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Ciências Econômicas ·
Sustentabilidade e Desenvolvimento
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De forma ágil e inteligente o professor da Universidade de São Paulo José Eli da Veiga pesquisador na área de Economia Socioambiental elucida neste livro a trajetória da noção de desenvolvimento sustentável desde sua emergência na década de 1980 até os mais recentes debates internacionais culminando em 2015 na aprovação pela ONU da Agenda 2030 Transformando Nosso Mundo Para definir claramente o que se entende por desenvolvimento sustentável o autor primeiro analisa os dois termos que compõem a equação desenvolvimento e sustentabilidade situandoos no contexto das discussões globais ao longo das últimas quatro décadas Em seguida examina detidamente o que vêm a ser os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e centra o foco de sua análise naquele que considera o maior desafio do século XXI a descarbonização da economia planetária Traçando um quadro amplo dessa noção e de seus impactos em vários campos do conhecimento da teoria econômica aos modelos comportamentais passando por questões de política educação e justiça Para entender o desenvolvimento sustentável é um alerta oportuno e bem informado sobre a urgência de conciliar crescimento econômico global preservação dos recursos naturais e justa distribuição das oportunidades sociais ISBN 9788573266122 editora 34 José Eli da Veiga PARA ENTENDER O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL editora 34 EDITORA 34 Editora 34 Ltda Rua Hungria 592 Jardim Europa CEP 01455000 São Paulo SP Brasil TelFax 11 38116777 wwweditora34combr Copyright Editora 34 Ltda 2015 Para entender o desenvolvimento sustentável José Eli da Veiga 2015 A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL E CONFIGURA UMA APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR Capa projeto gráfico e editoração eletrônica Bracher Malta Produção Gráfica Revisão Alberto Martins Beatriz de Freitas Moreira 1ª Edição 2015 CIP Brasil CatalogaçãonaFonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ Brasil Veiga José Eli da 1948 V724p Para entender o desenvolvimento sustentável José Eli da Veiga São Paulo Editora 34 2015 1ª Edição 232 p ISBN 9788573266122 1 Desenvolvimento sustentável 2 Ecologia 3 Economia ambiental 4 Governança global I Título CDD 3337 PARA ENTENDER O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Prólogo 7 1 A mais generosa visão do futuro 9 2 Para entender o desenvolvimento 47 3 Para entender a sustentabilidade 83 4 Um alvo abrangente para 2030 119 Apêndice Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ODS 156 5 O maior desafio é a descarbonização 159 Epílogo 197 Leituras recomendadas 203 Índice remissivo 205 Bibliografia 218 Agradecimentos 230 Sobre o autor 231 PRÓLOGO Proliferaram usos ingênuos distorcidos e até suspeitos da expressão desenvolvimento sustentável desde sua emergência na virada para a década de 1990 Por isso é muito frequente que alguém se veja em maus lençóis ao tentar fazer o inverso empregála com conhecimento de causa e rigor Por outro lado não existem respostas prontas claras e precisas para todas as dúvidas que esse problema é capaz de suscitar Com os pés no chão o máximo que se pode propor é uma abordagem que vacine o leitor contra as muitas escamoteações distorções e ingenuidades que estão em voga capaz de simultaneamente lhe apontar um terreno firme para avançar nessa busca É por isso que para explicar o desenvolvimento sustentável este livro começa com um sobrevoo que vai das origens históricas da expressão até as controvérsias atuais sobre seu significado O suficiente para sugerir que esse é um dos mais generosos ideais da humanidade como propõe o capítulo 1 Mas para que esse ideal seja efetivamente analisado também é preciso examinar separadamente as duas noções que ele sintetiza o desenvolvimento e a sustentabilidade O capítulo 2 procura mostrar que desenvolvimento é a mais política das questões socioeconômicas já que abrange desde a proteção dos direitos humanos até o aprofundamento da democracia passando pelo acesso à educação de qualidade e tudo o que isso implica em termos de inovação Só que as coisas começaram a mudar quando a ciência passou a ser mais enfática e persuasiva e principalmente mais ouvida sobre as incertezas que estavam se multiplicando no tocante à relação da humanidade com a biosfera da Terra Impôsse assim a necessidade de que fosse condicionado a uma boa dose de prudência o progresso inerente ao desenvolvimento E era isso que exprimia desde suas remotas origens a noção de sustentabilidade como explica o capítulo 3 Como o objetivo deste livro é ajudar a entender o desenvolvimento sustentável ele poderia a rigor ter apenas esses três capítulos Pecaria porém por desatualização já que duas questões bem mais concretas se tornaram imprescindíveis à compreensão do tema De um lado o processo de legitimação desse ideal até a adoção da Agenda 2030 Transformando Nosso Mundo consagrada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ODS apresentados no capítulo 4 De outro a questão do aquecimento global que exigirá intensa descarbonização da economia global nas próximas décadas pois como explica o capítulo 5 é principalmente disso que dependerá a sustentabilidade do desenvolvimento Em suma ao pretender ajudar a entender o desenvolvimento sustentável este livro começa pela caracterização do processo que fez emergir esse ideal em seguida aprofunda separadamente a análise das duas ideias centrais que o compõem depois verifica qual é sua manifestação mais concreta ou prática e finalmente enfatiza o problema de cuja solução ele mais está dependendo nesta conjuntura histórica São essas as etapas da experiência para a qual o leitor está convidado uma viagem exterminadora do senso comum sobre a ideia de desenvolvimento sustentável 1 A MAIS GENEROSA VISÃO DO FUTURO Desenvolvimento sustentável é a ambição de que a humanidade venha a atender às suas necessidades atuais sem comprometer a possibilidade de que as futuras gerações também possam fazêlo Essa é a definição mais legítima mais conhecida e mais aceita além de ter sua origem devidamente certificada Foi com esse enunciado que a ideia começou a ser assimilada pela comunidade internacional depois que a Organização das Nações Unidas ONU assumiu em 11 de dezembro de 1987 que a partir de então o desenvolvimento sustentável deveria se tornar princípio orientador central de governos e instituições privadas organizações e empresas Tão solene declaração está logo na abertura da resolução da 96ª reunião plenária da Assembleia Geral da ONU que acatou o célebre relatório Nosso Futuro Comum preparado sob a liderança de Gro Harlem Brundtland uma médica que já exerceu por três vezes o cargo de primeiroministro da Noruega tendo sido em 1981 a primeira mulher e a mais jovem pessoa a ocupálo Nos decênios que se seguiram a esse marco histórico de 1987 foram propostas muitas outras formulações que talvez até possam ser mais precisas e rigorosas Entretanto nenhuma delas pode deixar de contemplar seu âmago a novíssima ideia de que as futuras gerações merecem tanta atenção quanto as atuais Da mesma forma que não pode existir feijoada sem feijão o desenvolvimento sustentável não pode ser definido sem ênfase naquilo que em jargão culto é entendido como equidade intergeracional Isso não impede contudo que exista um sério problema na histórica e oficial definição estabelecida pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento mais conhecida por Comissão Brundtland Infelizmente ela enfatiza demais o vocábulo necessidades transmitindo talvez inadvertidamente que o desenvolvimento poderia significar apenas o atendimento de suas necessidades humanas Não resta dúvida de que em situações como a dos 48 países classificados pela ONU como os menos desenvolvidos ou como as dificuldades de outros que não estão nessa lista por estarem no máximo remediados é até aceitável que a ideia de desenvolvimento seja reduzida ao objetivo de atender às necessidades de suas populações Mas também é óbvio que ao se libertarem de tamanho subdesenvolvimento essas populações com certeza buscarão cada vez mais direitos e oportunidades que vão muito além do que se entende por necessidades Por exemplo explorar o espaço sideral ou a exosfera conservar bens que são parte do patrimônio cultural das sociedades proteger espécies ameaçadas de extinção ou incentivar a poesia ou a música erudita são atitudes que não costumam ser identificadas a necessidades Mesmo assim elas são parte dos componentes fundamentais do desenvolvimento humano dos últimos milênios um processo de incessantes descobertas novas oportunidades e conquistas de direitos Em poucas palavras um processo de persistente e tenaz expansão das liberdades humanas por mais interrompido que possa ser por atrozes retrocessos à barbárie como o nazismo ou o grupo radical islâmico Boko Haram para citar dois exemplos recentes Também é verdade que não é essa a concepção dominante sobre o significado do desenvolvimento O mais comum é que ele seja meramente assimilado ao seu substrato econômico o crescimento ou aumento da produção E não deixa de ser verdade que por doze milênios este tem se mostrado o meio imprescindível à obtenção dos fins humanistas exprimamse estes em termos culturais e emancipatórios ou espirituais e religiosos Todavia como também é absurdo confundir meios e fins só pode ser um sério equívoco amesquinha r o ideal do desenvolvimento ao progresso material que o condiciona Com certeza a mais séria dificuldade para que essa questão possa ser esclarecida está na imensa força persuasiva que desfrutam os economistas nas sociedades contemporâneas Eles estão cobertos de razão quando afirmam que há desenvolvimento econômico quando não ocorre apenas crescimento mas também aumento da produtividade Mas o desenvolvimento da humanidade não se restringe ao que se entende hoje por desenvolvimento econômico a ganhar o mundo todo a partir da fusão entre a ciência e a tecnologia ocorrida na segunda metade do século XIX A revolução agrícola europea do século XVIII foi um febril processo de mudanças tecnológicas sociais e econômicas que teve papel crucial na decomposição do feudalismo e no advento do capitalismo este foi um parto que resultou de uma gestação de dez séculos A fusão das civilizações germânica e romana que engendrara o feudalismo europeu começou a aproximar a prática agrícola propriamente dita da pecuária Deixando de ser atividades opostas para se tornarem cada vez mais complementares o cultivo e a criação de animais formaram progressivamente os alicerces das sociedades europeias E esse longo acúmulo acabou por provocar um dos mais importantes saltos de qualidade da civilização humana o fim da escassez crônica de alimentos Já a fusão entre ciência e tecnologia foi o principal fenômeno daquilo que alguns historiadores chamam de Segunda Revolução Industrial Uma série de mudanças radicais principalmente dentro das indústrias química elétrica de petróleo e de aço Outros fatos marcantes desse período incluem a introdução de navios de aço movidos a vapor o desenvolvimento do avião a produção em massa de bens de consumo alimentos enlatados refrigeração mecânica e outras técnicas de preservação e a invenção do telefone eletromagnético Ele também marcou a junção da Alemanha e dos Estados Unidos como grandes potências industriais ao lado do Reino Unido e da França Mas o ponto de virada foi a pesquisa científico tecnológica começar a ser realizada em laboratórios internos às próprias empresas Esse crescimento econômico intensivo ou desenvolvimento econômico como prefere grande parte dos economistas foi se tornando a regra enquanto o crescimento extensivo passava a ser cada vez mais identificado a mera estagnação Como em debates sobre políticas públicas permanece muito forte a influência do pensamento econômico é bem compreensível portanto que ainda se faça tão séria confusão entre as expressões desenvolvimento e sua antecessora progresso material esta sim equivalente a