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Daniela Arbex HOLOCAUSTO BRASILEIRO VIDA GENOCÍDIO E 60 MIL MORTES NO MAIOR HOSPÍCIO DO BRASIL Prefácio de ELIANE BRUM GERAÇÃO Quer mais livros para download wwwDownloadLivrocom Daniela Arbex Holocausto brasileiro GERAÇÃO Copyright 2013 by Daniela Arbex 1ª edição Maio de 2013 Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009 Editor e Publisher Luiz Fernando Emediato Diretora Editorial Fernanda Emediato Editor Paulo Schmidt Produtora Editorial e Gráfica Erika Neves Capa Alan Maia Projeto Gráfico e Diagramação Ilustrarte Design e Produção Editorial Preparação de Texto Vinicius Tomazinho Revisão Josias A Andrade Marcia Benjamim Conversão para epub Obliq Press Dados internacionais de catalogação na publicação cip Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Arbex Daniela Holocausto brasileiro Daniela Arbex 1 ed São Paulo Geração Editorial 2013 ISBN 9788581301563 1 Direitos humanos Violação 2 Genocídio 3 Hospitais psiquiátricos 4 Hospital Colônia Barbacena MG História 5 Livroreportagem 6 Pacientes hospitalizados Maustratos I Título 1305380 CDD07044936221 Geração Editorial Rua Gomes Freire 225 Lapa CEP 05075010 São Paulo SP Telefax 55 11 32564444 Email geracaoeditorialgeracaoeditorialcombr wwwgeracaoeditorialcombr twitter geracaobooks Este livro é dedicado a milhares de homens mulheres e crianças que perderam a vida num campo de concentração chamado Colônia Ao meu marido Marco por tornar meus sonhos possíveis Ao meu filho Diego a melhor parte de mim Sumário Agradecimentos Prefácio I O Pavilhão Afonso Pena II Na roda da loucura III O único homem que amou o Colônia IV A venda de cadáveres V Os meninos de Oliveira VI A mãe dos meninos de Barbacena VII A filha da menina de Oliveira VIII Sobrevivendo ao holocausto IX Encontro desencontro reencontro X A história por trás da história XI Turismo com Foucault XII A luta entre o velho e o novo XIII Tributo às vítimas XIV A herança do Colônia Agradecimentos À minha mãe Sônia e meu padrasto Francisco fortalezas em meu caminho A meu pai José Arbex meu adorável fã número um À Isabel Salomão de Campos por me ensinar que o bem e o amor ao próximo são passaportes para a verdadeira felicidade Ao jornalista Lúcio Vaz por sua generosidade Ao fotógrafo Roberto Fulgêncio por quase duas décadas de parceria profissional Ao Juracy Neves diretorpresidente da Tribuna de Minas por ser um dos primeiros a me incentivar a escrever e por ter me dado a oportunidade de publicar no jornal esta e outras grandes histórias Aos jornalistas Marise Baesso Lilian Pace e Paulo César Magella pela amizade apoio e compreensão À Fundação Municipal de Cultura de Barbacena Fundac pela cessão das fotos de Luiz Alfredo Ao médico Ronaldo Simões e ao fotógrafo Luiz Alfredo por terem confiado a mim suas histórias Especialmente à Denise Gonçalves por seu incomparável talento e dedicação a este projeto O Prefácio repórter luta contra o esquecimento Transforma em palavra o que era silêncio Faz memória Neste livro Daniela Arbex devolve nome história e identidade àqueles que até então eram registrados como Ignorados de tal Eram um não ser Pela narrativa eles retornam como Maria de Jesus internada porque se sentia triste Antônio da Silva porque era epilético Ou ainda Antônio Gomes da Silva sem diagnóstico que ficou vinte e um dos trinta e quatro anos de internação mudo porque ninguém se lembrou de perguntar se ele falava São sobreviventes de um holocausto que atravessou a maior parte do século XX vivido no Colônia como é chamado o maior hospício do Brasil na cidade mineira de Barbacena Como pessoas não mais como corpos sem palavras eles que foram chamados de doidos denunciam a loucura dos normais As palavras sofrem com a banalização Quando abusadas pelo nosso despudor são roubadas de sentido Holocausto é uma palavra assim Em geral soa como exagero quando aplicada a algo além do assassinato em massa dos judeus pelos nazistas na Segunda Guerra Neste livro porém seu uso é preciso Terrivelmente preciso Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros do Colônia Tinham sido a maioria enfiadas nos vagões de um trem internadas à força Quando elas chegaram ao Colônia suas cabeças foram raspadas e as roupas arrancadas Perderam o nome foram rebatizadas pelos funcionários começaram e terminaram ali Cerca de 70 não tinham diagnóstico de doença mental Eram epiléticos alcoolistas homossexuais prostitutas gente que se rebelava gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder Eram meninas grávidas violentadas por seus patrões eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante eram filhas de fazendeiros as quais perderam a virgindade antes do casamento Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos Alguns eram apenas tímidos Pelo menos trinta e três eram crianças Homens mulheres e crianças às vezes comiam ratos bebiam esgoto ou urina dormiam sobre capim eram espancados e violados Nas noites geladas da serra da Mantiqueira eram atirados ao relento nus ou cobertos apenas por trapos Instintivamente faziam um círculo compacto alternando os que ficavam no lado de fora e no de dentro na tentativa de sobreviver Alguns não alcançavam as manhãs Os pacientes do Colônia morriam de frio de fome de doença Morriam também de choque Em alguns dias os eletrochoques eram tantos e tão fortes que a sobrecarga derrubava a rede do município Nos períodos de maior lotação dezesseis pessoas morriam a cada dia Morriam de tudo e também de invisibilidade Ao morrer davam lucro Entre 1969 e 1980 1853 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para dezessete faculdades de medicina do país sem que ninguém questionasse Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu os corpos foram decompostos em ácido no pátio do Colônia na frente dos pacientes para que as ossadas pudessem ser comercializadas Nada se perdia exceto a vida Pelo menos trinta bebês foram roubados de suas mães As pacientes conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a barriga para não serem tocadas Mas logo depois do parto os bebês eram tirados de seus braços e doados Este foi o destino de Débora Aparecida Soares nascida em 23 de agosto de 1984 Dez dias depois foi adotada por uma funcionária do hospício A cada aniversário sua mãe Sueli Aparecida Resende epilética perguntava a médicos e funcionários pela menina E repetia Uma mãe nunca se esquece da filha Só muito mais tarde depois de adulta Débora descobriria sua origem Ao empreender uma jornada em busca da mãe alcançou a insanidade da engrenagem que destruiu suas vidas Esta é a história que Daniela Arbex desvela documenta e transforma em memória neste livroreportagem fundamental Ao expor a anatomia do sistema a repórter ilumina um genocídio cometido sistematicamente pelo Estado brasileiro com a conivência de médicos de funcionários e também da sociedade É preciso perceber que nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a nossa omissão menos ainda uma bárbara como esta Em 1979 o psiquiatra italiano Franco Basaglia pioneiro da luta pelo fim dos manicômios esteve no Brasil e conheceu o Colônia Em seguida chamou uma coletiva de imprensa na qual afirmou Estive hoje num campo de concentração nazista Em lugar nenhum do mundo presenciei uma tragédia como esta Quando começou a apurar a série de reportagens que marcariam o nascimento deste livro Daniela descobriuse diante de um impasse Seu filho Diego tinha apenas quatro meses de vida Ela tinha acabado de virar mãe ainda amamentava e colocavase por vontade própria no parapeito do horror A repórter sabia que mergulharia no inferno e de novo aqui o inferno não é uma hipérbole Sabia também que no inferno não há fim de expediente Um repórter quando faz bem o seu trabalho é assinalado pelo que vive A dor só vira palavra escrita depois de respirar dentro de cada um como pesadelo Como repórter experiente que pela qualidade de suas matérias ganhou os principais prêmios nacionais e internacionais de jornalismo Daniela sabia o que se estendia diante dela E mesmo assim fez a sua escolha E o filho Diego se orgulharia dela Depois da série de reportagens publicada na Tribuna de Minas de Juiz de Fora Daniela seguiu investigando Viajava noventa e cinco quilômetros até Barbacena todas as manhãs e voltava à tarde já exausta pelo que viu e ouviu para iniciar a rotina no jornal Entrevistou mais de cem pessoas parte delas nunca tinha contado a sua história Além de sobreviventes do holocausto Daniela escutou o testemunho de funcionários e de médicos Um deles Ronaldo Simões Coelho ligou para ela meses atrás Meu tempo de validade está acabando Não quero morrer sem ler seu livro No final dos anos 70 o psiquiatra havia denunciado o Colônia e reivindicado sua extinção O que acontece no Colônia é a desumanidade a crueldade planejada No hospício tirase o caráter humano de uma pessoa e ela deixa de ser gente É permitido andar nu e comer bosta mas é proibido o protesto qualquer que seja a sua forma Perdeu o emprego Umas poucas vezes os esqueletos do Colônia subiram à superfície Passada a comoção pública voltavam ao fundo empurrados pelas pedras de sempre Em 1961 a rotina do hospício foi contada na revista O Cruzeiro pelo fotógrafo Luiz Alfredo e pelo repórter José Franco O título da matéria era A sucursal do inferno Em 1979 o repórter Hiram Firmino e a fotógrafa Jane Faria publicaram a reportagem Os porões da loucura no Estado de Minas O documentário Em nome da razão de Helvécio Ratton filmado em 1979 tornouse um símbolo da luta antimanicomial No início dos anos 60 ao voltar para a redação de O Cruzeiro depois de conhecer a Colônia o fotógrafo Luiz Alfredo desabafou com o chefe Aquilo não é um acidente mas um assassinato em massa Apesar da denúncia estampada na revista de maior sucesso da época a realidade só começaria a mudar lentamente duas décadas mais tarde a partir dos anos 80 quando a reforma psiquiátrica ganhou força Hoje restam menos de 200 sobreviventes Parte deles morrerá internada parte tenta inventar um cotidiano em residências terapêuticas com os farrapos de delicadeza que lhe sobram Como Sônia Maria da Costa que às vezes coloca dois vestidos porque passou a vida nua Neste livro Daniela Arbex salvou do esquecimento um capítulo da história do Brasil Agora é preciso lembrar Porque a história não pode ser esquecida Porque o holocausto ainda não acabou Eliane Brum São Paulo 5 de fevereiro de 2013 Fotos de 1961 Luiz AlfredoFundação Municipal de Cultura de Barbacena O Pavilhão Afonso Pena O antigo Arraial da Igreja Nova de Nossa Senhora da Piedade da Borda do Campo amanheceu especialmente frio naquela segundafeira de 1975 Uma espiada pela janela azul de madeira indicava que a neblina típica dos meses de julho tomava conta da rua Demétrio Ribeiro no bairro Santo Antônio Lá dentro da casa rosa de oito cômodos Marlene Laureano se preparava para sair Filha de mãe italiana e pai descendente de índios a moça de vinte anos estava apreensiva Antes das 5 horas da manhã ela deixou o quarto e seguiu em direção à cozinha onde a mãe esquentava leite no fogão à lenha Vestida com calça de linho roxo e blusa rosa de algodão roupa que só usava em ocasiões especiais tomou o rápido café despedindo se em seguida Já na rua o ar gelado cortava o rosto da jovem Fazia uns oito graus mas a sensação era de temperatura negativa O clima de temperaturas baixas para os padrões brasileiros ainda é uma das características de Barbacena cidade encravada na serra da Mantiqueira o maciço rochoso de Minas Gerais O barulho que o sapato de solado de aço fazia ao tocar as ruas de pedra confirmava que Marlene tinha pressa Trinta minutos de caminhada e lá estava ela de frente ao pontilhão que separava aquele lugar do resto da vila Cruzou a estação ferroviária vencendo o portão de ferro Dali em diante passou a andar pelo chão de terra batida em parte da área de mais de 8 milhões de metros quadrados Carteira de trabalho de Marlene Laureano e folha de contratação Apesar do tamanho o complexo não podia ser visto do lado de fora por causa da muralha que cercava todo o terreno Lá dentro a dimensão daquele espaço asperamente cinza tomado por prédios com janelas amplas porém gradeadas impressionava Marlene ainda pôde perceber no pátio alguns bancos cimentados Ao final do trajeto ela parou em frente ao Afonso Pena um dos sete pavilhões do Departamento B com cerca de 1500 metros quadrados Fechada por fora a porta de madeira que dava acesso aos dormitórios começava a ser aberta Um cheiro insuportável alcançou sua narina Acostumada com o perfume das rosas do escritório da Brasil Flowers onde passou por sua única experiência profissional até aquele momento Marlene foi surpreendida pelo odor fétido vindo do interior do prédio Nem tinha se refeito de tamanho malestar quando avistou montes de capim espalhados pelo chão Junto ao mato havia seres humanos esquálidos Duzentos e oitenta homens a maioria nu rastejavam pelo assoalho branco com tozetos pretos em meio à imundície do esgoto aberto que cruzava todo o pavilhão Marlene sentiu vontade de vomitar Não encontrava sentido em tudo aquilo queria gritar mas a voz desapareceu da garganta Guiada por um funcionário viuse obrigada a entrar Tentou evitar pisar naqueles seres desfigurados mas eram tantos que não havia como desviar Só teve tempo de pensar que o mundo havia acabado e não tinha sido avisada Ainda com os pensamentos descoordenados avistou num canto da ala um cadáver misturado entre os vivos Observou quando dois homens de jaleco branco embrulharam o morto num lençol o décimo sexto naquele dia embora muitos outros agonizassem Na tentativa de se aquecerem durante a noite os pacientes dormiam empilhados sendo comum que os debaixo fossem encontrados mortos como naquele dia 7 Contratada como atendente psiquiátrica Marlene recebeu sua tarefa Ficaria responsável pelo recolhimento diário do capim que deveria ser colocado para secar até que os guardas nome dado aos servidores masculinos contratados pela Fundação Educacional de Assistência Psiquiátrica FEAP pudessem colocar a forragem vegetal de volta no pavilhão ao final do dia Meu Deus eu não vou dar conta Essas pessoas vão morrer murmurava Marlene ao iniciar a tarefa de recolher o capim Pacientes bebem água do esgoto que corta os pavilhões Em choque cumpriu a rotina embora sua mente estivesse no lugar modesto em que vivia mas com cama limpa e quente para dormir Pensou em desistir porém não queria decepcionar os pais Com ensino médio concluído no Colégio Tiradentes a quinta filha de uma família de oito irmãos tinha passado em décimo lugar em concurso do Estado um feito para os Laureanos A pergunta da mãe ecoava em sua cabeça Filha é isso que você quer Apesar de sentir medo do desconhecido ela tinha certeza de que não seguiria os passos maternos Durante trinta e dois anos Regina trabalhou na Ferreira Guimarães Saía de casa ainda de madrugada e caminhava quase duas horas para chegar ao serviço A jornada exaustiva só terminava no final da tarde quando a sirene da fábrica de tecidos anunciava que era hora de calar as máquinas A lembrança dos sacrifícios enfrentados pela tecelã fez a filha esperar com ansiedade pelo primeiro dia do novo trabalho O barulho da água caindo dentro do balde a despertou Marlene iniciava agora a lavagem de toda a ala na tentativa de desinfetar o chão impregnado pelo cheiro de fezes e urina não só humanas mas também dos ratos que dividiam o espaço com os pacientes do Colônia considerado o maior hospício do Brasil Ao esfregar a vassoura contra o piso a jovem viu o emprego dos sonhos transformarse em pesadelo Começara a trabalhar num campo de concentração travestido de hospital Apesar de estar tomada pela indignação sentiuse impotente diante da instituição tradicional que mantinha com o apoio da Igreja Católica as portas abertas desde 1903 Desde o início do século XX a falta de critério médico para as internações era rotina no lugar onde se padronizava tudo inclusive os diagnósticos Maria de Jesus brasileira de apenas vinte e três anos teve o Colônia como destino em 1911 porque apresentava tristeza como sintoma Assim como ela a estimativa é que 70 dos atendidos não sofressem de doença mental Apenas eram diferentes ou ameaçavam a ordem pública Por isso o Colônia tornouse destino de desafetos homossexuais militantes políticos mães solteiras alcoolistas mendigos negros pobres pessoas sem documentos e todos os tipos de indesejados inclusive os chamados insanos A teoria eugenista que sustentava a ideia de limpeza social fortalecia o hospital e justificava seus abusos Livrar a sociedade da escória desfazendose dela de preferência em local que a vista não pudesse alcançar Em 1930 com a superlotação da unidade uma história de extermínio começou a ser desenhada Trinta anos depois existiam 5 mil pacientes em lugar projetado inicialmente para 200 A substituição de camas por capim foi então oficialmente sugerida pelo chefe do Departamento de Assistência Neuropsiquiátrica de Minas Gerais José Consenso Filho como alternativa para o excesso de gente A intenção era clara economizar espaço nos pavilhões para caber mais e mais infelizes O modelo do leito chão deu tão certo que foi recomendado pelo Poder Público para outros hospitais mineiros em 1959 Somente em 1980 quando os primeiros ventos da reforma psiquiátrica no Brasil começaram a soprar por lá é que os gemidos do desengano foram sendo substituídos por alguma esperança Sessenta mil pessoas perderam a vida no Colônia As cinco décadas mais dramáticas do país fazem parte do período em que a loucura dos chamados normais dizimou pelo menos duas gerações de inocentes em 18250 dias de horror Restam hoje menos de 200 sobreviventes dessa tragédia silenciosa Boa parte deles está aqui neste livro E é pelo olhar das testemunhas das vítimas e de alguns de seus algozes que a história do Holocausto Brasileiro começa a ser contada Está chegando mais um trem de doido gritou um funcionário do hospital Estação Bias Fortes por onde chegavam os famosos trens de doido termo criado pelo escritor Guimarães Rosa para referirse ao caminho para a morte no Colônia Foto cedida por Jairo Toledo A parada na estação Bias Fortes era a última da longa viagem de trem que cortava o interior do país Quando a locomotiva desacelerava já nos fundos do Hospital Colônia os passageiros se agitavam Acuados e famintos esperavam a ordem dos guardas para descer seguindo em fila indiana na direção do desconhecido Muitos nem sequer sabiam em que cidade tinham desembarcado ou mesmo o motivo pelo qual foram despachados para aquele lugar Os deserdados sociais chegavam a Barbacena de vários cantos do Brasil Eles abarrotavam os vagões de carga de maneira idêntica aos judeus levados durante a Segunda Guerra Mundial para os campos de concentração nazistas de Auschwitz A expressão trem de doido surgiu ali Criada pelo escritor Guimarães Rosa ela foi incorporada ao vocabulário dos mineiros para definir algo positivo mas à época marcava o início de uma viagem sem volta ao inferno O simbolismo da loucura nos contos de Guimarães Rosa indica que assim como Marlene um dos mais famosos escritores do país conhecia a realidade do Colônia O romancista e contista foi médico voluntário da Força Pública durante a Revolução Constitucionalista de 1932 ingressando um ano depois como oficial médico no 9º Batalhão de Infantaria em Barbacena No conto Sorôco sua mãe sua filha do livro Primeiras estórias lançado em 1962 o autor resgata a situação dos trens que chegavam apinhados de gente à capital brasileira da loucura em busca de tratamento psiquiátrico O escritor referiase a Barbacena descrevendo por meio do personagem principal a angústia de um homem na despedida das únicas pessoas que tinha no mundo e que partiriam no trem da solidão coletiva Sorôco jamais voltaria a ver seus afetos As famílias dos pacientes do Colônia também não Ao receberem o passaporte para o hospital os passageiros tinham sua humanidade confiscada Os recémchegados à estação do Colônia eram levados para o setor de triagem Lá os novatos viamse separados por sexo idade e características físicas Eram obrigados a entregar seus pertences mesmo que dispusessem do mínimo inclusive roupas e sapatos um constrangimento que levava às lágrimas muitas mulheres que jamais haviam enfrentado a humilhação de ficar nuas em público Todos passavam pelo banho coletivo muitas vezes gelado Os homens tinham ainda o cabelo raspado de maneira semelhante à dos prisioneiros de guerra Após a sessão de desinfecção o grupo recebia o famoso azulão uniforme azul de brim tecido incapaz de blindar as baixíssimas temperaturas da cidade Assim padronizado e violado em sua intimidade seguia cada um para o seu setor Os homens eram encaminhados para o Departamento B e os que tinham condição de trabalhar iam para o pavilhão Milton Campos onde em razão dos pequenos dormitórios ficavam amontoados sendo obrigados a juntar as camas para que nem todos dormissem no chão As mulheres andavam em silêncio na direção do Departamento A conhecido como Assistência Daquele momento em diante elas deixavam de ser filhas mães esposas irmãs As que não podiam pagar pela internação mais de 80 eram consideradas indigentes Nesta condição viamse despidas do passado às vezes até mesmo da própria identidade Sem documentos muitas pacientes do Colônia eram rebatizadas pelos funcionários Perdiam o nome de nascimento sua história original e sua referência como se tivessem aparecido no mundo sem alguém que as parisse Outros recebiam a alcunha Ignorado de Tal Muitas ignoradas eram filhas de fazendeiros as quais haviam perdido a virgindade ou adotavam comportamento considerado inadequado para um Brasil à época dominado por coronéis e latifundiários Esposas trocadas por amantes acabavam silenciadas pela internação no Colônia Havia também prostitutas a maioria vinda de São João delRei enviadas para o pavilhão feminino Arthur Bernardes após cortarem com gilete os homens com quem haviam se deitado mas que se recusavam a pagar pelo programa Além do trem muita gente era enviada para o hospital de ônibus ou em viatura policial Várias requisições de internação eram assinadas por delegados Antes da construção do Colônia muitos dos chamados loucos em Minas tinham como destino as cadeias públicas ou as Santas Casas de Misericórdia onde eram mantidos em anexos Como a psiquiatria se constituiu no Brasil somente no início do século XIX a assistência aos alienados ainda era algo incipiente no país que teve o seu primeiro hospício o Pedro II instituído por decreto em 1841 Por isso apesar de ser um hospital o Colônia era carente de médicos Até o final da década de 50 psiquiatras e clínicos ainda eram uma raridade por lá O hospital acabou tendo a sua finalidade deturpada desde os primeiros tempos Já em 1914 há registros de queixas sobre as condições inadequadas de atendimento apesar das constantes liberações de suplementos de créditos aprovados pela Assembleia Legislativa Considerado pela história oficial como um presente de grego para Barbacena já que o hospício foi construído na cidade como prêmio de consolação após perder a disputa com Belo Horizonte para ser a capital de Minas o Colônia pelo contrário atendeu a interesses políticos impulsionando ainda a economia local Além de produtor de flores o município consolidou sua vocação para o comércio Ganhou e muito fornecedores além de moradores que viam no lugar a chance de um emprego bem remunerado apesar da pouca qualificação dos candidatos Mesmo com baixíssimo nível de escolaridade os barbacenenses trocavam postos de trabalho por votos Muitos coronéis da política mineira nasceram junto com o Colônia transformando o hospital em grande curral eleitoral O município se ressente até hoje da pecha do seu hospício mas o comércio da loucura que mais tarde despertou a gana das clínicas particulares viabilizou o modelo de cidade que Barbacena se tornou Dezenove dos vinte e cinco hospitais psiquiátricos existentes em Minas até a década de 1980 estavam localizados no famoso corredor da loucura formado por Barbacena Juiz de Fora e Belo Horizonte Nesse período as três cidades concentravam 80 dos leitos da saúde mental no Estado Parâmetros da Organização Mundial da Saúde estabeleciam como referência três internações para cada mil beneficiários no país Mas estudos do setor psiquiátrico mineiro revelaram quase sete internações para cada grupo de mil em 1979 Em 1981 o número era superior a cinco A cada duas consultas e meia uma pessoa era hospitalizada nas Gerais Antônio Gomes da Silva sessenta e oito anos foi um dos pacientes encaminhados para o hospital aos vinte e cinco anos Há poucos registros sobre o passado de Cabo como Antônio foi apelidado O que se conta sobre ele é que o desemprego se somou à bebedeira e ao descontrole dos negócios como Antônio diz resultando em sua prisão Hoje passados mais de quarenta anos do episódio o Cabo não sabe mais o motivo pelo qual foi mandado para o Colônia pela caneta de um delegado no dia 3 de janeiro de 1969 Antônio Gomes da Silva atualmente com sessenta e oito anos um dos sobreviventes do hospital Foto atual Não sei por que me prenderam Cada um fala uma coisa Mas depois que perdi meu emprego tudo se descontrolou Da cadeia me mandaram para o hospital onde eu ficava pelado embora houvesse muita roupa na lavanderia Vinha tudo num caminhão mas acho que eles queriam economizar No começo incomodava ficar nu mas com o tempo a gente se acostumava Se existe inferno o Colônia era esse lugar Antônio fala baixo quase como se não quisesse lembrar Tem o rosto apoiado às mãos e apesar da estatura alta parece querer esconderse de si mesmo Dentro da unidade mantevese calado durante vinte e um dos trinta e quatro anos em que ficou internado Considerado mudo soltou a voz um dia ao ouvir a banda de música do 9º Batalhão da Polícia Militar Por que você não disse que falava perguntou um funcionário da unidade surpreso com a novidade Uai nunca ninguém perguntou Cabo também passou a vida assinando documentos com as digitais Até descobrirem que ele sabia escrever o próprio nome Deixou o hospital em 2003 para morar numa residência terapêutica de Barbacena uma das vinte e oito casas mantidas pela prefeitura da cidade em parceria com a ONG Instituto Bom Pastor Quando se viu fora dos muros do hospital não sabia como sobreviver sem amarras A que horas as luzes se apagam aqui perguntou na primeira noite liberto do cativeiro Retirado do convívio social por quase meio século ele jamais poderia imaginar que agora era o dono do seu tempo e que tinha ele mesmo o poder de clarear ou escurecer o ambiente com um simples toque no interruptor Além de nunca ter visto um apagador de luz ser dono de si era uma novidade para quem viveu décadas de institucionalização Para Antônio no entanto se desvencilhar do Colônia foi tão difícil quanto mudar de endereço O hospital estava ali marcado não só em seu corpo mas também impregnado em sua alma Por isso os pesadelos tornavam seu sono sobressaltado e se repetiam noite após noite Acordava com o suor umedecendo o pijama e sempre com a mesma sensação de terror Olhava ao redor para ver onde estava e descobria que os eletrochoques com os quais sonhava ainda o mantinham prisioneiro do Colônia Geraldo Magela Franco sessenta e sete anos contratado como vigia do hospital em 1969 No alto foto da carteira de trabalho dele à época com o cargo e foto atual Recordavase sempre do início das sessões quando era segurado pelas mãos e pelos pés para que fosse amarrado ao leito Os gritos de medo eram calados pela borracha colocada à força entre os lábios única maneira de garantir que não tivesse a língua cortada durante as descargas elétricas O que acontecia após o choque Cabo não sabia Perdia a consciência quando o castigo lhe era aplicado O colega Antônio da Silva o Toninho lembra bem o que acontecia depois que o aparelho era ligado Ele via os companheiros estrebucharem quase como se os olhos saltassem da face Cabisbaixo faz uma revelação Ajudei a dar choque em muitos colegas Ficava segurando confessa o homem que hoje tem quarenta e oito anos Abandonado no Colônia aos doze anos pela família por causa de um quadro de epilepsia Toninho não era o único a participar disso O eletrochoque era tão comum na unidade que muitas vítimas se tornavam algozes depois que o efeito da descarga elétrica passava Funcionário aposentado do hospital Geraldo Magela Franco sessenta e sete anos admite que o tratamento de choque e o uso de medicações nem sempre tinham finalidades terapêuticas mas de contenção e intimidação Ele trabalhou vinte e nove anos no Colônia onde foi contratado como vigia em 9 de outubro de 1969 Permaneceu na unidade até 1998 e como não tinha formação adequada para lidar com os pacientes aprendeu na cartilha dos funcionários mais antigos do que ele Não havia prescrição A gente aprendia na prática sobre o que fazer quando ocorria qualquer perturbação No caso dos remédios a gente dava quando o doente apresentava algum tipo de alteração Em situações de epilepsia aplicávamos uma injeção Se o cara às vezes se exaltava ficava bravo a gente dava uma injeção para ele se acalmar Testemunha do holocausto o médico Ronaldo Simões Coelho oitenta anos garante que de perto o horror era ainda maior A coisa era muito pior do que parece Havia um total desinteresse pela sorte Basta dizer que os eletrochoques eram dados indiscriminadamente Às vezes a energia elétrica da cidade não era suficiente para aguentar a carga Muitos morriam outros sofriam fraturas graves Ronaldo foi contratado pelo Estado em 29 de julho de 1971 como psiquiatra Também foi secretáriogeral da recémcriada Fundação Estadual de Assistência Psiquiátrica substituída em 77 pela Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais Fhemig A eletroconvulsoterapia existe desde 1938 para tratamento de doenças mentais mas seu uso no século passado foi muito controverso A tecnologia do eletrochoque se modernizou há um par de décadas sendo utilizada nos dias atuais com fins terapêuticos para alguns tipos de transtornos como a depressão profunda embora existam correntes contrárias ao seu uso No Brasil o método só passou a ter mais controle em 2002 quando o Conselho Federal de Medicina estabeleceu regras específicas para a adoção da técnica como a necessidade de aplicar anestesia geral Além da anestesia a utilização de relaxantes musculares ameniza as convulsões mas nem sempre foi assim No Colônia o choque era aplicado a seco e tinha características semelhantes à tortura Para conseguir crescer profissionalmente dentro do hospital os interessados precisavam passar por todas as etapas de atendimento na área da saúde desde a aplicação de injeção até a realização de curativo e do temido eletrochoque Francisca Moreira dos Reis uma das principais testemunhas do holocausto foi contratada pelo hospital como funcionária em 1977 Acima foto da carteira de trabalho à época e à esquerda foto atual Francisca Moreira dos Reis funcionária da cozinha era uma das candidatas à vaga de atendente de enfermagem em 1979 Ela e outras vinte mulheres foram sorteadas para realizar uma sessão de choque nos pacientes masculinos do pavilhão Afonso Pena escolhidos aleatoriamente para o exercício Chiquinha como é conhecida jamais havia feito nada parecido na vida por isso não sabia como iria reagir na hora das descargas Decidiu que assistiria às colegas na prova prática para depois iniciar o teste A colega Maria do Carmo que também era da cozinha foi a primeira a tentar Cortou um pedaço de cobertor encheu a boca do paciente que a esta altura já estava amarrado na cama molhou a testa dele e começou o procedimento Contou mentalmente um dois três e aproximou os eletrodos das têmporas de sua cobaia sem nenhum tipo de anestesia Ligou a engenhoca na voltagem 110 e após nova contagem 120 de carga O coração da jovem vítima não resistiu O paciente morreu ali mesmo de parada cardíaca na frente de todos Estarrecidas as candidatas se mantiveram em silêncio Algumas lágrimas teimaram em cair naqueles rostos assustados mas ninguém ousou falar Imediatamente os atendentes do hospital embrulharam o coitado num lençol como se aquele não fosse um cadáver Simplesmente fizeram o pacote colocaram no chão e o corpo ainda quente ficou à espera de quem o recolhesse para o necrotério Menos um pensou o guarda enquanto fazia o serviço A segunda candidata se aproximou de outra cama e trêmula iniciou a prova O paciente escolhido era mais jovem que o primeiro Aparentava ter menos de vinte anos Com os olhos esbugalhados de medo ele até tentou reagir mas não conseguia se mover preso ao leito Suas súplicas foram abafadas pelo tecido que enchia a boca Um dois três nova contagem e o homem recebeu a descarga Não resistiu Era a segunda morte da noite e as aulas estavam só começando Chiquinha não suportou Não quero mais fazer esse curso gritou antes de sair correndo Passou um bom tempo na cozinha até pedir baixa do emprego para onde só voltaria em 1988 A primeira lembrança que Chiquinha tem do Colônia é de 1965 Aos dez anos ela ajudava a servir as pacientes no refeitório feminino Apesar da pouca idade a menina tinha entrada liberada no hospital onde levava marmita para a mãe Maria José Moreira contratada em 1959 Nesse período a filha da funcionária subia na mesa de cimento para distribuir café única maneira de alcançar as canecas de alumínio Cresceu lidando de perto com o estigma da loucura sem compreender por que pessoas feitas de carne e osso como ela tinham perdido a liberdade Documento de mulher internada em 1911 por tristeza Fonte Arquivo Público Mineiro Cansou de ouvir histórias sobre os loucos perigosos mas as pessoas que ofereciam risco eram as mesmas que passavam a noite na porta do