com razão que a carta havia sido obra da empregada má uma vez que como amante do marido a carta designa va justamente a senhorita que a empregada odiava Mas embora tenha percebido de imediato a intriga e embora em sua cidade conhecesse exemplos suficientes do pouco crédito que aquelas denúncias mereciam aconteceu de a referida carta abatêla instantaneamente Mergulhou em terrível agitação e mandou chamar de pronto o marido a fim de lhe fazer as censuras mais veementes O marido repeliu sorrindo a acusação e fez o melhor que havia a fazer mandou chamar o médico da família e da fábrica que juntou seus esforços aos dele na intenção de tranqui lizar a mulher As demais medidas tomadas foram igual mente sensatas A empregada foi demitida mas não a suposta rival Desde então a dama enferma sempre afir 333 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES mava ter se tranquilizado no tocante à carta em cujo conteúdo deixara de acreditar mas nunca totalmente nem por muito tempo Bastava ouvir o nome da senho rita ou encontrála na rua para que isso desencadeasse nela novo acesso de desconfiança dor e recriminações Essa é pois a história dessa boa senhora Não foi preciso muito conhecimento psiquiátrico para com preender que ao contrário de outros doentes dos ner vos ela apresentara o próprio caso de uma forma dema siado atenuada de forma dissimulada como dizemos e que na verdade jamais superara a crença na acu sação contida na carta anônima Que postura assume o psiquiatra ante um caso pa tológico dessa natureza Já sabemos como ele se com portaria diante da ação sintomática do paciente que não fecha as portas da sala de espera Declaraa uma casuali dade desprovida de interesse psicológico e que portan to não lhe diz respeito Esse comportamento contudo não pode ser estendido ao caso patológico da mulher ciumenta A ação sintomática parece algo indiferente mas o sintoma impõese como algo significativo Ele se liga a um forte sofrimento subjetivo e ameaça objetiva mente o convívio de uma família é pois um objeto ine gável do interesse psiquiátrico De início o psiquiatra procura caracterizálo mediante uma qualidade funda mental A ideia que atormenta essa mulher não pode em si ser chamada de disparatada acontece afinal de ho mens casados e mais velhos terem casos amorosos com moças mais jovens Outra coisa todavia é disparatada e incompreensível A paciente não tem motivo nenhum 334 16 PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA para acreditar que seu esposo carinhoso e fiel perten ça a essa categoria em geral nada incomum de homens apenas o que afirma a carta anônima Ela sabe que aque le pedaço de papel não possui força comprobatória e tem uma explicação satisfatória para sua origem deveria portanto dizer a si mesma que não tem razão nenhuma para sentir ciúme e é o que faz mas sofre assim mes mo como se reconhecesse esse ciúme como plenamente justificado A ideias dessa natureza inacessíveis a argu mentos lógicos extraídos da realidade convencionouse chamar de ideias delirantes A boa dama sofre portanto de um delírio de ciúme Essa é por certo a característica fundamental desse caso patológico Feitas essas primeiras constatações nosso interesse psiquiátrico tornase ainda mais vivo Se uma ideia de lirante não pode ser eliminada com a referência à reali dade então é provável que tampouco ela tenha origem na realidade De onde vem então Ideias delirantes existem com os mais variados conteúdos Por que no nosso caso esse conteúdo é justamente o ciúme Em que pessoas formamse ideias delirantes ou em parti cular ideias delirantes de ciúme Sobre isso gostaría mos de ouvir o psiquiatra que no entanto nos deixará na mão Ele só investigará um único aspecto de nossos questionamentos Vai pesquisar a história familiar dessa mulher e talYer apresentar a seguinte resposta ideias delirantes formamse naquelas pessoas em cujas famílias já se verificaram repetidas vezes perturbações psíquicas semelhantes ou de outros tipos Em outras palavras se essa mulher desenvolveu uma ideia delirante foi a here 335 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES ditariedade que a predispôs a tanto Isso com certeza é uma resposta mas é tudo que queremos saber É tudo o que contribuiu para esse caso patológico Devemos nos contentar com a suposição de que sendo de ciúme e não de outra coisa a ideia delirante que se desenvol veu essa sua característica é indiferente arbitrária ou inexplicável E estamos autorizados a entender o princí pio que anuncia a predominância da influência genética também no sentido negativo de que independentemente das experiências por que passou essa psique ela estava fadada a algum dia produzir um delírio Os senhores quererão saber por que a psiquiatria científica não nos fornece outros esclarecimentos Mas eu lhes respondo é um maroto aquele que dá mais do que tem O psiquiatra não conhece caminho que leve ao esclarecimento de um tal caso Ele tem de se contentar com esse diagnóstico e a despeito de uma rica experiência com um prognóstico incerto do curso posterior da enfermidade Mas pode aqui a psicanálise fazer mais Sim pode Espero mostrar aos senhores que mesmo em um caso de tão difícil acesso ela consegue revelar coisas que possibilitam uma melhor compreensão De início peço aos senhores que atentem para um pequenino detalhe a paciente provocou na verdade a carta anônima que agora sustenta sua ideia delirante na medida em que dias antes revelara à empregada intrigueira que caso o marido tivesse um caso de amor com uma jovem moça seria a maior infelicidade de sua vida Com isso deu à empregada a ideia de enviarlhe a carta anôni ma Assim a ideia delirante ganha certa independência 16 PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA da carta em si ela já estava presente antes na paciente sob a forma de temor ou como desejo Considerem também outros pequenos indícios produzidos em ape nas duas sessões de análise É certo que a paciente de monstrou muita reserva ao ser solicitada a relatar sua história seus demais pensamentos suas associações e suas lembranças Afirmou que nada mais lhe ocorria que já havia dito tudo e passadas duas horas a tentativa precisou ser de fato interrompida porque ela anunciara que já se sentia saudável e tinha certeza de que a ideia doentia não voltaria É claro que o disse apenas por re sistência e por temer a continuação da análise Naquelas duas horas porém ela havia sim feito observações que autorizavam certa interpretação que a tornavam inclu sive imperiosa e essa interpretação lança uma luz muito clara sobre a gênese de seu delírio de ciúme Ela própria nutria intensa paixão por um jovem pelo próprio genro em virtude de cuja insistência aliás ela fora me procu rar como paciente Dessa paixão ela nada sabia ou tal vez soubesse um pouco Dada a relação de parentesco então existente era fácil que essa inclinação amorosa se mascarasse de uma ternura inofensiva Depois de tudo mais que descobrimos não é difícil nos transportarmos para a vida psíquica dessa senhora respeitável e boa mãe de 53 anos Por se tratar de coisa monstruosa impos sível tal paixão não podia se tornar consciente não obstante ela seguiu existindo e exercendo forte pressão inconsciente Alguma coisa precisava acontecer com ela algum tipo de remédio tinha de ser encontrado e o alívio mais à mão foi certamente proporcionado pelo 337 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES mecanismo do deslocamento que com tanta frequên cia tem participação no surgimento do ciúme delirante Se não apenas a senhora de mais idade estivesse apai xonada por um jovem mas também seu velho marido estivesse tendo um caso amoroso com uma moça isso a libertaria da pressão que a infidelidade exercia sobre sua consciência Assim a fantasia da infidelidade do marido agiu como um emplastro refrescante sofre a ferida ar dente De seu próprio amor ela não tomou consciência mas o espelhamento dele que lhe trazia tantas vanta gens se fez nela obsessiva e delirantemente conscien te Nenhum argumento contrário a ele podia frutificar uma vez que os argumentos se voltavam apenas contra a imagem no espelho e não contra a imagem primor dial à qual a primeira devia sua força e que permaneceu oculta e intocável no inconsciente Resumamos agora de que maneira um breve e dificultoso empenho psicanalítico contribuiu para a compreensão desse caso patológico pressupondose é claro que nossas investigações foram feitas corre tamente o que não posso submeter aqui ao juízo dos senhores Em primeiro lugar a ideia delirante já não é disparatada ou incompreensível ela se revela plena de sentido dotada de boa motivação e se insere no con texto de uma vivência afetiva da paciente Em segun do lugar ela é necessária como reação a um processo psíquico inconsciente depreendido de outros indícios e deve precisamente a essa relação seu caráter delirante sua resistência a ataques lógicos e reais é em si algo desejado uma espécie de consolo Em terceiro lugar é 16 PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA a vivência por trás da enfermidade que determina sem sombra de dúvida que a ideia delirante será de ciúme e de nenhuma outra coisa Os senhores se lembram de que na véspera a senhora havia manifestado à empre gada malintencionada que uma infidelidade do marido seria o pior que poderia lhe acontecer Tampouco lhes terá escapado as duas importantes analogias com a ação sintomática por nós analisada tanto no esclarecimento de seu sentido ou intenção como na relação com um ele mento inconsciente Naturalmente isso não responde todas as pergun tas que esse caso suscitou Tratase antes de um caso patológico repleto de outros problemas tanto daqueles para os quais ainda não houve solução como daqueles para cuja solução as circunstâncias particulares não se mostraram favoráveis Por exemplo por que essa se nhora que tem um casamento feliz sucumbe a uma paixão pelo genro e por que o alívio que seria igual mente possível de outra maneira se apresenta sob a forma de um tal espelhamento de uma projeção de sua própria situação sobre o marido Não creiam os senho res que é ocioso e leviano levantar tais perguntas Já dispomos de bom material para dar a elas uma resposta possível A senhora se encontra naquela idade crítica que traz consigo uma indesejada e súbita intensificação do desejo sexual feminino isso em si já pode constituir explicação suficiente Ou talvez se deva acrescentar aí o fato de há vários anos o bom e fiel marido não mais dispor da capacidade de desempenho sexual de que a bem conservada senhora necessita para sua satisfação 339 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES A experiência nos mostrou que precisamente homens assim cuja fidelidade se faz então natural distinguem se por uma particular ternura e por uma tolerância incomum para com os problemas nervosos da esposa Pode também não ser indiferente o fato de o objeto des sa paixão patogênica ser justamente o jovem marido da filha Uma forte ligação erótica com esta que em última instância remete à constituição sexual da mãe com fre quência encontra meios de prolongarse assim transfor mada Nesse contexto talvez eu possa lembrar aos se nhores que a relação entre sogra e genro sempre foi tida pelos seres humanos como particularmente delicada tendo constituído tabu e ensejado poderosas proibições e evitamentos entre povos primitivos1 É comum que tanto no aspecto positivo como no negativo ela ultra passe a medida do culturalmente desejável Qual des ses três fatores atuou em nosso caso ou se houve aí um acúmulo de todos eles isso não sei dizer mas apenas porque não me foi permitido avançar além da segunda sessão na análise do caso Noto agora senhores que falei de coisas para as quais seu entendimento ainda não está preparado Fiz isso para proceder à comparação entre psiquiatria e psi canálise Mas uma coisa posso perguntar desde já os se nhores perceberam alguma contradição entre as duas A psiquiatria não aplica os meios técnicos da psicanálise ela prescinde de vincular o que quer que seja ao conteú do da ideia delirante e apontando para a hereditariedade 1 Cf Totem e tabu 19123 340 16 PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA nos fornece uma etiologia bastante genérica e distante em vez de primeiramente indicar as causas mais especí ficas e próximas Há aí contudo uma contradição uma oposição Não se trata antes de uma complementação O fator hereditário contradiz o significado da vivência ou ao contrário ambos se juntam da forma mais eficaz Os senhores concordarão em que não há na essência do trabalho psiquiátrico nada que poderia se opor à pesqui sa psicanalítica Logo são os psiquiatras que se opõem à psicanálise e não a psiquiatria A psicanálise está para a psiquiatria assim como a histologia para a anatomia uma estuda a forma exterior dos órgãos ao passo que a outra se dedica ao estudo de sua constituição a partir dos tecidos e células Não se pode conceber uma contra dição entre estudos que dão continuidade um ao outro Os senhores sabem que hoje a anatomia é considerada a base de uma medicina científica mas houve época em que era proibida de dissecar cadáveres a fim de conhe cer a constituição interior do corpo humano da mesma forma hoje parece mal visto que se pratique a psicanálise com o intuito de investigar o mecanismo interno da vida psíquica É de prever que uma época não muito distante nos trará a percepção de que uma psiquiatria dotada de profundidade científica é impossível sem um bom conhe cimento dos processos mais profundos inconscientes que se desenvolvem na vida psíquica Talvez a tão combatida psicanálise tenha amigos entre os senhores que gostariam de vêla justificada também sob outro aspecto o terapêutico Sabese que a nossa terapia psiquiátrica até o momento não foi capaz 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES de exercer influência sobre as ideias delirantes Poderá fazêlo a psicanálise graças à compreensão que adquiriu desses sintomas Não meus senhores não pode contra esse mal ela é tão impotente quanto qualquer outra te rapia pelo menos até agora Conseguimos entender o que se passou no doente mas não temos como fazer que o próprio doente o compreenda Já disse que não pude avançar além dos primeiros passos na análise das ideias delirantes Pretenderão os senhores afirmar que por ter permanecido infrutífera a análise desses casos é conde nável Não creio Temos o direito e até mesmo o dever de levar adiante a pesquisa sem nos importar com sua utilidade imediata No fim não sabemos onde e quan do cada porção adicional do saber se transformará em capacidade também em capacidade terapêutica Se no tocante a todas as outras formas de adoecimento ner voso e psíquico a psicanálise se mostrasse tão infrutífe ra como no caso das ideias delirantes ainda assim ela es taria plenamente justificada como meio insubstituível de investigação científica É verdade que então não pode ríamos praticála o material humano com o qual apren demos que vive tem vontade própria e necessita de motivos para colaborar nesse trabalho nos voltaria as costas Por isso permitamme concluir hoje dizendo que há amplos grupos de perturbações nervosas em que efetivamente se deu a transformação de nosso melhor entendimento em capacidade terapêutica e que nessas enfermidades de difícil acesso por outros meios obte mos em determinadas condições êxitos que nada ficam a dever a outros sucessos no campo da medicina interna 342 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS Senhoras e senhores Em minha palestra anterior expliqueilhes que a psiquiatria clínica pouco se preo cupa com a forma de manifestação e o conteúdo do sin toma mas que justamente nisso intervém a psicanálise cuja primeira constatação é de que o sintoma possui um sentido e guarda relação com as vivências do enfermo O sentido dos sintomas neuróticos foi desvendado pela primeira vez por Josef Breuer mediante o estudo e a feliz resolução de um caso de histeria que ficou célebre 188o2 É correto que de forma independente tam bém Pierre Janet produziu a mesma comprovação per tence ao pesquisador francês aliás a primazia na lite ratura científica uma vez que Breuer só publicou suas observações uma década mais tarde 18935 na época de sua colaboração comigo De resto pode ser algo in diferente a procedência da descoberta porque os senho res sabem que toda descoberta é feita mais de uma vez e que nenhuma é feita de uma vez só O sucesso de todo modo não caminha lado a lado com o mérito a Amé rica não deve seu nome a Colombo Antes de Breuer e Janet o grande psiquiatra Leuret expressou a opinião de que mesmo os delírios dos doentes mentais have riam de ter um sentido reconhecível se soubéssemos traduzilos Confesso que durante longo tempo tive em altíssima conta o mérito de P Janet no esclarecimen to dos sintomas neuróticos porque ele os compreendia como idées inconscientes que dominavam os enfermos 343 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Mas J anet passou a se manifestar com excessiva reserva como se quisesse admitir que o inconsciente nada mais representava para ele que um expediente um modo de dizer une foçon de parler não pensando nele como algo real Desde então não mais compreendo suas explana ções apenas acho que ele empanou desnecessariamente seu grande mérito Portanto os sintomas neuróticos têm seu sentido tal como os atos falhos e os sonhos e como estes guar dam também relação com a vida das pessoas que os exibem Eu gostaria apenas de com alguns exemplos aproximar os senhores dessa importante descoberta Só posso afirmar que é assim em todos os casos não posso comproválo Todo aquele que sair em busca de expe riência própria se convencerá disso Por determinados motivos no entanto não vou extrair meus exemplos de casos de histeria mas de outra neurose muitíssimo curiosa e no fundo bastante próxima dela a respeito da qual vou dizerlhes algumas palavras introdutórias Essa neurose a chamada neurose obsessiva não é tão popular quanto a histeria já conhecida de longa data ela tampouco é se posso me exprimir assim tão estri dente comportandose mais como um assunto particu lar do doente renuncia quase por completo a manifes tações físicas e cria todos os seus sintomas no âmbito do psíquico A neurose obsessiva e a histeria são as formas de adoecimento neurótico em cujo estudo a psicanálise se baseou inicialmente e em cujo tratamento nossa tera pia tem seus triunfos Mas a neurose obsessiva em que não se vê aquele enigmático salto do psíquico ao físico 344 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS na verdade tornouse para nós graças ao empenho psi canalítico mais transparente e familiar do que a histeria e percebemos que ela mostra de maneira bem mais acen tuada certas características extremas da neurose A neurose obsessiva se manifesta quando os doentes são tomados por pensamentos nos quais eles próprios não têm nenhum interesse quando sentem impulsos que lhes parecem muito estranhos e são levados a ações cuja execução não lhes propicia nenhum prazer mas que é impossível deixarem de fazer Os pensamentos imagens obsessivas podem ser absurdos em si ou ape nas indiferentes para o indivíduo com frequência são ridículos e na totalidade dos casos o ponto de partida de uma atividade mental fatigante que exaure o enfer mo e à qual ele só se dedica muito a contragosto Contra a própria vontade ele se vê obrigado a refletir e especu lar como se estivesse ante a tarefa mais importante de sua vida Os impulsos que sente podem também causar uma impressão infantil e absurda mas na maioria dos casos encerram conteúdo dos mais terríveis como ten tações à prática de graves crimes o que faz com que o doente não apenas os renegue como estranhos mas também horrorizado fuja deles e se proteja de sua exe cução mediante proibições renúncias e restrições à pró pria liberdade No entanto eles nunca se concretizam nem mesmo uma única vez o resultado é sempre a vitória da fuga e da cautela O que o doente de fato rea liza as chamadas ações obsessivas são coisas bastante inofensivas e por certo insignificantes em geral repeti ções ornamentações cerimoniosas de atividades do dia 345 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES a dia mediante as quais porém esses afazeres necessá rios ir dormir lavarse fazer a toalete ir passear se tornam tarefas altamente trabalhosas e quase impos síveis Nas formas e nos casos individuais da neurose obsessiva as ideias doentias os impulsos e as ações não se misturam na mesma proporção a regra é isto sim que um ou outro desses fatores domine o quadro dando à enfermidade o seu nome mas o denominador comum de todas essas formas é inconfundível É certamente uma doença louca Creio que nem a mais extravagante fantasia psiquiátrica conseguiria cons truir algo desse tipo e se não pudéssemos encontrála todos os dias não acreditaríamos facilmente na sua exis tência Mas não pensem que ajudarão o paciente em al guma coisa ao tentar convencêlo a mudar de atitude a não entreter pensamentos tão bobos e ocuparse de algo sensato em vez de suas tolices Isso é o que ele próprio gostaria de fazer porque tem toda a clareza acerca da si tuação compartilha o juízo dos senhores a respeito dos sintomas obsessivos até os mostra aos senhores Só não tem como evitálos aquilo que se transforma em ação na neurose obsessiva é sustentado por uma energia que provavelmente não tem paralelo na vida psíquica nor mal O neurótico obsessivo pode apenas deslocar trocar substituir uma ideia tola por outra que de algum modo é mais atenuada proceder de uma cautela ou proibição a outra realizar um cerimonial em lugar de outro Ele pode deslocar a obsessão mas não eliminála A possi bilidade do deslocamento de todos os sintomas para algo bastante diverso de sua configuração original é uma ca 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS racterística central de sua enfermidade além disso cha ma a atenção em seu estado a acentuada separação que exibem os opostos polaridades que perpassam a vida psíquica Ao lado das obsessões de conteúdo positivo e negativo impõese também no âmbito intelectual uma dúvida que gradualmente corrói até mesmo aquilo que habitualmente se tem por certo O quadro geral caminha para uma indecisão uma falta de energia e uma restri ção da liberdade crescentes E no entanto o neurótico obsessivo é em sua origem um caráter bastante enér gico muitas vezes de extraordinária obstinação e em regra possuidor de dotes intelectuais acima da média Na maioria dos casos alcançou um desenvolvimento éti co elevado mostrase mais do que consciencioso e uma pessoa mais correta do que o habitual Os senhores bem podem imaginar que será necessário realizar ainda um belo trabalho até que tenhamos conseguido nos situar minimamente em meio a todo esse conjunto contraditó rio de características próprias e de sintomas No momen to nada almejamos senão poder compreender e interpre tar alguns dos sintomas dessa enfermidade Tendo em vista nossas discussões anteriores talvez os senhores queiram saber como a psiquiatria atual se comporta em relação aos problemas da neurose obsessi va No entanto esse é um capítulo pobre A psiquiatria dá nomes às diversas obsessões e nada mais diz a seu respeito Por outro lado enfatiza que os portadores de tais sintomas são degenerados Isso não satisfaz é na verdade um juízo de valor uma condenação em vez de explicação Devemos pensar então que pessoas desse 347 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES tipo apresentariam toda sorte de singularidades De fato acreditamos sim que as pessoas que desenvolvem tais sintomas hão de ser por natureza um tanto diferentes das demais Gostaríamos no entanto de perguntar são elas mais degeneradas que os outros doentes dos ner vos como os histéricos ou os acometidos de psicoses De novo evidentemente a caracterização é demasiado genérica Podese mesmo questionar se ela é justificada quando se sabe que sintomas assim aparecem também em pessoas notáveis dotadas de capacidade de desempenho elevada e significativa para o público em geral Graças à sua própria discrição pessoal e à mendacidade de suas biografias de hábito descobrimos pouco acerca da inti midade de nossas grandes figuras modelares mas acon tece de uma delas ser um fanático pela verdade como Émile Zola e aí ouvimos dele próprio o quanto sofreu a vida inteira com seus hábitos obsessivos singulares A psiquiatria criou aí o expediente de falar em dégé nérés superieurs Ótimo mas graças à psicanálise fica mos sabendo que se pode eliminar de forma duradoura esses sintomas obsessivos singulares e outros males assim como fazemos no caso das pessoas não degenera das Eu próprio já logrei fazêlo várias vezes Quero apenas comunicar aos senhores dois exem plos de análise de um sintoma obsessivo o primeiro proveniente de observação antiga mas que eu não seria capaz de substituir por outra melhor o segundo bem mais recente Restrinjome a esse pequeno número de exemplos porque ao relatálos será necessário que nos estendamos que contemplemos todos os detalhes 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS Uma senhora de quase trinta anos de idade que so fria de severa manifestação obsessiva e a quem eu talvez tivesse podido ajudar se um maldoso acaso não houves se arruinado meu trabalho talvez eu ainda lhes conte o que se passou realizava entre outras a seguinte e curiosa ação obsessiva muitas vezes ao dia Ela ia de seu quarto ao quarto vizinho postavase ali em local determinado junto da mesa que se erguia no centro do cômodo tocava a sineta para chamar a criada confiava lhe uma tarefa qualquer ou mesmo a dispensava sem nada solicitar e voltava por fim a seu quarto Não se tratava de sintoma patológico grave é verdade mas por certo suficiente para atiçar a curiosidade A explicação foi encontrada da maneira mais irreparável e irrepreen sível sem nenhuma contribuição por parte do médico De resto nem sei como poderia ter chegado a uma su posição qualquer sobre o sentido daquela ação obsessi va ou a uma indicação de como interpretála Toda vez que perguntava à enferma Por que a senhora faz isso Que sentido tem ela me respondia Não sei Um dia porém depois de eu ter conseguido resolver uma grande questão de princípios com que ela lutava a res posta lhe veio de súbito e ela me relatou o que havia de pertinente àquela ação obsessiva Mais de dez anos an tes havia se casado com um homem muito mais velho o qual na noite de núpcias se revelara impotente Na quela noite ele caminhara inúmeras vezes de seu quar to ao dela a fim de repetir a tentativa mas sempre sem sucesso Pela manhã ele dissera irritado Vou sentir vergonha da criada quando ela vier arrumar a cama 349 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Em seguida apanhou um frasco de tinta vermelha que por acaso se encontrava no quarto e verteu seu con teúdo no lençol mas não em um ponto em que seria de se esperar encontrar semelhante mancha De início não entendi o que aquela lembrança podia ter a ver com a ação obsessiva em questão porque só identifiquei coin cidências nas idas e vindas de um quarto a outro e na presença da criada Então a paciente me conduziu até a mesa do quarto ao lado e me fez ver uma grande man cha na toalha que revestia o tampo Explicoume tam bém que se posicionava em relação à mesa de tal manei ra que a criada uma vez convocada não tivesse como não ver a tal mancha Agora a relação íntima entre a cena posterior à noite de núpcias e a presente ação ob sessiva não deixava dúvidas mas restavam outras coisas a serem compreendidas Fica claro acima de tudo que a paciente se identifi ca com seu marido afinal ela o representa na medida em que seu caminhar de um quarto a outro o imita De vemos então admitir a fim de manter essa equivalência que ela substitui cama e lençol por mesa e toalha Isso pareceria arbitrário mas não foi em vão que estudamos o simbolismo dos sonhos Nesses é também muito fre quente encontrarmos uma mesa que deve ser interpreta da como cama Mesa e cama juntas representam o casa mento é fácil pois que uma seja substituída pela outra A prova de que a ação obsessiva possui um sentido já estaria dada ela parece uma representação uma repeti ção daquela cena significativa Mas não precisamos nos deter nessa aparência Se examinarmos as duas situações 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS em maior profundidade é provável que encontremos a chave para algo mais para a intenção da ação obsessiva Seu cerne está evidentemente na convocação da criada a quem a mulher exibe a mancha em contradição com aquela afirmação do marido Vou sentir vergonha da criada Ele portanto em cujo papel se encontra a esposa não sente vergonha da criada a mancha está assim no lugar correto Vemos portanto que a mulher não apenas repete a cena mas também lhe dá continui dade e a corrige tornaa certa Com isso corrige tam bém aquilo que na noite de núpcias lhe foi tão penoso tornando necessário o recurso ao frasco de tinta a im potência Assim a ação obsessiva diz Não não é ver dade Ele não precisou sentir vergonha da criada não era impotente À maneira de um sonho a ação obses siva apresenta em uma ação presente esse desejo como realizado Ela serve ao propósito de elevar o homem aci ma de seu infortúnio de então Concorda com isso tudo o mais que eu poderia contar aos senhores acerca dessa mulher Ou melhor dizendo tudo o mais que sabemos dela nos mostra o caminho para essa interpretação da ação obsessiva em si incompreensível Há anos essa senhora vive separada e se debate com a intenção de se separar judicialmen te do marido Nem de longe porém está livre dele Vêse obrigada a permanecerlhe fiel e se recolhe por completo do mundo para não cair em tentação Em sua fantasia ela o perdoa e engrandece O segredo mais profundo de sua enfermidade é que por meio dela essa senhora protege o marido da maledicência justifica o 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES fato de morar separada dele e lhe possibilita uma con fortável vida solitária Assim a análise de uma inofen siva ação obsessiva nos conduz por via direta ao cerne mais íntimo de um caso patológico ao mesmo tempo em que nos revela uma porção nada desprezível do se gredo da própria neurose obsessiva Vamos nos deter um pouco mais nesse exemplo pois ele reúne condições que não podemos exigir normalmente de todos os ca sos Nele a interpretação do sintoma foi encontrada de súbito sem qualquer orientação ou interferência do analista e ela decorreu da relação com uma experiência vivida não como de costume em um período esque cido da infância e sim na vida adulta da enferma que a conservou indelével na lembrança Todas as objeções que a crítica costuma em geral dirigir contra nossas in terpretações de sintomas não se aplicam a esse caso em especial Infelizmente nem sempre as condições nos são tão favoráveis Mais uma coisa Não chamou a atenção dos senho res de que modo essa ação obsessiva insignificante conduziunos à intimidade da paciente Para uma mu lher não pode haver coisa mais íntima a relatar do que a história de sua noite de núpcias Há de ser coincidência desprovida de maior importância o fato de termos che gado à intimidade da vida sexual É possível decerto que isso seja apenas consequência da escolha que fiz desta vez Não julguemos a questão com pressa dema siada Em vez disso passemos ao exemplo seguinte que é de um tipo bem diferente um modelo de um gênero muito comum o cerimonial que precede o sono 32 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS Uma moça de dezenove anos bem constituída e in teligente filha única de pais que ela supera em cultura e vivacidade intelectual foi uma criança travessa e pe tulante tendo se transformado no curso de anos mais recentes sem nenhuma interferência externa visível em uma doente dos nervos Bastante suscetível a se irritar com a mãe está sempre insatisfeita deprimida tende à indecisão e à dúvida e por fim confessa já não ser capaz de ir sozinha a praças e ruas maiores Não vamos nos ocupar grandemente de seu complicado estado patológi co que reclama no mínimo dois diagnósticos agora fobia e neurose obsessiva e sim nos deter no fato de que essa moça desenvolveu também todo um cerimonial a ser cumprido na hora de ir dormir um cerimonial que acarreta sofrimento a seus pais Em certo sentido pode se dizer que toda pessoa normal realiza seu cerimonial na hora de dormir ou que conta com o estabelecimen to de certas condições cuja ausência a impede de ador mecer impomos à transição do estado de vigília para o sono certas formas que repetimos toda noite da mesma maneira Mas tudo que condiciona o sono de uma pessoa saudável possui explicação racional se as circunstâncias externas tornam necessária alguma mudança a adapta ção a ela se dá com facilidade e sem perda de tempo O cerimonial patológico no entanto é inflexível ele é ca paz de se impor a um custo altíssimo de se revestir de uma justificativa perfeitamente racional e a um exame superficial parece afastarse da normalidade apenas por certo cuidado exagerado Visto mais de perto porém dá a perceber que esse seu revestimento não convence 353 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES que suas demandas abrangem medidas muito além da justificativa racional bem como outras que a contrariam diretamente N assa paciente alega como motivo para seus cuidados noturnos o fato de precisar de silêncio para poder dormir e de portanto ter de eliminar todas as fontes de ruído Com essa intenção ela faz duas coi sas interrompe o funcionamento do grande relógio que tem em seu quarto retira todos os demais relógios não suportando nem mesmo seu minúsculo relógio de pulso sobre o criadomudo reúne sobre a escrivaninha vasos com flores e vasos em geral de maneira que não pos sam cair e se quebrar durante a noite perturbandolhe o sono Ela sabe que tais medidas encontram justificati va apenas aparente em sua lei do silêncio O tiquetaque do relógio de pulso seria inaudível ainda que ele per manecesse sobre o criadomudo e nós todos sabemos por experiência própria que o tiquetaque constante dos pêndulos de um relógio de parede não perturba o sono mas produz antes o efeito de um sonífero Ela admite também que o receio de que deixados em seus devidos lugares vasos de flores e de plantas poderiam cair e se quebrar durante a noite é algo sem probabilidade Ou tras medidas pertinentes ao cerimonial de nossa pacien te não se apoiam nessa lei do silêncio A exigência por exemplo de que a porta que separa seu quarto do quarto dos pais permaneça semiaberta do que ela se assegura inserindo objetos diversos no vão da referida porta pa rece pelo contrário ativar uma fonte de ruídos pertur badores As principais medidas porém dizem respeito a sua própria cama O travesseiro maior não pode tocar 354 17 O SENTIDO 005 SINTOMAS a madeira do espaldar da cama o menor sobre o qual ela pousa a cabeça precisa ser disposto sobre o maior de modo a formar um losango então ela deita a cabe ça exatamente sobre a diagonal maior do losango O edredom de penas a que chamamos Duchent na Áus tria precisa ser sacudido de forma a ficar bem alto nos pés uma elevação que depois ela jamais deixa de afofar para melhor distribuíla Permitamme ignorar os demais pormenores com frequência detalhes minúsculos desse cerimonial eles não nos ensinariam nada de novo e nos afastariam de masiado de nosso propósito Atentem os senhores porém para o fato de que nada disso se realiza per feitamente É constante a preocupação com possíveis imperfeições tudo precisa ser verificado repetido a dúvida marca ora uma ora outra das medidas de verifi cação e o resultado é que uma ou duas horas se passam ao longo das quais a moça não consegue dormir nem permite que os pais intimidados o façam A análise desses tormentos não transcorreu com a mesma facilidade encontrada na ação obsessiva da pa ciente anterior Precisei sugerir à moça alusões e inter pretações a cada vez refutadas com um decidido não ou então recebidas com dúvida desdenhosa Mas a essa primeira reação negativa seguiuse um período no qual a paciente se ocupou de considerar ela própria as possi bilidades apresentadas estabelecendo um conjunto de associações com elas recuperando lembranças fazendo conexões até aceitar todas as interpretações como re sultado de seu próprio trabalho Enquanto fazia isso ela 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES foi deixando de tomar suas medidas obsessivas e antes ainda do final do tratamento já abrira mão por com pleto de executar todo aquele cerimonial É preciso que os senhores saibam também que o trabalho analítico da forma como nós o realizamos hoje não contempla o trabalho continuado em um sintoma isolado até que o tenhamos esclarecido Somos antes obrigados a volta e meia abandonar um tema na certeza de que outras conexões nos conduzirão de volta a ele A interpretação de um sintoma que vou agora comunicar aos senhores constituise portanto de uma síntese de resultados cuja obtenção interrompida por outros trabalhos estendeu se por semanas e meses Pouco a pouco nossa paciente compreende que foi na qualidade de símbolo da genitália feminina que ela baniu o relógio de seus preparativos para a noite O relógio ao qual em geral atribuímos também outros significados simbólicos adquiriu aqui o papel genital graças a sua relação com processos periódicos e inter valos regulares Mulheres se gabam da regularidade de sua menstruação comparandoa a um relógio A angús tia de nossa paciente todavia se voltava com particu lar ênfase contra o tiquetaque do relógio que poderia perturbar seu sono O tiquetaque do relógio deve ser equiparado ao pulsar do clitóris quando da excitação sexual De fato essa sensação que então lhe é emba raçosa já a acordara repetidas vezes e agora esse medo da ereção se manifesta na regra de que todo relógio em funcionamento deve ser afastado durante a noite Vasos de flores e de plantas em geral são também como todo 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS recipiente símbolos femininos O cuidado para que não caiam e se quebrem durante a noite não deixa portanto de ter um sentido Nós conhecemos o costume bastan te disseminado da quebra de recipientes ou pratos por ocasião de noivados Cada um dos homens presentes se apropria de um fragmento o que pode ser entendido como renúncia a suas pretensões à noiva numa regula ção matrimonial anterior à monogamia No tocante a essa parte do seu cerimonial a paciente contribuiu tam bém com uma lembrança e várias associações Quando criança ela certa vez caíra com um recipiente de vidro ou barro na mão cortara um dedo e sangrara profusa mente Ao crescer e tomar conhecimento dos fatos da vida sexual estabeleceuse nela o temor ante a ideia de não sangrar na noite de núpcias e portanto de não se mostrar virgem Suas precauções relativas à possível quebra dos vasos significam pois um repúdio de todo o complexo relacionado à virgindade e ao sangramento quando da primeira relação sexual ou seja um re púdio tanto da angústia de sangrar como daquela con trária a de não sangrar Com a prevenção de eventuais ruídos como alegava ela tais medidas guardavam ape nas uma relação longínqua O sentido central de todo esse seu cerimonial a pa ciente acabou por revelar certo dia em que de súbito compreendeu a norma segundo a qual seu travessei ro não podia tocar a cabeceira da cama O travesseiro sempre fora para ela segundo ela própria admitiu uma mulher ao passo que a cabeceira ereta de madeira era um homem O que ela queria portanto e de forma 357 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES mágica permitimonos acrescentar era separar ho mem de mulher isto é apartar os pais não deixar que consumassem sua relação conjugal Em anos passados anteriores à instituição de seu cerimonial ela buscara atingir esse mesmo objetivo de maneira mais direta Fingindo sentir medo ou explorando uma tendência ao medo ela não permitia que a porta que ligava o quarto dos pais ao seu fosse fechada Era uma regra que ain da vigorava em seu cerimonial atual Dessa forma ela criava uma oportunidade para se pôr à escuta dos pais expediente que lhe rendeu uma insônia que durou me ses Não satisfeita com tal perturbação impingida aos pais ela vez por outra conseguia também permissão para dormir na cama deles entre o pai e a mãe Tra vesseiro e cabeceira de madeira efetivamente não podiam então se encontrar Por fim quando já estava tão crescida que lhe era fisicamente incômodo deitarse na cama entre os pais ela conseguiu ainda que a mãe trocasse de lugar com ela abrindo mão do próprio pos to ao lado do marido Essa situação com certeza serviu de ponto de partida para fantasias cuja repercussão se faz sentir em seu cerimonial Se o travesseiro era uma mulher sacudir o edredom até que todas as penas se acumulassem nos pés criando ali um inchaço tinha também um sentido significava engravidar a mulher Mas ela não perdia a oportunidade de acabar com aquela gravidez porque vivera duran te anos com receio de que a atividade sexual dos pais tivesse por consequência outro filho presenteandoa com um concorrente Por outro lado se o travesseiro 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS maior era uma mulher a mãe o menor só podia repre sentar a filha Por que esse travesseiro precisava formar um losango com o maior e por que a cabeça da paciente tinha de repousar precisamente sobre a linha da diago nal maior Não foi difícil lembrar a ela que o losango era o emblema encontrado nos muros simbolizando o órgão sexual feminino aberto Assim ela própria re presentava o papel do homem do pai com sua cabeça a substituir o membro masculino cf o simbolismo da cabeça na castração Coisas chocantes dirão os senhores assombra vam a mente dessa moça virgem Eu admito mas não se esqueçam de que não inventei essas coisas apenas as interpretei Um cerimonial desses antes de dormir é também singular e os senhores não deixarão de perce ber a correspondência entre o cerimonial e as fantasias reveladas pela interpretação Mais importante porém é notarem que no cerimonial não se sedimenta uma só fantasia mas bom número delas e no entanto em al gum lugar têm seu ponto nodal E também que as pres crições do cerimonial reproduzem os desejos sexuais ora positiva ora negativamente servindo em parte como representação em parte como defesa contra eles Poderíamos extrair ainda mais coisas da análise des se cerimonial caso estabelecêssemos a vinculação cor reta dele com os demais sintomas da enferma Nosso caminho porém não nos conduz nessa direção Indico aos senhores apenas que a moça em questão é presa de uma ligação erótica com o pai que data da mais tenra infância Talvez por isso ela se comporte de forma tão 359 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES inamistosa em relação à mãe Não podemos ignorar que mais uma vez a análise de um sintoma nos levou à vida sexual da enferma Talvez nos espantemos cada vez menos com isso à medida que adquirimos com preensão cada vez maior do sentido e da intenção dos sintomas neuróticos Portanto mostrei aos senhores em dois exemplos escolhidos que os sintomas neuróticos tanto quanto os atos falhos e os sonhos possuem um sentido e guar dam íntima relação com a vivência dos pacientes Posso acalentar a esperança de que os senhores com base em dois exemplos acreditem nessa afirmação de suma im portância Não Mas podem os senhores exigir que eu prossiga lhes dando exemplos até que se declarem con vencidos Também não porque dado o nível de deta lhamento com que trato cada caso eu precisaria dedicar um semestre inteiro de cinco horas semanais a esse úni co tópico da teoria das neuroses Contentome assim em dar aos senhores apenas uma amostra a sustentar minha afirmação remetendoos de resto às comuni cações disponíveis na literatura científica às clássicas interpretações de sintomas no primeiro caso de Breuer histeria aos esclarecimentos surpreendentes de sinto mas bastante obscuros na chamada dementia praecox de autoria de C G Jung na época em que esse pesqui sador era apenas psicanalista e ainda não se pretendia profeta e a todos os trabalhos que desde então povoam nossas revistas Neste exato momento não há carência entre nós de tais investigações A análise a interpreta ção e a tradução dos sintomas neuróticos atraiu os psi 17 O SENTIDO OOS SINTOMAS canalistas de tal maneira que de início eles passaram a negligenciar os demais problemas da neurose Quem fizer esse esforço ficará impressionado com a riqueza do material comprobatório Mas deparará tam bém com uma dificuldade Como vimos o sentido de um sintoma guarda relação com as vivências do doente Quanto mais individualizada a construção do sintoma tanto maior será nossa esperança de estabelecer tal rela ção A tarefa que se coloca portanto é a de encontrar para uma ideia sem sentido e uma ação despropositada aquela situação passada em relação à qual essa ideia se justifica e a ação revela propósito pertinente A ação ob sessiva de nossa paciente que corria para a mesa e ralha va com a criada é um modelo desse tipo de sintoma Mas existem e são muito frequentes sintomas de natureza bem diversa É preciso denominálos sintomas típicos da enfermidade eles são mais ou menos iguais em todos os casos neles desaparecem as diferenças individuais ou pelo menos elas se reduzem de tal maneira que se torna difícil juntálas à vivência individual do doente e relacionáIas com situações específicas vividas por ele Voltemos nosso olhar mais uma vez para a neurose ob sessiva Já o cerimonial do sono de nossa segunda pa ciente tem em si muito de típico mas ele possui também traços individuais suficientes para possibilitar a chamada interpretação histórica Todos aqueles que padecem de neurose contudo apresentam a tendência a se repetir a ritmar afazeres e isolálos de outros A maioria deles se lava um número exagerado de vezes Os doentes que so frem de agorafobia topofobia claustrofobia que já não 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES incluímos entre as neuroses obsessivas mas designamos como histeria de angústia exibem um quadro clíni co que muitas vezes repete com exaustiva monotonia os mesmos traços Eles temem espaços fechados grandes praças abertas ruas ou alamedas compridas Sentem se protegidos quando acompanhados por conhecidos ou quando seguidos por um carro etc Sobre esse pano de fundo homogêneo porém cada doente isolado exibe condições individuais humores por assim dizer que se contradizem a cada caso Alguns temem apenas ruas estreitas outros ruas largas alguns só conseguem caminhar por ruas em que há pouca gente outros ape nas por ruas em que há muita gente Também a histeria a despeito da riqueza em traços individuais que revela é abundante em sintomas comuns típicos que parecem resistir a uma fácil remissão histórica Não se esqueçam de que são esses sintomas típicos que nos orientam na definição do diagnóstico Se em um caso de histeria lo gramos remontar um sintoma típico a uma vivência ou uma cadeia de vivências similares por exemplo um vomitar histérico a uma série de impressões de nojo ficamos confusos se a análise nos mostra em outro caso de vômito uma série inteiramente diversa de vivências supostamente atuantes Logo parece que todos os histé ricos precisariam por razões desconhecidas manifestar vômitos e os motivos históricos depreendidos pela aná lise seriam apenas pretextos utilizados por essa neces sidade interior quando eles porventura se apresentam De modo que rapidamente chegamos à triste per cepção de que sim podemos esclarecer de forma satis 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS fatória o sentido de cada sintoma neurótico individual mas nossa arte nos abandona quando se trata dos sin tomas típicos bem mais frequentes Acrescentese a isso o fato de que nem sequer apresentei ainda aos se nhores todas as dificuldades que se verificam na bus ca coerente da interpretação histórica de um sintoma E não pretendo fazêlo pois se é minha intenção não embelezar ou ocultar nada tampouco devo desorientá los e confundilos já no início de nosso estudo É cer to que apenas começamos a compreender o significado dos sintomas mas nosso desejo é reter o conhecimento adquirido e avançar passo a passo rumo ao domínio do que ainda não entendemos Com a seguinte reflexão busco oferecer um consolo aos senhores não há por que supor a existência de uma diferença fundamental entre um tipo e outro de sintoma Se os sintomas individuais dependem tão claramente das vivências do doente res ta a possibilidade de que os sintomas típicos remontem a vivências específicas típicas em si mesmas e comuns a todos Outros traços recorrentes na neurose podem constituir reações gerais que são impostas aos doentes pela natureza da alteração patológica como as repeti ções e as dúvidas da neurose obsessiva Em suma não há razão para o desânimo prematuro logo veremos o que é possível apurar Também no estudo dos sonhos deparamos com uma dificuldade muito parecida Não pude lidar com ela em nossas discussões anteriores sobre o sonho O conteúdo manifesto dos sonhos é também altamente diverso em sua individualidade e mostramos em detalhes o que a 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES análise depreende desse conteúdo Contudo há sonhos que às vezes chamamos igualmente de típicos sonhos de conteúdo uniforme que todas as pessoas têm e que opõem as mesmas dificuldades à interpretação Tratase daqueles sonhos em que estamos caindo voando flu tuando nadando sonhos em que nos vemos inibidos ou nus e outros sonhos de angústia os quais dependendo do sonhador resultam em uma ou outra interpretação sem que encontremos uma explicação para sua mono tonia e sua ocorrência típica Também no caso desses sonhos observamos um pano de fundo comum anima do por variáveis individuais e é provável que também eles sem coação mediante a ampliação de nosso enten dimento se deixem inserir na compreensão da vida oní rica que adquirimos a partir dos outros sonhos 18 A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE Senhoras e senhores Na última vez eu lhes disse que deveríamos continuar nosso trabalho a partir de nossas descobertas não de nossas dúvidas Ainda não mencio namos duas das mais interessantes conclusões decorren tes das duas análises apresentadas como modelos Vejamos a primeira delas A impressão que nos dão as duas pacientes é a de que teriam se fixado em deter minada porção de seu passado não saberiam como se libertar disso e estariam portanto afastadas do pre sente e do futuro Estão confinadas em sua doença tal 18 A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE como antigamente as pessoas costumavam recolherse a um mosteiro para suportar um difícil destino Para nossa primeira paciente o casamento efetivamente des feito com o marido é que causa esse infortúnio Através dos sintomas ela dá prosseguimento ao processo com o marido aprendemos a compreender as vozes que o defendem desculpam elevam e se queixam de havêlo perdido Apesar de jovem e desejável para outros ho mens ela toma todas as precauções reais e imaginárias mágicas para conservar a fidelidade a ele Não se mos tra aos olhos de desconhecidos e negligencia a própria aparência não consegue se levantar com rapidez da poltrona onde está recusase a assinar o próprio nome e não é capaz de presentear ninguém pelo motivo de que ninguém deve obter alguma coisa dela No caso da segunda paciente a jovem é uma liga ção erótica com o pai estabelecida nos anos anteriores à puberdade que lhe produz efeito semelhante na vida Também ela tira daí a conclusão de que não pode se ca sar enquanto estiver tão doente É lícito imaginar que ficou tão doente para não ter de se casar e assim per manecer ao lado do pai Não podemos nos furtar à pergunta como de que maneira e por força de quais motivos uma pessoa assume postura tão singular e tão desvantajosa diante da vida Pressupondo que tal comportamento seja uma caracte rística geral da neurose e não uma peculiaridade dessas duas enfermas Na realidade é mesmo um traço geral de grande importância prática de toda neurose A primeira paciente histérica de Breuer estava de forma semelhan 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES te fixada no tempo em que cuidava do pai gravemente doente Desde então a despeito de ter se restabelecido em certo sentido ela se apartou da vida permaneceu sau dável e capaz mas desviouse do destino normal das mu lheres Por intermédio da análise podemos inferir que cada um de nossos doentes se transportou de volta a cer to período de seu passado nos sintomas de sua enfermi dade e pelas consequências deles Na maioria dos casos escolheu para isso uma fase remota da vida um período da infância e até mesmo embora talvez pareça ridículo sua existência quando criança de peito A analogia mais próxima desse comportamento de nossos doentes oferecem as enfermidades que hoje a guerra faz surgir com frequência as chamadas neuroses traumáticas Por certo casos assim já existiam antes da guerra seguindose a desastres de trem e a outros terrí veis perigos mortais No fundo as neuroses traumáticas não são o mesmo que as neuroses espontâneas que cos tumamos examinar e tratar analiticamente ainda não logramos submetêlas a nossas concepções e espero ter oportunidade de deixar claro aos senhores o porquê dessa limitação Mas em um ponto podemos destacar uma concordância total as neuroses traumáticas dão nítidos sinais de que em sua base está uma fixação no momento do acidente traumático Nos sonhos os que Tratase do célebre caso de Anna 0 apresentado em Estudos sobre a histeria 18935 cf os estudos críticos de M Borch Jacobsen Secrets dAnna O ed inglesa Rememhering Anna 0 1996 e Les patients de Freud 2011 J66 18A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE dela sofrem revivem regularmente a situação traumá tica nos casos em que ocorrem ataques histéricos pas síveis de análise o que se descobre é que a esse ataque corresponde a completa transposição do doente para aquela situação É como se esses doentes jamais tives sem superado a situação traumática ou seja como se essa tarefa ainda se apresentasse diante deles atual e in tacta e nós tomamos essa concepção muito seriamente ela nos mostra o caminho para uma consideração dos processos psíquicos a que podemos chamar de econômi ca Com efeito a expressão traumática não tem ou tro sentido que não esse econômico Chamamos assim uma vivência que em curto espaço de tempo traz para a vida psíquica um tal incremento de estímulos que sua resolução ou elaboração não é possível da forma cos tumeira disso resultando inevitavelmente perturbações duradouras no funcionamento da energia Essa analogia nos leva a caracterizar como traumá ticas também as vivências em que nossos doentes dos nervos parecem ter se fixado Isso nos proporcionaria uma condição simples para o adoecimento neurótico A neurose equivaleria a um adoecimento traumático e nas ceria da incapacidade de dar conta de uma vivência car regada de um afeto muito intenso Assim dizia de fato a primeira formulação em que Breuer e eu 18935 prestá vamos conta de nossas observações em termos teóricos Um caso como o de nossa primeira paciente a jovem que se separou do marido harmonizase muito bem por essa concepção Ela não superou a não consuma ção de seu casamento e ficou presa a esse trauma Mas 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES já nosso segundo caso o da moça com fixação no pai nos mostra que tal formulação não é suficientemente abrangente Por um lado tal paixão da garotinha pelo pai é algo tão corriqueiro e tão frequentemente superado que a designação traumático perderia todo o seu va lor por outro a história da enferma nos ensina que essa primeira fixação erótica aconteceu aparentemente sem causar dano reaparecendo apenas vários anos depois em meio aos sintomas da neurose obsessiva Portanto nisso prevemos complicações um maior número de con dições para o adoecimento mas suspeitamos também que a abordagem que considera o trauma não precisa ser abandonada como errônea ela deverá ser incluída e su bordinada a alguma outra Aqui interrompemos de novo o caminho que to mamos No momento ele não nos conduz adiante e temos muitas outras coisas a aprender antes de poder prosseguilo corretamente Acerca do tema da fixação em determinado período do passado observemos ain da que esse fenômeno ultrapassa em muito os domínios da neurose Toda neurose contém uma tal fixação mas nem toda fixação conduz à neurose coincide com ela ou se produz a partir dela Um exemplo modelar de fixação afetiva no passado é o luto que envolve o mais comple to afastamento do presente e do futuro Mas mesmo o juízo de um leigo diferencia nitidamente o luto da neu rose Por outro lado existem neuroses que podem ser caracterizadas como uma forma patológica do luto Ocorre também de pessoas serem de tal forma pa ralisadas por um acontecimento traumático que abala 18 A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE os fundamentos de sua vida que perdem todo interesse no presente e no futuro mantendose numa duradoura ocupação psíquica com o passado Esses desafortuna dos todavia não se tornam necessariamente neuróti cos Portanto não superestimemos esse traço em parti cular na caracterização da neurose por mais regular e significativo que ele seja Passemos agora ao segundo resultado de nossas análises ao qual não precisaremos acrescentar nenhu ma restrição Falando de nossa primeira paciente infor mamos sobre o ato obsessivo carente de sentido que ela realizava e a lembrança íntima que relatou a propósi to desse ato depois examinamos a relação entre essas duas coisas e percebemos a partir dessa a intenção do ato obsessivo Contudo deixamos inteiramente de lado um fator que merece toda a nossa atenção Enquanto repetia seu ato obsessivo a paciente não sabia de sua vinculação com aquela vivência passada A conexão entre os dois permanecialhe oculta e ela tinha de res ponder de forma veraz que não sabia que impulsos a levavam a praticar semelhante ação Posteriormente sob a influência do trabalho terapêutico aconteceu que ela subitamente encontrou e pôde comunicar essa cone xão Mas ainda ignorava a intenção com que realizava a ação obsessiva ou seja a intenção de corrigir um tre cho doloroso de seu passado e pôr num plano mais alto o marido que amava Foram necessários muito tempo e bastante empenho até ela compreender e me confessar que só podia ter sido essa e nenhuma outra a força mo triz da ação obsessiva 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Tomados conjuntamente o vínculo com a cena após a infeliz noite de núpcias e o afetuoso motivo da pacien te resultam no chamamos sentido da ação obsessiva Mas tal sentido permaneceulhe desconhecido nas duas direções de onde e para quê enquanto ela execu tava a ação Ou seja nela atuavam processos psíquicos cujo efeito era ação obsessiva no estado psíquico nor mal ela percebia esse efeito mas as precondições psíqui cas desse efeito não chegavam ao conhecimento de sua consciência Ela se comportou da mesma forma que o indivíduo hipnotizado a quem Bernheim incumbiu de abrir um guardachuva cinco minutos após despertar na enfermaria de um hospital e que realizou essa ta refa após despertar mas não sabia dizer por que mo tivo o havia feito São fatos como esse que temos em vista quando falamos da existência de processos psíqui cos inconscientes Podemos desafiar quem quer que seja a prestar contas dele de uma maneira cientificamente mais correta e então abandonaremos de bom grado a suposição de tais processos Até lá contudo vamos nos ater a essa suposição tendo de rechaçar como in compreensível e com um resignado sacudir de ombros se alguém objetar que aqui o inconsciente nada signifi caria de real em termos científicos que seria um expe diente une façon de parler Algo irreal a produzir efeitos tão palpáveis e reais como uma ação obsessiva No fundo a situação que encontramos em nossa se gunda paciente é a mesma Ela criou a regra segundo a qual o travesseiro não podia tocar a cabeceira da cama e tem de obedecer a essa regra mas não sabe de onde 370 18 A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE procede o que significa e a que deve seu poder Se ela própria a vê com indiferença ou se lhe opõe resistên cia se se enfurece contra ela se pretende infringila nada disso importa quanto a seu cumprimento É preci so obedecer e em vão ela se pergunta por quê Nesses sintomas da neurose obsessiva nessas ideias e impul sos que surgem não se sabe de onde comportamse de maneira resistente a toda influência da vida psíquica de resto normal dando ao próprio doente a impressão de serem hóspedes poderosos oriundos de um mundo es tranho imortais que se intrometeram no torvelinho dos mortais nisso pois é necessário reconhecer que se encontra a indicação mais nítida de um domínio espe cial apartado do restante da vida psíquica Isso leva por um caminho inequívoco à convicção da existência do inconsciente na psique e é precisamente por isso que a psiquiatria clínica que só conhece uma psicologia da consciência não sabe o que fazer com eles a não ser declarálos sinais de um modo particular de degenera ção Naturalmente as ideias e impulsos obsessivos não são eles próprios inconscientes assim como tampou co a execução das ações obsessivas escapa à percepção consciente Não teriam se tornado sintomas se não hou vessem penetrado a consciência Mas suas precondições psíquicas que descortinamos pela análise os contextos em que os encaixamos através da interpretação são in conscientes pelo menos até que por meio do trabalho analítico nós os tornamos conscientes para o enfermo Considerem ademais que o estado de coisas que ve rificamos em nossos dois casos se confirma em relação a 371 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES todos os sintomas de todas as enfermidades neuróticas que sempre e em toda parte o sentido dos sintomas é desconhecido do doente que a análise demonstra com regularidade serem esses sintomas derivados de proces sos inconscientes mas que podem se tornar conscientes sob diversas condições favoráveis e tendo conside rado tudo isso os senhores compreenderão que na psi canálise não podemos prescindir do elemento psíquico inconsciente e que estamos habituados a operar com ele como sendo algo palpável aos sentidos Mas talvez en tendam também que nessa matéria pouca capacidade de julgar têm aqueles que conhecem o inconsciente ape nas como conceito que jamais conduziram uma análi se interpretaram sonhos ou encontraram sentido e in tenção nos sintomas neuróticos Dizendoo mais uma vez em vista de nossos propósitos a possibilidade de conferir sentido aos sintomas neuróticos por meio da interpretação analítica é prova inabalável da existência ou se preferirem da necessidade da suposição de processos psíquicos inconscientes Mas isso não é tudo Graças a uma segunda desco berta de Breuer que me parece até mais substancial e em que não teve colaboradores ficamos sabendo ainda mais sobre a relação entre o inconsciente e os sintomas neuróticos Não apenas que o sentido dos sintomas é via de regra inconsciente mas também que há uma re lação inseparável entre essa inconsciência e a possibili dade de existência dos sintomas Os senhores logo me compreenderão Acompanho Breuer na afirmação de que toda vez que deparamos com um sintoma estamos 372 18 A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE autorizados a concluir pela presença no doente de certos processos inconscientes que contêm o sentido desse sin toma Para que o sintoma ocorra no entanto é necessá rio também que esse sentido seja inconsciente Sintomas não são formados de processos conscientes tão logo os processos inconscientes em questão se tornam conscien tes o sintoma só pode desaparecer De súbito os se nhores percebem aí uma porta de acesso para a terapia um caminho para fazer com que sintomas desapareçam Seguindo esse caminho Breuer de fato restabeleceu sua paciente histérica isto é libertoua de seus sintomas Encontrou uma técnica capaz de levar à consciência os processos inconscientes da paciente que continham o sentido do sintoma e os sintomas desapareceram Essa descoberta de Breuer não resultou de uma es peculação e sim da observação bemsucedida possi bilitada pela cooperação da enferma Os senhores não devem agora se atormentar para entendêla buscando remontar essa descoberta a algo já conhecido cabe sim reconhecer aí um fato novo fundamental com a ajuda do qual muitas outras coisas se tornam explicá veis Permitamme assim repetir a mesma coisa em outras palavras A formação do sintoma é um substituto para algu ma outra coisa que não ocorreu Normalmente certos processos psíquicos teriam se desenvolvido a ponto de a consciência ter notícia deles Isso não aconteceu o sintoma se originou dos processos interrompidos per turbados de algum modo que deveriam permanecer in conscientes Ocorreu então algo assim como uma tro 373 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES ca quando consegue desfazêla a terapia dos sintomas neuróticos realiza sua tarefa A descoberta de Breuer constitui ainda hoje a base da terapia psicanalítica A tese de que os sintomas de saparecem quando suas precondições inconscientes são tornadas conscientes foi confirmada por toda pesquisa subsequente embora deparemos com as mais notáveis e inesperadas complicações ao tentar pôla em prática Nossa terapia atua transformando o inconsciente em consciente e só tem efeito na medida em que pode levar a cabo essa transformação Faço agora uma pequena digressão a fim de que os senhores não incorram no perigo de imaginar que é bastante fácil esse trabalho terapêutico Segundo nos sas explanações até o momento a neurose seria conse quência de uma espécie de ignorância de não saber de processos psíquicos acerca dos quais deveríamos saber Teríamos aí uma forte aproximação com conhecidas doutrinas socráticas segundo as quais até mesmo os vícios repousariam sobre a ignorância Em geral o mé dico experimentado na análise poderá adivinhar com muita facilidade que impulsos psíquicos permaneceram inconscientes para o paciente Não lhe deveria ser difí cil então restabelecer o doente comunicandolhe esse saber e libertandoo de sua própria ignorância Pelo menos uma parte do sentido inconsciente dos sintomas teria desse modo fácil resolução mas da outra parte da conexão dos sintomas com as vivências do doente o médico não tem como saber muito porque desconhece tais vivências precisa esperar até que o doente as recor 374 18 A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE de e relate Também para isso porém haveria em mui tos casos um substitutivo Podemos nos informar acer ca dessas vivências com parentes da pessoa enferma os quais muitas vezes estarão aptos a identificar entre elas as de atuação traumática e talvez possam até mesmo relatar vivências de que o doente nada sabe porque as teve nos primeiros anos de vida Reunindo esses dois procedimentos teríamos a perspectiva de corrigir em pouco tempo e sem grande esforço a ignorância patogê nica do doente Oxalá fosse assim Tivemos experiências nesse cam po para as quais não estávamos preparados no início Há saberes e saberes ou seja diversos tipos de saber e eles não se equivalem do ponto de vista psicológico Il y a Existem fogots et fogots lêse numa passagem de Moliere O saber do médico não é o mesmo do doen te nem pode surtir os mesmos efeitos Quando o mé dico mediante uma comunicação transmite seu saber ao doente isso não tem nenhuma consequência Não seria incorreto dizêlo dessa forma A consequência não é a eliminação dos sintomas e sim outra a de pôr em marcha a análise e seus primeiros indícios são mui tas vezes manifestações de desacordo do paciente O doente fica sabendo alguma coisa que até então não sa bia o sentido de seu sintoma e no entanto sabe o tão pouco quanto antes Assim descobrimos que há mais de um tipo de ignorância Certo aprofundamento Significa em linguagem figurada que nenhum feixe de lenha jàgot é igual ao outro da peça Le médecin malgré L ui ato r cena 5 375 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES de nossos conhecimentos psicológicos se faz necessário para que possamos mostrar no que consistem as dife renças Mas permanece correta a nossa tese de que os sintomas desaparecem a partir do saber acerca de seu sentido Basta acrescentarmos que esse saber deve se basear em alguma modificação interior do doente que pode ser provocada apenas por um trabalho psíquico com uma meta determinada Estamos aqui diante de problemas que logo serão reunidos numa dinâmica da formação de sintomas Caros senhores Tenho agora de lhes fazer uma per gunta o que lhes digo é demasiado obscuro e compli cado Não os confundo retirando ou restringindo tan tas vezes o que disse iniciando linhas de pensamento e abandonandoas em seguida Se assim for lamento Tenho forte aversão por simplificações feitas à custa da fidelidade à verdade e não me desgosta se receberam uma impressão plena da multiplicidade e complexidade de nosso objeto penso também que não faz mal se eu lhes disser mais sobre cada ponto do que podem apro veitar no momento Sei bem que em pensamento todo ouvinte ou leitor ajusta abrevia simplifica o que foi apresentado dele extraindo o que deseja guardar Até certa medida sem dúvida é correto que quanto maior a sobra maior ainda era a abundância Permitamme esperar que a despeito de todo o acessório os senhores tenham apreendido com clareza o essencial do que eu disse ou seja minhas formulações sobre o sentido dos sintomas sobre o inconsciente e sobre a relação entre ambos Os senhores decerto compreenderam também 18 A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE que nossos próximos esforços caminharão em duas direções trataremos de descobrir em primeiro lugar como as pessoas adoecem como chegam a essa atitude diante da vida que caracteriza a neurose o que configu ra um problema clínico e em segundo lugar como os sintomas patológicos se desenvolvem a partir das condi ções que dão origem à neurose o que é um problema da dinâmica psíquica Também para esses dois problemas há de haver em alguma parte um ponto de encontro Hoje não pretendo avançar mais em minha exposi ção mas como nosso tempo ainda não acabou penso em chamar a atenção dos senhores para outra caracte rística de nossas duas análises a qual de novo só mais adiante poderemos tratar de forma plena Refirome às lacunas de memória ou amnésias Os senhores ouviram de mim que a tarefa do tratamento psicanalítico pode ser expressa na fórmula converter em consciente todo elemento patogênico inconsciente Agora talvez se es pantem ao saber que essa fórmula pode ser substituída por outra preencher todas as lacunas na memória do doente eliminar suas amnésias O resultado seria o mesmo Às amnésias do neurótico atribuise pois rela ção importante com o surgimento de seus sintomas Se porém os senhores tomarem em consideração o caso de nossa primeira análise não julgarão justificada essa avaliação da amnésia A enferma não se esqueceu da cena à qual se vincula sua ação obsessiva pelo contrá rio ela a mantém viva na memória Ademais nenhum outro esquecimento está em jogo no surgimento desse sintoma Menos nítida mas de modo geral análoga é 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES a situação referente a nossa segunda paciente a moça do cerimonial obsessivo Com efeito tampouco ela se esqueceu de seu comportamento na primeira infância a insistência em manter aberta a porta entre o seu quarto e o quarto dos pais e o fato de ter expulsado a mãe de seu lugar no leito matrimonial Disso tudo ela se lembra com muita clareza ainda que hesitante e a contragosto A única coisa que podemos considerar notável é que mesmo ao executar inúmeras vezes sua ação obsessiva a primeira paciente não se tenha dado conta uma só Yet da semelhança com a vivência após a noite de núpcias e que essa lembrança tampouco tenha aparecido depois que ela foi diretamente solicitada a investigar a motiva ção do ato obsessivo O mesmo vale para a moça caso em que ademais o cerimonial e seus pretextos se refe rem a uma mesma situação repetida noite após noite Nos dois casos não há uma verdadeira amnésia uma perda da memória mas foi rompido um nexo que deve ria levar à reprodução ao ressurgimento na memória Uma tal perturbação da memória já basta para a neurose obsessiva na histeria é diferente Esta última neurose caracterizase na maioria das vezes por am nésias colossais Na análise de cada sintoma de histe ria somos conduzidos via de regra a uma cadeia de impressões de toda a vida que ao retornar são ex pressamente caracterizadas como esquecidas Essa ca deia remonta por um lado aos primeiríssimos anos de existência de tal forma que a amnésia histérica pode ser reconhecida como prolongamento imediato daquela amnésia infantil que oculta das pessoas normais o iní 18A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE cio de sua vida psíquica Por outro lado descobrimos com espanto que também as experiências mais recentes vividas pelo doente podem sucumbir ao esquecimento e em particular as ocasiões em que a doença irrompeu ou se intensificou são corroídas quando não engolidas por completo pela amnésia De modo geral do qua dro completo de uma tal lembrança recente detalhes importantes desapareceram ou foram substituídos por falsificações da memória Chega mesmo a acontecer de novo com regularidade de pouco antes da conclu são de uma análise surgirem certas lembranças de algo recémvivido que lograram permanecer ocultas até esse momento deixando lacunas sensíveis no contexto Tais danos à capacidade da memória são como dis se características da histeria na qual aparecem tam bém como sintomas estados ataques histéricos que não deixam necessariamente pistas na memória Se na neurose obsessiva é diferente os senhores podem inferir daí que essas amnésias são uma característica psicológi ca da alteração histérica e não um traço geral das neu roses em si O significado dessa diferença é restringido pela observação que segue No sentido de um sinto ma reunimos duas coisas sua procedência e sua desti nação ou motivação ou seja as impressões e vivências que o acarretaram e o propósito a que serve A proce dência de um sintoma se reduz pois a impressões vin das de fora que já foram conscientes no passado mas que o esquecimento pode ter tornado inconscientes Mas a destinação de um sintoma sua tendência é sem pre um processo endopsíquico que pode haver se tor 379 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES nado consciente no início ou pode também jamais têlo sido tendo permanecido desde sempre no inconsciente Assim não é muito importante se a amnésia tomou con ta também da procedência das vivências em que baseia o sintoma como ocorre na histeria é a destinação do sintoma sua tendência que pode ter sido inconsciente desde o princípio que fundamenta sua dependência do inconsciente na neurose obsessiva em não menor grau que na histeria Com essa ênfase dada ao inconsciente na vida psí quica despertamos todavia os espíritos mais malignos da crítica contra a psicanálise Não se admirem nem creiam os senhores que a resistência contra nós se deve à compreensível dificuldade do inconsciente ou à relati va inacessibilidade das experiências que o demonstram Creio que essa resistência é de origem mais profunda No decorrer dos tempos a humanidade teve de tole rar dois grandes insultos a seu ingênuo amorpróprio por parte da ciência O primeiro quando descobriu que nossa Terra não é o centro do universo e sim uma ínfima partícula de um sistema cósmico cuja grandeza mal se pode imaginar Essa afronta se liga para nós ao nome de Copérnico embora já a ciência alexandrina ti vesse anunciado coisa semelhante O segundo quando a pesquisa biológica aniquilou a suposta prerrogativa humana na criação remetendo a descendência dos ho mens ao reino animal e apontando o caráter indelével de sua natureza animalesca Essa reavaliação ocorreu em nossos dias sob a influência de Darwin Wallace e de seus predecessores não sem enfrentar a mais veemente J80 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO oposição dos contemporâneos O terceiro e mais sen sível insulto no entanto a mania de grandeza huma na deve sofrer da pesquisa psicológica atual que busca provar ao Eu que ele não é nem mesmo senhor de sua própria casa mas tem de satisfazerse com parcas notí cias do que se passa inconscientemente na sua psique Nós psicanalistas não fomos os primeiros nem os úni cos a exortar ao autoexame mas parece que cabe a nós defendêlo com a máxima insistência e sustentálo com material empírico ao alcance de todos Daí a revolta ge ral contra a nossa ciência a ausência de toda e qualquer civilidade acadêmica e o fato de a oposição desfazerse de todos os freios da lógica imparcial além disso ti vemos de perturbar a paz deste mundo de outra forma ainda como os senhores logo saberão 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO Senhoras e senhores Para avançarmos na compreen são das neuroses necessitamos de novas observações tiradas da experiência Trataremos agora de duas delas ambas muito curiosas e na época em que foram feitas bastante surpreendentes É verdade que os senhores já estão preparados para elas em virtude de nossas discus sões do ano passado Vejamos a primeira Quando nos pomos a restabe lecer um doente a libertálo dos sintomas que o afli gem ele nos oferece uma resistência veemente tenaz 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES que persiste por toda a duração do tratamento Esse é um fato tão singular que não podemos esperar que te nha muito crédito É melhor nada dizer sobre isso aos parentes do doente pois eles sempre acham que se trata de uma desculpa para justificar a longa duração ou o fracasso do tratamento O doente produz todos os fe nômenos ligados a essa resistência sem reconhecêla como tal e já constitui um grande sucesso se o leva mos a adotar esse entendimento e contar com essa re sistência Pensem os senhores o doente que sofre tanto com seus sintomas e tanto faz sofrer com eles as pes soas próximas que se dispõe a tantos sacrifícios para se libertar deles dispendendo tempo dinheiro esforço e autossuperação esse doente no interesse de sua condi ção enferma se oporia àquele que o ajuda Como deve parecer improvável essa afirmação E no entanto as sim é e quando nos apontam essa improbabilidade só precisamos responder que se trata de uma situação que tem suas analogias todo aquele que sofrendo de uma dor de dente insuportável vai ao dentista terá querido segurar o braço que aproxima o alicate do dente doente A resistência dos doentes é bastante variada extre mamente refinada e muitas vezes difícil de reconhecer é proteiforme nas suas manifestações O médico tem de ser desconfiado permanecendo em guarda contra ela Na terapia psicanalítica utilizamos a técnica que os se nhores já conhecem proveniente da interpretação dos sonhos Fazemos com que o doente se ponha em um es tado de tranquila autoobservação sem refletir e nos informe tudo o que então lhe ocorre de percepções in 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO teriores sentimentos pensamentos lembranças na sequência mesmo em que vão surgindo nele Nós o advertimos também expressamente para que não ceda a nenhum motivo que o leve a fazer uma escolha ou ex clusão dentre suas associações seja por tratarse de coi sa muito desagradável ou indiscreta para ser expressa ou de algo muito insignificante não pertinente ao assunto ou absurdo que não seria necessário relatar Recomenda mos que siga apenas a superfície de sua consciência que abra mão de toda e qualquer crítica ao que encontrar e lhe confidenciamos que o sucesso do tratamento e sobretudo sua duração dependerá da escrupulosida de com que ele seguir essa regra técnica fundamental da análise Sabemos afinal pela técnica da interpreta ção dos sonhos que justamente as associações contra as quais se erguem dúvidas e objeções são via de regra as que contêm o material que conduz ao desvendamento do inconsciente Estabelecendo essa regra técnica fundamental con seguimos em primeiro lugar que ela se torne o alvo do ataque da resistência O doente busca de todas as ma neiras libertarse do que ela determina Ora ele afirma que nada lhe ocorre ora que são tantos os pensamentos que lhe vêm à mente que ele não consegue apreender nenhum Em seguida percebemos com aborrecido es panto que ele cedeu a uma e outra objeção crítica isso ele nos revela por meio das longas pausas que aparecem em sua fala Confessa então que há coisas que ele real mente não pode dizer de que sente vergonha e permite que essa motivação prevaleça sobre sua promessa Ou 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES que lhe ocorreu algo mas relativo a outra pessoa e não a si próprio e por isso ele o excluiu de sua comuni cação Ou ainda que o que acaba de lhe ocorrer é na verdade irrelevante tolo e absurdo demais por certo eu não posso ter querido dizer que ele se entregasse a pensamentos de tal ordem E assim prossegue o pacien te em incontáveis variações e precisamos lhe explicar que dizer tudo significa de fato dizer tudo É raro depararmos com um doente que não busque reservar alguma região para si próprio a fim de impedir que o tratamento tenha acesso a ela em particular Um deles que eu só podia considerar dos mais inteligentes silenciou durante semanas sobre um relacionamento amoroso e chamado a explicar a infração da regra sa grada defendeuse argumentando acreditar que aquela história em particular era assunto pessoal Naturalmen te o tratamento analítico não admite semelhante direi to de asilo Seria como em uma cidade como Viena proibir em caráter excepcional que prisões sejam efe tuadas numa praça como o Hoher Markt ou na catedral de Santo Estevão e depois esforçarse para capturar determinado malfeitor Ele jamais será encontrado em outra parte que não em seu local de asilo Uma vez de cidi abrir uma exceção a um homem para cujo trabalho isso era objetivamente muito importante já que seu ju ramento profissional o impedia de relatar certas coisas a terceiros Ele ficou satisfeito com o resultado eu não Decidi jamais repetir a tentativa em tais condições Neuróticos obsessivos são excepcionais em tornar quase inutilizável a regra técnica aplicandolhe sua 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO enorme escrupulosidade e suas dúvidas Pacientes que sofrem de histeria de angústia conseguem às vezes seguila ad absurdum fazendo associações tão distan ciadas daquilo que se busca que o ganho para a análi se é nenhum Mas não pretendo introduzir os senhores no manejo dessas dificuldades técnicas Basta dizer que de forma resoluta e persistente conseguimos enfim ar rancar da resistência certa medida de obediência à regra técnica fundamental e logo a resistência passa para ou tra região Surge como resistência intelectual põese a combater com argumentos apoderase das dificuldades e improbabilidades que o pensamento normal mas não treinado encontra nas teorias psicanalíticas Então ou vimos de uma só voz todas as críticas e objeções que na literatura científica são feitas em coro ao nosso redor É por isso que de tudo que nos gritam lá de fora nada nos soa desconhecido É uma verdadeira tempestade em copo dágua Mas o paciente é acessível à conversa ele quer muito nos fazer ensinálo instruílo contestá lo remetêlo à literatura em que poderá prosseguir a instrução Está disposto a se tornar um adepto da psi canálise mas sob a condição de que a análise o poupe Nós contudo reconhecemos nessa ânsia de saber uma tentativa de nos desviar de nossas tarefas especiais e a rejeitamos Do neurótico obsessivo há que esperar uma técnica de resistência especial Com frequência ele dei xa que a análise siga seu curso de forma desimpedida a fim de que ela possa sempre lançar uma luz cada vez mais clara sobre os enigmas de sua patologia até que por fim nos espantamos com o fato de a esse esclareci 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES mento não corresponder nenhuma diminuição dos sin tomas Então descobrimos que a resistência recolheuse à dúvida da neurose obsessiva posição a partir da qual agora nos desafia e com sucesso O doente diz a si mes mo algo como Tudo isso é muito bom e interessante Quero ir adiante Se fosse verdade mudaria bastante minha doença Mas não acredito nem um pouco que seja verdade e enquanto eu não acreditar não diz respeito à minha doença Essa atitude pode persistir por um longo tempo até que enfim nos aproximamos daquela posição de recolhimento e irrompe então a luta decisiva As resistências intelectuais não são as piores perma necemos sempre superiores em relação a elas Mas pa ciente também sabe permanecendo no âmbito da análi se produzir resistências cuja superação está entre nossas tarefas técnicas mais difíceis Em vez de se lembrar ele repete posturas e sentimentos de sua vida que mediante a chamada transferência podem ser usadas como re sistência contra o médico e o tratamento Tratandose de um homem ele em regra extrai esse material de seu relacionamento com o próprio pai em cujo lugar põe o médico opondo assim resistências provindas de seu desejo de autonomia pessoal e de juízo de sua ambição cuja meta primeira foi igualarse ao pai ou superálo de sua má vontade em arcar pela segunda vez na vida com o fardo da gratidão Aqui e ali temse a impressão de que no doente a intenção de desencaminhar o médico de fazêlo sentir sua própria impotência de triunfar so bre ele substitui por completo a intenção melhor de pôr fim à doença As mulheres são mestras em para fins de J86 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO resistência explorar uma transferência de caráter terno e erótico para a figura do médico Tendo essa afeição atingido certo patamar extinguese todo o interesse pela situação presente do tratamento todas as obriga ções com as quais ao iniciálo elas se comprometeram e tanto o ciúme jamais ausente como a amargura pela rejeição inevitável ainda que demonstrada de forma cuidadosa servirão para arruinar o entendimento pes soal com o médico e assim eliminar uma das mais po derosas forças motrizes da análise As resistências desse tipo não devem ser condena das unilateralmente Elas encerram tamanha quantida de do material mais importante proveniente do passado do doente e a trazem de volta de maneira tão convin cente que se transformam nos melhores suportes para a análise se uma técnica hábil souber lhes dar o rumo adequado Notável é apenas que esse material esteja de início sempre a serviço da resistência exibindo sua fa chada hostil ao tratamento Podese dizer também que são propriedades de caráter posturas do Eu mobilizadas para o combate às modificações almejadas Descobre se aí como essas propriedades de caráter se formaram em conexão com os requisitos da neurose e em reação às pretensões desta e identificamse traços desse ca ráter que em geral não se evidenciam ou não nessa proporção e que podemos designar como latentes Os senhores não devem ter a impressão de que é como se no surgimento dessas resistências divisássemos um perigo imprevisto para a atuação da análise Não sa bemos que tais resistências precisam se manifestar fi III TEORIA GERAL DAS NEUROSES 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO di que uma percepção aprofundada da dinâmica dessas afecções não era possível enquanto a empregasse O estado hipnótico sabia subtrair da percepção do médico precisamente a resistência Ele a empurrava para trás liberava certa área para o trabalho analítico e o conti nha então nas fronteiras dessa mesma área de maneira a tornarse impenetrável algo parecido com o que faz a dúvida na neurose obsessiva Por esse motivo pude afirmar que a verdadeira psicanálise teve início com a renúncia ao auxílio da hipnose Mas se a constatação da resistência tornouse tão importante devemos deixar espaço para cautelosa mente questionar se não somos demasiado levianos na suposição de resistências Talvez haja de fato casos de neurose em que as associações falham por outros mo tivos Talvez os argumentos contrários a nossos pres supostos mereçam realmente que lhes apreciemos o conteúdo e nesse caso cometemos uma injustiça ao des cartar tão confortavelmente como resistência a crítica intelectual que nos dirigem os analisandos Pois meus senhores não chegamos a nosso juízo levianamente Tivemos oportunidade de observar cada um desses pa cientes críticos no surgimento e após o desaparecimento de uma resistência Sim porque a resistência varia con tinuamente sua intensidade no curso de um tratamento Ela sempre se intensifica quando nos aproximamos de um tema novo atinge seu auge no ponto culminante da elaboração desse tema e depois torna a cair com sua resolução De resto a não ser que incorramos em par ticular inabilidade técnica nunca temos de lidar com 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES a extensão total da resistência que um paciente pode oferecer Pudemos nos convencer de que no curso da análise o mesmo paciente abandona e torna a assumir sua postura crítica inúmeras vezes Quando estamos a ponto de levar a sua consciência uma porção particular mente dolorosa de material inconsciente ele se mostra crítico ao extremo se antes compreendera e aceitara muitas coisas agora é como se essas aquisições tives sem sido removidas nesse seu anseio por uma oposição a qualquer preço ele chega mesmo a nos transmitir a impressão de um deficiente afetivo Se logramos ajudá lo na superação dessa nova resistência ele recupera sua compreensão e seu entendimento Sua crítica portanto não é uma função autônoma a ser respeitada por si só e sim um serviçal de suas posturas afetivas sob a dire ção de sua própria resistência Se não gosta de algo ele pode contestálo com muita perspicácia parecendo as sim bastante crítico mas se ao contrário alguma coisa lhe convém ele pode se mostrar bastante crédulo em relação a ela Talvez nós não sejamos muito diferentes disso talvez o analisando exiba com tanta nitidez essa dependência do intelecto da vida afetiva apenas porque na análise nós o colocamos em grande dificuldade De que maneira podemos então explicar por que o doente luta tão energicamente contra a remoção de seus sintomas e o restabelecimento da normalidade no cur so de seus processos psíquicos Dizemos a nós mesmos que percebemos aí forças poderosas a se opor a qualquer mudança de estado devem ser as mesmas que antes impuseram esse estado Na formação do sintoma deve 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO ter ocorrido algo que agora com base em nossa expe riência na resolução do sintoma podemos reconstruir Sabemos já pelas observações de Breuer que a existên cia do sintoma tem por pressuposto que algum processo psíquico não foi levado a cabo dentro da normalidade de modo a poder se tornar consciente O sintoma é um substituto para aquilo que não ocorreu Sabemos ago ra onde situar a atuação da força que supusemos Uma veemente oposição deve ter se erguido contra o avanço do processo psíquico questionável rumo à consciência razão pela qual ele permaneceu inconsciente E sendo inconsciente teve poder para formar um sintoma Du rante o tratamento analítico essa mesma oposição se dá novamente contra o esforço de conduzir o inconsciente ao consciente Isso é o que sentimos como resistência O processo patogênico que nos é demonstrado pela re sistência leva o nome de repressão Sobre esse processo da repressão temos de formar ideias mais precisas Ele é a precondição para a forma ção do sintoma mas é também algo único com o qual nada que conhecemos se parece Se tomamos como mo delo um impulso um processo psíquico que se empenha por tornarse ação sabemos que ele pode ser alvo de um rechaço a que chamamos rejeição ou condenação Isso lhe retira a energia de que ele dispõe tornandoo impotente mas ele pode persistir sob a forma de lem brança Todo o processo de decisão a seu respeito trans corre com o conhecimento do Eu Algo bem diferente se dá quando imaginamos esse mesmo impulso sujeito à repressão Nesse caso ele conservaria sua energia e 391 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES dele não restaria lembrança nenhuma além disso o processo da repressão se efetuaria sem ser percebido pelo Eu Essa comparação portanto não nos aproxima da natureza da repressão Vou expor aos senhores as únicas concepções teóri cas que se mostraram úteis na conformação mais espe cífica do conceito de repressão Para tanto é necessário sobretudo que avancemos do significado puramente descritivo para o significado sistemático da palavra in consciente isto é que nos decidamos por considerar o caráter consciente ou inconsciente de um processo psíquico apenas uma das propriedades desse processo e não necessariamente uma propriedade inequívoca Se um tal processo permaneceu inconsciente talvez esse afastamento da consciência seja apenas um sinal do des tino que ele experimentou e não o destino em si A fim de ilustrar esse destino suponhamos que todo processo psíquico mais adiante será necessário admitir aqui uma exceção exista primeiramente em um estágio ou fase inconsciente e que apenas a partir desta se trans forme em consciente assim como uma fotografia é de início um negativo que depois mediante sua transfor mação em positivo resulta em uma imagem Nem todo negativo porém precisa transformarse em positivo assim como tampouco é necessário que todo processo psíquico inconsciente se converta em consciente Mais vantajoso será nos expressarmos da seguinte maneira cada processo pertence em primeiro lugar ao sistema psíquico do inconsciente podendo sob determinadas circunstâncias passar para o sistema do consciente 392 19 RESISTtNCIA E REPRESSÃO A ideia mais crua desses sistemas a espacial é a mais confortável para nós Equiparemos pois o sistema do inconsciente a uma grande antecâmara na qual como entes individuais se agitam os impulsos psíquicos A essa antecâmara ligase outro cômodo mais apertado uma espécie de sala na qual se encontra também a consciência Mas na soleira da porta entre os dois espaços um guarda cumpre seu dever de inspecio nar cada impulso censurálo e não deixar que adentre a sala caso não lhe agrade Os senhores veem de ime diato que a diferença é pequena entre o guarda recha çar um impulso ainda diante da porta ou expulsálo da sala depois de ele já ter entrado É apenas uma questão de seu grau de vigilância e de o guarda reconhecer o impulso a tempo Atermonos a essa imagem nos per mitirá expandir nossa nomenclatura Os impulsos na antecâmara do inconsciente escapam ao olhar da cons ciência que afinal se encontra no cômodo ao lado de início eles têm de permanecer inconscientes Uma vez tendo avançado até a soleira da porta onde o guarda os rechaçou eles são incapazes de alcançar a consciência dizemos que foram reprimidos Contudo os impulsos que o guarda deixou passar tampouco se tornam neces sariamente conscientes isso eles só podem ser quando logram atrair para si os olhares da consciência Temos portanto boas razões para chamar esse segundo cômo do de sistema do préconsciente O tornarse consciente mantém seu sentido puramente descritivo O destino da repressão para um determinado impulso no entanto consiste em que o guarda não o deixa passar do sistema 393 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES do inconsciente para o do préconsciente É o mesmo guarda que encontramos sob a forma de resistência quando mediante o tratamento analítico buscamos anular a repressão Sei bem que os senhores dirão dessas concepções que elas são cruas e fantasiosas absolutamente inad missíveis numa exposição científica Sei que são cruas mais até sabemos que são incorretas e se não estamos muito enganados temos já à mão um substituto melhor para elas Se ainda assim elas seguirão parecendo tão fantasiosas aos senhores não sei dizer Por enquanto elas nos prestam o mesmo auxílio daquele homenzinho de Ampere a nadar na corrente elétrica não devemos desprezálas enquanto forem úteis à compreensão de nossas observações Mas gostaria de assegurar aos se nhores que essas suposições cruas as dos dois apo sentos do guarda na soleira da porta que separa um do outro e da consciência como espectadora no fundo do segundo aposento devem ser aproximações bastante avançadas ao estado de coisas real E gostaria também de ouvir dos senhores a admissão de que as nossas de signações inconsciente préconsciente consciente são bem menos prejudiciais e mais fáceis de justificar do que outras sugeridas ou em uso como subconsciente paraconsciente intraconsciente e outras Por isso mais importante para mim será os senhores me advertirem que uma tal organização do aparato psí quico como a que propusemos aqui para explicar os sin tomas neuróticos tem de possuir validade geral e forne cer também informação sobre o funcionamento normal 394 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO da psique Nisso naturalmente os senhores têm razão Neste momento não podemos seguir os desdobramentos dessa conclusão mas nosso interesse na psicologia da formação do sintoma há de experimentar um aumento extraordinário se houver a perspectiva de mediante o estudo das condições patológicas obter esclarecimento sobre a vida psíquica normal tão bem encoberta De resto não percebem os senhores em que se as senta nossa postulação dos dois sistemas da relação que possuem entre si e com o consciente O guarda entre o inconsciente e o préconsciente não é senão a censura aquela a que como vimos está sujeita a configuração tomada pelo sonho manifesto Os resíduos diurnos em que reconhecemos os instigadores do sonho são material préconsciente que no sono noturno sofreu a influência de desejos inconscientes e reprimidos em conjunto com os quais e graças a cuja energia logrou formar o sonho latente Sob o domínio do sistema in consciente esse material foi elaborado mediante condensação e deslocamento de uma forma des conhecida ou apenas excepcionalmente admissível na vida psíquica normal isto é no sistema préconsciente Essa diferença na forma de trabalho tornouse para nós característica de ambos os sistemas a relação do pré consciente com a consciência serviunos apenas como indicação de que pertence a um dos dois sistemas Pois o sonho não é mais um fenômeno patológico dada a condição do sono ele pode se manifestar em toda e qualquer pessoa saudável A suposição acerca da estru tura do aparato psíquico que nos permite compreender 395 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES tanto a formação do sonho como a dos sintomas neuró ticos tem direito indiscutível a ser levada em considera ção também para a vida psíquica normal Isso é tudo o que temos a dizer sobre a repressão neste momento Mas ela é apenas a precondição para a formação do sintoma Sabemos que este é um substituto de algo que foi impedido pela repressão Mas da repres são até o entendimento dessa formação substitutiva há ainda um longo caminho Desse outro lado do proble ma surgem questões vinculadas à nossa constatação da repressão que tipos de impulsos psíquicos estão sujei tos à repressão que forças a impõem e por que moti vos A esse respeito dispomos apenas de uma coisa até o momento quando da investigação da resistência dis semos que ela parte de forças do Eu de traços de caráter conhecidos e latentes São eles pois que se ocupam da repressão ou no mínimo têm participação nela Tudo o mais ainda nos é desconhecido Daqui em diante vem em nosso auxílio a segunda das observações tiradas da experiência mencionadas no início A partir da análise podemos dizer de forma geral qual a intenção do sintoma neurótico Tampouco isso será novidade para os senhores Já o demonstrei à luz de dois casos de neurose Mas realmente o que são dois casos Os senhores têm o direito de exigir que isso lhes seja demonstrado duzentas vezes um semnúmero de vezes O problema é que não posso fazêlo Mais uma vez deve entrar aqui a experiência própria ou a crença que nisso pode se valer do testemunho unânime de todos os psicanalistas 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO Os senhores se lembram de que nos dois casos cujos sintomas submetemos a investigação aprofundada a análise nos introduziu na intimidade da vida sexual dos pacientes No primeiro caso também reconhece mos com particular nitidez a intenção ou tendência do sintoma investigado no segundo talvez essa intenção estivesse algo encoberta por um fator a ser mencionado mais adiante Pois bem o que vimos nesses dois exem plos é o mesmo que nos mostrariam todos os outros casos submetidos a análise Ela sempre nos conduziria às experiências e desejos sexuais dos doentes e cons tataríamos então que seus sintomas servem à mesma intenção A intenção que assim se dá a conhecer é a sa tisfação de desejos sexuais os sintomas servem à satis fação sexual dos doentes são um sucedâneo para essa satisfação que lhes falta na vida Pensem na ação obsessiva de nossa primeira pacien te A mulher sente a falta do marido a quem ama in tensamente e com o qual não pode compartilhar a vida em razão das deficiências e fraquezas dele Ela precisa permanecer fiel a ele não pode pôr outro em seu lugar O sintoma obsessivo lhe dá aquilo pelo qual ela anseia eleva o marido nega e corrige suas fraquezas e acima de tudo a impotência No fundo esse sintoma é a rea lização de um desejo como no sonho e mais do que isso a realização erótica de um desejo o que o sonho nem sempre é De nossa segunda paciente os senhores puderam ao menos depreender que seu cerimonial pre tende impedir ou retardar o relacionamento sexual dos pais para que dele não resulte outro filho Por certo te 397 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES rão adivinhado também que o cerimonial pretende no fundo colocála no lugar da mãe De novo portanto eliminação de perturbações na satisfação sexual e reali zação dos próprios desejos sexuais Sobre a complicação insinuada logo falaremos Meus senhores eu gostaria de evitar a necessidade de posteriormente restringir a validez universal dessas afir mações razão pela qual chamo a atenção de todos para o fato de que tudo o que digo sobre repressão formação de sintoma e significado do sintoma ter sido extraído de três formas de neurose a histeria de angústia a his teria de conversão e a neurose obsessiva só valen do em princípio para essas formas Essas três afecções que costumamos agrupar como neuroses de transforência circunscrevem também o âmbito em que a terapia psi canalítica pode atuar As outras neuroses não foram tão bem estudadas pela psicanálise em relação a um grupo delas a impossibilidade de exercer influência terapêutica constituiu decerto um motivo para a negligência Não se esqueçam de que a psicanálise ainda é uma ciência mui to jovem que demanda muito empenho e tempo para a preparação e que não faz muito tempo era praticada por uma só pessoa Contudo em toda parte estamos em vias de avançar na compreensão dessas outras afecções que não constituem neuroses de transferência Espero poder ainda apresentar aos senhores as ampliações que nossas hipóteses e nossos resultados experimentaram na adequação a esse novo material e espero também po der mostrarlhes que esses novos estudos não levaram a contradições e sim ao estabelecimento de unidades 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO mais altas Se tudo o que aqui foi dito se aplica às três neuroses de transferência permitamme agora acentuar o valor dos sintomas com uma nova informação Com efeito uma investigação comparativa sobre os ensejos para o adoecimento leva a um resultado que pode ser ex presso na seguinte fórmula essas pessoas adoecem por algum tipo de frustração quando a realidade as priva da satisfação de seus desejos sexuais Os senhores percebem como essas duas conclusões se harmonizam Os sintomas devem ser propriamente entendidos portanto como sa tisfação substitutiva para o que faltou na vida Sem dúvida podese fazer ainda todo tipo de obje ção à tese de que os sintomas neuróticos são satisfações substitutivas de caráter sexual Duas delas pretendo discutir ainda hoje Se os senhores mesmos submeterem à investigação analítica um número maior de neuróti cos talvez me digam balançando a cabeça que isso não se aplica de forma nenhuma a uma série de casos que neles os sintomas mais parecem abrigar a intenção contrária e excluir ou anular a satisfação sexual Não vou refutar a correção da interpretação dos senhores Os fatos psicanalíticos costumam ser mais complicados do que gostaríamos Fossem eles tão simples talvez não precisássemos da psicanálise para trazêlos à luz Na verdade já alguns traços do cerimonial de nossa segunda paciente dão a perceber esse caráter ascético hostil à satisfação sexual como quando por exemplo ela afasta os relógios o que tem por sentido mágico evi tar ereções noturnas ou quando deseja impedir que os vasos caiam e se quebrem o que equivale a uma prote 399 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES ção de sua virgindade Em outros casos de cerimoniais semelhantes que pude analisar esse caráter negativo revelouse bem mais pronunciado o cerimonial podia consistir inteiramente em medidas defensivas voltadas contra lembranças e tentações sexuais Contudo já ti vemos muitas vezes oportunidade de aprender que na psicanálise opostos não implicam nenhuma contradi ção Poderíamos expandir nossa afirmação acrescen tando que os sintomas não têm por intenção nem uma satisfação sexual nem qualquer defesa contra ela de resto e de maneira geral predomina na histeria o cará ter positivo de realização do desejo enquanto na neu rose obsessiva a predominância é do caráter negativo e ascético Se os sintomas podem servir tanto à satisfação sexual como a seu oposto essa dualidade ou polarida de encontra excelente fundamentação em uma parte de seu mecanismo que ainda não pudemos mencionar Eles são como veremos mais adiante produtos de um compromisso decorrente da interferência de duas aspi rações opostas e representam tanto o reprimido como o repressor que cooperaram para o seu surgimento A representação pode então resultar mais favorável a um lado ou a outro raro é no entanto que alguma influên cia não se faça sentir Na maioria dos casos de histeria as duas intenções são encontradas no mesmo sintoma Na neurose obsessiva elas com frequência se apartam O sintoma apresenta então dois tempos ele consiste em duas ações sucessivas que se anulam uma à outra Uma segunda objeção não pode ser respondida com a mesma facilidade Ao examinar uma série maior de 400 20 A VIDA SEXUAL HUMANA interpretações de sintomas é provável que de início os senhores julguem identificar neles uma expansão do conceito de satisfação substitutiva até seus limites ex tremos Não deixarão de enfatizar que esses sintomas nada oferecem em termos de satisfação real e que com muita frequência eles se limitam ao avivamento de uma sensação ou à representação de uma fantasia oriunda de um complexo sexual Notarão ademais que a suposta satisfação sexual muitas vezes exibe um caráter infantil e indigno aproximandose talvez de um ato masturba tório ou lembrando maus vícios de que as crianças já foram proibidas e desacostumadas Além disso os se nhores manifestarão seu espanto com o fato de se en tender como satisfação sexual o que talvez devesse ser descrito como satisfação de prazeres que só poderiam ser chamados de cruéis terríveis até mesmo contrários à natureza Sobre este último ponto meus senhores não chegaremos a um acordo até que tenhamos submetido a vida sexual humana a rigorosa investigação na qual decidamos o que é lícito chamar de sexual 20 A VIDA SEXUAL HUMANA Senhoras e senhores Seria de acreditar que não há dú vidas quanto ao que todos entendem por sexual An tes de tudo o sexual é o indecoroso aquilo de que não se deve falar Contaramme que certa vez os alunos de um famoso psiquiatra se deram ao trabalho de tentar 401 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES convencer o mestre de que os sintomas de pessoas his téricas apresentam com frequência conteúdos sexuais Com esse propósito levaramno ao leito de uma histé rica cujos acessos imitavam inequivocamente um par to Mas ele refutou afirmando Bem não há nada de sexual em um parto Claro um parto não precisa ser indecoroso em todas as circunstâncias Noto que os senhores se ressentem de eu brincar com coisas tão sérias Mas não se trata inteiramente de uma brincadeira Falando com seriedade não é fácil definir que conteúdo tem a palavra sexual A única definição acertada seria dizer talvez que ela se refere a tudo o que guarda relação com a diferença entre os sexos mas os senhores julgarão essa definição aborrecida e demasiado abrangente Se os senhores centrarem essa definição no ato sexual talvez digam que sexual é tudo o que visando à obtenção de prazer se ocupa do corpo em especial dos órgãos sexuais do sexo oposto e em última instância al meja a união dos órgãos genitais e a execução do ato se xual Nesse caso porém não terão se afastado muito da equiparação do sexual ao indecoroso e o parto realmente não pertencerá ao âmbito do sexual Se por outro lado os senhores fizerem da função da reprodução o cerne da sexualidade correm o risco de excluir bom número de coisas que não visam à reprodução e no entanto certa mente são de cunho sexual como a masturbação ou mes mo o beijo Seja como for já estamos preparados para o fato de tentativas de definição sempre conduzirem a difi culdades renunciemos precisamente nesse caso a fazer melhor Podemos imaginar que no desenvolvimento do 402 20 A VIDA SEXUAL HUMANA termo sexual ocorreu algo que na boa expressão de H Silberer resultou em um erro de sobreposição De modo geral não carecemos de orientação sobre aquilo que as pessoas chamam de sexual Dizer que sexual é algo que reúne e leva em conta a oposição entre os sexos a obtenção de prazer a função reprodutora e o caráter indecoroso a ser mantido em se gredo é quanto basta para todas as necessidades práticas da vida Mas não é o suficiente para a ciência E isso porque mediante investigações cuidadosas possibili tadas decerto apenas por uma autossuperação disposta a sacrifícios travamos contato com grupos de indiví duos cuja vida sexual difere da maneira mais notável do quadro habitual da média das pessoas Parte desses perversos aboliu por assim dizer a oposição entre os sexos Somente pessoas do mesmo sexo são capazes de excitar seus desejos sexuais os demais e sobretudo os órgãos sexuais destes não constituem objetos sexuais para eles e em casos extremos lhes causam repulsa Com isso é claro essas pessoas renunciaram a toda e qualquer participação na reprodução Nós as chamamos homossexuais ou invertidos São mulheres e homens em geral mas não sempre de cultura imaculada alta mente desenvolvidos tanto no aspecto intelectual como no ético mas marcados por esse seu desvio fatal Pela boca de seus portavozes científicos eles se dizem uma variedade particular da espécie humana um terceiro sexo com os mesmos direitos dos outros dois Talvez tenhamos oportunidade de submeter suas reivindica ções a um exame crítico Naturalmente eles não cons 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES tituem uma elite da espécie humana ao contrário do que gostariam de afirmar entre eles há no mínimo tan tos indivíduos de pouco valor ou serventia quanto entre as pessoas de outra natureza sexual Esses perversos procedem com seu objeto sexual mais ou menos da mesma forma que os normais com o deles Mas há também uma longa série de anormais cuja atividade sexual se distancia cada vez mais daquilo que parece desejável a um ser humano sensato Em sua mul tiplicidade e singularidade eles só são comparáveis às grotescas deformações que P Bruegel pintou em A ten tação de Santo Antônio ou aos deuses e crentes esqueci dos que G Flaubert faz desfilar em longa procissão ante os olhos de seu devoto penitente Sua miscelânea clama por alguma espécie de ordem para não nos confundir os sentidos Nós os dividimos entre aqueles em que o objeto sexual se modificou como nos homossexuais e aqueles em que o que sofreu alteração foi sobretudo a meta sexual Ao primeiro grupo pertencem os que re nunciaram à união dos genitais e em que em um dos parceiros o órgão genital é substituído por outra parte ou região do corpo durante o ato sexual eles não tomam conhecimento das insuficiências do aparato orgânico nem do estorvo representado pelo nojo Boca ou ânus em lugar da vagina Seguemse outros que continuam se valendo do órgão genital mas não por suas funções sexuais e sim por outras das quais ele toma parte por Em La tentation de Saint Antoine parte v da versão final Flau bert se inspirou no quadro homônimo de Bruegel 20 A VIDA SEXUAL HUMANA motivos anatômicos ou de proximidade Neles percebe mos que as funções de excreção segregadas como im próprias durante a educação da criança permanecem capazes de atrair todo o interesse sexual Há outros que abriram mão por completo do órgão genital como obje to desejado substituindoo por outra parte do corpo o seio da mulher o pé a trança do cabelo Prosseguindo há também aqueles para os quais outra parte do corpo nada significa mas cujos desejos são plenamente reali zados por uma peça do vestuário um sapato uma rou pa íntima são os fetichistas Mais adiante no cortejo encontramos pessoas que embora demandem o objeto inteiro fazem exigências bastante específicas estranhas ou terríveis para que possam desfrutálo inclusive a de que ele se torne um cadáver indefeso havendo mesmo os que usando de violência criminosa o transformam em tal Mas hasta desse tipo de horrores O segundo grupo é liderado por aqueles perver sos que definiram como meta de seus desejos sexuais o que em geral constitui apenas ação introdutória e preparatória Anseiam pois por olhar e tocar a outra pessoa observála enquanto ela desempenha funções íntimas ou desnudar partes do próprio corpo que deve riam permanecer encobertas na sombria esperança de que a mesma contrapartida as recompense Seguemse a esses os enigmáticos sádicos cujo empenho amoroso não conhece outra meta senão infligir dor e tormento a seu objeto desde a humilhação insinuada até os danos físicos graves e como numa espécie de equilíbrio sua contrapartida os masoquistas cujo único prazer é em 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES sofrer todo tipo de humilhação e tormento da parte de seu objeto amado seja de forma simbólica ou real Em outros ainda várias dessas condições anormais se reú nem e se cruzam Por fim somos levados a descobrir que cada um desses grupos existe sob duas formas ao lado daqueles que buscam sua satisfação sexual na rea lidade há os que se contentam em apenas imaginar essa satisfação os que não necessitam de um objeto verda deiro mas são capazes de substituílo pela fantasia Não pode haver a menor dúvida de que em seme lhantes loucuras singularidades e horrores consiste de fato a atividade sexual dessas pessoas Não apenas elas assim a entendem e percebem a relação de substituição também nós temos de admitir que tais ações desem penham na vida delas o mesmo papel que a satisfação sexual normal tem na nossa para isso elas fazem os mesmos sacrifícios com frequência enormes e tanto no quadro mais geral como no mais fino detalhe é possível estudar onde essas anormalidades se apoiam no normal e onde dele se afastam Não terá escapado aos senhores que voltou a aparecer aqui o caráter de indecência que se prende à atividade sexual na maioria dos casos po rém ele se intensificou a ponto de ser vergonhoso Pois bem minhas senhoras e meus senhores como nos posicionamos ante essas modalidades incomuns de satisfação sexual É evidente que a indignação a ex pressão de nossa aversão pessoal e a garantia de que não partilhamos esses apetites não resolvem nada Não é a isso que somos solicitados No fim tratase de um cam po de fenômenos como outro qualquer Também seria 20 A VIDA SEXUAL HUMANA fácil rechaçar a evasiva reprovadora de afirmar que esses são apenas casos raros e curiosos Ao contrário estamos lidando com fenômenos bastante frequentes e amplamente disseminados Se todavia nos disserem que eles não precisam abalar nossas concepções sobre a vida sexual porque todos sem exceção representam aberrações e deslizes do instinto sexual então cabe rá uma resposta séria Se não entendemos essas con figurações patológicas da sexualidade nem podemos conciliálas com a vida sexual normal é porque tam pouco entendemos a sexualidade normal Em suma um esclarecimento teórico pleno sobre a existência dessas chamadas perversões e de sua conexão com a chamada sexualidade normal é uma tarefa imperiosa Para tanto uma percepção e duas novas observações virão em nosso auxílio A primeira nós a devemos a Iwan Bloch ela corrige a noção de todas essas perver sões como sinais de degeneração ao demonstrar que esses desvios da meta sexual esses afrouxamentos da relação com o objeto sexual ocorreram desde sempre em todas as épocas conhecidas e em todos os povos dos mais primitivos aos de mais elevada civilização e oca sionalmente gozaram de tolerância e reconhecimento geral As duas observações a que me referi provêm da investigação psicanalítica dos neuróticos elas influirão de maneira decisiva em nossa compreensão das perver sões sexuais Dissemos que os sintomas neuróticos constituem satisfações substitutivas de caráter sexual e já indiquei aos senhores que a confirmação dessa tese mediante a 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES análise dos sintomas depara com várias dificuldades Com efeito ela só se justifica se em nosso entendimen to de satisfação sexual levarmos em conta também as chamadas necessidades sexuais perversas pois uma interpretação de sintomas desse tipo nos aparece com surpreendente frequência A reivindicação de excepcio nalidade dos homossexuais ou invertidos cai por terra quando descobrimos que há impulsos homossexuais em cada neurótico e que boa parte de seus sintomas dá ex pressão a essa inversão latente Os que se denominam homossexuais são de fato apenas os invertidos cons cientes e manifestos e seu número é insignificante se comparado ao dos homossexuais latentes Vemonos obrigados a considerar a escolha do objeto de mesmo sexo como uma divergência que se dá com regulari dade na vida amorosa e aprendemos cada vez mais a atribuirlhe elevada importância Certamente isso não anula as diferenças entre a homossexualidade manifes ta e o comportamento normal seu significado prático persiste mas seu valor teórico se reduz extraordinaria mente No caso de certa afecção a paranoia que já não podemos incluir entre as neuroses de transferência su pomos até mesmo que nasce regularmente da tentativa de defesa contra impulsos homossexuais bastante fortes Talvez os senhores ainda se lembrem de que em seu ato obsessivo uma de nossas pacientes desempenhava o papel de um homem seu próprio marido abandonado em mulheres neuróticas é muito comum tal produção No original Abzweigung literalmente ramificação 408 20 A VIDA SEXUAL HUMANA de sintomas em que personificam um homem Se em si isso não pode ser considerado homossexualidade está relacionado com os pressupostos para ela Como os senhores provavelmente sabem a neurose histérica pode produzir sintomas em todos os sistemas e dessa maneira perturbar todas as funções orgânicas A análise mostra que se manifestam aí todos os cha mados impulsos perversos que pretendem substituir o genital por outros órgãos Estes se comportam então como substitutos dos órgãos genitais A própria sinto matologia da histeria nos levou à concepção de que à parte seu papel funcional devemos atribuir aos órgãos do corpo também uma importância sexual erógena e que o cumprimento daquele primeiro papel é perturba do quando este último lhes faz demandas em excesso Inúmeras sensações e inervações que se nos apresentam como sintomas da histeria em órgãos que aparente mente nada têm a ver com a sexualidade revelam nos assim sua natureza são realizações de impulsos sexuais perversos nas quais outros órgãos tomaram para si a importância dos órgãos genitais Também ve mos em que grande medida os órgãos de que nos ser vimos para nos alimentar e excretar podem se tornar portadores da excitação sexual É pois a mesma coisa que nos mostraram as perversões nestas porém nós o percebemos sem esforço e de forma inequívoca en quanto na histeria somos obrigados a primeiramente fazer o rodeio da interpretação do sintoma e depois em vez de atribuir os impulsos sexuais perversos à cons ciência situálos no inconsciente dos indivíduos 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES Dos muitos quadros sintomáticos em que figura a neurose obsessiva os mais importantes revelamse pro vocados pela pressão de impulsos sexuais sádicos bas tante fortes isto é impulsos perversos em sua meta e os sintomas como convém à estrutura de uma neurose obsessiva servem sobretudo para defenderse de tais desejos ou expressam a luta entre satisfação e defesa Mas também a satisfação não se sai mal por vias indi retas ela consegue se apresentar no comportamento dos doentes e se volta de preferência contra eles próprios tornaos atormentadores de si mesmos Outras formas de neurose que podemos chamar cismadoras corres pondem a uma sexualização excessiva de atos que em geral se inserem como preparativos no caminho para a satisfação sexual normal a vontade de ver tocar pesquisar Isso explica a grande importância do medo do toque e da mania de se lavar Uma proporção enor me dos atos obsessivos remonta à masturbação sendo repetição e modificação dela e é sabido que a masturba ção embora ato único e uniforme acompanha as mais diversas formas de fantasia sexual Não me seria difícil exporlhes mais profundamente as relações entre perversão e neurose mas creio que o que foi dito já basta para o nosso propósito Todavia depois desses esclarecimentos acerca do significado dos sintomas precisamos nos resguardar de uma superes timação da frequência e da intensidade das tendências perversas dos seres humanos Os senhores já ouviram aqui que a frustração da satisfação sexual normal pode conduzir ao adoecimento neurótico Havendo essa frus 410 20 A VIDA SEXUAL HUMANA tração real a necessidade se lança aos caminhos anor mais da excitação sexual Mais adiante os senhores poderão ver como isso se dá De todo modo compreen dam que em razão de tal represamento colateral os impulsos perversos hão de parecer mais intensos do que seriam se nenhum impedimento real se houvesse contraposto à satisfação sexual normal Influência se melhante aliás devemos reconhecer também no que toca às perversões manifestas Em muitos casos elas são provocadas ou ativadas em razão das dificuldades demasiado grandes impostas à satisfação normal do impulso sexual seja em decorrência de circunstâncias passageiras ou de instituições sociais duradouras Em outros casos porém as tendências perversas indepen dem de tais condições favoráveis e constituem para o indivíduo a modalidade normal de vida sexual por as sim dizer É possível que no momento os senhores tenham a impressão de termos antes confundido que esclareci do a relação entre a sexualidade normal e a perversa Atenhamse porém à seguinte reflexão se é correto que a maior dificuldade ou a privação de uma satisfação sexual normal põe à mostra tendências perversas que as pessoas não exibiriam de outra forma então é necessá rio supormos que essas mesmas pessoas têm algo que vai ao encontro das perversões ou se os senhores preferirem que as perversões estejam presentes nelas de forma latente Chegamos assim à segunda novidade que eu havia anunciado aos senhores A saber a inves tigação psicanalítica viuse obrigada a atentar também 411 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES para a vida sexual da criança o que ela fez cuidando para que na análise dos sintomas lembranças e asso ciações remetessem regularmente aos primeiros anos da infância O que assim revelamos foi confirmado ponto a ponto pela observação direta de crianças Resultou daí a conclusão de que todas as tendências a perversões têm raiz na infância de que as crianças possuem predispo sição para elas e as praticam na proporção de sua ima turidade em suma de que a sexualidade perversa nada mais é que a sexualidade infantil magnificada e decom posta em seus impulsos separados Agora os senhores verão as perversões sob outra luz e não mais deixarão de perceber sua conexão com a vida sexual humana mas à custa de que surpresa e de que penosas incongruências para a sua sensibilidade Sem dúvida primeiramente se inclinarão a contestar tudo isso o fato de as crianças terem algo que podemos designar como sexualidade a justeza de nossas obser vações e justificativa de encontrar no comportamento infantil algum parentesco com o que mais tarde será condenado como perversão Permitam então que eu antes lhes esclareça os motivos de sua resistência para depois apresentarlhes todas as nossas observações Que as crianças não tenham vida sexual que não se excitem não tenham necessidades e uma espécie de sa tisfação mas só venham a desenvolvêla de súbito entre os doze e os catorze anos seria biologicamente sem considerar todas as nossas observações tão im provável e mesmo absurdo como elas terem vindo ao mundo sem órgãos genitais que só brotariam por volta 412 20 A VIDA SEXUAL HUMANA da puberdade O que nelas desperta por essa época é a função reprodutora que se serve para seus fins de um material físico e psíquico já existente Os senhores cometem o erro de confundir sexualidade com repro dução o que lhes barra o caminho para o entendimento da sexualidade das perversões e das neuroses Trata se porém de um erro tendencioso Curiosamente ele tem sua fonte no fato de também os senhores terem sido crianças e como tais haverem se submetido à influên cia da educação Com efeito quando o instinto sexual irrompe como ímpeto reprodutivo é necessário que a sociedade tenha entre suas tarefas educativas mais im portantes a de domálo restringilo submetêlo a uma vontade individual que seja idêntica ao mandato social Além disso ela tem interesse em postergar o desenvol vimento pleno desse instinto até que a criança tenha al cançado certo patamar de maturidade intelectual uma vez que com a irrupção plena do instinto sexual pra ticamente tem fim a educabilidade Não fosse assim o instinto romperia todos os diques e arrastaria em sua torrente a obra penosamente edificada da civilização A tarefa de domálo nunca é fácil ela é ora insuficiente ora demasiada A motivação da sociedade humana é em última instância uma motivação econômica como ela não dispõe de gêneros alimentícios suficientes para a manutenção de seus membros sem que eles precisem trabalhar é necessário limitar o número desses mem bros e desviar sua energia da atividade sexual para o trabalho Tratase desde sempre dos primórdios até os dias atuais daquilo que a vida impõe como necessidade 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES A experiência deve ter mostrado aos educadores que a tarefa de guiar a vontade sexual da nova geração só pode ser realizada com o exercício bastante precoce da influência aquele que não espera pela tempestade da pu berdade mas intervém já na vida sexual da criança que prepara a tormenta posterior Com essa intenção são proibidas ou estragadas quase todas as práticas sexuais infantis a meta que se impõe é configurar a vida da criança como assexuada o que ao longo do tempo re sultou por fim na crença de que ela é de fato assexuada algo que a ciência então proclama como doutrina A fim de que crença e intenção não se contradigam o que se faz então é ignorar as práticas sexuais da criança um feito nada desprezível ou no caso da ciência dar se por satisfeito com outra concepção dela A criança é tida como pura inocente e quem a descreve de outro modo pode ser denunciado como sacrílego infame ini migo dos sentimentos ternos e sagrados da humanidade As próprias crianças porém são as únicas que não participam dessas convenções fazendo valer seus direi tos animalescos com toda a ingenuidade e demonstran do a todo momento que o caminho rumo à pureza ainda está por ser percorrido O curioso é que aqueles que negam a sexualidade infantil nem por isso relaxam em seu esforço educativo mas isto sim perseguem com o máximo rigor as manifestações daquilo que renegam e intitulam maus hábitos infantis De elevado interes se teórico é também que o período da vida que mais gritantemente contradiz a noção da infância assexuada o que se estende até os cinco ou seis anos de idade 20 A VIDA SEXUAL HUMANA seja depois na maioria das pessoas recoberto pelo véu de uma amnésia que apenas a exploração analítica é capaz de rasgar mas que antes disso já se revelou permeável para a formação de alguns sonhos Quero agora expor aos senhores o que se pode perceber com mais clareza na vida sexual da criança Permitamme também introduzir aqui a bem da ex posição que se segue o conceito de libido A libido de maneira análoga à fome designa a força com que o ins tinto se manifesta nesse caso o sexual assim como no caso da fome o de alimentação Outros conceitos como os de excitação sexual e satisfação não necessi tam de explicação Que as práticas sexuais dos lacten tes demandem o trabalho mais árduo de interpretação os senhores poderão compreender com facilidade ou provavelmente utilizar como objeção Essas interpre tações baseadas em investigações analíticas resultam da busca retrospectiva do sintoma aquela que par tindo do próprio sintoma recua no tempo até sua ori gem No lactente os primeiros impulsos da sexualidade mostramse apoiados em outras funções importantes para a vida Seu principal interesse como os senhores sabem está voltado para a alimentação quando sacia do ele adormece junto ao peito da mãe o lactente exibe uma expressão de bemaventurada satisfação a mesma que mais tarde se repetirá em seguida à experiência do orgasmo sexual Isso seria muito pouco para embasar uma conclusão Contudo observamos também que o lactente quer repetir essa ação de se alimentar sem com isso demandar mais alimento não é pois a fome que 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES o estimula a fazêlo Dizemos que ele chupa ou suga e o fato de ao fazer isso ele tornar a adormecer com uma expressão de bemaventurança nos mostra que a ação de sugar em si lhe trouxe satisfação Como se sabe logo ele não adormecerá sem ter antes praticado essa ação de sugar Um velho pediatra de Budapeste dr Lindner foi o primeiro a afirmar a natureza sexual des sa atividade Aqueles que cuidam de uma criança e que portanto não tencionam tomar partido teórico no assunto parecem entender dessa mesma maneira o ato de sugar Não têm dúvida de que ele serve apenas à obtenção de prazer contamno entre os maus hábitos da criança e mediante constrangimentos a obrigam a renunciar a esse costume caso ela não queira fazêlo por si só Descobrimos portanto que o lactente execu ta ações que não têm outro propósito senão a obtenção de prazer Acreditamos que ele experimenta esse prazer pela primeira vez ao se alimentar mas que logo apren de a dissociálo da alimentação Só podemos relacionar essa obtenção de prazer à excitação da região da boca e dos lábios partes do corpo a que chamamos então ronas erógenas e o prazer alcançado no ato de sugar nós o caracterizamos como sexual Se temos ou não o di reito de chamálo assim isso certamente ainda vamos precisar discutir Se o lactente pudesse se manifestar ele sem dúvi da reconheceria o ato de mamar no peito da mãe como o mais importante de sua vida E ele não está errado já que com esse ato satisfaz de uma só vez suas duas grandes necessidades vitais Então aprendemos com a 20 A VIDA SEXUAL HUMANA psicanálise e não sem espanto em que grande medida o significado psíquico desse ato perdura para toda a vida Mamar no peito da mãe tornase o ponto de partida de toda a vida sexual o modelo inalcançado para toda sa tisfação sexual posterior aquele ao qual em momen tos de necessidade a fantasia retorna com frequência Tratase de um ato que inclui o peito materno como o primeiro objeto do instinto sexual sou incapaz de transmitirlhes uma ideia da importância que esse pri meiro objeto possui na busca posterior de outros que efeitos profundos ele em suas transformações e subs tituições produz mesmo nas regiões mais remotas de nossa vida psíquica Mas inicialmente o bebê abre mão dele substituindoo por outra parte do corpo em seu ato de sugar A criança passa a sugar o polegar ou a própria língua Na obtenção de prazer ela se faz por tanto independente da aprovação do mundo exterior e além disso intensifica esse prazer mediante a excitação de uma segunda região do corpo As zonas erógenas não são todas elas igualmente generosas por isso constitui experiência importante quando como relata Lindner o lactente ao procurar em seu próprio corpo descobre a particular excitabilidade de seus órgãos ge nitais encontrando aí o caminho que conduz do ato de sugar à masturbação Mediante a apreciação desse ato de sugar já toma mos conhecimento de duas características decisivas da sexualidade infantil Ela surge associada à satisfação das grandes necessidades orgânicas e se comporta de forma autoerótica isto é a criança procura e encontra seus oh 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES jetos no próprio corpo Aquilo que o ato de se alimen tar mostrou com grande nitidez se repete parcialmente com a excreção Inferimos que o lactente tem sensações prazerosas ao esvaziar a bexiga e o intestino e que ele logo organiza essas ações de modo a que elas mediante a correspondente excitação da zona erógena da mem brana mucosa lhe proporcionem o máximo prazer possível Nesse ponto como explicou sutilmente Lou AndreasSalomé o mundo exterior lhe aparece pela primeira vez como poder inibidor hostil à sua aspiração de prazer dandolhe um vislumbre de futuras batalhas exteriores e interiores Ele não deve excretar no mo mento que lhe aprouver e sim naquele determinado por outras pessoas A fim de convencêlo a renunciar a essas fontes de prazer dizemlhe que tudo que se refere a es sas funções é indecoroso e deve ser mantido em segre do Pela primeira vez deve trocar prazer por dignidade social Sua própria relação com os excrementos porém é desde o princípio de natureza bem diferente O lac tente não sente nojo de suas fezes ele as estima como parte de seu corpo da qual não quer se separar e de que se vale como primeiro presente para pessoas de quem gosta muito Mesmo depois de a educação ter alcançado seu intento de afastálo dessas inclinações a valoriza ção dos excrementos tem continuidade no apreço pelo presente e pelo dinheiro Seus feitos ao urinar por outro lado ele parece encarálos com especial orgulho Bem sei que os senhores já desejavam ter me inter rompido há tempos para gritar Basta dessas mons truosidades Então a defecação há de ser uma fonte de 20 A VIDA SEXUAL HUMANA satisfação do prazer sexual que já o lactente explora Os excrementos substância valiosa e o ânus uma es pécie de órgão genital Não acreditamos em nada disso mas entendemos por que pediatras e pedagogos querem distância da psicanálise e de suas conclusões Não meus senhores Os senhores apenas se esqueceram de que minha intenção era exporlhes os fatos da vida se xual infantil associados aos das perversões sexuais Por que não haveriam de saber que o ânus realmente nas relações sexuais de grande número de adultos tanto homossexuais como heterossexuais assume o papel da vagina E que há muitos indivíduos nos quais ao lon go de toda a vida a defecação provoca a sensação do prazer sexual e que não a descrevem como tão desprezí vel No que se refere ao interesse pelo ato da defecação e ao prazer de observar outra pessoa realizálo disso os senhores podem obter confirmação com as próprias crianças quando um pouco mais velhas e já capazes de comunicálo Contanto naturalmente que essas crian ças não tenham sofrido intimidação sistemática porque então compreendem que devem se calar a esse respeito E no tocante às demais coisas em que os senhores não querem acreditar eu os remeto aos resultados da análise e da observação direta de crianças e lhes digo que é real mente uma arte não ver essas coisas todas ou vêlas de outra maneira Se o parentesco da sexualidade infantil com as perversões sexuais lhes chama particularmente a atenção nada tenho contra isso Ele é óbvio na verda de se a criança tem de fato uma vida sexual ela só po derá ser de tipo perverso pois excetuando uns poucos 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES e obscuros indícios faltalhe o que torna a sexualidade uma função reprodutora Por outro lado é característica comum a todas as perversões o fato de elas terem renun ciado à meta da reprodução Uma prática sexual é justa mente chamada de pervertida quando tendo renunciado ao propósito reprodutivo persegue a obtenção de prazer como meta autônoma Os senhores compreendem pois que a ruptura e o momento de transição no desenvol vimento da vida sexual reside em sua subordinação aos propósitos da reprodução Tudo que precede esse mo mento assim como tudo que se furta a ele e serve apenas à obtenção de prazer recebe a designação nada honrosa de pervertido e é como tal proscrito Permitamme então dar prosseguimento a meu su cinto quadro da sexualidade infantil O que falei acerca de dois sistemas de órgãos de alimentação e excreção eu poderia complementar levando em conta os demais A vida sexual da criança se esgota nas atividades de uma série de instintos parciais que independentemente um do outro buscam obter prazer em parte no próprio corpo em parte já no objeto exterior Entre os órgãos a genitália se destaca rapidamente há pessoas nas quais a obtenção de prazer com seu próprio órgão genital sem o auxílio de outra genitália ou objeto se estende sem interrupção desde a masturbação do lactente até a mas turbação por necessidade da época da puberdade pros seguindo ainda por tempo indeterminado De resto o Masturbação por necessidade no original Notonanie composto de Not necessidade premência apuro e Onanie masturbação 420 20 A VIDA SEXUAL HUMANA tema da masturbação não admitiria discussão tão breve tratase de um assunto que demanda consideração de muitos ângulos A despeito de minha inclinação a abreviar ainda mais o tema restam algumas coisas a dizer sobre a pes quisa sexual por parte da criança Ela caracteriza muito bem a sexualidade infantil e é muito importante para a sintomatologia das neuroses A pesquisa sexual infan til começa bem cedo às vezes antes do terceiro ano de vida Ela não parte da diferença entre os sexos que nada significa para as crianças uma vez que elas ao me nos os garotos atribuem o órgão genital masculino a ambos os sexos Quando o menino faz a descoberta da vagina seja na irmãzinha ou em alguma parceira de brincadeiras ele busca em primeiro lugar negar o que lhe dizem seus próprios sentidos porque não pode ima ginar um ser humano semelhante a ele desprovido da parte que lhe é tão valiosa Mais tarde assustase com a possibilidade que lhe é apresentada e possíveis ameaças anteriores decorrentes da ocupação muito intensa com seu pequeno membro surtem agora seu efeito Ele se vê sob o domínio do complexo da castração cuja configu ração exerce grande influência sobre a formação de seu caráter se ele permanece saudável sobre sua neurose se ele adoece e sobre suas resistências se ele se submete a tratamento analítico Sobre a menina pequena sabemos que ela se sente grandemente desfavorecida pela ausên cia de um pênis grande e visível que inveja o menino por possuílo e que por esse motivo em essência de senvolve o desejo de ser homem desejo este que mais 421 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES tarde é retomado na neurose que pode surgir em de corrência de algum percalço em seu papel feminino O clitóris da menina aliás desempenha na idade infantil exatamente o mesmo papel do pênis ele é o portador de uma especial excitabilidade o ponto no qual a satisfação autoerótica é obtida Na transformação da menina em mulher muito depende de essa sensibilidade ser transfe rida a tempo e integralmente do clitóris para a vagina Nos casos da assim chamada anestesia sexual feminina o clitóris mantém obstinadamente essa sensibilidade O interesse sexual da criança se volta antes de mais nada para a questão de onde vêm as crianças a mesma que está na base da pergunta feita pela Esfinge de Te bas e na maioria dos casos é despertada pelo temor egoísta que se segue à chegada de um irmão ou irmã Com muito mais frequência do que pensamos a res posta pronta dada às crianças segundo a qual elas são trazidas pela cegonha é recebida com incredulidade até por crianças pequenas A sensação de que os adultos escondem a verdade contribui muito para o isolamento da criança e para o desenvolvimento de sua autonomia Mas essa questão ela não tem condições de resolver por si mesma A constituição sexual não desenvolvida im põe certas barreiras a sua capacidade de conhecimento Ela supõe primeiramente que as crianças vêm de algo especial que os adultos consomem ao se alimentar e não sabe que apenas as mulheres podem ter bebês Mais tarde dáse conta de sua limitação e desiste de ver na No mito de Édipo 20 A VIDA SEXUAL HUMANA comida a origem das crianças explicação que se con serva nos contos infantis Já um pouco maior a criança logo nota que o pai deve desempenhar algum papel na chegada dos bebês mas não tem como saber que papel é esse Se por acaso ela testemunha algum ato sexual o que vê nele é uma tentativa de sujeição uma briga a má compreensão sádica do coito De início porém não vincula o ato a um futuro bebê Mesmo quando desco bre vestígios de sangue na cama ou na roupa íntima da mãe a criança os toma como prova de algum ferimen to infligido pelo pai Em anos posteriores ela por certo passa a desconfiar que o membro sexual masculino tem parte decisiva no surgimento das crianças mas não atri bui a esse órgão outra função que não a de urinar Desde o princípio as crianças são unânimes na cren ça de que o nascimento de um bebê só pode se dar pelo intestino que a criança portanto surge como uma por ção de excrementos Essa teoria só é abandonada após a depreciação dos interesses anais quando a substitui a suposição de que o umbigo se abre ou de que a região do peito entre as duas mamas seria o local de nasci mento do novo bebê Dessa maneira a criança vai em sua investigação se aproximando do conhecimento dos fatos sexuais ou então graças a sua ignorância passa confusa ao largo deles até que geralmente nos anos que antecedem a puberdade toma conhecimento de uma explicação habitualmente depreciativa e incomple ta que não raro produz efeitos traumáticos Certamente os senhores terão ouvido que o conceito de sexual experimenta uma expansão imprópria na psi 423 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES canálise com o propósito de sustentar as teses da cau sação sexual das neuroses e do significado sexual dos sintomas Podem agora julgar se é injustificada essa ex pansão Expandimos o conceito de sexualidade apenas para que ele possa abranger também a vida sexual dos pervertidos e das crianças Ou seja devolvemos a ele sua amplitude correta Aquilo que fora da psicanálise é chamado sexualidade referese apenas a uma vida sexual restrita a serviço da reprodução e denominada normal 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS Meus senhores Tenho a impressão de que não consegui explicar de forma convincente a importância das per versões para nosso conceito de sexualidade Gostaria pois de melhorar e complementar essa exposição na medida de minhas possibilidades Não que apenas as perversões nos teriam obrigado a modificar o conceito de sexualidade que nos rendeu oposição tão veemente O estudo da sexualidade infan til contribuiu ainda mais para isso e a concordância dos dois tornouse decisiva para nós Contudo por mais que as manifestações da sexualidade infantil possam ser inequívocas nos anos finais da infância elas parecem dissiparse em algo indeterminado nos primeiros anos de vida Quem se recusa a atentar para a história de seu desenvolvimento e para o contexto analítico refutará seu 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS caráter sexual atribuindolhe algum outro caráter indi ferenciado Não se esqueçam de que no momento não possuímos um traço aceito por todos que possa carac terizar a natureza de um processo como sexual a não ser aquele mesmo parentesco com a função reprodutora que já precisamos rejeitar como insuficiente Os crité rios biológicos como as periodicidades de 23 e 28 dias propostas por W FlieB são ainda bastante discutíveis as singularidades químicas que nos é lícito supor exis tirem nos processos sexuais ainda aguardam sua desco berta As perversões sexuais dos adultos pelo contrário são palpáveis e inequívocas Como já o demonstra sua designação aceita por todos elas se inserem sem sombra de dúvida no âmbito da sexualidade Quer elas sejam chamadas de sinais de degeneração ou de outro nome qualquer ninguém teve ainda a coragem de classificá las de outra maneira que não como fenômenos da vida sexual São elas que nos dão o direito de afirmar que se xualidade e reprodução não coincidem pois é óbvio que as perversões sexuais não têm a reprodução como meta Vejo aí um paralelo não destituído de interesse Em bora consciente e psíquico signifiquem a mesma coisa para a maioria das pessoas fomos obrigados a ex pandir o conceito de psíquico a fim de reconhecer a existência de algo psíquico que não é não consciente Algo muito parecido acontece quando outros declaram idênticos o sexual e o pertinente à reprodução ou o genital se os senhores preferem dizêlo de forma resumida ao passo que nós não pudemos deixar de ad mitir a existência de um sexual que não é genital e 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES que nada tem a ver com a reprodução Tratase de uma semelhança apenas formal mas não desprovida de fun damentação mais profunda Se contudo a existência das perversões sexuais constitui argumento tão concludente nessa questão por que esse argumento não surtiu efeito há muito tempo e encerrou o assunto Eu realmente não sei dizer A mim isso parece se dever ao fato de que há sobre as perversões sexuais uma proscrição que extrapola para a teoria e impede até mesmo sua consideração científi ca É como se ninguém pudesse se esquecer de que elas são não apenas repugnantes mas monstruosas e peri gosas também como se as pessoas as considerassem sedutoras e no fundo precisassem conter uma inveja secreta daqueles que as desfrutam uma inveja como a confessada pelo landgrave punidor na célebre paródia de Tannhiiuser No monte de Vênus esqueceuse da honra e do dever Estranho que isso não aconteça conosco Na verdade os pervertidos são isto sim pobresdiabos que pagam um preço bastante alto pela satisfação dura mente obtida O que torna a prática da perversão tão inequivoca mente sexual a despeito da estranheza que causam seu Paródia de Tannhiiuser de Wagner feita pelo comediógrafo aus tríaco Johann Nestroy 180162 landgrave Landgraf era o título de alguns nobres alemães 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS objeto e suas metas é a circunstância de o ato da sua satisfação terminar na maioria dos casos no orgasmo pleno e na emissão dos produtos genitais Isso natural mente é apenas a consequência de se tratar de pessoas adultas na criança o orgasmo e a excreção genital di ficilmente são possíveis sendo substituídos por indícios que mais uma vez não podem ser claramente reconhe cidos como sexuais Devo fazer ainda um acréscimo a fim de completar a consideração das perversões sexuais Por mais mal afamadas que sejam por mais que as contrastemos com a prática sexual normal a observação mostra facil mente que raras vezes um ou outro traço de perversão não está presente na vida sexual das pessoas normais Já o beijo pode postular a condição de um ato de perver são uma vez que consiste não na união das genitálias mas de duas zonas erógenas bucais Não obstante nin guém o condena como pervertido pelo contrário ele é admitido nos palcos teatrais como sugestão atenuada do ato sexual Justamente o beijo porém pode facilmente transformarse em perversão plena quando é tão in tenso que de imediato seguemse descarga genital e orgasmo o que não é tão raro De resto podese desco brir que para uma determinada pessoa tocar e obser var o objeto são condições imprescindíveis para o pra zer sexual enquanto outra no auge da excitação sexual belisca ou morde ou que amantes nem sempre atingem o máximo da excitação mediante os órgãos genitais e sim com o auxílio de alguma outra parte do corpo de seu objeto e assim por diante numa variedade de esco 427 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES lhas Não tem sentido excluir das fileiras dos normais e contar entre os pervertidos as pessoas que revelam al guns desses traços o que se percebe com nitidez cada vez maior é antes que o essencial das perversões não está na transgressão da meta sexual na substituição dos órgãos genitais e nem mesmo na variação do objeto e sim apenas na exclusividade com que acontecem tais desvios os quais põem de lado a função reprodutora do ato sexual Quando as ações pervertidas se integram na produção do ato sexual normal seja como ações pre paratórias ou como contribuições intensificadoras dele elas na verdade deixam de ser perversões É claro que fatos desse tipo diminuem bastante a distância que se para a sexualidade normal da perversa Resulta natural mente daí que a sexualidade normal nasce de algo que já existia antes e descarta certos traços desse material preexistente como inutilizáveis ao passo que congrega outros com o propósito de sujeitálos a uma nova meta a da reprodução Antes de nos valermos de nossos conhecimentos das perversões para com pressupostos já esclarecidos nos lançarmos ao aprofundamento de nosso estudo da se xualidade infantil é necessário que eu chame a atenção dos senhores para uma diferença importante entre as duas sexualidades A sexualidade perversa é em regra extremamente centralizada toda ação converge para uma meta e na maioria dos casos para uma única meta um instinto parcial tem a primazia e ele é ou o único verificável ou sujeitou ao seu os demais propósitos Nesse aspecto a única diferença entre as sexualidades 428 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS perversa e normal é que são outros os instintos parciais dominantes e com eles as metas sexuais Tanto uma como a outra constitui por assim dizer uma tirania bem organizada a diferença é que em cada uma delas uma família diferente tomou o poder Já a sexualidade infantil de modo geral não apresenta tal centralização e organização seus instintos parciais têm direitos iguais e cada um deles se lança por conta própria à conquista do prazer Tanto a falta como a presença da centrali zação combinam naturalmente com o fato de ambas a sexualidade perversa e a normal terem sua origem na sexualidade infantil De resto há também casos de se xualidade perversa que possuem muito mais semelhan ça com a infantil na medida em que neles independen temente uns dos outros numerosos instintos parciais e suas metas se impuseram ou melhor dizendo tiveram continuidade Nesses casos é mais correto falar em in fantilismo da vida sexual do que em perversão Assim preparados podemos agora passar à dis cussão de uma sugestão de que por certo não haverão de nos poupar Alguém poderá nos dizer Por que o senhor insiste em já chamar de sexualidade o que de acordo com seu próprio testemunho são manifestações indeterminadas da infância as quais apenas mais tarde se tornam sexuais Por que não se contentar com a des crição fisiológica e dizer simplesmente que no lactente já observamos atividades como o sugar ou a retenção de excrementos as quais nos mostram que ele busca o pra1er do órgão Desse modo o senhor teria evitado a postulação ofensiva a todo sentimento de uma vida se 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES xual até mesmo para a criança mais pequenina Pois meus senhores eu não tenho absolutamente nada a opor ao prazer do órgão sei que o prazer máximo da união sexual também é apenas um prazer do órgão vinculado à atividade dos genitais Mas sabem os senhores me di zer quando foi que esse prazer do órgão originalmente indiferente adquiriu o caráter sexual que ele indubita velmente exibe em fases posteriores do desenvolvimen to Sabemos mais acerca do prazer do órgão do que sobre a sexualidade Os senhores me dirão que o cará ter sexual é acrescentado justamente quando os genitais começam a desempenhar seu papel sexual e genital se correspondem E recusarão até mesmo a objeção le vantada pelas perversões argumentando que a maioria delas visa sim ao orgasmo genital ainda que por ca minhos outros que não a união dos genitais De fato os senhores se põem em uma posição bem melhor ao riscar das características do sexual a relação com a reprodu ção tornada insustentável pelas perversões e substituí la pela atividade genital Aí porém nossas posições já não se revelam tão distantes o que temos é simples mente a contraposição dos órgãos genitais a todos os outros órgãos Mas como reagem os senhores às muitas experiências a lhes mostrar que na obtenção de prazer os genitais podem ser representados por outros órgãos como acontece no beijo normal nas práticas perversas dos sibaritas e na sintomatologia da histeria No caso dessa neurose é bastante comum que fenômenos esti mulantes sensações inervações e mesmo os processos da ereção os quais têm por sede os genitais sejam 430 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS deslocados para regiões distantes do corpo para a ca beça e o rosto por exemplo De tal modo persuadidos de que não têm onde se apegar para sua caracterização do que é sexual os senhores provavelmente terão que se resolver a seguir meu exemplo e estender a designa ção sexual também para aquelas práticas da primeira infância que buscam o prazer do órgão Permitamme agora complementar minha justifica tiva com duas outras ponderações Como os senhores sabem chamamos de sexuais as atividades prazerosas dúbias e indeterminadas da primeiríssima infância pois a elas nos conduz a análise que partindo dos sintomas passa por material de caráter inequivocamente sexual Nem por isso é forçoso admito que essas práticas se jam sexuais Mas considerem o senhores um caso aná logo Imaginem que não tivéssemos como observar o desenvolvimento de duas plantas dicotiledôneas a macieira e a fava a partir de suas sementes mas que em ambos os casos nos fosse possível reconstruir esse desenvolvimento de trás para a frente do espécime já constituído até o primeiro germe dotado de dois coti lédones Os dois cotilédones parecem não exibir dife rença nenhuma são ambos do mesmíssimo tipo Devo inferir daí que eles são efetivamente idênticos e que a diferença entre maçã e fava só aparece mais tarde nas plantas Ou do ponto de vista biológico será mais cor reto dizer que essa diferença já está presente no germe embora eu não possa identificála nos cotilédones Pois é isso que fazemos ao chamar de sexual o prazer que se apresenta nas práticas do lactente Se todo e qualquer 431 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES prazer do órgão pode ser chamado de sexual ou se ao lado do sexual há outro prazer que não merece esse epíteto isso eu não posso discutir aqui Sei muito pouco acerca do prazer do órgão e de seus requisitos e dado o caráter retrocedente da análise não posso me admirar se no final deparar com fatores que não é possível de terminar por agora E mais Ainda que os senhores possam me conven cer de que o melhor é avaliar as práticas dos lactentes como não sexuais muito pouco terão contribuído para aquilo que desejam afirmar ou seja a pureza sexual da criança E isso porque já a partir do terceiro ano de idade a vida sexual da criança subtraise a todas essas dúvidas Por volta dessa época os genitais começam a se fazer notar seguindose um período talvez regular de masturbação infantil isto é de satisfação genital As manifestações psíquicas e sociais da vida sexual não têm mais por que passar despercebidas A escolha do objeto a ternura por pessoas específicas a decisão por um dos dois sexos o ciúme tudo isso pode ser constatado pela observação imparcial e já o foi independentemente da psicanálise e em época anterior a ela além de poder constatálo todo e qualquer observador disposto a vê lo Os senhores objetarão que não puseram em dúvida o despertar precoce da afeição e sim seu caráter se xual Esconder esse caráter é algo que as crianças de três a oito anos já aprenderam a fazer mas se os senho res prestarem atenção poderão coletar provas suficien tes das intenções sensuais dessa afeição e o que lhes escapar as explorações analíticas poderão prover sem 432 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS esforço e em abundância As metas sexuais desse perío do da vida estão intimamente ligadas à pesquisa sexual de então da qual lhes dei algumas amostras O caráter perverso de algumas dessas metas vinculase é claro à imaturidade da constituição da criança que ainda não descobriu a cópula como meta Do sexto ao oitavo ano de vida em diante aproxi madamente notase uma paralisação e um recuo no desenvolvimento sexual fenômeno que nos casos cul turalmente mais favoráveis ganha o nome de período de latência O período de latência pode também não ocorrer não é imperativo que ele acarrete uma total interrupção da atividade e dos interesses sexuais A maioria das expe riências e dos impulsos psíquicos vividos anteriormente à instauração desse período de latência mergulha então na amnésia infantil o já mencionado esquecimento que recobre nossos primeiros anos de vida e os torna alheios a nós Toda psicanálise propõese como tarefa trazer de volta à memória esse período esquecido da vida É dificil escapar à suposição de que o início de nossa vida sexual nele contido fornece o motivo para esse esquecimento e este é portanto resultado da repressão A partir do terceiro ano de vida a vida sexual da criança apresenta muitas semelhanças com a do adulto Ela se diferencia desta última como já sabemos pela falta de uma organização fixa sob o primado dos geni tais pelos inevitáveis traços de perversão e natural mente pela intensidade bem menor de toda a tendência Mas aquelas que são para a teoria as fases mais interes santes do desenvolvimento sexual ou do desenvolvi 433 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES menta da libido como preferimos dizer são as que antecedem esse momento Esse desenvolvimento se dá de forma tão rápida que a observação direta provavel mente jamais conseguiria reter suas imagens fugidias Apenas com a ajuda da investigação psicanalítica das neuroses tornouse possível discernir fases ainda mais remotas do desenvolvimento da libido Sem dúvida elas não são mais que construções mas ao lidar com a prática da psicanálise os senhores descobrirão que se trata de construções necessárias e proveitosas Logo compreenderão como sucede que nisso a patologia che gue a nos revelar condições que nos passariam desper cebidas num objeto normal Podemos agora portanto indicar como se confi gura a vida sexual da criança antes do estabelecimento do primado dos genitais primado este cuja preparação acontece na primeira época da infância anteriormente ao período de latência e que se organiza continuamente a partir da puberdade Nesses primeiros tempos vigora uma espécie de organização frouxa a que chamaremos prégenital Em primeiro plano nessa fase não se en contram os instintos parciais genitais e sim os sádicos e os anais A oposição entre masculino e fominino ainda não desempenha aí papel nenhum seu lugar é ocupado pela oposição entre ativo e passivo que se pode caracte rizar como precursora da polaridade sexual e que mais tarde se funde a ela Examinada do ponto de vista da fase genital o que nos parece masculino nesse momen to revelase expressão de um impulso de apoderamento que facilmente descamba para a crueldade Tendências 434 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS de meta passiva ligamse à zona erógena do ânus bas tante importante nessa época Os instintos de ver e de saber atuam fortemente o órgão genital na verdade só toma parte na vida sexual em seu papel de órgão excre tor da urina Aos instintos parciais dessa fase não fal tam objetos mas eles não convergem necessariamente para um único objeto A organização sádicoanal é o estágio preliminar mais próximo da fase do primado do genital Um estudo mais aprofundado mostra quanto dela se preserva na configuração posterior e definitiva e de que maneiras seus instintos parciais se veem obri gados a incorporarse à nova organização genital Um olhar além dessa fase sádicoanal do desenvolvimento da libido nos fornece a visão de um estágio organiza tório ainda mais primitivo no qual o papel principal é desempenhado pela zona erógena da boca Os senhores podem bem imaginar que a ela pertence a prática se xual do sugar e podem assim admirar a capacidade de compreensão dos antigos egípcios cuja arte representa a criança com o dedo na boca como faz também com o deus Hórus Há pouco tempo Abraham informou so bre os traços que essa fase oral primitiva deixa na vida sexual posterior Meus senhores posso imaginar que esta exposição sobre as organizações sexuais os tenha sobrecarregado mais do que instruído Talvez eu tenha novamente me excedido nos detalhes Mas sejam pacientes o que ouvi ram lhes será mais valioso em sua aplicação futura Por enquanto atenhamse à noção de que a vida sexual ou como dizemos a função libidinal não surge como 435 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES algo pronto e acabado e tampouco segue desenvolvendo se da mesma forma como se apresenta mas passa por uma série de fases sucessivas que não se assemelham umas às outras cumprindo assim um desenvolvimento várias vezes repetido como o da lagarta que se trans forma em borboleta Um ponto decisivo desse desenvol vimento é a subordinação de todos os instintos sexuais parciais ao primado dos genitais e com isso a sujeição da sexualidade à função reprodutora Antes o que se tem é uma vida sexual confusa por assim dizer caracteri zada por uma atividade autônoma dos instintos parciais em busca do prazer do órgão Essa anarquia é atenuada pelas organizações prégenitais nascentes em primei ro lugar a fase sádicoanal e antes dela a oral talvez a mais primitiva de todas Além disso verificamse os di versos processos de que ainda possuímos conhecimento inexato e que conduzem de um estágio organizacional ao seguinte mais elevado Em uma próxima oportunidade descobriremos que significado tem para a compreensão das neuroses o fato de a libido percorrer um caminho tão longo e cheio de interrupções Hoje trataremos ainda de outra faceta desse desen volvimento qual seja a relação dos instintos sexuais parciais com o objeto Ou melhor lançaremos um rápi do olhar panorâmico sobre esse desenvolvimento para então nos determos um pouco mais em uma consequên cia tardia dele Alguns componentes do instinto sexual possuem portanto seu objeto desde o início ao qual se aferram esse é o caso do impulso de apoderamento sadismo e dos instintos de ver e de saber Outros ela 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS ramente vinculados a determinadas zonas erógenas do corpo só de início têm um objeto enquanto se apoiam nas funções não sexuais objeto que abandonam ao se desprender dessas funções Assim o primeiro objeto do componente oral do instinto sexual é o seio materno que satisfaz a necessidade de alimentação do lactente No ato de sugar o componente erótico que é igualmen te satisfeito se faz autônomo abandona o objeto exterior e o substitui por um local do próprio corpo O instinto oral se torna autoerótico como autoeróticos são desde o início os instintos anais e os demais instintos eróge nos O desenvolvimento ulterior possui dois objetivos para dizêlo da forma mais concisa possível em primei ro lugar abandonar o autoerotismo trocar novamente o objeto do próprio corpo por um objeto exterior em segundo lugar unificar os diversos objetos dos instin tos substituindoos por um único objeto Isso é claro só é possível se esse objeto único for um corpo em sua totalidade semelhante ao corpo do próprio indivíduo Além disso esse desenvolvimento não pode se dar sem que certo número de impulsos instintuais autoeróticos sejam considerados inúteis e portanto abandonados Os processos envolvidos na busca do objeto são bas tante complexos e até agora não tiveram uma exposição abrangente Enfatizemos para nossos propósitos que caso esse processo alcance algum tipo de desfecho nos anos da infância que precedem o período de latência o objeto encontrado se revelará quase idêntico ao primei ro objeto do instinto do prazer oral obtido apoiandose no instinto de nutrição Ele será quando não o seio ma 437 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES terno a própria mãe Dizemos que a mãe é o primeiro objeto de amor Falamos em amor quando trazemos para o primeiro plano o lado psíquico das tendências sexuais rechaçando ou esquecendo momentaneamente as de mandas instintuais subjacentes as físicas ou sensuais Por volta da mesma época em que a mãe se torna objeto de amor já teve início na criança o trabalho psíquico da repressão que lhe oculta o conhecimento de uma par te de suas metas sexuais A essa escolha da mãe como objeto de amor vinculase então tudo aquilo que sob a designação complexo de Édipo acabou adquirindo tanta importância na explicação psicanalítica das neuro ses e possivelmente granjeou para a psicanálise parte significativa da resistência contra ela Ouçam um pequeno episódio acontecido no curso da presente guerra Um dos mais aplicados discípulos da psicanálise encontrase no fronte alemão em alguma parte da Polônia na condição de médico Ali ele des perta a atenção dos colegas pelo fato de ocasionalmen te lograr exercer inesperada influência sobre um doen te Perguntado a esse respeito ele confessa valerse dos meios da psicanálise e declarase disposto a compar tilhar seu conhecimento com os colegas Toda noite então os médicos da corporação colegas e superiores passam a se reunir para ouvir os ensinamentos secretos da análise Por um tempo tudo vai bem mas depois de o palestrante falar a seus ouvintes sobre o complexo de Édipo um superior se levanta e declara não acreditar naquilo era uma poucavergonha dizer coisas daquela natureza a homens corajosos que lutam pela pátria e a 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS pais de família razão pela qual proibia a continuidade das palestras Foi de fato o fim delas O analista pediu para ser transferido para outro local do fronte Creio porém que as coisas vão mal quando a vitória alemã re quer tal organização da ciência e que a ciência alemã não suportará bem uma organização desse tipo Os senhores certamente estarão ansiosos de saber o que contém esse terrível complexo de Édipo O nome já lhes diz Todos conhecem a lenda grega do rei Édipo fadado a matar o pai e se casar com a mãe ele faz de tudo para escapar à sentença do oráculo e por fim pune a si mesmo com a cegueira ao descobrir que de fato cometeu ambos aqueles crimes sem saber Espero que muitos dos senhores tenham experimentado pessoal mente o efeito comovente da tragédia na qual Sófocles trata desse assunto A obra do dramaturgo ateniense mostra o desvendamento paulatino do ato perpetrado por Édipo já há muito tempo e ela o faz por meio de uma investigação postergada com arte e sempre reavi vada por novos indícios Nesse aspecto ela possui certa semelhança com o curso de uma psicanálise No trans correr do diálogo ocorre de a obnubilada mãeesposa Jocasta se opor ao prosseguimento da investigação Ela invoca o fato de em sonho muitos homens dor mirem com a própria mãe mas acrescenta que sonhos merecem pouca atenção Nós porém não prestamos pouca atenção aos sonhos sobretudo a sonhos típicos aqueles que muitos têm nem duvidamos que o sonho mencionado por Jocasta esteja em íntima relação com o conteúdo estranho e assustador da lenda 439 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES É de admirar que a tragédia de Sófocles não provo que no ouvinte indignada rejeição semelhante àquela de nosso simplório médico militar e bem mais justifica da Isso porque no fundo tratase de uma peça imoral que anula a responsabilidade ética do homem mostra poderes divinos como mandantes de um crime e apre senta a impotência dos impulsos morais humanos que se insurgem contra esse crime Seria fácil acreditar que o conteúdo da lenda pretende ser uma acusação contra os deuses e o destino e nas mãos de Eurípides crítico e incompatibilizado com os deuses ele provavelmente teria resultado em tal incriminação Mas semelhante uso é impensável tratandose de um crente como Sófocles Uma pia sutileza o ajuda a vencer a dificuldade curvar se à vontade dos deuses ainda que eles ordenem um ato criminoso seria a moralidade suprema Não posso crer que essa moral esteja entre os pontos fortes da tragédia de Sófocles mas ela não tem importância para o efeito da obra O espectador não reage a ela e sim ao conteúdo e sentido oculto da lenda Ele reage como se por meio da autoanálise tivesse reconhecido em si próprio o com plexo de Édipo e desmascarado a vontade divina e o orá culo como disfarces enaltecidos de seu próprio incons ciente como se fosse obrigado a recordar o desejo de eliminar o pai e em lugar dele tomar a mãe como espo sa e se horrorizar com esse desejo E compreende a voz do poeta como se lhe dissesse Tu te revoltas em vão contra a tua responsabilidade e proclamas o que fizeste contra tais intenções criminosas Mas és sim culpado pois não foste capaz de aniquilálos eles permanecem 440 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS ainda inconscientes dentro de ti E aí está a verdade psicológica Ainda que o homem reprima seus impulsos maus banindoos para o inconsciente e queira então dizer que não é responsável por eles ele é obrigado a sentir essa responsabilidade na forma de um sentimento de culpa cujo fundamento desconhece É indubitável que podemos ver no complexo de Édi po uma das fontes mais importantes da consciência cul pada que tanto atormenta os neuróticos E digo mais em um estudo sobre os primórdios da religião e da mo ralidade humanas que publiquei em 1913 com o título Totem e tabu aventei a hipótese de que talvez a huma nidade como um todo tenha adquirido sua consciência de culpa fonte última da religião e da moralidade no princípio de sua história com o complexo de Édipo Gostaria de dizer mais a esse respeito mas é melhor que não o faça Uma vez abordado é difícil interromper esse tema e precisamos retornar à psicologia individual O que portanto a observação direta da criança na época da escolha do objeto anteriormente ao período de latência leva a perceber do complexo de Édipo Bem vêse com facilidade que o garotinho quer a mãe apenas para si que sente a presença paterna como perturba dora que se irrita quando o pai se permite demonstrar ternura a ela e que manifesta satisfação quando ele está viajando ou ausente Com frequência o menino dá ex pressão verbal a seus sentimentos e promete à mãe que vai se casar com ela Poderseia argumentar que isso é pouco em comparação com os atos de Édipo mas na verdade é o bastante e de forma embrionária a mes 441 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES ma coisa Muitas vezes a observação é obscurecida pelo fato de a mesma criança em outras ocasiões de monstrar também grande ternura para com o pai mas tais posturas emocionais contraditórias ou melhor dizendo ambivalentes que em um adulto conduzi riam a um conflito convivem muito bem na criança por um longo período de tempo assim como mais tarde encontram lugar permanente lado a lado no incons ciente Outra objeção seria a de que o comportamen to do menino decorreria de motivações egoístas e não constituiria portanto justificativa para a postulação de um complexo erótico A mãe cuida de todas as necessi dades do filho a quem por isso mesmo interessa que ela não cuide de mais ninguém Também isso está cor reto mas logo fica claro que nessa situação assim como em situações semelhantes o interesse egoísta oferece apenas o apoio ao qual se vincula a aspiração erótica Se o menino exibe a mais desvelada curiosidade sexual em relação à mãe se à noite exige dormir do lado dela se insiste em estar presente quando ela faz sua toalete ou mesmo realiza tentativas de sedução como tantas vezes a mãe pode constatar e relatar com um sorriso então a natureza erótica do vínculo com a mãe está estabelecida acima de qualquer dúvida Não se pode esquecer que a mãe dedica os mesmos cuidados à filha sem contudo produzir nela o mesmo efeito e que o pai com bastante frequência compete com a mãe nos cuidados que dedi ca ao menino sem no entanto lograr tornarse para ele tão importante como a mãe Em suma nenhuma crítica pode eliminar desse quadro o fator da preferência se 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÚES SEXUAIS xual Do ponto de vista do interesse egoísta não seria inteligente da parte do menino preferir ter a seu serviço apenas uma pessoa em vez de duas Como os senhores podem perceber descrevi ape nas a relação do menino com o pai e a mãe No caso da menina essa relação é muito parecida ressalvadas as necessárias diferenças O apego terno ao pai a necessi dade de afastar a mãe como supérflua e tomar seu lugar certo coquetismo a operar já com os meios da futura feminilidade tudo isso reveste a menina de uma graça que nos faz esquecer a seriedade e as eventuais graves consequências por trás dessa situação infantil Não nos esqueçamos de acrescentar que com frequência são os próprios pais que exercem influência decisiva no des pertar da postura edipiana na medida em que também eles seguem o que lhes dita a atração sexual sendo di versos os filhos a ternura paterna privilegia claramente a filha ao passo que a materna dá preferência ao me nino Contudo a natureza espontânea do complexo de Édipo infantil não se deixa abalar seriamente nem mesmo por esse fator O complexo de Édipo expandese para um complexo familiar quando outras crianças se juntam a esse quadro Apoiandose outra vez no senti mento egoísta do dano sofrido ele faz com que novos irmãos sejam recebidos com antipatia e em desejo eli minados sem o menor escrúpulo Em geral as crianças dão expressão verbal antes a esses sentimentos de ódio do que àqueles originados pelo complexo envolvendo os pais Se um tal desejo se realiza e a morte logo leva o irmão indesejado a análise posterior pode nos mostrar 443 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES a grande importância que essa morte vivida teve para a criança para o que nem é necessário que tal experiên cia tenha se fixado em sua memória A criança relegada a segundo plano e quase isolada pela mãe quando do nascimento de outro filho dificilmente lhe perdoa esse rebaixamento instalamse nela sentimentos que em adultos caracterizaríamos como de grande amargura os quais acabam por se tornar a base para um duradou ro estranhamento Já mencionamos que a pesquisa se xual com todas as suas consequências costuma se rela cionar a essa vivência da infância Com o crescimento desses irmãos a postura em relação a eles sofre as mais significativas alterações O garoto pode transformar a irmã em objeto de amor em substituição à mãe infiel e entre diversos irmãos a cortejar a irmãzinha mais nova estabelecese já na infância uma rivalidade hostil situa ção tão importante em sua vida posterior A menina por sua vez encontra no irmão mais velho um substitu to para o pai que já não lhe dedica o carinho de antes ou adota uma irmã mais nova como substituta para o filho que em vão desejou ter com o pai Coisas assim e muitas outras de natureza semelhan te é o que lhes revela a observação direta das crianças e a consideração de suas lembranças infantis preserva das com clareza e não influenciadas pela análise Disso tudo os senhores tirarão entre outras a conclusão de que a posição de uma criança dentro de uma sequência de filhos é fator extremamente importante na conforma ção de sua vida posterior fator este que deve ser con siderado em toda e qualquer história de vida E mais 444 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS importante ainda diante desses esclarecimentos cuja obtenção não demanda nenhum esforço os senhores não poderão se lembrar senão com um sorriso das ex plicações da ciência para a proibição do incesto Quanta invencionice não contêm O convívio desde a infância seria o responsável por desviar a propensão sexual de um membro de uma família por outro do sexo oposto ou afirmam elas ainda uma tendência biológica a evitar o cruzamento consanguíneo teria encontrado na aver são ao incesto sua representação psíquica Esquecemse essas explicações de que não precisaríamos de nenhuma proibição inexorável legal ou moral caso dispusésse mos de fato de barreiras naturais e confiáveis à tenta ção do incesto A