desenvolvimento econômico Daí a extrema importância nem sempre reconhecida da emergência da noção de desenvolvimento humano quando já se aproximava a virada do milênio A constatação de que estava sendo calamitoso tratar o desenvolvimento como elevação da renda per capita equivalente à produção interna per capita ou PIB per capita foi feita por vários economistas que nos anos 19601970 haviam conhecido mais de perto a realidade do subdesenvolvimento O mais persuasivo desses admiráveis pioneiros e que por isso desempenhou crucial liderança política foi o paquistanês Mahbub ul Haq 19341988 Como diretor de projeto do Programa para o Desenvolvimento que a ONU havia criado em 1965 o PNUD concebeu e conduziu a elaboração do primeiro Relatório do Desenvolvimento Humano que só foi lançado em 1990 Para isso reuniu dez de seus colegas de primeira linha dos quais o mais influente foi sem dúvida o indiano Amartya Sen que em 1998 receberia o Nobel de Economia pelo conjunto de sua obra Por ter trabalhado muitos anos para o Banco Mundial sobretudo na África Mahbub ul Haq formara a convicção de que uma das piores pragas contra a compreensão do sentido do desenvolvimento deviase à falta de uma alternativa à renda per capita sempre que o problema fosse o de avaliá lo monitorálo ou medilo Por isso mesmo antes de ir para o PNUD seu senso crítico sobre as ações do Banco Mundial o tornara membro do Fórum Terceiro Mundo e o levara a dar grandes contribuições a vários relatórios que se tornaram célebres entre os quais o Que Fazer 1975 da Fundação Dag Hammarskjöld e o Norte Sul 1980 mais conhecido por Relatório Brandt Tão larga experiência prática com a realidade do então chamado Terceiro Mundo gerou nele forte determinação em criar um indicador sintético que pudesse servir ao mundo como uma espécie de hodômetro do desenvolvimento e que assim pudesse rivalizar com o PIB per capita Nem seria necessário conhecer profundamente a obra de Amartya Sen para prever que ele se oporia a esse tipo de ambição Se como ele sempre disse e será explicitado a seguir desenvolvimento significa expansão das liberdades substantivas como imaginar a possibilidade de captar tal fenômeno mediante um indicador sintético Não deu outra O indiano manifestou ao querido colega e amigo paquistanês seu profundo ceticismo com respeito à ideia de que algum índice pudesse sintetizar uma realidade tão complexa quanto a do processo de desenvolvimento Em breve relato sobre esse diálogo feito em contribuição especial ao Relatório do Desenvolvimento Humano de 1999 Amartya Sen conta que Mahbub até concordava com a inevitável precariedade que teria qualquer indicador sintético do desenvolvimento mas mesmo assim enfatizava que a tirania da renda per capita nunca seria posta em xeque por amplos kits de tabelas por melhores que elas pudessem ser Os usuários talvez até as admirassem mas assim que precisassem de uma medida sintética voltariam correndo atrás da velha e boa renda per capita com certeza em razão de sua simplicidade e comodidade Amartya Sen recorda que enquanto ouvia os argumentos de Mahbub pensava em um poema de T S Eliot sobre a incapacidade do gênero humano de aguentar realidade em demasia Nós precisamos de uma medida dizia Mahbub tão simples quanto o PIB uma única cifra mas que não seja tão cega em relação aos aspectos sociais da vida humana Ele esperava que um índice desse tipo além de complementar o uso do PIB suscitaria mais interesse pelas demais variáveis que seriam apresentadas nas longas tabelas estatísticas no final do relatório Nesse mesmo relato o indiano dá sua mão à palmatória Devo admitir que Mahbub tinha inteira razão nesse aspecto e me felicito pelo fato de não termos tentado impedilo de procurar uma medida sumária Ou seja o Índice de Desenvolvimento Humano IDH é aquele que pode atrair e também estimular seus usuários a consultarem o amplo sortimento de dados estatísticos e análises críticas detalhadas que anualmente acompanha os relatórios 12 O DESENVOLVIMENTO SEGUNDO O PNUD Na concepção de Amartya Sen e de Mahbub ul Haq só há desenvolvimento quando os benefícios do crescimento servem à ampliação das capacidades humanas entendidas como o conjunto das coisas que as pessoas podem ser ou fazer na vida São quatro as mais elementares ter uma vida longa e saudável ser instruído ter acesso aos recursos necessários a um nível de vida digno e ser capaz de participar da vida da comunidade Na ausência dessas quatro todas as outras possíveis escolhas estarão indisponíveis E muitas oportunidades na vida permanecerão inacessíveis Além disso há um fundamental prérequisito que precisa ser explicitado as pessoas têm de ser livres para que suas escolhas possam ser exercidas para que garantam seus direitos e se envolvam nas decisões que afetarão suas vidas O objetivo básico do desenvolvimento só pode ser portanto alargar as liberdades humanas um processo que expanda as capacidades humanas pelo aumento das escolhas que as pessoas possam fazer para ter vidas plenas e criativas Ou seja quando há de fato desenvolvimento as pessoas são tanto beneficiárias como agentes do progresso e da mudança que provocam Tratase de uma dinâmica que deve beneficiar todos os indivíduos equitativamente e basearse na participação de cada um deles Tal é a abordagem do desenvolvimento exposta em todos os Relatórios do Desenvolvimento Humano desde o primeiro publicado em 1990 É potencialmente infinita a gama de capacidades que os indivíduos podem ter assim como as escolhas que ajudam a expandir essas capacidades Mas como as políticas públicas precisam fixar prioridades os relatórios definiram os dois critérios mais úteis na identificação das capacidades que precisam ser avaliadas Em primeiro lugar essas capacidades devem ser universalmente valorizadas Em segundo devem ser básicas para a vida no sentido de que sua ausência impediria muitas outras escolhas Foi a partir desses dois critérios que os relatórios chegaram às quatro capacidades mencionadas acima vida longa e saudável conhecimento acesso aos recursos necessários para um padrão de vida digno e participação na vida da comunidade O desenvolvimento depende da maneira pela qual os recursos gerados pelo crescimento econômico são utilizados se para fabricar armas ou para produzir alimentos se para construir palácios ou para disponibilizar água potável E resultados humanos como a participação democrática na tomada de decisão ou igualdade de direitos para homens e mulheres não dependem dos rendimentos Por essas razões os relatórios apresentam um conjunto extensivo de indicadores quase duzentos deles em 33 quadros sobre importantes resultados conseguidos em países de todo o mundo como a expectativa de vida à nascença as taxas de mortalidade de menores de cinco anos que refletem a capacidade de sobreviver e as taxas de alfabetização que refletem a capacidade de aprender Também incluem importantes indicadores sobre a possibilidade de realizar essas capacidades como o acesso à água potável e sobre a equidade na realização como os hiatos entre homens e mulheres na escolarização ou na participação política É verdade que este rico conjunto de indicadores fornece medidas para avaliar o desenvolvimento em suas muitas dimensões Mas também não é menos verdade que as decisões políticas muitas vezes demandam uma medida sumária que incida mais claramente no bemestar humano do que no rendimento É para esse fim portanto que os relatórios publicam o IDH que vem sendo completado por índices que observam especificamente o gênero um índice de desenvolvimento ajustado ao gênero e uma medida de participação segundo o gênero e a pobreza um índice de pobreza humana multidimensional que vai muito além da simples pobreza definida pela renda per capita Tais índices dão uma perspectiva de algumas dimensões básicas do desenvolvimento mas devem ser completados mediante análise dos dados e de outros indicadores que lhes são subjacentes É preciso enfatizar porém que o PNUD entende o IDH apenas como um ponto de partida Recorda que o processo de desenvolvimento é muito mais amplo e muito mais complexo do que qualquer medida sumária conseguiria captar mesmo quando completada por outros índices Em outras palavras o IDH não é uma medida completa pois não inclui por exemplo a capacidade de participar nas decisões que afetam a vida das pessoas e de simultaneamente ter o respeito dos outros na comunidade Afinal uma pessoa pode ser rica saudável e muito instruída mas sem essa capacidade o desenvolvimento é retardado A omissão dessa dimensão cívica tem sido realçada desde os primeiros relatórios e levou o PNUD a criar um índice da liberdade humana em 1991 e um índice da liberdade política em 1992 O problema é que nenhuma dessas medidas sobreviveu ao seu primeiro ano o que testemunha a dificuldade de quantificar adequadamente aspectos tão complexos do desenvolvimento principalmente quando geram sérios conflitos diplomáticos devido à oposição das muitas nações governadas por tiranos A saída foi tratar extensivamente desses temas mas de forma qualitativa Em 2002 foi a vez da democracia por exemplo e em 2004 o relatório foi dedicado ao tema da liberdade cultural Outro sério defeito do IDH é que ele resulta da média aritmética dos três índices mais específicos que captam lon gevidade escolaridade e renda Mesmo que se aceite como inevitável a ausência de outras dimensões do desenvolvimento como a cívica a cultural a política ou a ambiental para as quais é bem inferior a disponibilidade de indicadores tão cômodos é duvidoso que seja essa média aritmética a que melhor revele o grau de desenvolvimento atingido por determinada coletividade Ao contrário é mais razoável supor que o cerne da questão esteja justamente no possível descompasso entre o nível de renda obtido por determinada comunidade e o padrão so cial que conseguiu atingir mesmo que revelado tão somente pela escolaridade e pela longevidade Um bom exemplo pode ser a comparação entre os dados da Arábia Saudita e do Chile referentes a 2013 Com um PIB per capita superior a 53 mil dólares a primeira só atingia a média de 87 anos de escolaridade e a expectativa de vida não chegava a 76 anos Enquanto isso o Chile com renda quatro vezes inferior 13 mil dólares per capita obtinha média de 98 anos de escolaridade e 80 anos de expectativa de vida Nessa comparação o que menos interessa é notar que a Arábia Saudita com IDH 0836 era a 34ª colocada na classificação enquanto o Chile com IDH 0822 só aparecia em 41º lugar A pergunta que precisa ser feita é por que o Chile tinha melhor desempenho em educação e saúde com uma renda quatro vezes menor que a da Arábia Saudita De resto também é um problema muito sério que a dimensão nível de vida precise ser avaliada pelo PIB per capita já que ainda não foi possível legitimar outro tipo de cálculo contábil que melhor exprima o crescimento econômico aspecto que será discutido em mais detalhe no capítulo 4 deste livro 13 DISCREPÂNCIA PSÍQUICA A partir de 1990 passou a ser inteiramente inaceitável rebaixar o desenvolvimento ao meio que tem permitido atingilo um intensivo crescimento econômico Mas também é crucial ressaltar o estranho fato de o PNUD e seus relatórios terem demorado tanto para assimilar a ideia de que o desenvolvimento precisa ser sustentável Três anos antes do lançamento do primeiro Relatório do Desenvolvimento Humano ela já havia sido adotada pela Assembleia Geral e estava para ser consagrada logo depois pela Cúpula da Terra Eco92 ou Rio92 a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Essa profunda discrepância do sistema das Nações Unidas ficou ainda mais patente no início do século XXI ao serem adotados os oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio ODM dos quais apenas o sétimo foi voltado a garantir a sustentabilidade ambiental Houve portanto uma ampla e sistêmica dissonância cognitiva expressão psicológica para o sentimento de tensão provocado pela existência de duas crenças opostas ou quando o comportamento de uma pessoa se encontra em conflito com aquilo que são os seus valores eou atitudes Esse fato poderia ser considerado de menor importância