quarto dos plantonistas para proteger a filha da funcionária que dormiria lá Mimada pelas pacientes a menina não sentia medo Pelo contrário Ficou amiga de Conceição Machado uma das internas que mais resistiram ao encarceramento no Colônia Aos quinze anos Conceição foi mandada para o hospital porque decidiu reivindicar do pai a mesma remuneração paga aos filhos machos Embora trabalhasse como os irmãos na fazenda de Dores do Indaiá município pouco povoado do centrooeste das Gerais a filha do fazendeiro não desfrutava dos mesmos direitos Pela atitude de rebeldia da adolescente o pai aplicou o castigo Decidiu colocar Conceição no famigerado trem de doido único no país que fazia viagens sem volta Em 10 de maio de 1942 ela deu entrada no hospital de onde nunca mais saiu Em trinta anos nunca recebeu visita Conceição Machado é a mulher que está à esquerda da freira No começo a filha de Indaiá foi tomada pela indignação Bonita jovem e lúcida não aceitava o diagnóstico de loucura Por isso agredia os guardas desafiava com violência a ordem imposta O peso da retaliação era maior do que a ousadia da adolescente Como castigo Conceição passou mais de dois anos trancada em cela inferior a dez metros quadrados Só via a luz do sol vinte minutos por dia Lutou com todas as suas forças para não se envergar diante do peso da sentença até decidir canalizar sua energia para tentar mudar o lugar que passou a ser seu mundo Levantou a voz para exigir médicos alimentação de qualidade assistência digna tornandose líder de seu grupo Um dia indignada com o descaso imposto aos pacientes ela tomou o caminho da sala do então diretor José Theobaldo Tollendal Entrou gritando Surpreso ele levantouse da cadeira Ficaram separados pela mesa Senhor diretor prove este café Se servir para o senhor tomar também serve para as pacientes desafiou Conceição A dor de Conceição tocou a filha da funcionária mas foi a garra dela que conquistou o respeito da menina Aos catorze anos Chiquinha arranjou namorado e prometeu à paciente que a levaria para assistir ao seu casamento Dito e feito Quando Chiquinha aos quinze anos se uniu ao cabo da Aeronáutica Pedro Vitorino dos Reis de dezenove anos na Igreja São José Conceição estava lá para assistir à cerimônia Estava com quarenta e três anos e mesmo sabendo que o Colônia tinha se apropriado do seu futuro desejava o melhor para a amiga Pelo menos alguém que conhecia teria a chance de ser feliz O exemplo de garra de Conceição marcou a vida de Chiquinha Assim como a amiga de Indaiá ela também queria ser portavoz de seu grupo em busca de melhorias Chiquinha tornouse diretora do Sindicato Único da Saúde Aos cinquenta e sete anos representa quase 20 mil servidores mineiros Foi Maria José quem pediu à filha para se inscrever no concurso público que daria direito a uma vaga na instituição À época bastava uma carta de recomendação de um político local para garantir a vaga Havia se valido desse recurso para entrar no Colônia permanecendo trinta anos no emprego A mãe de Francisca começou a trabalhar no pavilhão Crispim que abrigava 350 mulheres sendo responsável pela limpeza da ala e pela higiene das pacientes Sem saber ler nem escrever distribuía pelas cores os dois únicos comprimidos disponíveis na farmácia Amplictil e Diazepam Quando a intenção era acalmar os ânimos ela lançava mão de dois rosas com efeito sedativo Para reduzir a ansiedade usava dois azuis Com então vinte e dois anos Chiquinha seguiu o conselho da mãe sendo contratada no Colônia em 1977 como auxiliar de serviços gerais Optou pela cozinha pois preferia enfrentar as caldeiras ao cheiro dos pavilhões Qual é o cardápio perguntou Chiquinha em seu primeiro dia como funcionária Simples ouviu da veterana Segunda quarta e sexta arroz feijão ovo cozido e macarrão branco Terça quinta sábado e domingo a variação é feita com carne moída E para as pensionistas a mesma coisa Claro que não Quem pode pagar come melhor Em vez de ovo omelete A gente também incrementa a carne moída e faz uns bolinhos ou hambúrguer O macarrão vai com molho E o jantar Para as indigentes sopa de macarrão branco Entendeu Chiquinha fez que sim com a cabeça mas saiu para chorar no pátio Embora já conhecesse o Colônia havia nove anos o que antes era apenas brincadeira de criança se transformou em experiência cruel Por dia a cozinha gastava 120 quilos de arroz e apenas sessenta quilos de feijão para alimentar um exército de 4800 pessoas Como a quantidade não dava o jeito era engrossar a água preta com farinha de mandioca na tentativa de encorpar o caldo e fazer a comida render Além de aguada a comida era insossa pois quase não levava tempero À época da colheita de milho todas as refeições eram provenientes dos grãos da espiga sendo comum diarreia provocada pelo excesso de amido Quando havia carne ela era triturada e misturada às refeições já que faca e garfo eram proibidos Farta mesmo somente a quantidade de verduras colhidas na horta do hospital e levadas para a cozinha em um pequeno caminhão Apesar de couve em quantidade faltava funcionário para picar tudo aquilo Por isso boa parte das folhas tinha o lixo como destino Chiquinha tem agora o olhar perdido os olhos encharcados de lágrimas quase a ponto de transbordar Trinta e cinco anos depois tem o pensamento direcionado para o ontem Eu não sabia o tamanho da tragédia Hoje sei e me arrependo de não ter dado o grito mais cedo Acho que eu podia ter evitado alguma morte Quantas Muitas talvez A sensação de impotência diante das atrocidades ocorridas dentro dos muros do hospital é comum a funcionários e exfuncionários do Colônia Muitos contam que desejaram denunciar o sistema mas não havia quem se dispusesse a ouvir Vinte e oito presidentes do Estado de Minas Gerais entre interventores federais e governadores revezaram se no poder desde a criação do Colônia entre 1903 e 1980 Outros dez diretores comandaram a instituição nesse período alguns por mais de vinte anos como o médico Joaquim Dutra o primeiro dirigente Em 1961 o presidente Jânio Quadros colocou o aparato governamental a serviço da instituição para reverter o calamitoso nível de assistência dada aos enfermos Deputados mineiros criaram comissões para discutir a situação da unidade dez anos depois Nenhum deles foi capaz de fazer os abusos cessarem Dentro do hospital apesar de ninguém ter apertado o gatilho todos carregam mortes nas costas II Na roda da loucura F ome e sede eram sensações permanentes no local onde o esgoto que cortava os pavilhões era fonte de água Nem todos tinham estômago para se alimentarem de bichos mas os anos no Colônia consumiam os últimos vestígios de humanidade Além da alimentação racionada no intervalo entre o almoço e o jantar servidos ao meiodia e às 5 horas da tarde os pacientes não comiam nada O dia começava com café pão e manteiga distribuídos somente para os que estivessem em fila A alimentação empobrecida não era a única a debilitar o organismo Apesar de o café da manhã ser fornecido às 8 horas três horas antes os pacientes já tinham que estar de pé Eles seguiam para o pátio de madrugada inclusive nos dias de chuva Geraldo Magela Franco um dos guardas que cuidavam da disciplina em 1969 ano em que foi contratado ainda lembra em detalhes a rotina que cumpriu por três décadas Aos sessenta e sete anos o aposentado demonstra estar em dia com a memória A gente tinha que acordar os pacientes às 5 horas para entregar o pavilhão em ordem ao próximo plantão que começava às 7 horas Eles eram colocados no pátio houvesse o frio que fosse Os doentes ficavam lá o dia inteiro e só voltavam aos prédios no início da noite para dormir O frio cortava a pele exposta fazia os músculos enrijecerem e a boca ressecar até ganhar feridas Embora fosse mais fácil culpar os pacientes por exporem o corpo sem pudor a nudez não era uma opção Muitas roupas eram peças únicas por isso no dia em que elas eram recolhidas para a lavanderia o interno não tinha o que vestir Se não conseguisse recorrer à caridade alheia por meio de doação era obrigado a entregarse à exposição indesejada Ao seguirem pelados para o pátio os considerados loucos iniciavam o mesmo ritual da madrugada anterior Em movimentos ritmados agrupavamse tão próximos que formavam uma massa humana Vagavam juntos com os braços unidos para que o movimento e a proximidade ajudassem a aquecer Os de dentro da roda mais protegidos do vento trocavam de lugar com os de fora Assim todos conseguiam receber calor pelo menos por algum tempo Os que ainda vestiam alguma coisa entregavam os trapos para acender fogueira Nem sempre havia pano suficiente para alimentar o fogo mas cada um procurava colaborar com o que dispunha Difícil imaginar que em meio ao abandono extremo ainda restasse forças para ajudar Sônia Maria da Costa paciente internada no Colônia por mais de quarenta anos era temida por muitos mas também reconhecida como tutora do grupo Embora tivesse adotado o comportamento agressivo como arma era ela quem ajudava a curar sem remédio Terezinha outra esquecida conhecia o melhor lado da amiga Sônia improvisava socorro nas crises de otite de Terezinha quando não havia sequer analgésico para amenizar a dor Aquecia remendos de cobertor no pátio sustentava a cabeça da protegida entre os braços e aproximava o pano do ouvido que latejava sem trégua Sentada no chão de cimento ela repetia o gesto até que a amiga adormecesse em seu colo Mantinha o cuidado pelos dias seguintes na tentativa de fazer a inflamação ceder Nunca mais se separaram Quase cinco décadas depois permanecem juntas como se uma tivesse saído de dentro da outra Órfã de pai e mãe Sônia adotou a amiga dentro do hospital Estava ao lado dela durante as crises de epilepsia que faziam a baba escorrer pela boca atraindo mosquitos Quando Terezinha caía sem poder dar conta de si a paciente mais velha procurava a torneira para molhar um pano e limpar o rosto dela na tentativa de oferecerlhe o mínimo de dignidade Também ensinou a amiga a tomar banho e manter a higiene pessoal Todo dia eu rezava para ela não ter crises tadinha Tinha muita pena porque não era esperta como eu e não tinha ninguém para cuidar dela Não podia deixar que judiassem dela Sônia demonstra lucidez ao falar do sofrimento do passado Somente em 2003 quando deixou o hospital para morar com Terezinha numa residência terapêutica de Barbacena é que ela aos cinquenta e três anos soube o significado da palavra respeito Rejeitada aos onze anos por fazer molecagem na rua em Belo Horizonte foi despachada para o hospital pela polícia Antes porém apanhou muito de uma dona aleijada com quem morava sendo obrigada a cozinhar mesmo sem altura suficiente para alcançar o fogão Para conseguir mexer as panelas precisava subir num banquinho Embora tenha aprendido a preparar um bom feijão com arroz pegou birra da cozinha A história de Sônia foi construída dentro do Colônia Sua verdadeira data de nascimento é desconhecida Por isso o dia mês e ano de seu aniversário são estimados 28 de julho de 1950 No documento de identidade da antiga paciente retirado quarenta e cinco anos depois do seu provável nascimento Barbacena aparece como local de origem embora o município não seja sua cidade natal É como se ela tivesse aparecido no mundo sem que alguém a parisse Sônia cresceu sozinha no hospital Foi vítima de todos os tipos de violação Sofreu agressão física tomava choques diários ficou trancada em cela úmida sem um único cobertor para se aquecer e tomou as famosas injeções de entorta que causavam impregnação no organismo e faziam a boca encher de cuspe Deixada sem água muitas vezes ela bebia a própria urina para matar a sede Tomava banho de mergulho na banheira com fezes uma espécie de castigo imposto a pessoas que como Sônia não se enquadravam às regras Por diversas vezes teve sangue retirado sem o seu consentimento por vampiros humanos que enchiam recipientes de vidro a fim de aplicálo em organismos mais debilitados que o dela principalmente nos pacientes que passavam pela lobotomia A intervenção cirúrgica no cérebro para seccionar as vias que ligam os lobos frontais ao tálamo era recorrente no Colônia Embora tenha sido considerada uma técnica bárbara da psicocirurgia a lobotomia ainda é realizada no país As décadas de encarceramento deixaram em Sônia marcas físicas dos maustratos Para curar as feridas abertas em seu corpo ela jogava esmalte por cima da pele provocando infecções difíceis de curar Num dia de fúria e dor arrancou o próprio dente com um alicate porque não aguentava mais sentir o rosto latejar Respondeu com violência ao período mais cinza da sua vida Passou a ser temida aprendeu a odiar Foi vítima mas também algoz Apanhou muito no entanto vangloria se de ter revidado e agredido funcionários e pacientes Assim como a interna Celita Maria da Conceição ela passou as próprias fezes no corpo durante o período em que esteve grávida no hospital Questionada sobre o ato repugnante Sônia justificou Sônia Maria da Costa sobrevivente do holocausto em foto de 1961 e hoje Foi a única maneira que encontrei de ninguém machucar meu neném Suja deste jeito nenhum funcionário vai ter coragem de encostar a mão em mim Assim protejo meu filho que está na barriga O repelente humano foi adotado no Colônia por outras gestantes Apesar de Sônia ter tido dois filhos biológicos dentro do hospital a menina morreu e o menino hoje com vinte e cinco anos está preso seu coração elegeu uma paciente como filha adotiva Em 2003 quando teve a chance de ganhar um endereço bateu pé Só deixaria o Colônia se pudesse levar Terezinha com ela Saíram juntas do hospital de mãos dadas pelo portão principal do Colônia Não olharam para trás Quando se aproximaram da residência terapêutica onde iriam morar com outras cinco exinternas do hospital entraram desconfiadas Os serviços residenciais terapêuticos são locais de moradia destinados a pessoas com longas internações que não têm possibilidade de retornar para as famílias As duas ainda estavam com as mãos entrelaçadas quando passaram pela varanda Dentro da casa havia um cheiro bom de comida Não tiveram que se despir não foram amarradas nem obrigadas a tomar banhos coletivos Nada de água gelada Precisariam se acostumar ao privilégio da individualidade Ter seu próprio sabonete e toalha era uma grande novidade Sentiramse confusas ao descobrirem que havia um guardaroupa para cada uma Era a primeira vez que teriam algo seu Com a emissão de novos documentos viabilizada pelo Ministério Público as duas foram incluídas no Benefício de Prestação Continuada concedido pela Lei Orgânica de Assistência Social a pessoas com necessidades especiais Passaram a ter direito a um salário mínimo e mais bolsa de R 240 mensais oferecida pelo programa De volta para casa do Ministério da Saúde instituído em 2003 por meio de assinatura de lei federal A norma dispõe sobre a regulamentação do auxílioreabilitação psicossocial a pacientes que tenham permanecido em longas internações psiquiátricas nas quais ficaram submetidos à privação de liberdade Logo que a lei foi criada 2600 pessoas foram atendidas em todo o território nacional Uma das justificativas do programa é consolidar o processo de desinstitucionalização com base na redução gradual de leitos hospitalares de longa permanência Empoderadas financeiramente Sônia e Terezinha passaram a consumir O mesmo aconteceu com os outros 160 pacientes que ocupam as vinte e oito residências terapêuticas existentes em Barbacena A injeção de recurso na economia seduziu o comércio local De lá para cá os loucos que tanto envergonharam a cidade passaram a ser disputados por vendedores e lojistas Sônia adquiriu o hábito de comprar sapatos um luxo para quem passou a vida inteira com os pés no chão Os cabelos brancos ficaram negros de novo com as tinturas vendidas no mercado da beleza Comprou vestidos às vezes usa mais de um ao mesmo tempo ganhou identidade Também desenvolveu diabetes resultado não só dos anos de iniquidade mas também da descoberta do refrigerante já com meio século de vida uma delícia da qual ela nunca mais quis abrir mão Os prediletos são os de uva e o guaraná mas desde que não falte ela toma qualquer um Os doces entraram no cardápio A glicose da expaciente do Colônia disparou Para ela comer ganhou novo sentido Sônia não sabia que o almoço e o jantar poderiam ter sabor a ponto de despertar o paladar A tal comida boa virou fixação Apesar do analfabetismo ela criou um método próprio para lidar com o dinheiro Aprendeu que a nota da onçapintada R 50 era a que valia mais A do micoleãodourado R 20 dava para comprar brincos batom esmalte e ainda sobrava troco Com R 10 a nota da arara ela conseguia trazer para casa dois litros de refrigerante biscoitos e pão Com a da tartaruga marinha não fazia quase nada afinal são poucas as coisas que se pode comprar com R 2 Assim com a ajuda dos bichos da fauna brasileira impressos na moeda nacional ela tem conseguido se virar e fazer as próprias contas Em 2011 Sônia realizou sua maior ousadia Para quem passou cinquenta anos presa nos porões da loucura conhecer Porto Seguro na Bahia foi uma dádiva na vida dessa mulher De uma única vez ela experimentou o gosto da liberdade a sensação de andar de avião quase como se tivesse ganhado asas e de ver o mar Teve medo ao mirar aquele mundão de água no qual os olhos não alcançam o fim Conheceu então o prazer das boas descobertas sentindose inteira pela primeira vez em sessenta e um anos de vida Começava a tomar consciência da sua humanidade era quase feliz Imagem revela o encarceramento de pacientes dentro do hospital O único homem que amou o Colônia Ô Raul Corre que seu filho está nascendo O mestre de obras do Colônia Raul Ferreira Carneiro largou as ferramentas no chão e seguiu em direção à chácara do sogro Adolfo Cisalpino de Carvalho administrador do hospital em 1925 Quando chegou à casa rústica a esposa Yolanda já tinha dado à luz seu terceiro herdeiro Luiz Felipe Cisalpino Carneiro o filho macho nasceu forte e chorou tão alto que os pacientes do hospício puderam ouvir já que a residência do administrador tinha sido erguida no mesmo terreno do hospital Apesar da proximidade com o inferno a moradia era considerada um paraíso por seus habitantes Rodeada por árvores frutíferas que ocupavam boa parte do jardim tinha ainda uma horta bem cuidada Verduras e legumes garantiam fartura no prato da família que anos mais tarde somava nove filhos Luiz Felipe Carneiro neto do administrador do hospital nasceu dentro do hospício hoje tem oitenta e oito anos O menino Luiz Felipe cresceu correndo por aquelas bandas respirando o ar puro da Zona da Mata enquanto o pai construía os novos prédios da instituição psiquiátrica Até hoje lembra os cheiros que marcaram sua infância de encantamento aquecida pela fogueira acesa nas noites de lua cheia quando o som da viola animava as madrugadas dos Cisalpinos No entanto à medida que o garoto ganhava idade seu olhar ia mudando Ouvia tantas histórias sobre os loucos perigosos mas não conseguia compreender como aqueles homens que ele via trabalhando sem trégua ofereciam tanto risco Mas que loucura eles têm perguntava a si mesmo sem coragem de questionar os mais velhos O menino intuía que alguma coisa estava errada Da varanda da casa colonial Luiz Felipe via os pacientes abrirem estrada na enxada A ferramenta também era utilizada na plantação Registros da instituição apontam que em 1916 quase metade da receita do hospital foi garantida pelo suor dos pacientes e pela venda dos alimentos que eles plantavam Com a colheita de dez alqueires de milho cinco de batata doce nove de feijão e nove hectares de mandioca os negócios no Colônia iam bem O faturamento era garantido ainda pelo uso da mão de obra dos internos no conserto de vias públicas limpeza de pastos preparação de doces A venda de roupas 4 mil peças só naquele ano também era negócio lucrativo De longe Luiz Felipe observava a lida daquela gente Não pareciam doentes mas escravos embora a escravatura no Brasil tivesse terminado havia quase trinta anos Não sentia medo deles guardando segredo sobre a afeição que nutria por aqueles homens diferentes e até engraçados que celebravam suas próprias missas a despeito da condenação da Igreja Proibidos de pisar na Capela Nossa Senhora das Graças construída dentro do Colônia eles criaram seus próprios altares Para provocar a Igreja alguns pacientes intitulavamse bispos e roubavam a audiência dos cônegos As celebrações conduzidas pelos considerados privados de razão eram as mais disputadas da instituição Aliás aquelas rezas simplórias faziam muito mais sentido do que as balbuciadas em latim Aquilo sim era linguagem de doido Aos doze anos o garoto deixou o Colônia O dinheiro que seu pai ganhava em Barbacena já não dava mais para sustentar família tão numerosa Raul Carneiro levou a família para o Rio onde comprou casa num bairro despovoado o Leblon localizado na Zona Sul Lá o patriarca terminou a vida construindo arranhacéus Mas foi em Belo Horizonte que Luiz Felipe se formou médico na Universidade Federal de Minas Gerais Ao ler o primeiro livro do filósofo francês Michel Foucault Doença mental e personalidade lançado em 1954 o médico recém formado começou a mergulhar no enigmático universo da loucura Acabou se especializando em laboratório de análise hoje conhecido como patologia clínica Por ironia do destino foi trabalhar com o irmão chefe do laboratório do Instituto Raul Soares conhecido hospital psiquiátrico da capital mineira Adotou o socialismo como filosofia indo a Cuba conhecer de perto um de seus hospícios Tornouse ateu como Fidel Castro o revolucionário comunista a quem passou a admirar Montou seu próprio laboratório em Belo Horizonte mas chegou a perder clientes por não concordar com o excesso de exames solicitados pelos jovens e inseguros médicos um exagero que obrigava a furar crianças sadias para colher sangue em busca de diagnósticos mirabolantes Talvez por isso não tenha enriquecido como boa parte dos proprietários de laboratório que conheceu Pai de quatro filhos Luiz Carneiro enviuvou casouse de novo e hoje aos oitenta e oito anos mantém hábitos simples Vive numa casa localizada na Zona Leste da capital mineira onde faz questão de manter o jardim dos tempos de criança Só tomou conhecimento das atrocidades passadas no hospital de Barbacena décadas depois de ter saído de lá quando descobriu que os homens que abriam caminhos do progresso estavam privados de ir e vir Apesar de ter nascido no hospício berço de uma tragédia silenciosa seus olhos de criança pouco puderam ver Hoje entende por que ninguém consegue enxergar o Colônia através do seu olhar e muito menos amálo como ele Assim como Luiz Carneiro Alba Watson Renault comerciante com cinquenta e três anos passou toda a infância em Barbacena Não dentro do terreno do hospital como o neto do administrador mas na rua Henrique Diniz localizada em frente à ala feminina do Colônia Neta de Zenon Renault o farmacêutico da instituição psiquiátrica ela também cresceu vendo homens e mulheres vestidos com o famoso azulão uniforme de brim azul trabalhando nas ruas da cidade Porém como a maioria Alba presenciou o lado sombrio da história quando assistiu por anos a fio aos doentes capinando as ruas do município Pacientes saindo do hospital para trabalhar em funções pesadas e sem remuneração Fotos cedidas por Jairo Toledo Os doidos passavam na porta da casa dela em silêncio de cabeça raspada sempre descalços A cena nunca lhe saiu da cabeça Aqueles seres esquálidos não provocavam pavor em ninguém nem mesmo na menina que assistia penalizada ao cortejo dos pacientes Na marcha diária muitos deles seguiam em direção ao Cemitério da Paz conduzindo uma carroça de madeira de tração animal com uma cruz vermelha pintada nas laterais Símbolo da morte no hospital a carroça atravessava os pavilhões diariamente em busca de novos mortos A viagem fúnebre só terminava quando os corpos eram recolhidos e transportados De outras vezes Alba via os internos passarem em frente de casa carregando caixões rústicos que voltavam sempre vazios Como a avó materna morava na rua Professor Pires de Moraes que dá acesso ao cemitério a neta se escondia para acompanhar o estranho ritual que se repetia mais de uma vez ao dia Estava espiando quando os pacientes cavavam buracos e despejavam seus pares em valões cobrindo com terra preta De longe não conseguia ouvir o que diziam enquanto enterravam as pessoas que dividiram com eles um lugar no Colônia mas o som se assemelhava a um lamento Finalizada a tarefa eles faziam o caminho de volta de cabeça baixa e às vezes cantando como se a música pudesse abafar o sentimento de dor causado pelo sepultamento desumano Dona não entra aí tem macumba gritou André dos Santos menino de oito anos que mora em frente ao Cemitério da Paz Sem portão o que se vê hoje é uma área de 8 mil metros quadrados tomada por mato alto e detritos Por entre as sepulturas há preservativos usados e restos de latas de alumínio utilizadas no consumo de crack Esse é o local onde são mantidos os 60 mil mortos do Colônia Enterradas em covas rasas as vítimas de tratamento cruel não alcançaram respeito nem na morte Seus túmulos vêm sendo depredados ao longo do tempo e nem mesmo os ossos revelados conseguiram reverter o descaso imposto aos excluídos sociais Carrocinha onde os mortos eram carregados para o cemitério Construído junto com o Hospital Colônia no início do século XX o Cemitério da Paz cuja área pertence à Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais está desativado desde o final da década de 80 A explicação do psiquiatra Jairo Toledo que respondeu pela direção do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena até março de 2013 é que o terreno está saturado Como ele não absorvia mais a demanda nós o desativamos O cemitério foi criado praticamente junto com o hospital por isso a leitura que faço é que os doidos assim como os negros não eram enterrados junto com os normais acredita Toledo ao se referir à discriminação imposta àquela população Considerado um território de grande valor histórico o Cemitério da Paz já poderia ter seu cenário modificado No final de 2007 a prefeitura de Barbacena com o apoio do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais Iepha lançou um concurso nacional para criar naquele espaço abandonado um Memorial de Rosas unindo assim os dois símbolos da cidade a loucura e as flores já que o município é um dos maiores exportadores de rosas do país O objetivo do memorial que ainda está no papel é transformar o local em marco da história da psiquiatria mineira O projeto vencedor criou uma passarela suspensa no terreno preservando o passado Além de conservar os túmulos propõe a revitalização do espaço que é o símbolo do que se passou nos porões da loucura Os subterrâneos da razão provocaram tantos óbitos que os corpos somavam pilhas de cadáveres Nem todos porém foram enterrados O abandonado Cemitério da Paz onde os 60 mil corpos estão enterrados Fotos Roberto Fulgêncio Tribuna de Minas A venda de cadáveres O sino do Instituto Granbery em Juiz de Fora acabara de soar anunciando o término da aula O professor Ivanzir Vieira despediuse dos alunos e rapidamente ganhou a calçada da rua Batista de Oliveira naquele março de 1970 Caminhava em direção à Faculdade de Farmácia e Odontologia da Universidade Federal de Juiz de Fora localizada na rua Espírito Santo a dez minutos dali Estava a um mês de completar três anos de admissão no ensino superior mas sentia como se tivesse conquistado a vaga ontem Aos trinta anos largou o emprego estável na indústria de cigarros a Souza Cruz em Poços de Caldas MG ao perceber que estava colocando todo seu conhecimento em prol de uma causa que não era a sua Formado em farmácia pela UFJF tinha outros ideais como a pesquisa e o ingresso na academia que acabou acontecendo em 27 de março de 1968 dois anos depois de sua saída da indústria A aula na faculdade estava marcada para as 9h10 e o professor então com trinta e quatro anos fazia questão de pontualidade Estava a poucos minutos de descobrir que aquele não era um dia igual aos outros Ao iniciar a subida da rua Espírito Santo sentiu algo estranho no ar Próximo à escola de farmácia e odontologia viu duas moças que passavam em frente ao portão da faculdade colocando a mão no nariz numa evidente demonstração de repugnância A atitude das jovens chamou sua atenção Estranhou ainda mais ao perceber que os alunos não estavam aglomerados na porta da escola como de costume Chegou a pensar que havia se equivocado de data já que aos sábados não tinha aula Lembrouse contudo de que era sextafeira porque havia combinado de se encontrar com um amigo no clube à noite para colocar o papo em dia Uai cadê os alunos Será que meu relógio parou questionou se Ivanzir um pouco confuso Resolveu conferir e percebeu que os ponteiros estavam funcionando Lembrouse também do sino do Granbery sempre preciso e concluiu que estava no horário e dia certos Ao se aproximar do portão um forte odor o atingiu com violência Pareceu que dentro do prédio havia centenas de ratos mortos já em estado de putrefação O que provocava isso Seu nariz de farmacêutico descartou o gás sulfídrico utilizado algumas vezes por alunos em brincadeiras de mau gosto Resolveu enfrentar o malestar avançando escola adentro Ao final do corredor Ivanzir surpreendeuse com o que viu No pátio interno da faculdade havia dezenas de cadáveres espalhados pelo chão em grotescas posições Parecia que um maníaco sexual havia passado por ali Os corpos das mulheres com as saias ou camisolas erguidas pernas abertas desnudando sua intimidade Os homens com as calças e cuecas sujas umas imundas outras baixadas As fisionomias eram pálidas esquálidas Barbas crescidas cabelos desgrenhados pareciam egressos de um manicômio O cheiro não deixava dúvida de que estavam mortos havia dias O farmacêutico ficou atônito Ivanzir Vieira professor universitário que testemunhou a chegada de um dos lotes de cadáveres adquiridos pela Universidade Federal de Juiz de Fora Ainda atordoado o professor contemplou uma idosa de cabelos brancos aos seus pés também com a saia erguida A fisionomia maternal até agradável parecia querer esboçar um sorriso na boca desdentada Ivanzir sentiuse invadido por uma tristeza profunda imaginando por que não poderia ter vivido mais tempo alguém com uma simpatia que vencera a morte O mistério porém continuava Até poderia entender a presença de cadáveres numa faculdade que os utilizava como a de medicina mas a odontologia praticamente não precisava deles em suas aulas Por que tantos E qual a razão das posturas chocantes Onde estavam os professores serventes e alunos Sua cabeça fervia Permaneceu observando a cena sem saber que atitude tomar O silêncio reinava de forma incomum num local onde o barulho de carros era frequente Até a cantina estava fechada Não sabia se ficava ou fugia daquela visão perturbadora O professor não se deu conta de quanto tempo permaneceu ali inerte até que um barulho o alertou Descendo as escadas do segundo andar apareceu Salvador funcionário da Faculdade de Medicina quem o professor conhecia Olá Ivanzir Tudo bem Por que veio trabalhar hoje Não sabe que o diretor liberou os professores e alunos O tom despreocupado do técnico indicava que o mistério estava próximo do fim O que aconteceu aqui Salvador Que susto levei com esses corpos Parece até cena do inferno de Dante E olha que falo com conhecimento de causa pois já folheeiA divina comédia e vi as gravuras tentou brincar Ivanzir embora ainda estivesse se refazendo do impacto que sentiu Rapaz que luta Essa madrugada uma camioneta de Barbacena chegou lotada de cadáveres O responsável localizou o diretor da medicina e ofereceu cada corpo por 1 milhão cerca de R 364 nos dias atuais Se a universidade não quisesse já tinha comprador no Rio de Janeiro Claro que o diretor não podia perder a oportunidade Estávamos apenas com seis cadáveres e o preço estava bom Além disso trinta corpos suprem as necessidades do ano inteiro Com isso fui tirado da cama e vim para cá Estou caindo de cansaço e sem ajudante até agora tendo de formolizar todo esse material antes de colocar os cadáveres nos tanques O farmacêutico retrucou Por que não foram para a medicina Salvador se a faculdade estava somente com seis corpos Nossos tanques estavam repletos de peças prontas para o primeiro ano com a pele retirada a musculatura exposta membros destacados para estudos mais especializados Aqui estava vazio e os homens se entenderam Documentos do livro de registros do Colônia confirmam a venda de peças anatômicas Eu não sabia que a universidade comprava corpos Isso me parece um crime Como ela contabiliza tais gastos Duvido que haja uma conta para compra de defuntos questionou Ivanzir já um pouco irritado Isso eu não sei Mas se ela não comprar está cheio de faculdade que compra respondeu o técnico enquanto se abaixava para introduzir numa incisão feita na virilha do corpo da idosa o tubo que lhe permitiria injetar o formol e paralisar a decomposição Ivanzir compreendeu então a causa de as roupas estarem levantadas Nesse momento recordouse das histórias que diziam sobre os loucos nos sanatórios de Barbacena que nas geladas noites da cidade serrana eram enviados para os pátios com as vestimentas molhadas e ali largados para morrer Então era verdade pensou Contemplou de novo a idosa que não teve valor em vida e cujo corpo era disputado por abutres humanos Compreendeu o simbolismo daquele leve sorriso estampado no rosto de quem vencera a morte Ela não mais estava ao alcance deles Além daqueles trinta cadáveres outros 1823 corpos foram vendidos pelo Colônia para dezessete faculdades de medicina do país entre 1969 e 1980 Como a subnutrição as péssimas condições de