verdade está no contrário A primeira escolha objetai do ser humano é em regra incestuo sa voltandose no caso do homem para mãe e irmã e a mais severa proibição é necessária para impedir que essa propensão infantil atuante se torne realidade Nos povos primitivos ainda em existência nos dias de hoje os povos selvagens as proibições do incesto são ainda mais rigorosas que as nossas em um trabalho brilhan te Theodor Reik mostrou há pouco tempo que o sig nificado daqueles ritos da puberdade dos selvagens que representam um renascimento é a busca da eliminação da ligação incestuosa do menino com a mãe e de sua reconciliação com o pai A mitologia ensina que o incesto supostamente tão execrado pelos homens é direito concedido sem qual quer hesitação aos deuses Por meio dessas histórias da Antiguidade os senhores ficam sabendo que o casa 445 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES menta incestuoso com a irmã era preceito sagrado para a pessoa do soberano como entre os antigos faraós ou os incas no Peru Tratase portanto de um privilégio negado à população comum O incesto com a mãe é um dos crimes de Édipo o parricídio é o outro Menciono apenas de passagem que esses são também os dois grandes crimes condenados pela primeira instituição sociorreligiosa conhecida pe los seres humanos o totemismo Passemos agora da ob servação direta da criança para a investigação analítica do adulto acometido pela neurose Que contribuição dá a análise para o maior conhecimento do complexo de Édipo Podese dizêlo de forma breve ela o mostra como ele é descrito na lenda mostra que todo neurótico foi ele próprio um Édipo ou que o que dá no mes mo em sua reação ao complexo ele se transformou em um Hamlet Naturalmente a apresentação analítica do complexo de Édipo é uma amplificação e uma versão mais grosseira do esboço infantil O ódio ao pai o de sejo de morte em relação a ele já não são timidamente insinuados a ternura para com a mãe admite o obje tivo de possuíla como mulher Podemos de fato atri buir esses impulsos afetivos claros e extremos àqueles anos tenros da infância ou será que a análise nos en gana introduzindo um novo fator Não é difícil iden tificar o fator novo Toda vez que alguém relata algo pertencente ao passado mesmo que se trate de um his toriador precisamos levar em consideração aquilo que inadvertidamente ele retirou do presente ou de alguma época intermediária e transferiu para aquele passado 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES dedicar à grande tarefa de apartarse dos pais somente depois de realizada essa tarefa poderá ele deixar de ser criança para tornarse membro da comunidade social Para o filho isso consiste em desprender da mãe seus desejos libidinosos a fim de empregálos na escolha de um objeto real e exterior e em reconciliarse com o pai caso lhe tenha permanecido hostil ou em se libertar da pressão exercida por ele caso o resultado da rebelião infantil contra ele tenha sido a submissão Essas tare fas precisam ser cumpridas por todos e digno de nota é quão raramente elas são realizadas de forma exitosa e ideal ou seja corretamente tanto do ponto de vista psicológico como do social Fato é que os neuróticos ja mais logram cumprilas o filho permanece a vida toda curvado à autoridade paterna e não consegue transferir sua libido para um objeto sexual exterior Modificada a relação a mesma sorte pode ser também a da filha Nesse sentido o complexo de Édipo é considerado com razão o núcleo das neuroses Os senhores podem bem imaginar como passei su perficialmente por uma série de importantes considera ções tanto práticas como teóricas vinculadas ao com plexo de Édipo Tampouco abordarei suas variações e sua possível reversão De suas repercussões mais distan tes quero apenas mencionar que o complexo de Édipo se revelou altamente determinante na produção poética Em um livro de muitos méritos Otto Rank mostrou que dramaturgos de todas as épocas extraíram a matéria para seus dramas sobretudo dos complexos de Édipo e do in cesto assim como de suas variações e dissimulações 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS Tampouco posso deixar de mencionar que em época muito anterior à psicanálise os dois desejos criminosos presentes no complexo de Édipo já foram reconhecidos como os veros representantes da vida instintual desen freada Entre os escritos do enciclopedista Diderot encontrase um famoso diálogo Le neveu de Rameau O sobrinho de Rameau traduzido para o alemão por nin guém menos que Goethe Nele os senhores podem ler esta frase notável Si le petit sauvage était abandonné à luimême quil conservât toute son imbécillité et quil réunít au peu de raison de lenfimt au berceau la violence des pas sions de lhomme de trente ans il tordrait le co à son pere et coucherait aYec sa mere Se o pequeno selvagem fosse abandonado a si mesmo conservando toda a sua imbe cilidade e juntando à pouca razão da criança de berço a violência das paixões de um homem de trinta anos ele torceria o pescoço do pai e dormiria com a mãe Não posso todavia deixar de considerar outra coi sa Não será em vão que a mãeesposa de Édipo nos re cordou os sonhos Os senhores ainda se lembram do re sultado de nossas análises de que os desejos formadores dos sonhos são com frequência de natureza perversa e incestuosa ou revelam hostilidade insuspeitada con tra parentes próximos e queridos Não esclarecemos naquele momento de onde se originam esses impul sos maus Agora os senhores mesmos podem dizêlo São alocações da libido e investimentos de objeto que remontam à primeira infância há muito abandonados na vida consciente mas que se mostram ainda presen tes durante a noite e em certo sentido atuantes Como 449 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES porém todas as pessoas e não apenas os neuróticos têm sonhos perversos incestuosos e assassinos é lícito concluirmos que também aqueles que são hoje normais cumpriram um desenvolvimento que passou pelas per versões e pelos investimentos de objeto do complexo de Édipo que esse é pois o caminho do desenvolvimento normal e que os neuróticos apenas exibem em versão ampliada e mais grosseira aquilo que a análise dos so nhos revela também nas pessoas saudáveis E esse é um dos motivos pelos quais fizemos o estudo dos sonhos preceder o dos sintomas neuróticos 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA Senhoras e senhores Vimos que a função da libido per corre extenso desenvolvimento até poder entrar a servi ço da reprodução no modo que é chamado normal Eu gostaria de exporlhes agora o significado que tem esse fato na causação das neuroses Creio estarmos de acordo com as doutrinas da pato logia geral ao supormos que tal desenvolvimento traz consigo dois perigos primeiro o da inibição e em se gundo lugar o da regressão Ou seja considerandose a tendência geral à variação dos processos biológicos há de acontecer de nem todas as fases preparatórias corre rem igualmente bem e serem superadas completamen te partes da função ficarão retidas de forma duradoura 40 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA nesses estágios iniciais e o quadro geral do desenvolvi mento sofrerá certa medida de inibição Procuremos em outras áreas analogias para esses processos Quando um povo inteiro abandona sua terra em busca de nova morada como muitas vezes aconte ceu em períodos anteriores da história da humanida de ele certamente não chega completo ao novo lugar Desconsiderandose perdas outras há de ter acontecido com regularidade de pequenos agrupamentos ou as sociações de migrantes se haverem detido ao longo do caminho estabelecendose nessas paradas enquanto a grande massa restante seguia em frente Ou valendo me de uma comparação mais próxima os senhores sabem que nos mamíferos superiores as glândulas se xuais masculinas originalmente localizadas no fundo da cavidade abdominal iniciam uma migração em cer to momento de sua vida intrauterina que as situa quase diretamente sob a pele da extremidade da pélvis Como consequência dessa migração descobrimos em certo número de indivíduos machos que desse par de órgãos um deles permaneceu na cavidade pélvica ou encontrou abrigo permanente no chamado canal inguinal pelo qual ambos tiveram de passar em sua migração ou então que esse canal permaneceu aberto quando o normal é que ele se feche uma vez concluída a mudança de local das glândulas sexuais Quando ainda como jovem estudante fiz meu primeiro trabalho científico sob a orientação de von Brücke ocupeime da origem das raízes nervosas pos teriores da medula espinhal de um pequeno peixe de 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES conformação ainda bastante arcaica Descobri que as fibras nervosas daquelas raízes provinham de grandes células situadas no corno posterior da matéria cinzen ta o que já não ocorre em outros vertebrados Logo depois porém descobri que exteriormente à matéria cinzenta tais células nervosas distribuíamse por todo o percurso até o chamado gânglio espinhal da raiz pos terior o que me levou à conclusão de que as células dessas massas de gânglios haviam migrado da medula espinhal pelas raízes dos nervos Isso aliás é o que nos mostra a história evolutiva naquele pequeno peixe po rém todo o percurso migratório podia ser reconhecido por meio das células que haviam ficado para trás Se os senhores se aprofundarem nessas comparações não te rão dificuldade para identificar seus pontos fracos Por isso melhor é fazermos uma afirmação direta julgamos possível que certas porções de toda e qualquer tendên cia sexual tenham ficado pelo caminho permanecendo em estágios anteriores de desenvolvimento ainda que outras porções possam ter alcançado sua meta final Os senhores veem que imaginamos cada uma dessas ten dências como um fluxo contínuo que teve início no princípio da vida e que nós artificialmente por assim dizer decompomos em fases separadas e subsequentes A impressão que os senhores têm de que essas noções necessitariam de uma melhor clarificação é correta mas semelhante tentativa nos desviaria demasiado de nosso caminho Estabeleçamos pois que tal permanência de uma tendência parcial em um estágio anterior é o que chamamos de fixação do instinto cação O segundo perigo de um desenvolvimento por estágios está no fato de também as porções que lograram avançar poderem facilmente em um movimento retrógrado retornar a um dos estágios anteriores o que chamamos de regressão A tendência se verá levada a essa regressão quando o exercício de sua função ou seja o alcance de sua meta de satisfação depara com fortes impedimentos externos na sua forma posterior ou mais desenvolvida É natural supormos que fixação e regressão não são independentes uma da outra Quanto mais fortes as fixações no caminho do desenvolvimento tanto mais a função evitará as dificuldades externas mediante regressão a essas fixações e tanto menos capaz de resistência se revelará a função desenvolvida diante de impedimentos externos a barrarlhe o caminho Considerem que se um povo em movimento deixa grandes divisões pelo caminho ao longo das estações de sua migração será natural que aqueles que seguiram adiante retornem a tais estações caso sejam derrotados ou deparem com um inimigo demasiado forte o perigo da derrota será porém tanto maior quanto maior o número daqueles deixados para trás no curso da migração É importante para o entendimento das neuroses que os senhores tenham sempre em vista essa relação entre fixação e regressão Isso lhes dará um ponto de apoio seguro nas questões relativas à causação das neuroses à sua etiologia que logo abordaremos Antes porém detenhamonos um pouco mais na regressão Em consonância com aquilo que os senhores aprenderam acerca do desenvolvimento da função da li 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES bido é lícito que esperem encontrar dois tipos de regres são o retorno àqueles primeiros objetos investidos de li bido e sabidamente de natureza incestuosa e o retorno de toda a organização sexual a estágios anteriores Esses dois tipos ocorrem nas neuroses de transferência e desempe nham papel importante em seu mecanismo Em especial o retorno aos primeiros objetos incestuosos da libido é um traço que nos neuróticos se repete com exaustiva regula ridade Muito mais se poderia dizer acerca das regressões da libido se levássemos em consideração outro grupo de neuroses as chamadas neuroses narcisistas o que no momento não é nossa intenção Essas afecções no entanto nos dão informações sobre outros processos de desenvolvimento da função da libido ainda não men cionados aqui e nos mostram novos tipos de regressão Creio porém que devo agora antes de mais nada ad vertir os senhores para que não confundam regressão com repressão cabendome pois ajudálos no esclarecimento das relações existentes entre esses dois processos A re pressão como os senhores se lembram é aquele proces so pelo qual um ato apto a se tornar consciente que pertence ao sistema Pcs é tornado inconsciente ou seja é empurrado de volta ao sistema Ics Também cha mamos de repressão o que ocorre quando o ato psíquico inconsciente nem sequer é admitido no vizinho sistema préconsciente e sim rechaçado no limiar deste pela cen sura O conceito da repressão não guarda portanto ne nhuma relação com a sexualidade guardem bem isso por favor Ele designa um processo puramente psicológi co mais bem caracterizado se o chamarmos de topológico 454 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA O que queremos dizer com isso é que está vinculado às regiões psíquicas que supomos ou se dispensarmos essa tosca noção auxiliar à construção do aparelho psíquico a partir de sistemas psíquicos separados Pela via da comparação proposta damonos conta de que a palavra regressão não foi até aqui utilizada em seu significado geral e sim numa acepção bastante especial Se os senhores atribuírem a ela seu significado mais geral o do retorno de um estágio superior a ou tro inferior do desenvolvimento também a repres são estará subordinada a ela uma vez que a repressão pode ser igualmente descrita como retorno a um está gio anterior e mais profundo do desenvolvimento de um ato psíquico Para nós todavia não importa esse movimento para trás uma vez que chamamos repressão também no sentido dznâmico quando um ato psíquico é retido no estágio mais baixo do inconsciente Repressão é portanto um conceito topológicodinâmico ao passo que regressão é puramente descritivo O que porém até o momento chamamos de regressão e relacionamos à fixação diz respeito apenas ao retorno da libido a esta ções anteriores de seu desenvolvimento algo essencial mente diferente e independente do de repressão Tam pouco podemos caracterizar a regressão da libido como um processo puramente psíquico e não sabemos que localização atribuir a ela no aparelho psíquico Ainda que ela exerça a mais poderosa influência na vida psí quica seu fator mais saliente é o orgânico Discussões como essas meus senhores devem soar um tanto áridas Voltemonos para a clínica a fim de 455 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES encontrar usos mais expressivos para elas Como sa bem a histeria e a neurose obsessiva são os dois repre sentantes principais do grupo das neuroses de transfe rência Embora a histeria apresente uma regressão da libido aos objetos sexuais primários e incestuosos e o faça com grande regularidade nela não há regressão a um estágio anterior da organização sexual Em com pensação cabe à repressão o papel principal no meca nismo da histeria Se me for permitido completar com uma construção teórica o nosso atual conhecimento seguro sobre essa neurose eu descreveria a questão da seguinte forma a unificação dos instintos parciais sob o primado dos genitais se completou mas seus resultados deparam com a resistência do sistema préconsciente vinculado à consciência Assim a organização geni tal vale para o inconsciente mas não igualmente para o préconsciente e essa rejeição por parte do pré consciente produz um quadro que exibe certas seme lhanças com o estado anterior ao primado dos genitais Mas ele é algo inteiramente diferente afinal Das duas regressões da libido a que mais chama a atenção é a do retorno a uma fase anterior da organi zação sexual Como porém ela não ocorre na histeria e toda a nossa concepção das neuroses encontrase ainda em vasta medida sob a influência do estudo da histeria que precedeu os demais o significado da regressão da libido só se tornou claro para nós mui to depois do da repressão Estejamos preparados para o fato de que nossos pontos de vista experimentarão ain da outras ampliações e reavaliações quando pudermos 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA incluir em nossas considerações além da histeria e da neurose obsessiva as outras neuroses as narcisistas Na neurose obsessiva pelo contrário a regressão da libido ao estágio preliminar da organização sádicoanal é o que chama mais a atenção e o fato decisivo para o que os sintomas manifestam O impulso amoroso é obrigado então a mascararse de impulso sádico A ideia obsessiva eu gostaria de te matar nada mais sig nifica no fundo que eu gostaria de desfrutar do amor em ti se despojada de certos acréscimos que não são casuais mas imprescindíveis Considerem além disso que simultaneamente houve uma regressão objetai de forma que tais impulsos se dirigem apenas às pessoas que nos são próximas e queridas e poderão ter uma ideia do horror que essas ideias obsessivas despertam no doente assim como da estranheza com que surgem para a percepção consciente Mas também a repressão constitui parte significativa do mecanismo dessas neu roses o que porém não é fácil expor numa introdução breve como a nossa Regressão da libido sem repressão jamais resultaria em neurose e sim em perversão Nisso notam os senhores que a repressão é o processo mais peculiar à neurose e o que melhor a caracteriza Talvez eu venha a ter oportunidade de lhes dizer o que sabe mos sobre o mecanismo das perversões e todos pode rão ver então que também aí nada é tão simples como gostaríamos de construir Meus senhores penso que as explicações que acaba ram de ouvir acerca da fixação e da regressão lhes pa recerão mais aceitáveis se as tomarem como preparação 457 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES para o estudo da etiologia das neuroses A esse respeito fizlhes uma única afirmação a saber que as pessoas se tornam neuróticas quando privadas da possibilidade de satisfazer sua libido adoecem pois em virtude da frustração como me exprimi e que seus sintomas são os substitutos da satisfação frustrada É claro que isso não significa que toda frustração da satisfação li bidinal torna neurótico aquele que a sofre mas apenas que em todos os casos de neurose examinados o fator da frustração era demonstrável Portanto essa tese não é reversível Os senhores terão compreendido também que a afirmação acima não pretende desvendar todo o segredo da etiologia das neuroses mas apenas enfatizar uma precondição importante e indispensável É difícil saber se para dar prosseguimento à discus são dessa tese devemos nos voltar para a natureza da frustração ou para a singularidade daquele a quem ela atinge É muito raro que a frustração seja completa e absoluta para ter efeito patogênico é necessário que ela atinja aquele tipo único de satisfação que a pessoa deseja o único de que ela é capaz Em geral há mui tos caminhos que possibilitam suportar a privação da satisfação libidinosa sem que se adoeça por causa dela Acima de tudo conhecemos pessoas capazes de absor ver tal privação sem consequências danosas Elas não são felizes o anseio as atormenta mas não adoecem Além disso temos de levar em consideração que preci samente os impulsos sexuais apresentam extraordinária plasticidade se posso dizêlo dessa maneira Um pode substituir o outro ou assumir sua intensidade se a satis 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA fação de um deles é frustrada pela realidade a de outro pode proporcionar plena compensação Eles se relacio nam entre si como uma rede de canais intercomunican tes cheios de líquido e isso a despeito de sua submis são ao primado dos genitais o que não é tão fácil de conciliar numa representação Além disso os impulsos parciais da sexualidade assim como a tendência sexual que deles resulta exibem grande capacidade de mudar de objeto de substituir um objeto por outro ou seja trocálo por algum que seja mais facilmente alcançável Essas mobilidade e disposição de acolher um sucedâneo hão de contrariar poderosamente o efeito patogênico da frustração Entre esses processos que protegem contra o adoecimento em virtude da privação um em particular ganhou especial importância cultural Nele a aspiração sexual abre mão de sua meta voltada para o prazer par cial ou para o desejo de reprodução em favor de outra geneticamente relacionada com a anterior mas que já não pode ser chamada de sexual e sim de social Cha mamos a esse processo de sublimação submetendo nos à avaliação geral que situa metas sociais acima das sexuais fundamentalmente egoístas A sublimação é incidentalmente apenas um caso especial do apoio das tendências em outras não sexuais Ainda falaremos dela em outro contexto Os senhores terão a impressão de que graças a todos esses meios que possibilitam suportála a privação é re duzida à insignificância Mas não ela mantém seu poder patogênico Em geral os meios contrários não são su ficientes O montante de libido insatisfeita que os seres 459 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES humanos podem medianamente suportar é limitado A plasticidade ou livre mobilidade da libido não é plena mente conservada em todas as pessoas e a sublimação só consegue dar conta de determinada fração da libi do aparte o fato de muitas pessoas serem contempladas com uma capacidade apenas reduzida de sublimação A mais importante dessas limitações é evidentemente a da mobilidade da libido uma vez que ela torna a satisfação do indivíduo dependente da obtenção de um número bastante reduzido de metas e objetos Basta lembrar que um desenvolvimento incompleto da libido deixa para trás numerosas e eventualmente variadas fixações li bidinais em fases anteriores da organização e da busca objetai em sua maioria incapazes de real satisfação e os senhores reconhecerão na fixação libidinal o segundo fator poderoso a causar o adoecimento juntamente com a frustração De maneira abreviada e esquemática os senhores podem dizer que a fixação libidinal representa o fator interno predisponente e a frustração o fator aci dental externo na etiologia das neuroses Aproveito aqui a oportunidade para advertilos a não tomar partido em uma disputa inteiramente supér flua Na atividade científica é comum tomar uma parte da verdade situála no lugar do todo e em prol dessa parte combater o restante que não é menos verdadeiro Dessa maneira várias orientações já divergiram do mo vimento psicanalítico Uma delas reconhece apenas os instintos egoístas e renega os sexuais outra considera apenas a influência das tarefas reais da vida mas igno ra o passado do indivíduo e assim por diante Também 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA aqui há agora o ensejo para semelhante oposição e con trovérsia são as neuroses enfermidades exógenas ou en dógenas a consequência inevitável de certa constituição ou o produto de determinadas experiências vitais dano sas traumáticas Em particular são provocadas pela fixação libidinal e pelo restante da constituição sexual ou pela pressão da frustração A mim esse dilema não parece mais sábio do que outro que eu poderia lhes propor a criança é gerada pelo pai ou concebida pela mãe As duas condições são igualmente imprescindí veis responderão os senhores com razão Na causação da neurose a relação não é exatamente a mesma mas é muito parecida Tratandose do exame de suas causas os casos de adoecimento neurótico dispõemse numa série no interior da qual os dois fatores constituição sexual e vivências ou se quiserem fixação libidinal e frustração encontramse representados de maneira que crescendo a participação de um deles a do outro diminui Nas duas pontas dessa série estão os casos ex tremos dos quais os senhores podem afirmar com con vicção o que quer que tenham vivido e por mais que a vida tenha cuidado de poupálas essas pessoas teriam adoecido de qualquer maneira em virtude do desenvol vimento singular de sua libido Na outra ponta estão os casos em que os senhores teriam de julgar o contrário essas pessoas com certeza teriam escapado da doença se a vida não as tivesse posto nessa ou naquela situação Nos demais casos do interior da série um grau maior ou menor de prédisposição da constituição sexual se junta a um grau menor ou maior de exigências danosas 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES colocadas pela vida A constituição sexual dessas pes soas não as teria tornado neuróticas se elas não tivessem passado por tais vivências e essas não teriam produzido efeito traumático se as condições da libido tivessem sido outras Nessa série eu talvez possa atribuir peso algo maior para a prédisposição e seus fatores mas também essa atribuição depende de até onde os senhores estão inclinados a estender as fronteiras da doença nervosa Meus senhores eu lhes sugiro caracterizar séries as sim como séries complementares e quero já avisálos de que teremos oportunidade de estabelecer outras séries semelhantes A tenacidade com que a libido se prende a determi nadas orientações e objetos sua viscosidade por assim dizer parecenos um fator autônomo variável de in divíduo para indivíduo cujos determinantes desconhe cemos por completo e cujo significado para a etiologia das neuroses não mais subestimaremos Tampouco de vemos superestimar porém a intimidade dessa relação Uma viscosidade similar da libido ocorre também por razões desconhecidas e sob numerosas condições nas pessoas normais e é considerada fator determinante naqueles que em certo sentido são o oposto dos neuró ticos os pervertidos Já em época anterior à psicanálise sabiase Binet que muitas vezes na anamnese dos per vertidos é encontrada uma impressão bastante precoce de orientação instintual ou escolha objetai anormal à qual a libido da pessoa se prendeu por toda a vida Com frequência não se sabe o que tornou essa impressão ca paz de exercer atração tão intensa sobre a libido Vou 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA lhes relatar um caso desse tipo que eu mesmo observei Um homem para o qual hoje os genitais e demais atrati vos da mulher nada significam e a quem somente um pé calçado e de determinado formato é capaz de excitar de maneira irresistível lembrase de uma experiência vivi da aos seis anos de idade que foi decisiva para a fixação de sua libido Ele estava sentado em um banco ao lado da professora particular com a qual tinhas aulas de inglês Naquele dia a professora uma senhorita já de alguma idade seca nada bonita com olhos de um azulpálido e nariz arrebitado estava com o pé machucado razão pela qual o havia calçado com uma pantufa de veludo e agora com a perna esticada repousavao sobre uma poltrona a perna em si encontravase coberta com a máxima decência O pé magro e cheio de nervos como o da professora de outrora tornouse então depois de uma tímida tentativa de prática sexual normal na puber dade seu único objeto sexual seu arrebatamento não conhecia resistência se ao pé se associavam outras ca racterísticas reminiscentes da professora de inglês Essa fixação da libido no entanto não fez dele um neurótico e sim um pervertido um fetichista do pé como dize mos Os senhores podem ver portanto que embora a fixação desmesurada e ademais precoce da libido seja imprescindível para a causação da neurose sua esfera de atuação ultrapassa em muito o âmbito das neuroses Mas também essa condição por si só é tão pouco decisiva quanto a frustração mencionada anteriormente O problema da causação das neuroses parece com plicarse portanto De fato a investigação psicanalítica 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES nos dá a conhecer um outro fator não considerado em nossa série etiológica e que reconhecemos melhor na queles casos em que o bemestar do indivíduo é de súbi to perturbado pelo adoecimento neurótico Nessas pes soas encontramos regularmente sinais de uma disputa entre desejos ou como costumamos dizer de um con flito psíquico Uma parte da personalidade representa certos desejos enquanto a outra se volta contra eles e os rechaça Sem esse conflito não há neurose Isso não nos pareceria nada de especial Os senhores sabem que nossa vida psíquica é movida por incessantes conflitos que cabe a nós resolver Sem dúvida condições espe ciais precisam ser preenchidas para que tal conflito se torne patogênico Devemos perguntar que condições são essas entre quais poderes psíquicos se desenvolvem tais conflitos patogênicos que relação com os demais fatores causadores da neurose tem esse conflito Espero ser capaz de lhes dar respostas satisfatórias para essas perguntas ainda que elas sejam breves e es quemáticas O conflito é provocado pela frustração pois a libido privada de sua satisfação é levada a bus car outros objetos e caminhos Ele tem por condição o fato de esses caminhos e objetos suscitarem desgosto em uma parte da personalidade o que resulta em um veto que primeiramente impossibilita o novo modo de satisfação Parte daí o caminho que conduz à forma ção do sintoma que acompanharemos mais adiante As tendências libidinais repelidas conseguem se impor por caminhos indiretos mas não sem levar em conta a ob jeção através de certas desfigurações e atenuações Os 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA desvios tomados são os caminhos da formação do sin toma os sintomas são a satisfação nova ou substitutiva que se tornou necessária devido à frustração Podese também expressar adequadamente o sig nificado do conflito psíquico dizendo que à frustração exterior devese somar para que tenha efeito patogêni co a frustração interior Frustrações exterior e interior referemse naturalmente a diversos caminhos e objetos A frustração exterior retira uma possibilidade de satis fação a interior deseja excluir outra possibilidade e em torno desta irrompe então o conflito Dou preferência a essa forma de expressão porque ela tem um teor ocul to aponta para a probabilidade de que os impedimentos internos na préhistória do desenvolvimento humano tenham se originado de obstáculos externos reais Mas quais são os poderes de que parte a objeção à tendência libidinal qual o outro partido no conflito pa togênico Dizendoo de forma bastante genérica são as forças instintuais não sexuais Nós as reunimos sob a designação instintos do Eu A psicanálise das neu roses de transferência não nos dá acesso a eles que nos permita decompôlos no máximo deles tomamos co nhecimento em alguma medida através das resistên cias que se opõem à análise O conflito patogênico é pois um conflito entre os instintos do Eu e os instintos sexuais Em toda uma série de casos é como se ele pu desse também ser um conflito entre diversas tendências puramente sexuais mas isso no fundo significa a mes ma coisa uma vez que das duas tendências sexuais em conflito uma sempre é conforme ao Eu por assim di 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES zer enquanto a outra requer que ele se defenda Perma nece portanto um conflito entre o Eu e a sexualidade Meus senhores Com muita frequência quando a psicanálise afirmou que um evento psíquico era obra dos instintos sexuais foilhe apontado numa postura de irritada defesa que o ser humano não consiste apenas de sexo que na vida psíquica há também instintos e inte resses não sexuais que não é possível derivar tudo da sexualidade e assim por diante Ora é uma grande ale gria estar de acordo com os adversários ao menos uma vez A psicanálise jamais se esqueceu de que também existem forças instintuais não sexuais ela se construiu com base na clara separação entre os instintos sexuais e os instintos do Eu e ante todas as objeções sempre afirmou que as neuroses têm sua origem no conflito entre o Eu e a sexualidade e não que provêm da se xualidade Ao examinar o papel dos instintos sexuais na enfermidade e na vida ela não tem nenhum motivo concebível para negar a existência ou a importância dos instintos do Eu Apenas foi seu destino ocuparse prin cipalmente dos instintos sexuais porque as neuroses de transferência os tornaram mais rapidamente acessíveis à compreensão e porque lhe coube assim estudar o que outros haviam negligenciado Também não é correto afirmar que a psicanálise não se ocupou da parte não sexual da personalidade Preci samente a separação entre Eu e sexualidade nos permi tiu ver com particular clareza que também os instintos do Eu passam por um importante desenvolvimento que não é nem totalmente independente do da libido nem 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA desprovido de efeito contrário a ela Não obstante sa bemos muito menos acerca do desenvolvimento do Eu que sobre o da libido e isso porque apenas o estudo das neuroses narcisistas promete uma compreensão do edifício do Eu Mas já temos uma notável tentativa por parte de Ferenczi de reconstruir teoricamente os está gios de desenvolvimento do Eu e em pelo menos dois pontos logramos obter sólidas bases para a avaliação desse desenvolvimento Não acreditamos que os inte resses libidinais de uma pessoa estejam já de início em oposição a seus interesses de autoconservação a cada estágio isto sim o Eu se esforçará para permanecer em harmonia com sua organização sexual daquele tempo e enquadrarse nela É provável que a sucessão das di ferentes fases no desenvolvimento da libido obedeçam a um programa predeterminado mas não se pode des cartar a possibilidade de o Eu exercer influência nesse processo e seria lícito prever a existência de certo pa ralelismo de certa equivalência entre as fases de desen volvimento do Eu e da libido a perturbação de tal equi valência poderia mesmo constituir um fator patogênico Uma importante consideração para nós seria então examinar como se comporta o Eu quando sua libido dei xa para trás em algum ponto de seu desenvolvimento uma forte fixação Ele pode admitila e se tornar assim em medida correspondente perverso ou o que sig nifica a mesma coisa infantil Mas ele pode também se comportar de forma contrária a essa fixação libidinal caso em que o Eu sofre uma repressão onde a libido expe rimentou uma fixação 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Chegamos assim ao conhecimento de que o terceiro fator da etiologia das neuroses a propensão ao conflito depende do desenvolvimento tanto do Eu como da li bido Completouse portanto nossa percepção daquilo que causa as neuroses em primeiro lugar como precon dição mais geral a frustração em segundo a fixação da libido que a impele em determinadas direções e em terceiro a propensão ao conflito do desenvolvimento do Eu que rejeitou tais impulsos libidinais A questão não é pois tão confusa e impenetrável como deve ter pare cido aos senhores no curso de minhas explicações E no entanto logo veremos que o assunto não está encerrado Precisamos ainda acrescentar um elemento novo e dar prosseguimento à análise de outro já conhecido A fim de demonstrar aos senhores a influência do desenvolvimento do Eu na construção do conflito e portanto na causação das neuroses eu gostaria de lhes apresentar um exemplo que embora fictício em ne nhum ponto se distancia da realidade Apoiandome no título de uma farsa de Nestroy quero designálo como No térreo e no primeiro andar No térreo mora o ze lador no primeiro andar o dono do prédio um homem rico e nobre Os dois têm filhas mulheres e vamos supor que sem qualquer vigilância seja permitido à filha pe quena do dono da casa brincar com a filha do proletá rio Não é difícil pois acontecer de as brincadeiras das duas crianças assumirem um caráter impertinente ou seja sexual e que elas venham a brincar de papai e ma mãe observando uma à outra em seus afazeres íntimos e estimulandose nos genitais A filha do zelador que 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA a despeito dos cinco ou seis anos de idade já pôde ob servar algo da sexualidade dos adultos pode assumir o papel da sedutora Mesmo que não se estendam por mui to tempo essas experiências bastam para ativar certos impulsos sexuais nas duas crianças os quais ainda que as brincadeiras conjuntas não mais aconteçam seguem se manifestando ao longo de alguns anos por meio da masturbação Terminam aqui as vivências em comum o resultado final para as duas crianças será bem diferente A filha do zelador seguirá se masturbando até talvez sua primeira menstruação depois abandonando essa prática sem dificuldade poucos anos mais tarde encon trará um amor talvez tenha um filho seguirá este ou aquele caminho na vida talvez venha a se tornar uma artista famosa e por fim uma aristocrata É provável que seu destino venha a ser menos brilhante mas de todo modo ela viverá sua vida livre de neuroses sem que o exercício precoce da sexualidade venha a lhe cau sar dano nenhum Algo diferente se dará com a menina do dono do prédio Esta ainda criança será acometida do sentimento precoce de que fez alguma coisa errada e em pouco tempo talvez em seguida a uma dura batalha abandonará a satisfação propiciada pela masturbação carregará consigo porém um sentimento de opressão Quando nos anos da mocidade já estiver em condições de aprender algo sobre as relações sexuais humanas ela as repudiará com inexplicável repugnância e preferirá permanecer ignorante É provável que ela se veja agora sujeita a um renovado e incontrolável ímpeto masturba tório do qual não ousará queixarse Na época em que 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES como mulher deverá se interessar por um homem ir romperá nela a neurose que lhe privará do casamento e da esperança na vida Se mediante a análise adqui rirmos compreensão dessa neurose veremos que essa moça bemeducada inteligente e de elevadas aspira ções reprimiu por completo seus impulsos sexuais mas que esses inconscientes para ela permaneceram presos àquelas parcas vivências com a amiguinha de infância A diversidade dos dois destinos não obstante a ex periência comum devese ao fato de o Eu ter em um caso experimentado um desenvolvimento que no ou tro não se verificou À filha do zelador a atividade se xual parece mais tarde tão natural e inofensiva como havia sido na infância A filha do senhorio por sua vez sofreu a influência da educação e aceitou suas exigên cias A partir das incitações que lhe ofereceram seu Eu construiu ideais de pureza e ascetismo femininos com os quais a prática sexual não se coaduna sua formação intelectual diminuiu seu interesse pelo papel feminino ao qual está destinada Em virtude desse maior desen volvimento moral e intelectual de seu Eu ela entrou em conflito com as exigências de sua sexualidade Hoje quero ainda me deter em um segundo ponto do desenvolvimento do Eu tanto em razão de certas pers pectivas mais amplas como porque isso é apropriado para justificar a separação entre os instintos do Eu e os instintos sexuais uma separação que nos é cara mas que não é evidente Na apreciação desses desenvolvimentos do Eu e da libido devemos enfatizar um aspecto que até o momento não foi tratado com muita frequência No 470 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA fundo esses dois desenvolvimentos constituem heran ças repetições abreviadas do desenvolvimento que toda a humanidade experimentou desde seus primórdios e ao longo de um vasto período de tempo No desenvolvi mento da libido penso vêse claramente essa origem filogenética Lembremse os senhores de que numa das se de animais o aparelho genital apresenta íntima rela ção com a boca ao passo que em outra não é possível diferenciálo do aparelho excretor e em outra ainda ele está vinculado aos órgãos motores fatos que os se nhores acharão descritos de forma atraente no valioso livro de W Bolsche Entre os animais vemos todos os tipos de perversão petrificados na organização sexual por assim dizer Já no ser humano esse aspecto filoge nético é em parte encoberto pelo fato de o que é herda do no fundo voltar a ser adquirido no desenvolvimento individual provavelmente porque ainda persistem e seguem atuando sobre cada um as mesmas condições que naquele tempo levaram à sua aquisição Eu diria que naquele tempo elas atuaram criativamente mas agora agem provocadoramente Além disso é indubitável que em cada um de nós o curso desse desenvolvimento pres crito pode ser perturbado e alterado por influências exte riores recentes Mas nós conhecemos o poder que impôs semelhante desenvolvimento à humanidade e que ainda hoje pressiona na mesma direção é de novo a frustra ção ditada pela realidade ou se quisermos chamála por Das Liebesleben in der Natur A vida amorosa na natureza 2 vols Jena 19113 471 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES seu nome correto e grandioso a necessidade que domina a vida a Aváyx1J Ananke Ela foi uma educadora se vera e fez muita coisa de nós Os neuróticos estão entre as crianças em que tal severidade teve consequências ruins mas esse é o risco de toda educação De resto essa consideração da necessidade vital como motor do desenvolvimento não deve nos predispor contra a im portância das tendências internas de desenvolvimento caso estas se verifiquem É digno de nota que os instintos sexuais e de au toconservação não se comportem da mesma maneira diante da necessidade real É mais fácil educar os instin tos de autoconservação e tudo o que se relaciona a eles Esses instintos aprendem logo cedo a se sujeitar à ne cessidade e organizar seus desenvolvimento segundo as diretivas da realidade Isso é compreensível pois não têm outro modo de conseguir os objetos de que neces sitam e sem esses objetos o indivíduo só pode perecer Os instintos sexuais são mais difíceis de educar pois inicialmente não conhecem a necessidade de um objeto Como à maneira de parasitas por assim dizer eles se apoiam nas outras funções corporais e se satisfazem au toeroticamente no próprio corpo furtamse de início à influência educativa da necessidade real e mantêm essa característica de obstinação de impermeabilidade à in fluência isso que chamamos falta de juízo na maio ria das pessoas em algum aspecto ao longo de toda a vida Em geral a educabilidade de um jovem termina quando suas necessidades sexuais despertam de forma plena e definitiva Os educadores sabem disso e agem 472 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA de acordo com esse saber Mas talvez os resultados da psicanálise os levem a situar o impacto maior da edu cação nos primeiros anos da infância a partir da ama mentação Com frequência aos quatro ou cinco anos de idade o pequeno ser humano está pronto e depois ape nas evidencia gradualmente o que já traz dentro de si A fim de apreciar o pleno significado da diferença apontada entre os dois grupos de instintos temos de re troceder bastante e retomar uma daquelas considerações que são adequadamente chamadas de econômicas cf conferência 18 Adentramos assim uma das áreas mais importantes mas infelizmente mais obscuras também da psicanálise Começamos por perguntar se é possível identificar uma intenção principal no trabalho de nosso aparato psíquico e em uma primeira abordagem res pondemos que essa intenção é a obtenção de prazer Ao que parece toda a nossa atividade psíquica está voltada para obter o prazer e evitar o desprazer é automatica mente regulada pelo princípio do praer Por certo gos taríamos muitíssimo de saber quais as condições para o surgimento do prazer e do desprazer mas justamente isso nos escapa O que podemos afirmar a esse respeito é que o prazer se vincula de alguma forma à diminuição redução ou à extinção do montante de estímulos presen te no aparato psíquico enquanto o desprazer está ligado à sua elevação A investigação do mais intenso prazer ao alcance do ser humano o da consumação do ato sexual deixa pouca dúvida quanto a isso Como nes ses processos relacionados ao prazer a questão é o que sucede com as quantidades de excitação ou energia psí 473 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES quica chamamos de econômicas as considerações dessa natureza Notamos que a tarefa e a operação do aparelho psíquico também podem ser descritas de outra forma mais genérica que não acentua a obtenção de prazer Podemos dizer que o aparato psíquico serve à intenção de dominar e resolver os montantes de estímulo as mag nitudes de excitação que lhe chegam de fora e de dentro No caso dos instintos sexuais é bastante evidente que tanto no início como no fim de seu desenvolvimento eles trabalham para a obtenção de prazer essa função original eles conservam inalterada Inicialmente tam bém os outros instintos os do Eu procuram a mesma coisa Mas sob a influência da mestra Necessidade eles logo aprendem a substituir o princípio do prazer por uma modificação Para os instintos do Eu a tarefa de evitar o desprazer é quase tão valiosa como a da obten ção de prazer o Eu descobre que terá inevitavelmente de renunciar à satisfação imediata de postergar a obten ção de prazer de suportar alguma medida de desprazer e abrir mão por completo de certas fontes de prazer Edu cado dessa maneira o Eu se torna ajuizado e não mais se deixa dominar pelo princípio do prazer em vez disso obedece ao princípio da realidade o qual no fundo tam bém busca obter prazer mas um prazer assegurado pela consideração da realidade ainda que se trate de um pra zer adiado e diminuído A passagem do princípio do prazer ao princípio da realidade é um dos progressos mais importantes no de senvolvimento do Eu Já sabemos que os instintos se xuais só tardiamente e a contragosto colaboram para 474 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS esse desenvolvimento e mais adiante trataremos das consequências que tem para o ser humano o fato de sua sexualidade se contentar com uma relação tão frou xa com a realidade exterior Agora para terminar uma última observação pertinente ao assunto Se o Eu hu mano possui como a libido uma história evolutiva os senhores não ficarão surpresos de ouvir que também existem regressões do Eu e por certo desejarão saber que papel esse retorno do Eu a fases anteriores do de senvolvimento pode ter nos adoecimentos neuróticos 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS Senhoras e senhores Para o leigo os sintomas consti tuem a essência da enfermidade e a cura é para ele a eliminação dos sintomas Para o médico importa dife renciar os sintomas da doença e a remoção dos sinto mas afirma ele ainda não é a cura da doença Elimi nados os sintomas porém o que resta de palpável na doença é apenas a capacidade de formar novos sinto mas Por isso vamos adotar no momento a posição do leigo e considerar que a averiguação dos sintomas equi vale à compreensão da doença Os sintomas e referimonos aqui naturalmente aos sintomas psíquicos ou psicogênicos e à doença psí quica são atos prejudiciais à vida como um todo ou pelo menos inúteis dos quais frequentemente a pessoa se queixa como algo indesejado e que traz sofrimento 475 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES ou desprazer O principal dano que causam é o custo psíquico que envolvem além daquele necessário para combatêlo Havendo pródiga formação de sintomas esses dois custos podem resultar num extraordinário empobrecimento da energia psíquica disponível e as sim numa paralisação do enfermo no tocante às tarefas importantes de sua vida Como esse resultado depende sobretudo da quantidade de energia requerida os se nhores perceberão com facilidade que estar doente é na essência um conceito prático Mas se os senho res adotarem um ponto de vista teórico e não levarem em conta essas quantidades poderão facilmente dizer que todos nós somos doentes ou seja neuróticos pois as condições para a formação de sintomas se verificam também nas pessoas normais Já sabemos que os sintomas neuróticos resultam de um conflito que surge em torno de uma nova maneira de satisfação da libido As duas forças que divergiram tornam a se encontrar no sintoma reconciliamse por assim dizer mediante compromisso da formação do sintoma Por isso o sintoma é tão resistente ele é sus tentado por ambos os lados Sabemos também que uma das partes do conflito é a libido insatisfeita rechaçada pela realidade que agora tem de buscar outros cami nhos para sua satisfação Se a libido se dispõe a aceitar outro objeto no lugar daquele que lhe foi recusado e ainda assim a realidade permanece irredutível então a libido será enfim obrigada a encetar o caminho da regressão e procurar satisfação em uma das organiza ções já superadas ou por um dos objetos anteriormente 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS abandonados Para o caminho da regressão a libido é atraída pela fixação que deixou para trás nesses pontos de seu desenvolvimento Então o caminho da perversão se separa nitidamen te daquele da neurose Se as regressões não despertam a oposição do Eu tampouco há neurose e a libido al cança alguma satisfação real embora não mais nor mal Mas se o Eu que dispõe não apenas da cons ciência mas também dos acessos à inervação motora e portanto à realização das tendências psíquicas não está de acordo com essas regressões instaurase o con flito A libido é como que barrada e precisa fugir para algum lugar onde possa dar vazão à energia investida conforme a exigência do princípio do prazer Tem de subtrairse ao Eu Tal escapatória lhe é permitida pelas fixações no caminho de seu desenvolvimento que ago ra ela segue regressivamente tratase daquelas mesmas fixações contra as quais o Eu outrora se protegera me diante repressões Nesse fluxo inverso investindo essas posições reprimidas a libido se subtrai ao Eu e suas leis mas renuncia também a toda educação adquirida sob a influência desse Eu Enquanto a satisfação lhe acenava ela era dócil mas sob a dupla pressão das frustrações exterior e interior ela se torna rebelde e se lembra de tempos passados e melhores Tal é seu caráter funda mentalmente imutável As ideias às quais a libido agora transfere sua energia sob a forma de investimento per tencem ao sistema do inconsciente e estão sujeitas aos processos possíveis neste em particular à condensação e ao deslocamento Com isso estabelecemse condições 477 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES idênticas àquelas vigentes na formação dos sonhos As sim como o sonho completado no inconsciente que é a realização de uma fantasia inconsciente depara com alguma atividade pré consciente que exerce atividade de censura e uma vez acomodada permite a formação de um sonho manifesto como compromisso também o representante da libido no inconsciente precisa levar em conta o poder do Eu préconsciente A oposição que foi erguida contra ele no Eu o persegue como contraio vestimenta e o obriga a escolher uma expressão que possa ao mesmo tempo tornarse expressão da própria oposição Surge assim o sintoma como derivado bas tante desfigurado da realização de desejo inconsciente libidinal uma ambiguidade engenhosamente escolhida com dois significados mutuamente contraditórios Mas nesse último aspecto se pode perceber uma diferença entre as formações do sonho e do sintoma uma vez que na formação do sonho a intenção préconsciente visa unicamente preservar o sono não permitir que penetre na consciência nada que possa perturbálo ela não insiste contudo em dizer um categórico não ao impulso inconsciente Pode ser tolerante porque a si tuação de alguém adormecido é menos ameaçada Por si só o sono bloqueia a saída para a realidade Como veem a escapada da libido nas condições do conflito é possibilitada pela presença das fixações O investimento regressivo dessas fixações permite contor nar a repressão e leva a uma descarga ou satisfação da libido na qual as condições do compromisso pre cisam ser mantidas Através do rodeio pelo inconsciente 23 OS CAMINHOS OA FORMAÇÃO DE SINTOMAS e pelas antigas fixações a libido consegue enfim avançar rumo a uma satisfação real que no entanto é extrema mente limitada e já quase irreconhecível Permitamme acrescentar duas observações sobre esse resultado final Em primeiro lugar atentem para a estreita vinculação que aí revelam por um lado a libido e o inconsciente e por outro o Eu a consciência e a realidade embora já no início não estejam unidos E observem também que tudo que foi e que será dito aqui se refere apenas à formação dos sintomas na neurose histérica Onde então a libido encontra as fixações de que necessita para romper as repressões Nas práticas e vi vências da sexualidade infantil nas tendências parciais abandonadas e nos objetos da infância que foram deixa dos para trás É para eles pois que a libido retoma O significado dessa época infantil é duplo por um lado nela se mostram pela primeira vez as orientações ins tintuais que a criança traz consigo em sua predisposição inata por outro influências exteriores vivências aci dentais despertam e ativam nela outros instintos seus Creio não haver dúvida de que temos o direito de pos tular essa bipartição Sobre a manifestação da predis posição inata não pesa nenhuma objeção crítica mas a experiência analítica nos obriga a supor que vivências puramente acidentais da infância podem deixar fixações da libido Não vejo nisso qualquer dificuldade teórica As predisposições constitucionais também são certa mente efeitos remotos das vivências de antepassados também foram adquiridas um dia sem tal aquisição não haveria hereditariedade Será concebível que essa 479 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES aquisição que conduz à herança transmitida acabe jus tamente na geração por nós considerada O significado das vivências infantis não deveria como sói acontecer ser inteiramente negligenciado em prol da importância daquelas dos antepassados e da maturidade do indiví duo pelo contrário devem ter atenção especial Elas são prenhes de consequências pois se dão em épocas de desenvolvimento incompleto e precisamente essa cir cunstância as torna capazes de produzir efeito traumáti co Os trabalhos de Roux e de outros sobre a mecânica do desenvolvimento mostraramnos que uma picada de agulha em um germe embrionário em pleno processo de divisão celular tem por consequência uma severa perturbação do desenvolvimento Essa mesma lesão se infligida a uma larva ou a um animal plenamente cons tituído seria suportada sem provocar nenhum dano A fixação libidinal do adulto que introduzimos na equação etiológica das neuroses representando o fator constitucional decompõese agora para nós em dois ou tros fatores na constituição herdada e na predisposição adquirida na primeira infância Sabemos que uma repre sentação esquemática tem a simpatia dos que aprendem Então vamos resumir essas relações num esquema causação da neurose predisposição mediante vivências acidentais fixação da libido traumáticas constituição sexual vivências préhistóricas vivências infantis 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS A constituição sexual hereditária nos oferece uma grande variedade de predisposições de acordo com a força particular desse ou daquele instinto parcial por si só ou em associação com outros instintos parciais Juntamente com o fator das vivências infantis a cons tituição sexual forma uma série complementar muito semelhante àquela que vimos anteriormente composta da disposição e das vivências acidentais do adulto Aqui como lá encontramse os mesmos casos extremos e as mesmas relações entre os fatores presentes É natural pois levantar a seguinte questão será que as regressões mais evidentes da libido aquelas a estágios anteriores da organização sexual não são condicionadas prepon derantemente pelo fator hereditário constitucional Será melhor porém adiar a resposta a essa pergunta até podermos considerar uma série maior de formas de adoecimento neurótico No momento detenhamonos no fato de que a in vestigação analítica mostra a vinculação da libido dos neuróticos com as vivências sexuais da infância A es sas vivências portanto ela empresta uma aparência de enorme importância tanto para a vida como para o adoecimento das pessoas No que diz respeito ao traba lho terapêutico essas vivências preservam intacta sua importância Se abstraímos da tarefa terapêutica no entanto vemonos ante o perigo de um malentendido que poderia nos levar a orientar a vida muito unilate ralmente conforme a situação neurótica Afinal é ne cessário que descontemos dessa importância das vivên cias infantis o fato de a libido ter retornado a elas em 481 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES um movimento regressivo depois de ter sido expulsa de suas posições posteriores Então é natural a conclusão contrária ou seja a de que a seu tempo as vivências libidinais não possuíam importância nenhuma elas a adquiriram somente a partir da regressão Lembremse de que já tomamos posição acerca de tal alternativa na discussão do complexo de Édipo Também dessa vez a decisão não será difícil A ob servação de que o investimento libidinal e portan to o significado patogênico das vivências infantis é intensificado em grande medida pela regressão da libido é sem dúvida correta mas se tomada como a única decisiva ela poderia conduzir a um equívoco É preciso atentar para outras ponderações Em primeiro lugar a observação põe acima de qualquer dúvida que as vivências infantis têm seu significado particular e já o evidenciam na infância Também existem neuroses infantis em que o fator do retrocesso temporal é neces sariamente bastante reduzido quando não inexistente se o adoecimento é consequência imediata das vivências traumáticas O estudo das neuroses infantis nos guarda de perigosos malentendidos no tocante às neuroses dos adultos da mesma forma como os sonhos das crianças nos forneceram a chave para a compreensão dos sonhos dos adultos As neuroses infantis são bastante frequen tes muito mais frequentes do que se pensa Em geral elas passam despercebidas tomadas que são como sinais de maldade ou mau hábito e refreadas pelas autoridades responsáveis pelas crianças Mas é fácil reconhecêlas atê mesmo mais tarde com um olhar retrospectivo Na 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS maioria das vezes aparecem sob a forma de uma histe ria de angústia O que isso significa descobriremos em outra oportunidade Quando em anos posteriores a neurose irrompe em geral a análise a desvenda como continuação imediata daquela doença infantil que se formou talvez de forma velada ou apenas sugerida Mas como eu disse há casos em que esse adoecimento ner voso infantil se prolonga sem qualquer interrupção em uma condição doentia para toda a vida Poucos são os exemplos de neurose infantil que pudemos analisar na própria criança isto é em seu estado presente com frequência bem maior tivemos de nos contentar com um doente em idade madura que nos permitiu examinar posteriormente sua neurose infantil quando pudemos fazer certas correções e tomar algumas precauções Em segundo lugar é necessário dizer que seria in compreensível a libido regressar regularmente à época infantil se nesse passado nada houvesse a exercer atra ção sobre ela A fixação que supomos existir em pontos específicos do curso do desenvolvimento só tem senti do se a fazemos consistir em determinado montante de energia libidinal Por fim posso dizer aos senhores que aqui à semelhança das séries que estudamos anterior mente também se verifica uma relação de complemen taridade entre intensidade e significado patogênico das experiências vividas tanto na infância como mais tarde Há casos em que todo o peso da causação recai sobre as vivências sexuais da infância em que essas impressões produzem seguramente um efeito traumático e que não necessitam de nenhum outro suporte senão o que lhes 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES provê a constituição sexual média e seu caráter inacaba do Em outros casos a ênfase recai inteiramente sobre os conflitos posteriores e a importância dada às lem branças infantis parece obra apenas da regressão Te mos portanto os extremos da inibição do desenvolvi mento e da regressão e entre um e outro toda uma gama de atuação conjunta desses dois fatores Essas circunstâncias são de algum interesse para a pedagogia que se propõe a prevenir as neuroses median te a intervenção precoce no desenvolvimento sexual da criança Quando se volta a atenção preponderantemen te para as vivências sexuais infantis acreditase ter feito tudo para a profilaxia dos adoecimentos nervosos na medida em que se tratou de adiar esse desenvolvimen to e de poupar a criança de semelhantes experiências Sabemos no entanto que as condições para a causação das neuroses são mais complicadas que isso e que em seu conjunto elas não se deixam influenciar pela consi deração de um único fator Proteger com rigor a criança é de pouca valia devido à impotência dessa proteção em relação ao fator constitucional Além disso essa prote ção é mais difícil de pôr em prática do que imaginam os educadores e traz consigo dois novos perigos que não podem ser subestimados o de que ela seja demasiado bemsucedida isto é de que favoreça uma repressão exagerada e danosa para o ulterior desenvolvimento da criança e o de que torne a criança indefesa ante a espe rada investida das demandas sexuais da puberdade É pois questionável em que medida a profilaxia infantil pode ser vantajosa talvez uma postura diferente dian 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS te da situação imediata ofereça uma melhor abordagem para a prevenção das neuroses Voltemos agora aos sintomas Eles produzem por tanto um substituto para a satisfação frustrada me diante a regressão da libido a épocas passadas a isso se liga inseparavelmente o retorno a estágios de desenvol vimento anteriores da escolha objetai ou da organiza ção sexual Dissemos antes que o neurótico se prende a algum ponto de seu passado sabemos agora que se trata de um período desse passado no qual sua libido não carecia de satisfação em que ele era feliz O neuró tico vasculha a própria vida até encontrar uma tal épo ca ainda que para encontrála precise recuar até seu período de amamentação como ele o recorda ou como o imagina a partir de sugestões posteriores De algum modo o sintoma repete essa modalidade infantil de sa tisfação deformada pela censura decorrente do conflito em regra transformada numa sensação de sofrimento e misturada a elementos extraídos daquilo que ensejou o adoecimento Há muito de estranho nesse tipo de sa tisfação que o sintoma propicia Não nos referimos ao fato de essa satisfação não ser reconhecível como tal por aquele que a sente este percebe a suposta satis fação antes como sofrimento do qual se queixa Essa metamorfose está ligada ao conflito psíquico sob cuja pressão o sintoma foi levado a se formar O que outrora trouxe satisfação ao indivíduo hoje despertalhe resis tência ou aversão Nós conhecemos um modelo trivial mas instrutivo para essa mudança de sentido A mesma criança que mamou com avidez o leite do seio materno 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES costuma alguns anos mais tarde manifestar má von tade ante o consumo de leite algo que a educação tem dificuldade em superar Essa má vontade intensificase até a repugnância quando o leite ou a bebida ao qual ele se mescla se reveste de uma película de nata Talvez não se possa descartar a noção de que essa película evo ca a lembrança do seio materno tão desejado outrora Contudo entre esse passado e o presente situase a ex periência do desmame de efeito traumático Mas há ainda outra coisa que faz com que os sinto mas nos pareçam estranhos e como meios de satisfação libidinal incompreensíveis Eles não nos lembram em nada aquilo que costumamos entender por satisfação Na maioria dos casos desconsideram o objeto e assim abandonam o vínculo com a realidade exterior Enten demos isso como consequência de seu afastamento do princípio da realidade e do retorno ao princípio do pra zer Mas tratase também de um retorno a uma espécie de autoerotismo expandido como aquele que proporcio nou ao instinto sexual suas primeiras satisfações Em lu gar de uma modificação do mundo exterior os sintomas apresentam uma modificação corporal isto é uma ação interna em vez de externa uma adaptação em lugar de uma ação o que por sua vez corresponde a uma regres são altamente significativa do ponto de vista filogenéti co Isso nós só lograremos entender em conexão com uma novidade sobre a formação dos sintomas que ainda vamos conhecer a partir das investigações analíticas E lembremonos de que na formação dos sintomas cola boram os mesmos processos do inconsciente que atuam 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS na formação dos sonhos a condensação e o deslocamen to Como o sonho o sintoma apresenta como realizada uma satisfação tratase de uma satisfação à maneira in fantil mas que por intermédio de uma condensação ex trema pode ser comprimida em uma única sensação ou inervação e pela via de um extremo deslocamento pode se restringir a um pequeno detalhe de todo o complexo libidinal Não admira pois que muitas vezes tenhamos dificuldades em reconhecer no sintoma a satisfação libi dinal conjecturada e sempre confirmada Anunciei aos senhores que tínhamos ainda algo novo a aprender e é de fato algo surpreendente e des concertante Como sabem a partir da análise dos sin tomas tomamos conhecimento das vivências infantis em que a libido se fixou e de que são constituídos os sintomas Pois a surpresa reside no fato de essas cenas infantis nem sempre se revelarem verdadeiras Com efeito na maioria dos casos elas não são verdadeiras e aqui ou ali encontramse mesmo em direta contradi ção com a verdade histórica Os senhores percebem que esse achado se presta como nenhum outro a desacredi tar a análise que conduziu a semelhante resultado ou os doentes em cujas declarações se baseia a análise e toda a compreensão das neuroses Além disso há aí outro elemento muito desconcertante Se as vivências infan tis que a análise traz à luz fossem sempre verdadeiras teríamos a sensação de nos mover por terreno seguro se fossem regularmente falseadas e se revelassem como invenções fantasias dos doentes precisaríamos aban donar esse terreno instável e buscar salvação em outro 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES O que se verifica no entanto não é nem uma coisa nem outra Na realidade podese demonstrar que as lem branças infantis construídas ou lembradas em análise são algumas vezes indubitavelmente falsas outras ve zes absolutamente verdadeiras e outras ainda ou na maioria das vezes uma mescla de lembranças ver dadeiras e falsas Os sintomas são portanto ora repre sentação de vivências ocorridas de fato às quais cabe atribuir influência na fixação da libido ora representa ção das fantasias do doente naturalmente inadequadas para um papel etiológico É difícil orientarse aí Um primeiro ponto de apoio nós encontramos talvez em uma descoberta semelhante isto é a de que as lembran ças infantis conscientes que as pessoas carregam des de sempre e apresentam em toda análise podem tam bém elas ter sido falsificadas ou no mínimo constituir abundante mescla de verdadeiro e falso Comprovar sua incorreção raras vezes oferece dificuldades o que pelo menos nos dá a tranquilidade de saber que a culpa por essa inesperada decepção não cabe à análise e sim de algum modo aos doentes Após alguma reflexão compreendemos facilmente o que tanto nos confunde nessa situação é o menospre zo da realidade a negligência da diferença entre ela e a fantasia Ficamos tentados a nos ofender com o fato de o doente nos ter relatado histórias inventadas A realidade nos parece enormemente afastada da invenção e tem entre nós uma avaliação bem diferente De resto esse é também o ponto de vista que o doente assume em seu pensamento normal Mas quando ele apresenta o ma 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS terial que subjacente aos sintomas conduz às situações de desejo que modelam as lembranças infantis ficamos em dúvida inicialmente se esse material corresponde à realidade ou se é produto da fantasia Mais tarde certas indicações nos possibilitam tomar essa decisão e nos vemos ante a tarefa de informála ao paciente Isso não ocorre sem dificuldades Se logo de início lhe dizemos que ele está para revelar as fantasias com que encobriu sua história infantil como fazem os povos ao cobrir de lendas a sua préhistória esquecida notamos que o interesse do paciente em prosseguir no tema cai subi tamente de forma indesejável Também ele quer tomar conhecimento de realidades e desdenha toda e qualquer invenção Mas se até a conclusão dessa parte do tra balho nós o deixamos acreditar que nos ocupamos da exploração de acontecimentos reais de sua infância cor remos o risco de que mais tarde ele nos acuse de ter cometido um erro e ria de nossa aparente credulidade Equiparar fantasia e realidade sem de início nos preo cuparmos se as vivências infantis a serem esclarecidas são uma coisa ou outra constitui uma proposta que o doente precisará de um longo tempo para assimilar E no entanto essa é claramente a única postura correta ante tais produções psíquicas Também elas têm uma espécie de realidade é e permanece sendo fato afinal que essas fantasias foram criadas pelo próprio doente e seu significado para a neurose não se faz menor por ele não as ter vivido no âmbito da realidade Se não se apresentam dotadas de realidade material essas fanta sias decerto revelam realidade psíquica e pouco a pouco 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES aprendemos que no mundo das neuroses a realidade psí quica é a deciSiva Entre os acontecimentos que surgem na história in fantil dos neuróticos e que parecem nunca faltar alguns têm importância especial e por isso os julgo merece dores de destaque em relação aos demais Enumero os como exemplos modelares do gênero a observação dos pais durante o ato sexual a sedução por parte de um adulto e a ameaça de castração Seria um equívo co supor que eles jamais adquirem realidade material pelo contrário a investigação posterior junto a parentes mais velhos a comprova muitas vezes claramente Não é raro por exemplo que o menino que começa a brin car travessamente com seu membro ainda sem saber que deve ocultar tal atividade seja ameaçado por seus pais ou responsáveis de ter o membro ou a mão pecado ra arrancado Perguntados a esse respeito os pais com frequência admitem que por meio dessa intimidação acreditavam estar fazendo algo apropriado Muitas pes soas conservam uma lembrança correta e consciente dessa ameaça sobretudo se ela foi feita em anos pos teriores Se é a mãe ou alguma outra pessoa do sexo feminino quem faz a ameaça ela costuma atribuir sua execução ao pai ou ao médico No famoso Struwwelpe ter João Felpudo de autoria do pediatra Hoffmann de Frankfurt que deve sua popularidade precisamente à compreensão que exibe dos complexos sexuais e ou tros da infância os senhores encontram a castração atenuada ela é substituída pela perda do polegar como castigo pelo ato obstinado de chupar o dedo É porém 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS altamente improvável que a ameaça de castração seja feita às crianças com a frequência com que figura nas análises dos neuróticos Contentamonos com o enten dimento de que a criança compõe essa ameaça em sua fantasia tendo por base sugestões o conhecimento de que a satisfação autoerótica é proibida e sob a impres são causada pelo descobrimento da genitália feminina Tampouco se pode excluir a possibilidade de a crian ça pequena à qual ainda não se atribui a capacidade de compreender ou lembrar vir a ser testemunha de um ato sexual praticado pelos pais ou por outros adultos mesmo em lares não proletários e não se deve supor que a posteriori ela não seja capaz de compreender o que viu e reagir à impressão causada Quando toda via o ato é descrito com uma riqueza de detalhes que teria sido difícil observar ou quando como acontece com grande frequência ele revela ter sido praticado por trás more forarum à maneira dos animais resta pou ca dúvida de que tal fantasia se apoia na observação do ato sexual entre animais cães e que é motivada pelo insatisfeito prazer de observar que a criança sente na puberdade O feito máximo desse gênero é então a fantasia da observação do coito dos pais quando ainda nos encontramos no ventre materno Interesse particu lar desperta também a fantasia da sedução porque com muita frequência ela não constitui fantasia e sim lem brança real Mas felizmente essa realidade não é tão frequente quanto fez parecer inicialmente o resultado das análises A sedução por parte de crianças mais ve lhas ou de mesma idade é de todo modo mais comum 491 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES do que a realizada por adultos se no caso das meninas que alegam ter ocorrido algo semelhante em sua in fância o pai figura regularmente como o sedutor não há dúvida quanto à natureza fantástica da acusação e ao motivo que levou a ela Com a fantasia da sedução quando ela não ocorreu a criança em geral oculta o pe ríodo autoerótico de sua atividade sexual Ela se poupa assim da vergonha pela masturbação recuando para uma época anterior a fantasia com o objeto desejado Mas não creiam os senhores que o abuso da criança por parte de seu parente mais próximo do sexo masculino pertença apenas ao reino da fantasia A maioria dos analistas já terá tratado de casos em que relações dessa natureza foram reais e puderam ser indubitavelmente constatadas no entanto ocorreram mais tarde e foram transpostas para anos anteriores da infância A impressão que se tem é de que tais acontecimen tos infantis são de alguma maneira necessários de que são integrantes essenciais da neurose Quando se acham na realidade muito bem quando a realidade não os fornece são produzidos a partir de sugestões e complementados pela fantasia O resultado é o mesmo e até hoje não logramos estabelecer nenhuma diferen ça em suas consequências quer a maior contribuição para esses acontecimentos tenha vindo da fantasia ou da realidade De novo temse aqui apenas uma daquelas relações de complementaridade já tantas vezes mencio nadas é porém a mais estranha daquelas de que toma mos conhecimento De onde vem a necessidade dessas fantasias e o material para elas Não pode haver dúvida 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS acerca das fontes instintuais mas resta explicar por que são criadas sempre as mesmas fantasias de igual conteú do Tenho uma resposta pronta para isso mas sei que ela lhes parecerá ousada O que penso é que essas fon tasias primordiais como desejo chamálas a essas e algumas outras também são patrimônio filogenético Nelas o indivíduo vai além de suas vivências pessoais e recorre àquelas de tempos primordiais onde suas pró prias vivências se tenham mostrado muito rudimenta res Pareceme bem possível que tudo o que nos é hoje relatado em análise a sedução da criança a excitação sexual inflamada pela observação da relação sexual dos pais a ameaça de castração ou antes a castração tenha sido realidade nos primórdios da família huma na e que a fantasia da criança simplesmente preenche as lacunas na verdade individual com a verdade pré histórica Repetidas vezes chegamos à suspeita de que a psicologia das neuroses nos preservou mais antiguida des do desenvolvimento humano do que outras fontes Meus senhores as coisas ora discutidas nos fazem examinar mais detidamente a gênese e a significação da atividade intelectual a que chamamos fantasia Os se nhores sabem que ela goza da elevada estima de todos sem que tenhamos clareza sobre o lugar que ocupa na vida psíquica O que posso lhes dizer a esse respeito é o que segue Como todos sabem o Eu humano é educado por influência da necessidade exterior para lentamente apreciar a realidade e seguir o princípio da realidade e nisso tem de renunciar temporária ou permanentemente a vários objetos e metas de seu anseio por prazer não 493 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES apenas do prazer sexual O ser humano contudo sempre teve dificuldade em renunciar ao prazer não consegue fazêlo sem alguma espécie de compensação Por isso reservou para si uma atividade psíquica na qual conce de a todas as fontes e vias abandonadas da obtenção de prazer uma nova vida uma forma de existência na qual se veem livres das demandas da realidade e daquilo a que chamamos prova de realidade Todo anseio logo alcan ça a forma de uma ideia de realização de que foi realiza do não há dúvida de que deterse na realização da fan tasia traz consigo uma satisfação embora isso não turve o conhecimento de que não é a realidade Na atividade fantasiosa portanto o homem segue gozando da liber dade frente a toda pressão exterior liberdade a que na realidade renunciou há muito tempo Ele consegue ser alternadamente um animal de prazer e de novo uma criatura sensata A parca satisfação que logra extrair da realidade não lhe é suficiente Sem construções auxilia res não é possível disse certa vez Theodor Fontane A criação do reino psíquico da fantasia encontra sua perfei ta contrapartida na instituição de áreas de proteção e reservas naturais onde as demandas da agricultura do trânsito e da indústria ameaçam modificar rapidamente o semblante original da Terra e tornálo irreconhecível A reserva natural conserva o velho estado que em ge ral lamentavelmente foi sacrificado à necessidade Nela tudo pode vicejar e crescer como bem entende até o que é inútil mesmo o que é daninho Uma tal área de pro teção subtraída ao princípio da realidade é também o reino psíquico da fantasia 494 23 OS CAMINHOS OA FORMAÇÃO DE SINTOMAS Suas produções mais conhecidas são os chamados sonhos diurnos que já conhecemos satisfações ima ginadas de desejos ambiciosos megalomaníacos eró ticos que tanto mais crescem quanto mais a realidade solicita moderação ou paciência Nesses sonhos diurnos mostrase inequivocamente a natureza da felicidade fantasiosa a obtenção de prazer fazse de novo inde pendente da aprovação da realidade Sabemos que eles são o núcleo e modelo dos sonhos noturnos Estes no fundo não são outra coisa do que sonhos diurnos tor nados utilizáveis em razão da liberdade noturna dos im pulsos instintuais desfigurados pela forma noturna da atividade psíquica Já nos familiarizamos com a ideia de que tampouco o sonho diurno é necessariamente cons ciente de que também existem sonhos diurnos incons cientes Estes constituem a fonte não apenas dos sonhos noturnos mas também dos sintomas neuróticos O que exponho a seguir deixará claro para os senho res a importância da fantasia na formação dos sintomas Dissemos que no caso da frustração a libido investe regressivamente as posições por ela abandonadas mas às quais certos montantes dela permaneceram ligados Não vamos retirar ou corrigir isso mas temos de inse rir um elo intermediário Como a libido encontra seu caminho para esses locais de fixação Ora os objetos e os rumos abandonados da libido não foram abando nados em todos os sentidos Eles ou derivados deles No original Tagtriiume que também pode ser traduzido por devaneios 495 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES permanecem retidos com certa intensidade nas ideias fantasiosas A libido só precisa pois retornar às fan tasias para a partir delas encontrar aberto o caminho para todas as fixações reprimidas Essas fantasias gozam de certa tolerância por maiores que sejam os contras tes nenhum conflito irrompe entre elas e o Eu enquanto for mantida certa condição Tratase de uma condição quantitativa que agora com o refluxo da libido para as fantasias é perturbada Esse acréscimo eleva de tal forma o investimento energético das fantasias que elas se tornam exigentes e desenvolvem um ímpeto na dire ção de sua realização Isso contudo torna inevitável o conflito entre elas e o Eu Tenham sido anteriormen te préconscientes ou conscientes agora estão sujeitas à repressão por parte do Eu e são entregues à atração por parte do inconsciente Desde essas fantasias agora inconscientes a libido vai em busca das origens delas no inconsciente de volta a seus próprios locais de fixação O recuo da libido à fantasia é um estágio interme diário no caminho para a formação do sintoma que merece designação especial C G Jung cunhou para ele um nome apropriado introversão ao qual porém atribuiu também outro significado de maneira inopor tuna Desejamos estabelecer que introversão designa o afastamento da libido das possibilidades de satisfação real e o superinvestimento das fantasias toleradas até então como inofensivas Um introvertido ainda não é um neurótico mas se encontra numa situação instável ele desenvolverá sintomas no próximo deslocamento de forças a não ser que encontre outras saídas para sua li 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS bido represada O caráter irreal da satisfação neurótica e a negligência da distinção entre fantasia e realidade por outro lado já se encontram determinados pela per manência no estágio da introversão Os senhores certamente notaram que nessas últi mas discussões introduzi um novo fator na estrutura do encadeamento etiológico a saber a quantidade a grandeza das energias a serem consideradas Esse fator precisamos levar em conta em toda parte Uma análi se puramente qualitativa das condições etiológicas não nos basta Ou para dizêlo de outra maneira uma con cepção meramente dinâmica desses processos psíquicos é insuficiente o ponto de vista econômico é igualmente necessário Temos de afirmar que o conflito entre duas tendências não irrompe antes que certas intensidades de investimento sejam alcançadas ainda que as con dições ligadas ao conteúdo estejam presentes há muito tempo Da mesma forma o significado patogênico dos fatores constitucionais depende do quanto mais de um instinto parcial que de outro se acha na predisposição herdada podese inclusive imaginar que as predisposi ções de todas as pessoas sejam qualitativamente iguais diferenciandose apenas por essas condições quantita tivas O fator quantitativo não é menos decisivo para a capacidade de resistência ao adoecimento neurótico É uma questão de qual montante de libido não empregada uma pessoa é capaz de conservar em suspensão e de que fiação de sua libido ela é capaz de desviar do sexual para as metas da sublimação A meta final da atividade psíquica meta que pode ser descrita qualitativamente 497 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES como busca da obtenção de prazer e evitação do despra zer apresentase para a consideração econômica como a tarefa de dominar as grandezas de excitação quanti dades de estímulo que atuam no aparelho psíquico e impedir o seu represamento que gera o desprazer Isso era pois o que eu queria lhes dizer sobre a for mação dos sintomas nas neuroses Mas não deixo de mais uma vez enfatizar tudo o que disse aqui se re fere apenas à formação de sintomas na histeria Já na neurose obsessiva há muita coisa diferente embora o fundamental se mantenha Os contrainvestimentos que se opõem às exigências instintuais dos quais falamos também no caso da histeria passam a primeiro plano na neurose obsessiva e dominam o quadro clínico por meio das chamadas formações reativas Divergências semelhantes e outras mais de alcance ainda maior nós descobrimos nas outras neuroses em que as investiga ções sobre os mecanismos de formação de sintomas ain da não se acham concluídas em nenhum aspecto Antes de dispensálos eu gostaria de solicitar um pouco mais sua atenção para um lado da vida da fanta sia que merece o interesse de todos Existe um caminho de volta da fantasia para a realidade e esse caminho é a arte O artista também é em gérmen um introvertido que não se acha muito longe da neurose É impelido por enormes necessidades instintuais gostaria de conquistar honras poder riqueza glória e o amor das mulheres Faltamlhe porém os meios para alcançar tais satisfa ções Por isso ele se afasta da realidade como qualquer outro insatisfeito e transfere todo o seu interesse indu 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS sive sua libido para as formações que encerram desejos em sua vida da fantasia das quais parte um caminho que pode levar à neurose Muitas coisas precisam convergir para que esse não seja o resultado de seu desenvolvi mento sabese com que frequência os artistas sofrem uma inibição parcial de sua capacidade de desempenho devido às neuroses Provavelmente sua constituição en cerra forte capacidade para a sublimação e alguma frou xidão nas repressões decisivas para um conflito Mas ele acha o caminho de volta à realidade da maneira seguin te Certamente ele não é o único que tem uma vida da fantasia O reino intermediário da fantasia conta com a aprovação geral dos homens e todo aquele que sofre privações espera dele mitigação e consolo Para os não artistas contudo o ganho de prazer obtido das fontes da fantasia é muito limitado A inexorabilidade de suas repressões os obriga a contentarse com os parcos so nhos diurnos que podem se tornar conscientes Quando alguém é um verdadeiro artista dispõe de mais do que isso Em primeiro lugar é capaz de elaborar seus sonhos diurnos de forma a perderem o que é muito pessoal e que desagrada os estranhos tornando possível que ou tros também os desfrutem Sabe também atenuálos a ponto de não revelarem facilmente sua origem de fon tes malvistas Além disso tem o poder enigmático de conformar certo material até que este se torne imagem fiel de sua fantasia e sabe vincular tamanha obtenção de prazer a essa representação de sua fantasia incons ciente que ao menos temporariamente as repressões são sobrepujadas e canceladas por ela Sendo capaz de 499 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES tudo isso ele possibilita que os outros extraiam nova mente alívio e consolo de suas próprias fontes de prazer inconscientes que se tornaram inacessíveis obtendo sua gratidão e admiração e assim chegando através de sua fantasia ao que antes alcançava apenas em sua fantasia honras poder e o amor das mulheres 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM Senhoras e senhores Depois de em nossas últimas dis cussões termos realizado parte tão difícil de nosso tra balho abandono temporariamente o assunto de nossas palestras e me volto para os senhores Pois sei que estão insatisfeitos Imaginaram de ou tra forma uma introdução à psicanálise Esperavam escutar exemplos cheios de vida e não teoria Dizem me os senhores que quando lhes expus a analogia No térreo e no primeiro andar compreenderam algo sobre a causação das neuroses mas que eu deveria lhes ter passado observações reais e não histórias inventadas Ou que quando inicialmente lhes relatei dois sintomas oxalá não tenham sido inventados também e des crevi a solução e a relação deles com a vida dos doentes ficou claro para os senhores o sentido dos sintomas esperavam pois que eu prosseguisse da mesma forma Em vez disso oferecilhes extensas teorias difíceis de apreender e jamais completas às quais sempre se jun tavam coisas novas trabalhei com conceitos que ainda 00 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM não lhes havia apresentado passei da exposição descriti va à concepção dinâmica e desta à que chamei econô mica tornei difícil compreender quais termos técnicos empregados tinham o mesmo significado alternando os apenas por razões de sonoridade fiz surgir diante dos senhores concepções abrangentes como as dos prin cípios do prazer e da realidade e da herança filogenética e em vez de introduzilos em uma matéria fiz apenas desfilar ante os seus olhos algo que se distanciou cada vez mais dos senhores Por que não comecei minha introdução à teoria das neuroses com aquilo que os senhores próprios conhecem dos distúrbios neuróticos e que há tempos despertou seu interesse Com a singularidade das pessoas nervosas com suas reações incompreensíveis ao contato humano e às influências exteriores com sua irritabilidade sua imprevisibilidade e sua inépcia Por que o senhor não procedeu passo a passo desde a compreensão das formas mais simples e cotidianas até os problemas dos fenôme nos enigmáticos e extremos dos distúrbios neuróticos Sim meus senhores não posso deixar de lhes dar razão Não estou enamorado da minha arte expositiva a ponto de atribuir particular atratividade a cada uma de suas imperfeições Creio também eu que teria sido mais vantajoso para os senhores se eu tivesse procedido de outra forma era aliás minha intenção Mas nem sempre conseguimos pôr em prática nossas intenções sensatas No próprio assunto há sempre algo que nos co manda e nos desvia de nossas intenções iniciais Mesmo uma tarefa tão modesta como ordenar um material bem 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES conhecido não se sujeita inteiramente ao arbítrio do au tor ela se cumpre como bem entende e tudo que pode mos fazer é nos perguntar posteriormente por que seu cumprimento resultou dessa maneira e não de outra Uma das razões para isso provavelmente é que o título Introdução à psicanálise já não se aplica a este segmento que deve tratar das neuroses A introdução à psicanálise compreende o estudo dos atos falhos e do sonho a teoria das neuroses já é a própria psicanálise Não acredito que em tão pouco tempo eu poderia dar a conhecer aos senhores o conteúdo da teoria das neu roses de outra forma que não essa tão concentrada Tratavase de expor em sua conexão o sentido e a im portância dos sintomas as condições externas e internas e o mecanismo da formação desses sintomas Foi o que tentei fazer está aí basicamente o núcleo daquilo que a psicanálise tem hoje a ensinar Nessa exposição muito precisava ser dito sobre a libido e seu desenvolvimento e também alguma coisa sobre o Eu Para as premissas de nossa técnica para as grandes concepções do in consciente e da repressão ou resistência os senhores já haviam sido preparados pela introdução Numa das conferências seguintes descobrirão também a partir de que pontos o trabalho psicanalítico tem sua continui dade orgânica Por enquanto não ocultei dos senhores que todas as nossas descobertas decorrem do estudo de um único grupo de afecções nervosas as chamadas neuroses de transferência O mecanismo da formação dos sintomas cheguei a investigálo apenas no tocante à histeria Ainda que os senhores não tenham adquirido 502 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM um conhecimento sólido nem fixado cada detalhe es pero ao menos que tenham obtido uma ideia dos meios com os quais a psicanálise trabalha das questões de que ela trata e dos resultados alcançados Atribuí aos senhores o desejo de que eu tivesse co meçado a apresentação das neuroses pela conduta das pessoas neuróticas pela descrição da maneira como elas sofrem com sua neurose de como se defendem dela e de como se arranjam com ela Esse é por certo um assunto interessante e que merece ser conhecido além de não muito difícil de tratar mas começar por ele não é um procedimento livre de inconvenientes Correse o risco de dessa forma não se descobrir a existência do inconsciente e de por esse caminho não se perce ber a importância da libido julgandose assim toda a situação a partir do modo como ela se apresenta ao Eu dos doentes dos nervos É óbvio porém que esse Eu não é uma instância confiável e imparcial Afinal o Eu é o poder que nega o inconsciente e que o reduziu à condição de reprimido como pois confiar em que ele possa fazer justiça a esse inconsciente Nesse reprimido se acham acima de tudo as demandas rejeitadas da se xualidade é evidente que jamais poderemos depreender das concepções do Eu a extensão e o significado de tais demandas A partir do momento em que a concepção da repressão se torna clara para nós ficamos advertidos de que não devemos instaurar uma das partes em conflito e menos ainda a vitoriosa como o juiz da conten da Estaremos pois avisados de que as declarações do Eu só poderão nos desorientar A se dar crédito a ele o 503 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Eu esteve ativo em todos os momentos desejou para si e criou ele próprio os sintomas que apresenta Sabemos no entanto que ele tem de se conformar com boa dose de passividade a qual então deseja ocultar e embele zar Mas nem sempre ele ousa fazer semelhante tenta tiva Nos sintomas da neurose obsessiva é obrigado a reconhecer que algo estranho se contrapôs a ele algo de que apenas com muito esforço consegue se defender Quem não se deixa deter por tal advertência e toma por moeda verdadeira as falsificações do Eu esse en contra facilidade e escapa de todas as resistências que se contrapõem à ênfase psicanalítica no inconsciente na sexualidade e na passividade do Eu Poderá assim como Alfred Adler afirmar que o caráter neurótico é a causa e não a consequência da neurose mas não terá condições de explicar um único detalhe da forma ção dos sintomas ou um único sonho Os senhores perguntarão Não seria possível fazer justiça à participação do Eu no estado neurótico e na formação de sintomas sem negligenciar grosseiramente os fatores desvendados pela psicanálise E eu respon do claro que deve ser possível e assim ocorrerá um dia mas não é a tendência do trabalho psicanalítico princi piar desse ponto Podese prever quando essa tarefa se apresentará à psicanálise Há neuroses em que a parti cipação do Eu é bem mais intensa do que naquelas que estudamos até agora Nós as chamamos de neuroses narcísicas A elaboração analítica dessas afecções nos permitirá avaliar a participação do Eu no adoecimento neurótico de forma imparcial e mais confiável 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM Todavia urna das relações do Eu com sua neurose salta aos olhos de tal forma que ela pode bem merecer consideração desde o princípio Tal relação não parece estar ausente em nenhum caso mas pode ser reconheci da com a máxima nitidez em urna afecção que mesmo hoje ainda estamos distantes de compreender a neurose traumática É preciso que os senhores saibam que na causação e no mecanismo de todas as formas possíveis de neurose atuam sempre os mesmos fatores o que ocorre é que cabe ora a um ora a outro a importância maior na formação do sintoma É como numa trupe de atores em que cada qual tem sua especialidade o herói o confidente o intrigante etc Cada um deles escolherá a peça que mais beneficia seu papel específico Desse modo as fantasias que se convertem em sintomas são evidentes sobretudo na histeria os contrainvestimen tos ou formações reativas do Eu dominam o quadro na neurose obsessiva aquilo a que no sonho demos o nome de elaboração secundária ganha como delírio proeminência na paranoia e assim por diante Assim nas neuroses traumáticas em especial naque las ocasionadas pelos horrores da guerra surgenos ine quivocamente um motivo egoísta por parte do Eu bus cando proteção e vantagem motivo que não é capaz de sozinho criar a doença mas que lhe dá aprovação e a mantém uma vez que ela se tenha produzido Esse moti vo pretende proteger o Eu daqueles perigos cuja ameaça ensejou o adoecimento e não permitirá a cura até que a repetição de tais perigos não mais pareça possível ou até que obtenha uma compensação pelo perigo enfrentado 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Em todos os outros casos contudo o Eu demonstra o mesmo interesse no surgimento e na persistência da neurose Já dissemos que também o sintoma é susten tado pelo Eu pois tem um lado que oferece satisfação à tendência repressora desse Eu Além disso a resolução do conflito por meio da formação do sintoma é o resul tado mais cômodo e mais conveniente para o princípio do prazer sem dúvida ele poupa o Eu de um grande trabalho interior sentido como penoso Há mesmo ca sos em que o próprio médico é levado a admitir que a neurose como resultado do conflito representa a solu ção mais inofensiva e socialmente suportável Não se es pantem portanto se os senhores ouvirem que o médico por vezes toma o partido da enfermidade que combate Não lhe cabe no enfrentamento de todas as situações da vida restringirse ao papel do fanático pela saúde ele sabe que no mundo não existe apenas a infelici dade provocada pela neurose mas também sofrimento real irremovível e que a necessidade de um ser huma no pode requerer o sacrifício da própria saúde assim o médico descobre também que mediante tal sacrifício de um indivíduo podese frequentemente impedir que um infortúnio imensurável se abata sobre tantos outros Se pudemos dizer que diante de um conflito o neurótico sempre busca refúgio na doença temos de reconhecer que em muitos casos essa fuga é plenamente justificada e o médico que percebeu esse estado de coisas se retirará em silêncio pleno de consideração para com o enfermo Mas não consideremos esses casos excepcionais no restante de nossa discussão Em circunstâncias normais 506 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM o que percebemos é que desviandose rumo à neuro se o Eu obtém certo ganho interior o benefício da doen ça A ele vem se associar em várias situações da vida uma vantagem exterior palpável que se pode estimar como maior ou menor na realidade Vejam o caso mais frequente dessa natureza Uma mulher que é cruamen te maltratada pelo marido e por ele explorada sem ne nhum escrúpulo geralmente encontra a saída na neuro se quando sua constituição assim o permite quando é muito covarde ou muito ética para secretamente buscar consolo em outro homem quando não é forte o bastan te para contrariar todos os impedimentos exteriores e se separar dele quando não vê perspectiva de se manter sozinha ou de conquistar para si um homem melhor e quando além disso achase ainda vinculada sexual mente a esse marido brutal A doença se torna então sua arma na luta contra a força superior do homem uma arma que ela pode utilizar para sua defesa e da qual pode abusar para sua vingança Sobre a doença ela pode se queixar mas provavelmente não poderia se queixar do casamento No médico ela encontra ajuda obriga o ma rido normalmente inconsiderado a poupála a dispen der dinheiro com ela a lhe permitir que se ausente de casa e assim que se livre por algum tempo da opressão matrimonial Quando tal benefício exterior ou acidental da doença é elevado e não encontra substituto real os senhores não poderão avaliar como grande a possibili dade de a terapia exercer influência sobre a neurose No original Krankheitsgewinn literalmente ganho da doença 07 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Os senhores argumentarão que o que acabo de dizer acerca do benefício da doença depõe inteiramente a fa vor da concepção que eu mesmo havia rejeitado isto é a de que o próprio Eu deseja e cria a neurose Devagar meus senhores Talvez esse benefício signifique apenas que o Eu tolera a neurose que afinal não pode evitar e que faz dela o melhor proveito possível se algum proveito é possível obter daí Esse é apenas um lado da questão e aliás o lado agradável Enquanto a neuro se trouxer vantagens o Eu estará de acordo com ela mas a neurose não possui apenas vantagens Em regra logo se revela que o Eu fez um mau negócio ao se meter com ela Pagou muito caro por um alívio para o confli to e os sofrimentos ligados aos sintomas são talvez um substituto equivalente aos tormentos do conflito mas provavelmente implicam um aumento no desprazer O Eu gostaria de se livrar desse desprazer causado pelos sintomas mas não quer abrir mão do benefício da doen ça e isso ele não consegue Verificase então que o Eu não era tão ativo quanto pensava e isso é um fato que devemos guardar Meus senhores ao lidar com neuróticos na condi ção de médicos logo abandonarão a expectativa de que aqueles que mais se queixam e reclamam de sua doen ça são os mais dispostos a receber ajuda e os que me nos resistência opõem a ela O que acontece é antes o contrário Mas por certo terão facilidade para com preender que tudo o que contribui para o benefício da doença intensifica a resistência da repressão e aumenta a dificuldade terapêutica Sobre a porção do benefício 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM da doença que nasce com o sintoma por assim dizer temos ainda algo a acrescentar que se verifica mais tar de Quando uma organização psíquica como a doença persiste por um tempo maior ela acaba se comportan do como um ser autônomo manifesta algo como um instinto de autoconservação constrói uma espécie de modus YÍYendi entre ela e outras partes da vida psíquica mesmo aquelas que no fundo lhe são hostis e é difícil que não surjam oportunidades nas quais ela volte a se mostrar útil e proveitosa adquirindo uma função se cundária por assim dizer que confere força renovada à sua existência Em vez de um exemplo vindo oriundo da patologia considerem os senhores uma óbvia ilustração extraída da vida cotidiana Um trabalhador capaz que ganha seu pão de cada dia sofre um acidente em seu trabalho e se torna um inválido trabalhar ele agora já não pode mas com o tempo passa a receber uma pe quena pensão por invalidez e aprende a tirar proveito de sua mutilação na condição de mendigo Sua nova exis tência por pior que tenha se tornado assentase agora precisamente naquilo que pôs fim à sua existência an terior Se puderem corrigir sua deformidade os senho res o estarão de início privando de sua subsistência a pergunta que se coloca é se ele ainda é capaz de retomar seu antigo ofício Aquilo que na neurose correspon de a uma tal utilização secundária da enfermidade nós podemos juntar como um benefício secundário àquele benefício primário da doença De modo geral todavia eu gostaria de dizer aos se nhores que não subestimem o significado prático desse 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES benefício da doença nem permitam que ele os impres sione do ponto de vista teórico À parte aquelas primei ras exceções que já admitimos esse benefício sempre nos recorda os exemplos da inteligência dos animais que Oberlander ilustrou nas Fliegende Bliitter Um ára be montado em seu camelo segue por uma trilha estrei ta entalhada na parede íngreme de uma montanha Em uma curva do caminho ele se vê de súbito diante de um leão pronto a dar o bote O árabe não vê saída de um lado a parede vertical de outro o abismo retorno ou fuga são impossíveis está perdido julga O animal porém avalia a situação de outra forma Com o árabe montado no lombo ele salta para o abismo e o leão fica a ver navios Em regra o auxílio prestado pela neuro se não traz melhor resultado para o doente É possível que venha daí o fato de a resolução de um conflito pela formação de sintoma constituir um processo automático que não pode se mostrar à altura das demandas da vida e no qual o ser humano deixa de utilizar suas forças me lhores e mais elevadas Se houvesse escolha seria prefe rível sucumbir em luta honrada contra o destino Mas senhores devolhes ainda uma exposição dos demais motivos pelos quais em minha apresentação da doutrina das neuroses não parti do estado neuró tico comum Talvez os senhores pensem que não o fiz porque teria então maior dificuldade para demonstrar a causação sexual das neuroses Estariam enganados porém Nas neuroses de transferência é preciso antes Adolf Oberliinder 18451923 era um conhecido cartunista 510 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM trabalhar a interpretação dos sintomas a fim de chegar a essa compreensão No caso das formas comuns das chamadas neuroses atuais a importância etiológica da vida sexual é um fato puro e simples que se apresenta por si só à observação Deparei com ele há mais de vinte anos quando um dia me perguntei por que ao exa minar doentes dos nervos suas atividades sexuais eram excluídas regularmente de toda consideração Na épo ca sacrifiquei minha popularidade com os pacientes por causa dessa investigação mas depois de breve empe nho pude formular a tese de que na vida sexual normal não existe neurose referiame à neurose atual Sem dúvida essa tese passa facilmente ao largo das diferen ças individuais entre as pessoas além de padecer da im precisão inerente ao juízo do que vem a ser normal mas que ainda conserva seu valor para uma orientação mais geral Naquele tempo cheguei mesmo a estabele cer relações específicas entre certas formas de neurose e determinadas práticas sexuais nocivas e não duvido que minhas observações se repetissem hoje caso os doentes me oferecessem material semelhante Com bas tante frequência verifiquei que um homem que se con tentava com certo tipo de satisfação sexual incompleta a masturbação por exemplo padecia de determi nada forma de neurose atual e que essa neurose pron tamente dava lugar a outra caso ele trocasse seu regime sexual por outro igualmente repreensível Podia assim depreender da mudança no estado do doente a varia ção ocorrida em sua vida sexual Aprendi também por essa época a insistir nas minhas suposições até superar 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES a insinceridade dos pacientes e obrigálos à confirmação delas É fato que depois disso eles preferiam procurar outros médicos não tão ávidos de informação acerca de sua vida sexual Tampouco pude deixar de perceber que as causas do adoecimento nem sempre apontavam para a vida sexual Um doente podia de fato ter adoecido em consequência de uma prática sexual danosa outro porém em razão de ter perdido sua fortuna ou de ter passado por uma doen ça orgânica extenuante A explicação para essa varieda de veio mais tarde quando adquirimos a compreensão das conjecturadas relações entre o Eu e a libido e ela se revelou tanto mais satisfatória quanto mais profunda se fez tal compreensão Uma pessoa só adoece de neurose quando seu Eu perde a capacidade de acomodar de algu ma maneira a libido Quanto mais forte o Eu mais fácil lhe será o cumprimento dessa tarefa toda debilidade do Eu qualquer que seja a causa há de produzir o mesmo efeito que uma intensificação desmedida da demanda da libido e assim possibilitar o adoecimento neurótico Eu e libido possuem também outras relações mais íntimas as quais no entanto ainda não surgiram no horizonte que ora consideramos e que por isso não busco expli car aqui Essencial e esclarecedor para nós permanece o fato de que em todos os casos independentemente do caminho que conduziu ao adoecimento os sintomas da neurose são sustentados pela libido e assim dão tes temunho do uso anormal dela Agora porém devo chamar a atenção dos senhores para a diferença decisiva entre os sintomas das neuro 12 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM ses atuais e aqueles das neuroses psíquicas das quais o primeiro grupo o das neuroses de transferência tanto nos ocupou até agora Em ambos os casos os sintomas vêm da libido constituindo portanto usos anormais dela satisfação substitutiva Mas os sintomas das neu roses atuais pressão no interior da cabeça sensação de dor irritabilidade em um órgão enfraquecimento ou impedimento de uma função não têm um sentido um significado psíquico Eles não apenas se manifes tam sobretudo no corpo como sucede com os sintomas histéricos por exemplo como são também processos inteiramente físicos em cujo surgimento não atuam os complicados mecanismos psíquicos de que tomamos conhecimento São de fato aquilo que por tanto tem po se acreditou que eram os sintomas psiconeuróticos Como podem então corresponder a aplicações da libi do que conhecemos como uma força que atua nas psi que Isso meus senhores é muito fácil Permitamme recordar uma das primeiras objeções levantadas contra a psicanálise Diziase que ela buscava uma teoria pu ramente psicológica dos fenômenos neuróticos e que o fazia em vão porque teorias psicológicas jamais pode riam explicar uma enfermidade As pessoas preferiam esquecer que a função sexual não é coisa puramente psí quica assim como tampouco meramente somática Ela influencia tanto a vida do corpo como a da psique Se nos sintomas das psiconeuroses vimos manifestações de distúrbios na atuação psíquica da função sexual não nos espantará descobrir nas neuroses atuais consequên cias somáticas diretas dos distúrbios sexuais 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Para a compreensão desses a clínica médica nos fornece valioso indício que já foi levado em conta por pesquisadores diversos Tanto nos detalhes de sua sin tomatologia como na peculiaridade de influenciar todos os sistemas de órgãos e todas as funções as neuroses atuais manifestam inequívoca semelhança com os es tados patológicos decorrentes da influência crônica de substâncias tóxicas estranhas e da súbita retirada delas ou seja com as intoxicações e os estados de abstinên cia Esses dois grupos de afecções se aproximam ainda mais pela mediação de estados que também aprendemos a relacionar com o efeito produzido por substâncias tó xicas como a doença de Basedow mas nesse caso não por toxinas estranhas introduzidas no corpo e sim por aquelas produzidas pelo próprio metabolismo O que quero dizer é que diante dessas analogias não pode mos deixar de ver as neuroses como consequências de perturbações em um metabolismo sexual seja por que essas toxinas são produzidas em quantidade maior do que aquela com a qual uma pessoa é capaz de lidar ou porque circunstâncias internas e mesmo psíquicas estão prejudicando a utilização correta dessas substân cias Desde sempre a psique popular rendeu tributo a suposições desse tipo sobre a natureza do desejo sexual ela chama o amor de embriaguez e atribui a poções do amor o nascimento da paixão com o que de certo modo desloca seu agente para o exterior Esta pode ria ser para nós uma oportunidade de lembrar as zo nas erógenas e a afirmação de que a excitação sexual pode ter origem nos mais diversos órgãos De resto 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM porém a expressão metabolismo sexual ou química da sexualidade é do nosso ponto de vista desprovida de conteúdo nada sabemos a seu respeito e não pode mos sequer nos decidir se devemos supor a existência de duas substâncias sexuais às quais chamaríamos então de masculina e feminina ou nos conten tar com uma única toxina sexual na qual nos caberia identificar a portadora de todos os efeitos estimulantes da libido O edifício que erguemos da teoria psicana lítica é na realidade uma superestrutura que um dia deverá ser assentado sobre o seu fundamento orgânico mas este ainda não conhecemos Como ciência a psicanálise não se caracteriza pela matéria de que trata e sim pela técnica com que traba lha Podese aplicála tanto à história da civilização ao estudo da religião e da mitologia como à teoria das neu roses sem com isso violentar sua natureza Ela não faz nem pretende fazer outra coisa que não seja desvendar o inconsciente na vida psíquica Os problemas das neu roses atuais cujos sintomas decorrem provavelmente de dano tóxico direto não oferecem nenhum ponto de acesso à psicanálise ela pouco pode fazer para aclará los cabendolhe pois deixar essa tarefa à pesquisa médicobiológica Talvez os senhores compreendam agora por que não escolhi outra ordem para a minha ex posição Tivesse eu prometido uma introdução à teoria James Strachey observa numa nota que Freud rejeitaria clara mente essa noção nas NoYas conforências introdutórias à psicanálise 1933 conferência 33 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES das neuroses sem dúvida o caminho correto teria sido partir das formas simples das neuroses atuais rumo aos adoecimentos psíquicos mais complexos decorrentes da perturbação da libido Quanto às primeiras eu pre cisaria reunir tudo que aprendemos ou acreditamos sa ber de diversas fontes e no caso das psiconeuroses a psicanálise trataria então de elucidálas na qualidade de instrumento técnico mais importante para isso Con tudo o que pretendi fazer e anunciei foi uma intro dução à psicanálise para mim era mais importante que os senhores adquirissem uma ideia da psicanálise do que certos conhecimentos acerca das neuroses razão pela qual eu não podia pôr em primeiro plano as neu roses atuais infrutíferas no que concerne à psicanálise Creio de resto ter feito a escolha mais proveitosa para os senhores pois graças ao alcance de suas premissas e a suas conexões abrangentes a psicanálise merece um lugar no interesse de toda pessoa culta já a teoria das neuroses é um capítulo entre outros da medicina De todo modo os senhores abrigarão a justa expec tativa de que dediquemos alguma atenção também às neuroses atuais A íntima conexão clínica que elas têm com as psiconeuroses já nos obriga a fazêlo Então devo lhes comunicar que diferenciamos três formas pu ras de neurose atual a neurastenia a neurose de angústia e a hipocondria Mesmo essa afirmação não se acha livre de objeções É verdade que esses termos são emprega dos mas seu conteúdo é indefinido e oscilante Há mé dicos que resistem a toda distinção no confuso mundo dos fenômenos neuróticos a qualquer destaque de enti 16 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM dades clínicas ou doenças particulares e que não reco nhecem nem mesmo a separação entre neuroses atuais e psíquicas Pareceme que vão longe demais e que não tomaram o caminho que leva adiante Ocasionalmente as formas de neurose mencionadas ocorrem de maneira pura mais frequente é no entanto que se misturem en tre si e com uma afecção psiconeurótica Esse fato não precisa nos levar a abrir mão da separação entre elas Pensem na diferença entre o estudo dos minerais e o das pedras na mineralogia Os minerais são descritos em sua individualidade decerto com base no fato de que como cristais apresentamse amiúde claramente apar tados de seu entorno As pedras consistem em misturas de minerais que com certeza não se juntaram por aca so mas em consequência das condições de seu surgi mento Na teoria das neuroses compreendemos ainda muito pouco sobre o curso de seu desenvolvimento para podermos criar algo semelhante à petrologia Mas sem dúvida estamos corretos se primeiramente isolamos da massa as entidades clínicas que podemos reconhecer comparáveis aos minerais Uma relação digna de nota entre os sintomas das neuroses atuais e das psiconeuroses oferecenos outra importante contribuição para o estudo da formação dos sintomas nestas últimas O sintoma da neurose atual é com frequência o núcleo e estágio preliminar do sin toma psiconeurótico Uma relação desse tipo pode ser observada da maneira mais nítida entre a neurastenia e a neurose de transferência a que se dá o nome de his teria de conversão entre a neurose de angústia e a his 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES teria de angústia mas também entre a hipocondria e aquelas formas que mais adiante serão mencionadas sob os nomes de parafrenia dementia praecox e paranoia Tomemos como exemplo o caso de uma dor de cabeça ou dor lombar histéricas A análise nos mostra que me diante condensação e deslocamento ela se tornou su cedâneo da satisfação para toda uma série de fantasias ou lembranças libidinais Mas essa dor também já foi real outrora foi um sintoma diretamente tóxicosexual expressão física de uma excitação libidinal Não preten demos de modo algum afirmar que todos os sintomas histéricos possuem tal núcleo mas o fato é que esse é frequentemente o caso e que todas as influências que a excitação libidinal exercem sobre o corpo normais ou patológicas têm preferência na formação dos sin tomas da histeria Elas desempenham o papel do grão de areia que o molusco envolve em camadas de madre pérola Da mesma forma os sinais passageiros de ex citação que acompanham o ato sexual são empregados pela psiconeurose como o material mais conveniente e apropriado para a formação de sintomas Semelhante processo oferece particular interes se diagnóstico e terapêutico Não é raro suceder em pessoas predispostas à neurose mas que não têm uma neurose evidente que uma alteração física de natureza patológica uma inflamação digamos ou algum fe rimento põe em marcha o trabalho da formação do sintoma que então transforma rapidamente o sintoma que lhe é dado pela realidade em representante de todas as fantasias inconscientes que se acham à espreita de um 25AANGÚSTIA meio de expressão do qual se apoderem Em um caso assim o médico tomará ora um ora outro caminho te rapêutico ou desejará eliminar o fundamento orgânico sem se preocupar com sua estridente elaboração neuró tica ou combaterá a neurose surgida oportunamente e dará pouca atenção ao seu ensejo orgânico O sucesso provará a correção ou incorreção de uma ou de outra abordagem dificilmente podemos estabelecer prescri ções gerais para esses casos mistos 25 A ANGÚSTIA Senhoras e senhores Com certeza terão percebido o que falei sobre o estado neurótico em geral na confe rência anterior como a mais incompleta e insuficien te de minhas exposições Sei disso e creio que nada os terá surpreendido mais do que a ausência de qual quer menção à angústia é dela afinal que se queixa a maioria dos neuróticos que a caracterizam como seu padecimento mais terrível e a angústia pode realmente alcançar neles uma enorme intensidade e ter por conse quência as medidas mais desvairadas Nisso ao menos não quis ser sucinto com os senhores pelo contrário minha intenção era enfocar com ênfase particular o problema da angústia nos neuróticos discutindoo de talhadamente com os senhores Não necessito apresentarlhes a angústia em si cada um de nós já experimentou essa sensação ou melhor dizendo esse estado afetivo Mas acho que ninguém ja 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES mais se perguntou com bastante seriedade por que jus tamente os neuróticos sentem angústia de modo mais frequente e mais intenso do que as outras pessoas Tal vez porque considerem óbvia a resposta afinal as pala vras nervos nervoso neurótico e iingstlich angustiado são habitualmente empregadas uma em lugar da outra como se significassem a mesma coisa Mas não é correto fazêlo há pessoas angustiadas que de resto não são nada neuróticas assim como há neuróticos que sofrem de variados sintomas entre os quais contudo a tendên cia à angústia não está presente Seja como for é certo que o problema da angústia configura um ponto nodal para o qual convergem ques tões as mais diversas e importantes um enigma cuja solução haverá de lançar luz abundante sobre o conjun to de nossa vida psíquica Não vou afirmar que posso oferecerlhes essa solução mas os senhores por certo hão de esperar que a psicanálise aborde também esse tema diferentemente do modo como o fazem as esco las de medicina Nelas o interesse se volta sobretudo para os caminhos anatômicos pelos quais o estado de angústia se produz Explicam que com a estimulação da medulla oblongata o doente descobre que sofre de uma neurose do nervus vagus A medulla oblongata é de fato um tema sério e interessante Lembrome muito bem de quanto tempo dediquei a seu estudo anos atrás Hoje no entanto devo dizer que não conheço nada que pudesse ser mais inútil ao entendimento psicológico da angústia do que o conhecimento da via nervosa percor rida por suas excitações 20 25 A ANGÚSTIA No começo é possível abordar a angústia por um bom tempo sem dar atenção aos estados neuróticos Os senhores me entenderão perfeitamente se eu caracteri zar essa angústia como realista por oposição à neuró tica A angústia realista nos parece bastante racional e compreensível Diremos que é uma reação à percepção de um perigo externo ou seja de um dano esperado previsto está vinculada ao reflexo da fuga e é lícito considerála manifestação do instinto de autoconser vação Em que ocasiões ou seja ante quais objetos e em que situações essa angústia surge isso é claro de pende em grande parte do estado de nosso saber e de nosso sentimento de poder frente ao mundo exterior Julgamos inteiramente compreensível que o selvagem sinta medo de um canhão e que um eclipse o angustie ao passo que sob as mesmas circunstâncias o homem branco capaz de manejar a arma e de prever o eclip se do sol permanece livre de angústia Outras vezes é justamente o maior saber que favorece a angústia porque permite antever o perigo Assim o selvagem se assustará com pegadas na mata que nada informam ao insciente mas lhe denunciam a proximidade de um ani mal feroz e um navegante experiente contemplará com horror uma nuvenzinha que parece inofensiva ao pas sageiro mas lhe anuncia a aproximação de um furacão Refletindo melhor temos de admitir que o juízo acerca da angústia realista o de que ela é racional e adequada necessita de rigorosa revisão O único comportamento adequado ante a ameaça de um perigo seria com efeito avaliar calmamente as próprias forças 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES em comparação com o tamanho da ameaça e então de cidir que alternativa oferece maior perspectiva de um bom desfecho se a fuga a defesa ou mesmo o ataque Mas nesse contexto não há lugar para a angústia tudo o que ocorre sucederia de toda forma e provavelmente de melhor maneira se a angústia não se desenvolvesse Os senhores veem portanto que em intensidade demasia da a angústia se revela extremamente inadequada pois paralisa toda ação inclusive a fuga De hábito a reação ao perigo consiste em uma mescla de afeto de angústia e ação defensiva O animal assustado se angustia e foge mas o adequado nisso é a fuga não o angustiarse Portanto sentimonos tentados a afirmar que o de senvolvimento da angústia jamais é adequado Decom por com mais cuidado a situação angustiante talvez nos ajude a obter uma melhor compreensão do assunto A primeira coisa que verificamos nela é a prontidão diante do perigo a qual se manifesta em maior atenção sen sorial e tensão motora Essa prontidão expectante deve ser reconhecida como vantajosa de fato sua ausência poderia ser responsável por sérias consequências Dela advém por um lado a ação motora de início a fuga em um estágio mais elevado a defesa ativa e de ou tro aquilo que sentimos como o estado de angústia Quanto mais o desenvolvimento da angústia se reduz a mero estágio inicial a um sinal tanto mais imperturba da essa prontidão se converte em ação e tanto mais ade quado se configura todo o curso de eventos Portanto adequado naquilo a que chamamos angústia pareceme ser a prontidão e inadequado o seu desenvolvimento 22 25 A ANGÚSTIA Evito aqui aprofundarme na questão de saber se linguagem corrente designa a mesma coisa ou coisas claramente diferentes com as palavras Angst angústia ou medo Furcht temor e Schreclc terror Apenas acho que angústia se refere ao estado não conside rando o objeto ao passo que temor chama a atenção precisamente para o objeto Terror por outro lado parece ter um sentido especial o de realçar o efeito de um perigo que não é recebido com a prontidão da an gústia Podese dizer assim que o homem se protege do terror por meio da angústia Uma certa ambiguidade e indefinição no uso da pa lavra angústia não terá escapado aos senhores Na maioria das vezes entendese por angústia o estado subjetivo em que ficamos graças à percepção do de senvolvimento da angústia e chamase a isso um afeto Mas o que é um afeto no sentido dinâmico do termo De todo modo é algo composto Um afeto compreen de em primeiro lugar determinadas inervações moto ras ou descargas em segundo certas sensações de dois tipos distintos as percepções das ações motoras ocor ridas e as sensações diretas de prazer e desprazer que dão o tom como se diz ao afeto Não acredito porém que com essa enumeração cheguemos à essência do afe to Em alguns afetos acreditamos enxergar mais fundo e reconhecer que o núcleo que sustenta o conjunto é a repetição de determinada vivência cheia de significado Ela poderia ser apenas alguma impressão bastante pre coce e de natureza muito geral que deve ser situada não na préhistória do indivíduo mas na da espécie Para 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES dizêlo de forma mais compreensível o estado afetivo seria construído como um ataque histérico seria como esse o precipitado de uma reminiscência O ataque his térico é comparável portanto a um afeto individual recémformado e o afeto normal à expressão de uma histeria geral que se tornou herança Não suponham os senhores que aquilo que eu disse sobre os afetos é patrimônio reconhecido da psicologia normal Pelo contrário são concepções que brotaram do terreno da psicanálise e somente nele se acham em casa O que os senhores podem aprender sobre os afetos na psicologia a teoria de JamesLange por exemplo é para nós psicanalistas algo incompreensível e que nem podemos discutir Tampouco entendemos que nos so saber nessa área esteja assegurado tratase de uma primeira tentativa de nos orientarmos nesse terreno obscuro Prossigo pois com minha exposição No caso do afeto de angústia acreditamos saber que impressão precoce ele repete Acreditamos que se trata do ato do nascimento no qual se dá aquele agrupamento de sen sações de desprazer impulsos de descarga e sensações corporais que se tornou para nós o modelo do efeito gerado por um perigo de vida e que desde então re petimos sob a forma do estado de angústia No aumen to enorme da estimulação verificado outrora devido à interrupção da renovação do sangue da respiração in terna encontrase a causa da vivência da angústia a primeira angústia foi portanto uma angústia tóxica O substantivo Angst angústia angustiae aperto em latim enfatiza o estreitamento da respiração pre 25 A ANGÚSTIA sente então como consequência da situação real e hoje reproduzido quase regularmente no afeto Reconhe ceremos também como bastante significativo o fato de aquele primeiro estado de angústia ter decorrido da se paração da mãe Por certo estamos convencidos de que a disposição de repetir aquele primeiro estado de angús tia foi tão incorporada ao organismo por uma série de incontáveis gerações que nenhum indivíduo logra esca par ao afeto de angústia ainda que como o lendário Macduff ele tenha sido arrancado prematuramente do ventre da mãe isto é que não tenha experimentado o ato do nascimento O que se tornou o modelo do estado de angústia para os outros animais os não mamíferos isso não sabemos dizer De resto tampouco sabemos que complexo de sensações equivale nessas criaturas à nossa angústia Interessará aos senhores ouvir como alguém pode chegar a tal ideia a de que o ato do nascimento é a fonte e o modelo do afeto da angústia É mínimo o papel desempenhado aí pela especulação o que fiz foi tomar um empréstimo do ingênuo pensamento popular Há muitos anos ainda como jovens médicos de hospital estávamos sentados à mesa do almoço no restaurante quando um assistente da obstetrícia se pôs a contar his tórias engraçadas ocorridas na recémacontecida prova das parteiras Perguntaram a uma candidata o que sig nificava a presença de mecônio excremento no líquido do parto ao que ela de pronto respondeu Significa que o bebê está com medo Riram muito dela e foi repro vada Em silêncio porém tomei o partido da candidata 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES e comecei a desconfiar que aquela pobre mulher do povo havia candidamente revelado um nexo importante Passemos agora à angústia neurótica Que novas formas e relações nos mostra a angústia nos neuróti cos Nisso há muito a relatar Em primeiro lugar en contramos um estado de angústia generalizado uma digamos angústia flutuante pronta a se apegar a todo e qualquer conteúdo vagamente apropriado uma angús tia que influencia o juízo que seleciona expectativas à espreita de uma oportunidade para justificarse A esse estado damos o nome de angústia expectante ou ex pectativa angustiada Pessoas que sofrem desse tipo de angústia preveem sempre a concretização da pos sibilidade mais terrível interpretam todo acaso como sinal de alguma desgraça exploram toda incerteza no pior sentido Essa tendência a esperar desgraças é um traço de caráter de muitas pessoas que em geral não poderíamos caracterizar como doentes são chamadas de muito angustiadas ou pessimistas Mas uma notável medida de angústia expectante é em regra parte inte grante de uma afecção nervosa que chamei de neurose de angústia e que incluo entre as neuroses atuais Em contraposição à que acabo de descrever uma segunda forma de angústia apresenta vinculação acima de tudo psíquica e está ligada a certos objetos ou deter minadas situações Ela é encontrada nas fobias que são bastante variadas e frequentemente muito singulares Stanley Hall o respeitado psicólogo norteamericano deuse recentemente ao trabalho de nos apresentar toda essa ampla gama de fobias com suntuosos nomes gre ZSAANGÚSTIA gos A lista soa como uma enumeração das dez pragas egípcias mas seu número excede em muito a dezena Ouçam os senhores a multiplicidade de coisas que po dem ser objeto ou conteúdo de uma fobia escuridão ar livre lugares abertos gatos aranhas lagartas co bras ratos tempestades pontas afiadas sangue espa ços fechados multidões solidão travessia de pontes viagens marítimas e ferroviárias e assim por diante Em uma primeira tentativa de nos orientarmos nesse torvelinho o que se apresenta mais à mão é distinguir três grupos Vários desses objetos ou dessas situações temidas possuem também para nós pessoas normais algo de inquietante alguma relação com o perigo ra zão pela qual as fobias não nos parecem incompreensí veis ainda que bastante exageradas em sua intensidade Assim a maioria de nós experimentará um sentimento de repugnância ao deparar com uma cobra A fobia de cobras podese dizer é generalizada entre os seres hu manos e Charles Darwin descreveu de maneira muito impressionante como não conseguiu evitar a angústia diante de uma cobra que avançava em sua direção em bora se soubesse protegido por uma espessa lâmina de vidro Em um segundo grupo situamos aquelas fobias nas quais uma relação com o perigo está presente mas um perigo que estamos acostumados a minimizar e a não antever A esse grupo pertence a maioria das fobias situacionais Sabemos que em uma viagem de trem a chance de sofrermos um acidente ou seja a chance de um choque de trens é maior do que se ficássemos em casa sabemos também que um navio pode afundar 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES e que se isso acontecer poderemos morrer afogados contudo não pensamos nesses perigos e viajamos sem nos angustiar tanto de trem como de navio Tampouco se pode negar que mergulharíamos no rio caso a ponte sobre ele desmoronasse no momento em que passamos por ela mas é tão raro isso acontecer que nem sequer levamos em conta esse perigo Também a solidão tem seus perigos razão pela qual a evitamos em certas cir cunstâncias mas não se trata de qualquer que seja a circunstância não podermos suportála por um mo mento sequer Algo semelhante vale para as multidões os espaços fechados os temporais e assim por diante O que nos causa estranheza nessas fobias dos neuróti cos não é tanto o conteúdo e sim a intensidade delas A angústia das fobias é verdadeiramente inapelável Às vezes temos a impressão de que os neuróticos não se angustiam diante daquelas mesmas situações que sob certas circunstâncias poderiam angustiar também a nós embora eles as chamem pelos mesmos nomes Restanos um terceiro grupo de fobias já inacessí vel a nosso entendimento Quando um homem adulto forte não consegue atravessar uma rua ou praça de sua tão familiar cidade natal ou quando uma mulher saudá vel bem constituída mergulha em desvairada angústia porque um gato roçou a barra de seu vestido ou um rato atravessou a sala como estabelecer aí a ligação com o perigo que evidentemente existe para o fóbico No caso das fobias de animais pertencentes a esse grupo já não se trata da intensificação daquelas antipatias comuns a todas as pessoas uma vez que como se a demonstrar o ZSAANGÚSTIA oposto existem numerosas pessoas que são incapazes de passar por um gato sem pretender atraílo ou acariciá lo Também o ratinho tão temido pelas mulheres é ao mesmo tempo um apelido carinhoso de primeira gran deza muitas mocinhas que assim se deixam chamar com satisfação por seu namorado gritam horrorizadas à visão do gracioso bichinho de mesmo nome Para o homem incapaz de atravessar uma rua ou praça a úni ca explicação que se nos impõe é que ele se comporta como uma criança pequena Em sua educação a criança é advertida a evitar tais situações porque elas são peri gosas e de fato o agorafóbico se vê protegido de sua angústia se o acompanhamos até o outro lado da praça As duas formas da angústia aqui descritas a flutuan te angústia de expectativa e as angústias ligadas a fo bias são independentes uma da outra Não se trata de uma ser digamos estágio mais elevado da outra sua ocorrência simultânea constitui exceção e quando isso acontece é como se por mera casualidade Não é forço so que o estado de angústia mais intenso e mais gene ralizado se manifeste por meio das fobias pessoas que tiveram sua vida toda limitada pela agorafobia podem nunca ter apresentado a angústia pessimista de expecta tiva Está comprovado que muitas das fobias como aquelas provocadas por praças ou vias férreas são adquiridas apenas na idade adulta outras como as an gústias causadas pela escuridão por temporais ou por animais parecem ter estado presentes desde o início As fobias do primeiro tipo significam doenças graves as do segundo mais parecem excentricidades caprichos 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES Aquele que apresenta uma fobia desse último tipo nes te é lícito supor que outras semelhantes se manifestarão também Devo acrescentar que incluímos todas essas fobias na categoria das histerias de angústia ou seja nós as vemos como afecções bastante aparentadas à conhe cida histeria de conversão A terceira das formas assumidas pela angústia neuró tica nos coloca diante de um mistério nesse caso perde mos de vista por completo a conexão entre a angústia e o perigo ameaçador Na histeria por exemplo essa angús tia acompanha os sintomas histéricos ou pode também surgir numa condição qualquer de excitação São situa ções em que esperaríamos uma manifestação afetiva mas em que a manifestação do afeto da angústia cons tituiria a mais inesperada de todas Ou essa terceira for ma de angústia pode ainda desvinculada de quaisquer condições e de modo incompreensível tanto para nós como para o doente manifestarse em um acesso gratui to sem que se verifique em parte alguma um perigo ou pretexto que exagerado pudesse levar a tanto Nesses acessos espontâneos descobrimos então que o com plexo que chamamos de estado de angústia pode sofrer uma fragmentação O acesso em si pode consistir em um sintoma único e intensamente desenvolvido ou seja em uma tremedeira tontura uma palpitação ou falta de ar mas o sentimento geral que nos permite identificar a angústia pode estar ausente ou ter se tornado imper ceptível Não obstante esses estados que descrevemos como equivalentes da angústia devem ser equiparados à angústia em todos os aspectos clínicos e etiológicos 30 25 A ANGÚSTIA Duas questões surgem aqui Podemos relacionar a angústia neurótica na qual o perigo não desempenha papel nenhum ou apenas papel muito pequeno com a angústia realista que constitui de fato uma reação ao perigo E como haveremos de compreender a angústia neurótica Em primeiro lugar devemos nos ater à ex pectativa de que onde há angústia deve haver também aquilo que angustia Para a compreensão da angústia neurótica a obser vação clínica nos fornece várias indicações cujo signi ficado pretendo agora lhes expor a Não é difícil constatar que a angústia expectante ou ansiedade Ãngstlichkeit geral tem estreita vincula ção com determinados processos da vida sexual com certos empregos da libido digamos O caso mais sim ples e instrutivo desse tipo é aquele que se verifica em pessoas expostas à chamada excitação frustrânea ou seja em que a intensa excitação sexual não experimenta descarga suficiente não é conduzida a desfecho satis fatório Estamos falando portanto de homens ainda durante o noivado ou de mulheres cujos maridos não são potentes o bastante ou que por cautela praticam o ato sexual de forma abreviada ou interrompida Sob tais condições a excitação libidinal desaparece e em seu lugar surge a angústia tanto sob a forma de an gústia expectante como em acessos e equivalentes A interrupção cautelosa do ato sexual quando praticada como regime sexual é causa tão frequente da neurose de angústia em homens e em especial nas mulhe res que se recomenda na prática médica que nesses 531 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES casos a busca etiológica principie por aí O que então se verifica em inúmeros casos é que uma vez eliminada a má prática sexual a neurose de angústia desaparece Tanto quanto sei a existência de uma relação entre contenção sexual e estados de angústia já não é contesta da nem mesmo por médicos distantes da psicanálise Mas posso bem imaginar que não se tenha ainda abandonado a tentativa de invertêla e defender a concepção de que se trata na verdade de pessoas que de antemão possuem tendência à angústia e que por isso exercitam contenção também em questões sexuais Contraria decisivamente essa possibilidade o comportamento das mulheres cuja prática sexual é de natureza mais passiva em essência isto é determinada pela atitude do homem Quanto mais vigorosa a mulher ou seja quanto mais disposta à rela ção sexual e capaz de obter satisfação tanto mais certa mente reagirá ela à impotência do marido ou ao coito in terrompido com manifestações de angústia ao passo que esse mesmo tratamento desempenhará papel bem menor em mulheres apáticas ou menos libidinais É claro que a abstinência sexual agora recomendada com tanta ênfase pelos médicos só terá a mesma impor tância para o surgimento de estados de angústia quando a libido à qual se nega a descarga satisfatória apresen tar força correspondente e não se resolver em sua maior parte pela sublimação São sempre os fatores quantita tivos que decidem se há adoecimento ou não Mesmo quando não se trata de doença mas de configuração do caráter podese reconhecer facilmente que o exer cício da restrição sexual caminha de mãos dadas com í32 25AANGÚSTIA certa ansiedade e hesitação ao passo que a intrepidez e a ousadia implicam indulgência para com a necessida de sexual Por mais que essas relações sejam alteradas e complicadas por influências culturais diversas perma nece válido para a média das pessoas o vínculo existente entre angústia e restrição sexual Estou longe de ter comunicado aos senhores as ob servações todas que depõem a favor da relação genética entre libido e angústia sustentada aqui Entre elas tam bém está por exemplo a influência de certas fases da vida no adoecimento por angústia como a puberdade e o período da menopausa às quais podemos atribuir considerável aumento na produção da libido Em vá rios estados de excitação se pode observar diretamente a mistura de libido e angústia e por fim a substituição daquela por essa São duas as impressões que se adqui re de todos esses fatos em primeiro lugar a de que se trata de uma acumulação da libido impedida de ter seu emprego normal em segundo a de que nisso nos en contramos no terreno dos processos somáticos Como a angústia nasce da libido não é claro inicialmente apenas constatamos a falta da libido e observamos a presença da angústia em seu lugar h Uma segunda indicação nós extraímos da análi se das psiconeuroses e em especial da histeria Vimos que nessa afecção a angústia frequentemente acompa nha os sintomas mas também há a angústia desvincu lada que se manifesta como acesso ou como condição No contexto esse adjetivo diz respeito à gênese não aos genes 533 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES permanente Os doentes não sabem dizer o que os an gustia e mediante uma inequívoca elaboração secun dária ligam sua angústia àquelas fobias mais à mão a de morrer a de enlouquecer ou a de sofrer um derrame Quando submetemos à análise a situação da qual se ori gina a angústia ou os sintomas que ela acompanha em geral somos capazes de dizer que curso normal de even tos psíquicos deixou de ocorrer e foi substituído pelo fenômeno da angústia Expressandoo de outra forma nós construímos o processo inconsciente como ele se ria se não tivesse sofrido repressão e sim prossegui do sem qualquer impedimento em seu caminho rumo à consciência Também esse processo terá sido acom panhado por determinado afeto e descobrimos então para nossa surpresa que o afeto que acompanha o curso normal de eventos é em todos os casos substituído pela angústia após a repressão independentemente de sua qualidade Assim quando deparamos com um estado histérico de angústia seu correlato inconsciente pode ser um impulso de caráter semelhante ou seja de an gústia vergonha embaraço e também um impulso libidinal positivo ou hostil e agressivo como raiva e fú ria A angústia é portanto a moeda universal corrente pela qual são ou podem ser trocados todos os impulsos afetivos quando o conteúdo ideativo a eles ligados foi submetido à repressão c Uma terceira descoberta fazemos com aqueles doentes que realizam ações obsessivas que de maneira digna de nota parecem ser isentos de angústia Quando tentamos impedilos de efetuar sua ação obsessiva de 534 25AANGÚSTIA se lavar de realizar seu cerimonial ou quando eles próprios ousam tentar abandonar uma de suas obses sões uma angústia terrível os obriga a obedecer a ela Entendemos que a angústia estava encoberta pela ação obsessiva que esta só foi realizada para evitar aquela Portanto a angústia que de outro modo sobreviria é substituída pela formação do sintoma na neurose ob sessiva Também quando nos voltamos para a histeria encontramos nessa neurose uma relação semelhante do processo repressivo resulta ou o desenvolvimento puro da angústia ou angústia acompanhada de formação de sintoma ou ainda uma mais completa formação de sin toma sem a presença da angústia Em sentido abstra to portanto não nos pareceria incorreto dizer que os sintomas se formam apenas para escapar ao desenvol vimento de outro modo inevitável da angústia Essa concepção situa a angústia por assim dizer no centro de nosso interesse pelos problemas da neurose De nossas observações acerca da neurose de angús tia havíamos concluído que o desvio da libido de seu emprego normal que dá origem à angústia ocorre no terreno dos processos somáticos As análises da histe ria e da neurose obsessiva permitem acrescentar que o mesmo desvio com idêntico resultado pode ser tam bém efeito de uma rejeição por parte das instâncias psí quicas Isso é pois tudo que sabemos acerca do sur gimento da angústia neurótica ainda parece bastante impreciso No momento porém não vejo caminho que possa nos levar adiante A segunda tarefa que propuse mos a nós mesmos que é o estabelecimento de uma li m 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES gação entre a angústia neurótica que é libido emprega da de forma anormal e a angústia realista que equivale a uma reação ao perigo parece ainda mais difícil de ser realizada Gostaríamos de acreditar que são ambas coisas bem díspares e no entanto não temos meios de distinguir nas sensações que provocam a angústia rea lista da neurótica A ligação procurada estabelecese por fim quando tomamos como premissa a oposição já sustentada di versas vezes entre Eu e libido Como sabemos o de senvolvimento da angústia é a reação do Eu ao perigo e o sinal para o início da fuga É natural pois que en tendamos que na angústia neurótica o Eu empreende semelhante tentativa de fuga diante da demanda de sua libido e que trata esse perigo interior como se fosse ex terior Assim se cumpriria nossa expectativa de que onde se manifesta a angústia também há algo que an gustia Mas essa analogia poderia ser levada adiante Assim como a tentativa de fuga ante o perigo exterior dá lugar ao enfrentamento e a medidas que visam à de fesa também o desenvolvimento da angústia neurótica cede lugar à formação do sintoma o que produz uma vinculação da angústia A dificuldade de entendimento situase agora em outro ponto A angústia que significa uma fuga do Eu de sua libido deve ter se originado dessa mesma libido Isso é obscuro e nos adverte a não esquecer que a libi do de uma pessoa é fundamentalmente parte dela pró pria não pode contraporse a ela como algo exterior É a dinâmica topológica do desenvolvimento da angústia 25AANGÚSTIA ainda obscura para nós a questão de que energias psí quicas são aí despendidas e de que sistemas psíquicos provêm Não posso lhes prometer uma resposta tam bém para essa pergunta mas não podemos deixar de se guir duas outras pistas e de mais uma vez nos servir da observação direta e da pesquisa analítica como auxílio para nossa especulação Vamos nos voltar para a gênese da angústia na criança e para a procedência da angústia neurótica que está ligada às fobias A ansiedade é muito comum em crianças mas é di fícil determinar se se trata de angústia neurótica ou realista O próprio valor dessa distinção é questionado pelo comportamento das crianças Por um lado não nos admiramos quando uma criança se angustia diante de estranhos ou de novas situações e novos objetos uma reação que explicamos a nós mesmos atribuindoa com muita facilidade à sua fraqueza e insciência Então atri buímos à criança uma forte propensão à angústia realista e consideraríamos inteiramente adequado se tal ansieda de fosse uma herança congênita A criança estaria as sim apenas repetindo o comportamento do homem pri mordial e dos primitivos de nossos dias aqueles que em razão de sua ignorância e desamparo temem tudo que é novo e muito do que é familiar que hoje não nos inspira medo nenhum Essa explicação atenderia também ple namente a nossa expectativa caso as fobias infantis fos sem ainda ao menos em parte as mesmas que podemos atribuir aos primórdios do desenvolvimento humano Mas por outro lado não podemos ignorar que nem todas as crianças são angustiadas na mesma medida e 537 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES que aquelas que mostram particular temor frente a to dos os objetos e situações possíveis são precisamente as que se revelam neuróticas mais tarde Portanto a dis posição para a neurose é também denunciada por uma clara tendência à angústia realista a ansiedade apare ce como o elemento primário e chegamos à conclusão de que a criança e mais tarde o adolescente se angustia ante a intensidade de sua libido porque jus tamente tudo lhe provoca angústia Com isso estaria refutada a hipótese do surgimento da angústia a partir da libido e pesquisandose as condições para a angús tia realista chegarseia coerentemente à concepção de que a consciência da própria debilidade e desamparo da própria inferioridade na terminologia de A Adler é a causa última da neurose se essa consciência pu der se prolongar da infância à idade madura Isso soa tão simples e sedutor que merece nossa aten ção É certo que implicaria um deslocamento do enigma do estado neurótico A continuidade do sentimento de inferioridade e assim da condição para a angústia e para a formação do sintoma parece tão garantida que o que pede uma explicação é antes aquilo que entende mos como saúde quando uma condição saudável vem excepcionalmente a se verificar O que porém uma observação cuidadosa da ansiedade das crianças leva a perceber A criança pequena se angustia acima de tudo diante de pessoas estranhas situações só se tor nam importantes na medida em que envolvem pessoas e quanto aos objetos apenas mais tarde eles são leva dos em consideração Mas a criança se angustia diante 25 A ANGÚSTIA de estranhos não porque lhes atribua más intenções e compare sua própria debilidade à força deles ou seja não porque reconheça neles perigos para sua existência segurança ou ausência de dor Uma criança tão descon fiada apavorada com o instinto de agressão que domina o mundo não passa de uma construção teórica malo grada Na verdade a criança se assusta diante de uma figura estranha porque espera ver a pessoa conhecida e amada no fundo a mãe É sua decepção e seu anseio que se transformam em angústia ou seja em libido que se tornou inutilizável que nesse momento não pode ser mantida em suspenso e é descarregada como angústia Dificilmente será casual que nessa situação modelar da angústia infantil se repita a condição para o primeiro es tado de angústia que se verifica no ato do nascimento a separação da criança de sua mãe As primeiras fobias ligadas à situação nas crianças são as do escuro e da solidão A primeira muitas vezes se prolonga por toda a vida comum a ambas é a ausência daquela que cuida e ama isto é a mãe Certa feita ouvi uma criança angustiada com a escuridão gritar para o quarto ao lado Tia fale comigo estou com medo Mas de que adianta eu falar se você não pode me ver E a criança respondeu Quando alguém fala fica mais claro O anseio na escuridão se torna angústia ante a escuridão Longe de a angústia neurótica ser apenas secundária ou um caso especial da angústia realista o que vemos na criança pequena é antes que algo que se comporta como angústia realista partilha com a angús tia neurótica o traço essencial do surgimento a partir de 539 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES libido não empregada Da verdadeira angústia realista a criança parece trazer consigo muito pouco Ante todas as situações que mais tarde podem se transformar em condição para fobias altura pontes estreitas sobre a água viagem de trem ou de navio ela não demons tra angústia e tanto menos quanto mais insciente for Seria muito desejável que ela tivesse herdado mais des ses instintos Instinkte protetores da vida isso facilitaria muito a tarefa de vigiála que deve impedir que a crian ça se exponha a um perigo atrás do outro Na realidade porém inicialmente a criança superestima suas forças e age sem medo porque desconhece os perigos Vai cor rer à beira dágua subir no parapeito da janela brincar com objetos cortantes e com fogo em suma fará tudo aquilo que pode machucála e causar preocupação a seus responsáveis Quando nela desperta por fim a angústia realista esta é obra unicamente da educação uma vez que não se pode permitir à criança que faça por si pró pria as descobertas instrutivas Se há pois crianças que se adiantam a essa educa ção para o medo e que encontram elas mesmas perigos de que ninguém lhes advertiu isso é explicado pelo fato que têm maior necessidade libidinal em sua constitui ção ou que muito cedo foram mimadas com satisfação libidinal Não há de surpreender se entre elas encon trarmos também os futuros neuróticos como sabemos o que mais facilita o surgimento de uma neurose é a incapacidade de tolerar um considerável represamento da libido por um longo período de tempo Os senhores notam que assim fazemos justiça também ao fator cons 25AANGÚSTIA titucional cujos direitos jamais pretendemos contestar Apenas nos acautelamos para quando alguém negligen cia os demais requisitos em favor desse e introduz o fa tor constitucional também onde segundo os resultados somados da observação e da análise ele não pertence ou deveria estar em último lugar Façamos agora um resumo de nossas observações acerca da ansiedade nas crianças A angústia infantil pouco tem a ver com a angústia realista mas possui ín timo parentesco com a angústia neurótica dos adultos Como esta nasce da libido não empregada e substitui o objeto amoroso faltante por um objeto exterior ou uma situação Os senhores gostarão de ouvir que a análise das fo hias já não tem muita coisa nova a nos ensinar Nelas se dá o mesmo que na angústia infantil a libido não empregada é constantemente convertida em uma apa rente angústia realista e um minúsculo perigo exterior é introduzido para representar as demandas da libido Essa coincidência nada tem de estranho uma vez que as fobias infantis constituem não apenas o modelo para as ulteriores que incluímos nas histerias de angústia como também seus prérequisito e prelúdio diretos Toda fobia histérica remonta a uma angústia infantil e dá continuidade a ela ainda que seu conteúdo seja di ferente e precisemos portanto darlhe outro nome A diferença entre essas duas afecções está no mecanismo No adulto já não basta para a transformação da libi do em angústia que a primeira sob a forma de anseio tenha se tornado momentaneamente inutilizável O 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES adulto aprendeu há muito tempo a manter em suspenso essa libido ou a empregála de outra forma Quando todavia a libido está ligada a um impulso psíquico que sofreu repressão aí tornam a se estabelecer condições semelhantes às da criança que ainda não possui sepa ração entre consciente e inconsciente e por meio da regressão à fobia infantil abrese a passagem por as sim dizer através da qual a transformação da libido em angústia pode se realizar com facilidade Como se lembram os senhores já tratamos bastante da repressão mas ao fazêlo sempre seguimos ape nas o destino da ideia a ser reprimida evidentemente porque ele era mais fácil de reconhecer e apresentar Deixamos sempre de lado porém o que se passa com o afeto vinculado à ideia reprimida e só agora descobri mos que o destino imediato desse afeto é ser transfor mado em angústia qualquer que seja a qualidade que ele mostre em sua evolução normal Essa transforma ção do afeto contudo é de longe a parte mais impor tante do processo repressivo Não é tão fácil abordála porque não podemos afirmar a existência de afetos in conscientes da mesma forma como a de ideias incons cientes Uma ideia permanece a mesma exceto pela di ferença de ser consciente e inconsciente somos capazes de indicar o que corresponde a uma ideia inconsciente Mas um afeto é um processo de descarga algo a ser avaliado muito diferentemente de uma ideia o que lhe corresponde no inconsciente não podemos dizer sem uma reflexão e uma clarificação mais profundas de nos sas premissas acerca dos processos psíquicos coisa í42 25 A ANGÚSTIA que não podemos fazer aqui Mas enfatizemos a im pressão que agora adquirimos a de que o desenvolvi mento da angústia está intimamente ligado ao sistema do inconsciente Eu disse que a transformação em angústia ou me lhor a descarga sob a forma de angústia é o destino imediato da libido sujeita à repressão Devo acrescentar que não é seu destino único ou definitivo Nas neuro ses atuam processos que buscam vincular esse desen volvimento da angústia e que por caminhos diversos de fato conseguem fazêlo Nas fobias por exemplo é possível diferenciar claramente duas fases do processo neurótico A primeira cuida da repressão e da conver são da libido em angústia que é vinculada a um perigo exterior A segunda consiste na construção de todas as precauções e garantias para evitar um contato com esse perigo tratado como exterioridade A repressão corres ponde a uma tentativa de fuga do Eu ante a libido per cebida como perigo A fobia pode ser comparada a um entrincheiramento contra o perigo exterior que agora a libido temida representa A fraqueza do sistema de defe sa da fobia reside naturalmente no fato de essa fortale za tão reforçada contra o que vem de fora permanecer vulnerável a um ataque de dentro A projeção para fora do perigo da libido nunca é bemsucedida Por isso as outras neuroses se valem de outros sistemas de defesa contra a possibilidade do desenvolvimento da angústia Essa é uma parte muito interessante da psicologia das neuroses mas infelizmente nos levaria longe demais e pressupõe um conhecimento especializado mais profun 543 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES do Quero acrescentar apenas mais uma coisa Já lhes falei do contrainvestimento que o Eu emprega na re pressão e que tem de sustentar continuamente a fim de que ela perdure Cabe a esse contrainvestimento a tare fa de levar adiante as várias formas de defesa contra o desenvolvimento da angústia após a repressão Voltemos às fobias Posso dizer que os senhores compreendem como é insuficiente querer explicar ape nas seu conteúdo sem se interessar por mais nada a não ser como ocorre que esse ou aquele objeto ou uma si tuação qualquer transformese em objeto de fobia O conteúdo de uma fobia tem para ela mais ou menos o mesmo significado que a fachada manifesta tem para o sonho Com as necessárias reservas podese admitir que entre os conteúdos das fobias há alguns que por herança filogenética são apropriados para objetos de angústia como salienta Stanley Hall E está de acordo com isso o fato de que muitas dessas coisas angustiantes só podem estabelecer sua vinculação com o perigo por uma relação simbólica Convencemonos assim de que o problema da an gústia ocupa nas questões da psicologia das neuroses uma posição que poderíamos chamar de central Obti vemos uma forte impressão de como o desenvolvimento da angústia se acha ligado aos destinos da libido e ao sistema do inconsciente Um único ponto percebemos como desvinculado como uma lacuna em nossa con cepção o fato dificilmente contestável de que a angús tia realista deve ser vista como manifestação dos instin tos de autoconservação do Eu 544 26 A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO 26 A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO Senhoras e senhores Repetidas vezes e a última delas muito recentemente tratamos da separação entre ins tintos do Eu e instintos sexuais Primeiro a repressão nos mostrou que eles podem se contrapor e que então os instintos sexuais são expressamente derrotados e obrigados a buscar satisfação por vias indiretas regres sivas achando em seu caráter indomável compensação pela derrota Depois vimos que desde o começo esses dois instintos têm relação diversa com a necessidade educadora que não perfazem o mesmo desenvolvimen to e não se relacionam igualmente com o princípio da realidade Por fim acreditamos ter constatado que os laços que ligam os instintos sexuais ao estado afetivo da angústia são bem mais estreitos do que os que os unem aos instintos do Eu um resultado que parece incomple to ainda num aspecto importante É com a intenção de fortalecêlo então que aduzimos o fato bastante notá vel de que a não satisfação da fome e da sede os dois instintos mais elementares de autoconservação jamais resulta em sua transformação em angústia ao passo que a mudança da libido insatisfeita em angústia se acha como dissemos entre os fenômenos mais conhecidos e mais frequentemente observados Mas nosso justo direito de especificar os instintos sexuais e os instintos do Eu separadamente não pode ser questionado Afinal ele decorre da existência da vida sexual como uma atividade especial do indivíduo 545 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Podese apenas perguntar que significado atribuímos a essa separação até onde desejamos vêla como incisiva Mas a resposta a essa pergunta será guiada pelo resulta do da seguinte averiguação em que medida os instintos sexuais em suas manifestações somáticas e psíquicas se comportam diferentemente dos instintos que lhes con trapomos e quão significativas são as consequências que resultam dessas diferenças Naturalmente falta nos todo motivo para postular uma diferença essencial de resto não propriamente compreensível entre esses dois grupos de instintos Os dois se nos apresen tam apenas como designações para fontes de energia do indivíduo e a discussão sobre se no fundo são um só e nesse caso quando foi que se separaram ou se são fundamentalmente diferentes não pode se dar no plano conceitual mas precisa apoiarse nos fatos bio lógicos por trás deles A esse respeito sabemos muito pouco por enquanto e ainda que soubéssemos mais isso não viria ao caso em nossa tarefa analítica Muito pouco proveito nos traria é evidente enfati zar a unidade primordial de todos os instintos como faz Jung e chamar de libido a energia que se manifesta em todos eles Como não há artifício capaz de elimi nar da vida psíquica a função sexual vemonos então obrigados a falar em libido sexual e libido não sexual O nome libido permanece no entanto e com todo o direito como designação própria das forças instintuais da vida sexual como a temos empregado até agora Acho portanto que a questão acerca de até onde prosseguir na separação sem dúvida justificada entre 26 A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO os instintos sexuais e os de autoconservação não tem maior importância para a psicanálise que tampou co tem a competência para respondêla A biologia por sua vez nos fornece indícios diversos de que essa questão tem grande significado A sexualidade é afi nal a única função do organismo vivo que ultrapassa o indivíduo e se ocupa de sua ligação com a espécie É inegável que seu exercício nem sempre traz proveito ao indivíduo como sucede com as demais funções deste na verdade em troca de um prazer extraordinário ela o sujeita a perigos que lhe ameaçam a vida e com fre quência trazemlhe a morte Além disso é provável que processos metabólicos muito especiais diferentes de todos os outros sejam necessários para manter uma parte da vida individual como predisposição para sua descendência Por fim do ponto de vista biológico o ser individual que se vê como central e considera sua sexualidade um meio como outro qualquer para sua própria satisfação é apenas um episódio no interior de uma série de gerações um efêmero apêndice de um plasma germinativo dotado de virtual imortalidade como que o detentor temporário de um legado que so breviverá a ele Todavia a explicação psicanalítica das neuroses não requer considerações tão vastas Acompanhando sepa radamente os instintos sexuais e do Eu encontramos a chave para compreender o grupo das neuroses de trans ferência Pudemos fazêlas remontar à situação funda mental em que os instintos sexuais entram em disputa com os de autoconservação ou em termos biológicos 547 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES embora mais imprecisos em que a posição do Eu como ser individual conflita com aquela de inte grante de toda uma série de gerações Uma dissensão desse tipo talvez ocorra apenas no ser humano e por isso de modo geral a neurose seria prerrogativa dele em relação aos animais O desenvolvimento muito in tenso da libido e a formação possibilitada talvez por isso mesmo de uma vida psíquica ricamente articulada parecem ter criado as condições para o surgimento de tal conflito É evidente aliás que essas mesmas condi ções ensejaram também o progresso humano para além do que o homem possui em comum com os animais de tal forma que sua suscetibilidade à neurose constituiria assim apenas o outro lado de seus demais talentos Mas isso são apenas especulações que nos desviam de nossa tarefa imediata Até agora a possibilidade de diferenciar os instintos do Eu dos instintos sexuais com base em suas respecti vas manifestações foi o pressuposto de nosso trabalho Não foi difícil fazêlo no tocante às neuroses de transfe rência Os investimentos de energia que o Eu dedica aos objetos de seus desejos sexuais nós os chamamos lihido a todos os demais originários dos instintos de autocon servação demos o nome de interesse Seguindo a pista dos investimentos libidinais de suas transformações e de seus destinos finais logramos obter uma primeira compreensão do mecanismo das forças psíquicas As neuroses de transferência nos forneceram matéria bas tante propícia para isso Mas o Eu sua composição a partir de organizações diversas a estrutura e o fun 26 A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO cionamento dessas organizações permaneceunos oculto e pudemos supor que somente a análise de outros distúrbios neuróticos nos traria essa compreensão Bem cedo começamos a estender as concepções psi canalíticas para essas outras afecções Já em 1908 Karl Abraham após uma troca de impressões comigo lan çou a tese de que a característica principal da demen tia praecox incluída entre as psicoses seria a falta do investimento libidinal dos objetos em As diferenças psi cossexuais entre histeria e dementia praecox Então se levantou a questão do que aconteceria com essa libido dos dementes afastada dos objetos Abraham não ti tubeou em responder ela reverteria para o Eu e essa reversão reflexiva é a fonte da megalomania na demência precoce A megalomania pode perfeitamente ser com parada à conhecida superestimação sexual do objeto na vida amorosa Assim pela primeira vez aprende mos a compreender um traço de uma afecção psicótica relacionandoo com a vida amorosa normal Digolhes de pronto que essas primeiras concepções de Abraham integraramse à psicanálise e se tornaram a base para nosso posicionamento no tocante às psico ses Lentamente fomos nos familiarizando com a con cepção de que a libido que encontramos apegada aos objetos e que é expressão do anseio de neles conquis tar satisfação pode também deixálos substituindoos pelo próprio Eu uma concepção que gradualmente se desenvolveu de forma cada vez mais coerente O nome para essa alocação da libido narcisismo tomamos emprestado a uma perversão descrita por Paul Nacke 549 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES na qual o indivíduo adulto trata o próprio corpo com todas as carícias normalmente dedicadas a um objeto sexual externo Logo refletimos que se existe essa fixação da libido no próprio corpo e na própria pessoa em vez de num objeto isso não pode constituir exceção nem um acon tecimento insignificante É provável antes que esse narcisismo seja o estado geral e primordial a partir do qual se desenvolveu mais tarde o amor objetai sem que o narcisismo precisasse desaparecer Foi impossível não recordar da história evolutiva da libido objetai que ini cialmente muitos instintos sexuais se satisfazem no pró prio corpo de forma autoerótica como dizemos e que essa capacidade para o autoerotismo é a razão para que a sexualidade se atrase na educação para o princípio da realidade Assim o autoerotismo seria a prática se xual do estágio narcisista da alocação da libido Em resumo concebemos a relação da libido do Eu com a libido objetai de uma maneira que posso ilustrar aos senhores mediante uma comparação extraída da zoologia Pensem nos seres vivos mais simples aque les que consistem em um amontoado pequeno e pouco diferenciado de substância protoplasmática Eles apre sentam prolongamentos chamados pseudópodes para os quais fazem fluir a substância de seu corpo Podem no entanto recolher esses prolongamentos e se fechar em uma bola A projeção dos prolongamentos nós com paramos ao envio de libido para os objetos enquanto a maior parte da libido pode permanecer no Eu e supo mos que em condições normais a libido do Eu pode ser 26 A TEORIA OA LIBIDO E O NARCISISMO transformada de maneira desimpedida em libido obje tai e esta ser novamente acolhida pelo Eu Com o auxílio dessas concepções podemos ago ra explicar toda uma série de estados psíquicos ou dizendoo de forma mais modesta podemos descrevê los na linguagem da teoria da libido estados que devemos atribuir à vida normal como a conduta psí quica no enamoramento no adoecimento orgânico ou no sono No caso do sono formulamos a hipótese de que ele se baseia num afastamento do mundo exterior e numa acomodação ao desejo de dormir Aquilo que se manifesta no sonho como atividade psíquica notur na acreditamos estar a serviço desse desejo de dormir e além disso dominado por motivos puramente egoís tas De acordo com a teoria da libido afirmamos agora que o sono é um estado em que todos os investimentos objetais tanto os libidinais como os egoístas são abandonados e chamados de volta ao Eu Isso não lan çaria nova luz sobre o repouso propiciado pelo sono e a natureza do cansaço em geral A imagem do bem aventurado isolamento da vida intrauterina que o adormecido torna a nos lembrar toda noite completa se assim também em seu lado psíquico No indivíduo que dorme restabelecese o estado primordial da distri buição da libido o narcisismo pleno em que libido e in teresse do Eu ainda unidos e indiferenciáveis habitam o Eu que basta a si mesmo Aqui cabem duas observações Em primeiro lu gar como se diferenciam conceitualmente narcisismo e egoísmo Creio que o narcisismo é o complemento 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES libidinal do egoísmo Quando se fala em egoísmo tem se em vista apenas o proveito do indivíduo no nar cisismo porém levase em consideração também sua satisfação libidinal Como motivos práticos os dois podem ser examinados separadamente ao longo de al guma distância É possível ser absolutamente egoísta e ainda assim manter fortes investimentos objetais libidi nais desde que a satisfação libidinal com o objeto seja parte das necessidades do Eu O egoísmo cuidará en tão para que a aspiração pelo objeto não cause nenhum dano ao Eu É possível ser egoísta e ao mesmo tempo fortemente narcisista isto é ter uma necessidade obje tai muito pequena seja na satisfação sexual direta seja naquelas aspirações mais elevadas que derivam da ne cessidade sexual as quais eventualmente contrapomos à sensualidade sob o nome de amor Em todas es sas relações o egoísmo é o evidente o constante e o narcisismo o elemento variável O contrário do egoís mo o altruísmo não coincide conceitualmente com o investimento objetai libidinal diferenciase dele pela ausência das aspirações por satisfação sexual Quando alguém se enamora totalmente contudo o altruísmo e o investimento objetal libidinal convergem Em regra o objeto sexual atrai para si uma parte do narcisismo do Eu e isso se faz notar no que chamamos superestima ção sexual do objeto Se além disso há a transposição altruísta do egoísmo para o objeto sexual este se torna extremamente poderoso absorve o Eu por assim dizer Creio que será um descanso para os senhores se após as coisas fantásticas mas no fundo áridas da ciên 26 A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO cia eu lhes apresentar uma representação poética da oposição econômica entre narcisismo e enamoramento Extraioa do Divã ocidentaloriental de Goethe SULEIKA Povo escravo e vencedor O tempo inteiro reconhecem Para os filhos da Terra a suprema felicidade É a personalidade Toda vida pode ser vivida Quando a pessoa não falta a si mesma Tudo se pode perder Quando se continua sendo o que é HATEM Bem pode ser Assim dizem Mas eu tenho outro caminho Toda a felicidade terrena Encontro somente em Suleika Divã no sentido um dos sentidos que a palavra tinha entre os muçulmanos o de coleção de poemas Eis o original da citação Su leika Volk und Knecht und Überwinder Sie gestehn tu jeder Zeit Hochstes Glück der Erdenkinder Sei nur die Personlichkeit jzdes Leben sei cu Jühren Wenn man sich nicht selbst vermijit Alies konne man verlieren Wenn man bliebe was man ist H atem Kann wohl sein So wird gemeinet Doch ich bin auf andrer Spur Alies Erdenglück ve reinet Find ich in Suleika nur Wie sie sich an mich verschwendet Bin ich mir ein wertes Ich Hatte sie sich weggewendet Augenblicks verlor ich mich Nun mit Hatem wars ru Ende Doch schon hab ich umgelost Ich verkorpere mich behende In den Holden den sie kost 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Se ela é pródiga comigo Tenho valor para mim Se de mim ela se esquiva De imediato me perdi Desse modo Hatem chegaria ao fim Mas logo já me salvo Habilmente me transformo No amado que ela escolhe A segunda observação é um complemento à teoria do sonho Não podemos explicar o surgimento do sonho sem incluir a hipótese de que o inconsciente reprimido adquiriu certa independência em relação ao Eu de tal forma que não obedece ao desejo de dormir e mantém seus investimentos mesmo quando todos os investi mentos objetais dependentes do Eu são recolhidos em prol do sono Apenas assim podemos entender como o inconsciente pode se valer da suspensão ou diminuição noturna da censura e como ele se apodera dos resíduos diurnos para com essa matéria formar um desejo oní rico proibido Por outro lado é possível que os resíduos diurnos devam parte de sua resistência ao recolhimento da libido ditado pelo desejo de dormir a um vínculo já existente com esse inconsciente reprimido Acrescente mos pois esse traço dinamicamente importante à nossa concepção da formação do sonho O adoecimento orgânico a estimulação dolorosa a inflamação de órgãos criam um estado que claramente resulta num desprendimento da libido em relação a seus 554 objetos A libido recolhida retorna ao Eu como investimento intensificado da porção enferma do corpo Podemos mesmo ousar afirmar que em tais condições a retirada da libido de seus objetos é mais notável do que o afastamento do interesse egoísta em relação ao mundo exterior Isso parece abrir um caminho para o entendimento da hipocondria na qual da mesma maneira um órgão ocupa a atenção do Eu sem que esteja doente para a nossa percepção Resisto porém à tentação de prosseguir nesse caminho ou de discutir outras situações que se tornam compreensíveis ou descritíveis mediante a hipótese de uma migração da libido objetal para o Eu pois tenho de lidar com duas objeções que como bem sei atraem agora seu interesse Em primeiro lugar questionarão por que busco diferenciar no sono na doença e em situações semelhantes entre libido e interesse instintos sexuais e instintos do Eu quando as observações podem ser satisfeitas com a suposição de uma energia única e uniforme que movendose livremente ora inviste o objeto ora o Eu pondose a serviço de um ou de outro desses instintos E em segundo lugar como posso tratar o desprendimento da libido de seu objeto como fonte de um estado patológico se essa transformação da libido objetal em libido do Eu ou de modo mais geral em energia do Eu é parte dos processos normais repetidos diariamente e a cada noite na dinâmica psíquica A isso devo responder que sua primeira objeção parece boa A discussão dos estados do sonho da enfer 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES midade e do enamoramento provavelmente não teria nos levado em si à distinção entre libido do Eu e libido objetai ou entre libido e interesse Mas nisso os senho res negligenciam as investigações de que partimos e sob cuja luz consideramos agora as situações psíquicas em pauta A diferenciação entre libido e interesse isto é entre instintos sexuais e de autoconservação foinos imposta pela percepção do conflito do qual resultam as neuroses de transferência Desde então já não pode mos abandonála A suposição de que a libido objetai pode se transformar em libido do Eu ou seja de que temos de contar com uma libido do Eu pareceunos a única capaz de solucionar o enigma das chamadas neuroses narcísicas como a demência precoce por exemplo de explicar as semelhanças e diferenças entre essas e a histeria e a obsessão Agora aplicamos à doença ao sono e ao enamoramento aquilo que em outra parte vimos irrefutavelmente comprovado De vemos continuar aplicandoo e ver até onde isso nos leva A única afirmação que não é resultado direto de nossa experiência analítica é a de que libido permanece libido seja voltada para objetos ou para o próprio Eu e jamais se transforma em interesse egoísta e viceversa Essa afirmação no entanto é equivalente à separação entre instintos sexuais e instintos do Eu já submetida aqui a consideração crítica uma diferenciação a que por motivos heurísticos pretendemos nos apegar até que eventualmente fracasse Também a segunda objeção dos senhores levanta uma questão justificada mas aponta para uma direção 26 A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO errada Sem dúvida o recolhimento da libido objetai para o Eu não é diretamente patogênico nós podemos ver afinal que isso se repete a cada vez que vamos dormir e que se desfaz ao acordarmos O animalzinho protoplasmático recolhe seus prolongamentos para na oportunidade seguinte tornar a projetálos Coisa bem diferente acontece todavia quando determinado pro cesso deveras enérgico obriga à retirada da libido dos objetos A libido que se tornou narcisista não é capaz de encontrar seu caminho de volta aos objetos e esse impedimento da mobilidade da libido tornase de fato patogênico Parece que além de certa medida a acu mulação de libido narcísica não é tolerada Podemos também imaginar que o investimento objetai se produz justamente pelo fato de o Eu ter de enviar para fora sua libido a fim de não adoecer com seu represamento Se estivesse em nosso plano examinar mais a fundo a de mentia praecox eu lhes mostraria que o processo que desprende a libido dos objetos e lhe barra o caminho de volta para eles achase ligado ao processo da repressão podendo ser visto como uma contrapartida dele Acima de tudo porém os senhores se sentiriam em terreno fa miliar ao descobrir que os prérequisitos desse proces so são quase idênticos tanto quanto percebemos até agora aos da repressão O conflito parece ser o mes mo e se dar entre os mesmos poderes Se o desenlace é tão diverso daquele da histeria por exemplo a razão para isso só pode estar numa diferença da predisposi ção Nesses doentes o ponto fraco no desenvolvimento da libido situase em outra fase a fixação decisiva que 557 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES como os senhores se lembram permite a irrupção que leva à formação do sintoma encontrase em outro lu gar provavelmente