pois ao sétimo objetivo foram atribuídas quatro metas das quais a primeira pretendeu integrar os princípios do desenvolvimento sustentável nas políticas e programas nacionais e reverter a perda de recursos ambientais Além disso para o cumprimento dessa meta foi selecionada meia dúzia de indicadores a proporção das áreas terrestres cobertas por florestas b emissão de gás carbônico per capita c emissão de carbono por dólar do PIB d consumo de substâncias que degradam a camada de ozônio e proporção de peixes dentro de limites biológicos seguros f proporção do total de recursos hídricos utilizada E não parou por aí As três outras metas desse sétimo objetivo foram 2 reduzir a perda de diversidade biológica 3 reduzir pela metade a proporção da população sem acesso permanente e sustentável a água potável segura e esgotamento sanitário 4 alcançar melhora significativa nas vidas de ao menos 100 milhões de habitantes de bairros degradados Não se pode dizer que os ODM ignoraram as motivações que entre 1987 e 1992 haviam levado a ONU a assumir o projeto de tornar sustentável o desenvolvimento Todavia voltaram a empregar o termo desenvolvimento sem o adjetivo sustentável E ao usarem a expressão sustentabilidade ambiental para caracterizar um de seus oito objetivos jogaram ainda mais água no moinho dos que rechaçam a ideia de que a sustentabilidade se refira ao desenvolvimento e não apenas ao seu componente ambiental Isto é dos que não admitem a existência de paridade entre o desenvolvimento e sua sustentabilidade O terceiro princípio da célebre Declaração do Rio de 1992 diz que o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a que sejam atendidas equitativamente as necessidades do desenvolvimento e do meio ambiente assim como das gerações presentes e futuras Ou seja o meio ambiente deve ser reconhecido como base e condição material biogeoquímica de qualquer possibilidade de desenvolvimento humano Afinal é da qualidade desse finíssimo invólucro chamado de biosfera que depende o prazo de validade da espécie humana Mas os governantes e seus diplomatas hostis a essa paridade logo abraçaram para combatêla a esquisita fórmula do equilíbrio de três pilares que seriam as dimensões econômica social e ambiental Em vez de ser tratada em pé de igualdade com o desenvolvimento criouse o subterfúgio de se atribuir à sustentabilidade apenas um dos componentes de uma nova santíssima trindade Um retrocesso cognitivo confirmadíssimo na Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável a Rio10 realizada em Joanesburgo África do Sul entre 2 e 4 de setembro de 2002 logo depois de radical reviravolta do contexto mundial passarase apenas um ano dos inesquecíveis acontecimentos daquela manhã do dia 11 de setembro de 2001 quando foram derrubadas as torres gêmeas do World Trade Center em Nova York Essa parábola dos três pilares começara a ser difun dida em 1997 em um clássico da pedagogia empresarial intitulado Canibais com garfo e faca no qual o consultor britânico John Elkington procura salientar a necessidade de uma gestão voltada para os três vetores que em inglês começam pela letra p pessoas planeta e lucro profit Pois foi essa ótima tirada para as atividades empresariais que ajudou bastante quem há muito estava querendo emplacar a ideia de que o chamado meio ambiente pesa no máximo um terço na balança do desenvolvimento sustentável O problema é grave pois o desenvolvimento não é um fenômeno sequer parecido com a gestão das empresas Por si só ele já tem várias outras dimensões além da econômica e da social bastando lembrar que a justiça e a paz pertencem a outras duas dimensões a política e a da segurança Além disso do lado da sustentabilidade também são várias as dimensões a começar pela climática pela biodiversidade ou pela hídrica Por isso é difícil saber o que é pior o disparate de se afirmar que o desenvolvimento sustentável só tem três dimensões ou a metáfora mecânica do equilíbrio de pilares pois as dimensões do desenvolvimento e de sua sustentabilidade não são separadas estanques ou paralelas como sugere essa imagem emprestada da engenharia No entanto dez anos depois de Joanesburgo na preparação da quarta megaconferência da ONU sobre a questão a Rio20 representantes do governo brasileiro não se cansavam de afirmar que essa cúpula deveria ser sobre desenvolvimento e não sobre meio ambiente Até pregaram a necessidade de que ela fosse desambientalizada Por sorte o feitiço acabou por virar contra o feiticeiro pois uma das poucas decisões realmente importantes da Rio 20 foi a de substituir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio ODM por Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ODS no contexto da Agenda de Desenvolvimento Pós2015 depois intitulada Agenda 2030 Transformando Nosso Mundo Uma iniciativa que desencadeou amplo democrático e inédito processo de consultas pela ONU radicalmente diverso do que havia ocorrido com os ODM tema abordado de forma mais circunstanciada no capítulo 4 Na virada do milênio as negociações entre os Estadosmembros da ONU sofreram pouquíssima influência de representantes da sociedade civil fossem eles do mundo empresarial ou do terceiro setor Mas entre 2013 e 2015 ocorreu exatamente o inverso um processo extremamente participativo levou à adoção de propostas que acima de tudo demonstraram cabalmente a incongruência da cantilena sobre três dimensões ou três pilares do desenvolvimento sustentável Foram dezessete os ODS que desde agosto de 2014 emergiram do amplo processo de entendimento conduzido por um Grupo de Trabalho Aberto nomeado pela Assembleia Geral e coordenado pelos representantes permanentes da Hungria Casaba Korosi e do Quênia Macharia Kamau o GTAODS No final de setembro de 2015 tais propostas foram aprovadas na íntegra pela cúpula mundial que adotou a Agenda 2030 Transformando Nosso Mundo Sejam quais forem seus méritos e possíveis defeitos além de reverterem o lado abstrato da noção de desenvolvimento sustentável os ODS darão início a uma real aproximação das governanças do desenvolvimento e do meio ambiente que permaneciam demasiadamente autônomas e distantes desde junho de 1972 quando o mundo começou a se dar conta do tamanho dessa encrenca na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano Realizada em Estocolmo nesse encontro foi lançado o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente o PNUMA É esta a história da ideia de desenvolvimento sustentável em uma síntese que propositadamente se concentrou na evolução das instituições internacionais Das inúmeras per 14 POR QUE O ADJETIVO SUSTENTÁVEL Ao longo dos anos 1970 eram muito ríspidos os embates entre representantes do empresariado e militantes da nova e intrépida onda ambientalista Os primeiros desconfiados de que a conservação dos ecossistemas poderia ser contrária à livre iniciativa e a novas oportunidades de empreendedorismo costumavam dirigir uma grave acusação aos que consideravam até como inimigos vocês são contra o desenvolvimento Nem vem ao caso aqui saber se eles estavam ou não usando erroneamente o vocábulo desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico O fato é que em algum desses enfrentamentos um dos visados ambientalistas retrucou com a frase nós não somos contra o desenvolvimento só queremos que ele seja sustentável Tudo indica que a primeira vez que o adjetivo sustentável foi usado em um texto para qualificar o desenvolvimento ocorreu em um seminário promovido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente PNUMA em Estocolmo em 1979 Foi apresentado por W Burger com o título A busca de padrões sustentáveis de desenvolvimento A partir daí e por razões que até hoje não estão bem esclarecidas esse novo binômio tendeu a jogar uma pá de cal sobre o anterior empenho do PNUMA em tentar emplacar o neologismo ecodesenvolvimento que tinha a grande vantagem de ser uma única palavra tulos de dois livros a coletânea The Sustainable Society Implications for Limited Growth editada em 1977 por Dennis C Pirages e a obra de Lester Brown Building a Sustainable Society de 1981 Foram essas as circunstâncias em que despontou o qualificativo que na década seguinte sobretudo a partir de 1987 viria a ser selecionado para extinguir o concorrente ecodesenvolvimento Pode ter ficado obscuro contudo o próprio sentido ou significado que tinha e que depois passou a ter esse adjetivo O que de fato existia até os anos 1970 era o conceito de Máximo Rendimento Sustentável e sua origem remontava às primeiras tentativas de estabelecer critérios para melhorar a exploração das florestas A escassez de madeira que no século XVII criou sérias dificuldades para as nações que mais se desenvolviam na Europa fez brotar o princípio de que as florestas deveriam ser manejadas de modo a que sua reprodução sempre igualasse o consumo Essa regra já estava esboçada no livro Sylva apresentado em 1664 à Royal Society por John Evelyn assim como na Ordonnance para as florestas reais que JeanBaptiste Colbert baixara em 1669 Dois documentos que certamente contribuíram para que ela fosse teorizada em 1713 com a publicação na Saxônia do manual Sylvicultura Oeconomica tarefa encabeçada pelo nobre Hans Carl Von Carlowitz 16451714 Não fossem os dois séculos de total isolamento que se impôs o Japão talvez Carlowitz também tivesse se inspirado no edital de 1666 do xogum assim como em um dos principais tratados nipônicos de silvicultura publicado em 1697 por Miyazaki Antei o Nōgyō Zensho Aos poucos a ideia de uso razoável ou responsável wise use bon usage foi evoluindo para a de rendimento sustentável sustained yield nachhaltig e sendo adota por outras disciplinas tecnológicas e comunidades científicas mais diretamente voltadas à exploração de recursos naturais renováveis Particularmente pela engenharia de pesca ao pretender calcular a quantidade de capturas que podem ser retiradas de uma unidade populacional sem que sua capacidade de regeneração seja posta em risco Não é surpreendente portanto que nos anos 1970 o adjetivo sustentável tenha sido selecionado para qualificar o que poderia ser um desejado porvir para as sociedades humanas e que nos anos 1980 a mesma escolha tenha ocorrido para qualificar seu ideal de desenvolvimento Afinal foi justamente esse o momento histórico em que a ciência começou a ser mais enfática e persuasiva e principalmente mais ouvida sobre as incertezas que estavam se multiplicando no tocante à relação da humanidade com a biosfera da Terra 15 A VIRADA Nas primeiras décadas da segunda metade do século XX os dirigentes políticos dos países mais desenvolvidos só poderiam estar mesmo bem predispostos a perceber que problemas ambientais deveriam merecer muito mais atenção da comunidade internacional Desde janeiro de 1956 com a notícia do assustador envenenamento massivo por mercúrio na cidade de Minamata no Japão até 22 de abril de 1970 dia de gigantescas manifestações em cidades norteamericanas conhecido como o primeiro Earth Day uma longa série de acontecimentos e informações científicas haviam levado os governos das principais democracias do mundo a perceber que muitas questões habitualmente tachadas de ambientais podiam se revelar tão ou mais importantes que as tradicionalmente classificadas como sociais particularmente quando pudessem ser fonte de alguma ameaça ao desempenho econômico nacional Claro também é verdade que até esse momento nada parecido havia ocorrido com a percepção governamental no lado do bloco soviético e na China ainda menos no que então era chamado de Terceiro Mundo Mas isso não chegou a impedir que o PNUMA logo pudesse mostrar notável desempenho para que os fundamentos ecológicos do desenvolvimento humano merecessem mais atenção e respeito da comunidade internacional Desde seus primeiros dias de funcionamento o PNUMA teve papel decisivo na criação das redes científicas e técnicas que alavancaram as comunidades epistêmicas voltadas à viabilização do combate à poluição que vitimava mares regionais Um dos processos considerados prioritários ele foi iniciado pelo caso do Mediterrâneo e quase ao mesmo tempo engendrou acordos regionais similares no