higiene e de atendimento provocaram mortes em massa no hospital onde registros da própria entidade apontam dezesseis falecimentos por dia em média no período de maior lotação A partir de 1960 a disponibilidade de cadáveres acabou alimentando uma macabra indústria de venda de corpos Só a Universidade Federal de Minas Gerais UFMG adquiriu 543 corpos em uma década Já a UFJF foi responsável pela compra de 67 cadáveres entre fevereiro de 1970 e maio de 1972 Documentos do hospital mostram que na remessa feita em março de 1970 testemunhada por Ivanzir havia pessoas procedentes de Belo Horizonte Itambi Sobrália e Itapecerica Todos eles municípios mineiros Na entrega de 1971 os mortos eram de pelo menos quinze cidades do Estado como Belo Horizonte Governador Valadares Brasília de Minas Leopoldina Palmital Raul Soares entre outros Nenhum dos familiares dessas vítimas autorizou a comercialização dos corpos Os corpos dos transformados em indigentes foram negociados por cerca de cinquenta cruzeiros cada um O valor atualizado corrigido pelo Índice Geral de Preços IGP DI da Fundação Getúlio Vargas é equivalente a R 200 por peça Entre 4 e 19 de novembro de 1970 foram enviados para a Faculdade de Medicina de Valença quarenta e cinco cadáveres negociados por 2250 cruzeiros o lote Corrigido pelo IGPDI o lote saiu a R 833859 Em uma década a venda de cadáveres atingiu quase R 600 mil fora o valor faturado com o comércio de ossos e órgãos O fornecimento de peças anatômicas aliás dobrava nos meses de inverno época em que ocorriam mais falecimentos no Colônia se comparada ao período de verão Em junho de 1971 a venda de corpos pela instituição atingiu 137 peças contra sessenta e quatro negociadas em janeiro daquele mesmo ano Paulo Henrique Alves sessenta e cinco anos psiquiatra de Belo Horizonte era estudante da Faculdade de Medicina da UFMG em 1967 quando aos vinte e três anos teve contato com uma das remessas do Colônia usadas para dissecação nas aulas de anatomia No primeiro ano de medicina não tínhamos ideia da crueldade que estava por trás daquelas peças Às vezes ao dissecarmos um pulmão percebíamos a presença de tuberculose e os professores diziam que isso era comum nos cadáveres de Barbacena Também chamava a atenção a magreza dos corpos usados nas aulas de anatomia No entanto a própria questão da loucura era uma coisa distante para mim naquele momento Mais tarde comecei a tomar conhecimento do que se passava naquele hospital Aí passei a ser crítico de tudo aquilo revelou Paulo Henrique que em 2011 retornou da África para o Brasil onde esteve em missão pela organização internacional Médicos Sem Fronteiras Paulo Henrique Alves sessenta e cinco anos foto atual e da carteira de estudante da época Quando os corpos começaram a não ter mais interesse para as faculdades de medicina que ficaram abarrotadas de cadáveres eles foram decompostos em ácido na frente dos pacientes dentro de tonéis que ficavam no pátio do Colônia O objetivo era que as ossadas pudessem então ser comercializadas Interrompi o fornecimento de cadáveres conhecido por comércio da morte na década de 80 quando fui diretor da instituição pela primeira vez afirmou Jairo Toledo sessenta e quatro anos psiquiatra e exdiretor do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena antigo hospital Colônia que teve a última cela desativada somente em 1994 O testemunho de Ivanzir Vieira era forte por si só mas os fatos revelados por ele ganharam contorno ainda mais especial pelas condições em que tive acesso ao seu depoimento No dia 25 de novembro de 2011 recebi um email na redação da Tribuna de Minas A mensagem estava entre as centenas enviadas para minha caixa postal em razão da série de matérias Holocausto Brasileiro veiculadas no jornal entre 20 e 27 de novembro No contato ele identificavase como aposentado da Universidade Federal de Juiz de Fora e nada mais Quando comecei a ler o anexo intitulado Os subterrâneos de uma universidade pensei tratarse de ficção Custei a entender que eram as impressões de quem presenciou o horror de uma remessa de corpos Isso porque Ivanzir havia colocado pseudônimos na crônica que à primeira vista me pareceu vaga Respondi pedindo a ele mais informações Ele enviou novo texto informando o nome verdadeiro do técnico que trabalhava naquele dia Salvador Não disse mais nada Como sempre guardo os emails que recebo decidi reler o de Ivanzir quando a ideia de escrever este livro me surgiu Assim em maio de 2012 voltei ao texto Quem era aquele homem Descobri que Ivanzir era professor aposentado da UFJF onde ministrou aulas nos cursos de farmácia medicina e enfermagem como convidado tendo sido responsável ainda por aulas nas ciências biológicas Aí comecei a ligar os fatos e pensar que aquele homem da história pudesse ser ele Mas e o Granbery O que ele estaria fazendo no colégio metodista antes de se dirigir para a Faculdade de Farmácia onde os corpos estavam Faltavam muitas peças para finalizar aquele quebracabeça Passei a telefonar insistentemente para os dois números deixados por Ivanzir no email Os telefones fixo e móvel chamavam mas ninguém atendia Só me restava ir até o endereço que havia mencionado na mensagem rua Anhanguera bairro Guaruá Assim que terminei minha jornada na Tribuna já de noite parti para lá Ao me aproximar do endereço meu coração saltava Sempre fico assim quando sou tomada pela emoção de uma história Toquei a campainha por diversas vezes bati palmas à porta chamei seu nome Apesar de as luzes da casa estarem acesas e o carro estar na garagem ninguém atendeu Decidi tocar a campainha do vizinho na esperança de conseguir alguma informação Dito e feito Um homem de meia idade apareceu à porta Oi sou jornalista e estou procurando por Ivanzir Sabe que horas posso encontrálo em casa O interlocutor fez uma cara de surpresa Então você não sabe Sabe o quê perguntei aflita Ele faleceu há dois meses em função de complicações no coração Agora quem estava atônita era eu Não acredito foi o que consegui responder Espera aí que vou te dar o telefone da esposa dele Desde a sua morte a Jovânia não vem muito aqui porque a casa tem muitas lembranças Minha cabeça fervia Eu me culpava havia chegado tarde demais e não teria a oportunidade de entrevistar uma testemunhachave como Ivanzir O vizinho escreveu num papel o telefone de Jovânia Eu estava muito desapontada Sentei no carro e precisei ficar ali por uns instantes para me refazer Quando cheguei em casa quase meianoite fui direto para o computador Precisava descobrir mais sobre Ivanzir Encontrei uma página dele no Facebook ainda ativa apesar de sua morte com diversos comentários antigos que revelavam um pouco da sua personalidade e irreverência Lamentei por não têlo conhecido Ainda na rede social vi uma foto dele um homem ainda bonito aos setenta e seis anos Estava decidida a saber tudo sobre ele e principalmente sobre o que aconteceu naquele dia em que ele testemunhou o comércio de corpos Embora o professor não tivesse mencionado datas na sua mensagem pude reconstituílas com base nos seus documentos pessoais e no material que recolhi no hospital Na carteira de trabalho de Ivanzir descobri que ele também foi professor no Granbery dando aulas no instituto de 1º de março de 1967 a 30 de julho de 1970 A contratação na UFJF se deu em 11 de março de 1968 Como uma das remessas de corpos para a UFJF ocorreu em fevereiro de 1970 pude fechar as datas já que em julho daquele ano ele se desligou do Granbery Também confirmei que em 1970 Salvador era técnico de anatomia da Faculdade de Medicina da UFJF Na manhã seguinte telefonei para Jovânia Difícil explicar para a viúva sobre um email que Ivanzir tinha enviado para mim em vida Apesar do luto Jovânia concordou em me receber um dia depois Imprimi o email do professor para que pudesse mostrar a ela Fui ao mesmo endereço indicado no contato e dessa vez ao tocar a campainha a porta se abriu Jovânia estava meio desconcertada Após os cumprimentos ela disse que só me recebeu por educação já que não poderia autorizar nada em nome do marido morto em 26 de março de 2012 Ivanzir Vieira Jovânia não estou aqui para pedir sua autorização pois Ivanzir já o fez Vim apenas conversar Com as mãos trêmulas ela pegou o email desconfiada Ao final da leitura caiu em prantos e eu também Por uma felicidade do destino Ivanzir autorizou textualmente o uso daquela informação como se inconscientemente soubesse que iria morrer em breve e que não teríamos tempo de conversar Prezada Daniela Arbex Creio que você sabe do quanto nos orgulhamos de seu jornalismo sério e de como ele vem contribuindo para ajudar os socialmente mudos Parabéns Lendo Denúncias e Ali tinha crime de lesahumanidade lembreime de ter escrito um pequeno artigo no qual abordava também o tráfico de corpos e que de alguma forma esse pudesse serlhe útil Pode utilizálo como quiser total ou parcialmente sem nenhuma restrição de minha parte Eu me sentirei honrado em contribuir De Ivanzir Vieira mailto ivanzirvieiraoicombr Enviada em sextafeira 25 de novembro de 2011 1433 Para Redação Geral Assunto SUBTERRÂNEOS DE UMA UNIVERSIDADE Prezada Daniela Arbex como todo juizforano tenho orgulho em poder usufruir da leitura de seus artigos como Denúncias e o de hoje Ali tinha crime de lesahumanidade E tenho orgulho também com esse Brasil que vêm reconhecendo o seu talento Porisso é com humildade que lhe apresento o artigo que escrevi há muitos anos e que está relacionado à sua atual abordagem Se de alguma forma desejar usar trechos ou qualquer citação autorizolhe fazêlo como bem entender citando ou não a fonte E obrigado pela oportunidade de me dirigir a quem muito orgulha Juiz de Fora Ivanzir Vieira Aposentado v Os meninos de Oliveira Q uando o superintendente do serviço de psiquiatria da Fundação Educacional de Assistência Psiquiátrica RonaldoSimões Coelho pisou no terreno do Hospital de Neuropsiquiatria Infantil localizado no município de Oliveira no oeste do Estado tomou um susto Logo ao chegar ao hospital do Estado em 1971 avistou um menino crucificado Apesar do sol inclemente o garoto que aparentava idade inferior a dez anos estava deitado no chão com os braços abertos e amarrados e o rosto queimado pela exposição ao calor de quase trinta graus Voltouse para a freira responsável pelo setor esperando alguma explicação Por que esse menino está amarrado nesse solão Se soltar ele arranca os olhos das outras crianças Tem mania respondeu a mulher com naturalidade E quantos olhos ele já arrancou Nenhum disse a religiosa Situações como essa se repetiam diariamente em Oliveira A instituição criada em 1924 como hospital psiquiátrico atendia a indigentes e mulheres mas mudou seu perfil em 1946 quando passou a receber crianças com qualquer tipo de deficiência física e mental a maioria rejeitada pelas famílias O depósito de crianças já despertava tristeza por si só Mas Ronaldo que esteve lá para conhecer as condições de funcionamento da unidade com capacidade para 300 vagas descobriu que a realidade poderia ser pior Elza Maria do Carmo filha de Oliveira tinha nove anos quando foi colocada para fora da ala feminina do hospital por uma menina mais velha do que ela O ano era 1956 Joice mandou que fosse buscar comida e apontou em direção ao mato Estava escuro e Elzinha como é conhecida até hoje tentou voltar para o quarto mas a garota não a deixou entrar Esta tapou a boca da pequena para que o choro não acordasse ninguém Sem opção Elza seguiu para o local indicado embora não conseguisse enxergar o caminho Entrou no meio da vegetação e apesar do medo cumpriu a ordem Esperava que as freiras dessem conta da sua ausência mas o tempo passava e nada A caminhada noite adentro foi interrompida abruptamente Um homem velho e gordo a puxou com violência Assim como Joice ele impediu que a menina gritasse Cheirava a bebida Surpreendeu Elzinha por trás e a imobilizou pela cintura Conseguiu abafar os gritos dela com as mãos quase a sufocála Eu estava de blusa e saia Ele tirou minha calcinha e fez maldade comigo Depois me deixou no mato ensanguentada chorando de dor Fui encontrada pela polícia que me levou de volta A dor mais forte porém eu senti no coração Pensei que fosse morrer ali Acho que morri um pouco conta Elzinha aos sessenta e sete anos Enquanto fala ela mantém sobre o colo a boneca que não teve na infância época em que foi internada em virtude de crises de epilepsia Sobre as décadas de internação ela se lembra de tudo menos de ter brincado Elza Maria do Carmo hoje Sobrevivente do Colônia ela foi estuprada dentro de uma instituição psiquiátrica aos nove anos A violência ocorrida contra a menina e mais tarde com outros tantos internados em Oliveira não foi responsável pela interdição do hospital de lá mas sim uma telha que caiu sobre a cabeça do diretor Quando o fechamento foi anunciado em 1976 trinta e três crianças de Oliveira foram enviadas para o Colônia em Barbacena Esperavam resgatar no novo endereço a infância roubada Logo perceberam que os tempos eram novos mas o tratamento não Em Barbacena elas passaram a dividir com os outros pacientes as condições degradantes do hospital E apesar de existir uma ala infantil ela era tão desbotada quanto as outras A diferença é que lá em vez de camas de capim havia berços onde crianças aleijadas ou com paralisia cerebral vegetavam Ninguém os retirava de lá nem para tomar sol Quando a temperatura aumentava os berços eram colocados no pátio e os meninos permaneciam encarcerados dentro deles Hiram Firmino jornalista de Belo Horizonte o segundo do país a entrar no Colônia em 1979 ficou tão impressionado com a cena que perguntou a uma secretária o que aconteceria com eles caso alcançassem a idade adulta A resposta foi dura como um golpe de navalha Ué Eles morrem A primeira morte que Maria Auxiliadora Sousa de Lima testemunhou no Colônia foi justamente a de uma criança A jovem funcionária tinha entrado na ala pela manhã quando viu um pequeno cadáver já enrijecido caído no chão ao lado da cama Deve ter morrido durante a noite e ficado horas ali esquecido Ela deu um grito Ele está morto gente corre aqui Dora você vai ter que se acostumar Isso acontece todo dia ouviu de uma colega Naquele momento Dora começou a se desencantar com o emprego Não queria ser cúmplice da desumanidade Mais do que isso Não queria desumanizarse Nascida em Barbacena foi admitida para o emprego no Colônia em 1º de abril de 1978 aos vinte anos após passar em primeiro lugar no concurso do Estado Começou trabalhando com os meninos e ficou conhecida pelas crianças da unidade como a Enfermeirinha Logo descobriu que não havia roupas de camas suficientes muito menos roupas Também constatou que as crianças do Colônia recebiam tratamento idêntico ao oferecido aos adultos permanecendo inclusive no meio deles Aqueles meninos sentiram na pele os maustratos das correntes dos eletrochoques da camisa de força do aprisionamento e do abandono A nova concursada presenciou ainda momentos emblemáticos no hospital como a cirurgia de lobotomia realizada em um garoto de apenas doze anos que sofria crises de epilepsia A cirurgia foi feita em 78 quando uma parte do cérebro do menino foi retirada A intervenção tem a finalidade de seccionar as vias que ligam os lobos frontais ao tálamo O procedimento foi utilizado no Colônia com o objetivo de conter a agressividade e fazer surtos cessarem O paciente ficou bem mas muitos doentes passaram a vegetar depois da cirurgia como João Adão o último lobotomizado do Colônia em 1979 A técnica ainda é realizada em algumas cidades brasileiras Maria Auxiliadora resistiu somente sete meses Em 13 de novembro de 1978 no mesmo ano da sua contratação a Enfermeirinha pediu seu desligamento do emprego público Levou na lembrança a expressão apavorada do menino de catorze anos que puxou sua saia implorando que ela impedisse o eletrochoque iminente Não deixe que façam isso comigo Enfermeirinha Foi em vão Maria Auxiliadora nada pôde fazer De longe assistiu ao menino se debatendo já que as descargas elétricas provocam convulsão Quando a boca do garoto começou a sangrar ela saiu de perto Apesar do pouco tempo na unidade ela presenciou o suficiente para não esquecer Ainda se recorda da distribuição do leite servido apenas uma vez por semana Por ser um alimento raro por lá o dia da entrega deveria ser feliz mas não era O leite chegava em tambores e nós éramos instruídas a servir à vontade Os meninos bebiam até vomitar Ainda assim sobrava Para não sermos punidas jogávamos o resto fora já que os recipientes tinham que voltar vazios Era terrível ver todo aquele leite ir para o ralo sem podermos guardar Maria Auxiliadora passou em primeiro lugar no concurso do Estado mas pediu demissão meses depois ao testemunhar as atrocidades no hospital Foi chamada pelas crianças de a Enfermeirinha Foto da carteira de trabalho dela com a folha de contratação à época e hoje A exfuncionária hoje com cinquenta e sete anos reside em Juiz de Fora com o marido policial militar e os filhos Conviveu com Marlene Laureano e disse que ela foi a única parte boa da sua passagem por aquele lugar Ela foi uma mãe para aqueles meninos Maria Auxiliadora cita algumas crianças internadas mas a imagem de Silvio Savat à época com onze anos é a que está mais nítida em sua memória Loiro e de olhos claros o filho dos ciganos André Savat e Nair Ostite foi criado na ala feminina do hospital Fotografado em 1979 por Napoleão Xavier ele aparece na imagem de vestido como se fosse uma menina Na ocasião o corpo dele estava coberto de moscas dando ao autor da foto a impressão de estar vendo um cadáver Assim como Elzinha Silvio havia deixado Oliveira em direção ao Colônia mas nenhum deles recebia visita das famílias Roberto o único garoto visitado por um familiar não chegou sequer a sair do hospital para passear conforme havia sido prometido Ele era chamado de Ted pelas funcionárias por se assemelhar a Ted Boy Marino o lutador de cabelo liso e dourado contratado em 1965 pela TV Excelsior onde participava de um quadro de luta livre O crime de Roberto foi ter nascido com hidrocefalia problema que provoca inchaço no crânio mas que tem tratamento Possuía traços bonitos mas não atendia aos padrões sociais experimentando a exclusão Com doze irmãos tinha uma mãe carinhosa entretanto por ser diferente dos outros a família decidiu que Roberto não poderia ficar entre eles De Goiás Roberto foi despachado para o hospital em Minas Por isso quando o pai avisou que ia ver o filho as funcionárias comemoraram Finalmente Ted um dos protegidos de Marlene Laureano teria um momento feliz Quem sabe até voltaria para casa Quando o homem chegou ao hospital sua expressão era endurecida A de Roberto ao contrário se iluminou Com nove anos ele correu para abraçar o pai que não via há quase um ano A emoção do encontro fez o menino ter uma pequena incontinência urinária Quando chegou perto do pai algumas gotas de xixi molharam a calça que estava vestindo a melhor roupa que as funcionárias encontraram O goiano até tentou esconder o desconforto diante daquela criança desajeitada mas não conseguiu Constrangido com o aspecto do filho o pai disse que sairia para buscar almoço Deixou a comida lá e nunca mais apareceu A indiferença paterna atingiu em cheio o coração do menino gordinho e sensível Deixado para morrer no Colônia ele foi definhando Não sucumbiu de fome nem de frio como os outros mas de tristeza Crianças mantidas em berços dentro do Colônia de onde não saíam nem para tomar sol Foto cedida por Jairo Toledo José Machado o Machadinho é sobrevivente do hospital Ele foi fotografado em 1961 e hoje Ainda mora dentro do hospital meio século depois Foto Roberto Fulgêncio Tribuna de Minas Aliás poucos conseguiram resistir a tantas adversidades Maria Cláudia Geijo cinquenta e um anos é uma das exceções Permanece internada até hoje no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena Atualmente mora em um dos módulos residenciais da instituição transformada em hospital regional Sem família experimenta dias melhores do que aqueles da sua adolescência quando aos vinte anos ela foi fotografada nua e rastejando no interior da unidade A prolongada falta de estímulos agravou o quadro psiquiátrico tornando a ainda mais dependente Hoje ela tem dificuldade para cuidar de si mesma O registro de José Machado o Machadinho é de número 1530 A informação que mais se aproxima da verdade é que ele deu entrada na entidade em 1959 conduzido pela polícia após ser acusado de colocar veneno na bebida de alguém Ele trabalhava numa empresa de café e mesmo sem ter sido julgado foi sentenciado à pena de morte a internação no Colônia Inocente passou a vida encarcerado Hoje aos oitenta anos após meio século de institucionalização precisa de uma cadeira de rodas para se locomover mantendose reticente na presença de estranhos Fechado dentro de si mesmo talvez tenha guardado num canto da memória tudo que passou naquele campo de concentração até conhecer um pouco de dignidade Além de Maria Cláudia e Machadinho outros 177 pacientes asilares estão sob a guarda do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena CHPB embora a sua sobrevida seja estimada em no máximo mais uma década Quando a história do Holocausto Brasileiro começou a ser retratada por mim em 2011 os vivos eram 190 Cibele Aquino internada aos catorze anos no Colônia morreu em 2011 aos sessenta e oito anos dentro do hospital A foto que abre este capítulo é dela à época da internação Maria Cibele de Aquino sessenta e oito anos uma das baixas de 2011 faleceu após cinquenta anos de internação Despediuse da vida na companhia das bonecas que ninou durante toda uma vida de aprisionamento Chegou ao hospício aos catorze anos e nunca saiu de lá Elzinha teve mais sorte do que Cibele Recebeu alta em 2004 após trinta e sete anos de institucionalização quando foi levada para uma residência terapêutica em Barbacena Com cinquenta e sete anos foi a primeira vez que morou em uma casa de verdade Filha de pai e mãe desconhecidos ela já estava hospitalizada em Oliveira quando tomou consciência de si mesma ainda na idade infantil Por isso ter um lugar seu era mais do que uma libertação Significava um reencontro com a sua individualidade É difícil compreender como depois de tantos anos de sofrimento Elzinha ainda consegue sonhar O fato é que a casa onde ela vive tem alma É possível sentir isso desde a entrada onde a varanda desperta sensação agradável No imóvel do bairro Belvedere os tons pastel ficam do lado de fora Lá dentro o colorido impera A colcha da cama da filha de Oliveira é amarela com detalhes em floral Já a cortina verde é igualmente estampada A toalha de mesa estendida na copa também tem tons fortes mas é na sala de estar que Elzinha finalmente conseguiu materializar um desejo antigo ter sofás vermelhos quase no mesmo tom do esmalte que usa A mobília contrasta com o piso claro da sala reforma custeada por ela e pelas outras cinco residentes do lugar com o benefício de quase mil reais pago pelo governo a cada uma A tal comida boa que a exinterna do Colônia Sônia Maria da Costa tanto se refere também está lá Na mesa farta broa pão bolo e um riso gostoso de pessoas que se sentem verdadeiramente em casa O cheiro de café impregna o ambiente Juntas elas conversam assistem à novela brigam criam as regras do lugar e tentam reconstruir um mundo novo Separadas elas lutam para se reinventar e superar os próprios medos Aqui eu só sinto falta de uma coisa visita Seria muito bom se eu tivesse um irmão alguém que viesse me ver afirma Elzinha Cento e sessenta pacientes vivem hoje nas vinte e oito residências terapêuticas de Barbacena A maioria oriunda do antigo Hospital Colônia além de internos da Casa de Saúde Xavier e do Sanatório Barbacena VI A mãe dos meninos de Barbacena O apito da chaleira avisava que a água havia levantado fervura Em pouco tempo o cheiro de ervacidreira impregnava os cômodos da Casa Amarela Na mesa de oito lugares o pão repartido simbolizava o instante de celebração Os convidados foram chegando e tomando cada um seu lugar na sala Os moradores sentaramse no chão Todos sabiam que aquele 21 de novembro de 1998 em Belo Horizonte era um momento único quase improvável Na vitrola a música clássica contornava o silêncio que se fazia de vez em quando Ao cair da tarde os visitantes foram embora Era hora de apropriarse do espaço Uns buscaram a rede outros o balanço e houve quem só desejasse andar pelo imóvel a fim de explorálo Permaneceram assim por um tempo até que os sete residentes seguiram para os quartos onde cada um escolheu sua cama A movimentação era acompanhada de perto pela oitava pessoa do grupo Após dezoito anos de luta Mercês Hatem Osório pôde finalmente realizar um sonho antigo oferecer aos meninos de Barbacena agora adultos o lar que nunca tiveram Dos trinta e três meninos e meninas enviados de Oliveira para o Colônia seis vivem Além de Elza Maria do Carmo e Maria Cláudia Geijo ambas residentes em Barbacena sobreviveram Silvio Savat hoje com quarenta e quatro anos Antônio Martins Ramos o Tonho que em 2012 completou cinquenta anos Wellington Albino 43 e Wanda Lucia 41 Os quatro são moradores do Lar Abrigado um braço do Centro Psíquico da Adolescência e Infância CEPAI Quando eles chegaram a Belo Horizonte em 1980 não pareciam meninos mas bichos assustados Estavam sujos não sabiam comer nem ao menos usar o banheiro Passaram a infância sem receber estímulos e por isso o quadro de deficiência agravouse Silvio por exemplo o menino confundido com um cadáver em 1979 mal conseguia se sentar Rastejava em boa parte do tempo O Silvio como os outros chegou aqui imundo Vieram para passar um dia e acabaram ficando a vida inteira Quem os recebeu ficou chocado com o estado dos vinte e tantos meninos de Barbacena Fizemos todo um trabalho de resgate da cidadania Nenhum dos quatro vivos fala mas a gente entende o que eles querem inclusive seus gritos O bonito de verdade é que eles não têm mais o olhar perdido As impressões são da coordenadora do Lar Abrigado irmã Mercês como é chamada a freira Aluna do Colégio Helena Guerra em Belo Horizonte integrou mais tarde a comunidade religiosa homônima Na instituição aprendeu a ensinar sem cartilha e a preparar as aulas com base no universo dos alunos Com a ajuda deles escrevia os próprios livros didáticos cujo material era retirado da vivência de cada um O método humanizado prosperou A psicopedagoga alfabetizou crianças pobres e excluídas no bairro Eldorado Quem sabia mais ajudava os que menos sabiam Passou três anos trabalhando com os índios no Amapá Também atendeu a moças especiais na Itália onde se radicou em 1973 em função da perseguição promovida nos anos de chumbo contra as freiras do convento Helena Guerra Como se recusou a adotar palavras de ordem nas suas lições Mercês se viu obrigada a deixar o país para onde só retornou dez anos depois Silvio Savat exmenino de Barbacena fotografado em 1979 confundido com um cadáver Tinha o corpo coberto de moscas Silvio sobreviveu e hoje reside em Belo Horizonte no Cepai Foto de cima Napoleão Xavier Gontijo Coelho Na cidade de Assis em Roma trabalhou em cooperativas de saúde ligadas ao psiquiatra italiano Franco Basaglia Naquele ano de 1973 o Serviço Hospitalar de Trieste dirigido por Basaglia foi considerado pela Organização Mundial da Saúde OMS referência mundial para a reformulação da assistência à saúde mental Num gesto de coragem o italiano armou os doidos do hospício com martelo para que juntos destruíssem o prédio Simbolicamente o ato de vandalismo foi a ruína de um modelo de atendimento centrado no isolamento Impressionada com o trabalho de Basaglia Mercês decidiu convidá lo para conhecer as atividades que ela e outras irmãs estavam desenvolvendo com as mulheres portadoras de transtorno mental Na data marcada o autor da mais importante reforma do sistema de saúde mental italiano esteve no endereço indicado passando a tarde conversando com Mercês Ele gostou do que viu lá e ela do que ouviu do médico considerado um ícone na humanização da psiquiatria No retorno ao Brasil em 1983 a freira decidiu que seria eremita Mas em vez da vida contemplativa fez do coração da cidade de Belo Horizonte o seu mosteiro Assim Mercês foi parar na creche central dos filhos de funcionários da Fundação Hospitalar de Minas Gerais Fhemig que na década de 70 assumiu o Hospital Colônia Mais tarde no Centro Psíquico da Adolescência e Infância conheceu os meninos de Barbacena e começou a escrever com eles uma nova história de vida A irmã desafiou a incredulidade da classe médica ao propor que os sobreviventes do holocausto brasileiro conquistassem o direito a uma casa Quando o imóvel começou a ser montado em terreno anexo ao hospital a religiosa iniciou o processo de transição Diariamente levava os futuros moradores até lá para passarem algumas horas Vocês vão morar aqui dizia Mercês Quando a mudança foi concretizada a psicopedagoga começou a ensinar do seu jeito Agora temos uma casa nova Então precisamos aprender a não fazer xixi no chão Durante meses irmã Mercês levava os filhos de Barbacena ao banheiro onde passava pelo menos quarenta minutos com cada um no intuito de fazêlos aprender a usar o sanitário Não desanimava nem quando era surpreendida por urina e fezes pela casa Que pena que você fez no lugar errado Além de evacuarem no chão os meninos estavam habituados a passar fezes na cabeça uns dos outros No primeiro dia que cheguei ao quarto pedi coragem a Deus para entrar forrar o chão e começar Quando eles conseguiam chegar ao banheiro Mercês os incentivava Parabéns Você fez no lugar certo Para ajudálos a se alimentar sozinhos a religiosa passou a colocar o prato de almoço na mesa Oferecia uma colherada a cada um e perguntava Está gostoso meu filho Seu prato está lá na mesa Sua caneca de água também No início não foi fácil ensinálos A Nina por exemplo demorou seis meses para aceitar um colchonete algo bem diferente para quem dormiu noites a fio sobre o chão A certa altura Mercês ouviu a sugestão de usar um sininho para condicionar os meninos como se faz com ratos de laboratório Recusouse Quarto onde os meninos de Barbacena dormem na residência terapêutica de Belo Horizonte Não conheço nenhuma casa em que se usem sininhos para ensinar crianças retrucava Mais tarde ela pediu aos médicos que diminuíssem as medicações que mantinham os meninos robotizados Queria conhecer a personalidade deles e como agiam sem os efeitos da medicação Mas não podemos fazer isso irmã Não vê que ela está muito agitada Sem remédios vai quebrar a casa inteira ponderou um dos médicos referindose a Nina egressa da instituição Caminho para Jesus Agitada como questionava Mercês Com sensibilidade ela acabou descobrindo que as tais crises nervosas de Nina coincidiam com o período menstrual da paciente Como ela não tinha condições de verbalizar o momento de TPM nem as cólicas ficava irrequieta às vezes virava a cadeira a cama e até a mesa Por isso a religiosa passou a marcar na agenda a data da menstruação de cada uma Quando a choradeira começava ela consultava as datas no caderno confirmava que as regras estavam para chegar e iniciava o tratamento preventivo com óleo de prímula uma planta originária da América do Norte Olha Nina é chato mesmo mas nós vamos te ajudar confortava a freira Assim com olhar holístico Mercês fez cessar as tão temidas crises de agressividade das meninas Nossa irmã O que aconteceu na Casa Amarela Não ouço mais ninguém chorando perguntou o farmacêutico da vizinhança Mercês apenas sorria benditas sejam as cápsulas de prímula pensava embora tivesse receio de alardear os efeitos benéficos da terapia e ferir o orgulho dos médicos e seus diagnósticos complicados Assim a coordenadora foi quebrando tabus Mostrou que os meninos não gostavam de ficar pelados como parecia apenas foram acostumados assim Se não usavam roupas era porque não tinham acesso a elas No Lar Abrigado eles passaram a vestir cuecas e a calçar sapatos após mais de uma década sentindo a aspereza e o frio do chão de Oliveira e Barbacena Ficaram tão encantados com a possibilidade de usar tênis e sandálias que no início não aceitavam ficar descalços No começo a Lu não queria tirar o sapato nem para dormir Eu deixava porque sabia que era a única coisa que ela gostou e teve na vida Na hora do banho ela chorava porque tinha que tirar o calçado Então pensei Vamos comprar um chinelo para a hora do banho Funcionou Mercês também aboliu a raspagem dos cabelos porque defendia que cada um precisava ter sua identidade Assim foi feito A motivação da coordenadora contagiou os atendentes Mais do que bons profissionais Mercês queria boas pessoas cuidando ao lado dela dos egressos de Barbacena Olha o Silvio está vestido Nossa a Nina está calma ouvia dos médicos Após convencer a comunidade terapêutica da capacidade de os meninos se desenvolverem a coordenadora entendeu que precisava vencer o preconceito social Cansou de ver pessoas atravessando a rua para não passarem em frente à Casa Amarela principalmente quando os meninos estavam na porta Fazia questão de convidar os moradores do entorno para conhecerem o imóvel Desconcertados diante da atitude de gentileza muitos se viam obrigados a entrar Acabaram pegando simpatia Alguns vizinhos começaram a visitar regularmente os meninos aprenderam seus gostos compraram presentes Mercês só sossegou quando os olhares de desprezo passaram a exibir compreensão Nessa longa jornada ela foi encontrando parceiros Da cabeleireira à dentista muitos profissionais foram seduzidos pela causa dos meninos de Barbacena A comunidade aos poucos foi enxergando o ser humano por trás da deficiência que os fazia babar ou passar o dia balançando o corpo de frente para trás Aos poucos a freira conseguiu que tivessem