no estágio do narcisismo primitivo para o qual em seu desfecho a demência precoce re toma É bastante digno de nota que tenhamos de supor para todas as neuroses narcísicas pontos de fixação da libido que remontam a fases de desenvolvimento muito anteriores às que encontramos na histeria ou na neurose obsessiva Mas como já ouviram aqui os conceitos que obtivemos no estudo das neuroses obsessivas devem bastar para nos orientar também nas neuroses narcísi cas tão mais difíceis na prática São amplos os pontos em comum tratase no fundo do mesmo campo de fenômenos Mas os senhores podem também imaginar como é mínima a perspectiva de esclarecimento dessas afecções pertencentes já ao âmbito da psiquiatria para todo aquele que enfrenta essa tarefa sem o conhecimen to analítico das neuroses de transferência O quadro clínico da dementia praecox que é bastante variável não é determinado exclusivamente por aque les sintomas que decorrem do apartamento da libido de seus objetos e de sua acumulação no Eu como libido narcísica Antes nele ocupam espaço considerável ou tros fenômenos que remontam ao empenho da libido em retornar àqueles objetos fenômenos que correspon dem assim a uma tentativa de restituição ou cura Tais sintomas são inclusive os que mais chamam a atenção os mais ruidosos Eles mostram indubitável semelhança com os da histeria ou mais raramente os da neurose obsessiva embora difiram destes todo o aspecto Pa 8 26 A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO rece que na dementia praecox a libido em seu esforço de retornar aos objetos isto é às representações dos objetos logra de fato apanhar algo deles mas apenas suas sombras por assim dizer refirome às represen tações verbais a eles pertinentes Não posso aqui dizer mais a esse respeito mas acho que esse comportamen to da libido que se empenha em retornar nos permitiu compreender em que consiste realmente a diferença en tre uma ideia consciente e uma inconsciente Agora conduzi os senhores ao campo onde deve mos esperar os próximos avanços no trabalho analíti co Desde que nos aventuramos a lidar com o concei to de libido do Eu as neuroses narcísicas se tornaram acessíveis para nós resultou daí a tarefa de obter uma compreensão dinâmica dessas afecções e ao mesmo tempo de completar nosso conhecimento da vida psí quica pelo entendimento do Eu A psicologia do Eu que buscamos não deve se fundar nos dados de nos sas autopercepções e sim como no caso da libido na análise das perturbações e disrupções do Eu É prová vel que uma vez realizado esse trabalho de maior en vergadura passemos a atribuir pouco valor ao nosso conhecimento presente acerca dos destinos da libido conhecimento que extraímos do estudo das neuroses de transferência Contudo ainda não avançamos muito nesse trabalho A técnica de que nos valemos nas neu roses de transferência pouco pode no tocante às neuro ses narcísicas os senhores logo saberão por quê Ao empregálas sucedenos sempre de após um pequeno avanço nos vermos diante de um muro que nos obriga 559 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES a parar Como sabem também nas neuroses de transfe rência deparamos com barreiras que opõem semelhan te resistência mas pudemos demolilas pouco a pouco Nas neuroses narcísicas essa resistência é intranspo nível podemos no máximo lançar um olhar curioso sobre o muro a fim de espiar o que se passa do outro lado Nossos métodos técnicos precisam portanto ser substituídos por outros ainda não sabemos se vamos conseguir encontrar tais substitutos Todavia tampou co no caso desses doentes nos falta material Eles se manifestam profusamente ainda que não respondam a nossas perguntas e por enquanto temos de interpretar essas manifestações com o auxílio da compreensão que adquirimos nos sintomas das neuroses de transferência A coincidência é grande o bastante para nos assegurar um ganho inicial Até onde essa técnica poderá nos le var é ainda uma questão em aberto Outras dificuldades contribuem para deter nosso progresso As afecções narcísicas e as psicoses a elas relacionadas só podem ser decifradas por observadores treinados no estudo analítico das neuroses de transfe rência Mas nossos psiquiatras não estudam psicanálise e nós psicanalistas conhecemos poucos casos psiquiá tricos É necessário que primeiramente se desenvolva uma geração de psiquiatras que tenha passado pela es cola da psicanálise como ciência preparatória Isso co meça a acontecer hoje em dia nos Estados Unidos onde muitos psiquiatras em posição de comando apresentam as doutrinas psicanalíticas a seus estudantes e onde pro prietários de instituições e diretores de manicômios se 6o gem em observar seus doentes nos termos dessas teorias Também nós contudo logramos algumas vezes lançar um olhar sobre esse muro narcísico e quero relatar aos senhores o que acreditamos ter vislumbrado A forma de doença conhecida como paranoia insani dade crônica e sistemática ocupa uma posição oscilante nas tentativas de categorização da psiquiatria atual Já não resta dúvida acerca de seu parentesco próximo com a dementia praecox Certa vez sugeri agrupar a paranoia e a dementia praecox sob a designação comum de parafrenia De acordo com seu conteúdo as formas assumidas pela paranoia são descritas como megalomania delírio de perseguição delírio de amor erotomania de ciúmes etc Não esperaremos tentativas de explicação por parte da psiquiatria Como exemplo embora antigo e incompleto menciono a seguinte tentativa de por meio de uma racionalização intelectual derivar um sintoma de outro O doente que por inclinação primária se crê perseguido deve concluir dessa perseguição ser uma personalidade muito importante e por essa razão desenvolveria uma megalomania Em nossa concepção analítica a megalomania é consequência direta da magnificação do Eu pelo recolhimento dos investimentos libidinais objetais um narcisismo secundário que é um retorno daquele original da primeira infância Nos casos de delírio de perseguição fizemos observações que nos levaram a seguir determinada pista Em primeiro lugar chamounos a atenção que na maioria dos casos o perseguidor fosse do mesmo sexo do perseguido De início esse fato ainda admitia uma expli 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES cação inofensiva mas em alguns casos bem estudados verificouse claramente que a pessoa mais amada do mesmo sexo em tempos de normalidade transformava se após o adoecimento no perseguidor Outro desen volvimento se faz possível quando a pessoa amada em consonância com afinidades conhecidas é substituída por outra como por exemplo o pai pelo professor ou superior hierárquico Dessas experiências cada vez mais numerosas concluímos que a paranoia persecutoria em latim é a forma pela qual o indivíduo se defende de um impulso homossexual que se tornou demasiado inten so A metamorfose da afeição em ódio que como se sabe pode se transformar em séria ameaça de vida para o objeto amado e odiado corresponde então à transformação de impulsos libidinais em angústia que é resultado regular do processo de repressão Ouçam por exemplo o caso mais recente dessa natureza que observei Um jovem médico precisou ser expulso de sua cidade natal por ter ameaçado de morte o filho de um professor universitário local que até então fora seu me lhor amigo Ele atribuiu a esse amigo de antes inten çÕes verdadeiramente infernais e um poder demoníaco Era o culpado de todos os infortúnios que haviam se abatido sobre a família do doente nos últimos anos de cada adversidade familiar e social Mas não bastasse isso o mau amigo e seu pai o professor tinham sido também os causadores da guerra e chamado os russos para o país Era pois mil vezes merecedor da morte e nosso doente estava convencido de que com a morte do malfeitor toda a desgraça teria fim Contudo sua velha 26 A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO afeição por ele era tão intensa que lhe paralisou a mão quando certa feita surgiu a oportunidade de liquidar o inimigo com um tiro à queimaroupa Nos breves coló quios que tive com o doente revelouse que a relação de amizade entre os dois remontava aos primeiros anos do ginásio Pelo menos uma vez essa relação havia ul trapassado as fronteiras da amizade uma noite que ha viam passado juntos havia se tornado ocasião para uma relação sexual completa Nosso paciente jamais tivera com mulheres um relacionamento sentimental que cor respondesse a sua idade e a sua atraente personalidade Uma vez fora noivo de uma moça bela e distinta mas esta rompeu o noivado porque não encontrara afeição no noivo Anos mais tarde sua enfermidade irrompeu exatamente no instante em que pela primeira vez ele conseguiu satisfazer plenamente uma mulher Quando então agradecida e devotada essa mulher o abraçou ele sentiu de súbito uma dor misteriosa como um talho afiado a circundarlhe o crânio Mais tarde interpretou essa sensação como se houvessem realizado nele a inci são por intermédio da qual o cérebro é exposto em uma autópsia e como seu amigo se especializara em anato mia patológica descobriu pouco a pouco que somente este último poderia ter lhe enviado a mulher para tentá lo A partir daí seus olhos se abriram também para as outras perseguições de que seria vítima por iniciativa do examigo E quanto aos casos em que o perseguidor não é do mesmo sexo do perseguido e que portanto aparente mente contradizem nossa explicação de serem uma de 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES fesa contra a libido homossexual Algum tempo atrás tive oportunidade de examinar um caso assim e logrei extrair uma confirmação da aparente contradição A jovem moça que se acreditava perseguida por um ho mem ao qual permitira dois encontros afetuosos havia antes nutrido uma ideia delirante em relação a uma mu lher que podemos conceber como uma substituta de sua mãe Somente após o segundo encontro ela deu o passo adiante de desprender essa ideia delirante da mulher e transferila para o homem A condição de o perseguidor ser do mesmo sexo era mantida também nesse caso ori ginalmente Em sua queixa ao advogado e ao médico a paciente não mencionara esse estágio anterior de seu delírio o que originou a aparência de uma contradição de nosso entendimento da paranoia A escolha objetai homossexual se acha em sua ori gem mais próxima do narcisismo do que a heterosse xual Quando se trata então de rejeitar um forte e indesejável impulso homossexual o caminho de volta para o narcisismo é bastante facilitado Até o momento tive muito pouca oportunidade de lhes falar dos funda mentos da vida amorosa até onde pudemos conhecê los e agora não posso reparar essa omissão Vou apenas salientar que a escolha objetai o progresso no desenvolvimento da libido que se dá após o estágio nar cisista pode suceder de duas maneiras diferentes Ela pode ser de tipo narcisista em que o Eu é substituído pelo que lhe é o mais semelhante possível ou ainda se dar por apoio caso em que a escolha objetai da libido pode recair sobre pessoas que se tornaram valiosas para 26 A TEORIA OA LIBIDO E O NARCISISMO a satisfação de outras necessidades vitais Uma forte fi xação da libido no tipo narcisista de escolha objetai é algo que incluímos também na predisposição para a ho mossexualidade manifesta Os senhores se lembram de que em nosso primeiro encontro deste semestre eu lhes relatei um caso de delí rio ciumento observado numa mulher Agora quando nos aproximamos do final os senhores por certo gosta riam de ouvir como explicamos psicanaliticamente uma ideia delirante Contudo tenho menos a dizer a esse respeito do que seria de esperar O fato de a ideia de lirante ser inatacável por argumentos lógicos ou pelas experiências reais explicase tal como a obsessão atra vés da relação com o inconsciente que é representado e refreado pela ideia delirante ou ideia obsessiva A dife rença entre as duas se baseia na topologia e na dinâmica diversas das duas afecções Como na paranoia também na melancolia da qual de resto descrevemse formas clínicas muito di ferentes encontramos um ponto que nos possibilita vislumbrar a estrutura interna da afecção Vimos que as autoacusações com que os melancólicos se torturam da maneira mais impiedosa dirigemse na verdade a outra pessoa ao objeto sexual que perderam ou que se desva lorizou por culpa dele próprio Disso pudemos concluir que de fato o melancólico retirou sua libido do obje to mas este mediante um processo que cabe chamar de identificação narcisista foi estabelecido em seu próprio Eu foi como que projetado para o Eu Aqui posso lhes oferecer apenas uma imagem ilustrativa não 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES uma descrição topológicodinâmica ordenada Esse Eu passa então a ser tratado como o objeto abandonado e sofre todas as agressões e manifestações do desejo de vingança que tinham por alvo o objeto Mesmo a ten dência ao suicídio do melancólico tornase mais com preensível quando consideramos que a amargura do doente atinge de um só golpe tanto o próprio Eu como o objeto amadoodiado Na melancolia assim como em outras afecções narcisistas evidenciase de forma pa tente um traço da vida sentimental que desde Bleuler acostumamonos a designar como ambivalência Cha mamos assim o direcionamento para a mesma pessoa de sentimentos opostos ternos e hostis No curso de nos sas palestras infelizmente não pude relatarlhes mais acerca dessa ambivalência de sentimentos Além da identificação narcisista há outra histérica que conhecemos há muito mais tempo Eu gostaria que fosse possível esclarecerlhes as diferenças entre as duas mediante algumas claras especificações Sobre as for mas periódicas e cíclicas da melancolia posso lhes di zer algo que os senhores decerto gostarão de ouvir Em condições propícias e já logrei fazêlo duas vezes o tratamento analítico levado a cabo durante os interva los livres da doença permite que evitemos seu retorno na mesma disposição de espírito ou na disposição con trária Descobrimos assim que também na melancolia e na mania temse um modo especial de resolver um conflito cujas premissas coincidem inteiramente com as das demais neuroses Os senhores podem imaginar o quanto a psicanálise ainda tem a aprender nesse campo 26A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO Também lhes disse que por meio da análise das afecções narcísicas esperamos adquirir certo conhe cimento acerca da composição de nosso Eu e de sua construção em instâncias Em um ponto já começamos a fazer isso A partir da análise do delírio de observa ção chegamos à conclusão de que realmente existe no Eu uma instância que observa critica e compara sem cessar e que desse modo se contrapõe à outra parte do Eu Acreditamos assim que o doente nos revela uma verdade ainda não suficientemente apreciada quando se queixa de que cada um de seus passos é vigiado e obser vado de que seus pensamentos são expostos e critica dos O único erro que comete aí é o de situar esse poder incômodo como algo exterior alheio Ele sente no seu Eu a vigência de uma instância que mede seu Eu atual e cada uma de suas atividades conforme um Eu ideal que criou ao longo de seu desenvolvimento Acredita mos também que essa criação se deu com o propósito de restabelecer aquela autossatisfação outrora vinculada ao narcisismo infantil primário a qual desde então sofreu tantas perturbações e ofensas Conhecemos essa ins tância autoobservadora como o censor do Eu a cons ciência tratase da mesma instância que à noite exerce a censura onírica da qual partem as repressões contra os desejos não confiáveis Ao se decompor no delírio de observação ela nos revela ser originária da influên cia exercida por pais educadores e pelo meio social da identificação com algumas dessas pessoas modelares Esses seriam pois alguns dos resultados que nos forneceu até o momento a aplicação da psicanálise às 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES afecções narcísicas Certamente são ainda muito pou cos e carecem por enquanto daquela agudeza que só se pode adquirir mediante uma familiaridade mais segura com um novo campo Devemos todos esses re sultados à exploração do conceito de libido do Eu ou libido narcísica com a ajuda do qual estendemos às neuroses narcísicas as concepções que se mostraram eficazes no trato das neuroses de transferência Mas os senhores perguntarão agora Será que conseguiremos subordinar todas as perturbações próprias das afecções narcísicas e das psicoses à teoria da libido Será possí vel reconhecer por toda parte o fator libidinal da vida psíquica como o culpado pelo adoecimento sem que precisemos jamais responsabilizar por isso alguma mo dificação na função do instinto de autoconservação Bem senhoras e senhores essa decisão não me parece urgente e acima de tudo ela tampouco me parece ama durecida Podemos tranquilamente confiála ao avanço do trabalho científico Eu não me espantaria se o po der de produzir efeitos patogênicos se mostrasse de fato prerrogativa dos instintos libidinais de tal forma que a teoria da libido poderia festejar amplo triunfo desde as neuroses atuais mais simples até a mais grave alienação psicótica do indivíduo Afinal conhecemos como traço característico da libido sua relutância em submeterse à realidade do mundo à Ananke Mas considero bastan te provável que os instintos do Eu sejam arrebatados secundariamente pelos estímulos patogênicos da libido e levados a uma perturbação funcional E ainda que viéssemos a descobrir que nas psicoses graves os pró 26 A TEORIA OA LIBIDO E O NARCISISMO prios instintos do Eu são desencaminhados primordial mente eu não conseguiria ver nisso um fracasso na di reção de nossa pesquisa O futuro dará a resposta ao menos aos senhores Permitam porém que eu retorne ainda por um mo mento à angústia a fim de iluminar uma última obs curidade que lá deixamos Dissemos que não harmoni zava com a relação entre angústia e libido de resto tão bem conhecida o fato de a angústia realista ante um perigo ser a manifestação dos instintos de autocon servação algo que no entanto dificilmente se contes ta Como seria porém se o afeto da angústia não fosse responsabilidade dos instintos egoístas do Eu mas da libido do Eu Afinal o estado de angústia é sempre ina dequado e sua inadequação tornase patente quando ele atinge um alto grau Nesse caso ele perturba a ação seja ela a fuga ou a defesa ação que é ela sim adequada e a serviço da autoconservação Se portanto atribuímos a parte afetiva da angústia realista à libido do Eu e a ação ao instinto de conservação do Eu solu cionamos a dificuldade teórica Os senhores não hão de acreditar seriamente que um indivíduo foge porque sen te angústia Não ele sente a angústia e se põe em fuga pelo mesmo motivo que vem da percepção do perigo Pessoas que sobreviveram a grandes perigos relatam não ter se angustiado agiram simplesmente apon tando sua espingarda para a fera por exemplo e isto sim foi o mais adequado 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES 27 A TRANSFERÊNCIA Senhoras e senhores Como nos aproximamos agora do final de nossas discussões isso despertará nos senhores certa expectativa que não será lograda Devem pensar com razão que não os conduzi pelos meandros da ma téria psicanalítica para no fim abandonálos sem haver dito uma única palavra acerca da terapia sobre a qual se baseia a própria possibilidade de praticar psicanálise E tampouco posso priyálos desse tema pois nele poderão observar e tomar conhecimento de um fato novo sem o qual o entendimento das enfermidades por nós exami nadas restaria sensivelmente incompleto Sei que os senhores não esperam instrução na técni ca pela qual praticamos a análise com fins terapêuticos Querem apenas saber da forma mais geral possível de que forma a terapia psicanalítica produz efeito e o que em linhas gerais ela consegue fazer E têm o direito in contestável de sabêlo Mas não desejo comunicálo aos senhores insisto em que o descubram por si mesmos Pensem bem Agora os senhores conhecem tudo de essencial sobre as condições que levam ao adoecimento assim como todos os fatores atuantes na pessoa adoeci da Onde se encontra nisso um espaço para a atuação psicanalítica Em primeiro lugar há a predisposição hereditária dela não chegamos a falar muito pois já é enfatizada com veemência em outras áreas e nada temos de novo a dizer quanto a isso Não creiam porém que a subestimamos precisamente como terapeutas sentimos com suficiente clareza o seu poder Não obstante não 570 27 A TRANSFERÊNCIA podemos modificála em nada para nós ela permanece algo dado e algo que impõe limites a nosso esforço De pois há a influência das primeiras vivências da infância à qual costumamos dar primazia na análise elas per tencem ao passado e não podemos tornálas não acon tecidas Em seguida há tudo aquilo que sintetizamos sob o nome de frustração real os infortúnios da vida que incluem a privação de amor a pobreza a dissensão familiar a má escolha do cônjuge as condições sociais desfavoráveis e o rigor das demandas morais que pesam sobre o indivíduo Aí haveria sem dúvida ensejos bas tantes para uma terapia eficaz mas haveria de ser uma terapia como a que o imperador José praticou segundo as lendas populares de Viena a benfazeja intervenção de um homem poderoso ante cuja vontade os indivíduos se dobram e as dificuldades desaparecem Mas quem somos nós para poder adotar essa benevolência como instru mento de nossa terapia Sendo nós mesmos pobres e so cialmente impotentes obrigados a extrair nosso sustento da prática médica não temos condição sequer de voltar nossos esforços para os despossuídos como fazem ou tros médicos que se valem de outros métodos terapêu ticos Nossa terapia é demorada e laboriosa demais para isso Talvez porém os senhores se agarrem a um dos fatores mencionados e acreditem ter encontrado nele o ponto de abordagem para que exerçamos nossa influên cia Se a restrição moral exigida pela sociedade participa da privação imposta ao doente então o tratamento pode darlhe a coragem ou mesmo a instrução direta para que ele supere essas barreiras para que busque satisfação e 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES cura renunciando à realização de um ideal que a socie dade tanto estima mas frequentemente não observa O doente se cura então na medida em que vive plena mente sua sexualidade É verdade que desse modo é lançada sobre o tratamento analítico uma sombra de que não serve à moralidade geral O que proporciona ao indivíduo ele o subtraiu à coletividade Mas senhoras e senhores quem lhes terá dado uma informação tão equivocada Ninguém disse que a re comendação para que se viva plenamente a sexualidade poderia ter algum papel na terapia analítica Em primei ro lugar porque como já dissemos os doentes abrigam um obstinado conflito entre o impulso lihidinal e a re pressão sexual entre as tendências sensual e ascética Auxiliar uma dessas tendências a derrotar a tendência adversária não anula o conflito Vemos de fato que no neurótico predomina a ascese A consequência disso é justamente que a aspiração sexual reprimida se desafo ga nos sintomas Se ao contrário proporcionássemos a vitória à sensualidade a repressão sexual posta de lado seria substituída por sintomas Nenhuma dessas duas decisões é capaz de pôr fim ao conflito interior uma das partes permaneceria sempre insatisfeita São poucos os casos em que esse conflito é tão débil que um fator como a tomada de partido do médico logra ser decisiva e tais casos na verdade não necessitam de tratamento analí tico As pessoas nas quais o médico pode exercer tal in fluência teriam o mesmo caminho sem o auxílio dele Os senhores hem sabem que quando um jovem abstinente se decide por uma relação sexual ilegítima ou quando 572 27 A TRANSFERÊNCIA uma mulher insatisfeita procura compensação com ou tro homem nenhum deles esperou a permissão do médi co e menos ainda a do analista para fazêlo Nisso ignorase costumeiramente a questão essen cial o conflito patogênico dos neuróticos não deve ser confundido com uma luta normal entre impulsos psí quicos situados no mesmo terreno psicológico É um antagonismo entre poderes em que um deles alcançou o estágio do préconsciente e do consciente e o outro foi retido no estágio do inconsciente Por isso o confli to não pode ser resolvido como no famoso exemplo do urso polar e da baleia os antagonistas nunca se veem frente a frente Uma decisão verdadeira só pode ocorrer quando estiverem ambos no mesmo terreno Creio que possibilitar isso é a única tarefa da terapia Além disso posso lhes assegurar que estão mal in formados se supõem que conselhos e orientação nos assuntos da vida são parte integrante da influência da análise Pelo contrário sempre que possível nós evita mos esse papel de mentor o que mais almejamos é que o doente tome suas decisões de maneira autônoma Com essa mesma intenção também solicitamos que ele adie todas as decisões cruciais escolha da profissão em preendimentos econômicos casamento ou separação enquanto durar o tratamento deixando para pôlas em prática após o encerramento deste Admitam que isso é muito diferente do que os senhores imaginavam Somen te com pessoas muito jovens ou desamparadas e incons tantes não logramos impor a desejada restrição Nesse caso precisamos combinar a atividade do médico com m 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES a do educador temos então plena consciência de nossa responsabilidade e agimos com a necessária cautela Os senhores não devem concluir do afã com que me defendo da objeção de que no tratamento analítico o neurótico é orientado a gozar a vida que atuamos so bre ele em prol da moralidade social Disso nos encon tramos no mínimo igualmente distantes Não somos reformadores e sim meros observadores mas não po demos deixar de observar com olhos críticos e achamos impossível tomar o partido da moral sexual convencio nal ou ter em alta conta o modo como a sociedade busca ordenar os problemas da vida sexual Podemos mostrar à sociedade que o que ela chama de moralidade não vale o sacrifício que custa e que seus procedimentos não se baseiam na honestidade nem demonstram inteligência Não poupamos nossos pacientes de ouvir essa crítica nós os acostumamos a ponderar sem preconceitos tan tos os assuntos sexuais como quaisquer outros e se depois de terminarem o tratamento e se tornarem inde pendentes eles decidem por conta própria adotar algu ma posição intermediária entre o gozo da vida e a asce se incondicional não sentimos nossa consciência pesar por nenhum desses desenlaces Dizemos a nós mesmos que todo aquele que foi bemsucedido na educação para a verdade estará sempre a salvo do perigo da imorali dade ainda que seu padrão de moralidade se desvie de algum modo daquele vigente na sociedade De resto tomamos o cuidado de não superestimar a importância da abstinência na determinação das neuroses Apenas em uma minoria de casos é possível pôr fim à situação 574 27 A TRANSFERÊNCIA patogênica da frustração e ao consequente represamen to da libido mediante a espécie de prática sexual que se pode encontrar sem muito esforço Portanto os senhores não podem explicar o efeito terapêutico da psicanálise com a permissão que ela daria para gozar sexualmente a vida Devem olhar ao redor em busca de outro motivo Creio que enquanto recha çava sua suposição uma observação minha os terá con duzido à pista certa Aquilo de que nos valemos deve ser a substituição do inconsciente pelo consciente a tradu ção do inconsciente para o consciente E assim é de fato Ao fazer o inconsciente prosseguir para o consciente anulamos as repressões eliminamos as condições para a formação de sintomas e transformamos o conflito pa togênico em um conflito normal que de algum modo deve encontrar solução Essa e nenhuma outra é a alteração psíquica que provocamos no doente seu al cance delimita a ajuda que podemos prestar Onde não há repressão ou um processo psíquico análogo para ser desfeito nossa terapia nada tem a oferecer Podemos exprimir o objetivo de nossos esforços me diante fórmulas diversas tornar consciente o inconscien te anular as repressões preencher as lacunas da amnésia todas dizem a mesma coisa Mas talvez os senhores não se deem por satisfeitos com essa declaração Terão imaginado a cura de uma pessoa neurótica como algo diferente como sua transformação em outra pessoa de pois de ela haver se submetido ao trabalho árduo de um tratamento psicanalítico e o resultado seria o paciente passar a ter menos material inconsciente e mais material 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES consciente do que antes Bem provavelmente os senho res subestimam o significado de tal mudança interior O indivíduo neurótico que foi curado é de fato outra pes soa mas no fundo permaneceu o mesmo naturalmen te isto é tornouse o que na melhor das hipóteses e nas condições mais favoráveis poderia ter se tornado Mas isso já é muito O significado de tal diferença no plano psíquico decerto lhes parecerá crível tão logo os senho res tomem ciência de tudo que é necessário e de quanto esforço custa operar tal modificação ainda que insigni ficante em aparência na vida psíquica do paciente Faço agora uma pequena digressão e lhes pergun to se os senhores conhecem o que é chamado de tera pia causal Esse é com efeito o nome que se dá a um procedimento que não visa atacar os sintomas de uma doença e sim eliminar suas causas Nossa terapia psi canalítica seria ou não uma terapia causal A resposta não é simples mas ela permite talvez que nos conven çamos da futilidade desse questionamento Na medida em que a terapia analítica não tem como tarefa imediata a eliminação dos sintomas ela age como uma terapia causal De outro ponto de vista porém os senhores podem dizer que ela não o é E isso porque em busca do encadeamento causal ultrapassamos há muito tempo as repressões tendo chegado às predisposições instin tuais a suas intensidades relativas na constituição e aos desvios no curso de seu desenvolvimento Supondo que nos fosse possível intervir quimicamente nesse meca nismo e aumentar ou diminuir a quantidade de libido existente em dado momento ou intensificar um instinto 27 A TRANSFERÊNCIA à custa de outro aí sim teríamos uma terapia verdadei ramente causal para a qual nossa análise teria realizado o indispensável trabalho preliminar de reconhecimento No momento porém como sabem os senhores não se pode falar em exercer tal influência sobre os processos da libido com a nossa terapia psíquica atacamos outro ponto do conjunto não exatamente nas raízes que nos são visíveis dos fenômenos mas bem longe dos sinto mas num ponto que circunstâncias muito curiosas nos tornaram acessível O que precisamos fazer portanto para substituir o inconsciente pelo consciente no indivíduo que trata mos Houve um tempo em que pensávamos que era muito simples bastava descobrir esse inconsciente e informálo ao paciente Hoje sabemos que essa era uma visão míope e equivocada Nosso saber acerca do con teúdo inconsciente não equivale ao saber do paciente se apenas o comunicamos o paciente não o tem no lu gar do seu conteúdo inconsciente e sim ao lado deste e muito pouco terá mudado Precisamos antes imaginar topologicamente esse conteúdo inconsciente procurálo na memória do paciente ali onde ele se formou atra vés de uma repressão Essa deve ser eliminada então a substituição do conteúdo inconsciente pelo consciente pode ocorrer sem percalços Mas como suspender tal re pressão Nossa tarefa adentra aí uma segunda fase Em primeiro lugar buscase a repressão depois eliminase a resistência que a sustenta Como se faz para remover a resistência Da mesma forma descobrindoa e expondoa ao paciente Afinal m 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES a resistência provém de uma repressão daquela mes ma que buscamos solucionar ou de outra anterior Ela é produzida pelo contrainvestimento que surge para reprimir o impulso ofensivo Fazemos pois o mesmo que já queríamos fazer desde o princípio interpretamos descobrimos e comunicamos Mas agora o fazemos no lugar certo O contrainvestimento ou a resistência não pertence ao âmbito do inconsciente e sim ao do Eu que é nosso colaborador e isso mesmo que o contrainvesti mento não seja consciente Sabemos que estamos lidan do aqui com o duplo sentido da palavra inconsciente de um lado como fenômeno de outro como siste ma Isso parece difícil e obscuro mas tratase apenas de repetição do que já dissemos não é mesmo Há muito estamos preparados para isso Esperamos que essa resistência seja abandonada que o contrainvestimento seja recolhido quando por meio de nossa interpreta ção permitimos que o Eu tome conhecimento dela Mas com que forças motrizes trabalhamos em um caso como esse Em primeiro lugar com o anseio do paciente de se curar que o levou a se submeter ao trabalho conjunto conosco em segundo com o auxílio de sua inteligência à qual damos suporte com nossa interpretação Não há dúvida de que a inteligência do paciente terá maior fa cilidade para reconhecer a resistência e encontrar a tra dução correspondente para o que foi reprimido se lhe tivermos dado as ideias antecipatórias apropriadas Se eu lhes disser Olhem para o céu vejam aquele balão Ou expectativas Erwartungsvorstellungen 27 A TRANSFERÊNCIA lá em cima os senhores o encontrarão com muito mais facilidade do que se eu apenas lhes solicitar que olhem para cima a ver se descobrem algo Também o estudan te quando olha pela primeira vez no microscópio é ins truído pelo professor sobre o que deve ver do contrário nada vê embora alguma coisa esteja lá e seja visível E agora vamos ao fato Em bom número de formas de adoecimento neurótico em histerias estados de an gústia neuroses obsessivas nossa premissa se mostra correta Por meio dessa busca da repressão da exposição das resistências e da indicação do que foi reprimido con seguimos solucionar o problema isto é superar as resis tências anular a repressão e transformar em consciente o conteúdo inconsciente Ao fazêlo obtemos a mais clara noção de como para a superação de cada resistên cia uma intensa luta é travada na psique do paciente uma luta psíquica normal no mesmo plano psicológico entre os motivos que procuram manter o contrainves timento e aqueles que estão dispostos a dele abrir mão Os primeiros são os motivos antigos que outrora im puseram a repressão entre os últimos encontramse os novos que assim esperamos vão resolver o conflito no sentido que desejamos Conseguimos pois reavivar o velho conflito que levou à repressão submeter a revisão o processo decidido no passado Como novo material apresentamos em primeiro lugar a advertência de que a decisão anterior conduziu ao adoecimento e a promessa de que uma nova abrirá o caminho rumo à cura em se Isto é o fato novo que anunciou no início da conferência 579 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES gundo lugar a enorme modificação de todas as circuns tâncias desde o momento daquela primeira rejeição Na época o Eu era débil infantil e talvez tivesse razão em proscrever como perigosa a demanda da libido Hoje ele está fortalecido e experiente além de contar com a ajuda do médico a seu lado Assim podemos ter a esperança de conduzir o conflito reavivado a um desfecho melhor que a repressão e como já foi dito o sucesso nos casos de histeria e das neuroses obsessivas e de angústia nos dá razão em princípio Mas há outras formas de enfermidade ante as quais não obstante condições idênticas nosso procedimento terapêutico jamais obtém sucesso Nelas foi também um conflito original entre o Eu e a libido que levou à repres são ainda que do ponto de vista topológico sejam outras as suas características e também é possível descobrir os pontos em que ocorreram as repressões na vida do doente Nós utilizamos o mesmo procedimen to estamos prontos a fazer as mesmas promessas pres tamos ao enfermo o mesmo auxílio comunicandolhe ideias antecipatórias e mais uma vez a distância tempo ral entre o presente e as repressões de outrora favorece um outro desfecho para o conflito Ainda assim não lo gramos anular a resistência e remover a repressão De modo geral tais pacientes paranoicos melancólicos pessoas acometidas de dementia praecox permanecem incólumes imunes à terapia psicanalítica Por que mo tivo isso acontece Não se trata de falta de inteligência naturalmente certa capacidade intelectual é necessária a nossos pacientes mas esta com certeza não falta por 27A TRANSFERÊNCIA exemplo aos sagazes portadores de paranoia combina tória Tampouco notamos a ausência das demais forças motrizes Os melancólicos por exemplo possuem em grande medida a consciência faltante aos paranoicos de que estão doentes e por isso tanto sofrem mas isso não os torna mais acessíveis Vemonos pois diante de um fato que não compreendemos e que por isso mesmo nos faz questionar se realmente entendemos todas as condi ções para o eventual sucesso com as outras neuroses Se prosseguimos nos ocupando de nossos histéricos e neuróticos obsessivos logo deparamos com outro fato para o qual não estávamos de forma alguma prepa rados Após algum tempo notamos que esses doentes se comportam de uma maneira muito especial para co nosco Acreditávamos haver explicado todas as forças motrizes em ação no tratamento pensávamos ter racio nalizado por completo a situação entre nós e o paciente de modo a enxergála tão claramente como uma opera ção aritmética simples mas então parece infiltrarse em nossa conta algo que não havíamos considerado Esse elemento novo e inesperado é também ele multiforme Inicialmente vou descrevêlo em sua manifestação mais frequente e simples de compreender Notamos então que o paciente que nada mais deve buscar senão uma saída para os conflitos que fazem sofrer desenvolve particular interesse pela pessoa do médico Tudo que se relaciona a essa pessoa lhe parece mais importante do que seus próprios assuntos aparen temente desviando sua atenção da própria enfermidade Assim sendo o trato com o paciente se torna por algum 81 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES tempo bastante agradável ele se revela especialmente solícito busca mostrarse agradecido sempre que pode exibe sutilezas e méritos de seu ser que talvez jamais teríamos encontrado nele O médico forma então uma opinião bastante favorável de seu paciente e louva o acaso que lhe permitiu prestar assistência a personalida de tão valiosa Se tem oportunidade de conversar com parentes dele ouve com prazer que a simpatia é mútua Em casa o paciente não se cansa de elogiar o médico e de louvar sempre novas qualidades dele É apaixonado pelo senhor em quem confia cegamente Tudo que o senhor diz é como uma revelação para ele relatam os parentes Vez por outra um par de olhos mais perspi cazes se destaca desse coro e diz Já está ficando chato como ele não fala em outra coisa que não seja o senhor e menciona apenas o seu nome Cabe esperar que o médico seja modesto o bastante para remeter essa avaliação que o paciente faz de sua personalidade às esperanças que ele lhe dá e à expansão do horizonte intelectual que lhe propicia com as revela ções surpreendentes e libertadoras que a terapia enseja Em tais condições a própria análise faz progressos es tupendos o paciente compreende o que lhe é indicado e se aprofunda nas tarefas que lhe são propostas pelo tra tamento é farto o material que lhe flui das lembranças e associações e ele surpreende o médico com a segurança e a propriedade de suas próprias interpretações de tal forma que esse último pode apenas constatar com sa tisfação a boa vontade com que o doente acolhe as no vidades psicológicas que no mundo lá fora costumam 27A TRANSFERÊNCIA provocar a mais implacável oposição dos saudáveis A essa bela harmonia durante o trabalho analítico tam bém corresponde uma melhora objetiva amplamente reconhecida do estado da enfermidade Mas um tempo tão bom não pode durar para sempre Um dia chegam as nuvens Surgem dificuldades no tra tamento e o paciente afirma que não lhe ocorrem mais associações Temos a nítida impressão de que o trabalho terapêutico não lhe interessa mais e de que sem preo cupação nenhuma ele abandona a instrução que lhe foi dada de dizer tudo que lhe passa pela mente sem ceder a nenhum obstáculo crítico Ele se comporta como se não estivesse em tratamento como se não tivesse feito um trato com o médico claramente ele foi tomado por algo que deseja guardar para si Essa é uma situação pe rigosa para tratamento Estamos sem dúvida diante de uma poderosa resistência O que aconteceu Quando podemos ver clara a situação percebemos que a causa da perturbação é o fato de o paciente ha ver transferido para o médico intensos sentimentos afetuosos que não se justificam nem pela conduta do médico nem pela relação no tratamento De que forma essa afeição se manifesta e que objetivos almeja isso depende naturalmente das circunstâncias pessoais dos dois envolvidos Tratandose de uma moça e de um homem ainda jovem a impressão que teremos é a de um enamoramento normal julgaremos compreensível que uma moça se apaixone por um homem jovem com o qual passa muito tempo sozinha e discute intimidades e que lhe aparece na posição vantajosa de alguém su 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES perior a ajudála e provavelmente esqueceremos que numa moça neurótica seria de esperar uma perturbação da capacidade de amar Quanto mais as circunstâncias pessoais do médico e do paciente se distanciarem do caso suposto tanto mais estranharemos encontrar sem pre a mesma relação emocional entre os dois Ainda se pode conceber que uma jovem mulher infeliz no casa mento seja aparentemente tomada de séria paixão pelo médico ainda solteiro que ela se disponha a buscar a separação para ficar com ele ou havendo algum impe dimento social que não chegue a manifestar escrúpulo em iniciar com o médico uma relação amorosa secreta Afinal coisas semelhantes acontecem também fora da psicanálise Mas nessas condições ouvimos com espan to manifestações de mulheres e moças que exprimem da seguinte maneira seu posicionamento em relação à questão terapêutica sempre souberam afirmam elas que só poderiam se curar pelo amor e desde o início do tratamento esperavam que tal relacionamento enfim lhes presenteasse com aquilo de que a vida até então lhes havia privado apenas essa esperança as teria fei to se empenhar tanto no tratamento e superar todas as dificuldades de comunicação ao que de nossa par te acrescentamos e compreender com tanta facilidade aquilo em que de resto é difícil de acreditar Mas uma confissão dessas nos surpreende deita por terra todas as nossas avaliações Será possível que tenhamos deixado de fora de nosso cálculo o fator mais importante E de fato quanto maior for a nossa experiência tanto menos poderemos nos opor a essa correção que 27ATRANSFERÊNCIA envergonha o nosso rigor científico Nas primeiras ve zes podíamos acreditar que o tratamento analítico havia deparado com uma perturbação motivada por um acon tecimento casual isto é estranho à sua intenção e não provocado por ela Mas quando essa vinculação afetuo sa do paciente com o médico se repete regularmente a cada novo caso quando reaparece sem cessar mesmo sob condições as mais desfavoráveis e em situações ver dadeiramente grotescas como numa senhora mais velha ou em relação a um homem de barbas brancas ou seja mesmo quando segundo nosso juízo nada existe de se dutor então temos que abandonar a ideia de um acaso perturbador e reconhecer que se trata de um fenômeno intimamente ligado à natureza da própria doença A esse fato novo que reconhecemos a contragosto demos o nome de transferência Referimonos a uma transferência de sentimentos para a pessoa do médico pois não acreditamos que a situação terapêutica possa justificar o desenvolvimento de tais sentimentos Su pomos isto sim que toda essa disposição para o sen timento provém de outra parte que ela já estava pron ta no doente e por ocasião do tratamento analítico é transferida para a pessoa do médico A transferência pode surgir como turbulenta exigência amorosa ou sob formas mais moderadas Na relação de uma moça com o homem de idade pode brotar na primeira em vez do desejo de ser amada o de ser aceita como a filha prefe rida o anseio libidinal pode ser atenuado transformado em sugestão de amizade indissolúvel porém ideal e não sensual Algumas mulheres logram sublimar a transfe 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES rência e modelála até que ela se torne viável de algu ma maneira outras necessitam externála em sua forma crua original e geralmente impossível No fundo po rém o fenômeno é sempre o mesmo e não deixa dúvida sobre a fonte comum que lhe deu origem Antes de nos perguntarmos onde haveremos de aco modar o fato novo representado pela transferência va mos completar sua descrição Como sucede com os pa cientes masculinos Com eles poderíamos esperar que não houvesse a importuna interferência da diferença de sexo e da atração sexual A resposta contudo é que não se dá com os homens coisa muito diferente do que ocor re com as mulheres há o mesmo vínculo com o médico a mesma superestimação de suas qualidades idêntica absorção nos interesses dele o mesmo ciúme em relação aos que lhe são próximos na vida Entre um homem e outro as formas sublimadas da transferência são mais frequentes e a demanda sexual direta é mais rara na mesma medida em que a homossexualidade manifesta passa a segundo plano diante dos outros empregos desse componente instintual Também nos pacientes masculi nos o médico observa a ocorrência mais frequente do que nas mulheres de uma forma de transferência que à primeira vista parece contradizer a descrição que até agora fizemos a transferência hostil ou negativa Em primeiro lugar deixemos claro que a transferên cia surge no paciente desde o início do tratamento e que por algum tempo representa a mola propulsora do tra balho Enquanto atua em favor da análise empreendida em conjunto nós não a percebemos nem necessitamos 27 A TRANSFERÊNCIA nos preocupar com ela Se todavia a transferência se transforma em resistência somos obrigados a atentar para ela e vemos que em duas condições diferentes e opostas sua relação com o tratamento se modificou A primeira quando na qualidade de terna inclinação a transferência se torna tão forte indica tão claramente sua procedência do âmbito da necessidade sexual que só pode provocar uma resistência interna contra si a se gunda quando consiste de impulsos hostis em vez de afetuosos Em regra os sentimentos hostis aparecem depois dos afetuosos e por trás deles em sua presença si multânea espelham bem a ambivalência de sentimentos que rege a maioria de nossos relacionamentos íntimos com outras pessoas Os sentimentos hostis constituem um vínculo emocional tanto quanto os afetuosos assim como a atitude desafiadora indica a mesma dependência que a obediência mas com o sinal trocado Não pode haver dúvida de que os sentimentos hostis para com o médico merecem o nome de transferência pois certa mente a situação da terapia não oferece motivo bastante para seu surgimento a concepção necessária da trans ferência negativa nos garante que não nos equivocamos em nosso juízo da transferência positiva ou afetuosa De onde vem a transferência que dificuldades nos impõe como a superamos e que proveito dela tiramos finalmente isso deve ser tratado minuciosamente numa instrução técnica sobre a análise e hoje será apenas mencionado É coisa fora de questão ceder às deman das do paciente decorrentes da transferência e seria um contrassenso rejeitálas de maneira inamistosa ou 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES pior ainda indignada Nós superamos a transferência demonstrando ao doente que seus sentimentos não têm origem na situação presente nem se aplicam à pessoa do médico mas repetem algo que já lhe ocorreu no pas sado Desse modo nós o obrigamos a transformar sua repetição em lembrança A transferência que afetuosa ou hostil parecia significar a mais forte ameaça ao tra tamento tornase então seu melhor instrumento aquele com o qual podem se abrir os mais cerrados comparti mentos da vida psíquica Mas eu gostaria de lhes dizer algumas palavras a fim de libertálos da estranheza ante o surgimento des se fenômeno inesperado Não nos esqueçamos de que a enfermidade do paciente que acolhemos em análise não é algo encerrado rígido mas que continua crescendo seu desenvolvimento segue adiante como o de um ser vivo O início do tratamento não põe fim a esse desen volvimento mas tendo a terapia se apoderado do pa ciente disso resulta que toda nova produção da doença se concentra em um único ponto isto é na relação com o médico A transferência tornase comparável àquela camada de células denominada câmbio situada entre a madeira e a casca de uma árvore da qual provêm a formação de novos tecidos e o espessamento do tron co Quando a transferência atinge essa importância o trabalho com as lembranças do doente recua conside ravelmente Não é incorreto dizer então que já não li damos com a enfermidade anterior do paciente e sim com uma neurose recémcriada e transformada que substitui aquela Acompanhamos desde o princípio essa 88 27 A TRANSFERÊNCIA nova edição da velha afecção vimola surgir e crescer e nela nos orientamos bem pois na condição de obje to estamos no seu centro Todos os sintomas do doente abandonaram seu significado original e adquiriram um novo sentido que guarda relação com a transferência ou restaram apenas os sintomas capazes dessa reelabo ração O domínio sobre essa nova neurose artificial coincide com a resolução da enfermidade trazida para o tratamento com a solução de nossa tarefa terapêutica A pessoa que em sua relação com o médico se tornou normal e liberta do efeito dos impulsos instintuais re primidos assim permanece também em sua vida pró pria quando o médico tiver saído de cena Essa significação extraordinária verdadeiramente central na terapia a transferência tem nas histerias his terias de angústia e neuroses obsessivas que são cor retamente denominadas neuroses de transftrência Quem tiver adquirido no trabalho analítico uma impressão cabal do fato da transferência já não poderá duvidar de que tipo são os impulsos reprimidos que obtêm expres são nos sintomas dessas neuroses e tampouco exigirá prova mais contundente de sua natureza libidinal Po demos dizer que nossa convicção do significado desses sintomas como satisfações libidinais substitutas somente se firmou em definitivo após a inclusão da transferência Agora temos amplos motivos para corrigir nos sa anterior concepção dinâmica do processo de cura e alinhála à nova percepção Para atravessar e vencer o conflito normal com as resistências que lhe desvenda mos na análise o doente necessita de um impulso po 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES deroso que influencie a decisão no sentido que deseja mos aquele que conduz à cura De outro modo pode ocorrer que ele se decida pela repetição do desfecho anterior e deixe novamente cair na repressão aquilo que foi elevado até à consciência Determinante nessa luta não é sua percepção intelectual que não tem força nem liberdade suficientes para isso mas sua relação com o médico apenas ela Enquanto sua transferência apresentar sinal positivo ela reveste o médico de au toridade convertendose em crença nas declarações e concepções deste Sem essa transferência ou se ela for negativa ele nem sequer dará ouvidos ao médico e seus argumentos Nisso a crença repete sua própria gênese é um derivado do amor e não necessitou de argumen tos no início Somente depois o paciente lhes dá algum espaço de modo a submetêlos a exame se forem apre sentados por uma pessoa que lhe é cara Argumentos desprovidos de tal sustentação não tiveram peso e ja mais o têm para a maioria das pessoas Em geral o ser humano só é acessível pelo lado intelectual na medida em que é capaz de investir de libido o objeto e temos boas razões para identificar e temer na extensão de seu narcisismo uma barreira à possibilidade de influenciá lo mesmo pela melhor técnica psicanalítica Claro que a capacidade de dirigir a pessoas os inves timentos objetais libidinais deve ser atribuída a todo ser humano normal A inclinação dos chamados neuróticos à transferência é apenas uma intensificação extraordiná ria dessa característica geral Seria muito singular que uma característica humana tão disseminada e importan 27 A TRANSFERÊNCIA te jamais tivesse sido apontada e avaliada E isso de fato aconteceu Com certeira perspicácia Bernheim funda mentou a teoria dos fenômenos hipnóticos na tese de que todas as pessoas são de alguma maneira sugestionáveis suggestible Sua sugestionabilidade nada mais é que a inclinação para a transferência concebida com certa estreiteza pois não inclui a transferência negativa Mas Bernheim não conseguiu dizer o que é de fato a suges tão e como ela acontece Para ele era um fato básico cuja origem não podia demonstrar Ele não percebeu na suggestibilité a dependência da sexualidade da atividade libidinal E devemos nos dar conta de que abandonamos a hipnose em nossa técnica apenas para redescobrir a su gestão sob a forma da transferência Mas aqui me detenho e passo a palavra aos senho res pois noto que há uma objeção que cresce tão ra pidamente que se fosse impedida de se expressar não os deixaria continuar me ouvindo Pois bem o senhor finalmente admitiu que trabalha com o auxílio da su gestão como o hipnotizador Era o que vínhamos pen sando há um bom tempo Mas então por que o longo rodeio pelas lembranças do passado o descobrimento do inconsciente a interpretação e tradução retrospec tiva das deformações o enorme dispêndio em matéria de esforço tempo e dinheiro se a única coisa eficaz é a sugestão Por que o senhor não utiliza a sugestão dire tamente contra sintomas como fazem os outros os ho nestos hipnotizadores E além disso caso pretenda se desculpar pelo rodeio invocando as numerosas desco bertas psicológicas significativas que teriam se ocultado 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES com sugestão direta quem garante a certeza dessas des cobertas Não serão produto também da sugestão da sugestão não intencional O senhor não poderia tam bém nesse campo impor ao paciente aquilo que deseja e que lhe parece correto A objeção que os senhores me fazem é interessantís sima e tem de ser respondida Hoje porém já não posso fazêlo faltanos o tempo para isso Fica para a próxima vez Os senhores verão que lhes darei satisfações Hoje devo terminar o que comecei Prometi que mediante o fato da transferência eu os faria compreender por que nossos esforços terapêuticos não têm sucesso com as neuroses narcísicas Posso fazêlo em poucas palavras e os senhores ve rão com que facilidade o enigma se resolve e como tudo se encaixa muito bem A observação mostra que aque les que sofrem de neuroses narcísicas não possuem ca pacidade de transferência ou possuem apenas resíduos insuficientes dela Rejeitam o médico mas não de ma neira hostil e sim indiferente Por isso não podem ser influenciados por ele O que o médico diz os deixa frios não lhes causa nenhuma impressão por isso não pode se produzir neles o mecanismo de cura que fazemos fun cionar nos outros a renovação do conflito patogênico e a superação da resistência devida à repressão Eles permanecem como são Com frequência já fizeram por conta própria tentativas de se restabelecer que tiveram resultados patológicos Nisso não podemos nada mudar Com base em nossas impressões clínicas desses pa cientes afirmamos anteriormente que neles o inves 28 A TERAPIA ANAlÍTICA timento objetai deve ter sido abandonado e a libido objetai transformada em libido do Eu Por essa carac terística nós os distinguimos do primeiro grupo de neu róticos os que sofrem de histeria neurose de angústia e neurose obsessiva Tal suposição é agora confirma da por seu comportamento ante a tentativa terapêutica Eles não demonstram transferência e por esse motivo são refratários a nossos esforços não podem ser cura dos por nós 28 A TERAPIA ANALÍTICA Senhoras e senhores Todos sabem sobre o que falare mos hoje Os senhores me perguntaram por que na te rapia psicanalítica não nos servimos da sugestão direta se admitimos que a influência que exercemos repousa essencialmente na transferência isto é na sugestão e a isso relacionaram a dúvida de que dada essa predomi nância da sugestão ainda possamos garantir a objeti vidade de nossas descobertas psicológicas Eu prometi que lhes daria uma resposta detalhada A sugestão direta é aquela dirigida contra a mani festação dos sintomas a luta entre a sua autoridade e os motivos da doença Ao fazer uso dela os senhores não se ocupam dos motivos apenas requerem que o pacien te suprima as manifestações desses motivos em forma de sintomas Nesse caso não faz diferença em princípio se os senhores põem ou não o paciente em estado hipnótico 593 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Bernheim mais uma vez com a perspicácia que o carac teriza afirmou que a sugestão é o essencial nos fenôme nos hipnóticos e a hipnose propriamente dita um resul tado da sugestão um estado sugerido e preferiu praticar a sugestão com o paciente no estado de vigília a qual é capaz de realizar o mesmo que a sugestão na hipnose O que preferem os senhores ouvir primeiro sobre essa questão o que diz a experiência ou reflexões teóricas Comecemos pela primeira Fui discípulo de Ber nheim que visitei em Nancy em 1889 e cujo livro sobre a sugestão traduzi para o alemão Pratiquei durante anos o tratamento hipnótico de início valendome da su gestão proibidora e mais tarde combinandoo com o método de Breuer de interrogar o paciente Então pos so falar dos resultados das terapias hipnótica e sugestiva com base em boa experiência própria Se conforme uma velha máxima dos médicos a terapia ideal deve ser rápi da confiável e não desagradável ao paciente o método de Bernheim atendia a duas dessas condições Ele podia ser executado com maior rapidez com rapidez incom paravelmente maior do que o analítico e não impli cava esforço nem fadiga para o paciente Para o médico ele se tornava monótono com o tempo em cada caso o mesmo procedimento e o mesmo cerimonial proibir a existência dos mais diversos sintomas sem apreender coisa alguma de seu sentido e sua significação Era tra balho servente não uma atividade científica e lembrava magia encantamento e prestidigitação mas ante o in teresse do doente isso não contava A terceira condição não estava presente confiável esse procedimento não 594 28 A TERAPIA ANAlÍTICA era de forma alguma Em alguns ele podia ser aplica do em outros não em certos pacientes conseguiase muita coisa em outros muito pouco e nunca se sabia por quê Pior do que esse caráter caprichoso do proce dimento era a pouca duração dos resultados Após al gum tempo quando se voltava a ter notícia do paciente a velha enfermidade retornara ou fora substituída por outra Podiase hipnotizálo de novo Por trás de tudo no entanto havia a advertência expressa por pesquisa dores experientes de que não se privasse o doente de sua autonomia pela repetição frequente da hipnose acostumandoo a essa terapia como se fosse um narcó tico Admitimos que às vezes as coisas se davam con forme o desejado depois de alguns esforços obtínha mos sucesso pleno e duradouro Mas as condições para esse desfecho favorável permaneciam desconhecidas Certa vez ocorreume de um estado grave que eu ha via eliminado por completo mediante breve tratamento hipnótico retornar sem nenhuma modificação depois de a enferma se zangar comigo sem que eu lhe tivesse feito nada após a reconciliação logrei novamente e de maneira ainda mais radical fazêlo desaparecer mas ele voltou a aparecer depois que se afastou de mim pela se gunda vez Em outra ocasião aconteceume de uma pa ciente a quem várias vezes eu ajudara a superar estados neuróticos com a hipnose de súbito lançarme os braços em torno do pescoço durante o tratamento de um acesso particularmente tenaz Querendo ou não esse tipo de coisa nos fazia pensar na questão da natureza e da ori gem de nossa autoridade sugestiva 595 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES É quanto tenho a dizer sobre a experiência Ela nos mostra que ao renunciar à sugestão direta não estamos abrindo mão de algo insubstituível Acrescentemos aqui algumas ponderações A prática da terapia hipnótica de manda pouquíssimo trabalho tanto do paciente como do médico Essa terapia está em total consonância com certa avaliação das neuroses que a maioria dos médicos ainda sustenta O médico diz ao paciente neurótico O senhor não tem nada isso é apenas dos nervos Posso pôr fim a suas queixas em poucos minutos com algumas palavras Mas contraria a nossa concepção da energia que sejamos capazes de mover uma grande carga com um emprego mínimo de força quando a abordamos di retamente e sem a ajuda de equipamentos apropriados Até onde podemos comparar essas duas situações a ex periência ensina que tal artifício não funciona com as neuroses Sei contudo que esse argumento não é inata cável também existem as ações desencadeadoras À luz do conhecimento obtido com a psicanálise po demos descrever da seguinte forma a diferença entre as sugestões hipnótica e psicanalítica a terapia hipnótica busca ocultar e dissimular algo na vida psíquica a ana lítica procura liberar e remover algo Aquela age como um cosmético esta como uma cirurgia Aquela utili za a sugestão para proibir os sintomas ela intensifica as repressões mas deixa inalterados os processos que levaram à formação dos sintomas A terapia analítica ataca mais próximo das raízes onde estão os conflitos de que se originaram os sintomas e se serve da suges tão para modificar o desfecho desses conflitos A terapia 28 A TERAPIA ANALÍTICA hipnótica deixa os pacientes inativos e inalterados e por isso mesmo incapazes de resistir a novas ocasiões para o adoecimento O tratamento analítico requer trabalho árduo do médico e do paciente um trabalho dedicado à anulação das resistências internas Mediante a supe ração dessas resistências a vida psíquica do doente é modificada de forma duradoura alçada a um estágio superior de desenvolvimento e fica protegida contra novas possibilidades de adoecimento Esse trabalho de superação é o feito essencial do tratamento analítico o doente precisa realizálo o que o médico lhe possibilita com o auxílio da sugestão que aí atua em sentido edu cativo Por isso já se disse com razão que o tratamento psicanalítico é uma espécie de póseducação Espero ter deixado claro aos senhores de que modo o nosso uso terapêutico da sugestão se diferencia da quele que é o único possível na terapia hipnótica Tam bém o caráter caprichoso que chamou nossa atenção na terapia hipnótica os senhores compreendem agora de pois de havermos remontado a sugestão à transferência enquanto a terapia analítica permanece no interior de seus limites previsível Na aplicação da hipnose depen demos de como se apresenta a capacidade de transferên cia do enfermo sem que possamos exercer qualquer influência sobre ela A transferência do paciente a ser hipnotizado pode ser negativa ou como na maioria dos casos ambivalente ele pode ter adotado posturas espe ciais para se proteger dela nada disso sabemos Na psi canálise agimos sobre a própria transferência resolve mos o que se opõe a ela ajustamos o instrumento com 597 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES que desejamos influir Assim se torna possível para nós tirar proveito bem diverso do poder da sugestão ele está em nossas mãos O doente não sugere a si pró prio o que bem entender somos nós que dirigimos sua sugestão até onde ele for acessível à influência deste Os senhores dirão que pouco importa se chamamos a força impulsora de nossa análise de transferência ou de sugestão de todo modo há o perigo de que a influência exercida sobre o paciente ponha em dúvida a certeza ob jetiva de nossas descobertas O que é bom para a terapia é prejudicial à pesquisa Essa é a objeção mais frequente que se faz à psicanálise e temos de admitir que embora equivocada não podemos descartála como irrefletida Fosse ela justificada a psicanálise nada mais seria que um tipo de tratamento por sugestão muito bem disfar çado e particularmente efetivo e não deveríamos levar muito a sério suas afirmações sobre o que influencia nossa vida sobre a dinâmica psíquica e o inconsciente É o que pensam os adversários da psicanálise sobretudo o que diz respeito à significação das vivências sexuais quando não as vivências em si nós teríamos incutido nos pacientes após essas noções terem se desenvolvido em nossa própria fantasia degenerada Tais acusações são refutadas mais facilmente invocando a experiência do que com o auxílio da teoria Quem conduziu psicaná lises já teve inúmeras oportunidades de se convencer de que é impossível sugestionar o paciente dessa forma Na turalmente não é difícil tornálo adepto de determinada teoria e assim fazêlo participar de um possível erro do médico Nisso ele se comporta como qualquer outra 28 A TERAPIA ANAlÍTICA pessoa como um discípulo mas desse modo influencia mos apenas sua inteligência não sua doença A solução de seus conflitos e a superação de suas resistências só têm êxito quando lhe transmitimos ideias antecipatórias que correspondem à sua realidade interior As suposi ções incorretas do médico acabam excluídas no curso da análise precisam ser retiradas e ser substituídas por outras mais corretas Mediante uma técnica cuidadosa buscamos impedir a ocorrência de sucessos provisórios devidos à sugestão mas não há problema se ocorrerem pois não nos contentamos com o primeiro sucesso Não damos por terminada a análise sem que tenhamos es clarecido todos os pontos obscuros do caso preenchido as lacunas da memória e encontrado as ocasiões para as repressões Vemos os sucessos precoces mais como obs táculos do que como avanços do trabalho analítico eles são anulados ao resolvermos continuamente a transfe rência em que se baseiam No fundo é esse último traço que separa o tratamento analítico do puramente suges tivo e livra os resultados analíticos da suspeita de serem êxitos da sugestão Em todos os outros tratamentos por sugestão a transferência é cuidadosamente poupada permanecendo intacta no analítico ela própria é objeto do tratamento e decomposta em cada uma de suas mani festações Para a conclusão de um tratamento analítico é necessário que a própria transferência seja demolida se então o êxito sobrevém ou se mantém não se baseia na sugestão mas na superação das resistências internas efetuada com sua ajuda na modificação interior produ zida no paciente 599 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Por certo age contra o surgimento de sugestões iso ladas o fato de durante a terapia termos de combater incessantemente resistências capazes de se transformar em transferências negativas hostis E não podemos deixar de ressaltar que grande número de resultados da análise dos quais se poderia suspeitar serem produtos da sugestão são indiscutivelmente confirmados a partir de outra fonte Nesse caso nossos fiadores são os dementes e paranoicos que estão naturalmente muito acima da suspeita de influência por sugestão O que esses doentes nos relatam de traduções de símbolos e de fantasias que neles penetraram até a consciência coincide fielmente com os resultados de nossas investigações do inconscien te dos neuróticos de transferência reforçando assim a correção objetiva de nossas interpretações tantas vezes contestadas Creio que os senhores não se equivocarão se depositarem confiança nesses pontos da análise Agora vamos complementar nossa exposição do mecanismo da cura apresentandoo com as fórmulas da teoria da libido O neurótico é incapaz de fruição e realização da primeira porque sua libido não se acha voltada para um objeto real da segunda porque precisa despender grande parte da sua energia disponível para manter a libido na repressão e para se defender de seu ataque Ele se tornaria saudável caso tivesse fim o con flito entre seu Eu e sua libido e seu Eu voltasse a dispor de sua libido A tarefa terapêutica consiste portanto em libertar a libido de suas ligações presentes afastadas do Eu e colocála novamente a serviço desse Eu Mas onde está a libido do neurótico Não é dificil encontrá 6oo 28 A TERAPIA ANALÍTICA la está ligada aos sintomas que lhe oferecem a única satisfação substituta possível no momento É preciso então assenhorearse dos sintomas resolvêlos jus tamente o que o doente requer de nós Para a resolução dos sintomas teremos de voltar até o seu surgimento renovar o conflito que lhes deu origem e com o auxí lio das forças motrizes que não estavam disponíveis na época guiálo para outro desfecho Somente em parte essa revisão do processo repressivo pode ser feita nos traços mnêmicos dos eventos que conduziram à repres são A porção decisiva do trabalho é realizada criando na relação com o médico na transferência no vas edições daqueles velhos conflitos em que o paciente gostaria de se comportar como fez no passado enquan to nós mediante o emprego de todas as forças psíquicas disponíveis o obrigamos a tomar uma outra decisão A transferência se torna pois o campo de batalha em que devem se encontrar todas as forças que lutam entre si Toda a libido assim como toda oposição a ela é reu nida nessa relação com o médico é inevitável nisso que os sintomas sejam despojados de libido No lugar da doença do paciente surge aquela produzida artificial mente isto é a doença da transferência em lugar dos diversos objetos libidinais irreais um só objeto nova mente fantasioso que é a pessoa do médico Mas com o auxílio da sugestão médica a nova luta por esse objeto é elevada ao mais alto nível psíquico transcorre como conflito psíquico normal Como se evita uma nova re pressão o estranhamente entre Eu e libido tem fim a unidade psíquica da pessoa é restabelecida Quando a 601 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES libido é desprendida do objeto temporário que é a pessoa do médico não pode retornar a seus objetos anteriores permanecendo assim à disposição do Eu As forças que combatemos durante esse trabalho terapêutico são por um lado a aversão do Eu a certas orientações da libido que se manifesta como tendência à repressão e por outro lado a tenacidade ou viscosidade da libido que não quer abandonar os objetos uma vez investidos O trabalho terapêutico se decompõe em duas fases portanto Na primeira toda a libido é obrigada a passar dos sintomas para a transferência e é lá concentrada na segunda travase a luta pelo novo objeto e a libido é dele libertada A modificação decisiva para o bom de senlace é a exclusão da repressão nesse conflito reno vado de maneira que a libido não pode mais uma vez subtrairse ao Eu mediante a fuga para o inconsciente Isso é possibilitado pela modificação do Eu realizada sob a influência da sugestão médica Graças ao trabalho de interpretação que transforma o que é inconsciente em consciente o Eu é ampliado à custa desse incons ciente por meio da instrução ele se torna conciliador em relação à libido e inclinado a concederlhe alguma satisfação seu medo ante as exigências da libido é redu zido mediante a possibilidade de ele dar conta de uma parte da libido através da sublimação Quanto mais os processos durante o tratamento corresponderem a essa descrição ideal maior será o sucesso da terapia analíti ca Ele encontra seus limites na falta de mobilidade da libido que pode relutar em abandonar seus objetos e na rigidez do narcisismo que não permite que a transfe 28 A TERAPIA ANAlÍTICA rência objetai ultrapasse determinada fronteira Talvez lancemos mais alguma luz sobre a dinâmica do processo de cura com a observação de que capturamos toda a libido subtraída à dominação do Eu ao atrair parte dela para nós mediante a transferência Não é descabido lembrar que não podemos a par tir das distribuições da libido produzidas durante e por intermédio do tratamento tirar uma conclusão dire ta sobre sua alocação durante a doença Supondo que conseguíssemos resolver satisfatoriamente um caso mediante o estabelecimento e a resolução de uma forte transferência paterna para o médico seria errado con cluir que anteriormente o doente sofreu de semelhante ligação inconsciente de sua libido com o pai A transfe rência paterna é apenas o campo de batalha em que nos apoderamos da libido a libido do paciente foi dirigida para lá a partir de outras posições Esse campo de bata lha não coincide necessariamente com uma das fortale zas importantes do inimigo A defesa da capital inimiga não tem de acontecer precisamente ante os portões da cidade Apenas depois de resolvida a transferência é que se pode reconstruir em pensamentos a distribuição da libido que prevalecia durante a enfermidade Podemos do ponto de vista da teoria da libido di zer ainda algumas palavras sobre o sonho Os sonhos dos neuróticos assim como seus atos falhos e suas as sociações livres ajudamnos a perceber o sentido dos sintomas e descobrir a colocação da libido Sob a forma de realização de desejo eles nos mostram quais desejos sucumbiram à repressão e a quais objetos se prendeu 603 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES a libido subtraída ao Eu Por isso a interpretação dos sonhos tem um relevante papel no tratamento psicana lítico e é em vários casos por longos períodos o mais importante instrumento de trabalho Já sabemos que o sono em si provoca certo relaxamento das repressões Essa diminuição da pressão que pesa sobre ele possibi lita que o impulso reprimido logre expressarse muito mais claramente no sonho do que lhe permite o sintoma ao longo do dia O estudo dos sonhos tornase assim o mais cômodo acesso ao conhecimento do inconsciente reprimido de que faz parte a libido subtraída do Eu Mas em nenhum ponto essencial os sonhos dos neu róticos diferem daqueles das pessoas normais talvez sejam indistinguíveis destes Seria um contrassenso ex plicar os sonhos dos neuróticos de uma forma que não se aplicasse também aos sonhos das pessoas normais Portanto devemos dizer que a diferença entre saúde e neurose vale apenas para o dia não se estende à vida onírica Somos obrigados a transpor para o indivíduo saudável algumas hipóteses que no tocante ao neuróti co resultam do nexo entre seus sonhos e seus sintomas Não podemos discutir que também o indivíduo saudá vel possui em sua vida psíquica aquilo que torna pos sível a formação tanto dos sonhos como dos sintomas e temos de concluir que também ele fez uso de repres sões que arcou igualmente com certo dispêndio para mantêlas que seu sistema do inconsciente oculta im pulsos reprimidos e ainda investidos de energia e que uma parte de sua lihido não se encontra mais à disposição do Eu O saudável é virtualmente um neurótico mas 28 A TERAPIA ANALÍTICA o sonho parece ser o único sintoma que ele é capaz de formar É verdade que se submetemos a exame mais apurado sua vida em estado de vigília descobrimos o que parece contradizer a impressão anterior que essa vida supostamente saudável está impregnada de um semnúmero de formações de sintoma pequenas e de pouca relevância prática Portanto a diferença entre a saúde nervosa e a neu rose limitase ao plano prático e é determinada pelo re sultado isto é se restou à pessoa capacidade suficiente para a fruição e a realização Provavelmente essa dife rença remete à proporção relativa dos dois montantes de energia o que permaneceu livre e o ligado à repres são sendo de natureza quantitativa não qualitati va Não preciso lembrálos de que essa percepção é que fundamenta teoricamente a nossa convicção de que em princípio as neuroses podem ser curadas Isso é o que podemos inferir quanto à caracteriza ção da saúde a partir do fato de serem idênticos os so nhos dos saudáveis e os dos neuróticos No tocante ao próprio sonho há também a conclusão de que não po demos desprendêlo de suas relações com os sintomas neuróticos que não devemos crer que sua natureza se esgotaria na fórmula que o define como uma tradução dos pensamentos numa forma arcaica de expressão e que temos de supor que ele nos mostra alocações da li bido e investimentos objetais realmente presentes Logo chegaremos ao final Talvez estejam decep cionados com o fato de num capítulo sobre a terapia analítica eu só ter lhes falado de coisas teóricas e não 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES sobre as condições para empreender o tratamento e os resultados que ele obtém Mas não abordarei esses dois temas O primeiro porque não é minha intenção lhes dar instruções práticas sobre o exercício da psicanálise o segundo porque motivos vários me impedem de fazê lo No início de nossas conferências desse ano cf fi nal do cap 16 enfatizei que sob condições favoráveis alcançamos êxitos que nada ficam a dever aos melhores no âmbito da medicina interna e talvez possa acrescen tar que nenhum outro procedimento teria logrado obtê los Se eu dissesse mais daria margem à suspeita de que desejo abafar com a propaganda as altas vozes dos detratores Contra a psicanálise colegas médicos já fizeram repetidas vezes também em congressos públi cos a ameaça de publicar uma coletânea dos fracassos e danos psicanalíticos a fim de abrir os olhos dos pacien tes para a inutilidade desse método de tratamento Mas à parte o caráter odioso e denunciatório de tal medida uma coletânea desse tipo não seria apropriada nem mes mo para possibilitar um julgamento correto da eficácia terapêutica da análise A terapia analítica ainda é jovem como os senhores sabem um longo tempo foi necessá rio para que se pudesse estabelecer sua técnica o que só podia ser feito durante o trabalho e com a experiên cia crescente Em razão das dificuldades de ensinála o médico iniciante na psicanálise depende em maior medida do que algum outro especialista de sua própria capacidade para se desenvolver e os resultados obtidos em seus primeiros anos jamais permitirão formular um julgamento sobre a eficácia da terapia analítica 6o6 28 A TERAPIA ANAlÍTICA Muitas tentativas de tratamento fracassaram na épo ca inicial da psicanálise pois foram feitas em casos que não se prestavam para o método e que hoje excluímos com base em nosso registro de indicações Mas só pu demos chegar a essas indicações através das tentativas De início não sabíamos que em suas formas mais pro nunciadas a paranoia e a dementia praecox são inacessí veis e tínhamos o direito de experimentar o método em todo tipo de afecção A maioria dos fracassos daqueles primeiros anos todavia não ocorreu devido à culpa do médico ou à escolha inapropriada do objeto e sim por condições externas desfavoráveis Tratamos aqui ape nas das resistências internas as do paciente que são inevitáveis e superáveis As resistências externas que são impostas à análise pela situação do doente por seu ambiente têm reduzido interesse teórico mas enorme importância prática O tratamento psicanalítico pode ser comparado a uma intervenção cirúrgica e como esta deve ser realizado com os preparativos mais favo ráveis para o sucesso Os senhores sabem que precau ções o cirurgião costuma tomar sala apropriada boa luz assistentes exclusão dos parentes etc Perguntem a si mesmos quantas cirurgias chegariam a bom termo se fossem realizadas na presença de todos os membros da família rodeando a mesa operatória e soltando gritos a cada incisão Nos tratamentos psicanalíticos a intro missão dos parentes constitui verdadeiro perigo com o qual não sabemos lidar Estamos preparados para as re sistências internas do paciente que reconhecemos como inevitáveis mas como nos defendermos das resistências 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES externas Não há esclarecimento que convença a fa mília do paciente não logramos induzila a manterse longe do tratamento e não podemos jamais nos aliar a eles pois então corremos o risco de perder a confiança do doente que com razão digase de passagem exige que seu homem de confiança tome o seu partido Quem conhece as dissensões que frequentemente atin gem uma família não pode como analista surpreender se com a percepção de que os mais próximos do doente por vezes não revelam tanto interesse em que se cure quanto em que permaneça como está Quando como é frequente a neurose está relacionada a conflitos en tre membros da família o familiar saudável não precisa pensar muito para decidir entre seu próprio interesse e o restabelecimento do doente Não surpreende afinal quando um marido não vê com bons olhos um trata mento em que como pode ele supor com razão será revelada toda a sua lista de pecados e tampouco nos surpreendemos com isso mas não devemos nos re criminar quando nosso esforço permanece infrutífero e é interrompido precocemente porque a resistência do marido vem se juntar à da mulher doente Sucedeu que pretendemos realizar algo que na situação existente era inexequível Em vez de um grande número de casos quero rela tar aos senhores apenas um em que a discrição médica me fez desempenhar um papel sofredor Há muito anos aceitei submeter a tratamento analítico uma jovem moça que fazia muito tempo não saía para a rua nem conse guia ficar sozinha em casa porque sofria de angústia 6o8 28 A TERAPIA ANALÍTICA Lentamente ela acabou por confessar que sua imagina ção havia sido tomada pela observação casual de uma troca de carinhos entre sua mãe e um abastado amigo da família De maneira inábil porém ou talvez refi nada a enferma deu à mãe uma indicação do que era abordado nas sessões de análise pois mudou seu com portamento em relação a ela insistindo em que apenas a mãe e nenhuma outra pessoa a protegesse da angústia de ficar sozinha e angustiada bloqueavalhe o cami nho até a porta quando ela queria sair de casa No pas sado também a mãe fora bastante neurótica mas havia encontrado a cura para seu problema numa instituição hidroterápica anos atrás Mas acrescentemos que nes sa instituição ela havia conhecido o homem com o qual iniciou um relacionamento que a satisfazia plenamente Surpresa com as tempestuosas exigências da filha a mãe compreendeu subitamente o significado daquela angús tia A filha adoecera para fazer dela uma prisioneira e privála da liberdade de movimentos necessária ao rela cionamento com o amado De forma rápida e resoluta a mãe pôs fim ao tratamento que lhe era prejudicial A moça foi enviada a uma instituição para doentes nervo sos e durante anos apresentada como pobre vítima da psicanálise Por todo esse período fui perseguido pela má fama que trouxe o infeliz desfecho desse tratamen to Guardei silêncio porque me julgava atado pelo de ver da discrição médica Muito tempo depois por meio de um colega que visitara a instituição e lá vira a moça agorafóbica soube que a relação da mãe com o abas tado amigo da casa era conhecida de todos e provavel 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES mente gozava da aprovação do marido e pai Assim o tratamento fora sacrificado a este segredo Nos anos anteriores à guerra quando a afluência de pacientes estrangeiros me tornou independente da sim patia ou antipatia de minha própria cidade eu seguia a regra de não tratar pacientes que não fossem sui juris ou seja que não fossem independentes nas questões es senciais da vida Não é algo que todo psicanalista pode se permitir Talvez os senhores concluam de minha advertência sobre os parentes que se deveria apartar os doentes de suas famílias para submetêlos a psica nálise limitando essa terapia portanto aos internos das instituições para doentes dos nervos Mas nisso eu não poderia concordar com os senhores é muito mais vantajoso que os doentes durante o tratamento caso não estejam numa fase de grave esgotamento sejam mantidos nas mesmas circunstâncias em que terão de enfrentar as tarefas que lhes cabem Os parentes toda via não devem anular essa vantagem com seu compor tamento nem de forma alguma adotar uma postura hostil ante os esforços médicos Mas como influir nesses fatores inacessíveis para nós Os senhores perceberão naturalmente como as perspectivas de um tratamento são determinadas pelo meio social e pela condição cul tural de uma família Isso nos oferece uma perspectiva sombria da eficácia da psicanálise como terapia não é mesmo Ainda que possamos explicar a maioria de nossos fracassos com base em tais fatores perturbadores externos Por isso amigos da psicanálise nos aconselharam a contrapor à 610 28ATERAPIA ANALÍTICA coleção de insucessos uma estatística dos êxitos por nós preparada Mas não concordei com a sugestão Lem brei que uma estatística não tem valor quando os itens nela reunidos não são suficientemente homogêneos e os casos de neurose tratados não eram de fato equiva lentes em variados aspectos Além disso o período que podia ser abarcado era demasiado breve para se avaliar a durabilidade da cura e muitos casos não podiam ser relatados Eram de pessoas que haviam mantido em se gredo tanto a doença como o tratamento e cuja recu peração devia igualmente permanecer em segredo O impedimento mais decisivo no entanto foi a percepção de que em questões de terapia as pessoas se compor tam de maneira bastante irracional de modo que não há perspectiva de obter algo com elas por meios racionais Uma novidade terapêutica é ou recebida com entusias mo inebriante por exemplo quando Koch apresentou ao público sua primeira tuberculina para a tuberculose ou tratada com a mais profunda desconfiança como foi a vacina de Jenner que embora verdadeiramente benéfica ainda hoje tem adversários irredutíveis Era evidente que havia um preconceito contra a psicanálise Quando curávamos um caso difícil podíamos escutar Isso não prova nada O paciente teria se recuperado por si durante esse tempo E quando um doente já tendo passado por quatro ciclos de depressão e mania veio se tratar comigo durante um intervalo após a me lancolia e três semanas depois iniciouse uma nova fase maníaca todos os seus familiares além de uma grande autoridade médica chamada para dar um pare 6n 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES cer mostraramse convencidos de que o novo ata que só podia ser consequência da tentativa de análise Contra preconceitos não há o que fazer nesse momento os senhores podem ver isso mais uma vez nos precon ceitos que um grupo de nações em guerra desenvolveu contra o outro O mais sensato é esperar deixando que o tempo os desgaste Um dia as mesmas pessoas pensa rão diferentemente sobre as mesmas coisas por que não pensaram assim antes eis um profundo mistério É possível que o preconceito contra a terapia analíti ca já esteja diminuindo A difusão constante das teorias psicanalíticas e o aumento do número de médicos que usa o tratamento analítico em vários países parecem garantilo Quando eu era um jovem médico presenciei uma semelhante tempestade de indignação dos médicos contra o tratamento por sugestão hipnótica que atual mente os sóbrios opõem à psicanálise Como agen te terapêutico todavia a hipnose não cumpriu a pro messa inicial nós psicanalistas podemos nos declarar seus legítimos herdeiros e não esquecemos o estímulo e o esclarecimento teórico que devemos a ela Os da nos atribuídos à psicanálise limitamse no essencial a manifestações passageiras de conflito intensificado quando a análise é conduzida com imperícia ou quando é interrompida no meio Os senhores foram aqui infor mados sobre o que fazemos com os pacientes e podem julgar por conta própria se o nosso trabalho pode levar a danos permanentes O mau uso da análise é possível de variadas formas a transferência em especial é um instrumento perigoso nas mãos de um médico não cons 62 28 A TERAPIA ANALÍTICA ciencioso Mas nenhum instrumento ou procedimento médico está a salvo do mau uso quando um bisturi não corta também não pode servir para curar Cheguei ao fim senhoras e senhores É mais do que uma frase convencional se reconheço que estou plena mente cônscio dos muitos defeitos destas conferências Lamento acima de tudo haver muitas vezes prometido retomar um assunto apenas esboçado e depois o con texto não haver permitido que eu cumprisse a promes sa Propusme informar os senhores sobre uma matéria inacabada ainda em desenvolvimento e o meu próprio resumo se mostrou incompleto Em várias passagens tinha pronto o material para tirar uma conclusão e aca bei não o fazendo Mas não podia querer transformálos em especialistas quis apenas oferecerlhes esclareci mento e estímulo 613 ÍNDICE REMISSIVO AS INDICAÇÕES NA E NTOESIGNAM AS NOTAS DO AUTOR E DO TRADUTOR RESPECTIVAMENTE ÍNDICE REMISSIVO Abel K 241 310 Abraham 435 549 abstinência 514 532 74 Acádia 217 Adler 321 504 538 adoecimento orgânico 388 51 554 adolescente 538 Adriano imperador 114 adultos 117 1701 179 183 2778 2802 JI7 419 422 42 433 442 444 446 469 4802 4902 28 412 50 afetos afetivos afetivas 22 28 31 33 90 1201 146 273 28991 322 326 338 3678 390 446 19 22 530 34 42 54 69 África 178 Afrodite I4NT agitação 367 61 333 agorafobia 353 361 529 agressão agressivo 534 539 Albert príncipe 149 Alemanha 219 alemão 32 42 104 160 242 Alexandre o Grande 23 113 319 alucinatórias 138 172 1745 183 288 amamentação 473 485 ambiguidades 212 310 3123 478 523 ambivalência 66 587 América 343 amnésia 26970 274 37780 41 433 575 amor amorosos amorosas 34 O 132 14 184 1868 238NA 26 2589 267 27 9 282 284 326 332 334 3368 380 384 40 408 438 444 457 469 498 00 14 41 5490 2 61 64 71 84 90 amuletos 222 analogias 68 89 141 IO 183 241 311 323 329 339 3667 382 41 00 14 536 Ananke 472 68 AndreasSalomé 418 Angst 5234 angústia 15 121 256 289 291 4 296 299 36 362 364 38 398 483 167 19 26 2839 41 62 69 579 589 593 6o8 ver tam bém medo animal animais 174 206 210 216 223 232 212 281 380 471 480 491 494 IO 212 2 289 548 Anna M 237NA Anna 0 366NT ansiedade 31 533 5378 541 Antarctic Nordenskjõld 177 Antiguidade 78 2202 445 antropologia 22 3 Antropophyteia KrauB 219 ânus anal anais 404 419 423 4347 457 ÍNDICE REMISSIVO aparelho psíquico 455 474 498 ver também psique vida psí quica apotropaea 222 Aristandro 319 Aristóteles n6 Arriano 24 arte artístico 51 229 363 419 43 439 498 OI Artemidoro de Daldis II4 319 assíriobabilônicas inscrições 314 associação livre ver livre asso ciação Atena I4NT atos falhos 31 35 3740 45 7 49 514 86o 62 6 75 7882 890 934 96 7 1002 I04 1078 III2 n6 118 1345 13840 143 151 173 176 183 260 318 32 344 360 02 603 audição 32 90 Aussee 169 Áustria 3 55 autoconservação 467 472 509 521 544 5478 6 689 autoerotismo autoerótica 318 417 422 437 486 491 o ver também masturbação Back G 178 bebês 139 217 272 417 422 3 525 Behandeling van Zenuwielcen door PsychoAnalyse De Meijer 14 beijo JI8 402 427 430 Bela Helena A Offenbach 14í beleza 75 121 175 benefício da doença 50710 Bernheim 138 148 370 591 594 bexiga 127 418 Binz 114 biologia 26 547 bissexual 212 321 Bleuler 146 66 boca 2ro 403 416 435 471 Bocklin 232 Bôlsche 471 BorchJacobsen 366NT Breuer uoNA 343 36o 365 367 3724 388 391 594 Brill 70NA 74NA Bruegel 404 brutalidade 197 Canção de Páris Offen bach 145 Cântico dos Cânticos 218 Carlos rei 266 casamento 70 73 77 150 165 237 272 298 30 332 339 30 36 367 446 470 07 573 84 Caso Schreber Freud 22NT castração 2n 223 258 359 490 493 cegonha 217 275 422 células nervosas 452 censura 183 18791 193 198 ÍNDICE REMISSIVO 200 2289 233 240 268 271 280 28 287 289 2917 316 395 44 478 48 554 67 censura do sonho 183 18891 2289 233 240 287 289 2934 316 ver também in terpretação dos sonhos trabalho do sonho so nhos centauros 232 cérebro 189 563 cerimonial obsessivo 346 352 9 361 378 397400 5 594 César e Cleópatra Shaw 71 chinesa língua e escrita 3 u chistes 67 158 214 217 223 23 3189 ciência 16 26 29 34 46 67 79 1II 1J4 134 136 207 314 p6 380 398 403 414 439 44 I 552 6o 76 ciências humanas 227 Cinco lições de psicanálise Freud IIONT ciúme 219 267 332 335 337 339 387 432 61 86 claustrofobia 361 clitóris 209 356 422 cobras 527 coito 263 423 491 532 coletividade 572 Colombo 34 3 complexo da castração 280 421 ver também castração complexo de Édipo 27980 43841 443 4468 40 482 condensação 54 2313 240 24 27 270 318 39 477 487 18 conflitos o 812 96 276 280 327 442 4646 468 470 4768 484 4967 499 503 o6 o8 1o 548 5567 66 5723 575 579 81 589 592 596 599602 6o8 612 cônjuge o 166 193 274 332 571 consciência consciente 16 28 9 11 199 22 255 28 299 331 338 3701 373 383 3905 409 441 447 46 4779 534 38 67 5735 581 590 6oo conscientes atos e processos 28 11 268 272 3714 379 393 408 488 496 499 conteúdo inconsciente 156 19 577 579 conteúdo latente 2 30 322 conteúdo manifesto 11 16o 163 176 181 192 230 239 264 JO J22 J6J contos de fada 2145 225 253 contrainvestimento 478 544 5789 Contribuição à história do movi mento psicanalítico Freud lONA Copérnico 380 coquetismo 443 67 ÍNDICE REMISSIVO Corinto 219 corpo humano 205 210 214 341 crianças 33 104 112 u7 r 17 16771 174 183 212 21 2179 262 26970 272 2746 279 281 304 353 37 366 401 40 4127 41924 427 430 432 438 4414 4469 461 4689 472 479 482 4913 29 53742 ver tamhém infância infantil infantis crimes 34 66 197 235 345 439 440 446 crueldade 197 434 culpa r6 ror 137 258 264 294 441 488 6 6o7 cultura cultural culturais 29 30 198 33 403 459 33 6ro cuneiforme escrita 3rr 314 cura 475 o 8 572 575 580 589 592 6oo 603 6o9 6u Dachstein r69 Darwin ro3 38o 27 Dattner 72NA dedos 54 83 rr 170 357 43 490 defecação 418 delírios delirantes 33 m rr3 33540 3423 o 61 64 67 dementiapraecox 360 p8 549 p8 61 8o 607 dentes 127 2u 223 251 253 6 382 depressão 6u desejos 22 27 59 76 8 89 96 99 104 IJ2 1717 17981 183 1925 197200 209 212 2J0 232 248 2J 6 289 2623 267 2714 276 2788o 2823 285300 3037 J22 337 339 31 39 363 386 395 397400 40J 405 4I0 42I 440 443 4469 459 464 478 489 493 495 499 503 14 48 I 554 5667 70 585 603 6o6 deslocamento r89 234 235 270 294 315 319 3J8 346 39 477 487 496 18 38 desprazer desprazerosos 101 3 289 2923 29 4734 476 498 508 5234 Deus deuses 1412 1578 185 404 440 445 Diderot 449 dinheiro 69 104 1646 188 195 237NA 24 297 382 418 507 591 Diodoro 24 distração 367 589 61 76 Divã ocidentaloriental Goe the m dobretes 239 doenças doentes 19 212 26 29 107 1103 225 228 248 25 327 331 334 342 6 348 353 3617 3717 37938143869039741043845746124756483487950050350512514517520526529305325345557560356675713575658025855889593559760160360711 ÍNDICE REMISSIVO fantasias 15 94 1312 1778 867 22 2J2 307 338 J46 31 389 401 406 410 417 478 4879 491 oo 0 18 598 6oo faraó 220 Farina G M 122 Fechner 119 femininos femininas 43 144 2103 216 220 222 289 261 321 339 367 39 422 434 470 490 491 I Ferenczi 467 fetichistas 405 463 fezes 418 filhas 448 212 272 2767 279 340 353 359 4423 448 46870 8 6o9 filhos 44 104 159 184 192 3 206 2123 21 2J7NA 20 24 28 2612 272 2769 297 317 332 38 397 4424 448 469 553 62 filosofia filósofos 26 61 115 131 204 física 26 fixação fixações 364 366 368 423 45 47 4601 463 4678 47780 483 488 4956 o 5578 65 Flaubert 404 Fliegende Bliitter 36 lO FlieB W 425 fobias p63o 534 537 53944 folclore 214 223 227 fome 177 179 237 259 415 54 i Fontane 494 França 6 159 Franklin 178 Freuds Neurosenlehre Hitsch mann 14 Furcht 23 gatos 5279 genital genitais 127 2067 210 2123 218 2202 227 28 2612 2812 36 402 404 409 412 417 41921 42 4278 430 4326 46 459 463 468 471 ver tam bém organização genital glândulas sexuais 451 Goethe I 449 553 Grundrüge der Psychoanalyse Kaplan 14 guerra 20 49 6 9 Ioo 197 8 366 438 o 62 610 612 Guido são 115 Hall S p6 544 Hallstatt 169 Hamlet Shakespeare 218NT 446 hebraico 17 Helena 14NT Hera 14NT hereditariedade 336 340 479 Heródoto 219 heróis 217 Hesnard 14 ÍNDICE REMISSIVO hieroglífica escrita 3 I oI Hildebrandt I23 Hincks 3I4 hipnose hipnóticos hipnó tica I384o I94 3889 59I 5937 612 hipocondria I6 p8 555 hipocrisia I97 histeria histéricos histéri cas I 23 32I 3435 348 360 362 36 367 373 378 8o 38 398 400 402 409 430 467 479 483 498 o2 o I3 I78 524 30 533 4I 549 568 66 80I 593 História Heródoto 2I9NT Hitschmann 14 Hoffmann dr 490 homem homens 73 934 I32 I38 144 I656 I92 I978 2069 2I2 2I6 2I8 220 2267 24I 250 23 289 26 27I2 28I 292 297 JI78 32I 334 340 349 31 3579 36 380 384 386 403 4089 42I 438 4I 445 449 463 468 470 494 499 507 11 li 523 289 3I2 37 48 64 7I 573 583 86 6o89 Homero p homofonia 2 3 homossexualidade homosse xual homossexuais 4034 4089 4I9 62 64 86 Hórus 435 Ics sistema 454 Id I6 Idade Média 114 Ilíada Homero INT Iluminismo 114 ilusão 64 imagens mnemônicas 244 mago 226NT 227 impotência 3I 386 397 440 484 32 impulsos I7 22 2930 IOJ I99 27 277 280 282 284 2878 304 J20I 34 6 369 37I 374 39I 393 396 40812 4I 4334 436 7 440I 446 449 4579 46870 478 49 24 34 42 62 64 723 78 87 89 604 incesto incestuosos inces tuosa I92 28I 2834 445 o 454 456 inconsciente o I4 29 I23 I I76 204 27I 273 284 6 296 306 3I8 338 344 364 3702 374 J76 380 383 39I 409 44I2 455 6 4778 486 496 024 I 424 4 6 73 575 5778 9I 598 6oo 602 604 inconscientes atos e proces sos 289 I6I I66 I94 I96 I99200 224 247 25 286 30 307 34I 343 3704 379 393 395 44I 470 495 6 oo p8 542 ÍNDICE REMISSIVO infância infantil infantis ro3 121 123 132 168 1702 176 179 181 I8J 209 217 230 2556 28 268 71 276 27888 29J 304 307 J4 32 359 366 378 401 412 414 417 4194 4289 4314 437 4439 467 470 473 4798 487 90 492 5379 5412 61 67 571 8o ver também crianças inglês 3 158 242 463 inibição inibições inibidos 263 364 40I 484 499 instintos instintual instin tuais 16 2930 179 213 304 J20I J2 3 407 413 41 417 420 4289 4348 447 449 42 46 460 462 466 470 4724 479 481 486 493 49 4978 09 21 53940 5448 550 5556 689 76 86 89 inteligência IO 574 78 8o 599 interpretação dos sonhos 14 II4 160 194 196 1989 201 203 247 261 274 286 299 309 314 319 382 6o4 ver também censura do sonho trabalho do sonho sonhos Interpretação dos sonhos A Freud 230 307NT intestino 128 418 423 investimentos 449o 4778 482 4967 489 I2 4 557 61 590 593 6o irmãs 75 77 192 195 265 276 422 4446 irmãos ro2 158 161 173 192 3 19 206 26 2747 2823 422 4434 Janet 3434 Jenner 6u Jones 74NA 75 judeus 16 2178 250 jung 69NA I46 360 496 46 Kaplan 14 Karl M 237NA Klementine K 237NA Koch 6u Konig Karls Meerfohrt Uhland 266 KrauB F S 219 lactentes 4152o 429 4312 437 lapsos 312 36 38 403 45 9 I6 68 79 827 90 6 134 138 J4I 199 2J2 JI8 latência 2oo 4334 437 441 latim 242 524 62 leite 485 leitura 32 40 I 8 90 94 96 314 lembranças 98 IOI 103 II2 121 IJ8 1490 13 88 249 22 255 266 26971 ÍNDICE REMISSIVO 273 337 30 32 355 37 369 3789 383 39I2 400 4I2 444 484 486 4889I r8 82 88 59 I Levy L 2I9 libido libidinal libidinais I92 3I8 4I 424 4346 4470 45368 470I 47583 48 8 497 499 023 123 I6 I8 JI6 53846 482 5549 612 645 689 572 5757 8o 8 899I 593 6oo Lichtenberg r 95 Lieheslehen in der Natur Das Bolsche 47INT Lindner 4I67 linguagem 2I 220 226 228 9 268 3I2 23 I línguas 2I 22I 224 24I3 247 310 3I3 linguística 223 227 239NT livre associação I43 I47 II 134 176 190 202 603 Lõwenfeld 32 7 Luís XIV I36NT Macheth Shakespeare 128 mãe 73 192 195 2157 250 27 27I2 274 2767 279 337 340 353 3586o 378 398 416 42J 43841 443 446 4489 461 490 2 39 64 609 Maeder 74NA 77 320 mamíferos 2I6 4I 25 mania 381 410 66 611 mãos 120 214 265 maridos 46 68 70 77 83 I30 I637 195 2I9 2378 260 272 292 2967 304 3323 336 33840 30I 38 36 367 369 397 408 507 JI2 6o8 6Io masculinos masculinas 207I3 2202 27 26I 32I 39 42I 423 434 41 492 r 86 masoquistas 405 masturbação masturbatório masturbatória 2II 223 267 263 40I2 4IO 4I7 420I 432 469 492 n Maury 115 I22 I2 Mayer 4I2 57 mecônio 25 Médecin malgré fui Le Mo liere 375NT medicina I921 267 I I70 2I 320 34I2 I6 po 6o6 médicos I4 223 26 70 93 99 III II34 I2J I84 I93 27I 32I2 J2 327 329JI 333 349 374 382 3867 389 438 440 475 490 o68 I2 I6 19 2 32 62 64 57I3 8090 592 594 5969 6oi3 6o67 610 6I23 medo 256 257 260 265 267 29 3II 356 38 4IO 2I 23 2 537 53940 6o2 ver também angústia Neveu de Rameau Le Diderot 449 Nimrod 25 nojo 281362404418 nomes 32364456707990951002143414850265347518526 Nordenskjöld 177 Novo Testamento 218 medulla oblongata 520 Meijer 14 melancolia 5656 611 Melissa lenda de 219 memórias 3258899010121131211381862692733313779433444577599 ÍNDICE REMISSIVO pensamentos oníricos 151 1602 1646 1712 188200 202 205 230 234 236 23840 2448 250 255 2623 268 286 290 297 3012 3046 30810 320 perda de objetos 33 79 105 Periandro lenda de 219 perigo 30 38 294 300 374 387 453 481 505 5214 5278 5301 536 5401 5434 569 574 598 607 personalidade 16 23 25 249 320 4646 553 561 582 perversão perversões perversos perversas 2813 4035 40713 41920 42430 433 44950 457 467 471 477 549 pés 124 355 358 463 Pfister 14 315 phallus impudicus 222 piano 115 120 130 170 211 Piccolomini Schiller 48 plantas 213 354 356 431 Platão 197 Plutarco 242 319 Poincaré 56 polissemia 235 poluição 179 povos primitivos 340 445 prazer prazerosas 57 192 206 211 277 282 291 298 304 319 345 4023 405 41620 427 42932 4367 459 4734 491 4935 498501 523 547 582 ver também princípio do prazer préconsciente 318 3935 454 456 478 573 princípio do prazer 4734 477 486 506 ver também prazer prazerosas projeção 339 543 550 ver também transferência provérbios 1745 214 225 3123 psicanálise 14 16 1931 33 35 5960 634 70 74801 118 134 136 146 176 1978 204 207 209 2268 246 25960 315 323 3256 336 3401 3434 348 372 380 385 389 3989 417 419 424 4324 4389 449 462 4656 473 500 502 504 513 515 520 524 532 547 54960 5667 570 575 584 5968 6067 60910 612 psicanalistas 24 184 209 221 319 329 3601 381 396 524 560 610 612 psicologia 26 28 80 89 100 112 122 131 142 146 227 247 284 288 315 317 371 395 441 493 524 5434 559 Psicopatologia da vida cotidiana Freud 74 psicoses 348 549 560 568 psique 17 27 89 111 11921 126 240 285 336 371 381 395 5134 579 ver também ÍNDICE REMISSIVO aparelho psíquico vida psíquica psiquiatras 27 41 48 II2 3346 341 343 401 6o psiquiatria 21 23 27 III 227 325 336 340 343 3478 371 58 561 Psychoanafyse des névroses et des psychoses La Régis Hes nard 14 Psychoanafytische Methode Die Pfister 14 puberdade 132 223 256 281 365 4134 420 423 434 445 447 463 484 491 533 punição 71 237NA 238NA 295 299 química 21 26 64 15 racional racionais 161 253 285 306 3534 p1 611 raiva 272 534 Rank 49 179 217 228 249 280 448 ratos 5278 Rawlinson 314 Régis 14 regressão regressivo regres sivas 244 246 250 268 287 302 40 437 476 8 482 4846 542 545 Reitler 76NA religião religioso religiosa 3 5 67 123 227 229 20 23 255 441 I renúncias 277 345 357 389 repressão repressões repri midos reprimidas 87 8 187 282 293 306 317 381 3916 398 400 433 438 4547 467 4779 484 496 499 023 08 34 42 554 557 62 67 72 57580 8990 592 596 59960 resíduos diurnos 286 3067 321 395 554 resistências 29 634 86 91 II3 1546 159 190 204 229 280 284 288 p6 3378 371 3803 38591 394 396 412 421 438 43 46 463 46 48 497 02 04 08 554 60 57780 83 87 89 592 597 599600 6078 Riviera 149 Roma 71 75 Roux 480 Royal Asian Society 314 Sachs 228 278 sadismo sádicos sádica 405 410 423 4346 47 sangue 37 423 524 527 Sargão da Acádia rei 217 satisfação satisfações 2930 IJ2 174 177 179 183 187 193 29 281 30 318 339 397401 4068 4102 415 7 419 422 4267 4J2 441 453 4586o 4645 469 474 4769 487 491 4948 ÍNDICE REMISSIVO o6 u 513 518 529 532 540 54 547 549 2 565 571 582 589 592 6012 saúde 55 57 6o 6 99 506 38 6045 Scherner 127 204 206 214 Schiller 40 48 Schreck 523 Schubert G H von 221 Schwind 180 182 Secrets dAnna O BorchJacob sen 366NT sede 177 179 seios 210 213 215 265 4167 423 437 4856 sensualidade sensual 2 572 8 sentimentos 167 101 n89 186 196 199 21 2 273 276 278 284 383 386 414 429 441 4434 469 21 27 30 38 66 583 585 5878 ser humano 100 II5 135 137 198 216 284 301 404 421 445 466 471 473 475 494 506 10 548 590 sexualidade sexual sexuais 2930 177 179 192 19 197 20614 21820 2223 2257 229 256 25863 271 2778 2803 285 298 304 321 33940 352 3566o 397417 41938 442 4478 412 454 46 48 63 467 47981 4836 4904 497 034 10 18 313 540 52 555 6 63 6 72 574 86 7 91 98 Shakespeare 49 128 Shaw 71 276 Silberer po 403 simbolismo símbolos 200 20222 229 239 243 250 258 2601 265 267 8 297 3089 350 3567 359 6oo Simbologia sexual da Bíblia e do Talmud N Levy 219 sintomas 213 27 101 uo 228 247 303 321 323 334 3424 3469 352 356 359 63 3656 368 37182 386 388 3901 394402 40710 412 415 424 431 450 4578 464 4756 4789 4859 496 498 500 502 5046 o813 I 5178 20 no 5336 38 58 5601 572 5757 589 591 5934 596 6015 Sobre o sentido antitético das palavras primitivas Freud 241NT sociedade humana 283 413 Sófocles 43940 sofrimentos 278 334 353 475 485 506 508 sonambulismo 138 Sonho do prisioneiro Schwind 180 182 sonhos 14 no6 n835 137 13943 1478 15063 16 ÍNDICE REMISSIVO 81 18397 199209 211 21322 225 22740 24374 276 278 283311 313 316 23 325 344 3501 360 3634 366 372 383 395 3967 415 439 449o 478 482 487 495 499 502 504 544 551 5545 6035 ver tamhém censura do sonho interpretação dos sonhos trabalho do sonho sono 1159 1213 126 129 131 1389 16975 17880 183 1924 199 286 288 2934 322 3523 356 361 395 478 551 5546 604 sons 434 54 61 226 310 312 Sperber 226 Starcke 74NA Stekel 321 Struwwelpeter Hoffmann 490 sublimação 45960 497 499 5J2 602 sugar ação de 416 sugestão 40 5914 596602 612 Suíça 315 suicídio 66 Supereu 16 superstição 79 114 Talbot F 314 Tannhiiuser Wagner 426 técnica psicanalítica 95 176 299 59 Tentação de Santo Antônio A Bruegel 404 ternura 73 272 2779 337 340 432 441 443 446 Terra 196 220 266 J80 494 m Tiro cidade de 1134 319 tontura 530 topofobia 361 Totem e tahu Freud J40NA 441 toxinas 5145 trabalho analítico 356 371 389 559 8J 589 599 trabalho do sonho 128 161 183 190 225 22932 2 J4 2368 2406 248 250 254 26 268 285 2878 290 3012 308 JIO 312 319 20 322 ver tamhém censu ra do sonho interpretação dos sonhos sonhos transferência 281 386 398 408 447 454 456 466 502 510 513 517 5478 556 86o 568 570 58590 5923 5978 6oo3 612 ver tamhém projeção trauma traumáticos trau máticas 364 3668 375 461 480 482 o tremedeira no tuberculose 611 Über den Einfluss sexueller Momente auf Entstehung und Entwicklung der Spra che Sperber 226NT Uhland 266 ÍNDICE REMISSIVO umbigo 423 urina 435 vagina 263 404 4I9 42I vestígios diurnos ver resíduos diurnos vida humana 17 r9r vida psíquica 23 26 28 8o 89 94 103 II4 II6 II89 137 142 147 169 196 198 200 228 2467 273 27980 284 296 323 337 341 3467 371 37980 395 417 45 464 466 493 509 I 20 546 48 559 68 76 88 596 6o4 ver também psique vida sexual 30 197 2067 219 26 281 283 28 298 304 32 357 360 397 401 403 407 4II2 414 417 419 20 424 427 429 4326 rr2 JI 5456 574 ver também sexualidade sexual sexuais vigília rr9 ur 174 193 197 224 228 234 21 278 286 306353 594 6o Vold rr 122 209 322 Von Brücke 451 Von HugHellmuth dra r84NT Wagner 426 Wallace 380 Wallenstein Schiller 489 Wit1ige und satirische Einfalle Lichtenberg r Zola 348 zonas erógenas 4168 427 435 437 14 ESTA OBRA FOI COMPOSTA EM FOURNIER E CONDUIT POR CLAUDIA WARRAK E IMPRESSA EM OFSETE PELA GEOGRÁFICA SOBRE PAPEL PÓLEN SOFT DA SUZANO PAPEL E CELULOSE PARA A EDITORA SCHWARCZ EM JANEIRO DE 2017 Digitalizado para PDF por Zekittha Brasília 2272017 fj FSC MISTO p FSCO C018498 A marca Fsc é a garantia de que a madeira utilizada na fabricação do papel deste livro provém de florestas que foram gerenciadas de maneira ambientalmente correta socialmente justa e economicamente viável além de outras fontes de origem controlada SIGMUND FREUD ORBAS COMPLETAS VOLUME 13 CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 19151917 TRADUÇÃO SERGIO TELLAROLI
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SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS VOLUME 13 CONFERÊNCIAS INTrodutórias À PSICANÁLISE 19161917 TRADUÇÃO SERGIO TELLAROLI COMPANHIA DAS LETRAS SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS VOLUME 13 CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 19161917 TRADUÇÃO SERGIO TELLAROLI REVISÃO DA TRADUÇÃO PAULO CÉSAR DE SOUZA 3ª reimpressão COMPANHIA DAS LETRAS SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS EM 20 VOLUMES COORDENAÇÃO DE PAULO CÉSAR DE SOUZA 1 TEXTOS PRÉPSICANALÍTICOS 18861899 2 ESTUDOS SOBRE A HISTÓRIA 18931895 3 PRIMEIROS ESCRITOS PSICANALÍTICOS 18931899 4 A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS 1900 5 PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA E SOBRE OS SONHOS 1901 6 TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE ANÁLISE FRAGMENTÁRIA DE UMA HISTERIA O CASO DORA E OUTROS TEXTOS 19011905 7 O CHISTE E SUA RELAÇÃO COM O INCONSCIENTE 1905 8 O DELÍRIO E OS SONHOS NA GRAVIDA ANÁLISE DA FOBIA DE UM GAROTO DE CINCO ANOS O PEQUENO HANS E OUTROS TEXTOS 19061909 9 OBSERVAÇÕES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA O HOMEM DOS RATOS UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE LEONARDO DA VINCI E OUTROS TEXTOS 19091910 10 OBSERVAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE UM CASO DE PARANOIA RELATADO EM AUTOBIOGRAFIA O CASO SCHREBER ARTIGOS SOBRE TÉCNICA E OUTROS TEXTOS 19111913 11 TOTEM E TABU HISTÓRIA DO MOVIMENTO PSICANALÍTICO E OUTROS TEXTOS 19131914 12 INTRODUÇÃO AO NARCISISMO ENSAIOS DE METAPSICOLOGIA E OUTROS TEXTOS 19141916 13 CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 19151917 14 HISTÓRIA DE UMA NEUROSE INFANTIL O HOMEM DOS LOBOS ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER E OUTROS TEXTOS 19171920 15 PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EU E OUTROS TEXTOS 19201923 16 O EU E O ID AUTOBIOGRAFIA E OUTROS TEXTOS 19231925 17 INIBIÇÃO SINTOMA E ANGÚSTIA O FUTURO DE UMA ILUSÃO E OUTROS TEXTOS 19261929 18 O MALESTAR NA CIVILIZAÇÃO NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS E OUTROS TEXTOS 19301936 19 MOISÉS E O MONOTEÍSMO COMPÊNDIO DE PSICANÁLISE E OUTROS TEXTOS 19371939 20 ÍNDICES E BIBLIOGRAFIA PARA MAIS INFORMAÇÕES SOBRE OS VOLUMES PUBLICADOS ACESSE wwwcompanhiadasletrascombr Copyright da tradução 2014 by Sergio Tellaroli Copyright da organização 2014 by Paulo César Lima de Souza Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009 Os textos deste volume foram traduzidos de Gesammelte Werke volumes XI e XVI Londres Imago 1940 e 1950 A outra edição alemã referida é Studienausgabe volume I Frankfurt Fischer 2ooo O tradutor agradece o apoio do Colégio Europeu de Tradutores de Straelen EOK e do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico DAAD A tradução desta obra foi finalizada em Straelen na Alemanha entre os meses de maio e julho de 2013 Capa e projeto gráfico warrakloureiro Imagens das pp 3 e 4 obras da coleção pessoal de Freud Eros período helenístico Grécia terracota 10 em Guerreiro da Úmbria 00450 aC Itália bronze 208 em Freud Museum Londres Preparação Célia Euvaldo Índice remissivo Luciano Marchiori Revisão Carmen T S Costa MariseLeal Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro sP Brasil Freud Sigmund 86939 Obras completas volume 13 conferências introdutórias à psicanálise 19IÓ1917 I Sigmund Freud tradução Sergio Tellaroli revisão da tradução Paulo César de Souza 11 ed São Paulo Companhia das Letras 2014 Título original Gesammelte Werke ISBN 9788jJj924190 1 Freud Sigmund r861939 2 Psicanálise 3 Psicologia 4 Psicoterapia 1 Título 1402275 CDD10194 Índice para catá1ogo sistemático I Sigmund Freud Obras completas Psicologia analítica 1501954 2017 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ SA Rua Bandeira Paulista 702 cj p 04532oo2 São Paulo SP Telefone n 37073500 Fax n 37073501 Digitalizado para PDF por Zekittha Brasília 2272017 SUMÁRIO ESTA EDIÇÃO 9 CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 19161917 PREFÁCIO 14 PREFÁCIO À EDIÇÃO HEBRAICA r6 PRIMEIRA PARTE OS ATOS FALHOS 1916 1 INTRODUÇÃO 19 2 OS ATOS FALHOS 31 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO 2 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO 79 SEGUNDA PARTE OS SONHOS S DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES IIO 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO 133 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES r r 8 SONHOS DE CRIANÇAS 167 9 A CENSURA DOS SONHOS r83 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS 200 11 O TRABALHO DO SONHO 229 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS 247 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS 268 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS 287 15 INCERTEZAS E CRÍTICAS 308 TERCEIRA PARTE TEORIA GERAL DAS NEUROSES 1917 16 PSICANÁLISE E PSIOUIATRIA 325 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS 343 18 A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE 364 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO 381 20 A VIDA SEXUAL HUMANA 401 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS 424 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA 450 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS 475 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM oo 25 A ANGÚSTIA 519 26 A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO 545 27 A TRANSFERÊNCIA 570 28 A TERAPIA ANALÍTICA 593 ÍNDICE REMISSIVO 614 ESTA EDIÇÃO Esta edição das obras completas de Sigmund Freud pre tende ser a primeira em língua portuguesa traduzida do original alemão e organizada na sequência cronoló gica em que apareceram originalmente os textos A afirmação de que são obras completas pede um es clarecimento Não se incluem os textos de neurologia isto é não psicanalíticos anteriores à criação da psica nálise Isso porque o próprio autor decidiu deixálos de fora quando se fez a primeira edição completa de suas obras nas décadas de 1920 e 30 No entanto vários tex tos prépsicanalíticos já psicológicos serão incluídos nos dois primeiros volumes A coleção inteira será com posta de vinte volumes sendo dezenove de textos e um de índices e bibliografia A edição alemã que serviu de base para esta foi Ge sammelte Werke Obras completas publicada em Lon dres entre 1940 e 1952 Agora pertence ao catálogo da editora Fischer de Frankfurt que também recolheu num grosso volume intitulado Nachtragshand Volu me suplementar inúmeros textos menores ou inéditos que haviam sido omitidos na edição londrina Apenas alguns deles foram traduzidos para a presente edição pois muitos são de caráter apenas circunstancial A ordem cronológica adotada pode sofrer pequenas alterações no interior de um volume Os textos consi derados mais importantes do período coberto pelo vo lume cujos títulos aparecem na página de rosto vêm em primeiro lugar Em uma ou outra ocasião são reu 9 nidos aqueles que tratam de um só tema mas não foram publicados sucessivamente é o caso dos artigos sobre a técnica psicanalítica por exemplo Por fim os textos mais curtos são agrupados no final do volume Embora constituam a mais ampla reunião de textos de Freud os dezessete volumes dos Gesammelte Werke foram sofrivelmente editados talvez devido à penúria dos anos de guerra e de pósguerra na Europa Embora ordenados cronologicamente não indicam sequer o ano da publicação de cada trabalho O texto em si é geral mente confiável mas sempre que possível foi cotejado com a Studienausgabe Edição de estudos publicada pela Fischer em 196975 da qual consultamos uma edi ção revista lançada posteriormente Tratase de onze volumes organizados por temas como a primeira cole ção de obras de Freud que não incluem vários textos secundários ou de conteúdo repetido mas incorporam traduzidas para o alemão as apresentações e notas que o inglês ames Strachey redigiu para a Standard edition Londres Hogarth Press 195566 O objetivo da presente edição é oferecer os textos com o máximo de fidelidade ao original sem interpre tações de comentaristas e teóricos posteriores da psica nálise que devem ser buscadas na imensa bibliografia sobre o tema Informações sobre a gênese de cada obra também podem ser encontradas na literatura secundá ria Para questionamentos de pontos específicos e do próprio conjunto da teoria freudiana o leitor deve re correr à literatura crítica de M Macmillan Joel Paris F Cioffi J Van Rillaer E Gellner e outros 10 A ordem de publicação destas Ohras completas não é a mesma daquela das primeiras edições alemãs pois isso implicaria deixar várias coisas relevantes para mui to depois Decidiuse começar por um período inter mediário e de pleno desenvolvimento das concepções de Freud em torno de 1915 e daí proceder para trás e para adiante Após o título de cada texto há apenas a referência bibliográfica da primeira publicação não a das edições subsequentes ou em outras línguas que interessam tão somente a alguns especialistas Entre parênteses se acha o ano da publicação original havendo transcorrido mais de um ano entre a redação e a publicação a data da redação aparece entre colchetes As indicações biblio gráficas do autor foram normalmente conservadas tais como ele as redigiu isto é não foram substituídas por edições mais recentes das obras citadas Mas sempre é fornecido o ano da publicação que no caso de remis sões do autor a seus próprios textos permite que o leitor os localize sem maior dificuldade tanto nesta como em outras edições das obras de Freud As notas do tradutor geralmente informam sobre os termos e passagens de versão problemática para que o leitor tenha uma ideia mais precisa de seu significado e para justificar em alguma medida as soluções aqui ado tadas Nessas notas são reproduzidos os equivalentes achados em algumas versões estrangeiras dos textos em línguas aparentadas ao português e ao alemão Não utilizamos as duas versões das obras completas já apa recidas em português das editoras Delta e Imago pois li não foram traduzidas do alemão e sim do francês e do espanhol a primeira e do inglês a segunda No tocante aos termos considerados técnicos não existe a pretensão de impor as escolhas aqui feitas como se fossem absolutas Elas apenas pareceram as menos insatisfatórias para o tradutor e os leitores e psi canalistas que empregam termos diferentes conforme suas diferentes abordagens e percepções da psicanáli se devem sentirse à vontade para conservar suas op ções Ao ler essas traduções apenas precisarão fazer o pequeno esforço de substituir mentalmente instinto por pulsão instintual por pulsional repressão por recalque ou Eu por ego exemplificando No entanto essas palavras são poucas em número bem me nor do que geralmente se acredita PCS 12 A CONFERENCIAS INTRODUTORIAS À PSICANÁLISE 19161917 TÍTULO ORIGINAL VORLESUNGEN ZUR ENFÜHRUNG IN OE PSYCHOANALYSE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM TRÊS VOLUMES PARTES I E 11 LEIPZIG E VIENA HELLER 1916 PARTE 111 IDEM 1917 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKEXI PP 1497 TAMBÉM SE ACHA EM STUOENAUSGABEI PP 31445 PREFÁCIO O que aqui ofereço ao público como introdução à psi canálise não pretende de modo algum rivalizar com as apresentações gerais já existentes dessa área do co nhecimento Hitschmann Freuds Neurosenlehre 2ª ed 1913 Pfister Die psychoanalytische Methode 1913 Leo Kaplan Grundiüge der Psychoanalyse 1914 Régis e Hes nard La psychoanalyse des névroses et des psychoses Paris 1914 Adolf F Meijer De Behandeling van Zenuwfieken door PsychoAnalyse Amsterdam 1915 Tratase da re produção fiel de palestras que proferi em dois semestres nos invernos de 19156 e 19167 diante de uma audiên cia composta de médicos e leigos de ambos os sexos Todas as peculiaridades que chamarão a atenção dos leitores deste livro se explicam a partir das condições em que ele surgiu Não foi possível nesta exposição manter a fria serenidade de um tratado científico o ora dor precisou antes incumbirse de não deixar esmo recer a atenção dos ouvintes ao longo de palestras de quase duas horas Essa preocupação com o efeito mo mentâneo tornou inevitável que um mesmo assunto fos se tratado mais de uma vez por exemplo no contexto da interpretação dos sonhos e depois no dos problemas da neurose Ademais a ordenação do material fez com que muitos temas importantes como o do inconsciente não pudessem ser abordados exaustivamente num úni co ponto eles foram retomados e abandonados diversas vezes de acordo com as novas oportunidades surgidas de acrescentar algo a seu conhecimento 4 Quem está familiarizado com a literatura psicanalítica pouco encontrará nesta introdução que já não conhe ça de outras exposições hem mais detalhadas Contudo a necessidade de completar e resumir o tema obrigou o autor a recorrer a material não divulgado anteriormente na etiologia da angústia e nas fantasias histéricas Viena primavera de 1917 Freud PREFÁCIO À EDIÇÃO HEBRAICA Estas conferências foram proferidas nos anos de 1916 e 1917 elas correspondiam fielmente ao estágio em que se encontrava então a jovem ciência e continham mais do que seu título anunciava apresentavam não apenas uma introdução mas boa parte do conteúdo da psicaná lise na época É natural que hoje esse já não seja o caso Nesse meiotempo a teoria psicanalítica fez progressos a ela acrescentaramse elementos importantes como a decomposição da personalidade em Eu Supereu e Id uma profunda modificação da teoria dos instintos e uma melhor compreensão da origem da consciência moral e do sentimento de culpa Portanto as conferências tornaramse incompletas em alto grau somente agora adquirindo realmente o caráter de mera introdução Em outro sentido porém mesmo hoje não se tornaram ultrapassadas ou envelhecidas À exceção de umas pou cas alterações o que elas trazem continua merecendo crédito e é ensinado nos institutos de psicanálise Ao público de língua hebraica em especial à ju ventude ávida de conhecimento este livro apresenta a psicanálise na roupagem da língua antiquíssima que a vontade do povo judeu despertou para uma nova vida O autor tem boa ideia do trabalho que isso demandou do tradutor e não necessita reprimir a dúvida de que Traduzido de Gesammelte Werke v XVI pp 2745 No original Ich ÜherIch e Es cf nota sobre a versão desses termos no v 18 destas Obras completas p 213 Moisés e os profetas teriam julgado compreensíveis estas conferências em hebraico Aos descendentes deles po rém entre os quais ele mesmo se inscreve e para os quais este livro se destina ele pede que aos primei ros impulsos de crítica e desagrado não se apressem em reagir com repúdio A psicanálise traz tantas novidades e entre elas tanta coisa que contradiz opiniões tradicio nais e fere sentimentos profundamente arraigados que há de suscitar oposição a princípio Mas quem suspender seu juízo e se deixar influenciar pela totalidade dela tal vez adquira a convicção de que também essas novidades indesejadas são imprescindíveis e dignas de conheci mento se quiser entender a psique e a vida humana Viena dezembro de 1930 17 PRIMEIRA PARTE OS ATOS FALHOS 1916 L INTRODUÇÃO 1 INTRODUÇÃO Senhoras e senhores Não sei quanto cada um dos senho res sabe sobre psicanálise seja por intermédio de leituras ou de ouvir dizer Todavia os termos com que anunciei estas conferências introdução elementar à psicanáli se obrigamme a tratálos como se nada soubessem e necessitassem portanto de instrução preliminar Mas pressuponho ser do conhecimento de todos que a psicanálise é um procedimento por meio do qual se trata clinicamente os doentes dos nervos e doulhes logo um exemplo de como nessa área muito se dá di ferentemente do que ocorre nos demais domínios da medicina ou mesmo em franca oposição a estes Neles quando submetemos um doente a uma técnica médica que lhe é nova em geral minimizamos os problemas inerentes a ela e confiantes lhe asseguramos que o tra tamento em questão terá êxito Penso que é justificado fazêlo uma vez que nosso comportamento aumenta a probabilidade de sucesso Quando porém submetemos um neurótico a tratamento psicanalítico procedemos de modo diverso Mostramos a ele as dificuldades de nosso método o tempo que este vai demandar os esforços e sacrifícios que vai exigir e quanto ao sucesso dizemos não ser possível prometêlo com segurança porque ele dependerá do comportamento da compreensão da obediência e da persistência do próprio doente Temos é claro bons motivos para adotar uma conduta aparen temente tão atravessada que os senhores talvez venham a compreender mais adiante I OS ATOS FALHOS Apenas não se irritem se de início eu os tratar como neuróticos Na verdade desaconselho os senhores a me ouvir uma segunda vez É com esse propósito que pre tendo exporlhes as deficiências inerentes ao aprendizado da psicanálise e as dificuldades que se interpõem à formu lação de um juízo a seu respeito Vou mostrarlhes que tanto a formação prévia dos senhores como seu modo habitual de pensar só poderiam transformálos inevita velmente em adversários da psicanálise e quanto lhes custaria superar essa oposição instintiva a ela Decerto não posso prever a medida da compreensão para a psi canálise que minhas palestras despertarão nos senhores mas posso garantir que ouvilas não os capacitará a rea lizar nenhuma investigação psicanalítica nem os tornará aptos a conduzir semelhante tratamento Ainda assim caso haja entre os senhores alguém que não deseje se dar por satisfeito com um conhecimento passageiro do assun to mas que pelo contrário gostaria de se relacionar com a psicanálise de forma mais duradoura eu não apenas o desaconselho a assim proceder como o advirto expressa mente para que não o faça Do modo como estão as coisas hoje em dia escolher tal profissão destruiria toda e qual quer possibilidade de sucesso em alguma universidade e quando começasse a praticar a medicina esse alguém se veria numa sociedade que não compreende seus esforços que o contempla com desconfiança e hostilidade e que so bre ele atiçará todos os espíritos ruins que nela espreitam A partir dos fenômenos que acompanham a atual guerra na Europa os senhores talvez possam ter uma ideia apro ximada de quantas seriam as legiões desses espíritos 20 INTRODUÇÃO De todo modo sempre existem em bom número aquelas pessoas para as quais a despeito de tais des confortos tudo quanto pode se transformar em novos conhecimentos retém sua atratividade Havendo entre os senhores algumas pessoas desse tipo dispostas a des considerar meu conselho em contrário e a aqui reapa recer quando de minha próxima conferência elas serão bemvindas Todos porém têm o direito de saber quais as dificuldades da psicanálise às quais aludi Em primeiro lugar há as dificuldades relacionadas à instrução ao ensino da psicanálise Nas aulas de medici na os senhores se acostumaram a ver Veem o preparado anatômico o precipitado decorrente da reação quími ca e o encolhimento do músculo resultante do sucesso na estimulação de seus nervos Depois o doente lhes é apresentado aos sentidos com os sintomas de seu mal os produtos do processo de adoecimento e mesmo em numerosos casos os causadores da doença em estado isolado Nas disciplinas cirúrgicas testemunham as in tervenções mediante as quais se presta socorro ao enfer mo e podem até se exercitar na execução delas Mesmo na psiquiatria a apresentação do doente com sua mí mica facial alterada seu modo de falar e seu comporta mento abastece os senhores de toda uma variedade de observações que lhes deixa impressão profunda Assim o professor de medicina cumpre predominantemente o papel de um guia e intérprete a lhes acompanhar por um museu enquanto os senhores travam contato direto com os objetos e mediante sua própria percepção creem ha ver se convencido da existência dos novos fatos 21 I OS ATOS FALHOS Infelizmente isso tudo é diferente na psicanálise No tratamento psicanalítico não ocorrem senão trocas de palavras entre o analisando e o médico O paciente fala relata experiências passadas e impressões presentes se queixa confessa seus desejos e impulsos emocionais O médico ouve com atenção busca dirigir o curso dos pensamentos do paciente instigao compele sua atenção para determinadas direções dálhe explicações e observa as reações de compreensão ou repúdio que desse modo desperta no doente Parentes desinformados de nossos doentes aos quais só impressiona o que é visível e pal pável de preferência ações como as que vemos no cinema jamais perdem uma oportunidade de manifestar suas dúvidas acerca de como se pode fazer alguma coisa con tra a doença apenas com palavras Tratase de um modo de pensar pouco sensato e não muito coerente São aliás essas mesmas pessoas que têm certeza de que os doentes apenas imaginam seus sintomas Em sua origem as pa lavras eram magia e ainda hoje a palavra conserva muito de seu velho poder mágico Com palavras uma pessoa é capaz de fazer outra feliz ou de levála ao desespero é com palavras que o professor transmite seu conhecimento aos alunos e é também por intermédio das palavras que o orador arrebata a assembleia de ouvintes e influi sobre os juízos e as decisões de cada um deles Palavras evocam afetos e constituem o meio universal de que se valem as pessoas para influenciar umas às outras Não vamos pois subestimar o emprego das palavras na psicoterapia e sim nos dar por satisfeitos se pudermos ser ouvintes daquelas palavras que são trocadas entre o analista e seu paciente 22 L INTRODUÇÃO Mas tampouco isso podemos fazer A conversa que constitui o tratamento psicanalítico não admite ouvin tes e não se presta a demonstrações Podese é claro em uma aula de psiquiatria apresentar um neurastênico ou um histérico aos estudantes Ele relatará suas quei xas e sintomas mas nada além disso As comunicações de que necessita a análise o paciente só as faz median te uma particular ligação emocional com o médico tão logo notasse a presença de uma testemunha que lhe é indiferente ele se calaria Sim porque tais declarações dizem respeito ao que há de mais íntimo em sua vida psíquica a tudo o que como pessoa socialmente autô noma ele precisa ocultar dos outros e de resto a tudo o que como personalidade una ele não deseja admitir para si mesmo Portanto os senhores não podem assistir a um tra tamento psicanalítico Podem apenas ouvir acerca dele e assim tomar conhecimento da psicanálise apenas de ouvir falar no sentido mais estrito da expressão Me diante essa instrução de segunda mão por assim dizer condições bastante incomuns se apresentam para que os senhores possam formar um juízo Claro está que tudo depende em boa parte da credibilidade que possam conferir à sua fonte de informação Imaginemse por um momento não em uma aula de psiquiatria e sim de história em que o professor lhes fala sobre a vida e os feitos bélicos de Alexandre o Grande Que motivo teriam os senhores para acreditar na veracidade das informações do mestre A princípio a situação parece ainda mais desfavorável do que na 23 I OS ATOS FALHOS psicanálise uma vez que o professor de história assim como os senhores não participou das campanhas béli cas de Alexandre o psicanalista ao menos relata coisas nas quais desempenhou um papel Mas depois vêm as coisas que confirmam o historiador Ele pode remeter os senhores a relatos de antigos escritores contemporâ neos dos fatos ou mais próximos dos acontecimentos em questão isto é aos livros de Diodoro Plutarco Arriano etc e pode mostrarlhes as reproduções conservadas das moedas e estátuas do rei bem como passarlhes uma fotografia do mosaico da batalha de Issos que se acha em Pompeia A rigor todos esses documentos compro vam apenas que gerações anteriores já acreditavam na existência de Alexandre e na realidade de seus feitos o que também poderia suscitar a crítica dos senhores Essa crítica diria então que nem tudo que se relatou sobre Alexandre é digno de crédito ou verificável em seus de talhes mas não posso supor que os senhores deixariam a sala de aula duvidando da realidade de Alexandre o Grande Sua decisão seria determinada principalmente por duas ponderações a primeira delas é que o profes sor não possui nenhum motivo concebível para expor aos senhores como real algo que ele não acredita que o seja a segunda é que todos os livros de história dispo níveis relatam esses mesmos acontecimentos de manei ra semelhante Procedendo em seguida ao exame das fontes antigas os senhores levariam em consideração os mesmos fatores ou seja as possíveis motivações do informante e a coerência interna dos testemunhos No caso de Alexandre o resultado dessa prova com certe INTRODUÇÃO za seria tranquilizador mas é provável que viesse a ser outro em se tratando de personalidades como Moisés ou Nimrod As dúvidas que os senhores poderiam levan tar quanto à credibilidade do informante psicanalítico os senhores terão oportunidade de identificar com sufi ciente clareza mais adiante Agora têm o direito de perguntar se não existe cer tificação objetiva da psicanálise nem qualquer possibi lidade de demonstrála como pode alguém aprendêla afinal e se convencer da verdade de suas afirmações De fato esse aprendizado não é fácil nem são mui tos os que a aprenderam devidamente mas existe é claro um caminho possível para tanto Psicanálise é algo que aprendemos em primeiro lugar em nós mes mos mediante o estudo de nossa própria personalida de Não se trata propriamente daquilo a que chamam autoobservação embora possamos por necessidade classificálo dessa maneira Há toda uma série de fe nômenos psíquicos muito frequentes e conhecidos de todos que após alguma instrução sobre a técnica pode mos observar em nós mesmos e tornar objetos de aná lise É assim que obtemos a convicção que procuramos acerca da realidade dos processos que a psicanálise des creve e da correção das concepções psicanalíticas Des se modo no entanto certas barreiras se impõem a nosso progresso Avançaremos muito mais se nos deixarmos analisar por um analista qualificado experimentando os efeitos da análise em nosso próprio Eu e nos valen do da oportunidade de aprender com o outro a técnica mais refinada do procedimento Mas embora excelente I OS ATOS FALHOS é claro que esse caminho só pode ser percorrido por um indivíduo jamais por toda uma sala de aula Aos senhores meus ouvintes e não a ela cabe a responsabilidade por uma segunda dificuldade em sua relação com a psicanálise pelo menos na medida em que estudaram medicina Sua formação deu ao modo de pensar dos senhores certo direcionamento que o distan cia bastante da psicanálise Os senhores foram ensinados a fundamentar as funções do organismo e seus distúr bios na anatomia a explicálos com base na química e na física e a apreendêlos com base na biologia mas seu in teresse não foi dirigido para a vida psíquica na qual cul mina o funcionamento desse organismo de maravilhosa complexidade Por essa razão permaneceram alheios ao pensamento psicológico e se acostumaram a contemplá lo com desconfiança negandolhe o caráter científico e relegandoo aos leigos aos escritores aos filósofos da natureza e aos místicos Essa limitação é decerto dano sa à prática médica dos senhores uma vez que como é regra em todos os relacionamentos humanos o doente lhes apresentará em primeiro lugar sua fachada psíquica e receio que como castigo os senhores serão obrigados a deixar aos praticantes leigos da medicina aos curan deiros e aos místicos que tanto desprezam uma parte da influência terapêutica que almejam exercer Não ignoro a justificativa que temos de aceitar para esta deficiência em sua formação Falta a ciência filosó fica auxiliar que poderia ser de utilidade para os propó sitos médicos dos senhores Nem a filosofia especulativa nem a psicologia descritiva ou a chamada psicologia L INTRODUÇÃO experimental vinculada à fisiologia dos sentidos tal como são ensinadas nas escolas são capazes de lhes dizer algo de útil acerca da relação entre o físico e o psíquico o que lhes daria a chave para a compreensão de um pos sível distúrbio das funções psíquicas É certo que den tro da medicina a psiquiatria se ocupa em descrever os distúrbios psíquicos observados e agrupálos em deter minados quadros clínicos mas há momentos em que os próprios psiquiatras duvidam que suas exposições pura mente descritivas sejam merecedoras do nome de ciên cia Os sintomas que compõem esses quadros clínicos são desconhecidos em sua origem em seu mecanismo e em sua interrelação não lhes correspondem altera ções comprováveis do órgão anatômico da psique ou as alterações são tais que não contribuem para explicá los Tais distúrbios psíquicos só àdmitem influência te rapêutica quando podem ser identificados como efeitos colaterais de alguma afecção orgânica Essa é a lacuna que a psicanálise busca preencher Ela pretende fornecer à psiquiatria o fundamento psi cológico faltante espera descobrir o terreno comum a partir do qual se possa compreender a convergência do distúrbio físico e do psíquico Para tanto é necessário que ela se mantenha livre de todo e qualquer pressupos to anatômico químico ou fisiológico que lhe seja estra nho que trabalhe com conceitos auxiliares puramente psicológicos e é por essa mesma razão que receio ela lhes parecerá estranha inicialmente Quanto à próxima dificuldade não desejo culpar os senhores por ela nem sua formação prévia ou sua ati I OS ATOS FALHOS tude Em duas de suas formulações a psicanálise ofende o mundo inteiro e atrai sua aversão uma delas infringe uma preconcepção intelectual a outra uma preconcep ção de caráter estéticomoral Não subestimemos essas preconcepções elas são coisas poderosas expressões de desenvolvimentos úteis e mesmo necessários da huma nidade Forças afetivas operam em sua manutenção e a luta contra elas é dura A primeira dessas afirmações desagradáveis diz que os processos psíquicos são em si inconscientes e que os conscientes são meros atos isolados porções da tota lidade da vida psíquica Lembremse de que ao contrá rio disso estamos acostumados a identificar psíquico e consciente A consciência é tida por nós como nada me nos que o caráter definidor do psíquico e a psicologia como a doutrina dos conteúdos da consciência De fato essa equiparação nos parece tão óbvia que cremos perce ber qualquer contradição a ela como um verdadeiro con trassenso ainda assim a psicanálise não tem como não contradizêla porque não pode aceitar a identificação do consciente com o psíquico A definição do psíquico para a psicanálise é de que ele se compõe de processos tais como sentir pensar e querer e ela tem de postular a existência de um pensar inconsciente e de um que rer insciente Com isso porém ela perdeu de antemão a simpatia de todos os amigos da cientificidade sóbria atraindo para si a suspeita de constituirse de uma fan tástica doutrina secreta desejosa de construir no escuro e de pescar em águas turvas Naturalmente os senho res meus ouvintes ainda não têm como compreender 28 L INTRODUÇÃO com que direito posso caracterizar como preconcepção uma frase de caráter tão abstrato como O psíquico é o consciente tampouco lhes é possível intuir que desen volvimento há de ter levado à negação do inconsciente caso ele exista e que vantagem poderia ter advindo des sa negação Se equiparamos o psíquico ao consciente ou se o estendemos além disso é algo que parece uma dis cussão vazia mas posso lhes assegurar que a hipótese de processos psíquicos inconscientes abre o caminho para uma nova e decisiva orientação no mundo e na ciência Tampouco podem os senhores adivinhar a íntima relação que essa primeira ousadia da psicanálise guarda com a segunda ainda não mencionada Esta segunda tese que a psicanálise oferece como um de seus resul tados consiste na afirmação de que impulsos instintuais que só podem ser caracterizados como sexuais seja no sentido mais restrito ou mais amplo do termo desempe nham papel extraordinariamente grande e até hoje não avaliado a contento como causadores de doenças dos nervos e da mente E mais do que isso que esses mesmos impulsos sexuais contribuíram em não pouca medida para as mais elevadas criações culturais artísti cas e sociais do espírito humano Segundo minha experiência a aversão a esse resulta do da pesquisa psicanalítica é a fonte mais significativa da resistência com a qual ela depara Querem os senho res saber como explicamos isso Acreditamos que por pressão das necessidades da vida a civilização foi cria da à custa da satisfação instintual e em grande parte é constantemente recriada quando o indivíduo recém I OS ATOS FALHOS ingresso na comunidade humana novamente sacrifica a satisfação instintual em prol do todo Entre as forças instintuais assim empregadas os impulsos sexuais de sempenham papel importante eles são sublimados isto é desviados de suas metas sexuais e direcionados para metas socialmente mais elevadas não mais sexuais Essa construção no entanto é instável a domestica ção dos instintos sexuais é precária em cada indivíduo que se junta à obra da cultura persiste o perigo de que seus instintos sexuais se neguem a tal emprego A so ciedade não crê em ameaça maior à sua cultura do que aquela que viria da libertação dos instintos sexuais e do retorno destes a suas metas originais Ela não gosta portanto de ser lembrada dessa parte delicada de seus fundamentos não tem interesse nenhum em que seja reconhecida a força dos instintos sexuais e seja demons trada a cada indivíduo a importância da vida sexual ao contrário optou com propósito educativo por desviar a atenção de toda essa área É por essa razão que não tolera o já referido resultado da pesquisa psicanalítica o qual preferiria estigmatizar como esteticamente repug nante moralmente repreensível ou perigoso Contudo semelhantes objeções nada podem contra resultados do trabalho científico que se pretendem objetivos A diver gência precisa ser traduzida em termos intelectuais se há de ser expressa É da natureza humana porém que as pessoas tendam a considerar incorreto aquilo de que não gostam e então se torna fácil achar argumentos contrários A sociedade portanto transforma o desa gradável em incorreto contesta as verdades da psica 30 2 OS ATOS FALHOS nálise com argumentos lógicos e factuais mas oriundos de fontes afetivas e ante toda e qualquer tentativa de refutação apegase a críticas que são preconcepções Nós contudo senhoras e senhores podemos afir mar que não seguimos tendência nenhuma ao formu lar essa criticada tese Apenas quisemos dar expressão a um fato que acreditamos haver percebido após árduo trabalho Também reivindicamos o direito de rejeitar incondicionalmente a intromissão de tais considerações práticas no trabalho científico antes ainda de examinar mos se é justificado ou não o receio que pretende nos impor tais considerações Essas são pois algumas das dificuldades que os se nhores enfrentarão no trato com a psicanálise Isso é talvez mais do que o suficiente para um começo Se pu derem superar a impressão causada por elas daremos prosseguimento à exposição 2 OS ATOS FALHOS Senhoras e senhores Começamos não com pressu postos mas com uma investigação Como seu objeto escolhemos certos fenômenos muito frequentes muito conhecidos e muito pouco estudados os quais nada têm a ver com enfermidades uma vez que podem ser obser vados em toda pessoa saudável Refirome aos chama dos atos folhos como o lapso verhal Versprechen que ocorre quando alguém pretendendo dizer uma palavra diz outra em seu lugar ou quando isso lhe acontece ao 31 I OS ATOS FALHOS escrever podendo a pessoa notar ou não o equívoco ou como o lapso de leitura Verlesen que se dá quando em um texto impresso ou manuscrito lemos algo diferente do que está escrito ou o lapso de audição Verhoren em que se ouve algo diferente do que foi dito sem que é claro se possa atribuir o equívoco a um distúrbio or gânico da capacidade auditiva Outra série de fenôme nos semelhantes se baseia em um lapso de memória um esquecimento Vergessen que não é permanente mas temporário como quando alguém não consegue se lem brar de um nome que conhece e geralmente torna a re conhecer ou quando se esquece de pôr em prática uma intenção dela se lembrando posteriormente ou seja depois de a ter esquecido apenas em determinado mo mento Em uma terceira série desses fenômenos não se verifica o caráter temporário como é o caso por exem plo do extravio Verlegen que ocorre quando alguém guarda um objeto em determinado lugar e depois não logra reencontrálo ou algo análogo a perda Verlie ren do objeto Há aí um tipo de esquecimento que é tratado diferentemente dos demais porque em vez de ser considerado compreensível provoca perplexidade ou irritação A essas ocorrências juntamse ainda certos equívocos Irrtümer nos quais também está presente o caráter temporário por algum tempo acreditamos em algo que sabíamos antes e sabemos depois não é o que pensávamos além de toda uma gama de fe nômenos semelhantes conhecidos por nomes diversos Quase todos esses acontecimentos cujo íntimo pa rentesco se expressa em alemão na designação com o 32 2 OS ATOS FALHOS mesmo prefixo ver são de natureza desimportante e a maioria possui duração bastante fugaz sem gran de significado na vida das pessoas Raramente algum deles adquire certa importância prática como na perda de objetos Por isso eles não chamam muita atenção despertam somente pequenos afetos e assim por diante É pois para esses fenômenos que chamo agora a sua atenção Os senhores porém objetarão malhumorados Há tantos enigmas formidáveis no universo e no mundo psíquico tantas coisas assombrosas no terreno dos distúr bios psíquicos que demandam e merecem esclarecimen to que parece mesmo um capricho desperdiçar trabalho e interesse em semelhantes ninharias Se o senhor puder nos fazer compreender como é que uma pessoa de olhos e ouvidos saudáveis é capaz de em plena luz do dia ver e ouvir coisas que não existem ou se acreditar de súbito perseguida por aqueles que sempre lhe foram caros ou ainda se valer de argumentos os mais perspicazes em de fesa de invenções delirantes que hão de parecer absurdas a qualquer criança aí então teremos algum respeito pela psicanálise mas se tudo que ela pode fazer é explicar por que um orador eventualmente troca uma palavra por ou tra ou por que uma dona de casa não sabe onde guardou as chaves e outras futilidades desse tipo nesse caso temos melhor emprego para nosso tempo e interesse E eu lhes responderia tenham paciência senhoras e senhores Creio que sua crítica não está no caminho certo É verdade que a psicanálise não pode se gabar de jamais ter se ocupado de ninharias Ao contrário ge ralmente constituem objeto de seu exame aqueles even 33 I OS ATOS FALHOS tos modestos descartados pelas demais ciências como demasiado insignificantes o refugo por assim dizer do mundo dos fenômenos Em sua crítica porém não confundem os senhores a grandeza dos problemas com a notoriedade dos indícios Não há coisas muito impor tantes que sob certas circunstâncias e em determinados momentos só são capazes de se revelar mediante indí cios muito fracos Seria fácil para mim mencionar aqui diversas situações desse tipo A partir de que insignifi cantes indícios os senhores ou os jovens dentre os se nhores deduzem ter ganhado a afeição de uma dama Aguardam para tanto uma expressa declaração de amor um abraço apaixonado ou será que não lhes bas ta um olhar quase imperceptível aos outros um movi mento fugaz o prolongamento por um segundo de um aperto de mão E se como policiais os senhores parti cipassem da investigação de um homicídio esperariam de fato descobrir que o assassino deixou uma fotografia com endereço na cena do crime Não precisariam se dar por satisfeitos com pistas mais fracas e menos ób vias da pessoa que procuram Não subestimemos pois os pequenos indícios a partir deles talvez seja possível encontrar a pista de coisa maior De resto penso como os senhores que o direito primordial a nosso interesse pertence aos grandes problemas do mundo e da ciência Manifestar porém o claro propósito de se dedicar à in vestigação desse ou daquele grande problema em geral é de pouca utilidade Nesses casos com frequência não sabemos nem em que direção dar o primeiro passo No trabalho científico é mais promissor atacar o que se tem 34 2 OS ATOS FALHOS à mão aquilo para cuja pesquisa se abre um caminho Se fizermos isso com todo o rigor sem pressupostos ou expectativas e se tivermos sorte é possível que em decorrência dos nexos que vinculam todas as coisas inclusive as pequenas às grandes uma porta de acesso se abra para o estudo dos problemas maiores mesmo a partir de um trabalho despretensioso É o que eu diria a fim de fixar o interesse dos senho res na abordagem dos atos falhos aparentemente tão in significantes das pessoas saudáveis Recorramos agora a alguém que desconhece a psicanálise e perguntemos a ele que explicação dá para a ocorrência de tais coisas De início ele certamente dirá Ah são pequenas coincidências que não vale a pena explicar O que sig nifica isso Estará ele afirmando a existência de aconte cimentos pequenos a ponto de escapar ao encadeamen to de tudo que se passa no mundo acontecimentos que poderiam perfeitamente não ser como são Mas romper dessa forma o determinismo natural ainda que em um único ponto é o mesmo que abrir mão da totalidade da concepção científica do mundo A esse nosso amigo poderemos então apontar quão mais coerente consigo mesma é a concepção religiosa do mundo quando ela assegura enfaticamente que pardal nenhum cai do telha do a não ser por especial vontade divina Nosso amigo creio não desejará tirar essa conclusão de sua primeira resposta vai antes ceder e dizer que se os estudasse decerto encontraria explicações para semelhantes fe nômenos Seriam pequenos deslizes na função incor reções no desempenho psíquico causadas por fatores 35 I OS ATOS FALHOS explicáveis Assim uma pessoa que em geral é capaz de falar corretamente pode incorrer em lapsos verbais 1 quando ela se sente algo indisposta e cansada 2 quan do está agitada 3 quando outras coisas demandam for temente sua atenção É fácil confirmar essas alegações De fato o lapso verbal ocorre com particular frequên cia quando alguém está cansado com dor de cabeça ou na iminência de uma enxaqueca Nessas circunstâncias é fácil esquecermos nomes próprios Algumas pessoas estão acostumadas a perceber no esquecimento de um nome o sinal da enxaqueca que está vindo Tomados de agitação trocamos não apenas palavras mas objetos também apanhamos o objeto errado Vergreijen e dis traídos ou seja concentrados em outra coisa é notório como nos esquecemos da intenção que pretendíamos pôr em prática e cometemos toda sorte de atos involuntários Um exemplo conhecido de distração oferecenos o pro fessor da Fliegende Bliitter que esquece o guardachuva e pega o chapéu errado porque está pensando nos pro blemas de que vai tratar em seu próximo livro Cada um de nós conhece por experiência própria exemplos de intenções ou promessas esquecidas em razão de haver tido sua atenção fortemente desviada para outra coisa Tudo isso soa bastante compreensível e parece imu ne a toda e qualquer contestação Talvez não seja mui to interessante ou não tanto quanto esperávamos Mas examinemos mais de perto essas explicações para os Nome de um semanário humorístico As notas chamadas por as teriscos são sempre do tradutor as notas do autor são numeradas 2 OS ATOS FALHOS atos falhos As condições apontadas para a ocorrência de tais fenômenos não são da mesma espécie Indisposi ção e distúrbios circulatórios oferecem uma razão fisio lógica para a deterioração de nosso funcionamento nor mal agitação cansaço e distração são fatores de outra natureza que se poderia chamar psicofisiológica Não é difícil traduzir estes últimos em uma teoria Tanto o cansaço como a distração e mesmo talvez a agitação de forma geral provocam uma divisão da atenção que pode resultar na insuficiência da atenção dedicada à ta refa em pauta Essa tarefa pode assim ser facilmente perturbada ou mal executada Um leve adoecimento al terações no abastecimento de sangue no órgão nervoso central podem produzir esse mesmo efeito na medida em que influenciam de forma análoga o fator determi nante isto é a distribuição da atenção Em todos os casos tratarseia então dos efeitos de um distúrbio da atenção de causas orgânicas ou psíquicas Isso não parece prometer muito para nosso interesse psicanalítico e poderíamos nos sentir tentados a aban donar o tema Todavia quando aprofundamos nosso exame nem tudo nos atos falhos condiz com essa teoria da atenção ou pelo menos nem tudo se deixa explicar com naturalidade a partir dela A experiência nos diz que esses esquecimentos e ações equivocadas ocorrem também em pessoas que não estão cansadas distraídas ou nervosas e sim em seu estado inteiramente normal a menos que se deseje atribuirlhes uma agitação pos terior causada justamente pelos atos falhos mas que elas próprias não admitirão E pode não ocorrer sim 37 I OS ATOS FALHOS plesmente que uma ação seja garantida quando aumenta a atenção que lhe é dada e comprometida quando esta diminui Há um grande número de funções que execu tamos automaticamente às quais dedicamos pouquíssi ma atenção e que no entanto cumprimos com absolu ta segurança Uma pessoa que sai a passeio e mal sabe para onde está indo não deixa de seguir o caminho cor reto até seu destino sem se perder vergehen Em geral pelo menos ela o encontra O pianista experimentado toca as teclas certas sem pensar É claro que uma vez ou outra ele pode errar mas se a execução automática de uma peça aumentasse o perigo do erro precisamente o virtuose cuja execução é automatizada mediante muito exercício é quem estaria mais exposto a esse perigo O que observamos ao contrário é que mui tas ações são tanto mais bemsucedidas quanto menos atenção especial se presta a elas e que o percalço do ato falho pode ocorrer quando se atribui particular impor tância ao desempenho correto ou seja quando segu ramente não há desvio nenhum da atenção necessária Podese dizer então que ele seria efeito da agitação mas não compreendemos por que a agitação não have ria antes de intensificar a atenção voltada para aquilo que é pretendido com tanto interesse Quando em um discurso importante ou negociação oral alguém comete um lapso e diz o contrário do que tencionava dizer di ficilmente se poderá explicar esse ato falho com base na teoria psicofisiológica ou da atenção Além disso nos atos falhos há muitos pequenos fenô menos secundários incompreensíveis que as explicações 2 OS ATOS FALHOS oferecidas até o momento não ajudam a elucidar Quan do por exemplo uma pessoa se esquece temporariamen te de um nome ela se irrita quer lembrálo a todo custo e não consegue desistir desse intento Por que é tão raro que essa pessoa irritada consiga como tanto deseja di rigir sua atenção para o nome que como diz está na ponta da língua e que ela tão prontamente reconhece quando o pronunciam Há também casos em que os atos falhos se multiplicam se ligam uns aos outros ou se su cedem Esquecemonos por exemplo de um encontro marcado em seguida embora decididos a não esquecê lo uma segunda vez verificamos que por equívoco anotamos a hora errada Ou em busca de um atalho para o nome de que nos esquecemos fogenos um segundo nome o qual poderia nos ajudar a encontrar aquele pri meiro então em busca desse segundo nome escapanos um terceiro e assim por diante A mesma coisa é sabi do pode acontecer também com os erros tipográficos os quais podem ser entendidos como atos falhos do ti pógrafo Contase que um obstinado erro dessa nature za se infiltrou certa vez em um jornal socialdemocrata Na reportagem sobre determinada solenidade liase Dentre os presentes encontravase também Sua Alte za o Kornprin No dia seguinte intentouse corrigir o erro O jornal se desculpou explicando Naturalmente a palavra correta é Knorprinz Para esses casos a lín A palavra correta seria Kronprinr príncipe herdeiro ou lite ralmente da Coroa Kron Kornprin significa príncipe do grão e Knorprinr príncipe do nó da madeira 39 I OS ATOS FALHOS gua alemã reserva expressões como o diabinho da im prensa o duende da tipografia e outras as quais no entanto ultrapassam o escopo de uma teoria psicofisio lógica do erro tipográfico Não sei se é do conhecimento dos senhores mas o lapso verbal também pode ser provocado induzido por assim dizer por sugestão Uma pequena história dá testemunho disso Certa vez confiouse a um ator no vato o importante papel de anunciar ao rei em A donre la de Orléans de Schiller que o condestável devolve sua espada Der Connétable schickt sein Schwert 1urück Durante o ensaio porém um dos atores principais a título de brincadeira fez o tímido iniciante trocar vá rias vezes essa fala por outra O cocheiro devolve seu cavalo Der Komfortabel schickt sein Pford rurück Com isso alcançou seu objetivo na apresentação o infeliz novato debutou pronunciando de fato o anúncio modi ficado embora tivesse sido suficientemente advertido a não fazêlo ou talvez por isso mesmo A teoria da falta de atenção não dá conta de explicar todas essas pequenas características dos atos falhos Mas isso não significa que ela esteja errada Talvez lhe falte algo algum complemento que venha a tornála plena mente satisfatória Mas alguns dos atos falhos também podem ser considerados de outro ponto de vista Tomemos aquele que para nossos propósitos é o mais apropriado dos atos falhos o lapso verbal Pode ríamos muito bem escolher aqui o lapso da escrita ou o da leitura O que temos de reconhecer é que até o mo mento só nos perguntamos quando e em que circuns 40 2 OS ATOS FALHOS tâncias cometemos esse lapso tendo obtido resposta so mente para essa pergunta Podemos no entanto voltar nosso interesse para outra questão e nos perguntar por que o lapso ocorre precisamente dessa maneira e não de outra podemos pois levar em consideração o que vai expresso no lapso verbal Os senhores compreen dem que enquanto não respondermos a essa pergunta enquanto não esclarecermos o efeito desse lapso o fe nômeno permanece do ponto de vista psicológico uma coincidência ainda que se encontre para ele explicação fisiológica Ao cometer um lapso verbal eu obviamen te poderia fazêlo de infinitas maneiras seja trocando a palavra certa por uma dentre milhares de outras ou escolhendo um dos inúmeros modos de deformála Haverá pois algo a me impor uma maneira específica de me equivocar num caso determinado entre todas as maneiras possíveis ou será isso obra do acaso aconteci mento arbitrário não havendo talvez resposta sensata para essa pergunta Em 1895 dois autores Meringer e Mayer um fi lólogo e um psiquiatra tentaram abordar por esse lado o problema do lapso verbal Eles coletaram exem plos os quais classificaram de início em categorias me ramente descritivas Embora isso ainda não forneça é claro uma explicação pode nos ajudar a encontrar o caminho que conduz a ela As deformações que os lap sos verbais provocam no discurso pretendido foram por eles diferenciadas em permutas antecipações do som reverberações mesclas contaminações e substitui ções Vou expor aos senhores exemplos desses grupos I OS ATOS FALHOS principais estabelecidos por aqueles dois autores Ocor re um caso de permuta quando alguém diz a Milo de VA d VA d Ml enus em vez e a enus e 1 o permuta na or dem das palavras A antecipação de um som acontece quando em vez de Es war mir auf der Brust so schwer dizemos Es war mir auf der Schwest auf der Brust so schwer A reverberação é típica do malogrado brinde em alemão Ich fordere Sie auf aufdas Wohl unseres Chefi aufzustossen Essas três formas assumidas pelo lapso verbal não são tão frequentes Muito mais numerosos julgarão os senhores aqueles casos em que o lapso nasce de uma junção ou mescla como por exemplo quando na rua um cavalheiro se dirige a uma dama nos seguin tes termos Wenn Sie gestatten mein Friiulein mochte ich Sie geme hegleitdigen Na palavra mesclada figura claramente além de hegleiten acompanhar o verbo heleidigen ofender Digase de passagem o jovem ra paz não terá obtido grande sucesso com a dama Como exemplo de substituição Meringer e Mayer citam entre Es war mir auf der Brust so schwersignifica literalmente Pesou me pesavame tanto no peito Na antecipação apontada por Freud misturamse os fonemas do adjetivo schwer pesado e do substantivo Brust peito Em seguida o exemplo parte da frase Ich fordere Sie auj auf das Wohl unseres Chefi ru stossen que signi fica Convido os senhores a brindar stossen à saúde de nosso chefe Contudo o verbo utilizado aufrustossen significa arro tar No mesmo parágrafo Wenn Sie gestatten mein Friiulein mochte ich Sie gerne begleiten significaria Se me permite senho rita eu gostaria muito de acompanhála Por fim Ich gebe die Priiparate in den Briejlcasten é Eu deposito o preparado na caixa do correio Briefkasten em vez de na incubadora Brutkasten 42 2 OS ATOS FALHOS outras a formulação Ich gebe die Praparate in den Brief kasten em vez de in den Brutkasten A tentativa de explicação em que os dois autores ba seiam sua coleção de exemplos é bastante insuficiente Eles acreditam que os sons e as sílabas de uma palavra possuem valências diferentes e que a inervação do ele mento de maior valência pode perturbar o de valência menor Essa afirmação assentase evidentemente nas antecipações e reverberações sonoras as quais em si nem sequer acontecem com tanta frequência nos de mais produtos do lapso verbal esses sons preferenciais se é que eles existem nem sequer vêm ao caso Afinal os lapsos mais corriqueiros ocorrem quando em vez de uma palavra dizemos outra muito semelhante e essa semelhança basta a muitos como explicação para o lapso Um catedrático por exemplo ao assumir sua cátedra diz Ich bin nicht geneigt em vez de geeignet die Verdienste meines sehr geschiitten Vorgangers U wür digen Outro catedrático diz Beim weiblichen Genitale hat man trot vieler Versuchungen Pardon Versuche No caso da genitália feminina apesar de muitas tenta ções perdão tentativas Mas o tipo de lapso mais comum e aquele que mais chama a atenção é o que afirma justamente o contrário do pretendido É natural que aqui já estejamos distan Ich hin nicht geeignet die Verdienste meines sehr geschiitzten Vorgiin gers zu würdigen significa Não sou a pessoa adequada para louvar os méritos de meu valoroso antecessor A troca do verbo para ge neigt muda o sentido para Não estou inclinado a louvar 43 I OS ATOS FALHOS tes das relações entre os sons e dos efeitos provocados pela semelhança entre palavras em substituição a eles podemos invocar o fato de que opostos guardam forte parentesco conceitual um com o outro e se apresentam bastante próximos do ponto de vista da associação psico lógica Há exemplos históricos desse tipo de ocorrência Certa feita um presidente de nossa Câmara dos Depu tados abriu uma sessão da seguinte maneira Senhores deputados constato um número suficiente de membros na casa e declaro portanto encerrada a sessão De atuação tão sedutora quanto a da relação por oposição revelase também a de outras associações co muns as quais em certas circunstâncias podem aflorar de forma bastante inconveniente Contase por exem plo que em cerimônia por ocasião do matrimônio de uma filha de H Helmholtz com um filho do conheci do inventor e grande industrial W Siemens o famoso fisiologista Du BoisReymond ficou encarregado do discurso solene E concluiu seu brinde certamente bri lhante com as seguintes palavras Viva pois a nova empresa Siemens e Halske Esse naturalmente era o nome da velha empresa A combinação dos dois nomes decerto era tão conhecida dos berlinenses quanto Riedel e Beutel é dos vienenses Temos pois de acrescer a influência das associações de palavras àquelas exercidas pelas relações entre os sons e pela semelhança entre vocábulos Isso porém não basta Em uma série de casos não se consegue ex Riedel e Beutel era uma conhecida loja de roupas de Viena 44 2 OS ATOS FALHOS plicar o lapso observado sem antes levar em conside ração o que foi dito na frase anterior ou mesmo aquilo que foi apenas pensado De novo portanto um caso de reverberação como aquele destacado por Meringer só que a uma distância maior Devo confessar que de modo geral pareceme que agora estamos mais longe do que nunca da compreensão do lapso verbal Todavia espero não estar enganado ao afirmar que ao longo dessa investigação recéminiciada ganha mos todos uma nova impressão dos exemplos de lapso verbal impressão esta na qual valeria a pena nos de termos De início examinamos as condições em que o lapso acontece depois as influências que determinam o tipo de deformação operada por ele mas do produto em si do lapso verbal independentemente de sua origem ainda nem sequer tratamos Se nos decidimos a fazêlo precisamos encontrar enfim a coragem para dizer em alguns desses exemplos também aquilo que resulta do lapso verbal possui um sentido O que significa possui um sentido Pois bem isso quer dizer que o próprio produto do lapso talvez tenha o direito de ser considera do um ato psíquico pleno munido de objetivo próprio devendo assim ser compreendido como uma manifes tação dotada de conteúdo e significado Até o momento falamos sempre em atos falhos mas o que parece agora é que o ato falho pode por vezes constituir um ato abso lutamente normal uma ação que apenas se pôs no lugar de outra esperada ou pretendida Em alguns casos esse sentido próprio de que se reveste o ato falho parece de fato palpável e inconfun 45 I OS ATOS FALHOS dível Quando em suas palavras iniciais o presidente da Câmara dos Deputados encerra a sessão em vez de abrila tendemos a com base em nosso conhecimento da situação em que o lapso se verificou considerar significativo seu ato falho Ele não espera nada de proveitoso da sessão e ficaria feliz se pudesse encerrála de imediato Evidenciar esse sentido isto é o significado desse lapso verbal é coisa que não nos proporciona nenhuma dificuldade Ou quando uma dama em aparente sinal de aprovação pergunta a outra Diesen reizenden neuen Hut haben Sie sich wohl selbst aufgesetzt aí não há ciência neste mundo capaz de evitar que desse lapso verbal depredemos a manifestação de que o referido chapéu é uma Patzerei Outro exemplo encontrase no seguinte relato de uma senhora sabidamente enérgica Meu marido perguntou ao doutor que dieta seguir Mas o doutor respondeu que ele não precisa de dieta nenhuma que pode comer e beber o que eu quiser Aqui por outro lado o lapso é expressão inconfundível de um plano coerente Senhoras e senhores se verificarmos que não apenas alguns poucos e sim um número maior de lapsos verbais e atos falhos possui um sentido então será inevitável que esse sentido dos atos falhos de que ainda não falamos se torne para nós o mais interessante des 2 OS ATOS FALHOS locando legitimamente para segundo plano todas as demais considerações Se assim for poderemos deixar de lado todos os fatores fisiológicos e psicofisiológicos e nos dedicar à investigação puramente psicológica do sentido isto é do significado da intenção contida no ato falho Não deixaremos pois de examinar material mais amplo resultante de nossas observações tendo em vista essa expectativa Antes porém de nos dedicarmos a esse propósito eu gostaria de convidálos a seguir comigo uma outra pista Já aconteceu várias vezes de um escritor se servir de um lapso verbal ou de algum outro ato falho como instrumento de expressão literária Esse fato por si só há de constituir prova de que o literato entende o ato falho o lapso verbal por exemplo como portador de um sentido considerandose que afinal ele o pro duz deliberadamente O que ocorre não é que o escritor ou poeta se equivoque por acaso ao escrever e depois mantenha esse erro como um lapso cometido por sua personagem Por intermédio desse lapso ele quer nos dar a entender alguma coisa e podemos então verificar do que se trata se ele deseja sugerir que a personagem em questão está distraída cansada ou à beira de uma en xaqueca Não vamos é claro superestimar o lapso ver bal empregado pelo escritor como portador de sentido Na vida real esse lapso poderia perfeitamente não ter sentido nenhum constituir um acaso psíquico ou apenas em casos muito raros revelarse pleno de significado o escritor terseia aí reservado o direito de intelectualizá lo de dotálo de sentido apenas para utilizálo a favor 47 I OS ATOS FALHOS de seus próprios desígnios Não seria contudo de ad mirar se tivéssemos mais a aprender sobre o lapso verbal com o poeta do que com o filólogo ou o psiquiatra Um exemplo desse lapso encontrase em Wallenstein Piccolomini ato I cena 5 Na cena anterior Max Piccolomini toma o partido do duque com a máxima veemência louvando as bênçãos da paz que lhe é reve lada durante a viagem em que ele acompanha a filha de Wallenstein até o campo Com isso deixa absolutamen te perplexos seu pai e o enviado da corte Questenberg A cena 5 prossegue da seguinte maneira QUESTENBERG ó ai de nós Assim é então Amigo deixamolo ir assim Delirante em vez de prontamente chamálo De volta para que possamos logo abrirlhe Os olhos OTÁVIO retornando de profunda reflexão Os meus ele agora os abriu E vejo mais do que me alegraria ver QUESTENBERG 0 que há amigo OTÁVIO Maldita viagem QUESTENBERG Por quê O que há Wallenstein trilogia teatral do poeta dramaturgo ensaísta e historiador Friedrich Schiller 175918o 2 OS ATOS FALHOS OTÁVIO Vem Preciso Seguir de imediato a desafortunada pista Ver com meus próprios olhos vem quer leválo QUESTENBERG Mas o que há Para onde OTÁVIO apressado Até ela QUESTENBERG Até OTÁVIO corrigindose Até o duque Vamos Otávio pretendia dizer até ele zu ihm até o du que mas comete um lapso e por intermédio das pala vras até ela zu ihr revela a nós pelo menos ter identificado muito bem a influência que faz o jovem herói de guerra louvar a paz Exemplo ainda mais impressionante descobriu O Rank em Shakespeare Está em O mercador de Veneza na famosa cena em que cabe ao feliz amante escolher entre três cofrinhos O melhor que posso fazer talvez seja ler para os senhores a breve passagem de Rank Um lapso verbal de fina motivação literária e em prego tecnicamente brilhante que tal como aquele apontado por Freud em Wallenstein mostra que os escritores conhecem o mecanismo e o sentido do ato falho e também pressupõem sua compreensão por parte do público encontrase em O mercador de Vene za de Shakespeare ato m cena 2 Graças a um feliz 49 I OS ATOS FALHOS acaso Pórcia obrigada pela vontade do pai à escolha de um cônjuge por sorteio escapou até o momento de seus pretendentes indesejados Como porém encon trou enfim em Bassânio o candidato pelo qual sente verdadeira afeição ela teme que como os demais ele seja traído pela sorte Também nesse caso ela gosta ria de lhe dizer poderá ele estar certo de seu amor mas o juramento feito impede Pórcia de dizêlo As sim estando ela tomada por esse conflito interior o poeta a faz dizer ao pretendente bemvindo Não te apresses por favor Espera um dia ou dois Antes de arriscar pois se errares na escolha Perderei tua companhia Portanto aguarda um pouco Algo me diz mas não é amor Que não devo te perder Poderia dizerte a escolha certa Mas quebraria um juramento O que jamais farei Poderás perderme Nesse caso lastimarei não ter pecado Não haver perjurado Malditos esses teus olhos Que me dominaram e dividiram Metade de mim é tua a outra metade tua Minha quero di1er mas sendo minha é também tua E assim toda tua Precisamente aquilo que ela desejaria apenas insinuar a ele porque não deveria dizêlo isto é que já an tes da escolha do cofrinho é toda sua e o ama 2 OS ATOS FALHOS isso o poeta dotado de maravilhosa sensibilidade psi cológica embute claramente no lapso e mediante esse recurso artístico logra tranquilizar tanto a insuportá vel incerteza do amante como a tensão do público de natureza semelhante acerca do resultado da escolha Notem ademais com que refinamento Pórcia concilia no final as duas afirmações contidas no lapso como ela anula a contradição existente entre elas mas por fim dá razão ao lapso Mas sendo minha é também tua E assim toda tua Vez por outra já aconteceu também de um pensador de um campo distante da medicina ter revelado em uma observação o sentido de um ato falho antecipandose a nosso esforço para esclarecêlo Todos aqui conhecem o espirituoso satírico Lichtenberg 17421799 sobre quem Goethe disse Onde ele faz um gracejo sempre se esconde um problema Às vezes a brincadeira tam bém traz à luz a solução do problema Em Witzige und satirische Einfolle Pensamentos espirituosos e satíricos 1853 Lichtenberg tem a seguinte frase Ele sempre lia Agamenon em vez de angenommen de tanto que havia lido Homero Eis aí na verdade a teoria completa do lapso de leitura Agamenon ou Agamêmnon é como se sabe um dos protago nistas da Ilíada de Homero angenommen significa suposto I OS ATOS FALHOS Em nosso próximo encontro veremos se podemos acompanhar os escritores em nossa concepção dos atos falhos 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO Senhoras e senhores Na última vez nos ocorreu abordar o ato falho não em relação ao ato intencionado por ele perturbado mas em si tivemos a impressão de que em certos casos os atos falhos parecem revelar sentido próprio e pondera mos que se pudéssemos comprovar mais amplamente que eles são de fato dotados de sentido esse sentido logo se tornaria mais interessante para nós do que o exame das circunstâncias em que o ato falho acontece Ponhamonos novamente de acordo acerca do que entenderemos por sentido de um processo psíquico Esse sentido nada mais é que a intenção a que esse processo serve e a posição dele em uma cadeia psíquica Para boa parte de nossas investigações podemos subs tituir sentido por intenção tendência Quan do acreditamos identificar no ato falho uma intenção deveuse isso a uma aparência ilusória ou a uma exalta ção poética do ato falho cometido Vamos nos ater aos exemplos de lapsos verbais e exa minar uma quantidade maior dessas ocorrências En tão encontraremos categorias inteiras de casos em que a intenção o sentido do lapso é evidente Em especial 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO aqueles em que se diz o contrário do que se pretendia di zer Em seu discurso de abertura da sessão o presidente diz Declaro encerrada a sessão A manifestação é ine quívoca O sentido e intenção de seu lapso é que o presi dente quer encerrar a sessão É o que ele próprio diz poderíamos acrescentar basta que o tomemos ao pé da letra Não levantem a objeção de que isso não é possível de que sabemos afinal que ele não queria encerrar e sim abrir a sessão e de que ele próprio a quem acaba mos de reconhecer como instância máxima pode con firmar que assim o desejava Os senhores se esquecem de que concordamos em antes de mais nada examinar o ato falho em si a relação dele com a intenção que o perturba só deve vir à baila mais tarde Do contrário os senhores estarão incorrendo em um erro de lógica que escamoteia o problema em pauta ou seja estarão beg ging the question como se diz em inglês Em outros casos nos quais o lapso não produz o opos to do que se queria dizer ainda assim pode ele comunicar o contrário do pretendido Por exemplo em Ich bin nicht geneigt die Verdienste meines Vorgiingers zu würdigen Não estou inclinado a louvar os méritos de meu anteces sor geneigt não é o contrário de geeignet mas resulta em uma clara confissão a qual está em franca oposição com a situação em que cabe ao orador se manifestar Citação de uma frase que se repete algumas vezes no ato II de As bodas de Figaro de Mozart e Lorenzo Da Ponte Freud cita a ver são alemã Er sagt es ja selbst o original italiano diz Il destino glielafo 53 I OS ATOS FALHOS Casos há também em que o lapso verbal simples mente acrescenta outro sentido àquele pretendido A manifestação soa aí como uma contração ou redução como uma condensação de várias frases em uma só Quando aquela senhora diz energicamente Ele pode comer e beber o que eu quiser é como se houvesse dito Ele pode comer e beber o que quiser mas ele lá tem querer Quem pode querer sou eu Com fre quência os lapsos verbais resultam em semelhantes re duções Assim é por exemplo quando em seguida a uma exposição sobre a fossa nasal o professor de ana tomia pergunta se todos entenderam o que ele disse e após concordância geral prossegue Eu não acredito porque mesmo numa cidade de um milhão de habitan tes podese contar em um dedo perdão podemse contar nos dedos de uma só mão aqueles que entendem a fossa nasal Também aí a fala abreviada possui um sentido ela afirma que só existe uma pessoa que com preende o assunto A esses grupos de casos em que o próprio ato fa lho revela seu sentido contrapõemse outros em que o lapso verbal não produz nada significativo e que por tanto contrariam vigorosamente nossas expectativas Quando em consequência de um lapso verbal alguém distorce um nome ou combina uma sequência inusual de sons essa ocorrência corriqueira parece já responder negativamente à pergunta sobre se todo ato falho pro duz sentido Contudo de um exame mais aproximado desses exemplos resulta uma fácil compreensão de tais deformações chegandose mesmo a verificar que não é 54 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO tão grande a diferença entre esses casos mais obscuros e os anteriores mais evidentes Perguntado sobre o estado de saúde de seu cavalo um senhor responde a das draut das dauert viel leicht noch einen Monat É isso dru isso dura ainda um mês talvez Indagado sobre o que havia querido dizer de fato ele explica ter pensado que aquela era uma história triste traurig o choque entre dauert e traurig tendo pois produzido a palavra inexistente draut Me ringer e Mayer Outra pessoa ao se queixar de determinados acon tecimentos diz Dann aber sind Tatsachen zum Vorsch weingekommen Perguntada a respeito do que havia dito ela confirma que pretendeu caracterizar os acon tecimentos em questão como Schweinereien porcarias Juntas as palavras Vorschein e Schweinerei deram ori gem à estranha Vorschwein Meringer e Mayer Lembremse também do caso daquele jovem que