Báltico e no Mar do Norte Também se deve a esse programa o surgimento da primeira declaração científica internacional sobre a gravidade do problema do ozônio estratosférico em conferência da Organização Meteorológica Mundial por ele promovida em 1975 assim como a subsequente criação do Painel das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas em 1988 o hoje célebre IPCC Intergovernmental Panel on Climate Change Na sequência a adoção de quatro importantes convenções anteriores à Rio92 também se deve principalmente à intensa ação do PNUMA a do comércio internacional de espécies ameaçadas de fauna e flora selvagens CITES de 1973 a da poluição atmosférica alémfronteiras CLRTAP de 1979 a da Lei do Mar UNCLOS de 1982 e a de Basileia de 1989 sobre o controle de movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos e sua eliminação Mas não há dúvida de que as três mais impactantes foram claro a de Viena em 1987 sobre as substâncias que destroem a camada de ozônio e as do clima e da biodiversidade adotadas na Rio92 Infelizmente com a exceção do regime do ozônio praticamente todos esses avanços não se mostraram suficientes para a resolução dos problemas que visavam pois os subsequentes protocolos que lhes dariam efetividade quase sempre dependeram de um mínimo denominador comum entre os Estados signatários E esse mínimo quase sempre foi ditado pelas posições das nações mais reticentes a começar pelos BRICS Brasil Rússia Índia China e África do Sul Dez indicadores de degradação global do meio ambiente mantiveramse em exponenciais trajetórias ascendentes como mostrou a abordagem das fronteiras planetárias planetary boundaries que haviam sido esboçadas em 2009 pelo Centro de Resiliência de Estocolmo SRC A segunda avaliação desse tipo publicada na edição de 15 de janeiro de 2015 da revista Science ressaltou que três desafios deveriam ser considerados os mais sérios pois já teriam até queimado o sinal vermelho o aquecimento global a erosão da biodiversidade principalmente genética e a perturbação de fluxos biogeoquímicos sobretudo o ciclo do nitrogênio Chegando perto do sinal amarelo mas ainda no verde estariam outras cinco grandes preocupações ecológicas globais acidificação dos oceanos acumulação de aerossóis na atmosfera deterioração da camada de ozônio consumo de água doce e poluições químicas E já teria avançado para o amarelo o desmatamento a principal das mudanças nos sistemas de uso dos solos O problema é que esse tipo de avaliação ainda não pode trazer respostas convincentes a uma série de dúvidas e ainda menos às críticas específicas que se acumularam desde 2009 da Guerra Mundial ou mesmo à década de 1970 o que mais interessa em termos práticos é perguntar se e como a humanidade será capaz de demonstrar um grau de autocontrole compatível com a necessidade de uma transição àquilo que os atores mais influentes preferiram denominar desenvolvimento sustentável em vez de ecodesenvolvimento Não faz sentido portanto aguardar que os cientistas naturais se entendam sobre a datação da passagem do Holoceno para o Antropoceno ou pior esperar que o conjunto da sociedade comece a entender o tamanho dessa encrenca para só então procurar as possíveis veredas de transição ao desenvolvimento sustentável Esse é precisamente o objeto dos pesquisadores das humanidades principalmente dos cientistas políticos que estudam as relações internacionais os internacionalistas que se juntaram em 2009 no âmbito de um vasto projeto sobre a governança do sistema Terra Em síntese feita sobre os primeiros cinco anos das investigações tocadas por essa rede seu principal idealizador fundador e coordenador o internacionalista Frank Biermann professor das universidades de Lund na Suécia e de Amsterdã defende a tese de que só se enfrentará esse grande desafio que é tornar sustentável a continuidade do progresso humano se surgirem novas formas de multilateralismo Em termos lógicoformais multilateralismo poderia ser qualquer entendimento entre três ou mais nações Todavia para esses casos passouse a usar o termo plurilateralismo pois desde a vitória contra os nazistas as relações internacionais passaram a ter fóruns que permitem a cooperação entre muitos Estados Principalmente na ONU é claro mas também o trio formado pelas organizações criadas em 1944 pelos acordos de Bretton Woods o Fundo Monetário Internacional FMI a atual Organização Mundial do Comércio OMC e o Banco Mundial BIRD Quando Biermann enfatiza a necessidade de novas formas de multilateralismo ele está rejeitando posicionamentos para os quais uma transição ao desenvolvimento sustentável exigiria ao contrário soluções bem alternativas Por exemplo uma subversão das Nações Unidas por um amplo movimento de baixo para cima a ser liderado por organizações transnacionais e multissetoriais da sociedade civil que incluem as crescentes iniciativas das cidades de empresários de sindicalistas e principalmente do já imenso terceiro setor No extremo oposto a concentração de esforços na direção de uma espécie de minilateralismo incremental que privilegiaria negociações entre poucos Estados nacionais com interesses comuns Ou ainda as propostas de iniciativas unilaterais de geoengenharia Isto é soluções tecnológicas mirabolantes que poderiam ser adotadas sem a necessidade de algum tipo de acordo internacional fosse ele bi pluri ou multilateral Biermann rema sistematicamente contra essas marés antimultilateralistas fazendo detalhadas descrições das atuais instituições e organizações internacionais sempre seguidas de proposições de reformas voltadas a fazer emergir uma efetiva governança dos maiores riscos e incertezas ambientais decorrentes das atividades humanas contemporâneas Entre as providências consideradas fundamentais uma parte não exigiria que a carta das Nações Unidas viesse a ser emendada Assim como sua Assembleia Geral pode criar um Conselho de Desenvolvimento Sustentável também poderia constituir outro conselho específico para as áreas além das jurisdições nacionais cuja missão seria cuidar dos dois terços dos oceanos que são de todos mas de ninguém assim como da Antártida Também dispensaria mudanças constitucionais a desejável criação de mecanismos capazes de permitir que as or 32 Para entender o desenvolvimento sustentável A mais generosa visão do futuro Seis das nove fronteiras planetárias mapeadas pelo SRC com certeza afetam negativamente a mudança climática mas é questionável que possam ser individualmente monitoradas como outras fronteiras planetárias desmatamento emprego de nitrogênio e de fósforo erosão da biodiversidade consumo de água doce acumulação de aerossóis na atmosfera e poluições químicas É altamente duvidoso que se possa chegar a cálculos mesmo que aproximados sobre o ritmo em que ocorreu está ocorrendo e poderá ocorrer a perda de biodiversidade o que torna inteiramente arbitrário o estabelecimento de porcentagens máximas globais para as reduções genética e funcional Além disso a relação custobenefício de muitas alterações ecossistêmicas só pode ser avaliada em circunstâncias bem concretas locais e regionais O exemplo mais gritante talvez seja o do emprego de nitrogênio na fertilização das lavouras Seu uso excessivo nos sistemas agropecuários de ponta está literalmente causando o óbito de amplas zonas oceânicas só que muito bem localizadas Simultaneamente é sua falta que causa a baixa produtividade de muitos dos sistemas agrícolas que continuam a ser praticados em amplas áreas rurais periféricas Claro nada disso pode servir de pretexto para eventual desqualificação do empenho do SRC na busca dos critérios que melhor permitam avaliar quais seriam as efetivas limitações biogeoquímicas planetárias à expansão das atividades humanas Todavia só duas das fronteiras propostas parecem ter suficiente consistência para que já desfrutem de largo consenso na comunidade científica mudança climática e a consequente acidificação dos oceanos Ao menos é o que indica a ampla revisão de tamanha controvérsia liderada por Ted Nordhaus e lançada em junho de 2012 pelo Breakthrough Institute 30 Para entender o desenvolvimento sustentável 16 BEMVINDO AO ANTROPOCENO De qualquer forma é dificílimo se não impossível encontrar algum cientista que discorde da tese segundo a qual o relacionamento da humanidade com o restante da natureza é um processo coevolucionário de escala planetária E também há amplo consenso no meio científico sobre a gravidade das atuais incertezas causadas pela força relativa que alcançaram as atividades humanas nos últimos tempos Após uma dúzia de milênios de extraordinária estabilidade ecossistêmica que tanto favoreceu o desenvolvimento humano acumulamse inúmeros indícios sobre o encerramento desse período de bonança Desde que a humanidade passou a acelerar a destruição de solos a extinção de espécies vegetais e animais a contaminação dos corpos de água a disseminação de lixo por todos os quadrantes a acidificação dos oceanos e outras consequências da excessiva carbonização da atmosfera etc impôsse a suspeita de que essa espécie esteja solapando as próprias bases biogeoquímicas de sua incomparável ascensão Não é por outro motivo que os estudiosos das geociências decidiram debater em seus fóruns internacionais qual deve ter sido o momento histórico da passagem do Holoceno para o Antropoceno Uma indagação que havia sido lançada em 2002 pelo Nobel de Química Paul Crutzen mas que somente cerca de dez anos depois se tornou explícita e oficialmente assumida pelas mais legítimas instâncias da comunidade científica Por mais importante que seja estabelecer se esse marco inaugural do Antropoceno correspondeu a alguma das etapas da expansão agrícola a alguma conjuntura específica da história dos combustíveis fósseis à síntese da amônia à Segun 31 A mais generosa visão do futuro Para entender o desenvolvimento sustentável verno administração ou gerenciamento Além disso o uso correto do termo global envolve grande variedade de agentesatores e de níveisescala Por isso a governança global precisa ser encarada como um fenômeno múltiplo tanto em termos sociológicos e políticos quanto em termos de hierarquias territoriais Pois bem experimentalistas seriam processos que se destacam por uma tripla originalidade participação aberta de um amplo leque de entidades públicas ou privadas ausência de hierarquia formal no interior dos arranjos e intensa concertação nos processos decisórios e executivos Enquanto nos padrões mais tradicionais regras precisas obrigatórias e definitivas são sempre fixadas pois correspondem a pretensas certezas no experimentalista prevalecem normas e metas provisórias sujeitas a procedimentos de revisão periódica baseada em avaliação por pares refletindo a consciência dos limites passageiros ou duradouros das previsões Com isso por enquanto somente três casos de experimentalismo podem ser apontados o controle das substâncias prejudiciais à camada de ozônio pelo Protocolo de Montreal a proteção interamericana de golfinhos ameaçados pela pesca do atum e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Também há estudiosos das relações internacionais que preferem enfatizar que o momento é de grande bloqueio ou impasse devido a um problema bem mais profundo cujo caráter é históricoconjuntural o imenso congestionamento gridlock advindo do próprio sucesso da cooperação multilateral ao longo da segunda metade do século XX Para esse grupo não adiantaria tentar entender o atual déficit de cooperação em áreas estratégicas como a da não proliferação de armas nucleares a climática a comercial ou a financeira sem ter em conta a dinâmica comum que sustenta tais entraves Essa tendência mais ampla e profunda também não poderia ser explicada por uma única causa seja a ascensão dos países emergentes ou a sobreposição de arranjos internacionais Muito menos poderia ser atribuída à forte persistência do soberanismo nacional pois ele não impediu o avanço da cooperação durante o período da grande aceleração que ocorreu entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a década de 1970 e que também foi chamado de era de ouro do capitalismo ou de os trinta anos