seus direitos resgatados Eu tive a alegria de fazêlos mais feliz Nós queríamos que a sociedade fosse nossa parceira nisso A comunidade passou a chamar cada um pelo nome a não atravessar mais a rua Às vezes traziam bolo Entre e coma com eles sugeria As pessoas diziam que nunca tinham visto um lar abrigado para pessoas tão deficientes mas eles foram aprendendo a conviver Esse compromisso de eles terminarem juntos aliás é uma dívida que a Fundação Hospitalar de Minas Gerais tem com eles Devem ficar juntos até o final pois se consideram irmãos Eles não vão embora daqui porque a casa é deles Há quatro anos Mercês experimentou uma emoção nova ao pegar a curatela dos moradores do Lar Abrigado O nome dela passou a constar no documento deles Simbolicamente passou a ser a mãe dos meninos de Barbacena Eu escolhi dividir a minha vida com eles O direito que eu tenho de ser feliz todos eles têm explica Dos seis sobreviventes de Barbacena Tonho é o que alcançou certo nível de independência A religiosa o ensinou a andar sozinho na rua e a pegar ônibus Foi adotado pela paróquia local aprendeu artesanato tomou gosto pela dança Em 2012 quando os cinquenta anos de Tonho se aproximavam a coordenadora do Lar Abrigado decidiu que uma grande festa seria realizada Celebraria não só o meio século de vida mas também o renascimento do menino que sobreviveu a décadas de maustratos Com a intenção de preparar a comemoração a religiosa acionou sua rede de colaboradores Depois que ele escolheu o circo como tema Mercês iniciou os preparativos Contatou a dona de uma casa de festas O aniversário do exinterno do Colônia teria bufê garçom música Seria uma festa de verdade daquelas que deixam saudade quando acabam A comunidade foi convidada e o encontro marcado para o dia 30 de maio O aniversário começaria às 18 horas e teria o pátio do Pronto Atendimento do Centro Psíquico da Adolescência e Infância como cenário embora o hospital estivesse transformado pela magia circense Antônio Martins Ramos o Tonho é outro exmenino Completou cinquenta anos em 2011 Mercês estava quase ansiosa Pensava em como seria decepcionante se as pessoas não aparecessem Mas nem em suas melhores projeções ela poderia imaginar que a festa de Tonho seria tão disputada Além do padre da paróquia e das crianças da redondeza os vizinhos mais resistentes apareceram Nove professores de dança de salão também O aniversariante vestia roupas novas Ele e os outros ex meninos de Barbacena Era a primeira vez que os feitos irmãos pela convivência seriam anfitriões Todos sem exceção tiveram comportamento impecável Os votos de saúde e paz vieram acompanhados de muitos presentes tantos que Tonho ganhou em numa única noite mais do que em meio século de vida A certa altura da festa a música movimentou os convidados Todos dançaram esquecendose de onde estavam As diferenças desapareceram Não havia mais doentes nem os considerados sãos Havia apenas gente que se mostrou capaz de gostar de gente Quando tocou samba Tonho se levantou Venceu a timidez e dançou por mais de meia hora com um pandeiro nas mãos Seus passos eram ritmados o rosto ficou transfigurado de emoção Não havia nem sombra de sua deficiência Roubou a cena e hipnotizou a plateia Ganhou lucidez impressionante Seu coração batucava descompassado dentro do peito Estava inundado de felicidade Não sabia que poderia sentir alguma coisa diferente de medo dor e rejeição Ele sorria Mercês chorava VII A filha da menina de Oliveira S entada na linha do trem Débora Aparecida Soares vinte e um anos esperava pela morte Havia tomado vinte comprimidos minutos antes mas não teve paciência de esperar a superdosagem fazer efeito Como queria garantir que nada sairia errado ela partiu para a estrada de ferro a mesma por onde havia passado o trem da solidão coletiva com parada obrigatória no Colônia Trinta minutos haviam transcorrido e nada de a morte chegar Nem para se matar ela servia pensava Naquele 23 de dezembro de 2005 sentiase profundamente só Não conseguia se encaixar na vida pelo menos naquela que tinha levado até agora Foi salva por uma amiga que a encontrou nos trilhos e a levou de volta para casa A essa altura os remédios começaram a provocar malestar A estudante da faculdade de letras já não conseguia mais coordenar as ideias sentia a consciência se esvair O serviço de emergência foi acionado e Débora levada para o hospital regional da Fundação Hospitalar de Minas Gerais construído nas dependências do antigo pavilhão do Colônia o Afonso Pena Passou a noite lá onde foi submetida a uma lavagem intestinal Mas nenhum procedimento médico foi capaz de arrancar de dentro dela o vazio que sentia A sensação de não pertencimento ao lugar em que cresceu sempre a acompanhou Já na infância ela não reconhecia a família com quem vivia apesar do amor que nutria pelo pai e pelo irmão cinco anos mais velho Com a mãe a relação era conflituosa Sentiase diferente dela mas não compreendia o motivo De fato era uma criança triste sem retratos cercada de silêncio Até o seu ambiente de brincadeiras era estranho Quando criança recordase de correr pelos pavilhões do Colônia onde a mãe Jurema Pires Soares trabalhava como auxiliar de enfermagem Aquelas mulheres nuas e de cheiro ruim eram suas tias Sempre que Débora chegava elas a chamavam de neném e queriam pegála no colo Ela também se lembra de ter crescido com horror ao tom de azul do uniforme do hospital de Barbacena Aquilo sim metia medo Aos sete anos numa de suas incursões pelo hospício a menina conheceu uma paciente Tia por que você está aqui Porque não tenho casa Mas tenho duas filhas E onde elas estão Queria brincar com elas Isso eu não sei respondeu a mulher com os olhos úmidos A menina não entendeu nada Despediuse com um abraço e continuou correndo por entre as camas da instituição Uma funcionária que assistia a tudo de longe virou as costas para esconder o pranto O tempo passou e a chegada da adolescência foi ainda mais difícil Débora sentiase constantemente cobrada pela mãe como se ela não fosse filha mas um investimento Aos vinte anos a angústia sufocava a jovem Decidiu sair de casa mudouse para a também mineira São João delRei onde prestou vestibular para a faculdade de letras Um ano depois voltou de férias para casa quando descobriu que seu nome e cartões haviam sido usados por Jurema sem sua autorização Depois de uma séria discussão com a mãe ela decidiu que não queria mais viver Não encontrava nada da mãe nela e nem mesmo entendia por que se sentia tão infeliz Débora levou dois anos para perceber que precisava passar sua história a limpo Em 2007 decidiu procurar uma antiga babá em quem confiava Queria saber o que havia de errado com ela A resposta no entanto veio em forma de revelação Nada minha filha Mas já é hora de você saber a verdade Você foi adotada Sua mãe se chama Sueli e está lá na Fhemig A reação de Débora foi surpreendente Se isso for verdade será um grande alívio Agora tudo começa a se encaixar respondeu a jovem que já desconfiava de sua origem Antes de sair da casa da babá ela ainda se observou no espelho O que será que eu tenho da minha mãe biológica A estudante correu para casa para se aconselhar com o irmão No fundo ele já imaginava que ela pudesse ser filha de uma paciente do Colônia porque não viu a barriga da mãe crescer Foi apresentado à menina dentro de um berço no antigo hospital Essa aqui é sua irmãzinha disse Jurema ao filho mais velho Mesmo tendo apenas cinco anos ele guardou na lembrança aquela imagem Mais tarde descobriu que também era adotado embora não fosse filho de uma paciente do hospício como a irmã Instintivamente a universitária já amava a mãe que ainda não conhecia Estava embalada pela certeza de que a mulher que a pariu não a havia abandonado mas foi impedida de ficar com ela Nem o fato de ser filha da loucura a perturbou Débora não sentia vergonha da mãe Desejava muito estar com ela Primeiro precisava ouvir Jurema Frente a frente a mãe e a filha adotiva tiveram uma conversa dura Aos vinte e três anos a jovem ouviu que a mulher que a gerou era desprezível comia ratos deitavase com qualquer um Sabia que aquela versão guardava a pior parte da história e estava decidida a superar isso também Débora Aparecida Soares nasceu dentro do hospital e foi doada ao nascer Hoje tem vinte e sete anos Você pode dizer o que quiser Que Sueli matou alguém que ela é um monstro mas é sobre a minha mãe que está se referindo A noite chegou e Débora não conseguia dormir Tinha pressa que o dia clareasse para se encontrar com seu passado Quando a luz do sol entrou pelo quarto a jovem já não estava lá Partiu antes carregando na bagagem um plano de vida para ela e Sueli Se não conseguisse retirar a mãe do hospital a estudante se internaria A rápida viagem de São João delRei até Barbacena cerca de uma hora de ônibus pareceu uma eternidade Ao avistar o portão da sua infância o coração da jovem acelerou Faltava ar suficiente nos pulmões a mão estava gelada A filha de Sueli respirou fundo e seguiu Na secretaria perguntou pela paciente Foi levada a um dos pavilhões femininos e apresentada à Sueli Não demorou muito para descobrir que aquela não era quem procurava Nesse mesmo pavilhão ela descobriu o sobrenome da mãe Rezende Agora sim estava muito próxima de tocar a mulher de quem foi separada nos primeiros dias de vida E onde a encontro Débora sentiu a face de sua interlocutora mudar O sorriso deu lugar a uma expressão de lamento Infelizmente ela faleceu há um ano A frase soou como um tiro De repente Débora sentiase à beira do abismo de novo O desfecho da história não podia ser aquele Onde estavam os finais felizes Havia perdido pela segunda vez a pessoa que julgava ser a mais importante da sua vida Precisava levar consigo um pouco dessa mãe não aceitava voltar para casa de mãos vazias Conhecer o passado de Sueli tornouse quase uma obsessão No hospital a estudante conseguiu recolher fotos dela e alguns poucos pertences O mais significativo é um terço rosa que guarda como relíquia Depois de alguma insistência a filha de Sueli ganhou um passaporte para embarcar nos mais de trinta anos em que a mãe ficou institucionalizada Sabia que não estava preparada para uma viagem ao interior do Colônia mas a certeza maior era que precisava encontrar Sueli nem que fosse em suas memórias Quando os prontuários da paciente mais famosa do Colônia foram liberados Débora sorveu cada informação Passou quinze dias trancada em uma sala da instituição lendo tudo Assim pôde saber que no dia do seu nascimento a louca do Colônia estava plena de sanidade Débora Aparecida Rezende nasceu prematura no dia 23 de agosto de 1984 às 17h50 mas com boas condições de vitalidade O parto normal ocorreu pelo método Leboyer de cócoras e teve excelente colaboração da paciente Apesar do esforço a paciente não conseguiu amamentar a recémnascida a mesma sugou poucas vezes O doutor Bartolomeu ligou para saber do bebê e disse que caso a mãe não consiga alimentar a filha é preciso oferecer Nestogeno Como o hospital não tem demos cinco gramas de glicose Sueli não só ajudou no parto normal como também lutou feito uma leoa para amamentar sua cria Não conseguiu Dez dias depois de dar à luz ela teve a filha tirada de seus braços Pelo menos três dezenas de bebês nascidos no Colônia foram doados logo após o nascimento sem que suas mães biológicas tivessem a chance de ninálos É compreensível que depois disso muitas mulheres tivessem de fato enlouquecido Sueli Aparecida Rezende procurou por Débora a vida inteira Sonhava com o dia em que poderia tocar a menina e ver de perto um pedaço seu Os prontuários do hospital revelam que nos vinte e dois anos seguintes ao parto ela se lembrou de todos os aniversários da filha rezando por ela com o terço rosa Sueli Rezende morreu em 2011 antes de reencontrar a filha Débora Foto cedida por Débora Soares No mês que vem minha filha vai fazer dezoito anos doutora Vim aqui dizer que eu gostaria de estar em casa nesta data O pedido foi dirigido à assistente social da instituição em 2002 quando Sueli completava trinta e um anos de internação no Colônia A proximidade do aniversário de Débora sempre foi acompanhada de choro e crises registradas nos prontuários Uma mãe nunca se esquece da filha mesmo quando não está mais com ela repetia Sueli por anos a fio A mulher impedida de ser mãe também não conseguiu ser filha Nasceu em Passos de Minas sendo a caçula de sete irmãos Desde pequena no entanto sofria de crises de epilepsia que a afastaram do convívio dos pais Aos sete anos morava com o tio Raimundo em Belo Horizonte dono de um armazém No grupo em que estudava passou a trocar favores sexuais por merenda Aos oito anos foi entregue ao juizado de menores e encaminhada para Oliveira aonde chegou a receber algumas visitas da família Em 1971 quando Sueli deu entrada no Colônia perdeu o contato com seus parentes De dentro do hospital de Barbacena ela só saiu morta em 2006 aos cinquenta anos sem realizar o único sonho que alimentou na vida encontrarse com Débora a filha que teve com José Malaquias paciente de Santos Dumont levado para a instituição por causa de alcoolismo A história de Sueli no Colônia foi pintada com cores fortes Ela devolveu com violência toda a crueldade que sofreu Agiu sem piedade consigo mesma e com os outros Arrancou orelha de muitos pacientes Elzinha foi uma de suas vítimas e se mutilou Usou grampos para ferir os pulsos enfiou cabo de vassoura na vagina arrancou o próprio dente A cada sessão de choque que tomava espalhava o mesmo terror que lhe havia sido imposto O comportamento dela rendeu muita represália Foi espancada várias vezes inclusive pelas colegas de pavilhão e colocada nua na cela apesar do frio que cortava a pele Para fugir das agressões impostas por funcionários ela chegou a passar uma semana escondida no porão do hospital Quando conseguia Malaquias roubava alguma comida e levava para ela Porém como os alimentos nunca foram fartos apesar de haver registro de compras generosas em nome do Colônia ela acabava passando muita fome Assim nessa condição subumana alimentouse de ratos Sueli Rezende O prontuário do mês de setembro de 1981 indica mais um surto de Sueli Alegando estar faminta ela pegou uma pomba no pátio estraçalhou e comeu na frente de todos dizendo que era seu único alimento A cena chocante foi vista por centenas de pessoas inclusive pelos atendentes mas ninguém conseguiu enxergar o óbvio em que a jovem paciente havia se transformado em uma década de internação Tratada como bicho ela comportavase como um Decididos a conter a agressividade de Sueli os médicos reuniramse Depois de horas de discussão apresentaram como sugestão uma medida arrancar a arcada dentária da paciente A ideia medieval não foi levada a termo O psiquiatra de Belo Horizonte Wellerson Alkmim membro da Associação Mundial de Psicanálise conviveu com a exmenina de Oliveira O médico conta que mesmo com a personalidade deteriorada Sueli tinha um excelente humor Conseguia ser divertida e carismática Em uma das ocasiões em que foi flagrada fazendo sexo com um paciente próximo ao módulo residencial do hospital teve o comportamento questionado pelo funcionário Mas o que é isso Sueli Por que está com a calça arriada Por nada uai Será que não posso nem rezar gente Parece maluco A interna saiu andando como se nada tivesse acontecido embora estivesse só de blusa Sueli cansou de cantar o psiquiatra Leonardo Tollendal que cuidou dela nos anos finais da internação Sem ninguém na vida a paciente havia se ligado a ele tornandose dependente não só dos seus cuidados mas também de sua atenção Às vezes o chamava de pai mas quando os hormônios afloravam não tinha censura Um dia ainda te pego dizia Sueli com malícia Ele ria Também é de Sueli a letra da música que se tornou hino no hospital As estrofes ritmadas fazem uma clara crítica ao modelo manicomial e ao isolamento que aprisionava a alma Ô seu Manoel tenha compaixão Tira nós tudo desta prisão Estamos todos de azulão Lavando o pátio de pé no chão Lá vem a boia do pessoal Arroz cru e feijão sem sal E mais atrás vem o macarrão Parece cola de colar bolão Depois vem a sobremesa Banana podre em cima da mesa E logo atrás vêm as funcionárias Que são umas putas mais ordinárias José Manuel de Rosa Lucinda pessoa a quem a letra se refere foi um dos gerentes administrativos linhadura do hospital nos anos 70 Passadas mais de três décadas da criação da composição a música ainda é lembrada pelos sobreviventes do campo de concentração em que o Colônia se tornou A letra também ficou imortalizada no documentário Em nome da razão dirigido por Helvécio Ratton em 1979 Na gravação Sueli aparece cantando Somente no final da década de 90 quando oficinas terapêuticas e atividades extramuros começaram a ser implantadas no hospital é que a agressividade de Sueli perdeu força Ela aprendeu a bordar Descobriu novas formas de prazer porém nesse momento da vida já estava tomada pela depressão e por problemas cardíacos Dois anos antes de morrer Sueli demonstrava intenso sofrimento Me sinto sozinha igual ao tempo em que eu ficava na cela pelada comendo bicho Não consigo dormir à noite Meu coração dói de saudade das minhas filhas Além de Débora Sueli deu à luz outra menina em 15 de junho de 1986 Luzia como foi chamada também foi arrancada de seus braços Sobre o destino da menina não há qualquer pista Em 22 de agosto de 2005 a paciente teve uma nova crise Amanhã é aniversário da minha filha morena e não tenho nenhum retrato dela Não sei se está viva ou morta Gostaria de vêla Naquele mesmo ano a paciente passou seu último Natal internada no hospital regional mesmo lugar para onde Débora foi levada por causa da tentativa de suicídio Por ironia do destino mãe e filha estavam a poucos leitos uma da outra Em janeiro de 2006 Sueli não resistiu ao infarto Faleceu chamando por Débora Puxando na memória a filha morena da menina de Oliveira retorna aos seus sete anos no dia em que conversou com uma paciente do hospício de Barbacena dentro do pavilhão feminino Lembrouse de a mulher ter lhe dito que era mãe de duas meninas Percebeu então que era uma delas Sem saber mãe e filha estiveram nos braços uma da outra por alguns segundos Por isso a funcionária havia saído do pavilhão para chorar Todos conheciam a história delas menos Sueli e Débora vítimas da loucura dos normais VIII Sobrevivendo ao holocausto VIII Sobrevivendo ao holocausto N a beira do Itacambiruçu Donana batia as roupas nas pedras do rio de areia fina e branca Analfabeta Ana Pereira de Oliveira trinta e quatro anos mantinha a família com o dinheiro que ganhava como lavadeira da pequena cidade de Grão Mogol no norte de Minas Gerais Tinha perdido o marido havia dois anos Em 30 de setembro de 1933 Antônio Bispo de Melo morreu engasgado e não houve socorro capaz de evitar a asfixia que lhe roubara a vida Sozinha e com dois filhos a mulher envelheceu no ofício que herdou da mãe Depois de quarar a roupa nas margens do lugar que hoje é conhecido como Praia do Vau endereço dos antigos garimpeiros de diamantes da região ela fazia uma trouxa que carregava na cabeça pela pequena cidade Donana só começou a sentir o peso da existência quando Luizinho o filho mais velho passou a dar sinais de esquisitice em 1950 Calado o rapaz de dezesseis anos cresceu sem amigos Não brincava descalço nas ruas de terra como os meninos da sua idade preferindo o isolamento na casa simples de parede de barro onde morava Quando a notícia de tratamento médico chegou aos ouvidos da mulher ela decidiu autorizar o encaminhamento do filho para o hospital de neuropsiquiatria de Oliveira o mesmo para onde haviam sido mandados Silvio Elzinha Tonho e tantos outros Foi convencida de que o menino sofria de doença mental e por isso precisava ser internado No dia marcado quando as crianças começaram a ser recolhidas pelos municípios vizinhos ela arrumou Luizinho com a melhor roupa do filho A blusa branca de manga longa já com tecido puído e uma calça reformada única herança deixada pelo pai Passou a mão para ajeitar a camisa e os cabelos crespos do garoto negro e de voz excessivamente rouca para alguém da sua idade Deus te abençoe fio A mãe vai ficar aqui rezando por ocê Logo a gente se encontra Foi a última vez que Luiz Pereira de Melo hoje com setenta e oito anos viu a mãe Tratado como propriedade do Estado o menino hospitalizado apenas por ser tímido se separou da família sem diagnóstico de loucura embora não tenha sido difícil arranjar uma doença para ele Qualquer moléstia mental serviria afinal o rapaz era filho da pobreza como a maioria dos depositados nos manicômios do Estado De Oliveira o menino seguiu para o Colônia em 24 de fevereiro de 1952 onde perdeu a noção dos anos Sabe apenas que foi tempo demais o suficiente para manter o coração preso na saudade que tinha de casa e das mãos ásperas da mãe lavadeira Quando Donana tocava seu rosto ele se sentia o mais rico dos garotos pois tinha o melhor carinho do mundo Em Barbacena o jovem experimentou a covardia e a escravidão Recrutado por um funcionário do hospital que decidiu ganhar dinheiro nas costas daquela gente Luiz passou a construir de graça casas populares que o tal homem vendia A exploração da sua mão de obra no entanto não foi o que mais doeu e sim as humilhações impostas Por qualquer coisinha de nada ele me dava um coro batendo com a mão aberta no meu rosto e orelha relembra Luiz enquanto come um prato de arroz e feijão entre um e outro gole dágua Luiz Pereira de Melo hoje com setenta e oito anos sobrevivente do holocausto foi internado aos dezesseis anos Fotos de 1961 e de hoje Ele também se lembra das intermináveis noites de frio em Barbacena quando os pacientes faziam um mutirão de camas para passar a noite Juntar as camas sem lençol ou cobertor e dormir amontoado era uma tentativa de acordar vivo no dia seguinte Em Grão Mogol Donana sofria sem notícias do seu menino Como não conhecia as letras pedia aos vizinhos que escrevessem cartas e as enviassem para Luizinho Ele nunca as recebeu Todos os dias ela estendia um pano na cama do menino que poderia chegar a qualquer momento Assim quando ele voltasse encontraria tudo como antes O retorno não aconteceu e ela foi definhando O pranto da lavadeira ficava mais forte à beira do rio Ali de frente para as águas escuras do Itacambiruçu ela deixava as lágrimas lavarem o rosto encarquilhado pelo sol escaldante e pela vida miserável Onde estará meu fio Deus do céu Donana faleceu aos setenta e cinco anos sem resposta No dia da sua morte ela ainda deixou a cama de Luizinho arrumada como fez nos últimos trinta e dois anos Agora havia duas camas vazias Com a morte da mãe ocorrida em 14 de julho de 1976 a filha Maria Tereza de Melo acabou indo parar na rua Lilia como ficou conhecida era considerada a louca de Grão Mogol Sem ninguém que pudesse cuidar dela passou a arrastar seus trapos Após oito anos de indigência a filha de Donana foi acolhida pelo asilo São Vicente de Paulo onde mora há doze anos sendo uma das vinte e sete assistidas Ficou cega hipertensa e com demência precoce Há dois anos porém aos oitenta e seis anos sentiu o coração pulsar forte ao ouvir uma voz da sua infância A visita no asilo a surpreendeu Não se lembrava mais do rosto do irmão mas tinha certeza de que ele estava ali O reencontro de Luizinho e Lilia levou quase sessenta anos para acontecer mas quando as mãos se tocaram eles se reconheceram Lilia passou a ponta dos dedos na sobrancelha falha de Luiz Depois os dedos passearam na testa do irmão que teve o contorno dos lábios grossos e o nariz explorado Ele de olhos fechados buscava num canto da memória a antiga sensação de aconchego que tinha quando Donana acariciava sua face Choraram abraçados e permaneceram em silêncio por alguns minutos Apesar de estarem tão diferentes de quando crianças época em que ainda tinham sonhos os dois souberam que os anos podiam consumir quase tudo menos o amor que guardavam um pelo outro Na sua cidade natal para onde viajou com a ajuda de um monitor da residência terapêutica onde mora Luiz reconheceu o caminho da antiga casa lugar em que ele e a irmã viveram no curto período em que foram uma família De braços dados com Lilia os dois caminharam até a matriz de Santo Antônio igreja em estilo colonial construída pelos seus antepassados Localizado na praça Ezequiel Pereira o templo de paredes de pedra foi edificado na segunda metade do século XIX com o suor de escravos cedidos principalmente pelo barão de Grão Mogol Guálter Martins Pereira Quando era menino Luizinho costumava caminhar pelas ruas de pedra que circundam a igreja Depois de dois dias juntos os irmãos tiveram que enfrentar uma nova despedida Os dois sabem que aquele pode ter sido o último encontro em família Para a diretora do abrigo Maria da Assunção Passos Simões Costa a dívida que o Estado tem para com essas pessoas é incalculável Eles foram privados de conviver com seus parentes A mãe de Luiz morreu sonhando em revêlo Como resgatar o sofrimento imposto por uma vida inteira É difícil devolver a eles o que lhes foi negado Adelino Ferreira Rodrigues e Nilta Pires Chaves outros expacientes do Colônia tentam juntos construir uma nova história Institucionalizados por cerca de trinta anos eles buscam recuperar a dignidade que lhes foi subtraída A improvável união de um epilético com uma catatônica tem vencido não só o tempo mas também o preconceito que os marcou por décadas Órfão de pai que morreu assassinado o menino de São José de Caraí MG diz que foi internado em Belo Horizonte depois de ter sido mordido por um cachorro bravo Bem que tentou descobrir o motivo pelo qual foi levado para o Hospital de Neuropsiquiatria Infantil da capital mineira Mas até hoje ele não sabe a resposta Tinha vinte e dois anos quando deu entrada no Colônia em Barbacena em 25 de abril de 1969 Nunca se conformou com o destino que lhe impuseram Mesmo sem saber ler e escrever conhecia bem os números e queria prosperar Ganhou trocados fazendo bicos na instituição e multiplicou as moedas aproveitando o vício dos outros Comprou rapé tabaco em pó para inalar ou fumar e passou a vender para os funcionários do hospital Assim foi somando migalhas Quando o montante cresceu passou a emprestar dinheiro a juros e ganhou certo status na unidade Era um dos poucos que tinham entrada e saída liberadas conquistando a confiança do comércio local Já Nilta chegou ao Colônia em 30 de março de 1976 Não sabe nada sobre seus parentes nem os motivos de sua internação A mulher sem passado não tem nenhum registro afetivo sobre sua família Sua única referência é o hospital onde viveu anos de martírio Foi em meio ao frio à fome e ao medo que ela encontrou Adelino o moço considerado até bemapanhado dadas as condições desumanas em que vivia Ela gostou dele porque era bonzinho Ele gostou dela porque era bem mandada Nilta passou a lavar as roupas de Adelino no hospital e a cuidar das coisas do paciente Em troca Adelino ofereceu sua proteção para alguém que considerava ser mais frágil do que ele Em muitas ocasiões Nilta precisou receber comida na boca para não morrer A apatia não era resultado apenas de sua doença mas também da crescente vontade de desistir de si mesma Além de Adelino a paciente Sônia foi uma das que cuidaram dela abrindo mão da sua própria ração em benefício da amiga Adelino Ferreira Rodrigues e Nilta Pires Chaves sobreviventes do Colônia se casaram em 2005 Foto abaixo cedida por Tânia Cristina de Paiva A escolhida de Adelino tinha o coração pesado de mágoa Doía não saber quem ela era e também desconhecer como o Colônia se tornou o endereço de sua vida Ao lado de seu eleito no entanto a existência da paciente ganhou sentido Ela teve vontade de se arrumar e passou a sorrir Em 2004 quando o companheiro deixou o hospital para experimentar uma rotina sem muros numa residência terapêutica Nilta baqueou Tinha medo de ser deixada para trás Mesmo desospitalizado Adelino manteve o compromisso com a paciente indo visitála todos os fins de semana que se seguiram Levava roupas guloseimas Em troca ganhava a atenção que precisava para se sentir seguro Mas a liberdade sem Nilta não tinha o sabor que ele imaginava Ela fazia falta em sua vida e isso ele começou a perceber nos primeiros dias longe do Colônia Assim arquitetou um plano maluco casarse com ela Seu desejo era arranjar um lugar onde os dois pudessem morar Empolgouse com a ideia mas a responsabilidade de manter um lar era desafio que Adelino nunca havia enfrentado Teria que usar o benefício que recebia do governo um salário mínimo para pagar aluguel contas despesas com alimentação Mas como os números eram seu forte Adelino descobriu que somando o seu dinheiro com o dela tudo ficaria mais fácil Decidido a fazer o pedido de casamento ele partiu para o endereço da namorada transferida para uma casa protegida seis meses depois que ele deixou o hospital Quando Adelino entrou pelo portão da residência terapêutica a nova moradora o avistou e sorriu Era a primeira vez que ela via algo diferente no olhar dele Sentiu um arrepio Ansioso ele revelou seus planos mas nem se lembrou de fazer o tal pedido de casamento pois considerava que já estava aceito O casório foi marcado para o dia 2 de dezembro de 2005 Havia muito a ser preparado Com o apoio da equipe técnica eles viveram esse momento especial como qualquer casal com direito a chá de panela enxoval e até curso de noivos exigência da Igreja Católica O noivo sonhava em usar terno e gravata mas não abria mão de ter uma camisa azul igual à dos motoristas dos ônibus em que andava Ela teve o vestido branco confeccionado por uma costureira famosa do ramo Sem estudo os dois fizeram questão de aprender a assinar os próprios nomes pois não queriam passar pela humilhação de imprimir as digitais na certidão de casamento Assim por quase um ano sentaramse nos bancos da escola do bairro onde moravam Adelino aproveitou a ocasião do casamento para realizar um sonho antigo colocar ouro na prótese dentária que usava pois queria ficar parecido com um cigano A dentadura de Nilta também ganhou contornos dourados já que ela queria atender ao gosto duvidoso do marido Além do sorriso de ouro a expaciente do Colônia conseguiu alugar uma tiara prateada que usou na celebração para que ganhasse ares de rainha Era a primeira vez que ela gostava do que via no espelho No salão de beleza Nilta teve o seu dia de noiva e tratamento vip Já o noivo foi se arrumar na casa da psicóloga das residências terapêuticas de Barbacena Tânia Cristina de Paula Paiva Toda a família de Tânia ficou em função do casamento As filhas com então cinco e seis anos foram as damas de honra O marido da psicóloga o policial militar Ricardo Silveira Paiva ajudou a vestir o noivo sendo alçado ao posto de motorista do casal Ela assumiu o papel de madrinha e estava tão nervosa quanto Adelino A psicóloga também ajudou na organização da festa paga com doação feita pelos expacientes do Colônia e dos cerca de cem moradores das residências terapêuticas A comunidade religiosa também colaborou com a preparação de um bolo que media mais de dois metros A igreja do Bom Pastor no bairro Carmo de Barbacena recebeu ornamentação especial Lírios e floresdocampo estavam por toda parte Centenas de convidados aguardavam os noivos inclusive o então prefeito Célio Mazoni PMDB acompanhado da primeiradama De fato a união de Nilta e Adelino foi um acontecimento O convite informava que o enlace ocorreria às 16 horas Às 16h02 os noivos encontraramse à porta da igreja e se abraçaram Sem família eles decidiram que seguiriam juntos para o altar um levando o outro Quando a Marcha Nupcial finalmente foi anunciada os expacientes do Colônia começaram o desfile pelo tapete vermelho Em nenhum momento lembraramse das dores impingidas a cada um Estavam tão felizes que não havia lugar para lágrimas pois elas remetiam ao longo período de clausura Nilta que passou a existência vestindo trapos sentiase tão bonita naquele vestido branco que mal reconhecia a mulher aviltada por décadas sem direito a pentear os cabelos e a manter a higiene pessoal Não se assemelhava em nada com aquela paciente diagnosticada com catatonia Vinte e quatro anos depois de ser confinada no Colônia ela era uma sobrevivente do holocausto brasileiro e sentiase mais viva do que nunca Além de marido Nilta conquistava com o casamento um lugar só seu a casa que nunca teve Após a missa celebrada pelo padre Ronaldo os dois seguiram para a festa realizada no salão da igreja Cortaram o bolo gigante tiraram fotos brindaram ao novo tempo Recusaramse a passar a noite de núpcias num quarto de hotel como foi sugerido pelos amigos Seguiram para o bairro Grogotó onde estava a casa alugada na rua Francisco de Paula Almada Aquele sim era o lugar onde eles seriam pela primeira vez um do outro Em cima da cama impecavelmente arrumada pétalas de flores davam as boasvindas Os sete anos seguintes foram de uma paz que eles desconheciam Na casa decorada com imagens de santos fitinhas do Senhor do Bonfim e outras miscelâneas religiosas os dois aprenderam a administrar não só as contas no fim do mês mas também a própria vida Aprenderam ainda a cuidar de si e do outro Nas consultas médicas de Nilta Adelino está ao seu lado Nas pequenas compras de casa Nilta acompanha o marido Ela cozinha e cuida da casa ele organiza as finanças Nunca brigam Todos os anos desde o casamento eles vão à Aparecida do Norte o santuário católico nacional localizado em Guaratinguetá no Vale do Paraíba SP Lá visitam a Basílica Velha e a Igreja de São Benedito A cada viagem retornam a Barbacena com novos penduricalhos que usam para enfeitar o imóvel e proteger seus moradores e quem os visita Tânia a psicóloga das residências terapêuticas é uma das pessoas por quem eles sempre