desejou begleitdigen a dama desconhecida Tomamos a liberdade de decompor a palavra utilizada em duas outras begleiten acompanhar e beleidigen ofender e nos sentimos seguros de nossa interpretação sem demandar confirmação para ela Por esses exemplos os senhores veem agora que também os casos mais obscu ros dos lapsos verbais se deixam explicar pela junção de duas intenções diversas ou seja pela interforência As diferenças entre tais casos resultam apenas do fato de A frase correta seria Dann aber sind Tatsachen Um Vorschein gekommen que significa Mas então certos fatos vieram à luz I OS ATOS FALHOS que às vezes uma intenção substitui a outra por comple to como nos lapsos que afirmam o contrário do preten dido ao passo que outras vezes ela se limita a defor mar ou modificar o que se queria dizer dando origem a construções mistas que em si parecem em maior ou menor grau plenas de sentido Cremos agora ter compreendido o segredo de um grande número de lapsos verbais Se nos ativermos a essa percepção poderemos compreender outros grupos também ainda enigmáticos para nós No caso da de formação de nomes por exemplo não podemos atribuí la sempre e somente à concorrência entre dois nomes parecidos mas diferentes Outra intenção no entanto não é difícil de adivinhar A deformação de um nome é coisa que ocorre também muitas vezes fora dos do mínios dos lapsos verbais ela visa fazer um nome soar mal ou a depreciálo e constitui uma conhecida moda lidade ou vício da injúria ao qual toda pessoa educa da logo aprende a renunciar ainda que não o faça de bom grado porque se permite ainda utilizálo com fre quência sob a forma de chiste embora muito pouco digno Como exemplo gritante e feio dessa deformação de nome basta mencionar que atualmente o nome do presidente da República da França Poincaré foi trans formado em Schweinskarré É natural portanto pres supormos também no lapso verbal a existência de tal Schweinskarré costeleta de porco lembremos que o Império AustroHúngaro estava em guerra com a França na Primeira Grande Guerra de 191418 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO propósito difamatório que prevalece na deformação do nome Explicações semelhantes se nos impõem para certos lapsos da fala de efeito cômico ou absurdo Em Ich fordere Sie auf auf das Wohl unseres Chefi aufcus tossen Convido os senhores a arrotar à saúde de nosso chefe a atmosfera solene é perturbada pela intromissão inesperada de uma palavra que suscita uma imagem de sagradável segundo o modelo de certos xingamentos e imprecações não podemos imaginar outra coisa senão que pretende expressarse aí uma vigorosa tendência contrária à suposta homenagem a qual deseja antes dizer Não creiam que estou falando sério Não dou a mínima para esse sujeito ou coisa parecida O mesmo vale para aqueles lapsos que transformam palavras ino fensivas em expressões inapropriadas e obscenas como apopos em vez de apropos ou Eischeissweihchen em lugar de Eiweissscheihchen Meringer e Mayer Conhecemos em muitas pessoas essa tendência a transformar deliberadamente palavras inofensivas em obscenas pelo prazer que assim obtêm Essa deforma ção é tida como espirituosa e na realidade toda vez que ouvimos alguém dizer coisa semelhante é necessário que em primeiro lugar descubramos se esse alguém o fez de propósito à maneira de um chiste ou se de fato cometeu um lapso verbal Apropos é a forma alemã da expressão francesa à propos a pro pósito apopos é um termo inexistente cunhado a partir de Popo que em português brasileiro corresponde a bumbum Eischeiss weibchen seria algo como mulherzinhacagaovo em vez de Eiweissscheibchen rodela de clara de ovo í7 I OS ATOS FALHOS Com essas considerações teríamos pois soluciona do sem grande esforço o enigma dos atos falhos Eles não são obra do acaso mas atos psíquicos sérios pos suem um sentido e nascem da conjunção ou melhor do confronto de duas intenções diferentes Agora po rém compreendo que os senhores queiram me cobrir de um semnúmero de perguntas e dúvidas que cumpre responder e resolver antes que possamos nos compra zer desse primeiro resultado de nosso trabalho Eu com certeza não quero instigálos a decisões precipitadas Assim submetamos todas as nossas considerações uma a uma a ponderação isenta O que desejariam os senhores me perguntar Se creio que essa explicação é válida para todos os casos de lapso verbal ou apenas para certo número deles Se é lícito estender essa compreensão para todos os mui tos tipos de atos falhos isto é para os lapsos de leitu ra de escrita de memória de extravio etc Que papel cumprem fatores como cansaço nervosismo distração distúrbio da atenção se os atos falhos são de natureza psíquica Além disso notase que das duas tendências neles concorrentes uma é sempre evidente ao passo que a outra nem sempre o é O que fazer então para desvendar esta última e quando julgamos têla desven dado como comprovar que não se trata de mera proba bilidade e sim de uma certeza Terão os senhores ainda outras perguntas Se não as têm prossigo com minhas ponderações Lembro a todos que na verdade os atos falhos em si não nos importam tanto que de seu estu do desejamos apenas aprender algo que seja utilizável 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO na psicanálise Por isso minha pergunta é a seguinte que intenções ou tendências são essas capazes de per turbar as pessoas dessa maneira e que relações guar dam essas tendências perturbadoras com aqueles aos quais elas perturbam Assim nosso trabalho recomeça após a solução do problema Seria essa então a explicação para todos os casos de lapso verbal Inclinome a acreditar que sim sobretu do porque sempre que se examina lapso semelhante a solução encontrada é a mesma Não se pode contudo comprovar que um lapso verbal não possa ocorrer sem a atuação de tal mecanismo Talvez possa para nós não faz diferença do ponto de vista teórico uma vez que permanecem válidas as conclusões que desejamos tirar para esta introdução à psicanálise e assim seria mes mo que apenas uma minoria dos lapsos da fala se sujei tasse a nossa concepção o que decerto não é o caso À pergunta seguinte sobre se podemos estender para os demais tipos de atos falhos o resultado que obtivemos para o lapso verbal desejo responder antecipadamen te que sim Os senhores mesmos se convencerão disso quando nos voltarmos para o exame de lapsos da escrita ou de quando nos equivocamos ao apanhar um objeto etc Contudo por razões técnicas sugiro aos senhores adiar esse trabalho até que tenhamos tratado ainda mais a fundo o próprio lapso verbal Resposta mais detalhada merece a pergunta sobre que importância têm ainda fatores como o distúrbio da circulação o cansaço o nervosismo a distração a teo ria do distúrbio da atenção todos eles ressaltados por 59 I OS ATOS FALHOS outros autores uma vez aceito o mecanismo psíquico do lapso verbal que aqui descrevemos Notem os senho res que não contestamos esses fatores É de resto pouco comum a psicanálise contestar o que outros afirmaram em geral ela apenas acrescenta algo novo ao que foi dito e vez por outra acontece de o novo elemento até então ignorado ser precisamente o essencial A influên cia que disposições fisiológicas ocasionadas por leve malestar distúrbios da circulação estados de esgota mento exercem na ocorrência do lapso verbal deve ser de pronto reconhecida a experiência pessoal e cotidia na poderá convencêlos de que assim é E no entanto quão pouco isso explica Acima de tudo elas não são condições necessárias para a ocorrência do ato falho O lapso verbal é igualmente possível em um estado de saú de perfeito e de pleno bemestar Portanto esses fatores físicos atuam apenas como facilitadores e favorecedores do mecanismo psíquico singular que produz o lapso ver bal Para explicar essa relação certa vez valime de um símile que repito agora porque não saberia substituílo por outro melhor Suponham que tendo me dirigido na escuridão da noite a um local deserto eu seja assaltado por um vagabundo que me leva o relógio e a carteira Em seguida como não vi com nitidez o rosto do ladrão dou queixa na delegacia mais próxima com as seguintes palavras A solidão e a escuridão acabam de me roubar de meus pertences O delegado de polícia pode então me dizer O senhor parece sustentar sem razão uma postura extremamente mecanicista Caracterizemos as sim o ocorrido sob o manto da escuridão e favorecido 6o 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO pela solidão um ladrão desconhecido arrebatoulhe ob jetos de valor No seu caso o fundamental me parece ser que encontremos o ladrão Depois talvez possamos recuperar o que ele lhe roubou Os fatores psicofisiológicos como a agitação a dis tração o distúrbio de atenção contribuem muito pouco para o propósito do esclarecimento São apenas fórmulas vazias biombos atrás dos quais não devemos deixar de olhar A questão é antes o que suscitou a agitação ou um particular desvio da atenção As influências dos sons as semelhanças entre as palavras e as associações habi tuais que elas propiciam devem ser vistas como significa tivas Todas elas facilitam o lapso verbal na medida em que indicam os caminhos que ele poderá trilhar Quan do porém vejo um caminho à minha frente decorre naturalmente daí que vou seguilo Faltame ainda um motivo para que eu me decida a trilhálo e além disso uma força que me leve adiante nesse caminho Assim tanto quanto as disposições físicas as relações entre os sons e entre as palavras são apenas favorecedores do lap so verbal incapazes de lhe prover verdadeira explicação Afinal considerem os senhores na imensa maioria dos casos meu discurso não se deixa perturbar pela cir cunstância de por semelhança fonêmica as palavras que utilizo lembrarem outras ou de estarem elas intimamen te vinculadas a seus antônimos ou ainda de suscitarem associações comuns Poderíamos talvez acompanhar o filósofo Wundt que nos informa que o lapso verbal ocorre quando em decorrência do esgotamento físico as tendências à associação levam a melhor sobre a intenção 6 I OS ATOS FALHOS geral do discurso A afirmação soaria muito bem se não a contrariasse a experiência que atesta que numa série de casos faltam os fatores somáticos que favorecem o lapso verbal e em outra os fatores associativos A pergunta seguinte dos senhores possui para mim interesse particular ou seja de que maneira é possível constatar as duas tendências a interferir uma com a ou tra Os senhores provavelmente não imaginam a impor tância capital que essa questão tem Uma dessas tendên cias a que sofre perturbação é sempre inequívoca não é mesmo A pessoa que comete o ato falho a conhece e admite Motivo para dúvidas e preocupações só nos pode oferecer a outra a tendência perturbadora Pois bem já vimos e os senhores decerto não se esqueceram dis to que em uma série de casos também essa segun da tendência é clara Ela é indicada pelo efeito do lapso quando temos a coragem de reconhecêlo como tal O presidente da Câmara ao dizer o oposto do que pre tendia deixa claro que deseja abrir a sessão mas deixa igualmente claro que gostaria de encerrála Isso é tão evidente que nada resta aí a interpretar Naqueles casos porém em que a tendência perturbadora apenas deforma a original sem manifestarse por completo como chegar à tendência perturbadora a partir da deformação Em uma primeira série de casos isso pode ser feito de maneira simples e segura ou seja da mesma manei ra como constatamos a tendência que sofreu perturba ção Esta nos é comunicada diretamente pelo orador o qual uma vez cometido o lapso restabelece de imediato a fala original pretendida Das draut nein das dauert 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO yielleicht noch einen Monat Isso dru não isso dura ainda um mês talvez Também a tendência deforma clara podemos ouvir dele próprio Perguntamos Por que o senhor disse dru Ele responde Queria di zer que se tratava de uma história triste traurig Da mesma forma no outro caso aquele em que o lapso produziu Vorschwein o orador confirma que de iní cio pretendia dizer Das ist eine Schweinerei Isso é uma porcaria mas se conteve e tomou outra direção Portanto a constatação da tendência perturbadora é aí tão segura e bemsucedida como a daquela que sofreu perturbação Não por acaso menciono aqui exemplos cujas comunicação e resolução não provêm de mim nem de nenhum de meus partidários Em ambos esses ca sos contudo certa intervenção se fez necessária para encontrar a solução Precisouse perguntar ao orador o porquê de seu lapso verbal o que ele saberia dizer sobre o lapso cometido Do contrário ele talvez tivesse deixado para trás o equívoco sem pretender explicálo Perguntado a esse respeito no entanto o orador deu a primeira explicação que lhe veio à mente Notem pois os senhores que essa pequena intervenção e seu sucesso já são uma psicanálise constituem o modelo de toda a investigação psicanalítica que vamos empreender Seria muita desconfiança de minha parte supor que no mesmo momento em que a psicanálise se apresenta diante dos senhores também a resistência a ela se ergue Os senhores não sentem vontade de objetar que a infor mação provinda da pessoa que cometeu o lapso carece de força comprobatória Naturalmente poderiam argu I OS ATOS FALHOS mentar ela procura responder ao pedido de explicação para o lapso razão pela qual vai dizer a primeira coisa que lhe vier à mente se esta lhe parecer uma explicação apropriada Isso contudo não prova que o lapso ocor reu pelo motivo apontado Ele tanto poderá ter ocorrido por esse motivo como por algum outro E ao orador que o cometeu poderia ocorrer outra explicação tão boa ou até mesmo mais adequada que a anterior É notável o pouco respeito que no fundo os senho res demonstram diante de um fato psíquico Suponham que alguém ao empreender uma análise química de determinada substância tenha chegado ao peso de um de seus componentes certa quantidade de miligramas Desse peso encontrado podemse extrair determinadas conclusões Pois bem creem os senhores que a algum químico ocorreria criticar tais conclusões com o argu mento de que a substância isolada poderia também ter outro peso Todos se curvam ao fato de que o peso é aquele mesmo e nenhum outro fato no qual confiantes baseiam ulteriores conclusões Diante porém do fato psíquico da explicação ocorrida ao orador os senhores não o julgam válido creem que outra explicação pode ria ter lhe ocorrido Acalentam assim a ilusão de uma liberdade psíquica à qual não desejam renunciar Nisso lamento estar em total discordância com os senhores Aqui as senhoras e os senhores cessarão de opor resistência mas apenas para retomála em outro pon to Assim prosseguirão Nós compreendemos que é técnica peculiar da psicanálise obter dos próprios ana lisandos a solução para seus problemas Tomemos en tão outro exemplo aquele do orador que exorta todos os presentes a arrotar aufstoßen à saúde do chefe O senhor diz que nesse caso a intenção perturbadora é a do insulto é ela que se opõe à manifestação de respeito Isso contudo é mera interpretação sua baseada em observações exteriores ao lapso verbal Se nesse caso o senhor perguntar àquele que perpetuou o lapso ele não confirmará que seu intuíto era o de insultar Pelo contrário negará com veemência semelhante intenção Diante de negativa tão clara por que o senhor não abandona sua interpretação não comprovada Sim aqui os senhores encontraram um forte argumento Ponhome a imaginar esse orador desconhecido é provável que ele seja um assistente do catedrático homenageado talvez já professor contratado um jo vem diante das melhores oportunidades da vida Quero inspecionálo saber se afinal não sentiu alguma coisa que contrariasse àquela exigência de homenagear o chefe Logo me vejo em maus lençóis Impaciente ele de súbito me ataca Chega o senhor pode me fazer essas perguntas ou vou me irritar Ainda vai acabar com minha carreira com essas suspeitas todas Eu disse arrotar aufstossen em vez de brindar anstoßen porque na mesma frase já tinha dito auf duas vezes É isso que Meringer chama de reverberação e não há mais nada a explicar aí o senhor me entende Basta Ora eis aí uma reação surpreendente uma negativa bastante enérgica Vejo que nada vou conseguir desse jovem mas penso comigo que ele revela um forte interesse pessoal em que seu ato falho não tenha significado nenhum Talvez os senhores I OS ATOS FALHOS também achem que não é certo ele de pronto reagir de forma tão rude a uma investigação meramente teórica mas por fim concluirão que o jovem na realidade há de saber o que pretendeu e o que não pretendeu dizer Pois bem será que sabe Essa talvez seja a pergunta a se fazer Agora os senhores por certo creem me ter nas mãos Então essa é sua técnica ouçoos dizer Quando a pessoa que cometeu o ato falho diz sobre ele alguma coisa que lhe convém o senhor o declara autoridade última e decisiva no assunto É o que ele próprio diz Mas quando o que ele diz não lhe interessa aí de súbi to o senhor afirma que essa declaração não tem valor que não precisamos acreditar nela Assim é na verdade Mas posso apresentar aos se nhores um caso semelhante no qual se procede de ma neira igualmente terrível Quando diante do juiz um acusado confessa seu crime o juiz acredita na confis são se contudo ele nega têlo cometido o juiz não lhe dá crédito Não fosse assim inexistiria a administração da justiça e a despeito de equívocos ocasionais os se nhores hão de concordar com esse sistema Então o senhor é o juiz e aquele que comete um ato falho o acusado a se apresentar à sua frente Um ato falho é portanto um delito Talvez não precisemos recusar nem mesmo essa com paração Mas vejam os senhores a que importantes dife renças chegamos ao nos aprofundar um pouco nos pro blemas aparentemente inofensivos propostos pelos atos falhos São diferenças que por enquanto nem sabemos 66 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO conciliar O que ofereço aos senhores é um compromis so temporário com base no símile do juiz e do acusado os senhores admitem que é indubitável o sentido de um ato falho quando quem o reconhece é o próprio anali sando em compensação eu admito aos senhores não ser possível comprovar diretamente o suposto significado quando o analisando se recusa a nos dar informação ou naturalmente quando ele não está disponível para nos fornecer essa informação Nesse caso como ocorre na administração da justiça dependeremos de indícios os quais poderão tornar uma decisão ora mais ora menos provável Em um tribunal uma condenação baseada em provas indiciárias se dá também por razões práticas Nós de nossa parte não temos essa necessidade nem por isso todavia somos obrigados a renunciar à explo ração de tais indícios Seria um equívoco acreditar que toda ciência se compõe apenas de proposições estrita mente comprovadas bem como seria injusto exigir que assim fosse Tal exigência só faz um espírito que tem ân sia de autoridade que necessita substituir seu catecismo religioso por outro ainda que científico Em seu catecis mo a ciência tem apenas algumas proposições apodícti cas o resto são afirmações que ela elevou a certos graus de probabilidade Contentarse com essas aproximações à certeza e na ausência das comprovações derradeiras ser capaz de dar continuidade ao trabalho construtivo é justamente um sinal do modo de pensamento científico Mas de onde extrair os fundamentos para nossas interpretações os indícios a corroborar nossa compro vação quando a própria declaração do analisando não I OS ATOS FALHOS esclarece o sentido do ato falho De diversas partes Em primeiro lugar da analogia com fenômenos exteriores aos atos falhos como por exemplo quando afirmamos que a deformação de um nome em um lapso verbal pos sui o mesmo significado difamatório de uma deturpação deliberada desse nome Além disso podemos extraílos da situação psíquica em que o ato falho ocorre de nosso conhecimento do caráter da pessoa que o comete e das impressões que afetaram essa pessoa antes de cometêlo às quais o ato falho constitui possivelmente uma reação Em regra procedemos de modo a formular nossa inter pretação do ato falho a partir de princípios gerais uma interpretação que será de início apenas uma conjectu ra uma sugestão de interpretação para a qual a seguir buscamos confirmação no exame da situação psíquica Por vezes precisamos esperar por acontecimentos futu ros anunciados por assim dizer pelo próprio ato falho a fim de obter a confirmação de nossa hipótese Demonstrar isso aos senhores não é tarefa que se torne mais fácil para mim se me atenho ao domínio dos lapsos verbais embora também aí haja bons exem plos O jovem desejoso de begleitdigen uma dama com certeza é tímido a senhora cujo marido pode comer e beber o que ela quiser eu a reputo uma daquelas mu lheres enérgicas a conduzir sua casa com mão de ferro Ou considerem o seguinte caso em uma assembleia geral da Concordia um jovem membro da associa ção profere um veemente discurso oposicionista no curso do qual se dirige aos diretores da instituição como Vorschussmitglieder membros da Vorschuss 68 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO aparentemente uma mistura de Vorstand direção e Ausschuss comitê Podemos supor ter se manifestado nele uma tendência perturbadora contrária a sua opo sição tendência esta apoiada talvez em algo que podia estar relacionado a um Vorschuss adiantamento E de fato descobrimos por nosso informante que o orador sempre necessitado de dinheiro havia acabado de so licitar um empréstimo Como intenção perturbadora manifestase aí com efeito o pensamento Modere sua oposição Essas são também as pessoas encarrega das de conceder o adiantamento Se contudo recorrer ao amplo domínio dos demais atos falhos poderei apresentar aos senhores toda uma rica coleção de evidências desse tipo Quando alguém esquece um nome que lhe é conhe cido ou tem muita dificuldade em guardálo por mais que se esforce é natural supormos que essa pessoa tem alguma coisa contra o portador do nome em questão e por isso não gosta de lembrálo Considerem agora as seguintes revelações sobre situações psíquicas em que tal ato falho ocorreu Um certo senhor Y apaixonouse perdidamente por uma dama que logo a seguir se casou com um senhor X Embora conheça o senhor X há muito tempo tendo com ele inclusive uma relação de negócios o senhor Y vivia esquecendo seu nome Muitas vezes quando que ria escrever ao senhor X precisava perguntar seu nome a outras pessoas1 1 Segundo C G Jung I OS ATOS FALHOS O senhor Y claramente não quer saber coisa nenhu ma de seu feliz rival Melhor é nem lembrar dele Ou uma dama pergunta ao médico sobre uma co nhecida comum mas a chama pelo nome de solteira Do sobrenome adotado após o casamento ela se esque ceu Confessa então ter ficado bastante insatisfeita com aquele casamento e não suportar o marido da amiga 2 Teremos ainda muito a dizer sobre outros aspectos do esquecimento de nomes No momento interessanos sobretudo a situação psíquica verificada quando do es quecimento De modo geral o esquecimento de intenções pode ser referido a uma tendência contrária que não dese ja pôr em prática o propósito em questão Assim pensa não apenas a psicanálise esse é também o entendimento comum a todas as pessoas aquele que todos professam na vida mas negam na teoria O benfeitor que se des culpa com seu protegido por ter se esquecido de atender a um pedido não tem sua justificativa aceita por ele O protegido pensará de imediato Ele pouco se importa Prometeu mas na verdade não quer fazer Em certas circunstâncias portanto também na vida real o esque cimento é malvisto a diferença entre o entendimento popular e o psicanalítico desses atos falhos parece ter sido abolida Imaginem uma dona de casa que recebe uma visita com as palavras Como Você veio hoje Eu me esqueci completamente de ter feito o convite para hoje Ou o jovem que tem de confessar à amada ter 2 Segundo A A Brill 70 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO esquecido de comparecer ao último encontro marcado Por certo ele não vai confessálo e sim inventar de im proviso obstáculos os mais improváveis os quais o te rão impedido de comparecer e mesmo desde então de dar qualquer notícia Em questões militares sabemos que a desculpa do esquecimento de nada adianta nem há de livrar ninguém de punição e só podemos consi derar justificado que assim seja Nesse caso de súbito todos estão de acordo em que certo ato falho é dotado de sentido e concordam também quanto a que sentido ele tem Por que então não são coerentes o bastante para estender esse entendimento aos demais atos falhos reconhecendoo de uma vez por todas Também para isso é evidente há uma resposta Se até mesmo os leigos pouco duvidam do sentido desse esquecimento de uma intenção tão menos sur presos ficarão os senhores ao descobrir que os poetas o empregam com idêntico significado Quem aqui já viu ou leu César e Cleópatra de Bernard Shaw há de se lembrar de que na última cena da peça um César de partida é atormentado pela ideia de que pretendia fazer algo de que agora já não se recorda Por fim revelase o que ele havia esquecido de se despedir de Cleópatra Esse pequeno expediente empregado pelo dramaturgo pretende atribuir ao grande César uma superioridade que ele não possuía nem almejava Fontes históricas di rão aos senhores que César determinou que trouxessem Cleópatra para Roma e que ali ela se encontrava na companhia de seu pequeno Cesário quando César foi assassinado ao que então Cleópatra fugiu da cidade 71 I OS ATOS FALHOS Os casos de esquecimento de uma intenção são em geral tão claros que pouca utilidade possuem para nos so propósito de extrair da situação psíquica indícios que apontem para o sentido de um ato falho Voltemos nossa atenção para uma modalidade de ato falho particular mente rica em significados e inescrutável aqueles ca sos em que perdemos um objeto ou não sabemos onde o guardamos Os senhores por certo não julgarão crí vel que na perda de um objeto uma casualidade que com frequência nos é dolorosa tenhamos nós pró prios participação deliberada Contudo observações como as que seguem existem em profusão Um jovem perde o lápis de que gostava muito Dias antes havia recebido uma carta do cunhado que terminava com as seguintes palavras No momento não tenho vontade nem tempo de apoiar tua leviandade e tua preguiça3 O lápis no entanto tinha sido presente desse mesmo cunhado Sem essa coincidência naturalmente não po deríamos afirmar que na perda do lápis tomou parte a intenção de se livrar do objeto Casos semelhantes são muito comuns Perdemos um objeto depois de nos in dispor com a pessoa que o deu a nós da qual não que remos mais nos lembrar ou então quando deixamos de gostar do objeto em si e passamos a procurar um pretexto para substituílo por outro melhor Com essa mesma predisposição contra o objeto nós o deixamos cair quebramos ou destruímos Podemos considerar coincidência o fato de às vésperas de seu aniversário 3 Segundo B Dattner 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO um escolar perder arruinar ou quebrar seu material como por exemplo sua mochila ou seu relógio Quem já passou muitas vezes pelo embaraço de não conseguir encontrar algo que guardou também não se dispõe a acreditar na intencionalidade desse equívoco Não são nada raros todavia os exemplos em que as cir cunstâncias que acompanham o extravio apontam para uma tendência a querer eliminar o objeto temporária ou permanentemente Um belo exemplo disso seria o episódio que relato em seguida Eis o que me contou um homem jovem Alguns anos atrás meu casamento passou por certos mal entendidos Eu achava minha esposa fria demais e embora reconhecesse de bom grado suas excelentes qualidades vivíamos uma vida conjunta desprovida de ternura Um dia voltando de um passeio ela me deu um livro que tinha comprado porque ele talvez me in teressasse Eu a agradeci por aquele sinal de atenção prometi lêlo guardei o livro e não o encontrava mais Passaramse meses em que vez por outra eu me lem brava do livro desaparecido e tentava em vão encontrá lo Uns seis meses mais tarde minha querida mãe que não morava conosco adoeceu Minha esposa deixou nossa casa para ir cuidar da sogra O estado de minha mãe tornouse sério dando a minha esposa a oportu nidade de mostrarme o que ela tinha de melhor Uma noite volto para casa cheio de admiração e gratidão por minha esposa Vou até minha escrivaninha abro deter minada gaveta sem nenhum propósito particular mas antes como se tomado por uma certeza sonâmbula e lá 73 I OS ATOS FALHOS dentro em cima de tudo o mais encontro o livro guar dado e desaparecido fazia tanto tempo Extinto o motivo também o extravio do objeto en controu seu fim Senhoras e senhores eu poderia multiplicar essa co leção de exemplos até o infinito Mas não é o que preten do fazer aqui De todo modo em meu trabalho Psicopa tologia da Yida cotidiana publicado pela primeira vez em 1901 os senhores encontrarão farta gama de casos para o estudo dos atos falhos 4 Todos esses exemplos produ zem sempre o mesmo resultado tornam provável que atos falhos possuam um sentido e mostram aos senho res como depreender ou confirmar esse sentido a partir das circunstâncias que o acompanham Hoje serei mais conciso porque nos propusemos apenas tirar proveito do estudo desses fenômenos visando a uma preparação para a psicanálise Assim devo ainda me aprofundar em apenas dois grupos de observações o dos atos falhos acumulados e combinados e o da confirmação de nossas interpretações por eventos posteriores Os atos falhos acumulados e combinados constituem por certo o ápice de seu gênero Fosse nossa preocupa ção provar que atos falhos podem ter um sentido basta ria termos nos restringido já de início a essa categoria porque nela o sentido se revela inequívoco até mes mo à percepção embotada e se impõe ao mais crítico dos juízos As manifestações acumuladas demonstram 4 Assim como nas compilações de Maeder em francês A A Brill inglês E Jones inglês e J Starcke holandês entre outras 74 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO uma obstinação que quase nunca sucede no acaso mas combina muito bem com o que é proposital Por fim a alternância das diversas modalidades de ato falho nos mostra o que nele é mais importante e essencial não a forma ou o meio de que se vale e sim a intenção à qual ele próprio serve e que há de ser realizada por cami nhos os mais diversos Quero pois apresentar aos se nhores um caso de esquecimento repetido Ernest Jones relata que certa vez escreveu uma carta e por motivos que ele próprio desconhecia esqueceua durante vá rios dias sobre a escrivaninha Por fim decidiu postá la mas recebeua de volta do Dead letter oflice porque se esquecera de endereçála Então depois de fazêlo levoua à caixa do correio mas dessa vez não tinha se los Foi enfim obrigado a reconhecer para si mesmo sua relutância em enviar aquela carta Em outro caso combinamse o apanhar equivocado de um objeto com seu extravio Uma senhora viaja para Roma na companhia do cunhado um famoso artista O visitante é bastante festejado pelos alemães que moram na cidade e entre outras coisas ganha de presente uma antiga medalha de ouro A senhora se irrita com o fato de o cunhado não saber apreciar devidamente a beleza da peça Substituída pela irmã ela volta para casa e ao desfazer as malas descobre que sem saber como levou consigo a medalha Por carta comunica o fato de ime diato ao cunhado e anuncia que no dia seguinte envia ria de volta para Roma a peça sequestrada No dia se guinte porém o objeto se revela tão bem guardado que lhe é impossível localizálo e despachálo A senhora 75 I OS ATOS FALHOS então se dá conta do significado daquela sua distra ção o desejo de ter a medalha para si 5 Já relatei aos senhores um exemplo da combinação de esquecimento e equívoco como alguém de início se esquece de um encontro marcado e depois para ter certeza de que não tornará a esquecêlo comparece ao encontro em horário diferente do combinado Um caso análogo extraído de sua própria experiência relatou me um amigo dotado de interesses não apenas cientí ficos mas também literários Contoume ele Alguns anos atrás aceitei minha eleição para o comitê de certa associação literária porque imaginei que a sociedade poderia me ajudar a levar ao palco uma peça de minha autoria Ainda que sem grande interesse eu participava regularmente das reuniões que aconteciam toda sexta feira Alguns meses atrás recebi enfim a garantia de que a peça seria encenada no teatro de F e desde então passou a acontecer com frequência de eu me esquecer das reuniões da associação Quando li o que você escreveu sobre essas coisas senti vergonha desse meu esqueci mento e recrimineime pela vileza de agora que não preciso mais daquela gente faltar às reuniões Resolvi pois não esquecer de modo algum o compromisso na sexta seguinte Lembravame a todo momento desse propósito até o momento em que pondoo em prática lá estava eu diante da porta da sala de reunião Para meu espanto ela estava fechada a reunião já tinha aca bado É que eu tinha errado o dia já era sábado 5 Segundo R Reitler 3 OS ATOS FALHOS CONTINUAÇÃO Seria muito interessante continuar elencando ob servações desse tipo mas sigo adiante Quero dar aos senhores uma ideia daqueles casos em que nossa inter pretação precisa aguardar confirmação posterior Compreensivelmente a condição principal para es ses casos é nosso desconhecimento da situação psíquica presente ou sua inacessibilidade Então nossa interpre tação tem apenas o valor de uma hipótese à qual nós próprios não desejamos atribuir importância demasiada Mais tarde porém algum acontecimento vem nos mos trar como era justificada aquela nossa interpretação ini cial Certa feita estando eu em visita a recémcasados ouvi da jovem mulher um relato sorridente de um acon tecimento No dia seguinte ao do retorno de viagem ela fora visitar a irmã solteira a fim de como nos velhos tempos irem juntas às compras enquanto o marido cui dava dos negócios De súbito um cavalheiro do outro lado da rua chamoulhe a atenção e ela cutucou a irmã dizendo Olhe lá vai o senhor L Ela havia se esque cido de que fazia algumas semanas aquele senhor era seu marido Estremeci com esse relato mas não ousei tirar dele nenhuma conclusão Só fui me lembrar desse pequeno episódio anos mais tarde depois de aquele ca samento ter tido desfecho dos mais desafortunados A Maeder contanos a história de uma senhora que na véspera de seu casamento esqueceuse de ir experi mentar o vestido de noiva dele se lembrando apenas ao anoitecer para desespero da costureira A esse esqueci mento ele vincula o fato de pouco depois a dama ha ver se separado do marido Conheço uma senhora hoje 77 I OS ATOS FALHOS separada que na administração de seus bens com fre quência assinava documentos com o nome de solteira muitos anos antes de voltar a adotálo Sei de mulheres que em viagem de núpcias perderam a aliança de casa mento e sei também que o curso de seu matrimônio aca bou por emprestar sentido a esse acaso Termino citando ainda outro exemplo gritante mas com melhor desfecho Contase que um famoso químico alemão não se casou porque se esqueceu do horário para o qual a cerimônia estava marcada dirigindose ao laboratório em vez de rumar para a igreja Teve a prudência de limitarse a essa única tentativa e morreu solteiro em idade avançada Talvez tenha ocorrido também aos senhores que nesses exemplos os atos falhos tomam o lugar dos augú rios ou presságios da Antiguidade De fato uma parte daqueles presságios constituíase de nada mais que atos falhos quando por exemplo alguém tropeçava ou caía Outra parte no entanto exibia características de acon tecimentos objetivos não de atos subjetivos Os senho res não acreditariam se eu lhes dissesse como é difícil às vezes no exame de determinado evento decidir se ele pertence a um ou outro grupo Com frequência um ato sabe muito bem se disfarçar de experiência passiva É provável que aqueles de nós que possuem longa experiência da vida admitam para si mesmos que teriam se poupado numerosas decepções e dolorosas surpresas se tivessem tido a coragem e a resolução necessárias para interpretar como presságios como sinais de uma inten ção ainda secreta os pequenos atos falhos em suas rela ções com outras pessoas Em geral não ousamos fazê 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO lo porque isso nos pareceria voltar à superstição pelo rodeio da ciência Além disso nem todos os presságios se verificam e os senhores entenderão com base em nossas teorias que nem todos eles precisam verificarse 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO Senhoras e senhores Que os atos falhos possuem sen tido é algo que podemos estabelecer como resultado de nossos esforços até o momento e tomar como base para o prosseguimento de nossa investigação Enfatize mos mais uma vez que não afirmamos e tampouco necessitamos desta afirmação para nossos fins que todo ato falho é dotado de sentido embora eu conside re isso provável Para nós basta demonstrar a existên cia de tal sentido com relativa frequência nas diferen tes formas que assume o ato falho Nesse aspecto aliás essas diferentes formas de ato falho se comportam de maneira diversa No lapso verbal da escrita etc é pos sível que haja casos de fundo puramente psicológico nas modalidades que se assentam no esquecimento o esquecimento de nomes e intenções o extravio e as sim por diante não posso acreditar nesse fundamen to quanto à perda de objetos é muito provável que em certos casos se possa reconhecêla como não intencio nal De modo geral os equívocos que ocorrem em nos sa vida deixamse explicar apenas em parte por nossos pontos de vista Tenham em mente essa restrição quan 79 I OS ATOS FALHOS do daqui em diante partirmos do princípio de que os atos falhos são atos psíquicos e surgem da interferência mútua de duas intenções Esse é o primeiro resultado da psicanálise Da ocor rência de tais interferências e da possibilidade de elas re dundarem em semelhantes fenômenos disso a psicolo gia até agora não tinha conhecimento Nós expandimos consideravelmente o domínio dos fenômenos psíquicos e conquistamos para o terreno da psicologia manifesta ções que antes não eram de sua alçada Detenhamonos ainda um momento na afirmação de que os atos falhos são atos psíquicos Ela diz mais que nossa outra afirmação a de que eles têm um senti do Não creio ela é antes mais vaga e mais ambígua Tudo aquilo que se pode observar na vida psíquica será ocasionalmente caracterizado como fenômeno psíquico Logo a questão passará a ser se uma manifestação psí quica resulta da influência direta de fatores físicos orgâ nicos materiais caso em que seu estudo não caberá à psicologia ou se ela deriva primeiramente de outros processos psíquicos por trás dos quais tem início em al guma parte a série de influências orgânicas É esse últi mo caso que temos em vista quando caracterizamos um fenômeno como um processo psíquico razão pela qual é mais apropriado formular nossa tese dizendo que o fenô meno em questão é rico em sentidos ou possui um senti do Por sentido entendemos significado intenção ten dência e posicionamento numa série de nexos psíquicos Há uma quantidade de outros fenômenos muito próximos dos atos falhos mas aos quais essa desig 8o 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO nação já não se aplica Nós os chamamos atos casuais ou sintomáticos Também eles exibem caráter de algo imotivado insignificante desimportante e mais cla ramente do que isso de algo supérfluo Diferenciaos dos atos falhos a ausência de uma outra intenção que em conflito com eles os perturbe Por outro lado sem que nenhuma fronteira os delimite esses atos se imis cuem nos gestos e movimentos com os quais contamos para expressar emoções Pertence à categoria dos atos casuais tudo aquilo que como se brincássemos e sem nenhum propósito aparente fazemos com nossas rou pas com partes de nosso corpo com objetos ao nosso alcance assim como a ausência dessas ações e além disso as melodias que cantarolamos para nós mesmos Sustento perante os senhores a afirmação de que to dos esses fenômenos são dotados de sentido e podem ser interpretados da mesma maneira que os atos falhos como pequenos indícios de outros processos psíquicos mais importantes como atos psíquicos de plena vali dade Não pretendo no entanto me deter nessa nova extensão dos domínios abarcados pelos fenômenos psí quicos mas sim retornar aos atos falhos que permitem elaborar com clareza muito maior as indagações que importam à psicanálise Vejamos pois quais as perguntas mais interessan tes que formulamos em relação aos atos falhos e ainda não respondemos Dissemos que eles resultam da in terferência mútua de duas intenções diversas das quais uma é a que sofreu perturbação ao passo que a outra é a perturbadora As intenções que sofreram perturba 8r I OS ATOS FALHOS ção não ensejam novas perguntas mas das intenções perturbadoras queremos saber em primeiro lugar que intenções são essas capazes de perturbar outras e em segundo como elas se relacionam com as intenções por elas perturbadas Permitamme ainda uma vez tomar o lapso verbal como representante de todo o gênero e responder à se gunda pergunta antes de me dedicar à primeira No lapso verbal a intenção perturbadora pode guar dar uma relação conteudística com aquela que sofreu perturbação Nesse caso ela contém uma contradição uma retificação ou um complemento a esta última Mais interessante e obscuro porém é o caso em que a inten ção perturbadora nada tem a ver do ponto de vista do conteúdo com aquela que sofreu perturbação Comprovações da primeira relação nós podemos encontrálas sem esforço nos exemplos que já conhecemos e em outros semelhantes a eles Em quase todos os casos em que o lapso verbal expressa o contrário do pretendi do a intenção perturbadora revelase o oposto daquela que sofreu perturbação e o ato falho é a representação do conflito entre duas inclinações incompatíveis Declaro a sessão aberta mas preferiria já têla encerrado é o sen tido do lapso do presidente da Câmara dos Deputados Um jornal político acusado de corrupção defendese em um artigo que deveria culminar nas seguintes palavras Nossos leitores testemunharão em nosso favor que sem pre defendemos da maneira menos egoísta in uneigen nütigster Weise o bem de todos Contudo o redator encarregado da defesa escreve da maneira mais egoísta 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO in eigennütrigster Weise Isso significa que ele pensou consigo Preciso escrever assim mas penso de outra maneira Um deputado ao exigir que a verdade seja dita rückhaltlos sem reservas ao imperador certamente escu ta uma voz interior que assustada com a ousadia comete um lapso e transforma rückhaltlos em rückgratlos covar demente sem espinha dorsal 6 Naqueles exemplos já conhecidos dos senhores que dão a impressão de uma contração ou redução o que temos são retificações acréscimos ou prolongamentos mediante os quais uma segunda tendência se impõe ao lado da primeira Sim coisas foram reveladas Es sind da Dinge rum Vorschein gekommen mas melhor é dizê lo de uma vez indecências Schweinereien foram re veladas daí a frase Es sind Dinge rum Vorschwein gekommen Ou as pessoas capazes de compreender o as sunto se podem contar nos dedos de uma só mão mas não na verdade uma única pessoa é capaz de compreendêlo daí contar em um dedo Ou meu marido pode comer e beber o que quiser mas o senhor sabe eu não tolero que ele queira alguma coisa daí a construção Ele pode comer e beber o que eu quiser Em todos esses casos o lapso verbal decorre do próprio conteúdo da intenção que sofreu perturbação ou se liga a ele O outro tipo de relação entre as intenções que inter ferem uma na outra causa estranheza Quando a inten ção perturbadora nada tem a ver com o conteúdo da quela que sofreu perturbação de onde vem ela afinal e 6 No Parlamento alemão em novembro de 1908 I OS ATOS FALHOS a que se deve o fato de se manifestar como perturbação exatamente ali A observação e somente ela pode aqui fornecer uma resposta permite identificar que a perturbação advém de um pensamento que a pessoa em questão entretinha pouco antes do fato e que então repercute dessa maneira independentemente de já ter ou não encontrado expressão no discurso Na realidade essa perturbação deve ser caracterizada portanto como reverberação mas não necessariamente como uma re verberação de palavras já ditas Também aqui está pre sente um nexo associativo entre aquilo que perturba e aquilo que é perturbado mas não se trata de um nexo dado pelo conteúdo e sim de um nexo artificial muitas vezes produzido por caminhos bastante forçados Ouçam um exemplo simples que eu próprio obser vei Em nosso belo maciço das Dolomitas certa vez en contrei duas senhoras vienenses vestidas como turistas Acompanheias um pouco e discutíamos os prazeres mas também os incômodos daquela vida de turistas Uma das senhoras admitiu que aquele modo de passar o dia tinha lá seus desconfortos É verdade disse ela que não é muito agradável caminhar o dia inteiro sob o sol e ficar com a blusa e a camiseta encharcadas Ao dizêlo ela precisou em certo ponto superar uma pe quena hesitação Depois prosseguiu Quando porém a gente chega nach Hose e pode se trocar Não ana lisamos esse lapso verbal mas penso que os senhores poderão facilmente compreendêlo A intenção daquela senhora era proceder a uma enumeração mais comple ta e dizer blusa camiseta e Hose calcinha Todavia 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO por uma questão de decoro ela não mencionara Hose Na próxima sentença então de conteúdo independente da anterior a palavra não dita surge como distorção de nach Hause em casa de sonoridade semelhante Podemos agora nos voltar para a pergunta princi pal cuja resposta viemos adiando já há um bom tem po que intenções são essas que de maneira inabitual se manifestam como perturbações de outras Bem elas decerto são muito variadas mas nosso desejo é encon trar aí um denominador comum Se examinarmos toda uma série de exemplos com esse fim eles logo se divi dirão em três grupos distintos Ao primeiro grupo per tencem aqueles casos em que a tendência perturbadora é conhecida de quem fala e além disso foi sentida por ele anteriormente ao lapso verbal Em Vorschwein o fa lante não apenas reconhece que seu veredicto sobre os acontecimentos em questão era o de que se tratava de Schweinereien como também que era sua intenção da qual recuou depois expressálo em palavras O segundo grupo se constitui dos casos em que o falante reconhece igualmente como sua a tendência perturba dora mas não sabe que pouco antes do lapso ela se encontrava ativa nele Aceita portanto nossa inter pretação de seu lapso mas em certa medida admirase ainda dela Exemplos desse comportamento podem ser encontrados mais facilmente talvez em outros atos fa lhos que não o lapso verbal No terceiro grupo a in terpretação dada à intenção perturbadora é rechaçada com veemência pelo falante que não apenas contesta abrigála em si anteriormente ao lapso como afirma I OS ATOS FALHOS também serlhe ela inteiramente estranha Lembrem se do exemplo de aufstossen e da negativa descortês que obtive do falante ao desvendar a intenção perturbadora Sabem os senhores que ainda não logramos chegar a um acordo quanto à compreensão desses casos Eu não atribuiria importância nenhuma à negativa do propo nente daquele brinde e sustentaria imperturbavelmente a minha interpretação Já os senhores penso eu sob o efeito da resistência do orador ponderam se não seria melhor renunciar à interpretação de tais atos falhos e dálos como atos puramente fisiológicos no sentido préanalítico da formulação Posso imaginar o que os assusta Minha interpretação encerra a hipótese de que é possível ao falante manifestar intenções que ele pró prio desconhece mas que posso depreender de indícios Diante de uma hipótese tão nova e de consequências tão graves os senhores se detêm Mas estabeleçamos uma coisa se os senhores desejam aplicar de forma coeren te essa concepção dos atos falhos reforçada por tantos exemplos é necessário que se decidam em favor dessa estranha hipótese Se não puderem fazêlo terão de re nunciar à compreensão ainda nem bem adquirida Detenhamonos um pouco mais naquilo que une os três grupos naquilo que é comum aos três meca nismos dos lapsos verbais Por sorte esse elemento comum é inequívoco Nos dois primeiros grupos a tendência perturbadora é reconhecida pelo falante no primeiro acrescentase a isso o fato de essa tendência haver se anunciado pouco antes do lapso Contudo nos dois casos ela foi rechaçada O folante se decidiu a não 86 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO transformála em palavras e é então que ocorre o lapso ver bal ou seja é então que a tendência rechaçada se converte contra a vontade do falante em manifestação na medida em que modifica a expressão da intenção por ele aprovada e se mistura a ela ou toma diretamente seu lugar Esse é portanto o mecanismo do lapso verbal A partir desse meu ponto de vista posso perfeita mente conciliar o que ocorre no terceiro grupo com o mecanismo acima descrito Preciso apenas supor que os três grupos se distinguem pelo alcance maior ou menor com que é rechaçada a intenção No primeiro grupo a intenção está presente e se faz notar anteriormente à ma nifestação do falante somente depois disso ela experi menta o repúdio do qual se ressarce no lapso verbal No segundo grupo esse repúdio exibe alcance maior antes ainda da manifestação a intenção já não se faz notar É curioso que nem isso a impeça de ser parte da causa do lapso Esse comportamento porém torna mais fácil ex plicar o que se passa no terceiro grupo A esse respeito ouso externar a suposição de que no ato falho pode também se manifestar uma tendência rechaçada há mais tempo talvez há muito tempo uma tendência que não é notada e que por isso mesmo pode ser negada pelo falante Mas ponham de lado o problema do terceiro grupo ainda assim a partir da observação dos outros casos os senhores decerto poderão tirar a conclusão de que a repressão da intenção de di1er algo é condição impres cindível para que o lapso verbal ocorra Podemos agora afirmar que fizemos novos pro gressos na compreensão dos atos falhos Sabemos não I OS ATOS FALHOS apenas que eles são atos psíquicos nos quais se podem reconhecer sentido e intenção e não apenas que decor rem da interferência mútua de duas intenções distintas mas também que em sua execução uma dessas inten ções precisa experimentar certo rechaço para que me diante a perturbação da outra possa manifestarse Ela mesma precisa ter sofrido perturbação antes que possa se transformar em intenção perturbadora Com isso naturalmente ainda não adquirimos uma compreensão completa dos fenômenos a que chamamos atos falhos Percebemos de imediato que novas perguntas surgem e de modo geral pressentimos que tanto mais motivos para novas perguntas aparecerão quanto mais avançar mos em nossa compreensão Podemos perguntar por exemplo por que tudo isso não se dá de forma mais simples Se há a intenção de rechaçar certa tendência em vez de executála esse rechaço deveria ser capaz de fazer com que nada daquela tendência ganhasse expres são ou então ele poderia falhar permitindo à tendência rechaçada expressão plena Os atos falhos no entanto são soluções de compromisso para cada uma das duas intenções eles significam a um só tempo sucesso e in sucesso parciais a intenção ameaçada não é reprimida por completo nem logra a não ser em casos isolados se impor incólume Podemos supor que condições especiais haveriam de ser necessárias para o surgimento dessas soluções de interferência ou compromisso mas não logramos nem sequer imaginar de que tipo elas po deriam ser Tampouco acredito que um maior aprofun damento no estudo dos atos falhos seria capaz de nos 88 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO revelar essas relações desconhecidas Antes disso será preciso ainda investigar outras áreas obscuras da vida psíquica somente as analogias com que aí depararemos poderão nos encorajar a propor aquelas hipóteses neces sárias a uma explicação mais abrangente dos atos falhos E tem mais Também o trabalho com pequenos indí cios como o que costumamos realizar continuamente nessa área contém seus próprios perigos Há uma en fermidade psíquica a paranoia combinatória na qual a utilização desses pequenos indícios desconhece limites e naturalmente não é meu desejo postular que as con clusões construídas sobre esse fundamento são todas corretas De tais perigos só pode nos oferecer proteção a ampla base de nossas observações a repetição de im pressões semelhantes colhidas nas mais diversas áreas da vida psíquica Abandonaremos aqui portanto a análise dos atos falhos Mas quero solicitar uma coisa aos senhores guardem na memória como modelo a maneira como abordamos esses fenômenos Desse exemplo os senho res podem depreender quais as intenções de nossa psi cologia Não queremos apenas descrever e classificar os fenômenos mas compreendêlos como sinais de um jogo de forças na psique como manifestação de ten dências dotadas de metas que trabalham em conso nância ou dissonância umas com as outras Esforçamo nos em obter uma concepção dinâmica dos fenômenos psíquicos Nessa nossa concepção os fenômenos per cebidos devem ficar em segundo plano perante tendên cias apenas supostas I OS ATOS FALHOS Não vamos portanto seguir nos aprofundando nos atos falhos mas podemos ainda realizar uma incursão por esse vasto domínio na qual reencontraremos coi sas conhecidas e descobriremos algumas novidades Deixemonos guiar aí pela subdivisão nos três grupos já propostos anteriormente os lapsos verbais com suas formas aparentadas que são os lapsos da escrita da lei tura da audição e da memória este último com suas subdivisões de acordo com o objeto esquecido no mes palavras estrangeiras intenções impressões os lapsos que cometemos ao apanhar guardar ou perder objetos Os equívocos na medida em que nos interes sam vinculamse em parte ao esquecimento e em parte aos lapsos que ocorrem ao apanharmos objetos Acerca do lapso verbal embora já o tenhamos trata do em detalhes temos ainda alguma coisa a acrescentar Ligamse a ele fenômenos afetivos menores que são de algum interesse Ninguém admite de bom grado têlo cometido além disso com frequência não ouvimos nossos próprios lapsos mas jamais deixamos de ouvir aqueles cometidos por outra pessoa Em certo sentido o lapso verbal é também contagioso não é fácil falar sobre ele sem também incorrer num lapso Suas formas mais insignificantes aquelas que nada têm de importan te a revelar sobre processos psíquicos ocultos deixam entrever com facilidade o que as motivou Quando por exemplo em decorrência de uma perturbação que aí se manifesta por um motivo qualquer uma pessoa pro nuncia como curta uma vogal longa ela estenderá al guma vogal curta subsequente cometendo assim novo 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO lapso verbal para compensar o anterior O mesmo acon tece quando ela pronuncia um ditongo de forma incor reta e negligente isto é um eu ou oi como ei o que fará a seguir será tentar reparar o erro e transformar em eu ou oi o próximo ei Papel decisivo parece desempenhar aí a consideração pelo interlocutor que não deve acre ditar que quem fala é desleixado no trato com a língua materna A segunda distorção compensadora tem jus tamente por propósito chamar a atenção do interlocutor para a primeira assegurandolhe assim que ela tam pouco escapou àquele que fala Os casos mais frequen tes simples e insignificantes de lapsos verbais consistem em contrações de palavras e antecipações sonoras que se manifestam em partes inconspícuas do discurso Em uma oração mais longa por exemplo o lapso verbal pode se dar pela antecipação da última palavra que se tencionava dizer Isso causa a impressão de certa im paciência para terminar a oração e de modo geral dá testemunho de alguma resistência a enunciar a oração ou mesmo o discurso em si Deparamos assim com casos limítrofes nos quais se confundem as diferenças entre a concepção psicanalítica do lapso verbal e o en tendimento que tem dele a fisiologia comum Nesses ca sos supomos a existência de uma tendência a perturbar aquela que é a intenção do discurso essa tendência no entanto anuncia apenas sua presença e não o que ela própria pretende A perturbação que ela suscita segue Os exemplos são da fonética alemã em que os ditongos eu e oi têm a mesma pronúncia ói e ei é pronunciado ai I OS ATOS FALHOS então certas influências sonoras e a atração exercida por associações podendo ser compreendida como algo que desvia a atenção daquela que era a intenção original da fala Contudo nem essa perturbação da atenção nem a propensão associativa agora em ação estão na essên cia do processo Esta permanece sendo a indicação da existência de uma intenção perturbadora do propósito do discurso mas dessa vez sua natureza não pode ser depreendida dos efeitos por ela produzidos ao contrário do que acontece em todos os casos mais pronunciados do lapso verbal O lapso de escrita de que passo a tratar agora assemelhase em tal medida ao verbal que dele não nos cabe esperar obter novas perspectivas Mas talvez ele tenha ainda uma pequena contribuição a dar Os pe quenos equívocos tão comuns que cometemos ao es crever as contrações as antecipações de palavras so bretudo as últimas de uma oração apontam também eles para uma relutância geral em escrever e para uma impaciência desejosa de terminar logo a frase efeitos mais pronunciados do lapso da escrita permitem identi ficar a natureza e a intenção da tendência perturbadora Quando encontramos um lapso desse tipo numa car ta normalmente o que sabemos é que nem tudo esta va em ordem com quem a redigiu o que no entanto se passava com essa pessoa nem sempre conseguimos estabelecer O lapso de escrita é com frequência tão pouco percebido por quem o cometeu como o verbal O que chama a atenção é o seguinte existem pessoas que têm por hábito reler toda carta que escrevem antes 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO de enviála outros não têm esse costume mas quando excepcionalmente o fazem sempre têm a oportunidade de encontrar e corrigir algum lapso evidente Como se explica isso É como se essas pessoas soubessem que cometeram um lapso ao escrever a carta Devemos real mente acreditar nisso Ao significado prático do lapso de escrita vinculase um problema interessante Os senhores talvez se lem brem do caso de um assassino H hábil na obtenção de culturas de agentes patogênicos altamente perigosos que conseguia de institutos científicos fazendose pas sar por bacteriologista e depois as utilizava para des sa maneira bastante moderna livrarse de pessoas que lhe eram próximas Pois esse mesmo homem certa vez se queixou por escrito à direção de um desses institu tos da ineficácia das culturas que lhe haviam sido en viadas mas cometeu um lapso ao fazêlo em lugar de em minhas experiências com camundongos Miiuse ou porquinhosdaíndia Meerschweinchen liase cla ramente em minhas experiências com seres humanos Menschen O lapso chamou a atenção dos médicos do instituto tanto quanto sei porém eles não tiraram daí nenhuma conclusão O que pensam os senhores Não deveriam ter os médicos tomado esse lapso da es crita como uma confissão e dado início assim a uma investigação mediante a qual teriam interrompido a tempo a obra do assassino Nesse caso o desconheci mento de nossa concepção dos atos falhos não foi causa de uma negligência de importante significado prático Bem creio que um tal lapso por certo termeia pare 93 I OS ATOS FALHOS ciclo deveras suspeito mas uma objeção de peso impe de seu emprego como confissão A questão não é tão simples assim O lapso da escrita com certeza constitui um indício mas em si ele não teria bastado para pôr em marcha uma investigação É certo que ele revela es tar o homem imbuído do pensamento de infectar seres humanos mas não é possível determinar se esse pen samento possui o valor de um claro propósito maléfico ou o de uma fantasia irrelevante na prática É até pos sível que aquele que comete semelhante lapso apresente a melhor das justificativas subjetivas para negar tal fan tasia e repudiála como algo totalmente estranho a sua pessoa Quando mais adiante abordarmos a diferen ça entre as realidades psíquica e material os senhores terão oportunidade de compreender ainda melhor tais possibilidades De novo tratase aqui de um caso em que um ato falho adquire posteriormente um significa do inesperado No lapso de leitura encontramos uma situação psí quica que claramente difere daquela verificada nos lap sos da fala e da escrita Nele uma das duas tendências concorrentes é substituída por um estímulo sensorial e se mostra talvez por isso mesmo menos resistente Aquilo que lemos não é produto de nossa própria vida psíquica como é o que tencionamos escrever A maio ria dos casos de lapsos de leitura consiste portanto em uma substituição Substituise a palavra a ser lida por outra sem que isso implique necessariamente uma re lação de conteúdo entre o texto e o resultado do lap so que em geral se assenta em alguma semelhança de 94 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO palavras O exemplo de Lichtenberg é o melhor desse grupo Agamemnon em vez de angenommen A fim de saber qual a tendência perturbadora aquela que provo cou o lapso de leitura podese aqui pôr de lado o texto que foi lido equivocadamente e dar início à investigação analítica com o auxílio de duas perguntas que ideia é a mais próxima do efeito produzido pelo lapso e em que situação ele ocorreu Por vezes apenas o conhecimen to desta última já basta para o esclarecimento do lapso como por exemplo quando alguém premido por cer tas necessidades perambula por uma cidade que lhe é desconhecida e em uma grande placa situada à altura de um primeiro andar lê a palavra Klosetthaus toale te Restalhe ainda apenas o tempo necessário para se admirar de a placa ter sido afixada em local tão alto antes que ele se aperceba de que a rigor ela diz Kor setthaus casa de espartilhos Em outros casos justa mente esse lapso de leitura que independe do conteúdo do texto demanda análise mais minuciosa à qual não se pode proceder sem experiência prévia na técnica psi canalítica e sem confiança nela Na maioria dos casos porém o esclarecimento de um lapso de leitura é tarefa mais fácil A palavra substituta como no exemplo de Agamenon logo revela o pensamento que desencadeou a perturbação Nestes tempos de guerra por exemplo onde quer que deparemos com palavras semelhantes é bastante comum lermos em seu lugar nomes de cidades comandantes e expressões militares que ressoam a todo momento ao nosso redor Aquilo que nos interessa e preocupa toma o lugar do que é desconhecido e ainda 95 I OS ATOS FALHOS desinteressante As imagens residuais dos pensamentos turvam toda nova percepção Tampouco faltam aos casos de lapso de leitura aque les de outro tipo em que o próprio texto lido desperta a tendência perturbadora mediante a qual então ele é em geral transformado em seu oposto Tendo lido algo indesejado a pessoa se convence por meio da análise de que o responsável pela alteração do que foi lido é um desejo intenso de rejeitálo Nos casos mais frequentes mencionados primeira mente faltam dois fatores aos quais atribuímos papel importante no mecanismo dos atos falhos o conflito entre duas tendências e o rechaço de uma delas que se ressarce disso mediante o efeito do ato falho Não se trata de dizer que no lapso de leitura encontramos algo que contrarie esses fatores mas a premência do pensa mento que conduz ao lapso é bastante mais notória que o rechaço que esse conteúdo possa ter sofrido anterior mente Esses dois fatores aliás são os que se nos apre sentam mais palpáveis nas diferentes situações em que ocorre o ato falho caracterizado pelo esquecimento O esquecimento de uma intenção tem explicação evi dente sua interpretação já dissemos não é contestada nem sequer pelos leigos A tendência que perturba a realização da intenção é sempre uma intenção contrária um não querer acerca do qual só nos resta saber por que não se expressa de outra maneira ou de modo menos velado A presença contudo dessa vontade contrária é indubitável Por vezes é possível adivinhar algo dos motivos que a obrigam a se ocultar mas às escondidas e 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO por intermédio do ato falho ela sempre alcança seu pro pósito ao passo que se externasse sua franca oposição com certeza seria rechaçada Quando entre intenção e execução imiscuise uma alteração importante da situa ção psíquica em consequência da qual já não caberia a realização daquela intenção o esquecimento desta foge ao âmbito do ato falho Nesse caso não nos admiramos mas antes compreendemos que teria sido supérfluo lem brar a intenção que foi temporária ou permanentemente apagada O esquecimento de uma intenção só pode ser chamado de ato falho quando não podemos acreditar que ela foi interrompida dessa forma De modo geral os casos de esquecimento de intenção são tão uniformes e transparentes que por isso mesmo não possuem interesse para nossa investigação Há dois pontos no entanto nos quais o estudo desse ato falho nos ensina algo de novo Dissemos que o esquecimento ou seja a não realização de uma intenção aponta para uma vontade contrária que lhe é hostil E assim é de fato mas de acordo com o que revelam nossas investigações essa vontade contrária pode ser de duas naturezas distintas ela pode ser direta ou indireta O significado desta últi ma modalidade se deixa explicar melhor por intermédio de um ou dois exemplos Quando diante de um terceiro um benfeitor se esquece de dizer uma palavra em favor de seu protegido isso pode se dar na verdade porque o referido benfeitor não está tão interessado em seu prote gido e portanto não sente grande vontade de interceder por ele De todo modo assim interpretará o protegido o esquecimento de seu benfeitor A questão contudo pode 97 I OS ATOS FALHOS ser mais complicada A vontade contrária à realização da intenção por parte do benfeitor pode ter outra origem e outro objeto Não é necessário que ela esteja relacionada a seu protegido ela pode antes estar voltada contra a pessoa junto à qual ele deveria interceder Os senhores veem portanto as dúvidas que também aqui se con trapõem à aplicação prática de nossas interpretações A despeito da interpretação correta do esquecimento há o risco de que o protegido nutra desconfiança demasiada e acabe por cometer grave injustiça contra seu benfeitor Outro exemplo é o de alguém que se esquece de um en contro ao qual havia prometido e pretendia comparecer A explicação habitual para tanto será a aversão pura e simples ao encontro com a pessoa em questão A análise todavia poderá comprovar que a tendência perturbadora não está relacionada à pessoa em si e sim ao local onde o encontro foi marcado se em razão de alguma lembrança dolorosa a ele vinculada a pessoa deseja evitálo Ou se alguém se esquece de postar uma carta a tendência contrária à postagem pode é certo assentar em seu con teúdo mas não se pode excluir a possibilidade de que a carta em si seja inofensiva tendo sucumbido àquela ten dência contrária apenas porque algo nela lembra outra carta escrita no passado a qual por sua vez oferece à vontade contrária um alvo direto de ataque Podese di zer então que a vontade contrária transferiuse da carta anterior em relação à qual ela se justificava para a atual com a qual ela nada tem a ver Veem pois os senhores que é necessário exercer moderação e cautela no emprego de nossas justificadas interpretações coisas 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO que se equivalem do ponto de vista psicológico podem na prática possuir significados diversos Fenômenos como esses decerto lhes parecerão bas tante incomuns Talvez os senhores tendam a supor nes sa vontade contrária indireta um processo que já se pode caracterizar como patológico Posso lhes garantir no entanto que ele também ocorre no âmbito da norma e da saúde De resto não me entendam mal De ma neira nenhuma desejo eu próprio admitir a não confia bilidade de nossas interpretações analíticas A referida pluralidade de significados presente no esquecimento de uma intenção persiste apenas enquanto não proce demos a uma análise do caso e o interpretamos apenas com base em nossos pressupostos gerais Uma vez em preendida a análise da pessoa em questão sempre des cobrimos com suficiente certeza se o esquecimento se deu por uma vontade contrária direta ou se decorreu de algum outro motivo Trato agora do segundo ponto que tem algo a nos ensinar Quando em uma grande quantidade de ca sos encontramos confirmação de que o esquecimen to de uma intenção remonta a uma vontade contrária criamos coragem para estender essa explicação a uma série de outros casos médicos que a pessoa analisada não confirma e sim nega a vontade contrária por nós desvendada Tomem como exemplo disso aqueles casos frequentes em que uma pessoa se esquece de devol ver livros emprestados ou de pagar contas ou dívidas contraídas Chegamos mesmo a acusála de pretender ficar com os livros ou de não querer pagar a dívida ao 99 I OS ATOS FALHOS passo que ela embora negue essa intenção não logra encontrar outra explicação para seu comportamento Prosseguimos então dizendo que ela possui sim a in tenção apenas não sabe disso e que nos basta o fato de a intenção se haver denunciado por meio do esqueci mento Todavia a pessoa em questão pode repetir que simplesmente se esqueceu Os senhores percebem aí uma situação idêntica àquela em que já nos vimos antes Se desejamos levar adiante de forma coerente nossas interpretações dos atos falhos que demonstramos ser tão múltiplas e justificadas é inevitável que avancemos rumo à suposição de que o ser humano abriga tendên cias capazes de entrar em ação sem que ele saiba da existência delas Ao admitilo contudo estaremos em contradição com todas as concepções predominantes tanto na vida como na psicologia O esquecimento de nomes próprios e de nomes estran geiros assim como o de palavras estrangeiras também se deixa remontar a uma intenção contrária a qual di reta ou indiretamente se volta contra o nome em pauta Já apresentei aos senhores vários exemplos de tal rejei ção direta A causação indireta no entanto é bastan te comum nesse caso e sua constatação demanda em geral análise cuidadosa Assim por exemplo nestes tempos de guerra que nos obrigaram a abrir mão de tantas de nossas simpatias de antes também a capacida de de lembrar nomes próprios foi bastante prejudicada em consequência das mais singulares associações Há pouco tempo aconteceume de eu não conseguir repro duzir o nome da inofensiva cidade morávia de Bisenz IOO da análise resultou que a culpa disso não era nenhuma hostilidade direta e sim a lembrança sonora do nome do Palazzo Bisenzì em Orvieto onde tantas vezes me hospedei de bom grado Como motivação para essa tendência contrária à lembrança de um nome apresentase aqui um princípio que mais adiante vai nos revelar toda a sua grandiosa importância como causa de sintomas neuróticos a aversão da memória a se lembrar de coisas vinculadas a sentimentos de desprazer sentimentos estes que a lembrança poderia reavivar Essa intenção de evitar o desprazer provocado pela memória ou por outros atos psíquicos essa fuga psíquica do desprazer nós podemos identificála como motivação última e eficaz não apenas do esquecimento de nomes mas também de muitos outros atos falsos como por exemplo as omissões e os equívocos Contudo o esquecimento de nomes parece particularmente favorecido por fatores psicofisiológicos razão pela qual ele se verifica também em casos nos quais não se consegue confirmar a interferência de um elemento de desprazer Mediante investigação analítica da pessoa que tende a esquecer nomes os senhores poderão constatar que os nomes não lhe fogem apenas porque ela própria não gosta de seus portadores ou porque lembram fatos desagradáveis mas também porque para ela o nome esquecido pertence a outro rol de associações com o qual guarda relações mais íntimas O nome é pois como que retido nesse outro rol e o acesso a ele é negado às demais associações momentaneamente ativadas Se os senhores se lembram dos artifícios da I OS ATOS FALHOS técnica mnemônica poderão constatar com alguma estranheza que as mesmas conexões estabelecidas deli beradamente para proteger um nome do esquecimento fazem também com que ele seja esquecido O exemplo mais óbvio disso são aqueles nomes próprios que como é compreensível possuem valores psíquicos bastante di ferentes para pessoas diferentes Tomem como exemplo um nome como Teodoro Para alguns dos senhores ele não possui nenhum significado especial para outros será o nome do pai de um irmão amigo ou o próprio nome A experiência analítica mostrará que no primei ro caso não há risco de esquecimento o portador do nome é um estranho no segundo caso as pessoas ten derão sempre a negar a um estranho o nome que parece reservado a alguém de sua íntima relação Suponham agora que a esse entrave associativo possa vir a se juntar a ação do princípio do desprazer e além disso um me canismo indireto e os senhores poderão então ter uma ideia correta da complexidade de que se reveste a causa do esquecimento temporário de um nome Uma análise apropriada no entanto descortinará por completo aos senhores todas essas complicações O esquecimento de impressões e experiências vividas mostra de modo ainda mais nítido e exclusivo que o esquecimento de nomes a atuação dessa tendência a afastar da memória o que é desagradável Naturalmen te esse tipo de esquecimento não pertence em toda a sua abrangência à categoria dos atos falhos ele só será um ato falho na medida em que avaliado com base em nossa experiência habitual resultar conspícuo ou in 102 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO justificado ou seja quando o esquecimento tiver por objeto por exemplo impressões demasiado recentes ou importantes ou então constitua uma ausência capaz de produzir uma lacuna em uma lembrança de resto com pleta Como e por que somos de modo geral capazes de nos esquecer inclusive de experiências que por cer to nos deixaram impressão profunda como aquelas da primeira infância esse é outro problema em que a de fesa contra impulsos desprazerosos embora desempe nhe algum papel nem de longe basta como explicação Que impressões desagradáveis tendem a ser esquecidas é fato que não se pode negar Psicólogos diversos já o apontaram e o grande Darwin ficou tão impressiona do com isso que adotou como regra de ouro registrar com especial cuidado observações que pareciam desfa voráveis a sua teoria porque estava convencido de que justamente essas não queriam se fixar em sua memória Quem ouve falar pela primeira vez nesse princípio da defesa contra o desprazer por meio do esquecimen to inclinase a objetar que em sua experiência preci samente o penoso é difícil de esquecer na medida em que contra a vontade da pessoa ele sempre volta para atormentála como acontece por exemplo com a lem brança de insultos e humilhações Também esse fato é correto mas a objeção não se aplica É importante que se comece logo a levar em consideração que a vida psíquica é praça e campo de batalha para tendências opostas ou expresso em termos não dinâmicos ela se compõe de contradições e pares de oposições Compro var a presença de determinada tendência não significa IOJ I OS ATOS FALHOS excluir outra oposta a ela há lugar suficiente para am bas Tudo depende de como essas oposições se posicio nam umas em relação às outras que efeitos decorrem de uma e de outra A perda e o extravio de objetos são fenômenos de par ticular interesse em razão de sua multiplicidade de signi ficados isto é da grande variedade de tendências a que esses atos falhos podem estar a serviço Comum a todos os casos é o desejo de perder o objeto diversos porém são a razão e o propósito Perdemos uma coisa quando ela se danificou quando temos a intenção de substituí la por outra melhor quando deixamos de gostar dela quando proveio de alguém com quem nossas relações se deterioraram ou quando foi adquirida em circunstân cias que não desejamos mais recordar Esquecer alguma coisa em algum lugar danificála ou quebrála podem também servir a esse mesmo propósito Na esfera da vida social a experiência mostraria que filhos indeseja dos ou ilegítimos são muito mais frágeis do que aqueles concebidos legitimamente Esse resultado não é produ zido pela técnica grosseira das chamadas fazedoras de anjos alguma negligência no cuidado com a criança é mais do que suficiente para alcançálo Com a preser vação das coisas pode suceder o mesmo que ocorre no cuidado com as crianças Tradução literal de Engelmacherinnen mas em alemão a palavra designa as mulheres que intencionalmente descuram das crianças bastardas que são pagas para cuidar a fim de embolsar o dinheiro e não apenas as abortadeiras como em português 104 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO A perda de objetos pode ocorrer também sem que o valor do objeto em si tenha diminuído em nada Isso é o que acontece quando se tem a intenção de sacrifi car uma coisa ao destino com o propósito de evitar uma perda que se teme A análise nos diz que semelhantes esconjurações do destino ainda são bastante comuns en tre nós Por isso nossa perda é com frequência sacrifí cio voluntário Da mesma forma essa perda pode tam bém servir a um propósito desafiador ou autopunitivo Em resumo é impossível abarcar as motivações mais remotas que atuam nessa nossa tendência a nos livrar mos de um objeto por intermédio da perda A ação errada assim como outros equívocos é com frequência empregada como um meio de realização de desejos que não devemos nos conceder A intenção mascarase de acaso feliz Assim é por exemplo quan do como sucedeu a um de nossos amigos alguém cla ramente a contragosto precisa tomar o trem para visitar um local fora da cidade e ao fazer a necessária baldea ção embarca erradamente num trem que o conduz de volta à cidade Ou quando em viagem desejosos de nos deter um pouco mais numa estação intermediária mas impossibilitados de fazêlo em virtude de certas obrigações ignoramos ou perdemos determinada cone xão o que acaba por obrigarnos à desejada interrupção da viagem Ou ainda como aconteceu a um paciente ao qual eu proibira de telefonar para sua amada mas que por engano perdido em pensamentos solici tou o número errado ao telefonar para mim e se viu de súbito ao telefone com a amada Um belo exemplo de 105 I OS ATOS FALHOS ação equivocada de importante consequência prática também nos traz o seguinte relato de um engenheiro a explicar a origem de um dano material Há algum tempo no laboratório da faculdade tra balhei com vários colegas em uma série de complicados experimentos de elasticidade um trabalho que havía mos assumido de livre e espontânea vontade mas que começou a demandar mais tempo do que esperávamos Um dia estava eu a caminho do laboratório com meu colega F que comentou como lhe desagradava perder tanto tempo justamente naquele dia no qual tinha tan tas outras coisas para fazer em casa Eu só pude concor dar com sua queixa e em alusão a um acontecimento da semana anterior complementei meio brincando To mara que a máquina pife de novo aí interrompemos o trabalho e vamos embora mais cedo De acordo com nossa divisão do trabalho o colega F ficou encarrega do de comandar a válvula de escape da prensa ou seja de mediante a abertura cuidadosa da válvula fazer escoar lentamente o fluido hidráulico desde o acumu lador até o cilindro da prensa hidráulica Ao condutor do experimento postado junto do manômetro cabia avisar quando a pressão correta fosse atingida ocasião em que alto e bom som ele diria Pare Dado esse comando porém F pôsse a girar a válvula com toda a força para a esquerda todas as válvulas sem ex ceção fecham para a direita Com isso a pressão total do acumulador passou de repente a agir sobre a prensa algo que os canos não estavam preparados para supor tar de modo que uma junção estourou de imediato 106 4 OS ATOS FALHOS CONCLUSÃO um defeito da máquina absolutamente inofensivo mas que nos obrigou a dar o trabalho por encerrado e ir para casa Característico desse episódio é no entanto que um tempo depois quando conversávamos sobre o ocor rido meu amigo F não se lembrava de jeito nenhum do comentário que eu havia feito do qual eu me lembrava com absoluta segurança Podese depreender desse relato que nem sempre é o inofensivo acaso que torna as mãos dos serviçais inimigos tão perigosos dos pertences que seus patrões mantêm em casa Mas os senhores podem também se perguntar se o acaso é sempre o responsável mesmo quando provocamos danos a nós mesmos e pomos em risco nossa integridade São sugestões cujo valor opor tunamente os senhores talvez possam avaliar à luz da análise de suas próprias observações Caros ouvintes Isso está longe de ser tudo que ha veria a dizer sobre atos falhos Ainda há muito a pes quisar e discutir Mas me dou por satisfeito se com as considerações a esse respeito expostas até o momento provoquei algum abalo nas concepções que os senhores abrigam e suscitei certa disposição para aceitar novas De resto resignome a deixálos diante de um assunto não esclarecido A partir do estudo dos atos falhos não podemos provar todas as nossas teses e tampouco de pendemos única e exclusivamente desse material Para nosso propósito o grande valor dos atos falhos reside no fato de serem eles fenômenos bastante frequentes fa cilmente observáveis em nós mesmos e cuja ocorrência não pressupõe de modo algum que estejamos doentes IIYJ I OS ATOS FALHOS Quero apenas abordar ainda uma das perguntas dos se nhores que permaneceu sem resposta se como vimos em tantos exemplos as pessoas chegam tão próximas da compreensão dos atos falhos se com frequência se comportam como se pudessem desvendar seu sentido como é possível que de modo geral elas os caracteri zem como casuais desprovidos de sentido e importân cia e ademais resistam com tanta veemência ao escla recimento psicanalítico desses mesmos fenômenos Os senhores têm razão Isso de fato salta aos olhos e demanda explicação Contudo em vez de lhes dar essa explicação vou conduzilos pouco a pouco às relações a partir das quais ela haverá de se impor aos senhores sem o meu auxílio 108 SEGUNDA PARTE OS SONHOS 11 OS SONHOS S DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES Senhoras e senhores Certo dia descobriuse que os sintomas que afligem determinados doentes dos ner vos possuem um sentido1 Com base nisso criouse o método de tratamento psicanalítico Nesse tratamento aconteceu de os pacientes revelarem seus sonhos em vez de apenas relatarem seus sintomas Assim nasceu a con jectura de que também esses sonhos têm um sentido Não vamos porém percorrer esse caminho históri co e sim a trilha inversa Vamos demonstrar o sentido dos sonhos como preparação para o estudo das neuro ses Essa inversão se justifica uma vez que o estudo do sonho não é apenas a melhor preparação para o das neu roses o próprio sonho é também um sintoma neurótico e aliás um sintoma que tem para nós a inestimável van tagem de se apresentar em todas as pessoas saudáveis De fato se todas as pessoas fossem saudáveis e apenas sonhassem nós poderíamos extrair de seus sonhos qua se todas as descobertas que a investigação das neuroses nos proporcionou Portanto os sonhos se tornam objeto da investi gação psicanalítica De novo um fenômeno comum e subestimado aparentemente sem nenhum valor prático I JosefBreuer nos anos I88o2 Cf a esse respeito as conferências que proferi nos Estados Unidos em I909 Cinco lições de psicaná lise e Contribuição à lzistória do movimento psicanalítico I 9 I 4 110 5 DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES como os atos falhos com os quais tem em comum o fato de ocorrer em pessoas saudáveis De resto po rém as condições para nosso trabalho são mais desfa voráveis nesse caso Os atos falhos foram apenas negli genciados pela ciência que pouco se preocupou com eles ocuparse deles todavia ao menos não constituía nenhuma vergonha Admitiase que podia haver coisa mais importante mas talvez seu estudo produzisse al gum resultado Ocuparse dos sonhos por outro lado além de pouco prático e supérfluo é verdadeiramente ignominioso seu estudo atrai o ódio ao que não é cien tífico desperta a suspeita de uma tendência pessoal ao misticismo Um médico dedicarse aos sonhos quando mesmo na neuropatologia e na psiquiatria há tanta coisa mais séria a investigar tumores do tamanho de uma maçã a comprimir o órgão responsável pela psique he morragias inflamações crônicas cuja ocorrência permi te demonstrar alterações histológicas com o auxílio do microscópio Não o sonho é demasiado insignificante um objeto indigno de investigação Além disso sua própria natureza desafia todas as exigências da investigação precisa Nem sequer do pró prio objeto se tem segurança quando se trata de estu dar os sonhos Uma ideia delirante por exemplo se nos apresenta com clareza e contornos definidos Eu sou o imperador da China diz em voz alta o doente Mas e no sonho Na maioria dos casos contálo já é impossível Quando alguém relata um sonho tem essa pessoa uma garantia de que o está relatando de forma correta Não estará antes modificandoo ao narrálo inventan 111 11 OS SONHOS do alguma coisa a mais compelido pela imprecisão da lembrança Da maioria dos sonhos nem somos capazes de nos lembrar uma vez que à exceção de pequenos fragmentos esquecemos o que sonhamos Haveremos pois de basear uma psicologia científica ou um método de tratamento de pessoas enfermas na interpretação de semelhante material É lícito que certo exagero nesse juízo desperte em nós suspeição As objeções ao sonho como objeto de pesquisa claramente vão longe demais Já deparamos com o argumento da insignificância ao tratar dos atos falhos Dissemos a nós mesmos então que coisas im portantes também podem se manifestar sob a forma de pequenos indícios No que tange à imprecisão do so nho essa é uma característica como qualquer outra não se pode prescrever o caráter que terão as coisas De resto há também sonhos que são claros e precisos E há outros objetos da investigação psiquiátrica que so frem desse mesmo caráter impreciso como ocorre por exemplo com muitos casos de imagens obsessivas de que se ocuparam respeitados e conceituados psiquia tras Quero lembrar aqui o último caso com que depa rei em minha atividade médica O doente se apresentou com as seguintes palavras Tenho uma sensação que é como se tivesse machucado ou desejado machucar um ser vivo uma criança Não um cachorro talvez Como se o tivesse jogado de uma ponte ou coisa pa recida Podemos remediar a dificuldade da lembrança incerta do sonho estabelecendo que como sonho há de valer precisamente aquilo que o sonhador conta inde II2 S DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES pendentemente do que ele possa ter esquecido ou mo dificado em sua memória E por fim não se pode nem mesmo afirmar que o sonho de modo geral é coisa desimportante Por experiência própria sabemos que o estado de espírito em que despertamos de um sonho pode se estender pelo restante do dia médicos já obser varam casos em que uma doença mental teve um sonho como ponto de partida retendo uma ideia delirante ori ginária desse mesmo sonho falase de personagens his tóricas que extraíram de um sonho o estímulo para fei tos importantes Assim sendo perguntamonos qual a origem do desdém dos círculos científicos pelo sonho Eu acredito que ele é uma reação à tendência a superestimálo verificada em épocas passadas É sabido que a reconstrução do passado não é tarefa fácil mas podemos afirmar com segurança permitamme o gracejo que nossos antepassados há três mil anos ou mais já sonhavam como nós sonhamos Tanto quanto sabemos os antigos em sua totalidade davam grande importância aos sonhos aos quais atribuíam também aplicação prática Extraíam deles sinais referentes ao futuro e neles buscavam augúrios Para os gregos e ou tros povos orientais empreender uma campanha militar sem um intérprete de sonhos pode por vezes ter pare cido tão impossível quanto hoje em dia sem aviões de reconhecimento Ao realizar suas conquistas Alexan dre o Grande levava em seu séquito os mais famosos intérpretes de sonhos A cidade de Tiro outrora ainda situada em uma ilha opôs ao rei resistência tão violenta que ele chegou a pensar em desistir de sitiála Então IIJ 11 OS SONHOS uma noite sonhou com um sátiro que dançava como em triunfo e ao relatar esse sonho a seus intérpretes foi informado de que ele anunciava sua vitória sobre a cidade Ordenou pois o ataque e assim ocupou Tiro Etruscos e romanos valiamse de outros métodos para sondar o futuro mas a interpretação dos sonhos foi cultivada e tida em alta conta ao longo de toda a épo ca helenísticaromana Da literatura que se ocupou do assunto restounos pelo menos a obra principal o livro de Artemidoro de Daldis datado como contemporâneo do imperador Adriano Como foi que a arte da inter pretação dos sonhos entrou em decadência e o próprio sonho caiu em descrédito não sei dizer aos senhores Nisso o Iluminismo não há de ter desempenhado gran de papel uma vez que a obscura Idade Média preservou fielmente coisas muito mais absurdas que a interpre tação dos sonhos dos antigos O fato é que o interes se no sonho degenerou pouco a pouco em superstição firmandose apenas entre os incultos O derradeiro abuso cometido contra a interpretação dos sonhos já em nossos dias busca extrair deles os números predes tinados a serem sorteados na loteria Em contrapartida a ciência exata dos dias atuais ocupouse repetidas ve zes do sonho sempre e apenas porém com o intuito de aplicar a ele suas teorias fisiológicas Para os médicos o sonho naturalmente não era um ato psíquico e sim a manifestação na vida psíquica de estímulos somáti cos Binz em 1878 declarou que o sonho é um pro cesso somático sempre inútil e na maioria dos casos francamente doentio acima do qual a alma do mundo 114 5 DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES e a imortalidade se erguem tão sublimes como o azul do éter sobre uma superfície arenosa recoberta de ervas daninhas no mais profundo dos vales Maury compa ra o sonho aos espasmos desordenados da dança de são Guido em contraposição aos movimentos coordenados do ser humano normal uma antiga comparação faz um paralelo entre o conteúdo do sonho e as notas que pro duziriam os dez dedos de uma pessoa não versada em música deslizando pelas teclas do piano Interpretar significa encontrar um sentido oculto mas não se pode falar nisso se concebemos de tal forma a operação do sonho Examinem os senhores como o descrevem Wundt Jodl e outros filósofos mais recen tes sua descrição se contenta em enumerar as discre pâncias entre a vida onírica e o pensamento em estado de vigília o que fazem com a intenção de diminuir o sonho destacando a desintegração das associações a supressão da crítica a exclusão de todo saber e outros indícios de um desempenho inferior A única contri buição valiosa para o conhecimento dos sonhos prove niente das ciências exatas relacionase à influência que estímulos corporais atuantes durante o sono exercem sobre o conteúdo onírico Temos dois grossos volu mes de um recémfalecido autor norueguês J Mour ly Vold ambos voltados à investigação experimental do sonho traduzidos para o alemão em 1910 e 1912 que se dedicam quase exclusivamente às consequências das mudanças de posição dos membros São louvados como modelos da investigação exata do sonho Podem os senhores imaginar o que a ciência exata diria se des n 11 OS SONHOS cobrisse que pretendemos tentar encontrar o sentido dos sonhos Talvez ela até já o tenha dito Mas não vamos nos deixar intimidar Se os atos falhos puderam ter um sentido também os sonhos podem ter e em muitos e muitos casos os atos falhos possuem um sentido que escapou à investigação exata Adotemos pois o juízo preliminar dos antigos e do povo e sigamos os passos dos velhos intérpretes de sonhos Antes de tudo precisamos nos orientar em nossa ta refa passar em revista o domínio dos sonhos O que é um sonho afinal É difícil dizêlo em uma única fra se Não procuraremos dar definição nenhuma se basta apontar para uma matéria já conhecida de todos De vemos no entanto ressaltar aquilo que é a essência do sonho Onde encontrála A diversidade é gigantesca no interior do quadro que abrange nossa área de estudo diversidade em todas as direções Essencial por certo será aquilo que pudermos apontar como comum a todos os sonhos A primeira coisa que todos os sonhos têm em co mum naturalmente é o fato de dormirmos quando so nhamos Sonhar é evidentemente nossa vida psíquica durante o sono uma vida psíquica que possui certas semelhanças com a do estado de vigília mas que em razão de grandes diferenças dessa também se aparta Esta era já a definição de Aristóteles Talvez sonho e sono guardem relação ainda mais próxima Um sonho pode nos acordar e é comum termos um sonho quando acordamos espontaneamente ou quando somos arran cados do sono Assim o sonho parece ser um estado n6 S DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES intermediário entre o sono e a vigília Isso tudo nos re mete ao sono Mas o que é o sono Temos aí um problema fisiológico ou biológico ain da bastante controvertido Não temos nenhum poder de decisão nessa matéria mas acho que podemos tentar uma caracterização psicológica do sono O sono é um estado em que nada quero saber do mundo exterior pelo qual já não tenho nenhum interesse Tratase de um estado que adentro na medida em que me afasto desse mundo exterior e me fecho a seus estímulos Além disso ador meço também quando estou cansado desse mundo Ao adormecer portanto digo ao mundo exterior Deixe me em paz quero dormir A criança faz o contrário Não quero dormir agora não estou cansado quero ver mais coisas A tendência biológica do sono parece ser pois propiciar repouso sua característica psicológica é a suspensão de interesse pelo mundo Nossa relação com o mundo ao qual viemos tão a contragosto parece implicar que não o suportamos sem interrupção Assim retiramonos temporariamente para aquele estado ante rior a nossa chegada isto é à existência no ventre ma terno No mínimo criamos para nós próprios condições muito semelhantes às de então calor escuridão e ausên cia de estímulos Alguns inclusive se enrolam como um pacote apertado e assumem ao dormir postura corporal parecida com a que tinham no ventre materno É como se o mundo não nos tivesse adultos por inteiro dois terços de nós está nele o outro terço ainda nem nas ceu Desse modo cada despertar pela manhã é como um novo nascimento Acerca desse estado que sucede II7 11 OS SONHOS ao sono costumamos dizer Sintome uma nova pes soa e ao dizêlo é provável que façamos uma ideia bastante equivocada do sentimento geral de um recém nascido que podese supor é de malestar Também acerca do nascimento dizemos Vir à luz Se o sono é isso então o sonho não consta de seu programa parece ao contrário um acréscimo impor tuno Acreditamos também que o sono desprovido de sonhos é o melhor de todos e o único correto No sono não deve haver nenhuma atividade psíquica havendo alguma atividade semelhante isso significa que não lo gramos restabelecer o estado de repouso fetal não con seguimos evitar em sua totalidade os restos de atividade psíquica Esses restos seriam o sonhar Assim sendo parece de fato que o sonho não precisa ter sentido ne nhum No caso dos atos falhos era diferente tratavase de atividades desempenhadas durante a vigília Quando durmo porém e interrompo toda e qualquer ativida de psíquica não logrando reprimir apenas restos dela não há necessidade nenhuma de que esses restos tenham algum sentido Não posso nem sequer fazer uso desse sentido uma vez que o restante de minha vida psíquica encontrase adormecido O que se tem então pode com efeito ser apenas reação espasmódica fenômenos psí quicos decorrentes de estímulos somáticos Os sonhos seriam portanto restos da atividade psíquica da vigília a perturbar o sono e nós poderíamos nos propor a aban donar de imediato tema tão inapropriado à psicanálise Contudo ainda que supérfluo o sonho existe e podemos tentar explicar essa existência a nós mesmos n8 5 DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES Por que a vida psíquica não adormece Provavelmen te porque alguma coisa não lhe dá sossego Estímulos atuam sobre ela que precisa reagir a eles O sonho é portanto o modo como a psique reage aos estímulos que atuam sobre o sono N atamos aqui uma porta de acesso à compreensão do sonho Podemos procurar em diversos sonhos aqueles estímulos desejosos de pertur bar o sono aqueles aos quais o sonho constitui reação Obteríamos assim a primeira característica comum a todos os sonhos Há outro traço comum Sim e ele é inegável mas muito mais difícil de apreender e descrever No sono os processos psíquicos exibem caráter bastante diverso daqueles do estado de vigília No sonho vivese toda sorte de coisas e se acredita nelas quando na verdade o que se vivenda é talvez nada mais que aquele úni co estímulo perturbador O que é vivido o é predomi nantemente por meio de imagens visuais Outros senti mentos podem desempenhar algum papel e até mesmo pensamentos podem aí se imiscuir os demais sentidos podem igualmente participar do vivido mas acima de tudo tratase de imagens Parte da dificuldade de se contar um sonho decorre do fato de termos de traduzir essas imagens em palavras O sonhador nos diz com fre quência Eu poderia desenhar o que sonhei mas não sei como relatálo Na realidade não se trata de uma atividade psíquica reduzida como a do idiota compara da à do gênio tratase sim de algo que é qualitativa mente diverso embora seja difícil dizer em que consiste essa diferença G T Fechner lança a hipótese de que o 11 OS SONHOS palco no qual os sonhos se desenrolam na psique se ria diferente daquele em que se dá a vida imaginativa Vorstellungslehen no estado de vigília É certo que não a compreendemos que não sabemos o que pensar disso mas tal conjectura reproduz de fato a impressão de estra nheza que a maioria dos sonhos nos transmite Também a comparação da atividade onírica com o desempenho de mãos nada musicais é aqui de pouca valia O piano afinal responderá sempre com as mesmas notas ao pas seio do acaso por suas teclas mesmo que essas notas não formem melodias Embora não seja compreendida to memos o cuidado de não perder de vista essa segunda característica comum a todos os sonhos Existem outras Se existem não as encontro vejo apenas diferenças por toda parte e em todos os aspec tos tanto no que se refere à duração aparente dos so nhos quanto no que toca a sua clareza à participação afetiva a sua persistência etc Essa variedade não é pro priamente o que esperaríamos encontrar numa defesa necessária débil e espasmódica ante um estímulo No que se refere à extensão há sonhos que são bem curtos contendo apenas uma imagem ou poucas imagens um único pensamento ou mesmo uma única palavra outros são de uma extraordinária riqueza de conteúdo ence nam romances inteiros e parecem durar muito tempo Existem sonhos que são tão nítidos quanto a experiên cia vivida tão nítidos que já despertos há algum tempo ainda não os reconhecemos como tais outros são in descritivelmente débeis além de sombrios e difusos de fato em um único e mesmo sonho as partes de extrema 120 5 DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES nitidez podem se alternar com aquelas difusas quase impalpáveis Sonhos podem ser perfeitamente sensatos ou ao menos coerentes e mesmo engenhosos de bele za fantástica outros por sua vez são confusos como que idiotas absurdos e com frequência francamente loucos Há sonhos que não nos impressionam nem um pouco e sonhos em que todos os afetos se apresentam uma dor que leva ao choro uma angústia que faz des pertar admiração encanto etc Na maioria das vezes os sonhos são esquecidos assim que despertamos ou então se conservam ao longo do dia de maneira que sua lembrança vai se tornando cada vez mais pálida e in completa até à noite outros sonhos como por exem plo os da infância perduram de tal forma que trinta anos depois permanecem na memória como uma expe riência recémvivida Sonhos podem como indivíduos surgir uma única vez e nunca mais aparecer ou podem se repetir inalterados ou com pequenas variações Em suma essa pouca atividade psíquica noturna dispõe de enorme repertório na verdade ela exibe à noite a mes ma capacidade que a psique demonstra durante o dia e no entanto nunca é a mesma coisa Poderseia tentar explicar toda essa gama variada de sonhos mediante a suposição de que ela corresponde a diversos estados intermediários entre o sono e a vigí lia a diversos estágios do sono incompleto Nesse caso porém paralelamente ao valor ao conteúdo e à nitidez da operação do sonho haveria de crescer também a cada sonho a clara compreensão de que se trata de um sonho uma vez que a psique vai aí se aproximando do I2I 11 OS SONHOS despertar não poderia pois acontecer de bem ao lado de um pedacinho nítido e sensato de sonho vir se po sicionar outro insensato e indistinto seguido de novo trabalho bemfeito Por certo a psique não seria capaz de alterar tão rapidamente a profundidade de seu sono Essa explicação não ajuda portanto a coisa não é tão simples assim Renunciemos por enquanto à busca do sentido do sonho e tentemos em vez disso abrir um caminho para uma melhor compreensão dele a partir daquilo que os sonhos têm em comum Da relação dos sonhos com o sono concluímos que o sonho é reação a um estímulo perturbador do sono Dissemos que esse é ademais o único ponto em que a psicologia experimental exa ta pode nos auxiliar ela nos dá a comprovação de que durante o sono estímulos são introduzidos no sonho Muitas investigações desse tipo já foram realizadas até aquela de Mourly Vold citada anteriormente além dis so é provável que cada um de nós possa confirmar esse resultado com base em uma ou outra observação pes soal Escolhi alguns experimentos mais antigos para co municar aqui Maury fez realizar tais experimentos em sua própria pessoa Enquanto dormia deramlhe água decolônia para cheirar ele sonhou que estava no Cai ro na loja de Giovanni Maria Farina e a isso se segui ram aventuras incríveis Ou beliscaramlhe levemente G M Farina 16851766 piemontês estabelecido em Colônia produziu uma loção que veio a se tornar conhecida como água de Colônia 122 S DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES a nuca e ele sonhou tanto com um curativo que lhe era aplicado como com um médico que o havia tratado na infância Ou ainda pingaramlhe água na testa e de súbito ele estava na Itália suava muito e bebia o vinho branco de Orvieto O que nos chama a atenção nesses sonhos gerados experimentalmente é algo que talvez possamos com preender com ainda maior clareza em outra série de sonhos estimulados Refirome a três sonhos relatados por um observador engenhoso Hildebrandt todos eles reações à campainha de um despertador Então saio a passear numa manhã de primavera e perambulo pelos campos verdejantes até uma aldeia vizinha Nela vejo numerosos habitantes em trajes festivos a caminho da igreja o hinário debaixo do braço Claro É domingo e o serviço religioso está para começar bem de manhãzinha Decido partici par dele mas antes acalorado vou me refrescar no cemitério que circunda a igreja Enquanto leio lápi des diversas ouço o sineiro subir à torre e no alto desta vejo o pequeno sino de aldeia que dará o si nal para o início do serviço Por um bom tempo ele permanece imóvel depois começa a balançar e de repente as badaladas ressoam claras e penetrantes tão claras e penetrantes que põem fim a meu sono O som dos sinos provém no entanto do despertador Uma segunda combinação É dia claro de in verno a neve erguese alta nas ruas Concordei em participar de um passeio de trenó mas tenho de es 123 11 OS SONHOS perar bastante até receber o anúncio de que o trenó está diante da minha porta Seguemse os prepa rativos para o embarque visto a pele apanho o abafo para os pés e por fim estou sentado em meu lugar Mas a partida demora até que as rédeas transmitam o sinal aos cavalos parados Então eles partem o balanço vigoroso dos guizos dá início a sua conhecida música de legiões de janízaros e com tamanha força que de pronto se esgarça a teia de ara nha do sonho De novo tratase de nada mais que o som estridente do despertador E um terceiro exemplo Vejo uma ajudante de cozinha caminhar pelo corredor com uma pilha de pratos rumo à sala de jantar A coluna de porcelana que leva nos braços me parece a ponto de se dese quilibrar Tome cuidado advirto essa pilha toda vai cair no chão Naturalmente não deixo de ouvir em resposta a obrigatória contestação a moça diz que está acostumada com aquilo etc Enquanto isso sigo acompanhando seu progresso com um olhar de preocupação E de fato na soleira da porta ela tro peça a louça frágil despenca espatifase no chão e se estilhaça em centenas de pedaços a seu redor Como porém não tardo em perceber a barulheira sem fim não é de fato um matraquear de louça e sim uma campainha E essa campainha percebo ao acordar é apenas o despertador cumprindo seu dever Esses três são sonhos graciosos têm um sentido não são incoerentes como os sonhos costumam ser Deles 124 5 DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES não temos portanto o que reclamar O que têm em comum é o fato de em cada um a situação culminar em um barulho que ao despertar se reconhece ser o do despertador Vemos aqui pois de que forma um so nho é gerado mas descobrimos outra coisa também O sonho não reconhece o despertador que não figura nele em vez disso substitui por outro o barulho dele interpreta o estímulo que interrompe o sono mas o faz a cada vez de um modo diferente Por que isso Não há resposta para essa pergunta o motivo parece ser arbi trário Compreender o sonho porém demandaria a ca pacidade de apontar o porquê da escolha desse barulho e de nenhum outro na interpretação do estímulo repre sentado pelo despertador De maneira análoga há que se objetar nos experimentos de Maury que se por um lado o estímulo introduzido de fato aparece no sonho por outro não se fica sabendo o porquê da forma que ele assume a qual não parece decorrer de modo algum da natureza do estímulo perturbador do sono Além dis so nas experiências de Maury em geral grande quan tidade de outro tipo de material onírico vem se juntar ao resultado direto do estímulo como por exemplo as aventuras incríveis do sonho da águadecolônia para as quais não se tem nenhuma explicação Considerem os senhores que esses sonhos que nos acordam ainda são os que nos oferecem as melhores oportunidades para a identificação da influência exerci da por estímulos exteriores perturbadores do sono Na maioria dos demais casos será mais difícil fazêlo Não é todo sonho que nos faz acordar e quando pela ma 2 11 OS SONHOS nhã nos lembramos de um sonho que tivemos como fazer para encontrar o estímulo perturbador que talvez tenha atuado durante a noite Certa feita logrei iden tificar a posteriori um tal estímulo sonoro naturalmente apenas em decorrência de circunstâncias especiais Cer ta manhã acordei numa cidade do Tiro com a certeza de haver sonhado que o papa tinha morrido Não sabia como explicar aquele sonho até que minha mulher me perguntou Você ouviu a barulheira terrível dos sinos vinda de todas as igrejas e capelas quando o dia esta va clareando Não eu não tinha ouvido nada meu sono é mais resistente mas graças àquela informação compreendi meu sonho Com que frequência estímulos assim podem levar o adormecido a sonhar sem que depois ele tenha notícia deles Talvez isso ocorra com muita frequência talvez não Se o estímulo já não pode ser comprovado não há como termos convicção dele De todo modo recuamos dessa avaliação dos estímulos exteriores perturbadores do sono a partir do momento em que tomamos conhecimento de que eles só podem explicar um pedacinho do sonho jamais a totalidade da reação onírica Nem por isso precisamos abandonar por completo essa teoria Ademais ela admite um prolongamento Claro está que não faz diferença o que perturba o sono e incentiva a psique a sonhar Se nem sempre se trata de um estímulo sensorial provindo de fora talvez a pertur bação provenha de um estímulo corporal de nossos ór gãos internos É uma suposição óbvia que corresponde também à mais popular das opiniões acerca da origem 126 S DIFICULDADES E PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES dos sonhos Com frequência ouvimos dizer que os so nhos provêm do estômago Infelizmente também nesse caso podemos supor que muitas vezes ocorrerá de um estímulo somático atuante durante a noite não mais poder ser comprovado após o despertar tornandose assim indemonstrável Não ignoremos todavia as muitas experiências pessoais a corroborar a hipótese de que os sonhos derivam de um tal estímulo Em regra é incontestável que a situação de nossos órgãos internos pode influenciar o sonho A relação de tantos conteúdos oníricos com um enchimento da bexiga ou com um es tado de excitação dos órgãos genitais é tão clara que não se pode ignorála A partir desses casos transparentes chegamos a outros em que o conteúdo do sonho per mite no mínimo inferir justificadamente a atuação de estímulos somáticos na medida em que esse conteúdo apresenta algo que se pode compreender como elabora ção representação ou interpretação daqueles estímulos O pesquisador dos sonhos Scherner 1861 defendeu com particular ênfase a tese de que os sonhos derivam de estímulos provenientes de nossos órgãos internos e ilustroua com alguns belos exemplos Assim quan do ele vê num sonho duas fileiras de belos rapazes de cabelos loiros e tez delicada que belicosas e postadas uma defronte da outra partem para o ataque se atra cam tornam a se desvencilhar retornam à postura an terior e depois voltam a se atacar a interpretação das fileiras de rapazes como os dentes fala por si mesma e ela parece encontrar plena comprovação quando após a cena o sonhador extrai da mandíbula um dente com 127 11 OS SONHOS prido Também a interpretação de corredores compri dos estreitos e tortuosos como estímulo proveniente do intestino parece convincente e confirma a formula ção de Scherner segundo a qual o sonho busca acima de tudo representar o órgão emissor do estímulo com objetos semelhantes a ele Assim temos de estar prontos a admitir que no so nho estímulos internos podem desempenhar o mesmo papel que os externos Infelizmente a avaliação deles está sujeita às mesmas objeções Em grande parte dos casos a interpretação que aponta para um estímulo corporal permanece incerta ou indemonstrável Nem todo sonho apenas certo número deles na verdade desperta a suspeita de que estímulos internos pro venientes dos órgãos tiveram participação em seu sur gimento por fim estímulo somático interior e estímulo sensorial exterior revelamse ambos em igual medida incapazes de dizer mais sobre o sonho do que o que corresponde à reação direta ao estímulo em si De onde vem o restante do sonho permanece um mistério Atentemos porém para uma peculiaridade da vida onírica que sobressai do estudo do efeito provocado por tais estímulos O sonho não reproduz simplesmente o estímulo mas o elabora remete a ele o inclui em um contexto e o substitui por outra coisa Esse é um as pecto do trabalho do sonho que há de nos interessar porque talvez nos aproxime da essência dos sonhos Quando alguém faz uma coisa levado por um incentivo a obra realizada não se esgota no incentivo Macheth de Shakespeare por exemplo é peça de ocasião composta 128 para a entronização do rei que pela primeira vez reuniu as coroas dos três reinos Mas esse ensejo histórico dá conta do conteúdo do drama explicanos sua grandeza e seu mistério Talvez os estímulos externos e internos que atuam sobre a pessoa adormecida também sejam apenas incentivadores do sonho de cuja essência no entanto nada revelam A outra característica comum aos sonhos sua peculiaridade psíquica é por um lado de difícil apreensão e por outro não oferece nenhum ponto de apoio que possamos seguir Aquilo que vivemos no sonho nós o fazemos na maioria das vezes de forma visual Os estímulos podem oferecer alguma explicação para isso É na realidade o estímulo que vivenciamos Por que então o vivido se apresenta sob forma visual se apenas em raríssimos casos a estimulação dos olhos é que desencadeia o sonho Ou será possível demonstrar que quando sonhamos com falas é porque durante o sono uma conversa ou algum ruído semelhante penetrou nossos ouvidos Ouso descartar decisivamente essa possibilidade Se o que os sonhos têm em comum não nos permite avançar talvez seja o caso de examinarmos suas diferenças De modo geral eles com frequência são insensatos confusos e absurdos mas há também sonhos sensatos sóbrios e razoáveis Examinemos se os últimos sensatos podem nos dar alguma informação sobre os primeiros Vou relatar aos senhores o sonho sensato mais recente que me contaram o sonho de um rapaz Fui passear na Kärntnertstraße onde encontrei o senhor X com quem caminhei durante algum tempo Depois fui a um res 11 OS SONHOS taurante Duas senhoras e um senhor sentaramse à mi nha mesa De início aquilo me irritou e não quis nem olhar para eles Em seguida porém olhei para aquelas pessoas e descobri que eram muito simpáticas O ra paz acrescenta que na noite anterior havia estado de fato na Karntnerstrasse seu caminho habitual e tinha encontrado ali o senhor X A outra parte do sonho não se constitui de reminiscência direta guarda apenas certa semelhança com algo vivido no passado Outro sonho de características sóbrias é o de uma mulher O marido pergunta a ela Não devíamos mandar afinar o piano Ela responde Não vale a pena Precisamos mandar for rar os martelos também Esse sonho é a reprodução sem grandes modificações de uma conversa que a mulher e o marido haviam tido no dia anterior O que apren demos com esses sonhos sóbrios Nada a não ser que neles têm lugar repetições dos acontecimentos do dia ou alusões a eles Já seria alguma coisa se pudéssemos ge neralizar esse fato para todos os sonhos Não é porém o que acontece uma vez que também ele só se aplica a uma minoria de casos Na maioria dos sonhos não figura alusão nenhuma ao dia anterior e isso tampouco lança alguma luz nos sonhos insensatos e absurdos Tudo que sabemos é que deparamos com nova tarefa Não quere mos saber apenas o que um sonho diz mas quando ele o diz claramente como em nossos exemplos queremos sa ber também por que e para que esse elemento conhecido e recémvivenciado se repete nele Creio que os senhores tanto quanto eu devem estar cansados de continuar com tentativas como as que em IJO 5 DIFICULDADES E PRIMEIRASAPRDXIMAÇÕES preendemos até o momento Vemos pois que dedicar todo o interesse a um problema não basta quando não se conhece um caminho que possa levar à solução Até agora não encontramos esse caminho A psicologia ex perimental nada nos deu a não ser algumas apreciáveis informações sobre o significado dos estímulos como in centivadores dos sonhos Da filosofia só nos cabe mais uma vez esperar a recriminação arrogante pelo pouco valor intelectual de nosso objeto de pesquisa e às ciên cias ocultas não vamos recorrer A história e a opinião popular nos dizem que o sonho é pleno de significado e sentido e que ele olha para o futuro o que é difícil de aceitar e certamente impossível de provar Assim nossos esforços iniciais redundam em completa perplexidade Inesperadamente uma indicação nos chega de um lado para o qual até agora não havíamos olhado do uso da língua que nada tem de casual pois é o preci pitado de velhos conhecimentos embora não possa ser explorado sem cautela De fato a língua alemã conhece algo que chama de Tagtriiumen sonhar durante o dia Sonhos diurnos são fantasias produtos da fantasia fe nômenos bastante generalizados que se podem obser var tanto em pessoas saudáveis como nas enfermas e que podemos facilmente estudar em nós mesmos O que mais chama a atenção nessas construções fantasiosas é o fato de terem recebido o nome de sonhos diurnos pois não têm nenhuma das duas características comuns aos sonhos Já o nome contradiz sua relação com o sono e quanto à segunda característica comum não se vivenda nem se alucina coisa nenhuma nesses sonhos o que IJI 11 OS SONHOS se faz em vez disso é imaginar alguma coisa Sabemos que se trata de uma fantasia que não estamos vendo coisa alguma e sim pensando Os sonhos diurnos apa recem na prépuberdade com frequência já no final da infância e se estendem até a idade madura quando são ou abandonados ou mantidos até idade bastante avança da O conteúdo dessas fantasias é comandado por uma motivação bem transparente são cenas e acontecimen tos em que encontram satisfação as necessidades egoís tas de ambição de poder ou os desejos eróticos das pessoas Nos rapazes predominam em geral as fanta sias ligadas à ambição ao passo que nas mulheres que jogaram toda a sua ambição no sucesso amoroso pre valecem as fantasias eróticas Com muita frequência no entanto a carência erótica mostrase o pano de fun do também nos homens os seus êxitos e atos heroicos devem servir para conquistar a admiração e as graças das mulheres No mais os sonhos diurnos são bastan te variados e experimentam destinos os mais diversos Em pouco tempo cada um deles é abandonado e subs tituído por um novo ou é mantido desenvolvendose numa longa história e adaptandose às circunstâncias da vida Eles evoluem com o tempo por assim dizer e dele recebem uma marca temporal que atesta a influên cia exercida pela nova situação São ademais a maté ria bruta da produção poética porque é de seus sonhos diurnos que mediante certas reformulações disfarces e omissões o escritor inventa as situações que utiliza em seus contos romances peças de teatro O herói dos sonhos diurnos é todavia sempre o próprio sonhador 132 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA OA INTERPRETAÇÃO seja diretamente ou por intermédio de uma identifica ção transparente com outra pessoa Talvez os sonhos diurnos tenham esse nome gra ças à relação igual que mantêm com a realidade a fim de sugerir que seu conteúdo é tão pouco real como o dos sonhos Mas talvez o nome compartilhado se deva a uma característica psíquica desconhecida do sonho uma daquelas que procuramos É também possível que nos equivoquemos ao pretender utilizar essa igualdade de designação como algo significativo Só mais adiante isso poderá ser esclarecido S PRESSUPOSTOS E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO Senhoras e senhores Necessitamos portanto de um novo caminho de um método a fim de podermos se guir adiante na investigação dos sonhos Façolhes agora uma sugestão natural Admitamos como pressu posto de tudo o que segue que o sonho não é um fonô meno somático e sim psíquico O que isso significa os senhores sabem mas o que nos dá o direito de fazer essa suposição Nada assim como nada nos impede de fazêla A questão é se o sonho é um fenômeno somá tico ele não nos diz respeito ele pode nos interessar apenas sob a premissa de que é um fenômeno psíquico Trabalhemos pois com a hipótese de que assim é de fato e vejamos o que acontece O resultado de nosso 133 11 OS SONHOS trabalho decidirá se nos cabe sustentar essa hipótese e se portanto é lícito defendêla como um resultado O que pretendemos alcançar realmente o que visa nosso trabalho Queremos aquilo que toda ciência almeja ou seja compreender os fenômenos estabelecer um nexo entre eles e em última instância se possível expandir nosso poder sobre tais fenômenos Portanto prosseguimos o trabalho com a suposição de que o sonho é um fenômeno psíquico Nesse caso ele é obra e manifestação do sonhador mas uma mani festação que não nos diz nada que não entendemos O que fazem os senhores se eu der voz a uma manifesta ção que lhes seja incompreensível Os senhores me fa rão perguntas não é mesmo Por que não haveríamos então de fazer o mesmo perguntar ao sonhador o que seu sonho significa Os senhores se recordam que já nos vimos uma vez nessa mesma situação Isso aconteceu quando da inves tigação de certos atos falhos e especificamente de um caso de lapso verbal Ante a declaração Da sind Dinge rum Vorschwein gekommen perguntamos ou me lhor por sorte não fomos nós que perguntamos mas outros bem distantes da psicanálise o que o falan te havia querido dizer com sua fala incompreensível A resposta foi imediata Ele tivera a intenção de dizer que se tratava de Schweinereien porcarias mas rechaçara essa intenção em favor de outra mais branda Da sind Dinge rum Vorschein gekommen coisas foram revela das Na ocasião expliquei aos senhores que indagações como essa constituíam o modelo de toda investigação 134 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA OA INTERPRETAÇÃO psicanalítica e os senhores compreendem agora que a psicanálise se vale da técnica de tanto quanto possível receber de seus próprios analisandos a solução para seus enigmas Assim também o sonhador é quem deve nos dizer o que seu sonho significa É sabido contudo que as coisas não são tão simples no caso dos sonhos Nos atos falhos isso era possível em certo número de casos Depois deparamos com ou tros nos quais o indagado nada queria dizer ou mesmo revoltado repudiava a resposta que lhe propúnhamos Em se tratando do sonho os casos do primeiro tipo não existem o sonhador sempre alega não saber o que o sonho significa Repudiar nossa interpretação ele não pode porque não temos nenhuma a lhe oferecer Deve mos pois desistir de nossa tentativa Como o sonhador não sabe a resposta nós tampouco e um terceiro não tem como sabêla por certo a perspectiva de descobrila é nenhuma Sim se os senhores assim desejam desistam da tentativa Se todavia sua vontade é outra trilhemos juntos o caminho à nossa frente Digolhes pois que é bem possível e até mesmo bastante provável que o so nhador saiba sim o que seu sonho significa ele apenas não sabe que sabe e é por isso que crê não saber Os senhores chamarão minha atenção para o fato de que de novo introduzo uma hipótese que é já a segun da neste breve contexto e com isso reduzo enorme mente a pretensão de credibilidade de meu procedimen to Pressuponho que o sonho é um fenômeno psíquico pressuponho ademais que o ser humano abriga ele mentos psíquicos que ele conhece sem saber que conhe IJ5 11 OS SONHOS ce e assim por diante Basta então encarar a improba bilidade interna de cada uma dessas duas premissas para que tranquilamente se perca o interesse nas conclusões que delas poderiam resultar Contudo senhoras e senhores eu não os trouxe aqui para iludilos ou ocultarlhes o que quer que seja De fato anunciei Conferências elementares introdutórias à psicanálise mas não pretendi com isso oferecerlhes uma apresentação in usum Delphini capaz de lhes expor um contexto aplainado com todas as suas dificuldades cuidadosamente escondidas suas lacunas preenchidas e suas dúvidas encobertas a fim de leválos a crer sere namente ter aprendido alguma coisa nova Não preci samente por serem os senhores iniciantes quis mostrar lhes nossa ciência como ela é com seus desalinhos e durezas seus desafios e preocupações E isso porque bem sei que nenhuma outra ciência é e nem pode ser diferen te sobretudo em seus primeiros passos Sei também que em geral a instrução busca inicialmente ocultar do aluno essas dificuldades e imperfeições Com a psicanálise po rém isso não é possível De fato fiz aqui duas pressupo sições uma dentro da outra e quem julgar tudo isso de masiado penoso ou incerto ou quem estiver acostumado a certezas superiores e a deduções mais elegantes esse O adjetivo elementares foi omitido na publicação dessas con ferências Ou ad usum Delphini literalmente para uso do Delfim ex pressão que designava as edições dos livros clássicos expurgadas dos trechos mais picantes preparadas especialmente para o filho de Luís XIV 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO não precisa continuar nos acompanhando Com isso quero dizer apenas que tal pessoa não deve se ocupar de problemas psicológicos pois receio que não encontrará os caminhos exatos e seguros que está disposta a trilhar É também desnecessário que uma ciência que tem algo a oferecer busque granjear ouvintes e adeptos Seus re sultados é que devem trabalhar em seu favor e ela pode esperar até que eles tenham conquistado atenção para si Àqueles dentre os senhores que desejem prosseguir nesse assunto todavia cabe lembrar que minhas duas suposições não se revestem do mesmo valor A primeira a de que o sonho seria um fenômeno psíquico é a premissa que queremos provar mediante o sucesso de nosso trabalho a segunda já foi comprovada em outra área e apenas tomo a liberdade de transpôla para nos sos problemas Onde em que área terá sido obtida a comprovação da existência de um saber do qual o ser humano nada sabe como aquele que postulamos aqui para o sonha dor Seria um fato notável surpreendente modificador de nossa concepção da vida psíquica um fato que não precisaria se ocultar um fato aliás que se anula em sua própria denominação e que no entanto pretende ser algo real uma contradictio in adjecto Na verdade ele não se oculta Não é culpa sua que nada saibam dele ou que ninguém lhe dê a devida atenção Assim como tampouco é culpa nossa que todos esses problemas psi cológicos sejam condenados por pessoas que se manti veram distantes de todas as observações e experiências que foram decisivas nessa matéria 137 11 OS SONHOS Tal comprovação foi obtida na área dos fenômenos hipnóticos Quando em 1889 assisti às impressionan tes demonstrações de Liébeault e Bernheim em Nancy fui testemunha do seguinte experimento Um homem foi posto em estado de sonambulismo e nesse estado fizeramlhe passar por toda sorte de experiências aluci natórias e depois o acordaram de início ele parecia nada saber dos acontecimentos transcorridos durante seu sono hipnótico Bernheim instouo diretamente a relatar o que se passara com ele durante a hipnose Ele afirma va não ter lembrança nenhuma Mas Bernheim insistiu pressionouo asseguroulhe que ele sabia que devia se lembrar do que acontecera e de repente o homem hesitante começou a se lembrar De início lembrouse vagamente de uma das experiências sugeridas depois de outra e a lembrança foi se tornando cada vez mais clara e mais completa até que por fim toda ela retornou Se depois de algum tempo ele sabia o que se passara e na quele ínterim nada descobrira de nenhuma outra parte então é correto concluir que sabia daquelas lembranças também antes Apenas não tinha acesso a elas não sabia que sabia acreditava não saber Tratase pois do mes mo caso que supomos suceder com o sonhador Espero que os senhores estejam surpresos com esse fato e que me perguntem Por que o senhor não recor reu a essa comprovação antes ao falar dos atos falhos quando imputamos ao homem que cometera um lapso verbal intenções que ele desconhecia e negou possuir Se alguém crê nada saber de experiências vividas que traz realmente na memória já não é tão improvável que 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO tampouco saiba de outros processos psíquicos em seu interior Esse argumento por certo nos teria impressio nado e levado adiante na compreensão dos atos falhos Com certeza eu teria podido recorrer a ele anteriormen te mas guardeio para um momento no qual ele seria mais necessário Os atos falhos se revelaram em parte autoexplicativos e em parte advertiramnos que a fim de preservar a relação entre os fenômenos deveríamos supor a existência desses processos psíquicos de que nada sabemos No caso dos sonhos somos obrigados a buscar explicações em outra parte além disso conto com o fato de que aqui os senhores admitirão mais fa cilmente uma transposição a partir da hipnose É preci so que os senhores entendam como normal o estado em que cometemos um ato falho ele nada tem a ver com o estado hipnótico Por outro lado há um nítido paren tesco entre esse último e o sono que é a precondição para o sonho A hipnose de fato é descrita como um sono artificial dizemos Durma à pessoa que hipnoti zamos e as sugestões que fazemos são comparáveis aos sonhos do sono natural Em ambos os casos as situa ções psíquicas são realmente análogas No sono natu ral desinteressamonos de todo o mundo exterior no sono hipnótico do mundo inteiro menos da pessoa que nos hipnotizou com a qual permanecemos em contato Aliás o chamado sono de babá em que ela permanece em contato com o bebê e só é acordada por ele constitui uma contraparte normal do sono hipnótico Portanto a transposição para o sono normal de uma situação típica da hipnose não parece representar ousadia tão grande IJ9 11 OS SONHOS A suposição de que também no sonhador está presente um conhecimento daquilo que ele sonhou um conhe cimento que apenas lhe é inacessível e no qual por isso mesmo ele próprio não crê não é pura invenção E atentemos para o fato de que aqui se abre uma terceira porta para o estudo do sonho aos estímulos perturbado res do sono e aos sonhos diurnos acrescentamos agora os sonhos sugeridos do estado hipnótico Retornemos então talvez com maior confiança a nossa tarefa É pois bastante provável que o sonhador saiba de seu sonho tratase apenas de possibilitar a ele encontrar e comunicarnos esse saber Não vamos exi gir que nos diga de imediato o sentido do sonho mas sua origem o círculo de ideias e interesses do qual pro vém isso ele será capaz de identificar No caso do ato falho os senhores se lembram perguntamos ao orador como ele havia chegado à palavra equivocada Vorsch wein e a primeira resposta que lhe ocorreu deunos a explicação Nossa técnica no tocante ao sonho é bas tante simples uma imitação desse mesmo modelo De novo perguntamos ao sonhador o que o levou a ter seu sonho e outra vez sua primeira resposta há de ser vista como uma explicação Se ele crê ou não saber é uma di ferença que desconsideramos tratamos ambos os casos como se fossem um só Essa técnica é decerto muito fácil mas temo que ela venha a encontrar ferrenha oposição por parte dos se nhores que com certeza dirão Uma nova premissa a terceira E a mais improvável de todas Se perguntamos ao sonhador o que lhe ocorre em relação a seu sonho 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO justamente sua primeira associação deve nos dar a expli cação desejada Ora pode ser que não lhe ocorra coisa nenhuma ou sabe Deus o que lhe virá à cabeça Não podemos compreender em que se baseia tal expectativa Com efeito isso significaria depositar confiança dema siada em Deus num ponto em que seria mais adequado um maior juízo crítico Além disso um sonho não é ape nas uma palavra equivocada ele se compõe de muitos elementos A que associação haveremos de nos ater Os senhores têm razão em tudo que é secundário Um sonho distinguese de um lapso verbal também na diversidade de elementos A técnica precisa levar isso em consideração Então lhes sugiro a decomposição do sonho em seus diferentes elementos e que procedamos à investigação de cada um deles em separado se assim fizermos estará restabelecida a analogia com o lapso verbal Têm razão também os senhores quanto à possi bilidade de a resposta do sonhador para cada elemento isolado do sonho ser que nada lhe vem ao pensamento Há casos em que aceitamos essa resposta e mais adiante os senhores saberão quais são eles Curiosamente são casos em que certas associações podem ocorrer inclusi ve a nós mesmos De modo geral contudo contestare mos o sonhador se ele afirmar que nada lhe vem à men te insistiremos e lhe asseguraremos que alguma coisa há de lhe ocorrer e estaremos com a razão Algu ma ideia há de lhe ocorrer qualquer que seja ela para nós é indiferente Certas informações a que podería mos chamar históricas ele dará com grande facilidade Dirá por exemplo Isso é uma coisa que me aconteceu 11 OS SONHOS ontem como no caso dos dois sonhos sóbrios que conhecemos Ou Isso me lembra algo que aconte ceu há muito pouco tempo e desse modo vamos notar que as vinculações dos sonhos a impressões dos dias imediatamente anteriores é bem mais comum do que acreditamos de início Por fim o sonho o lembrará também de acontecimentos distantes ou mesmo de um passado bastante longínquo No essencial porém os senhores estão equivoca dos Se acham que é arbitrário supor que a primeira associação do sonhador tem de nos dar o que procura mos ou nos conduzir a ele se acreditam que essa poderá ser uma associação qualquer sem nenhuma vinculação com o que buscamos constituindo assim minha expectativa nesse sentido mera manifestação de minha confiança em Deus aí os senhores estarão cometen do um grande erro Anteriormente tomei a liberdade de repreendêlos por abrigarem uma crença profunda na liberdade e arbitrariedade psíquica que porém não é nada científica e só pode capitular ante a exigência de um determinismo predominante também na vida psí quica Peço aos senhores que respeitem como fato o so nhador inquirido ter respondido com uma associação e não com outra Mas não estou contrapondo uma crença a outra Podese comprovar que a associação produzida pelo sonhador não é arbitrária ou indeterminável nem está desvinculada daquilo que buscamos De fato há não muito tempo descobri sem aliás atribuir valor demasiado a esta descoberta que também a psicolo gia experimental produziu semelhantes comprovações 142 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO Devido à importância do tema solicitolhes atenção especial para ele Se peço a alguém que me diga o que lhe ocorre em relação a determinado elemento de um sonho estou pedindo a essa pessoa que ela se entregue a associações livres atendose a uma ideia inicial Isso pede um emprego específico da atenção que é bem diferente daquele da reflexão e que a exclui Alguns adotam essa atitude com facilidade outros exibem inépcia inacredi tável ao tentar fazêlo Há contudo um grau mais ele vado de liberdade de associação que se verifica quando abandono essa ideia inicial e estabeleço apenas que tipo de coisa deve ocorrer à pessoa quando especifico por exemplo que ela deixe lhe ocorrer livremente um nome próprio ou um número Esse pensamento espontâneo haveria de ser mais arbitrário mais imprevisível do que aquele resultante do emprego de nossa técnica Podese demonstrar no entanto que ele é sempre determinado rigorosamente por importantes atitudes internas que no momento em que têm efeito nos são desconhecidas tão desconhecidas quanto as tendências perturbado ras nos atos falhos ou as que provocam atos casuais Eu e muitos outros depois de mim já realizei repeti das investigações semelhantes algumas delas publicadas nas quais solicitei a pessoas que sem qualquer reserva deixassem vir à mente nomes e números Procedese aí de maneira a solicitar contínuas associações com os no mes que vão surgindo associações que portanto já não são inteiramente livres e sim vinculadas como os pensa mentos espontâneos ligados aos elementos de um sonho Prosseguese dessa maneira até que se esgote o ímpeto 143 11 OS SONHOS para produzilas Chegase então ao esclarecimento da motivação e do significado dos nomes mencionados es pontaneamente O resultado é sempre o mesmo o que essas experiências comunicam abrange com frequência rico material e requer extensas explanações As associa ções com números são talvez as mais comprobatórias elas transcorrem tão rapidamente e rumam com tão incrível segurança para uma meta velada que de fato causam perplexidade Vou comunicar aos senhores um único exemplo dessa análise de nomes pois de forma conveniente ele demanda pouco material No curso do tratamento de um homem jovem come ço a falar sobre esse tema e menciono que a despeito da aparente arbitrariedade a ninguém ocorre um nome que não seja rigorosamente condicionado pelas relações mais próximas pelas peculiaridades do sujeito da experiência e por sua situação momentânea Como ele duvida da mi nha afirmação sugiro que ele próprio faça de imediato a experiência Sei que ele possui relacionamentos bas tante numerosos e de toda sorte com mulheres e moças e creio portanto que ele disporá de escolha particular mente farta em se tratando de nomes femininos que po derão lhe ocorrer Ele está de acordo Para meu espanto ou talvez para espanto dele porém não sou alvo de uma avalanche de nomes de mulheres o rapaz permanece mudo por algum tempo e confessa então que um único nome e nenhum outro lhe vem à mente Albine Que curioso Mas a que você vincula esse nome Quantas Albines você conhece Estranhamente ele não conhe cia nenhuma mulher chamada Albine e nada mais lhe 144 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO ocorreu em relação àquele nome Podiase supor então que a análise fracassara mas não ela apenas já ter minara nenhuma outra associação se fazia necessária O próprio rapaz tinha a pele extraordinariamente clara e em nossas conversas ao longo do tratamento eu de brincadeira já o chamara repetidas vezes de albino tratávamos na época de estabelecer a porção feminina de sua constituição Ele próprio era pois aquela Albine a moça mais interessante naquele momento Do mesmo modo certas melodias que nos ocorrem subitamente se revelam condicionadas e pertencem a uma linha de pensamento que tem o direito de nos ocupar sem que saibamos dessa atividade Então é fá cil mostrar que nossa relação com a melodia vinculase a sua letra ou sua origem Devo no entanto tomar o cuidado de não estender essa afirmação a pessoas ver dadeiramente musicais com as quais por acaso não possuo experiência nenhuma Para essas pessoas o teor musical em si da melodia deve ser determinante para seu aparecimento Com certeza o primeiro caso é mais frequente Sei de um jovem a quem a melodia da Can ção de Páris de A bela Helena de resto encantadora perseguiu por algum tempo até que a análise chamou sua atenção para a concorrência atual entre o seu inte Id H 1 resse por uma a e por uma e ena La belle Hélene é uma ópera de J Offenbach Na mitologia gre ga Páris era pastor no monte Ida quando teve de julgar qual das três deusas Hera Atena e Afrodite era a mais bela Tendo julgado em favor de Afrodite ganhou como recompensa o amor da mais bela mulher do mundo Helena 11 OS SONHOS Se portanto aquilo que nos ocorre livremente é assim condicionado e posto em determinado contexto então estaremos certos em concluir que pensamentos espontâneos dotados de uma única vinculação a de uma ideia inicial não poderão ser menos condicio nados Com efeito a investigação nos mostra que além do vínculo que fornecemos mediante a ideia inicial es sas associações permitem reconhecer um outro com um grupo de pensamentos e interesses de alto teor afetivo os chamados complexos cuja atuação é naquele momen to desconhecida isto é inconsciente Pensamentos espontâneos com vínculos assim foram objeto de investigações experimentais bastante instruti vas que tiveram papel notável na história da psicanálise A escola de Wundt já nos dera o chamado experimento de associação em que o sujeito é incumbido de responder o mais rapidamente possível a uma palavraestímulo com uma reação qualquer Podese então estudar o intervalo transcorrido entre estímulo e reação a natureza da pala vra obtida como reação o eventual erro numa repetição posterior da mesma experiência etc A escola de Zurique sob a direção de Bleuler e Jung forneceu a explicação para as reações resultantes da experiência de associação solicitando ao sujeito da experiência que esclarecesse as suas reações mediante associações posteriores quando apresentassem algo notável Verificouse então que es sas reações notáveis eram determinadas de forma bas tante nítida pelos complexos do sujeito da experiência Com isso Bleuler e Jung construíram a primeira ponte entre a psicologia experimental e a psicanálise 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO Assim instruídos os senhores poderão dizer Re conhecemos agora que as associações livres são deter minadas e não arbitrárias como havíamos acreditado Admitimos o mesmo em relação àquilo que ocorre às pessoas diante de elementos do sonho Mas não é isso que nos importa O senhor afirma que o que ocorre ao sonhador em relação a um elemento do sonho será de terminado pelo pano de fundo psíquico desse mesmo elemento algo que não conhecemos E isso não nos parece ter sido comprovado Já esperamos que a asso ciação diante de um elemento do sonho se mostre de terminada por um dos complexos do sonhador mas de que nos adianta que seja assim Isso não nos conduz à compreensão do sonho e sim ao conhecimento desses chamados complexos como na experiência de associa ção A questão é o que eles têm a ver com o sonho Os senhores têm razão mas deixam de enxergar um fator e precisamente aquele em razão do qual não esco lhi a experiência de associação como ponto de partida desta exposição Nessa experiência a palavraestímulo a determinante da reação é escolhida arbitrariamente por nós A reação que se segue é pois um intermediá rio entre essa palavraestímulo e o complexo então des pertado do sujeito da experiência No sonho a palavra estímulo é substituída por alguma coisa que provém ela própria da vida psíquica do sonhador de fontes que lhe são desconhecidas algo que poderia facilmente ser um derivado do complexo Por isso não é propria mente fantasiosa a expectativa de que também as de mais associações vinculadas aos elementos do sonho 147 11 OS SONHOS sejam determinadas pelo mesmo complexo que o do próprio elemento e conduzam ao desvelamento deste Permitam que à luz de outro caso eu lhes mostre que as coisas são de fato como sugere nossa expectativa O esquecimento de nomes próprios oferece na realida de um modelo excelente para o que sucede na análise do sonho ocorre apenas que nesse caso encontra mos numa só pessoa o que na interpretação do sonho distribuise por duas Quando esqueço temporariamen te um nome ainda trago em mim a certeza de que sei esse nome aquela mesma certeza de que tratandose do sonhador só pudemos nos apropriar pela via do ex perimento de Bernheim Contudo o nome esquecido e no entanto sabido me é inacessível Refletir por mais que eu me esforce de nada adianta é o que a expe riência logo me diz A cada tentativa posso porém em lugar do nome esquecido deixar que me ocorram um ou vários nomes substitutos Quando um desses nomes me ocorre de forma espontânea tornase evidente a si milaridade dessa situação com a da análise do sonho Afinal tampouco o elemento do sonho é o correto ele é mero substituto de outra coisa da coisa verdadeira que não conheço mas que me cabe encontrar por in termédio da análise do sonho De novo a diferença está em que tendo esquecido um nome reconheço sem pensar o substituto como não verdadeiro ao passo que no caso do elemento do sonho precisamos nos empe nhar muito para alcançar essa compreensão Todavia também no esquecimento de nomes temse um cami nho para ir do sucedâneo ao verdadeiro e inconsciente 6 PRESSUPOSTOS E TÉCNICA OA INTERPRETAÇÃO isto é ao nome esquecido Se concentro minha atenção nos nomes substitutos e sigo fazendo com que outros nomes me ocorram mais cedo ou mais tarde chego ao esquecido e descubro que os seus sucedâneos espontâ neos tanto quanto aqueles por mim evocados guar davam relação com o nome esquecido foram por ele determinados Quero apresentar aos senhores uma análise des se tipo Um dia noto que não consigo me lembrar do nome daquele pequeno país na Riviera cuja capital é Monte Carlo É irritante mas assim é Penso em tudo o que sei sobre o país no príncipe Albert da casa de Lusignan em seus casamentos em seu gosto pela pes quisa oceanográfica e no que mais consigo me lembrar mas de nada adianta Então paro de pensar e deixo que me ocorram nomes substitutos em lugar daquele es quecido Eles se sucedem com rapidez Monte Carlo é o primeiro depois vêm Piemonte Alhânia Montevidéu Colico Albânia é o primeiro a me chamar a atenção nes sa série mas ele é substituído de imediato por Montene gro provavelmente em razão da antonímia entre branco alhus e negro Percebo então que quatro desses no mes substitutos contêm uma mesma sílaba mon e de súbito encontro a palavra esquecida que digo em voz alta Mônaco Os nomes substitutos saíram de fato do nome esquecido os quatro primeiros da primeira síla ba o último traz de volta a sequência de sílabas e toda a sílaba final Ao mesmo tempo identifico com facili dade o que me privou por um tempo da lembrança do nome Mônaco está ligado a Munique que em italiano 149 11 OS SONHOS se chama Monaco Foi essa cidade que exerceu o efeito inibidor da lembrança Tratase por certo de um belo exemplo mas dema siado simples Em outros casos seria necessária uma série maior de nomes substitutos isso tornaria mais cla ra a analogia com a análise do sonho Vivi experiências desse tipo também Quando certa feita um amigo me convidou para beber um vinho italiano com ele acon teceu de na taberna ele se esquecer do nome do vi nho que pretendia pedir por dele guardar a melhor das lembranças De toda urna gama de disparatados nomes substitutos que lhe ocorreram em lugar do esquecido pude tirar a conclusão de que o pensamento numa certa Hedwig lhe havia roubado a lembrança do nome do vi nho E de fato ele não apenas me confirmou que expe rimentara o tal vinho pela primeira vez em companhia de urna Hedwig como também por intermédio dessa revelação reencontrou o nome que procurava À épo ca meu amigo gozava de um casamento feliz a Hedwig em questão pertencia a outros tempos dos quais ele não gostava de se lembrar O que é possível fazer quando esquecemos nomes há de ser possível também na interpretação de sonhos ou seja obter acesso ao material verdadeiro retido median te associações a partir de um sucedâneo Com base no exemplo do esquecimento de nomes podemos supor que as associações com um elemento do sonho serão deter minadas tanto pelo elemento do sonho como pelo mate rial autêntico e inconsciente por trás dele Teríamos com isso justificado em alguma medida nossa técnica IO 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES Senhoras e senhores Como veem não foi em vão que estudamos os atos falhos Graças a esse empenho con quistamos com base nas premissas que lhes indiquei duas coisas uma concepção do elemento do sonho e uma técnica interpretativa Essa concepção do elemento do sonho diz que ele é algo não verdadeiro um sucedâ neo de outra coisa desconhecida do sonhador similar à tendência do ato falho um sucedâneo de algo cujo sa ber o sonhador abriga mas que lhe é inacessível Nossa expectativa é a de poder transpor essa concepção para a totalidade do sonho que se constitui de tais elementos Nossa técnica consiste em permitir mediante a associa ção livre vinculada a esses elementos que surjam outras formações substitutivas a partir das quais possamos chegar ao que está oculto Sugiro agora aos senhores a introdução de uma mu dança em nossa nomenclatura que deverá facilitar nos sos movimentos Em vez de oculto inacessível não verdadeiro passaremos a nos valer da descrição correta e dizer inacessível à consciência do sonhador ou in consciente O que queremos dizer com isso nada mais é do que aquilo que lhes pode indicar a palavra esquecida ou a tendência perturbadora do ato falho isto é um conteúdo momentaneamente inconsciente É claro que em contrapo sição a isso podemos chamar conscientes aos elementos em si do sonho e às novas formações substitutivas obti 11 OS SONHOS das por meio de associação Os termos escolhidos ainda não se vinculam a nenhuma construção teórica O em prego da palavra inconsciente é irrepreensível como descrição pertinente e de fácil compreensão Se transpomos nossa concepção do elemento isola do para a totalidade do sonho resulta daí que o sonho como um todo é o sucedâneo deformado de outra coisa inconsciente e que a tarefa da interpretação do sonho consiste em encontrar esse algo inconsciente Disso decorrem de imediato três regras importantes que nos cumpre seguir ao longo do trabalho interpretativo 1 Não devemos nos preocupar com o que o sonho parece dizer seja isso algo compreensível ou absurdo claro ou confuso porque de maneira nenhuma esse é o material inconsciente que buscamos uma restrição plausível a essa regra se nos imporá mais adiante 2 nosso trabalho deve se concentrar em despertar as ideias substitutivas para cada elemento não devemos refletir a respeito delas nem examinálas à procura de um conteúdo adequado o quanto elas se afastam do elemento do sonho não deve ser motivo de preocupa ção 3 aguardemos até que o inconsciente oculto e pro curado apareça por si só exatamente como a palavra Mônaco no experimento que apresentei Agora compreendemos também que não faz dife rença que o sonho seja recordado muito ou pouco e sobretudo com que grau de fidelidade ou incerteza O sonho lembrado não é afinal a coisa verdadeira e sim um sucedâneo deformado que mediante o despertar de formações substitutivas há de nos ajudar a chegar mais 12 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES perto do verdadeiro a tornar consciente o inconsciente do sonho Se nossa lembrança já não é fiel o sucedâneo apenas lhe acrescenta nova deformação que tampouco poderá ser imotivada Podemos realizar o trabalho interpretativo em nos sos próprios sonhos ou nos de outras pessoas Quan do o efetuamos em nossos próprios sonhos na verdade aprendemos mais o processo resulta mais comprobató rio Se procuramos fazêlo notamos que algo se opõe a esse trabalho Não concedemos livre trânsito a tudo que nos ocorre Influências seletivas e averiguadoras se fazem valer Ao que nos vem à mente dizemos Não isso não combina não tem relação nenhuma a outra associação É absurdo demais a uma terceira Isso é completamente secundário Podemos assim observar de que forma com tais objeções sufocamos as associa ções até por fim banilas antes mesmo que elas tenham se apresentado com toda a clareza Por um lado portan to atemonos em demasia à ideia inicial ao elemento em si do sonho por outro perturbamos com nossa es colha o resultado da livre associação Se ao proceder à interpretação não estamos sozinhos se fazemos outra pessoa interpretar nosso sonho notamos muito clara mente outro motivo que empregamos para fazer essa escolha inadmissível Vez por outra diremos Não esse pensamento é desagradável demais não quero não posso comunicálo Objeções como essas é evidente põem em risco o êxito de nosso trabalho Temos de nos defender delas o que tratandose da interpretação de nossos próprios 11 OS SONHOS sonhos fazemos mediante o firme propósito de não ce der a elas Quando o sonho que interpretamos é de ou tra pessoa nós lhe impomos como regra inquebrantável que ela não deixe de nos comunicar nada do que lhe ocorre ainda que contra o pensamento haja as quatro objeções demasiado desimportante absurdo demais descabido ou embaraçoso demais para ser dito Ela prometerá obedecer a essa regra e teremos o direito de nos irritar se ela não cumprir o prometido A primeira explicação para isso que daremos a nós mesmos é a de que apesar de o termos asseverado com toda a auto ridade ela não entendeu o porquê da livre associação pensamos então em talvez ganhála por intermédio da teoria dandolhe artigos para ler ou enviandoa a pa lestras que possam transformála em adepta de nossas concepções sobre a livre associação Mas seremos pre servados desses erros pela observação de que ao inter pretarmos nossos próprios sonhos e podemos estar seguros de nossa própria convicção surgem as mes mas objeções críticas sobre certas coisas que nos ocor rem objeções estas que só mais tarde em uma segunda instância por assim dizer serão eliminadas Em vez de nos irritarmos com a desobediência do sonhador podemos nos valer dessas experiências para aprender algo novo com elas algo que é tanto mais importante quanto menos estamos preparados para ele Compreendemos que o trabalho da interpretação do sonho se realiza em face de uma resistência que lhe é oposta e cujas manifestações compõemse daquelas objeções críticas Essa resistência independe da convic 14 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES ção teórica do sonhador E aprendemos ainda mais do que isso Percebemos que tal objeção crítica nunca está com a razão Pelo contrário os pensamentos que tanto gostaríamos de suprimir revelamse sem exceção os mais importantes os mais decisivos para a descoberta do in consciente É verdadeiramente uma distinção quando um pensamento espontâneo é acompanhado de uma ob jeção desse tipo Essa resistência é algo inteiramente novo um fenô meno que encontramos com base em nossas premissas mas que não era parte delas Em nosso cálculo o novo fator não representa uma surpresa propriamente agradá vel Antevemos que ele não vai facilitar nosso trabalho Na verdade ele poderia mesmo nos convencer a aban donar todo esse nosso empenho em torno do sonho Uma coisa tão desimportante como o sonho e ainda por cima tamanhas dificuldades em vez de uma técnica pura e simples Por outro lado essas mesmas dificulda des poderiam nos estimular e fazer supor que o traba lho valerá a pena É comum depararmos com resistên cias sempre que desejamos avançar do sucedâneo que é o que o elemento do sonho significa em direção ao oculto e inconsciente É lícito portanto pensarmos que por trás desse sucedâneo ocultase algo importante Do contrário por que tantas dificuldades para conservar o ocultamento Quando uma criança não quer abrir o pu nho fechado para mostrar o que ele guarda então com certeza é algo impróprio que ela não deveria ter No momento em que introduzimos nesse quadro a noção dinâmica de uma resistência precisamos também 11 OS SONHOS levar em conta que esse fator é quantitativamente va riável Pode haver resistências maiores ou menores e estamos preparados para deparar com diferenças desse tipo ao longo de nosso trabalho Talvez devamos con jugar com essa uma outra descoberta que fazemos ao interpretar um sonho por vezes uma única associação ou apenas umas poucas já basta para nos conduzir do elemento do sonho a seu conteúdo inconsciente ao pas so que outras vezes longas cadeias de associações e a superação de muitas objeções críticas se fazem necessá rias para tanto Diremos a nós mesmos que essas diferenças estão relacionadas à grandeza variável da resistência e é pro vável que tenhamos razão Se a resistência é pequena o sucedâneo não se acha muito distante do conteúdo in consciente uma grande resistência porém traz consigo grandes deformações desse material inconsciente e as sim um longo caminho de volta desde o sucedâneo até o conteúdo inconsciente Agora talvez tenha chegado a hora de tomarmos um sonho para nele aplicar nossa técnica a fim de verificar se nossas expectativas em relação a ela se confirmam Sim mas que sonho escolher para isso Os senhores não vão acreditar na dificuldade que tenho para tomar essa decisão e ainda não posso fazêlos compreender a causa dessa dificuldade É evidente que devem existir sonhos que sofreram pouca deformação e o melhor seria come çarmos por eles Mas que sonhos se apresentam menos deformados Os compreensíveis e nada confusos dos quais já apresentei dois exemplos aos senhores Seria um 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES equívoco escolhêlos O exame mostra que esses sonhos sofreram um grau extremamente alto de deformação Se no entanto renuncio a uma condição específica e escolho um sonho qualquer é provável que os senhores fiquem muito decepcionados É possível que tenhamos de apon tar ou listar um número tão grande de associações vincu ladas a cada elemento do sonho que o trabalho acabará por resultar completamente impenetrável Se anotamos o sonho e contrapomos a ele o registro de todas as associa ções que ele suscitou o número destas pode facilmente ultrapassar em muito o texto onírico em si O mais profí cuo pareceria portanto escolher para a análise diversos sonhos curtos que possam ao menos cada um deles nos dizer ou confirmar alguma coisa Será essa nossa deci são a menos que a experiência nos indique onde encon trar de fato os sonhos menos deformados Todavia conheço também outro modo de facilitar nosso caminho Em vez de nos lançarmos à interpreta ção de sonhos inteiros vamos nos limitar a elementos isolados dos sonhos e observar a partir de uma série de exemplos como eles encontram explicação mediante o emprego de nossa técnica a Uma senhora conta que quando criança sonha va com bastante frequência que Deus tinha sobre a ca beça um chapéu pontiagudo de papel Como haverão os senhores de entender isso sem o auxílio da sonhadora Seu sonho soa completamente absurdo Deixa de sêlo porém quando a senhora relata que à mesa quando criança costumavam pôr um chapéu semelhante em sua cabeça porque ela não conseguia parar de olhar I 57 11 OS SONHOS para o prato dos irmãos queria ver se tinham recebido mais comida que ela O chapéu deveria pois servir de antolhos De resto uma informação histórica forneci da sem qualquer dificuldade A interpretação desse ele mento e por consequência de todo esse sonho breve resulta fácil com o auxílio de uma associação feita pela sonhadora Como tinham me dito que Deus era onis ciente e via tudo disse ela esse sonho só pode signi ficar que sei e vejo tudo como Deus mesmo quando tentam me impedir de fazêlo Tratase talvez de um exemplo demasiado simples h Uma paciente cética tem um sonho mais longo durante o qual certas pessoas lhe contam sobre meu li vro acerca do chiste e o elogiam bastante Depois men cionam algo sobre um canal talver outro livro em que aparece um canal alguma coisa relacionada a canal ela não sahe ao certo não está claro Com certeza os senhores tenderão a acreditar que o elemento canal fugirá à interpretação por ser ele pró prio tão indefinido E estão certos quanto à dificuldade que aí supõem mas essa dificuldade não decorre da fal ta da clareza a falta de clareza é que decorre de outro motivo o mesmo que torna difícil a interpretação Nada ocorre à sonhadora que ela seja capaz de vincular a canal eu é claro tampouco sei o que dizer Passado algum tempo na verdade no dia seguinte ela re lata terlhe ocorrido algo que taver esteja relacionado ao assunto Tratase de uma piada que alguém lhe con tou Em um navio entre Dover e Calais um conhecido escritor conversa com um inglês que em determina 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES do contexto cita a frase Du sublime au ridicule il ny a quun pas Do sublime ao ridículo há apenas um passo O escritor responde Oui le Pas de Calais O que ele quer dizer é que acha a França grandiosa e a Inglaterra ridícula O Pas de Calais no entanto é um canal o Ca nal da Mancha Se acho que essa associação tem relação com o sonho É claro que sim na realidade ela dá so lução ao elemento misterioso do sonho Ou os senhores duvidam que anteriormente ao sonho essa piada já es tava presente como conteúdo inconsciente de canal Supõem então que ele só foi acrescentado depois A associação que ocorreu à paciente dá testemunho de seu ceticismo um ceticismo que nela se oculta por trás de uma insistente admiração A resistência é provavel mente a razão para ambas as coisas tanto para a asso ciação tão hesitante como para a indefinição do corres pondente elemento do sonho Observem aqui a relação deste último com seu conteúdo inconsciente Ele é como um pedacinho desse inconsciente como uma alusão a ele mas seu isolamento tornouo incompreensível c Um paciente tem um sonho dotado de contextua lização mais extensa À volta de uma mesa de formato particular estão sentados diversos membros de sua fa mília etc Em relação à mesa o que lhe ocorre é que já havia visto móvel semelhante em visita a determinada família Seus pensamentos prosseguem nessa família pai e filho tinham um relacionamento especial ao que ele logo acrescenta que na verdade o mesmo acontece entre ele e seu pai A mesa portanto figura no sonho para caracterizar esse paralelo 11 OS SONHOS Esse paciente estava familiarizado havia tempo com as demandas da interpretação dos sonhos Um outro talvez tivesse se surpreendido com o fato de um detalhe tão insignificante como a forma de uma mesa ser toma do como objeto de pesquisa Na verdade não há nada que consideremos casual ou indiferente num sonho é justamente da explicação para detalhes tão ínfimos e imotivados que esperamos obter informação Os senho res talvez se admirem de o trabalho onírico ter se valido da escolha da mesa para dar expressão ao pensamento em nossa casa é éomo na deles Mas também isso es tará explicado se eu disser aos senhores que a família em questão tinha por sobrenome Tischler marceneiro Na medida em que nosso sonhador faz seus parentes tomarem lugar àquela mesa Tisch em alemão ele os declara Tischler também Notem de resto como a co municação de tais interpretações de sonhos nos torna necessariamente indiscretos Os senhores reconhecerão aí uma das dificuldades que sugeri existir na escolha de exemplos Teria sido fácil para mim substituir o presen te exemplo por outro mas provavelmente só teria evita do uma indiscrição à custa de outra É hora pareceme de introduzir aqui dois termos que há muito poderíamos ter empregado Àquilo que o sonho narra chamamos conteúdo manifosto do sonho ao conteúdo oculto ao qual nos cabe chegar pela via das associações damos o nome de pensamentos oníricos la tentes Atentemos pois para as relações entre conteúdo onírico manifesto e pensamentos oníricos latentes como elas se apresentam nesses exemplos Essas relações po 160 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES dem ser de caráter bastante diverso Nos exemplos a e h o elemento manifesto é parte dos pensamentos la tentes constituindo porém pequena porção deles Da grande construção psíquica amalgamada nos pensa mentos oníricos inconscientes um pedacinho também alcança o sonho manifesto sob a forma de fragmento ou em outros casos de uma alusão como uma rubrica uma abreviação em estilo telegráfico O trabalho interpreta tivo precisa reconstituir o todo a partir desse pedaço ou alusão o que conseguimos fazer muito bem no exemplo h Um dos tipos de deformação em que consiste o tra balho do sonho é pois a substituição por um fragmento ou alusão Em c além disso reconhecese outro tipo de relação o qual nos exemplos que se seguem vemos expresso de modo mais puro e nítido d O sonhador tira hervorziehen uma dama deter minada conhecida de detrás da cama Já na primeira coisa que lhe ocorre ele mesmo encontra o sentido des se elemento do sonho O significado é que ele dá prefi rência vorziehen à dama em questão e Outro sonha que seu irmão está dentro de uma caixa Sua primeira associação substitui caixa Kasten por armário Schrank a segunda fornece a interpretação o que o irmão está fazendo é se restringir sich einschranken f O sonhador escala uma montanha de cima da qual desfruta de uma vista ampla e extraordinária Isso soa in teiramente racional talvez não haja aí o que interpre tar tratandose de descobrir apenas a que reminiscên cia o sonho se refere e por que motivo ela foi evocada Mas os senhores se equivocam O que se revela é que 161 11 OS SONHOS esse sonho necessita tanto de interpretação quanto al gum outro mais confuso Com efeito nada ocorre ao sonhador acerca da escalada de uma montanha o que lhe vem à mente é que um conhecido está organizando um número da revista Rundschau ao pé da letra vista panorâmica dedicado a nossas relações com continen tes os mais longínquos O pensamento onírico latente é aqui portanto a identificação do sonhador com o Rundschauer aquele que olha em torno desfrutando da vista panorâmica Os senhores encontram aqui um novo tipo de re lação entre os elementos manifesto e latente do sonho Aquele não é bem uma deformação mas uma represen tação desse mediante uma imagem plástica concreta que tem na literalidade da palavra seu ponto de parti da Não obstante e por isso mesmo tratase de novo de uma deformação uma vez que já não sabemos em que imagem concreta a palavra teve origem razão pela qual não a reconhecemos quando é substituída pela imagem Se os senhores levarem em consideração que o sonho manifesto se constitui predominantemente de imagens visuais raras vezes de pensamentos ou pa lavras poderão adivinhar que cabe a esse tipo de relação importância especial na formação do sonho Veem também que por esse caminho tornase possí vel a uma grande série de pensamentos abstratos criar no sonho manifesto imagens substitutivas que afinal servem unicamente ao propósito do ocultamento Essa é a técnica dos conhecidos enigmas compostos de ima gens De onde vem a aparência de algo chistoso que tais 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES representações têm essa é uma questão especial de que não carece nos ocuparmos aqui Acerca de um quarto tipo de relação existente entre os elementos manifesto e latente devo me calar até que ela seja mencionada em nossa técnica Mesmo então não terei feito aos senhores uma enumeração completa mas isso é quanto basta para nossos propósitos Têm os senhores a coragem de se lançar agora à in terpretação de um sonho completo Façamos a tentati va e vejamos se estamos bem equipados para essa tare fa Naturalmente não vou escolher nenhum dos sonhos mais obscuros mas decerto optarei por um que traz bem marcadas as propriedades do sonho Pois bem Uma jovem dama casada há muitos anos sonha o seguinte Está no teatro com o marido e todo um lado da plateia está vario O marido conta a ela que Eise L e o noivo tamhém queriam ir mas só haviam encontrado lugares ruins três por um florim e cinquenta centavos os quais não puderam aceitar Não teria sido nenhuma desgra ça é o que pensa a jovem dama A primeira coisa que a sonhadora nos conta é que o pretexto para o sonho é mencionado no próprio con teúdo manifesto O marido de fato contara a ela que Elise L uma conhecida mais ou menos da mesma ida de tinha ficado noiva O sonho é uma reação a esse co municado Sabemos já que para muitos sonhos é fácil buscar justificativa em um episódio do dia anterior e que tais derivações são com frequência apontadas pelo sonhador sem nenhuma dificuldade Outras informa ções desse mesmo tipo para outros elementos do sonho 11 OS SONHOS manifesto nos são também fornecidas pela sonhadora Qual a procedência do detalhe segundo o qual todo um lado da plateia estava vazio Tratase de uma alusão a um fato real ocorrido na semana anterior Ela preten dera ir a um espetáculo teatral e por isso comprara in gressos antecipadamente e com tanta antecedência que precisara pagar uma taxa pela venda antecipada Quan do chegou ao teatro verificouse que sua preocupação havia sido desnecessária uma vez que um lado da pla teia estava quase vario Teria podido comprar os ingres sos no próprio dia do espetáculo O marido tampouco perdera a oportunidade de provocála por causa daque la precipitação E quanto ao preço um florim e cinquen ta centavos A informação provinha de outro contexto bem diferente que nada tinha a ver com o anterior mas que de novo fazia alusão a notícia recente Sua cunha da ganhara de presente do marido a soma de 150 florins e a parvalhona logo correra ao joalheiro para gastar o dinheiro numa joia De onde vem o número 3 Sobre isso a sonhadora não sabe o que dizer a não ser que aceitemos a associação que fez a noiva Elise L era três meses mais nova que ela que já estava casada fazia quase dez anos E quanto ao absurdo de se comprar três ingressos se são apenas duas pessoas A esse respeito a sonhadora não diz nada recusase a fazer qualquer outra associação e a dar mais informações Contudo ao nos relatar suas poucas associações a jovem dama nos deu tanto material que a partir dele é possível adivinhar seus pensamentos oníricos latentes Há de chamar a atenção que em suas comunicações 7 CONTEÚDO ONÍRICO MANIFESTO E PENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES acerca do sonho surjam em vários lugares informações temporais precisas as quais fundamentam um ponto comum entre partes diversas do material Ela comprou cedo demais os ingressos para o teatro precipitouse em têlos à mão tanto assim que precisou pagar mais por isso A cunhada de modo similar apressase rumo ao joalheiro a fim de comprar uma joia com o dinheiro ga nho como se corresse o risco de se atrasar ao fazêlo Juntemos a esses tão enfáticos cedo demais e preci pitadamente o pretexto em si para o sonho a notícia segundo a qual a amiga apenas três meses mais jovem encontrara enfim um homem decente e a crítica ex pressa no xingamento dirigido à cunhada a de que aquela sua pressa era absurda e como que espon taneamente deparamos com a seguinte construção dos pensamentos oníricos latentes para os quais o sonho manifesto constitui maldisfarçado sucedâneo Foi um absurdo da minha parte ter me apressado tanto em me casar Pelo exemplo de Elise vejo agora que mesmo mais tarde teria arrumado um marido A pressa é representada por seu comportamento quan do da compra dos ingressos e pelo da cunhada ao com prar a joia O sucedâneo para o casamento surge aqui como a ida ao teatro Teríamos aí o pensamento prin cipal Talvez possamos seguir adiante embora com menor certeza porque nos pontos a seguir a análise não poderia prescindir das manifestações da sonhado ra Teria conseguido um lugar cem vezes melhor pelo mesmo dinheiro cento e cinquenta florins é cem ve zes mais que um florim e cinquenta centavos Se nos 11 OS SONHOS é lícito tomar o dinheiro pelo dote isso significaria a compra do marido com o dote tanto a joia como os ingressos ruins figurariam aqui no lugar do cônjuge Ainda mais desejável seria que precisamente o elemen to três ingressos tivesse algo a ver com um homem Nossa compreensão porém não chega a tanto Adivi nhamos apenas que o sonho expressa a suóestimação do marido e o arrependimento por ter se casado tão cedo Meu juízo é que ficaremos mais surpresos e confusos do que satisfeitos com o resultado dessa primeira inter pretação de um sonho Ela nos fornece dados demais de uma só vez mais do que aquilo com que no mo mento temos a capacidade de lidar Notamos já que não vamos esgotar os ensinamentos dessa interpretação Apressemonos pois em extrair daí a percepção da queles que reconhecemos como conhecimentos novos e seguros Em primeiro lugar é notável que nos pensamen tos latentes a ênfase principal recaia sobre o elemento da precipitação no sonho manifesto não encontramos sinal dele Sem a análise não poderíamos ter ideia de que esse fator desempenha um papel Parece portanto possível que justamente o principal aquilo que é central nos pensamentos inconscientes fique de fora do sonho manifesto Em razão disso a impressão que temos do sonho todo precisa ser profundamente transformada Em segundo lugar encontramos no sonho uma com binação sem sentido três por um florim e cinquenta Dos pensamentos oníricos extraímos a frase foi um absurdo ter me casado tão cedo Podese descartar a 166 8 SONHOS OE CRIANÇAS possibilidade de esse pensamento foi um absurdo ser representado no sonho manifesto pela inclusão neste de um elemento absurdo Em terceiro lugar um olhar comparativo ensina que a relação entre elementos mani festos e latentes não é de modo algum uma relação sim ples na qual um único elemento manifesto seja sempre o substituto de outro latente Antes é necessário que haja uma relação de conjunto entre esses dois campos dentro da qual um elemento manifesto pode representar vários elementos latentes ou um elemento latente pode ser substituído por diferentes elementos manifestos No que toca ao sentido do sonho e ao comportamen to da sonhadora em relação a ele haveria também muita coisa surpreendente a dizer Ela por certo reconhece a interpretação mas se espanta com seu resultado Não sabia que subestimava tanto seu marido e tampouco sabe por que o faz Nisso portanto ainda há muito de incompreensível Acredito realmente que ainda não es tamos equipados para interpretar um sonho e que ne cessitamos aprender mais e nos preparar melhor S SONHOS DE CRIANÇAS Senhoras e senhores Temos a impressão de que avan çamos depressa demais Recuemos um pouco Antes de empreendermos nossa recente tentativa de superar a difi culdade da deformação do sonho mediante nossa técnica havíamos dito a nós mesmos que melhor seria circundá r 11 OS SONHOS la atendonos àqueles sonhos em que a deformação não se apresenta ou se mostra em grau mínimo caso existam sonhos assim De novo isso representa um desvio na li nha evolutiva de nosso conhecimento uma vez que na realidade só notamos a existência dos sonhos livres de deformação depois de termos empregado com coerência nossa técnica interpretativa e de havermos efetuado aná lises completas dos sonhos deformados Os sonhos que procuramos se acham nas crianças Eles são curtos claros coerentes fáceis de entender e inequívocos e no entanto são indubitavelmente so nhos Não creiam os senhores que todos os sonhos in fantis são dessa mesma natureza Também a deforma ção do sonho tem início bem no começo da infância já se registraram sonhos de crianças de cinco a oito anos que traziam em si todas as características dos posterio res Se contudo os senhores se limitarem ao período que vai desde o início da atividade psíquica reconhe cível até o quarto ou quinto ano de vida reunirão uma série de sonhos possuidores do caráter que se pode cha mar de infantil podendo ainda encontrar exemplos iso lados desses mesmos sonhos nos anos finais da infância Na verdade sob certas condições até pessoas adultas têm sonhos idênticos àqueles típicos da infância Desses sonhos infantis podemos extrair com grande facilidade e grau de certeza esclarecimentos acerca da natureza do sonho que segundo esperamos hão de se mostrar decisivos e de validade universal 1 Para a compreensão desses sonhos não é necessá rio realizar nenhuma análise e tampouco empregar uma 68 8 SONHOS DE CRIANÇAS técnica Não precisamos questionar a criança que conta seu sonho Mas é preciso acrescentar algumas informa ções de sua vida Sempre deparamos com uma expe riência vivida no dia anterior a nos explicar seu sonho O sonho é a reação da vida psíquica durante o sono a essa experiência vivida durante o dia Vejamos alguns exemplos a fim de neles basear con clusões ulteriores a Um menino de 22 meses deve dar de presente de aniversário uma cesta de cerejas Claramente ele o faz muito a contragosto embora tenham lhe prometido que ele próprio ganharia algumas delas Na manhã seguinte ele conta seu sonho Hermann comeu todas as cerejas h Uma menina de três anos e três meses atravessa o lago pela primeira vez Na hora de desembarcar ela se recusa a deixar o barco e chora copiosamente Para ela a viagem de barco parece ter passado rápido demais Na manhã seguinte Essa noite estive no lago Por certo po demos complementar essa viagem durou mais tempo c Um garoto de cinco anos e três meses participa de uma excursão ao Escherntal junto de Hallstatt Tinha ouvido falar que Hallstatt ficava no sopé da Dachstein montanha pela qual demonstrara grande interesse Da casa no Aussee tinha uma bela vista da Dachstein e com o binóculo podiase ver lá no topo a Cabana de Si mony O menino se empenhara repetidas vezes para con seguir avistar a cabana com o binóculo não se sabe com que resultado A excursão começou em um clima alegre de muita expectativa Sempre que uma nova montanha surgia o garoto perguntava Essa aí é a Dachstein 11 OS SONHOS Seu humor ia piorando à medida que recebia um não como resposta até que se calou de vez e não quis seguir a pequena trilha até a cachoeira Acharam que estava can sado demais mas na manhã seguinte ele relatou com grande felicidade Essa noite sonhei que estivemos na Cabana de Simony Havia sido com essa expectativa portanto que ele tomara parte na excursão Acerca dos detalhes relatou apenas o que já tinha ouvido antes até lá em cima são seis horas subindo degraus Esses três sonhos bastam para nos fornecer todas as informações desejadas 2 Vemos que esses sonhos infantis não são despro vidos de sentido são atos psíquicos compreensíveis e ple namente válidos Lembremse do que lhes disse inicial mente sobre o juízo da medicina acerca dos sonhos a comparação com dedos não versados em música desli zando sobre as teclas do piano Não escapará aos senho res quão radicalmente esses sonhos infantis contrariam aquela concepção Seria contudo demasiado peculiar que justamente a criança seja capaz de feitos psíquicos plenos durante o sono enquanto um adulto se contenta com reações semelhantes a espasmos Temos ademais todas as razões para acreditar que a criança goza de um sono melhor e mais profundo 3 Esses sonhos são isentos de deformação e por isso não requerem trabalho interpretativo Aqui os sonhos manifesto e latente coincidem Assim a deformação não é da essência do sonho Suponho que isso tira um peso do coração dos senhores Todavia examinandoos mais de perto admitiremos haver uma porçãozinha de deforma 8 SONHOS DE CRIANÇAS ção certa diferença entre conteúdo onírico manifesto e pensamentos oníricos latentes também nesses sonhos 4 O sonho infantil é a reação a uma experiência vi vida durante o dia que deixou algum arrependimento algum anseio ou um desejo não realizado O