gloriosos Em vez disso agora essa cooperação se revela dificílima justamente quando mais necessária Pesquisas realizadas com a ajuda da Teoria dos Jogos confirmam essa possibilidade de amplo impasse dos processos de governança pois o resultado mais comum em todas as simulações é o caráter inevitavelmente cíclico da dinâmica da cooperação Por isso o maior desafio atual é identificar os processos que serão mais decisivos para o arranque da próxima fase ascendente do ciclo entre os quais certamente se destacam os que têm sido chamados de experimentalistas 18 E A SUSTENTABILIDADE É bem provável que o leitor nem tenha percebido mas até aqui o substantivo sustentabilidade foi sistematicamente evitado a não ser em uma única passagem em que se tornou obrigatório informar o enunciado do sétimo ODM garantir a sustentabilidade ambiental E logo em seguida foi considerada problemática essa maneira de tratar a questão pois na noção de desenvolvimento sustentável o qualificativo se refere ao próprio desenvolvimento o que não ocorre quando se diz que o desenvolvimento tem oito objetivos essenciais um dos quais seria a garantia de um meio ambiente sustentável Se até aqui o substantivo sustentabilidade foi sempre que possível evitado isso se deve ao fato de ser bem discutível se ele poderia ser considerado sinônimo de desenvolvimento sustentável como muitos acreditam Da mesma forma que o sétimo ODM evoca sustentabilidade ambiental também é muito comum que se fale de sustentabilidade agrícola corporativa cultural da construção civil da moda da pecuária empresarial financeira geográfica habitacional hospitalar humana industrial organizacional política tecnológica territorial urbana e assim por diante E quando se usa sustentabilidade sem nenhum acréscimo isso não quer dizer de modo algum que haja alguma referência implícita ao desenvolvimento Ao contrário é frequente que sustentabilidade sem acréscimos seja justamente a fórmula preferida pelos que acham imprescindível combater o ideal do desenvolvimento sustentável Esse é aliás um imbróglio muito sério na área pedagógica na qual os pioneiros da educação ambiental abominam o programa da ONU via UNESCO que promove a educação para o desenvolvimento sustentável Por isso tendem a preferir a expressão educação para a sustentabilidade como forma de manter forte oposição ao uso da noção desenvolvimento sustentável Há vários motivos então para que se tente esclarecer o sentido atual do substantivo sustentabilidade antes de se avançar nesta exposição sobre desenvolvimento sustentável Para começar é preciso reconhecer que o substantivo sustentabilidade passou a servir a gregos e troianos quando querem exprimir vagas ambições de continuidade durabilidade ou perenidade todas remetendo ao futuro Com isso aumentou muito a queixa dos que acham que essa noção já deveria ter alguma definição precisa No entanto também é necessário perguntar a quem assim pensa se existe definição precisa de justiça por exemplo É uma noção incomparavelmente mais antiga e nem por isso menos controversa Mesmo que não seja difícil concordar sobre o que é injusto é exatamente o inverso que ocorre quando se tenta definir o que é justiça Nem todas as ideias são desse tipo No caso dos algarismos não pode haver divergência sobre o sentido dos números 1 2 ou 3 por mais que se erre na tabuada Ou a força de atração mútua que os corpos materiais exercem uns sobre os outros chamada de gravidade Por mais que haja diferenças nas formas de descrevêla ou mesmo de explicála ou teorizála não há divergência alguma sobre o significado do vocábulo O fato é que por um lado o próprio termo conceito foi demasiadamente diluído pela banalização de seu uso Muitos usam esse termo como se fosse sinônimo de ideia Por outro noções importantíssimas jamais poderão ter definições suficientemente claras para que seu sentido venha a ser aceito por largo consenso Tomese por exemplo a noção de felicidade Pode ser unânime o entendimento dos motivos que fazem infeliz quem é deixado por um ente querido ou quem é atirado no desemprego Mas nada disso permite que exista o menor acordo quando se tenta definir felicidade É esse tipo de contraste que impossibilita o surgimento de definições precisas para grande parte das ideias particularmente quando elas exprimem valores exatamente o que ignoram as queixas de que falta uma definição de sustentabilidade Não se leva em conta que se trata de um novo valor que só começou a se firmar meio século depois da adoção pela ONU da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 sem ter merecido algum destaque ou ênfase na Declaração e Programa de Ação da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena em junho de 1993 Sustentabilidade é o único valor a dar atenção às futuras gerações Isto é a evocar a responsabilidade contemporânea pelas oportunidades leque de escolhas e direitos que nossos trinetos e seus descendentes terão alguma chance de usufruir Não há portanto resposta simples direta e muito menos definitiva para a indagação o que é sustentabilidade Por isso mesmo exige muito cuidado com vulgares abusos que estão sendo cometidos no emprego dessa expressão Também não há como interditar sua apropriação em outros contextos e muito menos proibir o emprego metafórico que já se consolidou dizer que o comportamento de uma empresa de uma família ou mesmo de um indivíduo segue código ético de responsabilidade socioambiental Ou que tal código foi observado na produção e comercialização de alguma mercadoria ou serviço Nada garante que tais comportamentos ou processos sejam realmente sustentáveis mas essa foi a formulação socialmente selecionada para se comunicar que está sendo feito algum esforço nessa direção Igualmente fundamental é admitir que a durabilidade das organizações e particularmente das empresas não é uma exigência da sustentabilidade Ao contrário da crença que se generaliza pode ocorrer exatamente o inverso Nada impede que sustentabilidade sistêmica da sociedade frequentemente exija renovadores choques de destruição criativa Como nos ecossistemas o que está em risco é a resiliência do conjunto não a durabilidade específica de seus indivíduos famílias grupos ou mesmo espécies 19 HÁ ATÉ QUEM SEJA CONTRA Evidentemente também há quem veja no processo de legitimação do substantivo sustentabilidade a perversão de um conceito ou até mesmo desvio e ocultamento por quem tenta seguir desconhecendo as leis de limite da natureza Foi o que disse em 2010 o economista mexicano Enrique Leff que prefere se definir como sociólogo ambiental e ambientalista O problema é que está ocorrendo exatamente o inverso o processo necessariamente contraditório da emergência de um novo valor cujo sentido essencial é de responsabilidade por oportunidades e limites que condicionarão as vidas das próximas gerações da espécie humana Outro que se manifesta de forma cáustica contra a ideia de sustentabilidade é o eminente físico quântico de Oxford David Deutsch autor do ótimo livro The Beginning of Infinity 2011 No capítulo em que a ataca ele deu um depoimento muito significativo sobre certo catastrofismo que vicejava principalmente nos Estados Unidos pouco antes da emergência da noção de desenvolvimento sustentável Diz ter tido uma experiência traumática em 1971 no colegial ao assistir a uma conferência de Paul Ehrlich intitulada População recursos e ambiente Acha que provavelmente deve ter sido essa a primeira vez que ouviu o termo meio ambiente environment e que com certeza nada o havia preparado para tão brutal demonstração de pessimismo nothing had prepared me for such a bravura display of raw pessimism Segundo Deutsch Ehrlich enfatizou nessa palestra que meia dúzia de catástrofes já podiam ser facilmente previstas que algumas não poderiam ser contornadas por já ser tarde demais e que todas estavam intimamente ligadas à superpopulação O livro também relata em detalhes suas discussões com um colega de universidade que se inscrevera no então novo curso de graduação em ciência ambiental Para esse amigo o surgimento da televisão colorida era não apenas um sinal do colapso iminente da sociedade de consumo mas um exemplo de um fenômeno muito mais amplo que estaria ocorrendo em muitas outras áreas tecnológicas os limites finais estavam sendo tocados Tudo o que parecia progresso era para esse seu companheiro uma corrida insana pela exploração dos últimos recursos que haviam sobrado no planeta Ele manifestava a certeza de que os anos 1970 seriam um momento terrível e único da história humana Quarenta anos depois o premiado físico usou essas recordações para contrastar as duas únicas concepções do mundo que lhe parecem possíveis A otimista que se comprovou correta diz que os humanos são solucionadores de problemas A pessimista ao contrário afirma que essa capacidade de resolver um problema criando o próximo é na verdade uma doença para a qual a sustentabilidade seria a cura Chega a ser irônico que Deutsch mostre ignorar por exemplo que a principal revista dedicada à temática da sustentabilidade tem por título justamente Solutions e que seus principais editores são chamados de solutionaries A origem de tamanha barbeiragem parece estar em sua estranha convicção semântica de que o verbo sustentar só teria dois significados quase opostos garantir o que se necessita e evitar ou impedir que as coisas mudem to provide someone with what they need and to prevent things from changing Outros intelectuais que também se revoltam contra a legitimação desse novo valor que é a sustentabilidade como Leff e Deutsch têm defendido a proposta de trocar essa noção pela de resiliência Resiliência sim é um conceito Por séculos ficou confinado às engenharias principalmente naval mas há quarenta anos foi simultaneamente adotado por ecólogos 1973 e psicólogos 1974 para designar a capacidade de recuperação sistêmica póschoques ou capacidade de absorção de choques e subsequente reorganização para funcionar como antes Hoje quem explica essa noção da forma a mais amigável são os psicólogos Dar a volta por cima é como interpreta a jornalista Chris Bueno Pessoas resilientes são as que enfrentam as adversidades conseguindo delas se beneficiar para aprender e amadurecer emocionalmente Pessoas que mostram a habilidade de superar crises traumas ou perdas tornandoos oportunidades positivas de transformação Nada a ver portanto com resistência pois resistente é quem segura as pontas em situações de pressão em vez de mostrar flexibilidade para se adaptar e criatividade para tocar adiante Já para os ecólogos resiliência é a capacidade de um sistema absorver perturbação e reorganizarse mantendo essencialmente a mesma função a estrutura e os feedbacks de modo a conservar sua identidade Mas eles também consideram razoável a definição menos formal sobre a capacidade de lidar com choques para manter o funcionamento sem grandes alterações Talvez até se possa acrescentar a velha metáfora didática da fábula O carvalho e o junco em que La Fontaine elogia a superioridade do flexível junco ao comparálo ao rígido carvalho 110 DOIS SÉRIOS EQUÍVOCOS Outro físico o holandês Roland Kupers diz que sempre preferiu a ideia de resiliência por lhe parecer bem mais adequada ao aprofundamento do conhecimento analítico sobre sistemas complexos por mais que admita ser superior o apelo intuitivo e emocional da ideia de sustentabilidade É muito importante lembrar contudo que o que está em jogo nessa perspectiva é a reorganização póschoque dos sistemas socioecológicos definidos como sistemas com plexos e integrados nos quais os humanos são parte da natureza Já a sustentabilidade é definida por ecólogos como a capacidade de criar testar e manter capacitação adaptativa E eles definem o desenvolvimento sustentável como a combinação da sustentabilidade com a geração de oportunidades Também propõem uma mudança de foco de sustentabilidade para resiliência as professoras Melinda Harm Benson Geografia Novo México e Robin K Craig Direito Utah Para elas a invocação contínua da sustentabilidade nas discussões de políticas ignora as realidades emergentes do Antropoceno caracterizado pela extrema