oram Ela acompanha o casal a cada quinze dias Hoje tornouse mais do que técnica uma amiga Procura com o seu trabalho potencializar o melhor de cada expaciente do Colônia porque mais do que ninguém ela acredita que eles podem superar as próprias limitações Recebe em troca afetividade sendo surpreendida pela capacidade que eles demonstram de se reinventar O rótulo de coitados não lhes cai bem e Tânia sabe disso Há quatro anos quando a técnica teve seu carro furtado ela encontrou solidariedade onde menos esperava Adelino que havia juntado R 3 mil na poupança quis dar a ela o dinheiro para que comprasse outro veículo Tânia você não pode ficar sem olhar a gente Dou meu dinheiro e da Nilta para você comprar outro carro Você precisa dele para vir aqui A demonstração de preocupação emocionou a psicóloga Além de Nilta e Adelino moradores das residências terapêuticas queriam solucionar o problema da técnica Um ofereceu valestransporte outro quis emprestar o seu próprio passe livre que garantia o direito de andar de ônibus sem pagar Os livros da faculdade de psicologia haviam preparado Tânia para muitos desafios mas não previam que no hábitat dos considerados sem normas ela encontraria mais humanidade do que em seu próprio mundo IX Encontro desencontro reencontro D e meias cinza calça jeans e casaco o gigante quase não cabe no sofá da sala Descansa após carregar por mais de quatro décadas a pesada armadura que o tornava imune ao sofrimento de uma vida Há um ano descobriu que não precisava mais dela Apesar de ter crescido sem lágrimas ele agora homem feito não consegue mais represálas Aos quarenta e seis anos o chefe da banda do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais João Bosco Siqueira experimenta algo inédito na sua trajetória aprender a ser filho Ex aluno da Febem ele exibe com orgulho a guerreira de quem se perdeu bem no início da batalha É Geralda Siqueira Santiago Pereira sessenta e dois anos Do alto de seu 150 metro a exempregada doméstica envolve o tenente nos seus braços embora não consiga mais pegálo no colo como fez na adolescência quando aos quinze anos deu à luz João dentro do pavilhão Zoroastro Passos no Colônia de Barbacena O exílio no hospital foi a forma que o patrão de Virginópolis MG encontrou de silenciar a menina que ele havia estuprado no período em que ela trabalhava em sua casa Com então cinquenta e quatro anos ele precisava esconder a gravidez da garota a qualquer custo nem que para isso confiscasse mais uma vez a inocência dela Geralda nasceu em Coroaci no Vale do Rio Doce um ano depois de o distrito mineiro de Santana de Suassuí ser elevado a município em 1949 Perdeu pai e mãe ainda pequena sendo criada por vizinhos Dos parentes não tem nenhuma informação nem um rosto para recordar Analfabeta foi levada para trabalhar em casa de família longe de sua cidade natal aos onze anos Quando chegou ao prédio de dois andares em Virginópolis MG ainda tinha corpo de criança mas chamava a atenção por seus cabelos negros sobrancelha farta e lábios carnudos Na casa além de dois meninos havia outras quatro garotas com idade próxima à sua filhas dos donos do imóvel Enquanto eles brincavam ela era explorada no trabalho infantil Mesmo pequena fazia serviço de gente grande sendo responsável pela comida lavagem de roupas e limpeza A jornada que começava ainda de madrugada só terminava à noite quando ela exausta seguia para o quarto dos fundos sem qualquer ventilação O chefe da família era advogado e mantinha um escritório no andar superior Por isso ficava mais na residência do que na rua A vida em casa era conturbada Com as constantes crises nervosas a esposa era frequentemente internada em clínicas psiquiátricas particulares de Divinópolis MG Assim a menina acabou transformada na mulher da casa tornandose responsável por tudo Quando sobrava tempo brincava escondido com a boneca de pano que havia costurado com retalhos que encontrou Era o único momento de criança Um dia enquanto lavava o banheiro principal do imóvel de trinta metros quadrados mais de duas vezes o tamanho de seu quarto foi surpreendida pela chegada do patrão Ele estava diferente com o olhar enigmático e assustador Suava depois de entrar abruptamente no cômodo Sem falar nada ele a agarrou Começou a beijar o pescoço da então adolescente de catorze anos pressionandoa contra a porta A garota franzina não reagiu Também não emitiu qualquer som Estava tão apavorada que sentia medo até de gritar Abusada sexualmente Geralda bem que tentou pedir ajuda a uma das irmãs do advogado mas ouviu em tom jocoso que homem era assim mesmo e portanto deveria esquecer Um ano depois do episódio a adolescente estava na cozinha no porão do prédio preparando um prato de comida Já era tarde da noite e ainda não tinha se alimentado naquele dia O homem apareceu na escada batendo a porta Ela se encolheu Puxada pelos cabelos foi jogada sobre a mesa Deitado por cima dela o patrão a estuprou Machucada Geralda sentiu dor na alma Pela primeira vez na vida desejou a morte Quando o ato acabou ela permaneceu deitada na mesa Perdeu a noção das horas Sem ninguém no mundo só conseguia chorar O tempo passou mas agora quem estava diferente era ela Havia perdido o ar ingênuo suas feições endureceram Seu corpo também passara por transformações A mama havia crescido o quadril alargado Ela vomitava quase que diariamente e ainda assim sentia mais fome Logo a gravidez foi descoberta e familiares do advogado começaram a articular uma saída A mais fácil seria mandar a gestante para longe para um local de onde ela não pudesse mais sair Com a ajuda de duas irmãs de caridade amigas da família o destino de Geralda foi traçado Assim naquele ano de 1966 a menina deixou o imóvel em Virginópolis na companhia de duas freiras Helena Guerra e Tereza Depois de uma longa viagem elas chegaram a Barbacena Ao avistar um dos prédios do Colônia Geralda sentiu o coração apertar Que estranho pensava Mas somente quando entrou no pavilhão do chamado hospital é que ela conseguiu falar Meu Deus Havia tantas mulheres caídas no chão espalhadas pelos cantos em meio a fezes que a gestante foi tomada pelo pânico Inconscientemente colocou a mão sobre a barriga na tentativa de proteger o filho Que lugar era aquele Por que as pessoas estavam ali Os gemidos de lamento eram ensurdecedores Mesmo grávida ela tomou seu primeiro eletrochoque para amansar disseram os guardas Foi a última coisa que ouviu no seu primeiro dia na Assistência nome dado ao setor feminino do Colônia Geralda Siqueira Santiago mãe de João Bosco foi estuprada aos catorze anos e levada para o Colônia grávida Depois de dar à luz o menino eles foram separados Só se reencontraram em 2011 Como tinha a sanidade a seu favor Geralda foi levada para o berçário do Colônia sendo incumbida de cuidar dos filhos de pacientes e lavar todas as roupas Trabalhava muito e quase não comia Sentia nojo das refeições que mais pareciam lavagem O cheiro dava náuseas Quando a bolsa se rompeu em 21 de outubro de 1966 ela estava debilitada pela fome mas usou as últimas forças que lhe restavam para trazer o filho ao mundo O menino nasceu no pavilhão Zoroastro Forte e saudável ele era quase um milagre Mesmo esquálida Geralda via o leite escorrer pelo peito Conseguiu amamentar por seis meses e dormir ao lado do filho nesse período O bebê era a única coisa sua imaginava Mas a mãe não teve o direito de escolher o nome do bebê Batizado de João Bosco pelas freiras em homenagem a um santo da Igreja o menino cresceu sob a proteção das religiosas Quando ele completou dois anos a jovem com então dezessete anos foi obrigada a deixar o Colônia para trabalhar O João Bosco fica aqui Você vem visitálo nos finais de semana Geralda ouviu da irmã Tereza João Bosco bebê no Colônia A separação do filho foi um golpe duro Empregada numa casa de família ela passava os dias da semana esperando pelo domingo quando corria para o hospital a fim de pegar o filho nos braços O sorriso dele renovava a coragem dela Geralda desejava trabalhar mais na esperança de alugar algo para os dois Reuniu economias nos doze meses seguintes e estava ansiosa para dar a notícia no hospital No domingo sairia do Colônia levando o filho Quando chegou no entanto percebeu algo de errado João Bosco não estava sentado na escada da porta do berçário como de costume Angustiada ela iniciou a procura pelo menino de três anos João meu filho a mamãe chegou Vem querido estou aqui As enfermeiras procuraram demonstrar naturalidade mas havia um clima tenso no ar Cadê meu filho perguntava Geralda a cada funcionária que encontrava pelo caminho Não está mais aqui Foi levado para longe respondeu uma das freiras que acabava de chegar Geralda perdeu o controle Começou a gritar debatendose Não podia aceitar que a melhor parte dela lhe tivesse sido arrancada Estava histérica Foi detida por dois guardas que a levaram para outro pavilhão Presa pelos braços recebeu descargas elétricas e depois uma ameaça Se voltar aqui não te deixaremos sair Aos dezoito anos a jovem deixou o hospital com passos de uma idosa Em uma hora havia envelhecido décadas Não tinha forças para enterrar um filho vivo Joãozinho reage meu filho A voz parecia vir de muito longe O garoto de oito anos ainda abriu os olhos mas a vista embaçava Com quarenta e um graus de febre ele delirava Passou a noite toda com arrepios pelo corpo e tremedeira que nenhum cobertor foi capaz de fazer parar Na cabeceira da cama a mulher fazia compressas com toalha Se não melhorar vamos ter que chamar o médico dizia para a colega Quando amanheceu João Bosco finalmente conseguiu dormir A temperatura do corpo havia baixado Exausta a guardiã seguiu na direção de casa Precisava descansar para enfrentar a longa jornada que teria pela frente A rotina no Patronato Padre Cunha não era fácil Para manter a instituição que abrigava cerca de cem crianças de zero a treze anos no distrito de Pinheiro Grosso MG somente correndo atrás de doação Em função do encontro com José Lauro dono da única panificadora da região irmã Rosa filha de imigrantes poloneses sabia que só poderia tirar um cochilo para não perder a hora Na residência das freiras ela escolheu a cadeira de balanço no lugar da cama Adormeceu sentada e só despertou a tempo porque foi acordada pelo próprio ronco Com baixa estatura e olhos verdes a freira não parava apesar do sério problema que tinha na vista Bilíngue ela era admirada pelos adultos mas venerada pelos meninos que ajudava a cuidar Todas as noites pegava uma cadeira e colocava no meio da sala de TV Espalhava tapetes pelo chão para que as crianças se sentassem ao seu redor e juntos pudessem assistir à novela das oito O gesto da freira dava início à confusão Os garotos se estapeavam para sentar o mais próximo dela É que o sortudo que conseguisse ganhava de brinde cafuné de Rosa Como todos queriam receber o carinho a disputa era acirrada Na hora de dormir os meninos ouviam histórias infantis transmitidas para todos os dormitórios em caixas de som A dedicação das irmãs amenizava a precariedade do orfanato Mesmo pobre de recursos o patronato era sinônimo de lar Apesar de racionada a comida tinha sabor Até o lanche modesto mingau ou broa de fubá tinha gosto bom O melhor era a cuca preparada pelas freiras Para manter as refeições havia uma horta na instituição que fornecia quase tudo o que era consumido na cozinha Como não havia fundos para contratar número suficiente de funcionários os meninos ajudavam na colheita e desde cedo aprendiam a valorizar o pouco que tinham Tudo era coletivo e por isso havia um senso de comunidade muito forte entre eles Os irmãos do patronato criaram um elo capaz de vencer o tempo João Bosco cresceu nesse ambiente rodeado de mulheres ternas Em Maria Moraes de Jesus o anjo negro da instituição encontrou referência de vida Com irmã Dita como ainda é conhecida hoje aos sessenta e dois anos ele manteve os piores embates mas recebeu os melhores conselhos Paranaense a franciscana da Congregação Sagrada Família tinha generosidade no olhar e um sorriso que iluminava Apesar da juventude estava com vinte e oito anos à época ela sabia se impor com energia sem contudo perder a doçura Meu filho a inteligência é uma arma muito poderosa Com ela você pode salvar o mundo ou destruir pessoas ensinava Dita A irmã estava sempre disponível a ouvir Irmã do que é feito o álcool perguntava João Bosco De açúcar Mas açúcar é doce e álcool não Por que o álcool queima e o açúcar não Porque ele é produzido de certas misturas A canadeaçúcar é a principal matériaprima utilizada mas existem outras como o milho a mandioca e o eucalipto Mas por quê Sempre que ficava sem resposta irmã Dita saía pela tangente Meu filho é melhor ir rezar Apesar de não ficar satisfeito com a resposta o garoto sabia que já tinha gastado tempo demais da freira Restava a ele obedecer Logo que se afastava porém a religiosa soltava uma gargalhada gostosa daquelas que dão vontade de rir só de escutar Êta menino danado dizia baixinho balançando a cabeça Dita percebeu logo que a criança questionadora não gostava de trabalhar na roça como as outras Como não podia privilegiar ninguém ela designou Joãozinho para cuidar dos mais novos Assim o mantinha longe da plantação como ele queria mas despertava nele a noção de responsabilidade com o outro No dia do aniversário de onze anos João Bosco aprontou tanto no orfanato que conseguiu estressar até a mais paciente das freiras Recebeu como castigo a limpeza do chiqueiro tarefa que odiava fazer Saiu pisando duro Preferia ficar sem ver Os trapalhões na TV programa predileto de domingo a ter que enfrentar aquele cheiro Poucos dias depois um grupo de Emaús que visitava o patronato regularmente esteve lá para realizar a festa dos aniversariantes do mês Integrantes do movimento jovem da Igreja Católica eles organizavam não só o lanche mas também as atividades recreativas Entre as tarefas daquele dia de comemorações o grupo pediu aos homenageados que fizessem uma redação contando sobre como havia sido o dia em que ficaram um ano mais velhos João Bosco aproveitou para se vingar Chamado ao microfone para ler sua carta ele deitou e rolou O meu aniversário foi no meio dos porcos e a culpa é da irmã Dita Os Emaús foram pegos de surpresa e em conjunto olharam para a freira Ela por sua vez fitava o menino com os olhos negros arregalados De repente todos começaram a rir menos o denunciante que com o papel nas mãos continuava apontando em direção à freira Para tentar colocar um pontofinal na situação embaraçosa o grupo chamou a franciscana pedindo a ela que entregasse uma calça de tecido azul de presente ao garoto Os dois se abraçaram e Joãozinho fez as pazes com a sua preferida Apesar da história divertida aquele foi um ano difícil para ele Todos os domingos seus irmãos do patronato recebiam visita da família O pai de Francisco Alvim de Carvalho trabalhava na roça mas no fim de semana aparecia pontualmente na instituição às 11 horas e só ia embora no último ônibus que partia às 16h30 A mãe de José Fernando Afonso também Por que os pais deles vêm visitálos e ninguém vem me ver Revoltado João Bosco corria até a capela De formação católica ele esperava uma resposta de Deus Por que até o senhor tem mãe e eu não Por que não me deu uma A entrada na adolescência trouxe muitos conflitos para o garoto tido como órfão A situação se tornou ainda pior com a contratação de Roberto funcionário magro de estatura mediana e olhar frio Aos vinte e cinco anos a diversão do rapaz que abusava da bebida era aterrorizar os meninos do patronato O monitor tomava conta dos internos mas nos fins de semana sempre chegava bêbado ao dormitório Quem fazia xixi na cama passava a noite toda debaixo do chuveiro frio como castigo Vantuil o menino mais bonito do patronato era uma de suas principais vítimas O funcionário também usava um fio para ameaçar e punir quem transgredisse as ordens Numa dessas noites após urinar na cama Prisco o craque de bola do internato teve a calça arrancada pelo homem Na frente de todos Roberto pegou o pênis da criança e ameaçou cortar com um canivete A tortura psicológica durou a noite inteira De vez em quando ele colocava dez meninos de mãos dadas Pegava um fio de duas pontas desencapadas e mandava o primeiro garoto segurar uma delas Colocava a outra ponta na tomada A carga ia passando de um para o outro e chegava ao último menino com força ainda maior O choque fazia os garotos pularem como pipoca até serem jogados no chão pelo impacto João Bosco foi uma dessas vítimas e mais do que medo tinha raiva de Roberto Um dia João Bosco presenciou a agressão do monitor contra um dos amigos Não suportou Deixa de ser covarde gritou A reação de Roberto foi imediata Acertou o rosto do adolescente com uma vara Seu filho da puta saiu João Bosco xingando em direção à capela Lá dentro as freiras faziam a habitual oração depois do almoço Atrás do garoto estava o agressor O que está acontecendo aqui perguntou Dita João Bosco contou tudo Vem comigo Joãozinho chamou a irmã andando em direção à Kombi azulclara A religiosa precisava ir até Barbacena e levou o menino Embora não estivesse convencida aproveitaria a viagem de Kombi para conversar melhor com ele Voltou desconfiada da versão do adulto e na primeira oportunidade confirmou a história demitindo o monitor Rodrigues recémsaído do exército entrou no lugar dele Filho de italianos o novo funcionário era boapinta e gostava de se gabar Tinha olhos azuis cabelos compridos lábios grossos Simpático conquistou a confiança das freiras e dos próprios meninos No começo eles gostaram da atenção do rapaz mas depois começaram a desconfiar do comportamento dele Uma das regras do patronato instituídas pelos próprios meninos era que homem podia ser amigo do outro no entanto nada de proximidade física O exmilitar infringiu a regra e passou a acariciar os meninos O contato chamou a atenção levando muitos a se afastarem Otávio hoje na Polícia Militar tinha onze anos quando sofreu a primeira tentativa de abuso sexual Esquivouse de Rodrigues que procurou outro Aos doze anos Amilton não sabia como lidar com o assédio do rapaz nem o que fazer quando à noite o agressor se deitava em sua cama passando a barba cerrada em seu corpo Para se proteger de Rodrigues Paulinho outro craque de bola do patronato resolveu guardar o cutelo instrumento cortante de cozinha debaixo do travesseiro Assim se fosse atacado revidaria Tinha vontade de matar o funcionário Para isso porém Paulinho e os amigos precisavam de um plano João Bosco teve a ideia de derrubar o patronato com Rodrigues dentro Teve o apoio de Inácio e Jorge outros dois internos Nesse tempo a estrada de terra que dava acesso à instituição passava por asfaltamento Dois tratores de esteira eram usados nas obras Os alunos decidiram que aprenderiam a dirigir para levar as máquinas até o abrigo Como um dos tratoristas só trabalhava bêbado eles aproveitaram para arrancar dele informações sobre o manuseio do veículo Na noite combinada os três pularam a janela do dormitório para seguir com seu projeto de vingança Porém ao se aproximarem do lugar onde foram criados desistiram A molecagem dos garotos no entanto surtiu efeito chamando a atenção das freiras Rodrigues acabou sendo demitido Apesar de ter sido denunciado livrouse da prisão numa época em que o abuso sexual contra a população infantojuvenil era acobertado O Estatuto da Criança e do Adolescente que estabelece pena para o crime só foi instituído no Brasil em 13 de julho de 1990 Em 1979 ao completar treze anos Joãozinho mudouse novamente de endereço Como não tinha mais idade para permanecer em Pinheiro Grosso ele e outros sete amigos foram enviados para a Febem em Antônio Carlos MG onde o destino começou a traçar novos planos para sua vida Geralda tinha completado vinte e nove anos em 1979 Fazia catorze anos que estava sem notícias do filho Um ano depois de João Bosco ter sido arrancado do seu convívio ela conheceu o marido morador do município mineiro de Alfredo Vasconcelos com quem teve outros três filhos dois rapazes e uma menina Nenhum deles foi capaz de abrandar a angústia que ela sentia no peito ao pensar no primogênito Ele estaria vivo Sentia frio à noite Passava fome Fazia dois anos que a doméstica havia ficado viúva Sem pensão e imóvel próprio mas com três crianças para criar Delcio Dirceu eElaine ela se viu obrigada a fazer faxinas para pagar o aluguel e garantir que os seus tivessem o mínimo Saía de casa às 6 horas e deixava o mais velho cuidando dos mais novos As sobras de comida doadas pelas patroas iam direto para as crianças ao menos elas não passariam necessidade Nas casas de família onde trabalhou Geralda só comia quando lhe era oferecido Tinha vergonha de pedir qualquer coisa para aplacar sua fome mesmo que estivesse há mais de um dia sem comer Assim perdeu a saúde mas pelo menos conseguiu garantir que os filhos que estavam ao seu lado crescessem saudáveis Mesmo sem saber ler nem escrever ela conseguiu que estudassem Depois de doze horas diárias de trabalho era comum que Geralda chegasse em casa e encontrasse os filhos dormindo Ela porém não conseguia descansar Seus pensamentos eram ocupados por João Bosco A ausência dele fazia o peito de Geralda doer Por muitas vezes pensou em procurar pelo menino mas teve medo de sofrer retaliação por parte das freiras que a ameaçaram Chegou a visitar João Bosco no patronato uma única vez Embora quisesse voltar Geralda não tinha dinheiro para o deslocamento Anos mais tarde ouviu falar que o filho havia sido transferido para a Febem Ela achou que o matariam lá dentro A dúvida a fez sofrer mais Vocês querem ser homens de bem Então me sigam pois não estou aqui para formar bandidos A frase dita por Benjamin Fullin diretor da Febem Lima Duarte impressionou João Bosco Recémchegado à instituição de Antônio Carlos em Minas Gerais em 1979 o adolescente tinha ouvido tantas histórias sobre as unidades da Febem que embora não demonstrasse estava com medo Mas foi em Antônio Carlos que ele teve o talento despertado Apesar do acesso a cursos profissionalizantes de mecânico eletricista garçom e chefe de cozinha foi o encontro com a música que o transformou A banda da Febem composta por trinta meninos era formada por alunos da escola mas passava por um momento de baixa com a saída obrigatória dos jovens que completariam dezoito anos Desfalcada precisava de novos membros Apaixonado por música o jovem se interessou em participar Sonhava em aprender a tocar saxofone mas foi escolhido para a tuba Sentiuse o pior dos homens ao receber do maestro Nadir o instrumento musical em forma de sino Aquilo era o fim do mundo ele pensava No primeiro final de semana livre na Febem João Bosco viajou até Pinheiro Grosso a cinquenta quilômetros de Antônio Carlos para ver a irmã Dita Na verdade ele partiu para lá com o intuito de revelar a ela o absurdo de ter sido escolhido para tocar o pior instrumento de uma banda Ao chegar ao patronato soube que Dita estava recebendo a visita de José Lauro o panificador que ajudava na manutenção da entidade A freira entretanto mandou João Bosco entrar Recebeu o adolescente com o sorriso que ele tanto amava mas o interno da Febem tinha cara de poucos amigos Irmã a senhora sabe o que fizeram comigo na Febem Antes de o adolescente continuar a desfiar o rosário sobre a sua história na banda José Lauro entrou no assunto Você está na Febem em Antônio Carlos Ouvi dizer que lá tem uma banda excelente Sonhei a minha vida inteira em tocar tuba Por volta de 1800 este instrumento começou a ganhar popularidade nas pequenas bandas de metais da Europa João Bosco foi pego no contrapé Com os olhos arregalados estava visivelmente desconcertado Joãozinho você sabia que nas bandas filarmônicas cabe à tuba o papel fundamental de suporte harmônico O rapaz balançou a cabeça para os lados Mas o que queria dizer quando chegou aqui filho perguntou irmã Dita Ah Então Contar que eu vou tocar tuba na banda da Febem Estou adorando improvisou o adolescente A partir daquele momento João Bosco assumiu seu lugar na banda e passou a querer um espaço também no mundo Aprendeu o instrumento sem saber que ele consolidaria sua carreira mais tarde Cinco anos se passaram desde a chegada do adolescente a Antônio Carlos A experiência o transformara Sozinho na Febem Lima Duarte ele aprendeu a lidar com suas frustrações e medos Também foi lá que se posicionou pela primeira vez contra o conhecido funcionário que gostava de violar meninos Responsável pelo almoxarifado o homem de cabelos brancos e pele marcada por pequenas feridas causadas pela exposição ao sol e pela idade atraía os adolescentes para o setor onde praticava os abusos sexuais Um dia o aluno da banda foi surpreendido pelo servidor Precisava de um material de escritório mas acabou sendo agarrado João Bosco conseguiu se desvencilhar e correr Não sem antes dar um recado Se tentar algo parecido de novo acabo com você gritou com a voz mais ameaçadora que conseguiu Aos dezessete anos o rapaz sabia que precisava dar um rumo à vida Em um ano teria que deixar a unidade e caminhar com as próprias pernas Sem passado ou parentes a proximidade dos dezoito anos era motivo de apreensão Nessa época ele tentou concurso para a Polícia Militar no 9º Batalhão de Barbacena mas apesar de ter sido aprovado não tinha idade para ingressar Conseguiu ficar na Febem até os vinte anos quando foi novamente aprovado no concurso do Estado que daria direito a uma vaga na polícia mineira Ele e outros cinco colegas da Febem que também conquistaram as primeiras vagas partiram rumo a Contagem onde passariam pelo período de recrutamento no quartel do 2º Batalhão de Bombeiros na avenida João César de Oliveira Nenhum deles tinha dinheiro para se manter na cidade Contaram com o apoio do diretor João Raymundo Couto Matta até receberem o primeiro salário Com o dinheiro João Bosco quis realizar um sonho comprar aos vinte anos sua primeira calça jeans Cobiçava uma da marca US top exatamente como a que os rapazes usavam na sua época de infância O dinheiro porém era curto Adiou mais uma vez a compra da peça e resolveu doar metade do salário para Tereza a freira que havia abandonado o hábito e ajudou a cuidar de João Bosco recebendoo em sua casa nos períodos de férias Dois anos depois de se formar no 2º Batalhão de Contagem o bombeiro soube que a banda da corporação estava acabando pois padecia de falta de pessoal Os músicos antigos se aposentaram e precisavam ser substituídos Ele e os outros exalunos da Febem candidataramse a uma vaga no grupo do 1º Batalhão de Bombeiros da Afonso Pena em Belo Horizonte Não deixariam a banda morrer Nos sete anos seguintes João Bosco morou no quartel Dormia no depósito onde os instrumentos da banda eram guardados Lá dentro havia dois beliches Dividia o lugar com outros três colegas de trabalho nascidos em Juiz de Fora e em Mar de Espanha Nos fins de semana quando todos iam para casa o instrumentista ficava na companhia de seus livros Ao contrário dos companheiros não tinha família para visitar Num desses dias de solidão conheceu o escritor mineiro Roberto Drummond que morava bem em frente ao quartel Os dois se cruzaram na banca de jornal localizada na esquina da Afonso Pena com a Piauí e o bombeiro puxou conversa João Bosco saiu dali com a indicação de leitura de O Primeiro Homem romance inacabado de Albert Camus o filósofo francês nascido na Argélia Acabou matriculandose em filosofia na PUC em 2005 Hoje mais de duas décadas depois de ingressar nos Bombeiros João Bosco continua na banda como chefe atuando agora nos bastidores Nesse período o subtenente casouse aos trinta e cinco anos separouse aos trinta e oito e tornouse pai de Heitor aos quarenta e cinco mesma idade em que se casou com a professora Maria Madalena Pimentel Siqueira de Água Doce do Norte no Espírito Santo Em 2011 os quarenta e um homens da banda resolveram preparar uma surpresa para João Bosco Ele completaria quarenta e cinco anos Com o apoio do comandante à época Edson Alves Franco os músicos iniciaram uma busca por Geralda Sem saber o que estavam tramando o chefe da banda chegou a se irritar com as saídas sem comunicação dos integrantes Considerou insubordinação conduta inadequada para um militar Tem alguém em casa Fardado o militar que havia acabado de estacionar a moto na calçada da residência localizada no bairro Santo Antônio em Barbacena batia palmas Tornou a chamar até que uma senhora negra de óculos cabelos crespos e vincos profundos na testa abriu a janela Pois não Estou à procura de Geralda Siqueira Sou eu Sérgio Luiz o suboficial da banda da EPCAR Escola Preparatória de Cadetes do Ar de Barbacena deu um largo sorriso Exaluno da Febem ele foi acionado pelos bombeiros de Belo Horizonte para ajudar na localização de Geralda Posso falar com a senhora Espera aí respondeu Geralda tornando a fechar a janela Em poucos minutos a mulher magra que pesa pouco mais de quarenta quilos apareceu no quintal e caminhou em direção ao desconhecido Eu vim aqui falar sobre o João Bosco Geralda estremeceu Após quatro décadas e meia de separação alguém batia à sua porta trazendo informações do filho Seria mesmo verdade É melhor o senhor entrar porque não estou conseguindo ficar de pé Com o coração aos saltos Geralda conduziu o militar até a varanda O homem começou a falar Eu sou amigo de João Bosco que pertence ao Corpo de Bombeiros em Belo Horizonte Há meses procuramos pela senhora Embora ele fale pouco sobre a sua história sabemos que não a vê há mais de quarenta anos Como o aniversário dele se aproxima gostaríamos de fazer uma surpresa e levála até lá Geralda estava paralisada Em poucos segundos conseguiu obter respostas que a atormentaram por toda uma vida Sabia agora que o filho do Colônia não só estava vivo mas também trabalhava e morava em Belo Horizonte Mais do que isso teria a chance de tocálo mais uma vez Moço eu não sei nem o que dizer Sofro há tantos anos sem notícias do meu filho que só mesmo são José para trazer o senhor aqui Depois de algumas horas de conversa Luiz despediuse marcando um novo encontro a fim de combinar os detalhes da viagem Logo que ele saiu Geralda telefonou para o filho Décio Corre aqui em casa pois tenho que te contar uma coisa Preocupado o rapaz atendeu ao chamado da mãe Filho um homem saiu daqui de casa agora dizendo que é amigo do João Bosco Quer me levar para Belo Horizonte A doméstica aposentada tinha dificuldade para falar porque o choro embargava sua voz Décio interrompeu Mãe eu vou com você Quero muito abraçar meu irmão João Bosco foi chamado pelo comandante do Corpo de Bombeiros Edson Alves Franco no salão nobre da Academia de Bombeiros da rua Piauí Era uma sextafeira e coincidia com seu aniversário e o militar ficou pensando o que teria levado o coronel a acionálo logo pela manhã A banda da corporação era sucesso fazia muitos anos principalmente depois que seu dirigente descobriu nos Estados Unidos um endereço de venda de partituras americanas para incrementar as apresentações Se não era assunto da banda qual seria o motivo Quando entrou no imóvel João Bosco descobriu que o coronel não estava sozinho Os músicos também estavam lá uniformizados com máquinas fotográficas nas mãos sorrindo Mas o que significava tudo aquilo pensou Não teve tempo de perguntar Logo imagens suas começaram a ser projetadas num telão Ainda sem entender ele ficou de pé vendo e ouvindo a história da sua vida Seus pensamentos voaram para a infância e os primeiros anos no Patronato Padre Cunha quando apanhar fruta no terreno do famoso general Antônio Carlos de Andrada Serpa era uma grande aventura Uma foto sua na banda da Febem ainda na adolescência o levou para os tempos de disciplina em Antônio Carlos período em que era apenas um garoto tentando se comportar como homem feito Aí vieram o Corpo de Bombeiros e a chance de ser tratado com igualdade de fazer os outros se orgulharem dele Quando o nome da mãe foi citado o chefe da banda sentiu a respiração de João Bosco acelerar Reencontro de João Bosco e sua mãe Geralda promovido em 2011 pelo Corpo de Bombeiros Mas o que está acontecendo aqui Geralda entrou na sala sob os aplausos dos colegas de farda do filho Naquele exato momento o gigante se quedou Envolvido pelos braços dela ele sentiuse novamente um menino Não conhecia a força do amor materno Ali mesmo ele pensou que se pudesse escolher uma mãe ela seria exatamente como aquela grande mulher mesmo com todos os desencontros impostos aos dois Privados da companhia um do outro eles estavam juntos de novo como há quarenta e cinco anos Embora o Colônia tenha se apropriado do passado do filho de Geralda o hospital não roubaria o futuro do militar João Bosco teve a certeza de que nunca mais ficaria sozinho Em 21 de outubro de 2011 João Bosco reconciliouse com Deus A história por trás da história O fotógrafo da revista O Cruzeiro Luiz Alfredo estava prestes a registrar as imagens mais dramáticas da sua carreira embora não soubesse disso quando se deparou com o portão de ferro que daria acesso ao interior do Colônia em Barbacena naquele abril de 1961 Acompanhado do colega José Franco ele viajou para a cidade dos loucos depois que o chefe de redação Eugênio Silva descobriu que o então secretário de Saúde do governo Magalhães Pinto Roberto Resende estava preparando uma varredura na área da saúde principalmente na instituição da cidade natal de José Bias Fortes que acabara de deixar o governo mineiro Aos vinte e oito anos Luiz Alfredo escreveria seu nome na história Acompanhados do secretário ele e o repórter chegaram ao município na hora do almoço Mas o que será que existe aqui de tão grave perguntou Luiz Alfredo ao companheiro de pauta no momento em que eram recebidos por freiras que trabalhavam no hospital Na