sonho tra a realiação direta não encoberta desse desejo Pensem agora em nossas explicações sobre o papel dos estímu los corporais externos ou internos como perturbadores do sono e incitadores de sonhos Chegamos a ele por meio de fatos absolutamente seguros mas não logramos elucidar dessa maneira senão uma pequena quantidade de sonhos Nesses sonhos infantis nada aponta para a influência de tais estímulos somáticos nisso não temos como nos equivocar uma vez que os sonhos são intei ramente compreensíveis e fáceis de apreender em sua totalidade Nem por isso contudo é necessário que de sistamos da etiologia dos estímulos no sonho Podemos tão somente nos perguntar por que desde o início nos esquecemos de que além dos corporais há também es tímulos psíquicos perturbadores do sono Sabemos afi nal que devemos a tais excitações a perturbação do sono do adulto na medida em que elas o impedem de produ zir a disposição psíquica para o sono ou seja a retirada do interesse no mundo Ele não quer interromper a vida preferindo antes dar continuidade ao trabalho nas coi sas que o ocupam razão pela qual não adormece Para a criança tal estímulo psíquico perturbador do sono é o desejo não resolvido ao qual ela reage com o sonho 5 Daí chegamos pelo caminho mais curto a uma informação importante sobre a função do sonho Como 11 OS SONHOS reação ao estímulo psíquico ele precisa ter o valor de uma resolução desse estímulo a fim de que este possa ser eliminado e o sono possa prosseguir De que forma o sonho possibilita dinamicamente essa resolução ain da não sabemos mas já podemos perceber que o sonho não perturba o sono como ele é acusado de fazer ele é antes o guardião do sono o eliminador das perturbações ao sono Embora acreditemos que teríamos dormido melhor se não fosse pelo sonho estamos errados na realidade sem o auxílio do sonho não teríamos nem sequer dormi do É mérito do sonho que tenhamos dormido bem Ele não deixa de nos incomodar um pouco da mesma forma como o guardanoturno com frequência é obrigado a fa zer algum ruído enquanto dá caça aos perturbadores da paz desejosos de nos acordar com seu barulho 6 Que um desejo seja o causador do sonho que a realização desse desejo seja o conteúdo do sonho é uma de suas características principais A outra caracterís tica igualmente constante é que o sonho não apenas dá expressão a um pensamento mas apresenta sob a forma de uma experiência alucinatória aquele desejo como realizado Quero atravessar o lago diz o desejo que enseja o sonho o sonho em si tem por conteúdo estou atravessando o lago Portanto uma diferença en tre os sonhos latente e manifesto uma deformação do pensamento onírico latente está presente também nes ses simples sonhos infantis tratase da transformação do pensamento em experiência 11i11ida Na interpretação do sonho cumpre sobretudo desfazer essa alteração Caso isso venha a se confirmar como uma característica das 8 SONHOS OE CRIANÇAS mais gerais do sonho então o fragmento relatado an teriormente yejo meu irmão dentro de uma caixa não se traduz por meu irmão se restringe e sim por eu gostaria que meu irmão se restringisse meu irmão pre cisa se restringir Das duas características gerais do so nho apresentadas aqui a segunda tem obviamente mais chance de ser aceita sem contestação do que a primeira Apenas mediante investigações bastante abrangentes poderemos assegurar que o causador do sonho há de ser sempre um desejo e não uma preocupação uma inten ção ou uma recriminação Isso no entanto não afetará a outra característica a de que o sonho não reproduz simplesmente esse estímulo mas o anula elimina re solve por meio de uma espécie de experiência vivida 7 A partir dessas características do sonho pode mos retomar a comparação do sonho com o ato falho Neste último diferenciamos a tendência perturbadora daquela que sofreu perturbação constituindo o ato fa lho um compromisso entre ambas O sonho inserese nesse mesmo esquema A tendência que sofreu pertur bação só pode ser a tendência a adormecer A tendência perturbadora é substituída nesse caso pelo estímulo psíquico ou digamos pelo desejo que demanda resolu ção porque não identificamos até o momento nenhum outro estímulo psíquico perturbador Também o sonho é resultado de um compromisso As pessoas dormem mas experimentam a eliminação de um desejo satisfa zem um desejo mas ao mesmo tempo prosseguem com o sono Ambas as coisas são em parte realizadas e em parte abandonadas 173 11 OS SONHOS 8 O senhores se lembram de que anteriormente nu trimos a esperança de obter acesso à compreensão dos problemas do sonho a partir do fato de que certas cons truções fantasiosas e bastante transparentes para nós são chamadas de sonhos diurnos Esses sonhos diurnos são na verdade realizações de desejos de desejos ambicio sos e eróticos que nos são bem conhecidos Mas ainda que vividamente representados são desejos pensados jamais vividos de forma alucinatória Das duas caracte rísticas principais do sonho os sonhos diurnos mantêm portanto aquela de que temos menos segurança ao pas so que a outra está ausente porque depende do sono e não é realizável no estado de vigília O uso da língua nos dá pois um sinal de que a realização do desejo é característica central do sonho Paralelamente a isso se a experiência vivida no sonho é apenas imaginação transformada possibilitada pelas condições do sono ou seja um sonhar diurno noturno compreendese de pronto que o processo de formação do sonho logra eliminar o estímulo noturno e proporcionar satisfação uma vez que também o sonho diurno é atividade ligada à satisfação e que só cultivamos por causa dela Além desse outros usos da língua se manifestam na mesma direção Conhecidos provérbios alemães dizem que o porco sonha com bolotas de carvalho e o ganso com milho ou perguntam com que sonha a galinha com milho Os provérbios portanto descem ainda mais indo da criança ao animal e afirmam que o conteúdo do sonho é a satisfação de uma necessidade Muitos usos idiomáticos parecem sugerir o mesmo como quando se 174 8 SONHOS DE CRIANÇAS diz da beleza que ela é de sonho ou quando afirmamos coisas como nem em sonho eu teria pensado nisso ou nem em meus sonhos mais ousados eu teria imagina do Nisso o uso da língua toma evidente partido É verdade que existem também sonhos angustiantes e so nhos de conteúdo embaraçoso ou indiferente mas estes não serviram de estímulo à língua Embora ela reconhe ça a existência de sonhos ruins o sonho em si é para ela apenas a doce realização de um desejo Tampouco encontramos um provérbio que nos assegure que o por co ou o ganso sonham com a própria morte Naturalmente é inconcebível que o caráter de realiza ção do desejo exibido pelo sonho não tenha sido notado pelos autores que escreveram sobre o assunto Na verdade muitas vezes esse caráter foi mencionado mas a ninguém ocorreu reconhecêlo como uma característica geral e fazer dele a pedra angular para a explicação dos sonhos Bem podemos imaginar o que os impediu de tomar esse caminho e falaremos sobre isso em mais detalhe Mas vejam os senhores toda a gama de explicações que extraímos da consideração dos sonhos infantis e quase sem esforço nenhum Depreendemos deles a fun ção do sonho como guardião do sono seu surgimento a partir de duas tendências concorrentes das quais uma permanece constante a demanda pelo sono ao passo que a outra almeja satisfazer um estímulo psíquico a prova de que o sonho é um ato psíquico pleno de senti do suas duas características principais a realização do desejo e a vivência alucinatória E ao descobrir tudo isso quase pudemos nos esquecer de que estávamos fa 175 11 OS SONHOS zendo psicanálise À parte a ligação estabelecida com os atos falhos nosso trabalho não exibiu nenhum cunho especificamente psicanalítico Qualquer psicólogo que nada saiba dos pressupostos da psicanálise poderia ter nos fornecido o mesmo esclarecimento acerca dos so nhos infantis Por que nenhum o fez Se só existissem sonhos como os infantis o proble ma estaria resolvido nossa tarefa teria sido cumprida e aliás sem inquirir o sonhador sem recorrer ao inconsciente e sem fazer uso da livre associação Aí está evidentemente a tarefa ainda a cumprir Repetidas vezes já nos ocorreu de características dadas como de validade geral se confirmarem apenas em certo tipo e certa quantidade de sonhos Para nós tratase assim de saber agora se as características gerais depreendidas dos sonhos infantis são mais duradouras se elas valem também para sonhos não transparentes cujo conteúdo manifesto não permite reconhecer nenhuma relação com algum desejo diurno que restou Acreditamos que esses outros sonhos sofreram uma abrangente defor mação e por isso não podem ser avaliados de pronto Imaginamos também que para o esclarecimento des sa deformação vamos precisar da técnica psicanalítica da qual pudemos prescindir na recémadquirida com preensão dos sonhos infantis Existe todavia ainda uma classe de sonhos que não se mostram deformados e que como os infantis podem facilmente ser reconhecidos como realizações de dese jos São aqueles que ao longo de toda a vida são pro vocados por necessidades somáticas imperativas como a 175 8 SONHOS DE CRIANÇAS fome a sede a necessidade sexual ou seja realizações de desejos como reação a estímulos somáticos internos As sim anotei um sonho de uma menina de dezenove meses que consistia em um cardápio do qual constava também o nome dela Anna F morangos morangos silvestres ovos mexidos mingau como reação a um dia de jejum motivado por um problema digestivo problema este que fora relacionado à fruta que figura duas vezes no sonho Ao mesmo tempo sua avó cuja idade somada à da neta perfazia setenta anos precisara jejuar um dia inteiro em razão do transtorno de um rim flutuante e na mesma noite sonhou que convidada à casa de alguém lhe ha viam servido os melhores petiscos Observações feitas em prisioneiros obrigados a passar fome e em pessoas que sofreram privações em viagens e expedições ensi nam que sob tais condições são constantes os sonhos em que figura a satisfação de tais necessidades É o que em Antarctic 1904 Otto Nordenskjold relata sobre a tripulação que passou o inverno com ele vol I pp 336 ss Bastante característico da direção tomada por nos sos pensamentos mais íntimos eram nossos sonhos que jamais haviam sido tão vívidos e numerosos como ago ra Mesmo aqueles dentre nossos camaradas que em ge ral quase nunca sonhavam tinham agora pela manhã quando trocávamos nossas últimas experiências nesse mundo da fantasia longas histórias para contar Todas elas tratavam do mundo exterior agora tão distante de nós embora com frequência adaptadas a nossa situação atual Na maior parte das vezes nossos sonhos gira vam em torno de comida e bebida Um de nós que se 177 11 OS SONHOS distinguia por participar de grandes almoços noturnos ficava felicíssimo quando de manhã podia contar que tinha feito uma refeição de três pratos outro sonhava com tabaco com montanhas inteiras de tabaco e outros ainda com o navio que a toda vela se aproximava pelo mar aberto Menção aqui merece também um outro so nho O carteiro vem trazer a correspondência e dá uma longa explicação sobre por que ela demorou tanto a che gar ele a teria entregado no endereço errado e somen te depois de muito esforço havia conseguido reavêla É claro que durante o sono nos ocupávamos de coisas ainda mais impossíveis mas a falta de fantasia em quase todos os sonhos tanto os que eu próprio sonhei como aqueles que me contaram era bastante notável Decer to seria de grande interesse psicológico que todos esses sonhos tivessem sido anotados Mas é fácil compreender o quanto ansiávamos pelo sono uma vez que ele podia nos oferecer o que cada um de nós mais ardentemen te desejava Cito ainda uma passagem extraída de Du Prel Mungo Park perto de morrer de sede em viagem pela África sonhava sem cessar com os vales e as prada rias abundantes em água de sua terra natal Da mesma forma Trenck atormentado pela fome na fortaleza de Magdeburgo viase cercado de opulentas refeições e George Back que participou da primeira expedição de Franklin sonhava constante e regularmente com ricos banquetes enquanto em consequência de terríveis pri vações aproximavase da morte por inanição É comum que vítima de sede noturna uma pessoa que tenha degustado pratos de forte tempero durante o 178 8 SONHOS DE CRIANÇAS jantar sonhe estar bebendo No sonho é decerto impos sível resolver uma necessidade mais forte de comida ou bebida o sonhador acorda sedento e precisa então to mar água de verdade Na prática é insignificante o que o sonho opera nesse caso mas não menos claro é que ele surge com o propósito de preservar o sono do estí mulo que compele ao despertar e à ação Com frequên cia porém tratandose de necessidades menos intensas sonhos de satisfação bastam para superálas Também sob a influência de estímulos sexuais o so nho proporciona satisfação mas esta revela peculiarida des dignas de nota Em razão de o instinto sexual ser um pouco menos dependente de seu objeto do que a fome e a sede a satisfação nos sonhos em que há polução pode ser real em virtude de certas dificuldades na relação com o objeto as quais mencionaremos mais adiante é muito comum que essa satisfação real se vincule a um conteúdo onírico obscuro ou deformado Como notou Otto Rank essa peculiaridade dos sonhos que apresen tam polução os torna objetos propícios para o estudo da deformação do sonho Nos adultos aliás todos os so nhos motivados por necessidade costumam conter além da satisfação algo que provém de fontes estimuladoras puramente psíquicas e que para sua compreensão de mandam interpretação De resto não é nosso desejo afirmar que os sonhos de realização de um desejo dos adultos moldados à se melhança dos infantis só ocorrem como reação às ne cessidades imperativas já mencionadas Conhecemos também sonhos curtos e claros dessa mesma natureza 179 11 OS SONHOS influenciados por certas situações dominantes os quais provêm de fontes estimuladoras indubitavelmente psí quicas Assim é por exemplo com os sonhos de impa ciência quando alguém já fez os preparativos para uma viagem uma apresentação teatral que lhe é importante uma palestra ou uma visita e sonha então com a rea lização antecipada de sua expectativa ou seja na noite anterior ao evento vêse já em seu destino no teatro ou em conversa com seu anfitrião O mesmo se verifica naqueles que com razão são chamados sonhos de con forto quando alguém que gostaria de prolongar o sono sonha já ter se levantado se lavado ou já estar na es cola ao passo que na realidade segue dormindo pre fere levantarse no sonho a fazêlo de verdade Nesses sonhos o desejo de dormir que já identificamos como partícipe constante da formação do sonho ganha clara expressão e se revela seu principal formador A necessi dade de dormir colocase com toda razão ao lado das outras grandes necessidades físicas Quero mostrar aos senhores mediante a reprodução de um quadro de Schwind que está na Galeria Schack de Munique com que propriedade o pintor apreendeu o surgimento de um sonho a partir de uma situação vi gente Tratase do Sonho do prisioneiro que não pode ria ter por conteúdo outra coisa senão sua libertação É muito próprio que a libertação ocorra por meio da janela porque dela penetra o estímulo de luz que põe fim ao sono do prisioneiro Os gnomos sobrepostos provavelmente representam as sucessivas posições que ele teria de assumir em sua escalada para alcançar a al r8o 8 SONHOS OE CRIANÇAS tura da janela e se não estou enganado se não atribuo ao artista demasiada intencionalidade o gnomo mais ao alto aquele que serra as grades fazendo portanto o que ele próprio gostaria de fazer ostenta os mesmos traços faciais do prisioneiro Em todos os sonhos à exceção dos infantis e da queles de tipo infantil a deformação como já afirmei se interpõe em nosso caminho como um impedimento De início não sabemos dizer se todos eles são realização de um desejo como supomos de seu conteúdo manifes to não depreendemos o estímulo psíquico que lhes deu origem e tampouco podemos provar que estão todos empenhados na abolição ou resolução desse estímulo Precisam ser interpretados isto é traduzidos é necessá rio desfazer a deformação substituir seu conteúdo ma nifesto pelo latente antes que possamos formar um juízo sobre se aquilo que descobrimos em relação aos sonhos infantis pode reivindicar validade para todos os sonhos 81 Moritz von Schwind O sonho do prisioneiro 9 A CENSURA DOS SONHOS 9 A CENSURA DOS SONHOS Senhoras e senhores A partir do estudo dos sonhos de crianças pudemos conhecer a gênese natureza e função do sonho Os sonhos são remoções de estímulos psíquicos perturbadores do sono pela via da satisfoção alucinatória Dos sonhos dos adultos no entanto logramos esclare cer um só grupo aquele formado pelos sonhos que de signamos de tipo infantil O que se passa com os demais ainda não sabemos e tampouco os compreendemos Por enquanto chegamos a uma conclusão cuja impor tância não queremos subestimar Sempre que um sonho é inteiramente compreensível ele se revela a realização alucinatória de um desejo Essa coincidência não pode ser casual nem irrelevante Com base em reflexões diversas e na analogia com nossa concepção dos atos falhos supomos que um so nho de outro tipo seja um sucedâneo deformado de um conteúdo conhecido e precisa ser relacionado a este pri meiramente A investigação e a compreensão dessa de formação do sonho constituem pois nossa próxima tarefa A deformação do sonho é que faz com que ele nos pareça estranho e incompreensível Queremos saber várias coisas a seu respeito em primeiro lugar de onde ela vem sua dinâmica em segundo o que ela faz e por fim como o faz Podemos afirmar também que a defor mação é obra do trabalho do sonho Vamos pois des crever o trabalho do sonho e remontálo às forças que nele atuam 11 OS SONHOS Ouçam agora o sonho que vou lhes contar Ele foi registrado por uma dama de nosso círculo2 e segundo informou ela provém de uma senhora de meiaidade bastante respeitada e culta Não se procedeu a nenhu ma análise desse sonho Nossa informante assinala que para psicanalistas ele não necessita de interpretação A própria sonhadora tampouco o interpretou mas julgou o e condenouo como se soubesse interpretálo uma vez que declarou sobre ele E coisa semelhante repug nante e estúpida como essa é o que sonha uma mulher de cinquenta anos que noite e dia não pensa senão em cuidar do filho Eis o sonho dos serviços amorosos Ela vai ao hospital número I da guarnição e dir ao guarda no portão que precisa folar com o médicochefo doutor fala um nome que lhe é desconhecido porque quer prestar serviços no hospital Ao dirêlo ela enfotira a palavra serviços de tal maneira que o subo ficial nota de pronto que se trata de serviços amorosos Como é uma senhora de idade ele depois de certa he sitação a deixa entrar Mas em vet de ir até o médico chefo ela chega a uma sala grande e escura na qual muitos oficiais e médicos militares se encontram em pé e sentados ao redor de uma mesa comprida Ela se di 2 A dra von HugHellmuth No original Liehesdienste que significa primariamente serviço feito por caridade ou por obséquio mas que adquire no contex to um sentido menos inocente pois Liehe é amor 9 A CENSURA DOS SONHOS rige a um médico e capitão que depois de umas pou cas palaYras a compreende perfoitamente No sonho o conteúdo textual de sua fola é Eu e muitas outras mulheres e moças de Viena estamos prontas a em prol dos soldados de toda a corporação e de seus oficiais sem distinção Aqui a fola no sonho se torna um murmúrio Que porém ela foi bem compreendida por todos os presentes é o que mostram a ela as expressões em parte constrangidas em parte maliciosas nos rostos dos oficiais A dama prossegue Sei que nossa decisão causa estranhera mas ela foi tomada com toda a seriedade No campo de batalha tampouco perguntam ao soldado se quer ou não morrer Seguese um silêncio embaraçoso de cerca de um minuto O médico e capitão passa o braço pela cintura da dama e dir Prerada senhora suponha que chegue de foto a acontecer de murmúrio Ela se esquiYa do braço do capitão enquanto pensa consigo São mesmo todos iguais Em seguida responde Deus do céu sou uma mulher de idade e talYe nem chegue a tanto De resto uma condição teria de ser respeita da a de que se leYe em consideração a idade isto é a de que jamais uma mulher de meiaidade e um garoto joyem murmúrio Isso seria paYOroso O médico responde Compreendo perfoitamente Alguns oficiais riem alto dentre eles um que na juYentude a cortejou A dama então deseja ser leYada à presença do médico chife seu conhecido a fim de pôr tudo em pratos lim pos Para seu grande espanto ocorrelhe então que ela não sabe o nome dele Ainda assim o médico a instrui com muita gentilera e respeito a subir até o segundo li OS SONHOS andar por uma estreita escada de forro de caracol que conduz da sala onde se encontram até o andar de cima Ao suhir a escada ela ouve um oficial dizer É uma decisão colossal tanto foz se uma mulher é jovem ou velha Meus parahéns I E com o sentimento de estar cumprindo um dever ela sohe por uma escada sem fim Esse mesmo sonho se repete mais duas vezes em poucas semanas com modificações insignificantes e que não lhe comprometem o sentido geral como in forma a própria dama Em seu caráter contínuo tratase de um sonho que equivale a uma fantasia diurna São poucas as rupturas e muitos detalhes de conteúdo poderiam ter sido clarifi cados com uma investigação o que como os senhores sabem não ocorreu O que chama a atenção e desperta nosso interesse é o fato de o sonho ter várias lacunas lacunas não de memória mas de conteúdo Em três passagens é como se o conteúdo tivesse sido apagado As falas onde aparecem tais lacunas são interrompidas por um murmúrio Como não fizemos uma análise do sonho tampouco temos a rigor o direito de dizer al guma coisa sobre seu sentido Há nele porém alusões a partir das quais se podem tirar certas conclusões como por exemplo na palavra serviços amorosos acima de tudo os pedaços das falas que antecedem os murmú rios pedem uma complementação que não poderia ser mais inequívoca Se inserimos ali esse complemento teremos do ponto de vista do conteúdo uma fantasia segundo a qual a sonhadora está disposta a cumprindo 86 9 A CENSURA DOS SONHOS um dever patriótico oferecer sua própria pessoa para a satisfação das necessidades amorosas dos militares tan to dos oficiais como da corporação em geral Sem dú vida é muito chocante um exemplo de uma despudo rada fantasia libidinosa a qual no entanto nem sequer acontece no sonho Justamente onde o contexto exigiria esta confissão se acha no sonho manifesto um murmú rio indefinido algo se perdeu ou foi reprimido Espero que os senhores reconheçam como óbvio ser essa natureza chocante o motivo pelo qual as pas sagens em questão foram suprimidas Onde porém encontram os senhores paralelos dessa ocorrência Em nossos dias não é necessário ir muito longe Apanhem qualquer jornal que trate de política e os senhores verão que aqui e ali o texto está ausente em seu lugar rebri lha o branco do papel Todos aqui sabem que se trata da censura à imprensa Nos trechos agora em branco estava escrito alguma coisa malvista pela autoridade censora razão pela qual ela foi eliminada Por certo é uma pena pensam os senhores porque era o mais inte ressante a melhor passagem do artigo Outras vezes a atuação da censura não se deu no texto já pronto O autor previu para quais passagens se haveria de esperar a objeção da censura e em razão dis so atenuouas preventivamente modificouas um pouco ou se deu por satisfeito com sugestões e alusões ao que de fato desejaria escrever Nesse caso o jornal não exibe pedaços em branco mas a partir de certos rodeios e obs curidades de expressão os senhores poderão adivinhar o experiente cuidado tomado de antemão com a censura 11 OS SONHOS Atenhamonos a esse paralelo O que afirmamos é que também as falas não ditas no sonho encobertas por murmúrio foram vítimas de censura Referimonos es pecificamente a uma censura do sonho à qual devemos atribuir algum papel na deformação Onde quer que lacunas apareçam no sonho manifesto elas se devem à censura do sonho Cabenos na verdade ir além disso e identificar como manifestação da censura a lembrança particularmente débil indefinida e duvidosa de um ele mento do sonho em meio a outros de desenvolvimento mais nítido Raras vezes porém essa censura se mani festa tão abertamente de modo tão ingênuo poder seia dizer como no exemplo do sonho dos servi ços amorosos Bem mais comum é que ela aconteça da outra forma isto é mediante a produção de atenuantes de sugestões e de alusões em lugar da coisa real Para uma terceira modalidade de atuação da censu ra não conheço paralelo no âmbito da vigente censura à imprensa Posso no entanto demonstrála no único sonho que analisamos até aqui Os senhores se lem bram do sonho dos três ingressos ruins por um florim e cinquenta Dos pensamentos latentes desse sonho constava com destaque o elemento precipitado cedo demais Seu significado era que havia sido absur do casarse tão cedo assim como absurdo fora com prar ingressos tão cedo e havia sido ridículo da parte da cunhada gastar o dinheiro com tanta pressa com prando com ele uma joia Desse elemento central dos pensamentos oníricos nada se transferiu para o sonho manifesto neste deslocamse para o centro a ida ao 188 9 A CENSURA DOS SONHOS teatro e a compra dos ingressos Esse deslocamento da ênfase esse reagrupamento dos elementos do sonho faz o sonho manifesto diferir tanto dos pensamentos oníricos latentes que ninguém suspeitaria da presença destes últimos por trás dos primeiros O deslocamento da ênfase é um dos principais meios de deformação do sonho ele confere ao sonho aquela estranheza em vir tude da qual o próprio sonhador não deseja reconhecê lo como seu Omissão modificação e reagrupamento do mate rial são portanto os efeitos produzidos pela atuação da censura e os meios empregados para a deformação do sonho A própria censura do sonho é a causadora ou uma das causadoras da deformação que ora exami namos Modificação e reordenamento é o que estamos acostumados a designar como deslocamento Após essas observações sobre os efeitos da censura do sonho voltemonos agora para sua dinâmica Es pero que os senhores não atribuam sentido demasiado antropomórfico ao termo julgando ser o censor dos sonhos um homúnculo severo ou um espírito que habi ta algum quartinho do cérebro e ali exerce sua função tampouco devem os senhores pensar em uma localiza ção imaginando uma central cerebral da qual parti ria tal influência censuradora passível de abolição caso a referida central sofresse dano ou fosse eliminada Por enquanto tratase apenas de um bom termo para de signar uma relação dinâmica Isso não nos impede de perguntar que tendências exercem semelhante influên cia e sobre quais tendências ela é exercida Não nos sur 11 OS SONHOS preenderá descobrir que já uma vez deparamos com a censura do sonho talvez sem reconhecêla Foi isso mesmo que aconteceu Lembremse de que tivemos uma surpresa quando começamos a empregar nossa técnica de livre associação Ao fazêlo senti mos uma resistência se opor a nossos esforços para a partir de um elemento do sonho chegar ao elemento inconsciente do qual ele é sucedâneo Essa resistência dissemos pode apresentar grandeza variável por ve zes é enorme outras vezes é minúscula Neste último caso nosso trabalho de interpretação só precisa ultra passar uns poucos estágios intermediários quando porém a resistência é grande então é necessário que atravessemos longas cadeias de associações vinculadas ao elemento somos conduzidos para bem longe dele e precisamos em nosso caminho superar todas as difi culdades que se apresentam como objeções críticas à as sociação feita Essa resistência que se nos opõe quando do trabalho interpretativo cabenos agora inserila no trabalho do sonho na qualidade de censura do sonho A resistência à interpretação é apenas a objetivação da censura do sonho Ela nos dá prova de que o poder da censura não se esgota na deformação extinguindose em seguida essa censura ao contrário persiste como instituição permanente e seu propósito é preservar a deformação Aliás assim como a resistência à interpre tação varia em sua grandeza de acordo com o elemento também a deformação produzida pela censura apresen ta grandeza variável em cada elemento de um mesmo sonho Se compararmos sonho manifesto e sonho la 9 A CENSURA DOS SONHOS tente veremos que alguns elementos latentes são eli minados por completo outros sofrem maior ou menor modificação e outros ainda permanecem inalterados ou podem ser intensificados e integrados ao conteúdo onírico manifesto Queríamos todavia examinar que tendências exer cem censura e contra quais tendências é dirigida Bem essa pergunta fundamental para a compreensão do so nho e talvez da própria vida humana é fácil de respon der se abarcarmos toda a série de sonhos submetidos a interpretação As tendências que exercem a censura são aquelas que o juízo desperto do sonhador reconhe ce aquelas com as quais ele se sente em concordância Tenham a certeza de que ao rejeitar uma interpretação correta de um sonho que tiveram os senhores o fazem pelos mesmos motivos pelos quais a censura do sonho entrou em ação a deformação se produziu e a interpre tação se fez necessária Pensem no sonho de nossa dama de cinquenta anos Ela acha seu sonho repugnante sem têlo interpretado teria ficado ainda mais indignada se a dra von Hug lhe houvesse comunicado algo da inter pretação inescapável e foi justamente por causa dessa sua condenação do próprio sonho que passagens cho cantes foram nele substituídas por murmúrios As tendências contra as quais a censura do sonho se volta devem ser descritas primeiramente do ponto de vista da própria instância que a exerce A partir dessa ótica só se poderá dizer que são de natureza condená vel que são ética estética e socialmente chocantes que são enfim coisas em que nem ousamos pensar ou em 11 OS SONHOS que só pensamos com repulsa Acima de tudo esses de sejos censurados e expressos de forma deformada são manifestações de um egoísmo sem limites nem conside ração E no entanto é o próprio Eu que está presente em cada sonho sempre como protagonista ainda que ele saiba se ocultar muito bem no conteúdo manifesto d h E d h os son os sse sacro egmsmo o son o por certo não está desconectado da atitude própria do sono que consiste afinal no desaparecimento de todo e qualquer interesse pelo mundo exterior O Eu liberto de todos os grilhões da ética sabese também em concordância com todas as reivindicações do anseio sexual tanto aquelas condenadas há tempos por nossa educação estética como as que contrariam por todas as exigências éticas de restrição O anseio por prazer a libido como dizemos escolhe seus obje tos sem qualquer escrúpulo e demonstra mesmo prefe rência pelos proibidos ou seja não apenas pela mulher do próximo como também e sobretudo por objetos incestuosos unanimemente sacralizados pelos seres hu manos a mãe e a irmã para os homens o pai e o irmão no caso das mulheres O próprio sonho de nossa dama de cinquenta anos é incestuoso uma vez que sua libido se volta inequivocamente para o filho Apetites que jul gamos distantes da natureza humana mostramse fortes o bastante para incitar sonhos Também o ódio grassa sem limites Desejos de vingança e de morte dirigidos contra pessoas próximas aquelas que mais amamos na Em italiano no texto sagrado egoísmo 9 A CENSURA DOS SONHOS vida como nossos pais irmãos cônjuge os próprios filhos não são nada incomuns Esses desejos censu rados parecem assomar em nós como se provenientes de um verdadeiro inferno após a interpretação quando já nos encontramos em estado de vigília não há censura que nos pareça dura o suficiente contra eles Mas não repreendam o sonho em si por esse conteú do mau Não se esqueçam de que ele tem a inofensiva e mesmo útil função de proteger o sono de toda perturba ção Essa maldade não é parte de sua essência Afinal os senhores sabem também da existência de sonhos re conhecíveis como de satisfação de desejos legítimos e de necessidades físicas urgentes Esses contudo não apre sentam deformação tampouco precisam dela porque podem cumprir sua função sem ofender as tendências éticas e estéticas do Eu Além disso tenham em mente que a deformação do sonho é proporcional a dois fato res por um lado ela é tanto maior quanto mais grave for o desejo a censurar e por outro quanto mais rigo rosas se apresentarem no momento as demandas da cen sura Assim sendo uma jovem mocinha educada com rigor e pudica vai deformar com censura implacável estímulos oníricos que nós médicos por exemplo ha veríamos de reconhecer como desejos libidinosos per mitidos e inofensivos desejos que a própria sonhadora entenderá dessa forma uma década mais tarde De resto ainda estamos longe de poder nos indignar com o resultado obtido por nosso trabalho interpretati vo Creio que ainda não o compreendemos bem mas acima de tudo cabenos a tarefa de protegêlo de cer 193 11 OS SONHOS tas objeções Não é nada difícil encontrar nele algum problema Nossas interpretações de sonhos foram feitas com base nas premissas que professamos anteriormen te isto é a de que todo sonho possui um sentido a de que podemos transpor do sono hipnótico para o normal a existência de processos psíquicos momentaneamente inconscientes e a de que todas as associações são de terminadas Se com base nessas premissas tivéssemos chegado a resultados plausíveis em nossa interpretação dos sonhos poderíamos dizer com razão que as premis sas estavam corretas Mas como afirmálo se os resul tados se apresentam como acabo de descrevêlos Se assim é o óbvio seria dizer são resultados impossíveis sem sentido nenhum e ao menos em parte bastante improváveis o que significa que algo estava errado nas premissas Ou o sonho não é um fenômeno psíquico ou não há nada de inconsciente em nosso estado normal ou ainda nossa técnica tem algum defeito Não é muito mais fácil e satisfatório aceitar que seja assim do que ad mitir todas as monstruosidades que supostamente des cobrimos com base em nossas premissas As duas coisas Seria sim mais fácil e mais satisfa tório mas nem por isso necessariamente mais correto Concedamonos tempo a questão ainda não admite um juízo definitivo Acima de tudo intensifiquemos a crítica a nossas interpretações Que seus resultados não causem alegria nem sejam agradáveis talvez não pese tanto assim Um argumento mais forte é o de que os so nhadores tendo nossa interpretação atribuído aos seus sonhos tais tendências dos desejos com boas razões as 194 9A CENSURA DOS SONHOS repudiam com toda a ênfase O quê dirá um A partir do meu sonho o senhor quer me provar que la mento o dinheiro que gastei no dote de minha irmã e na educação de meu irmão Mas não pode ser É só por meus irmãos que trabalho não tenho nenhum outro in teresse na vida a não ser cumprir meu dever para com eles como prometi sendo o mais velho à nossa fale cida mãe Uma senhora protestará Então eu desejo que meu marido morra Isso é um absurdo revoltan te Nós temos o mais feliz dos casamentos o senhor provavelmente não vai acreditar nisso e tem mais a morte dele tiraria de mim tudo que tenho neste mun do E um terceiro revidaria Tenho desejos sexuais com minha irmã Isso é ridículo Não tenho nenhum interesse nela nós nos damos mal e faz anos que não trocamos uma única palavra Talvez não atribuíssemos maior importância ao caso se esses sonhadores não confirmassem nem negassem as tendências que neles interpretamos poderíamos alegar que são coisas a seu respeito que eles próprios não sabem Mas o fato de eles sentirem que abrigam precisamente o desejo oposto ao interpretado e de poderem demonstrar mediante sua maneira de viver a predominância desse desejo contrá rio isso sim há de nos deixar desconfiados Não seria chegada a hora de abandonar por completo o trabalho na interpretação do sonho por terem seus resultados nos conduzido ad ahsurdum Não reitero que não é o caso Também esse argu mento mais forte desmorona quando o abordamos de forma crítica Pressupondose que existam tendências 11 OS SONHOS inconscientes na vida psíquica não possui força com probatória nenhuma a demonstração de que tendências opostas a elas são as predominantes na vida consciente Talvez a vida psíquica tenha lugar também para ten dências contrárias para contradições que existem lado a lado é mesmo possível que a predominância de um estímulo seja condição para o caráter inconsciente do estímulo contrário Ficase portanto com aquelas pri meiras objeções levantadas as de que os resultados da interpretação dos sonhos não são simples nem muito agradáveis À primeira cabe responder que nem todo o entusiasmo dos senhores pelo que é simples poderia re solver um único dos problemas do sonho é necessário portanto acostumarse a supor relações mais comple xas À segunda que os senhores evidentemente come tem uma injustiça ao se valer de sentimentos de bem estar ou repugnância como motivadores de um juízo científico Que importância tem o fato de os resultados da interpretação dos sonhos lhes parecerem desagradá veis ou mesmo vergonhosos e repugnantes Ça nempê che pas dexister Isso não impede que as coisas existam ouvi meu mestre Charcot responder certa vez quando eu ainda era um jovem estudante em situação pareci da É necessário ter humildade pôr de lado as próprias simpatias e antipatias se desejamos descobrir o que é real neste mundo Se um físico fosse capaz de provar aos senhores que a vida orgânica na Terra tem pouquíssimo tempo para escapar a um congelamento total ousariam os senhores revidar Não pode ser Essa perspectiva é muito desagradável Penso por certo que se cala 9 A CENSURA DOS SONHOS riam até que outro físico surgisse e demonstrasse ter havido um erro nas premissas ou nos cálculos daquele primeiro Quando repudiam o que lhes é desagradável o que fazem é antes repetir o mecanismo da formação do sonho em vez de compreendêlo e superálo Talvez os senhores prometam agora ignorar o ca ráter repugnante dos desejos oníricos censurados e retrocedam para o argumento de que é afinal impro vável que se destine espaço tão amplo para o mal na constituição humana Mas a própria experiência dos se nhores lhes dará o direito de fazer essa afirmação Não quero falar aqui sobre como os senhores se veem mas terão encontrado tamanha benevolência em seus supe riores e concorrentes tamanho espírito cavalheiresco em seus inimigos e tão pouca inveja em seu círculo de conhecidos a ponto de precisarem se sentir obrigados a contestar a porção de egoísmo e maldade na natureza humana Não conhecem os senhores o grau de desco medimento e de inconfiabilidade da média dos homens em todas as questões relativas à vida sexual Ou não sabem que todos os abusos e excessos com que sonha mos à noite são cotidianamente cometidos por seres hu manos em estado de vigília sob a forma de crimes O que faz a psicanálise senão confirmar as antigas pala vras de Platão que declarou serem os bons aqueles que se contentam com apenas sonhar com aquilo que os ou tros os maus fazem de fato Voltem agora o olhar do plano individual para o da grande guerra que segue devastando a Europa e pen sem nas brutalidade crueldade e hipocrisia imensas que 197 11 OS SONHOS hoje se espraiam pelo mundo da cultura Acreditam mesmo os senhores que um punhado de gananciosos e de aliciadores inescrupulosos teria conseguido libertar tantos espíritos maus não contassem eles com a cum plicidade dos milhões de aliciados Creem pois sob tais circunstâncias poder defender a exclusão do mal da constituição psíquica do ser humano Os senhores me repreenderão por julgar a guerra de maneira unilateral dirão que ela trouxe à tona também o que há de mais belo e mais nobre no homem sua co ragem heroica sua capacidade de sacrifício pessoal sua sensibilidade social Com certeza mas não sejam cúm plices da injustiça que com tanta frequência já se come teu contra a psicanálise recriminandoa por negar uma coisa porque afirma outra Não é nossa intenção negar as nobres aspirações da natureza humana nem jamais fizemos nada para diminuirlhes o valor Ao contrário mostro aos senhores não apenas os desejos oníricos maus e censurados mas também a censura que os re prime e os torna irreconhecíveis Se nos detivemos um pouco no que há de mau no ser humano e o enfatizamos com veemência foi só porque outros o negam o que não torna melhor mas apenas incompreensível nossa vida psíquica Se portanto abandonarmos a valoração ética unilateral decerto lograremos encontrar a fórmu la mais correta para a relação entre o mal e o bem na natureza humana Aí está portanto Não precisamos abandonar os re sultados de nosso trabalho na interpretação dos sonhos ainda que sejamos obrigados a julgálos desconcertan 9 A CENSURA DOS SONHOS 11 OS SONHOS compreensão do fenômeno Então estamos preparados para aceitar que na vida psíquica existem processos e tendências de que nada sabemos há muito tempo nada sabemos desde sempre talvez O inconsciente adquire assim um novo sentido para nós O momentâneo ou temporário desaparece de sua natureza talvez se trate de uma inconsciência permanente e não apenas de uma latência momentânea Voltaremos é claro a tratar também desse assunto em outra oportunidade 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS Senhoras e senhores Descobrimos que a deformação do sonho que nos turva sua compreensão é conse quência de uma atividade censória dirigida contra dese jos inconscientes inadmissíveis Todavia naturalmente não afirmamos que a censura é o único fator ao qual se deve a deformação do sonho e de fato o prossegui mento de nosso estudo nos possibilita descobrir que dela participam outros fatores Isso equivale a dizer que mesmo excluindo a censura onírica não seríamos capa zes de compreender os sonhos o sonho manifesto ainda não seria idêntico aos pensamentos oníricos latentes Esse outro fator que torna o sonho obscuro que também contribui para a deformação do sonho nós o descobrimos ao nos dar conta de uma lacuna em nossa técnica Já admiti aos senhores que com efeito por ve zes nada ocorre aos analisandos que eles sejam capazes 200 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS de associar a certos elementos do sonho É verdade que isso não ocorre tão frequentemente como afirmam em muitos casos a associação pode ser obtida através da perseverança Ainda assim casos há em que a associa ção não se apresenta ou em que mesmo que por fim a obtenhamos não corresponde ao que dela esperáva mos Isso tem um significado especial quando aconte ce durante um tratamento psicanalítico um significado que não nos interessa aqui mas o mesmo pode suceder também na interpretação dos sonhos de uma pessoa normal ou quando interpretamos nossos próprios so nhos Nesses casos quando nos convencemos de que a insistência de nada adianta verificamos por fim que essa ocorrência indesejada se repete em relação a cer tos elementos do sonho e começamos a identificar um novo padrão onde de início acreditávamos ter percebi do apenas uma falha excepcional da técnica Assim somos tentados a interpretar nós mesmos esses elementos mudos do sonho a empreender uma tradução deles com nossos próprios meios Somos então levados a reconhecer que toda vez que ousamos fazer essa substituição obtemos um sentido satisfatório ao passo que enquanto não nos decidimos a assim inter vir o sonho permanece desprovido de sentido e a ca deia é interrompida O acúmulo de casos parecidos se encarrega então de munir nossas tentativas de início tímidas da necessária certeza Apresentolhes essas considerações de forma algo es quemática o que é admissível para propósitos didáticos mas minha exposição nada falseia ela apenas simplifica 201 11 OS SONHOS Desse modo obtemos traduções constantes para uma série de elementos do sonho ou seja algo muito parecido com as que encontramos nos livros populares dedicados ao assunto Os senhores não terão se esque cido de que em nossa técnica associativa jamais apare cem substitutos constantes para os elementos do sonho De pronto os senhores dirão que esse caminho interpretativo lhes parece ainda mais incerto e ques tionável que o anterior por meio da livre associação Mas temos ainda algo a acrescentar De fato quando pela experiência já coletamos tais substituições cons tantes em número suficiente acabamos por dizer a nós mesmos que na verdade deveríamos ter chegado a tais porções da interpretação do sonho à custa de nos so próprio conhecimento que elas na realidade po deriam ter sido compreendidas sem as associações do sonhador De onde haveríamos de conhecer seu signi ficado isso é o que vamos ver na segunda metade de nossa discussão Chamamos de simbólica tal relação constante entre um elemento do sonho e sua tradução e ao elemento do sonho em si um símbolo do pensamento onírico in consciente Os senhores se lembram de que anterior mente ao analisar as relações entre elementos do so nho e a coisa autêntica por trás deles distingui três relações desse tipo a da parte pelo todo a da alusão e a da ilustração mediante imagens Anunciei então uma quarta que não nomeei Esta é pois a simbólica que agora introduzo A ela se relacionam discussões mui to interessantes que abordarei antes de expor nossas 202 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS observações específicas sobre o simbolismo O simbo lismo é talvez o capítulo mais notável da doutrina dos sonhos Antes de mais nada na medida em que os símbolos constituem traduções fixas eles realizam em certa medi da o ideal tanto da interpretação dos sonhos dos antigos como da interpretação popular do qual nos afastamos bastante com o emprego de nossa técnica Em determi nadas circunstâncias eles nos permitem interpretar um sonho sem inquirir o sonhador o qual de todo modo nada teria a dizer sobre o símbolo Conhecendose os símbolos oníricos usuais e além disso a pessoa do so nhador as condições em que ele vive e as impressões anteriores ao sonho podese muitas vezes interpretar um sonho sem maiores dificuldades traduzilo dire tamente por assim dizer Tal proeza é lisonjeira para o intérprete e impressiona o sonhador ela contrasta agradavelmente com o árduo trabalho inquisitivo Mas não se deixem seduzir por isso Realizar proezas não é nossa tarefa A interpretação baseada no conhecimento dos símbolos não constitui técnica capaz de substituir o procedimento associativo nem pode se equiparar a este é apenas seu complemento produzindo resultados que o alimentam Todavia no que tange ao conhecimento da situação psíquica do sonhador considerem que os se nhores não interpretarão apenas sonhos de pessoas que conhecem bem que em geral não saberão dos aconte cimentos diurnos que provocaram o sonho e que serão as associações dos analisandos a lhes informar sobre aquilo a que chamamos situação psíquica 203 11 OS SONHOS É ademais bastante curioso inclusive em relação a questões que mencionaremos mais adiante que de novo a mais veemente resistência se tenha feito ouvir contra a existência dessa relação simbólica entre o so nho e o inconsciente Mesmo pessoas de grande julga mento e reputação que concordaram amplamente com a psicanálise se recusam a seguila nisso Tanto mais curioso se revela esse comportamento quando se con sidera que em primeiro lugar o simbolismo não é pró prio apenas dos sonhos nem característico deles e em segundo que o simbolismo dos sonhos não foi desco berto pela psicanálise embora ela não careça de desco bertas surpreendentes Desejandose demarcar seu iní cio em tempos modernos é ao filósofo K A Scherner 1861 que se há de atribuir a descoberta do simbolismo dos sonhos A psicanálise apenas corroborou suas des cobertas modificandoas radicalmente porém Agora os senhores desejarão saber algo sobre a es sência desse simbolismo onírico assim como ouvir exemplos dele Relatolhes de bom grado tudo que sei mas confesso que nossa compreensão não vai tão longe quanto gostaríamos Em essência essa relação simbólica é uma compara ção mas não uma comparação qualquer Pressentimos que ela possui condicionalidade particular mas não sabemos dizer no que consiste essa condicionalidade Nem tudo aquilo com que podemos comparar um obje to ou um acontecimento figura no sonho como símbolo de um ou de outro Além disso o sonho tampouco se vale de símbolos para o que quer que seja ele os em 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS prega apenas para certos elementos dos pensamentos oníricos latentes Limitações existem portanto tanto em um caso como no outro É preciso admitir também que por enquanto não há como delimitar com preci são o conceito de símbolo que se confunde com os de substituição representação e que tais aproximandose ainda do de alusão Quando se tem uma série de símbo los a comparação que a fundamenta fazse óbvia Mas há outros conjuntos de símbolos diante dos quais somos obrigados a nos perguntar onde estaria o denominador comum o tertium comparationis da suposta comparação Examinandoos mais de perto é possível que o descu bramos mas ele pode também permanecer oculto É também singular sendo o símbolo uma comparação que essa não se deixe desvendar por intermédio da as sociação e que o sonhador a desconheça ou seja que ele se sirva da comparação sem saber dela E mais que mesmo depois de apresentado a ela o sonhador não se sinta nem sequer inclinado a reconhecêla Os senhores veem portanto que essa relação simbólica se constitui de uma comparação muito especial cujo fundamento ainda não compreendemos com clareza Mais adiante talvez possamos encontrar indícios daquilo que por ora desconhecemos Não é grande a extensão de coisas que podem en contrar no sonho representação simbólica O corpo humano como um todo os pais os filhos os irmãos o nascimento e a morte a nudez e ainda algumas ou tras A única representação da pessoa humana como um todo que é típica ou seja que se encontra com regu 11 OS SONHOS laridade é sua representação como uma casa como o percebeu Scherner que desejou mesmo atribuir a esse símbolo um significado extraordinário e indevido Acontece nos sonhos de às vezes com prazer às vezes com receio descermos pela fachada de uma casa Aque las fachadas que possuem paredes lisas são homens as que apresentam saliências e sacadas nas quais podemos nos segurar são mulheres Os pais figuram nos sonhos como imperadores ou imperatri1es reis ou rainhas ou en tão como outras figuras de respeito o sonho é nisso bastante reverente Menos afetuoso ele se revela no tra to com filhos e irmãos simbolizados por pequenos ani mais ou insetos O nascimento quase sempre encontra representação relacionada a água mergulhase na água ou saise dela resgatase uma pessoa da água ou se é resgatado por ela ou seja temse com essa pessoa uma relação maternal A morte é substituída nos sonhos pela partida por uma viagem de trem o estar morto por uma série de alusões obscuras como que hesitantes a nudez por roupas e uniformes Os senhores podem ver como aqui se confundem as fronteiras entre as representações simbólica e alusiva Em comparação com essa escassez de símbolos há de chamar a atenção o fato de objetos e conteúdos de outro âmbito encontrarem representação em um sim bolismo bastante rico Refirome ao âmbito da vida se xual dos órgãos genitais dos acontecimentos e relações sexuais A imensa maioria dos símbolos que aparecem nos sonhos compõese de símbolos sexuais Verificase aí uma notável desproporção os conteúdos designados 206 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS são poucos mas os símbolos para eles existem em quan tidade extraordinária de tal forma que cada um deles pode ser expresso por símbolos numerosos e quase equivalentes Da interpretação resulta assim algo que provoca generalizada irritação em contraposição com a diversidade apresentada nos sonhos as interpretações dos símbolos são bastante monótonas Isso desagrada todo aquele que toma conhecimento dessa monotonia mas o que se há de fazer Como essa é a primeira vez nestas conferências que falamos de conteúdos da vida sexual devo prestar con tas aos senhores sobre que tratamento pretendo dar a esse tema A psicanálise não vê motivo para dissimu lações e alusões julga não ser necessário que nos en vergonhemos de abordar assunto tão importante crê portanto que correto e decente é chamar as coisas pelo nome e espera assim manter distantes quaisquer pen samentos paralelos perturbadores O fato de estarmos falando a uma plateia composta de membros de ambos os sexos nada modificará nessa nossa postura Assim como não existe ciência in usum delphini tampouco existe ciência para mocinhas e as damas que aqui se en contram já indicaram mediante sua presença nesta sala de aula que desejam ser equiparadas aos homens Para o órgão genital masculino portanto o sonho possui uma série de representações a que podemos cha mar simbólicas e nas quais o denominador comum da comparação é em geral bastante óbvio Para a genitá lia masculina de forma geral tem importância simbó lica acima de tudo o sagrado número três Sua compo 11 OS SONHOS nente mais notória e de interesse para ambos os sexos o membro masculino encontra substitutos simbólicos antes de mais nada naquelas coisas que lhe são seme lhantes na forma ou seja compridas e verticalmente sa lientes como bengalas guardachuvas estacas árvores e coisas assim além disso em objetos que compartilham com o designado a propriedade de penetrar no corpo e ferir ou seja armas pontiagudas de toda sorte focas punhais lanças sahres assim como armas de fogo fu ris pistolas e revólveres estes em virtude de sua forma símbolos bastante apropriados Nos sonhos angustiados das moças a perseguição por um homem portando faca ou arma de fogo desempenha importante papel Esse é talvez o caso mais recorrente de simbolismo onírico o qual os senhores podem agora facilmente traduzir De fácil compreensão é também a substituição do membro masculino por objetos dos quais jorra água como tor neiras regadores chaforires ou por objetos capazes de alongarse como luminárias suspensas lapiseiras e assim por diante O fato de lápis hastes para pena de escrever lixas de unha martelos e outros instrumentos serem sím bolos sexuais masculinos inequívocos também se liga a um aspecto conhecido do órgão A propriedade notável do membro masculino que lhe permite erguerse contra a força da gravidade o que é parte do fenômeno da ereção leva à sua repre sentação simbólica mediante halões de ar aviões e mais recentemente o dirigível de Zeppelin O sonho no en tanto conhece ainda outra forma bem mais expressiva de simbolizar a ereção Ele transforma o membro se 208 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS xual no essencial da pessoa e a faz voar ela própria Não se deixem impressionar com o fato de que os sonhos em que estamos voando com frequência tão belos e tão conhecidos de todos nós só possam ser interpretados como sonhos de excitação sexual geral como sonhos de ereção Entre os pesquisadores psicanalistas P Fedem pôs essa interpretação acima de qualquer dúvida mas também Mourly Vold tão elogiado por sua sobriedade e condutor daqueles experimentos nos quais braços e pernas do sonhador eram posicionados artificialmente chegou a essa mesma conclusão em suas investigações embora efetivamente distanciado da psicanálise ou mes mo ignorante talvez de sua existência Não transfor mem em objeção o fato de também as mulheres terem esse mesmo tipo de sonho Lembremse antes de que nossos sonhos se pretendem realizações de desejos e de que o desejo de ser homem consciente ou inconscien te é bastante frequente nas mulheres E o fato de que seja possível as mulheres realizarem esse desejo com as mesmas sensações que o homem não deve desconcer tar ninguém que seja versado em anatomia Afinal a mulher possui em sua genitália um pequeno membro semelhante ao masculino e esse membrozinho o clitó ris chega a desempenhar papel idêntico ao do membro maior masculino tanto na infância como na idade que precede a primeira relação sexual Entre os símbolos sexuais masculinos menos com preensíveis estão certos répteis e peixes sobretudo o fa moso símbolo da cobra Por certo não é fácil explicar como foi que chapéus e casacos vieram a ter esse mesmo 11 OS SONHOS emprego mas seu significado simbólico é inquestioná vel Por fim podemos nos perguntar ainda se é lícito caracterizar como simbólica a substituição do órgão sexual masculino por outro membro isto é o pé ou a mão Creio que o contexto e as contrapartes femininas nos obrigam a fazêlo A genitália feminina é representada simbolicamente por todos aqueles objetos que partilham sua propriedade de encerrar um espaço oco que pode abrigar alguma coi sa dentro de si Ou seja poços grutas e cavernas assim como vasos e garrafos caixas latas malas caixinhas cai xotes holsas holsos e assim por diante Barcos pertencem também a essa categoria Outros símbolos guardam mais relação com o ventre materno que com a genitália feminina Esse é o caso dos armários dos fornos e sobre tudo dos quartos O simbolismo do quarto resvala no da casa com portas e portão a simbolizar a abertura genital Certos materiais também simbolizam a mulher como a madeira o papel e os objetos compostos desses mate riais como a mesa e o livro No que tange aos animais ao menos o caracol e o marisco devem ser citados como símbolos femininos inconfundíveis das partes do corpo humano a hoca representa a abertura genital no âm bito das edificações temos a igreja e a capela Como os senhores podem ver nem todos os símbolos são igual mente compreensíveis À genitália cabe acrescentar os seios que como os hemisférios maiores do corpo feminino encontram re presentação nas maçãs nos pêssegos e nas frutas em ge ral Os pelos que recobrem a região genital de ambos os 210 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS sexos o sonho os descreve como um hosque ou matagal A complicada topografia dos órgãos sexuais femininos torna compreensível que com muita frequência eles sejam representados como uma paisagem com rochas floresta e águas ao passo que o mecanismo impressio nante do aparato sexual masculino faz com que toda sorte de máquinas complicadas o simbolizem Um símbolo digno de nota da genitália feminina é a caixinha de joiasjoia e tesouro são também nos sonhos designações da pessoa amada doces são uma representa ção frequente do prazer sexual A autossatisfação obtida com nossa própria genitália é sugerida por todo tipo de atividade lúdica Spielen inclusive tocar piano Repre sentações simbólicas requintadas da masturbação são o desli1ar e o escorregar assim como o arrancar um galho Um símbolo onírico particularmente notável constitui a queda ou a extração de dentes Em primeiro lugar ela por certo significa castração como castigo pela mas turbação Representações particulares do intercurso se xual são no sonho menos numerosas do que se poderia esperar pelo que foi dito até aqui Atividades rítmicas como dançar caYalgar e escalar merecem menção assim como experiências violentas como ser atropelado Além dessas simbolizamno certos trahalhos manuais e natu ralmente a ameaça com armas Os senhores não devem imaginar que o emprego e a tradução desses símbolos sejam coisas muito simples Deparamos aí com toda sorte de coisas a contrariar nos sa expectativa Parece quase inacreditável por exemplo que essas representações simbólicas com frequência não 2II 11 OS SONHOS distingam nitidamente os sexos Vários símbolos signi ficam pura e simplesmente um órgão genital tanto faz se masculino ou feminino Assim é por exemplo com a criança pequena o filho ou filha pequena Outras ve zes um símbolo predominantemente masculino pode ser usado para representar a genitália feminina ou vice versa Não se compreende esse mecanismo até que se tenha adquirido uma visão profunda do desenvolvi mento das representações sexuais nas pessoas Em di versos casos essa ambiguidade dos símbolos pode ser apenas aparente excetuamse também desse emprego bissexual os símbolos mais evidentes como armas hol sas e cazxas Quero agora partindo não do objeto representado mas do próprio símbolo dar aos senhores um panorama daquelas áreas das quais os símbolos sexuais são em ge ral extraídos e desejo acrescentar ainda alguns comen tários adicionais sobretudo no tocante aos símbolos possuidores de um denominador comum incompreen sível Um tal símbolo obscuro é por exemplo o chapéu ou talvez tudo que usamos para cobrir a cabeça em ge ral seu significado é masculino mas ele pode ser femi nino também Da mesma forma o casaco representa um homem nem sempre talvez com conotação genital Os senhores são livres para perguntar por quê A graYata que pende do pescoço e não é utilizada pelas mulheres é um claro símbolo masculino Roupa de baixo bran ca e roupa de cama em geral são símbolos femininos Yestimentas e unifOrmes substituem como já dissemos a nudez as formas do corpo sapatos e chinelos represen 212 10 O SIMBOLISMO OOS SONHOS tam a genitália feminina mesa e madeira já foram men cionadas como símbolos enigmáticos mas certamente femininos Escadas sejam elas de mão ou de madeira e escadarias assim como a locomoção sobre elas são símbolos seguros da relação sexual A um exame mais detalhado o caráter rítmico dessa locomoção salta aos olhos como denominador comum bem como talvez o crescimento da excitação a crescente falta de ar à medi da que se sobe por elas Já falamos aqui da paisagem como representação da genitália feminina Montanhas e rochas são símbolos do membro masculino o jardim é símbolo frequente da ge nitália feminina As frutas não representam os filhos e sim os seios Animais selvagens significam excitação se xual assim como maus instintos paixões Botões e flores designam a genitália feminina ou em especial a virgin dade Não se esqueçam de que os botões são de fato os órgãos genitais das plantas O quarto nós já o conhecemos como símbolo A re presentação pode aqui se expandir na medida em que as janelas e as entradas e saídas de um quarto assumem o significado das aberturas do corpo O quarto estar aberto ou fichado inserese também nessa simbologia e a chave que o abre é decerto um símbolo masculino Esse seria pois o material que compõe o simbo lismo dos sonhos Ele não se apresenta completo po deríamos tanto aprofundálo como expandilo Mas creio que o que temos parecerá mais que suficiente aos senhores e poderá mesmo irritálos Os senhores per guntarão Então quer dizer que eu vivo cercado de 213 11 OS SONHOS símbolos sexuais Todos os objetos que me circundam todas as roupas que visto todas as coisas que pego nas mãos tudo isso é sempre um símbolo sexual e nada mais Por certo motivos não faltam para que formu lemos perguntas admiradas e a primeira delas é De onde afinal extrair o significado desses símbolos oníri cos sobre os quais o próprio sonhador não nos dá infor mação nenhuma ou apenas informação insuficiente Minha resposta de fontes as mais diversas dos con tos de fada e dos mitos de contos burlescos e chistes do folclore isto é do conhecimento das tradições dos costumes dos provérbios e das cantigas populares do uso poético e do uso cotidiano da língua Por toda parte encontramos o mesmo simbolismo e em mui tos desses lugares nós o compreendemos sem maiores explicações Se examinarmos essas fontes em detalhe uma a uma encontraremos tantos paralelos com o sim bolismo onírico que só poderemos nos convencer da correção de nossas interpretações Segundo Scherner como já dissemos o corpo hu mano com frequência encontra na simbologia da casa sua representação no sonho Dando sequência a essa simbologia temos ainda janelas portas e portões as entradas para as cavidades do corpo bem como fachadas lisas ou dotadas de sacadas e saliências onde nos segurar Esse mesmo simbolismo contudo é o que encontramos no uso cotidiano da língua alemã quan do em tom familiar saudamos um conhecido como al tes Haus casa velha quando falamos em repreender alguém valendonos da expressão eins aufi Dachl geben 214 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS dar um safanão no telhado ou quando dizemos de uma pessoa que algo está errado em seu Oberstübchen quartinho de cima Em anatomia aliás as aberturas do corpo são chamadas Leibespforten portais do corpo De início surpreendenos que nossos pais figurem nos sonhos como casais reais ou imperiais Mas isso tem paralelo nos contos de fada Não nos vem à mente de súbito que muitos deles começam com as palavras era uma vez um rei e uma rainha e que isso nada mais significa senão era uma vez um pai e uma mãe Em linguagem familiar e brincalhona chamamos nossos fi lhos de príncipes e o primogênito é chamado prínci pe herdeiro O próprio rei se denomina pai da pátria E em tom de brincadeira chamamos crianças pequenas de Würmer minhocas e cheios de compaixão dizemos das arme Wurm a pobre minhoca Voltemos agora ao simbolismo da casa Quando em sonho nos valemos das saliências de uma casa para nos segurar isso não lembra a conhecida expressão idiomá tica alemã utilizada para designar seios bem desenvolvi dos Sie hat etwas rum Anhalten Nela a gente tem onde segurar Nesse mesmo domínio temos ainda outra ex pressão popular que diz Sie hat viel Holr vor dem Haus Ela tem muita madeira na frente da casa É como se a linguagem popular viesse em auxílio de nossa interpreta ção de que madeira é um símbolo feminino maternal Sobre a madeira há mais a dizer Não nos é possí vel compreender como foi que esse material veio a re presentar o caráter maternal feminino É possível no entanto que uma comparação entre as línguas venha 215 11 OS SONHOS nos ajudar A palavra alemã Holz madeira tem a mes ma raiz da palavra grega vÀTJ que significa matéria matériaprima Estaríamos aqui pois diante do caso nada incomum em que a designação genérica para ma terial acabaria por ser utilizada para designar um ma terial específico Madeira é também o nome de uma ilha no Atlântico O nome dado pelos portugueses quando de seu descobrimento se devia ao fato de à época a ilha apresentarse coberta de florestas Na língua portugue sa madeira é a palavra para Holz Os senhores hão de reconhecer que madeira com uma pequena alteração nada mais é que a palavra latina materia que constitui a designação genérica para material Materia por sua vez deriva de mater mãe O material de que uma coisa se constitui é por assim dizer sua mãe Essa antiga con cepção segue viva portanto no uso simbólico da ma deira como representante do maternal e do feminino No sonho o nascimento é em geral expresso me diante uma relação com a água Mergulhar na água ou emergir dela significa parir ou ser parido Não nos es queçamos de que esse símbolo se assenta duplamente sobre uma verdade histórica de nossa evolução Por um lado e esta é a verdade mais distante todos os mamí feros terrestres inclusive os antepassados do homem originaramse de animais aquáticos por outro todo mamífero todo ser humano passou na água a primeira fase de sua existência isto é mergulhado como embrião no líquido amniótico do ventre materno tendo saído da água ao nascer Não estou afirmando que o sonhador sabe disso o que defendo é ao contrário que ele não 216 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS precisa sabêlo Há outra coisa que o sonhador sabe provavelmente porque lhe contaram na infância e rea firmo que também neste caso o saber em nada con tribuiu para a construção do símbolo Quando criança contaramlhe que é a cegonha que traz os bebês mas de onde ela os traz Do lago da fonte ou seja também da água Quando informaram isso a um de meus pacientes na infância ele era um pequeno conde na época ele desapareceu por uma tarde inteira Por fim foram encontrálo deitado à beira do lago do castelo com o rosto voltado para a água a espiar com fervor ele queria ver se conseguia enxergar as criancinhas lá no fundo Nos mitos sobre o nascimento dos heróis que O Rank submeteu a análise comparativa o mais anti go é o do rei Sargão da Acádia e data de cerca de 28oo aC abandono e resgate na água desempenham pa pel predominante Rank reconheceu neles representa ções do nascimento análogas às que ocorrem nos sonhos Quando em um sonho resgatamos uma pessoa da água dela nos tornamos mãe ou fazemonos mãe simplesmen te No mito uma pessoa que salva uma criança da água declarase sua verdadeira mãe Em um conhecido chiste perguntase ao garoto judeu inteligente quem era a mãe de Moisés Ele responde sem titubear A princesa De jeito nenhum repreendemlhe ela só o tirou da água É o que ela diz ele replica provando assim ter encon trado a interpretação correta do mito No sonho partir em viagem significa morrer Quan do uma criança pergunta pelo paradeiro de um morto de quem sente falta é costume dizermos que a pessoa 217 11 OS SONHOS falecida foi viajar Mais uma vez eu gostaria de refutar a crença que afirma ter esse símbolo onírico se originado da desculpa utilizada com as crianças O poeta se ser ve dessa mesma relação simbólica quando fala do além como país não descoberto do qual nenhum viajante no traveller jamais regressou Também no cotidiano é corriqueiro falarmos em última viagem Quem co nhece o rito dos antigos sabe como a velha crença dos egípcios levava a sério a ideia da viagem à terra dos mortos Chegaram até nós vários exemplares do Livro dos mortos que era dado à múmia em viagem como se fosse um guia A partir do momento em que os locais de sepultamento foram separados daqueles de moradia essa última viagem dos mortos fezse de fato real Tampouco o simbolismo relativo à genitália é coisa peculiar apenas aos sonhos Cada um dos senhores terá algum dia cometido a descortesia de chamar a uma mu lher alte Schachtel caixa velha talvez sem saber estar se servindo de um símbolo genital O Novo Testamento diz A mulher é um vaso frágil As escrituras sagra das dos judeus em seu estilo tão próximo do poético estão repletas de expressões de um simbolismo sexual nem sempre bem compreendido e cuja interpretação no Cântico dos Cânticos por exemplo já conduziu a di versos malentendidos Na literatura hebraica posterior é bastante difundida a representação da mulher como uma casa nesta a porta representa a abertura genital Quando por exemplo ela não é mais virgem o homem Cf Hamlet ato m cena 1 218 10 O SIMBOLISMO OOS SONHOS se queixa de ter encontrado a porta aberta A mesa como símbolo da mulher também ocorre nessa mesma literatura A esposa diz do marido Arrumei a mesa para ele mas ele a virou Virar a mesa daria origem a crianças paralíticas Extraí esses exemplos de um ensaio escrito por L Levy de Bmo intitulado A simbologia sexual da Bíblia e do Talmud São os etimologistas que nos fazem crer que os bar cos em nossos sonhos representam as mulheres eles afirmam que em sua origem a palavra Schiffbarco designava vaso de barro ou seja era o mesmo que Schaffgamela A lenda grega de Periandro de Corinto e sua mulher Melissa oferecenos confirmação de que o forno representa a mulher e seu ventre Segundo o relato de Heródoto quando a fim de ter alguma notí cia dela o tirano conjurou a sombra de sua esposa a quem amava loucamente mas assassinou por ciúme a falecida comprovou sua identidade dizendolhe que ele Periandro tinha enfiado seu pão em fomo gela do um modo velado de se referir a um fato que não podia ser do conhecimento de mais ninguém Na An tropophyteia editada por F S KrauB e fonte insubstituí vel de tudo quanto diz respeito à vida sexual dos povos lemos que em certa região da Alemanha dizse da mu lher que pariu que seu fomo se partiu A preparação Em Zeitschrifi für Sexualwissenschafi Revista de Sexologia v I 1914 Heródoto História v92 Periandro se relacionara com ela já morta 219 11 OS SONHOS do fogo e tudo o que tem a ver com ela está impregnado de simbolismo sexual A chama é constantemente o ór gão genital masculino ao passo que o fogo ou o fogão é o colo feminino Se os senhores se surpreenderam com a frequência com que a paisagem é empregada no sonho para repre sentar a genitália feminina aprendam com os mitolo gistas qual foi o papel desempenhado pela Mãe Terra no ideário e nos cultos da Antiguidade e como esse sim bolismo determinou a concepção de agricultura Que no sonho o quarto representa uma mulher isso os se nhores tenderão a inferir do uso cotidiano da língua alemã em que Frau é substituído por Frauenrimmer ou seja faz com que a pessoa humana seja representada pelo espaço destinado a ela De modo semelhante fala mos em Sublime Porta ao nos referir ao sultão e a seu governo o próprio nome dado ao soberano no antigo Egitojàraó nada mais significa que grande recinto No antigo Oriente os recintos entre os portões duplos da cidade são locais de reunião à maneira das praças do mercado no mundo clássico Creio porém que essa derivação é por demais superficial Pareceme mais provável que o quarto tenha se tornado símbolo da mu lher em razão de ser o espaço que circunda os homens Que casa tem esse mesmo significado já sabemos da mitologia e da linguagem poética nos é lícito inferir que também cidade hurgo castelo e fortalera simbolizam a Frauenrimmer que significa literalmente quarto aposento de mulher é um sinônimo meio pejorativo de Frau mulher 220 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS mulher A questão poderia ser facilmente solucionada considerandose os sonhos daquelas pessoas que não falam nem entendem alemão Nos últimos anos tratei sobretudo pacientes de outras línguas e creio me lem brar de que em seus sonhos Zimmer aposento tinha igualmente o significado de Frauenrimmer ainda que sua língua não possuísse expressão análoga Há outros indícios de que a relação simbólica é capaz de ultrapas sar barreiras linguísticas o que aliás já foi expresso por G H von Schubert velho estudioso dos sonhos em 1814 Todavia nenhum de meus sonhadores des conhecia inteiramente a língua alemã razão pela qual cumpreme deixar essa diferenciação àqueles psicana listas que em outras terras possam coletar experiências com pessoas monolíngues Entre as representações simbólicas do órgão genital masculino não há praticamente nenhuma que não seja recorrente no uso jocoso vulgar ou poético da língua sobretudo entre os poetas da Antiguidade clássica In cluo aqui não só os símbolos que figuram nos sonhos mas símbolos novos também como as ferramentas em pregadas em diversos afazeres à frente de todas o arado No mais ao tratar da representação simbólica do masculino aproximamonos de um terreno bastante ex tenso e controverso do qual por razões de economia queremos nos manter distantes Desejo pois dedicar algumas observações apenas à simbologia do número 3 que por assim dizer não se encaixa no quadro geral Se esse número não deve a própria simbologia a seu caráter sagrado é questão que permanece em aberto Certo pa 221 11 OS SONHOS rece apenas que muitas das coisas tripartites que ocor rem na natureza derivam de tal significado simbólico seu emprego em brasões e emblemas como é o caso da folha do trevo Meras estilizações do órgão genital mas culino seriam também o chamado lírio francês tripar tido e o tríscele que figura no brasão singular de duas ilhas tão distantes entre si como a Sicília e a ilha de Man três pernas semidobradas que partem de um centro Na Antiguidade imagens do membro masculino eram consideradas a mais poderosa defesa apotropaea contra influências ruins e ligase a isso o fato de todos os amu letos de nosso tempo serem facilmente reconhecíveis como símbolos genitais ou sexuais Examinemos esses amuletos em geral usados sob a forma de pequenos pendentes prateados o trevo de quatro folhas o porco o cogumelo a ferradura a escada o limpachaminés O trevo de quatro folhas substituiu o de três na reali dade o apropriado a servir como símbolo o porco é um velho símbolo da fertilidade o cogumelo é sem dúvi da um símbolo fálico havendo mesmo aqueles que de vem seu nome científico à inequívoca semelhança com o membro masculino phallus impudicus a ferradura reproduz o contorno da abertura genital feminina e o limpachaminés portando sua escada faz companhia aos demais símbolos porque ele realiza um daqueles traba lhos com os quais o ato sexual é vulgarmente compara do cf Anthropophyteia Sua escada nós a conhecemos nos sonhos como símbolo sexual auxilianos aqui o uso cotidiano da língua alemã que nos mostra o emprego do verbo steigen escalar trepar com conotação sexual 222 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS Dizemos por exemplo den Frauen nachsteigen correr atrás das mulheres e ein alter Steiger um velho mulhe rengo Em francês língua em que a palavra para de grau é marche encontramos expressão análoga para um velho femeeiro un vieux marcheur Que o ato sexual de muitos animais maiores pressuponha escalar montar na fêmea provavelmente tem relação com isso A expressão arrancar um galho das Abreissen ei nes Astes como representação simbólica para a mas turbação não se revela apenas em concordância com designações vulgares para o ato masturbatório mas possui também paralelos mitológicos Particularmente curiosa no entanto é a representação da masturbação ou melhor do castigo para tanto a castração me diante a queda ou a extração de dentes porque encon tramos para isso uma contrapartida etnológica que pou quíssimos sonhadores hão de conhecer Não me parece haver dúvida de que a circuncisão praticada por tantos povos é um equivalente e um substituto da castração Relatamnos agora que certas tribos primitivas austra lianas praticam a circuncisão como rito de passagem à puberdade para festejar a virilidade do jovem ao pas so que outras vivendo bem próximas das primeiras substituem esse ato pela extração de um dente Com esses exemplos concluo minha exposição São apenas exemplos sabemos mais sobre o tema e os se nhores podem imaginar quão mais rica e interessante seria uma tal coletânea de exemplos colhida não por diletantes como nós mas por especialistas de fato em mitologia antropologia linguística ou folclore Algu 223 11 OS SONHOS mas conclusões agora se impõem que não podem ser definitivas mas nos darão muito o que pensar Em primeiro lugar deparamos com o fato de o so nhador ter à disposição um modo de expressão sim bólico que em estado de vigília ele não conhece nem reconhece Isso é tão espantoso quanto descobrirem os senhores que sua criada compreende sânscrito embora saibam que ela nasceu em uma aldeia da Boêmia e ja mais aprendeu essa língua Não é fácil lidar com esse fato a partir de nossas concepções psicológicas Tudo que podemos dizer é que o conhecimento dessa sim bologia é inconsciente ou seja que ele pertence à vida intelectual inconsciente do sonhador Mas tampouco esse dado nos basta Até aqui só havíamos precisado admitir a existência de aspirações inconscientes aque las das quais temporária ou permanentemente nada sabemos Agora porém tratase de mais de conhe cimentos inconscientes de relações de pensamento e comparações entre diferentes objetos o que resulta em que a todo momento um deles pode substituir o outro Essas comparações não são refeitas a cada vez mas es tão prontas e à disposição isso é o que se depreende do fato de elas serem as mesmas para pessoas diferentes e mesmo talvez de permanecerem as mesmas em dife rentes línguas De onde vem o conhecimento dessas relações sim bólicas O uso cotidiano da língua cobre apenas uma pequena parte delas Os variados paralelos com outras áreas são de modo geral desconhecidos do sonhador nós mesmos tivemos de nos esforçar para encontrálos 10 O SIMBOLISMO OOS SONHOS Em segundo lugar essas relações simbólicas não são coisa peculiar ao sonhador ou ao trabalho do sonho me diante o qual elas ganham expressão Já descobrimos que desse mesmo simbolismo se servem os mitos e os contos de fada os provérbios e as cantigas populares o uso cor riqueiro da língua e a fantasia poética O âmbito dessa simbologia é extraordinariamente grande o simbolismo dos sonhos constitui apenas uma pequena parte dele e não seria conveniente abordar toda essa problemática a partir do sonho Muitos dos símbolos empregados em outras partes não figuram no sonho ou nele aparecem raras vezes e vários dos símbolos oníricos não estão pre sentes em todos os outros domínios mas como viram os senhores somente aqui e ali Temos a impressão de estar diante de uma velha e já desaparecida forma de expres são da qual em diferentes domínios elementos variados permaneceram um aqui outro ali um terceiro talvez sob forma ligeiramente modificada em vários domínios Lembrome aqui da fantasia de um interessante doente mental que imaginou uma língua básica da qual todas essas relações simbólicas seriam resquícios Em terceiro lugar há de saltar aos olhos dos senho res que esse simbolismo não é apenas sexual nos outros domínios mencionados ao passo que no sonho os símbolos são empregados quase exclusivamente para dar expressão a objetos e relações de caráter sexual Tampouco isso é fácil de explicar Teriam símbolos de significado sexual original encontrado outro uso mais Cf o Caso Schreber 19u 11 OS SONHOS tarde e estaria ligada a isso a atenuação da represen tação simbólica em outros tipos de representação Es sas perguntas são claramente irrespondíveis a partir do estudo apenas do simbolismo onírico Podemos apenas nos ater à suposição de que existe uma estreita relação entre os símbolos verdadeiros e a sexualidade Em anos recentes recebemos importante aceno nes sa direção Um linguista Hans Sperber de Upsala cujo trabalho não possui nenhum vínculo com a psica nálise afirmou que coube às necessidades sexuais de sempenhar o papel mais significativo no surgimento e no desenvolvimento posterior da linguagem Seus sons iniciais serviam ao propósito da comunicação e de cha mar o parceiro sexual o ulterior desenvolvimento das raízes da linguagem teria acompanhado as diversas mo dalidades de trabalho dos primeiros seres humanos O trabalho era realizado em conjunto e acompanhado da repetição ritmada de manifestações de linguagem Com isso um interesse sexual se teria vinculado a ele O ho mem primitivo teria por assim dizer tornado o traba lho aceitável ao tratálo como equivalente e substituto da atividade sexual Assim a palavra proferida durante o trabalho conjunto possuiria dois significados ela de signava tanto o ato sexual como o trabalho equiparado a esse ato Com o tempo a palavra teria se desprendido de Cf H Sperber Über den Einfluss sexueller Momente auf Entstehung und Entwicklung der Sprache Sobre a influência de fatores sexuais na gênese e desenvolvimento da linguagem ma go v r 1912 226 10 O SIMBOLISMO DOS SONHOS seu significado sexual e se fixado nesse trabalho Gera ções mais tarde o mesmo aconteceria com nova palavra dotada de significado sexual e aplicada também a um novo tipo de trabalho Desse modo toda uma série de raízes da linguagem se teria formado todas de origem sexual mas todas elas tendo perdido esse significado Se está correta essa hipótese aqui sintetizada abrese para nós uma possibilidade de entendimento do simbolismo onírico Compreenderíamos por que no sonho que preserva algo dessa situação antiquíssima há uma quantidade tão extraordinária de símbolos para o se xual e por que armas e ferramentas em geral sempre representam os homens ao passo que a matéria em si e o material trabalhado representam as mulheres A re lação simbólica seria resquício da antiga identidade da palavra coisas que no passado tinham o mesmo nome dos órgãos genitais poderiam agora no sonho aparecer como símbolos desses mesmos órgãos A partir dos paralelos que traçamos para o simbo lismo onírico os senhores podem também avaliar a característica da psicanálise que contribui para torná la objeto de interesse geral como jamais a psicologia ou a psiquiatria lograram ser No trabalho psicanalítico tecemse relações com muitas outras ciências humanas e o estudo dessas relações promete frutos valiosos para a mitologia para a linguística para o folclore para a etnopsicologia e para o estudo da religião Os senhores julgarão pois compreensível que desse solo psicanalíti co tenha brotado uma revista que se propôs como tarefa exclusiva o cultivo de tais relações a revista mago fun 227 11 OS SONHOS dada em 1912 e dirigida por Hanns Sachs e Otto Rank Em todas essas relações a psicanálise atua como a parte doadora mais do que receptora É certo que isso lhe é vantajoso porque torna mais familiares seus estranhos resultados na medida em que eles reaparecem em outras esferas do conhecimento mas em regra é a psicanáli se que provê os métodos e pontos de vista técnicos cuja aplicação naquelas outras áreas há de se mostrar frutífe ra A vida psíquica do indivíduo nos fornece na inves tigação psicanalítica os esclarecimentos que nos permi tem solucionar muitos dos enigmas da vida das massas humanas ou ao menos lançar sobre eles a luz correta De resto ainda nem disse aos senhores sob que cir cunstâncias podemos obter uma visão mais aprofunda da daquela suposta língua básica em que âmbito a maior parte dela se preservou Enquanto não dispuse rem desse saber os senhores não poderão apreciar todo o significado dessa matéria Esse âmbito é o da neurose seu material são os sintomas e as demais manifestações dos doentes dos nervos para cujo esclarecimento e tra tamento a psicanálise foi criada Minha quarta consideração retorna pois a nosso ponto de partida e nos conduz à via prescrita Disse mos que mesmo que a censura do sonho não existis se ele não nos seria facilmente compreensível porque nos veríamos diante da tarefa de traduzir sua linguagem simbólica para a linguagem de nosso pensamento em estado de vigília O simbolismo é portanto ao lado da censura onírica um segundo fator independente da deformação do sonho É plausível supor no entan 11 O TRABALHO DO SONHO to que é confortável para a censura do sonho servirse desse simbolismo uma vez que ele conduz ao mesmo fim à estranheza e à incompreensibilidade do sonho Logo se mostrará se dando prosseguimento ao es tudo do sonho não haveremos de deparar com um novo fator a contribuir para a deformação Mas eu não gosta ria de deixar o tema do simbolismo onírico sem ainda uma vez mencionar o enigma que é o fato de esse tema ter encontrado tanta resistência entre as pessoas cultas se é tão inquestionável a difusão do simbolismo no mito na religião na arte e na linguagem A relação com a se xualidade não seria mais uma vez responsável por isso 11 O TRABALHO DO SONHO Senhoras e senhores Compreendidas a censura do so nho e a representação simbólica é certo que o tema da deformação ainda não está dominado por completo mas os senhores têm agora condições de compreender a maioria dos sonhos Para tanto basta que se valham das duas técnicas complementares evocar no sonhador associações que os conduzam do conteúdo substituto ao verdadeiro e a partir de seu próprio conhecimento tro car os símbolos por seus significados Mais tarde trata remos de algumas incertezas que aí seguem Podemos agora retomar um trabalho que já inten tamos realizar ainda que com meios insuficientes ao examinar as relações entre os elementos do sonho e seus 11 OS SONHOS conteúdos reais Constatamos naquele momento quatro relações principais a da parte com o todo a da aproxi mação ou alusão a da relação simbólica e a da repre sentação plástica das palavras Em escala maior é o que voltaremos a fazer mediante a comparação do conteúdo manifesto do sonho com o conteúdo latente que encon tramos pela via da interpretação Espero que os senhores nunca mais confundam essas duas coisas Se conseguirem fazer isso provavelmente já terão avançado mais na compreensão dos sonhos do que a maioria dos leitores de minha Interpretação dos sonhos Lembremse mais uma vez que o trabalho que trans forma o sonho latente em manifesto é chamado trabalho do sonho A operação que avança na direção contrária a que pretende conduzir do sonho manifesto ao latente é nosso trabalho de interpretação O trabalho interpretati vo deseja anular o trabalho do sonho Os sonhos de tipo infantil aqueles reconhecidos como de evidente realiza ção de desejos passaram em certa medida por esse tra balho do sonho ou seja pela transformação do desejo em realidade e em geral dos pensamentos em imagens visuais Eles não necessitam de interpretação basta que revertamos essas duas transformações Nos demais so nhos porém o trabalho do sonho abrange ainda o que chamamos de deformação e é essa deformação que cabe ao trabalho interpretativo desfazer Tendo comparado diversas interpretações vejome em condições de expor resumidamente aos senhores o que o trabalho do sonho faz com o material contido nos pensamentos oníricos la tentes Peçolhes porém que não busquem compreen 2JO 11 0 TRABALHO DOSONHO der demais o que segue A descrição que lhes faço deve ser ouvida com serena atenção A primeira realização do trabalho do sonho é a con densação Entendemos por isso o fato de o sonho manifes to encerrar menos conteúdo que o latente constituindo se portanto em uma espécie de tradução abreviada deste último A condensação pode vez por outra não ocorrer mas em geral está presente e com frequência é enorme Ela jamais inverte essa relação isto é jamais acontece de o sonho manifesto ser mais abrangente e rico em conteúdo que o latente A condensação se dá na medida em que I certos elementos latentes são ex cluídos 2 apenas um fragmento dos vários complexos do sonho latente figuram no manifesto 3 elementos la tentes que possuem algo em comum apresentamse reu nidos no sonho manifesto ou seja fundemse em uma única unidade Se assim o desejarem os senhores podem reservar o termo condensação para designar apenas esse último processo Seus efeitos são bem fáceis de demonstrar Se pensarem em seus próprios sonhos os senhores não te rão dificuldade de se lembrar da condensação de diver sas pessoas em uma só Essa pessoa composta de uma mistura terá por exemplo a aparência de A mas esta rá vestida como B estará executando uma tarefa que lembra C mas saberemos que se trata de D Natural mente com essa construção mista é realçado algo que as quatro pessoas têm em comum Assim como ocorre com pessoas podese também produzir uma mistura de objetos ou localidades uma vez obedecida a condição 2JI 11 OS SONHOS de que esses objetos ou localidades compartilhem de algo que o sonho latente acentua É como a construção de um conceito novo e fugaz que tem como núcleo esse elemento em comum Em regra a sobreposição dessas individualidades condensadas dá origem a uma imagem desfocada e indistinta como quando batemos várias fo tografias valendonos de uma única e mesma chapa A produção dessas construções mistas deve ser de grande importância para o trabalho do sonho uma vez que podemos demonstrar que na falta dos necessários elementos comuns estes são produzidos deliberada mente como ocorre por exemplo quando da escolha da expressão verbal para um pensamento Nós já tive mos contato com tais condensações e construções mis tas elas desempenharam um papel na origem de vários casos de lapso verbal Lembremse do rapaz que mani festou o desejo de hegleitdigen uma dama Além disso temos chistes cuja técnica construtiva remete a conden sação semelhante Mas excetuandose esses casos é lí cito afirmar que esse procedimento é incomum e causa estranheza É certo que a construção dessas misturas humanas que ocorrem nos sonhos tem sua contraparti da em muitas criações de nossa fantasia que facilmente combina em uma unidade aquilo que em nossa expe riência não se coaduna esse é o caso por exemplo dos centauros e dos animais fabulosos da antiga mitologia ou das pinturas de Bõcklin A fantasia criadora não é capaz de inventar coisa nenhuma o que ela faz é reunir componentes estranhos entre si Mas o singular no pro ceder do trabalho do sonho é que o material de que ele 232 11 O TRABALHO 00 SONHO dispõe são pensamentos que podem alguns deles ser repulsivos e inaceitáveis mas que são corretamente formados e expressos Esses pensamentos são levados pelo trabalho do sonho a tomar outra forma e é notá vel e incompreensível que nessa tradução nessa trans posição como que para outra escrita ou língua sejam aplicados os expedientes da fusão e da combinação Isso porque em regra uma tradução se empenha em atentar para as singularidades presentes no texto e em manter separadas as coisas semelhantes O trabalho do sonho se empenha justamente no contrário como sucede no chiste ele busca uma palavra ambígua capaz de conden sar pensamentos diferentes e oferecer a eles um ponto de encontro Não é necessário que compreendamos de imediato essa caraterística mas ela pode se revelar sig nificativa para o entendimento do trabalho do sonho Embora a condensação torne o sonho impenetrável não se tem a impressão de que ela seja um efeito da cen sura do sonho Preferível seria antes relacionála a fa tores mecânicos ou econômicos Mas de toda forma a censura se beneficia dela As realizações da condensação podem ser extraordi nárias Com seu auxílio às vezes é possível juntar dois pensamentos bem diferentes num único sonho mani festo de modo que se chegue a uma interpretação apa rentemente suficiente de um sonho e não se note uma possível superinterpretação No que toca aos vínculos entre os sonhos latente e manifesto a condensação pode também acarretar o fim de toda relação simples entre os elementos de um e de 233 11 OS SONHOS outro Um elemento manifesto corresponde ao mesmo tempo a vários elementos latentes no sentido inverso um elemento latente pode ter participação em vários elementos manifestos à maneira portanto de um en trelaçamento Na interpretação de um sonho descobri mos também que as associações feitas com determinado elemento manifesto não surgem necessariamente em se quência É frequente que tenhamos de esperar até que a totalidade do sonho tenha sido interpretada Assim o trabalho do sonho fornece um tipo bastan te incomum de transcrição dos pensamentos oníricos não uma tradução palavra por palavra ou signo por signo tampouco uma seleção conforme determinadas regras por exemplo se reproduzisse apenas as con soantes de uma palavra e excluísse as vogais e nem aquilo que poderíamos chamar de um representante isto é um mesmo elemento que seja sempre escolhido para representar vários outros O que ele nos dá é outra coisa bem mais complicada A segunda realização do trabalho do sonho é o des locamento Sobre ele por sorte já vimos algo e sabemos que é inteiramente obra da censura do sonho Ele se manifesta de duas formas na primeira um elemento la tente não é substituído por um seu componente próprio e sim por algo mais distante isto é por uma alusão na segunda a ênfase psíquica passa de um elemento im portante para outro irrelevante fazendo com que o so nho tenha outro centro e assim pareça estranho A substituição por uma alusão ocorre também em nosso pensamento no estado de vigília mas há uma 234 11 O TRABALHO DO SONHO diferença Quando pensamos acordados essa alusão precisa ser facilmente compreensível e a substituição deve guardar uma relação de conteúdo com a coisa real Também o chiste se vale com frequência da alusão ele abandona o requisito da associação conteudística e o substitui por associações externas insólitas como entre outras a homofonia e a polissemia Mantém contudo o requisito da compreensibilidade o chiste perderia todo o seu efeito se o caminho de volta da alusão ao real não resultasse fácil No sonho todavia a alusão a serviço do deslocamento libertouse dessas duas restrições Ela se liga ao elemento que substitui por meio de relações extrínsecas e remotas razão pela qual é ininteligível e quando revertida seu significado mais parece um chiste malsucedido ou uma explicação bastante forçada Com efeito a censura do sonho só atinge seu objetivo quan do logra tornar irreconhecível o caminho desde a alu são até a coisa real Como meio de expressão do pensamento o desloca mento da ênfase é um recurso inaudito No pensamento em estado de vigília nós o admitimos apenas de vez em quando a fim de obter um efeito cômico Posso evocar nos senhores a impressão de desatino que esse deslo camento provoca lembrando uma anedota Em certa aldeia havia um ferreiro que cometeu um crime digno de pena de morte O tribunal decidiu que ele deveria pagar pelo crime mas como aquele era o único ferreiro da aldeia e portanto indispensável e como a aldeia dis punha de três alfaiates um dos alfaiates foi enforcado em seu lugar 235 11 OS SONHOS A terceira realização do trabalho do sonho é a mais interessante psicologicamente Ela consiste na conver são de pensamentos em imagens visuais Estabeleçamos desde já que nem tudo nos pensamentos oníricos expe rimenta essa conversão muita coisa conserva sua for ma original e figura também no sonho manifesto como pensamento ou saber Além disso imagens visuais não são a única forma na qual se convertem os pensamen tos Mas elas são por certo o essencial na formação do sonho Essa porção do trabalho do sonho é a segunda mais constante como sabemos e no que diz respeito aos elementos oníricos isolados já tomamos conheci mento da representação plástica das palavras Está claro que essa não é uma realização fácil Para ter uma ideia de sua dificuldade imaginem terem os senhores assumido a tarefa de substituir por uma série de ilustrações as palavras de um importante artigo de jornal versando sobre política Os senhores serão pois lançados de volta da escrita alfabética para a pictórica Pessoas e coisas mencionadas poderão facilmente e tal vez até com vantagem ser substituídas por imagens as dificuldades aparecerão porém na representação de to das as palavras abstratas e de todas aquelas partes do discurso que indicam relações de pensamento como partículas conjunções e que tais No caso das palavras abstratas os senhores recorrerão a toda sorte de artifí cios Vão por exemplo dar ao texto do artigo nova re dação que talvez soe mais inusitada mas que contenha elementos mais concretos e mais aptos à representação Depois hão de se lembrar que a maioria das palavras 11 O TRABALHO DO SONHO abstratas compõese de palavras concretas que perde ram sua coloração motivo pelo qual tanto quanto pos sível recorrerão ao significado concreto original dessas palavras Ficarão felizes em poder representar o pos suir Besitren de um objeto mediante um sentarse real e físico em cima dele Daraufiitren Assim faz tam bém o trabalho do sonho Sob tais circunstâncias não haverão de ter os senhores grandes pretensões quanto à exatidão da representação Por isso mesmo permitirão também ao trabalho do sonho que ele substitua um ele mento tão difícil de ilustrar como por exemplo a que bra de um matrimônio ou adultério Ehebruch rup tura do casamento por outro tipo de quebra Bruch a de uma perna Beinbruch3 Desse modo conseguirão 3 Enquanto eu revisava as provas destas páginas o acaso me pôs nas mãos uma notícia de jornal que reproduzo aqui como um ines perado comentário ao que foi dito acima cASTIGO DIVINO Um hraço quehrado pelo adultério A sra Anna M esposa de um reservista processou a sra Klementine K por adultério A acusação afirma que K entreteve com Karl M um relacionamento passível de punição enquanto seu próprio marido estava no campo de batalha de onde inclusive lhe enviava mensal mente setenta coroas K já teria recebido muito dinheiro do marido da demandante ao passo que ela própria afirma precisar viver com o filho em uma situação de fome e miséria Companheiros do marido terlheiam revelado que K e M teriam visitado tavernas e se embebedado até tarde da noite Certa feita a acusada teria mesmo perguntado ao marido da demandante na presença de vá rios soldados se ele não iria se separar logo da velha para ir morar com ela A própria zeladora de K teria visto diversas vezes o ma rido da demandante vestido muito à vontade em casa de K Ontem perante um juiz de Leopoldstadt K negou conhecer M e haver tido com ele qualquer relação íntima 237 11 OS SONHOS em certa medida equilibrar as esquisitices da escrita pictórica quando se trata de substituir a alfabética Para a representação daquelas partes do discurso que indicam relações de pensamento como um por que um portanto ou um mas os senhores não poderão contar com semelhante auxílio Na conversão em imagens essas componentes do texto se perdem Da mesma forma o trabalho do sonho dissolve o conteúdo dos pensamentos oníricos nos objetos e ações que eram sua matéria bruta Os senhores poderão ficar satisfeitos se de alguma maneira tiverem a possibilidade de nos mais sutis detalhes das imagens indicar certas relações que em si mesmas não admitem representação É as sim que o trabalho do sonho logra expressar muito do conteúdo dos pensamentos oníricos latentes por meio de peculiaridades formais do sonho manifesto da ela Contudo a testemunha Albertine M declarou que K teria beijado o marido da demandante tendo sido flagrada por ela pró pria ao fazêlo Em audiência anterior M na condição de testemunha já ha via negado possuir relações íntimas com a acusada Mas ontem em carta ao juiz a testemunha retratouse das declarações feitas anteriormente e admitiu ter tido um relacionamento amoroso com K até junho passado Na audiência anterior ele teria negado sua relação com a acusada apenas porque esta lhe havia procurado an teriormente a seu depoimento e suplicado de joelhos para que ele a salvasse e nada dissesse Hoje escreveu a testemunha sintome compelido a oferecer a este tribunal confissão plena uma vez que quebrei meu braço esquerdo o que me parece ser castigo divino pela falta que cometi O juiz constatou que o ato sujeito a punição já prescreveu ao que a demandante retirou a acusação seguindose a liberação da acusada 11 O TRABALHO DO SONHO reza ou obscuridade desse conteúdo manifesto de sua decomposição em várias partes e de outros expedien tes semelhantes O número de sonhos parciais em que um sonho se decompõe equivale em geral ao núme ro de temas principais aos grupos de pensamentos no sonho latente Um breve sonho inicial com frequência relacionase com o sonho principal pormenorizado que lhe sucede à maneira de uma introdução ou da exposi ção de um motivo uma oração subordinada nos pensa mentos oníricos é substituída no sonho manifesto pela inserção de uma mudança de cena e assim por diante A forma em si dos sonhos portanto não é de modo algum irrelevante também ela requer interpretação Múltiplos sonhos em uma mesma noite costumam ter todos eles o mesmo significado e indicam o empenho por lidar de maneira cada vez melhor com um estímulo de intensi dade crescente Nos próprios sonhos isolados um ele mento de particular dificuldade pode encontrar repre sentação em dobretes isto é em símbolos diversos Na comparação continuada dos pensamentos oníri cos com os sonhos manifestos que os substituem des cobrimos muitas coisas para as quais não estávamos preparados como por exemplo que também a insen satez e a absurdidade dos sonhos podem ter significado Nesse ponto de fato a oposição entre as concepções médica e psicanalítica do sonho se aguçam em grau inaudito De acordo com a primeira o sonho é insensa Em linguística palavras de significado diverso e de mesma eti mologia como tenro e terno 239 li OS SONHOS to porque a atividade da psique sonhadora perdeu todo senso crítico na nossa concepção ao contrário o sonho só se torna insensato quando precisa dar representação a uma crítica o juízo isso é absurdo contida nos pensamentos oníricos O sonho da ida ao teatro já conhecido dos senhores três ingressos por um florim e cinquenta é um bom exemplo disso O juízo nele ex presso reza foi ahsurdo ter me casado tão cedo No trabalho interpretativo também descobrimos a que correspondem aquelas dúvidas e incertezas que o sonhador tantas vezes nos comunica sobre se deter minado elemento apareceu no sonho se se tratava de fato desse elemento ou de algum outro Essas dúvidas e incertezas em geral não têm correspondente nos pensa mentos oníricos latentes elas resultam inteiramente da atuação da censura do sonho e equivalem a uma tentati va de expurgo não inteiramente bemsucedida Entre nossos achados mais surpreendentes está o modo como o trabalho do sonho lida com oposições no mate rial latente Já sabemos que concordâncias nesse material são substituídas por condensações no sonho manifesto Pois as oposições recebem o mesmo tratamento dado às concordâncias e são expressas com particular predileção pelo mesmo elemento manifesto Um elemento do sonho manifesto que encerra uma oposição pode tanto significar ele próprio quanto seu contrário ou então as duas coisas ao mesmo tempo Somente o sentido poderá decidir qual tradução haveremos de escolher A isso se liga o fato de não haver no sonho uma representação para o não ou ao menos não uma representação inequívoca 240 11 O TRABALHO 00 SONHO Uma analogia bemvinda para esse estranho compor tamento do trabalho do sonho nos é oferecida pela evo lução das línguas Diversos linguistas afirmam que nas línguas mais antigas oposições como fracoforte claro escuro grandepequeno eram expressas por palavras de mesma raiz O sentido antitético das palavras primiti vas Assim no egípcio antigo lcen significava original mente forte e fraco Na fala as pessoas se valiam da entonação e dos gestos para se guardar de malentendidos no emprego de palavras tão ambivalentes na escrita faziamno mediante o acréscimo do chamado determina tivo ou seja de uma imagem que não era pronunciada Ken no sentido de forte era pois escrita mediante o acréscimo da imagem de um homenzinho em pé em se guida à palavra se o sentido pretendido era o de fraco a imagem que se seguia era a de um homem sentado dis plicentemente Apenas mais tarde mediante ligeiras mo dificações feitas na palavra primitiva homófona surgiram duas designações diferentes para os sentidos opostos que ela encerrava Do lcen significando fortefraco nasceu assim um lcen forte e um lcan fraco Abundantes resquícios desses antigos sentidos opostos de uma mes ma palavra conservaramse não apenas nos derradeiros desenvolvimentos das línguas antigas mas também em línguas mais novas e ainda vivas Quero lhes dar aqui al guns exemplos extraídos de K Abel 1884 Cf a longa resenha que Freud publicou sobre o trabalho de Abel com o mesmo título dele Sobre o sentido antitético das palavras primitivas 1910 241 11 OS SONHOS O latim possui essas palavras ainda e sempre ambi valentes como é o caso de altus alto e baixo e sacer sacro e sacrílego Exemplos de modificação de uma mesma raiz são clamare gritar e clam baixo quieto em segredo siccus seco e succus suco bem como no alemão Stimme voz e stumm mudo Quando comparamos línguas aparentadas os exem plos resultantes são muitos Em inglês loclc trancar em alemão Loch buraco Lücke lacuna Em inglês cleave fender em alemão klehen colar A palavra inglesa without comsem é hoje em pregada no sentido de sem Que além de significar acréscimo with possuía também o sentido se subtração isso é o que ainda hoje se depreende de compostos como withdraw retirar e withhold reter Algo semelhante acontece com a palavra alemã wieder Ainda outra peculiaridade do trabalho do sonho en contra paralelo na evolução das línguas No egípcio an tigo assim como em línguas posteriores acontecia de a sequência de fonemas das palavras de mesmo sentido se inverter Exemplos disso no inglês e no alemão são Topf e pot panela hoat barco e tuh banheira hurry pressa e Ruhe calma Balken viga e Klohen tora cluh por rete wait esperar e tiiuwen demorarse Ou no latim e no alemão capere e packen apanhar ren e Niere rim Tais inversões abordadas aqui em palavras isoladas ocorrem de formas variadas por obra do trabalho do sonho A inversão de sentido a substituição pelo con trário já conhecemos Além disso encontramos nos 11 0 TRABALHO DOSONHO sonhos inversão de situações da relação entre duas pes soas ou seja como num mundo ao revés No sonho com relativa frequência é a lebre que atira no caçador Além disso verificamos nele inversões na sequência dos acontecimentos de sorte que um fato causador su cede em vez de preceder o fato seguinte É como a en cenação de uma peça em um teatro de quinta categoria em que o herói tomba antes que dos bastidores seja disparado o tiro que deve matálo Há também sonhos nos quais toda a ordem dos elementos encontrase in vertida de forma que para extrair daí um sentido a interpretação deve considerar em primeiro lugar o que vem por último e por último o que vem primeiro Os senhores se lembram de que em nossos estudos sobre o simbolismo dos sonhos entrar ou cair na água significa o mesmo que emergir dela isto é parir ou ser parido e subir ou descer uma escada significam a mesma coisa É inegável a vantagem que a deformação do sonho é capaz de extrair dessa liberdade de representação É lícito que caracterizemos esses traços do trabalho do sonho como arcaicos Também eles estão presos a an tigos sistemas de expressão línguas e escritas e trazem consigo as mesmas dificuldades de que falaremos mais adiante em contexto crítico Antes porém façamos mais algumas considerações No trabalho do sonho tratase evidentemente de con verter em imagens sensoriais a maioria delas de nature za visual os pensamentos latentes vertidos em palavras Ora nossos pensamentos se originaram de imagens sen soriais desse tipo Seu primeiro material e seus estágios 243 11 OS SONHOS preliminares foram impressões dos sentidos ou melhor dizendo imagens mnemônicas delas Apenas depois ligaramse a elas palavras que por sua vez foram enfei xadas em pensamentos Assim o trabalho do sonho sub mete os pensamentos a um tratamento regressivo rever te seu desenvolvimento e essa regressão precisa deixar pelo caminho toda nova aquisição ocorrida no percurso que vai das imagens mnemônicas até os pensamentos Esse seria pois o trabalho do sonho Diante dos processos de que tomamos conhecimento ao examiná lo o interesse no sonho manifesto haveria de regredir consideravelmente Mas quero ainda dedicar algumas considerações a este último que é o único de que temos conhecimento direto É natural que o sonho manifesto perca importância para nós Há de nos parecer indiferente se ele se mostra bem composto ou se dissolve em uma série de imagens isoladas e desconectadas E mesmo que nos revele um ex terior aparentemente significativo sabemos que este sur giu através da deformação do sonho e com o conteúdo interno do sonho só poderá guardar relação tão pouco or gânica como aquela que a fachada de uma igreja italiana guarda com sua planta e estrutura Outras vezes também essa fachada do sonho possui seu significado reproduzin do um componente importante dos pensamentos oníricos latentes sob forma pouco ou nada deformada Isso con tudo não temos como saber antes de submeter o sonho à interpretação e a partir daí formar um juízo acerca do grau de deformação ocorrido Dúvida semelhante se ve rifica quando dois elementos parecem guardar íntima re 11 O TRABALHO 00 SONHO lação no sonho Essa relação aparente pode conter valiosa indicação para que também no sonho latente juntemos os equivalentes desses elementos outras vezes porém aquilo que os pensamentos integram o sonho separa De modo geral devemos nos abster da pretensão de explicar uma parte do sonho manifesto com base em outra como se o sonho tivesse sido concebido de forma coerente e constituísse uma representação pragmática Na maioria dos casos ele é antes comparável a uma brecha calcária que composta de fragmentos unidos por meio de um cimento natural forma desenhos que não integravam as pedras que lhe deram origem Com efeito há uma parte do trabalho do sonho a chamada elaboração secundária que cuida de produzir um todo mais ou menos coerente a partir dos resultados imedia tos do trabalho do sonho Com frequência ela organiza o material de acordo com um sentido inteiramente equi vocado e realiza inserções onde lhe parece necessário Por outro lado cumpre não superestimar o trabalho do sonho isto é não lhe atribuir feitos demasiados As operações listadas acima esgotam suas atividades mais que condensar deslocar dar representação plástica e de pois submeter o todo a uma elaboração secundária ele não pode fazer Juízos críticas expressões de perplexi dade conclusões nada disso é obra do trabalho do so nho e apenas raras vezes manifestação de uma reflexão sobre o sonho na maioria dos casos tratase de porções dos pensamentos oníricos latentes que modificadas em I maior ou menor grau e adaptadas ao contexto penetram no sonho manifesto O trabalho do sonho tampouco é 11 OS SONHOS capaz de compor falas À exceção de uns poucos casos que podemos indicar as falas nos sonhos constituem imi tações ou combinações de falas ouvidas ou pronunciadas no dia anterior que se inscreveram nos pensamentos la tentes como material ou como incitadoras do sonho O trabalho do sonho também não é capaz de fazer contas cálculos que figurem no sonho manifesto são em geral combinações de números falsas operações que não pos suem nenhum sentido aritmético ou mais uma vez são apenas cópias de contas dos pensamentos oníricos laten tes Assim sendo não é de admirar que o interesse volta do para o trabalho do sonho logo almeje afastarse dele em direção àqueles pensamentos oníricos latentes que deformados em maior ou menor grau o sonho manifesto acaba por revelar Não se pode contudo justificar que esse novo enfoque chegue ao ponto de na consideração teórica tomar pelo sonho em si o que são na verdade pensamentos oníricos latentes e que conduza a afirma ções acerca do primeiro que só podem ter validade em relação a este último É singular que os resultados da psi canálise possam ser empregados tão equivocadamente ensejando tal confusão Sonho só se pode chamar o resultado do trabalho do sonho ou seja a forma que esse trabalho dá aos pensamentos latentes O trabalho do sonho é um processo de natureza bas tante singular de um tipo do qual até o momento não se conhece nada igual na vida psíquica Condensações des locamentos e conversões regressivas de pensamentos em imagens como as que ele opera são novidades cujo mero conhecimento já recompensa abundantemente o empenho 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS psicanalítico Mais uma vez os senhores podem depreen der dos paralelos com o trabalho do sonho os vínculos que os estudos psicanalíticos revelam com outras áreas em especial com a evolução das línguas e do pensamento Mas uma ideia do real significado dessas descobertas os senhores só poderão ter ao tomar conhecimento de que os mecanismos da formação dos sonhos são modelares para a forma como surgem os sintomas neuróticos Sei também que ainda não podemos ter uma visão geral dos novos ganhos para a psicologia decorrentes desses trabalhos Queremos apenas assinalar as novas provas que eles fornecem da existência de atos psíquicos inconscientes tais são de fato os pensamentos oníri cos latentes e como a interpretação dos sonhos pro mete um amplo e insuspeitado acesso ao conhecimento da vida psíquica inconsciente Agora porém é chegada a hora de expor aos senhores em detalhes com uma variedade de exemplos breves de sonhos aquilo para o qual os preparei em linhas gerais 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS Senhoras e senhores Não fiquem decepcionados se mais uma vez eu lhes apresentar apenas fragmentos de interpretações de sonhos em vez de convidálos a participar da interpretação de um belo sonho comple to Dirão os senhores que depois de tantos preparati vos constituiria esse um direito adquirido convicção 247 11 OS SONHOS que expressariam argumentando que depois da bem sucedida interpretação de milhares de sonhos deve ria nos ser possível há tempos reunir uma coleção de ótimos exemplos para demonstrar todas as nossas afir mações sobre o trabalho do sonho e os pensamentos oníricos Sim mas são muitas as dificuldades que me impedem de realizar esse desejo Antes de mais nada devo confessar que não existe ninguém cuja principal ocupação seja interpretar so nhos Quando então nos ocupamos de interpretálos Vez por outra podemos nos dedicar sem nenhuma intenção particular aos sonhos de algum conhecido ou durante algum tempo à análise de nossos próprios sonhos a fim de nos preparar para o trabalho psicana lítico Na maioria dos casos porém os sonhos de que nos ocupamos são aqueles dos doentes de nervos em tratamento psicanalítico Esses sonhos oferecem ma terial extraordinário que nada fica a dever aos sonhos das pessoas saudáveis mas em razão da técnica de tra tamento vemonos obrigados a subordinar sua inter pretação às intenções terapêuticas e assim a abandonar toda uma série de sonhos tão logo tenhamos extraído deles algo de útil para o tratamento em questão Muitos dos sonhos que ocorrem ao longo da terapia subtraem se a uma interpretação completa Como eles nascem da grande quantidade de um material psíquico que ainda não conhecemos sua compreensão só se torna possível depois de encerrada a terapia Além disso a comunica ção desses sonhos iria requerer o desvelamento de todos os segredos de uma neurose o que não é o caso pois foi 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS justamente como preparação para o estudo das neuroses que abordamos o sonho Creio que os senhores renunciariam de bom grado a esse material e prefeririam ouvir a explicação para seus próprios sonhos ou para aqueles de pessoas saudáveis Mas isso tampouco é possível em razão do conteúdo de tais sonhos Não podemos expor de forma tão inconsi derada nem a nós mesmos nem a outra pessoa de cuja confiança gozamos e isso é o que demandaria a inter pretação detalhada de seus sonhos que como os senho res sabem envolveria os aspectos mais íntimos de sua personalidade Além dessa dificuldade relativa à obten ção do material a comunicação de tais sonhos implicaria uma outra Os senhores bem sabem que o sonho parece estranho até ao próprio sonhador que dirá a quem não o conhece Contudo nossa literatura especializada não carece de análises boas e pormenorizadas Eu próprio publiquei algumas relacionadas a determinados casos clínicos Talvez o mais belo exemplo de interpretação de um sonho seja aquele relatado por Otto Rank contendo dois sonhos interrelacionados de uma jovem Impressa sua descrição ocupa duas páginas a análise no entan to compreende 76 páginas Eu precisaria talvez de todo um semestre para conduzilos por semelhante trabalho Quando nos dedicamos a um sonho mais longo que te nha sido alvo de deformação mais intensa precisamos dar tantos esclarecimentos recorrer a tão extenso mate rial relativo a associações e lembranças entrar por tan tos desvios que uma palestra a seu respeito resultaria demasiado abrangente e insatisfatória Então peço aos 11 OS SONHOS senhores que se contentem com aquilo que podemos rea lizar mais facilmente isto é com o relato de pequenos pedaços dos sonhos de pessoas neuróticas nos quais pos samos isolar uma coisa ou outra Mais fáceis de demons trar são os símbolos oníricos e certas peculiaridades da representação onírica regressiva Vou indicar aos senho res por que julguei digno de comunicação cada um dos sonhos que relato a seguir 1 Um sonho que consiste apenas de duas breves imagens O tio do sonhador fuma um cigarro embora seja sábado Uma mulher alisa e acaricia o sonhador como se ele fosse seu filho No tocante à primeira imagem o sonhador judeu observa que seu tio é um homem religioso que jamais fez nem faria algo tão pecaminoso Com relação à mu lher da segunda imagem nada lhe ocorre a não ser sua própria mãe Evidentemente cumpre aqui relacionar essas duas imagens ou esses dois pensamentos Mas como Uma vez que o sonhador contestou expressa mente a realidade da atitude do tio é natural que intro duzamos aqui um se Se meu tio um homem santo fumasse um cigarro em pleno sábado então seria igual mente lícito que eu me deixasse acariciar por minha mãe Isso só pode significar que a carícia da mãe é coi sa tão proibida como é para o judeu devoto fumar no sábado Os senhores se lembram de eu lhes ter dito que no trabalho do sonho ficam suspensas todas as relações entre os pensamentos oníricos estes se dissolvem em material bruto e é tarefa da interpretação restabelecer as relações omitidas 250 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS 2 Em virtude de minhas publicações sobre o sonho acabei de certa maneira me tornando um consultor pú blico para questões relacionadas a esse assunto razão pela qual recebo há muitos anos correspondência das mais variadas partes na qual sonhos me são relatados ou submetidos para avaliação Sou grato claro a to dos aqueles que além do sonho me enviam material adicional que torne possível a interpretação bem como àqueles que me encaminham sua própria interpretação Pertence a esta última categoria o sonho a seguir de 1910 enviado por um estudante de medicina de Muni que Faço uso dele para mostrar aos senhores como é inacessível à compreensão um sonho antes que o so nhador nos tenha dado informações sobre ele Suponho na verdade que no fundo os senhores julguem ideal a interpretação que se vale de um significado simbólico e que prefeririam pôr de lado a técnica associativa Meu propósito é libertálos desse equívoco danoso 13 de julho de 1910 Perto do amanhecer tive o se guinte sonho Estou descendo de hicicleta uma rua de Tühingen quando um dachshund marrom vem correndo atrás de mim e me morde o calcanhar Pouco adiante des ço da hicicleta sentome numa escada e começo a golpear o animal cujos dentes seguem cravados em mim Nem a mordida nem a cena toda me causam sentimentos desa gradáveis Defronte estão sentadas duas ou três senhoras mais velhas que me ohservam com um sorrisinho Então acordo e como tantas vezes ocorre o sonho todo está claro para mim nesse momento de transição para a vigília 11 OS SONHOS Símbolos nos são aqui de pouca valia Mas o sonhador relata Recentemente apaixoneime por uma moça só de vêla na rua mas não tive oportunidade de fazer contato com ela Gostaria muito que o dachshund me oferecesse essa oportunidade porque gosto bastante de animais e achei simpática essa característica dela tam bém Ele acrescenta ainda que com grande habilida de e para espanto frequente dos espectadores já inter veio repetidas vezes em brigas de cachorros Ficamos sabendo portanto que a moça de que ele gostou pode ser vista constantemente na companhia de um cachorro dessa raça particular A moça foi excluída do sonho ma nifesto que mantém apenas o cachorro associado a ela Talvez as senhoras mais velhas a sorrir para ele figu rem no lugar dela O restante de seu relato no entanto não basta para esclarecer esse ponto O fato de ele estar de bicicleta no sonho é repetição direta da situação que tem na lembrança todas as vezes que encontrou a moça com o cachorro ele estava andando de bicicleta 3 Quando alguém perde um de seus parentes mais queridos os sonhos que essa pessoa tem por algum tempo são de um tipo especial em que a consciência dessa morte estabelece um notável compromisso com a necessidade de trazer de volta à vida o ente queri do Nesses sonhos por vezes o falecido está morto e no entanto segue vivendo porque não sabe que está morto morreria sim se soubesse disso Outras vezes apresentase semimorto e semivivo e cada um desses estados tem seus indícios particulares Não podemos caracterizar esses sonhos como simplesmente absurdos 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS uma vez que o retorno à vida não é mais inadmissível em um sonho do que por exemplo nos contos de fada onde é bastante comum Até onde logrei analisálos verifiquei que esses sonhos podem ter uma solução ra cional mas que o desejo pio de trazer o morto de volta à vida sabe se valer dos meios mais estranhos Expo nho aos senhores agora um sonho desse tipo que pa rece bem estranho e absurdo e cuja análise exibirá aos senhores muito daquilo para o qual nossas explicações teóricas os prepararam Tratase do sonho de um ho mem que perdeu o pai há muitos anos O pai está morto mas foi exumado e sua aparência é ruim Desde então segue vivendo e o sonhador for de tudo para que o pai não o perceha Depois disso o sonho em questão passa a tratar de outras coisas aparentemente bem diferentes O pai morreu disso sabemos A exumação não cor responde à realidade que de todo modo não conta mui to em relação ao resto Mas o sonhador relata depois de regressar do enterro do pai um dente começou a lhe doer Seu desejo era tratar esse dente de acordo com o que prescreve a religião judaica se um dente o incomo da arranqueo Assim sendo ele foi a um dentista Este porém lhe disse Não se arranca um dente assim É pre ciso ter paciência com ele Vou aplicar algo para matálo Daqui a três dias o senhor volta e aí extraímos Essa extração diz o sonhador de repente é a exumação Teria ele razão Não se trata bem disso e sim de coisa semelhante já que o que é extraído não é o dente em si 11 OS SONHOS mas o que está morto nele A julgar por outras experiên cias todavia inexatidões como essa devemos admitir no trabalho do sonho O sonhador teria então condensa do o pai falecido e o dente que havia sido morto mas não extraído fundira ambos numa mesma unidade Não admira pois que o sonho manifesto apresente algo sem sentido afinal nem tudo que se diz do dente se aplica ao pai Onde estaria o tertium comparationis entre dente e pai que torna possível essa condensação E no entanto assim deve ter sido porque o sonhador prossegue dizendo que sabe que sonhar com a queda de um dente significa a perda de um membro da família Sabemos que essa interpretação popular é incorre ta ou no mínimo correta apenas em sentido burlesco Tanto mais surpreendente será então redescobrir o tema assim abordado por trás dos outros segmentos do conteúdo do sonho Sem ser solicitado a fazêlo o sonhador começa em seguida a falar da enfermidade e da morte do pai assim como de sua relação com ele O pai sofrera uma longa enfermidade cujo tratamento havia custado muito di nheiro a ele o filho Este porém nunca achara nada daquilo demasiado nunca se impacientara nem nutrira o desejo de que tudo acabasse logo O sonhador se gaba de sua genuína piedade judaica em relação ao pai da rigorosa obediência da lei judaica Não chama a atenção aí uma contradição nos pensamentos que pertencem ao sonho Ele havia identificado o dente com o pai No tocante ao dente queria proceder segundo a lei judaica que determinava a extração caso o dente provocasse 24 12ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS dor ou incômodo Também em relação ao pai pretendia ter agido conforme os preceitos dessa lei nesse caso no entanto ela reza que não se dê atenção aos gastos ou aborrecimentos que se suporte toda dificuldade e não se tenha nenhuma intenção hostil contra o objeto que provoca a dor A concordância entre as duas atitudes não seria mais convincente se de fato o sonhador ti vesse desenvolvido em relação ao pai sentimentos se melhantes aos que abrigara contra o dente doente ou seja se tivesse desejado que uma morte rápida pusesse fim àquela existência supérflua dolorosa e dispendiosa Não tenho dúvida de que essa era na realidade sua postura em relação ao pai ao longo da demorada enfer midade e de que as alardeadas reafirmações de pieda de religiosa servem ao propósito de desviálo de tais lembranças Em condições assim o desejo da morte do genitor costuma despertar e se recobrir da máscara de uma ponderação compassiva tal como Para ele seria apenas um alívio Notem porém que aqui ultrapassa mos uma barreira no interior dos próprios pensamentos oníricos latentes A primeira parte deles por certo este ve inconsciente apenas durante algum tempo isto é durante a formação do sonho ao passo que as emo ções hostis voltadas contra o pai talvez tenham estado inconscientes desde sempre é possível que provenham da infância e que ao longo da enfermidade do pai te nham aqui e ali de um modo tímido e dissimulado adentrado sorrateiramente a consciência Com certeza ainda maior podemos dizer o mesmo de outros pensa mentos latentes que deram contribuições inequívocas 11 OS SONHOS ao conteúdo do sonho Das emoções hostis ao pai não encontramos sinal no sonho Mas se procuramos a raiz dessa hostilidade na infância lembramos que a angústia relativa ao pai se instala porque este já nos primeiros anos se opõe à atividade sexual do menino como por razões sociais também faz nos anos que se seguem à puberdade Essa relação com o pai também se aplica ao nosso sonhador Em seu amor por ele misturamse res peito e medo vindos da intimidação sexual prematura O complexo da masturbação explica então as de mais frases do sonho manifesto Se por um lado sua aparência é ruim faz alusão a outra fala do dentista que afirma resultar ruim a aparência quando se per de um dente naquela posição por outro a frase se refere também à aparência ruim por meio da qual o jovem na puberdade trai ou receia trair sua atividade sexual exagerada No sonho manifesto o sonhador não sem sentir alívio transfere a aparência ruim de si para o pai uma das inversões do trabalho do sonho conhe cida dos senhores Ele segue vivendo coincide tan to com o desejo de trazer o pai de volta à vida como com a promessa do dentista de poupar o dente Bastan te refinada é a oração o sonhador faz de tudo para que o pai não o perceba assim construída para nos levar a complementar não perceba que está morto Mas o único complemento que faz sentido resulta mais uma vez do complexo da masturbação em que é natural que o jovem tudo faça para ocultar do pai sua vida sexual Lembremse por fim de que sempre devemos interpre tar os chamados sonhos com estímulo dentário com 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS referência à masturbação e ao medo do castigo decor rente dessa prática Os senhores veem agora como surgiu esse sonho incompreensível ou seja a partir da produção de uma condensação singular e enganadora da omissão de to dos os pensamentos centrais ao encadeamento do pen samento latente e da criação de formações substitutivas de significado ambíguo para os pensamentos mais pro fundos e temporalmente distantes 4 Já tentamos várias vezes nos aproximar daqueles sonhos sóbrios e banais que nada contêm de absurdo ou estranho mas que levantam a questão por que so nhamos com coisas tão indiferentes Quero portanto expor um novo exemplo desse tipo três sonhos inter li gados que uma jovem senhora teve numa mesma noite a Ela caminha pelo vestíbulo de sua casa bate a cabeça no lustre que pende baixo do teto e começa a sangrar Não se trata de uma reminiscência nem de nada que tenha de fato ocorrido A informação que a sonhadora fornece leva a outros caminhos bem diversos O se nhor sabe como os cabelos me caem em grande quanti dade Filha disseme ontem minha mãe se continuar assim sua cabeça vai ficar lisa como um bumbum A cabeça representa aqui portanto a outra extremidade do corpo O significado simbólico do lustre nós podemos compreender sem precisar de ajuda todo objeto expansí vel simboliza o membro masculino Estamos pois dian te de um sangramento na extremidade inferior do corpo que resulta do choque com o pênis Isso ainda poderia ser ambíguo Mas as demais associações indicam que se 257 11 OS SONHOS trata da crença de que o sangramento menstrual adviria da relação sexual com o homem um elemento de teo ria sexual em que muitas moças imaturas acreditam h Ela vê no vinhedo uma vala profunda que sahe ter se originado de uma árvore arrancada Comenta a esse res peito que a árvore lhe falta Quer dizer com isso que no sonho não viu a árvore mas essa mesma formulação dá expressão a outro pensamento que garante completa mente a interpretação simbólica O sonho se refere a ou tra das teorias sexuais infantis à crença de que original mente as meninas possuíam o mesmo órgão genital que os meninos e de que sua configuração posterior teve ori gem por meio da castração o arrancar de uma árvore c Ela está diante da gaveta de sua escrivaninha e a co nhece tão hem que sahe de imediato se alguém mexeu ali Como toda gaveta caixote ou caixa a gaveta da escri vaninha representa a genitália feminina Ela sabe que se pode reconhecer na genitália os indícios do ato sexual ou de um simples toque como ela crê e teme há tem pos uma tal comprovação de culpa Creio que nesses três sonhos a ênfase recai sobre o saher A sonhadora se lembra de suas investigações sexuais infantis de cujos resultados tanto se orgulhava na época 5 De novo um pouco de simbolismo Desta vez no entanto é necessário que eu comece com um breve re lato prévio da situação psíquica Depois de uma noite de amor com uma mulher um senhor descreve sua parcei ra como uma daquelas naturezas maternais nas quais no trato amoroso com o homem o desejo de ter um filho se impõe de forma irresistível As circunstâncias 28 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS desse encontro porém requerem a precaução de que a ejaculação ocorra fora do ventre feminino Ao acordar na manhã seguinte a mulher relata o sonho a seguir Um oficial com um boné vermelho corre atrás dela na rua Em fuga ela sobe uma escada ele segue atrás Sem JOlego ela chega em casa e bate a porta Ele permanece do lado de fora e como ela pode ver pelo olho mágico sentase num banco e chora Nessa perseguição por parte do oficial com o boné vermelho e na resfolegante subida da escada os se nhores decerto reconhecem uma representação do ato sexual O fato de a sonhadora se fechar para o perse guidor pode lhes servir como exemplo daquelas inver sões tão empregadas no sonho pois na realidade foi o homem quem se absteve da conclusão do ato amoroso Também o pesar da mulher é deslocado para seu parcei ro que afinal é quem chora no sonho um choro que ao mesmo tempo sugere a ejaculação Os senhores alguma vez terão ouvido dizer que se gundo a psicanálise todos os sonhos têm um significado sexual Agora se veem numa posição que lhes permite formar um juízo a respeito da incorreção dessa crítica Conheceram os sonhos que expressam desejos os que tratam da satisfação das necessidades mais evidentes fome sede anseio por liberdade e conheceram tam bém os sonhos de bemestar e impaciência assim como os de pura ganância e egoísmo Mas que aqueles bastante deformados manifestam sobretudo não exclusiva mente repetimos desejos sexuais isso os senhores podem guardar como resultado da pesquisa psicanalítica 11 OS SONHOS 6 Tenho um motivo especial para coletar exem plos do emprego dos símbolos nos sonhos Em nosso primeiro encontro reclamei da dificuldade de efetuar demonstrações no ensino da psicanálise e portanto de despertar convicções e desde então os senhores certa mente concordam comigo Contudo as afirmações iso ladas da psicanálise guardam entre si relação tão íntima que a convicção pode facilmente espraiarse de um pon to específico para uma porção maior do todo Podese dizer da psicanálise que basta lhe dar a mão e ela já nos pega pelo braço Quem aceitar a explicação para os atos falhos não poderá pela via da lógica furtarse a crer em tudo o mais Um segundo ponto igualmente acessí vel da psicanálise é dado pelo simbolismo dos sonhos Vou apresentar aos senhores o sonho já publicado de uma mulher do povo cujo marido é policial e que com certeza nunca ouviu falar no simbolismo dos sonhos ou na psicanálise Julguem os senhores se a interpretação que se vale de símbolos sexuais pode ser chamada de arbitrária e forçada Então alguém invadiu a casa e com medo ela chamou por um policial Este porém em amigável companhia de dois vagabundos tinha ido a uma igre ja cuja porta de entrada tinha vários degraus Atrás da igreja erguiase um monte e lá em cima uma espessa floresta O policial exibia capacete gorjal e casaco Ti nha uma barba castanha e cerrada Os dois vagabun dos que o haviam acompanhado pacificamente leva vam aventais em forma de saco amarrados em torno do 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS quadril Diante da igreja um caminho conduria até o monte De ambos os lados ele estava tomado por gra ma e matagal cada ver mais densos os quais no topo transformavamse em verdadeira floresta Os senhores podem reconhecer sem esforço os símbolos empregados O órgão genital masculino é representado por uma tríade de pessoas o feminino pela paisagem com capela monte e floresta Outra vez os senhores en contram os degraus como símbolo do ato sexual O que no sonho é chamado de monte leva o mesmo nome em anatomia isto é mons veneris ou monte de Vênus 7 Outro sonho solucionável mediante o emprego de símbolos tanto mais notável e comprobatório pelo fato de o próprio sonhador ter traduzido todos eles embora não possuísse nenhum conhecimento teórico prévio re lativo à interpretação dos sonhos Tratase de um com portamento bastante incomum cujos determinantes não são bem conhecidos Ele vai passear com o pai em um local que com cer tera é o Prater pois vêse a rotunda e diante dela uma construção menor à qual se prende um balão que aparenta estar bastante flácido O pai lhe pergunta para que serve tudo aquilo embora admirado com a pergunta o filho lhe explica Depois chegam a um pátio em que se estende uma grande chapa de latão O pai quer arran car um bom pedaço dela mas olha em tomo para ver se O grande parque público de Viena 11 OS SONHOS ninguém vai perceber O filho lhe di1 que hasta pedir ao vigia e ele poderá então levar um pedaço sem nenhum problema Uma escadaria desce do pátio para dentro de um poço cujas paredes revestemse de um estofomento macio como uma poltrona de couro No fim do poço há uma plataforma mais comprida e em seguida começa um novo poço O próprio sonhador interpreta A rotunda é minha genitália o balão defronte meu pênis sobre cuja fla cidez tenho motivos para reclamar Isso nos permite detalhar a tradução a rotunda seria o traseiro que as crianças em geral incluem na genitália a construção menor diante dela o escroto No sonho o pai lhe per gunta o que é tudo aquilo ou seja perguntalhe sobre o propósito e o funcionamento dos órgãos genitais In verter os fatos de forma que seja o filho a perguntar é aqui um passo óbvio Como na realidade ele nunca fez tal pergunta ao pai devemos entender esse pensa mento onírico como um desejo ou tomálo como uma oração condicional Se eu tivesse pedido esclareci mentos sexuais a meu pai Logo encontraremos a complementação para esse pensamento em outro ponto do sonho O pátio no qual se estende a chapa de latão não deve ser em princípio tomado simbolicamente sua origem é o local de trabalho do pai Por uma questão de dis crição usei latão em lugar do material que o pai de fato comercializa sem com isso alterar em nada o teor restante do sonho O sonhador entrou na loja do pai 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS e ficou bastante chocado com as práticas incorretas em que se baseia boa parte de seu ganho A continuação desse pensamento onírico poderia ser Se eu tivesse perguntado ele teria me enganado assim como faz com seus clientes Para o desejo de arrancar um pe daço da chapa de latão que serve aqui de representa ção da desonestidade nos negócios o próprio sonhador nos dá pela segunda vez uma explicação ele significa a masturbação Disso sabemos há tempos e ademais a explicação combina muito bem com o fato de o segredo da masturbação vir expresso por seu contrário pode se afinal praticar o ato abertamente Vem pois ao encontro de nossas expectativas o fato de a atividade masturbatória ser atribuída ao pai assim como a formu lação da pergunta na primeira cena do sonho O poço o sonhador o interpreta de pronto como a vagina e o faz recorrendo ao macio estofamento das paredes Que o ato de descer a escada tanto quanto subir por ela pre tende descrever o coito no interior da vagina é algo que eu mesmo acrescento Para os detalhes representados pela plataforma mais comprida que se segue ao primeiro poço e mais adian te pela presença de novo poço o sonhador nos fornece explicação autobiográfica Por algum tempo teve re lações sexuais mas parou de têlas em razão de certas inibições agora espera poder retomálas com o auxílio do tratamento 8 Os dois sonhos que relato a seguir ambos de um estrangeiro com forte inclinação para a poligamia co munico aos senhores como prova de que nosso Eu está 11 OS SONHOS presente em todos os nossos sonhos mesmo naqueles em que ele se oculta ao conteúdo manifesto Nestes so nhos as malas simbolizam as mulheres a Ele parte em viagem sua bagagem é levada de car ro até a estação são muitas malas amontoadas dentre as quais duas grandes malas pretas que se parecem com mos truários Em tom de consolo diz a alguém Bom elas só vão comigo até a estação Na realidade ele costuma viajar com muita ba gagem da mesma forma como relata muitas histórias sobre mulheres durante o tratamento As duas malas pretas correspondem a duas mulheres negras que no momento desempenham papel central em sua vida Uma delas quis viajar para Viena onde ele já se encon trava a meu conselho ele enviara um telegrama a ela dissuadindoa de fazêlo b Uma cena na alfândega Um companheiro de via gem abre sua mala e indiforente fumando um cigarro diz Não tem nada aí dentro O funcionário da alfândega pa rece acreditar nele mas toma a enfiar a mão dentro dela e encontra algo proibidíssimo Resignado o viajante então d AT h fi tz L v ao a o que azer O viajante é ele próprio o funcionário da alfânde ga sou eu Em geral ele é muito honesto em suas con fissões mas decidira não me contar sobre um novo e recéminiciado relacionamento com uma dama porque podia supor e com razão que ela não me era desconhe cida Ele transfere para um estranho a situação embara çosa de ver comprovada sua culpa de maneira que ele próprio parece não figurar no sonho 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS 9 A seguir um exemplo de um símbolo que ainda não mencionei Ele encontra sua irmã em companhia de duas amigas também irmãs Estende a mão para as duas mas não para a própna irmã O sonho não se vincula a nenhum acontecimento real Na verdade os pensamentos do sonhador o levam de volta a uma época em que pensava muito em uma observação que havia feito a de que os seios das me ninas demoram muito a se desenvolver As duas irmãs são portanto os seios ele gostaria muito de apanhálos nas mãos não fosse sua própria irmã IO Aqui um exemplo da simbologia da morte no sonho Ele caminha com duas pessoas cujos noÍnes sabe mas dos quais se esqueceu ao acordar sobre uma passarela de forro íngreme e bastante alta De repente as duas pessoas desaparecem e ele Yê um homem de aspecto fontasmagóri co com um boné e temo de linho Perguntalhe se é o men sageiro que tra os telegramas Não É o carroceiro Não Então ele segue adiante sentese ainda muito angustia do no sonho e depois de acordar dá sequência a ele fantasiando que a ponte de ferro de súbito desmorona e ele próprio mergulha no abismo Pessoas que enfatizamos não conhecer ou de cujo nome nos esquecemos são em geral aquelas muito próximas de nós O sonhador tem dois irmãos tives se ele desejado a morte deles seria justo que o medo da morte agora o atormentasse Acerca do mensagei ro afirma que essas pessoas sempre trazem notícias nefastas A julgar pelo uniforme poderia tratarse ain 11 OS SONHOS da de um acendedor de lampiões responsável também por apagálos ou seja da mesma forma que o gênio da morte apaga a tocha Ao carroceiro associa o poema de Uhland sobre a viagem marítima do rei Carlos Kiinig Karls Meerfahrt e se lembra de uma viagem marítima repleta de perigos feita em companhia de dois cama radas na qual ele fez o mesmo papel do rei no poema Em relação à ponte de ferro ocorrelhe um acidente re cente e a frase tola que diz ser a vida uma ponte pênsil u Como outro exemplo de representação da morte podemos citar o seguinte sonho Um senhor desconhecido entrega a ele um cartão de visitas com bordas pretas 12 Em muitos aspectos o sonho a seguir será do in teresse dos senhores embora ele tenha como uma de suas premissas um estado neurótico Ele viaja pela estrada de forro O trem para em campo aberto Ele acredita que um desastre está para acontecer é necessário buscar refúgio e percorre todos os compartimen tos do trem matando cada um que encontra cobrador ma quinista etc Juntase a isso a lembrança de uma história conta da por um amigo Num trem que seguia pela Itália um compartimento estava sendo utilizado para transportar um louco Por descuido porém permitiram a outro viajante acomodarse ali O louco matou esse viajante Nesse poema de Johann Ludwig Uhland 17871862 o rei Car los e seus doze cavaleiros são surpreendidos por uma tempestade numa viagem à Terra Santa cada um dos cavaleiros se lamenta enquanto o rei calado guia o barco em segurança até o porto 12 ANÁLISES DE EXEMPLOS DE SONHOS O sonhador se identifica com esse louco e justifica seu ato com uma imagem obsessiva que de vez em quando o atormenta a de que precisa eliminar os que sabem Depois no entanto ele próprio encontra motivação melhor para seu sonho No dia anterior tornara a ver no teatro a moça com quem queria se casar mas da qual se afastara porque ela lhe dera motivo para ciúmes Pela intensidade que seu ciúme é capaz de atingir se ria de fato loucura de sua parte pretender casarse com ela Ou seja ele a considera tão pouco confiável que em razão de seu ciúme precisaria matar todos os que lhe cruzassem o caminho Caminhar por uma série de quartos compartimentos no presente caso é um símbolo já conhecido da condição de casado contrapo sição à monogamia Sobre a parada do trem num campo aberto e o medo de um acidente ele conta que certa vez quando ocorreu de um trem se deter assim subitamente na via férrea e fora da estação uma jovem mulher que também viaja va nele explicou que talvez um choque fosse iminente para o que a medida mais apropriada a tomar seria pôr as pernas para cima Pôr as pernas para cima era uma atitude que também havia desempenhado um papel nos muitos passeios e excursões pela natureza que nos pri meiros e felizes tempos de seu relacionamento amoroso ele havia feito com aquela moça Um novo argumento para pensar que ele tinha de ser louco para se casar com ela agora Mas que ele mantinha o desejo de cometer tal loucura disso eu podia estar certo em razão de meu conhecimento da situação 11 OS SONHOS 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS Senhoras e senhores Retornemos mais urna vez nossa conclusão de que o trabalho do sonho sob a influência da censura transpõe os pensamentos oníricos latentes para outro modo de expressão Os pensamentos latentes não são mais do que aqueles conhecidos e conscientes que ternos acordados o novo modo de expressão nos é em múltiplos aspectos incompreensível Dissemos que ele recorre a estados de nosso desenvolvimento intelec tual que já superamos há muito tempo corno a lingua gem irnagética o recurso aos símbolos e talvez a rela ções anteriores ao desenvolvimento de nossa linguagem discursiva Por isso chamamos o modo de expressão do trabalho do sonho de arcaico ou regressivo Os senhores podem tirar daí a conclusão de que do estudo mais aprofundado do trabalho do sonho haveria de ser possível extrair valiosos esclarecimentos acerca dos primeiros passos não tão bem conhecidos de nos so desenvolvimento intelectual Espero que assim seja mas até o momento esse trabalho ainda não teve iní cio Essa préhistória à qual o trabalho do sonho nos reconduz é dupla por um lado a préhistória individual de nossa infância por outro na medida em que cada in divíduo de algum modo repete abreviadarnente na in fância todo o desenvolvimento da espécie humana ela é também a préhistória filogenética Se somos capazes de determinar que porção dos processos psíquicos latentes advérn da préhistória individual e que porção da pré 268 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS história filogenética isso é algo que não considero impossível Assim pareceme a referência simbólica não aprendida pelo indivíduo tem o direito de ser con siderada herança filogenética Contudo essa não é a única característica arcaica do sonho Por experiência própria os senhores decerto co nhecem a curiosa amnésia que recobre nossa infância Refirome ao fato de que nossos primeiros anos de vida até cinco seis ou oito anos de idade não deixam na memória os mesmos rastros que nossas vivências posteriores Por certo encontramos uma ou outra pes soa que pode se gabar de possuir uma lembrança contí nua desde a mais tenra infância até os dias atuais mas a situação contrária aquela das lacunas na memória é incomparavelmente mais comum Esse é um fato creio que nunca despertou o devido assombro Aos dois anos uma criança já fala bem logo se mostra capaz de lidar com situações psíquicas complicadas e diz coisas que muitos anos mais tarde outras pessoas lhe relatarão mas das quais ela própria se esqueceu Nos primeiros anos de vida no entanto a memória apresenta desem penho melhor porque está menos sobrecarregada que em anos posteriores Além disso não há motivo para considerar a função da memória tarefa psíquica parti cularmente elevada ou difícil Pelo contrário mesmo entre pessoas de capacidade intelectual bastante baixa encontramos indivíduos possuidores de boa memória Como uma segunda peculiaridade sobreposta a essa primeira devo porém mencionar que desse vazio da memória que abarca os primeiros anos da infância 11 OS SONHOS sobressaem algumas lembranças bem preservadas em geral percebidas plasticamente as quais não possuem justificativa para sua preservação Com o material for necido pelas impressões que chegam até nós em nossa vida posterior a memória procede de forma a efetuar uma seleção Ela conserva o que é importante e descar ta o irrelevante Algo diferente ocorre com as memórias preservadas da infância Elas não correspondem neces sariamente a experiências importantes daqueles anos nem mesmo àquelas que do ponto de vista da criança haveriam de parecer importantes Muitas vezes são tão banais e insignificantes que admirados nos pergunta mos por que justamente detalhes como esses escaparam do esquecimento Com o auxílio da análise já procurei em outro momento abordar o mistério da amnésia in fantil e dos resquícios de memória que a interrompem tendo chegado à conclusão de que na verdade também na criança apenas o que é importante permanece na me mória O que ocorre é que mediante os processos da condensação e muito particularmente do deslocamento já conhecidos dos senhores esse conteúdo importante se faz representar na memória por coisas aparentemente irrelevantes Por essa razão denominei essas memórias infantis lembranças encobridoras mediante análise minu ciosa podese obter delas tudo que foi esquecido No tratamento psicanalítico é comum depararmos com a tarefa de preencher as lacunas dessas memórias infantis sempre que em alguma medida o tratamento é bemsucedido ou seja com bastante frequência conseguimos trazer de volta à luz o conteúdo dessas 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS lembranças da infância encobertas pelo esquecimento São impressões que jamais foram esquecidas de fato mas apenas tornaramse inacessíveis latentes abriga das no domínio do inconsciente Pode ocorrer todavia de elas emergirem dali de forma espontânea o que de fato acontece no contexto dos sonhos O que se verifica é que a vida onírica conhece o caminho que dá acesso a essas experiências infantis latentes Belos exemplos dis so encontramse registrados na literatura especializa da e eu próprio logrei contribuir com um deles Certa feita em determinado contexto sonhei com uma pes soa que provavelmente me prestara um serviço e que eu podia ver com clareza diante de mim Era um homem zarolho de pouca estatura gordo a cabeça afundada nos ombros Depreendi do contexto que se tratava de um médico Por sorte pude perguntar a minha mãe ainda viva à época que aparência tinha o médico de minha cidade natal que deixei aos três anos de idade descobri assim que ele era zarolho baixinho gordo e tinha a cabeça enfiada nos ombros fiquei sabendo também por ocasião de que acidente já esquecido ele me prestara auxílio O fato de dispor desse material es quecido dos primeiros anos da infância é pois outro traço arcaico do sonho Pois bem Essa informação se vincula a outro dos enigmas com que deparamos até agora Os senhores se lembram com que espanto descobrimos que os instiga dores dos sonhos seriam desejos sexuais decididamente maus e dissolutos os quais tornaram necessárias a cen sura e a deformação do sonho Quando interpretamos 271 11 OS SONHOS um tal sonho para o sonhador e ele próprio como ocor re na melhor das hipóteses não ataca nossa interpreta ção é comum que nos pergunte de onde provém seme lhante desejo uma vez que ele o percebe como estranho e conscientemente pensa o contrário Não precisamos hesitar em demonstrar essa origem Tais desejos maus vêm do passado em geral de um passado não muito dis tante É possível mostrar que embora não o sejam mais eles já foram conhecidos e conscientes A mulher cujo sonho significa que ela queria ver morta a filha única de dezessete anos descobre sob nossa orientação que de fato alimentou no passado esse desejo de morte A filha é fruto de um casamento infeliz e logo desfeito Quando ainda a carregava no ventre a mãe certa vez teve um acesso de raiva motivado por uma cena áspera com o marido e pôsse a esmurrar com violência a própria bar riga a fim de matar a criança lá dentro Quantas mães que hoje amam seus filhos com ternura talvez até com ternura demasiada não os conceberam a contragosto e já não desejaram que a vida que carregavam dentro de si não se desenvolvesse E quantas não transformaram esse desejo em diferentes ações felizmente inofensivas O desejo de morte contra a pessoa amada posterior mente tão enigmático tem sua origem portanto no iní cio do relacionamento com ela Também ao pai cujo sonho autoriza a interpretação de que ele desejava a morte de seu primogênito querido é preciso lembrar que no passado esse desejo não lhe era estranho Quando a criança ainda era um bebê o homem insatisfeito com sua escolha matrimonial pen 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS sava com frequência que caso aquele pequeno ser que nada significava para ele viesse a falecer ele teria de volta sua liberdade e faria melhor uso dela A mesma origem se deixa comprovar para grande número de se melhantes sentimentos de ódio são lembranças de algo que pertence ao passado que já foi consciente e teve seu papel na vida psíquica Os senhores se inclinarão a tirar daí a conclusão de que não havendo mudanças simila res na relação com uma pessoa mantendose idêntico o significado dessa relação desde o princípio não pode haver desejos nem sonhos como os expostos acima Es tou disposto a concordar com esse raciocínio mas que ro lembrar que não é o conteúdo literal do sonho e sim seu significado após a interpretação que os senhores têm de levar em conta Pode acontecer de o sonho ma nifesto sobre a morte de uma pessoa amada ter apenas vestido uma máscara assustadora significando porém algo bem diverso ou pode ocorrer de a pessoa amada ser apenas um sucedâneo enganoso de outra Essa mesma questão no entanto despertará nos se nhores uma outra pergunta muito mais séria Os se nhores dirão Se esse desejo de morte um dia esteve presente e é confirmado pela memória isso não constitui explicação nenhuma como o desejo foi superado há muito tempo ele só pode estar presente hoje no incons ciente como lembrança desprovida de todo e qualquer afeto e não como estímulo poderoso Nada aponta nesta última direção Por que então ele é lembrado em so nho Na realidade essa pergunta se justifica mas a tentativa de esclarecêla nos levaria demasiado longe e 273 11 OS SONHOS nos obrigaria a tomar partido em relação a um dos pon tos mais importantes da doutrina dos sonhos Eu po rém me vejo obrigado a permanecer nos limites de nos sa discussão e a exercer certa contenção Preparemse os senhores para essa restrição temporária Contentemo nos com a prova efetiva de que esse desejo superado é comprovadamente o causador do sonho e prossigamos com nossa investigação sobre se outros desejos maus também admitem a mesma derivação do passado Permaneçamos nos desejos de eliminação que em boa parte dos casos podemos fazer remontar ao egoís mo irrestrito do sonhador Com frequência é possível demonstrar o papel de tal desejo na formação do sonho Sempre que na vida alguém se interpõe em nosso ca minho e isso frequentemente há de acontecer dada a complexidade das relações hoje em dia o sonho logo se revela disposto a matálo tratese de pai mãe irmãos cônjuge ou algo semelhante Espantados com essa perversidade da natureza humana por certo nos sa tendência inicial não foi a de aceitar sem relutância esse resultado da interpretação dos sonhos Uma vez porém apontado o passado como local onde buscar a origem desses desejos não tardamos em descobrir o pe ríodo do passado individual em que tal egoísmo e tais desejos nada mais têm de estranho mesmo quando vol tados contra aqueles mais próximos de nós É precisa mente a criança e sobretudo naqueles primeiros anos de vida mais tarde encobertos pela amnésia que com frequência exibe esse egoísmo em sua forma mais extre ma exibindo também claros sinais dele ou melhor di 274 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS zendo resquícios de um tal egoísmo A criança aprende em primeiro lugar a amar a si mesma apenas mais tar de aprende também a amar os outros e a sacrificar algo de seu Eu em favor deles Mesmo aquelas pessoas que ela parece amar desde o princípio ela as ama somente porque precisa delas porque delas não pode prescindir ou seja por motivos ditados pelo egoísmo Mais tarde então o impulso amoroso apartase do egoísmo Foi de fato com o egoísmo que ela aprendeu a amar Nesse sentido será instrutivo comparar sua postu ra ante os irmãos com aquela em relação aos pais A criança pequena não ama necessariamente seus irmãos com frequência é evidente que não os ama Não resta dúvida de que os odeia como concorrentes e é sabido como essa postura em geral continua sem interrupção por longos anos até o amadurecimento e mesmo além É comum que ela seja substituída por uma postura mais terna ou melhor dizendo que esta última venha se sobrepor à primeira de todo modo a hostilidade parece ser em geral a postura mais antiga Podese facilmen te observála em crianças de dois anos e meio a quatro ou cinco anos quando estas ganham a companhia de um irmãozinho Na maioria das vezes o irmão é rece bido de forma bastante inamistosa São bem comuns manifestações como Não gosto dele que a cegonha o leve de volta Em seguida a mais velha se vale de toda e qualquer oportunidade para rebaixar o recém chegado e mesmo tentativas de machucálo atentados diretos não constituem nada de inaudito Se a diferen ça de idade é pequena quando do despertar de ativi 275 11 OS SONHOS dades psíquicas mais intensas a criança mais velha já se verá diante do concorrente e se arranjará com ele Se essa diferença é maior é possível que o novo irmão desperte alguma simpatia por ser considerado desde o princípio um objeto interessante uma espécie de bo neco com vida e sobretudo nas meninas a partir de uma diferença de oito anos ou mais podem entrar em cena sentimentos protetores e maternais Dizendoo todavia com sinceridade quando por trás de um sonho descobrimos o desejo da morte dos irmãos raras vezes precisamos considerálo enigmático sem esforço seu modelo poderá ser encontrado na primeira infância ou também com razoável frequência nos anos posteriores de convivência É provável que inexista um quarto dividido por duas ou mais crianças que esteja livre de intensos conflitos entre seus ocupantes Os motivos são a concorrência pelo amor dos pais pela propriedade comum pelo es paço físico disponível Os sentimentos hostis voltam se tanto contra os irmãos mais velhos como contra os mais novos Creio ter sido Bernard Shaw quem disse Se há alguém que uma jovem dama inglesa odeia mais que sua mãe é sua irmã mais velha Nessa manifesta ção porém há algo que julgamos estranho O ódio e a concorrência entre irmãos é coisa que se necessário poderíamos julgar compreensível mas como podem sentimentos de ódio invadir a relação entre filha e mãe entre genitores e filhos Também do ponto de vista dos filhos essa última é certamente mais favorável É o que demanda nos 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS sa expectativa julgamos bem mais repulsiva a falta de amor entre pais e filhos que entre irmãos É como se no primeiro caso sacralizássemos uma coisa que no segundo deixamos que seja profana Contudo a obser vação cotidiana pode nos mostrar com que frequência as relações sentimentais entre pais e filhos adultos ficam distantes do ideal proposto pela sociedade quanta hos tilidade elas abrigam e poderiam expressar não fosse pela contenção exercida pelos impulsos de respeito e ternura Os motivos para tanto são conhecidos de todos e sua tendência é separar aqueles do mesmo sexo a filha de sua mãe e o filho do pai A filha encontra na mãe a autoridade que lhe restringe a vontade e se encarrega da tarefa de imporlhe a renúncia à liberdade sexual exigi da pela sociedade em casos particulares encontra tam bém a concorrente que se opõe a ser desalojada O mes mo se repete de modo ainda mais gritante entre filho e pai Para o filho o pai incorpora toda a pressão social suportada a contragosto o pai impedelhe o acesso ao exercício da própria vontade ao prazer sexual precoce e no caso de bens familiares comuns ao gozo desses bens Tratandose do herdeiro de um trono a espera pela morte do pai ganha dimensões que chegam às raias do trágico Menos ameaçado parece o relacionamento de pai e filha e de mãe e filho Este último fornece os mais puros exemplos de inalterável ternura não pertur bada por nenhum tipo de consideração egoísta Por que falo dessas coisas que afinal parecem ba nais e conhecidas de todos Porque é inequívoca a ten dência a negar sua importância em nossa vida e a com 11 OS SONHOS muito mais frequência do que isto efetivamente aconte ce dar por realizado o ideal exigido pela sociedade Mas é melhor o psicólogo dizer a verdade do que deixar essa tarefa a cargo dos cínicos Seja como for essa negação aplicase apenas à vida real As obras literárias e teatrais têm liberdade para utilizar os temas que decorrem da perturbação desse ideal No caso de um grande número de seres humanos portanto não temos por que nos admirar quando um sonho revela o desejo de eliminar os pais em especial aquele do mesmo sexo É lícito supormos que esse de sejo também existe no estado de vigília e por vezes até sob forma consciente quando lhe é dado mascararse de outra motivação como no caso do sonhador de nosso exemplo 3 e de sua compaixão com o sofrimento desne cessário do pai Raras vezes a hostilidade sozinha domi na essa relação bem mais comum é que ela se oculte por trás dos sentimentos de ternura que a reprimem e que aguarde até que um sonho venha por assim dizer isolá la Aquilo que o sonho magnífica por exibilo de forma isolada torna a encolherse depois quando seguindo se à interpretação nós o inserimos no contexto da vida H Sachs Mas encontramos esse desejo onírico tam bém em contextos em que ele não se justifica e nos quais o adulto em estado de vigília jamais o reconheceria A razão para isso é que o motivo mais profundo e frequen te para o afastamento sobretudo entre pessoas do mes mo sexo fazse valer já desde a primeira infância Refirome à concorrência amorosa com clara ênfase no caráter sexual O filho começa ainda pequeno a de 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS senvolver particular ternura pela mãe a qual considera sua e a sentir o pai como o concorrente que contesta essa sua única propriedade da mesma forma a filha pe quena vê a mãe como uma pessoa que perturba sua rela ção de ternura com o pai e ocupa um posto que ela pró pria poderia muito bem ocupar De nossas observações só podemos depreender como remontam aos primeirís simos anos essas posturas a que denominamos complexo de Édipo porque o mito de Édipo realiza atenuandoos em medida insignificante os dois desejos extremos que resultam da situação do filho o de matar o pai e o de ter a mãe como esposa Não pretendo afirmar que o com plexo de Édipo esgote a relação dos filhos com os pais que pode facilmente ser muito mais complicada Ade mais esse complexo pode revelar maior ou menor força em seu desenvolvimento e pode também experimentar uma reversão Ele é no entanto um fator constante e muito importante da vida psíquica infantil correse antes o risco de subestimar que o de superestimar sua influência e os desenvolvimentos dele decorrentes De resto as crianças que apresentam essa postura edipiana reagem com frequência a um estímulo proveniente dos pais que em sua escolha amorosa muitas vezes se dei xam levar pela diferença entre os sexos de modo que o pai dá preferência à filha ao passo que a mãe prefere o filho ou verificandose um esfriamento da relação ma trimonial faz dele o substituto para o objeto desvalori zado de seu amor Não se pode afirmar que o mundo tenha sido muito grato à pesquisa psicanalítica pela descoberta do com 11 OS SONHOS plexo de Édipo Pelo contrário essa revelação desper tou nos adultos a mais veemente resistência e aqueles que perderam a oportunidade de repudiar essa relação sentimental malvista ou estigmatizada posteriormente repararam essa dívida com reinterpretações que priva ram o complexo de seu valor Tenho a imutável convic ção de que nisso não há o que repudiar ou embelezar Precisamos habituarnos ao fato que o próprio mito grego reconhece como um destino inelutável É in teressante notar por outro lado que banido da vida o complexo de Édipo foi entregue à literatura posto à sua livre disposição por assim dizer Em um cuida doso estudo Otto Rank mostrou como justamente o complexo de Édipo forneceu à poesia dramática nu merosos temas elaborados mediante infindáveis mo dificações atenuações e dissimulações isto é por meio de deformações como aquelas com as quais travamos conhecimento como obras da censura Estamos pois autorizados a atribuir esse complexo de Édipo também àqueles sonhadores que tiveram a sorte de em sua vida posterior escapar aos conflitos com os genitores e em íntima conexão com ele encontramos o que chamamos de complexo da castração a reação à intimidação ou à contenção atribuída ao pai da atividade sexual precoce da primeira infância Tendo centrado nossas investigações até o momento no estudo da vida psíquica infantil podemos nutrir a esperança de que também a origem da outra porção dos desejos oníricos proibidos os impulsos sexuais ex cessivos encontre explicação pela mesma via Então 280 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS nos sentimos estimulados a estudar também o desenvol vimento da vida sexual infantil e ao fazêlo descobri mos a partir de fontes diversas o seguinte acima de tudo constitui um equívoco insustentável negar que as crianças possuam vida sexual e supor que a sexualida de tenha seu início apenas na época da puberdade com o amadurecimento dos órgãos genitais Pelo contrário a criança tem desde o princípio uma rica vida sexual que se distingue em vários aspectos da vida sexual posterior tida como normal Aquilo que na vida dos adultos caracterizamos como perverso desviase do normal nos seguintes pontos em primeiro lugar pela desconsideração da barreira entre espécies o abismo entre seres humanos e animais em segundo pela ul trapassagem da barreira do nojo e em terceiro da bar reira do incesto a proibição de buscar satisfação sexual com parentes próximos em quarto por avançar sobre a barreira que separa membros de um mesmo sexo e em quinto pela transferência do papel genital para outros órgãos e partes do corpo Essas barreiras não se acham todas presentes desde o início mas vão se erguendo pouco a pouco ao longo do desenvolvimento e da edu cação A criança pequena está livre delas Ela ainda não conhece nenhum grave abismo entre seres humanos e animais a altivez com que o homem se aparta do ani mal é algo que ela só adquire mais tarde De início ela tampouco revela possuir nojo dos excrementos o que só lentamente e sob o peso da educação aprende a sentir Além disso não atribui grande importância à diferença entre os sexos supõe isto sim que ambos têm a mesma 11 OS SONHOS conformação genital Seus primeiros desejos sexuais e sua curiosidade ela os dirige às pessoas mais próximas que por outros motivos são também as que mais ama ou seja pais irmãos e aqueles que cuidam dela Por fim verificase na criança pequena algo que mais tarde no auge de um relacionamento amoroso torna a irrom per o prazer ela não espera obtêlo apenas dos órgãos sexuais espera sim que muitas outras partes do cor po se revistam da mesma sensibilidade e transmitam sensações análogas de prazer desempenhando assim o papel dos órgãos genitais Podese portanto atribuir à criança uma perversão polimorfa se todos esses im pulsos exibem apenas traços de atividade isso se deve em parte à baixa intensidade deles se comparada àque la que atingem na vida adulta e em parte ao fato de a educação reprimir de pronto e de forma enérgica todas as manifestações sexuais infantis Essa repressão tem prosseguimento por assim dizer na teoria na medida em que os adultos se empenham em ignorar uma parte das manifestações sexuais infantis e por meio da rein terpretação despir outra parte de sua natureza sexual até poderem negar o todo Com frequência as mesmas pessoas que no quarto esbravejam com rigor contra as travessuras sexuais das crianças defendem depois à es crivaninha a pureza sexual delas Onde quer que crian ças sejam deixadas à própria sorte ou se vejam sujeitas à influência da sedução elas em geral produzem exem plos consideráveis de atividade sexual perversa Natu ralmente os adultos têm razão em não tratar com rigor aquilo que entendem como criancice ou brincadei 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS ra a criança afinal não pode ser julgada nem por um tribunal dos costumes nem pela lei como pessoa plena e responsável Não obstante essas coisas existem e têm seu significado tanto como indícios de uma constitui ção congênita quanto como causa e fomento de desen volvimentos posteriores Elas nos dão informações im portantes sobre a vida sexual infantil e assim sendo sobre a vida sexual dos seres humanos como um todo Quando portanto por trás de nossos sonhos deforma dos deparamos com todos esses desejos perversos isso significa apenas que também nesse âmbito o sonho lo grou regressar ao estado da infância Ênfase particular entre esses desejos proibidos me recem aqueles de natureza incestuosa isto é os que têm por alvo a relação sexual com pais e irmãos Sabem hem os senhores a repugnância que a sociedade humana sen te ou pelo menos alega sentir por uma tal relação e o peso que possuem as proibições a vetar essa prática Esforços gigantescos já foram feitos para explicar esse horror ao incesto Alguns supõem serem preocupações de ordem reprodutiva por parte da natureza que ganham representação psíquica nessa proibição uma vez que o cruzamento consanguíneo resultaria numa piora das características raciais outros afirmam que a convivên cia desde a primeira infância afastaria o desejo sexual Nos dois casos no entanto a evitação do incesto estaria assegurada o que torna incompreensível a necessidade da proibição rigorosa a qual apontaria antes para a presença de um forte desejo As investigações psicana líticas concluíram sem sombra de dúvida que a escolha 11 OS SONHOS amorosa incestuosa é na verdade a primeira a escolha regular e que apenas mais tarde instalase a resistência a ela cuja origem não deve estar na psicologia individual Reunamos agora todo o auxílio que nosso exame aprofundado da psicologia infantil nos trouxe para a compreensão do sonho Descobrimos não apenas que o sonho tem acesso ao material esquecido das experiên cias vividas na infância mas vimos também que a vida psíquica das crianças com todas as suas peculiarida des seu egoísmo sua escolha amorosa incestuosa etc segue existindo no sonho ou seja no inconsciente e que o sonho nos reconduz toda noite a esse estágio infantil Isso vem reforçar para nós que o inconsciente da vida psíquica é o infontil Começa a diminuir portanto aquela estranha impressão de que o ser humano encer ra muita coisa de ruim Essa terrível maldade é sim plesmente o estágio inicial primitivo infantil da vida psíquica o qual podemos ver em ação na criança mas que nela ignoramos em parte devido a sua pequena dimensão e em parte não tratamos com rigor porque não exigimos das crianças padrões éticos elevados Na medida em que o sonho regride a esse estágio ele nos dá a impressão de ter trazido à luz o que há de mau em nós Mas é apenas uma impressão enganosa pela qual nos deixamos assustar Não somos tão maus quanto nos inclinávamos a supor após interpretar os sonhos Se os impulsos maus dos sonhos são apenas infan tilismo um retorno aos momentos iniciais de nosso desenvolvimento ético na medida em que o sonho no tocante a nossos pensamentos e sentimentos sim 13 TRAÇOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS plesmente nos torna outra vez crianças então não precisamos nos envergonhar racionalmente desses so nhos maus Sucede que o racional é somente parte da vida psíquica muito mais se passa na psique que não é racional e assim é que irracionalmente nos enver gonhamos de tais sonhos Nós os submetemos à cen sura onírica sentimos vergonha e irritação quando excepcionalmente um desses desejos logra ainda que deformado penetrar em nossa consciência e nos obri ga a reconhecêlo envergonhamonos por vezes dos sonhos deformados como se pudéssemos compreendê los Lembremse os senhores do veredicto indignado daquela distinta senhora sobre seu sonho não interpre tado acerca dos serviços amorosos O problema por tanto ainda não está resolvido e é possível que prosse guindo com o exame da maldade no sonho cheguemos a outro juízo e a outra avaliação da natureza humana Como resultado de toda essa investigação fizemos duas descobertas que todavia configuram apenas o iní cio de novos enigmas propõem novas dúvidas A pri meira é que a regressão do trabalho do sonho não é uma regressão apenas formal é também do material Ela não só traduz nossos pensamentos numa forma de expres são primitiva como também reaviva as peculiaridades de nossa psique primitiva a velha supremacia do Eu os impulsos iniciais de nossa vida sexual e mesmo nosso velho patrimônio intelectual se puder ser vista como tal a referência simbólica A segunda descoberta é que todo esse elemento infantil que um dia predominou e reinou absoluto temos hoje de situar no inconsciente e nossas 11 OS SONHOS concepções deste se modificam e se ampliam O incons ciente deixa de ser uma designação para aquilo que no momento se encontra latente ele passa a ser um reino psíquico particular com desejos próprios forma de expressão própria e mecanismos psíquicos que lhe são peculiares e que não vigoram em nenhuma outra parte Contudo os pensamentos oníricos latentes os quais de preendemos da interpretação dos sonhos não pertencem a esse reino eles são antes de um tipo que poderíamos ter também em estado de vigília E no entanto são in conscientes Como se resolve pois essa contradição Começamos a suspeitar que nisso deve se fazer uma separação Na formação do sonho algo que provém de nossa vida consciente e que compartilha as característi cas desta resíduos ou vestígios diurnos é o nome que damos a esse algo juntase a outra coisa provenien te daquele reino do inconsciente O trabalho do sonho se realiza entre essas duas partes A influência exercida sobre os resíduos diurnos pelo inconsciente que a eles se junta encerra sem dúvida a condição para a regres são Essa é a descoberta mais profunda sobre a essência do sonho a que podemos chegar aqui antes de explo rar outros domínios psíquicos Contudo logo chegará a hora de darmos ao caráter inconsciente dos pensamentos oníricos latentes um outro nome a fim de diferenciálo daquele inconsciente que pertence ao reino do infantil Podemos é claro lançar também a seguinte per gunta o que obriga a atividade psíquica durante o sono a uma tal regressão Por que sem essa regressão ela não dá conta dos estímulos psíquicos que perturbam o 286 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS sono E se em razão da censura do sonho ela precisa se servir do disfarce que lhe propicia a velha e agora incompreensível forma de expressão que proveito lhe traz reanimar antigos e já superados impulsos psíqui cos desejos e traços de caráter ou seja a regressão material que vem se juntar à formal A única resposta satisfatória seria dizer que apenas dessa maneira pode um sonho se formar que do ponto de vista dinâmico a anulação do estímulo onírico não é possível de outra maneira No momento porém não temos o direito de dar semelhante resposta 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS Senhoras e senhores Devo lembrarlhes mais uma vez o caminho percorrido até agora De que maneira apli cando nossa técnica deparamos com a deformação do sonho e pensamos primeiramente em contornála e ir buscar as informações decisivas sobre a natureza do sonho nos sonhos infantis Como a seguir munidos dos resultados dessa investigação atacamos diretamen te a deformação do sonho e assim espero a superamos pouco a pouco Agora porém precisamos admitir que o que encontramos em