complexidade incerteza e mudança radical sem precedentes Em um mundo assim seria impossível até mesmo definir e muito menos perseguir a sustentabilidade Não porque seja má ideia dizem elas mas porque é duvidoso que essa ideia ainda seja útil à governança ambiental Nesse caso parecem ocorrer dois equívocos um epistêmico e outro de avaliação do processo histórico que legitimou a sustentabilidade como um novo valor Em primeiro lugar tende a ser consensual na comunidade científica que a resiliência é um dos principais vetores da sustentabilidade Isto é um dos meios de atingir tal fim Mais grave porém talvez seja o segundo erro que é de avaliação Desde os anos 1980 tanto o projeto de um desenvolvimento sustentável quanto o valor sustentabilidade não cessaram de ganhar força social como bem demonstra aliás a participativa formulação dos já mencionados ODS Além disso o maior problema é que todas as abordagens da resiliência voltamse sistematicamente para as reações a choques enquanto a sustentabilidade é algo muito mais amplo e abrangente pois envolve fenômenos erosivos ou cumulativos como são os casos da perda de biodiversidade ou da overdose de gases de efeito estufa na atmosfera Ambos certamente aumentam a frequência de eventos extremos mas a sustentabilidade não se limita a reações a choques deles decorrentes Mais estranha ainda é a completa ausência nisso tudo da questão central que desde finais do século passado vem consolidando a sustentabilidade como um novo valor Vale repetir que foi somente quando a comunidade internacional começou a se responsabilizar pelas possíveis consequências de seus comportamentos atuais para as condições de vida de gerações futuras que a ambição pelo desenvolvimento ou prosperidade ou progresso passou a exigir a qualificação que lhe dá o adjetivo sustentável Então não há a mínima chance de que a noção de sustentabilidade venha a ser preterida em favor do conceito de resiliência E tal inviabilidade não se deve a um suposto apelo intuitivo e emocional da ideia de sustentabilidade que segundo Kupers impediria sua superação por um conceito mais técnico ou mais preciso como é o de resiliência O fato é que resiliência é uma noção restrita cujo alcance lógico e cognitivo é muito parcial se comparado ao de sustentabilidade De resto chega a ser assustadoramente ingênuo o reducionismo que pretende abordar a questão pelo seu lado semântico Mesmo que sustentabilidade refletisse uma visão de mundo pessimista o que é simplesmente falso ou que o termo resiliência pudesse ser mais adequado para o Antropoceno em desacordo com o consenso científico é incrível que se possa ignorar ou desprezar a relevância política do processo de superação cognitiva do catastrofismo dos pioneiros muito bem representados por Ehrlich 111 EM SUMA O uso do termo sustentável para qualificar o desenvolvimento sempre exprimíu a possibilidade e a esperança de que a humanidade poderá sim se relacionar com a biosfera de modo a evitar os colapsos profetizados nos anos 1970 Sustentabilidade é portanto uma noção incompatível com a ideia de que o desastre só estaria sendo adiado ou com qualquer tipo de dúvida sobre a real possibilidade do progresso da humanidade Em seu âmago está uma visão de mundo dinâmica na qual transformação e adaptação são inevitáveis mas dependem de elevada consciência sóbria prudência e muita responsabilidade diante dos riscos e principalmente das incertezas O desenvolvimento sustentável deve ser entendido portanto como um dos mais generosos ideais Comparável talvez ao bem mais antigo de justiça social ambos exprimem desejos coletivos enunciados pela humanidade ao lado da paz da democracia da liberdade e da igualdade 2 PARA ENTENDER O DESENVOLVIMENTO Muitos pensam que o ideal do desenvolvimento seja hoje unanimidade ao menos entre pessoas educadas ou instruídas no mundo dito ocidental pois é claro que muitas são as culturas e sociedades com outras visões de mundo Embora raramente sejam lembrados existem muitos grupos humanos que nem sequer almejam a intensificação das trocas e da produção simples de mercadorias que alavancaram a emergência de mercados Deve ser praticamente impossível explicar para a maioria dos povos com os quais se preocupam organizações como a Survival Internacional ou no Brasil o Instituto Socioambiental o que as culturas ditas ocidentais entendem por desenvolvimento Além disso foi tão forte na segunda metade do século XX a identificação do desenvolvimento ao crescimento que mesmo alguns dos melhores intelectuais do hemisfério norte se sentiram obrigados a propor um drástico banimento do próprio ideal de desenvolvimento pois ele seria um mito que inevitavelmente se reduz ao crescimento econômico Por isso antes de apresentar argumentação que permita entender esse ideal parece ser útil explicar essa sua atual antítese Por terem testemunhado muitos dos estragos que a visão dominante sobre o desenvolvimento acabou causando em sociedades mais tradicionais vários estudiosos chegaram à conclusão de que o melhor seria rejeitar a própria noção de
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De forma ágil e inteligente o professor da Universidade de São Paulo José Eli da Veiga pesquisador na área de Economia Socioambiental elucida neste livro a trajetória da noção de desenvolvimento sustentável desde sua emergência na década de 1980 até os mais recentes debates internacionais culminando em 2015 na aprovação pela ONU da Agenda 2030 Transformando Nosso Mundo Para definir claramente o que se entende por desenvolvimento sustentável o autor primeiro analisa os dois termos que compõem a equação desenvolvimento e sustentabilidade situandoos no contexto das discussões globais ao longo das últimas quatro décadas Em seguida examina detidamente o que vêm a ser os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e centra o foco de sua análise naquele que considera o maior desafio do século XXI a descarbonização da economia planetária Traçando um quadro amplo dessa noção e de seus impactos em vários campos do conhecimento da teoria econômica aos modelos comportamentais passando por questões de política educação e justiça Para entender o desenvolvimento sustentável é um alerta oportuno e bem informado sobre a urgência de conciliar crescimento econômico global preservação dos recursos naturais e justa distribuição das oportunidades sociais ISBN 9788573266122 editora 34 José Eli da Veiga PARA ENTENDER O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL editora 34 EDITORA 34 Editora 34 Ltda Rua Hungria 592 Jardim Europa CEP 01455000 São Paulo SP Brasil TelFax 11 38116777 wwweditora34combr Copyright Editora 34 Ltda 2015 Para entender o desenvolvimento sustentável José Eli da Veiga 2015 A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL E CONFIGURA UMA APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR Capa projeto gráfico e editoração eletrônica Bracher Malta Produção Gráfica Revisão Alberto Martins Beatriz de Freitas Moreira 1ª Edição 2015 CIP Brasil CatalogaçãonaFonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ Brasil Veiga José Eli da 1948 V724p Para entender o desenvolvimento sustentável José Eli da Veiga São Paulo Editora 34 2015 1ª Edição 232 p ISBN 9788573266122 1 Desenvolvimento sustentável 2 Ecologia 3 Economia ambiental 4 Governança global I Título CDD 3337 PARA ENTENDER O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Prólogo 7 1 A mais generosa visão do futuro 9 2 Para entender o desenvolvimento 47 3 Para entender a sustentabilidade 83 4 Um alvo abrangente para 2030 119 Apêndice Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ODS 156 5 O maior desafio é a descarbonização 159 Epílogo 197 Leituras recomendadas 203 Índice remissivo 205 Bibliografia 218 Agradecimentos 230 Sobre o autor 231 PRÓLOGO Proliferaram usos ingênuos distorcidos e até suspeitos da expressão desenvolvimento sustentável desde sua emergência na virada para a década de 1990 Por isso é muito frequente que alguém se veja em maus lençóis ao tentar fazer o inverso empregála com conhecimento de causa e rigor Por outro lado não existem respostas prontas claras e precisas para todas as dúvidas que esse problema é capaz de suscitar Com os pés no chão o máximo que se pode propor é uma abordagem que vacine o leitor contra as muitas escamoteações distorções e ingenuidades que estão em voga capaz de simultaneamente lhe apontar um terreno firme para avançar nessa busca É por isso que para explicar o desenvolvimento sustentável este livro começa com um sobrevoo que vai das origens históricas da expressão até as controvérsias atuais sobre seu significado O suficiente para sugerir que esse é um dos mais generosos ideais da humanidade como propõe o capítulo 1 Mas para que esse ideal seja efetivamente analisado também é preciso examinar separadamente as duas noções que ele sintetiza o desenvolvimento e a sustentabilidade O capítulo 2 procura mostrar que desenvolvimento é a mais política das questões socioeconômicas já que abrange desde a proteção dos direitos humanos até o aprofundamento da democracia passando pelo acesso à educação de qualidade e tudo o que isso implica em termos de inovação Só que as coisas começaram a mudar quando a ciência passou a ser mais enfática e persuasiva e principalmente mais ouvida sobre as incertezas que estavam se multiplicando no tocante à relação da humanidade com a biosfera da Terra Impôsse assim a necessidade de que fosse condicionado a uma boa dose de prudência o progresso inerente ao desenvolvimento E era isso que exprimia desde suas remotas origens a noção de sustentabilidade como explica o capítulo 3 Como o objetivo deste livro é ajudar a entender o desenvolvimento sustentável ele poderia a rigor ter apenas esses três capítulos Pecaria porém por desatualização já que duas questões bem mais concretas se tornaram imprescindíveis à compreensão do tema De um lado o processo de legitimação desse ideal até a adoção da Agenda 2030 Transformando Nosso Mundo consagrada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ODS apresentados no capítulo 4 De outro a questão do aquecimento global que exigirá intensa descarbonização da economia global nas próximas décadas pois como explica o capítulo 5 é principalmente disso que dependerá a sustentabilidade do desenvolvimento Em suma ao pretender ajudar a entender o desenvolvimento sustentável este livro começa pela caracterização do processo que fez emergir esse ideal em seguida aprofunda separadamente a análise das duas ideias centrais que o compõem depois verifica qual é sua manifestação mais concreta ou prática e finalmente enfatiza o problema de cuja solução ele mais está dependendo nesta conjuntura histórica São essas as etapas da experiência para a qual o leitor está convidado uma viagem exterminadora do senso comum sobre a ideia de desenvolvimento sustentável 1 A MAIS GENEROSA VISÃO DO FUTURO Desenvolvimento sustentável é a ambição de que a humanidade venha a atender às suas necessidades atuais sem comprometer a possibilidade de que as futuras gerações também possam fazêlo Essa é a definição mais legítima mais conhecida e mais aceita além de ter sua origem devidamente certificada Foi com esse enunciado que a ideia começou a ser assimilada pela comunidade internacional depois que a Organização das Nações Unidas ONU assumiu em 11 de dezembro de 1987 que a partir de então o desenvolvimento sustentável deveria se tornar princípio orientador central de governos e instituições privadas organizações e empresas Tão solene declaração está logo na abertura da resolução da 96ª reunião plenária da Assembleia Geral da ONU que acatou o célebre relatório Nosso Futuro Comum preparado sob a liderança de Gro Harlem Brundtland uma médica que já exerceu por três vezes o cargo de primeiroministro da Noruega tendo sido em 1981 a primeira mulher e a mais jovem pessoa a ocupálo Nos decênios que se seguiram a esse marco histórico de 1987 foram propostas muitas outras formulações que talvez até possam ser mais precisas e rigorosas Entretanto nenhuma delas pode deixar de contemplar seu âmago a novíssima ideia de que as futuras