companhia delas ele e José Franco foram convidados a entrar Ouviram o barulho dos cadeados sendo abertos Quando as correntes que guardavam a porta de acesso ao pátio foram destrancadas os olhos acostumados a tantas tragédias não puderam acreditar na cena que se desenhava Milhares de mulheres e homens sujos de cabelos desgrenhados e corpos esquálidos cercaram os jornalistas A primeira imagem que veio à cabeça de José Franco foi a do inferno de Dante Difícil disfarçar o choque O jornalista levou um tempo para se refazer e começar a rascunhar em seu bloco suas primeiras impressões Já Luiz Alfredo protegido pela sua Leica decidiu registrar tudo que a lente da sua câmera fosse capaz de captar Quase todas as imagens feitas naquela tarde foram registradas em preto e branco em rolos de filme 35 mm A loucura que desfilava diante dos seus olhos não o impressionava e sim as cenas de um Brasil que reproduzia menos de duas décadas depois do fim da Segunda Guerra Mundial o modelo dos campos de concentração nazistas Os homens vestiam uniformes esfarrapados tinham as cabeças raspadas e pés descalços Muitos porém estavam nus Luiz Alfredo viu um deles se agachar e beber água do esgoto que jorrava sobre o pátio e inundava o chão do pavilhão feminino Nas banheiras coletivas havia fezes e urina no lugar de água Ainda no pátio ele presenciou o momento em que carnes eram cortadas no chão O cheiro era detestável assim como o ambiente pois os urubus espreitavam a todo instante Dentro da cozinha a ração do dia era feita em caldeirões industriais Antes de entrar nos pavilhões o fotógrafo avistou um cômodo fechado apenas com um pedaço de arame Entrou com facilidade no lugar usado como necrotério Deparouse com três cadáveres em avançado estado de putrefação e dezenas de caixões feitos de madeira barata Ao lado uma carrocinha com uma cruz vermelha pintada chamou sua atenção Dentro dos pavilhões promiscuidade Crianças e adultos misturados mulheres nuas à mercê da violência sexual Nos alojamentos trapos humanos deitados em camas de trapos Moscas pousavam em cima dos mortosvivos O mau cheiro provocava náuseas Em outro pavilhão a surpresa capim no lugar de camas Feno aliás usado para encher colchões abrigar baratas atrair roedores Viu muitos doentes esquecidos nos leitos deixados ali para morrer A miséria humana escancarada diante de sua máquina Jamais havia flagrado nada parecido De volta à redação o fotógrafo desabafou com Eugênio Silva Aquilo não é um acidente mas um assassinato em massa Só precisei clicar a máquina porque o horror estava ali Impressionado o chefe de redação queria ver o material que se transformaria cinco décadas mais tarde no maior conjunto de imagens feitas no interior da unidade Uma a uma as três centenas de fotos foram sendo reveladas por Luiz Alfredo À medida que a química imprimia forma no papel o fotógrafo começou a ter ideia da dimensão da tragédia que havia acabado de testemunhar A sucursal do inferno como os repórteres batizaram a reportagem sobre o Colônia ganhou cinco páginas da revista em 13 de maio de 1961 O país se comoveu A classe política fez barulho os governantes fizeram promessas públicas pelo fim da desumanidade Quando o calor da notícia abrandou tudo continuou exatamente igual no hospício Por sorte o fotógrafo não se desfez dos negativos Luiz Alfredo tinha motivos de sobra para comemorar aquele 1º de abril de 1952 Filho de uma modesta família de três irmãos o menino que nasceu em Nova Iguaçu RJ e cresceu em Piedade subúrbio do Rio de Janeiro conquistava aos dezoito anos seu primeiro emprego no prédio recéminaugurado da rua do Livramento um arranhacéu projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer O cargo de auxiliar de arquivo na principal revista brasileira do século XX era o primeiro passo do rapaz em direção ao sonho de ser jornalista de O Cruzeiro O periódico semanal surgiu na cena carioca no final dos anos 20 experimentando seu período áureo no início da década de 50 época em que mantinha correspondentes em sete países Conquistar um lugar na revista era o desejo de muita gente inclusive de seu mais recente contratado Uma das cenas que mais chocaram Luiz Alfredo ao entrar no Colônia foi a dos doentes cobertos de moscas Ele teve a nítida impressão que os pacientes tinham sido deixados ali para morrer E a experiência no arquivo só fez a vontade aumentar Além do estreito contato com a redação Luiz Alfredo convivia de perto com personalidades da literatura brasileira já que no mesmo andar da redação do periódico funcionava A Cigarra revista feminina do grupo Diários Associados dirigida à época pelo baiano Herberto Sales autor do romance Cascalho obra que o colocou ao lado de grandes escritores da safra nordestina transformandoo em um imortal da Academia Brasileira de Letras Nessa ocasião o arquivista teve contato com nomes que se consagraram mais tarde no cenário nacional como os maranhenses Ferreira Gullar e José Sarney este último em 1953 lançava seu primeiro ensaio Luiz Alfredo jamais poderia imaginar que o homem que vestia terno cinza listrado e se dirigia à sede da revista com textos originais debaixo do braço se tornaria em 1985 o 31º presidente do Brasil A primeira oportunidade de escrever na O Cruzeiro ocorreu justamente quando trabalhava no arquivo Naquela época a revista mantinha um acordo de permuta de material com veículos internacionais como Time Look e Paris Match Além de traduzir matérias e reescrevêlas o aspirante a jornalista preparava pequenos textos para preencher os espaços que ficavam em branco Essa experiência aliás o encorajou a escrever seu primeiro e único conto infantil publicado em O Guri também do grupo Diários Associados que tinha como diretor Fernando Sales irmão de Herberto Inspirado pela infância em Piedade Luiz Alfredo preparou um conto sobre o gnomo malandro Restpeylauso um herói brasileiro com nome estrangeiro A incursão pela literatura infantil foi divertida mas o que ele queria mesmo era entrar para o mundo dos adultos Carteira de trabalho de Luiz Alfredo e sua contratação na revista em 52 como auxiliar de arquivo Apesar de tímido o jovem tomou coragem para falar com Djalma Fortuna seu chefe no arquivo Queria fazer um vale para comprar uma máquina fotográfica E para que você precisa de uma Para ser repórter de O Cruzeiro seu Djalma O maranhense riu Ah meu filho Todo mundo quer isso respondeu dando de ombros Luiz Alfredo não se deu por vencido Assim que recebeu o salário juntou suas economias e foi até a Mesbla famosa cadeia de lojas de departamentos naquele tempo onde comprou sua primeira Ikoflex câmera semiprofissional e um flash No início de 1958 com então vinte e quatro anos o arquivista de O Cruzeiro começou a fazer frilas para o Diário Carioca considerado uma das maiores escolas de jornalismo do país Localizado na avenida Rio Branco no centro do Rio o jornal que lançou o primeiro manual de redação e inovou na apresentação da notícia tornouse endereço de Luiz Alfredo no período noturno Pouco tempo depois foi surpreendido com um convite do jornal realizar uma matéria na Ilha da Trindade o sonho de qualquer foca iniciante no jornalismo Reencontro de João Bosco e sua mãe Geralda promovido em 2011 pelo Corpo de Bombeiros Empolgado dirigiuse no dia seguinte a José Amádio o polêmico diretor de redação de O Cruzeiro considerado um dos arquitetos do sucesso da revista O que o senhor deseja perguntou o homem pitando um cigarro Luiz Alfredo estava trêmulo não sabia por onde começar Considerava uma ousadia pisar na sala do gaúcho de nariz afilado e jeito esnobe Não sei se o senhor sabe eu gosto muito de jornalismo À noite eu faço frila para o Diário Carioca Estou sabendo cortou Amádio secamente O jornalista voltou a falar Bom eu falei com o sr Fortuna e pedi a ele dispensa de vinte dias do trabalho porque fui convidado para fazer uma matéria na Ilha da Trindade Eu quero sua permissão para ir José Amádio ficou calado por alguns segundos que pareceram uma eternidade para Luiz Alfredo Deu uma longa tragada na sua piteira e soprou a fumaça na direção do arquivista Permissão negada Naquele momento o sangue subiu à cabeça do repórter Então eu peço demissão Sabe por que eu não permito que o senhor faça essa viagem Não respondeu Luiz Alfredo já um tanto irritado Porque a partir de hoje o senhor passa a fazer parte da equipe de reportagem da revista O Cruzeiro Luiz Alfredo quase desmaiou Vai até o Sebastião Cardoso e diz a ele para fazer a sua transferência de setor e o registro profissional no Ministério do Trabalho Era a glória Admitido no mesmo dia em que pediu demissão Luiz Alfredo passaria a integrar o famoso time de jornalistas da revista liderado pelo controverso David Nasser Finalmente estaria perto dos repórteres que admirava entre eles Armando Nogueira Luiz Carlos Barreto Luciano Carneiro João Martins Álvares da Silva Henri Ballot José Medeiros Flávio Dan Carlos Castelo Branco entre outros Mais do que isso trabalharia ao lado deles A viagem à Ilha da Trindade ficou pequena diante do mundo que se abriu para o foca Ao ingressar na equipe de reportagem de O Cruzeiro Luiz Alfredo viu a sua própria vida mudar No dia 4 de maio de 1958 ele foi registrado como repórter fotográfico no Ministério do Trabalho Menos de dois meses depois participou da sua primeira grande cobertura nacional a da lendária chegada ao país dos jogadores da Seleção Brasileira após a vitória na Copa do Mundo da Suécia o primeiro dos cinco títulos mundiais do Brasil Na partida disputada em 29 de junho de 1958 Pelé Vavá e Zagallo golearam por 5 a 2 a seleção da casa em Estocolmo no estádio Rasunda Alçados a heróis nacionais os jogadores deveriam seguir direto para o Palácio do Catete no Rio que naquela ocasião era a sede do Poder Executivo O então presidente da República Juscelino Kubitschek estava à espera dos ídolos da seleção que contava ainda com o talento de Garrincha Na chegada à cidade carioca em 3 de julho de 58 a seleção desfilou em carro aberto do Corpo de Bombeiros mas na avenida Brasil ao longo do cais do porto o cortejo foi desviado por artimanha jornalística para o endereço da revista onde esposas e familiares dos jogadores já os esperavam Luiz Alfredo foi responsável por reunir e levar as famílias de São Paulo ao Rio O encontro aconteceu no salão nobre da revista O coquetel organizado pela direção do periódico contou com a presença do compositor Pixinguinha que tocou durante a festa A ousada articulação rendeu imagens inéditas confirmando o poder de O Cruzeiro e o prestígio de seus colaboradores Naquele mesmo ano o repórter fotográfico realizou uma reportagem sobre as linhas do Correio Aéreo Nacional Os aviões da Força Aérea Brasileira FAB eram os únicos meios de comunicação com comunidades isoladas como as indígenas A bordo dos velhos Douglas aviões C47 da Segunda Guerra Mundial Luiz Alfredo registrou a catequização por freiras de índios do Xingu e do Araguaia que viviam na Ilha do Bananal De Catalina PBY5 hidroavião batizado de Pata Choca pelos pilotos da FAB ele sobrevoou a Amazônia As linhas internacionais do Correio Aéreo na Colômbia Venezuela Bolívia Paraguai Peru e Chile estavam incluídas no pacote de viagens Até hoje ele guarda sua primeira Rolleiflex 6X6 considerada por ele um troféu de guerra No início de 1959 a notícia da chegada ao Brasil do comandante do Exército Rebelde Cubano Fidel Alejandro Castro Ruz deixou a redação de O Cruzeiro alvoroçada Responsável pela revolução que baniu do poder o ditador Fulgencio Batista o líder cubano em ascensão Fidel Castro trinta e três anos desembarcou no Rio de Janeiro em 6 de maio de 1959 sendo recebido pelo presidente Juscelino Kubitschek Escalado para a pauta Luiz Alfredo estava decidido a voltar para a redação com imagens exclusivas da visita Havia acabado de completar um ano de registro profissional e um furo como esse o alçaria ao patamar do primeiro time formado por jornalistas cerca de dez anos mais velhos do que ele Sabia que não seria fácil burlar a segurança para chegar perto do mítico comandante de 191 metro Mas conseguiu Na saída da União Nacional dos Estudantes UNE na praia do Flamengo 132 área conhecida como Calabouço ele abordou uma integrante da comitiva Alta magra de cabelos castanhos aparentava ter cinquenta anos e se apresentava como secretária do líder Por Deus per favor soy da Cruzeiro Me gustaría entrar en el coche del comandante arriscou Luiz Alfredo com seu espanhol macarrônico O fato é que a mulher armada e vestida de uniforme da mesma cor verde do macacão militar usado pelo primeiroministro de Cuba colocou o foca para dentro do carro oficial Luiz Alfredo sentouse no banco da frente ao lado do motorista que levaria Fidel em direção ao Glória para o hotel de mesmo nome No meio do caminho o repórter fotográfico pegou sua Leica M2 35 mm e virouse para trás mirando o comandante Nesse momento o segurança agarrou a lente da câmera Señor usted no puede tomar imágenes A reação da comitiva frustrou o jovem repórter Tentou argumentar mas não houve tempo Nas proximidades do hotel o segurança abriu a porta do carro e o convidou a descer Mas sou periodista do Brasil Na calçada coube a ele lamentar a chance perdida Pelo menos estive dentro do carro com Fidel Castro repetia em voz alta tentando consolar a si mesmo Hoje aos setenta e nove anos ele ri da experiência que ajudou a compor sua trajetória marcada por fatos memoráveis como o registro da obra de Alberto da Veiga Guignard um dos maiores pintores brasileiros do século XX Em março de 1962 Luiz Alfredo e o repórter José Franco os dois sempre trabalhavam em dupla receberam a missão de retratar a vida e a obra de Guignard Durante uma semana eles puderam acompanhar o artista pelas ruelas de Ouro Preto Como Guignard era apaixonado pelas montanhas de Minas ele escolheu a cidade histórica para viver O encontro foi registrado na matéria Guignard quero viver e morrer em Ouro Preto publicada na revista pouco tempo depois Apesar de ser considerado um gênio a doçura e a simplicidade do pintor de formação erudita levaram Luiz Alfredo a comparálo ao jogador Garrincha Numa das ruas de pedra da cidade Guignard ficou paralisado diante da beleza de uma adolescente que havia chegado à janela barroca de um sobrado Na sua imaginação ele comparava todas as jovens bonitas à Marília de Dirceu personagem criada pelo inconfidente mineiro Tomás Antônio Gonzaga Guignard tinha descoberto mais uma Vou cortejála revelou o pintor do alto de seus sessenta e quatro anos aos jornalistas José Franco e Luiz Alfredo entreolharamse Naquele momento da vida o pintor era acompanhado por pessoas amigas como o livreiro e colecionador de arte Samuel Koogan e sua esposa Janete Com a saúde fragilizada Guignard precisava ser tutorado porque já não respondia por seus atos com completa lucidez Apesar da idade o encantamento pela jovem demonstrava que a poesia na alma do artista ainda o guiava Após o instante de encantamento o pintor decidiu comprar um lenço branco um carretel de linha e agulha Daria vida a uma de suas últimas criações um coração vermelho bordado no tecido Quando terminou de alinhavar o lenço ele quis entregar a ingênua homenagem para a moça Os amigos tentaram em vão demovêlo da ideia E lá foi o velho pintor bater à porta do sobrado onde residia sua eleita A esposa do livreiro foi ao seu lado temendo a reação da família da menina Após declarar suas intenções o gênio esperava uma resposta O pai da adolescente no entanto não entendeu que o momento exigia certo trato Minha filha é muito jovem e não merece um velho esbravejou Chocado com a brutalidade do homem o pintor se retirou ferido em seus sentimentos Como nos romances ele terminou a noite afogando as mágoas na varanda do Grande Hotel de Ouro Preto na companhia dos dois jornalistas de seus tutores e de uma garrafa de cerveja O som do violão de Orlandino Seitas embalou a dor de cotovelo de Guignard Apenas três meses depois Luiz Alfredo voltou a Ouro Preto para fotografar o funeral do pintor Enquanto seguia o cortejo o fotógrafo lembrouse do episódio do lenço Na despedida de Guignard depositou uma flor no caixão e sussurrou em seu ouvido Acho que aquela menina foi a última Marília dos seus sonhos não é meu confidente amigo Em 1996 o Museu Guignard de Ouro Preto adquiriu as imagens feitas pelo fotógrafo durante o privilegiado encontro Regendo o Lirismo foto em que o artista aparece pintando a cidade histórica como um maestro em frente à sua orquestra é a mais famosa do museu O inédito mergulho no Parcel de Manuel Luís em 1972 o maior banco de corais da América do Sul foi uma das grandes aventuras do jornalista Não só pelo tempo de realização da reportagem cuja apuração durou quarenta dias mas também pelo tamanho do feito Conhecido como o Triângulo das Bermudas brasileiro o local temido pelos navegantes é um dos maiores cemitérios de embarcações do planeta com cerca de 200 navios naufragados Na matéria publicada em 17 de maio de 72 o autor das imagens e do texto descreve o seu batismo nas águas transparentes do o cea no Atlântico a mais de cem quilômetros da costa do Maranhão A vida de um repórter é pontilhada de surpresas Meu batismo de homempeixe ocorreu justamente no Parcel de Manuel Luís localmito monstro sagrado para os entendidos escreveu A matéria foi escolhida para ser a capa de O Cruzeiro no entanto para desespero de Luiz Alfredo foi substituída um dia antes de chegar às bancas pelo beijo entre a socialite Beth Klabin e o ícone da música brega Waldick Soriano Nesse momento da carreira Luiz Alfredo trabalhava havia treze anos na sucursal aberta pela revista em Belo Horizonte Com o repórter Fernando Brant que compunha músicas para integrantes do movimento Clube da Esquina registrou imagens da ferrovia que ligava Minas ao mar A viagem de Teófilo Otoni MG a Caravelas BA feita pelo leito da antiga estrada de ferro BahiaMinas durou mais de uma semana trabalho que inspirou a letra da canção Ponta de Areia que Brant fez em parceria com Milton Nascimento O fotógrafo também dividiu trabalhos com José Nicolau que completou oitenta anos em 2012 Num período de grande produção na carreira Luiz Alfredo cobriu a visita do expresidente JK a parentes na capital mineira em 1967 depois que o político no exílio obteve permissão das autoridades militares para a viagem Desta vez Luiz Alfredo que seguia numa Vemaguete com Juscelino conseguiu capturar o momento em que JK desceu do carro na altura da praça Sete ao encontro dos que cercavam o veículo Apelidado pelo povo de Nonô o expresidente foi carregado no colo pela multidão correndo o risco de ser preso Toda a emoção da cena foi flagrada por Luiz Alfredo em sua Pentax 500 Foi ao lado dela que voou por mais de trinta horas na velha Esquadrilha da Fumaça em aviões NorthAmerican T6 usados na Segunda Guerra Mundial Em 1968 ao lado do experiente fotógrafo Indalécio Wanderley de quem Luiz Alfredo era fã ele viajou para Miami e Nova York EUA depois de ser escolhido pela revista para fazer a cobertura do concurso Miss Universo Naquele ano a ganhadora do concurso realizado em 13 de julho foi a brasileira Martha Vasconcellos As imagens da viagem renderam três capas de O Cruzeiro uma delas datada de 27 de julho de 1968 As fotos reveladas em solo americano eram enviadas para o Brasil com a ajuda de comandantes da Varig extinta companhia aérea brasileira que fazia rotas internacionais Luiz Alfredo mal conseguia controlar a ansiedade até que as imagens chegassem sãs e salvas ao destino Apesar das dificuldades de se trabalhar em um tempo no qual câmeras digitais e internet seriam consideradas ficção científica esse foi um jornalismo que deixou saudades para o fotógrafo Tanto assim que Ana Maria de Paula Amorim sessenta e dois anos esposa de Luiz Alfredo e mãe de três filhos do fotógrafo considera o marido viúvo da revista O periódico entrou em decadência nos anos 70 encerrando as atividades em julho de 1975 Mesmo mergulhada em uma crise e com o atraso dos salários a redação de O Cruzeiro continuou unida à espera de uma saída capaz de evitar o fim Por isso quando o representante do departamento comercial entrou na redação com um maço de notas na mão resultado do pagamento de um anúncio todos se animaram O dinheiro significava mais do que a chance de receber os atrasados Os jornalistas acreditavam que a bolada era fruto de novos clientes o que seria um fio de esperança Luiz Alfredo aproveitou o momento para fazer graça Pegou o maço amarrou num barbante e saiu puxando pela redação A atitude do jornalista provocou um acesso de riso entre os colegas Dinheiro eu sempre andei atrás de você Agora é você quem vai andar atrás de mim Tudo ia bem até que o fotógrafo resolveu lançar o barbante pela janela Quando puxou de volta as notas já estavam voando do sétimo andar do prédio da rua Goitacazes no centro de Belo Horizonte Desesperado Luiz Alfredo gritava da janela Gente era só brincadeira Não levem o dinheiro porque ele não é meu Sem tempo para esperar o elevador usou as escadas na tentativa de recuperar a quantia Mais de 20 sumiram Com o fechamento da revista o fotógrafo aceitou o emprego de executivo na empresa de serviços submarinos que pertencia a Raimundo Silveira o mesmo personagem da aventura realizada no Parcel de Manuel Luís Mudouse para Fortaleza com a esposa Ana Maria que ele conheceu numa campanha publicitária feita para O Cruzeiro em 1966 transformando a modelo em sua eterna musa Da união nasceu Ana Cristina em 69 Luiz Alfredo em 71 e Leila em 78 Do primeiro casamento teve Carla Maria nascida em 1959 Com o único filho homem o repórter fotográfico estabeleceu uma relação de cumplicidade que os tornava mais do que pai e filho Eram sobretudo grandes amigos Papai esta é a segunda vez que quebro o braço disse o filho sorrindo na maca do hospital de Fortaleza CE ao avistar Luiz Alfredo na entrada da emergência O médico não entendeu nada Luiz Alfredo Júnior filho de Luiz Alfredo que morreu afogado aos dezenove anos Só falta uma fratura para que eu possa me igualar ao seu recorde brincou o garoto de cabelo castanhoclaro liso e olhos castanhos Luizinho como era chamado tinha apenas quatro anos quando Luiz Alfredo se transferiu de Belo Horizonte MG para o Ceará Nos quinze anos seguintes ele e as irmãs experimentaram a liberdade de crescer em uma cidade litorânea do Nordeste cercada pelo azul do mar e pelo verde dos coqueiros Em 1991 o fotógrafo foi surpreendido por uma tragédia familiar a morte de Luiz Alfredo Júnior O estudante da faculdade de veterinária morreu afogado aos dezenove anos na piscina do BNB Clube em Fortaleza do qual era atleta Campeão cearense de natação o rapaz praticava apneia no momento em que perdeu os sentidos dentro dágua A dor de enterrar o filho fez com que Luiz Alfredo e Aninha como ele chama a esposa ficassem ainda mais unidos Até hoje enganam a saudade Para eles é como se o filho estivesse ausente em função de uma longa viagem devendo retornar algum dia Ao lado da esposa o jornalista enfrentou novos tempos difíceis como sua aposentadoria e a luta para sobreviver com dignidade Hoje o casal mora na praia de Charitas em Niterói RJ numa casa construída no mesmo terreno da mãe centenária de Luiz Alfredo A lucidez e imponência de Dona Didi Aldina levaram o filho a compará la à rainha Elizabeth II da Inglaterra Ele a chama carinhosamente de rainhamãe Luiz Alfredo com setenta e oito anos só se rendeu à sua primeira máquina digital em 2011 Apaixonado pelos rolos de filme ele guardou alguns negativos das mais de 500 matérias que ilustrou durante os vinte e dois anos na O Cruzeiro As imagens do Colônia feitas em 1961 estão entre as que permaneceram em sua companhia por mais de quatro décadas Em 2006 após uma das fotos feitas na unidade ter sido publicada numa revista de saúde que fazia uma reportagem sobre o Museu da Loucura ele foi procurado pelo então diretor do hospital de Barbacena Jairo Toledo Apesar de ter recebido várias ofertas de colecionadores e bancos de imagens estrangeiros o fotógrafo sempre quis que o material histórico ficasse no país e contribuísse para a memória da psiquiatria brasileira Assim vendeu o conjunto de fotos por preço simbólico para a Fundação Municipal de Cultura de Barbacena As imagens foram impressas no livro Colônia publicado em 2008 pelo Governo de Minas na gestão do secretário de saúde Marcus Pestana Um ano depois durante uma entrevista que fiz com o psiquiatra José Laerte à época vereador em Juiz de Fora MG ele tirou o livro da gaveta Antes que eu me esqueça você precisa ver isto Ao folhear a primeira página levei um susto Não acredito repeti por diversas vezes ainda no gabinete do vereador Bastou o contato com aquelas imagens para que a senha da indignação fosse acionada Saí de lá com a certeza de que precisava ver de perto o que havia restado do pior capítulo da história da psiquiatria mineira Sentime na obrigação de contar às novas gerações que o Brasil também registrou um extermínio Quantos personagens restavam vivos O próprio Luiz Alfredo teria que idade Em 2011 quando as fotos dele completaram meio século minhas perguntas começaram a ser respondidas O autor das fotos contava então com setenta e sete anos e suas memórias deram o pontapé inicial à minha investigação A tragédia provocada pelo Colônia começou a ser revelada pelo olhar dos sobreviventes e de suas principais testemunhas Toda história tem outra por trás dela A do Holocausto Brasileiro não foge a esta regra XI Turismo com Foucault E m maio de 1973 o filho do médico Paul Foucault e de Anna Malapert desembarcou pela segunda vez no Brasil para participar de um circuito de palestras Aos quarenta e sete anos o filósofo francês Michel Foucault já era considerado uma das maiores estrelas da intelectualidade francesa e ainda mais admirado pelos jovens brasileiros do que quando estreou em solo verdeamarelo em 1965 Na primeira das cinco visitas feitas ao país ele esteve na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas FFLCH da Universidade de São Paulo USP onde dez anos depois interrompeu seu curso por ocasião do assassinato do jornalista Vladimir Herzog morto por agentes do DOICODI em 25 de outubro de 1975 durante a ditadura militar após uma sessão de tortura no bairro do Paraíso Não ensino em países onde se torturam jornalistas nas prisões declarou ao interromper o calendário de palestras na capital paulista Dois anos antes do forjado episódio de suicídio de Vlado como Herzog era conhecido Foucault esteve no Rio de Janeiro entre 21 e 25 de maio de 1973 para palestrar na PUC Em seguida viajou para Belo Horizonte a fim de realizar conferências nos hospitais psiquiátricos mineiros Impressionado com a realidade da loucura naquele Estado ele deixou o parlatório onde ministrava sua palestra e sentouse no chão junto com os estudantes a fim de ouvir os relatos sobre a forma de tratamento nas casas destinadas aos loucos Foi durante essa breve viagem à capital mineira que o psiquiatra nascido em São João delRei Ronaldo Simões Coelho à época com trinta e cinco anos conheceu Foucault Simões havia se formado na Universidade Federal de Minas Gerais em 1959 Desde a faculdade era uma voz destoante entre os colegas de classe pois questionava o modelo de psiquiatria de então Sua vontade de humanizar a assistência ganhou ainda mais força depois do episódio de sequestro de oitenta e quatro pacientes psiquiátricos do Hospital Raul Soares localizado em Belo Horizonte O grupo foi enviado nos anos 70 para o Colônia em Barbacena sem que médicos e as famílias soubessem o paradeiro dos pacientes A partir daquele ano o psiquiatra reforçou sua defesa em favor da desospitalização Argumentava que a maioria dos pacientes poderia ser tratada em serviços extramuros Além de maior eficácia na assistência a medida evitaria a segregação Supervisor de Psiquiatria do Inamps em 72 Ronaldo decidiu fazer uma visita ao Hospital Galba Veloso na capital mineira Estava ao lado de um profissional da instituição quando um dos enfermeiros abordou o médico que o acompanhava Doutor chegou um 6002 Como perguntou o homem visivelmente desconcertado em razão da presença de Simões É marido e mulher doutor Os dois foram diagnosticados com histeria Se multiplicarmos 3001 vezes dois dá 6002 explicou o enfermeiro dando uma gargalhada O deboche do funcionário em relação ao transtorno de personalidade dos novos pacientes problema diagnosticado dentro da Classificação Internacional de Doenças CID10 deixou Simões enfurecido Realmente o louco não merece nenhuma consideração Veja este pátio cimentado Não há sequer uma árvore ou sombra Os pacientes não precisam de nada afinal no conceito de vocês eles não são gente A resposta do psiquiatra fez o enfermeiro emudecer Episódios como esse foram tornando Simões respeitado no meio médico Em 1973 ele desfrutava de prestígio na imprensa embora fosse combatido entre seus pares por suas ideias revolucionárias Chefe do serviço de saúde mental no Estado coube a ele ciceronear Foucault durante a estada do filósofo em Minas Gerais Fã do autor de A história da loucura livro lançado pelo filósofo em 1961 Simões esteve ao lado do visitante em todas as suas palestras em Belo Horizonte inclusive na realizada na Casa de Saúde Santa Clara Além de Simões Halley Bessa um dos grandes defensores da humanização na psiquiatria brasileira e Emilio Grinbaum pioneiro da medicina psicossomática estavam na plateia O Brasil é um dos poucos lugares do mundo onde eu encontrei entre os estudantes tanta seriedade e tanta paixão O que me encanta mais do que tudo é a avidez absoluta de saber confidenciou Foucault a Simões repetindo o que havia declarado anos antes para a imprensa da Tunísia Durante a palestra Simões rabiscou num papel pardo a caricatura do filósofo que se considerava bastante louco para estudar a razão e ainda mais sensato para pesquisar a loucura Foucault gostou da homenagem autografando o desenho Como se quisesse deixar aquele momento gravado no tempo o médico pediu que alguns presentes assinassem também como testemunhas Assim no papel aparece o nome de Leila Dias médica radicada na França e de Lúcia Maria de Ferrara Barbosa Ronaldo Simões Coelho ciceroneando Michel Foucault em 1973 Foto cedida por Ronaldo Simões Caricatura de Foucault feita por Ronaldo Simões Imagem autografada pelo filósofo A capacidade de Foucault de transitar pelas diversas áreas do conhecimento impressionou Simões Além do brilhantismo o francês representava mais do que uma companhia agradável Ele era acessível Por isso ao final do ciclo de palestras o psiquiatra teve a ideia de convidar o filósofo para conhecer as cidades históricas mineiras Convite aceito Foucault e Daniel Defert seu companheiro por mais de vinte anos acompanharam na viagem de cinco dias Simões e o professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG Célio Garcia um dos que atuaram como tradutor do filósofo Eles embarcaram para Congonhas na caminhonete rural branca disponibilizada pela Secretaria de Saúde do Estado veículo considerado a versão familiar do Jeep Depois seguiram para Tiradentes São João delRei Mariana e Ouro Preto Na bagagem Célio levou um odre uma espécie de cantil feito de pele animal que existe desde os tempos do Cristianismo No século IV o recipiente era usado para carregar bebida produzida pela fermentação da uva Mas na viagem do filósofo pelas Gerais havia cachaça e das boas no lugar do vinho boisson typique du Brésil No quarto dia de turismo com Foucault Simões levou o escritor para visitar o Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana edifício em estilo rococó localizado na rua Frei Durão Erguido no final do século XVIII o museu é a expressão mais original do barroco mineiro guardando importante acervo religioso Diante das imagens com braços cortados o professor francês perguntou Como vocês interpretam essas imagens Simões apressouse em responder É que nas regiões mineradoras brasileiras o ouro era contrabandeado dentro de figuras religiosas Essa também era uma forma de burlar o Fisco Na Europa elas têm outro significado respondeu Foucault Representam o castigo imposto aos santos pelas pessoas que faziam promessas Como não alcançavam o que desejavam elas se vingavam dos santos arrancando pedaços A partir desse instante Foucault começou a dar uma aula sobre a história da promessa O encontro com o filósofo terminou no dia 5 de junho de 1973 na mesa de um restaurante da histórica cidade de Ouro Preto declarada anos mais tarde Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura A despedida de Foucault foi regada a cachaça torresmo feijãotropeiro e lombo bem ao gosto do francês que se revelou um bom prato Em solo mineiro o pensador deixou sua marca ao disseminar suas ideias A influência foucaultiana fortaleceu ainda mais o desejo do psiquiatra Ronaldo Simões de subverter a ordem das coisas Um ano antes do encontro Simões já havia apresentado um projeto visando à extinção do Colônia e à transformação do hospital em campus avançado da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG e da Universidade Federal de Juiz de Fora UFJF ambas compradoras de cadáveres produzidos por Barbacena Aliás o médico nunca escondeu o horror que sentia daquele lugar Mas foi no final da década de 70 que o chefe do Serviço Psiquiátrico da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais Fhemig realizou o gesto mais ousado denunciar no III Congresso Mineiro de Psiquiatria as atrocidades cometidas no Colônia Lá existe um psiquiatra para 400 doentes Os alimentos são jogados em cochos e os doidos avançam para comer O que acontece no Colônia é a desumanidade a crueldade planejada No hospício tira se o caráter humano de uma pessoa e ela deixa de ser gente É permitido andar nu e comer bosta mas é proibido