um e outro desses caminhos não coincide inteiramente Nossa tarefa passa a ser juntar e conciliar esses dois resultados De um e de outro lado veionos a constatação de que em essência o trabalho do sonho consiste na con 11 OS SONHOS versão de pensamentos numa experiência alucinatória vivida Como isso é possível já constitui um belo enig ma que no entanto é um problema da psicologia geral motivo pelo qual não deve ocuparnos aqui A partir dos sonhos infantis ficamos sabendo que o trabalho do sonho pretende mediante a realização de um dese jo eliminar um estímulo psíquico perturbador do sono Em relação aos sonhos deformados não pudemos fazer nenhuma afirmação semelhante não antes de apren der a interpretálos Desde o início porém nossa ex pectativa era a de poder reunir os sonhos deformados e os infantis sob um mesmo enfoque Essa expectativa se cumpriu pela primeira vez a partir da percepção de que na verdade todos os sonhos são sonhos infantis todos eles trabalham com o material infantil com os impulsos psíquicos e os mecanismos infantis Uma vez que con sideramos resolvida a questão da deformação do sonho precisamos agora investigar se a concepção de realiza ção de desejos vale também para os sonhos deformados Há pouco submetemos uma série de sonhos a análi se sem no entanto levar em consideração a realização de desejos Estou convencido de que ao longo dessa análise uma pergunta há de se ter imposto aos senho res onde está a realização de desejos que se supõe ser o objetivo do trabalho do sonho Essa pergunta é im portante de fato é a pergunta que nos fazem nossos críticos leigos Como os senhores sabem a humanidade possui uma resistência intuitiva a novidades intelectuais Entre as manifestações dessa resistência encontrase a imediata redução da novidade a um alcance mínimo 288 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS sua compressão de preferência em uma palavrachave Para a nova doutrina do sonho a expressão realização de desejos tornouse essa palavrachave O leigo per gunta onde está a realização do desejo Imediatamente após ter ouvido que o sonho é uma tal realização de de sejo e já ao fazer a pergunta ele a rejeita Ocorrelhe de pronto um semnúmero de experiências oníricas pró prias nas quais o sonhar se vincula a um desprazer e até mesmo uma grave angústia razão pela qual a afirmação da doutrina psicanalítica dos sonhos lhe soa bastante improvável É fácil para nós responderlhe que nos so nhos deformados a realização do desejo não tem como ser evidente que é necessário antes procurála não há como apontála antes da interpretação do sonho Sabe mos também que nesses sonhos deformados lidamos com desejos proibidos repudiados pela censura desejos cuja existência é a própria causa da deformação o mo tivo da intervenção por parte da censura do sonho Mas é difícil explicar ao crítico leigo que não se perguntar pela realização do desejo antes de haver interpretado o sonho Ele sempre se esquecerá disso Na verdade sua rejeição à teoria da realização dos desejos nada mais é do que consequência da censura do sonho um sucedâ neo da rejeição dos desejos oníricos censurados e um produto dela É natural que também nós sintamos necessidade de explicar a nós mesmos a existência de tantos sonhos de conteúdo embaraçoso e em particular de sonhos de angústia Ao fazêlo deparamos pela primeira vez com o problema dos afetos no sonho o qual mereceria um 11 OS SONHOS estudo à parte estudo este do qual infelizmente não po demos nos ocupar aqui Se o sonho é a realização de um desejo então sensações incômodas haveriam de ser impossíveis nele Nisso os críticos leigos parecem ter razão Mas é preciso levar em conta três tipos de com plicação em que os leigos não pensaram Em primeiro lugar é possível que o trabalho do so nho não tenha conseguido produzir a realização plena de um desejo de tal modo que reste ainda no sonho manifesto uma porção do afeto incômodo presente nos pensamentos oníricos A análise precisaria mostrar en tão que esses pensamentos oníricos eram ainda muito mais incômodos que o sonho configurado a partir deles Isso sempre conseguimos demonstrar Admitimos en tão que o trabalho do sonho não alcançou seu objetivo da mesma forma como sonhar que estamos bebendo não atinge o propósito de saciar a sede Permanecemos com sede e precisamos acordar para beber água Mas foi um sonho genuíno não abriu mão de nada de sua essência Cabe dizer ut desint vires tamen est laudanda voluntas Ao menos a intenção claramente reconhecível perma nece louvável Insucessos como esse não são aconte cimento raro Contribui para isso o fato de ser muito mais difícil para o trabalho do sonho alterar o sentido dos afetos que o dos conteúdos às vezes os afetos são muito resistentes Ocorre pois de o trabalho do sonho transformar o conteúdo incômodo dos pensamentos Embora faltem as forças a vontade deve ser louvada Ovídio Epístolas do Ponto livro m 4 79 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS oníricos em realização de desejo mas de não obstante o afeto incômodo se impor sem ter sofrido alteração ne nhuma Nesses sonhos o afeto não corresponde absolu tamente ao conteúdo e nossos críticos podem dizer que o sonho tanto não é realização de desejo que mesmo um conteúdo inofensivo pode nele ser sentido de forma in cômoda A essa observação irrefletida replicaremos que é justamente nesses sonhos que a tendência à realização do desejo se revela mais nítida porque isolada O erro decorre do fato de o desconhecimento das neuroses le var à crença de que conteúdo e afeto guardam relação bastante íntima o que impede a compreensão de que um conteúdo pode ser alterado sem que se altere a cor respondente manifestação do afeto A seguir um segundo fator negligenciado pelo lei go bem mais importante e de alcance mais profundo A realização de um desejo deveria certamente resultar em prazer mas cabe a pergunta para quem Natural mente para quem tem o desejo É sabido no entanto que o sonhador possui uma relação muito especial com seus desejos ele os reprova censura em suma não gosta deles Assim sendo sua realização não pode lhe proporcionar prazer mas apenas o contrário disso A experiência mostra então que esse contrário aparece sob a forma da angústia o que ainda é preciso esclare cer Em sua relação com os desejos oníricos portanto o sonhador só pode ser equiparado a um somatório de duas pessoas ligadas por uma forte comunhão Em vez de proceder a uma explicação recorro a um conhecido conto de fada no qual os senhores encontrarão a mes 11 OS SONHOS ma situação Uma boa fada promete realizar três desejos de um pobre casal marido e mulher O casal fica ra diante e se propõe escolher com cautela esses três dese jos Mas levada pelo aroma de salsichas fritas que exala da cabana ao lado a mulher deseja algumas daquelas mesmas salsichas que de pronto surgem à sua frente O primeiro desejo foi realizado O marido por sua vez fica bravo e nesse seu rancor deseja ver as salsichas penduradas no nariz da esposa o que também aconte ce não há agora quem seja capaz de remover dali as sal sichas Realizouse o segundo desejo que no entanto é o desejo do homem à mulher a realização desse desejo é bastante desagradável Os senhores sabem como ter mina o conto Como os dois são no fundo uma coisa só marido e mulher o terceiro desejo só pode ser o de que as salsichas desapareçam do nariz da esposa Nós poderíamos nos valer desse mesmo conto de fada em vários outros contextos no presente caso ele serve para ilustrar a possibilidade de que a realização do desejo de um possa conduzir ao desprazer de outro caso os dois estejam em desacordo Não será difícil agora obtermos uma melhor com preensão dos sonhos de angústia Faremos uso apenas de mais uma observação para a seguir nos decidir por uma hipótese para a qual apontam vários indícios A observação é a de que os sonhos de angústia exibem muitas vezes um conteúdo que prescinde inteiramente da deformação e por assim dizer escapa à censura O sonho de angústia é muitas vezes a realização desvela da de um desejo por certo não de um desejo aceitável 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS e sim de um desejo condenável Em lugar da censura surge o desenvolvimento da angústia Se de um sonho infantil se pode dizer que ele é a realização às claras de um desejo admissível e do sonho deformado comum que corresponde à realização dissimulada de um dese jo reprimido para o sonho de angústia vale apenas a fórmula que o declara realização às claras de um desejo reprimido A angústia é o sinal de que o desejo reprimi do se mostrou mais forte que a censura de que ele im pôs a ela ou estava prestes a fazêlo a realização desse desejo Nós compreendemos que o que para ele é realização de desejo para nós que estamos do lado da censura do sonho só pode ser motivo para sensações incômodas e para a defesa A angústia que aparece no sonho é se quiserem os senhores angústia ante a força desses desejos normalmente subjugados Por que essa defesa surge sob a forma de angústia isso não se pode depreender apenas do estudo dos sonhos claramente a angústia precisa ser estudada de outros pontos de vista É lícito supor que o que afirmamos acerca dos so nhos não deformados de angústia valha também para aqueles sonhos que sofreram deformação parcial assim como para todos os sonhos que nos causam desprazer e cujas sensações incômodas provavelmente correspon dem a aproximações à angústia O sonho de angústia é costumeiramente também um sonho que nos desperta é comum interrompermos o sono antes que o desejo reprimido tenha imposto sua plena realização apesar da censura Nesse caso o serviço prestado pelo sonho fracassou mas nem por isso alterouse a sua essência 293 11 OS SONHOS Comparamos o sonho a um guardanoturno ou a um guardião ao qual cabe proteger nosso sono de perturba ções Também ao guardanoturno porém acontece de despertar os que dormem quando ele se sente fraco de mais para sozinho afugentar a perturbação ou o perigo Ainda assim logramos por vezes permanecer dormin do mesmo quando o sonho começa a se tornar preo cupante e a se voltar na direção da angústia Dizemos a nós mesmos É só um sonho E seguimos dormindo Quando ocorre de o desejo no sonho se ver em con dições de sobrepujar a censura A condição para isso pode ser preenchida tanto pelo próprio desejo como pela censura do sonho O desejo pode por razões des conhecidas se tornar demasiado forte mas a impressão que se tem é de que a culpa por esse deslocamento na correlação de forças cabe o mais das vezes à censura do sonho Já vimos que a intensidade da atuação da cen sura varia caso a caso cada elemento é tratado com um grau diferente de rigor Gostaríamos agora de acrescen tar a isso outra suposição a de que a censura é variável e não aplica sempre o mesmo rigor a um elemento ofen sivo Se já ocorreu de ela se sentir impotente frente a um desejo onírico que ameaça surpreendêla em vez de se servir da deformação ela se valerá do último recurso que lhe resta abandonar o sono mediante o desenvolvi mento da angústia Nisso nos chama a atenção que nem sabemos ainda por que esses desejos maus e rejeitados se manifestam precisamente no período noturno e nos perturbam o sono A resposta não pode estar senão em uma hipótese 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS que remonta à natureza do sono Durante o dia a dura pressão da censura pesa sobre tais desejos em geral impossibilitandoos de se manifestar mediante qual quer ação À noite como todos os demais interesses da vida psíquica essa censura se recolhe ou no mínimo é consideravelmente reduzida em favor do desejo úni co de dormir É a essa diminuição da censura durante o período noturno que os desejos proibidos devem a possibilidade de tornar a se agitar Doentes dos nervos que padecem de insônia nos confessam que de início sua insônia era deliberada não ousavam adormecer porque tinham medo de seus sonhos isto é das con sequências dessa diminuição da censura Os senhores podem facilmente perceber que esse recolhimento da censura não significa nenhum descuido crasso O sono paralisa nossa mobilidade ainda que comecem a se agitar nossas intenções más nada podem produzir se não um sonho que é praticamente inofensivo e é esse fato tranquilizador que nos lembra a observação mui to sensata do adormecido pertinente à noite mas não à vida psíquica É só um sonho Sonhemos pois e sigamos dormindo Quanto à terceira complicação descurada pelos lei gos se os senhores se lembram da concepção de que o sonhador que luta contra seus desejos pode ser equipa rado a um somatório de duas pessoas diferentes mas de algum modo intimamente ligadas compreenderão tam bém a possibilidade de a realização do desejo produzir algo que causa imenso desprazer uma punição Aqui o conto dos três desejos pode mais vez nos ajudar na 295 11 OS SONHOS explicação As salsichas fritas no prato constituem rea lização direta do desejo da primeira pessoa a esposa as salsichas no nariz dela atendem ao desejo da segunda pessoa o marido mas são também o castigo pelo desejo tolo expressado pela mulher Encontraremos nas neuro ses a motivação para o terceiro desejo o único que resta no conto de fada Tais tendências punitivas existem em grande quantidade na vida psíquica dos seres huma nos elas são bastante fortes e podese atribuir a elas parte da responsabilidade pelos sonhos incômodos Os senhores talvez objetem que desse modo pouco resta da tão falada realização de desejos Mas a um exame mais aprofundado terão de admitir que estão errados Diante da multiplicidade de coisas que veremos mais adiante o sonho poderia ser e é segundo muitos au tores a solução realização de desejosrealização da angústiarealização da punição é bastante restrita A isso se acrescenta o fato de a angústia ser o oposto direto do desejo de opostos se apresentarem bastante próximos nas associações e de no inconsciente como vimos ambos coincidirem Ademais a punição é tam bém realização de um desejo o desejo do outro da pes soa que exerce a censura No todo portanto não fiz nenhuma concessão à objeção dos senhores à teoria da realização de desejos É nossa obrigação porém demonstrar a presença da realização de desejos em todo e qualquer sonho defor mado uma tarefa a que não pretendemos nos furtar Retornemos ao sonho já interpretado dos três ingressos ruins para o teatro por um florim e cinquenta com o 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS qual já aprendemos várias coisas Espero que os senho res ainda se lembrem dele Uma dama à qual o marido relata durante o dia que a amiga dela Elise três meses mais nova tinha ficado noiva sonha que foi ao teatro com seu marido Um lado da plateia está quase vazio O marido lhe diz que Elise e o noivo também queriam ir ao teatro mas não puderam porque só encontraram in gressos ruins três por um florim e cinquenta A mulher comenta que aquilo não teria sido nenhuma desgraça Descobrimos que os pensamentos oníricos referemse à irritação da dama por ter se casado tão cedo e a sua in satisfação com o marido Podemos nos permitir a curio sidade acerca de como esses pensamentos tristes foram reelaborados para constituir a realização de um desejo e que rastros deixaram no sonho manifesto Sabemos já que os elementos cedo demais e precipitadamente foram eliminados do sonho pela censura A plateia vazia é uma alusão a isso O enigmático três por um florim e cinquenta énos agora com o auxílio do simbolis mo que aprendemos a interpretar mais compreensível 4 Com efeito o três significa um homem e o elemento manifesto é de fácil tradução ele significa comprar um marido com o dinheiro do dote Teria podido comprar um cem vezes melhor com o dinheiro do meu dote O ato de se casar é claramente substituído pela ida ao teatro Comprar ingressos cedo demais figura no so 4 Deixo de mencionar aqui outra interpretação plausível para esse três no tocante à mulher sem filhos porque esta análise não apre sentou material para isso 297 11 OS SONHOS nho em lugar de casarse cedo demais Essa substitui ção no entanto é obra da realização de desejo Nossa sonhadora nem sempre estivera tão insatisfeita com seu casamento como naquele dia no qual recebeu a notícia do noivado da amiga Até então sentia orgulho de seu casamento e se julgava favorecida diante da amiga Mo ças ingênuas costumam demonstrar sua alegria com o fato de estando noivas poderem em breve ir ao teatro para assistir a todas as peças antes proibidas isto é de que logo lhes será permitido ver tudo Esse prazer de olhar ou curiosidade que aqui se manifesta por certo era de início um prazer sexual de olhar voltado para a vida sexual dos pais sobretudo tendo posteriormen te se transformado em forte motivação para a jovem a se casar cedo Desse modo a ida ao teatro tornase um substituto alusivo evidente para o casamento Em sua presente irritação com o casamento precoce a jovem dama retoma portanto à época em que esse casamento precoce era realização de um desejo porque satisfazia seu prazer de olhar e levada por esse antigo desejo substitui o casamento pela ida ao teatro Podemos dizer que não escolhemos exatamente o exemplo mais confortável para demonstrar a realização de um desejo oculto De maneira análoga procedería mos com outros sonhos deformados Não posso fazêlo diante dos senhores quero apenas exprimir a convic ção de que esse procedimento sempre terá êxito Mas vou me deter um pouco mais neste ponto da teoria A experiência me ensinou que ele é um dos mais ameaça dos de toda a teoria do sonho e que está ligado a muitas 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS contradições e malentendidos Além disso os senhores talvez ainda tenham a impressão de que já retirei par te do que havia dito antes ao afirmar que o sonho é um desejo realizado ou o contrário disso uma angústia ou uma punição concretizada e acharão que talvez seja uma oportunidade para arrancarme novas concessões Também já ouvi a objeção de que exponho coisas que me parecem evidentes de forma demasiado sucinta e portanto não convincente Quando alguém nos acompanhou até aqui na inter pretação dos sonhos e aceitou tudo o que ela produziu não é raro que se detenha diante da questão da realiza ção de desejos e pergunte Admitindose que o sonho sempre tenha um sentido e que ele possa ser revelado por meio da técnica psicanalítica por que é que esse sentido a despeito de todas as evidências precisa ser constantemente encaixado na fórmula da realização de um desejo Por que o sentido do pensamento noturno não poderia ser tão multifacetado como o do pensamen to diurno ou seja por que o sonho não pode correspon der ora a um desejo realizado ora como o senhor mes mo diz ao contrário disso a um temor concretizado Ou por que ele não pode ser ainda expressão de uma intenção uma advertência uma reflexão com seus prós e contras ou uma repreensão um aviso da consciência uma tentativa de nos preparar para uma tarefa iminente etc Por que sempre um desejo ou no máximo o con trário dele Podese julgar que uma diferença nesse ponto não seria relevante se há concordância em tudo mais Já 11 OS SONHOS basta que tenhamos encontrado o sentido do sonho e os caminhos para reconhecêlo comparado a isso é de me nor importância que tenhamos restringido demais esse sentido Mas não é bem assim Aqui um malentendido afeta a essência de nosso conhecimento sobre o sonho e põe em perigo seu valor para a compreensão das neuro ses Aquela espécie de condescendência tão apreciada no comércio a afabilidade como a chamam não tem lugar na prática científica sendo antes prejudicial Como de costume nesses casos minha primeira res posta ao porquê de o sonho não ter significado múlti plo no sentido empregado acima é Não sei por que não seria assim Não teria nada contra isso Por mim que seja pois Mas um pequeno detalhe contrapõese a essa concepção mais ampla e confortável do sonho na realidade não é assim Minha segunda resposta enfati zará que não me é estranha a hipótese de que o sonho corresponda a múltiplas formas de pensamento e opera ções intelectuais Certa vez registrei num caso clínico um sonho que se repetiu por três noites consecutivas e depois nunca mais retornou expliqueio argumentan do que o sonho em questão correspondia a uma inten ção e que uma vez cumprida essa intenção o sonho não precisava se repetir Mais tarde publiquei um sonho que correspondia a uma confissão Como posso agora portanto me contradizer e afirmar que o sonho é sem pre e apenas um desejo realizado Faço isso para não permitir um ingênuo mal entendido que pode nos custar o fruto de todo o nosso empenho para compreender o sonho um malentendido JOO 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS que confunde o sonho com os pensamentos oníricos la tentes e diz do primeiro algo que se aplica somente ao último É correto que o sonho pode representar e ser substituído por tudo aquilo que enumeramos antes uma intenção uma advertência uma reflexão uma pre paração uma tentativa de solucionar um problema etc Olhando atentamente porém os senhores vão perce ber que tudo isso só vale para os pensamentos oníricos latentes que foram transformados no sonho Com as interpretações dos sonhos os senhores veem que o pen samento inconsciente do ser humano é que se ocupa de intenções preparações reflexões etc a partir dos quais o trabalho do sonho faz os sonhos Caso no momen to os senhores não estejam interessados no trabalho do sonho mas tenham isto sim grande interesse no tra balho do pensamento inconsciente humano eliminem o trabalho do sonho e digam do sonho o que é pratica mente correto que ele corresponde a uma advertência a uma intenção e assim por diante Na atividade psica nalítica assim é com frequêhcia na maioria das vezes esforçamonos por destruir a forma do sonho e inserir em seu lugar no contexto os pensamentos latentes de que se originou Incidentalmente a partir dessa apreciação dos pen samentos oníricos latentes vemos que todos os atos psíquicos mencionados altamente complexos podem ocorrer inconscientemente um resultado grandioso e também desconcertante Voltando porém ao nosso assunto os senhores só têm razão se tiverem claro para si mesmos que se va JOI 11 OS SONHOS leram de uma forma abreviada de expressão e se não acreditarem que a referida multiplicidade de sentidos deve se aplicar à essência do sonho Quando falam em sonho os senhores só podem estar se referindo ou ao sonho manifesto isto é ao produto do trabalho do sonho ou no máximo ao próprio trabalho do so nho isto é àquele processo psíquico que dá forma ao sonho manifesto a partir dos pensamentos oníricos latentes Qualquer outro uso da palavra provoca uma confusão conceitual que só pode causar dano Se com suas afirmações os senhores visam aos pensamentos la tentes por trás dos sonhos então digamno diretamen te sem encobrir o problema do sonho com a formulação vaga que utilizam Os pensamentos oníricos latentes são a matéria com a qual o trabalho do sonho trans forma o sonho manifesto Por que confundir a matéria com o trabalho que lhe dá forma Se o fizerem terão os senhores alguma vantagem sobre aqueles que só co nhecem o produto do trabalho e não sabem explicar sua origem ou como ele é feito A única coisa essencial no tocante aos sonhos é o trabalho do sonho que atuou sobre o material dos pen samentos Não temos o direito de ignorálo na teoria embora possamos negligenciálo em certas situações práticas A observação analítica mostra além disso que o trabalho do sonho jamais se limita a traduzir os pensamentos na forma de expressão arcaica ou regres siva conhecida dos senhores Ele sempre acrescenta algo que não faz parte dos pensamentos latentes do dia mas que é o verdadeiro motor da formação do sonho 302 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS Esse acréscimo imprescindível é o desejo igualmente inconsciente para cuja realização o conteúdo onírico é remodelado O sonho pode portanto ser qualquer coisa quando os senhores levam em conta apenas os pensamentos que ele representa advertência intenção preparação etc mas ele sempre será também a reali zação de um desejo inconsciente se contemplado como resultado do trabalho do sonho Um sonho portanto nunca é simplesmente uma intenção ou uma advertên cia mas sempre uma intenção etc traduzida para um modo de expressão arcaico com o auxílio de um desejo inconsciente e reconfigurada para realizar esse desejo Uma de suas características o da realização de um de sejo é constante a outra pode variar pode ser um de sejo também de modo que o sonho com o auxílio de um desejo inconsciente apresenta como realizado um desejo latente do dia Eu compreendo tudo isso muito bem mas não sei se consegui tornálo compreensível aos senhores E tam bém tenho dificuldade para lhes demonstrar isso Por um lado tal não é possível sem a análise cuidadosa de muitos sonhos por outro esse tópico que é dos mais delicados e importantes de nossa concepção do sonho não pode ser apresentado de forma convincente sem que eu me refira a coisas de que tratarei mais adiante Creem os senhores que dada a íntima correlação de todas as coisas pode mos penetrar muito profundamente na natureza de uma delas sem termos nos preocupado com outras de natureza similar Como nada sabemos ainda dos sintomas neuró ticos os parentes mais próximos do sonho somos JOJ 11 OS SONHOS obrigados também aqui a nos contentar com o que ob tivemos Quero apenas explicar ainda um exemplo aos senhores e fazer uma nova consideração Retomemos aquele sonho ao qual já retornamos várias vezes o sonho dos três ingressos para o teatro por um florim e cinquenta Posso garantir aos senho res que de início escolhi esse exemplo sem nenhum propósito especial Os pensamentos oníricos latentes já são conhecidos a irritação da mulher pela pressa em se casar provocada pela notícia de que somente agora a amiga ficou noiva a subestimação do marido a ideia de que ela poderia ter conseguido outro melhor se tivesse esperado O desejo que transformou esses pensamen tos em sonho também nos é conhecido é o prazer de olhar de poder ir ao teatro muito provavelmente uma ramificação da antiga curiosidade de por fim descobrir o que acontece quando se é casado Em crianças é sabi do essa curiosidade se volta em geral para a vida sexual dos pais tratase portanto de um impulso instintual infantil ou na medida em que persiste até mais tarde de um impulso instintual com raízes que chegam até a infância Contudo a notícia recebida durante o dia não ensejou o despertar desse prazer de olhar mas apenas da irritação e do arrependimento De início esse impul so não fazia parte dos pensamentos oníricos latentes e pudemos incluir o resultado da interpretação do sonho no tratamento analítico sem leválo em consideração Em si tampouco a irritação podia transformarse em sonho O pensamento Foi um absurdo ter me casado tão cedo só pôde transformarse em sonho depois de 304 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS haver despertado o antigo desejo de poder ver enfim o que ocorre no casamento Então esse desejo deu for ma ao conteúdo do sonho substituindo o casamento pela ida ao teatro e essa forma foi a da realização de um desejo anterior Eu posso ir ao teatro e ver tudo que é proibido mas você não pode eu sou casada você tem de esperar Dessa maneira a situação presente foi invertida e um velho triunfo foi posto no lugar da derrota recente Incidentalmente a satisfação do desejo de olhar mesclouse à satisfação do egoísmo competi tivo Essa satisfação determina o conteúdo manifesto do sonho no qual a sonhadora está realmente sentada no interior do teatro enquanto a amiga não conseguiu entrar A essa situação de satisfação sobrepõemse na qualidade de uma modificação inapropriada e incom preensível aquelas porções do conteúdo do sonho por trás das quais se ocultam os pensamentos oníricos laten tes A interpretação do sonho deve prescindir de tudo que serve para representar a realização do desejo res tabelecendo os penosos pensamentos oníricos latentes a partir dessas alusões A nova consideração que apresento é a de chamar a atenção dos senhores para os pensamentos oníricos latentes que agora passaram a primeiro plano Não devem se esquecer de que em primeiro lugar eles são inconscientes em segundo são inteligíveis e coerentes entre si de maneira que podem ser entendidos como reações compreensíveis àquilo que motivou o sonho e em terceiro de que podem ser equivalentes a qualquer impulso psíquico ou operação intelectual Com mais ri 11 OS SONHOS gor do que fiz antes vou denominálos resíduos diurnos quer o sonhador os reconheça ou não Vou distinguir entre resíduos diurnos e pensamentos oníricos laten tes designando como pensamentos oníricos latentes em conformidade com nosso uso anterior tudo o que ficamos sabendo ao interpretar um sonho ao passo que os resíduos diurnos são apenas uma parte desses pen samentos Nossa concepção é pois a de que aos resí duos diurnos veio se juntar algo que também pertencia ao inconsciente um desejo forte mas reprimido e ape nas esse desejo é que possibilitou a formação do sonho A atuação desse desejo sobre os resíduos diurnos dá origem ao restante dos pensamentos oníricos latentes àquela parte deles que já não deve parecer racional e compreensível para a vida em estado de vigília Para caracterizar a relação dos resíduos diurnos com o desejo inconsciente já me servi de uma comparação que posso apenas repetir aqui Todo empreendimen to necessita de um capitalista que cubra os gastos e de um empreendedor que tenha a ideia e saiba executála No caso da formação do sonho o papel do capitalista é sempre desempenhado apenas pelo desejo inconsciente é ele que provê a energia psíquica para a formação do sonho O empreendedor é o resíduo diurno que decide sobre o emprego dos fundos É possível também que o próprio capitalista tenha a ideia e o conhecimento ne cessário ou que o empreendedor disponha do capital Isso simplifica a situação prática mas dificulta a com preensão teórica Na economia sempre se decompõe essa pessoa em seus dois aspectos o capitalista e o em J06 14 A REALIZAÇÃO DE DESEJOS preendedor o que restabelece a situação básica da qual partiu nossa comparação Na formação do sonho tam bém há essas mesmas variações que os senhores mes mos poderão imaginar Não podemos avançar aqui pois provavelmente os senhores são incomodados já há algum tempo por uma dúvida que merece ser ouvida Os resíduos diurnos perguntarão são de fato inconscientes no mesmo sen tido que o desejo inconsciente que tem de juntarse a eles para tornálos capazes de produzir um sonho É correta essa suspeita Eis o ponto crucial da questão Eles não são inconscientes no mesmo sentido O de sejo presente no sonho pertence a outro inconsciente àquele que reconhecemos como de origem infantil do tado de mecanismos especiais Seria inteiramente apro priado separar essas duas modalidades de inconsciente mediante diferentes designações Para isso no entan to é melhor esperar até que nos familiarizemos com o domínio dos fenômenos neuróticos Se a noção de um inconsciente já é criticada como fantasia o que se dirá se admitirmos que nos contentamos somente com dois Paremos por aqui Mais uma vez os senhores ouvi ram uma exposição incompleta Mas não é auspicioso pensar que este saber tem continuação que será produ zida por nós mesmos ou por outros depois de nós E quanto a nós não aprendemos bastantes coisas novas e surpreendentes C Interpretação dos sonhos cap vn seção C onde essa compa ração é desenvolvida 307 11 OS SONHOS 15 INCERTEZAS E CRÍTICAS Senhoras e senhores Não vamos abandonar o domínio dos sonhos sem tratar das dúvidas e incertezas mais cos tumeiras que se relacionam às novidades e concepções expostas até aqui Ouvintes atentos entre os senhores já terão reunido algum material dessa natureza 1 Talvez tenham ficado com a impressão de que apesar da correta observância da técnica nosso trabalho interpretativo do sonho dá margem a tantas incertezas que se torna impossível uma tradução segura do sonho manifesto nos pensamentos oníricos latentes Alega rão que em primeiro lugar nunca saberemos se deter minado elemento do sonho deve ser entendido em seu significado genuíno ou como símbolo já que as coisas empregadas como símbolo não deixam de ser elas mes mas Mas não havendo apoio objetivo para a decisão a interpretação sempre ficará entregue nesse ponto ao arbítrio de quem interpreta o sonho Além disso em ra zão da coincidência de opostos no trabalho do sonho permanecerá sempre indeterminado se certo elemento onírico deve ser entendido em sentido positivo ou ne gativo como ele próprio ou como seu contrário Nova oportunidade para o exercício do arbítrio por parte do intérprete Em terceiro lugar devido às frequentes in versões de todo tipo que ocorrem no sonho o intérprete terá liberdade para fazer tal inversão no trecho do sonho que lhe aprouver Por fim os senhores mencionarão ter ouvido que raras vezes estamos seguros de que a inter J08 i S INCERTEZAS E CRÍTICAS pretação encontrada é a única possível Corremos o risco de não considerar uma superinterpretação do sonho que é perfeitamente admissível Nessas circunstâncias concluirão os senhores deixase um amplo espaço para o arbítrio do intérprete o que parece incompatível com a certeza objetiva de seus resultados Ou então poderão também supor o erro não está no sonho as deficiências de nossa interpretação se deveriam a incorreções de nos sos pressupostos e concepções Todo esse material dos senhores é irrepreensível mas creio que ele não justifica a dupla conclusão de que por um lado a interpretação dos sonhos como nós a realizamos está entregue ao arbítrio e por outro de que as deficiências nos resultados põem em questão a justeza de nosso procedimento Se em vez de arbítrio falássemos em habilidade experiência ou capacidade de compreensão do intérprete eu teria de concordar com os senhores De fato não podemos prescindir de um tal fator pessoal sobretudo nas tarefas mais difíceis da interpretação dos sonhos Mas não é diferente em ou tras áreas do trabalho científico Não há meio de evitar que uma pessoa maneje pior do que outra determina da técnica ou a explore melhor De resto o que parece arbítrio na interpretação dos símbolos por exemplo é eliminado pelo fato de o nexo dos pensamentos oníri cos entre si o do sonho com a vida do sonhador e toda a situação psíquica em que o sonho ocorre apontarem geralmente para uma única possibilidade interpretativa e rejeitarem como inúteis as demais A conclusão de que as imperfeições da interpretação dos sonhos resultariam 11 OS SONHOS na incorreção de nossas postulações é invalidada pela observação de que a ambiguidade ou indeterminação do sonho revelase antes uma propriedade que neces sariamente se esperaria que ele tivesse Lembremonos de que já afirmamos que o trabalho do sonho realiza uma tradução dos pensamentos oníricos em um modo de expressão primitivo análogo à escrita pictórica Mas todos esses sistemas de expressão primiti vos têm indeterminações e ambiguidades sem que por isso tenhamos o direito de pôr em dúvida sua utilidade A coincidência de opostos no trabalho do sonho os se nhores sabem é análoga ao assim chamado sentido an titético das palavras primitivas que se acha nas línguas mais antigas O linguista K Abel 1884 a quem deve mos essa consideração pedenos que não acreditemos que a comunicação que uma pessoa fazia a outra por in termédio de palavras tão ambivalentes era por esse mo tivo ambígua No contexto da fala a entonação e o ges to deviam tornar indubitável qual dos opostos o falante tinha em mente ao fazer sua comunicação Na escrita onde ele não está presente o gesto era substituído pelo acréscimo de uma figura não pronunciada por exemplo o desenho de um homenzinho displicentemente senta do ou perfeitamente ereto de acordo com o significado pretendido para o ambíguo ken da escrita hieroglífica fraco ou forte Assim evitavase o malentendido a despeito da ambiguidade dos sons e dos sinais Os antigos sistemas de expressão como as escri tas das línguas mais antigas permitem reconhecer uma quantidade de indeterminações que não admitiríamos JIO S INCERTEZAS E CRÍTICAS em nossa escrita atual Assim em certas escritas semí ticas escrevemse apenas as consoantes das palavras as vogais omitidas cabe ao leitor inserilas de acordo com seu conhecimento e com o contexto A escrita hieroglífi ca não procede exatamente dessa maneira mas de modo muito semelhante razão pela qual a pronúncia do egíp cio antigo permaneceu desconhecida para nós A escrita sagrada dos egípcios revela ainda outras indetermina ções Nelas cabe ao arbítrio do escritor por exemplo decidir se deseja enfileirar as imagens da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita A fim de poder lêla é necessário aterse à direção para a qual apontam os rostos das figuras pássaros etc O escritor no entan to podia ainda dispor os signos pictóricos na vertical e no caso das inscrições em objetos menores fatores como o gosto e o aproveitamento do espaço podiam ainda de terminar outras modificações na sequência dos sinais Por certo o mais perturbador da escrita hieroglífica é que ela desconhece a separação de palavras As imagens dispõemse lateralmente a igual distância uma da outra e não há como saber se uma figura pertence à palavra an terior ou à seguinte já na escrita cuneiforme dos persas uma cunha oblíqua atua como separadora de palavras Uma língua e escrita muito antiga mas ainda utiliza da por 400 milhões de pessoas é a chinesa Não creiam os senhores que entendo alguma coisa dela instruíme a seu respeito apenas porque esperava encontrar analogias com as indeterminações do sonho E não me equivoquei em minha expectativa A língua chinesa está repleta de indeterminações que poderiam até nos inspirar medo JII 11 OS SONHOS Como é sabido ela se compõe de um número de sons si lábicos que são pronunciados sozinhos ou em combina ções de dois sons Um dos dialetos principais possui cer ca de quatrocentos desses sons Como seu vocabulário é estimado em aproximadamente 4 mil palavras resulta daí que cada som tem em média dez significados dife rentes alguns menos outros mais Todo um número de expedientes é utilizado para escapar da ambiguida de pois somente pelo contexto não é possível adivinhar qual dos dez significados do som silábico o falante quer transmitir ao seu interlocutor Entre esses expedientes estão a união de duas sílabas em uma só palavra e o em prego de quatro tons diferentes na pronúncia das pró prias sílabas Para nossa comparação mais interessante ainda é o fato de a língua chinesa praticamente não pos suir uma gramática Não é possível dizer se as palavras monossilábicas são substantivos verbos ou adjetivos e ausentes estão também as modificações pelas quais se poderia reconhecer gênero número caso tempo ou modo Tratase pois de uma língua composta apenas de material bruto por assim dizer assim como a lingua gem do nosso pensamento é decomposta em seu mate rial bruto pelo trabalho do sonho que se abstém de ex pressar as relações entre componentes A língua chinesa deixa a cargo do interlocutor a decisão acerca de como compreender cada caso de indeterminação decisão na qual ele é guiado pelo contexto Anotei um exemplo de um provérbio chinês que traduzido ao pé da letra diz Pouco ver muito admirar Jll i S INCERTEZAS E CRÍTICAS Não é difícil compreendêlo O provérbio pode signifi car quanto menos se viu mais se encontra para admi rar ou muito tem a admirar aquele que pouco viu Naturalmente não se trata de decidir qual das duas traduções diferentes apenas na gramática está corre ta A despeito dessas indeterminações asseguramnos que a língua chinesa é um excelente meio de expressão do pensamento Portanto a indeterminação não conduz necessariamente à ambiguidade Temos de admitir porém que a situação objetiva do sistema de expressão do sonho é bem mais desfavorá vel que aquela de todas essas línguas e escritas antigas Estas afinal visam fundamentalmente à comunicação isto é foram feitas para serem sempre compreendidas por quaisquer caminhos e meios Esse é precisamente o caráter que escapa ao sonho O sonho não pretende di zer nada a ninguém não é um veículo de comunicação ao contrário ele quer permanecer incompreendido Por isso mesmo não devemos nos admirar nem nos desespe rar caso verifiquemos que nele certo número de ambi guidades e indeterminações escapam a uma decisão A título de ganho indiscutível de nossa comparação resta nos apenas a percepção de que tais indeterminações que se pretendeu utilizar como objeção à validade de nossas interpretações de sonhos são antes característi ca regular de todos os sistemas de expressão primitivos Até onde vai na realidade a compreensibilidade do sonho é algo que só se verifica pela prática e a experiên cia Ela é bastante ampla creio e a comparação dos re sultados obtidos por analistas treinados confirma minha JIJ 11 OS SONHOS opinião Sabese que o público leigo também aquele afeito à ciência se compraz em exibir superior ceticis mo ante as dificuldades e incertezas de uma realização científica Injustamente acredito Talvez nem todos os senhores saibam que uma situação parecida ocorreu na história da decifração das inscrições assíriobabilônicas Nela houve época em que a opinião pública esteve mui to perto de declarar fantasistas os decifradores da escri ta cuneiforme e um engodo toda a sua pesquisa Mas em 1857 a Royal Asian Society fez um teste decisivo Ela convidou quatro dos mais respeitados pesquisado res da escrita cuneiforme Rawlinson Hincks Fox Talbot e Oppert a fazer traduções independentes de uma inscrição recémdescoberta e enviálas à Socieda de em envelope lacrado então após comparar as qua tro leituras declarouas coincidentes o bastante para justificar a confiança nos resultados alcançados até ali e a esperança de novos progressos Pouco a pouco o escárnio dos leigos cultos teve fim e a segurança na leitura dos documentos em escrita cuneiforme cresceu enormemente desde então 2 Uma segunda série de dúvidas vinculase pro fundamente à impressão da qual é provável que tampouco os senhores estejam livres de que certo número de soluções que fomos levados a propor na interpretação dos sonhos seriam forçadas artificiais inverossímeis ou seja de que pareceriam não apenas violentas como também cômicas e até zombeteiras Tais manifestações são tão frequentes que quero aqui escolher uma ao acaso a última de que tomei conheci 314 S INCERTEZAS E CRÍTICAS mento Ouçam pois Há pouco tempo na Suíça livre um chefe de departamento perdeu seu posto em razão de seu trabalho na área psicanalítica Tendo ele inter posto recurso um jornal de Berna trouxe a público o parecer das autoridades universitárias sobre seu caso Desse parecer extraio algumas frases relativas à psica nálise Além disso surpreende o caráter elaborado e artificial de muitos exemplos que se encontram também no já mencionado livro do dr Pfister em Zurique Só pode ser mesmo espantoso que um chefe de departa mento aceite sem crítica todas essas afirmações e pseu doevidências Essas frases são apresentadas como a de cisão de alguém que julga com serenidade Eu diria antes que essa serenidade sim é artificial Examine mos mais de perto essas declarações na esperança de que alguma reflexão e algum conhecimento do assunto tampouco prejudiquem um julgamento sereno É verdadeiramente animador observar com que ra pidez e segurança alguém é capaz de julgar uma questão delicada da mais profunda psicologia com base em suas primeiras impressões As interpretações lhe parecem ar tificiais e forçadas ou seja não lhe agradam e por isso estão erradas a interpretação em si é desprovida de va lor Nem mesmo um pensamento fugidio chega a aventar a outra possibilidade isto é a de que as interpretações teriam boas razões para lhe parecer assim ao que se vin cularia então a pergunta seguinte que razões são essas O assunto em julgamento relacionase na essência aos resultados do deslocamento que os senhores ficaram conhecendo como o expediente mais eficaz empregado 11 OS SONHOS pela censura do sonho Com o auxílio do deslocamen to a censura do sonho cria as formações substitutivas a que chamamos alusões Tratase contudo de alusões não facilmente reconhecíveis como tais cujo caminho de volta até o elemento real é difícil de encontrar e que se vinculam a esse elemento real mediante associações as mais singulares incomuns e extrínsecas Em todos esses casos porém tratase de coisas que devem per manecer ocultas destinadas ao encobrimento e é isso que a censura do sonho almeja Algo que foi escondido não se pode esperar encontrar em seu lugar no posto que lhe cabe Nesse aspecto aqueles que hoje se encar regam de vigiar as fronteiras são mais inteligentes que as autoridades universitárias suíças Em busca de docu mentos e anotações eles não se contentam em exami nar pastas e maletas mas consideram a possibilidade de que espiões e contrabandistas carreguem material tão inapropriado em esconderijos os mais recônditos de sua vestimenta ou por exemplo entre as solas duplas de suas botas Se encontram aí o material escondido então é porque a procura foi de fato forçada mas também foi muito bemsucedida Se reconhecemos como possíveis as ligações mais distantes e singulares por vezes até de aspecto cômi co ou engraçado entre um elemento latente do sonho e seu substituto manifesto é porque ao fazêlo esta mos agindo de acordo com ricas experiências adquiri das a partir de exemplos cuja resolução em geral não fomos nós a descobrir Muitas vezes é impossível che gar a tais interpretações por conta própria nenhuma JI6 i S INCERTEZAS E CRÍTICAS pessoa sensata poderia adivinhar a conexão existente Ou o sonhador nos dá a tradução de pronto mediante associação direta o que ele pode fazer porque foi nele que se produziu a formação substitutiva ou nos fornece tanto material que a solução em vez de deman dar especial perspicácia acabará por se impor por si só Caso o sonhador não nos auxilie de alguma dessas duas maneiras o elemento manifesto em questão nos per manecerá para sempre incompreensível Permitam que eu exponha aos senhores ainda outro exemplo ocorrido recentemente Durante o tratamento uma de minhas pacientes perdeu o pai Desde então ela se vale de toda e qualquer oportunidade para devolvêlo à vida em so nhos Num deles o pai aparece em certo contexto de resto desinteressante e diz São onre e quinre são onre e meia são quinre para o meiodia Como interpreta ção dessa singularidade ocorre à paciente apenas que o pai gostava de ver os filhos adultos obedecerem pon tualmente ao horário das refeições conjuntas Isso por certo tinha a ver com o elemento do sonho mas não permitia conclusão nenhuma quanto à origem desse elemento Havia a suspeita justificada pela situação do tratamento na época de que uma revolta crítica cuida dosamente reprimida contra o amado e venerado pai tinha participação naquele sonho Na sequência poste rior de suas associações aparentemente já distante do sonho a sonhadora relata que no dia anterior muito se falara de psicologia em sua presença e um parente havia dito O Urmensch homem primitivo segue vi vendo em todos nós Agora acreditamos compreender 317 11 OS SONHOS Aquilo havia dado a ela excepcional oportunidade de mais uma vez fazer reviver o pai falecido No sonho portanto transformouo num Uhrmensch homem das horas a dizer os quartos de hora faltantes para o horá rio do almoço Os senhores terão dificuldade em negar a semelhan ça desse exemplo com um chiste e com efeito já acon teceu muitas vezes de se pensar que o chiste do sonha dor era de quem interpretava o sonho Existem outros exemplos em que não é fácil decidir se estamos lidando com um chiste ou um sonho Mas os senhores se lem bram de que tivemos essa mesma dúvida em relação a vários lapsos da fala ao tratarmos dos atos falhos Um homem relata como sonho que seu tio lhe deu um beijo enquanto estavam os dois sentados no automóvel do tio De pronto o sonhador acrescenta a interpretação o so nho significa autoerotismo um termo da teoria da libido que designa a satisfação sem a presença de objeto exte rior Terá o homem se permitido fazer uma brincadeira conosco e nos contado como sonho uma piada que lhe ocorrera Não creio ele de fato sonhou aquilo Mas de onde vem essa espantosa semelhança Na época essa pergunta me afastou um tanto de meu caminho ao me impor a necessidade de submeter o próprio chiste a um exame aprofundado Revelouse no tocante à gênese do chiste que uma linha préconsciente de pensamento é submetida momentaneamente à elaboração incons ciente da qual então emerge como chiste Sob a in fluência do inconsciente o pensamento sofre a atuação dos mecanismos que nele imperam a condensação e JI8 S INCERTEZAS E CRÍTICAS o deslocamento ou seja daqueles mesmos processos que vimos atuar no trabalho do sonho e é a essa ca racterística comum que devemos atribuir a semelhança entre o chiste e o sonho onde quer que ela se verifique Contudo o involuntário chiste onírico não nos ofere ce o ganho em prazer que o chiste proporciona Por que razão isso o estudo dos chistes poderá ensinar aos se nhores O chiste onírico parece uma piada ruim não nos faz rir deixanos indiferentes Mas nisso também seguimos os passos da antiga in terpretação dos sonhos que à parte muitas inutilida des nos legou vários bons exemplos de interpretações que nós mesmos não seríamos capazes de superar Re lato agora aos senhores um importante sonho histórico o qual com algumas discrepâncias Plutarco e Artemi doro de Daldi atribuem a Alexandre o Grande Quan do o rei sitiava a cidade de Tiro 322 aC defendida com obstinação certa vez sonhou com um sátiro dan çante O intérprete de sonhos Aristandro que integra va o exército interpretoulhe o sonho decompondo a palavra sátiros em aà TÚJOÇ tua é Tiro garantin do assim que o rei triunfaria sobre a cidade Em ra zão dessa interpretação Alexandre determinou que se prosseguisse com o sítio e acabou por tomar a cidade A interpretação que parece artificial revelouse correta 3 Posso imaginar que lhes causará particular im pressão ouvir que objeções a nossa concepção do sonho são levantadas também por pessoas que como psicana listas ocuparamse mais detidamente da interpretação dos sonhos Teria sido insólito que ninguém se apro 11 OS SONHOS veitasse de tão rico incentivo para cometer novos erros e assim com o auxílio de confusões conceituais e de generalizações injustificadas surgiram afirmações que não ficam muito a dever em matéria de incorreção à concepção que a medicina tem do sonho Uma delas os senhores já conhecem Ela afirma que o sonho se ocupa de tentativas de adaptação ao presente e da solução de tarefas futuras seguindo pois uma tendência pros pectiva A Maeder Já mencionamos que essa afirma ção repousa na confusão entre o sonho em si e os pen samentos oníricos latentes ou seja tem como premissa ignorar o trabalho do sonho Como caracterização da atividade intelectual inconsciente categoria à qual per tencem os pensamentos oníricos latentes ela por um lado não constitui novidade e por outro não esgota o assunto pois a atividade intelectual inconsciente cuida de muito mais que da preparação do futuro Uma con fusão bem pior parece estar na base da asserção de que por trás de todo sonho se acha a cláusula da morte Não sei bem o que essa formulação quer dizer mas su ponho que por trás dela esteja a confusão do sonho com a personalidade do sonhador Uma generalização injustificada extraída de uns poucos bons exemplos está presente na afirmação de que todo sonho admite duas interpretações a assim chamada psicanalítica que apresentamos aqui e a ana gógica que ignora os impulsos instintuais e visa repre sentar os feitos psíquicos mais elevados H Silberer Tais sonhos existem mas não se conseguirá estender essa concepção nem mesmo à maioria dos sonhos De 320 15 1NCERTEZAS E CRÍTICAS pois de tudo o que os senhores ouviram aqui há de parecerlhes totalmente incompreensível ademais a afirmação de que todos os sonhos devem ser interpre tados de forma bissexual como pontos de encontro de duas correntes a serem denominadas masculina e femi nina A Adler É claro que também existem sonhos assim que talvez os senhores descubram mais adiante são construídos como certos sintomas histéricos Men ciono todas essas descobertas de novas características gerais do sonho a fim de alertálos contra elas ou ao menos não lhes deixar dúvidas sobre o que penso delas 4 Um dia o valor objetivo da investigação dos so nhos pareceu questionado pela observação de que pa cientes submetidos a análise ajustavam o conteúdo de seus sonhos à teoria preferida de seu médico Assim uma parte deles sonhava sobretudo com impulsos ins tintuais de caráter sexual outra com a busca do po der e ainda outra até mesmo com o renascimento W Stekel O peso dessa observação é minimizado pela re flexão de que os homens já sonhavam antes que houves se um tratamento psicanalítico que pudesse guiar seus sonhos e de que as pessoas ora em tratamento costuma vam sonhar também antes dele O que há de verdadeiro nessa novidade logo se percebe como óbvio e também como irrelevante para a teoria do sonho Os resíduos diurnos incitadores do sonho vêm dos fortes interesses da vida desperta Se as palavras do médico e os estímu los que proporciona se tornam significativos para o ana lisando entram na esfera dos resíduos diurnos podem fornecer estímulos psíquicos para a formação do sonho J21 11 OS SONHOS tal como os outros interesses do dia ainda pendentes e carregados de afeto sua atuação se assemelha à dos estímulos somáticos que agem durante o sono sobre a pessoa adormecida Como esses outros instigadores do sonho também os pensamentos instigados pelo médi co podem aparecer no conteúdo manifesto do sonho ou ter sua presença demonstrada no conteúdo latente Sabemos afinal que sonhos podem ser gerados expe rimentalmente ou melhor que uma parte do material onírico pode ser introduzida no sonho Nessa influência que exerce em seu paciente o analista não desempenha papel diferente daquele do condutor de tal experiência como Mourly Vold que dispunha os membros dos par ticipantes das experiências em determinadas posições Muitas vezes é possível influenciar o tema do sonho mas jamais se consegue interferir no quê o sonhador vai sonhar O mecanismo do trabalho do sonho e o de sejo onírico inconsciente são imunes a toda influência externa Ao tratar dos sonhos de estímulo somático já notamos que as singularidades e a autonomia da vida onírica se revelam no modo como o sonho reage aos es tímulos corporais ou psíquicos introduzidos Portanto a afirmação aqui em pauta que pretende pôr em dúvida a objetividade da pesquisa acerca do sonho também se baseia numa confusão aquela entre o sonho e o ma terial onírico Isso senhoras e senhores era o que eu queria lhes dizer sobre os problemas ligados aos sonhos Certa mente adivinham que omiti muitas coisas e que tive de tratar quase todos os pontos de forma incompleta Isso 322 i S INCERTEZAS E CRÍTICAS se deve à relação dos fenômenos oníricos com aqueles das neuroses Estudamos o sonho como introdução à teoria das neuroses o que certamente foi mais correto do que fazer o inverso Mas assim como o sonho nos prepara para a compreensão das neuroses uma correta apreciação dele por outro lado pode ser obtida apenas após o conhecimento dos fenômenos neuróticos Não sei o que os senhores pensarão disso mas devo lhes garantir que não lamento haver empenhado boa parte do seu interesse e do tempo de que dispomos na abordagem dos problemas do sonho Nenhum outro objeto pode nos propiciar tão rapidamente a convicção sobre a justeza das afirmações de que depende a psica nálise São necessários meses e até mesmo anos de tra balho árduo para mostrar que os sintomas de um caso de enfermidade neurótica possuem um sentido servem a uma intenção e decorrem das vicissitudes da vida do enfermo Por outro lado algumas horas de esforço po dem ser suficientes para provar que o mesmo vale para um sonho inicialmente confuso e incompreensível e assim para confirmar todas as premissas da psicanáli se o caráter inconsciente dos processos psíquicos os mecanismos especiais a que eles obedecem e as forças instintuais que neles se manifestam E se considera mos a radical analogia entre a construção do sonho e a do sintoma neurótico e ao mesmo tempo a rapidez da transformação que faz do sonhador uma pessoa des perta e sensata adquirimos a certeza de que também a neurose repousa apenas na alteração do jogo de forças entre os poderes da vida psíquica J2J TERCEIRA PARTE TEORIA GERAL DAS NEUROSES 1917 16 PSICANÁLISE E PSIOUIATRIA 16 PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA Senhoras e senhores Alegrome em revêlos após um ano para darmos prosseguimento a nossas discussões No ano passado apresenteilhes o tratamento dado pela psicanálise aos atos falhos e aos sonhos neste ano gos taria de iniciálos no entendimento das manifestações neuróticas que como logo descobrirão têm muito em comum com ambos Mas digolhes já de antemão que desta vez não posso lhes conceder a mesma posição de antes em relação a mim No ano passado empenhava me em não dar nenhum passo sem a concordância dos senhores discuti muita coisa submetime a objeções e de fato reconheci o bom senso dos senhores como instância decisiva Agora isso não será mais possível e por uma razão muito simples Atos falhos e sonhos não lhes eram fenômenos desconhecidos era possível dizer que os senhores tinham tanta experiência deles quanto eu ou que não havia dificuldade em obterem tal expe riência Mas o âmbito das manifestações neuróticas não lhes é familiar Como não são médicos não possuem outra via de acesso a ele senão minhas comunicações e de que serve o melhor juízo se não há também familia ridade com a matéria em julgamento Mas não entendam este meu anúncio como se eu pretendesse dar palestras dogmáticas e requerer sua fé incondicional Esse malentendido seria uma grave injustiça contra a minha pessoa Não quero despertar convicções quero fornecer estímulos e abalar pre 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES conceitos Se por desconhecer o material os senhores não têm condições de julgar não devem crer nem con denar Devem escutar e permitir que o que lhes é rela tado produza efeito Não é tão fácil adquirir convicções ou se chegamos a elas sem fazer esforço logo se mos tram desprovidas de valor e capacidade de resistência Direito à convicção possui apenas aquele que assim como eu trabalhou muitos anos no mesmo material e viveu ele próprio repetidas vezes as mesmas novas e surpreendentes experiências De que servem no cam po intelectual as convicções apressadas as conversões fulminantes os repúdios momentâneos Percebem os senhores que o coup de foudre o amor à primeira vista provém de um âmbito bastante diverso o afetivo Nem sequer pedimos a nossos pacientes que sejam convictos ou adeptos da psicanálise Com frequência isso os tor na suspeitos para nós Um ceticismo benévolo é a pos tura que mais desejamos ver neles Portanto procurem também os senhores deixar que a concepção psicanalí tica juntamente com a popular ou a psiquiátrica cresça calmamente dentro de si até surgirem oportunidades para que elas se influenciem se meçam uma à outra e possam então conciliarse numa decisão Por outro lado não pensem que aquilo que lhes apre sento como a concepção psicanalítica é um sistema basea do na especulação Decorre isto sim da experiência é expressão direta da observação ou resultado da elabora ção da experiência Se essa elaboração ocorreu de forma satisfatória e justificada é algo que se mostrará com o avanço dessa ciência de minha parte passadas quase 16 PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA duas décadas e meia e já avançado em anos permito me afirmar sem jactância que tais observações foram o produto de um trabalho árduo intenso e aprofundado Muitas vezes tive a impressão de que nossos oposito res não queriam levar em conta essa origem de nossas afirmações como se acreditassem que são ideias pura mente subjetivas a que outros poderiam opor o que lhes aprouvesse Não compreendo inteiramente essa postu ra Talvez ela venha do fato de em geral um médico não ter muito contato com os doentes dos nervos de não ouvir atentamente o que têm a dizer de modo que não considera a possibilidade de extrair algo de valor de suas manifestações e portanto de fazer observações aprofundadas Prometo aos senhores que no decorrer de minhas palestras pouco vou polemizar em especial com indivíduos Não posso me convencer da verdade da máxima que afirma ser o conflito o pai de todas as coi sas Creio que ela provém da sofística grega e tal como esta falha por superestimar a dialética Pareceme ao contrário que a chamada polêmica científica é de modo geral bastante infrutífera além de quase sempre ser conduzida em nível altamente pessoal Até poucos anos atrás eu podia me gabar de ter entrado em uma disputa científica de fato apenas com um pesquisador Lõwen feld de Munique Terminamos ficando amigos o que somos até hoje Mas nunca mais fiz isso por não ter cer teza de que o desfecho seria o mesmo Os senhores por certo julgarão que tal recusa em participar de uma discussão acadêmica dá testemunho de uma grande inacessibilidade a objeções é sinal de 327 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES teimosia ou como se diz no polido jargão científico extravagante pertinácia O que eu gostaria de respon der é que se os senhores vierem a adquirir uma con vicção com base em trabalho tão árduo também terão o direito de se apegar a essa convicção com alguma te nacidade Além disso posso dizer que ao longo de meu trabalho modifiquei minhas opiniões acerca de pontos relevantes altereias substituías por outras sempre é claro tornando pública essa mudança E qual foi o resultado dessa sinceridade Alguns nem sequer toma ram conhecimento dessas correções que eu próprio fiz e me criticam ainda hoje por teses que há muito tempo já não significam o mesmo para mim Outros me cen suram justamente por essas mudanças em razão das quais me declaram de pouca confiança Quem já mudou de opinião algumas vezes não merece crédito nenhum porque torna evidente que pode ter se equivocado tam bém em suas afirmações mais recentes não é assim Por outro lado quem se aferra inamovível ao que afirmou certa vez ou quem não se deixa demover com suficiente rapidez daquilo que declarou é chamado de teimoso e obstinado O que fazer diante dessas impu tações contraditórias da crítica a não ser permanecer o que se é e se comportar em concordância com o próprio juízo Assim me decidi também eu que não admito que me impeçam de modelar e corrigir minhas doutrinas em consonância com o que demanda o avanço de mi nha experiência Em minhas descobertas fundamentais não encontrei o que mudar até o momento e espero que tampouco venha a encontrar 16 PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA Devo portanto expor aos senhores a concepção psicanalítica das manifestações neuróticas Para isso pareceme indicado estabelecer ligações com os fenô menos já tratados tanto em razão das analogias como dos contrastes Recorro a uma ação sintomática em que já vi muitas pessoas incorrerem nas sessões comigo O analista não sabe bem o que fazer com aquelas pessoas que vão a seu consultório e em quinze minutos ex põem todas as mazelas de sua vida Nosso conhecimen to mais aprofundado torna dificil para nós dizer como qualquer outro médico O senhor não tem nada E emendar o conselho Faça um leve tratamento hidro terápico Perguntado sobre o que fazia com os pacien tes que o procuravam um colega nosso encolheu os ombros e respondeu infligialhes uma multa de tantas coroas pelo desperdício de tempo Portanto não há de surpreender os senhores que mesmo no caso de psi canalistas ocupados a consulta não costume ser muito animada Eu mandei trocar a porta simples que separa a sala de espera de meu consultório por portas duplas as quais reforcei ainda com um revestimento de feltro A intenção por trás desse expediente não tem nada de duvidosa Com efeito acontece muito de pessoas pro cedentes da sala de espera não fecharem as portas pe las quais passam quase sempre aliás deixam abertas ambas as portas Tão logo percebo essa negligência insisto em tom inamistoso para que o paciente retorne e faça o que deixou de fazer quer se trate de um ca valheiro elegante ou de uma dama muito bem vestida A impressão que isso causa é a de um pedantismo ina 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES propriado Já cheguei mesmo a vez por outra fazer má figura com tal exigência no caso de pessoas incapazes de tocar uma maçaneta e que apreciam ver seu acompa nhante pouparlhes de semelhante contato Na maioria dos casos porém eu estava com a razão porque uma pessoa que assim se comporta que deixa aberta a porta que separa a sala de espera do consultório médico pertence ao populacho e merece ser recebida com hostilidade Não tomem partido agora antes de ouvir o restante É que essa negligência do paciente só ocorre se ele estava sozinho na sala de espera tendo deixado pois uma sala vazia atrás de si ela jamais acontece se em sua espera ele estava acompanhado de outros de estranhos Nesse último caso sabe muito bem que é do seu interesse não ser ouvido enquanto fala com o médi co razão pela qual jamais se esquece de fechar cuidado samente as duas portas Assim a negligência do paciente não é condiciona da de modo casual nem desprovido de sentido ela não é desimportante porque como veremos lança luz sobre a relação entre o paciente que entra no consultório e seu médico O paciente pertence à grande massa daqueles que requerem uma autoridade mundana dos que querem ser deslumbrados e intimidados Talvez tenha mandado perguntar pelo telefone qual o horário mais favorável para a visita ao médico ele se preparou para enfrentar uma multidão de pessoas em busca de ajuda como diante de uma filial do Café Julius Meinl Agora porém aden tra uma sala de espera vazia e além disso de decoração bastante modesta e isso o abala Tem de fazer o médico 330 16 PSICANÁLISE E PSIOUIATRIA pagar pelo respeito supérfluo que pretendia lhe dispen sar e então abstémse de fechar as portas entre sala de espera e consultório Com isso quer dizer o seguin te ao médico Ora não tem ninguém aqui e é provável que enquanto eu estiver aqui não apareça mesmo mais ninguém Durante a consulta se comportaria também de forma impolida e desrespeitosa não tivesse sua arro gância sido refreada logo de início com uma reprimenda Nessa análise de uma pequena ação sintomática os senhores não encontram nada que já não conhecessem ela não é obra do acaso mas pelo contrário possui uma motivação um sentido e uma intenção faz parte de um contexto psíquico especificável e na condição de um pequeno indício dá testemunho de um processo psí quico mais importante Acima de tudo porém revela que o processo assim indicado é desconhecido da cons ciência daquele que o realiza uma vez que nenhum dos pacientes que deixou abertas as duas portas seria capaz de admitir que por meio dessa negligência pretendeu expressar seu menosprezo por minha pessoa Vários é provável se lembrariam de ter se decepcionado ao en trar na sala de espera vazia mas o vínculo entre essa impressão e a ação sintomática a seguir permaneceu desconhecido de sua consciência Agora acrescentemos a essa pequena análise de uma ação sintomática observações que fiz junto a um doente dos nervos Escolho para tanto observações que trago ain da frescas na memória e que além disso se deixam apre sentar aqui com relativa brevidade Certo grau de minúcia é imprescindível numa exposição como a que se segue 331 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES Um jovem oficial que volta para casa para gozar um curto período de férias me pede para tratar de sua so gra a qual vivendo em condições as mais felizes está arruinando a própria vida e a dos seus em razão de uma ideia disparatada Então travo conhecimento com uma bemconservada senhora de 53 anos de idade de natu reza amigável e simples que sem relutância me faz o relato a seguir Ela vive no campo e tem um casamento dos mais felizes com o marido que dirige uma grande fábrica Não tem palavras suficientes para louvar o amo roso cuidado do cônjuge Casouse por amor há trinta anos e desde então jamais experimentou qualquer tris teza briga ou motivo para ciúme Os dois filhos estão bem casados o marido pai de seus filhos movido por um senso de dever ainda não deseja aposentarse Há um ano aconteceu então o inacreditável algo que ela própria não compreendia recebeu uma carta anônima que acusava seu excepcional marido de ter um caso com uma jovem Ela acreditou de pronto na carta e desde então acabarase sua felicidade Detalho a seguir o cur so aproximado dos acontecimentos Ela tinha uma em pregada com a qual discutia intimidades talvez com de masiada frequência A empregada perseguia outra moça com uma hostilidade verdadeiramente odiosa porque esta última fora bem mais longe na vida embora fos se de origem igual à sua Em vez de ir trabalhar como empregada essa segunda moça havia conseguido ob ter uma formação na área comercial fora trabalhar na fábrica e em decorrência da falta de pessoal e graças a convites dos superiores tinha avançado para uma boa 332 16 PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA posição Agora morava na própria fábrica tinha con tato com todos os cavalheiros e era até chamada de se nhorita A outra a empregada que ficara para trás na vida naturalmente revelavase mais do que disposta a falar mal da antiga colega de escola Certo dia nossa dama conversava com a empregada sobre um velho ca valheiro que ali estivera em visita do qual se sabia que não morava com a esposa e que tinha um caso com ou tra mulher A dama não sabe como aquilo foi acontecer mas de repente disse Para mim seria a pior coisa do mundo descobrir que o meu bom marido tem um caso No dia seguinte recebeu pelo correio uma carta anô nima que escrita com letra de mão disfarçada lhe co municava exatamente aquilo que por assim dizer ela conjurara A senhora concluiu é provável que com razão que a carta havia sido obra da empregada má uma vez que como amante do marido a carta designa va justamente a senhorita que a empregada odiava Mas embora tenha percebido de imediato a intriga e embora em sua cidade conhecesse exemplos suficientes do pouco crédito que aquelas denúncias mereciam aconteceu de a referida carta abatêla instantaneamente Mergulhou em terrível agitação e mandou chamar de pronto o marido a fim de lhe fazer as censuras mais veementes O marido repeliu sorrindo a acusação e fez o melhor que havia a fazer mandou chamar o médico da família e da fábrica que juntou seus esforços aos dele na intenção de tranqui lizar a mulher As demais medidas tomadas foram igual mente sensatas A empregada foi demitida mas não a suposta rival Desde então a dama enferma sempre afir 333 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES mava ter se tranquilizado no tocante à carta em cujo conteúdo deixara de acreditar mas nunca totalmente nem por muito tempo Bastava ouvir o nome da senho rita ou encontrála na rua para que isso desencadeasse nela novo acesso de desconfiança dor e recriminações Essa é pois a história dessa boa senhora Não foi preciso muito conhecimento psiquiátrico para com preender que ao contrário de outros doentes dos ner vos ela apresentara o próprio caso de uma forma dema siado atenuada de forma dissimulada como dizemos e que na verdade jamais superara a crença na acu sação contida na carta anônima Que postura assume o psiquiatra ante um caso pa tológico dessa natureza Já sabemos como ele se com portaria diante da ação sintomática do paciente que não fecha as portas da sala de espera Declaraa uma casuali dade desprovida de interesse psicológico e que portan to não lhe diz respeito Esse comportamento contudo não pode ser estendido ao caso patológico da mulher ciumenta A ação sintomática parece algo indiferente mas o sintoma impõese como algo significativo Ele se liga a um forte sofrimento subjetivo e ameaça objetiva mente o convívio de uma família é pois um objeto ine gável do interesse psiquiátrico De início o psiquiatra procura caracterizálo mediante uma qualidade funda mental A ideia que atormenta essa mulher não pode em si ser chamada de disparatada acontece afinal de ho mens casados e mais velhos terem casos amorosos com moças mais jovens Outra coisa todavia é disparatada e incompreensível A paciente não tem motivo nenhum 334 16 PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA para acreditar que seu esposo carinhoso e fiel perten ça a essa categoria em geral nada incomum de homens apenas o que afirma a carta anônima Ela sabe que aque le pedaço de papel não possui força comprobatória e tem uma explicação satisfatória para sua origem deveria portanto dizer a si mesma que não tem razão nenhuma para sentir ciúme e é o que faz mas sofre assim mes mo como se reconhecesse esse ciúme como plenamente justificado A ideias dessa natureza inacessíveis a argu mentos lógicos extraídos da realidade convencionouse chamar de ideias delirantes A boa dama sofre portanto de um delírio de ciúme Essa é por certo a característica fundamental desse caso patológico Feitas essas primeiras constatações nosso interesse psiquiátrico tornase ainda mais vivo Se uma ideia de lirante não pode ser eliminada com a referência à reali dade então é provável que tampouco ela tenha origem na realidade De onde vem então Ideias delirantes existem com os mais variados conteúdos Por que no nosso caso esse conteúdo é justamente o ciúme Em que pessoas formamse ideias delirantes ou em parti cular ideias delirantes de ciúme Sobre isso gostaría mos de ouvir o psiquiatra que no entanto nos deixará na mão Ele só investigará um único aspecto de nossos questionamentos Vai pesquisar a história familiar dessa mulher e talYer apresentar a seguinte resposta ideias delirantes formamse naquelas pessoas em cujas famílias já se verificaram repetidas vezes perturbações psíquicas semelhantes ou de outros tipos Em outras palavras se essa mulher desenvolveu uma ideia delirante foi a here 335 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES ditariedade que a predispôs a tanto Isso com certeza é uma resposta mas é tudo que queremos saber É tudo o que contribuiu para esse caso patológico Devemos nos contentar com a suposição de que sendo de ciúme e não de outra coisa a ideia delirante que se desenvol veu essa sua característica é indiferente arbitrária ou inexplicável E estamos autorizados a entender o princí pio que anuncia a predominância da influência genética também no sentido negativo de que independentemente das experiências por que passou essa psique ela estava fadada a algum dia produzir um delírio Os senhores quererão saber por que a psiquiatria científica não nos fornece outros esclarecimentos Mas eu lhes respondo é um maroto aquele que dá mais do que tem O psiquiatra não conhece caminho que leve ao esclarecimento de um tal caso Ele tem de se contentar com esse diagnóstico e a despeito de uma rica experiência com um prognóstico incerto do curso posterior da enfermidade Mas pode aqui a psicanálise fazer mais Sim pode Espero mostrar aos senhores que mesmo em um caso de tão difícil acesso ela consegue revelar coisas que possibilitam uma melhor compreensão De início peço aos senhores que atentem para um pequenino detalhe a paciente provocou na verdade a carta anônima que agora sustenta sua ideia delirante na medida em que dias antes revelara à empregada intrigueira que caso o marido tivesse um caso de amor com uma jovem moça seria a maior infelicidade de sua vida Com isso deu à empregada a ideia de enviarlhe a carta anôni ma Assim a ideia delirante ganha certa independência 16 PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA da carta em si ela já estava presente antes na paciente sob a forma de temor ou como desejo Considerem também outros pequenos indícios produzidos em ape nas duas sessões de análise É certo que a paciente de monstrou muita reserva ao ser solicitada a relatar sua história seus demais pensamentos suas associações e suas lembranças Afirmou que nada mais lhe ocorria que já havia dito tudo e passadas duas horas a tentativa precisou ser de fato interrompida porque ela anunciara que já se sentia saudável e tinha certeza de que a ideia doentia não voltaria É claro que o disse apenas por re sistência e por temer a continuação da análise Naquelas duas horas porém ela havia sim feito observações que autorizavam certa interpretação que a tornavam inclu sive imperiosa e essa interpretação lança uma luz muito clara sobre a gênese de seu delírio de ciúme Ela própria nutria intensa paixão por um jovem pelo próprio genro em virtude de cuja insistência aliás ela fora me procu rar como paciente Dessa paixão ela nada sabia ou tal vez soubesse um pouco Dada a relação de parentesco então existente era fácil que essa inclinação amorosa se mascarasse de uma ternura inofensiva Depois de tudo mais que descobrimos não é difícil nos transportarmos para a vida psíquica dessa senhora respeitável e boa mãe de 53 anos Por se tratar de coisa monstruosa impos sível tal paixão não podia se tornar consciente não obstante ela seguiu existindo e exercendo forte pressão inconsciente Alguma coisa precisava acontecer com ela algum tipo de remédio tinha de ser encontrado e o alívio mais à mão foi certamente proporcionado pelo 337 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES mecanismo do deslocamento que com tanta frequên cia tem participação no surgimento do ciúme delirante Se não apenas a senhora de mais idade estivesse apai xonada por um jovem mas também seu velho marido estivesse tendo um caso amoroso com uma moça isso a libertaria da pressão que a infidelidade exercia sobre sua consciência Assim a fantasia da infidelidade do marido agiu como um emplastro refrescante sofre a ferida ar dente De seu próprio amor ela não tomou consciência mas o espelhamento dele que lhe trazia tantas vanta gens se fez nela obsessiva e delirantemente conscien te Nenhum argumento contrário a ele podia frutificar uma vez que os argumentos se voltavam apenas contra a imagem no espelho e não contra a imagem primor dial à qual a primeira devia sua força e que permaneceu oculta e intocável no inconsciente Resumamos agora de que maneira um breve e dificultoso empenho psicanalítico contribuiu para a compreensão desse caso patológico pressupondose é claro que nossas investigações foram feitas corre tamente o que não posso submeter aqui ao juízo dos senhores Em primeiro lugar a ideia delirante já não é disparatada ou incompreensível ela se revela plena de sentido dotada de boa motivação e se insere no con texto de uma vivência afetiva da paciente Em segun do lugar ela é necessária como reação a um processo psíquico inconsciente depreendido de outros indícios e deve precisamente a essa relação seu caráter delirante sua resistência a ataques lógicos e reais é em si algo desejado uma espécie de consolo Em terceiro lugar é 16 PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA a vivência por trás da enfermidade que determina sem sombra de dúvida que a ideia delirante será de ciúme e de nenhuma outra coisa Os senhores se lembram de que na véspera a senhora havia manifestado à empre gada malintencionada que uma infidelidade do marido seria o pior que poderia lhe acontecer Tampouco lhes terá escapado as duas importantes analogias com a ação sintomática por nós analisada tanto no esclarecimento de seu sentido ou intenção como na relação com um ele mento inconsciente Naturalmente isso não responde todas as pergun tas que esse caso suscitou Tratase antes de um caso patológico repleto de outros problemas tanto daqueles para os quais ainda não houve solução como daqueles para cuja solução as circunstâncias particulares não se mostraram favoráveis Por exemplo por que essa se nhora que tem um casamento feliz sucumbe a uma paixão pelo genro e por que o alívio que seria igual mente possível de outra maneira se apresenta sob a forma de um tal espelhamento de uma projeção de sua própria situação sobre o marido Não creiam os senho res que é ocioso e leviano levantar tais perguntas Já dispomos de bom material para dar a elas uma resposta possível A senhora se encontra naquela idade crítica que traz consigo uma indesejada e súbita intensificação do desejo sexual feminino isso em si já pode constituir explicação suficiente Ou talvez se deva acrescentar aí o fato de há vários anos o bom e fiel marido não mais dispor da capacidade de desempenho sexual de que a bem conservada senhora necessita para sua satisfação 339 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES A experiência nos mostrou que precisamente homens assim cuja fidelidade se faz então natural distinguem se por uma particular ternura e por uma tolerância incomum para com os problemas nervosos da esposa Pode também não ser indiferente o fato de o objeto des sa paixão patogênica ser justamente o jovem marido da filha Uma forte ligação erótica com esta que em última instância remete à constituição sexual da mãe com fre quência encontra meios de prolongarse assim transfor mada Nesse contexto talvez eu possa lembrar aos se nhores que a relação entre sogra e genro sempre foi tida pelos seres humanos como particularmente delicada tendo constituído tabu e ensejado poderosas proibições e evitamentos entre povos primitivos1 É comum que tanto no aspecto positivo como no negativo ela ultra passe a medida do culturalmente desejável Qual des ses três fatores atuou em nosso caso ou se houve aí um acúmulo de todos eles isso não sei dizer mas apenas porque não me foi permitido avançar além da segunda sessão na análise do caso Noto agora senhores que falei de coisas para as quais seu entendimento ainda não está preparado Fiz isso para proceder à comparação entre psiquiatria e psi canálise Mas uma coisa posso perguntar desde já os se nhores perceberam alguma contradição entre as duas A psiquiatria não aplica os meios técnicos da psicanálise ela prescinde de vincular o que quer que seja ao conteú do da ideia delirante e apontando para a hereditariedade 1 Cf Totem e tabu 19123 340 16 PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA nos fornece uma etiologia bastante genérica e distante em vez de primeiramente indicar as causas mais especí ficas e próximas Há aí contudo uma contradição uma oposição Não se trata antes de uma complementação O fator hereditário contradiz o significado da vivência ou ao contrário ambos se juntam da forma mais eficaz Os senhores concordarão em que não há na essência do trabalho psiquiátrico nada que poderia se opor à pesqui sa psicanalítica Logo são os psiquiatras que se opõem à psicanálise e não a psiquiatria A psicanálise está para a psiquiatria assim como a histologia para a anatomia uma estuda a forma exterior dos órgãos ao passo que a outra se dedica ao estudo de sua constituição a partir dos tecidos e células Não se pode conceber uma contra dição entre estudos que dão continuidade um ao outro Os senhores sabem que hoje a anatomia é considerada a base de uma medicina científica mas houve época em que era proibida de dissecar cadáveres a fim de conhe cer a constituição interior do corpo humano da mesma forma hoje parece mal visto que se pratique a psicanálise com o intuito de investigar o mecanismo interno da vida psíquica É de prever que uma época não muito distante nos trará a percepção de que uma psiquiatria dotada de profundidade científica é impossível sem um bom conhe cimento dos processos mais profundos inconscientes que se desenvolvem na vida psíquica Talvez a tão combatida psicanálise tenha amigos entre os senhores que gostariam de vêla justificada também sob outro aspecto o terapêutico Sabese que a nossa terapia psiquiátrica até o momento não foi capaz 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES de exercer influência sobre as ideias delirantes Poderá fazêlo a psicanálise graças à compreensão que adquiriu desses sintomas Não meus senhores não pode contra esse mal ela é tão impotente quanto qualquer outra te rapia pelo menos até agora Conseguimos entender o que se passou no doente mas não temos como fazer que o próprio doente o compreenda Já disse que não pude avançar além dos primeiros passos na análise das ideias delirantes Pretenderão os senhores afirmar que por ter permanecido infrutífera a análise desses casos é conde nável Não creio Temos o direito e até mesmo o dever de levar adiante a pesquisa sem nos importar com sua utilidade imediata No fim não sabemos onde e quan do cada porção adicional do saber se transformará em capacidade também em capacidade terapêutica Se no tocante a todas as outras formas de adoecimento ner voso e psíquico a psicanálise se mostrasse tão infrutífe ra como no caso das ideias delirantes ainda assim ela es taria plenamente justificada como meio insubstituível de investigação científica É verdade que então não pode ríamos praticála o material humano com o qual apren demos que vive tem vontade própria e necessita de motivos para colaborar nesse trabalho nos voltaria as costas Por isso permitamme concluir hoje dizendo que há amplos grupos de perturbações nervosas em que efetivamente se deu a transformação de nosso melhor entendimento em capacidade terapêutica e que nessas enfermidades de difícil acesso por outros meios obte mos em determinadas condições êxitos que nada ficam a dever a outros sucessos no campo da medicina interna 342 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS Senhoras e senhores Em minha palestra anterior expliqueilhes que a psiquiatria clínica pouco se preo cupa com a forma de manifestação e o conteúdo do sin toma mas que justamente nisso intervém a psicanálise cuja primeira constatação é de que o sintoma possui um sentido e guarda relação com as vivências do enfermo O sentido dos sintomas neuróticos foi desvendado pela primeira vez por Josef Breuer mediante o estudo e a feliz resolução de um caso de histeria que ficou célebre 188o2 É correto que de forma independente tam bém Pierre Janet produziu a mesma comprovação per tence ao pesquisador francês aliás a primazia na lite ratura científica uma vez que Breuer só publicou suas observações uma década mais tarde 18935 na época de sua colaboração comigo De resto pode ser algo in diferente a procedência da descoberta porque os senho res sabem que toda descoberta é feita mais de uma vez e que nenhuma é feita de uma vez só O sucesso de todo modo não caminha lado a lado com o mérito a Amé rica não deve seu nome a Colombo Antes de Breuer e Janet o grande psiquiatra Leuret expressou a opinião de que mesmo os delírios dos doentes mentais have riam de ter um sentido reconhecível se soubéssemos traduzilos Confesso que durante longo tempo tive em altíssima conta o mérito de P Janet no esclarecimen to dos sintomas neuróticos porque ele os compreendia como idées inconscientes que dominavam os enfermos 343 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Mas J anet passou a se manifestar com excessiva reserva como se quisesse admitir que o inconsciente nada mais representava para ele que um expediente um modo de dizer une foçon de parler não pensando nele como algo real Desde então não mais compreendo suas explana ções apenas acho que ele empanou desnecessariamente seu grande mérito Portanto os sintomas neuróticos têm seu sentido tal como os atos falhos e os sonhos e como estes guar dam também relação com a vida das pessoas que os exibem Eu gostaria apenas de com alguns exemplos aproximar os senhores dessa importante descoberta Só posso afirmar que é assim em todos os casos não posso comproválo Todo aquele que sair em busca de expe riência própria se convencerá disso Por determinados motivos no entanto não vou extrair meus exemplos de casos de histeria mas de outra neurose muitíssimo curiosa e no fundo bastante próxima dela a respeito da qual vou dizerlhes algumas palavras introdutórias Essa neurose a chamada neurose obsessiva não é tão popular quanto a histeria já conhecida de longa data ela tampouco é se posso me exprimir assim tão estri dente comportandose mais como um assunto particu lar do doente renuncia quase por completo a manifes tações físicas e cria todos os seus sintomas no âmbito do psíquico A neurose obsessiva e a histeria são as formas de adoecimento neurótico em cujo estudo a psicanálise se baseou inicialmente e em cujo tratamento nossa tera pia tem seus triunfos Mas a neurose obsessiva em que não se vê aquele enigmático salto do psíquico ao físico 344 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS na verdade tornouse para nós graças ao empenho psi canalítico mais transparente e familiar do que a histeria e percebemos que ela mostra de maneira bem mais acen tuada certas características extremas da neurose A neurose obsessiva se manifesta quando os doentes são tomados por pensamentos nos quais eles próprios não têm nenhum interesse quando sentem impulsos que lhes parecem muito estranhos e são levados a ações cuja execução não lhes propicia nenhum prazer mas que é impossível deixarem de fazer Os pensamentos imagens obsessivas podem ser absurdos em si ou ape nas indiferentes para o indivíduo com frequência são ridículos e na totalidade dos casos o ponto de partida de uma atividade mental fatigante que exaure o enfer mo e à qual ele só se dedica muito a contragosto Contra a própria vontade ele se vê obrigado a refletir e especu lar como se estivesse ante a tarefa mais importante de sua vida Os impulsos que sente podem também causar uma impressão infantil e absurda mas na maioria dos casos encerram conteúdo dos mais terríveis como ten tações à prática de graves crimes o que faz com que o doente não apenas os renegue como estranhos mas também horrorizado fuja deles e se proteja de sua exe cução mediante proibições renúncias e restrições à pró pria liberdade No entanto eles nunca se concretizam nem mesmo uma única vez o resultado é sempre a vitória da fuga e da cautela O que o doente de fato rea liza as chamadas ações obsessivas são coisas bastante inofensivas e por certo insignificantes em geral repeti ções ornamentações cerimoniosas de atividades do dia 345 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES a dia mediante as quais porém esses afazeres necessá rios ir dormir lavarse fazer a toalete ir passear se tornam tarefas altamente trabalhosas e quase impos síveis Nas formas e nos casos individuais da neurose obsessiva as ideias doentias os impulsos e as ações não se misturam na mesma proporção a regra é isto sim que um ou outro desses fatores domine o quadro dando à enfermidade o seu nome mas o denominador comum de todas essas formas é inconfundível É certamente uma doença louca Creio que nem a mais extravagante fantasia psiquiátrica conseguiria cons truir algo desse tipo e se não pudéssemos encontrála todos os dias não acreditaríamos facilmente na sua exis tência Mas não pensem que ajudarão o paciente em al guma coisa ao tentar convencêlo a mudar de atitude a não entreter pensamentos tão bobos e ocuparse de algo sensato em vez de suas tolices Isso é o que ele próprio gostaria de fazer porque tem toda a clareza acerca da si tuação compartilha o juízo dos senhores a respeito dos sintomas obsessivos até os mostra aos senhores Só não tem como evitálos aquilo que se transforma em ação na neurose obsessiva é sustentado por uma energia que provavelmente não tem paralelo na vida psíquica nor mal O neurótico obsessivo pode apenas deslocar trocar substituir uma ideia tola por outra que de algum modo é mais atenuada proceder de uma cautela ou proibição a outra realizar um cerimonial em lugar de outro Ele pode deslocar a obsessão mas não eliminála A possi bilidade do deslocamento de todos os sintomas para algo bastante diverso de sua configuração original é uma ca 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS racterística central de sua enfermidade além disso cha ma a atenção em seu estado a acentuada separação que exibem os opostos polaridades que perpassam a vida psíquica Ao lado das obsessões de conteúdo positivo e negativo impõese também no âmbito intelectual uma dúvida que gradualmente corrói até mesmo aquilo que habitualmente se tem por certo O quadro geral caminha para uma indecisão uma falta de energia e uma restri ção da liberdade crescentes E no entanto o neurótico obsessivo é em sua origem um caráter bastante enér gico muitas vezes de extraordinária obstinação e em regra possuidor de dotes intelectuais acima da média Na maioria dos casos alcançou um desenvolvimento éti co elevado mostrase mais do que consciencioso e uma pessoa mais correta do que o habitual Os senhores bem podem imaginar que será necessário realizar ainda um belo trabalho até que tenhamos conseguido nos situar minimamente em meio a todo esse conjunto contraditó rio de características próprias e de sintomas No momen to nada almejamos senão poder compreender e interpre tar alguns dos sintomas dessa enfermidade Tendo em vista nossas discussões anteriores talvez os senhores queiram saber como a psiquiatria atual se comporta em relação aos problemas da neurose obsessi va No entanto esse é um capítulo pobre A psiquiatria dá nomes às diversas obsessões e nada mais diz a seu respeito Por outro lado enfatiza que os portadores de tais sintomas são degenerados Isso não satisfaz é na verdade um juízo de valor uma condenação em vez de explicação Devemos pensar então que pessoas desse 347 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES tipo apresentariam toda sorte de singularidades De fato acreditamos sim que as pessoas que desenvolvem tais sintomas hão de ser por natureza um tanto diferentes das demais Gostaríamos no entanto de perguntar são elas mais degeneradas que os outros doentes dos ner vos como os histéricos ou os acometidos de psicoses De novo evidentemente a caracterização é demasiado genérica Podese mesmo questionar se ela é justificada quando se sabe que sintomas assim aparecem também em pessoas notáveis dotadas de capacidade de desempenho elevada e significativa para o público em geral Graças à sua própria discrição pessoal e à mendacidade de suas biografias de hábito descobrimos pouco acerca da inti midade de nossas grandes figuras modelares mas acon tece de uma delas ser um fanático pela verdade como Émile Zola e aí ouvimos dele próprio o quanto sofreu a vida inteira com seus hábitos obsessivos singulares A psiquiatria criou aí o expediente de falar em dégé nérés superieurs Ótimo mas graças à psicanálise fica mos sabendo que se pode eliminar de forma duradoura esses sintomas obsessivos singulares e outros males assim como fazemos no caso das pessoas não degenera das Eu próprio já logrei fazêlo várias vezes Quero apenas comunicar aos senhores dois exem plos de análise de um sintoma obsessivo o primeiro proveniente de observação antiga mas que eu não seria capaz de substituir por outra melhor o segundo bem mais recente Restrinjome a esse pequeno número de exemplos porque ao relatálos será necessário que nos estendamos que contemplemos todos os detalhes 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS Uma senhora de quase trinta anos de idade que so fria de severa manifestação obsessiva e a quem eu talvez tivesse podido ajudar se um maldoso acaso não houves se arruinado meu trabalho talvez eu ainda lhes conte o que se passou realizava entre outras a seguinte e curiosa ação obsessiva muitas vezes ao dia Ela ia de seu quarto ao quarto vizinho postavase ali em local determinado junto da mesa que se erguia no centro do cômodo tocava a sineta para chamar a criada confiava lhe uma tarefa qualquer ou mesmo a dispensava sem nada solicitar e voltava por fim a seu quarto Não se tratava de sintoma patológico grave é verdade mas por certo suficiente para atiçar a curiosidade A explicação foi encontrada da maneira mais irreparável e irrepreen sível sem nenhuma contribuição por parte do médico De resto nem sei como poderia ter chegado a uma su posição qualquer sobre o sentido daquela ação obsessi va ou a uma indicação de como interpretála Toda vez que perguntava à enferma Por que a senhora faz isso Que sentido tem ela me respondia Não sei Um dia porém depois de eu ter conseguido resolver uma grande questão de princípios com que ela lutava a res posta lhe veio de súbito e ela me relatou o que havia de pertinente àquela ação obsessiva Mais de dez anos an tes havia se casado com um homem muito mais velho o qual na noite de núpcias se revelara impotente Na quela noite ele caminhara inúmeras vezes de seu quar to ao dela a fim de repetir a tentativa mas sempre sem sucesso Pela manhã ele dissera irritado Vou sentir vergonha da criada quando ela vier arrumar a cama 349 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Em seguida apanhou um frasco de tinta vermelha que por acaso se encontrava no quarto e verteu seu con teúdo no lençol mas não em um ponto em que seria de se esperar encontrar semelhante mancha De início não entendi o que aquela lembrança podia ter a ver com a ação obsessiva em questão porque só identifiquei coin cidências nas idas e vindas de um quarto a outro e na presença da criada Então a paciente me conduziu até a mesa do quarto ao lado e me fez ver uma grande man cha na toalha que revestia o tampo Explicoume tam bém que se posicionava em relação à mesa de tal manei ra que a criada uma vez convocada não tivesse como não ver a tal mancha Agora a relação íntima entre a cena posterior à noite de núpcias e a presente ação ob sessiva não deixava dúvidas mas restavam outras coisas a serem compreendidas Fica claro acima de tudo que a paciente se identifi ca com seu marido afinal ela o representa na medida em que seu caminhar de um quarto a outro o imita De vemos então admitir a fim de manter essa equivalência que ela substitui cama e lençol por mesa e toalha Isso pareceria arbitrário mas não foi em vão que estudamos o simbolismo dos sonhos Nesses é também muito fre quente encontrarmos uma mesa que deve ser interpreta da como cama Mesa e cama juntas representam o casa mento é fácil pois que uma seja substituída pela outra A prova de que a ação obsessiva possui um sentido já estaria dada ela parece uma representação uma repeti ção daquela cena significativa Mas não precisamos nos deter nessa aparência Se examinarmos as duas situações 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS em maior profundidade é provável que encontremos a chave para algo mais para a intenção da ação obsessiva Seu cerne está evidentemente na convocação da criada a quem a mulher exibe a mancha em contradição com aquela afirmação do marido Vou sentir vergonha da criada Ele portanto em cujo papel se encontra a esposa não sente vergonha da criada a mancha está assim no lugar correto Vemos portanto que a mulher não apenas repete a cena mas também lhe dá continui dade e a corrige tornaa certa Com isso corrige tam bém aquilo que na noite de núpcias lhe foi tão penoso tornando necessário o recurso ao frasco de tinta a im potência Assim a ação obsessiva diz Não não é ver dade Ele não precisou sentir vergonha da criada não era impotente À maneira de um sonho a ação obses siva apresenta em uma ação presente esse desejo como realizado Ela serve ao propósito de elevar o homem aci ma de seu infortúnio de então Concorda com isso tudo o mais que eu poderia contar aos senhores acerca dessa mulher Ou melhor dizendo tudo o mais que sabemos dela nos mostra o caminho para essa interpretação da ação obsessiva em si incompreensível Há anos essa senhora vive separada e se debate com a intenção de se separar judicialmen te do marido Nem de longe porém está livre dele Vêse obrigada a permanecerlhe fiel e se recolhe por completo do mundo para não cair em tentação Em sua fantasia ela o perdoa e engrandece O segredo mais profundo de sua enfermidade é que por meio dela essa senhora protege o marido da maledicência justifica o 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES fato de morar separada dele e lhe possibilita uma con fortável vida solitária Assim a análise de uma inofen siva ação obsessiva nos conduz por via direta ao cerne mais íntimo de um caso patológico ao mesmo tempo em que nos revela uma porção nada desprezível do se gredo da própria neurose obsessiva Vamos nos deter um pouco mais nesse exemplo pois ele reúne condições que não podemos exigir normalmente de todos os ca sos Nele a interpretação do sintoma foi encontrada de súbito sem qualquer orientação ou interferência do analista e ela decorreu da relação com uma experiência vivida não como de costume em um período esque cido da infância e sim na vida adulta da enferma que a conservou indelével na lembrança Todas as objeções que a crítica costuma em geral dirigir contra nossas in terpretações de sintomas não se aplicam a esse caso em especial Infelizmente nem sempre as condições nos são tão favoráveis Mais uma coisa Não chamou a atenção dos senho res de que modo essa ação obsessiva insignificante conduziunos à intimidade da paciente Para uma mu lher não pode haver coisa mais íntima a relatar do que a história de sua noite de núpcias Há de ser coincidência desprovida de maior importância o fato de termos che gado à intimidade da vida sexual É possível decerto que isso seja apenas consequência da escolha que fiz desta vez Não julguemos a questão com pressa dema siada Em vez disso passemos ao exemplo seguinte que é de um tipo bem diferente um modelo de um gênero muito comum o cerimonial que precede o sono 32 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS Uma moça de dezenove anos bem constituída e in teligente filha única de pais que ela supera em cultura e vivacidade intelectual foi uma criança travessa e pe tulante tendo se transformado no curso de anos mais recentes sem nenhuma interferência externa visível em uma doente dos nervos Bastante suscetível a se irritar com a mãe está sempre insatisfeita deprimida tende à indecisão e à dúvida e por fim confessa já não ser capaz de ir sozinha a praças e ruas maiores Não vamos nos ocupar grandemente de seu complicado estado patológi co que reclama no mínimo dois diagnósticos agora fobia e neurose obsessiva e sim nos deter no fato de que essa moça desenvolveu também todo um cerimonial a ser cumprido na hora de ir dormir um cerimonial que acarreta sofrimento a seus pais Em certo sentido pode se dizer que toda pessoa normal realiza seu cerimonial na hora de dormir ou que conta com o estabelecimen to de certas condições cuja ausência a impede de ador mecer impomos à transição do estado de vigília para o sono certas formas que repetimos toda noite da mesma maneira Mas tudo que condiciona o sono de uma pessoa saudável possui explicação racional se as circunstâncias externas tornam necessária alguma mudança a adapta ção a ela se dá com facilidade e sem perda de tempo O cerimonial patológico no entanto é inflexível ele é ca paz de se impor a um custo altíssimo de se revestir de uma justificativa perfeitamente racional e a um exame superficial parece afastarse da normalidade apenas por certo cuidado exagerado Visto mais de perto porém dá a perceber que esse seu revestimento não convence 353 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES que suas demandas abrangem medidas muito além da justificativa racional bem como outras que a contrariam diretamente N assa paciente alega como motivo para seus cuidados noturnos o fato de precisar de silêncio para poder dormir e de portanto ter de eliminar todas as fontes de ruído Com essa intenção ela faz duas coi sas interrompe o funcionamento do grande relógio que tem em seu quarto retira todos os demais relógios não suportando nem mesmo seu minúsculo relógio de pulso sobre o criadomudo reúne sobre a escrivaninha vasos com flores e vasos em geral de maneira que não pos sam cair e se quebrar durante a noite perturbandolhe o sono Ela sabe que tais medidas encontram justificati va apenas aparente em sua lei do silêncio O tiquetaque do relógio de pulso seria inaudível ainda que ele per manecesse sobre o criadomudo e nós todos sabemos por experiência própria que o tiquetaque constante dos pêndulos de um relógio de parede não perturba o sono mas produz antes o efeito de um sonífero Ela admite também que o receio de que deixados em seus devidos lugares vasos de flores e de plantas poderiam cair e se quebrar durante a noite é algo sem probabilidade Ou tras medidas pertinentes ao cerimonial de nossa pacien te não se apoiam nessa lei do silêncio A exigência por exemplo de que a porta que separa seu quarto do quarto dos pais permaneça semiaberta do que ela se assegura inserindo objetos diversos no vão da referida porta pa rece pelo contrário ativar uma fonte de ruídos pertur badores As principais medidas porém dizem respeito a sua própria cama O travesseiro maior não pode tocar 354 17 O SENTIDO 005 SINTOMAS a madeira do espaldar da cama o menor sobre o qual ela pousa a cabeça precisa ser disposto sobre o maior de modo a formar um losango então ela deita a cabe ça exatamente sobre a diagonal maior do losango O edredom de penas a que chamamos Duchent na Áus tria precisa ser sacudido de forma a ficar bem alto nos pés uma elevação que depois ela jamais deixa de afofar para melhor distribuíla Permitamme ignorar os demais pormenores com frequência detalhes minúsculos desse cerimonial eles não nos ensinariam nada de novo e nos afastariam de masiado de nosso propósito Atentem os senhores porém para o fato de que nada disso se realiza per feitamente É constante a preocupação com possíveis imperfeições tudo precisa ser verificado repetido a dúvida marca ora uma ora outra das medidas de verifi cação e o resultado é que uma ou duas horas se passam ao longo das quais a moça não consegue dormir nem permite que os pais intimidados o façam A análise desses tormentos não transcorreu com a mesma facilidade encontrada na ação obsessiva da pa ciente anterior Precisei sugerir à moça alusões e inter pretações a cada vez refutadas com um decidido não ou então recebidas com dúvida desdenhosa Mas a essa primeira reação negativa seguiuse um período no qual a paciente se ocupou de considerar ela própria as possi bilidades apresentadas estabelecendo um conjunto de associações com elas recuperando lembranças fazendo conexões até aceitar todas as interpretações como re sultado de seu próprio trabalho Enquanto fazia isso ela 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES foi deixando de tomar suas medidas obsessivas e antes ainda do final do tratamento já abrira mão por com pleto de executar todo aquele cerimonial É preciso que os senhores saibam também que o trabalho analítico da forma como nós o realizamos hoje não contempla o trabalho continuado em um sintoma isolado até que o tenhamos esclarecido Somos antes obrigados a volta e meia abandonar um tema na certeza de que outras conexões nos conduzirão de volta a ele A interpretação de um sintoma que vou agora comunicar aos senhores constituise portanto de uma síntese de resultados cuja obtenção interrompida por outros trabalhos estendeu se por semanas e meses Pouco a pouco nossa paciente compreende que foi na qualidade de símbolo da genitália feminina que ela baniu o relógio de seus preparativos para a noite O relógio ao qual em geral atribuímos também outros significados simbólicos adquiriu aqui o papel genital graças a sua relação com processos periódicos e inter valos regulares Mulheres se gabam da regularidade de sua menstruação comparandoa a um relógio A angús tia de nossa paciente todavia se voltava com particu lar ênfase contra o tiquetaque do relógio que poderia perturbar seu sono O tiquetaque do relógio deve ser equiparado ao pulsar do clitóris quando da excitação sexual De fato essa sensação que então lhe é emba raçosa já a acordara repetidas vezes e agora esse medo da ereção se manifesta na regra de que todo relógio em funcionamento deve ser afastado durante a noite Vasos de flores e de plantas em geral são também como todo 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS recipiente símbolos femininos O cuidado para que não caiam e se quebrem durante a noite não deixa portanto de ter um sentido Nós conhecemos o costume bastan te disseminado da quebra de recipientes ou pratos por ocasião de noivados Cada um dos homens presentes se apropria de um fragmento o que pode ser entendido como renúncia a suas pretensões à noiva numa regula ção matrimonial anterior à monogamia No tocante a essa parte do seu cerimonial a paciente contribuiu tam bém com uma lembrança e várias associações Quando criança ela certa vez caíra com um recipiente de vidro ou barro na mão cortara um dedo e sangrara profusa mente Ao crescer e tomar conhecimento dos fatos da vida sexual estabeleceuse nela o temor ante a ideia de não sangrar na noite de núpcias e portanto de não se mostrar virgem Suas precauções relativas à possível quebra dos vasos significam pois um repúdio de todo o complexo relacionado à virgindade e ao sangramento quando da primeira relação sexual ou seja um re púdio tanto da angústia de sangrar como daquela con trária a de não sangrar Com a prevenção de eventuais ruídos como alegava ela tais medidas guardavam ape nas uma relação longínqua O sentido central de todo esse seu cerimonial a pa ciente acabou por revelar certo dia em que de súbito compreendeu a norma segundo a qual seu travessei ro não podia tocar a cabeceira da cama O travesseiro sempre fora para ela segundo ela própria admitiu uma mulher ao passo que a cabeceira ereta de madeira era um homem O que ela queria portanto e de forma 357 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES mágica permitimonos acrescentar era separar ho mem de mulher isto é apartar os pais não deixar que consumassem sua relação conjugal Em anos passados anteriores à instituição de seu cerimonial ela buscara atingir esse mesmo objetivo de maneira mais direta Fingindo sentir medo ou explorando uma tendência ao medo ela não permitia que a porta que ligava o quarto dos pais ao seu fosse fechada Era uma regra que ain da vigorava em seu cerimonial atual Dessa forma ela criava uma oportunidade para se pôr à escuta dos pais expediente que lhe rendeu uma insônia que durou me ses Não satisfeita com tal perturbação impingida aos pais ela vez por outra conseguia também permissão para dormir na cama deles entre o pai e a mãe Tra vesseiro e cabeceira de madeira efetivamente não podiam então se encontrar Por fim quando já estava tão crescida que lhe era fisicamente incômodo deitarse na cama entre os pais ela conseguiu ainda que a mãe trocasse de lugar com ela abrindo mão do próprio pos to ao lado do marido Essa situação com certeza serviu de ponto de partida para fantasias cuja repercussão se faz sentir em seu cerimonial Se o travesseiro era uma mulher sacudir o edredom até que todas as penas se acumulassem nos pés criando ali um inchaço tinha também um sentido significava engravidar a mulher Mas ela não perdia a oportunidade de acabar com aquela gravidez porque vivera duran te anos com receio de que a atividade sexual dos pais tivesse por consequência outro filho presenteandoa com um concorrente Por outro lado se o travesseiro 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS maior era uma mulher a mãe o menor só podia repre sentar a filha Por que esse travesseiro precisava formar um losango com o maior e por que a cabeça da paciente tinha de repousar precisamente sobre a linha da diago nal maior Não foi difícil lembrar a ela que o losango era o emblema encontrado nos muros simbolizando o órgão sexual feminino aberto Assim ela própria re presentava o papel do homem do pai com sua cabeça a substituir o membro masculino cf o simbolismo da cabeça na castração Coisas chocantes dirão os senhores assombra vam a mente dessa moça virgem Eu admito mas não se esqueçam de que não inventei essas coisas apenas as interpretei Um cerimonial desses antes de dormir é também singular e os senhores não deixarão de perce ber a correspondência entre o cerimonial e as fantasias reveladas pela interpretação Mais importante porém é notarem que no cerimonial não se sedimenta uma só fantasia mas bom número delas e no entanto em al gum lugar têm seu ponto nodal E também que as pres crições do cerimonial reproduzem os desejos sexuais ora positiva ora negativamente servindo em parte como representação em parte como defesa contra eles Poderíamos extrair ainda mais coisas da análise des se cerimonial caso estabelecêssemos a vinculação cor reta dele com os demais sintomas da enferma Nosso caminho porém não nos conduz nessa direção Indico aos senhores apenas que a moça em questão é presa de uma ligação erótica com o pai que data da mais tenra infância Talvez por isso ela se comporte de forma tão 359 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES inamistosa em relação à mãe Não podemos ignorar que mais uma vez a análise de um sintoma nos levou à vida sexual da enferma Talvez nos espantemos cada vez menos com isso à medida que adquirimos com preensão cada vez maior do sentido e da intenção dos sintomas neuróticos Portanto mostrei aos senhores em dois exemplos escolhidos que os sintomas neuróticos tanto quanto os atos falhos e os sonhos possuem um sentido e guar dam íntima relação com a vivência dos pacientes Posso acalentar a esperança de que os senhores com base em dois exemplos acreditem nessa afirmação de suma im portância Não Mas podem os senhores exigir que eu prossiga lhes dando exemplos até que se declarem con vencidos Também não porque dado o nível de deta lhamento com que trato cada caso eu precisaria dedicar um semestre inteiro de cinco horas semanais a esse úni co tópico da teoria das neuroses Contentome assim em dar aos senhores apenas uma amostra a sustentar minha afirmação remetendoos de resto às comuni cações disponíveis na literatura científica às clássicas interpretações de sintomas no primeiro caso de Breuer histeria aos esclarecimentos surpreendentes de sinto mas bastante obscuros na chamada dementia praecox de autoria de C G Jung na época em que esse pesqui sador era apenas psicanalista e ainda não se pretendia profeta e a todos os trabalhos que desde então povoam nossas revistas Neste exato momento não há carência entre nós de tais investigações A análise a interpreta ção e a tradução dos sintomas neuróticos atraiu os psi 17 O SENTIDO OOS SINTOMAS canalistas de tal maneira que de início eles passaram a negligenciar os demais problemas da neurose Quem fizer esse esforço ficará impressionado com a riqueza do material comprobatório Mas deparará tam bém com uma dificuldade Como vimos o sentido de um sintoma guarda relação com as vivências do doente Quanto mais individualizada a construção do sintoma tanto maior será nossa esperança de estabelecer tal rela ção A tarefa que se coloca portanto é a de encontrar para uma ideia sem sentido e uma ação despropositada aquela situação passada em relação à qual essa ideia se justifica e a ação revela propósito pertinente A ação ob sessiva de nossa paciente que corria para a mesa e ralha va com a criada é um modelo desse tipo de sintoma Mas existem e são muito frequentes sintomas de natureza bem diversa É preciso denominálos sintomas típicos da enfermidade eles são mais ou menos iguais em todos os casos neles desaparecem as diferenças individuais ou pelo menos elas se reduzem de tal maneira que se torna difícil juntálas à vivência individual do doente e relacionáIas com situações específicas vividas por ele Voltemos nosso olhar mais uma vez para a neurose ob sessiva Já o cerimonial do sono de nossa segunda pa ciente tem em si muito de típico mas ele possui também traços individuais suficientes para possibilitar a chamada interpretação histórica Todos aqueles que padecem de neurose contudo apresentam a tendência a se repetir a ritmar afazeres e isolálos de outros A maioria deles se lava um número exagerado de vezes Os doentes que so frem de agorafobia topofobia claustrofobia que já não 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES incluímos entre as neuroses obsessivas mas designamos como histeria de angústia exibem um quadro clíni co que muitas vezes repete com exaustiva monotonia os mesmos traços Eles temem espaços fechados grandes praças abertas ruas ou alamedas compridas Sentem se protegidos quando acompanhados por conhecidos ou quando seguidos por um carro etc Sobre esse pano de fundo homogêneo porém cada doente isolado exibe condições individuais humores por assim dizer que se contradizem a cada caso Alguns temem apenas ruas estreitas outros ruas largas alguns só conseguem caminhar por ruas em que há pouca gente outros ape nas por ruas em que há muita gente Também a histeria a despeito da riqueza em traços individuais que revela é abundante em sintomas comuns típicos que parecem resistir a uma fácil remissão histórica Não se esqueçam de que são esses sintomas típicos que nos orientam na definição do diagnóstico Se em um caso de histeria lo gramos remontar um sintoma típico a uma vivência ou uma cadeia de vivências similares por exemplo um vomitar histérico a uma série de impressões de nojo ficamos confusos se a análise nos mostra em outro caso de vômito uma série inteiramente diversa de vivências supostamente atuantes Logo parece que todos os histé ricos precisariam por razões desconhecidas manifestar vômitos e os motivos históricos depreendidos pela aná lise seriam apenas pretextos utilizados por essa neces sidade interior quando eles porventura se apresentam De modo que rapidamente chegamos à triste per cepção de que sim podemos esclarecer de forma satis 17 O SENTIDO DOS SINTOMAS fatória o sentido de cada sintoma neurótico individual mas nossa arte nos abandona quando se trata dos sin tomas típicos bem mais frequentes Acrescentese a isso o fato de que nem sequer apresentei ainda aos se nhores todas as dificuldades que se verificam na bus ca coerente da interpretação histórica de um sintoma E não pretendo fazêlo pois se é minha intenção não embelezar ou ocultar nada tampouco devo desorientá los e confundilos já no início de nosso estudo É cer to que apenas começamos a compreender o significado dos sintomas mas nosso desejo é reter o conhecimento adquirido e avançar passo a passo rumo ao domínio do que ainda não entendemos Com a seguinte reflexão busco oferecer um consolo aos senhores não há por que supor a existência de uma diferença fundamental entre um tipo e outro de sintoma Se os sintomas individuais dependem tão claramente das vivências do doente res ta a possibilidade de que os sintomas típicos remontem a vivências específicas típicas em si mesmas e comuns a todos Outros traços recorrentes na neurose podem constituir reações gerais que são impostas aos doentes pela natureza da alteração patológica como as repeti ções e as dúvidas da neurose obsessiva Em suma não há razão para o desânimo prematuro logo veremos o que é possível apurar Também no estudo dos sonhos deparamos com uma dificuldade muito parecida Não pude lidar com ela em nossas discussões anteriores sobre o sonho O conteúdo manifesto dos sonhos é também altamente diverso em sua individualidade e mostramos em detalhes o que a 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES análise depreende desse conteúdo Contudo há sonhos que às vezes chamamos igualmente de típicos sonhos de conteúdo uniforme que todas as pessoas têm e que opõem as mesmas dificuldades à interpretação Tratase daqueles sonhos em que estamos caindo voando flu tuando nadando sonhos em que nos vemos inibidos ou nus e outros sonhos de angústia os quais dependendo do sonhador resultam em uma ou outra interpretação sem que encontremos uma explicação para sua mono tonia e sua ocorrência típica Também no caso desses sonhos observamos um pano de fundo comum anima do por variáveis individuais e é provável que também eles sem coação mediante a ampliação de nosso enten dimento se deixem inserir na compreensão da vida oní rica que adquirimos a partir dos outros sonhos 18 A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE Senhoras e senhores Na última vez eu lhes disse que deveríamos continuar nosso trabalho a partir de nossas descobertas não de nossas dúvidas Ainda não mencio namos duas das mais interessantes conclusões decorren tes das duas análises apresentadas como modelos Vejamos a primeira delas A impressão que nos dão as duas pacientes é a de que teriam se fixado em deter minada porção de seu passado não saberiam como se libertar disso e estariam portanto afastadas do pre sente e do futuro Estão confinadas em sua doença tal 18 A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE como antigamente as pessoas costumavam recolherse a um mosteiro para suportar um difícil destino Para nossa primeira paciente o casamento efetivamente des feito com o marido é que causa esse infortúnio Através dos sintomas ela dá prosseguimento ao processo com o marido aprendemos a compreender as vozes que o defendem desculpam elevam e se queixam de havêlo perdido Apesar de jovem e desejável para outros ho mens ela toma todas as precauções reais e imaginárias mágicas para conservar a fidelidade a ele Não se mos tra aos olhos de desconhecidos e negligencia a própria aparência não consegue se levantar com rapidez da poltrona onde está recusase a assinar o próprio nome e não é capaz de presentear ninguém pelo motivo de que ninguém deve obter alguma coisa dela No caso da segunda paciente a jovem é uma liga ção erótica com o pai estabelecida nos anos anteriores à puberdade que lhe produz efeito semelhante na vida Também ela tira daí a conclusão de que não pode se ca sar enquanto estiver tão doente É lícito imaginar que ficou tão doente para não ter de se casar e assim per manecer ao lado do pai Não podemos nos furtar à pergunta como de que maneira e por força de quais motivos uma pessoa assume postura tão singular e tão desvantajosa diante da vida Pressupondo que tal comportamento seja uma caracte rística geral da neurose e não uma peculiaridade dessas duas enfermas Na realidade é mesmo um traço geral de grande importância prática de toda neurose A primeira paciente histérica de Breuer estava de forma semelhan 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES te fixada no tempo em que cuidava do pai gravemente doente Desde então a despeito de ter se restabelecido em certo sentido ela se apartou da vida permaneceu sau dável e capaz mas desviouse do destino normal das mu lheres Por intermédio da análise podemos inferir que cada um de nossos doentes se transportou de volta a cer to período de seu passado nos sintomas de sua enfermi dade e pelas consequências deles Na maioria dos casos escolheu para isso uma fase remota da vida um período da infância e até mesmo embora talvez pareça ridículo sua existência quando criança de peito A analogia mais próxima desse comportamento de nossos doentes oferecem as enfermidades que hoje a guerra faz surgir com frequência as chamadas neuroses traumáticas Por certo casos assim já existiam antes da guerra seguindose a desastres de trem e a outros terrí veis perigos mortais No fundo as neuroses traumáticas não são o mesmo que as neuroses espontâneas que cos tumamos examinar e tratar analiticamente ainda não logramos submetêlas a nossas concepções e espero ter oportunidade de deixar claro aos senhores o porquê dessa limitação Mas em um ponto podemos destacar uma concordância total as neuroses traumáticas dão nítidos sinais de que em sua base está uma fixação no momento do acidente traumático Nos sonhos os que Tratase do célebre caso de Anna 0 apresentado em Estudos sobre a histeria 18935 cf os estudos críticos de M Borch Jacobsen Secrets dAnna O ed inglesa Rememhering Anna 0 1996 e Les patients de Freud 2011 J66 18A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE dela sofrem revivem regularmente a situação traumá tica nos casos em que ocorrem ataques histéricos pas síveis de análise o que se descobre é que a esse ataque corresponde a completa transposição do doente para aquela situação É como se esses doentes jamais tives sem superado a situação traumática ou seja como se essa tarefa ainda se apresentasse diante deles atual e in tacta e nós tomamos essa concepção muito seriamente ela nos mostra o caminho para uma consideração dos processos psíquicos a que podemos chamar de econômi ca Com efeito a expressão traumática não tem ou tro sentido que não esse econômico Chamamos assim uma vivência que em curto espaço de tempo traz para a vida psíquica um tal incremento de estímulos que sua resolução ou elaboração não é possível da forma cos tumeira disso resultando inevitavelmente perturbações duradouras no funcionamento da energia Essa analogia nos leva a caracterizar como traumá ticas também as vivências em que nossos doentes dos nervos parecem ter se fixado Isso nos proporcionaria uma condição simples para o adoecimento neurótico A neurose equivaleria a um adoecimento traumático e nas ceria da incapacidade de dar conta de uma vivência car regada de um afeto muito intenso Assim dizia de fato a primeira formulação em que Breuer e eu 18935 prestá vamos conta de nossas observações em termos teóricos Um caso como o de nossa primeira paciente a jovem que se separou do marido harmonizase muito bem por essa concepção Ela não superou a não consuma ção de seu casamento e ficou presa a esse trauma Mas 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES já nosso segundo caso o da moça com fixação no pai nos mostra que tal formulação não é suficientemente abrangente Por um lado tal paixão da garotinha pelo pai é algo tão corriqueiro e tão frequentemente superado que a designação traumático perderia todo o seu va lor por outro a história da enferma nos ensina que essa primeira fixação erótica aconteceu aparentemente sem causar dano reaparecendo apenas vários anos depois em meio aos sintomas da neurose obsessiva Portanto nisso prevemos complicações um maior número de con dições para o adoecimento mas suspeitamos também que a abordagem que considera o trauma não precisa ser abandonada como errônea ela deverá ser incluída e su bordinada a alguma outra Aqui interrompemos de novo o caminho que to mamos No momento ele não nos conduz adiante e temos muitas outras coisas a aprender antes de poder prosseguilo corretamente Acerca do tema da fixação em determinado período do passado observemos ain da que esse fenômeno ultrapassa em muito os domínios da neurose Toda neurose contém uma tal fixação mas nem toda fixação conduz à neurose coincide com ela ou se produz a partir dela Um exemplo modelar de fixação afetiva no passado é o luto que envolve o mais comple to afastamento do presente e do futuro Mas mesmo o juízo de um leigo diferencia nitidamente o luto da neu rose Por outro lado existem neuroses que podem ser caracterizadas como uma forma patológica do luto Ocorre também de pessoas serem de tal forma pa ralisadas por um acontecimento traumático que abala 18 A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE os fundamentos de sua vida que perdem todo interesse no presente e no futuro mantendose numa duradoura ocupação psíquica com o passado Esses desafortuna dos todavia não se tornam necessariamente neuróti cos Portanto não superestimemos esse traço em parti cular na caracterização da neurose por mais regular e significativo que ele seja Passemos agora ao segundo resultado de nossas análises ao qual não precisaremos acrescentar nenhu ma restrição Falando de nossa primeira paciente infor mamos sobre o ato obsessivo carente de sentido que ela realizava e a lembrança íntima que relatou a propósi to desse ato depois examinamos a relação entre essas duas coisas e percebemos a partir dessa a intenção do ato obsessivo Contudo deixamos inteiramente de lado um fator que merece toda a nossa atenção Enquanto repetia seu ato obsessivo a paciente não sabia de sua vinculação com aquela vivência passada A conexão entre os dois permanecialhe oculta e ela tinha de res ponder de forma veraz que não sabia que impulsos a levavam a praticar semelhante ação Posteriormente sob a influência do trabalho terapêutico aconteceu que ela subitamente encontrou e pôde comunicar essa cone xão Mas ainda ignorava a intenção com que realizava a ação obsessiva ou seja a intenção de corrigir um tre cho doloroso de seu passado e pôr num plano mais alto o marido que amava Foram necessários muito tempo e bastante empenho até ela compreender e me confessar que só podia ter sido essa e nenhuma outra a força mo triz da ação obsessiva 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Tomados conjuntamente o vínculo com a cena após a infeliz noite de núpcias e o afetuoso motivo da pacien te resultam no chamamos sentido da ação obsessiva Mas tal sentido permaneceulhe desconhecido nas duas direções de onde e para quê enquanto ela execu tava a ação Ou seja nela atuavam processos psíquicos cujo efeito era ação obsessiva no estado psíquico nor mal ela percebia esse efeito mas as precondições psíqui cas desse efeito não chegavam ao conhecimento de sua consciência Ela se comportou da mesma forma que o indivíduo hipnotizado a quem Bernheim incumbiu de abrir um guardachuva cinco minutos após despertar na enfermaria de um hospital e que realizou essa ta refa após despertar mas não sabia dizer por que mo tivo o havia feito São fatos como esse que temos em vista quando falamos da existência de processos psíqui cos inconscientes Podemos desafiar quem quer que seja a prestar contas dele de uma maneira cientificamente mais correta e então abandonaremos de bom grado a suposição de tais processos Até lá contudo vamos nos ater a essa suposição tendo de rechaçar como in compreensível e com um resignado sacudir de ombros se alguém objetar que aqui o inconsciente nada signifi caria de real em termos científicos que seria um expe diente une façon de parler Algo irreal a produzir efeitos tão palpáveis e reais como uma ação obsessiva No fundo a situação que encontramos em nossa se gunda paciente é a mesma Ela criou a regra segundo a qual o travesseiro não podia tocar a cabeceira da cama e tem de obedecer a essa regra mas não sabe de onde 370 18 A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE procede o que significa e a que deve seu poder Se ela própria a vê com indiferença ou se lhe opõe resistên cia se se enfurece contra ela se pretende infringila nada disso importa quanto a seu cumprimento É preci so obedecer e em vão ela se pergunta por quê Nesses sintomas da neurose obsessiva nessas ideias e impul sos que surgem não se sabe de onde comportamse de maneira resistente a toda influência da vida psíquica de resto normal dando ao próprio doente a impressão de serem hóspedes poderosos oriundos de um mundo es tranho imortais que se intrometeram no torvelinho dos mortais nisso pois é necessário reconhecer que se encontra a indicação mais nítida de um domínio espe cial apartado do restante da vida psíquica Isso leva por um caminho inequívoco à convicção da existência do inconsciente na psique e é precisamente por isso que a psiquiatria clínica que só conhece uma psicologia da consciência não sabe o que fazer com eles a não ser declarálos sinais de um modo particular de degenera ção Naturalmente as ideias e impulsos obsessivos não são eles próprios inconscientes assim como tampou co a execução das ações obsessivas escapa à percepção consciente Não teriam se tornado sintomas se não hou vessem penetrado a consciência Mas suas precondições psíquicas que descortinamos pela análise os contextos em que os encaixamos através da interpretação são in conscientes pelo menos até que por meio do trabalho analítico nós os tornamos conscientes para o enfermo Considerem ademais que o estado de coisas que ve rificamos em nossos dois casos se confirma em relação a 371 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES todos os sintomas de todas as enfermidades neuróticas que sempre e em toda parte o sentido dos sintomas é desconhecido do doente que a análise demonstra com regularidade serem esses sintomas derivados de proces sos inconscientes mas que podem se tornar conscientes sob diversas condições favoráveis e tendo conside rado tudo isso os senhores compreenderão que na psi canálise não podemos prescindir do elemento psíquico inconsciente e que estamos habituados a operar com ele como sendo algo palpável aos sentidos Mas talvez en tendam também que nessa matéria pouca capacidade de julgar têm aqueles que conhecem o inconsciente ape nas como conceito que jamais conduziram uma análi se interpretaram sonhos ou encontraram sentido e in tenção nos sintomas neuróticos Dizendoo mais uma vez em vista de nossos propósitos a possibilidade de conferir sentido aos sintomas neuróticos por meio da interpretação analítica é prova inabalável da existência ou se preferirem da necessidade da suposição de processos psíquicos inconscientes Mas isso não é tudo Graças a uma segunda desco berta de Breuer que me parece até mais substancial e em que não teve colaboradores ficamos sabendo ainda mais sobre a relação entre o inconsciente e os sintomas neuróticos Não apenas que o sentido dos sintomas é via de regra inconsciente mas também que há uma re lação inseparável entre essa inconsciência e a possibili dade de existência dos sintomas Os senhores logo me compreenderão Acompanho Breuer na afirmação de que toda vez que deparamos com um sintoma estamos 372 18 A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE autorizados a concluir pela presença no doente de certos processos inconscientes que contêm o sentido desse sin toma Para que o sintoma ocorra no entanto é necessá rio também que esse sentido seja inconsciente Sintomas não são formados de processos conscientes tão logo os processos inconscientes em questão se tornam conscien tes o sintoma só pode desaparecer De súbito os se nhores percebem aí uma porta de acesso para a terapia um caminho para fazer com que sintomas desapareçam Seguindo esse caminho Breuer de fato restabeleceu sua paciente histérica isto é libertoua de seus sintomas Encontrou uma técnica capaz de levar à consciência os processos inconscientes da paciente que continham o sentido do sintoma e os sintomas desapareceram Essa descoberta de Breuer não resultou de uma es peculação e sim da observação bemsucedida possi bilitada pela cooperação da enferma Os senhores não devem agora se atormentar para entendêla buscando remontar essa descoberta a algo já conhecido cabe sim reconhecer aí um fato novo fundamental com a ajuda do qual muitas outras coisas se tornam explicá veis Permitamme assim repetir a mesma coisa em outras palavras A formação do sintoma é um substituto para algu ma outra coisa que não ocorreu Normalmente certos processos psíquicos teriam se desenvolvido a ponto de a consciência ter notícia deles Isso não aconteceu o sintoma se originou dos processos interrompidos per turbados de algum modo que deveriam permanecer in conscientes Ocorreu então algo assim como uma tro 373 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES ca quando consegue desfazêla a terapia dos sintomas neuróticos realiza sua tarefa A descoberta de Breuer constitui ainda hoje a base da terapia psicanalítica A tese de que os sintomas de saparecem quando suas precondições inconscientes são tornadas conscientes foi confirmada por toda pesquisa subsequente embora deparemos com as mais notáveis e inesperadas complicações ao tentar pôla em prática Nossa terapia atua transformando o inconsciente em consciente e só tem efeito na medida em que pode levar a cabo essa transformação Faço agora uma pequena digressão a fim de que os senhores não incorram no perigo de imaginar que é bastante fácil esse trabalho terapêutico Segundo nos sas explanações até o momento a neurose seria conse quência de uma espécie de ignorância de não saber de processos psíquicos acerca dos quais deveríamos saber Teríamos aí uma forte aproximação com conhecidas doutrinas socráticas segundo as quais até mesmo os vícios repousariam sobre a ignorância Em geral o mé dico experimentado na análise poderá adivinhar com muita facilidade que impulsos psíquicos permaneceram inconscientes para o paciente Não lhe deveria ser difí cil então restabelecer o doente comunicandolhe esse saber e libertandoo de sua própria ignorância Pelo menos uma parte do sentido inconsciente dos sintomas teria desse modo fácil resolução mas da outra parte da conexão dos sintomas com as vivências do doente o médico não tem como saber muito porque desconhece tais vivências precisa esperar até que o doente as recor 374 18 A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE de e relate Também para isso porém haveria em mui tos casos um substitutivo Podemos nos informar acer ca dessas vivências com parentes da pessoa enferma os quais muitas vezes estarão aptos a identificar entre elas as de atuação traumática e talvez possam até mesmo relatar vivências de que o doente nada sabe porque as teve nos primeiros anos de vida Reunindo esses dois procedimentos teríamos a perspectiva de corrigir em pouco tempo e sem grande esforço a ignorância patogê nica do doente Oxalá fosse assim Tivemos experiências nesse cam po para as quais não estávamos preparados no início Há saberes e saberes ou seja diversos tipos de saber e eles não se equivalem do ponto de vista psicológico Il y a Existem fogots et fogots lêse numa passagem de Moliere O saber do médico não é o mesmo do doen te nem pode surtir os mesmos efeitos Quando o mé dico mediante uma comunicação transmite seu saber ao doente isso não tem nenhuma consequência Não seria incorreto dizêlo dessa forma A consequência não é a eliminação dos sintomas e sim outra a de pôr em marcha a análise e seus primeiros indícios são mui tas vezes manifestações de desacordo do paciente O doente fica sabendo alguma coisa que até então não sa bia o sentido de seu sintoma e no entanto sabe o tão pouco quanto antes Assim descobrimos que há mais de um tipo de ignorância Certo aprofundamento Significa em linguagem figurada que nenhum feixe de lenha jàgot é igual ao outro da peça Le médecin malgré L ui ato r cena 5 375 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES de nossos conhecimentos psicológicos se faz necessário para que possamos mostrar no que consistem as dife renças Mas permanece correta a nossa tese de que os sintomas desaparecem a partir do saber acerca de seu sentido Basta acrescentarmos que esse saber deve se basear em alguma modificação interior do doente que pode ser provocada apenas por um trabalho psíquico com uma meta determinada Estamos aqui diante de problemas que logo serão reunidos numa dinâmica da formação de sintomas Caros senhores Tenho agora de lhes fazer uma per gunta o que lhes digo é demasiado obscuro e compli cado Não os confundo retirando ou restringindo tan tas vezes o que disse iniciando linhas de pensamento e abandonandoas em seguida Se assim for lamento Tenho forte aversão por simplificações feitas à custa da fidelidade à verdade e não me desgosta se receberam uma impressão plena da multiplicidade e complexidade de nosso objeto penso também que não faz mal se eu lhes disser mais sobre cada ponto do que podem apro veitar no momento Sei bem que em pensamento todo ouvinte ou leitor ajusta abrevia simplifica o que foi apresentado dele extraindo o que deseja guardar Até certa medida sem dúvida é correto que quanto maior a sobra maior ainda era a abundância Permitamme esperar que a despeito de todo o acessório os senhores tenham apreendido com clareza o essencial do que eu disse ou seja minhas formulações sobre o sentido dos sintomas sobre o inconsciente e sobre a relação entre ambos Os senhores decerto compreenderam também 18 A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE que nossos próximos esforços caminharão em duas direções trataremos de descobrir em primeiro lugar como as pessoas adoecem como chegam a essa atitude diante da vida que caracteriza a neurose o que configu ra um problema clínico e em segundo lugar como os sintomas patológicos se desenvolvem a partir das condi ções que dão origem à neurose o que é um problema da dinâmica psíquica Também para esses dois problemas há de haver em alguma parte um ponto de encontro Hoje não pretendo avançar mais em minha exposi ção mas como nosso tempo ainda não acabou penso em chamar a atenção dos senhores para outra caracte rística de nossas duas análises a qual de novo só mais adiante poderemos tratar de forma plena Refirome às lacunas de memória ou amnésias Os senhores ouviram de mim que a tarefa do tratamento psicanalítico pode ser expressa na fórmula converter em consciente todo elemento patogênico inconsciente Agora talvez se es pantem ao saber que essa fórmula pode ser substituída por outra preencher todas as lacunas na memória do doente eliminar suas amnésias O resultado seria o mesmo Às amnésias do neurótico atribuise pois rela ção importante com o surgimento de seus sintomas Se porém os senhores tomarem em consideração o caso de nossa primeira análise não julgarão justificada essa avaliação da amnésia A enferma não se esqueceu da cena à qual se vincula sua ação obsessiva pelo contrá rio ela a mantém viva na memória Ademais nenhum outro esquecimento está em jogo no surgimento desse sintoma Menos nítida mas de modo geral análoga é 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES a situação referente a nossa segunda paciente a moça do cerimonial obsessivo Com efeito tampouco ela se esqueceu de seu comportamento na primeira infância a insistência em manter aberta a porta entre o seu quarto e o quarto dos pais e o fato de ter expulsado a mãe de seu lugar no leito matrimonial Disso tudo ela se lembra com muita clareza ainda que hesitante e a contragosto A única coisa que podemos considerar notável é que mesmo ao executar inúmeras vezes sua ação obsessiva a primeira paciente não se tenha dado conta uma só Yet da semelhança com a vivência após a noite de núpcias e que essa lembrança tampouco tenha aparecido depois que ela foi diretamente solicitada a investigar a motiva ção do ato obsessivo O mesmo vale para a moça caso em que ademais o cerimonial e seus pretextos se refe rem a uma mesma situação repetida noite após noite Nos dois casos não há uma verdadeira amnésia uma perda da memória mas foi rompido um nexo que deve ria levar à reprodução ao ressurgimento na memória Uma tal perturbação da memória já basta para a neurose obsessiva na histeria é diferente Esta última neurose caracterizase na maioria das vezes por am nésias colossais Na análise de cada sintoma de histe ria somos conduzidos via de regra a uma cadeia de impressões de toda a vida que ao retornar são ex pressamente caracterizadas como esquecidas Essa ca deia remonta por um lado aos primeiríssimos anos de existência de tal forma que a amnésia histérica pode ser reconhecida como prolongamento imediato daquela amnésia infantil que oculta das pessoas normais o iní 18A FIXAÇÃO NO TRAUMA O INCONSCIENTE cio de sua vida psíquica Por outro lado descobrimos com espanto que também as experiências mais recentes vividas pelo doente podem sucumbir ao esquecimento e em particular as ocasiões em que a doença irrompeu ou se intensificou são corroídas quando não engolidas por completo pela amnésia De modo geral do qua dro completo de uma tal lembrança recente detalhes importantes desapareceram ou foram substituídos por falsificações da memória Chega mesmo a acontecer de novo com regularidade de pouco antes da conclu são de uma análise surgirem certas lembranças de algo recémvivido que lograram permanecer ocultas até esse momento deixando lacunas sensíveis no contexto Tais danos à capacidade da memória são como dis se características da histeria na qual aparecem tam bém como sintomas estados ataques histéricos que não deixam necessariamente pistas na memória Se na neurose obsessiva é diferente os senhores podem inferir daí que essas amnésias são uma característica psicológi ca da alteração histérica e não um traço geral das neu roses em si O significado dessa diferença é restringido pela observação que segue No sentido de um sinto ma reunimos duas coisas sua procedência e sua desti nação ou motivação ou seja as impressões e vivências que o acarretaram e o propósito a que serve A proce dência de um sintoma se reduz pois a impressões vin das de fora que já foram conscientes no passado mas que o esquecimento pode ter tornado inconscientes Mas a destinação de um sintoma sua tendência é sem pre um processo endopsíquico que pode haver se tor 379 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES nado consciente no início ou pode também jamais têlo sido tendo permanecido desde sempre no inconsciente Assim não é muito importante se a amnésia tomou con ta também da procedência das vivências em que baseia o sintoma como ocorre na histeria é a destinação do sintoma sua tendência que pode ter sido inconsciente desde o princípio que fundamenta sua dependência do inconsciente na neurose obsessiva em não menor grau que na histeria Com essa ênfase dada ao inconsciente na vida psí quica despertamos todavia os espíritos mais malignos da crítica contra a psicanálise Não se admirem nem creiam os senhores que a resistência contra nós se deve à compreensível dificuldade do inconsciente ou à relati va inacessibilidade das experiências que o demonstram Creio que essa resistência é de origem mais profunda No decorrer dos tempos a humanidade teve de tole rar dois grandes insultos a seu ingênuo amorpróprio por parte da ciência O primeiro quando descobriu que nossa Terra não é o centro do universo e sim uma ínfima partícula de um sistema cósmico cuja grandeza mal se pode imaginar Essa afronta se liga para nós ao nome de Copérnico embora já a ciência alexandrina ti vesse anunciado coisa semelhante O segundo quando a pesquisa biológica aniquilou a suposta prerrogativa humana na criação remetendo a descendência dos ho mens ao reino animal e apontando o caráter indelével de sua natureza animalesca Essa reavaliação ocorreu em nossos dias sob a influência de Darwin Wallace e de seus predecessores não sem enfrentar a mais veemente J80 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO oposição dos contemporâneos O terceiro e mais sen sível insulto no entanto a mania de grandeza huma na deve sofrer da pesquisa psicológica atual que busca provar ao Eu que ele não é nem mesmo senhor de sua própria casa mas tem de satisfazerse com parcas notí cias do que se passa inconscientemente na sua psique Nós psicanalistas não fomos os primeiros nem os úni cos a exortar ao autoexame mas parece que cabe a nós defendêlo com a máxima insistência e sustentálo com material empírico ao alcance de todos Daí a revolta ge ral contra a nossa ciência a ausência de toda e qualquer civilidade acadêmica e o fato de a oposição desfazerse de todos os freios da lógica imparcial além disso ti vemos de perturbar a paz deste mundo de outra forma ainda como os senhores logo saberão 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO Senhoras e senhores Para avançarmos na compreen são das neuroses necessitamos de novas observações tiradas da experiência Trataremos agora de duas delas ambas muito curiosas e na época em que foram feitas bastante surpreendentes É verdade que os senhores já estão preparados para elas em virtude de nossas discus sões do ano passado Vejamos a primeira Quando nos pomos a restabe lecer um doente a libertálo dos sintomas que o afli gem ele nos oferece uma resistência veemente tenaz 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES que persiste por toda a duração do tratamento Esse é um fato tão singular que não podemos esperar que te nha muito crédito É melhor nada dizer sobre isso aos parentes do doente pois eles sempre acham que se trata de uma desculpa para justificar a longa duração ou o fracasso do tratamento O doente produz todos os fe nômenos ligados a essa resistência sem reconhecêla como tal e já constitui um grande sucesso se o leva mos a adotar esse entendimento e contar com essa re sistência Pensem os senhores o doente que sofre tanto com seus sintomas e tanto faz sofrer com eles as pes soas próximas que se dispõe a tantos sacrifícios para se libertar deles dispendendo tempo dinheiro esforço e autossuperação esse doente no interesse de sua condi ção enferma se oporia àquele que o ajuda Como deve parecer improvável essa afirmação E no entanto as sim é e quando nos apontam essa improbabilidade só precisamos responder que se trata de uma situação que tem suas analogias todo aquele que sofrendo de uma dor de dente insuportável vai ao dentista terá querido segurar o braço que aproxima o alicate do dente doente A resistência dos doentes é bastante variada extre mamente refinada e muitas vezes difícil de reconhecer é proteiforme nas suas manifestações O médico tem de ser desconfiado permanecendo em guarda contra ela Na terapia psicanalítica utilizamos a técnica que os se nhores já conhecem proveniente da interpretação dos sonhos Fazemos com que o doente se ponha em um es tado de tranquila autoobservação sem refletir e nos informe tudo o que então lhe ocorre de percepções in 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO teriores sentimentos pensamentos lembranças na sequência mesmo em que vão surgindo nele Nós o advertimos também expressamente para que não ceda a nenhum motivo que o leve a fazer uma escolha ou ex clusão dentre suas associações seja por tratarse de coi sa muito desagradável ou indiscreta para ser expressa ou de algo muito insignificante não pertinente ao assunto ou absurdo que não seria necessário relatar Recomenda mos que siga apenas a superfície de sua consciência que abra mão de toda e qualquer crítica ao que encontrar e lhe confidenciamos que o sucesso do tratamento e sobretudo sua duração dependerá da escrupulosida de com que ele seguir essa regra técnica fundamental da análise Sabemos afinal pela técnica da interpreta ção dos sonhos que justamente as associações contra as quais se erguem dúvidas e objeções são via de regra as que contêm o material que conduz ao desvendamento do inconsciente Estabelecendo essa regra técnica fundamental con seguimos em primeiro lugar que ela se torne o alvo do ataque da resistência O doente busca de todas as ma neiras libertarse do que ela determina Ora ele afirma que nada lhe ocorre ora que são tantos os pensamentos que lhe vêm à mente que ele não consegue apreender nenhum Em seguida percebemos com aborrecido es panto que ele cedeu a uma e outra objeção crítica isso ele nos revela por meio das longas pausas que aparecem em sua fala Confessa então que há coisas que ele real mente não pode dizer de que sente vergonha e permite que essa motivação prevaleça sobre sua promessa Ou 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES que lhe ocorreu algo mas relativo a outra pessoa e não a si próprio e por isso ele o excluiu de sua comuni cação Ou ainda que o que acaba de lhe ocorrer é na verdade irrelevante tolo e absurdo demais por certo eu não posso ter querido dizer que ele se entregasse a pensamentos de tal ordem E assim prossegue o pacien te em incontáveis variações e precisamos lhe explicar que dizer tudo significa de fato dizer tudo É raro depararmos com um doente que não busque reservar alguma região para si próprio a fim de impedir que o tratamento tenha acesso a ela em particular Um deles que eu só podia considerar dos mais inteligentes silenciou durante semanas sobre um relacionamento amoroso e chamado a explicar a infração da regra sa grada defendeuse argumentando acreditar que aquela história em particular era assunto pessoal Naturalmen te o tratamento analítico não admite semelhante direi to de asilo Seria como em uma cidade como Viena proibir em caráter excepcional que prisões sejam efe tuadas numa praça como o Hoher Markt ou na catedral de Santo Estevão e depois esforçarse para capturar determinado malfeitor Ele jamais será encontrado em outra parte que não em seu local de asilo Uma vez de cidi abrir uma exceção a um homem para cujo trabalho isso era objetivamente muito importante já que seu ju ramento profissional o impedia de relatar certas coisas a terceiros Ele ficou satisfeito com o resultado eu não Decidi jamais repetir a tentativa em tais condições Neuróticos obsessivos são excepcionais em tornar quase inutilizável a regra técnica aplicandolhe sua 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO enorme escrupulosidade e suas dúvidas Pacientes que sofrem de histeria de angústia conseguem às vezes seguila ad absurdum fazendo associações tão distan ciadas daquilo que se busca que o ganho para a análi se é nenhum Mas não pretendo introduzir os senhores no manejo dessas dificuldades técnicas Basta dizer que de forma resoluta e persistente conseguimos enfim ar rancar da resistência certa medida de obediência à regra técnica fundamental e logo a resistência passa para ou tra região Surge como resistência intelectual põese a combater com argumentos apoderase das dificuldades e improbabilidades que o pensamento normal mas não treinado encontra nas teorias psicanalíticas Então ou vimos de uma só voz todas as críticas e objeções que na literatura científica são feitas em coro ao nosso redor É por isso que de tudo que nos gritam lá de fora nada nos soa desconhecido É uma verdadeira tempestade em copo dágua Mas o paciente é acessível à conversa ele quer muito nos fazer ensinálo instruílo contestá lo remetêlo à literatura em que poderá prosseguir a instrução Está disposto a se tornar um adepto da psi canálise mas sob a condição de que a análise o poupe Nós contudo reconhecemos nessa ânsia de saber uma tentativa de nos desviar de nossas tarefas especiais e a rejeitamos Do neurótico obsessivo há que esperar uma técnica de resistência especial Com frequência ele dei xa que a análise siga seu curso de forma desimpedida a fim de que ela possa sempre lançar uma luz cada vez mais clara sobre os enigmas de sua patologia até que por fim nos espantamos com o fato de a esse esclareci 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES mento não corresponder nenhuma diminuição dos sin tomas Então descobrimos que a resistência recolheuse à dúvida da neurose obsessiva posição a partir da qual agora nos desafia e com sucesso O doente diz a si mes mo algo como Tudo isso é muito bom e interessante Quero ir adiante Se fosse verdade mudaria bastante minha doença Mas não acredito nem um pouco que seja verdade e enquanto eu não acreditar não diz respeito à minha doença Essa atitude pode persistir por um longo tempo até que enfim nos aproximamos daquela posição de recolhimento e irrompe então a luta decisiva As resistências intelectuais não são as piores perma necemos sempre superiores em relação a elas Mas pa ciente também sabe permanecendo no âmbito da análi se produzir resistências cuja superação está entre nossas tarefas técnicas mais difíceis Em vez de se lembrar ele repete posturas e sentimentos de sua vida que mediante a chamada transferência podem ser usadas como re sistência contra o médico e o tratamento Tratandose de um homem ele em regra extrai esse material de seu relacionamento com o próprio pai em cujo lugar põe o médico opondo assim resistências provindas de seu desejo de autonomia pessoal e de juízo de sua ambição cuja meta primeira foi igualarse ao pai ou superálo de sua má vontade em arcar pela segunda vez na vida com o fardo da gratidão Aqui e ali temse a impressão de que no doente a intenção de desencaminhar o médico de fazêlo sentir sua própria impotência de triunfar so bre ele substitui por completo a intenção melhor de pôr fim à doença As mulheres são mestras em para fins de J86 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO resistência explorar uma transferência de caráter terno e erótico para a figura do médico Tendo essa afeição atingido certo patamar extinguese todo o interesse pela situação presente do tratamento todas as obriga ções com as quais ao iniciálo elas se comprometeram e tanto o ciúme jamais ausente como a amargura pela rejeição inevitável ainda que demonstrada de forma cuidadosa servirão para arruinar o entendimento pes soal com o médico e assim eliminar uma das mais po derosas forças motrizes da análise As resistências desse tipo não devem ser condena das unilateralmente Elas encerram tamanha quantida de do material mais importante proveniente do passado do doente e a trazem de volta de maneira tão convin cente que se transformam nos melhores suportes para a análise se uma técnica hábil souber lhes dar o rumo adequado Notável é apenas que esse material esteja de início sempre a serviço da resistência exibindo sua fa chada hostil ao tratamento Podese dizer também que são propriedades de caráter posturas do Eu mobilizadas para o combate às modificações almejadas Descobre se aí como essas propriedades de caráter se formaram em conexão com os requisitos da neurose e em reação às pretensões desta e identificamse traços desse ca ráter que em geral não se evidenciam ou não nessa proporção e que podemos designar como latentes Os senhores não devem ter a impressão de que é como se no surgimento dessas resistências divisássemos um perigo imprevisto para a atuação da análise Não sa bemos que tais resistências precisam se manifestar fi III TEORIA GERAL DAS NEUROSES 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO di que uma percepção aprofundada da dinâmica dessas afecções não era possível enquanto a empregasse O estado hipnótico sabia subtrair da percepção do médico precisamente a resistência Ele a empurrava para trás liberava certa área para o trabalho analítico e o conti nha então nas fronteiras dessa mesma área de maneira a tornarse impenetrável algo parecido com o que faz a dúvida na neurose obsessiva Por esse motivo pude afirmar que a verdadeira psicanálise teve início com a renúncia ao auxílio da hipnose Mas se a constatação da resistência tornouse tão importante devemos deixar espaço para cautelosa mente questionar se não somos demasiado levianos na suposição de resistências Talvez haja de fato casos de neurose em que as associações falham por outros mo tivos Talvez os argumentos contrários a nossos pres supostos mereçam realmente que lhes apreciemos o conteúdo e nesse caso cometemos uma injustiça ao des cartar tão confortavelmente como resistência a crítica intelectual que nos dirigem os analisandos Pois meus senhores não chegamos a nosso juízo levianamente Tivemos oportunidade de observar cada um desses pa cientes críticos no surgimento e após o desaparecimento de uma resistência Sim porque a resistência varia con tinuamente sua intensidade no curso de um tratamento Ela sempre se intensifica quando nos aproximamos de um tema novo atinge seu auge no ponto culminante da elaboração desse tema e depois torna a cair com sua resolução De resto a não ser que incorramos em par ticular inabilidade técnica nunca temos de lidar com 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES a extensão total da resistência que um paciente pode oferecer Pudemos nos convencer de que no curso da análise o mesmo paciente abandona e torna a assumir sua postura crítica inúmeras vezes Quando estamos a ponto de levar a sua consciência uma porção particular mente dolorosa de material inconsciente ele se mostra crítico ao extremo se antes compreendera e aceitara muitas coisas agora é como se essas aquisições tives sem sido removidas nesse seu anseio por uma oposição a qualquer preço ele chega mesmo a nos transmitir a impressão de um deficiente afetivo Se logramos ajudá lo na superação dessa nova resistência ele recupera sua compreensão e seu entendimento Sua crítica portanto não é uma função autônoma a ser respeitada por si só e sim um serviçal de suas posturas afetivas sob a dire ção de sua própria resistência Se não gosta de algo ele pode contestálo com muita perspicácia parecendo as sim bastante crítico mas se ao contrário alguma coisa lhe convém ele pode se mostrar bastante crédulo em relação a ela Talvez nós não sejamos muito diferentes disso talvez o analisando exiba com tanta nitidez essa dependência do intelecto da vida afetiva apenas porque na análise nós o colocamos em grande dificuldade De que maneira podemos então explicar por que o doente luta tão energicamente contra a remoção de seus sintomas e o restabelecimento da normalidade no cur so de seus processos psíquicos Dizemos a nós mesmos que percebemos aí forças poderosas a se opor a qualquer mudança de estado devem ser as mesmas que antes impuseram esse estado Na formação do sintoma deve 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO ter ocorrido algo que agora com base em nossa expe riência na resolução do sintoma podemos reconstruir Sabemos já pelas observações de Breuer que a existên cia do sintoma tem por pressuposto que algum processo psíquico não foi levado a cabo dentro da normalidade de modo a poder se tornar consciente O sintoma é um substituto para aquilo que não ocorreu Sabemos ago ra onde situar a atuação da força que supusemos Uma veemente oposição deve ter se erguido contra o avanço do processo psíquico questionável rumo à consciência razão pela qual ele permaneceu inconsciente E sendo inconsciente teve poder para formar um sintoma Du rante o tratamento analítico essa mesma oposição se dá novamente contra o esforço de conduzir o inconsciente ao consciente Isso é o que sentimos como resistência O processo patogênico que nos é demonstrado pela re sistência leva o nome de repressão Sobre esse processo da repressão temos de formar ideias mais precisas Ele é a precondição para a forma ção do sintoma mas é também algo único com o qual nada que conhecemos se parece Se tomamos como mo delo um impulso um processo psíquico que se empenha por tornarse ação sabemos que ele pode ser alvo de um rechaço a que chamamos rejeição ou condenação Isso lhe retira a energia de que ele dispõe tornandoo impotente mas ele pode persistir sob a forma de lem brança Todo o processo de decisão a seu respeito trans corre com o conhecimento do Eu Algo bem diferente se dá quando imaginamos esse mesmo impulso sujeito à repressão Nesse caso ele conservaria sua energia e 391 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES dele não restaria lembrança nenhuma além disso o processo da repressão se efetuaria sem ser percebido pelo Eu Essa comparação portanto não nos aproxima da natureza da repressão Vou expor aos senhores as únicas concepções teóri cas que se mostraram úteis na conformação mais espe cífica do conceito de repressão Para tanto é necessário sobretudo que avancemos do significado puramente descritivo para o significado sistemático da palavra in consciente isto é que nos decidamos por considerar o caráter consciente ou inconsciente de um processo psíquico apenas uma das propriedades desse processo e não necessariamente uma propriedade inequívoca Se um tal processo permaneceu inconsciente talvez esse afastamento da consciência seja apenas um sinal do des tino que ele experimentou e não o destino em si A fim de ilustrar esse destino suponhamos que todo processo psíquico mais adiante será necessário admitir aqui uma exceção exista primeiramente em um estágio ou fase inconsciente e que apenas a partir desta se trans forme em consciente assim como uma fotografia é de início um negativo que depois mediante sua transfor mação em positivo resulta em uma imagem Nem todo negativo porém precisa transformarse em positivo assim como tampouco é necessário que todo processo psíquico inconsciente se converta em consciente Mais vantajoso será nos expressarmos da seguinte maneira cada processo pertence em primeiro lugar ao sistema psíquico do inconsciente podendo sob determinadas circunstâncias passar para o sistema do consciente 392 19 RESISTtNCIA E REPRESSÃO A ideia mais crua desses sistemas a espacial é a mais confortável para nós Equiparemos pois o sistema do inconsciente a uma grande antecâmara na qual como entes individuais se agitam os impulsos psíquicos A essa antecâmara ligase outro cômodo mais apertado uma espécie de sala na qual se encontra também a consciência Mas na soleira da porta entre os dois espaços um guarda cumpre seu dever de inspecio nar cada impulso censurálo e não deixar que adentre a sala caso não lhe agrade Os senhores veem de ime diato que a diferença é pequena entre o guarda recha çar um impulso ainda diante da porta ou expulsálo da sala depois de ele já ter entrado É apenas uma questão de seu grau de vigilância e de o guarda reconhecer o impulso a tempo Atermonos a essa imagem nos per mitirá expandir nossa nomenclatura Os impulsos na antecâmara do inconsciente escapam ao olhar da cons ciência que afinal se encontra no cômodo ao lado de início eles têm de permanecer inconscientes Uma vez tendo avançado até a soleira da porta onde o guarda os rechaçou eles são incapazes de alcançar a consciência dizemos que foram reprimidos Contudo os impulsos que o guarda deixou passar tampouco se tornam neces sariamente conscientes isso eles só podem ser quando logram atrair para si os olhares da consciência Temos portanto boas razões para chamar esse segundo cômo do de sistema do préconsciente O tornarse consciente mantém seu sentido puramente descritivo O destino da repressão para um determinado impulso no entanto consiste em que o guarda não o deixa passar do sistema 393 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES do inconsciente para o do préconsciente É o mesmo guarda que encontramos sob a forma de resistência quando mediante o tratamento analítico buscamos anular a repressão Sei bem que os senhores dirão dessas concepções que elas são cruas e fantasiosas absolutamente inad missíveis numa exposição científica Sei que são cruas mais até sabemos que são incorretas e se não estamos muito enganados temos já à mão um substituto melhor para elas Se ainda assim elas seguirão parecendo tão fantasiosas aos senhores não sei dizer Por enquanto elas nos prestam o mesmo auxílio daquele homenzinho de Ampere a nadar na corrente elétrica não devemos desprezálas enquanto forem úteis à compreensão de nossas observações Mas gostaria de assegurar aos se nhores que essas suposições cruas as dos dois apo sentos do guarda na soleira da porta que separa um do outro e da consciência como espectadora no fundo do segundo aposento devem ser aproximações bastante avançadas ao estado de coisas real E gostaria também de ouvir dos senhores a admissão de que as nossas de signações inconsciente préconsciente consciente são bem menos prejudiciais e mais fáceis de justificar do que outras sugeridas ou em uso como subconsciente paraconsciente intraconsciente e outras Por isso mais importante para mim será os senhores me advertirem que uma tal organização do aparato psí quico como a que propusemos aqui para explicar os sin tomas neuróticos tem de possuir validade geral e forne cer também informação sobre o funcionamento normal 394 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO da psique Nisso naturalmente os senhores têm razão Neste momento não podemos seguir os desdobramentos dessa conclusão mas nosso interesse na psicologia da formação do sintoma há de experimentar um aumento extraordinário se houver a perspectiva de mediante o estudo das condições patológicas obter esclarecimento sobre a vida psíquica normal tão bem encoberta De resto não percebem os senhores em que se as senta nossa postulação dos dois sistemas da relação que possuem entre si e com o consciente O guarda entre o inconsciente e o préconsciente não é senão a censura aquela a que como vimos está sujeita a configuração tomada pelo sonho manifesto Os resíduos diurnos em que reconhecemos os instigadores do sonho são material préconsciente que no sono noturno sofreu a influência de desejos inconscientes e reprimidos em conjunto com os quais e graças a cuja energia logrou formar o sonho latente Sob o domínio do sistema in consciente esse material foi elaborado mediante condensação e deslocamento de uma forma des conhecida ou apenas excepcionalmente admissível na vida psíquica normal isto é no sistema préconsciente Essa diferença na forma de trabalho tornouse para nós característica de ambos os sistemas a relação do pré consciente com a consciência serviunos apenas como indicação de que pertence a um dos dois sistemas Pois o sonho não é mais um fenômeno patológico dada a condição do sono ele pode se manifestar em toda e qualquer pessoa saudável A suposição acerca da estru tura do aparato psíquico que nos permite compreender 395 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES tanto a formação do sonho como a dos sintomas neuró ticos tem direito indiscutível a ser levada em considera ção também para a vida psíquica normal Isso é tudo o que temos a dizer sobre a repressão neste momento Mas ela é apenas a precondição para a formação do sintoma Sabemos que este é um substituto de algo que foi impedido pela repressão Mas da repres são até o entendimento dessa formação substitutiva há ainda um longo caminho Desse outro lado do proble ma surgem questões vinculadas à nossa constatação da repressão que tipos de impulsos psíquicos estão sujei tos à repressão que forças a impõem e por que moti vos A esse respeito dispomos apenas de uma coisa até o momento quando da investigação da resistência dis semos que ela parte de forças do Eu de traços de caráter conhecidos e latentes São eles pois que se ocupam da repressão ou no mínimo têm participação nela Tudo o mais ainda nos é desconhecido Daqui em diante vem em nosso auxílio a segunda das observações tiradas da experiência mencionadas no início A partir da análise podemos dizer de forma geral qual a intenção do sintoma neurótico Tampouco isso será novidade para os senhores Já o demonstrei à luz de dois casos de neurose Mas realmente o que são dois casos Os senhores têm o direito de exigir que isso lhes seja demonstrado duzentas vezes um semnúmero de vezes O problema é que não posso fazêlo Mais uma vez deve entrar aqui a experiência própria ou a crença que nisso pode se valer do testemunho unânime de todos os psicanalistas 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO Os senhores se lembram de que nos dois casos cujos sintomas submetemos a investigação aprofundada a análise nos introduziu na intimidade da vida sexual dos pacientes No primeiro caso também reconhece mos com particular nitidez a intenção ou tendência do sintoma investigado no segundo talvez essa intenção estivesse algo encoberta por um fator a ser mencionado mais adiante Pois bem o que vimos nesses dois exem plos é o mesmo que nos mostrariam todos os outros casos submetidos a análise Ela sempre nos conduziria às experiências e desejos sexuais dos doentes e cons tataríamos então que seus sintomas servem à mesma intenção A intenção que assim se dá a conhecer é a sa tisfação de desejos sexuais os sintomas servem à satis fação sexual dos doentes são um sucedâneo para essa satisfação que lhes falta na vida Pensem na ação obsessiva de nossa primeira pacien te A mulher sente a falta do marido a quem ama in tensamente e com o qual não pode compartilhar a vida em razão das deficiências e fraquezas dele Ela precisa permanecer fiel a ele não pode pôr outro em seu lugar O sintoma obsessivo lhe dá aquilo pelo qual ela anseia eleva o marido nega e corrige suas fraquezas e acima de tudo a impotência No fundo esse sintoma é a rea lização de um desejo como no sonho e mais do que isso a realização erótica de um desejo o que o sonho nem sempre é De nossa segunda paciente os senhores puderam ao menos depreender que seu cerimonial pre tende impedir ou retardar o relacionamento sexual dos pais para que dele não resulte outro filho Por certo te 397 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES rão adivinhado também que o cerimonial pretende no fundo colocála no lugar da mãe De novo portanto eliminação de perturbações na satisfação sexual e reali zação dos próprios desejos sexuais Sobre a complicação insinuada logo falaremos Meus senhores eu gostaria de evitar a necessidade de posteriormente restringir a validez universal dessas afir mações razão pela qual chamo a atenção de todos para o fato de que tudo o que digo sobre repressão formação de sintoma e significado do sintoma ter sido extraído de três formas de neurose a histeria de angústia a his teria de conversão e a neurose obsessiva só valen do em princípio para essas formas Essas três afecções que costumamos agrupar como neuroses de transforência circunscrevem também o âmbito em que a terapia psi canalítica pode atuar As outras neuroses não foram tão bem estudadas pela psicanálise em relação a um grupo delas a impossibilidade de exercer influência terapêutica constituiu decerto um motivo para a negligência Não se esqueçam de que a psicanálise ainda é uma ciência mui to jovem que demanda muito empenho e tempo para a preparação e que não faz muito tempo era praticada por uma só pessoa Contudo em toda parte estamos em vias de avançar na compreensão dessas outras afecções que não constituem neuroses de transferência Espero poder ainda apresentar aos senhores as ampliações que nossas hipóteses e nossos resultados experimentaram na adequação a esse novo material e espero também po der mostrarlhes que esses novos estudos não levaram a contradições e sim ao estabelecimento de unidades 19 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO mais altas Se tudo o que aqui foi dito se aplica às três neuroses de transferência permitamme agora acentuar o valor dos sintomas com uma nova informação Com efeito uma investigação comparativa sobre os ensejos para o adoecimento leva a um resultado que pode ser ex presso na seguinte fórmula essas pessoas adoecem por algum tipo de frustração quando a realidade as priva da satisfação de seus desejos sexuais Os senhores percebem como essas duas conclusões se harmonizam Os sintomas devem ser propriamente entendidos portanto como sa tisfação substitutiva para o que faltou na vida Sem dúvida podese fazer ainda todo tipo de obje ção à tese de que os sintomas neuróticos são satisfações substitutivas de caráter sexual Duas delas pretendo discutir ainda hoje Se os senhores mesmos submeterem à investigação analítica um número maior de neuróti cos talvez me digam balançando a cabeça que isso não se aplica de forma nenhuma a uma série de casos que neles os sintomas mais parecem abrigar a intenção contrária e excluir ou anular a satisfação sexual Não vou refutar a correção da interpretação dos senhores Os fatos psicanalíticos costumam ser mais complicados do que gostaríamos Fossem eles tão simples talvez não precisássemos da psicanálise para trazêlos à luz Na verdade já alguns traços do cerimonial de nossa segunda paciente dão a perceber esse caráter ascético hostil à satisfação sexual como quando por exemplo ela afasta os relógios o que tem por sentido mágico evi tar ereções noturnas ou quando deseja impedir que os vasos caiam e se quebrem o que equivale a uma prote 399 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES ção de sua virgindade Em outros casos de cerimoniais semelhantes que pude analisar esse caráter negativo revelouse bem mais pronunciado o cerimonial podia consistir inteiramente em medidas defensivas voltadas contra lembranças e tentações sexuais Contudo já ti vemos muitas vezes oportunidade de aprender que na psicanálise opostos não implicam nenhuma contradi ção Poderíamos expandir nossa afirmação acrescen tando que os sintomas não têm por intenção nem uma satisfação sexual nem qualquer defesa contra ela de resto e de maneira geral predomina na histeria o cará ter positivo de realização do desejo enquanto na neu rose obsessiva a predominância é do caráter negativo e ascético Se os sintomas podem servir tanto à satisfação sexual como a seu oposto essa dualidade ou polarida de encontra excelente fundamentação em uma parte de seu mecanismo que ainda não pudemos mencionar Eles são como veremos mais adiante produtos de um compromisso decorrente da interferência de duas aspi rações opostas e representam tanto o reprimido como o repressor que cooperaram para o seu surgimento A representação pode então resultar mais favorável a um lado ou a outro raro é no entanto que alguma influên cia não se faça sentir Na maioria dos casos de histeria as duas intenções são encontradas no mesmo sintoma Na neurose obsessiva elas com frequência se apartam O sintoma apresenta então dois tempos ele consiste em duas ações sucessivas que se anulam uma à outra Uma segunda objeção não pode ser respondida com a mesma facilidade Ao examinar uma série maior de 400 20 A VIDA SEXUAL HUMANA interpretações de sintomas é provável que de início os senhores julguem identificar neles uma expansão do conceito de satisfação substitutiva até seus limites ex tremos Não deixarão de enfatizar que esses sintomas nada oferecem em termos de satisfação real e que com muita frequência eles se limitam ao avivamento de uma sensação ou à representação de uma fantasia oriunda de um complexo sexual Notarão ademais que a suposta satisfação sexual muitas vezes exibe um caráter infantil e indigno aproximandose talvez de