gerações merecem tanta atenção quanto as atuais Da mesma forma que não pode existir feijoada sem feijão o desenvolvimento sustentável não pode ser definido sem ênfase naquilo que em jargão culto é entendido como equidade intergeracional Isso não impede contudo que exista um sério problema na histórica e oficial definição estabelecida pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento mais conhecida por Comissão Brundtland Infelizmente ela enfatiza demais o vocábulo necessidades transmitindo talvez inadvertidamente que o desenvolvimento poderia significar apenas o atendimento de suas necessidades humanas Não resta dúvida de que em situações como a dos 48 países classificados pela ONU como os menos desenvolvidos ou como as dificuldades de outros que não estão nessa lista por estarem no máximo remediados é até aceitável que a ideia de desenvolvimento seja reduzida ao objetivo de atender às necessidades de suas populações Mas também é óbvio que ao se libertarem de tamanho subdesenvolvimento essas populações com certeza buscarão cada vez mais direitos e oportunidades que vão muito além do que se entende por necessidades Por exemplo explorar o espaço sideral ou a exosfera conservar bens que são parte do patrimônio cultural das sociedades proteger espécies ameaçadas de extinção ou incentivar a poesia ou a música erudita são atitudes que não costumam ser identificadas a necessidades Mesmo assim elas são parte dos componentes fundamentais do desenvolvimento humano dos últimos milênios um processo de incessantes descobertas novas oportunidades e conquistas de direitos Em poucas palavras um processo de persistente e tenaz expansão das liberdades humanas por mais interrompido que possa ser por atrozes retrocessos à barbárie como o nazismo ou o grupo radical islâmico Boko Haram para citar dois exemplos recentes Também é verdade que não é essa a concepção dominante sobre o significado do desenvolvimento O mais comum é que ele seja meramente assimilado ao seu substrato econômico o crescimento ou aumento da produção E não deixa de ser verdade que por doze milênios este tem se mostrado o meio imprescindível à obtenção dos fins humanistas exprimamse estes em termos culturais e emancipatórios ou espirituais e religiosos Todavia como também é absurdo confundir meios e fins só pode ser um sério equívoco amesquinha r o ideal do desenvolvimento ao progresso material que o condiciona Com certeza a mais séria dificuldade para que essa questão possa ser esclarecida está na imensa força persuasiva que desfrutam os economistas nas sociedades contemporâneas Eles estão cobertos de razão quando afirmam que há desenvolvimento econômico quando não ocorre apenas crescimento mas também aumento da produtividade Mas o desenvolvimento da humanidade não se restringe ao que se entende hoje por desenvolvimento econômico a ganhar o mundo todo a partir da fusão entre a ciência e a tecnologia ocorrida na segunda metade do século XIX A revolução agrícola europea do século XVIII foi um febril processo de mudanças tecnológicas sociais e econômicas que teve papel crucial na decomposição do feudalismo e no advento do capitalismo este foi um parto que resultou de uma gestação de dez séculos A fusão das civilizações germânica e romana que engendrara o feudalismo europeu começou a aproximar a prática agrícola propriamente dita da pecuária Deixando de ser atividades opostas para se tornarem cada vez mais complementares o cultivo e a criação de animais formaram progressivamente os alicerces das sociedades europeias E esse longo acúmulo acabou por provocar um dos mais importantes saltos de qualidade da civilização humana o fim da escassez crônica de alimentos Já a fusão entre ciência e tecnologia foi o principal fenômeno daquilo que alguns historiadores chamam de Segunda Revolução Industrial Uma série de mudanças radicais principalmente dentro das indústrias química elétrica de petróleo e de aço Outros fatos marcantes desse período incluem a introdução de navios de aço movidos a vapor o desenvolvimento do avião a produção em massa de bens de consumo alimentos enlatados refrigeração mecânica e outras técnicas de preservação e a invenção do telefone eletromagnético Ele também marcou a junção da Alemanha e dos Estados Unidos como grandes potências industriais ao lado do Reino Unido e da França Mas o ponto de virada foi a pesquisa científico tecnológica começar a ser realizada em laboratórios internos às próprias empresas Esse crescimento econômico intensivo ou desenvolvimento econômico como prefere grande parte dos economistas foi se tornando a regra enquanto o crescimento extensivo passava a ser cada vez mais identificado a mera estagnação Como em debates sobre políticas públicas permanece muito forte a influência do pensamento econômico é bem compreensível portanto que ainda se faça tão séria confusão entre as expressões desenvolvimento e sua antecessora progresso material esta sim equivalente a desenvolvimento econômico Daí a extrema importância nem sempre reconhecida da emergência da noção de desenvolvimento humano quando já se aproximava a virada do milênio A constatação de que estava sendo calamitoso tratar o desenvolvimento como elevação da renda per capita equivalente à produção interna per capita ou PIB per capita foi feita por vários economistas que nos anos 19601970 haviam conhecido mais de perto a realidade do subdesenvolvimento O mais persuasivo desses admiráveis pioneiros e que por isso desempenhou crucial liderança política foi o paquistanês Mahbub ul Haq 19341988 Como diretor de projeto do Programa para o Desenvolvimento que a ONU havia criado em 1965 o PNUD concebeu e conduziu a elaboração do primeiro Relatório do Desenvolvimento Humano que só foi lançado em 1990 Para isso reuniu dez de seus colegas de primeira linha dos quais o mais influente foi sem dúvida o indiano Amartya Sen que em 1998 receberia o Nobel de Economia pelo conjunto de sua obra Por ter trabalhado muitos anos para o Banco Mundial sobretudo na África Mahbub ul Haq formara a convicção de que uma das piores pragas contra a compreensão do sentido do desenvolvimento deviase à falta de uma alternativa à renda per capita sempre que o problema fosse o de avaliá lo monitorálo ou medilo Por isso mesmo antes de ir para o PNUD seu senso crítico sobre as ações do Banco Mundial o tornara membro do Fórum Terceiro Mundo e o levara a dar grandes contribuições a vários relatórios que se tornaram célebres entre os quais o Que Fazer 1975 da Fundação Dag Hammarskjöld e o Norte Sul 1980 mais conhecido por Relatório Brandt Tão larga experiência prática com a realidade do então chamado Terceiro Mundo gerou nele forte determinação em criar um indicador sintético que pudesse servir ao mundo como uma espécie de hodômetro do desenvolvimento e que assim pudesse rivalizar com o PIB per capita Nem seria necessário conhecer profundamente a obra de Amartya Sen para prever que ele se oporia a esse tipo de ambição Se como ele sempre disse e será explicitado a seguir desenvolvimento significa expansão das liberdades substantivas como imaginar a possibilidade de captar tal fenômeno mediante um indicador sintético Não deu outra O indiano manifestou ao querido colega e amigo paquistanês seu profundo ceticismo com respeito à ideia de que algum índice pudesse sintetizar uma realidade tão complexa quanto a do processo de desenvolvimento Em breve relato sobre esse diálogo feito em contribuição especial ao Relatório do Desenvolvimento Humano de 1999 Amartya Sen conta que Mahbub até concordava com a inevitável precariedade que teria qualquer indicador sintético do desenvolvimento mas mesmo assim enfatizava que a tirania da renda per capita nunca seria posta em xeque por amplos kits de tabelas por melhores que elas pudessem ser Os usuários talvez até as admirassem mas assim que precisassem de uma medida sintética voltariam correndo atrás da velha e boa renda per capita com certeza em razão de sua simplicidade e comodidade Amartya Sen recorda que enquanto ouvia os argumentos de Mahbub pensava em um poema de T S Eliot sobre a incapacidade do gênero humano de aguentar realidade em demasia Nós precisamos de uma medida dizia Mahbub tão simples quanto o PIB uma única cifra mas que não seja tão cega em relação aos aspectos sociais da vida humana Ele esperava que um índice desse tipo além de complementar o uso do PIB suscitaria mais interesse pelas demais variáveis que seriam apresentadas nas longas tabelas estatísticas no final do relatório Nesse mesmo relato o indiano dá sua mão à palmatória Devo admitir que Mahbub tinha inteira razão nesse aspecto e me felicito pelo fato de não termos tentado impedilo de procurar uma medida sumária Ou seja o Índice de Desenvolvimento Humano IDH é aquele que pode atrair e também estimular seus usuários a consultarem o amplo sortimento de dados estatísticos e análises críticas detalhadas que anualmente acompanha os relatórios 12 O DESENVOLVIMENTO SEGUNDO O PNUD Na concepção de Amartya Sen e de Mahbub ul Haq só há desenvolvimento quando os benefícios do crescimento servem à ampliação das capacidades humanas entendidas como o conjunto das coisas que as pessoas podem ser ou fazer na vida São quatro as mais elementares ter uma vida longa e saudável ser instruído ter acesso aos recursos necessários a um nível de vida digno e ser capaz de participar da vida da comunidade Na ausência dessas quatro todas as outras possíveis escolhas estarão indisponíveis E muitas oportunidades na vida permanecerão inacessíveis Além disso há um fundamental prérequisito que precisa ser explicitado as pessoas têm de ser livres para que suas escolhas possam ser exercidas para que garantam seus direitos e se envolvam nas decisões que afetarão suas vidas O objetivo básico do desenvolvimento só pode ser portanto alargar as liberdades humanas um processo que expanda as capacidades humanas pelo aumento das escolhas que as pessoas possam fazer para ter vidas plenas e criativas Ou seja quando há de fato desenvolvimento as pessoas são tanto beneficiárias como agentes do progresso e da mudança que provocam Tratase de uma dinâmica que deve beneficiar todos os indivíduos equitativamente e basearse na participação de cada um deles Tal é a abordagem do desenvolvimento exposta em todos os Relatórios do Desenvolvimento Humano desde o primeiro publicado em 1990 É potencialmente infinita a gama de capacidades que os indivíduos podem ter assim como as escolhas que ajudam a expandir essas capacidades Mas como as políticas públicas precisam fixar prioridades os relatórios definiram os dois critérios mais úteis na identificação das capacidades que precisam ser avaliadas Em primeiro lugar essas capacidades devem ser universalmente valorizadas Em segundo devem ser básicas para a vida no sentido de que sua ausência impediria muitas outras escolhas Foi a partir desses dois critérios que os relatórios chegaram às quatro capacidades mencionadas acima vida longa e saudável conhecimento acesso aos recursos necessários para um padrão de vida digno e participação na vida da comunidade O desenvolvimento depende da maneira pela qual os recursos gerados pelo crescimento econômico são utilizados se para fabricar armas ou para produzir alimentos se para construir palácios ou para disponibilizar água potável E resultados humanos como a participação democrática na tomada de decisão ou igualdade de direitos para homens e mulheres não dependem dos rendimentos Por essas razões os relatórios apresentam um conjunto extensivo de indicadores quase duzentos deles em 33 quadros sobre importantes resultados conseguidos em países de todo o mundo como a expectativa de vida à nascença as taxas de mortalidade de menores de cinco anos que refletem a capacidade de sobreviver e as taxas de alfabetização que refletem a capacidade de aprender Também incluem importantes indicadores sobre a possibilidade de realizar essas capacidades como o acesso à água potável e sobre a equidade na realização como os hiatos entre homens e mulheres na escolarização ou na participação política É verdade que este rico conjunto de indicadores fornece medidas para avaliar