o protesto qualquer que seja a sua forma Seria de desejar que o Hospital Colônia morresse de velhice Nascido por lei em 16 de agosto de 1900 morreria sem glórias E parafraseando Dante poderia ser escrito sobre o seu túmulo quem aqui entrou perdeu toda a esperança Ronaldo Simões Coelho oitenta anos um dos primeiros médicos a denunciar o Colônia Acima à esquerda foto dele em 1979 À direita sua carteira de trabalho na década de 70 Ao lado foto atual As declarações tiveram o efeito de uma bomba no meio médico Por causa delas ele perdeu o emprego na Fhemig A demissão de Simões foi o primeiro ato de perseguição aos que romperam a cultura do silêncio Mas as estruturas do atual modelo já não se sustentavam mais Começaram a ruir Apesar de Minas ter produzido a maior tragédia da loucura no país por meio do Hospital Colônia o Estado acolheu as primeiras manifestações em favor da reforma psiquiátrica Assim como na Inconfidência Mineira importante movimento social da história do Brasil ocorrido em 1789 a luta pela mudança de paradigma na saúde mental deflagrada oficialmente em 1979 contou com a ajuda de insurgentes dentre eles Simões Francisco Paes Barreto setenta anos também se rebelou contra a desumanidade de Barbacena O atual membro da Associação de Psiquiatria Brasileira tinha apenas vinte e dois anos quando manteve o primeiro contato com o Colônia No último ano da faculdade de medicina da UFMG em 1965 ele foi convidado pelo psiquiatra Jorge Paprocki um dos maiores pesquisadores de psicofármacos do Brasil para testar um novo antipsicótico injetável de ação prolongada o Anatensol Depot Indicado para tratar distúrbios psicóticos como a esquizofrenia crônica o medicamento havia acabado de ser sintetizado pelo laboratório BristolMyers Squibb e ainda estava em fase experimental A pesquisa era uma exigência do Ministério da Saúde e deveria ter duração de pelo menos seis meses O estudante teria como missão fazer os ensaios clínicos com os pacientes O Colônia tinha o perfil ideal milhares de pacientes cronificados com internação permanente Barreto já tinha ouvido falar do hospital mas não estava preparado para testemunhar a banalização da violência Naquele momento havia dois psiquiatras para atender a um exército formado por milhares de pacientes No primeiro dia de testes ele chegou ao Colônia na hora do almoço Ué Vocês criam porcos aqui Não Isso aqui é a comida dos pacientes respondeu o cozinheiro balançando a cabeça O aspecto repugnante da refeição deixou o estudante com náuseas Ele passou o dia sem comer tentando cumprir a rotina para a qual foi designado Horas depois deixou um dos pavilhões à procura de local onde não pudesse ser visto Isto não pode ser abrigo nem asilo muito menos um hospital repetia para si mesmo Este lugar é a antecâmara da morte Sozinho num canto do pátio ele chorou Indignado não podia suportar a ideia de permanecer naquele local nos próximos 180 dias Um ano depois em 1966 o jovem médico fez a sua primeira denúncia pública contra Barbacena Em 1972 nova tentativa Escreveu o artigo Críticas do hospital psiquiátrico para apresentar no Congresso Brasileiro de Psiquiatria O peso das suas críticas contra os hospitais psiquiátricos mineiros no entanto só foi sentido em 1979 quando o Conselho Regional de Medicina instaurou uma sindicância contra ele sob acusação de ter infringido a ética médica após o artigo ter sido publicado na íntegra pela grande imprensa Apesar das retaliações Barreto sabia que era necessário fazer alguma coisa A tolerância mórbida dos psiquiatras se estendeu ao meio médico em cujas faculdades os cursos de anatomia são abastecidos por generosa quota de cadáveres provenientes de Barbacena Os hospitais de crônicos da rede pública são instituições finais numa alusão à solução final do nazismo A realidade brutal de nossos hospitais psiquiátricos enquanto permanecer restrita aos meios profissionais mostrase inteiramente inócua pois há uma acomodação na qual todo aquele horror se torna banal Comida servida aos pacientes em 1961 A contundência das alegações do psiquiatra incomodou ainda mais o conselho da classe Mas quando a realidade do Colônia ganhou as páginas dos jornais mineiros a sindicância aberta contra ele foi arquivada por unanimidade Francisco Paes Barreto setenta anos psiquiatra que denunciou o Colônia e respondeu por isso a processo no CRM Foto dele na época e hoje Naquele mesmo ano a vinda ao Brasil do psiquiatra italiano Franco Basaglia pioneiro na luta antimanicomial garantiu visibilidade mundial ao tema da loucura e à forma como ela vinha sendo tratada em Minas Gerais O médico inspirou em 1973 a criação da Lei 180 em vigência até hoje na Itália A norma que leva seu nome estabeleceu a abolição dos hospitais psiquiátricos Em julho de 1979 o italiano então com cinquenta e cinco anos desembarcou no país para uma série de visitas aos hospícios brasileiros Ao tomar conhecimento da vinda de Basaglia o psiquiatra mineiro Antônio Soares Simone vinte e oito anos à época convidou o colega para visitar Minas a fim de apresentar a ele as instituições psiquiátricas públicas Instituto Raul Soares Hospital Galba Veloso ambos na capital e o Hospital Colônia em Barbacena Professor da residência de psiquiatria do Instituto Raul Soares Simone conhecia a realidade do Colônia desde o período em que era acadêmico Não entendo como a classe médica mantém silêncio sobre o extermínio desses pacientes Não procuram saber onde são fabricados os cadáveres que alimentavam as salas de anatomia das faculdades disse Simone ao diretor do Serviço Hospitalar de Trieste Foi o próprio Simone quem levou Basaglia de carro a Barbacena De temperamento expansivo o italiano passou a viagem de volta a Belo Horizonte em silêncio Quando chegaram seguiram direto para a Associação Médica Mineira onde o estrangeiro ministraria um curso de psiquiatria social Ao final da conferência ele fez um pedido ao brasileiro Simone eu quero que você acione a imprensa O prestígio de Basaglia atraiu toda a mídia para o endereço da conferência na avenida João Pinheiro a cem metros do Palácio da Praça da Liberdade Estive hoje num campo de concentração nazista Em lugar nenhum do mundo presenciei uma tragédia como esta As declarações do psiquiatra repercutiram dentro e fora do país Até o New York Times se interessou pela tragédia da loucura mineira Simone no entanto foi processado pelos hospitais psiquiátricos e a cassação de seu diploma chegou a ser cogitada pelo Conselho Regional de Medicina CRM Trinta e dois anos depois do episódio ele diz ter cumprido a sua função médica Antônio Soares Simone psiquiatra que em 1979 levou o italiano Franco Basaglia até Barbacena para conhecer o Colônia Acima ele com Basaglia em 1979 e ao lado foto atual Arquivo pessoal O fato de as denúncias terem colocado fim à fábrica de cadáveres e ao grande sofrimento humano vividos em Barbacena me satisfaz Apesar de toda a perseguição que sofri cumpri o meu papel O psiquiatra Paulo Henrique Resende Alves sessenta e quatro anos confirma que Basaglia foi o grande inspirador do movimento antimanicomial do país Após a passagem do italiano pelo Brasil a Associação Mineira de Saúde Mental fundada por Ronaldo Simões Coelho e aberta para quem se interessasse pelo tema ganhou força abrindo as portas para os militantes basaglianos O próprio Paulo Henrique tornouse um militante dessa luta Em 1981 foi eleito presidente da Associação Mineira de Psiquiatria Durante os anos em que trabalhou como professor de psiquiatria social da UFMG transmitiu os conceitos de humanização para seus alunos Pressionada a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais Fhemig que passou a gerir a totalidade dos hospitais públicos do estado em 1977 período em que as antigas fundações de assistência de saúde do Estado se fundiram aprovou em 1980 o Projeto de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica que acolhia as teses do III Congresso Mineiro de Psiquiatria As mudanças foram sentidas no Instituto Raul Soares e posteriormente se estenderam ao Hospital Galba Veloso Centro Psicopedagógico exHospital de Neuropsiquiatria Infantil e Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena exHospital Colônia de Barbacena Os porões da loucura finalmente começaram a ser abertos Se Franco Basaglia foi decisivo para a implantação do movimento da reforma psiquiátrica mineira o jornalista Hiram Firmino sessenta e um anos foi o grande portavoz dos pacientes de Barbacena Ele é o autor da série de reportagens Os porões da loucura publicada em 1979 no jornal Estado de Minas onde trabalhou por mais de vinte anos Com trinta anos à época conseguiu entrar no subterrâneo da loucura após quase duas décadas de esquecimento da imprensa Naquele momento fazia dezoito anos que as denúncias da revista O Cruzeiro feitas pelo fotógrafo Luiz Alfredo e pelo repórter José Franco tinham sido publicadas De 1961 a 1979 nenhum outro jornalista havia conseguido transpor os muros do Colônia Com o país na ditadura militar desde 1964 e a edição do Ato Institucional número 5 AI5 dois anos depois o hospital estava blindado Hiram não só conseguiu entrar no Colônia mas também despertar na sociedade a necessidade de mobilização Hiram Firmino jornalista que denunciou a situação do hospital em 1979 e hoje O interesse pelo tema surgiu antes da entrada do jornalista no hospital de Barbacena Dois anos antes ele abrigou em sua casa com o apoio da esposa uma mulher conhecida como a louca de Inhapim A história da professora primária de trinta e sete anos que buscava cura para a sua esquizofrenia tocou Hiram que em 1978 acabou fazendo com ela uma viacrúcis à procura de tratamento Frequentou ao lado dela os divãs mais badalados de Minas e de São Paulo mas os tratamentos foram inócuos O primeiro especialista a se ocupar da esquizofrenia de Tânia abandonou o caso O segundo drogoua tanto que ela foi transformada em um zumbi Os dois médicos seguintes a trancaram numa cela onde ela foi dopada por vários dias Tânia saiu de lá parecendo bicho O penúltimo devolveu a mulher cadavérica O último além das medicações usou de sessões de eletrochoque visando alcançar a sanidade Não adianta Hiram Estou muito cansada Sintome igual a uma rosa A cada lugar que vou tiram uma pétala Quando voltou para a casa dos pais no interior de Minas Tânia se matou Depois do suicídio dela o jornalista contou a história no Caderno Feminino do Estado de Minas em matérias veiculadas entre os dias 10 de junho e 15 de agosto de 79 O tema da loucura havia fisgado Hiram A autorização para dissecar Barbacena e os hospitais psiquiátricos mineiros veio durante uma entrevista com o então secretário de Saúde do Estado Eduardo Levindo Coelho médico natural de Ubá Dias antes o editor Rogério Peres havia pautado Hiram para uma matéria sobre a doença de Chagas O jornalista deveria entrevistar o presidente da Associação Médica de Minas Gerais mas acabou indo parar por equívoco no prédio da Secretaria de Estado da Saúde Como a entrevista estava agendada com o secretário o jeito era ouvilo O momento aliás mostrouse oportuno pois a vinda de Franco Basaglia ao Brasil tinha provocado um intenso debate a respeito das condições de funcionamento dos manicômios Dr Levindo o que o senhor pensa sobre a atual situação dos hospitais psiquiátricos A resposta do secretário surpreendeu Indignado ele criticou o modelo asilar de internação Hiram aproveitou para fazer um pedido Se nós quiséssemos ir amanhã a Barbacena o senhor permitiria Sem saída o secretário franqueou a entrada do jornalista Os nossos hospícios estão à disposição dos jornais das rádios e da televisão Vocês podem entrar em qualquer um deles até em Barbacena e registrar tudo o que virem Fazendo isso me ajudarão Somente sensibilizando a esfera federal é que conseguiremos alguma coisa O ideal seria que estes hospícios não existissem mais No dia 13 de setembro de 1979 no início da manhã Hiram partiu em direção a Barbacena Não sabia mas ele nunca mais seria o mesmo Nem a psiquiatria Na chegada como o motorista havia errado o caminho o jornalista e a fotógrafa Jane Faria entraram pela porta dos fundos onde havia mato alto e lixo Também puderam avistar o primeiro grupo de pacientes no chão vestidos com a tal roupa de um azul descorado Era quase meiodia quando entraram na sala do então diretor José Theobaldo Tollendal O que querem aqui Vocês não se cansam Não vejo originalidade alguma nisto pois nenhuma reportagem adiantou disse o homem que estava havia uma década no cargo Hiram conseguiu driblar a irritação do diretor e obter informações sobre a rotina do Colônia Descobriu por exemplo que a comida oferecida aos pacientes era triturada já que eles não podiam usar faca nas refeições ou sequer possuíam dentes para mastigar Constatou ainda que em cada um dos dezesseis pavilhões havia dois funcionários para cuidar de mais de 200 pacientes e a maioria dos contratados não tinha formação Passou por uma ala onde havia 400 mulheres peladas Levantou dados sobre o alto índice de infecção hospitalar apurando ainda que o Colônia não existia para fins terapêuticos mas políticos O senhor não tem esperança alguma Se não tivesse não estaria mais aqui Hiram passou o dia fazendo entrevistas Ouviu pessoas que foram internadas apenas porque tinham perdido a carteira e ficado sem os documentos Outras foram pegas usando maconha e levadas para lá Constatou ainda a falta de critérios médicos para as internações a ausência de voz dos pacientes e a impotência diante do sistema Também se comoveu com o fato de os considerados doentes terem sido presos sem terem cometido crime algum Tentou não julgar Ao deixar a unidade sentouse à máquina de escrever Hoje nós começamos a percorrer o Centro Psiquiátrico de Barbacena como o governo insiste em rotular Os primeiros de seus dezesseis pavilhões Suas enfermarias seus pátios Não encontramos os loucos terríveis que supúnhamos Seres humanos como nós Pessoas que fora das crises vivem lúcidas o tempo todo Sabem quem são e o que fazem ali O que os espera no fim de mais alguns dias alguns anos Pessoas que pedem para ser fotografadas pedem a publicação de seus nomes Insistem em voltar à sociedade à família ao afeto à liberdade Nem todas porém As alienadas de tão drogadas de tantos choques tanta prisão Crianças que não conseguem nem se locomover Mas a maioria insiste em ter esperança de ser tratada como ser humano Ainda há tempo Quando conheceu o Hospital Colônia em 1979 o estudante de psicologia da PUC Minas Helvécio Ratton com trinta e um anos havia acabado de voltar do Chile onde se exilou em razão de sua participação no movimento estudantil brasileiro Foi em território chileno que ele iniciou a carreira de cineasta Por isso quando retornou ao Brasil estava dividido entre a sétima arte e a ciência que trata do comportamento humano A entrada no Colônia pôs fim à dúvida o cinema o aguardava O desejo de fazer um documentário sobre a unidade mineira surgiu no instante em que ele teve contato com fotos dos pacientes tiradas na clandestinidade por Júlio Bernardes irmão de um professor da faculdade As imagens deixaram o aluno escandalizado porque embora conhecesse o funcionamento de outras instituições públicas como o Hospital Raul Soares em Belo Horizonte jamais havia visto algo na escala do hospício de Barbacena Viabilizar um filme da loucura parecia algo impossível não só em razão da censura mas também porque um projeto como aquele necessitava de verba O súbito movimento de transparência encabeçado pela Secretaria de Estado da Saúde facilitou o acesso ao hospital Quando o órgão abriu as portas do manicômio Ratton estava entre o grupo que conseguiu visitar a unidade Os primeiros contatos com o Colônia foram suficientes para ele perceber que ao vivo o inferno era bem pior A sensação de pisar em um campo de concentração dentro do Brasil despertou nele a urgência de registrar a rotina da unidade Nesse momento o movimento antimanicomial crescia nas escolas de medicina e de psicologia e o estudante fazia parte dele Com medo de que as portas do manicômio fossem novamente fechadas e seus muros se tornassem ainda mais altos Ratton resolveu improvisar Alugou equipamentos pagos com dinheiro do próprio bolso e reuniu uma equipe voluntária Durante oito dias ele captou imagens do hospício As filmagens começavam no início da manhã e a câmera só era desligada quando não havia mais luz para continuar o trabalho No terceiro dia de filmagem um paciente o segurou pelo braço Sei o que vocês estão fazendo Tirando foto de todo mundo Assim quando a gente morrer as pessoas vão saber que estivemos aqui Aquela frase confirmou em Ratton a impressão de que ele estava fazendo algo importante para a história Tinha a sensação de que havia transposto as paredes do hospital e roubado as imagens de dentro dela Só assim poderia mostrar o que acontecia por trás dos muros do Colônia Como a sociedade permite que as famílias e a medicina despejem pessoas neste depósito de lixo humano questionava Ratton junto a Dileny Campos editor de fotografia do filme O cheiro deste lugar é indescritível É o cheiro de suor de fezes de sofrimento de gente amontoada de falta de higiene Ratton estava convencido de que o cinema podia intervir tocando as pessoas Essa certeza o motivou a prosseguir Mais do que isso Quando o documentário ficou pronto poucos acreditavam no que estavam vendo Em 25 minutos o diretor do filme exibiu relatos de pessoas que estavam a vida inteira internadas por causa de brigas familiares do abuso de álcool e de comportamento homossexual Helvécio Ratton cineasta autor do documentário Em nome da razão filmado em 1979 no interior do Colônia em foto da época e de hoje Arquivo pessoal É uma sentença de morte em vida comentou um expectador na primeira sessão do curta realizada em Belo Horizonte O psiquiatra Franco Basaglia e o jornalista Hiram Firmino também estavam na plateia Mesmo tendo acabado de chegar de Barbacena a crueza das cenas impactou o italiano Ratton havia optado por não usar trilha sonora Queria que os sons do desespero captados no interior da unidade ajudassem a contar a história O seu filme tem um grande poder de revelação comentou o psiquiatra Basaglia estava certo O filme tomou trajetória impressionante Depois de passar pelas salas brasileiras foi premiado em diversos festivais do exterior Por onde passou despertou o mesmo sentimento de indignação O curta acabou sendo o golpe de misericórdia no modelo de psiquiatria exercido até então Com a porta do hospício escancarada era ainda mais difícil negar os crimes cometidos Em nome da razão como o documentário foi batizado Ratton tinha conseguido derrubar os muros da indiferença Mais de trinta anos se passaram desde que ele pisou no Colônia De lá para cá tornouse o premiado cineasta brasileiro Aos sessenta e três anos exibe no currículo longas como O menino maluquinho 1995 e Batismo de sangue 2006 E apesar da passagem de três décadas o cheiro do Colônia ainda continua impregnado em sua memória XII A luta entre o velho e o novo P raça da Sé centro de São Paulo O 25 de janeiro aniversário da capital paulista era a data escolhida para a realização do primeiro grande comício da campanha por eleições diretas no Brasil Após vinte e um anos de regime autoritário a sociedade ansiava a consolidação do processo de redemocratização anunciado anos antes no governo de Ernesto Geisel Em um país sufocado pelo militarismo o grito de mudança estava havia tempos preso na garganta Por isso o movimento das Diretas Já devolveu voz aos brasileiros naquele ano de 1985 Apesar de o governo militar tentar abafar a manifestação cerca de 300 mil pessoas compareceram ao comício na tentativa de pressionar as forças políticas a aprovar a Emenda Dante de Oliveira que propunha a escolha popular para presidente Com a proposta rejeitada apesar dos 298 votos favoráveis o país teve que esperar mais quatro anos para ir às urnas Foi em meio a esse clima de transformação social que o professor universitário Paulo Delgado natural de Lima Duarte se elegeu deputado federal pela primeira vez em 1986 como o mais votado do PT em Minas Gerais Aos trinta e seis anos ele se licenciava do cargo de docente da Universidade Federal de Juiz de Fora UFJF para ocupar uma cadeira na Câmara Federal Paulo Delgado em 1982 à esquerda e hoje Foto de 1982 Humberto Nicoline Foto atual reprodução Sociólogo com pósgraduação em ciências políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais UFMG Paulo filiouse ao Partido dos Trabalhadores em 1979 iniciando sua trajetória política e tornandose um dos fundadores do PT em Juiz de Fora Ao chegar a Brasília o constituinte percebeu que precisava abraçar alguma causa que norteasse seu trabalho Foi o irmão o psiquiatra Pedro Gabriel Delgado quem sugeriu que Paulo se transformasse no deputado dos doentes mentais A ideia de ser o portavoz de um grupo historicamente silenciado seduziu o político que desde a época de estudante demonstrava interesse pelo tema da reforma psiquiátrica por influência do trabalho de Franco Basaglia Apoiado por Pedro que mais tarde assumiu o cargo de coordenador nacional de Saúde Mental Álcool Outras Drogas do Ministério da Saúde o deputado apresentou em 1989 no Congresso Nacional o Projeto de Lei 3657 propondo a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios no país Até aquele momento ainda prevalecia no país o Decreto Presidencial 24559 baixado por Getúlio Vargas em 1934 A resolução previa o recolhimento de pacientes a hospitais psiquiátricos mediante simples atestado médico que poderia ser solicitado por qualquer pessoa que tivesse interesse em internar alguém A necessidade de uma lei que regulamentasse a saúde mental e impusesse um novo rumo para a reforma psiquiátrica nascente encontrou terreno fértil nos movimentos sociais e de saúde mineiros que já haviam deflagrado a mobilização pela reformulação no setor Mesmo enfrentando resistência entre a classe médica famílias de doentes e colegas parlamentares Delgado conseguiu aprovar seu projeto em 1990 na Câmara dos Deputados por meio do acordo de lideranças constituindose na primeira lei de desospitalização em discussão no parlamento latinoamericano No mesmo ano Paulo representou o país na conferência sobre a Reestruturação da Atenção Psiquiátrica na América Latina A convite da Organização Mundial da Saúde o delegado brasileiro viajou para Caracas na Venezuela para integrar as discussões sobre novos modelos de atendimento Na volta continuou a enfrentar resistências de parte da classe médica A medicina brasileira tem tradição de cárcere Por isso a lógica da internação faz com que os recursos médicos sejam predominantemente hospitalares subtraindo recursos do tratamento ambulatorial comunitário aberto defendia As declarações do deputado acirraram ainda mais a polêmica em torno da tramitação da proposta Remetido ao Senado Federal em 15 de fevereiro de 1991 como projeto de lei da Câmara ele foi distribuído à Comissão de Assuntos Sociais CAS recebendo inicialmente pareceres de dois relatores antes de ser submetido a votação os senadores José Paulo Bisol PSBRS e Lúcio Alcântara PSDBCE Votado pela comissão em 1995 com parecer favorável do senador Lúcio Alcântara o Projeto Delgado foi rejeitado por 18 votos a 4 recebendo sete novas emendas em plenário Em 15 de dezembro de 1998 o plenário apresentou outras dez emendas ao parecer do senador Sebastião Rocha PDTAP O texto foi aprovado em 20 de janeiro de 1999 e enviado à Câmara dos Deputados com o substitutivo do Senado Após algumas modificações o projeto final foi remetido à sanção presidencial Em 2011 após doze anos de tramitação e de muitas manobras políticas a Lei Federal 10216 foi sancionada A norma que propõe um modelo de atenção à saúde mental aberto e de base comunitária completou uma década de vigência em 2011 dividindo opiniões Os críticos da proposta afirmam que ela não instituiu mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios provocando desospitalização em massa sem a implantação de uma rede extrahospitalar capaz de atender à demanda Para os defensores da reforma a lei impôs um novo rumo ao processo de reestruturação do setor Quem encarcera seda e isola não acredita na razão nem no resto dela A lei da reforma psiquiátrica ao contrário é humanista mas baseada em fundamentos técnicos da própria medicina os quais permitem a realização do tratamento em liberdade defende seu criador Quando a nova legislação foi implantada no país havia mais de 50 mil leitos em hospitais psiquiátricos conforme dados do Ministério da Saúde Dez anos depois os leitos somavam pouco mais de 30 mil Nesse período quarenta e cinco hospitais psiquiátricos foram desativados Restam 200 Em 2009 em seu sexto mandato o deputado sofreu o maior ataque público desde a edição da lei com a publicação no jornal Folha de SPaulo de artigo assinado pelo consagrado poeta Ferreira Gullar Com o título Uma lei errada o texto de setenta e seis linhas veiculado no domingo de Páscoa trazia críticas contra a classe médica e contra Paulo Delgado chamado pelo poeta de cretino autor de uma lei idiota que precisa ser revogada Na visão de Gullar os doentes pobres não conseguiam internação terminando nas ruas como mendigos Eis um trecho A classe média em geral sempre aberta a ideias avançadas ou libertárias quase nunca se detém para examinar as questões pesar os argumentos confrontálos com a realidade Não adere sem refletir Havia naquela época um deputado petista que aderiu à proposta passou a defendêla e apresentou um projeto de lei no Congresso Certa vez declarou a um jornal que as famílias dos doentes mentais os internavam para se livrarem deles E eu que lidava com o problema de dois filhos nesse estado disse a mim mesmo Esse sujeito é um cretino Não sabe o que é conviver com pessoas esquizofrênicas que muitas vezes ameaçam se matar ou matar alguém Não imagina o quanto dói a um pai ter que internar um filho para salválo e salvar a família Esse idiota tem a audácia de fingir que ama mais a meus filhos do que eu Esse tipo de campanha é uma forma de demagogia como outra qualquer fundase em dados falsos ou falsificados e muitas vezes no desconhecimento do problema que dizem tentar resolver No caso das internações lançavam mão da palavra manicômio já então fora de uso e que por si só carrega conotações negativas numa época em que aquele tipo de hospital não existia mais A ira do poeta dividiu o país ao meio e provocou reação imediata entre os defensores da reforma sob alegação de que ela era resultado de mais de trinta anos de luta contra modelos de internação asilar que transformam pacientes em prisioneiros O presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental à época Walter Ferreira de Oliveira manifestouse Caro senhor Gullar sinto muito lhe trazer uma verdade incômoda e vergonhosa para o nosso país Os manicômios continuam existindo continuam sendo desumanos tratando seres humanos como animais produzindo mais doença e com seu papel de depósito humano temos milhares de pessoas internadas por 20 30 40 anos continuam sangrando o dinheiro público Caso o senhor ou qualquer outra pessoa duvide será muito fácil mostrar alguns endereços onde se pode constatar esta vil realidade Há também interesses no velho sistema de internações que não têm nada a ver com a intenção de melhorar a saúde dos usuários são herança da mentalidade do INPS onde as internações e por quanto mais tempo melhor são negócios que dependem da hotelaria dos serviços das licitações e da medicalização excessiva dos pacientes Pessoalmente manifesto minha solidariedade para com o poeta Ferreira Gullar por seu sofrimento como pai que revelou em seu artigo Compreendo a partir daí sua paixão sua agressividade para com muitos de nós que lutamos por um modelo de atenção que entendemos como melhor Há entretanto muitos equívocos em seu artigo e um deles talvez seja não perceber que sua família poderia ter sofrido muito menos e tido muito mais apoio se todos nós lutássemos solidariamente pela efetivação de um sistema digno de saúde que inclua uma rede adequada de saúde mental que apenas por interesses escusos e pela ignorância de muitos de nossos políticos ainda encontra resistências para sua ampliação e avanço Delgado não se intimidou A lei não desconhece a doença mental Ela regula a forma de tratála As insuficiências do tratamento não são da lei mas da defic iê ncia na sua aplicação A doença é uma coisa normal da vida O que não é normal é não haver convivência pacífica com ela O maior problema ainda é de aceitação da dificuldade do outro A reforma psiquiátrica é de certa forma a abolição da escravidão do doente mental seu fim como mercadoria de lucro dos hospitais fechados da exploração do sofrimento humano com objetivos mercadológicos Com o debate novamente aquecido o tema da saúde mental voltou à baila no país A proposta que privilegia a formação de rede extramural e os avanços conquistados no setor como a redução de leitos psiquiátricos de baixa qualidade começou a ser rediscutida Especialistas demonstraram preocupação com o fato de a questão ideológica de uma sociedade sem manicômio ter ficado à frente da técnica e pragmática já que não é possível a sustentação de uma assistência psiquiátrica sem leitos humanizados em hospitais gerais para garantir o atendimento das crises e a alta responsável que permita a continuidade do tratamento Segundo o Ministério da Saúde 12 da população necessita de algum atendimento em saúde mental sendo ele contínuo ou eventual representando um contingente de 22 milhões de pessoas Com 1620 Centros de Atenção Psicossocial instalados no país até 2010 o indicador de um CAPS para cada cem mil habitantes ainda não foi alcançado Os Serviços Residenciais Terapêuticos SRT também são insuficientes O Brasil conta com mais de 600 casas localizadas no espaço urbano com a finalidade de responder às necessidades de moradia de pessoas com transtornos mentais graves egressas de hospitais psiquiátricos ou hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico as quais perderam os vínculos familiares e sociais Mais de 3 mil brasileiros vivem em residências terapêuticas Quase meio século depois de denunciar a falência dos hospícios brasileiros o psiquiatra mineiro Francisco Paes Barreto setenta anos uma das vozes mais consistentes pela mudança de paradigma na saúde mental brasileira defende que é tempo de um novo discurso A reforma vive um momento de impasse O maior risco é o de retrocesso O discurso manicômio versus antimanicômio está ultrapassado porque a existência dele já não se sustenta é indefensável Precisamos avançar e repensar o modelo da reforma psiquiátrica Nunca hesitei em defender a reforma assim como hoje não hesito em criticála Ela precisa se superar A psiquiatria biológica não pode continuar centrada num biologicismo redutivista e prioritariamente medicalizador Num país onde a regulamentação de uma lei tem sido metade da lei a luta entre o velho e o novo precisa se renovar XIII Tributo às vítimas U m dos lugares mais temidos do Colônia era o prédio localizado entre os pavilhões Arthur Bernardes e Afonso Pena Usado inicialmente como cozinha do hospital tornouse setor de administração sendo mais tarde transformado em local de experimentos como o uso de ducha escocesa um tipo de banho com jatos em alta pressão A hidroterapia feita com temperatura e volume de água controlados também teve a finalidade deturpada no hospital Os banhos gelados promovidos na calada da noite como forma de castigo eram mais uma maneira de debilitar organismos já fragilizados por doenças físicas e mentais Quando as denúncias de tortura na instituição provocaram mobilização social no início dos anos 80 o prédio foi sendo paulatinamente desativado Dentro dele havia um torreão de difícil acesso que acabou transformado em palco de conspiração Era ali que os jovens médicos que chegaram à instituição passaram a se reunir para discutir critérios de internação e mudanças de paradigma em relação à forma de se tratar o doente Jairo Toledo era um deles Residente de psiquiatria do Instituto Raul Soares em 1979 Jairo foi incumbido por seu professor César Rodrigues Campos de retomar em Belo Horizonte o Congresso Mineiro de Psiquiatria paralisado havia sete anos Jairo contou com a ajuda dos colegas Wellerson Durães Alkmim e Lécio Márcio Dias para organizar o terceiro encontro do qual se tornou secretário A pedido do docente ele montou um painel para contar no evento a história da psiquiatria no Estado Jairo teve a ideia de procurar médicos antigos no intuito de reunir documentos inéditos Com Hélio Alkmim tio de Wellerson conseguiu o ofício enviado em 1959 pelo Estado para os hospitais públicos mineiros sugerindo a implantação do leito chão O modelo criado pelo Colônia previa a retirada de camas dos pavilhões para ganhar mais espaço e garantir novas internações e com elas mais repasse de recursos Ronaldo Simões também tinha um vasto arquivo cedendo seu material A mostra acabou atraindo um público numeroso O congresso repercutiu fora dos limites do Estado tornandose marco da reforma psiquiátrica mineira Ao final do encontro o então superintendente da Fhemig José Ribeiro Paiva Filho contatou o residente Jairo sei que você está entre os que ajudaram a mostrar a cara do hospital Colônia Jairo acenou que sim Então por que não vai para lá ajudar a consertar O convite de trabalho do superintendente soou mais como uma intimação Ainda assim o médico de trinta e um anos sentiuse desafiado Embora tivesse outros planos profissionais e eles não incluíam Barbacena a chance de mudar os rumos do Centro Hospitalar Psiquiátrico CHPB mexeu com ele Como acadêmico de medicina conheceu de perto a rotina da instituição e os desmandos