um ato masturba tório ou lembrando maus vícios de que as crianças já foram proibidas e desacostumadas Além disso os se nhores manifestarão seu espanto com o fato de se en tender como satisfação sexual o que talvez devesse ser descrito como satisfação de prazeres que só poderiam ser chamados de cruéis terríveis até mesmo contrários à natureza Sobre este último ponto meus senhores não chegaremos a um acordo até que tenhamos submetido a vida sexual humana a rigorosa investigação na qual decidamos o que é lícito chamar de sexual 20 A VIDA SEXUAL HUMANA Senhoras e senhores Seria de acreditar que não há dú vidas quanto ao que todos entendem por sexual An tes de tudo o sexual é o indecoroso aquilo de que não se deve falar Contaramme que certa vez os alunos de um famoso psiquiatra se deram ao trabalho de tentar 401 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES convencer o mestre de que os sintomas de pessoas his téricas apresentam com frequência conteúdos sexuais Com esse propósito levaramno ao leito de uma histé rica cujos acessos imitavam inequivocamente um par to Mas ele refutou afirmando Bem não há nada de sexual em um parto Claro um parto não precisa ser indecoroso em todas as circunstâncias Noto que os senhores se ressentem de eu brincar com coisas tão sérias Mas não se trata inteiramente de uma brincadeira Falando com seriedade não é fácil definir que conteúdo tem a palavra sexual A única definição acertada seria dizer talvez que ela se refere a tudo o que guarda relação com a diferença entre os sexos mas os senhores julgarão essa definição aborrecida e demasiado abrangente Se os senhores centrarem essa definição no ato sexual talvez digam que sexual é tudo o que visando à obtenção de prazer se ocupa do corpo em especial dos órgãos sexuais do sexo oposto e em última instância al meja a união dos órgãos genitais e a execução do ato se xual Nesse caso porém não terão se afastado muito da equiparação do sexual ao indecoroso e o parto realmente não pertencerá ao âmbito do sexual Se por outro lado os senhores fizerem da função da reprodução o cerne da sexualidade correm o risco de excluir bom número de coisas que não visam à reprodução e no entanto certa mente são de cunho sexual como a masturbação ou mes mo o beijo Seja como for já estamos preparados para o fato de tentativas de definição sempre conduzirem a difi culdades renunciemos precisamente nesse caso a fazer melhor Podemos imaginar que no desenvolvimento do 402 20 A VIDA SEXUAL HUMANA termo sexual ocorreu algo que na boa expressão de H Silberer resultou em um erro de sobreposição De modo geral não carecemos de orientação sobre aquilo que as pessoas chamam de sexual Dizer que sexual é algo que reúne e leva em conta a oposição entre os sexos a obtenção de prazer a função reprodutora e o caráter indecoroso a ser mantido em se gredo é quanto basta para todas as necessidades práticas da vida Mas não é o suficiente para a ciência E isso porque mediante investigações cuidadosas possibili tadas decerto apenas por uma autossuperação disposta a sacrifícios travamos contato com grupos de indiví duos cuja vida sexual difere da maneira mais notável do quadro habitual da média das pessoas Parte desses perversos aboliu por assim dizer a oposição entre os sexos Somente pessoas do mesmo sexo são capazes de excitar seus desejos sexuais os demais e sobretudo os órgãos sexuais destes não constituem objetos sexuais para eles e em casos extremos lhes causam repulsa Com isso é claro essas pessoas renunciaram a toda e qualquer participação na reprodução Nós as chamamos homossexuais ou invertidos São mulheres e homens em geral mas não sempre de cultura imaculada alta mente desenvolvidos tanto no aspecto intelectual como no ético mas marcados por esse seu desvio fatal Pela boca de seus portavozes científicos eles se dizem uma variedade particular da espécie humana um terceiro sexo com os mesmos direitos dos outros dois Talvez tenhamos oportunidade de submeter suas reivindica ções a um exame crítico Naturalmente eles não cons 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES tituem uma elite da espécie humana ao contrário do que gostariam de afirmar entre eles há no mínimo tan tos indivíduos de pouco valor ou serventia quanto entre as pessoas de outra natureza sexual Esses perversos procedem com seu objeto sexual mais ou menos da mesma forma que os normais com o deles Mas há também uma longa série de anormais cuja atividade sexual se distancia cada vez mais daquilo que parece desejável a um ser humano sensato Em sua mul tiplicidade e singularidade eles só são comparáveis às grotescas deformações que P Bruegel pintou em A ten tação de Santo Antônio ou aos deuses e crentes esqueci dos que G Flaubert faz desfilar em longa procissão ante os olhos de seu devoto penitente Sua miscelânea clama por alguma espécie de ordem para não nos confundir os sentidos Nós os dividimos entre aqueles em que o objeto sexual se modificou como nos homossexuais e aqueles em que o que sofreu alteração foi sobretudo a meta sexual Ao primeiro grupo pertencem os que re nunciaram à união dos genitais e em que em um dos parceiros o órgão genital é substituído por outra parte ou região do corpo durante o ato sexual eles não tomam conhecimento das insuficiências do aparato orgânico nem do estorvo representado pelo nojo Boca ou ânus em lugar da vagina Seguemse outros que continuam se valendo do órgão genital mas não por suas funções sexuais e sim por outras das quais ele toma parte por Em La tentation de Saint Antoine parte v da versão final Flau bert se inspirou no quadro homônimo de Bruegel 20 A VIDA SEXUAL HUMANA motivos anatômicos ou de proximidade Neles percebe mos que as funções de excreção segregadas como im próprias durante a educação da criança permanecem capazes de atrair todo o interesse sexual Há outros que abriram mão por completo do órgão genital como obje to desejado substituindoo por outra parte do corpo o seio da mulher o pé a trança do cabelo Prosseguindo há também aqueles para os quais outra parte do corpo nada significa mas cujos desejos são plenamente reali zados por uma peça do vestuário um sapato uma rou pa íntima são os fetichistas Mais adiante no cortejo encontramos pessoas que embora demandem o objeto inteiro fazem exigências bastante específicas estranhas ou terríveis para que possam desfrutálo inclusive a de que ele se torne um cadáver indefeso havendo mesmo os que usando de violência criminosa o transformam em tal Mas hasta desse tipo de horrores O segundo grupo é liderado por aqueles perver sos que definiram como meta de seus desejos sexuais o que em geral constitui apenas ação introdutória e preparatória Anseiam pois por olhar e tocar a outra pessoa observála enquanto ela desempenha funções íntimas ou desnudar partes do próprio corpo que deve riam permanecer encobertas na sombria esperança de que a mesma contrapartida as recompense Seguemse a esses os enigmáticos sádicos cujo empenho amoroso não conhece outra meta senão infligir dor e tormento a seu objeto desde a humilhação insinuada até os danos físicos graves e como numa espécie de equilíbrio sua contrapartida os masoquistas cujo único prazer é em 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES sofrer todo tipo de humilhação e tormento da parte de seu objeto amado seja de forma simbólica ou real Em outros ainda várias dessas condições anormais se reú nem e se cruzam Por fim somos levados a descobrir que cada um desses grupos existe sob duas formas ao lado daqueles que buscam sua satisfação sexual na rea lidade há os que se contentam em apenas imaginar essa satisfação os que não necessitam de um objeto verda deiro mas são capazes de substituílo pela fantasia Não pode haver a menor dúvida de que em seme lhantes loucuras singularidades e horrores consiste de fato a atividade sexual dessas pessoas Não apenas elas assim a entendem e percebem a relação de substituição também nós temos de admitir que tais ações desem penham na vida delas o mesmo papel que a satisfação sexual normal tem na nossa para isso elas fazem os mesmos sacrifícios com frequência enormes e tanto no quadro mais geral como no mais fino detalhe é possível estudar onde essas anormalidades se apoiam no normal e onde dele se afastam Não terá escapado aos senhores que voltou a aparecer aqui o caráter de indecência que se prende à atividade sexual na maioria dos casos po rém ele se intensificou a ponto de ser vergonhoso Pois bem minhas senhoras e meus senhores como nos posicionamos ante essas modalidades incomuns de satisfação sexual É evidente que a indignação a ex pressão de nossa aversão pessoal e a garantia de que não partilhamos esses apetites não resolvem nada Não é a isso que somos solicitados No fim tratase de um cam po de fenômenos como outro qualquer Também seria 20 A VIDA SEXUAL HUMANA fácil rechaçar a evasiva reprovadora de afirmar que esses são apenas casos raros e curiosos Ao contrário estamos lidando com fenômenos bastante frequentes e amplamente disseminados Se todavia nos disserem que eles não precisam abalar nossas concepções sobre a vida sexual porque todos sem exceção representam aberrações e deslizes do instinto sexual então cabe rá uma resposta séria Se não entendemos essas con figurações patológicas da sexualidade nem podemos conciliálas com a vida sexual normal é porque tam pouco entendemos a sexualidade normal Em suma um esclarecimento teórico pleno sobre a existência dessas chamadas perversões e de sua conexão com a chamada sexualidade normal é uma tarefa imperiosa Para tanto uma percepção e duas novas observações virão em nosso auxílio A primeira nós a devemos a Iwan Bloch ela corrige a noção de todas essas perver sões como sinais de degeneração ao demonstrar que esses desvios da meta sexual esses afrouxamentos da relação com o objeto sexual ocorreram desde sempre em todas as épocas conhecidas e em todos os povos dos mais primitivos aos de mais elevada civilização e oca sionalmente gozaram de tolerância e reconhecimento geral As duas observações a que me referi provêm da investigação psicanalítica dos neuróticos elas influirão de maneira decisiva em nossa compreensão das perver sões sexuais Dissemos que os sintomas neuróticos constituem satisfações substitutivas de caráter sexual e já indiquei aos senhores que a confirmação dessa tese mediante a 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES análise dos sintomas depara com várias dificuldades Com efeito ela só se justifica se em nosso entendimen to de satisfação sexual levarmos em conta também as chamadas necessidades sexuais perversas pois uma interpretação de sintomas desse tipo nos aparece com surpreendente frequência A reivindicação de excepcio nalidade dos homossexuais ou invertidos cai por terra quando descobrimos que há impulsos homossexuais em cada neurótico e que boa parte de seus sintomas dá ex pressão a essa inversão latente Os que se denominam homossexuais são de fato apenas os invertidos cons cientes e manifestos e seu número é insignificante se comparado ao dos homossexuais latentes Vemonos obrigados a considerar a escolha do objeto de mesmo sexo como uma divergência que se dá com regulari dade na vida amorosa e aprendemos cada vez mais a atribuirlhe elevada importância Certamente isso não anula as diferenças entre a homossexualidade manifes ta e o comportamento normal seu significado prático persiste mas seu valor teórico se reduz extraordinaria mente No caso de certa afecção a paranoia que já não podemos incluir entre as neuroses de transferência su pomos até mesmo que nasce regularmente da tentativa de defesa contra impulsos homossexuais bastante fortes Talvez os senhores ainda se lembrem de que em seu ato obsessivo uma de nossas pacientes desempenhava o papel de um homem seu próprio marido abandonado em mulheres neuróticas é muito comum tal produção No original Abzweigung literalmente ramificação 408 20 A VIDA SEXUAL HUMANA de sintomas em que personificam um homem Se em si isso não pode ser considerado homossexualidade está relacionado com os pressupostos para ela Como os senhores provavelmente sabem a neurose histérica pode produzir sintomas em todos os sistemas e dessa maneira perturbar todas as funções orgânicas A análise mostra que se manifestam aí todos os cha mados impulsos perversos que pretendem substituir o genital por outros órgãos Estes se comportam então como substitutos dos órgãos genitais A própria sinto matologia da histeria nos levou à concepção de que à parte seu papel funcional devemos atribuir aos órgãos do corpo também uma importância sexual erógena e que o cumprimento daquele primeiro papel é perturba do quando este último lhes faz demandas em excesso Inúmeras sensações e inervações que se nos apresentam como sintomas da histeria em órgãos que aparente mente nada têm a ver com a sexualidade revelam nos assim sua natureza são realizações de impulsos sexuais perversos nas quais outros órgãos tomaram para si a importância dos órgãos genitais Também ve mos em que grande medida os órgãos de que nos ser vimos para nos alimentar e excretar podem se tornar portadores da excitação sexual É pois a mesma coisa que nos mostraram as perversões nestas porém nós o percebemos sem esforço e de forma inequívoca en quanto na histeria somos obrigados a primeiramente fazer o rodeio da interpretação do sintoma e depois em vez de atribuir os impulsos sexuais perversos à cons ciência situálos no inconsciente dos indivíduos 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES Dos muitos quadros sintomáticos em que figura a neurose obsessiva os mais importantes revelamse pro vocados pela pressão de impulsos sexuais sádicos bas tante fortes isto é impulsos perversos em sua meta e os sintomas como convém à estrutura de uma neurose obsessiva servem sobretudo para defenderse de tais desejos ou expressam a luta entre satisfação e defesa Mas também a satisfação não se sai mal por vias indi retas ela consegue se apresentar no comportamento dos doentes e se volta de preferência contra eles próprios tornaos atormentadores de si mesmos Outras formas de neurose que podemos chamar cismadoras corres pondem a uma sexualização excessiva de atos que em geral se inserem como preparativos no caminho para a satisfação sexual normal a vontade de ver tocar pesquisar Isso explica a grande importância do medo do toque e da mania de se lavar Uma proporção enor me dos atos obsessivos remonta à masturbação sendo repetição e modificação dela e é sabido que a masturba ção embora ato único e uniforme acompanha as mais diversas formas de fantasia sexual Não me seria difícil exporlhes mais profundamente as relações entre perversão e neurose mas creio que o que foi dito já basta para o nosso propósito Todavia depois desses esclarecimentos acerca do significado dos sintomas precisamos nos resguardar de uma superes timação da frequência e da intensidade das tendências perversas dos seres humanos Os senhores já ouviram aqui que a frustração da satisfação sexual normal pode conduzir ao adoecimento neurótico Havendo essa frus 410 20 A VIDA SEXUAL HUMANA tração real a necessidade se lança aos caminhos anor mais da excitação sexual Mais adiante os senhores poderão ver como isso se dá De todo modo compreen dam que em razão de tal represamento colateral os impulsos perversos hão de parecer mais intensos do que seriam se nenhum impedimento real se houvesse contraposto à satisfação sexual normal Influência se melhante aliás devemos reconhecer também no que toca às perversões manifestas Em muitos casos elas são provocadas ou ativadas em razão das dificuldades demasiado grandes impostas à satisfação normal do impulso sexual seja em decorrência de circunstâncias passageiras ou de instituições sociais duradouras Em outros casos porém as tendências perversas indepen dem de tais condições favoráveis e constituem para o indivíduo a modalidade normal de vida sexual por as sim dizer É possível que no momento os senhores tenham a impressão de termos antes confundido que esclareci do a relação entre a sexualidade normal e a perversa Atenhamse porém à seguinte reflexão se é correto que a maior dificuldade ou a privação de uma satisfação sexual normal põe à mostra tendências perversas que as pessoas não exibiriam de outra forma então é necessá rio supormos que essas mesmas pessoas têm algo que vai ao encontro das perversões ou se os senhores preferirem que as perversões estejam presentes nelas de forma latente Chegamos assim à segunda novidade que eu havia anunciado aos senhores A saber a inves tigação psicanalítica viuse obrigada a atentar também 411 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES para a vida sexual da criança o que ela fez cuidando para que na análise dos sintomas lembranças e asso ciações remetessem regularmente aos primeiros anos da infância O que assim revelamos foi confirmado ponto a ponto pela observação direta de crianças Resultou daí a conclusão de que todas as tendências a perversões têm raiz na infância de que as crianças possuem predispo sição para elas e as praticam na proporção de sua ima turidade em suma de que a sexualidade perversa nada mais é que a sexualidade infantil magnificada e decom posta em seus impulsos separados Agora os senhores verão as perversões sob outra luz e não mais deixarão de perceber sua conexão com a vida sexual humana mas à custa de que surpresa e de que penosas incongruências para a sua sensibilidade Sem dúvida primeiramente se inclinarão a contestar tudo isso o fato de as crianças terem algo que podemos designar como sexualidade a justeza de nossas obser vações e justificativa de encontrar no comportamento infantil algum parentesco com o que mais tarde será condenado como perversão Permitam então que eu antes lhes esclareça os motivos de sua resistência para depois apresentarlhes todas as nossas observações Que as crianças não tenham vida sexual que não se excitem não tenham necessidades e uma espécie de sa tisfação mas só venham a desenvolvêla de súbito entre os doze e os catorze anos seria biologicamente sem considerar todas as nossas observações tão im provável e mesmo absurdo como elas terem vindo ao mundo sem órgãos genitais que só brotariam por volta 412 20 A VIDA SEXUAL HUMANA da puberdade O que nelas desperta por essa época é a função reprodutora que se serve para seus fins de um material físico e psíquico já existente Os senhores cometem o erro de confundir sexualidade com repro dução o que lhes barra o caminho para o entendimento da sexualidade das perversões e das neuroses Trata se porém de um erro tendencioso Curiosamente ele tem sua fonte no fato de também os senhores terem sido crianças e como tais haverem se submetido à influên cia da educação Com efeito quando o instinto sexual irrompe como ímpeto reprodutivo é necessário que a sociedade tenha entre suas tarefas educativas mais im portantes a de domálo restringilo submetêlo a uma vontade individual que seja idêntica ao mandato social Além disso ela tem interesse em postergar o desenvol vimento pleno desse instinto até que a criança tenha al cançado certo patamar de maturidade intelectual uma vez que com a irrupção plena do instinto sexual pra ticamente tem fim a educabilidade Não fosse assim o instinto romperia todos os diques e arrastaria em sua torrente a obra penosamente edificada da civilização A tarefa de domálo nunca é fácil ela é ora insuficiente ora demasiada A motivação da sociedade humana é em última instância uma motivação econômica como ela não dispõe de gêneros alimentícios suficientes para a manutenção de seus membros sem que eles precisem trabalhar é necessário limitar o número desses mem bros e desviar sua energia da atividade sexual para o trabalho Tratase desde sempre dos primórdios até os dias atuais daquilo que a vida impõe como necessidade 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES A experiência deve ter mostrado aos educadores que a tarefa de guiar a vontade sexual da nova geração só pode ser realizada com o exercício bastante precoce da influência aquele que não espera pela tempestade da pu berdade mas intervém já na vida sexual da criança que prepara a tormenta posterior Com essa intenção são proibidas ou estragadas quase todas as práticas sexuais infantis a meta que se impõe é configurar a vida da criança como assexuada o que ao longo do tempo re sultou por fim na crença de que ela é de fato assexuada algo que a ciência então proclama como doutrina A fim de que crença e intenção não se contradigam o que se faz então é ignorar as práticas sexuais da criança um feito nada desprezível ou no caso da ciência dar se por satisfeito com outra concepção dela A criança é tida como pura inocente e quem a descreve de outro modo pode ser denunciado como sacrílego infame ini migo dos sentimentos ternos e sagrados da humanidade As próprias crianças porém são as únicas que não participam dessas convenções fazendo valer seus direi tos animalescos com toda a ingenuidade e demonstran do a todo momento que o caminho rumo à pureza ainda está por ser percorrido O curioso é que aqueles que negam a sexualidade infantil nem por isso relaxam em seu esforço educativo mas isto sim perseguem com o máximo rigor as manifestações daquilo que renegam e intitulam maus hábitos infantis De elevado interes se teórico é também que o período da vida que mais gritantemente contradiz a noção da infância assexuada o que se estende até os cinco ou seis anos de idade 20 A VIDA SEXUAL HUMANA seja depois na maioria das pessoas recoberto pelo véu de uma amnésia que apenas a exploração analítica é capaz de rasgar mas que antes disso já se revelou permeável para a formação de alguns sonhos Quero agora expor aos senhores o que se pode perceber com mais clareza na vida sexual da criança Permitamme também introduzir aqui a bem da ex posição que se segue o conceito de libido A libido de maneira análoga à fome designa a força com que o ins tinto se manifesta nesse caso o sexual assim como no caso da fome o de alimentação Outros conceitos como os de excitação sexual e satisfação não necessi tam de explicação Que as práticas sexuais dos lacten tes demandem o trabalho mais árduo de interpretação os senhores poderão compreender com facilidade ou provavelmente utilizar como objeção Essas interpre tações baseadas em investigações analíticas resultam da busca retrospectiva do sintoma aquela que par tindo do próprio sintoma recua no tempo até sua ori gem No lactente os primeiros impulsos da sexualidade mostramse apoiados em outras funções importantes para a vida Seu principal interesse como os senhores sabem está voltado para a alimentação quando sacia do ele adormece junto ao peito da mãe o lactente exibe uma expressão de bemaventurada satisfação a mesma que mais tarde se repetirá em seguida à experiência do orgasmo sexual Isso seria muito pouco para embasar uma conclusão Contudo observamos também que o lactente quer repetir essa ação de se alimentar sem com isso demandar mais alimento não é pois a fome que 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES o estimula a fazêlo Dizemos que ele chupa ou suga e o fato de ao fazer isso ele tornar a adormecer com uma expressão de bemaventurança nos mostra que a ação de sugar em si lhe trouxe satisfação Como se sabe logo ele não adormecerá sem ter antes praticado essa ação de sugar Um velho pediatra de Budapeste dr Lindner foi o primeiro a afirmar a natureza sexual des sa atividade Aqueles que cuidam de uma criança e que portanto não tencionam tomar partido teórico no assunto parecem entender dessa mesma maneira o ato de sugar Não têm dúvida de que ele serve apenas à obtenção de prazer contamno entre os maus hábitos da criança e mediante constrangimentos a obrigam a renunciar a esse costume caso ela não queira fazêlo por si só Descobrimos portanto que o lactente execu ta ações que não têm outro propósito senão a obtenção de prazer Acreditamos que ele experimenta esse prazer pela primeira vez ao se alimentar mas que logo apren de a dissociálo da alimentação Só podemos relacionar essa obtenção de prazer à excitação da região da boca e dos lábios partes do corpo a que chamamos então ronas erógenas e o prazer alcançado no ato de sugar nós o caracterizamos como sexual Se temos ou não o di reito de chamálo assim isso certamente ainda vamos precisar discutir Se o lactente pudesse se manifestar ele sem dúvi da reconheceria o ato de mamar no peito da mãe como o mais importante de sua vida E ele não está errado já que com esse ato satisfaz de uma só vez suas duas grandes necessidades vitais Então aprendemos com a 20 A VIDA SEXUAL HUMANA psicanálise e não sem espanto em que grande medida o significado psíquico desse ato perdura para toda a vida Mamar no peito da mãe tornase o ponto de partida de toda a vida sexual o modelo inalcançado para toda sa tisfação sexual posterior aquele ao qual em momen tos de necessidade a fantasia retorna com frequência Tratase de um ato que inclui o peito materno como o primeiro objeto do instinto sexual sou incapaz de transmitirlhes uma ideia da importância que esse pri meiro objeto possui na busca posterior de outros que efeitos profundos ele em suas transformações e subs tituições produz mesmo nas regiões mais remotas de nossa vida psíquica Mas inicialmente o bebê abre mão dele substituindoo por outra parte do corpo em seu ato de sugar A criança passa a sugar o polegar ou a própria língua Na obtenção de prazer ela se faz por tanto independente da aprovação do mundo exterior e além disso intensifica esse prazer mediante a excitação de uma segunda região do corpo As zonas erógenas não são todas elas igualmente generosas por isso constitui experiência importante quando como relata Lindner o lactente ao procurar em seu próprio corpo descobre a particular excitabilidade de seus órgãos ge nitais encontrando aí o caminho que conduz do ato de sugar à masturbação Mediante a apreciação desse ato de sugar já toma mos conhecimento de duas características decisivas da sexualidade infantil Ela surge associada à satisfação das grandes necessidades orgânicas e se comporta de forma autoerótica isto é a criança procura e encontra seus oh 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES jetos no próprio corpo Aquilo que o ato de se alimen tar mostrou com grande nitidez se repete parcialmente com a excreção Inferimos que o lactente tem sensações prazerosas ao esvaziar a bexiga e o intestino e que ele logo organiza essas ações de modo a que elas mediante a correspondente excitação da zona erógena da mem brana mucosa lhe proporcionem o máximo prazer possível Nesse ponto como explicou sutilmente Lou AndreasSalomé o mundo exterior lhe aparece pela primeira vez como poder inibidor hostil à sua aspiração de prazer dandolhe um vislumbre de futuras batalhas exteriores e interiores Ele não deve excretar no mo mento que lhe aprouver e sim naquele determinado por outras pessoas A fim de convencêlo a renunciar a essas fontes de prazer dizemlhe que tudo que se refere a es sas funções é indecoroso e deve ser mantido em segre do Pela primeira vez deve trocar prazer por dignidade social Sua própria relação com os excrementos porém é desde o princípio de natureza bem diferente O lac tente não sente nojo de suas fezes ele as estima como parte de seu corpo da qual não quer se separar e de que se vale como primeiro presente para pessoas de quem gosta muito Mesmo depois de a educação ter alcançado seu intento de afastálo dessas inclinações a valoriza ção dos excrementos tem continuidade no apreço pelo presente e pelo dinheiro Seus feitos ao urinar por outro lado ele parece encarálos com especial orgulho Bem sei que os senhores já desejavam ter me inter rompido há tempos para gritar Basta dessas mons truosidades Então a defecação há de ser uma fonte de 20 A VIDA SEXUAL HUMANA satisfação do prazer sexual que já o lactente explora Os excrementos substância valiosa e o ânus uma es pécie de órgão genital Não acreditamos em nada disso mas entendemos por que pediatras e pedagogos querem distância da psicanálise e de suas conclusões Não meus senhores Os senhores apenas se esqueceram de que minha intenção era exporlhes os fatos da vida se xual infantil associados aos das perversões sexuais Por que não haveriam de saber que o ânus realmente nas relações sexuais de grande número de adultos tanto homossexuais como heterossexuais assume o papel da vagina E que há muitos indivíduos nos quais ao lon go de toda a vida a defecação provoca a sensação do prazer sexual e que não a descrevem como tão desprezí vel No que se refere ao interesse pelo ato da defecação e ao prazer de observar outra pessoa realizálo disso os senhores podem obter confirmação com as próprias crianças quando um pouco mais velhas e já capazes de comunicálo Contanto naturalmente que essas crian ças não tenham sofrido intimidação sistemática porque então compreendem que devem se calar a esse respeito E no tocante às demais coisas em que os senhores não querem acreditar eu os remeto aos resultados da análise e da observação direta de crianças e lhes digo que é real mente uma arte não ver essas coisas todas ou vêlas de outra maneira Se o parentesco da sexualidade infantil com as perversões sexuais lhes chama particularmente a atenção nada tenho contra isso Ele é óbvio na verda de se a criança tem de fato uma vida sexual ela só po derá ser de tipo perverso pois excetuando uns poucos 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES e obscuros indícios faltalhe o que torna a sexualidade uma função reprodutora Por outro lado é característica comum a todas as perversões o fato de elas terem renun ciado à meta da reprodução Uma prática sexual é justa mente chamada de pervertida quando tendo renunciado ao propósito reprodutivo persegue a obtenção de prazer como meta autônoma Os senhores compreendem pois que a ruptura e o momento de transição no desenvol vimento da vida sexual reside em sua subordinação aos propósitos da reprodução Tudo que precede esse mo mento assim como tudo que se furta a ele e serve apenas à obtenção de prazer recebe a designação nada honrosa de pervertido e é como tal proscrito Permitamme então dar prosseguimento a meu su cinto quadro da sexualidade infantil O que falei acerca de dois sistemas de órgãos de alimentação e excreção eu poderia complementar levando em conta os demais A vida sexual da criança se esgota nas atividades de uma série de instintos parciais que independentemente um do outro buscam obter prazer em parte no próprio corpo em parte já no objeto exterior Entre os órgãos a genitália se destaca rapidamente há pessoas nas quais a obtenção de prazer com seu próprio órgão genital sem o auxílio de outra genitália ou objeto se estende sem interrupção desde a masturbação do lactente até a mas turbação por necessidade da época da puberdade pros seguindo ainda por tempo indeterminado De resto o Masturbação por necessidade no original Notonanie composto de Not necessidade premência apuro e Onanie masturbação 420 20 A VIDA SEXUAL HUMANA tema da masturbação não admitiria discussão tão breve tratase de um assunto que demanda consideração de muitos ângulos A despeito de minha inclinação a abreviar ainda mais o tema restam algumas coisas a dizer sobre a pes quisa sexual por parte da criança Ela caracteriza muito bem a sexualidade infantil e é muito importante para a sintomatologia das neuroses A pesquisa sexual infan til começa bem cedo às vezes antes do terceiro ano de vida Ela não parte da diferença entre os sexos que nada significa para as crianças uma vez que elas ao me nos os garotos atribuem o órgão genital masculino a ambos os sexos Quando o menino faz a descoberta da vagina seja na irmãzinha ou em alguma parceira de brincadeiras ele busca em primeiro lugar negar o que lhe dizem seus próprios sentidos porque não pode ima ginar um ser humano semelhante a ele desprovido da parte que lhe é tão valiosa Mais tarde assustase com a possibilidade que lhe é apresentada e possíveis ameaças anteriores decorrentes da ocupação muito intensa com seu pequeno membro surtem agora seu efeito Ele se vê sob o domínio do complexo da castração cuja configu ração exerce grande influência sobre a formação de seu caráter se ele permanece saudável sobre sua neurose se ele adoece e sobre suas resistências se ele se submete a tratamento analítico Sobre a menina pequena sabemos que ela se sente grandemente desfavorecida pela ausên cia de um pênis grande e visível que inveja o menino por possuílo e que por esse motivo em essência de senvolve o desejo de ser homem desejo este que mais 421 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES tarde é retomado na neurose que pode surgir em de corrência de algum percalço em seu papel feminino O clitóris da menina aliás desempenha na idade infantil exatamente o mesmo papel do pênis ele é o portador de uma especial excitabilidade o ponto no qual a satisfação autoerótica é obtida Na transformação da menina em mulher muito depende de essa sensibilidade ser transfe rida a tempo e integralmente do clitóris para a vagina Nos casos da assim chamada anestesia sexual feminina o clitóris mantém obstinadamente essa sensibilidade O interesse sexual da criança se volta antes de mais nada para a questão de onde vêm as crianças a mesma que está na base da pergunta feita pela Esfinge de Te bas e na maioria dos casos é despertada pelo temor egoísta que se segue à chegada de um irmão ou irmã Com muito mais frequência do que pensamos a res posta pronta dada às crianças segundo a qual elas são trazidas pela cegonha é recebida com incredulidade até por crianças pequenas A sensação de que os adultos escondem a verdade contribui muito para o isolamento da criança e para o desenvolvimento de sua autonomia Mas essa questão ela não tem condições de resolver por si mesma A constituição sexual não desenvolvida im põe certas barreiras a sua capacidade de conhecimento Ela supõe primeiramente que as crianças vêm de algo especial que os adultos consomem ao se alimentar e não sabe que apenas as mulheres podem ter bebês Mais tarde dáse conta de sua limitação e desiste de ver na No mito de Édipo 20 A VIDA SEXUAL HUMANA comida a origem das crianças explicação que se con serva nos contos infantis Já um pouco maior a criança logo nota que o pai deve desempenhar algum papel na chegada dos bebês mas não tem como saber que papel é esse Se por acaso ela testemunha algum ato sexual o que vê nele é uma tentativa de sujeição uma briga a má compreensão sádica do coito De início porém não vincula o ato a um futuro bebê Mesmo quando desco bre vestígios de sangue na cama ou na roupa íntima da mãe a criança os toma como prova de algum ferimen to infligido pelo pai Em anos posteriores ela por certo passa a desconfiar que o membro sexual masculino tem parte decisiva no surgimento das crianças mas não atri bui a esse órgão outra função que não a de urinar Desde o princípio as crianças são unânimes na cren ça de que o nascimento de um bebê só pode se dar pelo intestino que a criança portanto surge como uma por ção de excrementos Essa teoria só é abandonada após a depreciação dos interesses anais quando a substitui a suposição de que o umbigo se abre ou de que a região do peito entre as duas mamas seria o local de nasci mento do novo bebê Dessa maneira a criança vai em sua investigação se aproximando do conhecimento dos fatos sexuais ou então graças a sua ignorância passa confusa ao largo deles até que geralmente nos anos que antecedem a puberdade toma conhecimento de uma explicação habitualmente depreciativa e incomple ta que não raro produz efeitos traumáticos Certamente os senhores terão ouvido que o conceito de sexual experimenta uma expansão imprópria na psi 423 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES canálise com o propósito de sustentar as teses da cau sação sexual das neuroses e do significado sexual dos sintomas Podem agora julgar se é injustificada essa ex pansão Expandimos o conceito de sexualidade apenas para que ele possa abranger também a vida sexual dos pervertidos e das crianças Ou seja devolvemos a ele sua amplitude correta Aquilo que fora da psicanálise é chamado sexualidade referese apenas a uma vida sexual restrita a serviço da reprodução e denominada normal 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS Meus senhores Tenho a impressão de que não consegui explicar de forma convincente a importância das per versões para nosso conceito de sexualidade Gostaria pois de melhorar e complementar essa exposição na medida de minhas possibilidades Não que apenas as perversões nos teriam obrigado a modificar o conceito de sexualidade que nos rendeu oposição tão veemente O estudo da sexualidade infan til contribuiu ainda mais para isso e a concordância dos dois tornouse decisiva para nós Contudo por mais que as manifestações da sexualidade infantil possam ser inequívocas nos anos finais da infância elas parecem dissiparse em algo indeterminado nos primeiros anos de vida Quem se recusa a atentar para a história de seu desenvolvimento e para o contexto analítico refutará seu 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS caráter sexual atribuindolhe algum outro caráter indi ferenciado Não se esqueçam de que no momento não possuímos um traço aceito por todos que possa carac terizar a natureza de um processo como sexual a não ser aquele mesmo parentesco com a função reprodutora que já precisamos rejeitar como insuficiente Os crité rios biológicos como as periodicidades de 23 e 28 dias propostas por W FlieB são ainda bastante discutíveis as singularidades químicas que nos é lícito supor exis tirem nos processos sexuais ainda aguardam sua desco berta As perversões sexuais dos adultos pelo contrário são palpáveis e inequívocas Como já o demonstra sua designação aceita por todos elas se inserem sem sombra de dúvida no âmbito da sexualidade Quer elas sejam chamadas de sinais de degeneração ou de outro nome qualquer ninguém teve ainda a coragem de classificá las de outra maneira que não como fenômenos da vida sexual São elas que nos dão o direito de afirmar que se xualidade e reprodução não coincidem pois é óbvio que as perversões sexuais não têm a reprodução como meta Vejo aí um paralelo não destituído de interesse Em bora consciente e psíquico signifiquem a mesma coisa para a maioria das pessoas fomos obrigados a ex pandir o conceito de psíquico a fim de reconhecer a existência de algo psíquico que não é não consciente Algo muito parecido acontece quando outros declaram idênticos o sexual e o pertinente à reprodução ou o genital se os senhores preferem dizêlo de forma resumida ao passo que nós não pudemos deixar de ad mitir a existência de um sexual que não é genital e 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES que nada tem a ver com a reprodução Tratase de uma semelhança apenas formal mas não desprovida de fun damentação mais profunda Se contudo a existência das perversões sexuais constitui argumento tão concludente nessa questão por que esse argumento não surtiu efeito há muito tempo e encerrou o assunto Eu realmente não sei dizer A mim isso parece se dever ao fato de que há sobre as perversões sexuais uma proscrição que extrapola para a teoria e impede até mesmo sua consideração científi ca É como se ninguém pudesse se esquecer de que elas são não apenas repugnantes mas monstruosas e peri gosas também como se as pessoas as considerassem sedutoras e no fundo precisassem conter uma inveja secreta daqueles que as desfrutam uma inveja como a confessada pelo landgrave punidor na célebre paródia de Tannhiiuser No monte de Vênus esqueceuse da honra e do dever Estranho que isso não aconteça conosco Na verdade os pervertidos são isto sim pobresdiabos que pagam um preço bastante alto pela satisfação dura mente obtida O que torna a prática da perversão tão inequivoca mente sexual a despeito da estranheza que causam seu Paródia de Tannhiiuser de Wagner feita pelo comediógrafo aus tríaco Johann Nestroy 180162 landgrave Landgraf era o título de alguns nobres alemães 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS objeto e suas metas é a circunstância de o ato da sua satisfação terminar na maioria dos casos no orgasmo pleno e na emissão dos produtos genitais Isso natural mente é apenas a consequência de se tratar de pessoas adultas na criança o orgasmo e a excreção genital di ficilmente são possíveis sendo substituídos por indícios que mais uma vez não podem ser claramente reconhe cidos como sexuais Devo fazer ainda um acréscimo a fim de completar a consideração das perversões sexuais Por mais mal afamadas que sejam por mais que as contrastemos com a prática sexual normal a observação mostra facil mente que raras vezes um ou outro traço de perversão não está presente na vida sexual das pessoas normais Já o beijo pode postular a condição de um ato de perver são uma vez que consiste não na união das genitálias mas de duas zonas erógenas bucais Não obstante nin guém o condena como pervertido pelo contrário ele é admitido nos palcos teatrais como sugestão atenuada do ato sexual Justamente o beijo porém pode facilmente transformarse em perversão plena quando é tão in tenso que de imediato seguemse descarga genital e orgasmo o que não é tão raro De resto podese desco brir que para uma determinada pessoa tocar e obser var o objeto são condições imprescindíveis para o pra zer sexual enquanto outra no auge da excitação sexual belisca ou morde ou que amantes nem sempre atingem o máximo da excitação mediante os órgãos genitais e sim com o auxílio de alguma outra parte do corpo de seu objeto e assim por diante numa variedade de esco 427 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES lhas Não tem sentido excluir das fileiras dos normais e contar entre os pervertidos as pessoas que revelam al guns desses traços o que se percebe com nitidez cada vez maior é antes que o essencial das perversões não está na transgressão da meta sexual na substituição dos órgãos genitais e nem mesmo na variação do objeto e sim apenas na exclusividade com que acontecem tais desvios os quais põem de lado a função reprodutora do ato sexual Quando as ações pervertidas se integram na produção do ato sexual normal seja como ações pre paratórias ou como contribuições intensificadoras dele elas na verdade deixam de ser perversões É claro que fatos desse tipo diminuem bastante a distância que se para a sexualidade normal da perversa Resulta natural mente daí que a sexualidade normal nasce de algo que já existia antes e descarta certos traços desse material preexistente como inutilizáveis ao passo que congrega outros com o propósito de sujeitálos a uma nova meta a da reprodução Antes de nos valermos de nossos conhecimentos das perversões para com pressupostos já esclarecidos nos lançarmos ao aprofundamento de nosso estudo da se xualidade infantil é necessário que eu chame a atenção dos senhores para uma diferença importante entre as duas sexualidades A sexualidade perversa é em regra extremamente centralizada toda ação converge para uma meta e na maioria dos casos para uma única meta um instinto parcial tem a primazia e ele é ou o único verificável ou sujeitou ao seu os demais propósitos Nesse aspecto a única diferença entre as sexualidades 428 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS perversa e normal é que são outros os instintos parciais dominantes e com eles as metas sexuais Tanto uma como a outra constitui por assim dizer uma tirania bem organizada a diferença é que em cada uma delas uma família diferente tomou o poder Já a sexualidade infantil de modo geral não apresenta tal centralização e organização seus instintos parciais têm direitos iguais e cada um deles se lança por conta própria à conquista do prazer Tanto a falta como a presença da centrali zação combinam naturalmente com o fato de ambas a sexualidade perversa e a normal terem sua origem na sexualidade infantil De resto há também casos de se xualidade perversa que possuem muito mais semelhan ça com a infantil na medida em que neles independen temente uns dos outros numerosos instintos parciais e suas metas se impuseram ou melhor dizendo tiveram continuidade Nesses casos é mais correto falar em in fantilismo da vida sexual do que em perversão Assim preparados podemos agora passar à dis cussão de uma sugestão de que por certo não haverão de nos poupar Alguém poderá nos dizer Por que o senhor insiste em já chamar de sexualidade o que de acordo com seu próprio testemunho são manifestações indeterminadas da infância as quais apenas mais tarde se tornam sexuais Por que não se contentar com a des crição fisiológica e dizer simplesmente que no lactente já observamos atividades como o sugar ou a retenção de excrementos as quais nos mostram que ele busca o pra1er do órgão Desse modo o senhor teria evitado a postulação ofensiva a todo sentimento de uma vida se 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES xual até mesmo para a criança mais pequenina Pois meus senhores eu não tenho absolutamente nada a opor ao prazer do órgão sei que o prazer máximo da união sexual também é apenas um prazer do órgão vinculado à atividade dos genitais Mas sabem os senhores me di zer quando foi que esse prazer do órgão originalmente indiferente adquiriu o caráter sexual que ele indubita velmente exibe em fases posteriores do desenvolvimen to Sabemos mais acerca do prazer do órgão do que sobre a sexualidade Os senhores me dirão que o cará ter sexual é acrescentado justamente quando os genitais começam a desempenhar seu papel sexual e genital se correspondem E recusarão até mesmo a objeção le vantada pelas perversões argumentando que a maioria delas visa sim ao orgasmo genital ainda que por ca minhos outros que não a união dos genitais De fato os senhores se põem em uma posição bem melhor ao riscar das características do sexual a relação com a reprodu ção tornada insustentável pelas perversões e substituí la pela atividade genital Aí porém nossas posições já não se revelam tão distantes o que temos é simples mente a contraposição dos órgãos genitais a todos os outros órgãos Mas como reagem os senhores às muitas experiências a lhes mostrar que na obtenção de prazer os genitais podem ser representados por outros órgãos como acontece no beijo normal nas práticas perversas dos sibaritas e na sintomatologia da histeria No caso dessa neurose é bastante comum que fenômenos esti mulantes sensações inervações e mesmo os processos da ereção os quais têm por sede os genitais sejam 430 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS deslocados para regiões distantes do corpo para a ca beça e o rosto por exemplo De tal modo persuadidos de que não têm onde se apegar para sua caracterização do que é sexual os senhores provavelmente terão que se resolver a seguir meu exemplo e estender a designa ção sexual também para aquelas práticas da primeira infância que buscam o prazer do órgão Permitamme agora complementar minha justifica tiva com duas outras ponderações Como os senhores sabem chamamos de sexuais as atividades prazerosas dúbias e indeterminadas da primeiríssima infância pois a elas nos conduz a análise que partindo dos sintomas passa por material de caráter inequivocamente sexual Nem por isso é forçoso admito que essas práticas se jam sexuais Mas considerem o senhores um caso aná logo Imaginem que não tivéssemos como observar o desenvolvimento de duas plantas dicotiledôneas a macieira e a fava a partir de suas sementes mas que em ambos os casos nos fosse possível reconstruir esse desenvolvimento de trás para a frente do espécime já constituído até o primeiro germe dotado de dois coti lédones Os dois cotilédones parecem não exibir dife rença nenhuma são ambos do mesmíssimo tipo Devo inferir daí que eles são efetivamente idênticos e que a diferença entre maçã e fava só aparece mais tarde nas plantas Ou do ponto de vista biológico será mais cor reto dizer que essa diferença já está presente no germe embora eu não possa identificála nos cotilédones Pois é isso que fazemos ao chamar de sexual o prazer que se apresenta nas práticas do lactente Se todo e qualquer 431 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES prazer do órgão pode ser chamado de sexual ou se ao lado do sexual há outro prazer que não merece esse epíteto isso eu não posso discutir aqui Sei muito pouco acerca do prazer do órgão e de seus requisitos e dado o caráter retrocedente da análise não posso me admirar se no final deparar com fatores que não é possível de terminar por agora E mais Ainda que os senhores possam me conven cer de que o melhor é avaliar as práticas dos lactentes como não sexuais muito pouco terão contribuído para aquilo que desejam afirmar ou seja a pureza sexual da criança E isso porque já a partir do terceiro ano de idade a vida sexual da criança subtraise a todas essas dúvidas Por volta dessa época os genitais começam a se fazer notar seguindose um período talvez regular de masturbação infantil isto é de satisfação genital As manifestações psíquicas e sociais da vida sexual não têm mais por que passar despercebidas A escolha do objeto a ternura por pessoas específicas a decisão por um dos dois sexos o ciúme tudo isso pode ser constatado pela observação imparcial e já o foi independentemente da psicanálise e em época anterior a ela além de poder constatálo todo e qualquer observador disposto a vê lo Os senhores objetarão que não puseram em dúvida o despertar precoce da afeição e sim seu caráter se xual Esconder esse caráter é algo que as crianças de três a oito anos já aprenderam a fazer mas se os senho res prestarem atenção poderão coletar provas suficien tes das intenções sensuais dessa afeição e o que lhes escapar as explorações analíticas poderão prover sem 432 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS esforço e em abundância As metas sexuais desse perío do da vida estão intimamente ligadas à pesquisa sexual de então da qual lhes dei algumas amostras O caráter perverso de algumas dessas metas vinculase é claro à imaturidade da constituição da criança que ainda não descobriu a cópula como meta Do sexto ao oitavo ano de vida em diante aproxi madamente notase uma paralisação e um recuo no desenvolvimento sexual fenômeno que nos casos cul turalmente mais favoráveis ganha o nome de período de latência O período de latência pode também não ocorrer não é imperativo que ele acarrete uma total interrupção da atividade e dos interesses sexuais A maioria das expe riências e dos impulsos psíquicos vividos anteriormente à instauração desse período de latência mergulha então na amnésia infantil o já mencionado esquecimento que recobre nossos primeiros anos de vida e os torna alheios a nós Toda psicanálise propõese como tarefa trazer de volta à memória esse período esquecido da vida É dificil escapar à suposição de que o início de nossa vida sexual nele contido fornece o motivo para esse esquecimento e este é portanto resultado da repressão A partir do terceiro ano de vida a vida sexual da criança apresenta muitas semelhanças com a do adulto Ela se diferencia desta última como já sabemos pela falta de uma organização fixa sob o primado dos geni tais pelos inevitáveis traços de perversão e natural mente pela intensidade bem menor de toda a tendência Mas aquelas que são para a teoria as fases mais interes santes do desenvolvimento sexual ou do desenvolvi 433 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES menta da libido como preferimos dizer são as que antecedem esse momento Esse desenvolvimento se dá de forma tão rápida que a observação direta provavel mente jamais conseguiria reter suas imagens fugidias Apenas com a ajuda da investigação psicanalítica das neuroses tornouse possível discernir fases ainda mais remotas do desenvolvimento da libido Sem dúvida elas não são mais que construções mas ao lidar com a prática da psicanálise os senhores descobrirão que se trata de construções necessárias e proveitosas Logo compreenderão como sucede que nisso a patologia che gue a nos revelar condições que nos passariam desper cebidas num objeto normal Podemos agora portanto indicar como se confi gura a vida sexual da criança antes do estabelecimento do primado dos genitais primado este cuja preparação acontece na primeira época da infância anteriormente ao período de latência e que se organiza continuamente a partir da puberdade Nesses primeiros tempos vigora uma espécie de organização frouxa a que chamaremos prégenital Em primeiro plano nessa fase não se en contram os instintos parciais genitais e sim os sádicos e os anais A oposição entre masculino e fominino ainda não desempenha aí papel nenhum seu lugar é ocupado pela oposição entre ativo e passivo que se pode caracte rizar como precursora da polaridade sexual e que mais tarde se funde a ela Examinada do ponto de vista da fase genital o que nos parece masculino nesse momen to revelase expressão de um impulso de apoderamento que facilmente descamba para a crueldade Tendências 434 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS de meta passiva ligamse à zona erógena do ânus bas tante importante nessa época Os instintos de ver e de saber atuam fortemente o órgão genital na verdade só toma parte na vida sexual em seu papel de órgão excre tor da urina Aos instintos parciais dessa fase não fal tam objetos mas eles não convergem necessariamente para um único objeto A organização sádicoanal é o estágio preliminar mais próximo da fase do primado do genital Um estudo mais aprofundado mostra quanto dela se preserva na configuração posterior e definitiva e de que maneiras seus instintos parciais se veem obri gados a incorporarse à nova organização genital Um olhar além dessa fase sádicoanal do desenvolvimento da libido nos fornece a visão de um estágio organiza tório ainda mais primitivo no qual o papel principal é desempenhado pela zona erógena da boca Os senhores podem bem imaginar que a ela pertence a prática se xual do sugar e podem assim admirar a capacidade de compreensão dos antigos egípcios cuja arte representa a criança com o dedo na boca como faz também com o deus Hórus Há pouco tempo Abraham informou so bre os traços que essa fase oral primitiva deixa na vida sexual posterior Meus senhores posso imaginar que esta exposição sobre as organizações sexuais os tenha sobrecarregado mais do que instruído Talvez eu tenha novamente me excedido nos detalhes Mas sejam pacientes o que ouvi ram lhes será mais valioso em sua aplicação futura Por enquanto atenhamse à noção de que a vida sexual ou como dizemos a função libidinal não surge como 435 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES algo pronto e acabado e tampouco segue desenvolvendo se da mesma forma como se apresenta mas passa por uma série de fases sucessivas que não se assemelham umas às outras cumprindo assim um desenvolvimento várias vezes repetido como o da lagarta que se trans forma em borboleta Um ponto decisivo desse desenvol vimento é a subordinação de todos os instintos sexuais parciais ao primado dos genitais e com isso a sujeição da sexualidade à função reprodutora Antes o que se tem é uma vida sexual confusa por assim dizer caracteri zada por uma atividade autônoma dos instintos parciais em busca do prazer do órgão Essa anarquia é atenuada pelas organizações prégenitais nascentes em primei ro lugar a fase sádicoanal e antes dela a oral talvez a mais primitiva de todas Além disso verificamse os di versos processos de que ainda possuímos conhecimento inexato e que conduzem de um estágio organizacional ao seguinte mais elevado Em uma próxima oportunidade descobriremos que significado tem para a compreensão das neuroses o fato de a libido percorrer um caminho tão longo e cheio de interrupções Hoje trataremos ainda de outra faceta desse desen volvimento qual seja a relação dos instintos sexuais parciais com o objeto Ou melhor lançaremos um rápi do olhar panorâmico sobre esse desenvolvimento para então nos determos um pouco mais em uma consequên cia tardia dele Alguns componentes do instinto sexual possuem portanto seu objeto desde o início ao qual se aferram esse é o caso do impulso de apoderamento sadismo e dos instintos de ver e de saber Outros ela 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS ramente vinculados a determinadas zonas erógenas do corpo só de início têm um objeto enquanto se apoiam nas funções não sexuais objeto que abandonam ao se desprender dessas funções Assim o primeiro objeto do componente oral do instinto sexual é o seio materno que satisfaz a necessidade de alimentação do lactente No ato de sugar o componente erótico que é igualmen te satisfeito se faz autônomo abandona o objeto exterior e o substitui por um local do próprio corpo O instinto oral se torna autoerótico como autoeróticos são desde o início os instintos anais e os demais instintos eróge nos O desenvolvimento ulterior possui dois objetivos para dizêlo da forma mais concisa possível em primei ro lugar abandonar o autoerotismo trocar novamente o objeto do próprio corpo por um objeto exterior em segundo lugar unificar os diversos objetos dos instin tos substituindoos por um único objeto Isso é claro só é possível se esse objeto único for um corpo em sua totalidade semelhante ao corpo do próprio indivíduo Além disso esse desenvolvimento não pode se dar sem que certo número de impulsos instintuais autoeróticos sejam considerados inúteis e portanto abandonados Os processos envolvidos na busca do objeto são bas tante complexos e até agora não tiveram uma exposição abrangente Enfatizemos para nossos propósitos que caso esse processo alcance algum tipo de desfecho nos anos da infância que precedem o período de latência o objeto encontrado se revelará quase idêntico ao primei ro objeto do instinto do prazer oral obtido apoiandose no instinto de nutrição Ele será quando não o seio ma 437 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES terno a própria mãe Dizemos que a mãe é o primeiro objeto de amor Falamos em amor quando trazemos para o primeiro plano o lado psíquico das tendências sexuais rechaçando ou esquecendo momentaneamente as de mandas instintuais subjacentes as físicas ou sensuais Por volta da mesma época em que a mãe se torna objeto de amor já teve início na criança o trabalho psíquico da repressão que lhe oculta o conhecimento de uma par te de suas metas sexuais A essa escolha da mãe como objeto de amor vinculase então tudo aquilo que sob a designação complexo de Édipo acabou adquirindo tanta importância na explicação psicanalítica das neuro ses e possivelmente granjeou para a psicanálise parte significativa da resistência contra ela Ouçam um pequeno episódio acontecido no curso da presente guerra Um dos mais aplicados discípulos da psicanálise encontrase no fronte alemão em alguma parte da Polônia na condição de médico Ali ele des perta a atenção dos colegas pelo fato de ocasionalmen te lograr exercer inesperada influência sobre um doen te Perguntado a esse respeito ele confessa valerse dos meios da psicanálise e declarase disposto a compar tilhar seu conhecimento com os colegas Toda noite então os médicos da corporação colegas e superiores passam a se reunir para ouvir os ensinamentos secretos da análise Por um tempo tudo vai bem mas depois de o palestrante falar a seus ouvintes sobre o complexo de Édipo um superior se levanta e declara não acreditar naquilo era uma poucavergonha dizer coisas daquela natureza a homens corajosos que lutam pela pátria e a 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS pais de família razão pela qual proibia a continuidade das palestras Foi de fato o fim delas O analista pediu para ser transferido para outro local do fronte Creio porém que as coisas vão mal quando a vitória alemã re quer tal organização da ciência e que a ciência alemã não suportará bem uma organização desse tipo Os senhores certamente estarão ansiosos de saber o que contém esse terrível complexo de Édipo O nome já lhes diz Todos conhecem a lenda grega do rei Édipo fadado a matar o pai e se casar com a mãe ele faz de tudo para escapar à sentença do oráculo e por fim pune a si mesmo com a cegueira ao descobrir que de fato cometeu ambos aqueles crimes sem saber Espero que muitos dos senhores tenham experimentado pessoal mente o efeito comovente da tragédia na qual Sófocles trata desse assunto A obra do dramaturgo ateniense mostra o desvendamento paulatino do ato perpetrado por Édipo já há muito tempo e ela o faz por meio de uma investigação postergada com arte e sempre reavi vada por novos indícios Nesse aspecto ela possui certa semelhança com o curso de uma psicanálise No trans correr do diálogo ocorre de a obnubilada mãeesposa Jocasta se opor ao prosseguimento da investigação Ela invoca o fato de em sonho muitos homens dor mirem com a própria mãe mas acrescenta que sonhos merecem pouca atenção Nós porém não prestamos pouca atenção aos sonhos sobretudo a sonhos típicos aqueles que muitos têm nem duvidamos que o sonho mencionado por Jocasta esteja em íntima relação com o conteúdo estranho e assustador da lenda 439 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES É de admirar que a tragédia de Sófocles não provo que no ouvinte indignada rejeição semelhante àquela de nosso simplório médico militar e bem mais justifica da Isso porque no fundo tratase de uma peça imoral que anula a responsabilidade ética do homem mostra poderes divinos como mandantes de um crime e apre senta a impotência dos impulsos morais humanos que se insurgem contra esse crime Seria fácil acreditar que o conteúdo da lenda pretende ser uma acusação contra os deuses e o destino e nas mãos de Eurípides crítico e incompatibilizado com os deuses ele provavelmente teria resultado em tal incriminação Mas semelhante uso é impensável tratandose de um crente como Sófocles Uma pia sutileza o ajuda a vencer a dificuldade curvar se à vontade dos deuses ainda que eles ordenem um ato criminoso seria a moralidade suprema Não posso crer que essa moral esteja entre os pontos fortes da tragédia de Sófocles mas ela não tem importância para o efeito da obra O espectador não reage a ela e sim ao conteúdo e sentido oculto da lenda Ele reage como se por meio da autoanálise tivesse reconhecido em si próprio o com plexo de Édipo e desmascarado a vontade divina e o orá culo como disfarces enaltecidos de seu próprio incons ciente como se fosse obrigado a recordar o desejo de eliminar o pai e em lugar dele tomar a mãe como espo sa e se horrorizar com esse desejo E compreende a voz do poeta como se lhe dissesse Tu te revoltas em vão contra a tua responsabilidade e proclamas o que fizeste contra tais intenções criminosas Mas és sim culpado pois não foste capaz de aniquilálos eles permanecem 440 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS ainda inconscientes dentro de ti E aí está a verdade psicológica Ainda que o homem reprima seus impulsos maus banindoos para o inconsciente e queira então dizer que não é responsável por eles ele é obrigado a sentir essa responsabilidade na forma de um sentimento de culpa cujo fundamento desconhece É indubitável que podemos ver no complexo de Édi po uma das fontes mais importantes da consciência cul pada que tanto atormenta os neuróticos E digo mais em um estudo sobre os primórdios da religião e da mo ralidade humanas que publiquei em 1913 com o título Totem e tabu aventei a hipótese de que talvez a huma nidade como um todo tenha adquirido sua consciência de culpa fonte última da religião e da moralidade no princípio de sua história com o complexo de Édipo Gostaria de dizer mais a esse respeito mas é melhor que não o faça Uma vez abordado é difícil interromper esse tema e precisamos retornar à psicologia individual O que portanto a observação direta da criança na época da escolha do objeto anteriormente ao período de latência leva a perceber do complexo de Édipo Bem vêse com facilidade que o garotinho quer a mãe apenas para si que sente a presença paterna como perturba dora que se irrita quando o pai se permite demonstrar ternura a ela e que manifesta satisfação quando ele está viajando ou ausente Com frequência o menino dá ex pressão verbal a seus sentimentos e promete à mãe que vai se casar com ela Poderseia argumentar que isso é pouco em comparação com os atos de Édipo mas na verdade é o bastante e de forma embrionária a mes 441 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES ma coisa Muitas vezes a observação é obscurecida pelo fato de a mesma criança em outras ocasiões de monstrar também grande ternura para com o pai mas tais posturas emocionais contraditórias ou melhor dizendo ambivalentes que em um adulto conduzi riam a um conflito convivem muito bem na criança por um longo período de tempo assim como mais tarde encontram lugar permanente lado a lado no incons ciente Outra objeção seria a de que o comportamen to do menino decorreria de motivações egoístas e não constituiria portanto justificativa para a postulação de um complexo erótico A mãe cuida de todas as necessi dades do filho a quem por isso mesmo interessa que ela não cuide de mais ninguém Também isso está cor reto mas logo fica claro que nessa situação assim como em situações semelhantes o interesse egoísta oferece apenas o apoio ao qual se vincula a aspiração erótica Se o menino exibe a mais desvelada curiosidade sexual em relação à mãe se à noite exige dormir do lado dela se insiste em estar presente quando ela faz sua toalete ou mesmo realiza tentativas de sedução como tantas vezes a mãe pode constatar e relatar com um sorriso então a natureza erótica do vínculo com a mãe está estabelecida acima de qualquer dúvida Não se pode esquecer que a mãe dedica os mesmos cuidados à filha sem contudo produzir nela o mesmo efeito e que o pai com bastante frequência compete com a mãe nos cuidados que dedi ca ao menino sem no entanto lograr tornarse para ele tão importante como a mãe Em suma nenhuma crítica pode eliminar desse quadro o fator da preferência se 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÚES SEXUAIS xual Do ponto de vista do interesse egoísta não seria inteligente da parte do menino preferir ter a seu serviço apenas uma pessoa em vez de duas Como os senhores podem perceber descrevi ape nas a relação do menino com o pai e a mãe No caso da menina essa relação é muito parecida ressalvadas as necessárias diferenças O apego terno ao pai a necessi dade de afastar a mãe como supérflua e tomar seu lugar certo coquetismo a operar já com os meios da futura feminilidade tudo isso reveste a menina de uma graça que nos faz esquecer a seriedade e as eventuais graves consequências por trás dessa situação infantil Não nos esqueçamos de acrescentar que com frequência são os próprios pais que exercem influência decisiva no des pertar da postura edipiana na medida em que também eles seguem o que lhes dita a atração sexual sendo di versos os filhos a ternura paterna privilegia claramente a filha ao passo que a materna dá preferência ao me nino Contudo a natureza espontânea do complexo de Édipo infantil não se deixa abalar seriamente nem mesmo por esse fator O complexo de Édipo expandese para um complexo familiar quando outras crianças se juntam a esse quadro Apoiandose outra vez no senti mento egoísta do dano sofrido ele faz com que novos irmãos sejam recebidos com antipatia e em desejo eli minados sem o menor escrúpulo Em geral as crianças dão expressão verbal antes a esses sentimentos de ódio do que àqueles originados pelo complexo envolvendo os pais Se um tal desejo se realiza e a morte logo leva o irmão indesejado a análise posterior pode nos mostrar 443 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES a grande importância que essa morte vivida teve para a criança para o que nem é necessário que tal experiên cia tenha se fixado em sua memória A criança relegada a segundo plano e quase isolada pela mãe quando do nascimento de outro filho dificilmente lhe perdoa esse rebaixamento instalamse nela sentimentos que em adultos caracterizaríamos como de grande amargura os quais acabam por se tornar a base para um duradou ro estranhamento Já mencionamos que a pesquisa se xual com todas as suas consequências costuma se rela cionar a essa vivência da infância Com o crescimento desses irmãos a postura em relação a eles sofre as mais significativas alterações O garoto pode transformar a irmã em objeto de amor em substituição à mãe infiel e entre diversos irmãos a cortejar a irmãzinha mais nova estabelecese já na infância uma rivalidade hostil situa ção tão importante em sua vida posterior A menina por sua vez encontra no irmão mais velho um substitu to para o pai que já não lhe dedica o carinho de antes ou adota uma irmã mais nova como substituta para o filho que em vão desejou ter com o pai Coisas assim e muitas outras de natureza semelhan te é o que lhes revela a observação direta das crianças e a consideração de suas lembranças infantis preserva das com clareza e não influenciadas pela análise Disso tudo os senhores tirarão entre outras a conclusão de que a posição de uma criança dentro de uma sequência de filhos é fator extremamente importante na conforma ção de sua vida posterior fator este que deve ser con siderado em toda e qualquer história de vida E mais 444 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS importante ainda diante desses esclarecimentos cuja obtenção não demanda nenhum esforço os senhores não poderão se lembrar senão com um sorriso das ex plicações da ciência para a proibição do incesto Quanta invencionice não contêm O convívio desde a infância seria o responsável por desviar a propensão sexual de um membro de uma família por outro do sexo oposto ou afirmam elas ainda uma tendência biológica a evitar o cruzamento consanguíneo teria encontrado na aver são ao incesto sua representação psíquica Esquecemse essas explicações de que não precisaríamos de nenhuma proibição inexorável legal ou moral caso dispusésse mos de fato de barreiras naturais e confiáveis à tenta ção do incesto A verdade está no contrário A primeira escolha objetai do ser humano é em regra incestuo sa voltandose no caso do homem para mãe e irmã e a mais severa proibição é necessária para impedir que essa propensão infantil atuante se torne realidade Nos povos primitivos ainda em existência nos dias de hoje os povos selvagens as proibições do incesto são ainda mais rigorosas que as nossas em um trabalho brilhan te Theodor Reik mostrou há pouco tempo que o sig nificado daqueles ritos da puberdade dos selvagens que representam um renascimento é a busca da eliminação da ligação incestuosa do menino com a mãe e de sua reconciliação com o pai A mitologia ensina que o incesto supostamente tão execrado pelos homens é direito concedido sem qual quer hesitação aos deuses Por meio dessas histórias da Antiguidade os senhores ficam sabendo que o casa 445 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES menta incestuoso com a irmã era preceito sagrado para a pessoa do soberano como entre os antigos faraós ou os incas no Peru Tratase portanto de um privilégio negado à população comum O incesto com a mãe é um dos crimes de Édipo o parricídio é o outro Menciono apenas de passagem que esses são também os dois grandes crimes condenados pela primeira instituição sociorreligiosa conhecida pe los seres humanos o totemismo Passemos agora da ob servação direta da criança para a investigação analítica do adulto acometido pela neurose Que contribuição dá a análise para o maior conhecimento do complexo de Édipo Podese dizêlo de forma breve ela o mostra como ele é descrito na lenda mostra que todo neurótico foi ele próprio um Édipo ou que o que dá no mes mo em sua reação ao complexo ele se transformou em um Hamlet Naturalmente a apresentação analítica do complexo de Édipo é uma amplificação e uma versão mais grosseira do esboço infantil O ódio ao pai o de sejo de morte em relação a ele já não são timidamente insinuados a ternura para com a mãe admite o obje tivo de possuíla como mulher Podemos de fato atri buir esses impulsos afetivos claros e extremos àqueles anos tenros da infância ou será que a análise nos en gana introduzindo um novo fator Não é difícil iden tificar o fator novo Toda vez que alguém relata algo pertencente ao passado mesmo que se trate de um his toriador precisamos levar em consideração aquilo que inadvertidamente ele retirou do presente ou de alguma época intermediária e transferiu para aquele passado 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES dedicar à grande tarefa de apartarse dos pais somente depois de realizada essa tarefa poderá ele deixar de ser criança para tornarse membro da comunidade social Para o filho isso consiste em desprender da mãe seus desejos libidinosos a fim de empregálos na escolha de um objeto real e exterior e em reconciliarse com o pai caso lhe tenha permanecido hostil ou em se libertar da pressão exercida por ele caso o resultado da rebelião infantil contra ele tenha sido a submissão Essas tare fas precisam ser cumpridas por todos e digno de nota é quão raramente elas são realizadas de forma exitosa e ideal ou seja corretamente tanto do ponto de vista psicológico como do social Fato é que os neuróticos ja mais logram cumprilas o filho permanece a vida toda curvado à autoridade paterna e não consegue transferir sua libido para um objeto sexual exterior Modificada a relação a mesma sorte pode ser também a da filha Nesse sentido o complexo de Édipo é considerado com razão o núcleo das neuroses Os senhores podem bem imaginar como passei su perficialmente por uma série de importantes considera ções tanto práticas como teóricas vinculadas ao com plexo de Édipo Tampouco abordarei suas variações e sua possível reversão De suas repercussões mais distan tes quero apenas mencionar que o complexo de Édipo se revelou altamente determinante na produção poética Em um livro de muitos méritos Otto Rank mostrou que dramaturgos de todas as épocas extraíram a matéria para seus dramas sobretudo dos complexos de Édipo e do in cesto assim como de suas variações e dissimulações 21 O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS Tampouco posso deixar de mencionar que em época muito anterior à psicanálise os dois desejos criminosos presentes no complexo de Édipo já foram reconhecidos como os veros representantes da vida instintual desen freada Entre os escritos do enciclopedista Diderot encontrase um famoso diálogo Le neveu de Rameau O sobrinho de Rameau traduzido para o alemão por nin guém menos que Goethe Nele os senhores podem ler esta frase notável Si le petit sauvage était abandonné à luimême quil conservât toute son imbécillité et quil réunít au peu de raison de lenfimt au berceau la violence des pas sions de lhomme de trente ans il tordrait le co à son pere et coucherait aYec sa mere Se o pequeno selvagem fosse abandonado a si mesmo conservando toda a sua imbe cilidade e juntando à pouca razão da criança de berço a violência das paixões de um homem de trinta anos ele torceria o pescoço do pai e dormiria com a mãe Não posso todavia deixar de considerar outra coi sa Não será em vão que a mãeesposa de Édipo nos re cordou os sonhos Os senhores ainda se lembram do re sultado de nossas análises de que os desejos formadores dos sonhos são com frequência de natureza perversa e incestuosa ou revelam hostilidade insuspeitada con tra parentes próximos e queridos Não esclarecemos naquele momento de onde se originam esses impul sos maus Agora os senhores mesmos podem dizêlo São alocações da libido e investimentos de objeto que remontam à primeira infância há muito abandonados na vida consciente mas que se mostram ainda presen tes durante a noite e em certo sentido atuantes Como 449 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES porém todas as pessoas e não apenas os neuróticos têm sonhos perversos incestuosos e assassinos é lícito concluirmos que também aqueles que são hoje normais cumpriram um desenvolvimento que passou pelas per versões e pelos investimentos de objeto do complexo de Édipo que esse é pois o caminho do desenvolvimento normal e que os neuróticos apenas exibem em versão ampliada e mais grosseira aquilo que a análise dos so nhos revela também nas pessoas saudáveis E esse é um dos motivos pelos quais fizemos o estudo dos sonhos preceder o dos sintomas neuróticos 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA Senhoras e senhores Vimos que a função da libido per corre extenso desenvolvimento até poder entrar a servi ço da reprodução no modo que é chamado normal Eu gostaria de exporlhes agora o significado que tem esse fato na causação das neuroses Creio estarmos de acordo com as doutrinas da pato logia geral ao supormos que tal desenvolvimento traz consigo dois perigos primeiro o da inibição e em se gundo lugar o da regressão Ou seja considerandose a tendência geral à variação dos processos biológicos há de acontecer de nem todas as fases preparatórias corre rem igualmente bem e serem superadas completamen te partes da função ficarão retidas de forma duradoura 40 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA nesses estágios iniciais e o quadro geral do desenvolvi mento sofrerá certa medida de inibição Procuremos em outras áreas analogias para esses processos Quando um povo inteiro abandona sua terra em busca de nova morada como muitas vezes aconte ceu em períodos anteriores da história da humanida de ele certamente não chega completo ao novo lugar Desconsiderandose perdas outras há de ter acontecido com regularidade de pequenos agrupamentos ou as sociações de migrantes se haverem detido ao longo do caminho estabelecendose nessas paradas enquanto a grande massa restante seguia em frente Ou valendo me de uma comparação mais próxima os senhores sabem que nos mamíferos superiores as glândulas se xuais masculinas originalmente localizadas no fundo da cavidade abdominal iniciam uma migração em cer to momento de sua vida intrauterina que as situa quase diretamente sob a pele da extremidade da pélvis Como consequência dessa migração descobrimos em certo número de indivíduos machos que desse par de órgãos um deles permaneceu na cavidade pélvica ou encontrou abrigo permanente no chamado canal inguinal pelo qual ambos tiveram de passar em sua migração ou então que esse canal permaneceu aberto quando o normal é que ele se feche uma vez concluída a mudança de local das glândulas sexuais Quando ainda como jovem estudante fiz meu primeiro trabalho científico sob a orientação de von Brücke ocupeime da origem das raízes nervosas pos teriores da medula espinhal de um pequeno peixe de 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES conformação ainda bastante arcaica Descobri que as fibras nervosas daquelas raízes provinham de grandes células situadas no corno posterior da matéria cinzen ta o que já não ocorre em outros vertebrados Logo depois porém descobri que exteriormente à matéria cinzenta tais células nervosas distribuíamse por todo o percurso até o chamado gânglio espinhal da raiz pos terior o que me levou à conclusão de que as células dessas massas de gânglios haviam migrado da medula espinhal pelas raízes dos nervos Isso aliás é o que nos mostra a história evolutiva naquele pequeno peixe po rém todo o percurso migratório podia ser reconhecido por meio das células que haviam ficado para trás Se os senhores se aprofundarem nessas comparações não te rão dificuldade para identificar seus pontos fracos Por isso melhor é fazermos uma afirmação direta julgamos possível que certas porções de toda e qualquer tendên cia sexual tenham ficado pelo caminho permanecendo em estágios anteriores de desenvolvimento ainda que outras porções possam ter alcançado sua meta final Os senhores veem que imaginamos cada uma dessas ten dências como um fluxo contínuo que teve início no princípio da vida e que nós artificialmente por assim dizer decompomos em fases separadas e subsequentes A impressão que os senhores têm de que essas noções necessitariam de uma melhor clarificação é correta mas semelhante tentativa nos desviaria demasiado de nosso caminho Estabeleçamos pois que tal permanência de uma tendência parcial em um estágio anterior é o que chamamos de fixação do instinto cação O segundo perigo de um desenvolvimento por estágios está no fato de também as porções que lograram avançar poderem facilmente em um movimento retrógrado retornar a um dos estágios anteriores o que chamamos de regressão A tendência se verá levada a essa regressão quando o exercício de sua função ou seja o alcance de sua meta de satisfação depara com fortes impedimentos externos na sua forma posterior ou mais desenvolvida É natural supormos que fixação e regressão não são independentes uma da outra Quanto mais fortes as fixações no caminho do desenvolvimento tanto mais a função evitará as dificuldades externas mediante regressão a essas fixações e tanto menos capaz de resistência se revelará a função desenvolvida diante de impedimentos externos a barrarlhe o caminho Considerem que se um povo em movimento deixa grandes divisões pelo caminho ao longo das estações de sua migração será natural que aqueles que seguiram adiante retornem a tais estações caso sejam derrotados ou deparem com um inimigo demasiado forte o perigo da derrota será porém tanto maior quanto maior o número daqueles deixados para trás no curso da migração É importante para o entendimento das neuroses que os senhores tenham sempre em vista essa relação entre fixação e regressão Isso lhes dará um ponto de apoio seguro nas questões relativas à causação das neuroses à sua etiologia que logo abordaremos Antes porém detenhamonos um pouco mais na regressão Em consonância com aquilo que os senhores aprenderam acerca do desenvolvimento da função da li 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES bido é lícito que esperem encontrar dois tipos de regres são o retorno àqueles primeiros objetos investidos de li bido e sabidamente de natureza incestuosa e o retorno de toda a organização sexual a estágios anteriores Esses dois tipos ocorrem nas neuroses de transferência e desempe nham papel importante em seu mecanismo Em especial o retorno aos primeiros objetos incestuosos da libido é um traço que nos neuróticos se repete com exaustiva regula ridade Muito mais se poderia dizer acerca das regressões da libido se levássemos em consideração outro grupo de neuroses as chamadas neuroses narcisistas o que no momento não é nossa intenção Essas afecções no entanto nos dão informações sobre outros processos de desenvolvimento da função da libido ainda não men cionados aqui e nos mostram novos tipos de regressão Creio porém que devo agora antes de mais nada ad vertir os senhores para que não confundam regressão com repressão cabendome pois ajudálos no esclarecimento das relações existentes entre esses dois processos A re pressão como os senhores se lembram é aquele proces so pelo qual um ato apto a se tornar consciente que pertence ao sistema Pcs é tornado inconsciente ou seja é empurrado de volta ao sistema Ics Também cha mamos de repressão o que ocorre quando o ato psíquico inconsciente nem sequer é admitido no vizinho sistema préconsciente e sim rechaçado no limiar deste pela cen sura O conceito da repressão não guarda portanto ne nhuma relação com a sexualidade guardem bem isso por favor Ele designa um processo puramente psicológi co mais bem caracterizado se o chamarmos de topológico 454 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA O que queremos dizer com isso é que está vinculado às regiões psíquicas que supomos ou se dispensarmos essa tosca noção auxiliar à construção do aparelho psíquico a partir de sistemas psíquicos separados Pela via da comparação proposta damonos conta de que a palavra regressão não foi até aqui utilizada em seu significado geral e sim numa acepção bastante especial Se os senhores atribuírem a ela seu significado mais geral o do retorno de um estágio superior a ou tro inferior do desenvolvimento também a repres são estará subordinada a ela uma vez que a repressão pode ser igualmente descrita como retorno a um está gio anterior e mais profundo do desenvolvimento de um ato psíquico Para nós todavia não importa esse movimento para trás uma vez que chamamos repressão também no sentido dznâmico quando um ato psíquico é retido no estágio mais baixo do inconsciente Repressão é portanto um conceito topológicodinâmico ao passo que regressão é puramente descritivo O que porém até o momento chamamos de regressão e relacionamos à fixação diz respeito apenas ao retorno da libido a esta ções anteriores de seu desenvolvimento algo essencial mente diferente e independente do de repressão Tam pouco podemos caracterizar a regressão da libido como um processo puramente psíquico e não sabemos que localização atribuir a ela no aparelho psíquico Ainda que ela exerça a mais poderosa influência na vida psí quica seu fator mais saliente é o orgânico Discussões como essas meus senhores devem soar um tanto áridas Voltemonos para a clínica a fim de 455 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES encontrar usos mais expressivos para elas Como sa bem a histeria e a neurose obsessiva são os dois repre sentantes principais do grupo das neuroses de transfe rência Embora a histeria apresente uma regressão da libido aos objetos sexuais primários e incestuosos e o faça com grande regularidade nela não há regressão a um estágio anterior da organização sexual Em com pensação cabe à repressão o papel principal no meca nismo da histeria Se me for permitido completar com uma construção teórica o nosso atual conhecimento seguro sobre essa neurose eu descreveria a questão da seguinte forma a unificação dos instintos parciais sob o primado dos genitais se completou mas seus resultados deparam com a resistência do sistema préconsciente vinculado à consciência Assim a organização geni tal vale para o inconsciente mas não igualmente para o préconsciente e essa rejeição por parte do pré consciente produz um quadro que exibe certas seme lhanças com o estado anterior ao primado dos genitais Mas ele é algo inteiramente diferente afinal Das duas regressões da libido a que mais chama a atenção é a do retorno a uma fase anterior da organi zação sexual Como porém ela não ocorre na histeria e toda a nossa concepção das neuroses encontrase ainda em vasta medida sob a influência do estudo da histeria que precedeu os demais o significado da regressão da libido só se tornou claro para nós mui to depois do da repressão Estejamos preparados para o fato de que nossos pontos de vista experimentarão ain da outras ampliações e reavaliações quando pudermos 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA incluir em nossas considerações além da histeria e da neurose obsessiva as outras neuroses as narcisistas Na neurose obsessiva pelo contrário a regressão da libido ao estágio preliminar da organização sádicoanal é o que chama mais a atenção e o fato decisivo para o que os sintomas manifestam O impulso amoroso é obrigado então a mascararse de impulso sádico A ideia obsessiva eu gostaria de te matar nada mais sig nifica no fundo que eu gostaria de desfrutar do amor em ti se despojada de certos acréscimos que não são casuais mas imprescindíveis Considerem além disso que simultaneamente houve uma regressão objetai de forma que tais impulsos se dirigem apenas às pessoas que nos são próximas e queridas e poderão ter uma ideia do horror que essas ideias obsessivas despertam no doente assim como da estranheza com que surgem para a percepção consciente Mas também a repressão constitui parte significativa do mecanismo dessas neu roses o que porém não é fácil expor numa introdução breve como a nossa Regressão da libido sem repressão jamais resultaria em neurose e sim em perversão Nisso notam os senhores que a repressão é o processo mais peculiar à neurose e o que melhor a caracteriza Talvez eu venha a ter oportunidade de lhes dizer o que sabe mos sobre o mecanismo das perversões e todos pode rão ver então que também aí nada é tão simples como gostaríamos de construir Meus senhores penso que as explicações que acaba ram de ouvir acerca da fixação e da regressão lhes pa recerão mais aceitáveis se as tomarem como preparação 457 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES para o estudo da etiologia das neuroses A esse respeito fizlhes uma única afirmação a saber que as pessoas se tornam neuróticas quando privadas da possibilidade de satisfazer sua libido adoecem pois em virtude da frustração como me exprimi e que seus sintomas são os substitutos da satisfação frustrada É claro que isso não significa que toda frustração da satisfação li bidinal torna neurótico aquele que a sofre mas apenas que em todos os casos de neurose examinados o fator da frustração era demonstrável Portanto essa tese não é reversível Os senhores terão compreendido também que a afirmação acima não pretende desvendar todo o segredo da etiologia das neuroses mas apenas enfatizar uma precondição importante e indispensável É difícil saber se para dar prosseguimento à discus são dessa tese devemos nos voltar para a natureza da frustração ou para a singularidade daquele a quem ela atinge É muito raro que a frustração seja completa e absoluta para ter efeito patogênico é necessário que ela atinja aquele tipo único de satisfação que a pessoa deseja o único de que ela é capaz Em geral há mui tos caminhos que possibilitam suportar a privação da satisfação libidinosa sem que se adoeça por causa dela Acima de tudo conhecemos pessoas capazes de absor ver tal privação sem consequências danosas Elas não são felizes o anseio as atormenta mas não adoecem Além disso temos de levar em consideração que preci samente os impulsos sexuais apresentam extraordinária plasticidade se posso dizêlo dessa maneira Um pode substituir o outro ou assumir sua intensidade se a satis 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA fação de um deles é frustrada pela realidade a de outro pode proporcionar plena compensação Eles se relacio nam entre si como uma rede de canais intercomunican tes cheios de líquido e isso a despeito de sua submis são ao primado dos genitais o que não é tão fácil de conciliar numa representação Além disso os impulsos parciais da sexualidade assim como a tendência sexual que deles resulta exibem grande capacidade de mudar de objeto de substituir um objeto por outro ou seja trocálo por algum que seja mais facilmente alcançável Essas mobilidade e disposição de acolher um sucedâneo hão de contrariar poderosamente o efeito patogênico da frustração Entre esses processos que protegem contra o adoecimento em virtude da privação um em particular ganhou especial importância cultural Nele a aspiração sexual abre mão de sua meta voltada para o prazer par cial ou para o desejo de reprodução em favor de outra geneticamente relacionada com a anterior mas que já não pode ser chamada de sexual e sim de social Cha mamos a esse processo de sublimação submetendo nos à avaliação geral que situa metas sociais acima das sexuais fundamentalmente egoístas A sublimação é incidentalmente apenas um caso especial do apoio das tendências em outras não sexuais Ainda falaremos dela em outro contexto Os senhores terão a impressão de que graças a todos esses meios que possibilitam suportála a privação é re duzida à insignificância Mas não ela mantém seu poder patogênico Em geral os meios contrários não são su ficientes O montante de libido insatisfeita que os seres 459 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES humanos podem medianamente suportar é limitado A plasticidade ou livre mobilidade da libido não é plena mente conservada em todas as pessoas e a sublimação só consegue dar conta de determinada fração da libi do aparte o fato de muitas pessoas serem contempladas com uma capacidade apenas reduzida de sublimação A mais importante dessas limitações é evidentemente a da mobilidade da libido uma vez que ela torna a satisfação do indivíduo dependente da obtenção de um número bastante reduzido de metas e objetos Basta lembrar que um desenvolvimento incompleto da libido deixa para trás numerosas e eventualmente variadas fixações li bidinais em fases anteriores da organização e da busca objetai em sua maioria incapazes de real satisfação e os senhores reconhecerão na fixação libidinal o segundo fator poderoso a causar o adoecimento juntamente com a frustração De maneira abreviada e esquemática os senhores podem dizer que a fixação libidinal representa o fator interno predisponente e a frustração o fator aci dental externo na etiologia das neuroses Aproveito aqui a oportunidade para advertilos a não tomar partido em uma disputa inteiramente supér flua Na atividade científica é comum tomar uma parte da verdade situála no lugar do todo e em prol dessa parte combater o restante que não é menos verdadeiro Dessa maneira várias orientações já divergiram do mo vimento psicanalítico Uma delas reconhece apenas os instintos egoístas e renega os sexuais outra considera apenas a influência das tarefas reais da vida mas igno ra o passado do indivíduo e assim por diante Também 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA aqui há agora o ensejo para semelhante oposição e con trovérsia são as neuroses enfermidades exógenas ou en dógenas a consequência inevitável de certa constituição ou o produto de determinadas experiências vitais dano sas traumáticas Em particular são provocadas pela fixação libidinal e pelo restante da constituição sexual ou pela pressão da frustração A mim esse dilema não parece mais sábio do que outro que eu poderia lhes propor a criança é gerada pelo pai ou concebida pela mãe As duas condições são igualmente imprescindí veis responderão os senhores com razão Na causação da neurose a relação não é exatamente a mesma mas é muito parecida Tratandose do exame de suas causas os casos de adoecimento neurótico dispõemse numa série no interior da qual os dois fatores constituição sexual e vivências ou se quiserem fixação libidinal e frustração encontramse representados de maneira que crescendo a participação de um deles a do outro diminui Nas duas pontas dessa série estão os casos ex tremos dos quais os senhores podem afirmar com con vicção o que quer que tenham vivido e por mais que a vida tenha cuidado de poupálas essas pessoas teriam adoecido de qualquer maneira em virtude do desenvol vimento singular de sua libido Na outra ponta estão os casos em que os senhores teriam de julgar o contrário essas pessoas com certeza teriam escapado da doença se a vida não as tivesse posto nessa ou naquela situação Nos demais casos do interior da série um grau maior ou menor de prédisposição da constituição sexual se junta a um grau menor ou maior de exigências danosas 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES colocadas pela vida A constituição sexual dessas pes soas não as teria tornado neuróticas se elas não tivessem passado por tais vivências e essas não teriam produzido efeito traumático se as condições da libido tivessem sido outras Nessa série eu talvez possa atribuir peso algo maior para a prédisposição e seus fatores mas também essa atribuição depende de até onde os senhores estão inclinados a estender as fronteiras da doença nervosa Meus senhores eu lhes sugiro caracterizar séries as sim como séries complementares e quero já avisálos de que teremos oportunidade de estabelecer outras séries semelhantes A tenacidade com que a libido se prende a determi nadas orientações e objetos sua viscosidade por assim dizer parecenos um fator autônomo variável de in divíduo para indivíduo cujos determinantes desconhe cemos por completo e cujo significado para a etiologia das neuroses não mais subestimaremos Tampouco de vemos superestimar porém a intimidade dessa relação Uma viscosidade similar da libido ocorre também por razões desconhecidas e sob numerosas condições nas pessoas normais e é considerada fator determinante naqueles que em certo sentido são o oposto dos neuró ticos os pervertidos Já em época anterior à psicanálise sabiase Binet que muitas vezes na anamnese dos per vertidos é encontrada uma impressão bastante precoce de orientação instintual ou escolha objetai anormal à qual a libido da pessoa se prendeu por toda a vida Com frequência não se sabe o que tornou essa impressão ca paz de exercer atração tão intensa sobre a libido Vou 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA lhes relatar um caso desse tipo que eu mesmo observei Um homem para o qual hoje os genitais e demais atrati vos da mulher nada significam e a quem somente um pé calçado e de determinado formato é capaz de excitar de maneira irresistível lembrase de uma experiência vivi da aos seis anos de idade que foi decisiva para a fixação de sua libido Ele estava sentado em um banco ao lado da professora particular com a qual tinhas aulas de inglês Naquele dia a professora uma senhorita já de alguma idade seca nada bonita com olhos de um azulpálido e nariz arrebitado estava com o pé machucado razão pela qual o havia calçado com uma pantufa de veludo e agora com a perna esticada repousavao sobre uma poltrona a perna em si encontravase coberta com a máxima decência O pé magro e cheio de nervos como o da professora de outrora tornouse então depois de uma tímida tentativa de prática sexual normal na puber dade seu único objeto sexual seu arrebatamento não conhecia resistência se ao pé se associavam outras ca racterísticas reminiscentes da professora de inglês Essa fixação da libido no entanto não fez dele um neurótico e sim um pervertido um fetichista do pé como dize mos Os senhores podem ver portanto que embora a fixação desmesurada e ademais precoce da libido seja imprescindível para a causação da neurose sua esfera de atuação ultrapassa em muito o âmbito das neuroses Mas também essa condição por si só é tão pouco decisiva quanto a frustração mencionada anteriormente O problema da causação das neuroses parece com plicarse portanto De fato a investigação psicanalítica 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES nos dá a conhecer um outro fator não considerado em nossa série etiológica e que reconhecemos melhor na queles casos em que o bemestar do indivíduo é de súbi to perturbado pelo adoecimento neurótico Nessas pes soas encontramos regularmente sinais de uma disputa entre desejos ou como costumamos dizer de um con flito psíquico Uma parte da personalidade representa certos desejos enquanto a outra se volta contra eles e os rechaça Sem esse conflito não há neurose Isso não nos pareceria nada de especial Os senhores sabem que nossa vida psíquica é movida por incessantes conflitos que cabe a nós resolver Sem dúvida condições espe ciais precisam ser preenchidas para que tal conflito se torne patogênico Devemos perguntar que condições são essas entre quais poderes psíquicos se desenvolvem tais conflitos patogênicos que relação com os demais fatores causadores da neurose tem esse conflito Espero ser capaz de lhes dar respostas satisfatórias para essas perguntas ainda que elas sejam breves e es quemáticas O conflito é provocado pela frustração pois a libido privada de sua satisfação é levada a bus car outros objetos e caminhos Ele tem por condição o fato de esses caminhos e objetos suscitarem desgosto em uma parte da personalidade o que resulta em um veto que primeiramente impossibilita o novo modo de satisfação Parte daí o caminho que conduz à forma ção do sintoma que acompanharemos mais adiante As tendências libidinais repelidas conseguem se impor por caminhos indiretos mas não sem levar em conta a ob jeção através de certas desfigurações e atenuações Os 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA desvios tomados são os caminhos da formação do sin toma os sintomas são a satisfação nova ou substitutiva que se tornou necessária devido à frustração Podese também expressar adequadamente o sig nificado do conflito psíquico dizendo que à frustração exterior devese somar para que tenha efeito patogêni co a frustração interior Frustrações exterior e interior referemse naturalmente a diversos caminhos e objetos A frustração exterior retira uma possibilidade de satis fação a interior deseja excluir outra possibilidade e em torno desta irrompe então o conflito Dou preferência a essa forma de expressão porque ela tem um teor ocul to aponta para a probabilidade de que os impedimentos internos na préhistória do desenvolvimento humano tenham se originado de obstáculos externos reais Mas quais são os poderes de que parte a objeção à tendência libidinal qual o outro partido no conflito pa togênico Dizendoo de forma bastante genérica são as forças instintuais não sexuais Nós as reunimos sob a designação instintos do Eu A psicanálise das neu roses de transferência não nos dá acesso a eles que nos permita decompôlos no máximo deles tomamos co nhecimento em alguma medida através das resistên cias que se opõem à análise O conflito patogênico é pois um conflito entre os instintos do Eu e os instintos sexuais Em toda uma série de casos é como se ele pu desse também ser um conflito entre diversas tendências puramente sexuais mas isso no fundo significa a mes ma coisa uma vez que das duas tendências sexuais em conflito uma sempre é conforme ao Eu por assim di 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES zer enquanto a outra requer que ele se defenda Perma nece portanto um conflito entre o Eu e a sexualidade Meus senhores Com muita frequência quando a psicanálise afirmou que um evento psíquico era obra dos instintos sexuais foilhe apontado numa postura de irritada defesa que o ser humano não consiste apenas de sexo que na vida psíquica há também instintos e inte resses não sexuais que não é possível derivar tudo da sexualidade e assim por diante Ora é uma grande ale gria estar de acordo com os adversários ao menos uma vez A psicanálise jamais se esqueceu de que também existem forças instintuais não sexuais ela se construiu com base na clara separação entre os instintos sexuais e os instintos do Eu e ante todas as objeções sempre afirmou que as neuroses têm sua origem no conflito entre o Eu e a sexualidade e não que provêm da se xualidade Ao examinar o papel dos instintos sexuais na enfermidade e na vida ela não tem nenhum motivo concebível para negar a existência ou a importância dos instintos do Eu Apenas foi seu destino ocuparse prin cipalmente dos instintos sexuais porque as neuroses de transferência os tornaram mais rapidamente acessíveis à compreensão e porque lhe coube assim estudar o que outros haviam negligenciado Também não é correto afirmar que a psicanálise não se ocupou da parte não sexual da personalidade Preci samente a separação entre Eu e sexualidade nos permi tiu ver com particular clareza que também os instintos do Eu passam por um importante desenvolvimento que não é nem totalmente independente do da libido nem 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA desprovido de efeito contrário a ela Não obstante sa bemos muito menos acerca do desenvolvimento do Eu que sobre o da libido e isso porque apenas o estudo das neuroses narcisistas promete uma compreensão do edifício do Eu Mas já temos uma notável tentativa por parte de Ferenczi de reconstruir teoricamente os está gios de desenvolvimento do Eu e em pelo menos dois pontos logramos obter sólidas bases para a avaliação desse desenvolvimento Não acreditamos que os inte resses libidinais de uma pessoa estejam já de início em oposição a seus interesses de autoconservação a cada estágio isto sim o Eu se esforçará para permanecer em harmonia com sua organização sexual daquele tempo e enquadrarse nela É provável que a sucessão das di ferentes fases no desenvolvimento da libido obedeçam a um programa predeterminado mas não se pode des cartar a possibilidade de o Eu exercer influência nesse processo e seria lícito prever a existência de certo pa ralelismo de certa equivalência entre as fases de desen volvimento do Eu e da libido a perturbação de tal equi valência poderia mesmo constituir um fator patogênico Uma importante consideração para nós seria então examinar como se comporta o Eu quando sua libido dei xa para trás em algum ponto de seu desenvolvimento uma forte fixação Ele pode admitila e se tornar assim em medida correspondente perverso ou o que sig nifica a mesma coisa infantil Mas ele pode também se comportar de forma contrária a essa fixação libidinal caso em que o Eu sofre uma repressão onde a libido expe rimentou uma fixação 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Chegamos assim ao conhecimento de que o terceiro fator da etiologia das neuroses a propensão ao conflito depende do desenvolvimento tanto do Eu como da li bido Completouse portanto nossa percepção daquilo que causa as neuroses em primeiro lugar como precon dição mais geral a frustração em segundo a fixação da libido que a impele em determinadas direções e em terceiro a propensão ao conflito do desenvolvimento do Eu que rejeitou tais impulsos libidinais A questão não é pois tão confusa e impenetrável como deve ter pare cido aos senhores no curso de minhas explicações E no entanto logo veremos que o assunto não está encerrado Precisamos ainda acrescentar um elemento novo e dar prosseguimento à análise de outro já conhecido A fim de demonstrar aos senhores a influência do desenvolvimento do Eu na construção do conflito e portanto na causação das neuroses eu gostaria de lhes apresentar um exemplo que embora fictício em ne nhum ponto se distancia da realidade Apoiandome no título de uma farsa de Nestroy quero designálo como No térreo e no primeiro andar No térreo mora o ze lador no primeiro andar o dono do prédio um homem rico e nobre Os dois têm filhas mulheres e vamos supor que sem qualquer vigilância seja permitido à filha pe quena do dono da casa brincar com a filha do proletá rio Não é difícil pois acontecer de as brincadeiras das duas crianças assumirem um caráter impertinente ou seja sexual e que elas venham a brincar de papai e ma mãe observando uma à outra em seus afazeres íntimos e estimulandose nos genitais A filha do zelador que 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA a despeito dos cinco ou seis anos de idade já pôde ob servar algo da sexualidade dos adultos pode assumir o papel da sedutora Mesmo que não se estendam por mui to tempo essas experiências bastam para ativar certos impulsos sexuais nas duas crianças os quais ainda que as brincadeiras conjuntas não mais aconteçam seguem se manifestando ao longo de alguns anos por meio da masturbação Terminam aqui as vivências em comum o resultado final para as duas crianças será bem diferente A filha do zelador seguirá se masturbando até talvez sua primeira menstruação depois abandonando essa prática sem dificuldade poucos anos mais tarde encon trará um amor talvez tenha um filho seguirá este ou aquele caminho na vida talvez venha a se tornar uma artista famosa e por fim uma aristocrata É provável que seu destino venha a ser menos brilhante mas de todo modo ela viverá sua vida livre de neuroses sem que o exercício precoce da sexualidade venha a lhe cau sar dano nenhum Algo diferente se dará com a menina do dono do prédio Esta ainda criança será acometida do sentimento precoce de que fez alguma coisa errada e em pouco tempo talvez em seguida a uma dura batalha abandonará a satisfação propiciada pela masturbação carregará consigo porém um sentimento de opressão Quando nos anos da mocidade já estiver em condições de aprender algo sobre as relações sexuais humanas ela as repudiará com inexplicável repugnância e preferirá permanecer ignorante É provável que ela se veja agora sujeita a um renovado e incontrolável ímpeto masturba tório do qual não ousará queixarse Na época em que 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES como mulher deverá se interessar por um homem ir romperá nela a neurose que lhe privará do casamento e da esperança na vida Se mediante a análise adqui rirmos compreensão dessa neurose veremos que essa moça bemeducada inteligente e de elevadas aspira ções reprimiu por completo seus impulsos sexuais mas que esses inconscientes para ela permaneceram presos àquelas parcas vivências com a amiguinha de infância A diversidade dos dois destinos não obstante a ex periência comum devese ao fato de o Eu ter em um caso experimentado um desenvolvimento que no ou tro não se verificou À filha do zelador a atividade se xual parece mais tarde tão natural e inofensiva como havia sido na infância A filha do senhorio por sua vez sofreu a influência da educação e aceitou suas exigên cias A partir das incitações que lhe ofereceram seu Eu construiu ideais de pureza e ascetismo femininos com os quais a prática sexual não se coaduna sua formação intelectual diminuiu seu interesse pelo papel feminino ao qual está destinada Em virtude desse maior desen volvimento moral e intelectual de seu Eu ela entrou em conflito com as exigências de sua sexualidade Hoje quero ainda me deter em um segundo ponto do desenvolvimento do Eu tanto em razão de certas pers pectivas mais amplas como porque isso é apropriado para justificar a separação entre os instintos do Eu e os instintos sexuais uma separação que nos é cara mas que não é evidente Na apreciação desses desenvolvimentos do Eu e da libido devemos enfatizar um aspecto que até o momento não foi tratado com muita frequência No 470 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA fundo esses dois desenvolvimentos constituem heran ças repetições abreviadas do desenvolvimento que toda a humanidade experimentou desde seus primórdios e ao longo de um vasto período de tempo No desenvolvi mento da libido penso vêse claramente essa origem filogenética Lembremse os senhores de que numa das se de animais o aparelho genital apresenta íntima rela ção com a boca ao passo que em outra não é possível diferenciálo do aparelho excretor e em outra ainda ele está vinculado aos órgãos motores fatos que os se nhores acharão descritos de forma atraente no valioso livro de W Bolsche Entre os animais vemos todos os tipos de perversão petrificados na organização sexual por assim dizer Já no ser humano esse aspecto filoge nético é em parte encoberto pelo fato de o que é herda do no fundo voltar a ser adquirido no desenvolvimento individual provavelmente porque ainda persistem e seguem atuando sobre cada um as mesmas condições que naquele tempo levaram à sua aquisição Eu diria que naquele tempo elas atuaram criativamente mas agora agem provocadoramente Além disso é indubitável que em cada um de nós o curso desse desenvolvimento pres crito pode ser perturbado e alterado por influências exte riores recentes Mas nós conhecemos o poder que impôs semelhante desenvolvimento à humanidade e que ainda hoje pressiona na mesma direção é de novo a frustra ção ditada pela realidade ou se quisermos chamála por Das Liebesleben in der Natur A vida amorosa na natureza 2 vols Jena 19113 471 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES seu nome correto e grandioso a necessidade que domina a vida a Aváyx1J Ananke Ela foi uma educadora se vera e fez muita coisa de nós Os neuróticos estão entre as crianças em que tal severidade teve consequências ruins mas esse é o risco de toda educação De resto essa consideração da necessidade vital como motor do desenvolvimento não deve nos predispor contra a im portância das tendências internas de desenvolvimento caso estas se verifiquem É digno de nota que os instintos sexuais e de au toconservação não se comportem da mesma maneira diante da necessidade real É mais fácil educar os instin tos de autoconservação e tudo o que se relaciona a eles Esses instintos aprendem logo cedo a se sujeitar à ne cessidade e organizar seus desenvolvimento segundo as diretivas da realidade Isso é compreensível pois não têm outro modo de conseguir os objetos de que neces sitam e sem esses objetos o indivíduo só pode perecer Os instintos sexuais são mais difíceis de educar pois inicialmente não conhecem a necessidade de um objeto Como à maneira de parasitas por assim dizer eles se apoiam nas outras funções corporais e se satisfazem au toeroticamente no próprio corpo furtamse de início à influência educativa da necessidade real e mantêm essa característica de obstinação de impermeabilidade à in fluência isso que chamamos falta de juízo na maio ria das pessoas em algum aspecto ao longo de toda a vida Em geral a educabilidade de um jovem termina quando suas necessidades sexuais despertam de forma plena e definitiva Os educadores sabem disso e agem 472 22 CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO ETIOLOGIA de acordo com esse saber Mas talvez os resultados da psicanálise os levem a situar o impacto maior da edu cação nos primeiros anos da infância a partir da ama mentação Com frequência aos quatro ou cinco anos de idade o pequeno ser humano está pronto e depois ape nas evidencia gradualmente o que já traz dentro de si A fim de apreciar o pleno significado da diferença apontada entre os dois grupos de instintos temos de re troceder bastante e retomar uma daquelas considerações que são adequadamente chamadas de econômicas cf conferência 18 Adentramos assim uma das áreas mais importantes mas infelizmente mais obscuras também da psicanálise Começamos por perguntar se é possível identificar uma intenção principal no trabalho de nosso aparato psíquico e em uma primeira abordagem res pondemos que essa intenção é a obtenção de prazer Ao que parece toda a nossa atividade psíquica está voltada para obter o prazer e evitar o desprazer é automatica mente regulada pelo princípio do praer Por certo gos taríamos muitíssimo de saber quais as condições para o surgimento do prazer e do desprazer mas justamente isso nos escapa O que podemos afirmar a esse respeito é que o prazer se vincula de alguma forma à diminuição redução ou à extinção do montante de estímulos presen te no aparato psíquico enquanto o desprazer está ligado à sua elevação A investigação do mais intenso prazer ao alcance do ser humano o da consumação do ato sexual deixa pouca dúvida quanto a isso Como nes ses processos relacionados ao prazer a questão é o que sucede com as quantidades de excitação ou energia psí 473 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES quica chamamos de econômicas as considerações dessa natureza Notamos que a tarefa e a operação do aparelho psíquico também podem ser descritas de outra forma mais genérica que não acentua a obtenção de prazer Podemos dizer que o aparato psíquico serve à intenção de dominar e resolver os montantes de estímulo as mag nitudes de excitação que lhe chegam de fora e de dentro No caso dos instintos sexuais é bastante evidente que tanto no início como no fim de seu desenvolvimento eles trabalham para a obtenção de prazer essa função original eles conservam inalterada Inicialmente tam bém os outros instintos os do Eu procuram a mesma coisa Mas sob a influência da mestra Necessidade eles logo aprendem a substituir o princípio do prazer por uma modificação Para os instintos do Eu a tarefa de evitar o desprazer é quase tão valiosa como a da obten ção de prazer o Eu descobre que terá inevitavelmente de renunciar à satisfação imediata de postergar a obten ção de prazer de suportar alguma medida de desprazer e abrir mão por completo de certas fontes de prazer Edu cado dessa maneira o Eu se torna ajuizado e não mais se deixa dominar pelo princípio do prazer em vez disso obedece ao princípio da realidade o qual no fundo tam bém busca obter prazer mas um prazer assegurado pela consideração da realidade ainda que se trate de um pra zer adiado e diminuído A passagem do princípio do prazer ao princípio da realidade é um dos progressos mais importantes no de senvolvimento do Eu Já sabemos que os instintos se xuais só tardiamente e a contragosto colaboram para 474 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS esse desenvolvimento e mais adiante trataremos das consequências que tem para o ser humano o fato de sua sexualidade se contentar com uma relação tão frou xa com a realidade exterior Agora para terminar uma última observação pertinente ao assunto Se o Eu hu mano possui como a libido uma história evolutiva os senhores não ficarão surpresos de ouvir que também existem regressões do Eu e por certo desejarão saber que papel esse retorno do Eu a fases anteriores do de senvolvimento pode ter nos adoecimentos neuróticos 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS Senhoras e senhores Para o leigo os sintomas consti tuem a essência da enfermidade e a cura é para ele a eliminação dos sintomas Para o médico importa dife renciar os sintomas da doença e a remoção dos sinto mas afirma ele ainda não é a cura da doença Elimi nados os sintomas porém o que resta de palpável na doença é apenas a capacidade de formar novos sinto mas Por isso vamos adotar no momento a posição do leigo e considerar que a averiguação dos sintomas equi vale à compreensão da doença Os sintomas e referimonos aqui naturalmente aos sintomas psíquicos ou psicogênicos e à doença psí quica são atos prejudiciais à vida como um todo ou pelo menos inúteis dos quais frequentemente a pessoa se queixa como algo indesejado e que traz sofrimento 475 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES ou desprazer O principal dano que causam é o custo psíquico que envolvem além daquele necessário para combatêlo Havendo pródiga formação de sintomas esses dois custos podem resultar num extraordinário empobrecimento da energia psíquica disponível e as sim numa paralisação do enfermo no tocante às tarefas importantes de sua vida Como esse resultado depende sobretudo da quantidade de energia requerida os se nhores perceberão com facilidade que estar doente é na essência um conceito prático Mas se os senho res adotarem um ponto de vista teórico e não levarem em conta essas quantidades poderão facilmente dizer que todos nós somos doentes ou seja neuróticos pois as condições para a formação de sintomas se verificam também nas pessoas normais Já sabemos que os sintomas neuróticos resultam de um conflito que surge em torno de uma nova maneira de satisfação da libido As duas forças que divergiram tornam a se encontrar no sintoma reconciliamse por assim dizer mediante compromisso da formação do sintoma Por isso o sintoma é tão resistente ele é sus tentado por ambos os lados Sabemos também que uma das partes do conflito é a libido insatisfeita rechaçada pela realidade que agora tem de buscar outros cami nhos para sua satisfação Se a libido se dispõe a aceitar outro objeto no lugar daquele que lhe foi recusado e ainda assim a realidade permanece irredutível então a libido será enfim obrigada a encetar o caminho da regressão e procurar satisfação em uma das organiza ções já superadas ou por um dos objetos anteriormente 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS abandonados Para o caminho da regressão a libido é atraída pela fixação que deixou para trás nesses pontos de seu desenvolvimento Então o caminho da perversão se separa nitidamen te daquele da neurose Se as regressões não despertam a oposição do Eu tampouco há neurose e a libido al cança alguma satisfação real embora não mais nor mal Mas se o Eu que dispõe não apenas da cons ciência mas também dos acessos à inervação motora e portanto à realização das tendências psíquicas não está de acordo com essas regressões instaurase o con flito A libido é como que barrada e precisa fugir para algum lugar onde possa dar vazão à energia investida conforme a exigência do princípio do prazer Tem de subtrairse ao Eu Tal escapatória lhe é permitida pelas fixações no caminho de seu desenvolvimento que ago ra ela segue regressivamente tratase daquelas mesmas fixações contra as quais o Eu outrora se protegera me diante repressões Nesse fluxo inverso investindo essas posições reprimidas a libido se subtrai ao Eu e suas leis mas renuncia também a toda educação adquirida sob a influência desse Eu Enquanto a satisfação lhe acenava ela era dócil mas sob a dupla pressão das frustrações exterior e interior ela se torna rebelde e se lembra de tempos passados e melhores Tal é seu caráter funda mentalmente imutável As ideias às quais a libido agora transfere sua energia sob a forma de investimento per tencem ao sistema do inconsciente e estão sujeitas aos processos possíveis neste em particular à condensação e ao deslocamento Com isso estabelecemse condições 477 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES idênticas àquelas vigentes na formação dos sonhos As sim como o sonho completado no inconsciente que é a realização de uma fantasia inconsciente depara com alguma atividade pré consciente que exerce atividade de censura e uma vez acomodada permite a formação de um sonho manifesto como compromisso também o representante da libido no inconsciente precisa levar em conta o poder do Eu préconsciente A oposição que foi erguida contra ele no Eu o persegue como contraio vestimenta e o obriga a escolher uma expressão que possa ao mesmo tempo tornarse expressão da própria oposição Surge assim o sintoma como derivado bas tante desfigurado da realização de desejo inconsciente libidinal uma ambiguidade engenhosamente escolhida com dois significados mutuamente contraditórios Mas nesse último aspecto se pode perceber uma diferença entre as formações do sonho e do sintoma uma vez que na formação do sonho a intenção préconsciente visa unicamente preservar o sono não permitir que penetre na consciência nada que possa perturbálo ela não insiste contudo em dizer um categórico não ao impulso inconsciente Pode ser tolerante porque a si tuação de alguém adormecido é menos ameaçada Por si só o sono bloqueia a saída para a realidade Como veem a escapada da libido nas condições do conflito é possibilitada pela presença das fixações O investimento regressivo dessas fixações permite contor nar a repressão e leva a uma descarga ou satisfação da libido na qual as condições do compromisso pre cisam ser mantidas Através do rodeio pelo inconsciente 23 OS CAMINHOS OA FORMAÇÃO DE SINTOMAS e pelas antigas fixações a libido consegue enfim avançar rumo a uma satisfação real que no entanto é extrema mente limitada e já quase irreconhecível Permitamme acrescentar duas observações sobre esse resultado final Em primeiro lugar atentem para a estreita vinculação que aí revelam por um lado a libido e o inconsciente e por outro o Eu a consciência e a realidade embora já no início não estejam unidos E observem também que tudo que foi e que será dito aqui se refere apenas à formação dos sintomas na neurose histérica Onde então a libido encontra as fixações de que necessita para romper as repressões Nas práticas e vi vências da sexualidade infantil nas tendências parciais abandonadas e nos objetos da infância que foram deixa dos para trás É para eles pois que a libido retoma O significado dessa época infantil é duplo por um lado nela se mostram pela primeira vez as orientações ins tintuais que a criança traz consigo em sua predisposição inata por outro influências exteriores vivências aci dentais despertam e ativam nela outros instintos seus Creio não haver dúvida de que temos o direito de pos tular essa bipartição Sobre a manifestação da predis posição inata não pesa nenhuma objeção crítica mas a experiência analítica nos obriga a supor que vivências puramente acidentais da infância podem deixar fixações da libido Não vejo nisso qualquer dificuldade teórica As predisposições constitucionais também são certa mente efeitos remotos das vivências de antepassados também foram adquiridas um dia sem tal aquisição não haveria hereditariedade Será concebível que essa 479 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES aquisição que conduz à herança transmitida acabe jus tamente na geração por nós considerada O significado das vivências infantis não deveria como sói acontecer ser inteiramente negligenciado em prol da importância daquelas dos antepassados e da maturidade do indiví duo pelo contrário devem ter atenção especial Elas são prenhes de consequências pois se dão em épocas de desenvolvimento incompleto e precisamente essa cir cunstância as torna capazes de produzir efeito traumáti co Os trabalhos de Roux e de outros sobre a mecânica do desenvolvimento mostraramnos que uma picada de agulha em um germe embrionário em pleno processo de divisão celular tem por consequência uma severa perturbação do desenvolvimento Essa mesma lesão se infligida a uma larva ou a um animal plenamente cons tituído seria suportada sem provocar nenhum dano A fixação libidinal do adulto que introduzimos na equação etiológica das neuroses representando o fator constitucional decompõese agora para nós em dois ou tros fatores na constituição herdada e na predisposição adquirida na primeira infância Sabemos que uma repre sentação esquemática tem a simpatia dos que aprendem Então vamos resumir essas relações num esquema causação da neurose predisposição mediante vivências acidentais fixação da libido traumáticas constituição sexual vivências préhistóricas vivências infantis 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS A constituição sexual hereditária nos oferece uma grande variedade de predisposições de acordo com a força particular desse ou daquele instinto parcial por si só ou em associação com outros instintos parciais Juntamente com o fator das vivências infantis a cons tituição sexual forma uma série complementar muito semelhante àquela que vimos anteriormente composta da disposição e das vivências acidentais do adulto Aqui como lá encontramse os mesmos casos extremos e as mesmas relações entre os fatores presentes É natural pois levantar a seguinte questão será que as regressões mais evidentes da libido aquelas a estágios anteriores da organização sexual não são condicionadas prepon derantemente pelo fator hereditário constitucional Será melhor porém adiar a resposta a essa pergunta até podermos considerar uma série maior de formas de adoecimento neurótico No momento detenhamonos no fato de que a in vestigação analítica mostra a vinculação da libido dos neuróticos com as vivências sexuais da infância A es sas vivências portanto ela empresta uma aparência de enorme importância tanto para a vida como para o adoecimento das pessoas No que diz respeito ao traba lho terapêutico essas vivências preservam intacta sua importância Se abstraímos da tarefa terapêutica no entanto vemonos ante o perigo de um malentendido que poderia nos levar a orientar a vida muito unilate ralmente conforme a situação neurótica Afinal é ne cessário que descontemos dessa importância das vivên cias infantis o fato de a libido ter retornado a elas em 481 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES um movimento regressivo depois de ter sido expulsa de suas posições posteriores Então é natural a conclusão contrária ou seja a de que a seu tempo as vivências libidinais não possuíam importância nenhuma elas a adquiriram somente a partir da regressão Lembremse de que já tomamos posição acerca de tal alternativa na discussão do complexo de Édipo Também dessa vez a decisão não será difícil A ob servação de que o investimento libidinal e portan to o significado patogênico das vivências infantis é intensificado em grande medida pela regressão da libido é sem dúvida correta mas se tomada como a única decisiva ela poderia conduzir a um equívoco É preciso atentar para outras ponderações Em primeiro lugar a observação põe acima de qualquer dúvida que as vivências infantis têm seu significado particular e já o evidenciam na infância Também existem neuroses infantis em que o fator do retrocesso temporal é neces sariamente bastante reduzido quando não inexistente se o adoecimento é consequência imediata das vivências traumáticas O estudo das neuroses infantis nos guarda de perigosos malentendidos no tocante às neuroses dos adultos da mesma forma como os sonhos das crianças nos forneceram a chave para a compreensão dos sonhos dos adultos As neuroses infantis são bastante frequen tes muito mais frequentes do que se pensa Em geral elas passam despercebidas tomadas que são como sinais de maldade ou mau hábito e refreadas pelas autoridades responsáveis pelas crianças Mas é fácil reconhecêlas atê mesmo mais tarde com um olhar retrospectivo Na 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS maioria das vezes aparecem sob a forma de uma histe ria de angústia O que isso significa descobriremos em outra oportunidade Quando em anos posteriores a neurose irrompe em geral a análise a desvenda como continuação imediata daquela doença infantil que se formou talvez de forma velada ou apenas sugerida Mas como eu disse há casos em que esse adoecimento ner voso infantil se prolonga sem qualquer interrupção em uma condição doentia para toda a vida Poucos são os exemplos de neurose infantil que pudemos analisar na própria criança isto é em seu estado presente com frequência bem maior tivemos de nos contentar com um doente em idade madura que nos permitiu examinar posteriormente sua neurose infantil quando pudemos fazer certas correções e tomar algumas precauções Em segundo lugar é necessário dizer que seria in compreensível a libido regressar regularmente à época infantil se nesse passado nada houvesse a exercer atra ção sobre ela A fixação que supomos existir em pontos específicos do curso do desenvolvimento só tem senti do se a fazemos consistir em determinado montante de energia libidinal Por fim posso dizer aos senhores que aqui à semelhança das séries que estudamos anterior mente também se verifica uma relação de complemen taridade entre intensidade e significado patogênico das experiências vividas tanto na infância como mais tarde Há casos em que todo o peso da causação recai sobre as vivências sexuais da infância em que essas impressões produzem seguramente um efeito traumático e que não necessitam de nenhum outro suporte senão o que lhes 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES provê a constituição sexual média e seu caráter inacaba do Em outros casos a ênfase recai inteiramente sobre os conflitos posteriores e a importância dada às lem branças infantis parece obra apenas da regressão Te mos portanto os extremos da inibição do desenvolvi mento e da regressão e entre um e outro toda uma gama de atuação conjunta desses dois fatores Essas circunstâncias são de algum interesse para a pedagogia que se propõe a prevenir as neuroses median te a intervenção precoce no desenvolvimento sexual da criança Quando se volta a atenção preponderantemen te para as vivências sexuais infantis acreditase ter feito tudo para a profilaxia dos adoecimentos nervosos na medida em que se tratou de adiar esse desenvolvimen to e de poupar a criança de semelhantes experiências Sabemos no entanto que as condições para a causação das neuroses são mais complicadas que isso e que em seu conjunto elas não se deixam influenciar pela consi deração de um único fator Proteger com rigor a criança é de pouca valia devido à impotência dessa proteção em relação ao fator constitucional Além disso essa prote ção é mais difícil de pôr em prática do que imaginam os educadores e traz consigo dois novos perigos que não podem ser subestimados o de que ela seja demasiado bemsucedida isto é de que favoreça uma repressão exagerada e danosa para o ulterior desenvolvimento da criança e o de que torne a criança indefesa ante a espe rada investida das demandas sexuais da puberdade É pois questionável em que medida a profilaxia infantil pode ser vantajosa talvez uma postura diferente dian 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS te da situação imediata ofereça uma melhor abordagem para a prevenção das neuroses Voltemos agora aos sintomas Eles produzem por tanto um substituto para a satisfação frustrada me diante a regressão da libido a épocas passadas a isso se liga inseparavelmente o retorno a estágios de desenvol vimento anteriores da escolha objetai ou da organiza ção sexual Dissemos antes que o neurótico se prende a algum ponto de seu passado sabemos agora que se trata de um período desse passado no qual sua libido não carecia de satisfação em que ele era feliz O neuró tico vasculha a própria vida até encontrar uma tal épo ca ainda que para encontrála precise recuar até seu período de amamentação como ele o recorda ou como o imagina a partir de sugestões posteriores De algum modo o sintoma repete essa modalidade infantil de sa tisfação deformada pela censura decorrente do conflito em regra transformada numa sensação de sofrimento e misturada a elementos extraídos daquilo que ensejou o adoecimento Há muito de estranho nesse tipo de sa tisfação que o sintoma propicia Não nos referimos ao fato de essa satisfação não ser reconhecível como tal por aquele que a sente este percebe a suposta satis fação antes como sofrimento do qual se queixa Essa metamorfose está ligada ao conflito psíquico sob cuja pressão o sintoma foi levado a se formar O que outrora trouxe satisfação ao indivíduo hoje despertalhe resis tência ou aversão Nós conhecemos um modelo trivial mas instrutivo para essa mudança de sentido A mesma criança que mamou com avidez o leite do seio materno 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES costuma alguns anos mais tarde manifestar má von tade ante o consumo de leite algo que a educação tem dificuldade em superar Essa má vontade intensificase até a repugnância quando o leite ou a bebida ao qual ele se mescla se reveste de uma película de nata Talvez não se possa descartar a noção de que essa película evo ca a lembrança do seio materno tão desejado outrora Contudo entre esse passado e o presente situase a ex periência do desmame de efeito traumático Mas há ainda outra coisa que faz com que os sinto mas nos pareçam estranhos e como meios de satisfação libidinal incompreensíveis Eles não nos lembram em nada aquilo que costumamos entender por satisfação Na maioria dos casos desconsideram o objeto e assim abandonam o vínculo com a realidade exterior Enten demos isso como consequência de seu afastamento do princípio da realidade e do retorno ao princípio do pra zer Mas tratase também de um retorno a uma espécie de autoerotismo expandido como aquele que proporcio nou ao instinto sexual suas primeiras satisfações Em lu gar de uma modificação do mundo exterior os sintomas apresentam uma modificação corporal isto é uma ação interna em vez de externa uma adaptação em lugar de uma ação o que por sua vez corresponde a uma regres são altamente significativa do ponto de vista filogenéti co Isso nós só lograremos entender em conexão com uma novidade sobre a formação dos sintomas que ainda vamos conhecer a partir das investigações analíticas E lembremonos de que na formação dos sintomas cola boram os mesmos processos do inconsciente que atuam 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS na formação dos sonhos a condensação e o deslocamen to Como o sonho o sintoma apresenta como realizada uma satisfação tratase de uma satisfação à maneira in fantil mas que por intermédio de uma condensação ex trema pode ser comprimida em uma única sensação ou inervação e pela via de um extremo deslocamento pode se restringir a um pequeno detalhe de todo o complexo libidinal Não admira pois que muitas vezes tenhamos dificuldades em reconhecer no sintoma a satisfação libi dinal conjecturada e sempre confirmada Anunciei aos senhores que tínhamos ainda algo novo a aprender e é de fato algo surpreendente e des concertante Como sabem a partir da análise dos sin tomas tomamos conhecimento das vivências infantis em que a libido se fixou e de que são constituídos os sintomas Pois a surpresa reside no fato de essas cenas infantis nem sempre se revelarem verdadeiras Com efeito na maioria dos casos elas não são verdadeiras e aqui ou ali encontramse mesmo em direta contradi ção com a verdade histórica Os senhores percebem que esse achado se presta como nenhum outro a desacredi tar a análise que conduziu a semelhante resultado ou os doentes em cujas declarações se baseia a análise e toda a compreensão das neuroses Além disso há aí outro elemento muito desconcertante Se as vivências infan tis que a análise traz à luz fossem sempre verdadeiras teríamos a sensação de nos mover por terreno seguro se fossem regularmente falseadas e se revelassem como invenções fantasias dos doentes precisaríamos aban donar esse terreno instável e buscar salvação em outro 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES O que se verifica no entanto não é nem uma coisa nem outra Na realidade podese demonstrar que as lem branças infantis construídas ou lembradas em análise são algumas vezes indubitavelmente falsas outras ve zes absolutamente verdadeiras e outras ainda ou na maioria das vezes uma mescla de lembranças ver dadeiras e falsas Os sintomas são portanto ora repre sentação de vivências ocorridas de fato às quais cabe atribuir influência na fixação da libido ora representa ção das fantasias do doente naturalmente inadequadas para um papel etiológico É difícil orientarse aí Um primeiro ponto de apoio nós encontramos talvez em uma descoberta semelhante isto é a de que as lembran ças infantis conscientes que as pessoas carregam des de sempre e apresentam em toda análise podem tam bém elas ter sido falsificadas ou no mínimo constituir abundante mescla de verdadeiro e falso Comprovar sua incorreção raras vezes oferece dificuldades o que pelo menos nos dá a tranquilidade de saber que a culpa por essa inesperada decepção não cabe à análise e sim de algum modo aos doentes Após alguma reflexão compreendemos facilmente o que tanto nos confunde nessa situação é o menospre zo da realidade a negligência da diferença entre ela e a fantasia Ficamos tentados a nos ofender com o fato de o doente nos ter relatado histórias inventadas A realidade nos parece enormemente afastada da invenção e tem entre nós uma avaliação bem diferente De resto esse é também o ponto de vista que o doente assume em seu pensamento normal Mas quando ele apresenta o ma 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS terial que subjacente aos sintomas conduz às situações de desejo que modelam as lembranças infantis ficamos em dúvida inicialmente se esse material corresponde à realidade ou se é produto da fantasia Mais tarde certas indicações nos possibilitam tomar essa decisão e nos vemos ante a tarefa de informála ao paciente Isso não ocorre sem dificuldades Se logo de início lhe dizemos que ele está para revelar as fantasias com que encobriu sua história infantil como fazem os povos ao cobrir de lendas a sua préhistória esquecida notamos que o interesse do paciente em prosseguir no tema cai subi tamente de forma indesejável Também ele quer tomar conhecimento de realidades e desdenha toda e qualquer invenção Mas se até a conclusão dessa parte do tra balho nós o deixamos acreditar que nos ocupamos da exploração de acontecimentos reais de sua infância cor remos o risco de que mais tarde ele nos acuse de ter cometido um erro e ria de nossa aparente credulidade Equiparar fantasia e realidade sem de início nos preo cuparmos se as vivências infantis a serem esclarecidas são uma coisa ou outra constitui uma proposta que o doente precisará de um longo tempo para assimilar E no entanto essa é claramente a única postura correta ante tais produções psíquicas Também elas têm uma espécie de realidade é e permanece sendo fato afinal que essas fantasias foram criadas pelo próprio doente e seu significado para a neurose não se faz menor por ele não as ter vivido no âmbito da realidade Se não se apresentam dotadas de realidade material essas fanta sias decerto revelam realidade psíquica e pouco a pouco 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES aprendemos que no mundo das neuroses a realidade psí quica é a deciSiva Entre os acontecimentos que surgem na história in fantil dos neuróticos e que parecem nunca faltar alguns têm importância especial e por isso os julgo merece dores de destaque em relação aos demais Enumero os como exemplos modelares do gênero a observação dos pais durante o ato sexual a sedução por parte de um adulto e a ameaça de castração Seria um equívo co supor que eles jamais adquirem realidade material pelo contrário a investigação posterior junto a parentes mais velhos a comprova muitas vezes claramente Não é raro por exemplo que o menino que começa a brin car travessamente com seu membro ainda sem saber que deve ocultar tal atividade seja ameaçado por seus pais ou responsáveis de ter o membro ou a mão pecado ra arrancado Perguntados a esse respeito os pais com frequência admitem que por meio dessa intimidação acreditavam estar fazendo algo apropriado Muitas pes soas conservam uma lembrança correta e consciente dessa ameaça sobretudo se ela foi feita em anos pos teriores Se é a mãe ou alguma outra pessoa do sexo feminino quem faz a ameaça ela costuma atribuir sua execução ao pai ou ao médico No famoso Struwwelpe ter João Felpudo de autoria do pediatra Hoffmann de Frankfurt que deve sua popularidade precisamente à compreensão que exibe dos complexos sexuais e ou tros da infância os senhores encontram a castração atenuada ela é substituída pela perda do polegar como castigo pelo ato obstinado de chupar o dedo É porém 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS altamente improvável que a ameaça de castração seja feita às crianças com a frequência com que figura nas análises dos neuróticos Contentamonos com o enten dimento de que a criança compõe essa ameaça em sua fantasia tendo por base sugestões o conhecimento de que a satisfação autoerótica é proibida e sob a impres são causada pelo descobrimento da genitália feminina Tampouco se pode excluir a possibilidade de a crian ça pequena à qual ainda não se atribui a capacidade de compreender ou lembrar vir a ser testemunha de um ato sexual praticado pelos pais ou por outros adultos mesmo em lares não proletários e não se deve supor que a posteriori ela não seja capaz de compreender o que viu e reagir à impressão causada Quando toda via o ato é descrito com uma riqueza de detalhes que teria sido difícil observar ou quando como acontece com grande frequência ele revela ter sido praticado por trás more forarum à maneira dos animais resta pou ca dúvida de que tal fantasia se apoia na observação do ato sexual entre animais cães e que é motivada pelo insatisfeito prazer de observar que a criança sente na puberdade O feito máximo desse gênero é então a fantasia da observação do coito dos pais quando ainda nos encontramos no ventre materno Interesse particu lar desperta também a fantasia da sedução porque com muita frequência ela não constitui fantasia e sim lem brança real Mas felizmente essa realidade não é tão frequente quanto fez parecer inicialmente o resultado das análises A sedução por parte de crianças mais ve lhas ou de mesma idade é de todo modo mais comum 491 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES do que a realizada por adultos se no caso das meninas que alegam ter ocorrido algo semelhante em sua in fância o pai figura regularmente como o sedutor não há dúvida quanto à natureza fantástica da acusação e ao motivo que levou a ela Com a fantasia da sedução quando ela não ocorreu a criança em geral oculta o pe ríodo autoerótico de sua atividade sexual Ela se poupa assim da vergonha pela masturbação recuando para uma época anterior a fantasia com o objeto desejado Mas não creiam os senhores que o abuso da criança por parte de seu parente mais próximo do sexo masculino pertença apenas ao reino da fantasia A maioria dos analistas já terá tratado de casos em que relações dessa natureza foram reais e puderam ser indubitavelmente constatadas no entanto ocorreram mais tarde e foram transpostas para anos anteriores da infância A impressão que se tem é de que tais acontecimen tos infantis são de alguma maneira necessários de que são integrantes essenciais da neurose Quando se acham na realidade muito bem quando a realidade não os fornece são produzidos a partir de sugestões e complementados pela fantasia O resultado é o mesmo e até hoje não logramos estabelecer nenhuma diferen ça em suas consequências quer a maior contribuição para esses acontecimentos tenha vindo da fantasia ou da realidade De novo temse aqui apenas uma daquelas relações de complementaridade já tantas vezes mencio nadas é porém a mais estranha daquelas de que toma mos conhecimento De onde vem a necessidade dessas fantasias e o material para elas Não pode haver dúvida 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS acerca das fontes instintuais mas resta explicar por que são criadas sempre as mesmas fantasias de igual conteú do Tenho uma resposta pronta para isso mas sei que ela lhes parecerá ousada O que penso é que essas fon tasias primordiais como desejo chamálas a essas e algumas outras também são patrimônio filogenético Nelas o indivíduo vai além de suas vivências pessoais e recorre àquelas de tempos primordiais onde suas pró prias vivências se tenham mostrado muito rudimenta res Pareceme bem possível que tudo o que nos é hoje relatado em análise a sedução da criança a excitação sexual inflamada pela observação da relação sexual dos pais a ameaça de castração ou antes a castração tenha sido realidade nos primórdios da família huma na e que a fantasia da criança simplesmente preenche as lacunas na verdade individual com a verdade pré histórica Repetidas vezes chegamos à suspeita de que a psicologia das neuroses nos preservou mais antiguida des do desenvolvimento humano do que outras fontes Meus senhores as coisas ora discutidas nos fazem examinar mais detidamente a gênese e a significação da atividade intelectual a que chamamos fantasia Os se nhores sabem que ela goza da elevada estima de todos sem que tenhamos clareza sobre o lugar que ocupa na vida psíquica O que posso lhes dizer a esse respeito é o que segue Como todos sabem o Eu humano é educado por influência da necessidade exterior para lentamente apreciar a realidade e seguir o princípio da realidade e nisso tem de renunciar temporária ou permanentemente a vários objetos e metas de seu anseio por prazer não 493 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES apenas do prazer sexual O ser humano contudo sempre teve dificuldade em renunciar ao prazer não consegue fazêlo sem alguma espécie de compensação Por isso reservou para si uma atividade psíquica na qual conce de a todas as fontes e vias abandonadas da obtenção de prazer uma nova vida uma forma de existência na qual se veem livres das demandas da realidade e daquilo a que chamamos prova de realidade Todo anseio logo alcan ça a forma de uma ideia de realização de que foi realiza do não há dúvida de que deterse na realização da fan tasia traz consigo uma satisfação embora isso não turve o conhecimento de que não é a realidade Na atividade fantasiosa portanto o homem segue gozando da liber dade frente a toda pressão exterior liberdade a que na realidade renunciou há muito tempo Ele consegue ser alternadamente um animal de prazer e de novo uma criatura sensata A parca satisfação que logra extrair da realidade não lhe é suficiente Sem construções auxilia res não é possível disse certa vez Theodor Fontane A criação do reino psíquico da fantasia encontra sua perfei ta contrapartida na instituição de áreas de proteção e reservas naturais onde as demandas da agricultura do trânsito e da indústria ameaçam modificar rapidamente o semblante original da Terra e tornálo irreconhecível A reserva natural conserva o velho estado que em ge ral lamentavelmente foi sacrificado à necessidade Nela tudo pode vicejar e crescer como bem entende até o que é inútil mesmo o que é daninho Uma tal área de pro teção subtraída ao princípio da realidade é também o reino psíquico da fantasia 494 23 OS CAMINHOS OA FORMAÇÃO DE SINTOMAS Suas produções mais conhecidas são os chamados sonhos diurnos que já conhecemos satisfações ima ginadas de desejos ambiciosos megalomaníacos eró ticos que tanto mais crescem quanto mais a realidade solicita moderação ou paciência Nesses sonhos diurnos mostrase inequivocamente a natureza da felicidade fantasiosa a obtenção de prazer fazse de novo inde pendente da aprovação da realidade Sabemos que eles são o núcleo e modelo dos sonhos noturnos Estes no fundo não são outra coisa do que sonhos diurnos tor nados utilizáveis em razão da liberdade noturna dos im pulsos instintuais desfigurados pela forma noturna da atividade psíquica Já nos familiarizamos com a ideia de que tampouco o sonho diurno é necessariamente cons ciente de que também existem sonhos diurnos incons cientes Estes constituem a fonte não apenas dos sonhos noturnos mas também dos sintomas neuróticos O que exponho a seguir deixará claro para os senho res a importância da fantasia na formação dos sintomas Dissemos que no caso da frustração a libido investe regressivamente as posições por ela abandonadas mas às quais certos montantes dela permaneceram ligados Não vamos retirar ou corrigir isso mas temos de inse rir um elo intermediário Como a libido encontra seu caminho para esses locais de fixação Ora os objetos e os rumos abandonados da libido não foram abando nados em todos os sentidos Eles ou derivados deles No original Tagtriiume que também pode ser traduzido por devaneios 495 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES permanecem retidos com certa intensidade nas ideias fantasiosas A libido só precisa pois retornar às fan tasias para a partir delas encontrar aberto o caminho para todas as fixações reprimidas Essas fantasias gozam de certa tolerância por maiores que sejam os contras tes nenhum conflito irrompe entre elas e o Eu enquanto for mantida certa condição Tratase de uma condição quantitativa que agora com o refluxo da libido para as fantasias é perturbada Esse acréscimo eleva de tal forma o investimento energético das fantasias que elas se tornam exigentes e desenvolvem um ímpeto na dire ção de sua realização Isso contudo torna inevitável o conflito entre elas e o Eu Tenham sido anteriormen te préconscientes ou conscientes agora estão sujeitas à repressão por parte do Eu e são entregues à atração por parte do inconsciente Desde essas fantasias agora inconscientes a libido vai em busca das origens delas no inconsciente de volta a seus próprios locais de fixação O recuo da libido à fantasia é um estágio interme diário no caminho para a formação do sintoma que merece designação especial C G Jung cunhou para ele um nome apropriado introversão ao qual porém atribuiu também outro significado de maneira inopor tuna Desejamos estabelecer que introversão designa o afastamento da libido das possibilidades de satisfação real e o superinvestimento das fantasias toleradas até então como inofensivas Um introvertido ainda não é um neurótico mas se encontra numa situação instável ele desenvolverá sintomas no próximo deslocamento de forças a não ser que encontre outras saídas para sua li 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS bido represada O caráter irreal da satisfação neurótica e a negligência da distinção entre fantasia e realidade por outro lado já se encontram determinados pela per manência no estágio da introversão Os senhores certamente notaram que nessas últi mas discussões introduzi um novo fator na estrutura do encadeamento etiológico a saber a quantidade a grandeza das energias a serem consideradas Esse fator precisamos levar em conta em toda parte Uma análi se puramente qualitativa das condições etiológicas não nos basta Ou para dizêlo de outra maneira uma con cepção meramente dinâmica desses processos psíquicos é insuficiente o ponto de vista econômico é igualmente necessário Temos de afirmar que o conflito entre duas tendências não irrompe antes que certas intensidades de investimento sejam alcançadas ainda que as con dições ligadas ao conteúdo estejam presentes há muito tempo Da mesma forma o significado patogênico dos fatores constitucionais depende do quanto mais de um instinto parcial que de outro se acha na predisposição herdada podese inclusive imaginar que as predisposi ções de todas as pessoas sejam qualitativamente iguais diferenciandose apenas por essas condições quantita tivas O fator quantitativo não é menos decisivo para a capacidade de resistência ao adoecimento neurótico É uma questão de qual montante de libido não empregada uma pessoa é capaz de conservar em suspensão e de que fiação de sua libido ela é capaz de desviar do sexual para as metas da sublimação A meta final da atividade psíquica meta que pode ser descrita qualitativamente 497 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES como busca da obtenção de prazer e evitação do despra zer apresentase para a consideração econômica como a tarefa de dominar as grandezas de excitação quanti dades de estímulo que atuam no aparelho psíquico e impedir o seu represamento que gera o desprazer Isso era pois o que eu queria lhes dizer sobre a for mação dos sintomas nas neuroses Mas não deixo de mais uma vez enfatizar tudo o que disse aqui se re fere apenas à formação de sintomas na histeria Já na neurose obsessiva há muita coisa diferente embora o fundamental se mantenha Os contrainvestimentos que se opõem às exigências instintuais dos quais falamos também no caso da histeria passam a primeiro plano na neurose obsessiva e dominam o quadro clínico por meio das chamadas formações reativas Divergências semelhantes e outras mais de alcance ainda maior nós descobrimos nas outras neuroses em que as investiga ções sobre os mecanismos de formação de sintomas ain da não se acham concluídas em nenhum aspecto Antes de dispensálos eu gostaria de solicitar um pouco mais sua atenção para um lado da vida da fanta sia que merece o interesse de todos Existe um caminho de volta da fantasia para a realidade e esse caminho é a arte O artista também é em gérmen um introvertido que não se acha muito longe da neurose É impelido por enormes necessidades instintuais gostaria de conquistar honras poder riqueza glória e o amor das mulheres Faltamlhe porém os meios para alcançar tais satisfa ções Por isso ele se afasta da realidade como qualquer outro insatisfeito e transfere todo o seu interesse indu 23 OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DE SINTOMAS sive sua libido para as formações que encerram desejos em sua vida da fantasia das quais parte um caminho que pode levar à neurose Muitas coisas precisam convergir para que esse não seja o resultado de seu desenvolvi mento sabese com que frequência os artistas sofrem uma inibição parcial de sua capacidade de desempenho devido às neuroses Provavelmente sua constituição en cerra forte capacidade para a sublimação e alguma frou xidão nas repressões decisivas para um conflito Mas ele acha o caminho de volta à realidade da maneira seguin te Certamente ele não é o único que tem uma vida da fantasia O reino intermediário da fantasia conta com a aprovação geral dos homens e todo aquele que sofre privações espera dele mitigação e consolo Para os não artistas contudo o ganho de prazer obtido das fontes da fantasia é muito limitado A inexorabilidade de suas repressões os obriga a contentarse com os parcos so nhos diurnos que podem se tornar conscientes Quando alguém é um verdadeiro artista dispõe de mais do que isso Em primeiro lugar é capaz de elaborar seus sonhos diurnos de forma a perderem o que é muito pessoal e que desagrada os estranhos tornando possível que ou tros também os desfrutem Sabe também atenuálos a ponto de não revelarem facilmente sua origem de fon tes malvistas Além disso tem o poder enigmático de conformar certo material até que este se torne imagem fiel de sua fantasia e sabe vincular tamanha obtenção de prazer a essa representação de sua fantasia incons ciente que ao menos temporariamente as repressões são sobrepujadas e canceladas por ela Sendo capaz de 499 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES tudo isso ele possibilita que os outros extraiam nova mente alívio e consolo de suas próprias fontes de prazer inconscientes que se tornaram inacessíveis obtendo sua gratidão e admiração e assim chegando através de sua fantasia ao que antes alcançava apenas em sua fantasia honras poder e o amor das mulheres 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM Senhoras e senhores Depois de em nossas últimas dis cussões termos realizado parte tão difícil de nosso tra balho abandono temporariamente o assunto de nossas palestras e me volto para os senhores Pois sei que estão insatisfeitos Imaginaram de ou tra forma uma introdução à psicanálise Esperavam escutar exemplos cheios de vida e não teoria Dizem me os senhores que quando lhes expus a analogia No térreo e no primeiro andar compreenderam algo sobre a causação das neuroses mas que eu deveria lhes ter passado observações reais e não histórias inventadas Ou que quando inicialmente lhes relatei dois sintomas oxalá não tenham sido inventados também e des crevi a solução e a relação deles com a vida dos doentes ficou claro para os senhores o sentido dos sintomas esperavam pois que eu prosseguisse da mesma forma Em vez disso oferecilhes extensas teorias difíceis de apreender e jamais completas às quais sempre se jun tavam coisas novas trabalhei com conceitos que ainda 00 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM não lhes havia apresentado passei da exposição descriti va à concepção dinâmica e desta à que chamei econô mica tornei difícil compreender quais termos técnicos empregados tinham o mesmo significado alternando os apenas por razões de sonoridade fiz surgir diante dos senhores concepções abrangentes como as dos prin cípios do prazer e da realidade e da herança filogenética e em vez de introduzilos em uma matéria fiz apenas desfilar ante os seus olhos algo que se distanciou cada vez mais dos senhores Por que não comecei minha introdução à teoria das neuroses com aquilo que os senhores próprios conhecem dos distúrbios neuróticos e que há tempos despertou seu interesse Com a singularidade das pessoas nervosas com suas reações incompreensíveis ao contato humano e às influências exteriores com sua irritabilidade sua imprevisibilidade e sua inépcia Por que o senhor não procedeu passo a passo desde a compreensão das formas mais simples e cotidianas até os problemas dos fenôme nos enigmáticos e extremos dos distúrbios neuróticos Sim meus senhores não posso deixar de lhes dar razão Não estou enamorado da minha arte expositiva a ponto de atribuir particular atratividade a cada uma de suas imperfeições Creio também eu que teria sido mais vantajoso para os senhores se eu tivesse procedido de outra forma era aliás minha intenção Mas nem sempre conseguimos pôr em prática nossas intenções sensatas No próprio assunto há sempre algo que nos co manda e nos desvia de nossas intenções iniciais Mesmo uma tarefa tão modesta como ordenar um material bem 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES conhecido não se sujeita inteiramente ao arbítrio do au tor ela se cumpre como bem entende e tudo que pode mos fazer é nos perguntar posteriormente por que seu cumprimento resultou dessa maneira e não de outra Uma das razões para isso provavelmente é que o título Introdução à psicanálise já não se aplica a este segmento que deve tratar das neuroses A introdução à psicanálise compreende o estudo dos atos falhos e do sonho a teoria das neuroses já é a própria psicanálise Não acredito que em tão pouco tempo eu poderia dar a conhecer aos senhores o conteúdo da teoria das neu roses de outra forma que não essa tão concentrada Tratavase de expor em sua conexão o sentido e a im portância dos sintomas as condições externas e internas e o mecanismo da formação desses sintomas Foi o que tentei fazer está aí basicamente o núcleo daquilo que a psicanálise tem hoje a ensinar Nessa exposição muito precisava ser dito sobre a libido e seu desenvolvimento e também alguma coisa sobre o Eu Para as premissas de nossa técnica para as grandes concepções do in consciente e da repressão ou resistência os senhores já haviam sido preparados pela introdução Numa das conferências seguintes descobrirão também a partir de que pontos o trabalho psicanalítico tem sua continui dade orgânica Por enquanto não ocultei dos senhores que todas as nossas descobertas decorrem do estudo de um único grupo de afecções nervosas as chamadas neuroses de transferência O mecanismo da formação dos sintomas cheguei a investigálo apenas no tocante à histeria Ainda que os senhores não tenham adquirido 502 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM um conhecimento sólido nem fixado cada detalhe es pero ao menos que tenham obtido uma ideia dos meios com os quais a psicanálise trabalha das questões de que ela trata e dos resultados alcançados Atribuí aos senhores o desejo de que eu tivesse co meçado a apresentação das neuroses pela conduta das pessoas neuróticas pela descrição da maneira como elas sofrem com sua neurose de como se defendem dela e de como se arranjam com ela Esse é por certo um assunto interessante e que merece ser conhecido além de não muito difícil de tratar mas começar por ele não é um procedimento livre de inconvenientes Correse o risco de dessa forma não se descobrir a existência do inconsciente e de por esse caminho não se perce ber a importância da libido julgandose assim toda a situação a partir do modo como ela se apresenta ao Eu dos doentes dos nervos É óbvio porém que esse Eu não é uma instância confiável e imparcial Afinal o Eu é o poder que nega o inconsciente e que o reduziu à condição de reprimido como pois confiar em que ele possa fazer justiça a esse inconsciente Nesse reprimido se acham acima de tudo as demandas rejeitadas da se xualidade é evidente que jamais poderemos depreender das concepções do Eu a extensão e o significado de tais demandas A partir do momento em que a concepção da repressão se torna clara para nós ficamos advertidos de que não devemos instaurar uma das partes em conflito e menos ainda a vitoriosa como o juiz da conten da Estaremos pois avisados de que as declarações do Eu só poderão nos desorientar A se dar crédito a ele o 503 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Eu esteve ativo em todos os momentos desejou para si e criou ele próprio os sintomas que apresenta Sabemos no entanto que ele tem de se conformar com boa dose de passividade a qual então deseja ocultar e embele zar Mas nem sempre ele ousa fazer semelhante tenta tiva Nos sintomas da neurose obsessiva é obrigado a reconhecer que algo estranho se contrapôs a ele algo de que apenas com muito esforço consegue se defender Quem não se deixa deter por tal advertência e toma por moeda verdadeira as falsificações do Eu esse en contra facilidade e escapa de todas as resistências que se contrapõem à ênfase psicanalítica no inconsciente na sexualidade e na passividade do Eu Poderá assim como Alfred Adler afirmar que o caráter neurótico é a causa e não a consequência da neurose mas não terá condições de explicar um único detalhe da forma ção dos sintomas ou um único sonho Os senhores perguntarão Não seria possível fazer justiça à participação do Eu no estado neurótico e na formação de sintomas sem negligenciar grosseiramente os fatores desvendados pela psicanálise E eu respon do claro que deve ser possível e assim ocorrerá um dia mas não é a tendência do trabalho psicanalítico princi piar desse ponto Podese prever quando essa tarefa se apresentará à psicanálise Há neuroses em que a parti cipação do Eu é bem mais intensa do que naquelas que estudamos até agora Nós as chamamos de neuroses narcísicas A elaboração analítica dessas afecções nos permitirá avaliar a participação do Eu no adoecimento neurótico de forma imparcial e mais confiável 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM Todavia urna das relações do Eu com sua neurose salta aos olhos de tal forma que ela pode bem merecer consideração desde o princípio Tal relação não parece estar ausente em nenhum caso mas pode ser reconheci da com a máxima nitidez em urna afecção que mesmo hoje ainda estamos distantes de compreender a neurose traumática É preciso que os senhores saibam que na causação e no mecanismo de todas as formas possíveis de neurose atuam sempre os mesmos fatores o que ocorre é que cabe ora a um ora a outro a importância maior na formação do sintoma É como numa trupe de atores em que cada qual tem sua especialidade o herói o confidente o intrigante etc Cada um deles escolherá a peça que mais beneficia seu papel específico Desse modo as fantasias que se convertem em sintomas são evidentes sobretudo na histeria os contrainvestimen tos ou formações reativas do Eu dominam o quadro na neurose obsessiva aquilo a que no sonho demos o nome de elaboração secundária ganha como delírio proeminência na paranoia e assim por diante Assim nas neuroses traumáticas em especial naque las ocasionadas pelos horrores da guerra surgenos ine quivocamente um motivo egoísta por parte do Eu bus cando proteção e vantagem motivo que não é capaz de sozinho criar a doença mas que lhe dá aprovação e a mantém uma vez que ela se tenha produzido Esse moti vo pretende proteger o Eu daqueles perigos cuja ameaça ensejou o adoecimento e não permitirá a cura até que a repetição de tais perigos não mais pareça possível ou até que obtenha uma compensação pelo perigo enfrentado 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Em todos os outros casos contudo o Eu demonstra o mesmo interesse no surgimento e na persistência da neurose Já dissemos que também o sintoma é susten tado pelo Eu pois tem um lado que oferece satisfação à tendência repressora desse Eu Além disso a resolução do conflito por meio da formação do sintoma é o resul tado mais cômodo e mais conveniente para o princípio do prazer sem dúvida ele poupa o Eu de um grande trabalho interior sentido como penoso Há mesmo ca sos em que o próprio médico é levado a admitir que a neurose como resultado do conflito representa a solu ção mais inofensiva e socialmente suportável Não se es pantem portanto se os senhores ouvirem que o médico por vezes toma o partido da enfermidade que combate Não lhe cabe no enfrentamento de todas as situações da vida restringirse ao papel do fanático pela saúde ele sabe que no mundo não existe apenas a infelici dade provocada pela neurose mas também sofrimento real irremovível e que a necessidade de um ser huma no pode requerer o sacrifício da própria saúde assim o médico descobre também que mediante tal sacrifício de um indivíduo podese frequentemente impedir que um infortúnio imensurável se abata sobre tantos outros Se pudemos dizer que diante de um conflito o neurótico sempre busca refúgio na doença temos de reconhecer que em muitos casos essa fuga é plenamente justificada e o médico que percebeu esse estado de coisas se retirará em silêncio pleno de consideração para com o enfermo Mas não consideremos esses casos excepcionais no restante de nossa discussão Em circunstâncias normais 506 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM o que percebemos é que desviandose rumo à neuro se o Eu obtém certo ganho interior o benefício da doen ça A ele vem se associar em várias situações da vida uma vantagem exterior palpável que se pode estimar como maior ou menor na realidade Vejam o caso mais frequente dessa natureza Uma mulher que é cruamen te maltratada pelo marido e por ele explorada sem ne nhum escrúpulo geralmente encontra a saída na neuro se quando sua constituição assim o permite quando é muito covarde ou muito ética para secretamente buscar consolo em outro homem quando não é forte o bastan te para contrariar todos os impedimentos exteriores e se separar dele quando não vê perspectiva de se manter sozinha ou de conquistar para si um homem melhor e quando além disso achase ainda vinculada sexual mente a esse marido brutal A doença se torna então sua arma na luta contra a força superior do homem uma arma que ela pode utilizar para sua defesa e da qual pode abusar para sua vingança Sobre a doença ela pode se queixar mas provavelmente não poderia se queixar do casamento No médico ela encontra ajuda obriga o ma rido normalmente inconsiderado a poupála a dispen der dinheiro com ela a lhe permitir que se ausente de casa e assim que se livre por algum tempo da opressão matrimonial Quando tal benefício exterior ou acidental da doença é elevado e não encontra substituto real os senhores não poderão avaliar como grande a possibili dade de a terapia exercer influência sobre a neurose No original Krankheitsgewinn literalmente ganho da doença 07 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Os senhores argumentarão que o que acabo de dizer acerca do benefício da doença depõe inteiramente a fa vor da concepção que eu mesmo havia rejeitado isto é a de que o próprio Eu deseja e cria a neurose Devagar meus senhores Talvez esse benefício signifique apenas que o Eu tolera a neurose que afinal não pode evitar e que faz dela o melhor proveito possível se algum proveito é possível obter daí Esse é apenas um lado da questão e aliás o lado agradável Enquanto a neuro se trouxer vantagens o Eu estará de acordo com ela mas a neurose não possui apenas vantagens Em regra logo se revela que o Eu fez um mau negócio ao se meter com ela Pagou muito caro por um alívio para o confli to e os sofrimentos ligados aos sintomas são talvez um substituto equivalente aos tormentos do conflito mas provavelmente implicam um aumento no desprazer O Eu gostaria de se livrar desse desprazer causado pelos sintomas mas não quer abrir mão do benefício da doen ça e isso ele não consegue Verificase então que o Eu não era tão ativo quanto pensava e isso é um fato que devemos guardar Meus senhores ao lidar com neuróticos na condi ção de médicos logo abandonarão a expectativa de que aqueles que mais se queixam e reclamam de sua doen ça são os mais dispostos a receber ajuda e os que me nos resistência opõem a ela O que acontece é antes o contrário Mas por certo terão facilidade para com preender que tudo o que contribui para o benefício da doença intensifica a resistência da repressão e aumenta a dificuldade terapêutica Sobre a porção do benefício 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM da doença que nasce com o sintoma por assim dizer temos ainda algo a acrescentar que se verifica mais tar de Quando uma organização psíquica como a doença persiste por um tempo maior ela acaba se comportan do como um ser autônomo manifesta algo como um instinto de autoconservação constrói uma espécie de modus YÍYendi entre ela e outras partes da vida psíquica mesmo aquelas que no fundo lhe são hostis e é difícil que não surjam oportunidades nas quais ela volte a se mostrar útil e proveitosa adquirindo uma função se cundária por assim dizer que confere força renovada à sua existência Em vez de um exemplo vindo oriundo da patologia considerem os senhores uma óbvia ilustração extraída da vida cotidiana Um trabalhador capaz que ganha seu pão de cada dia sofre um acidente em seu trabalho e se torna um inválido trabalhar ele agora já não pode mas com o tempo passa a receber uma pe quena pensão por invalidez e aprende a tirar proveito de sua mutilação na condição de mendigo Sua nova exis tência por pior que tenha se tornado assentase agora precisamente naquilo que pôs fim à sua existência an terior Se puderem corrigir sua deformidade os senho res o estarão de início privando de sua subsistência a pergunta que se coloca é se ele ainda é capaz de retomar seu antigo ofício Aquilo que na neurose correspon de a uma tal utilização secundária da enfermidade nós podemos juntar como um benefício secundário àquele benefício primário da doença De modo geral todavia eu gostaria de dizer aos se nhores que não subestimem o significado prático desse 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES benefício da doença nem permitam que ele os impres sione do ponto de vista teórico À parte aquelas primei ras exceções que já admitimos esse benefício sempre nos recorda os exemplos da inteligência dos animais que Oberlander ilustrou nas Fliegende Bliitter Um ára be montado em seu camelo segue por uma trilha estrei ta entalhada na parede íngreme de uma montanha Em uma curva do caminho ele se vê de súbito diante de um leão pronto a dar o bote O árabe não vê saída de um lado a parede vertical de outro o abismo retorno ou fuga são impossíveis está perdido julga O animal porém avalia a situação de outra forma Com o árabe montado no lombo ele salta para o abismo e o leão fica a ver navios Em regra o auxílio prestado pela neuro se não traz melhor resultado para o doente É possível que venha daí o fato de a resolução de um conflito pela formação de sintoma constituir um processo automático que não pode se mostrar à altura das demandas da vida e no qual o ser humano deixa de utilizar suas forças me lhores e mais elevadas Se houvesse escolha seria prefe rível sucumbir em luta honrada contra o destino Mas senhores devolhes ainda uma exposição dos demais motivos pelos quais em minha apresentação da doutrina das neuroses não parti do estado neuró tico comum Talvez os senhores pensem que não o fiz porque teria então maior dificuldade para demonstrar a causação sexual das neuroses Estariam enganados porém Nas neuroses de transferência é preciso antes Adolf Oberliinder 18451923 era um conhecido cartunista 510 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM trabalhar a interpretação dos sintomas a fim de chegar a essa compreensão No caso das formas comuns das chamadas neuroses atuais a importância etiológica da vida sexual é um fato puro e simples que se apresenta por si só à observação Deparei com ele há mais de vinte anos quando um dia me perguntei por que ao exa minar doentes dos nervos suas atividades sexuais eram excluídas regularmente de toda consideração Na épo ca sacrifiquei minha popularidade com os pacientes por causa dessa investigação mas depois de breve empe nho pude formular a tese de que na vida sexual normal não existe neurose referiame à neurose atual Sem dúvida essa tese passa facilmente ao largo das diferen ças individuais entre as pessoas além de padecer da im precisão inerente ao juízo do que vem a ser normal mas que ainda conserva seu valor para uma orientação mais geral Naquele tempo cheguei mesmo a estabele cer relações específicas entre certas formas de neurose e determinadas práticas sexuais nocivas e não duvido que minhas observações se repetissem hoje caso os doentes me oferecessem material semelhante Com bas tante frequência verifiquei que um homem que se con tentava com certo tipo de satisfação sexual incompleta a masturbação por exemplo padecia de determi nada forma de neurose atual e que essa neurose pron tamente dava lugar a outra caso ele trocasse seu regime sexual por outro igualmente repreensível Podia assim depreender da mudança no estado do doente a varia ção ocorrida em sua vida sexual Aprendi também por essa época a insistir nas minhas suposições até superar 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES a insinceridade dos pacientes e obrigálos à confirmação delas É fato que depois disso eles preferiam procurar outros médicos não tão ávidos de informação acerca de sua vida sexual Tampouco pude deixar de perceber que as causas do adoecimento nem sempre apontavam para a vida sexual Um doente podia de fato ter adoecido em consequência de uma prática sexual danosa outro porém em razão de ter perdido sua fortuna ou de ter passado por uma doen ça orgânica extenuante A explicação para essa varieda de veio mais tarde quando adquirimos a compreensão das conjecturadas relações entre o Eu e a libido e ela se revelou tanto mais satisfatória quanto mais profunda se fez tal compreensão Uma pessoa só adoece de neurose quando seu Eu perde a capacidade de acomodar de algu ma maneira a libido Quanto mais forte o Eu mais fácil lhe será o cumprimento dessa tarefa toda debilidade do Eu qualquer que seja a causa há de produzir o mesmo efeito que uma intensificação desmedida da demanda da libido e assim possibilitar o adoecimento neurótico Eu e libido possuem também outras relações mais íntimas as quais no entanto ainda não surgiram no horizonte que ora consideramos e que por isso não busco expli car aqui Essencial e esclarecedor para nós permanece o fato de que em todos os casos independentemente do caminho que conduziu ao adoecimento os sintomas da neurose são sustentados pela libido e assim dão tes temunho do uso anormal dela Agora porém devo chamar a atenção dos senhores para a diferença decisiva entre os sintomas das neuro 12 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM ses atuais e aqueles das neuroses psíquicas das quais o primeiro grupo o das neuroses de transferência tanto nos ocupou até agora Em ambos os casos os sintomas vêm da libido constituindo portanto usos anormais dela satisfação substitutiva Mas os sintomas das neu roses atuais pressão no interior da cabeça sensação de dor irritabilidade em um órgão enfraquecimento ou impedimento de uma função não têm um sentido um significado psíquico Eles não apenas se manifes tam sobretudo no corpo como sucede com os sintomas histéricos por exemplo como são também processos inteiramente físicos em cujo surgimento não atuam os complicados mecanismos psíquicos de que tomamos conhecimento São de fato aquilo que por tanto tem po se acreditou que eram os sintomas psiconeuróticos Como podem então corresponder a aplicações da libi do que conhecemos como uma força que atua nas psi que Isso meus senhores é muito fácil Permitamme recordar uma das primeiras objeções levantadas contra a psicanálise Diziase que ela buscava uma teoria pu ramente psicológica dos fenômenos neuróticos e que o fazia em vão porque teorias psicológicas jamais pode riam explicar uma enfermidade As pessoas preferiam esquecer que a função sexual não é coisa puramente psí quica assim como tampouco meramente somática Ela influencia tanto a vida do corpo como a da psique Se nos sintomas das psiconeuroses vimos manifestações de distúrbios na atuação psíquica da função sexual não nos espantará descobrir nas neuroses atuais consequên cias somáticas diretas dos distúrbios sexuais 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Para a compreensão desses a clínica médica nos fornece valioso indício que já foi levado em conta por pesquisadores diversos Tanto nos detalhes de sua sin tomatologia como na peculiaridade de influenciar todos os sistemas de órgãos e todas as funções as neuroses atuais manifestam inequívoca semelhança com os es tados patológicos decorrentes da influência crônica de substâncias tóxicas estranhas e da súbita retirada delas ou seja com as intoxicações e os estados de abstinên cia Esses dois grupos de afecções se aproximam ainda mais pela mediação de estados que também aprendemos a relacionar com o efeito produzido por substâncias tó xicas como a doença de Basedow mas nesse caso não por toxinas estranhas introduzidas no corpo e sim por aquelas produzidas pelo próprio metabolismo O que quero dizer é que diante dessas analogias não pode mos deixar de ver as neuroses como consequências de perturbações em um metabolismo sexual seja por que essas toxinas são produzidas em quantidade maior do que aquela com a qual uma pessoa é capaz de lidar ou porque circunstâncias internas e mesmo psíquicas estão prejudicando a utilização correta dessas substân cias Desde sempre a psique popular rendeu tributo a suposições desse tipo sobre a natureza do desejo sexual ela chama o amor de embriaguez e atribui a poções do amor o nascimento da paixão com o que de certo modo desloca seu agente para o exterior Esta pode ria ser para nós uma oportunidade de lembrar as zo nas erógenas e a afirmação de que a excitação sexual pode ter origem nos mais diversos órgãos De resto 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM porém a expressão metabolismo sexual ou química da sexualidade é do nosso ponto de vista desprovida de conteúdo nada sabemos a seu respeito e não pode mos sequer nos decidir se devemos supor a existência de duas substâncias sexuais às quais chamaríamos então de masculina e feminina ou nos conten tar com uma única toxina sexual na qual nos caberia identificar a portadora de todos os efeitos estimulantes da libido O edifício que erguemos da teoria psicana lítica é na realidade uma superestrutura que um dia deverá ser assentado sobre o seu fundamento orgânico mas este ainda não conhecemos Como ciência a psicanálise não se caracteriza pela matéria de que trata e sim pela técnica com que traba lha Podese aplicála tanto à história da civilização ao estudo da religião e da mitologia como à teoria das neu roses sem com isso violentar sua natureza Ela não faz nem pretende fazer outra coisa que não seja desvendar o inconsciente na vida psíquica Os problemas das neu roses atuais cujos sintomas decorrem provavelmente de dano tóxico direto não oferecem nenhum ponto de acesso à psicanálise ela pouco pode fazer para aclará los cabendolhe pois deixar essa tarefa à pesquisa médicobiológica Talvez os senhores compreendam agora por que não escolhi outra ordem para a minha ex posição Tivesse eu prometido uma introdução à teoria James Strachey observa numa nota que Freud rejeitaria clara mente essa noção nas NoYas conforências introdutórias à psicanálise 1933 conferência 33 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES das neuroses sem dúvida o caminho correto teria sido partir das formas simples das neuroses atuais rumo aos adoecimentos psíquicos mais complexos decorrentes da perturbação da libido Quanto às primeiras eu pre cisaria reunir tudo que aprendemos ou acreditamos sa ber de diversas fontes e no caso das psiconeuroses a psicanálise trataria então de elucidálas na qualidade de instrumento técnico mais importante para isso Con tudo o que pretendi fazer e anunciei foi uma intro dução à psicanálise para mim era mais importante que os senhores adquirissem uma ideia da psicanálise do que certos conhecimentos acerca das neuroses razão pela qual eu não podia pôr em primeiro plano as neu roses atuais infrutíferas no que concerne à psicanálise Creio de resto ter feito a escolha mais proveitosa para os senhores pois graças ao alcance de suas premissas e a suas conexões abrangentes a psicanálise merece um lugar no interesse de toda pessoa culta já a teoria das neuroses é um capítulo entre outros da medicina De todo modo os senhores abrigarão a justa expec tativa de que dediquemos alguma atenção também às neuroses atuais A íntima conexão clínica que elas têm com as psiconeuroses já nos obriga a fazêlo Então devo lhes comunicar que diferenciamos três formas pu ras de neurose atual a neurastenia a neurose de angústia e a hipocondria Mesmo essa afirmação não se acha livre de objeções É verdade que esses termos são emprega dos mas seu conteúdo é indefinido e oscilante Há mé dicos que resistem a toda distinção no confuso mundo dos fenômenos neuróticos a qualquer destaque de enti 16 24 O ESTADO NEURÓTICO COMUM dades clínicas ou doenças particulares e que não reco nhecem nem mesmo a separação entre neuroses atuais e psíquicas Pareceme que vão longe demais e que não tomaram o caminho que leva adiante Ocasionalmente as formas de neurose mencionadas ocorrem de maneira pura mais frequente é no entanto que se misturem en tre si e com uma afecção psiconeurótica Esse fato não precisa nos levar a abrir mão da separação entre elas Pensem na diferença entre o estudo dos minerais e o das pedras na mineralogia Os minerais são descritos em sua individualidade decerto com base no fato de que como cristais apresentamse amiúde claramente apar tados de seu entorno As pedras consistem em misturas de minerais que com certeza não se juntaram por aca so mas em consequência das condições de seu surgi mento Na teoria das neuroses compreendemos ainda muito pouco sobre o curso de seu desenvolvimento para podermos criar algo semelhante à petrologia Mas sem dúvida estamos corretos se primeiramente isolamos da massa as entidades clínicas que podemos reconhecer comparáveis aos minerais Uma relação digna de nota entre os sintomas das neuroses atuais e das psiconeuroses oferecenos outra importante contribuição para o estudo da formação dos sintomas nestas últimas O sintoma da neurose atual é com frequência o núcleo e estágio preliminar do sin toma psiconeurótico Uma relação desse tipo pode ser observada da maneira mais nítida entre a neurastenia e a neurose de transferência a que se dá o nome de his teria de conversão entre a neurose de angústia e a his 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES teria de angústia mas também entre a hipocondria e aquelas formas que mais adiante serão mencionadas sob os nomes de parafrenia dementia praecox e paranoia Tomemos como exemplo o caso de uma dor de cabeça ou dor lombar histéricas A análise nos mostra que me diante condensação e deslocamento ela se tornou su cedâneo da satisfação para toda uma série de fantasias ou lembranças libidinais Mas essa dor também já foi real outrora foi um sintoma diretamente tóxicosexual expressão física de uma excitação libidinal Não preten demos de modo algum afirmar que todos os sintomas histéricos possuem tal núcleo mas o fato é que esse é frequentemente o caso e que todas as influências que a excitação libidinal exercem sobre o corpo normais ou patológicas têm preferência na formação dos sin tomas da histeria Elas desempenham o papel do grão de areia que o molusco envolve em camadas de madre pérola Da mesma forma os sinais passageiros de ex citação que acompanham o ato sexual são empregados pela psiconeurose como o material mais conveniente e apropriado para a formação de sintomas Semelhante processo oferece particular interes se diagnóstico e terapêutico Não é raro suceder em pessoas predispostas à neurose mas que não têm uma neurose evidente que uma alteração física de natureza patológica uma inflamação digamos ou algum fe rimento põe em marcha o trabalho da formação do sintoma que então transforma rapidamente o sintoma que lhe é dado pela realidade em representante de todas as fantasias inconscientes que se acham à espreita de um 25AANGÚSTIA meio de expressão do qual se apoderem Em um caso assim o médico tomará ora um ora outro caminho te rapêutico ou desejará eliminar o fundamento orgânico sem se preocupar com sua estridente elaboração neuró tica ou combaterá a neurose surgida oportunamente e dará pouca atenção ao seu ensejo orgânico O sucesso provará a correção ou incorreção de uma ou de outra abordagem dificilmente podemos estabelecer prescri ções gerais para esses casos mistos 25 A ANGÚSTIA Senhoras e senhores Com certeza terão percebido o que falei sobre o estado neurótico em geral na confe rência anterior como a mais incompleta e insuficien te de minhas exposições Sei disso e creio que nada os terá surpreendido mais do que a ausência de qual quer menção à angústia é dela afinal que se queixa a maioria dos neuróticos que a caracterizam como seu padecimento mais terrível e a angústia pode realmente alcançar neles uma enorme intensidade e ter por conse quência as medidas mais desvairadas Nisso ao menos não quis ser sucinto com os senhores pelo contrário minha intenção era enfocar com ênfase particular o problema da angústia nos neuróticos discutindoo de talhadamente com os senhores Não necessito apresentarlhes a angústia em si cada um de nós já experimentou essa sensação ou melhor dizendo esse estado afetivo Mas acho que ninguém ja 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES mais se perguntou com bastante seriedade por que jus tamente os neuróticos sentem angústia de modo mais frequente e mais intenso do que as outras pessoas Tal vez porque considerem óbvia a resposta afinal as pala vras nervos nervoso neurótico e iingstlich angustiado são habitualmente empregadas uma em lugar da outra como se significassem a mesma coisa Mas não é correto fazêlo há pessoas angustiadas que de resto não são nada neuróticas assim como há neuróticos que sofrem de variados sintomas entre os quais contudo a tendên cia à angústia não está presente Seja como for é certo que o problema da angústia configura um ponto nodal para o qual convergem ques tões as mais diversas e importantes um enigma cuja solução haverá de lançar luz abundante sobre o conjun to de nossa vida psíquica Não vou afirmar que posso oferecerlhes essa solução mas os senhores por certo hão de esperar que a psicanálise aborde também esse tema diferentemente do modo como o fazem as esco las de medicina Nelas o interesse se volta sobretudo para os caminhos anatômicos pelos quais o estado de angústia se produz Explicam que com a estimulação da medulla oblongata o doente descobre que sofre de uma neurose do nervus vagus A medulla oblongata é de fato um tema sério e interessante Lembrome muito bem de quanto tempo dediquei a seu estudo anos atrás Hoje no entanto devo dizer que não conheço nada que pudesse ser mais inútil ao entendimento psicológico da angústia do que o conhecimento da via nervosa percor rida por suas excitações 20 25 A ANGÚSTIA No começo é possível abordar a angústia por um bom tempo sem dar atenção aos estados neuróticos Os senhores me entenderão perfeitamente se eu caracteri zar essa angústia como realista por oposição à neuró tica A angústia realista nos parece bastante racional e compreensível Diremos que é uma reação à percepção de um perigo externo ou seja de um dano esperado previsto está vinculada ao reflexo da fuga e é lícito considerála manifestação do instinto de autoconser vação Em que ocasiões ou seja ante quais objetos e em que situações essa angústia surge isso é claro de pende em grande parte do estado de nosso saber e de nosso sentimento de poder frente ao mundo exterior Julgamos inteiramente compreensível que o selvagem sinta medo de um canhão e que um eclipse o angustie ao passo que sob as mesmas circunstâncias o homem branco capaz de manejar a arma e de prever o eclip se do sol permanece livre de angústia Outras vezes é justamente o maior saber que favorece a angústia porque permite antever o perigo Assim o selvagem se assustará com pegadas na mata que nada informam ao insciente mas lhe denunciam a proximidade de um ani mal feroz e um navegante experiente contemplará com horror uma nuvenzinha que parece inofensiva ao pas sageiro mas lhe anuncia a aproximação de um furacão Refletindo melhor temos de admitir que o juízo acerca da angústia realista o de que ela é racional e adequada necessita de rigorosa revisão O único comportamento adequado ante a ameaça de um perigo seria com efeito avaliar calmamente as próprias forças 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES em comparação com o tamanho da ameaça e então de cidir que alternativa oferece maior perspectiva de um bom desfecho se a fuga a defesa ou mesmo o ataque Mas nesse contexto não há lugar para a angústia tudo o que ocorre sucederia de toda forma e provavelmente de melhor maneira se a angústia não se desenvolvesse Os senhores veem portanto que em intensidade demasia da a angústia se revela extremamente inadequada pois paralisa toda ação inclusive a fuga De hábito a reação ao perigo consiste em uma mescla de afeto de angústia e ação defensiva O animal assustado se angustia e foge mas o adequado nisso é a fuga não o angustiarse Portanto sentimonos tentados a afirmar que o de senvolvimento da angústia jamais é adequado Decom por com mais cuidado a situação angustiante talvez nos ajude a obter uma melhor compreensão do assunto A primeira coisa que verificamos nela é a prontidão diante do perigo a qual se manifesta em maior atenção sen sorial e tensão motora Essa prontidão expectante deve ser reconhecida como vantajosa de fato sua ausência poderia ser responsável por sérias consequências Dela advém por um lado a ação motora de início a fuga em um estágio mais elevado a defesa ativa e de ou tro aquilo que sentimos como o estado de angústia Quanto mais o desenvolvimento da angústia se reduz a mero estágio inicial a um sinal tanto mais imperturba da essa prontidão se converte em ação e tanto mais ade quado se configura todo o curso de eventos Portanto adequado naquilo a que chamamos angústia pareceme ser a prontidão e inadequado o seu desenvolvimento 22 25 A ANGÚSTIA Evito aqui aprofundarme na questão de saber se linguagem corrente designa a mesma coisa ou coisas claramente diferentes com as palavras Angst angústia ou medo Furcht temor e Schreclc terror Apenas acho que angústia se refere ao estado não conside rando o objeto ao passo que temor chama a atenção precisamente para o objeto Terror por outro lado parece ter um sentido especial o de realçar o efeito de um perigo que não é recebido com a prontidão da an gústia Podese dizer assim que o homem se protege do terror por meio da angústia Uma certa ambiguidade e indefinição no uso da pa lavra angústia não terá escapado aos senhores Na maioria das vezes entendese por angústia o estado subjetivo em que ficamos graças à percepção do de senvolvimento da angústia e chamase a isso um afeto Mas o que é um afeto no sentido dinâmico do termo De todo modo é algo composto Um afeto compreen de em primeiro lugar determinadas inervações moto ras ou descargas em segundo certas sensações de dois tipos distintos as percepções das ações motoras ocor ridas e as sensações diretas de prazer e desprazer que dão o tom como se diz ao afeto Não acredito porém que com essa enumeração cheguemos à essência do afe to Em alguns afetos acreditamos enxergar mais fundo e reconhecer que o núcleo que sustenta o conjunto é a repetição de determinada vivência cheia de significado Ela poderia ser apenas alguma impressão bastante pre coce e de natureza muito geral que deve ser situada não na préhistória do indivíduo mas na da espécie Para 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES dizêlo de forma mais compreensível o estado afetivo seria construído como um ataque histérico seria como esse o precipitado de uma reminiscência O ataque his térico é comparável portanto a um afeto individual recémformado e o afeto normal à expressão de uma histeria geral que se tornou herança Não suponham os senhores que aquilo que eu disse sobre os afetos é patrimônio reconhecido da psicologia normal Pelo contrário são concepções que brotaram do terreno da psicanálise e somente nele se acham em casa O que os senhores podem aprender sobre os afetos na psicologia a teoria de JamesLange por exemplo é para nós psicanalistas algo incompreensível e que nem podemos discutir Tampouco entendemos que nos so saber nessa área esteja assegurado tratase de uma primeira tentativa de nos orientarmos nesse terreno obscuro Prossigo pois com minha exposição No caso do afeto de angústia acreditamos saber que impressão precoce ele repete Acreditamos que se trata do ato do nascimento no qual se dá aquele agrupamento de sen sações de desprazer impulsos de descarga e sensações corporais que se tornou para nós o modelo do efeito gerado por um perigo de vida e que desde então re petimos sob a forma do estado de angústia No aumen to enorme da estimulação verificado outrora devido à interrupção da renovação do sangue da respiração in terna encontrase a causa da vivência da angústia a primeira angústia foi portanto uma angústia tóxica O substantivo Angst angústia angustiae aperto em latim enfatiza o estreitamento da respiração pre 25 A ANGÚSTIA sente então como consequência da situação real e hoje reproduzido quase regularmente no afeto Reconhe ceremos também como bastante significativo o fato de aquele primeiro estado de angústia ter decorrido da se paração da mãe Por certo estamos convencidos de que a disposição de repetir aquele primeiro estado de angús tia foi tão incorporada ao organismo por uma série de incontáveis gerações que nenhum indivíduo logra esca par ao afeto de angústia ainda que como o lendário Macduff ele tenha sido arrancado prematuramente do ventre da mãe isto é que não tenha experimentado o ato do nascimento O que se tornou o modelo do estado de angústia para os outros animais os não mamíferos isso não sabemos dizer De resto tampouco sabemos que complexo de sensações equivale nessas criaturas à nossa angústia Interessará aos senhores ouvir como alguém pode chegar a tal ideia a de que o ato do nascimento é a fonte e o modelo do afeto da angústia É mínimo o papel desempenhado aí pela especulação o que fiz foi tomar um empréstimo do ingênuo pensamento popular Há muitos anos ainda como jovens médicos de hospital estávamos sentados à mesa do almoço no restaurante quando um assistente da obstetrícia se pôs a contar his tórias engraçadas ocorridas na recémacontecida prova das parteiras Perguntaram a uma candidata o que sig nificava a presença de mecônio excremento no líquido do parto ao que ela de pronto respondeu Significa que o bebê está com medo Riram muito dela e foi repro vada Em silêncio porém tomei o partido da candidata 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES e comecei a desconfiar que aquela pobre mulher do povo havia candidamente revelado um nexo importante Passemos agora à angústia neurótica Que novas formas e relações nos mostra a angústia nos neuróti cos Nisso há muito a relatar Em primeiro lugar en contramos um estado de angústia generalizado uma digamos angústia flutuante pronta a se apegar a todo e qualquer conteúdo vagamente apropriado uma angús tia que influencia o juízo que seleciona expectativas à espreita de uma oportunidade para justificarse A esse estado damos o nome de angústia expectante ou ex pectativa angustiada Pessoas que sofrem desse tipo de angústia preveem sempre a concretização da pos sibilidade mais terrível interpretam todo acaso como sinal de alguma desgraça exploram toda incerteza no pior sentido Essa tendência a esperar desgraças é um traço de caráter de muitas pessoas que em geral não poderíamos caracterizar como doentes são chamadas de muito angustiadas ou pessimistas Mas uma notável medida de angústia expectante é em regra parte inte grante de uma afecção nervosa que chamei de neurose de angústia e que incluo entre as neuroses atuais Em contraposição à que acabo de descrever uma segunda forma de angústia apresenta vinculação acima de tudo psíquica e está ligada a certos objetos ou deter minadas situações Ela é encontrada nas fobias que são bastante variadas e frequentemente muito singulares Stanley Hall o respeitado psicólogo norteamericano deuse recentemente ao trabalho de nos apresentar toda essa ampla gama de fobias com suntuosos nomes gre ZSAANGÚSTIA gos A lista soa como uma enumeração das dez pragas egípcias mas seu número excede em muito a dezena Ouçam os senhores a multiplicidade de coisas que po dem ser objeto ou conteúdo de uma fobia escuridão ar livre lugares abertos gatos aranhas lagartas co bras ratos tempestades pontas afiadas sangue espa ços fechados multidões solidão travessia de pontes viagens marítimas e ferroviárias e assim por diante Em uma primeira tentativa de nos orientarmos nesse torvelinho o que se apresenta mais à mão é distinguir três grupos Vários desses objetos ou dessas situações temidas possuem também para nós pessoas normais algo de inquietante alguma relação com o perigo ra zão pela qual as fobias não nos parecem incompreensí veis ainda que bastante exageradas em sua intensidade Assim a maioria de nós experimentará um sentimento de repugnância ao deparar com uma cobra A fobia de cobras podese dizer é generalizada entre os seres hu manos e Charles Darwin descreveu de maneira muito impressionante como não conseguiu evitar a angústia diante de uma cobra que avançava em sua direção em bora se soubesse protegido por uma espessa lâmina de vidro Em um segundo grupo situamos aquelas fobias nas quais uma relação com o perigo está presente mas um perigo que estamos acostumados a minimizar e a não antever A esse grupo pertence a maioria das fobias situacionais Sabemos que em uma viagem de trem a chance de sofrermos um acidente ou seja a chance de um choque de trens é maior do que se ficássemos em casa sabemos também que um navio pode afundar 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES e que se isso acontecer poderemos morrer afogados contudo não pensamos nesses perigos e viajamos sem nos angustiar tanto de trem como de navio Tampouco se pode negar que mergulharíamos no rio caso a ponte sobre ele desmoronasse no momento em que passamos por ela mas é tão raro isso acontecer que nem sequer levamos em conta esse perigo Também a solidão tem seus perigos razão pela qual a evitamos em certas cir cunstâncias mas não se trata de qualquer que seja a circunstância não podermos suportála por um mo mento sequer Algo semelhante vale para as multidões os espaços fechados os temporais e assim por diante O que nos causa estranheza nessas fobias dos neuróti cos não é tanto o conteúdo e sim a intensidade delas A angústia das fobias é verdadeiramente inapelável Às vezes temos a impressão de que os neuróticos não se angustiam diante daquelas mesmas situações que sob certas circunstâncias poderiam angustiar também a nós embora eles as chamem pelos mesmos nomes Restanos um terceiro grupo de fobias já inacessí vel a nosso entendimento Quando um homem adulto forte não consegue atravessar uma rua ou praça de sua tão familiar cidade natal ou quando uma mulher saudá vel bem constituída mergulha em desvairada angústia porque um gato roçou a barra de seu vestido ou um rato atravessou a sala como estabelecer aí a ligação com o perigo que evidentemente existe para o fóbico No caso das fobias de animais pertencentes a esse grupo já não se trata da intensificação daquelas antipatias comuns a todas as pessoas uma vez que como se a demonstrar o ZSAANGÚSTIA oposto existem numerosas pessoas que são incapazes de passar por um gato sem pretender atraílo ou acariciá lo Também o ratinho tão temido pelas mulheres é ao mesmo tempo um apelido carinhoso de primeira gran deza muitas mocinhas que assim se deixam chamar com satisfação por seu namorado gritam horrorizadas à visão do gracioso bichinho de mesmo nome Para o homem incapaz de atravessar uma rua ou praça a úni ca explicação que se nos impõe é que ele se comporta como uma criança pequena Em sua educação a criança é advertida a evitar tais situações porque elas são peri gosas e de fato o agorafóbico se vê protegido de sua angústia se o acompanhamos até o outro lado da praça As duas formas da angústia aqui descritas a flutuan te angústia de expectativa e as angústias ligadas a fo bias são independentes uma da outra Não se trata de uma ser digamos estágio mais elevado da outra sua ocorrência simultânea constitui exceção e quando isso acontece é como se por mera casualidade Não é forço so que o estado de angústia mais intenso e mais gene ralizado se manifeste por meio das fobias pessoas que tiveram sua vida toda limitada pela agorafobia podem nunca ter apresentado a angústia pessimista de expecta tiva Está comprovado que muitas das fobias como aquelas provocadas por praças ou vias férreas são adquiridas apenas na idade adulta outras como as an gústias causadas pela escuridão por temporais ou por animais parecem ter estado presentes desde o início As fobias do primeiro tipo significam doenças graves as do segundo mais parecem excentricidades caprichos 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES Aquele que apresenta uma fobia desse último tipo nes te é lícito supor que outras semelhantes se manifestarão também Devo acrescentar que incluímos todas essas fobias na categoria das histerias de angústia ou seja nós as vemos como afecções bastante aparentadas à conhe cida histeria de conversão A terceira das formas assumidas pela angústia neuró tica nos coloca diante de um mistério nesse caso perde mos de vista por completo a conexão entre a angústia e o perigo ameaçador Na histeria por exemplo essa angús tia acompanha os sintomas histéricos ou pode também surgir numa condição qualquer de excitação São situa ções em que esperaríamos uma manifestação afetiva mas em que a manifestação do afeto da angústia cons tituiria a mais inesperada de todas Ou essa terceira for ma de angústia pode ainda desvinculada de quaisquer condições e de modo incompreensível tanto para nós como para o doente manifestarse em um acesso gratui to sem que se verifique em parte alguma um perigo ou pretexto que exagerado pudesse levar a tanto Nesses acessos espontâneos descobrimos então que o com plexo que chamamos de estado de angústia pode sofrer uma fragmentação O acesso em si pode consistir em um sintoma único e intensamente desenvolvido ou seja em uma tremedeira tontura uma palpitação ou falta de ar mas o sentimento geral que nos permite identificar a angústia pode estar ausente ou ter se tornado imper ceptível Não obstante esses estados que descrevemos como equivalentes da angústia devem ser equiparados à angústia em todos os aspectos clínicos e etiológicos 30 25 A ANGÚSTIA Duas questões surgem aqui Podemos relacionar a angústia neurótica na qual o perigo não desempenha papel nenhum ou apenas papel muito pequeno com a angústia realista que constitui de fato uma reação ao perigo E como haveremos de compreender a angústia neurótica Em primeiro lugar devemos nos ater à ex pectativa de que onde há angústia deve haver também aquilo que angustia Para a compreensão da angústia neurótica a obser vação clínica nos fornece várias indicações cujo signi ficado pretendo agora lhes expor a Não é difícil constatar que a angústia expectante ou ansiedade Ãngstlichkeit geral tem estreita vincula ção com determinados processos da vida sexual com certos empregos da libido digamos O caso mais sim ples e instrutivo desse tipo é aquele que se verifica em pessoas expostas à chamada excitação frustrânea ou seja em que a intensa excitação sexual não experimenta descarga suficiente não é conduzida a desfecho satis fatório Estamos falando portanto de homens ainda durante o noivado ou de mulheres cujos maridos não são potentes o bastante ou que por cautela praticam o ato sexual de forma abreviada ou interrompida Sob tais condições a excitação libidinal desaparece e em seu lugar surge a angústia tanto sob a forma de an gústia expectante como em acessos e equivalentes A interrupção cautelosa do ato sexual quando praticada como regime sexual é causa tão frequente da neurose de angústia em homens e em especial nas mulhe res que se recomenda na prática médica que nesses 531 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES casos a busca etiológica principie por aí O que então se verifica em inúmeros casos é que uma vez eliminada a má prática sexual a neurose de angústia desaparece Tanto quanto sei a existência de uma relação entre contenção sexual e estados de angústia já não é contesta da nem mesmo por médicos distantes da psicanálise Mas posso bem imaginar que não se tenha ainda abandonado a tentativa de invertêla e defender a concepção de que se trata na verdade de pessoas que de antemão possuem tendência à angústia e que por isso exercitam contenção também em questões sexuais Contraria decisivamente essa possibilidade o comportamento das mulheres cuja prática sexual é de natureza mais passiva em essência isto é determinada pela atitude do homem Quanto mais vigorosa a mulher ou seja quanto mais disposta à rela ção sexual e capaz de obter satisfação tanto mais certa mente reagirá ela à impotência do marido ou ao coito in terrompido com manifestações de angústia ao passo que esse mesmo tratamento desempenhará papel bem menor em mulheres apáticas ou menos libidinais É claro que a abstinência sexual agora recomendada com tanta ênfase pelos médicos só terá a mesma impor tância para o surgimento de estados de angústia quando a libido à qual se nega a descarga satisfatória apresen tar força correspondente e não se resolver em sua maior parte pela sublimação São sempre os fatores quantita tivos que decidem se há adoecimento ou não Mesmo quando não se trata de doença mas de configuração do caráter podese reconhecer facilmente que o exer cício da restrição sexual caminha de mãos dadas com í32 25AANGÚSTIA certa ansiedade e hesitação ao passo que a intrepidez e a ousadia implicam indulgência para com a necessida de sexual Por mais que essas relações sejam alteradas e complicadas por influências culturais diversas perma nece válido para a média das pessoas o vínculo existente entre angústia e restrição sexual Estou longe de ter comunicado aos senhores as ob servações todas que depõem a favor da relação genética entre libido e angústia sustentada aqui Entre elas tam bém está por exemplo a influência de certas fases da vida no adoecimento por angústia como a puberdade e o período da menopausa às quais podemos atribuir considerável aumento na produção da libido Em vá rios estados de excitação se pode observar diretamente a mistura de libido e angústia e por fim a substituição daquela por essa São duas as impressões que se adqui re de todos esses fatos em primeiro lugar a de que se trata de uma acumulação da libido impedida de ter seu emprego normal em segundo a de que nisso nos en contramos no terreno dos processos somáticos Como a angústia nasce da libido não é claro inicialmente apenas constatamos a falta da libido e observamos a presença da angústia em seu lugar h Uma segunda indicação nós extraímos da análi se das psiconeuroses e em especial da histeria Vimos que nessa afecção a angústia frequentemente acompa nha os sintomas mas também há a angústia desvincu lada que se manifesta como acesso ou como condição No contexto esse adjetivo diz respeito à gênese não aos genes 533 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES permanente Os doentes não sabem dizer o que os an gustia e mediante uma inequívoca elaboração secun dária ligam sua angústia àquelas fobias mais à mão a de morrer a de enlouquecer ou a de sofrer um derrame Quando submetemos à análise a situação da qual se ori gina a angústia ou os sintomas que ela acompanha em geral somos capazes de dizer que curso normal de even tos psíquicos deixou de ocorrer e foi substituído pelo fenômeno da angústia Expressandoo de outra forma nós construímos o processo inconsciente como ele se ria se não tivesse sofrido repressão e sim prossegui do sem qualquer impedimento em seu caminho rumo à consciência Também esse processo terá sido acom panhado por determinado afeto e descobrimos então para nossa surpresa que o afeto que acompanha o curso normal de eventos é em todos os casos substituído pela angústia após a repressão independentemente de sua qualidade Assim quando deparamos com um estado histérico de angústia seu correlato inconsciente pode ser um impulso de caráter semelhante ou seja de an gústia vergonha embaraço e também um impulso libidinal positivo ou hostil e agressivo como raiva e fú ria A angústia é portanto a moeda universal corrente pela qual são ou podem ser trocados todos os impulsos afetivos quando o conteúdo ideativo a eles ligados foi submetido à repressão c Uma terceira descoberta fazemos com aqueles doentes que realizam ações obsessivas que de maneira digna de nota parecem ser isentos de angústia Quando tentamos impedilos de efetuar sua ação obsessiva de 534 25AANGÚSTIA se lavar de realizar seu cerimonial ou quando eles próprios ousam tentar abandonar uma de suas obses sões uma angústia terrível os obriga a obedecer a ela Entendemos que a angústia estava encoberta pela ação obsessiva que esta só foi realizada para evitar aquela Portanto a angústia que de outro modo sobreviria é substituída pela formação do sintoma na neurose ob sessiva Também quando nos voltamos para a histeria encontramos nessa neurose uma relação semelhante do processo repressivo resulta ou o desenvolvimento puro da angústia ou angústia acompanhada de formação de sintoma ou ainda uma mais completa formação de sin toma sem a presença da angústia Em sentido abstra to portanto não nos pareceria incorreto dizer que os sintomas se formam apenas para escapar ao desenvol vimento de outro modo inevitável da angústia Essa concepção situa a angústia por assim dizer no centro de nosso interesse pelos problemas da neurose De nossas observações acerca da neurose de angús tia havíamos concluído que o desvio da libido de seu emprego normal que dá origem à angústia ocorre no terreno dos processos somáticos As análises da histe ria e da neurose obsessiva permitem acrescentar que o mesmo desvio com idêntico resultado pode ser tam bém efeito de uma rejeição por parte das instâncias psí quicas Isso é pois tudo que sabemos acerca do sur gimento da angústia neurótica ainda parece bastante impreciso No momento porém não vejo caminho que possa nos levar adiante A segunda tarefa que propuse mos a nós mesmos que é o estabelecimento de uma li m 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES gação entre a angústia neurótica que é libido emprega da de forma anormal e a angústia realista que equivale a uma reação ao perigo parece ainda mais difícil de ser realizada Gostaríamos de acreditar que são ambas coisas bem díspares e no entanto não temos meios de distinguir nas sensações que provocam a angústia rea lista da neurótica A ligação procurada estabelecese por fim quando tomamos como premissa a oposição já sustentada di versas vezes entre Eu e libido Como sabemos o de senvolvimento da angústia é a reação do Eu ao perigo e o sinal para o início da fuga É natural pois que en tendamos que na angústia neurótica o Eu empreende semelhante tentativa de fuga diante da demanda de sua libido e que trata esse perigo interior como se fosse ex terior Assim se cumpriria nossa expectativa de que onde se manifesta a angústia também há algo que an gustia Mas essa analogia poderia ser levada adiante Assim como a tentativa de fuga ante o perigo exterior dá lugar ao enfrentamento e a medidas que visam à de fesa também o desenvolvimento da angústia neurótica cede lugar à formação do sintoma o que produz uma vinculação da angústia A dificuldade de entendimento situase agora em outro ponto A angústia que significa uma fuga do Eu de sua libido deve ter se originado dessa mesma libido Isso é obscuro e nos adverte a não esquecer que a libi do de uma pessoa é fundamentalmente parte dela pró pria não pode contraporse a ela como algo exterior É a dinâmica topológica do desenvolvimento da angústia 25AANGÚSTIA ainda obscura para nós a questão de que energias psí quicas são aí despendidas e de que sistemas psíquicos provêm Não posso lhes prometer uma resposta tam bém para essa pergunta mas não podemos deixar de se guir duas outras pistas e de mais uma vez nos servir da observação direta e da pesquisa analítica como auxílio para nossa especulação Vamos nos voltar para a gênese da angústia na criança e para a procedência da angústia neurótica que está ligada às fobias A ansiedade é muito comum em crianças mas é di fícil determinar se se trata de angústia neurótica ou realista O próprio valor dessa distinção é questionado pelo comportamento das crianças Por um lado não nos admiramos quando uma criança se angustia diante de estranhos ou de novas situações e novos objetos uma reação que explicamos a nós mesmos atribuindoa com muita facilidade à sua fraqueza e insciência Então atri buímos à criança uma forte propensão à angústia realista e consideraríamos inteiramente adequado se tal ansieda de fosse uma herança congênita A criança estaria as sim apenas repetindo o comportamento do homem pri mordial e dos primitivos de nossos dias aqueles que em razão de sua ignorância e desamparo temem tudo que é novo e muito do que é familiar que hoje não nos inspira medo nenhum Essa explicação atenderia também ple namente a nossa expectativa caso as fobias infantis fos sem ainda ao menos em parte as mesmas que podemos atribuir aos primórdios do desenvolvimento humano Mas por outro lado não podemos ignorar que nem todas as crianças são angustiadas na mesma medida e 537 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES que aquelas que mostram particular temor frente a to dos os objetos e situações possíveis são precisamente as que se revelam neuróticas mais tarde Portanto a dis posição para a neurose é também denunciada por uma clara tendência à angústia realista a ansiedade apare ce como o elemento primário e chegamos à conclusão de que a criança e mais tarde o adolescente se angustia ante a intensidade de sua libido porque jus tamente tudo lhe provoca angústia Com isso estaria refutada a hipótese do surgimento da angústia a partir da libido e pesquisandose as condições para a angús tia realista chegarseia coerentemente à concepção de que a consciência da própria debilidade e desamparo da própria inferioridade na terminologia de A Adler é a causa última da neurose se essa consciência pu der se prolongar da infância à idade madura Isso soa tão simples e sedutor que merece nossa aten ção É certo que implicaria um deslocamento do enigma do estado neurótico A continuidade do sentimento de inferioridade e assim da condição para a angústia e para a formação do sintoma parece tão garantida que o que pede uma explicação é antes aquilo que entende mos como saúde quando uma condição saudável vem excepcionalmente a se verificar O que porém uma observação cuidadosa da ansiedade das crianças leva a perceber A criança pequena se angustia acima de tudo diante de pessoas estranhas situações só se tor nam importantes na medida em que envolvem pessoas e quanto aos objetos apenas mais tarde eles são leva dos em consideração Mas a criança se angustia diante 25 A ANGÚSTIA de estranhos não porque lhes atribua más intenções e compare sua própria debilidade à força deles ou seja não porque reconheça neles perigos para sua existência segurança ou ausência de dor Uma criança tão descon fiada apavorada com o instinto de agressão que domina o mundo não passa de uma construção teórica malo grada Na verdade a criança se assusta diante de uma figura estranha porque espera ver a pessoa conhecida e amada no fundo a mãe É sua decepção e seu anseio que se transformam em angústia ou seja em libido que se tornou inutilizável que nesse momento não pode ser mantida em suspenso e é descarregada como angústia Dificilmente será casual que nessa situação modelar da angústia infantil se repita a condição para o primeiro es tado de angústia que se verifica no ato do nascimento a separação da criança de sua mãe As primeiras fobias ligadas à situação nas crianças são as do escuro e da solidão A primeira muitas vezes se prolonga por toda a vida comum a ambas é a ausência daquela que cuida e ama isto é a mãe Certa feita ouvi uma criança angustiada com a escuridão gritar para o quarto ao lado Tia fale comigo estou com medo Mas de que adianta eu falar se você não pode me ver E a criança respondeu Quando alguém fala fica mais claro O anseio na escuridão se torna angústia ante a escuridão Longe de a angústia neurótica ser apenas secundária ou um caso especial da angústia realista o que vemos na criança pequena é antes que algo que se comporta como angústia realista partilha com a angús tia neurótica o traço essencial do surgimento a partir de 539 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES libido não empregada Da verdadeira angústia realista a criança parece trazer consigo muito pouco Ante todas as situações que mais tarde podem se transformar em condição para fobias altura pontes estreitas sobre a água viagem de trem ou de navio ela não demons tra angústia e tanto menos quanto mais insciente for Seria muito desejável que ela tivesse herdado mais des ses instintos Instinkte protetores da vida isso facilitaria muito a tarefa de vigiála que deve impedir que a crian ça se exponha a um perigo atrás do outro Na realidade porém inicialmente a criança superestima suas forças e age sem medo porque desconhece os perigos Vai cor rer à beira dágua subir no parapeito da janela brincar com objetos cortantes e com fogo em suma fará tudo aquilo que pode machucála e causar preocupação a seus responsáveis Quando nela desperta por fim a angústia realista esta é obra unicamente da educação uma vez que não se pode permitir à criança que faça por si pró pria as descobertas instrutivas Se há pois crianças que se adiantam a essa educa ção para o medo e que encontram elas mesmas perigos de que ninguém lhes advertiu isso é explicado pelo fato que têm maior necessidade libidinal em sua constitui ção ou que muito cedo foram mimadas com satisfação libidinal Não há de surpreender se entre elas encon trarmos também os futuros neuróticos como sabemos o que mais facilita o surgimento de uma neurose é a incapacidade de tolerar um considerável represamento da libido por um longo período de tempo Os senhores notam que assim fazemos justiça também ao fator cons 25AANGÚSTIA titucional cujos direitos jamais pretendemos contestar Apenas nos acautelamos para quando alguém negligen cia os demais requisitos em favor desse e introduz o fa tor constitucional também onde segundo os resultados somados da observação e da análise ele não pertence ou deveria estar em último lugar Façamos agora um resumo de nossas observações acerca da ansiedade nas crianças A angústia infantil pouco tem a ver com a angústia realista mas possui ín timo parentesco com a angústia neurótica dos adultos Como esta nasce da libido não empregada e substitui o objeto amoroso faltante por um objeto exterior ou uma situação Os senhores gostarão de ouvir que a análise das fo hias já não tem muita coisa nova a nos ensinar Nelas se dá o mesmo que na angústia infantil a libido não empregada é constantemente convertida em uma apa rente angústia realista e um minúsculo perigo exterior é introduzido para representar as demandas da libido Essa coincidência nada tem de estranho uma vez que as fobias infantis constituem não apenas o modelo para as ulteriores que incluímos nas histerias de angústia como também seus prérequisito e prelúdio diretos Toda fobia histérica remonta a uma angústia infantil e dá continuidade a ela ainda que seu conteúdo seja di ferente e precisemos portanto darlhe outro nome A diferença entre essas duas afecções está no mecanismo No adulto já não basta para a transformação da libi do em angústia que a primeira sob a forma de anseio tenha se tornado momentaneamente inutilizável O 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES adulto aprendeu há muito tempo a manter em suspenso essa libido ou a empregála de outra forma Quando todavia a libido está ligada a um impulso psíquico que sofreu repressão aí tornam a se estabelecer condições semelhantes às da criança que ainda não possui sepa ração entre consciente e inconsciente e por meio da regressão à fobia infantil abrese a passagem por as sim dizer através da qual a transformação da libido em angústia pode se realizar com facilidade Como se lembram os senhores já tratamos bastante da repressão mas ao fazêlo sempre seguimos ape nas o destino da ideia a ser reprimida evidentemente porque ele era mais fácil de reconhecer e apresentar Deixamos sempre de lado porém o que se passa com o afeto vinculado à ideia reprimida e só agora descobri mos que o destino imediato desse afeto é ser transfor mado em angústia qualquer que seja a qualidade que ele mostre em sua evolução normal Essa transforma ção do afeto contudo é de longe a parte mais impor tante do processo repressivo Não é tão fácil abordála porque não podemos afirmar a existência de afetos in conscientes da mesma forma como a de ideias incons cientes Uma ideia permanece a mesma exceto pela di ferença de ser consciente e inconsciente somos capazes de indicar o que corresponde a uma ideia inconsciente Mas um afeto é um processo de descarga algo a ser avaliado muito diferentemente de uma ideia o que lhe corresponde no inconsciente não podemos dizer sem uma reflexão e uma clarificação mais profundas de nos sas premissas acerca dos processos psíquicos coisa í42 25 A ANGÚSTIA que não podemos fazer aqui Mas enfatizemos a im pressão que agora adquirimos a de que o desenvolvi mento da angústia está intimamente ligado ao sistema do inconsciente Eu disse que a transformação em angústia ou me lhor a descarga sob a forma de angústia é o destino imediato da libido sujeita à repressão Devo acrescentar que não é seu destino único ou definitivo Nas neuro ses atuam processos que buscam vincular esse desen volvimento da angústia e que por caminhos diversos de fato conseguem fazêlo Nas fobias por exemplo é possível diferenciar claramente duas fases do processo neurótico A primeira cuida da repressão e da conver são da libido em angústia que é vinculada a um perigo exterior A segunda consiste na construção de todas as precauções e garantias para evitar um contato com esse perigo tratado como exterioridade A repressão corres ponde a uma tentativa de fuga do Eu ante a libido per cebida como perigo A fobia pode ser comparada a um entrincheiramento contra o perigo exterior que agora a libido temida representa A fraqueza do sistema de defe sa da fobia reside naturalmente no fato de essa fortale za tão reforçada contra o que vem de fora permanecer vulnerável a um ataque de dentro A projeção para fora do perigo da libido nunca é bemsucedida Por isso as outras neuroses se valem de outros sistemas de defesa contra a possibilidade do desenvolvimento da angústia Essa é uma parte muito interessante da psicologia das neuroses mas infelizmente nos levaria longe demais e pressupõe um conhecimento especializado mais profun 543 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES do Quero acrescentar apenas mais uma coisa Já lhes falei do contrainvestimento que o Eu emprega na re pressão e que tem de sustentar continuamente a fim de que ela perdure Cabe a esse contrainvestimento a tare fa de levar adiante as várias formas de defesa contra o desenvolvimento da angústia após a repressão Voltemos às fobias Posso dizer que os senhores compreendem como é insuficiente querer explicar ape nas seu conteúdo sem se interessar por mais nada a não ser como ocorre que esse ou aquele objeto ou uma si tuação qualquer transformese em objeto de fobia O conteúdo de uma fobia tem para ela mais ou menos o mesmo significado que a fachada manifesta tem para o sonho Com as necessárias reservas podese admitir que entre os conteúdos das fobias há alguns que por herança filogenética são apropriados para objetos de angústia como salienta Stanley Hall E está de acordo com isso o fato de que muitas dessas coisas angustiantes só podem estabelecer sua vinculação com o perigo por uma relação simbólica Convencemonos assim de que o problema da an gústia ocupa nas questões da psicologia das neuroses uma posição que poderíamos chamar de central Obti vemos uma forte impressão de como o desenvolvimento da angústia se acha ligado aos destinos da libido e ao sistema do inconsciente Um único ponto percebemos como desvinculado como uma lacuna em nossa con cepção o fato dificilmente contestável de que a angús tia realista deve ser vista como manifestação dos instin tos de autoconservação do Eu 544 26 A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO 26 A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO Senhoras e senhores Repetidas vezes e a última delas muito recentemente tratamos da separação entre ins tintos do Eu e instintos sexuais Primeiro a repressão nos mostrou que eles podem se contrapor e que então os instintos sexuais são expressamente derrotados e obrigados a buscar satisfação por vias indiretas regres sivas achando em seu caráter indomável compensação pela derrota Depois vimos que desde o começo esses dois instintos têm relação diversa com a necessidade educadora que não perfazem o mesmo desenvolvimen to e não se relacionam igualmente com o princípio da realidade Por fim acreditamos ter constatado que os laços que ligam os instintos sexuais ao estado afetivo da angústia são bem mais estreitos do que os que os unem aos instintos do Eu um resultado que parece incomple to ainda num aspecto importante É com a intenção de fortalecêlo então que aduzimos o fato bastante notá vel de que a não satisfação da fome e da sede os dois instintos mais elementares de autoconservação jamais resulta em sua transformação em angústia ao passo que a mudança da libido insatisfeita em angústia se acha como dissemos entre os fenômenos mais conhecidos e mais frequentemente observados Mas nosso justo direito de especificar os instintos sexuais e os instintos do Eu separadamente não pode ser questionado Afinal ele decorre da existência da vida sexual como uma atividade especial do indivíduo 545 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Podese apenas perguntar que significado atribuímos a essa separação até onde desejamos vêla como incisiva Mas a resposta a essa pergunta será guiada pelo resulta do da seguinte averiguação em que medida os instintos sexuais em suas manifestações somáticas e psíquicas se comportam diferentemente dos instintos que lhes con trapomos e quão significativas são as consequências que resultam dessas diferenças Naturalmente falta nos todo motivo para postular uma diferença essencial de resto não propriamente compreensível entre esses dois grupos de instintos Os dois se nos apresen tam apenas como designações para fontes de energia do indivíduo e a discussão sobre se no fundo são um só e nesse caso quando foi que se separaram ou se são fundamentalmente diferentes não pode se dar no plano conceitual mas precisa apoiarse nos fatos bio lógicos por trás deles A esse respeito sabemos muito pouco por enquanto e ainda que soubéssemos mais isso não viria ao caso em nossa tarefa analítica Muito pouco proveito nos traria é evidente enfati zar a unidade primordial de todos os instintos como faz Jung e chamar de libido a energia que se manifesta em todos eles Como não há artifício capaz de elimi nar da vida psíquica a função sexual vemonos então obrigados a falar em libido sexual e libido não sexual O nome libido permanece no entanto e com todo o direito como designação própria das forças instintuais da vida sexual como a temos empregado até agora Acho portanto que a questão acerca de até onde prosseguir na separação sem dúvida justificada entre 26 A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO os instintos sexuais e os de autoconservação não tem maior importância para a psicanálise que tampou co tem a competência para respondêla A biologia por sua vez nos fornece indícios diversos de que essa questão tem grande significado A sexualidade é afi nal a única função do organismo vivo que ultrapassa o indivíduo e se ocupa de sua ligação com a espécie É inegável que seu exercício nem sempre traz proveito ao indivíduo como sucede com as demais funções deste na verdade em troca de um prazer extraordinário ela o sujeita a perigos que lhe ameaçam a vida e com fre quência trazemlhe a morte Além disso é provável que processos metabólicos muito especiais diferentes de todos os outros sejam necessários para manter uma parte da vida individual como predisposição para sua descendência Por fim do ponto de vista biológico o ser individual que se vê como central e considera sua sexualidade um meio como outro qualquer para sua própria satisfação é apenas um episódio no interior de uma série de gerações um efêmero apêndice de um plasma germinativo dotado de virtual imortalidade como que o detentor temporário de um legado que so breviverá a ele Todavia a explicação psicanalítica das neuroses não requer considerações tão vastas Acompanhando sepa radamente os instintos sexuais e do Eu encontramos a chave para compreender o grupo das neuroses de trans ferência Pudemos fazêlas remontar à situação funda mental em que os instintos sexuais entram em disputa com os de autoconservação ou em termos biológicos 547 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES embora mais imprecisos em que a posição do Eu como ser individual conflita com aquela de inte grante de toda uma série de gerações Uma dissensão desse tipo talvez ocorra apenas no ser humano e por isso de modo geral a neurose seria prerrogativa dele em relação aos animais O desenvolvimento muito in tenso da libido e a formação possibilitada talvez por isso mesmo de uma vida psíquica ricamente articulada parecem ter criado as condições para o surgimento de tal conflito É evidente aliás que essas mesmas condi ções ensejaram também o progresso humano para além do que o homem possui em comum com os animais de tal forma que sua suscetibilidade à neurose constituiria assim apenas o outro lado de seus demais talentos Mas isso são apenas especulações que nos desviam de nossa tarefa imediata Até agora a possibilidade de diferenciar os instintos do Eu dos instintos sexuais com base em suas respecti vas manifestações foi o pressuposto de nosso trabalho Não foi difícil fazêlo no tocante às neuroses de transfe rência Os investimentos de energia que o Eu dedica aos objetos de seus desejos sexuais nós os chamamos lihido a todos os demais originários dos instintos de autocon servação demos o nome de interesse Seguindo a pista dos investimentos libidinais de suas transformações e de seus destinos finais logramos obter uma primeira compreensão do mecanismo das forças psíquicas As neuroses de transferência nos forneceram matéria bas tante propícia para isso Mas o Eu sua composição a partir de organizações diversas a estrutura e o fun 26 A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO cionamento dessas organizações permaneceunos oculto e pudemos supor que somente a análise de outros distúrbios neuróticos nos traria essa compreensão Bem cedo começamos a estender as concepções psi canalíticas para essas outras afecções Já em 1908 Karl Abraham após uma troca de impressões comigo lan çou a tese de que a característica principal da demen tia praecox incluída entre as psicoses seria a falta do investimento libidinal dos objetos em As diferenças psi cossexuais entre histeria e dementia praecox Então se levantou a questão do que aconteceria com essa libido dos dementes afastada dos objetos Abraham não ti tubeou em responder ela reverteria para o Eu e essa reversão reflexiva é a fonte da megalomania na demência precoce A megalomania pode perfeitamente ser com parada à conhecida superestimação sexual do objeto na vida amorosa Assim pela primeira vez aprende mos a compreender um traço de uma afecção psicótica relacionandoo com a vida amorosa normal Digolhes de pronto que essas primeiras concepções de Abraham integraramse à psicanálise e se tornaram a base para nosso posicionamento no tocante às psico ses Lentamente fomos nos familiarizando com a con cepção de que a libido que encontramos apegada aos objetos e que é expressão do anseio de neles conquis tar satisfação pode também deixálos substituindoos pelo próprio Eu uma concepção que gradualmente se desenvolveu de forma cada vez mais coerente O nome para essa alocação da libido narcisismo tomamos emprestado a uma perversão descrita por Paul Nacke 549 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES na qual o indivíduo adulto trata o próprio corpo com todas as carícias normalmente dedicadas a um objeto sexual externo Logo refletimos que se existe essa fixação da libido no próprio corpo e na própria pessoa em vez de num objeto isso não pode constituir exceção nem um acon tecimento insignificante É provável antes que esse narcisismo seja o estado geral e primordial a partir do qual se desenvolveu mais tarde o amor objetai sem que o narcisismo precisasse desaparecer Foi impossível não recordar da história evolutiva da libido objetai que ini cialmente muitos instintos sexuais se satisfazem no pró prio corpo de forma autoerótica como dizemos e que essa capacidade para o autoerotismo é a razão para que a sexualidade se atrase na educação para o princípio da realidade Assim o autoerotismo seria a prática se xual do estágio narcisista da alocação da libido Em resumo concebemos a relação da libido do Eu com a libido objetai de uma maneira que posso ilustrar aos senhores mediante uma comparação extraída da zoologia Pensem nos seres vivos mais simples aque les que consistem em um amontoado pequeno e pouco diferenciado de substância protoplasmática Eles apre sentam prolongamentos chamados pseudópodes para os quais fazem fluir a substância de seu corpo Podem no entanto recolher esses prolongamentos e se fechar em uma bola A projeção dos prolongamentos nós com paramos ao envio de libido para os objetos enquanto a maior parte da libido pode permanecer no Eu e supo mos que em condições normais a libido do Eu pode ser 26 A TEORIA OA LIBIDO E O NARCISISMO transformada de maneira desimpedida em libido obje tai e esta ser novamente acolhida pelo Eu Com o auxílio dessas concepções podemos ago ra explicar toda uma série de estados psíquicos ou dizendoo de forma mais modesta podemos descrevê los na linguagem da teoria da libido estados que devemos atribuir à vida normal como a conduta psí quica no enamoramento no adoecimento orgânico ou no sono No caso do sono formulamos a hipótese de que ele se baseia num afastamento do mundo exterior e numa acomodação ao desejo de dormir Aquilo que se manifesta no sonho como atividade psíquica notur na acreditamos estar a serviço desse desejo de dormir e além disso dominado por motivos puramente egoís tas De acordo com a teoria da libido afirmamos agora que o sono é um estado em que todos os investimentos objetais tanto os libidinais como os egoístas são abandonados e chamados de volta ao Eu Isso não lan çaria nova luz sobre o repouso propiciado pelo sono e a natureza do cansaço em geral A imagem do bem aventurado isolamento da vida intrauterina que o adormecido torna a nos lembrar toda noite completa se assim também em seu lado psíquico No indivíduo que dorme restabelecese o estado primordial da distri buição da libido o narcisismo pleno em que libido e in teresse do Eu ainda unidos e indiferenciáveis habitam o Eu que basta a si mesmo Aqui cabem duas observações Em primeiro lu gar como se diferenciam conceitualmente narcisismo e egoísmo Creio que o narcisismo é o complemento 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES libidinal do egoísmo Quando se fala em egoísmo tem se em vista apenas o proveito do indivíduo no nar cisismo porém levase em consideração também sua satisfação libidinal Como motivos práticos os dois podem ser examinados separadamente ao longo de al guma distância É possível ser absolutamente egoísta e ainda assim manter fortes investimentos objetais libidi nais desde que a satisfação libidinal com o objeto seja parte das necessidades do Eu O egoísmo cuidará en tão para que a aspiração pelo objeto não cause nenhum dano ao Eu É possível ser egoísta e ao mesmo tempo fortemente narcisista isto é ter uma necessidade obje tai muito pequena seja na satisfação sexual direta seja naquelas aspirações mais elevadas que derivam da ne cessidade sexual as quais eventualmente contrapomos à sensualidade sob o nome de amor Em todas es sas relações o egoísmo é o evidente o constante e o narcisismo o elemento variável O contrário do egoís mo o altruísmo não coincide conceitualmente com o investimento objetai libidinal diferenciase dele pela ausência das aspirações por satisfação sexual Quando alguém se enamora totalmente contudo o altruísmo e o investimento objetal libidinal convergem Em regra o objeto sexual atrai para si uma parte do narcisismo do Eu e isso se faz notar no que chamamos superestima ção sexual do objeto Se além disso há a transposição altruísta do egoísmo para o objeto sexual este se torna extremamente poderoso absorve o Eu por assim dizer Creio que será um descanso para os senhores se após as coisas fantásticas mas no fundo áridas da ciên 26 A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO cia eu lhes apresentar uma representação poética da oposição econômica entre narcisismo e enamoramento Extraioa do Divã ocidentaloriental de Goethe SULEIKA Povo escravo e vencedor O tempo inteiro reconhecem Para os filhos da Terra a suprema felicidade É a personalidade Toda vida pode ser vivida Quando a pessoa não falta a si mesma Tudo se pode perder Quando se continua sendo o que é HATEM Bem pode ser Assim dizem Mas eu tenho outro caminho Toda a felicidade terrena Encontro somente em Suleika Divã no sentido um dos sentidos que a palavra tinha entre os muçulmanos o de coleção de poemas Eis o original da citação Su leika Volk und Knecht und Überwinder Sie gestehn tu jeder Zeit Hochstes Glück der Erdenkinder Sei nur die Personlichkeit jzdes Leben sei cu Jühren Wenn man sich nicht selbst vermijit Alies konne man verlieren Wenn man bliebe was man ist H atem Kann wohl sein So wird gemeinet Doch ich bin auf andrer Spur Alies Erdenglück ve reinet Find ich in Suleika nur Wie sie sich an mich verschwendet Bin ich mir ein wertes Ich Hatte sie sich weggewendet Augenblicks verlor ich mich Nun mit Hatem wars ru Ende Doch schon hab ich umgelost Ich verkorpere mich behende In den Holden den sie kost 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Se ela é pródiga comigo Tenho valor para mim Se de mim ela se esquiva De imediato me perdi Desse modo Hatem chegaria ao fim Mas logo já me salvo Habilmente me transformo No amado que ela escolhe A segunda observação é um complemento à teoria do sonho Não podemos explicar o surgimento do sonho sem incluir a hipótese de que o inconsciente reprimido adquiriu certa independência em relação ao Eu de tal forma que não obedece ao desejo de dormir e mantém seus investimentos mesmo quando todos os investi mentos objetais dependentes do Eu são recolhidos em prol do sono Apenas assim podemos entender como o inconsciente pode se valer da suspensão ou diminuição noturna da censura e como ele se apodera dos resíduos diurnos para com essa matéria formar um desejo oní rico proibido Por outro lado é possível que os resíduos diurnos devam parte de sua resistência ao recolhimento da libido ditado pelo desejo de dormir a um vínculo já existente com esse inconsciente reprimido Acrescente mos pois esse traço dinamicamente importante à nossa concepção da formação do sonho O adoecimento orgânico a estimulação dolorosa a inflamação de órgãos criam um estado que claramente resulta num desprendimento da libido em relação a seus 554 objetos A libido recolhida retorna ao Eu como investimento intensificado da porção enferma do corpo Podemos mesmo ousar afirmar que em tais condições a retirada da libido de seus objetos é mais notável do que o afastamento do interesse egoísta em relação ao mundo exterior Isso parece abrir um caminho para o entendimento da hipocondria na qual da mesma maneira um órgão ocupa a atenção do Eu sem que esteja doente para a nossa percepção Resisto porém à tentação de prosseguir nesse caminho ou de discutir outras situações que se tornam compreensíveis ou descritíveis mediante a hipótese de uma migração da libido objetal para o Eu pois tenho de lidar com duas objeções que como bem sei atraem agora seu interesse Em primeiro lugar questionarão por que busco diferenciar no sono na doença e em situações semelhantes entre libido e interesse instintos sexuais e instintos do Eu quando as observações podem ser satisfeitas com a suposição de uma energia única e uniforme que movendose livremente ora inviste o objeto ora o Eu pondose a serviço de um ou de outro desses instintos E em segundo lugar como posso tratar o desprendimento da libido de seu objeto como fonte de um estado patológico se essa transformação da libido objetal em libido do Eu ou de modo mais geral em energia do Eu é parte dos processos normais repetidos diariamente e a cada noite na dinâmica psíquica A isso devo responder que sua primeira objeção parece boa A discussão dos estados do sonho da enfer 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES midade e do enamoramento provavelmente não teria nos levado em si à distinção entre libido do Eu e libido objetai ou entre libido e interesse Mas nisso os senho res negligenciam as investigações de que partimos e sob cuja luz consideramos agora as situações psíquicas em pauta A diferenciação entre libido e interesse isto é entre instintos sexuais e de autoconservação foinos imposta pela percepção do conflito do qual resultam as neuroses de transferência Desde então já não pode mos abandonála A suposição de que a libido objetai pode se transformar em libido do Eu ou seja de que temos de contar com uma libido do Eu pareceunos a única capaz de solucionar o enigma das chamadas neuroses narcísicas como a demência precoce por exemplo de explicar as semelhanças e diferenças entre essas e a histeria e a obsessão Agora aplicamos à doença ao sono e ao enamoramento aquilo que em outra parte vimos irrefutavelmente comprovado De vemos continuar aplicandoo e ver até onde isso nos leva A única afirmação que não é resultado direto de nossa experiência analítica é a de que libido permanece libido seja voltada para objetos ou para o próprio Eu e jamais se transforma em interesse egoísta e viceversa Essa afirmação no entanto é equivalente à separação entre instintos sexuais e instintos do Eu já submetida aqui a consideração crítica uma diferenciação a que por motivos heurísticos pretendemos nos apegar até que eventualmente fracasse Também a segunda objeção dos senhores levanta uma questão justificada mas aponta para uma direção 26 A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO errada Sem dúvida o recolhimento da libido objetai para o Eu não é diretamente patogênico nós podemos ver afinal que isso se repete a cada vez que vamos dormir e que se desfaz ao acordarmos O animalzinho protoplasmático recolhe seus prolongamentos para na oportunidade seguinte tornar a projetálos Coisa bem diferente acontece todavia quando determinado pro cesso deveras enérgico obriga à retirada da libido dos objetos A libido que se tornou narcisista não é capaz de encontrar seu caminho de volta aos objetos e esse impedimento da mobilidade da libido tornase de fato patogênico Parece que além de certa medida a acu mulação de libido narcísica não é tolerada Podemos também imaginar que o investimento objetai se produz justamente pelo fato de o Eu ter de enviar para fora sua libido a fim de não adoecer com seu represamento Se estivesse em nosso plano examinar mais a fundo a de mentia praecox eu lhes mostraria que o processo que desprende a libido dos objetos e lhe barra o caminho de volta para eles achase ligado ao processo da repressão podendo ser visto como uma contrapartida dele Acima de tudo porém os senhores se sentiriam em terreno fa miliar ao descobrir que os prérequisitos desse proces so são quase idênticos tanto quanto percebemos até agora aos da repressão O conflito parece ser o mes mo e se dar entre os mesmos poderes Se o desenlace é tão diverso daquele da histeria por exemplo a razão para isso só pode estar numa diferença da predisposi ção Nesses doentes o ponto fraco no desenvolvimento da libido situase em outra fase a fixação decisiva que 557 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES como os senhores se lembram permite a irrupção que leva à formação do sintoma encontrase em outro lu gar provavelmente no estágio do narcisismo primitivo para o qual em seu desfecho a demência precoce re toma É bastante digno de nota que tenhamos de supor para todas as neuroses narcísicas pontos de fixação da libido que remontam a fases de desenvolvimento muito anteriores às que encontramos na histeria ou na neurose obsessiva Mas como já ouviram aqui os conceitos que obtivemos no estudo das neuroses obsessivas devem bastar para nos orientar também nas neuroses narcísi cas tão mais difíceis na prática São amplos os pontos em comum tratase no fundo do mesmo campo de fenômenos Mas os senhores podem também imaginar como é mínima a perspectiva de esclarecimento dessas afecções pertencentes já ao âmbito da psiquiatria para todo aquele que enfrenta essa tarefa sem o conhecimen to analítico das neuroses de transferência O quadro clínico da dementia praecox que é bastante variável não é determinado exclusivamente por aque les sintomas que decorrem do apartamento da libido de seus objetos e de sua acumulação no Eu como libido narcísica Antes nele ocupam espaço considerável ou tros fenômenos que remontam ao empenho da libido em retornar àqueles objetos fenômenos que correspon dem assim a uma tentativa de restituição ou cura Tais sintomas são inclusive os que mais chamam a atenção os mais ruidosos Eles mostram indubitável semelhança com os da histeria ou mais raramente os da neurose obsessiva embora difiram destes todo o aspecto Pa 8 26 A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO rece que na dementia praecox a libido em seu esforço de retornar aos objetos isto é às representações dos objetos logra de fato apanhar algo deles mas apenas suas sombras por assim dizer refirome às represen tações verbais a eles pertinentes Não posso aqui dizer mais a esse respeito mas acho que esse comportamen to da libido que se empenha em retornar nos permitiu compreender em que consiste realmente a diferença en tre uma ideia consciente e uma inconsciente Agora conduzi os senhores ao campo onde deve mos esperar os próximos avanços no trabalho analíti co Desde que nos aventuramos a lidar com o concei to de libido do Eu as neuroses narcísicas se tornaram acessíveis para nós resultou daí a tarefa de obter uma compreensão dinâmica dessas afecções e ao mesmo tempo de completar nosso conhecimento da vida psí quica pelo entendimento do Eu A psicologia do Eu que buscamos não deve se fundar nos dados de nos sas autopercepções e sim como no caso da libido na análise das perturbações e disrupções do Eu É prová vel que uma vez realizado esse trabalho de maior en vergadura passemos a atribuir pouco valor ao nosso conhecimento presente acerca dos destinos da libido conhecimento que extraímos do estudo das neuroses de transferência Contudo ainda não avançamos muito nesse trabalho A técnica de que nos valemos nas neu roses de transferência pouco pode no tocante às neuro ses narcísicas os senhores logo saberão por quê Ao empregálas sucedenos sempre de após um pequeno avanço nos vermos diante de um muro que nos obriga 559 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES a parar Como sabem também nas neuroses de transfe rência deparamos com barreiras que opõem semelhan te resistência mas pudemos demolilas pouco a pouco Nas neuroses narcísicas essa resistência é intranspo nível podemos no máximo lançar um olhar curioso sobre o muro a fim de espiar o que se passa do outro lado Nossos métodos técnicos precisam portanto ser substituídos por outros ainda não sabemos se vamos conseguir encontrar tais substitutos Todavia tampou co no caso desses doentes nos falta material Eles se manifestam profusamente ainda que não respondam a nossas perguntas e por enquanto temos de interpretar essas manifestações com o auxílio da compreensão que adquirimos nos sintomas das neuroses de transferência A coincidência é grande o bastante para nos assegurar um ganho inicial Até onde essa técnica poderá nos le var é ainda uma questão em aberto Outras dificuldades contribuem para deter nosso progresso As afecções narcísicas e as psicoses a elas relacionadas só podem ser decifradas por observadores treinados no estudo analítico das neuroses de transfe rência Mas nossos psiquiatras não estudam psicanálise e nós psicanalistas conhecemos poucos casos psiquiá tricos É necessário que primeiramente se desenvolva uma geração de psiquiatras que tenha passado pela es cola da psicanálise como ciência preparatória Isso co meça a acontecer hoje em dia nos Estados Unidos onde muitos psiquiatras em posição de comando apresentam as doutrinas psicanalíticas a seus estudantes e onde pro prietários de instituições e diretores de manicômios se 6o gem em observar seus doentes nos termos dessas teorias Também nós contudo logramos algumas vezes lançar um olhar sobre esse muro narcísico e quero relatar aos senhores o que acreditamos ter vislumbrado A forma de doença conhecida como paranoia insani dade crônica e sistemática ocupa uma posição oscilante nas tentativas de categorização da psiquiatria atual Já não resta dúvida acerca de seu parentesco próximo com a dementia praecox Certa vez sugeri agrupar a paranoia e a dementia praecox sob a designação comum de parafrenia De acordo com seu conteúdo as formas assumidas pela paranoia são descritas como megalomania delírio de perseguição delírio de amor erotomania de ciúmes etc Não esperaremos tentativas de explicação por parte da psiquiatria Como exemplo embora antigo e incompleto menciono a seguinte tentativa de por meio de uma racionalização intelectual derivar um sintoma de outro O doente que por inclinação primária se crê perseguido deve concluir dessa perseguição ser uma personalidade muito importante e por essa razão desenvolveria uma megalomania Em nossa concepção analítica a megalomania é consequência direta da magnificação do Eu pelo recolhimento dos investimentos libidinais objetais um narcisismo secundário que é um retorno daquele original da primeira infância Nos casos de delírio de perseguição fizemos observações que nos levaram a seguir determinada pista Em primeiro lugar chamounos a atenção que na maioria dos casos o perseguidor fosse do mesmo sexo do perseguido De início esse fato ainda admitia uma expli 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES cação inofensiva mas em alguns casos bem estudados verificouse claramente que a pessoa mais amada do mesmo sexo em tempos de normalidade transformava se após o adoecimento no perseguidor Outro desen volvimento se faz possível quando a pessoa amada em consonância com afinidades conhecidas é substituída por outra como por exemplo o pai pelo professor ou superior hierárquico Dessas experiências cada vez mais numerosas concluímos que a paranoia persecutoria em latim é a forma pela qual o indivíduo se defende de um impulso homossexual que se tornou demasiado inten so A metamorfose da afeição em ódio que como se sabe pode se transformar em séria ameaça de vida para o objeto amado e odiado corresponde então à transformação de impulsos libidinais em angústia que é resultado regular do processo de repressão Ouçam por exemplo o caso mais recente dessa natureza que observei Um jovem médico precisou ser expulso de sua cidade natal por ter ameaçado de morte o filho de um professor universitário local que até então fora seu me lhor amigo Ele atribuiu a esse amigo de antes inten çÕes verdadeiramente infernais e um poder demoníaco Era o culpado de todos os infortúnios que haviam se abatido sobre a família do doente nos últimos anos de cada adversidade familiar e social Mas não bastasse isso o mau amigo e seu pai o professor tinham sido também os causadores da guerra e chamado os russos para o país Era pois mil vezes merecedor da morte e nosso doente estava convencido de que com a morte do malfeitor toda a desgraça teria fim Contudo sua velha 26 A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO afeição por ele era tão intensa que lhe paralisou a mão quando certa feita surgiu a oportunidade de liquidar o inimigo com um tiro à queimaroupa Nos breves coló quios que tive com o doente revelouse que a relação de amizade entre os dois remontava aos primeiros anos do ginásio Pelo menos uma vez essa relação havia ul trapassado as fronteiras da amizade uma noite que ha viam passado juntos havia se tornado ocasião para uma relação sexual completa Nosso paciente jamais tivera com mulheres um relacionamento sentimental que cor respondesse a sua idade e a sua atraente personalidade Uma vez fora noivo de uma moça bela e distinta mas esta rompeu o noivado porque não encontrara afeição no noivo Anos mais tarde sua enfermidade irrompeu exatamente no instante em que pela primeira vez ele conseguiu satisfazer plenamente uma mulher Quando então agradecida e devotada essa mulher o abraçou ele sentiu de súbito uma dor misteriosa como um talho afiado a circundarlhe o crânio Mais tarde interpretou essa sensação como se houvessem realizado nele a inci são por intermédio da qual o cérebro é exposto em uma autópsia e como seu amigo se especializara em anato mia patológica descobriu pouco a pouco que somente este último poderia ter lhe enviado a mulher para tentá lo A partir daí seus olhos se abriram também para as outras perseguições de que seria vítima por iniciativa do examigo E quanto aos casos em que o perseguidor não é do mesmo sexo do perseguido e que portanto aparente mente contradizem nossa explicação de serem uma de 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES fesa contra a libido homossexual Algum tempo atrás tive oportunidade de examinar um caso assim e logrei extrair uma confirmação da aparente contradição A jovem moça que se acreditava perseguida por um ho mem ao qual permitira dois encontros afetuosos havia antes nutrido uma ideia delirante em relação a uma mu lher que podemos conceber como uma substituta de sua mãe Somente após o segundo encontro ela deu o passo adiante de desprender essa ideia delirante da mulher e transferila para o homem A condição de o perseguidor ser do mesmo sexo era mantida também nesse caso ori ginalmente Em sua queixa ao advogado e ao médico a paciente não mencionara esse estágio anterior de seu delírio o que originou a aparência de uma contradição de nosso entendimento da paranoia A escolha objetai homossexual se acha em sua ori gem mais próxima do narcisismo do que a heterosse xual Quando se trata então de rejeitar um forte e indesejável impulso homossexual o caminho de volta para o narcisismo é bastante facilitado Até o momento tive muito pouca oportunidade de lhes falar dos funda mentos da vida amorosa até onde pudemos conhecê los e agora não posso reparar essa omissão Vou apenas salientar que a escolha objetai o progresso no desenvolvimento da libido que se dá após o estágio nar cisista pode suceder de duas maneiras diferentes Ela pode ser de tipo narcisista em que o Eu é substituído pelo que lhe é o mais semelhante possível ou ainda se dar por apoio caso em que a escolha objetai da libido pode recair sobre pessoas que se tornaram valiosas para 26 A TEORIA OA LIBIDO E O NARCISISMO a satisfação de outras necessidades vitais Uma forte fi xação da libido no tipo narcisista de escolha objetai é algo que incluímos também na predisposição para a ho mossexualidade manifesta Os senhores se lembram de que em nosso primeiro encontro deste semestre eu lhes relatei um caso de delí rio ciumento observado numa mulher Agora quando nos aproximamos do final os senhores por certo gosta riam de ouvir como explicamos psicanaliticamente uma ideia delirante Contudo tenho menos a dizer a esse respeito do que seria de esperar O fato de a ideia de lirante ser inatacável por argumentos lógicos ou pelas experiências reais explicase tal como a obsessão atra vés da relação com o inconsciente que é representado e refreado pela ideia delirante ou ideia obsessiva A dife rença entre as duas se baseia na topologia e na dinâmica diversas das duas afecções Como na paranoia também na melancolia da qual de resto descrevemse formas clínicas muito di ferentes encontramos um ponto que nos possibilita vislumbrar a estrutura interna da afecção Vimos que as autoacusações com que os melancólicos se torturam da maneira mais impiedosa dirigemse na verdade a outra pessoa ao objeto sexual que perderam ou que se desva lorizou por culpa dele próprio Disso pudemos concluir que de fato o melancólico retirou sua libido do obje to mas este mediante um processo que cabe chamar de identificação narcisista foi estabelecido em seu próprio Eu foi como que projetado para o Eu Aqui posso lhes oferecer apenas uma imagem ilustrativa não 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES uma descrição topológicodinâmica ordenada Esse Eu passa então a ser tratado como o objeto abandonado e sofre todas as agressões e manifestações do desejo de vingança que tinham por alvo o objeto Mesmo a ten dência ao suicídio do melancólico tornase mais com preensível quando consideramos que a amargura do doente atinge de um só golpe tanto o próprio Eu como o objeto amadoodiado Na melancolia assim como em outras afecções narcisistas evidenciase de forma pa tente um traço da vida sentimental que desde Bleuler acostumamonos a designar como ambivalência Cha mamos assim o direcionamento para a mesma pessoa de sentimentos opostos ternos e hostis No curso de nos sas palestras infelizmente não pude relatarlhes mais acerca dessa ambivalência de sentimentos Além da identificação narcisista há outra histérica que conhecemos há muito mais tempo Eu gostaria que fosse possível esclarecerlhes as diferenças entre as duas mediante algumas claras especificações Sobre as for mas periódicas e cíclicas da melancolia posso lhes di zer algo que os senhores decerto gostarão de ouvir Em condições propícias e já logrei fazêlo duas vezes o tratamento analítico levado a cabo durante os interva los livres da doença permite que evitemos seu retorno na mesma disposição de espírito ou na disposição con trária Descobrimos assim que também na melancolia e na mania temse um modo especial de resolver um conflito cujas premissas coincidem inteiramente com as das demais neuroses Os senhores podem imaginar o quanto a psicanálise ainda tem a aprender nesse campo 26A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO Também lhes disse que por meio da análise das afecções narcísicas esperamos adquirir certo conhe cimento acerca da composição de nosso Eu e de sua construção em instâncias Em um ponto já começamos a fazer isso A partir da análise do delírio de observa ção chegamos à conclusão de que realmente existe no Eu uma instância que observa critica e compara sem cessar e que desse modo se contrapõe à outra parte do Eu Acreditamos assim que o doente nos revela uma verdade ainda não suficientemente apreciada quando se queixa de que cada um de seus passos é vigiado e obser vado de que seus pensamentos são expostos e critica dos O único erro que comete aí é o de situar esse poder incômodo como algo exterior alheio Ele sente no seu Eu a vigência de uma instância que mede seu Eu atual e cada uma de suas atividades conforme um Eu ideal que criou ao longo de seu desenvolvimento Acredita mos também que essa criação se deu com o propósito de restabelecer aquela autossatisfação outrora vinculada ao narcisismo infantil primário a qual desde então sofreu tantas perturbações e ofensas Conhecemos essa ins tância autoobservadora como o censor do Eu a cons ciência tratase da mesma instância que à noite exerce a censura onírica da qual partem as repressões contra os desejos não confiáveis Ao se decompor no delírio de observação ela nos revela ser originária da influên cia exercida por pais educadores e pelo meio social da identificação com algumas dessas pessoas modelares Esses seriam pois alguns dos resultados que nos forneceu até o momento a aplicação da psicanálise às 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES afecções narcísicas Certamente são ainda muito pou cos e carecem por enquanto daquela agudeza que só se pode adquirir mediante uma familiaridade mais segura com um novo campo Devemos todos esses re sultados à exploração do conceito de libido do Eu ou libido narcísica com a ajuda do qual estendemos às neuroses narcísicas as concepções que se mostraram eficazes no trato das neuroses de transferência Mas os senhores perguntarão agora Será que conseguiremos subordinar todas as perturbações próprias das afecções narcísicas e das psicoses à teoria da libido Será possí vel reconhecer por toda parte o fator libidinal da vida psíquica como o culpado pelo adoecimento sem que precisemos jamais responsabilizar por isso alguma mo dificação na função do instinto de autoconservação Bem senhoras e senhores essa decisão não me parece urgente e acima de tudo ela tampouco me parece ama durecida Podemos tranquilamente confiála ao avanço do trabalho científico Eu não me espantaria se o po der de produzir efeitos patogênicos se mostrasse de fato prerrogativa dos instintos libidinais de tal forma que a teoria da libido poderia festejar amplo triunfo desde as neuroses atuais mais simples até a mais grave alienação psicótica do indivíduo Afinal conhecemos como traço característico da libido sua relutância em submeterse à realidade do mundo à Ananke Mas considero bastan te provável que os instintos do Eu sejam arrebatados secundariamente pelos estímulos patogênicos da libido e levados a uma perturbação funcional E ainda que viéssemos a descobrir que nas psicoses graves os pró 26 A TEORIA OA LIBIDO E O NARCISISMO prios instintos do Eu são desencaminhados primordial mente eu não conseguiria ver nisso um fracasso na di reção de nossa pesquisa O futuro dará a resposta ao menos aos senhores Permitam porém que eu retorne ainda por um mo mento à angústia a fim de iluminar uma última obs curidade que lá deixamos Dissemos que não harmoni zava com a relação entre angústia e libido de resto tão bem conhecida o fato de a angústia realista ante um perigo ser a manifestação dos instintos de autocon servação algo que no entanto dificilmente se contes ta Como seria porém se o afeto da angústia não fosse responsabilidade dos instintos egoístas do Eu mas da libido do Eu Afinal o estado de angústia é sempre ina dequado e sua inadequação tornase patente quando ele atinge um alto grau Nesse caso ele perturba a ação seja ela a fuga ou a defesa ação que é ela sim adequada e a serviço da autoconservação Se portanto atribuímos a parte afetiva da angústia realista à libido do Eu e a ação ao instinto de conservação do Eu solu cionamos a dificuldade teórica Os senhores não hão de acreditar seriamente que um indivíduo foge porque sen te angústia Não ele sente a angústia e se põe em fuga pelo mesmo motivo que vem da percepção do perigo Pessoas que sobreviveram a grandes perigos relatam não ter se angustiado agiram simplesmente apon tando sua espingarda para a fera por exemplo e isto sim foi o mais adequado 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES 27 A TRANSFERÊNCIA Senhoras e senhores Como nos aproximamos agora do final de nossas discussões isso despertará nos senhores certa expectativa que não será lograda Devem pensar com razão que não os conduzi pelos meandros da ma téria psicanalítica para no fim abandonálos sem haver dito uma única palavra acerca da terapia sobre a qual se baseia a própria possibilidade de praticar psicanálise E tampouco posso priyálos desse tema pois nele poderão observar e tomar conhecimento de um fato novo sem o qual o entendimento das enfermidades por nós exami nadas restaria sensivelmente incompleto Sei que os senhores não esperam instrução na técni ca pela qual praticamos a análise com fins terapêuticos Querem apenas saber da forma mais geral possível de que forma a terapia psicanalítica produz efeito e o que em linhas gerais ela consegue fazer E têm o direito in contestável de sabêlo Mas não desejo comunicálo aos senhores insisto em que o descubram por si mesmos Pensem bem Agora os senhores conhecem tudo de essencial sobre as condições que levam ao adoecimento assim como todos os fatores atuantes na pessoa adoeci da Onde se encontra nisso um espaço para a atuação psicanalítica Em primeiro lugar há a predisposição hereditária dela não chegamos a falar muito pois já é enfatizada com veemência em outras áreas e nada temos de novo a dizer quanto a isso Não creiam porém que a subestimamos precisamente como terapeutas sentimos com suficiente clareza o seu poder Não obstante não 570 27 A TRANSFERÊNCIA podemos modificála em nada para nós ela permanece algo dado e algo que impõe limites a nosso esforço De pois há a influência das primeiras vivências da infância à qual costumamos dar primazia na análise elas per tencem ao passado e não podemos tornálas não acon tecidas Em seguida há tudo aquilo que sintetizamos sob o nome de frustração real os infortúnios da vida que incluem a privação de amor a pobreza a dissensão familiar a má escolha do cônjuge as condições sociais desfavoráveis e o rigor das demandas morais que pesam sobre o indivíduo Aí haveria sem dúvida ensejos bas tantes para uma terapia eficaz mas haveria de ser uma terapia como a que o imperador José praticou segundo as lendas populares de Viena a benfazeja intervenção de um homem poderoso ante cuja vontade os indivíduos se dobram e as dificuldades desaparecem Mas quem somos nós para poder adotar essa benevolência como instru mento de nossa terapia Sendo nós mesmos pobres e so cialmente impotentes obrigados a extrair nosso sustento da prática médica não temos condição sequer de voltar nossos esforços para os despossuídos como fazem ou tros médicos que se valem de outros métodos terapêu ticos Nossa terapia é demorada e laboriosa demais para isso Talvez porém os senhores se agarrem a um dos fatores mencionados e acreditem ter encontrado nele o ponto de abordagem para que exerçamos nossa influên cia Se a restrição moral exigida pela sociedade participa da privação imposta ao doente então o tratamento pode darlhe a coragem ou mesmo a instrução direta para que ele supere essas barreiras para que busque satisfação e 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES cura renunciando à realização de um ideal que a socie dade tanto estima mas frequentemente não observa O doente se cura então na medida em que vive plena mente sua sexualidade É verdade que desse modo é lançada sobre o tratamento analítico uma sombra de que não serve à moralidade geral O que proporciona ao indivíduo ele o subtraiu à coletividade Mas senhoras e senhores quem lhes terá dado uma informação tão equivocada Ninguém disse que a re comendação para que se viva plenamente a sexualidade poderia ter algum papel na terapia analítica Em primei ro lugar porque como já dissemos os doentes abrigam um obstinado conflito entre o impulso lihidinal e a re pressão sexual entre as tendências sensual e ascética Auxiliar uma dessas tendências a derrotar a tendência adversária não anula o conflito Vemos de fato que no neurótico predomina a ascese A consequência disso é justamente que a aspiração sexual reprimida se desafo ga nos sintomas Se ao contrário proporcionássemos a vitória à sensualidade a repressão sexual posta de lado seria substituída por sintomas Nenhuma dessas duas decisões é capaz de pôr fim ao conflito interior uma das partes permaneceria sempre insatisfeita São poucos os casos em que esse conflito é tão débil que um fator como a tomada de partido do médico logra ser decisiva e tais casos na verdade não necessitam de tratamento analí tico As pessoas nas quais o médico pode exercer tal in fluência teriam o mesmo caminho sem o auxílio dele Os senhores hem sabem que quando um jovem abstinente se decide por uma relação sexual ilegítima ou quando 572 27 A TRANSFERÊNCIA uma mulher insatisfeita procura compensação com ou tro homem nenhum deles esperou a permissão do médi co e menos ainda a do analista para fazêlo Nisso ignorase costumeiramente a questão essen cial o conflito patogênico dos neuróticos não deve ser confundido com uma luta normal entre impulsos psí quicos situados no mesmo terreno psicológico É um antagonismo entre poderes em que um deles alcançou o estágio do préconsciente e do consciente e o outro foi retido no estágio do inconsciente Por isso o confli to não pode ser resolvido como no famoso exemplo do urso polar e da baleia os antagonistas nunca se veem frente a frente Uma decisão verdadeira só pode ocorrer quando estiverem ambos no mesmo terreno Creio que possibilitar isso é a única tarefa da terapia Além disso posso lhes assegurar que estão mal in formados se supõem que conselhos e orientação nos assuntos da vida são parte integrante da influência da análise Pelo contrário sempre que possível nós evita mos esse papel de mentor o que mais almejamos é que o doente tome suas decisões de maneira autônoma Com essa mesma intenção também solicitamos que ele adie todas as decisões cruciais escolha da profissão em preendimentos econômicos casamento ou separação enquanto durar o tratamento deixando para pôlas em prática após o encerramento deste Admitam que isso é muito diferente do que os senhores imaginavam Somen te com pessoas muito jovens ou desamparadas e incons tantes não logramos impor a desejada restrição Nesse caso precisamos combinar a atividade do médico com m 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES a do educador temos então plena consciência de nossa responsabilidade e agimos com a necessária cautela Os senhores não devem concluir do afã com que me defendo da objeção de que no tratamento analítico o neurótico é orientado a gozar a vida que atuamos so bre ele em prol da moralidade social Disso nos encon tramos no mínimo igualmente distantes Não somos reformadores e sim meros observadores mas não po demos deixar de observar com olhos críticos e achamos impossível tomar o partido da moral sexual convencio nal ou ter em alta conta o modo como a sociedade busca ordenar os problemas da vida sexual Podemos mostrar à sociedade que o que ela chama de moralidade não vale o sacrifício que custa e que seus procedimentos não se baseiam na honestidade nem demonstram inteligência Não poupamos nossos pacientes de ouvir essa crítica nós os acostumamos a ponderar sem preconceitos tan tos os assuntos sexuais como quaisquer outros e se depois de terminarem o tratamento e se tornarem inde pendentes eles decidem por conta própria adotar algu ma posição intermediária entre o gozo da vida e a asce se incondicional não sentimos nossa consciência pesar por nenhum desses desenlaces Dizemos a nós mesmos que todo aquele que foi bemsucedido na educação para a verdade estará sempre a salvo do perigo da imorali dade ainda que seu padrão de moralidade se desvie de algum modo daquele vigente na sociedade De resto tomamos o cuidado de não superestimar a importância da abstinência na determinação das neuroses Apenas em uma minoria de casos é possível pôr fim à situação 574 27 A TRANSFERÊNCIA patogênica da frustração e ao consequente represamen to da libido mediante a espécie de prática sexual que se pode encontrar sem muito esforço Portanto os senhores não podem explicar o efeito terapêutico da psicanálise com a permissão que ela daria para gozar sexualmente a vida Devem olhar ao redor em busca de outro motivo Creio que enquanto recha çava sua suposição uma observação minha os terá con duzido à pista certa Aquilo de que nos valemos deve ser a substituição do inconsciente pelo consciente a tradu ção do inconsciente para o consciente E assim é de fato Ao fazer o inconsciente prosseguir para o consciente anulamos as repressões eliminamos as condições para a formação de sintomas e transformamos o conflito pa togênico em um conflito normal que de algum modo deve encontrar solução Essa e nenhuma outra é a alteração psíquica que provocamos no doente seu al cance delimita a ajuda que podemos prestar Onde não há repressão ou um processo psíquico análogo para ser desfeito nossa terapia nada tem a oferecer Podemos exprimir o objetivo de nossos esforços me diante fórmulas diversas tornar consciente o inconscien te anular as repressões preencher as lacunas da amnésia todas dizem a mesma coisa Mas talvez os senhores não se deem por satisfeitos com essa declaração Terão imaginado a cura de uma pessoa neurótica como algo diferente como sua transformação em outra pessoa de pois de ela haver se submetido ao trabalho árduo de um tratamento psicanalítico e o resultado seria o paciente passar a ter menos material inconsciente e mais material 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES consciente do que antes Bem provavelmente os senho res subestimam o significado de tal mudança interior O indivíduo neurótico que foi curado é de fato outra pes soa mas no fundo permaneceu o mesmo naturalmen te isto é tornouse o que na melhor das hipóteses e nas condições mais favoráveis poderia ter se tornado Mas isso já é muito O significado de tal diferença no plano psíquico decerto lhes parecerá crível tão logo os senho res tomem ciência de tudo que é necessário e de quanto esforço custa operar tal modificação ainda que insigni ficante em aparência na vida psíquica do paciente Faço agora uma pequena digressão e lhes pergun to se os senhores conhecem o que é chamado de tera pia causal Esse é com efeito o nome que se dá a um procedimento que não visa atacar os sintomas de uma doença e sim eliminar suas causas Nossa terapia psi canalítica seria ou não uma terapia causal A resposta não é simples mas ela permite talvez que nos conven çamos da futilidade desse questionamento Na medida em que a terapia analítica não tem como tarefa imediata a eliminação dos sintomas ela age como uma terapia causal De outro ponto de vista porém os senhores podem dizer que ela não o é E isso porque em busca do encadeamento causal ultrapassamos há muito tempo as repressões tendo chegado às predisposições instin tuais a suas intensidades relativas na constituição e aos desvios no curso de seu desenvolvimento Supondo que nos fosse possível intervir quimicamente nesse meca nismo e aumentar ou diminuir a quantidade de libido existente em dado momento ou intensificar um instinto 27 A TRANSFERÊNCIA à custa de outro aí sim teríamos uma terapia verdadei ramente causal para a qual nossa análise teria realizado o indispensável trabalho preliminar de reconhecimento No momento porém como sabem os senhores não se pode falar em exercer tal influência sobre os processos da libido com a nossa terapia psíquica atacamos outro ponto do conjunto não exatamente nas raízes que nos são visíveis dos fenômenos mas bem longe dos sinto mas num ponto que circunstâncias muito curiosas nos tornaram acessível O que precisamos fazer portanto para substituir o inconsciente pelo consciente no indivíduo que trata mos Houve um tempo em que pensávamos que era muito simples bastava descobrir esse inconsciente e informálo ao paciente Hoje sabemos que essa era uma visão míope e equivocada Nosso saber acerca do con teúdo inconsciente não equivale ao saber do paciente se apenas o comunicamos o paciente não o tem no lu gar do seu conteúdo inconsciente e sim ao lado deste e muito pouco terá mudado Precisamos antes imaginar topologicamente esse conteúdo inconsciente procurálo na memória do paciente ali onde ele se formou atra vés de uma repressão Essa deve ser eliminada então a substituição do conteúdo inconsciente pelo consciente pode ocorrer sem percalços Mas como suspender tal re pressão Nossa tarefa adentra aí uma segunda fase Em primeiro lugar buscase a repressão depois eliminase a resistência que a sustenta Como se faz para remover a resistência Da mesma forma descobrindoa e expondoa ao paciente Afinal m 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES a resistência provém de uma repressão daquela mes ma que buscamos solucionar ou de outra anterior Ela é produzida pelo contrainvestimento que surge para reprimir o impulso ofensivo Fazemos pois o mesmo que já queríamos fazer desde o princípio interpretamos descobrimos e comunicamos Mas agora o fazemos no lugar certo O contrainvestimento ou a resistência não pertence ao âmbito do inconsciente e sim ao do Eu que é nosso colaborador e isso mesmo que o contrainvesti mento não seja consciente Sabemos que estamos lidan do aqui com o duplo sentido da palavra inconsciente de um lado como fenômeno de outro como siste ma Isso parece difícil e obscuro mas tratase apenas de repetição do que já dissemos não é mesmo Há muito estamos preparados para isso Esperamos que essa resistência seja abandonada que o contrainvestimento seja recolhido quando por meio de nossa interpreta ção permitimos que o Eu tome conhecimento dela Mas com que forças motrizes trabalhamos em um caso como esse Em primeiro lugar com o anseio do paciente de se curar que o levou a se submeter ao trabalho conjunto conosco em segundo com o auxílio de sua inteligência à qual damos suporte com nossa interpretação Não há dúvida de que a inteligência do paciente terá maior fa cilidade para reconhecer a resistência e encontrar a tra dução correspondente para o que foi reprimido se lhe tivermos dado as ideias antecipatórias apropriadas Se eu lhes disser Olhem para o céu vejam aquele balão Ou expectativas Erwartungsvorstellungen 27 A TRANSFERÊNCIA lá em cima os senhores o encontrarão com muito mais facilidade do que se eu apenas lhes solicitar que olhem para cima a ver se descobrem algo Também o estudan te quando olha pela primeira vez no microscópio é ins truído pelo professor sobre o que deve ver do contrário nada vê embora alguma coisa esteja lá e seja visível E agora vamos ao fato Em bom número de formas de adoecimento neurótico em histerias estados de an gústia neuroses obsessivas nossa premissa se mostra correta Por meio dessa busca da repressão da exposição das resistências e da indicação do que foi reprimido con seguimos solucionar o problema isto é superar as resis tências anular a repressão e transformar em consciente o conteúdo inconsciente Ao fazêlo obtemos a mais clara noção de como para a superação de cada resistên cia uma intensa luta é travada na psique do paciente uma luta psíquica normal no mesmo plano psicológico entre os motivos que procuram manter o contrainves timento e aqueles que estão dispostos a dele abrir mão Os primeiros são os motivos antigos que outrora im puseram a repressão entre os últimos encontramse os novos que assim esperamos vão resolver o conflito no sentido que desejamos Conseguimos pois reavivar o velho conflito que levou à repressão submeter a revisão o processo decidido no passado Como novo material apresentamos em primeiro lugar a advertência de que a decisão anterior conduziu ao adoecimento e a promessa de que uma nova abrirá o caminho rumo à cura em se Isto é o fato novo que anunciou no início da conferência 579 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES gundo lugar a enorme modificação de todas as circuns tâncias desde o momento daquela primeira rejeição Na época o Eu era débil infantil e talvez tivesse razão em proscrever como perigosa a demanda da libido Hoje ele está fortalecido e experiente além de contar com a ajuda do médico a seu lado Assim podemos ter a esperança de conduzir o conflito reavivado a um desfecho melhor que a repressão e como já foi dito o sucesso nos casos de histeria e das neuroses obsessivas e de angústia nos dá razão em princípio Mas há outras formas de enfermidade ante as quais não obstante condições idênticas nosso procedimento terapêutico jamais obtém sucesso Nelas foi também um conflito original entre o Eu e a libido que levou à repres são ainda que do ponto de vista topológico sejam outras as suas características e também é possível descobrir os pontos em que ocorreram as repressões na vida do doente Nós utilizamos o mesmo procedimen to estamos prontos a fazer as mesmas promessas pres tamos ao enfermo o mesmo auxílio comunicandolhe ideias antecipatórias e mais uma vez a distância tempo ral entre o presente e as repressões de outrora favorece um outro desfecho para o conflito Ainda assim não lo gramos anular a resistência e remover a repressão De modo geral tais pacientes paranoicos melancólicos pessoas acometidas de dementia praecox permanecem incólumes imunes à terapia psicanalítica Por que mo tivo isso acontece Não se trata de falta de inteligência naturalmente certa capacidade intelectual é necessária a nossos pacientes mas esta com certeza não falta por 27A TRANSFERÊNCIA exemplo aos sagazes portadores de paranoia combina tória Tampouco notamos a ausência das demais forças motrizes Os melancólicos por exemplo possuem em grande medida a consciência faltante aos paranoicos de que estão doentes e por isso tanto sofrem mas isso não os torna mais acessíveis Vemonos pois diante de um fato que não compreendemos e que por isso mesmo nos faz questionar se realmente entendemos todas as condi ções para o eventual sucesso com as outras neuroses Se prosseguimos nos ocupando de nossos histéricos e neuróticos obsessivos logo deparamos com outro fato para o qual não estávamos de forma alguma prepa rados Após algum tempo notamos que esses doentes se comportam de uma maneira muito especial para co nosco Acreditávamos haver explicado todas as forças motrizes em ação no tratamento pensávamos ter racio nalizado por completo a situação entre nós e o paciente de modo a enxergála tão claramente como uma opera ção aritmética simples mas então parece infiltrarse em nossa conta algo que não havíamos considerado Esse elemento novo e inesperado é também ele multiforme Inicialmente vou descrevêlo em sua manifestação mais frequente e simples de compreender Notamos então que o paciente que nada mais deve buscar senão uma saída para os conflitos que fazem sofrer desenvolve particular interesse pela pessoa do médico Tudo que se relaciona a essa pessoa lhe parece mais importante do que seus próprios assuntos aparen temente desviando sua atenção da própria enfermidade Assim sendo o trato com o paciente se torna por algum 81 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES tempo bastante agradável ele se revela especialmente solícito busca mostrarse agradecido sempre que pode exibe sutilezas e méritos de seu ser que talvez jamais teríamos encontrado nele O médico forma então uma opinião bastante favorável de seu paciente e louva o acaso que lhe permitiu prestar assistência a personalida de tão valiosa Se tem oportunidade de conversar com parentes dele ouve com prazer que a simpatia é mútua Em casa o paciente não se cansa de elogiar o médico e de louvar sempre novas qualidades dele É apaixonado pelo senhor em quem confia cegamente Tudo que o senhor diz é como uma revelação para ele relatam os parentes Vez por outra um par de olhos mais perspi cazes se destaca desse coro e diz Já está ficando chato como ele não fala em outra coisa que não seja o senhor e menciona apenas o seu nome Cabe esperar que o médico seja modesto o bastante para remeter essa avaliação que o paciente faz de sua personalidade às esperanças que ele lhe dá e à expansão do horizonte intelectual que lhe propicia com as revela ções surpreendentes e libertadoras que a terapia enseja Em tais condições a própria análise faz progressos es tupendos o paciente compreende o que lhe é indicado e se aprofunda nas tarefas que lhe são propostas pelo tra tamento é farto o material que lhe flui das lembranças e associações e ele surpreende o médico com a segurança e a propriedade de suas próprias interpretações de tal forma que esse último pode apenas constatar com sa tisfação a boa vontade com que o doente acolhe as no vidades psicológicas que no mundo lá fora costumam 27A TRANSFERÊNCIA provocar a mais implacável oposição dos saudáveis A essa bela harmonia durante o trabalho analítico tam bém corresponde uma melhora objetiva amplamente reconhecida do estado da enfermidade Mas um tempo tão bom não pode durar para sempre Um dia chegam as nuvens Surgem dificuldades no tra tamento e o paciente afirma que não lhe ocorrem mais associações Temos a nítida impressão de que o trabalho terapêutico não lhe interessa mais e de que sem preo cupação nenhuma ele abandona a instrução que lhe foi dada de dizer tudo que lhe passa pela mente sem ceder a nenhum obstáculo crítico Ele se comporta como se não estivesse em tratamento como se não tivesse feito um trato com o médico claramente ele foi tomado por algo que deseja guardar para si Essa é uma situação pe rigosa para tratamento Estamos sem dúvida diante de uma poderosa resistência O que aconteceu Quando podemos ver clara a situação percebemos que a causa da perturbação é o fato de o paciente ha ver transferido para o médico intensos sentimentos afetuosos que não se justificam nem pela conduta do médico nem pela relação no tratamento De que forma essa afeição se manifesta e que objetivos almeja isso depende naturalmente das circunstâncias pessoais dos dois envolvidos Tratandose de uma moça e de um homem ainda jovem a impressão que teremos é a de um enamoramento normal julgaremos compreensível que uma moça se apaixone por um homem jovem com o qual passa muito tempo sozinha e discute intimidades e que lhe aparece na posição vantajosa de alguém su 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES perior a ajudála e provavelmente esqueceremos que numa moça neurótica seria de esperar uma perturbação da capacidade de amar Quanto mais as circunstâncias pessoais do médico e do paciente se distanciarem do caso suposto tanto mais estranharemos encontrar sem pre a mesma relação emocional entre os dois Ainda se pode conceber que uma jovem mulher infeliz no casa mento seja aparentemente tomada de séria paixão pelo médico ainda solteiro que ela se disponha a buscar a separação para ficar com ele ou havendo algum impe dimento social que não chegue a manifestar escrúpulo em iniciar com o médico uma relação amorosa secreta Afinal coisas semelhantes acontecem também fora da psicanálise Mas nessas condições ouvimos com espan to manifestações de mulheres e moças que exprimem da seguinte maneira seu posicionamento em relação à questão terapêutica sempre souberam afirmam elas que só poderiam se curar pelo amor e desde o início do tratamento esperavam que tal relacionamento enfim lhes presenteasse com aquilo de que a vida até então lhes havia privado apenas essa esperança as teria fei to se empenhar tanto no tratamento e superar todas as dificuldades de comunicação ao que de nossa par te acrescentamos e compreender com tanta facilidade aquilo em que de resto é difícil de acreditar Mas uma confissão dessas nos surpreende deita por terra todas as nossas avaliações Será possível que tenhamos deixado de fora de nosso cálculo o fator mais importante E de fato quanto maior for a nossa experiência tanto menos poderemos nos opor a essa correção que 27ATRANSFERÊNCIA envergonha o nosso rigor científico Nas primeiras ve zes podíamos acreditar que o tratamento analítico havia deparado com uma perturbação motivada por um acon tecimento casual isto é estranho à sua intenção e não provocado por ela Mas quando essa vinculação afetuo sa do paciente com o médico se repete regularmente a cada novo caso quando reaparece sem cessar mesmo sob condições as mais desfavoráveis e em situações ver dadeiramente grotescas como numa senhora mais velha ou em relação a um homem de barbas brancas ou seja mesmo quando segundo nosso juízo nada existe de se dutor então temos que abandonar a ideia de um acaso perturbador e reconhecer que se trata de um fenômeno intimamente ligado à natureza da própria doença A esse fato novo que reconhecemos a contragosto demos o nome de transferência Referimonos a uma transferência de sentimentos para a pessoa do médico pois não acreditamos que a situação terapêutica possa justificar o desenvolvimento de tais sentimentos Su pomos isto sim que toda essa disposição para o sen timento provém de outra parte que ela já estava pron ta no doente e por ocasião do tratamento analítico é transferida para a pessoa do médico A transferência pode surgir como turbulenta exigência amorosa ou sob formas mais moderadas Na relação de uma moça com o homem de idade pode brotar na primeira em vez do desejo de ser amada o de ser aceita como a filha prefe rida o anseio libidinal pode ser atenuado transformado em sugestão de amizade indissolúvel porém ideal e não sensual Algumas mulheres logram sublimar a transfe 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES rência e modelála até que ela se torne viável de algu ma maneira outras necessitam externála em sua forma crua original e geralmente impossível No fundo po rém o fenômeno é sempre o mesmo e não deixa dúvida sobre a fonte comum que lhe deu origem Antes de nos perguntarmos onde haveremos de aco modar o fato novo representado pela transferência va mos completar sua descrição Como sucede com os pa cientes masculinos Com eles poderíamos esperar que não houvesse a importuna interferência da diferença de sexo e da atração sexual A resposta contudo é que não se dá com os homens coisa muito diferente do que ocor re com as mulheres há o mesmo vínculo com o médico a mesma superestimação de suas qualidades idêntica absorção nos interesses dele o mesmo ciúme em relação aos que lhe são próximos na vida Entre um homem e outro as formas sublimadas da transferência são mais frequentes e a demanda sexual direta é mais rara na mesma medida em que a homossexualidade manifesta passa a segundo plano diante dos outros empregos desse componente instintual Também nos pacientes masculi nos o médico observa a ocorrência mais frequente do que nas mulheres de uma forma de transferência que à primeira vista parece contradizer a descrição que até agora fizemos a transferência hostil ou negativa Em primeiro lugar deixemos claro que a transferên cia surge no paciente desde o início do tratamento e que por algum tempo representa a mola propulsora do tra balho Enquanto atua em favor da análise empreendida em conjunto nós não a percebemos nem necessitamos 27 A TRANSFERÊNCIA nos preocupar com ela Se todavia a transferência se transforma em resistência somos obrigados a atentar para ela e vemos que em duas condições diferentes e opostas sua relação com o tratamento se modificou A primeira quando na qualidade de terna inclinação a transferência se torna tão forte indica tão claramente sua procedência do âmbito da necessidade sexual que só pode provocar uma resistência interna contra si a se gunda quando consiste de impulsos hostis em vez de afetuosos Em regra os sentimentos hostis aparecem depois dos afetuosos e por trás deles em sua presença si multânea espelham bem a ambivalência de sentimentos que rege a maioria de nossos relacionamentos íntimos com outras pessoas Os sentimentos hostis constituem um vínculo emocional tanto quanto os afetuosos assim como a atitude desafiadora indica a mesma dependência que a obediência mas com o sinal trocado Não pode haver dúvida de que os sentimentos hostis para com o médico merecem o nome de transferência pois certa mente a situação da terapia não oferece motivo bastante para seu surgimento a concepção necessária da trans ferência negativa nos garante que não nos equivocamos em nosso juízo da transferência positiva ou afetuosa De onde vem a transferência que dificuldades nos impõe como a superamos e que proveito dela tiramos finalmente isso deve ser tratado minuciosamente numa instrução técnica sobre a análise e hoje será apenas mencionado É coisa fora de questão ceder às deman das do paciente decorrentes da transferência e seria um contrassenso rejeitálas de maneira inamistosa ou 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES pior ainda indignada Nós superamos a transferência demonstrando ao doente que seus sentimentos não têm origem na situação presente nem se aplicam à pessoa do médico mas repetem algo que já lhe ocorreu no pas sado Desse modo nós o obrigamos a transformar sua repetição em lembrança A transferência que afetuosa ou hostil parecia significar a mais forte ameaça ao tra tamento tornase então seu melhor instrumento aquele com o qual podem se abrir os mais cerrados comparti mentos da vida psíquica Mas eu gostaria de lhes dizer algumas palavras a fim de libertálos da estranheza ante o surgimento des se fenômeno inesperado Não nos esqueçamos de que a enfermidade do paciente que acolhemos em análise não é algo encerrado rígido mas que continua crescendo seu desenvolvimento segue adiante como o de um ser vivo O início do tratamento não põe fim a esse desen volvimento mas tendo a terapia se apoderado do pa ciente disso resulta que toda nova produção da doença se concentra em um único ponto isto é na relação com o médico A transferência tornase comparável àquela camada de células denominada câmbio situada entre a madeira e a casca de uma árvore da qual provêm a formação de novos tecidos e o espessamento do tron co Quando a transferência atinge essa importância o trabalho com as lembranças do doente recua conside ravelmente Não é incorreto dizer então que já não li damos com a enfermidade anterior do paciente e sim com uma neurose recémcriada e transformada que substitui aquela Acompanhamos desde o princípio essa 88 27 A TRANSFERÊNCIA nova edição da velha afecção vimola surgir e crescer e nela nos orientamos bem pois na condição de obje to estamos no seu centro Todos os sintomas do doente abandonaram seu significado original e adquiriram um novo sentido que guarda relação com a transferência ou restaram apenas os sintomas capazes dessa reelabo ração O domínio sobre essa nova neurose artificial coincide com a resolução da enfermidade trazida para o tratamento com a solução de nossa tarefa terapêutica A pessoa que em sua relação com o médico se tornou normal e liberta do efeito dos impulsos instintuais re primidos assim permanece também em sua vida pró pria quando o médico tiver saído de cena Essa significação extraordinária verdadeiramente central na terapia a transferência tem nas histerias his terias de angústia e neuroses obsessivas que são cor retamente denominadas neuroses de transftrência Quem tiver adquirido no trabalho analítico uma impressão cabal do fato da transferência já não poderá duvidar de que tipo são os impulsos reprimidos que obtêm expres são nos sintomas dessas neuroses e tampouco exigirá prova mais contundente de sua natureza libidinal Po demos dizer que nossa convicção do significado desses sintomas como satisfações libidinais substitutas somente se firmou em definitivo após a inclusão da transferência Agora temos amplos motivos para corrigir nos sa anterior concepção dinâmica do processo de cura e alinhála à nova percepção Para atravessar e vencer o conflito normal com as resistências que lhe desvenda mos na análise o doente necessita de um impulso po 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES deroso que influencie a decisão no sentido que deseja mos aquele que conduz à cura De outro modo pode ocorrer que ele se decida pela repetição do desfecho anterior e deixe novamente cair na repressão aquilo que foi elevado até à consciência Determinante nessa luta não é sua percepção intelectual que não tem força nem liberdade suficientes para isso mas sua relação com o médico apenas ela Enquanto sua transferência apresentar sinal positivo ela reveste o médico de au toridade convertendose em crença nas declarações e concepções deste Sem essa transferência ou se ela for negativa ele nem sequer dará ouvidos ao médico e seus argumentos Nisso a crença repete sua própria gênese é um derivado do amor e não necessitou de argumen tos no início Somente depois o paciente lhes dá algum espaço de modo a submetêlos a exame se forem apre sentados por uma pessoa que lhe é cara Argumentos desprovidos de tal sustentação não tiveram peso e ja mais o têm para a maioria das pessoas Em geral o ser humano só é acessível pelo lado intelectual na medida em que é capaz de investir de libido o objeto e temos boas razões para identificar e temer na extensão de seu narcisismo uma barreira à possibilidade de influenciá lo mesmo pela melhor técnica psicanalítica Claro que a capacidade de dirigir a pessoas os inves timentos objetais libidinais deve ser atribuída a todo ser humano normal A inclinação dos chamados neuróticos à transferência é apenas uma intensificação extraordiná ria dessa característica geral Seria muito singular que uma característica humana tão disseminada e importan 27 A TRANSFERÊNCIA te jamais tivesse sido apontada e avaliada E isso de fato aconteceu Com certeira perspicácia Bernheim funda mentou a teoria dos fenômenos hipnóticos na tese de que todas as pessoas são de alguma maneira sugestionáveis suggestible Sua sugestionabilidade nada mais é que a inclinação para a transferência concebida com certa estreiteza pois não inclui a transferência negativa Mas Bernheim não conseguiu dizer o que é de fato a suges tão e como ela acontece Para ele era um fato básico cuja origem não podia demonstrar Ele não percebeu na suggestibilité a dependência da sexualidade da atividade libidinal E devemos nos dar conta de que abandonamos a hipnose em nossa técnica apenas para redescobrir a su gestão sob a forma da transferência Mas aqui me detenho e passo a palavra aos senho res pois noto que há uma objeção que cresce tão ra pidamente que se fosse impedida de se expressar não os deixaria continuar me ouvindo Pois bem o senhor finalmente admitiu que trabalha com o auxílio da su gestão como o hipnotizador Era o que vínhamos pen sando há um bom tempo Mas então por que o longo rodeio pelas lembranças do passado o descobrimento do inconsciente a interpretação e tradução retrospec tiva das deformações o enorme dispêndio em matéria de esforço tempo e dinheiro se a única coisa eficaz é a sugestão Por que o senhor não utiliza a sugestão dire tamente contra sintomas como fazem os outros os ho nestos hipnotizadores E além disso caso pretenda se desculpar pelo rodeio invocando as numerosas desco bertas psicológicas significativas que teriam se ocultado 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES com sugestão direta quem garante a certeza dessas des cobertas Não serão produto também da sugestão da sugestão não intencional O senhor não poderia tam bém nesse campo impor ao paciente aquilo que deseja e que lhe parece correto A objeção que os senhores me fazem é interessantís sima e tem de ser respondida Hoje porém já não posso fazêlo faltanos o tempo para isso Fica para a próxima vez Os senhores verão que lhes darei satisfações Hoje devo terminar o que comecei Prometi que mediante o fato da transferência eu os faria compreender por que nossos esforços terapêuticos não têm sucesso com as neuroses narcísicas Posso fazêlo em poucas palavras e os senhores ve rão com que facilidade o enigma se resolve e como tudo se encaixa muito bem A observação mostra que aque les que sofrem de neuroses narcísicas não possuem ca pacidade de transferência ou possuem apenas resíduos insuficientes dela Rejeitam o médico mas não de ma neira hostil e sim indiferente Por isso não podem ser influenciados por ele O que o médico diz os deixa frios não lhes causa nenhuma impressão por isso não pode se produzir neles o mecanismo de cura que fazemos fun cionar nos outros a renovação do conflito patogênico e a superação da resistência devida à repressão Eles permanecem como são Com frequência já fizeram por conta própria tentativas de se restabelecer que tiveram resultados patológicos Nisso não podemos nada mudar Com base em nossas impressões clínicas desses pa cientes afirmamos anteriormente que neles o inves 28 A TERAPIA ANAlÍTICA timento objetai deve ter sido abandonado e a libido objetai transformada em libido do Eu Por essa carac terística nós os distinguimos do primeiro grupo de neu róticos os que sofrem de histeria neurose de angústia e neurose obsessiva Tal suposição é agora confirma da por seu comportamento ante a tentativa terapêutica Eles não demonstram transferência e por esse motivo são refratários a nossos esforços não podem ser cura dos por nós 28 A TERAPIA ANALÍTICA Senhoras e senhores Todos sabem sobre o que falare mos hoje Os senhores me perguntaram por que na te rapia psicanalítica não nos servimos da sugestão direta se admitimos que a influência que exercemos repousa essencialmente na transferência isto é na sugestão e a isso relacionaram a dúvida de que dada essa predomi nância da sugestão ainda possamos garantir a objeti vidade de nossas descobertas psicológicas Eu prometi que lhes daria uma resposta detalhada A sugestão direta é aquela dirigida contra a mani festação dos sintomas a luta entre a sua autoridade e os motivos da doença Ao fazer uso dela os senhores não se ocupam dos motivos apenas requerem que o pacien te suprima as manifestações desses motivos em forma de sintomas Nesse caso não faz diferença em princípio se os senhores põem ou não o paciente em estado hipnótico 593 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Bernheim mais uma vez com a perspicácia que o carac teriza afirmou que a sugestão é o essencial nos fenôme nos hipnóticos e a hipnose propriamente dita um resul tado da sugestão um estado sugerido e preferiu praticar a sugestão com o paciente no estado de vigília a qual é capaz de realizar o mesmo que a sugestão na hipnose O que preferem os senhores ouvir primeiro sobre essa questão o que diz a experiência ou reflexões teóricas Comecemos pela primeira Fui discípulo de Ber nheim que visitei em Nancy em 1889 e cujo livro sobre a sugestão traduzi para o alemão Pratiquei durante anos o tratamento hipnótico de início valendome da su gestão proibidora e mais tarde combinandoo com o método de Breuer de interrogar o paciente Então pos so falar dos resultados das terapias hipnótica e sugestiva com base em boa experiência própria Se conforme uma velha máxima dos médicos a terapia ideal deve ser rápi da confiável e não desagradável ao paciente o método de Bernheim atendia a duas dessas condições Ele podia ser executado com maior rapidez com rapidez incom paravelmente maior do que o analítico e não impli cava esforço nem fadiga para o paciente Para o médico ele se tornava monótono com o tempo em cada caso o mesmo procedimento e o mesmo cerimonial proibir a existência dos mais diversos sintomas sem apreender coisa alguma de seu sentido e sua significação Era tra balho servente não uma atividade científica e lembrava magia encantamento e prestidigitação mas ante o in teresse do doente isso não contava A terceira condição não estava presente confiável esse procedimento não 594 28 A TERAPIA ANAlÍTICA era de forma alguma Em alguns ele podia ser aplica do em outros não em certos pacientes conseguiase muita coisa em outros muito pouco e nunca se sabia por quê Pior do que esse caráter caprichoso do proce dimento era a pouca duração dos resultados Após al gum tempo quando se voltava a ter notícia do paciente a velha enfermidade retornara ou fora substituída por outra Podiase hipnotizálo de novo Por trás de tudo no entanto havia a advertência expressa por pesquisa dores experientes de que não se privasse o doente de sua autonomia pela repetição frequente da hipnose acostumandoo a essa terapia como se fosse um narcó tico Admitimos que às vezes as coisas se davam con forme o desejado depois de alguns esforços obtínha mos sucesso pleno e duradouro Mas as condições para esse desfecho favorável permaneciam desconhecidas Certa vez ocorreume de um estado grave que eu ha via eliminado por completo mediante breve tratamento hipnótico retornar sem nenhuma modificação depois de a enferma se zangar comigo sem que eu lhe tivesse feito nada após a reconciliação logrei novamente e de maneira ainda mais radical fazêlo desaparecer mas ele voltou a aparecer depois que se afastou de mim pela se gunda vez Em outra ocasião aconteceume de uma pa ciente a quem várias vezes eu ajudara a superar estados neuróticos com a hipnose de súbito lançarme os braços em torno do pescoço durante o tratamento de um acesso particularmente tenaz Querendo ou não esse tipo de coisa nos fazia pensar na questão da natureza e da ori gem de nossa autoridade sugestiva 595 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES É quanto tenho a dizer sobre a experiência Ela nos mostra que ao renunciar à sugestão direta não estamos abrindo mão de algo insubstituível Acrescentemos aqui algumas ponderações A prática da terapia hipnótica de manda pouquíssimo trabalho tanto do paciente como do médico Essa terapia está em total consonância com certa avaliação das neuroses que a maioria dos médicos ainda sustenta O médico diz ao paciente neurótico O senhor não tem nada isso é apenas dos nervos Posso pôr fim a suas queixas em poucos minutos com algumas palavras Mas contraria a nossa concepção da energia que sejamos capazes de mover uma grande carga com um emprego mínimo de força quando a abordamos di retamente e sem a ajuda de equipamentos apropriados Até onde podemos comparar essas duas situações a ex periência ensina que tal artifício não funciona com as neuroses Sei contudo que esse argumento não é inata cável também existem as ações desencadeadoras À luz do conhecimento obtido com a psicanálise po demos descrever da seguinte forma a diferença entre as sugestões hipnótica e psicanalítica a terapia hipnótica busca ocultar e dissimular algo na vida psíquica a ana lítica procura liberar e remover algo Aquela age como um cosmético esta como uma cirurgia Aquela utili za a sugestão para proibir os sintomas ela intensifica as repressões mas deixa inalterados os processos que levaram à formação dos sintomas A terapia analítica ataca mais próximo das raízes onde estão os conflitos de que se originaram os sintomas e se serve da suges tão para modificar o desfecho desses conflitos A terapia 28 A TERAPIA ANALÍTICA hipnótica deixa os pacientes inativos e inalterados e por isso mesmo incapazes de resistir a novas ocasiões para o adoecimento O tratamento analítico requer trabalho árduo do médico e do paciente um trabalho dedicado à anulação das resistências internas Mediante a supe ração dessas resistências a vida psíquica do doente é modificada de forma duradoura alçada a um estágio superior de desenvolvimento e fica protegida contra novas possibilidades de adoecimento Esse trabalho de superação é o feito essencial do tratamento analítico o doente precisa realizálo o que o médico lhe possibilita com o auxílio da sugestão que aí atua em sentido edu cativo Por isso já se disse com razão que o tratamento psicanalítico é uma espécie de póseducação Espero ter deixado claro aos senhores de que modo o nosso uso terapêutico da sugestão se diferencia da quele que é o único possível na terapia hipnótica Tam bém o caráter caprichoso que chamou nossa atenção na terapia hipnótica os senhores compreendem agora de pois de havermos remontado a sugestão à transferência enquanto a terapia analítica permanece no interior de seus limites previsível Na aplicação da hipnose depen demos de como se apresenta a capacidade de transferên cia do enfermo sem que possamos exercer qualquer influência sobre ela A transferência do paciente a ser hipnotizado pode ser negativa ou como na maioria dos casos ambivalente ele pode ter adotado posturas espe ciais para se proteger dela nada disso sabemos Na psi canálise agimos sobre a própria transferência resolve mos o que se opõe a ela ajustamos o instrumento com 597 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES que desejamos influir Assim se torna possível para nós tirar proveito bem diverso do poder da sugestão ele está em nossas mãos O doente não sugere a si pró prio o que bem entender somos nós que dirigimos sua sugestão até onde ele for acessível à influência deste Os senhores dirão que pouco importa se chamamos a força impulsora de nossa análise de transferência ou de sugestão de todo modo há o perigo de que a influência exercida sobre o paciente ponha em dúvida a certeza ob jetiva de nossas descobertas O que é bom para a terapia é prejudicial à pesquisa Essa é a objeção mais frequente que se faz à psicanálise e temos de admitir que embora equivocada não podemos descartála como irrefletida Fosse ela justificada a psicanálise nada mais seria que um tipo de tratamento por sugestão muito bem disfar çado e particularmente efetivo e não deveríamos levar muito a sério suas afirmações sobre o que influencia nossa vida sobre a dinâmica psíquica e o inconsciente É o que pensam os adversários da psicanálise sobretudo o que diz respeito à significação das vivências sexuais quando não as vivências em si nós teríamos incutido nos pacientes após essas noções terem se desenvolvido em nossa própria fantasia degenerada Tais acusações são refutadas mais facilmente invocando a experiência do que com o auxílio da teoria Quem conduziu psicaná lises já teve inúmeras oportunidades de se convencer de que é impossível sugestionar o paciente dessa forma Na turalmente não é difícil tornálo adepto de determinada teoria e assim fazêlo participar de um possível erro do médico Nisso ele se comporta como qualquer outra 28 A TERAPIA ANAlÍTICA pessoa como um discípulo mas desse modo influencia mos apenas sua inteligência não sua doença A solução de seus conflitos e a superação de suas resistências só têm êxito quando lhe transmitimos ideias antecipatórias que correspondem à sua realidade interior As suposi ções incorretas do médico acabam excluídas no curso da análise precisam ser retiradas e ser substituídas por outras mais corretas Mediante uma técnica cuidadosa buscamos impedir a ocorrência de sucessos provisórios devidos à sugestão mas não há problema se ocorrerem pois não nos contentamos com o primeiro sucesso Não damos por terminada a análise sem que tenhamos es clarecido todos os pontos obscuros do caso preenchido as lacunas da memória e encontrado as ocasiões para as repressões Vemos os sucessos precoces mais como obs táculos do que como avanços do trabalho analítico eles são anulados ao resolvermos continuamente a transfe rência em que se baseiam No fundo é esse último traço que separa o tratamento analítico do puramente suges tivo e livra os resultados analíticos da suspeita de serem êxitos da sugestão Em todos os outros tratamentos por sugestão a transferência é cuidadosamente poupada permanecendo intacta no analítico ela própria é objeto do tratamento e decomposta em cada uma de suas mani festações Para a conclusão de um tratamento analítico é necessário que a própria transferência seja demolida se então o êxito sobrevém ou se mantém não se baseia na sugestão mas na superação das resistências internas efetuada com sua ajuda na modificação interior produ zida no paciente 599 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES Por certo age contra o surgimento de sugestões iso ladas o fato de durante a terapia termos de combater incessantemente resistências capazes de se transformar em transferências negativas hostis E não podemos deixar de ressaltar que grande número de resultados da análise dos quais se poderia suspeitar serem produtos da sugestão são indiscutivelmente confirmados a partir de outra fonte Nesse caso nossos fiadores são os dementes e paranoicos que estão naturalmente muito acima da suspeita de influência por sugestão O que esses doentes nos relatam de traduções de símbolos e de fantasias que neles penetraram até a consciência coincide fielmente com os resultados de nossas investigações do inconscien te dos neuróticos de transferência reforçando assim a correção objetiva de nossas interpretações tantas vezes contestadas Creio que os senhores não se equivocarão se depositarem confiança nesses pontos da análise Agora vamos complementar nossa exposição do mecanismo da cura apresentandoo com as fórmulas da teoria da libido O neurótico é incapaz de fruição e realização da primeira porque sua libido não se acha voltada para um objeto real da segunda porque precisa despender grande parte da sua energia disponível para manter a libido na repressão e para se defender de seu ataque Ele se tornaria saudável caso tivesse fim o con flito entre seu Eu e sua libido e seu Eu voltasse a dispor de sua libido A tarefa terapêutica consiste portanto em libertar a libido de suas ligações presentes afastadas do Eu e colocála novamente a serviço desse Eu Mas onde está a libido do neurótico Não é dificil encontrá 6oo 28 A TERAPIA ANALÍTICA la está ligada aos sintomas que lhe oferecem a única satisfação substituta possível no momento É preciso então assenhorearse dos sintomas resolvêlos jus tamente o que o doente requer de nós Para a resolução dos sintomas teremos de voltar até o seu surgimento renovar o conflito que lhes deu origem e com o auxí lio das forças motrizes que não estavam disponíveis na época guiálo para outro desfecho Somente em parte essa revisão do processo repressivo pode ser feita nos traços mnêmicos dos eventos que conduziram à repres são A porção decisiva do trabalho é realizada criando na relação com o médico na transferência no vas edições daqueles velhos conflitos em que o paciente gostaria de se comportar como fez no passado enquan to nós mediante o emprego de todas as forças psíquicas disponíveis o obrigamos a tomar uma outra decisão A transferência se torna pois o campo de batalha em que devem se encontrar todas as forças que lutam entre si Toda a libido assim como toda oposição a ela é reu nida nessa relação com o médico é inevitável nisso que os sintomas sejam despojados de libido No lugar da doença do paciente surge aquela produzida artificial mente isto é a doença da transferência em lugar dos diversos objetos libidinais irreais um só objeto nova mente fantasioso que é a pessoa do médico Mas com o auxílio da sugestão médica a nova luta por esse objeto é elevada ao mais alto nível psíquico transcorre como conflito psíquico normal Como se evita uma nova re pressão o estranhamente entre Eu e libido tem fim a unidade psíquica da pessoa é restabelecida Quando a 601 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES libido é desprendida do objeto temporário que é a pessoa do médico não pode retornar a seus objetos anteriores permanecendo assim à disposição do Eu As forças que combatemos durante esse trabalho terapêutico são por um lado a aversão do Eu a certas orientações da libido que se manifesta como tendência à repressão e por outro lado a tenacidade ou viscosidade da libido que não quer abandonar os objetos uma vez investidos O trabalho terapêutico se decompõe em duas fases portanto Na primeira toda a libido é obrigada a passar dos sintomas para a transferência e é lá concentrada na segunda travase a luta pelo novo objeto e a libido é dele libertada A modificação decisiva para o bom de senlace é a exclusão da repressão nesse conflito reno vado de maneira que a libido não pode mais uma vez subtrairse ao Eu mediante a fuga para o inconsciente Isso é possibilitado pela modificação do Eu realizada sob a influência da sugestão médica Graças ao trabalho de interpretação que transforma o que é inconsciente em consciente o Eu é ampliado à custa desse incons ciente por meio da instrução ele se torna conciliador em relação à libido e inclinado a concederlhe alguma satisfação seu medo ante as exigências da libido é redu zido mediante a possibilidade de ele dar conta de uma parte da libido através da sublimação Quanto mais os processos durante o tratamento corresponderem a essa descrição ideal maior será o sucesso da terapia analíti ca Ele encontra seus limites na falta de mobilidade da libido que pode relutar em abandonar seus objetos e na rigidez do narcisismo que não permite que a transfe 28 A TERAPIA ANAlÍTICA rência objetai ultrapasse determinada fronteira Talvez lancemos mais alguma luz sobre a dinâmica do processo de cura com a observação de que capturamos toda a libido subtraída à dominação do Eu ao atrair parte dela para nós mediante a transferência Não é descabido lembrar que não podemos a par tir das distribuições da libido produzidas durante e por intermédio do tratamento tirar uma conclusão dire ta sobre sua alocação durante a doença Supondo que conseguíssemos resolver satisfatoriamente um caso mediante o estabelecimento e a resolução de uma forte transferência paterna para o médico seria errado con cluir que anteriormente o doente sofreu de semelhante ligação inconsciente de sua libido com o pai A transfe rência paterna é apenas o campo de batalha em que nos apoderamos da libido a libido do paciente foi dirigida para lá a partir de outras posições Esse campo de bata lha não coincide necessariamente com uma das fortale zas importantes do inimigo A defesa da capital inimiga não tem de acontecer precisamente ante os portões da cidade Apenas depois de resolvida a transferência é que se pode reconstruir em pensamentos a distribuição da libido que prevalecia durante a enfermidade Podemos do ponto de vista da teoria da libido di zer ainda algumas palavras sobre o sonho Os sonhos dos neuróticos assim como seus atos falhos e suas as sociações livres ajudamnos a perceber o sentido dos sintomas e descobrir a colocação da libido Sob a forma de realização de desejo eles nos mostram quais desejos sucumbiram à repressão e a quais objetos se prendeu 603 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES a libido subtraída ao Eu Por isso a interpretação dos sonhos tem um relevante papel no tratamento psicana lítico e é em vários casos por longos períodos o mais importante instrumento de trabalho Já sabemos que o sono em si provoca certo relaxamento das repressões Essa diminuição da pressão que pesa sobre ele possibi lita que o impulso reprimido logre expressarse muito mais claramente no sonho do que lhe permite o sintoma ao longo do dia O estudo dos sonhos tornase assim o mais cômodo acesso ao conhecimento do inconsciente reprimido de que faz parte a libido subtraída do Eu Mas em nenhum ponto essencial os sonhos dos neu róticos diferem daqueles das pessoas normais talvez sejam indistinguíveis destes Seria um contrassenso ex plicar os sonhos dos neuróticos de uma forma que não se aplicasse também aos sonhos das pessoas normais Portanto devemos dizer que a diferença entre saúde e neurose vale apenas para o dia não se estende à vida onírica Somos obrigados a transpor para o indivíduo saudável algumas hipóteses que no tocante ao neuróti co resultam do nexo entre seus sonhos e seus sintomas Não podemos discutir que também o indivíduo saudá vel possui em sua vida psíquica aquilo que torna pos sível a formação tanto dos sonhos como dos sintomas e temos de concluir que também ele fez uso de repres sões que arcou igualmente com certo dispêndio para mantêlas que seu sistema do inconsciente oculta im pulsos reprimidos e ainda investidos de energia e que uma parte de sua lihido não se encontra mais à disposição do Eu O saudável é virtualmente um neurótico mas 28 A TERAPIA ANALÍTICA o sonho parece ser o único sintoma que ele é capaz de formar É verdade que se submetemos a exame mais apurado sua vida em estado de vigília descobrimos o que parece contradizer a impressão anterior que essa vida supostamente saudável está impregnada de um semnúmero de formações de sintoma pequenas e de pouca relevância prática Portanto a diferença entre a saúde nervosa e a neu rose limitase ao plano prático e é determinada pelo re sultado isto é se restou à pessoa capacidade suficiente para a fruição e a realização Provavelmente essa dife rença remete à proporção relativa dos dois montantes de energia o que permaneceu livre e o ligado à repres são sendo de natureza quantitativa não qualitati va Não preciso lembrálos de que essa percepção é que fundamenta teoricamente a nossa convicção de que em princípio as neuroses podem ser curadas Isso é o que podemos inferir quanto à caracteriza ção da saúde a partir do fato de serem idênticos os so nhos dos saudáveis e os dos neuróticos No tocante ao próprio sonho há também a conclusão de que não po demos desprendêlo de suas relações com os sintomas neuróticos que não devemos crer que sua natureza se esgotaria na fórmula que o define como uma tradução dos pensamentos numa forma arcaica de expressão e que temos de supor que ele nos mostra alocações da li bido e investimentos objetais realmente presentes Logo chegaremos ao final Talvez estejam decep cionados com o fato de num capítulo sobre a terapia analítica eu só ter lhes falado de coisas teóricas e não 111 TEORIA GERAL OAS NEUROSES sobre as condições para empreender o tratamento e os resultados que ele obtém Mas não abordarei esses dois temas O primeiro porque não é minha intenção lhes dar instruções práticas sobre o exercício da psicanálise o segundo porque motivos vários me impedem de fazê lo No início de nossas conferências desse ano cf fi nal do cap 16 enfatizei que sob condições favoráveis alcançamos êxitos que nada ficam a dever aos melhores no âmbito da medicina interna e talvez possa acrescen tar que nenhum outro procedimento teria logrado obtê los Se eu dissesse mais daria margem à suspeita de que desejo abafar com a propaganda as altas vozes dos detratores Contra a psicanálise colegas médicos já fizeram repetidas vezes também em congressos públi cos a ameaça de publicar uma coletânea dos fracassos e danos psicanalíticos a fim de abrir os olhos dos pacien tes para a inutilidade desse método de tratamento Mas à parte o caráter odioso e denunciatório de tal medida uma coletânea desse tipo não seria apropriada nem mes mo para possibilitar um julgamento correto da eficácia terapêutica da análise A terapia analítica ainda é jovem como os senhores sabem um longo tempo foi necessá rio para que se pudesse estabelecer sua técnica o que só podia ser feito durante o trabalho e com a experiên cia crescente Em razão das dificuldades de ensinála o médico iniciante na psicanálise depende em maior medida do que algum outro especialista de sua própria capacidade para se desenvolver e os resultados obtidos em seus primeiros anos jamais permitirão formular um julgamento sobre a eficácia da terapia analítica 6o6 28 A TERAPIA ANAlÍTICA Muitas tentativas de tratamento fracassaram na épo ca inicial da psicanálise pois foram feitas em casos que não se prestavam para o método e que hoje excluímos com base em nosso registro de indicações Mas só pu demos chegar a essas indicações através das tentativas De início não sabíamos que em suas formas mais pro nunciadas a paranoia e a dementia praecox são inacessí veis e tínhamos o direito de experimentar o método em todo tipo de afecção A maioria dos fracassos daqueles primeiros anos todavia não ocorreu devido à culpa do médico ou à escolha inapropriada do objeto e sim por condições externas desfavoráveis Tratamos aqui ape nas das resistências internas as do paciente que são inevitáveis e superáveis As resistências externas que são impostas à análise pela situação do doente por seu ambiente têm reduzido interesse teórico mas enorme importância prática O tratamento psicanalítico pode ser comparado a uma intervenção cirúrgica e como esta deve ser realizado com os preparativos mais favo ráveis para o sucesso Os senhores sabem que precau ções o cirurgião costuma tomar sala apropriada boa luz assistentes exclusão dos parentes etc Perguntem a si mesmos quantas cirurgias chegariam a bom termo se fossem realizadas na presença de todos os membros da família rodeando a mesa operatória e soltando gritos a cada incisão Nos tratamentos psicanalíticos a intro missão dos parentes constitui verdadeiro perigo com o qual não sabemos lidar Estamos preparados para as re sistências internas do paciente que reconhecemos como inevitáveis mas como nos defendermos das resistências 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES externas Não há esclarecimento que convença a fa mília do paciente não logramos induzila a manterse longe do tratamento e não podemos jamais nos aliar a eles pois então corremos o risco de perder a confiança do doente que com razão digase de passagem exige que seu homem de confiança tome o seu partido Quem conhece as dissensões que frequentemente atin gem uma família não pode como analista surpreender se com a percepção de que os mais próximos do doente por vezes não revelam tanto interesse em que se cure quanto em que permaneça como está Quando como é frequente a neurose está relacionada a conflitos en tre membros da família o familiar saudável não precisa pensar muito para decidir entre seu próprio interesse e o restabelecimento do doente Não surpreende afinal quando um marido não vê com bons olhos um trata mento em que como pode ele supor com razão será revelada toda a sua lista de pecados e tampouco nos surpreendemos com isso mas não devemos nos re criminar quando nosso esforço permanece infrutífero e é interrompido precocemente porque a resistência do marido vem se juntar à da mulher doente Sucedeu que pretendemos realizar algo que na situação existente era inexequível Em vez de um grande número de casos quero rela tar aos senhores apenas um em que a discrição médica me fez desempenhar um papel sofredor Há muito anos aceitei submeter a tratamento analítico uma jovem moça que fazia muito tempo não saía para a rua nem conse guia ficar sozinha em casa porque sofria de angústia 6o8 28 A TERAPIA ANALÍTICA Lentamente ela acabou por confessar que sua imagina ção havia sido tomada pela observação casual de uma troca de carinhos entre sua mãe e um abastado amigo da família De maneira inábil porém ou talvez refi nada a enferma deu à mãe uma indicação do que era abordado nas sessões de análise pois mudou seu com portamento em relação a ela insistindo em que apenas a mãe e nenhuma outra pessoa a protegesse da angústia de ficar sozinha e angustiada bloqueavalhe o cami nho até a porta quando ela queria sair de casa No pas sado também a mãe fora bastante neurótica mas havia encontrado a cura para seu problema numa instituição hidroterápica anos atrás Mas acrescentemos que nes sa instituição ela havia conhecido o homem com o qual iniciou um relacionamento que a satisfazia plenamente Surpresa com as tempestuosas exigências da filha a mãe compreendeu subitamente o significado daquela angús tia A filha adoecera para fazer dela uma prisioneira e privála da liberdade de movimentos necessária ao rela cionamento com o amado De forma rápida e resoluta a mãe pôs fim ao tratamento que lhe era prejudicial A moça foi enviada a uma instituição para doentes nervo sos e durante anos apresentada como pobre vítima da psicanálise Por todo esse período fui perseguido pela má fama que trouxe o infeliz desfecho desse tratamen to Guardei silêncio porque me julgava atado pelo de ver da discrição médica Muito tempo depois por meio de um colega que visitara a instituição e lá vira a moça agorafóbica soube que a relação da mãe com o abas tado amigo da casa era conhecida de todos e provavel 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES mente gozava da aprovação do marido e pai Assim o tratamento fora sacrificado a este segredo Nos anos anteriores à guerra quando a afluência de pacientes estrangeiros me tornou independente da sim patia ou antipatia de minha própria cidade eu seguia a regra de não tratar pacientes que não fossem sui juris ou seja que não fossem independentes nas questões es senciais da vida Não é algo que todo psicanalista pode se permitir Talvez os senhores concluam de minha advertência sobre os parentes que se deveria apartar os doentes de suas famílias para submetêlos a psica nálise limitando essa terapia portanto aos internos das instituições para doentes dos nervos Mas nisso eu não poderia concordar com os senhores é muito mais vantajoso que os doentes durante o tratamento caso não estejam numa fase de grave esgotamento sejam mantidos nas mesmas circunstâncias em que terão de enfrentar as tarefas que lhes cabem Os parentes toda via não devem anular essa vantagem com seu compor tamento nem de forma alguma adotar uma postura hostil ante os esforços médicos Mas como influir nesses fatores inacessíveis para nós Os senhores perceberão naturalmente como as perspectivas de um tratamento são determinadas pelo meio social e pela condição cul tural de uma família Isso nos oferece uma perspectiva sombria da eficácia da psicanálise como terapia não é mesmo Ainda que possamos explicar a maioria de nossos fracassos com base em tais fatores perturbadores externos Por isso amigos da psicanálise nos aconselharam a contrapor à 610 28ATERAPIA ANALÍTICA coleção de insucessos uma estatística dos êxitos por nós preparada Mas não concordei com a sugestão Lem brei que uma estatística não tem valor quando os itens nela reunidos não são suficientemente homogêneos e os casos de neurose tratados não eram de fato equiva lentes em variados aspectos Além disso o período que podia ser abarcado era demasiado breve para se avaliar a durabilidade da cura e muitos casos não podiam ser relatados Eram de pessoas que haviam mantido em se gredo tanto a doença como o tratamento e cuja recu peração devia igualmente permanecer em segredo O impedimento mais decisivo no entanto foi a percepção de que em questões de terapia as pessoas se compor tam de maneira bastante irracional de modo que não há perspectiva de obter algo com elas por meios racionais Uma novidade terapêutica é ou recebida com entusias mo inebriante por exemplo quando Koch apresentou ao público sua primeira tuberculina para a tuberculose ou tratada com a mais profunda desconfiança como foi a vacina de Jenner que embora verdadeiramente benéfica ainda hoje tem adversários irredutíveis Era evidente que havia um preconceito contra a psicanálise Quando curávamos um caso difícil podíamos escutar Isso não prova nada O paciente teria se recuperado por si durante esse tempo E quando um doente já tendo passado por quatro ciclos de depressão e mania veio se tratar comigo durante um intervalo após a me lancolia e três semanas depois iniciouse uma nova fase maníaca todos os seus familiares além de uma grande autoridade médica chamada para dar um pare 6n 111 TEORIA GERAL DAS NEUROSES cer mostraramse convencidos de que o novo ata que só podia ser consequência da tentativa de análise Contra preconceitos não há o que fazer nesse momento os senhores podem ver isso mais uma vez nos precon ceitos que um grupo de nações em guerra desenvolveu contra o outro O mais sensato é esperar deixando que o tempo os desgaste Um dia as mesmas pessoas pensa rão diferentemente sobre as mesmas coisas por que não pensaram assim antes eis um profundo mistério É possível que o preconceito contra a terapia analíti ca já esteja diminuindo A difusão constante das teorias psicanalíticas e o aumento do número de médicos que usa o tratamento analítico em vários países parecem garantilo Quando eu era um jovem médico presenciei uma semelhante tempestade de indignação dos médicos contra o tratamento por sugestão hipnótica que atual mente os sóbrios opõem à psicanálise Como agen te terapêutico todavia a hipnose não cumpriu a pro messa inicial nós psicanalistas podemos nos declarar seus legítimos herdeiros e não esquecemos o estímulo e o esclarecimento teórico que devemos a ela Os da nos atribuídos à psicanálise limitamse no essencial a manifestações passageiras de conflito intensificado quando a análise é conduzida com imperícia ou quando é interrompida no meio Os senhores foram aqui infor mados sobre o que fazemos com os pacientes e podem julgar por conta própria se o nosso trabalho pode levar a danos permanentes O mau uso da análise é possível de variadas formas a transferência em especial é um instrumento perigoso nas mãos de um médico não cons 62 28 A TERAPIA ANALÍTICA ciencioso Mas nenhum instrumento ou procedimento médico está a salvo do mau uso quando um bisturi não corta também não pode servir para curar Cheguei ao fim senhoras e senhores É mais do que uma frase convencional se reconheço que estou plena mente cônscio dos muitos defeitos destas conferências Lamento acima de tudo haver muitas vezes prometido retomar um assunto apenas esboçado e depois o con texto não haver permitido que eu cumprisse a promes sa Propusme informar os senhores sobre uma matéria inacabada ainda em desenvolvimento e o meu próprio resumo se mostrou incompleto Em várias passagens tinha pronto o material para tirar uma conclusão e aca bei não o fazendo Mas não podia querer transformálos em especialistas quis apenas oferecerlhes esclareci mento e estímulo 613 ÍNDICE REMISSIVO AS INDICAÇÕES NA E NTOESIGNAM AS NOTAS DO AUTOR E DO TRADUTOR RESPECTIVAMENTE ÍNDICE REMISSIVO Abel K 241 310 Abraham 435 549 abstinência 514 532 74 Acádia 217 Adler 321 504 538 adoecimento orgânico 388 51 554 adolescente 538 Adriano imperador 114 adultos 117 1701 179 183 2778 2802 JI7 419 422 42 433 442 444 446 469 4802 4902 28 412 50 afetos afetivos afetivas 22 28 31 33 90 1201 146 273 28991 322 326 338 3678 390 446 19 22 530 34 42 54 69 África 178 Afrodite I4NT agitação 367 61 333 agorafobia 353 361 529 agressão agressivo 534 539 Albert príncipe 149 Alemanha 219 alemão 32 42 104 160 242 Alexandre o Grande 23 113 319 alucinatórias 138 172 1745 183 288 amamentação 473 485 ambiguidades 212 310 3123 478 523 ambivalência 66 587 América 343 amnésia 26970 274 37780 41 433 575 amor amorosos amorosas 34 O 132 14 184 1868 238NA 26 2589 267 27 9 282 284 326 332 334 3368 380 384 40 408 438 444 457 469 498 00 14 41 5490 2 61 64 71 84 90 amuletos 222 analogias 68 89 141 IO 183 241 311 323 329 339 3667 382 41 00 14 536 Ananke 472 68 AndreasSalomé 418 Angst 5234 angústia 15 121 256 289 291 4 296 299 36 362 364 38 398 483 167 19 26 2839 41 62 69 579 589 593 6o8 ver tam bém medo animal animais 174 206 210 216 223 232 212 281 380 471 480 491 494 IO 212 2 289 548 Anna M 237NA Anna 0 366NT ansiedade 31 533 5378 541 Antarctic Nordenskjõld 177 Antiguidade 78 2202 445 antropologia 22 3 Antropophyteia KrauB 219 ânus anal anais 404 419 423 4347 457 ÍNDICE REMISSIVO aparelho psíquico 455 474 498 ver também psique vida psí quica apotropaea 222 Aristandro 319 Aristóteles n6 Arriano 24 arte artístico 51 229 363 419 43 439 498 OI Artemidoro de Daldis II4 319 assíriobabilônicas inscrições 314 associação livre ver livre asso ciação Atena I4NT atos falhos 31 35 3740 45 7 49 514 86o 62 6 75 7882 890 934 96 7 1002 I04 1078 III2 n6 118 1345 13840 143 151 173 176 183 260 318 32 344 360 02 603 audição 32 90 Aussee 169 Áustria 3 55 autoconservação 467 472 509 521 544 5478 6 689 autoerotismo autoerótica 318 417 422 437 486 491 o ver também masturbação Back G 178 bebês 139 217 272 417 422 3 525 Behandeling van Zenuwielcen door PsychoAnalyse De Meijer 14 beijo JI8 402 427 430 Bela Helena A Offenbach 14í beleza 75 121 175 benefício da doença 50710 Bernheim 138 148 370 591 594 bexiga 127 418 Binz 114 biologia 26 547 bissexual 212 321 Bleuler 146 66 boca 2ro 403 416 435 471 Bocklin 232 Bôlsche 471 BorchJacobsen 366NT Breuer uoNA 343 36o 365 367 3724 388 391 594 Brill 70NA 74NA Bruegel 404 brutalidade 197 Canção de Páris Offen bach 145 Cântico dos Cânticos 218 Carlos rei 266 casamento 70 73 77 150 165 237 272 298 30 332 339 30 36 367 446 470 07 573 84 Caso Schreber Freud 22NT castração 2n 223 258 359 490 493 cegonha 217 275 422 células nervosas 452 censura 183 18791 193 198 ÍNDICE REMISSIVO 200 2289 233 240 268 271 280 28 287 289 2917 316 395 44 478 48 554 67 censura do sonho 183 18891 2289 233 240 287 289 2934 316 ver também in terpretação dos sonhos trabalho do sonho so nhos centauros 232 cérebro 189 563 cerimonial obsessivo 346 352 9 361 378 397400 5 594 César e Cleópatra Shaw 71 chinesa língua e escrita 3 u chistes 67 158 214 217 223 23 3189 ciência 16 26 29 34 46 67 79 1II 1J4 134 136 207 314 p6 380 398 403 414 439 44 I 552 6o 76 ciências humanas 227 Cinco lições de psicanálise Freud IIONT ciúme 219 267 332 335 337 339 387 432 61 86 claustrofobia 361 clitóris 209 356 422 cobras 527 coito 263 423 491 532 coletividade 572 Colombo 34 3 complexo da castração 280 421 ver também castração complexo de Édipo 27980 43841 443 4468 40 482 condensação 54 2313 240 24 27 270 318 39 477 487 18 conflitos o 812 96 276 280 327 442 4646 468 470 4768 484 4967 499 503 o6 o8 1o 548 5567 66 5723 575 579 81 589 592 596 599602 6o8 612 cônjuge o 166 193 274 332 571 consciência consciente 16 28 9 11 199 22 255 28 299 331 338 3701 373 383 3905 409 441 447 46 4779 534 38 67 5735 581 590 6oo conscientes atos e processos 28 11 268 272 3714 379 393 408 488 496 499 conteúdo inconsciente 156 19 577 579 conteúdo latente 2 30 322 conteúdo manifesto 11 16o 163 176 181 192 230 239 264 JO J22 J6J contos de fada 2145 225 253 contrainvestimento 478 544 5789 Contribuição à história do movi mento psicanalítico Freud lONA Copérnico 380 coquetismo 443 67 ÍNDICE REMISSIVO Corinto 219 corpo humano 205 210 214 341 crianças 33 104 112 u7 r 17 16771 174 183 212 21 2179 262 26970 272 2746 279 281 304 353 37 366 401 40 4127 41924 427 430 432 438 4414 4469 461 4689 472 479 482 4913 29 53742 ver tamhém infância infantil infantis crimes 34 66 197 235 345 439 440 446 crueldade 197 434 culpa r6 ror 137 258 264 294 441 488 6 6o7 cultura cultural culturais 29 30 198 33 403 459 33 6ro cuneiforme escrita 3rr 314 cura 475 o 8 572 575 580 589 592 6oo 603 6o9 6u Dachstein r69 Darwin ro3 38o 27 Dattner 72NA dedos 54 83 rr 170 357 43 490 defecação 418 delírios delirantes 33 m rr3 33540 3423 o 61 64 67 dementiapraecox 360 p8 549 p8 61 8o 607 dentes 127 2u 223 251 253 6 382 depressão 6u desejos 22 27 59 76 8 89 96 99 104 IJ2 1717 17981 183 1925 197200 209 212 2J0 232 248 2J 6 289 2623 267 2714 276 2788o 2823 285300 3037 J22 337 339 31 39 363 386 395 397400 40J 405 4I0 42I 440 443 4469 459 464 478 489 493 495 499 503 14 48 I 554 5667 70 585 603 6o6 deslocamento r89 234 235 270 294 315 319 3J8 346 39 477 487 496 18 38 desprazer desprazerosos 101 3 289 2923 29 4734 476 498 508 5234 Deus deuses 1412 1578 185 404 440 445 Diderot 449 dinheiro 69 104 1646 188 195 237NA 24 297 382 418 507 591 Diodoro 24 distração 367 589 61 76 Divã ocidentaloriental Goe the m dobretes 239 doenças doentes 19 212 26 29 107 1103 225 228 248 25 327 331 334 342 6 348 353 3617 3717 37938143869039741043845746124756483487950050350512514517520526529305325345557560356675713575658025855889593559760160360711 ÍNDICE REMISSIVO fantasias 15 94 1312 1778 867 22 2J2 307 338 J46 31 389 401 406 410 417 478 4879 491 oo 0 18 598 6oo faraó 220 Farina G M 122 Fechner 119 femininos femininas 43 144 2103 216 220 222 289 261 321 339 367 39 422 434 470 490 491 I Ferenczi 467 fetichistas 405 463 fezes 418 filhas 448 212 272 2767 279 340 353 359 4423 448 46870 8 6o9 filhos 44 104 159 184 192 3 206 2123 21 2J7NA 20 24 28 2612 272 2769 297 317 332 38 397 4424 448 469 553 62 filosofia filósofos 26 61 115 131 204 física 26 fixação fixações 364 366 368 423 45 47 4601 463 4678 47780 483 488 4956 o 5578 65 Flaubert 404 Fliegende Bliitter 36 lO FlieB W 425 fobias p63o 534 537 53944 folclore 214 223 227 fome 177 179 237 259 415 54 i Fontane 494 França 6 159 Franklin 178 Freuds Neurosenlehre Hitsch mann 14 Furcht 23 gatos 5279 genital genitais 127 2067 210 2123 218 2202 227 28 2612 2812 36 402 404 409 412 417 41921 42 4278 430 4326 46 459 463 468 471 ver tam bém organização genital glândulas sexuais 451 Goethe I 449 553 Grundrüge der Psychoanalyse Kaplan 14 guerra 20 49 6 9 Ioo 197 8 366 438 o 62 610 612 Guido são 115 Hall S p6 544 Hallstatt 169 Hamlet Shakespeare 218NT 446 hebraico 17 Helena 14NT Hera 14NT hereditariedade 336 340 479 Heródoto 219 heróis 217 Hesnard 14 ÍNDICE REMISSIVO hieroglífica escrita 3 I oI Hildebrandt I23 Hincks 3I4 hipnose hipnóticos hipnó tica I384o I94 3889 59I 5937 612 hipocondria I6 p8 555 hipocrisia I97 histeria histéricos histéri cas I 23 32I 3435 348 360 362 36 367 373 378 8o 38 398 400 402 409 430 467 479 483 498 o2 o I3 I78 524 30 533 4I 549 568 66 80I 593 História Heródoto 2I9NT Hitschmann 14 Hoffmann dr 490 homem homens 73 934 I32 I38 144 I656 I92 I978 2069 2I2 2I6 2I8 220 2267 24I 250 23 289 26 27I2 28I 292 297 JI78 32I 334 340 349 31 3579 36 380 384 386 403 4089 42I 438 4I 445 449 463 468 470 494 499 507 11 li 523 289 3I2 37 48 64 7I 573 583 86 6o89 Homero p homofonia 2 3 homossexualidade homosse xual homossexuais 4034 4089 4I9 62 64 86 Hórus 435 Ics sistema 454 Id I6 Idade Média 114 Ilíada Homero INT Iluminismo 114 ilusão 64 imagens mnemônicas 244 mago 226NT 227 impotência 3I 386 397 440 484 32 impulsos I7 22 2930 IOJ I99 27 277 280 282 284 2878 304 J20I 34 6 369 37I 374 39I 393 396 40812 4I 4334 436 7 440I 446 449 4579 46870 478 49 24 34 42 62 64 723 78 87 89 604 incesto incestuosos inces tuosa I92 28I 2834 445 o 454 456 inconsciente o I4 29 I23 I I76 204 27I 273 284 6 296 306 3I8 338 344 364 3702 374 J76 380 383 39I 409 44I2 455 6 4778 486 496 024 I 424 4 6 73 575 5778 9I 598 6oo 602 604 inconscientes atos e proces sos 289 I6I I66 I94 I96 I99200 224 247 25 286 30 307 34I 343 3704 379 393 395 44I 470 495 6 oo p8 542 ÍNDICE REMISSIVO infância infantil infantis ro3 121 123 132 168 1702 176 179 181 I8J 209 217 230 2556 28 268 71 276 27888 29J 304 307 J4 32 359 366 378 401 412 414 417 4194 4289 4314 437 4439 467 470 473 4798 487 90 492 5379 5412 61 67 571 8o ver também crianças inglês 3 158 242 463 inibição inibições inibidos 263 364 40I 484 499 instintos instintual instin tuais 16 2930 179 213 304 J20I J2 3 407 413 41 417 420 4289 4348 447 449 42 46 460 462 466 470 4724 479 481 486 493 49 4978 09 21 53940 5448 550 5556 689 76 86 89 inteligência IO 574 78 8o 599 interpretação dos sonhos 14 II4 160 194 196 1989 201 203 247 261 274 286 299 309 314 319 382 6o4 ver também censura do sonho trabalho do sonho sonhos Interpretação dos sonhos A Freud 230 307NT intestino 128 418 423 investimentos 449o 4778 482 4967 489 I2 4 557 61 590 593 6o irmãs 75 77 192 195 265 276 422 4446 irmãos ro2 158 161 173 192 3 19 206 26 2747 2823 422 4434 Janet 3434 Jenner 6u Jones 74NA 75 judeus 16 2178 250 jung 69NA I46 360 496 46 Kaplan 14 Karl M 237NA Klementine K 237NA Koch 6u Konig Karls Meerfohrt Uhland 266 KrauB F S 219 lactentes 4152o 429 4312 437 lapsos 312 36 38 403 45 9 I6 68 79 827 90 6 134 138 J4I 199 2J2 JI8 latência 2oo 4334 437 441 latim 242 524 62 leite 485 leitura 32 40 I 8 90 94 96 314 lembranças 98 IOI 103 II2 121 IJ8 1490 13 88 249 22 255 266 26971 ÍNDICE REMISSIVO 273 337 30 32 355 37 369 3789 383 39I2 400 4I2 444 484 486 4889I r8 82 88 59 I Levy L 2I9 libido libidinal libidinais I92 3I8 4I 424 4346 4470 45368 470I 47583 48 8 497 499 023 123 I6 I8 JI6 53846 482 5549 612 645 689 572 5757 8o 8 899I 593 6oo Lichtenberg r 95 Lieheslehen in der Natur Das Bolsche 47INT Lindner 4I67 linguagem 2I 220 226 228 9 268 3I2 23 I línguas 2I 22I 224 24I3 247 310 3I3 linguística 223 227 239NT livre associação I43 I47 II 134 176 190 202 603 Lõwenfeld 32 7 Luís XIV I36NT Macheth Shakespeare 128 mãe 73 192 195 2157 250 27 27I2 274 2767 279 337 340 353 3586o 378 398 416 42J 43841 443 446 4489 461 490 2 39 64 609 Maeder 74NA 77 320 mamíferos 2I6 4I 25 mania 381 410 66 611 mãos 120 214 265 maridos 46 68 70 77 83 I30 I637 195 2I9 2378 260 272 292 2967 304 3323 336 33840 30I 38 36 367 369 397 408 507 JI2 6o8 6Io masculinos masculinas 207I3 2202 27 26I 32I 39 42I 423 434 41 492 r 86 masoquistas 405 masturbação masturbatório masturbatória 2II 223 267 263 40I2 4IO 4I7 420I 432 469 492 n Maury 115 I22 I2 Mayer 4I2 57 mecônio 25 Médecin malgré fui Le Mo liere 375NT medicina I921 267 I I70 2I 320 34I2 I6 po 6o6 médicos I4 223 26 70 93 99 III II34 I2J I84 I93 27I 32I2 J2 327 329JI 333 349 374 382 3867 389 438 440 475 490 o68 I2 I6 19 2 32 62 64 57I3 8090 592 594 5969 6oi3 6o67 610 6I23 medo 256 257 260 265 267 29 3II 356 38 4IO 2I 23 2 537 53940 6o2 ver também angústia Neveu de Rameau Le Diderot 449 Nimrod 25 nojo 281362404418 nomes 32364456707990951002143414850265347518526 Nordenskjöld 177 Novo Testamento 218 medulla oblongata 520 Meijer 14 melancolia 5656 611 Melissa lenda de 219 memórias 3258899010121131211381862692733313779433444577599 ÍNDICE REMISSIVO pensamentos oníricos 151 1602 1646 1712 188200 202 205 230 234 236 23840 2448 250 255 2623 268 286 290 297 3012 3046 30810 320 perda de objetos 33 79 105 Periandro lenda de 219 perigo 30 38 294 300 374 387 453 481 505 5214 5278 5301 536 5401 5434 569 574 598 607 personalidade 16 23 25 249 320 4646 553 561 582 perversão perversões perversos perversas 2813 4035 40713 41920 42430 433 44950 457 467 471 477 549 pés 124 355 358 463 Pfister 14 315 phallus impudicus 222 piano 115 120 130 170 211 Piccolomini Schiller 48 plantas 213 354 356 431 Platão 197 Plutarco 242 319 Poincaré 56 polissemia 235 poluição 179 povos primitivos 340 445 prazer prazerosas 57 192 206 211 277 282 291 298 304 319 345 4023 405 41620 427 42932 4367 459 4734 491 4935 498501 523 547 582 ver também princípio do prazer préconsciente 318 3935 454 456 478 573 princípio do prazer 4734 477 486 506 ver também prazer prazerosas projeção 339 543 550 ver também transferência provérbios 1745 214 225 3123 psicanálise 14 16 1931 33 35 5960 634 70 74801 118 134 136 146 176 1978 204 207 209 2268 246 25960 315 323 3256 336 3401 3434 348 372 380 385 389 3989 417 419 424 4324 4389 449 462 4656 473 500 502 504 513 515 520 524 532 547 54960 5667 570 575 584 5968 6067 60910 612 psicanalistas 24 184 209 221 319 329 3601 381 396 524 560 610 612 psicologia 26 28 80 89 100 112 122 131 142 146 227 247 284 288 315 317 371 395 441 493 524 5434 559 Psicopatologia da vida cotidiana Freud 74 psicoses 348 549 560 568 psique 17 27 89 111 11921 126 240 285 336 371 381 395 5134 579 ver também ÍNDICE REMISSIVO aparelho psíquico vida psíquica psiquiatras 27 41 48 II2 3346 341 343 401 6o psiquiatria 21 23 27 III 227 325 336 340 343 3478 371 58 561 Psychoanafyse des névroses et des psychoses La Régis Hes nard 14 Psychoanafytische Methode Die Pfister 14 puberdade 132 223 256 281 365 4134 420 423 434 445 447 463 484 491 533 punição 71 237NA 238NA 295 299 química 21 26 64 15 racional racionais 161 253 285 306 3534 p1 611 raiva 272 534 Rank 49 179 217 228 249 280 448 ratos 5278 Rawlinson 314 Régis 14 regressão regressivo regres sivas 244 246 250 268 287 302 40 437 476 8 482 4846 542 545 Reitler 76NA religião religioso religiosa 3 5 67 123 227 229 20 23 255 441 I renúncias 277 345 357 389 repressão repressões repri midos reprimidas 87 8 187 282 293 306 317 381 3916 398 400 433 438 4547 467 4779 484 496 499 023 08 34 42 554 557 62 67 72 57580 8990 592 596 59960 resíduos diurnos 286 3067 321 395 554 resistências 29 634 86 91 II3 1546 159 190 204 229 280 284 288 p6 3378 371 3803 38591 394 396 412 421 438 43 46 463 46 48 497 02 04 08 554 60 57780 83 87 89 592 597 599600 6078 Riviera 149 Roma 71 75 Roux 480 Royal Asian Society 314 Sachs 228 278 sadismo sádicos sádica 405 410 423 4346 47 sangue 37 423 524 527 Sargão da Acádia rei 217 satisfação satisfações 2930 IJ2 174 177 179 183 187 193 29 281 30 318 339 397401 4068 4102 415 7 419 422 4267 4J2 441 453 4586o 4645 469 474 4769 487 491 4948 ÍNDICE REMISSIVO o6 u 513 518 529 532 540 54 547 549 2 565 571 582 589 592 6012 saúde 55 57 6o 6 99 506 38 6045 Scherner 127 204 206 214 Schiller 40 48 Schreck 523 Schubert G H von 221 Schwind 180 182 Secrets dAnna O BorchJacob sen 366NT sede 177 179 seios 210 213 215 265 4167 423 437 4856 sensualidade sensual 2 572 8 sentimentos 167 101 n89 186 196 199 21 2 273 276 278 284 383 386 414 429 441 4434 469 21 27 30 38 66 583 585 5878 ser humano 100 II5 135 137 198 216 284 301 404 421 445 466 471 473 475 494 506 10 548 590 sexualidade sexual sexuais 2930 177 179 192 19 197 20614 21820 2223 2257 229 256 25863 271 2778 2803 285 298 304 321 33940 352 3566o 397417 41938 442 4478 412 454 46 48 63 467 47981 4836 4904 497 034 10 18 313 540 52 555 6 63 6 72 574 86 7 91 98 Shakespeare 49 128 Shaw 71 276 Silberer po 403 simbolismo símbolos 200 20222 229 239 243 250 258 2601 265 267 8 297 3089 350 3567 359 6oo Simbologia sexual da Bíblia e do Talmud N Levy 219 sintomas 213 27 101 uo 228 247 303 321 323 334 3424 3469 352 356 359 63 3656 368 37182 386 388 3901 394402 40710 412 415 424 431 450 4578 464 4756 4789 4859 496 498 500 502 5046 o813 I 5178 20 no 5336 38 58 5601 572 5757 589 591 5934 596 6015 Sobre o sentido antitético das palavras primitivas Freud 241NT sociedade humana 283 413 Sófocles 43940 sofrimentos 278 334 353 475 485 506 508 sonambulismo 138 Sonho do prisioneiro Schwind 180 182 sonhos 14 no6 n835 137 13943 1478 15063 16 ÍNDICE REMISSIVO 81 18397 199209 211 21322 225 22740 24374 276 278 283311 313 316 23 325 344 3501 360 3634 366 372 383 395 3967 415 439 449o 478 482 487 495 499 502 504 544 551 5545 6035 ver tamhém censura do sonho interpretação dos sonhos trabalho do sonho sono 1159 1213 126 129 131 1389 16975 17880 183 1924 199 286 288 2934 322 3523 356 361 395 478 551 5546 604 sons 434 54 61 226 310 312 Sperber 226 Starcke 74NA Stekel 321 Struwwelpeter Hoffmann 490 sublimação 45960 497 499 5J2 602 sugar ação de 416 sugestão 40 5914 596602 612 Suíça 315 suicídio 66 Supereu 16 superstição 79 114 Talbot F 314 Tannhiiuser Wagner 426 técnica psicanalítica 95 176 299 59 Tentação de Santo Antônio A Bruegel 404 ternura 73 272 2779 337 340 432 441 443 446 Terra 196 220 266 J80 494 m Tiro cidade de 1134 319 tontura 530 topofobia 361 Totem e tahu Freud J40NA 441 toxinas 5145 trabalho analítico 356 371 389 559 8J 589 599 trabalho do sonho 128 161 183 190 225 22932 2 J4 2368 2406 248 250 254 26 268 285 2878 290 3012 308 JIO 312 319 20 322 ver tamhém censu ra do sonho interpretação dos sonhos sonhos transferência 281 386 398 408 447 454 456 466 502 510 513 517 5478 556 86o 568 570 58590 5923 5978 6oo3 612 ver tamhém projeção trauma traumáticos trau máticas 364 3668 375 461 480 482 o tremedeira no tuberculose 611 Über den Einfluss sexueller Momente auf Entstehung und Entwicklung der Spra che Sperber 226NT Uhland 266 ÍNDICE REMISSIVO umbigo 423 urina 435 vagina 263 404 4I9 42I vestígios diurnos ver resíduos diurnos vida humana 17 r9r vida psíquica 23 26 28 8o 89 94 103 II4 II6 II89 137 142 147 169 196 198 200 228 2467 273 27980 284 296 323 337 341 3467 371 37980 395 417 45 464 466 493 509 I 20 546 48 559 68 76 88 596 6o4 ver também psique vida sexual 30 197 2067 219 26 281 283 28 298 304 32 357 360 397 401 403 407 4II2 414 417 419 20 424 427 429 4326 rr2 JI 5456 574 ver também sexualidade sexual sexuais vigília rr9 ur 174 193 197 224 228 234 21 278 286 306353 594 6o Vold rr 122 209 322 Von Brücke 451 Von HugHellmuth dra r84NT Wagner 426 Wallace 380 Wallenstein Schiller 489 Wit1ige und satirische Einfalle Lichtenberg r Zola 348 zonas erógenas 4168 427 435 437 14 ESTA OBRA FOI COMPOSTA EM FOURNIER E CONDUIT POR CLAUDIA WARRAK E IMPRESSA EM OFSETE PELA GEOGRÁFICA SOBRE PAPEL PÓLEN SOFT DA SUZANO PAPEL E CELULOSE PARA A EDITORA SCHWARCZ EM JANEIRO DE 2017 Digitalizado para PDF por Zekittha Brasília 2272017 fj FSC MISTO p FSCO C018498 A marca Fsc é a garantia de que a madeira utilizada na fabricação do papel deste livro provém de florestas que foram gerenciadas de maneira ambientalmente correta socialmente justa e economicamente viável além de outras fontes de origem controlada SIGMUND FREUD ORBAS COMPLETAS VOLUME 13 CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 19151917 TRADUÇÃO SERGIO TELLAROLI