políticos que a transformaram em instrumento de barganha e de nomeações Foi como estudante que ele se tornou plantonista do CHPB em 1974 passando vinte e quatro horas por semana dentro do hospício Naquela época a ordem era que os funcionários tomassem conta da porta de cada pavilhão Trancados os internos eram abandonados à própria sorte O que acontecia dentro das alas não era problema de ninguém Foi esse tipo de gestão que transformou o Colônia em símbolo de covardia e morte Jairo Toledo diretor do hospital até março de 2013 Em 1979 acima era estudante da faculdade de medicina Arquivo pessoal de Jairo Toledo Abaixo em 2011 Foto Roberto Fulgêncio Tribuna de Minas Como plantonista Jairo ainda teve a chance de conhecer novas faces da loucura como a agressividade de Sueli Rezende a força contestadora de Conceição Machado e o encantamento de Flor de Liz a paciente mais sonhadora da ala feminina que gostava de batom e roupa colorida Ignorando o mundo de horror ao seu redor ela vivia um eterno conto de fadas Apaixonada por médicos e acadêmicos que circulavam pela unidade ela disputava com as colegas de pavilhão a atenção deles Em dias de consulta vestiase como rainha embora estivesse coberta pelos trapos do Colônia Jairo não se dava conta mas já estava ligado ao hospital Assim no ano do seu casamento com a advogada Flora Lúcia Moura ele aceitou a proposta de trabalho de Paiva Filho Ainda em 1979 foi transferido do Hospital Galba Veloso na capital para Barbacena começando a mudar a ordem das coisas A primeira alteração na unidade foi a determinação de transferência dos trinta e três meninos de Barbacena para local mais adequado Vivendo no meio de adultos a permanência deles no Colônia era uma violação de direitos da infância e adolescência Em 1980 Silvio Savat Tonho e os outros garotos partiram para Belo Horizonte O psiquiatra também conseguiu proibir a indiscriminada transferência de pacientes do Instituto Raul Soares também em Belo Horizonte para o Colônia Até então a prática médica era encaminhar para a unidade todos os casos não solucionados em dez dias O resultado era a cronificação de pacientes Esquecidos em Barbacena eles acabavam adquirindo novas patologias dentro da instituição Milhares de atestados de óbito exibem o termo enterite do alienado criado para tentar explicar a morte em massa por diarreia aguda Outra mudança no hospital foi a regionalização do atendimento Apenas o sul de Minas a Zona da Mata e as vertentes poderiam enviar pacientes para Barbacena A partir desse instante foram estabelecidos critérios para internações Era o fim do famigerado trem de doido e do embarque de brasileiros de todo o país para a estação Bias Fortes A proposta mais audaciosa porém foi a criação de um módulo experimental para os casos agudos destinado aos pacientes em crise Reunidos na capela os médicos apresentaram a ideia aos funcionários e administradores que compraram briga Isso aí é fogo de palha desses moleques metidos a médicos Não dura nada ouviram os médicos entre os comentários da plateia Vocês precisam entender que não somos tomadores de conta Somos cuidadores Os doentes têm o direito de retornar para a sociedade rebateu o médico O módulo experimental foi criado inicialmente com 120 leitos contando com o trabalho de duas equipes multidisciplinares na busca pela estabilização do quadro clínico e da alta Os pacientes passaram a ter no prontuário data de saída do hospital Era o início de um novo paradigma o do atendimento pela óptica ambulatorial Em 1986 eleito diretor do CHPB pela primeira vez Jairo participou do projeto liderado pelo médico Ronaldo Simões de implantação de cinco casas de acolhimento que acabou sendo o embrião das residências terapêuticas A ideia era retirar dos pavilhões os pacientes com melhor nível de independência permitindo que eles retomassem o convívio social Quando a obra ficou pronta representantes do futuro governo de Minas decidiram conhecer o espaço Cogitaram dar outra destinação para as casas afinal não fazia sentido investir recursos no tratamento da loucura Não tiveram tempo de desviar a finalidade do espaço Em uma semana Jairo promoveu uma invasão no imóvel O processo de transição que duraria três meses acabou sendo atropelado na tentativa de impedir nova interferência política Deu certo Os módulos existem até hoje De lá para cá outras vinte e oito residências terapêuticas foram construídas fora do hospital A cidade dos loucos começou a mudar Telefone para o senhor comunicou a secretária Jairo aqui é Edson Brandão Gostaria de conversar pessoalmente com você Tenho uma proposta a fazer O encontro com o diretor executivo da Fundação Municipal de Cultura de Barbacena foi marcado para o dia seguinte O ano era 1995 Doutor a fundação está desenvolvendo um ambicioso plano de resgate da memória histórica da cidade O projeto Memória Viva que será financiado pela prefeitura tem o objetivo de reorganizar os museus do município A nossa ideia é criar um museu sobre a loucura Temos o apoio do prefeito Toninho Andrada PSDB O que acha O psiquiatra demonstrou entusiasmo Venha Edson quero te mostrar uma coisa Os dois foram caminhando até o pavilhão Antônio Carlos onde tudo começou O edifício foi construído sobre o terreno da antiga Fazenda da Caveira que pertenceu a Joaquim Silvério dos Reis traidor dos inconfidentes Ele ganhou as terras pela delação do movimento e antes de ser Colônia a Caveira foi um sanatório para tuberculosos Jairo o convidou a entrar Vê isso aqui O diretor mostrou ao membro da fundação uma sala com aparelhos de eletrochoque documentos peças de uniforme e outros materiais que recolheu na instituição e guardou desde 1979 quando montou o painel sobre a história da psiquiatria no III Congresso Mineiro Brandão estava surpreso Sempre tive vontade de exibir o material que fui juntando ao longo de todos esses anos para que as pessoas pudessem conhecer a história da psiquiatria em Minas Gerais revelou Jairo O Museu da Loucura acabara de nascer Em 16 de agosto de 1996 uma sextafeira o prédio que guardava quase um século de memória foi inaugurado Nada melhor do que transformar em museu um dos mais simbólicos edifícios do Colônia o local onde foram realizadas as tais duchas escocesas Construído em 1922 o torreão do antigo Hospital Colônia foi reformado e suas cinco salas abertas à visitação No andar superior um centro cirúrgico com instrumentos usados para a realização de lobotomia recriou o ambiente no qual as intervenções eram realizadas Apesar do clima sombrio esse espaço guarda o episódio de amor platônico vivido por Maria José Baeta Reis uma antiga funcionária do hospital Apaixonada por um paciente do Colônia não pôde viver esse amor guardando por mais de duas décadas o crânio do interno Ela era vista nos barzinhos de Barbacena tomando cerveja com o crânio do amado ao lado Como estava ficando falada na cidade foi convencida por Jairo a doar a caixa óssea para o Museu da Loucura A peça continua lá Já a cela vista no primeiro andar foi retirada do hospital em 1994 durante vistoria realizada por técnicos da Secretaria de Estado da Saúde para a classificação das unidades de saúde no nível P4 considerada à época maior titulação de eficiência hospitalar Ao final da visita a responsável pela inspeção Gisele Bahia considerou as instalações adequadas mas questionou a existência do espaço de contenção O problema é a permanência da cela questionou Jairo enquanto repassava instruções para um grupo de funcionários É sim doutor Uma hora depois de iniciada a conversa dois homens bateram à porta da sala da direção Olhe lá Gisele Não há mais empecilho para a conquista do P4 disse Jairo sorrindo Para espanto de todos os presentes a cela havia sido arrancada e colocada sobre a mesa de reunião Ao final do processo de verificação o hospital conseguiu classificarse dentro das normas técnicas tornandose apto a receber novas fontes de financiamento federal A cela finalmente tornouse peça de museu No começo Barbacena rejeitou seu passado resistindo a revisitálo Duas placas instaladas na BR040 com os dizeres Visite o Museu da Loucura também foram retiradas da estrada nos anos 90 por ordem de políticos que não desejavam a sua instalação Apesar dos esforços em negar a tragédia da qual o Colônia foi palco o museu que se destina a contála é o mais visitado por turistas Tem dimensão educativa desafiadora tornandose tributo às dezenas de milhares de vítimas da lendária instituição Suas portas incomodamente abertas são a lembrança de que a tragédia do Colônia não vai ser novamente esquecida Não desta vez Prédio do hospital que sediaria o futuro Museu da Loucura XIII Tributo às vítimas Museu da Loucura foto cedida por Edson Brandão Acervo CHPB Fhemig A poucos metros de casa Marlene Laureano olha o relógio 19h08 Quer chegar a tempo de trocar de roupa e pegar a última sessão do Cine Plaza no centro Próxima ao portão ela abre a bolsa e procura o chaveiro com a imagem de Nossa Senhora Aparecida de quem é devota Sobe as escadas do sobrado amarelo passa pela varanda e ganha a sala onde mantém na parede o quadro com a foto dos avós maternos italianos última lembrança de família Embora ainda more no bairro Santo Antônio no mesmo terreno onde nasceu o imóvel da infância foi demolido para a construção de outro maior e mais moderno Ela também mudou Os longos cabelos negros estão agora acima dos ombros e fios brancos teimam em aparecer Apareceram vincos na testa e próximos aos lábios e também pequenas rugas em volta dos olhos Sentese mais cansada embora continue firme no projeto de fazer a sua primeira viagem ao exterior O destino é a Itália país dos seus antepassados mais precisamente Parma cidade de origem romana famosa por seus monumentos Talvez ela compre apenas a passagem de ida sem data para voltar a Barbacena Quase quatro décadas depois de entrar no Colônia pela primeira vez quando tinha apenas vinte anos Marlene tirou o primeiro dos oito meses de fériasprêmio acumuladas no antigo hospital onde ainda trabalha nos módulos residenciais Aos cinquenta e oito anos e com tempo de serviço para se aposentar ela não conseguiu se desligar do lugar onde viveu a maior parte de sua vida Testemunha do holocausto brasileiro a funcionária resistiu aos piores anos do hospício sem dizer uma palavra do que viu O silêncio foi a maneira que encontrou de tentar esquecer o sofrimento imposto a homens mulheres e crianças que ao cruzarem o portão da unidade se tornaram propriedade do Estado Assim como os pacientes ela também teve a história construída dentro dos muros da instituição Ao conhecer o pavilhão Afonso Pena em 1975 ela jamais poderia supor que permaneceria no emprego por tanto tempo Ao final do primeiro dia de trabalho quando recebeu a tarefa de lavar o pavilhão e colocar para secar o capim onde os internos dormiam Marlene teve a certeza de que não ficaria lá Chegou à casa da rua Demétrio Ribeiro assustada com o que tinha acabado de presenciar Quando Regina perguntou sobre a estreia da filha no hospital Marlene respondeu vagamente sem coragem de contar para a mãe que a rotina na unidade não era nada do que imaginava Passou a noite acordada dizendo para si mesma que nunca mais pisaria lá No dia seguinte porém voltou Em pouco tempo começou a dar sinais de tristeza Ficou introspectiva a ponto de as amigas do Colégio Tiradentes estranharem seu jeito A mãe de Marlene também não entendia o emagrecimento da filha nem o motivo pelo qual comprava mensalmente dezenas de latas de leite em pó que sumiam da despensa sem explicação Ao sair de casa ela levava o alimento na bolsa distribuindo o leite na ala infantil do hospital para minimizar a fome dos meninos Decidida a não contar a ninguém o que se passava na instituição começou a buscar soluções caseiras para alterar a realidade acreditando que assim poderia suavizar a existência dos que estivessem mais próximos dela A funcionária não ficou no Colônia só por piedade mas também pela carreira no serviço público Denunciar o sistema definitivamente não estava nos seus planos ainda mais depois de ter perdido os pais com vinte e três anos passando a contar com o salário do hospital para sobreviver Menina vem cá chamou a paciente em voz baixa Marlene atendeu Pois não dona Izabel Tenho te observado há dias e percebo que é diferente das outras funcionárias Você é um anjo que Deus colocou aqui para me ajudar Mas o que eu posso fazer pela senhora perguntou receosa de que alguém a visse conversando com a mulher Meu filho não sabe que estou aqui Por favor procure ele para mim e conte tudo Tenho certeza de que ao descobrir ele virá me buscar Não posso fazer isso respondeu afastandose Marlene tinha medo de ser descoberta infringindo as normas do Colônia embora as súplicas de Izabel a tivessem comovido No dia seguinte quando a funcionária foi buscar as roupas no pavilhão em que a paciente estava esta a chamou Você deixou essa peça para trás Ao abrir a roupa havia uma carta escrita por Izabel Teixeira de Magalhães para o filho José Maria que residia em Montes Claros norte de Minas Tremendo Marlene andava de um lado para o outro sem saber onde esconder o papel À noite quando chegou em casa leu o conteúdo da correspondência e se sensibilizou com o pedido de socorro feito pela mulher No dia seguinte colocou a carta no correio Sabia que o gesto poderia lhe custar o emprego mas sentiase na obrigação de fazer algo por aquela senhora Em 17 de junho de 1984 domingo Marlene estava de folga do trabalho Havia saído de casa para fazer compras e ao retornar encontrou um bilhete Ligar para José Maria no Hotel Palace O filho de criação de Izabel havia chegado a Barbacena e ido até o hospital procurar pela remetente da carta Descobriu que Marlene trabalhava no pavilhão Crispim mas não a encontrou por lá Ainda no ônibus que o levara até a cidade ele obteve informações de como encontrar o bairro dela Sem sucesso na procura deixou o recado com um parente da funcionária Quando soube da visita do rapaz a funcionária sentiuse feliz apesar do medo de sofrer retaliação Ela tinha sido útil para alguém que não sofria de doença mental Izabel havia sido internada compulsoriamente pelo marido A presença de José Maria colocaria fim ao pesadelo da mãe Marlene telefonou para ele no hotel e o convidou para jantar em sua casa Conversaram sobre o destino de Izabel tida como desaparecida pela sua família Marlene acabou descobrindo que uma briga por herança foi um dos motivos por que encaminharam Izabel para lá Ainda de casa a funcionária telefonou para o hospital e pediu para falar com a paciente que ouviu a voz do filho pela primeira vez após quase um ano longe de casa Os dois choraram O reencontro familiar aconteceu no dia seguinte e foi selado por um longo abraço Na saída do hospital a agora expaciente do Colônia aproximouse de Marlene e a beijou Nunca mais vou me esquecer de você Obrigada por tudo o que fez por mim As duas trocaram cartas por três anos Marlene soube que a amiga estava morando com o filho e a nora no endereço de Montes Claros Conseguiu em agosto de 1987 visitála uma vez passando o dia com ela na casa do interior de Minas Caminharam pela cidade de braços dados Nessa época a mãe de José Maria estava enfraquecida e começava a dar sinais de adoecimento Pouco tempo depois Izabel morreu em casa vítima de câncer ao lado do filho Acima Marlene Laureano com a Sra Izabel Teixeira Abaixo Marlene Laureano hoje quarenta anos depois de pisar no hospital pela primeira vez Ela continua trabalhando lá Marlene seguiu desconstruindo regras vendo humanidade onde a maioria só enxergava escória Acolheu em vez de segregar Incomodou por acreditar que a recuperação caminha lado a lado com cuidado Em 2008 foi eleita Funcionária Lição de Amor entre os colegas que hoje integram a estrutura composta pelo Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena e o hospital regional ambos geridos pela Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais Fhemig O prêmio é concedido pela instituição com base na votação realizada pelos colaboradores e internos O reconhecimento da comunidade tocou a mulher que fez da assistência aos pacientes a sua vida Nunca se casou e por presenciar o sofrimento das crianças da unidade decidiu não ter filhos Seu maior receio era dar à luz criança com doença mental Não queria que um filho seu tivesse que passar pelos mesmos preconceitos impostos aos meninos de Barbacena Só então se deu conta de que tinha visto mais do que julgou ser capaz de suportar Mas o título de mãe lhe foi dado por dezenas de pacientes que encontraram nela tratamento digno Apesar de ter tentado fazer a diferença ela partilha com outros funcionários o arrependimento por ter compactuado com os abusos A tristeza que sinto ao olhar para trás é não ter conseguido achar saída Como eu não tinha formação superior sempre soube que não seria ouvida fiquei porque tinha esperança de que um dia as coisas mudariam Hoje penso que cada um passa pelo que tem que passar Acho que estava escrito Esta é a primeira vez que consegui contar esta história Foi bom ter dividido com alguém Consegui falar sem chorar Dez anos Essa é a expectativa de sobrevida dos 170 pacientes que seguem internados como crônicos no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena CHPB É também a estimativa de tempo para que o ciclo dos porões da loucura se encerre Com a futura transferência de 120 pacientes para os módulos residenciais apenas sessenta internos permanecerão no Departamento A Em 2005 época em que o hospital regional foi implantado nos antigos pavilhões Afonso Pena e Arthur Bernardes um projeto iniciado em 1992 a intenção era unir a psiquiatria e a clínica médica garantindo a extinção do velho Colônia o que ainda está em processo de consolidação O resultado é que todo o complexo formado pelo regional e pelo Centro Psiquiátrico Hospitalar emprega hoje cerca de mil funcionários para 300 leitos Embora a Fundação Hospitalar de Minas Gerais responsável pelas duas unidades tenha a formação de novos profissionais como sua vocação enxugar essa estrutura cara e inchada e promover a fusão dos dois hospitais está entre os desafios do Estado Do total de vagas disponíveis hoje 170 são destinadas aos doentes mentais cronificados pela instituição trinta ao atendimento de casos agudos da psiquiatria e cem a outras especialidades médicas Outras vinte fazem parte do projeto de dependência química Quando o Colônia for finalmente desativado com a saída de todos os pacientes asilares os prédios do lendário manicômio poderão ganhar nova destinação em uma cidade carente de espaços públicos Uma das ideias é a transformação da área em centro de convivência É a chance de os moradores que sempre deram as costas para seu hospício encararemno e o revisitarem a partir da implantação de projetos culturais e de inclusão Mas o fim dos pacientes não será o último capítulo da história que apenas começa a ser revelada Se o Colônia foi o que fez mais vítimas no país cerca de 60 mil brasileiros entre 1930 e 1980 a tragédia que ele produziu está longe de ser superada Em 2004 uma inspeção nacional realizada nos hospitais psiqu iá tricos brasileiros pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil encontrou condições subumanas em vinte e oito unidades Considerada uma das maiores vistorias feitas no país o trabalho alcançou dezesseis estados e revelou que de norte a sul do país ainda prevalecem métodos que reproduzem a exclusão apesar dos avanços conquistados com a aprovação de leis em favor da humanização das instituições de atenção à saúde mental e da consolidação de instrumentos legais comprometidos com os direitos civis dos pacientes psiquiátricos Nessas unidades foram encontrados celas fortes instrumentos de contenção e muitos muitos cadeados além de registros de mortes por suicídio afogamento agressão ou a constatação de que para muitos óbitos simplesmente não houve interesse em definir as causas O alerta para o risco de reprodução bruta e silenciosa do modelo manicomial foi então dado pelos presidentes dos dois conselhos à época Marcos Vinícius de Oliveira Silva e José Edísio Simões Couto De lá para cá os discursos ganharam novo viés como a necessidade de extinção dos leitos de baixa qualidade com a garantia de contratação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais E apesar dos equívocos e acertos na construção de um novo paradigma para a saúde pública a loucura ainda é usada como justificativa para a manutenção da violência e da medicalização da vida É como se a existência pudesse ser reduzida à sua dimensão biológica e para todos os sentimentos existisse um remédio capaz de aliviar sintomas e de transformar realidade em fuga Compartilhar o sofrimento de Conceição Machado Sueli Rezende Silvio Savat Sônia Maria da Costa Luiz Pereira de Melo Elza Maria do Carmo Antônio Gomes da Silva e outros tantos brasileiros que resistiram ao nosso holocausto é uma maneira de manter o passado vivo Tragédias como a do Colônia nos colocam frente a frente com a intolerância social que continua a produzir massacres Carandiru Candelária Vigário Geral Favela da Chatuba são apenas novos nomes para velhas formas de extermínio Ontem foram os judeus e os loucos hoje os indesejáveis são os pobres os negros os dependentes químicos e com eles temos o retorno das internações compulsórias temporárias Será a reedição dos abusos sob a forma de política de saúde pública O país está novamente dividido Os parentes dos pacientes também Pouco instrumentalizadas para lidar com as mazelas impostas pelas drogas e pelo avanço do crack as famílias continuam se sentido abandonadas pelo Poder Público reproduzindo muitas vezes involuntariamente a exclusão que as atinge O fato é que a história do Colônia é a nossa história Ela representa a vergonha da omissão coletiva que faz mais e mais vítimas no Brasil Os campos de concentração vão além de Barbacena Estão de volta nos hospitais públicos lotados que continuam a funcionar precariamente em muitas outras cidades brasileiras Multiplicamse nas prisões nos centros de socioeducação para adolescentes em conflito com a lei nas comunidades à mercê do tráfico O descaso diante da realidade nos transforma em prisioneiros dela Ao ignorála nos tornamos cúmplices dos crimes que se repetem diariamente diante de nossos olhos Enquanto o silêncio acobertar a indiferença a sociedade continuará avançando em direção ao passado de barbárie É tempo de escrever uma nova história e de mudar o final Como funciona Doze reis edifícios compunham o complexo cada um com sua função específica seguidos por gênero e faixa etária Os indivíduos encaminhados para o hospital muitas vezes à força não necessariamente recebiam diagnóstico de distúrbio mental Ao adentrarem o hospital eram submetidos a raspagem dos cabelos despejados de suas vestimentas e tinham seus nomes substituídos por novos identificadores conferidos pelos funcionários Os residentes da Colônia em algumas ocasiões recolhiam a alimentação do lixo ingestão de água de esgoto ou urina depressão sobre os leitos de cama sofrendo abusos físicos e sexuais Durante as noites fria na Serra de Mantiqueira eram deixados ao relento sem roupas ou envoltos em farrapos Estimase que pelo menos 30 bebês tenham separado de suas mães Para prolongamento seus sofrimento algumas práticas aplicadas feitas sobre os vetros visitados estes tocados No entanto logo após o passo os bebês eram retirados dos seus cuidados e entregues para adoção Como se deu o fim No início dos anos 60 após sua visita à Colônia o fotógrafo Luiz Alfredo da revista O Cruzeiro equilibrou o lugar a um campo de concentração nazista e solicitou sua imediata interdição Anos mais tarde em 1978 ele teve a oportunidade de voltar a local novamente Em 1989 o Colônia foi reaberto como o Museu da Loucura após ter permanecedo fechado por algum tempo Surpreendentemente descobriuse que 70 dos residentes da Colônia não tinham qualquer diagnóstico de transtorno psicológico Origem O governo estadual em 1903 para oferecer assistência aos alienados de Minas criou em um cenário rural a Asilo Colônia Santa Casa O Hospital Colônia tinha inicialmente capacidade para 200 leitos mas atingiu a marca de cinco mil pacientes em 1961 tornandose o maior do tipo no interior do Estado e o psiquiatra italiano Franco Basaglia visitou em 1979 o Hospital Colônia em hospital psiquiátrico de brasil em épocas de crise um local plástico da imprensa que vinha visitado um campo de concentração nazista Tráfico de corpos Durante de elevado numero de óbitos dentro das instalações não era visível providenciarem o sepultamento de todas as vítimas da Colônia de Barbacena não surtia uma inteira para a imediata que foi resíduo de maneira clandestina por membros corruptos da administração à serviço de cadeiros Aproveitandose da situação indivíduos ligados ao Hospital reclamava constantemente vendendo corpos para instituições médicas e laboratórios atendidos principalmente em Minas Gerais No entanto a demanda por esse recurso não era tão alta então começaram a adotar métodos como a dissolução de corpos até mesmo para se livrar dos excessos Condições do holocausto As circunstâncias no centro eram extremamente precárias Os residentes enfrentavam uma escassez severa de comida e água vivendo em condições insalubres e desumanas Muitos chegavam ao ponto de consumir urina por desespero enfrentando as situações estavam isolados de amigos e familiares Além da constante privação era comum episódios de torturas sob torturas nos internos ainda eram sobre trabalhos ou internos ainda recolhidos pela com esfações torturas físicas e psciológicas que eram frequentes dentro do Hospital Campo de morte Em outras palavras o Manicômio de Barbacena não apenas abrigava pacientes com doenças mentais mas também servia como destino para aqueles que não se encaixavam nos ideais da elite brasileira da época Isso incluía presos políticos pessoas LGBTs sem teto trabalhadores do sexo pobres e minorias étnicas Surpreendentemente cerca de 70 dos internos não sofriam de problemas psiquiátricos genuínos Com mais de 60 mil mortes registradas no local o hospital foi comparado a um campo de concentração nazista pelo jornalista italiano Franco Basaglia que expôs as atrocidades do local A luta nos termos que levaram os prisioneiros para lá tombava os horrores dos vazios que transportavam pessoas para campos de concentração concentrado cidades dentro do estado Holocausto Crime ou Genocídio Crimes contra a humanidade são atos proibidos pela direito internacional que envolvem o extermínio deliberado ou de ações como parte de uma campanha organizada ou sistemática contra uma população ética Embora o holocausto não seja especificamente classificado como crime nos termos legais muitas pessoas consideram no um ato de genocídio o que é visto como um crime contra a humanidade dependendo da perspectiva e interpretação moral Tipos de tortura As formas de tratamento em Barbacena eram as mais pesadas e atrozes lançamento de choques cadeia de frago camas de força salas solitarias 223 No notable text visible in this image 224 XIV A herança do Colônia A obra Holocausto Brasileiro de Daniela Arbex mergulha nas profundezas sombrias do Hospital Colônia em Barbacena revelando um panorama perturbador e cruel dos abusos cometidos contra os pacientes ao longo das décadas A autora não apenas expõe os horrores sofridos por aqueles que foram internados mas também escancara o conluio político e econômico que permitiu a perpetuação desses abusos Silva um dos muitos pacientes esquecidos dentro das paredes do Colônia torna se um símbolo do sofrimento indizível que permeava o ambiente Vinte e um anos de silêncio incapaz de dar voz às suas dores refletem a negligência brutal que reinava ali Marlene Laureano uma atendente psiquiátrica testemunhou a desumanização sistemática dos pacientes onde o inferno se disfarçava sob a máscara de um hospital Homens mulheres e crianças eram submetidos a abusos inimagináveis privados de suas necessidades básicas e muitas vezes condenados a morrer de frio fome ou doença No entanto Arbex não se limita a expor as atrocidades individuais ela também revela as engrenagens obscuras que moviam o Colônia O hospital se transformou em um verdadeiro negócio lucrativo onde o sofrimento dos pacientes era explorado para benefício político e econômico A conivência da sociedade e das autoridades tornouse uma parte integral desse sistema perverso Os relatos apresentados no livro oferecem uma visão multifacetada do horror dentro do Colônia Antônio e Cabo exinternos descrevem a desumanidade brutal que enfrentaram enquanto funcionários como Geraldo e Francisca testemunham a crueldade das práticas institucionais A participação ativa de alguns pacientes nos abusos revela a complexidade psicológica e moral gerada pelo ambiente opressivo do hospício Além de denunciar as atrocidades do passado Holocausto Brasileiro é um chamado à consciência coletiva e à justiça Arbex exige que o Brasil enfrente seu passado sombrio e reconheça o sofrimento infligido às vítimas do Colônia O livro é um testemunho vívido da capacidade humana de causar dor e sofrimento mas também da necessidade urgente de reconhecimento remorso e reparação Os relatos de Antônio e Cabo ambos exinternos do Hospital Colônia fornecem uma visão íntima e perturbadora da desumanidade que imperava dentro das paredes da instituição Antônio descreve as condições desumanas em que os pacientes viviam privados de suas liberdades básicas e tratados com brutalidade e negligência Sua narrativa lança luz sobre a brutalidade cotidiana que ele e seus companheiros enfrentavam revelando um ambiente de terror e desespero Por outro lado o relato de Cabo revela uma faceta ainda mais sombria da realidade dentro do Colônia a participação de alguns pacientes nos abusos infligidos a outros internos Essa revelação lança um holofote desconcertante sobre a dinâmica complexa e muitas vezes brutal que permeava a vida no hospício onde as vítimas também podiam se tornar agressores em um ciclo de violência sem fim Os testemunhos de funcionários como Geraldo e Francisca corroboram as experiências angustiantes descritas pelos exinternos Eles fornecem relatos detalhados das práticas cruéis e desumanas que testemunharam ou mesmo participaram destacando a falta de supervisão e controle sobre as atividades dentro do hospital Esses testemunhos ressaltam a falta de prestação de contas e a impunidade que permitiram que o ciclo de violência persistisse por tanto tempo No entanto em meio às histórias de horror e desespero surge um raio de esperança na forma da história de Sônia uma paciente que após cinquenta anos de confinamento em instituições psiquiátricas finalmente encontrou liberdade e felicidade em uma aventura em Porto Seguro Bahia Sua jornada de autodescoberta e redenção destaca a resiliência extraordinária do espírito humano mesmo diante das circunstâncias mais adversas Os relatos adicionais como os de Luiz Felipe Carneiro Alba Watson Renault e Ivanzir Vieira fornecem uma visão abrangente das consequências devastadoras do tratamento desumano imposto aos pacientes do Colônia Essas histórias destacam as marcas profundas deixadas não apenas nos pacientes mas também naqueles que cresceram nas proximidades de instituições psiquiátricas testemunhando o sofrimento e a injustiça que ali ocorriam Cada relato é uma lembrança dolorosa da necessidade urgente de reconhecer e remediar as injustiças do passado enquanto também destaca a resiliência humana que persiste mesmo nas condições mais adversas O trágico comércio de corpos entre o Hospital Colônia e várias faculdades de medicina do país é um aspecto sombrio e perturbador abordado na narrativa Revelase uma indústria macabra de venda de cadáveres onde os corpos dos pacientes falecidos eram negociados para fins de estudo e pesquisa médica Essa prática desumana não apenas desrespeitava a dignidade dos falecidos mas também alimentava o ciclo de exploração e desrespeito pelos direitos humanos que caracterizava o sistema manicomial por décadas A revelação desse comércio de corpos destaca a profundidade da depravação e ganância que permeavam as instituições psiquiátricas do Brasil Por outro lado o texto também destaca uma nota de esperança na forma da luta pela reforma psiquiátrica e pela humanização do tratamento da saúde mental Indivíduos como Jairo Toledo e Marlene Laureano emergem como heróis modernos dedicados a desafiar o status quo e promover uma abordagem mais compassiva e eficaz para o cuidado dos pacientes mentais A criação do Museu da Loucura serve como um testemunho tangível desse movimento em direção à humanização oferecendo um espaço para reflexão e aprendizado sobre o passado sombrio da psiquiatria no Brasil No entanto apesar dos avanços significativos alcançados ao longo dos anos a obra não hesita em destacar os desafios persistentes que ainda enfrentamos no campo da saúde mental no Brasil A escassez de recursos e a falta de estrutura adequada nos serviços de atendimento psicossocial continuam a ser obstáculos significativos na busca por uma abordagem mais compassiva e eficaz para o tratamento dos pacientes mentais Essa realidade serve como um lembrete contundente de que a luta pelos direitos humanos e pela dignidade dos pacientes mentais está longe de terminar Em suma Holocausto Brasileiro é uma obra poderosa que não apenas expõe a crueldade e a desumanidade do sistema manicomial brasileiro mas também celebra a resiliência do espírito humano diante da adversidade Ao mesmo tempo destaca a necessidade contínua de lutar pelos direitos humanos e pela dignidade dos pacientes mentais enquanto avançamos em direção a um sistema de saúde mental mais justo compassivo e eficaz