o desenvolvimento em suas muitas dimensões Mas também não é menos verdade que as decisões políticas muitas vezes demandam uma medida sumária que incida mais claramente no bemestar humano do que no rendimento É para esse fim portanto que os relatórios publicam o IDH que vem sendo completado por índices que observam especificamente o gênero um índice de desenvolvimento ajustado ao gênero e uma medida de participação segundo o gênero e a pobreza um índice de pobreza humana multidimensional que vai muito além da simples pobreza definida pela renda per capita Tais índices dão uma perspectiva de algumas dimensões básicas do desenvolvimento mas devem ser completados mediante análise dos dados e de outros indicadores que lhes são subjacentes É preciso enfatizar porém que o PNUD entende o IDH apenas como um ponto de partida Recorda que o processo de desenvolvimento é muito mais amplo e muito mais complexo do que qualquer medida sumária conseguiria captar mesmo quando completada por outros índices Em outras palavras o IDH não é uma medida completa pois não inclui por exemplo a capacidade de participar nas decisões que afetam a vida das pessoas e de simultaneamente ter o respeito dos outros na comunidade Afinal uma pessoa pode ser rica saudável e muito instruída mas sem essa capacidade o desenvolvimento é retardado A omissão dessa dimensão cívica tem sido realçada desde os primeiros relatórios e levou o PNUD a criar um índice da liberdade humana em 1991 e um índice da liberdade política em 1992 O problema é que nenhuma dessas medidas sobreviveu ao seu primeiro ano o que testemunha a dificuldade de quantificar adequadamente aspectos tão complexos do desenvolvimento principalmente quando geram sérios conflitos diplomáticos devido à oposição das muitas nações governadas por tiranos A saída foi tratar extensivamente desses temas mas de forma qualitativa Em 2002 foi a vez da democracia por exemplo e em 2004 o relatório foi dedicado ao tema da liberdade cultural Outro sério defeito do IDH é que ele resulta da média aritmética dos três índices mais específicos que captam lon gevidade escolaridade e renda Mesmo que se aceite como inevitável a ausência de outras dimensões do desenvolvimento como a cívica a cultural a política ou a ambiental para as quais é bem inferior a disponibilidade de indicadores tão cômodos é duvidoso que seja essa média aritmética a que melhor revele o grau de desenvolvimento atingido por determinada coletividade Ao contrário é mais razoável supor que o cerne da questão esteja justamente no possível descompasso entre o nível de renda obtido por determinada comunidade e o padrão so cial que conseguiu atingir mesmo que revelado tão somente pela escolaridade e pela longevidade Um bom exemplo pode ser a comparação entre os dados da Arábia Saudita e do Chile referentes a 2013 Com um PIB per capita superior a 53 mil dólares a primeira só atingia a média de 87 anos de escolaridade e a expectativa de vida não chegava a 76 anos Enquanto isso o Chile com renda quatro vezes inferior 13 mil dólares per capita obtinha média de 98 anos de escolaridade e 80 anos de expectativa de vida Nessa comparação o que menos interessa é notar que a Arábia Saudita com IDH 0836 era a 34ª colocada na classificação enquanto o Chile com IDH 0822 só aparecia em 41º lugar A pergunta que precisa ser feita é por que o Chile tinha melhor desempenho em educação e saúde com uma renda quatro vezes menor que a da Arábia Saudita De resto também é um problema muito sério que a dimensão nível de vida precise ser avaliada pelo PIB per capita já que ainda não foi possível legitimar outro tipo de cálculo contábil que melhor exprima o crescimento econômico aspecto que será discutido em mais detalhe no capítulo 4 deste livro 13 DISCREPÂNCIA PSÍQUICA A partir de 1990 passou a ser inteiramente inaceitável rebaixar o desenvolvimento ao meio que tem permitido atingilo um intensivo crescimento econômico Mas também é crucial ressaltar o estranho fato de o PNUD e seus relatórios terem demorado tanto para assimilar a ideia de que o desenvolvimento precisa ser sustentável Três anos antes do lançamento do primeiro Relatório do Desenvolvimento Humano ela já havia sido adotada pela Assembleia Geral e estava para ser consagrada logo depois pela Cúpula da Terra Eco92 ou Rio92 a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Essa profunda discrepância do sistema das Nações Unidas ficou ainda mais patente no início do século XXI ao serem adotados os oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio ODM dos quais apenas o sétimo foi voltado a garantir a sustentabilidade ambiental Houve portanto uma ampla e sistêmica dissonância cognitiva expressão psicológica para o sentimento de tensão provocado pela existência de duas crenças opostas ou quando o comportamento de uma pessoa se encontra em conflito com aquilo que são os seus valores eou atitudes Esse fato poderia ser considerado de menor importância pois ao sétimo objetivo foram atribuídas quatro metas das quais a primeira pretendeu integrar os princípios do desenvolvimento sustentável nas políticas e programas nacionais e reverter a perda de recursos ambientais Além disso para o cumprimento dessa meta foi selecionada meia dúzia de indicadores a proporção das áreas terrestres cobertas por florestas b emissão de gás carbônico per capita c emissão de carbono por dólar do PIB d consumo de substâncias que degradam a camada de ozônio e proporção de peixes dentro de limites biológicos seguros f proporção do total de recursos hídricos utilizada E não parou por aí As três outras metas desse sétimo objetivo foram 2 reduzir a perda de diversidade biológica 3 reduzir pela metade a proporção da população sem acesso permanente e sustentável a água potável segura e esgotamento sanitário 4 alcançar melhora significativa nas vidas de ao menos 100 milhões de habitantes de bairros degradados Não se pode dizer que os ODM ignoraram as motivações que entre 1987 e 1992 haviam levado a ONU a assumir o projeto de tornar sustentável o desenvolvimento Todavia voltaram a empregar o termo desenvolvimento sem o adjetivo sustentável E ao usarem a expressão sustentabilidade ambiental para caracterizar um de seus oito objetivos jogaram ainda mais água no moinho dos que rechaçam a ideia de que a sustentabilidade se refira ao desenvolvimento e não apenas ao seu componente ambiental Isto é dos que não admitem a existência de paridade entre o desenvolvimento e sua sustentabilidade O terceiro princípio da célebre Declaração do Rio de 1992 diz que o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a que sejam atendidas equitativamente as necessidades do desenvolvimento e do meio ambiente assim como das gerações presentes e futuras Ou seja o meio ambiente deve ser reconhecido como base e condição material biogeoquímica de qualquer possibilidade de desenvolvimento humano Afinal é da qualidade desse finíssimo invólucro chamado de biosfera que depende o prazo de validade da espécie humana Mas os governantes e seus diplomatas hostis a essa paridade logo abraçaram para combatêla a esquisita fórmula do equilíbrio de três pilares que seriam as dimensões econômica social e ambiental Em vez de ser tratada em pé de igualdade com o desenvolvimento criouse o subterfúgio de se atribuir à sustentabilidade apenas um dos componentes de uma nova santíssima trindade Um retrocesso cognitivo confirmadíssimo na Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável a Rio10 realizada em Joanesburgo África do Sul entre 2 e 4 de setembro de 2002 logo depois de radical reviravolta do contexto mundial passarase apenas um ano dos inesquecíveis acontecimentos daquela manhã do dia 11 de setembro de 2001 quando foram derrubadas as torres gêmeas do World Trade Center em Nova York Essa parábola dos três pilares começara a ser difun dida em 1997 em um clássico da pedagogia empresarial intitulado Canibais com garfo e faca no qual o consultor britânico John Elkington procura salientar a necessidade de uma gestão voltada para os três vetores que em inglês começam pela letra p pessoas planeta e lucro profit Pois foi essa ótima tirada para as atividades empresariais que ajudou bastante quem há muito estava querendo emplacar a ideia de que o chamado meio ambiente pesa no máximo um terço na balança do desenvolvimento sustentável O problema é grave pois o desenvolvimento não é um fenômeno sequer parecido com a gestão das empresas Por si só ele já tem várias outras dimensões além da econômica e da social bastando lembrar que a justiça e a paz pertencem a outras duas dimensões a política e a da segurança Além disso do lado da sustentabilidade também são várias as dimensões a começar pela climática pela biodiversidade ou pela hídrica Por isso é difícil saber o que é pior o disparate de se afirmar que o desenvolvimento sustentável só tem três dimensões ou a metáfora mecânica do equilíbrio de pilares pois as dimensões do desenvolvimento e de sua sustentabilidade não são separadas estanques ou paralelas como sugere essa imagem emprestada da engenharia No entanto dez anos depois de Joanesburgo na preparação da quarta megaconferência da ONU sobre a questão a Rio20 representantes do governo brasileiro não se cansavam de afirmar que essa cúpula deveria ser sobre desenvolvimento e não sobre meio ambiente Até pregaram a necessidade de que ela fosse desambientalizada Por sorte o feitiço acabou por virar contra o feiticeiro pois uma das poucas decisões realmente importantes da Rio 20 foi a de substituir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio ODM por Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ODS no contexto da Agenda de Desenvolvimento Pós2015 depois intitulada Agenda 2030 Transformando Nosso Mundo Uma iniciativa que desencadeou amplo democrático e inédito processo de consultas pela ONU radicalmente diverso do que havia ocorrido com os ODM tema abordado de forma mais circunstanciada no capítulo 4 Na virada do milênio as negociações entre os Estadosmembros da ONU sofreram pouquíssima influência de representantes da sociedade civil fossem eles do mundo empresarial ou do terceiro setor Mas entre 2013 e 2015 ocorreu exatamente o inverso um processo extremamente participativo levou à adoção de propostas que acima de tudo demonstraram cabalmente a incongruência da cantilena sobre três dimensões ou três pilares do desenvolvimento sustentável Foram dezessete os ODS que desde agosto de 2014 emergiram do amplo processo de entendimento conduzido por um Grupo de Trabalho Aberto nomeado pela Assembleia Geral e coordenado pelos representantes permanentes da Hungria Casaba Korosi e do Quênia Macharia Kamau o GTAODS No final de setembro de 2015 tais propostas foram aprovadas na íntegra pela cúpula mundial que adotou a Agenda 2030 Transformando Nosso Mundo Sejam quais forem seus méritos e possíveis defeitos além de reverterem o lado abstrato da noção de desenvolvimento sustentável os ODS darão início a uma real aproximação das governanças do desenvolvimento e do meio ambiente que permaneciam demasiadamente autônomas e distantes desde junho de 1972 quando o mundo começou a se dar conta do tamanho dessa encrenca na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano Realizada em Estocolmo nesse encontro foi lançado o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente o PNUMA É esta a história da ideia de desenvolvimento sustentável em uma síntese que propositadamente se concentrou na evolução das instituições internacionais Das inúmeras per 14 POR QUE O ADJETIVO SUSTENTÁVEL Ao longo dos anos 1970 eram muito ríspidos os embates entre representantes do empresariado e militantes da nova e intrépida onda ambientalista Os primeiros desconfiados de que a conservação dos ecossistemas poderia ser contrária à livre iniciativa e a novas oportunidades de empreendedorismo costumavam dirigir uma grave acusação aos que consideravam até como inimigos vocês são contra o desenvolvimento Nem vem ao caso aqui saber se eles estavam ou não usando erroneamente o vocábulo desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico O fato é que em algum desses enfrentamentos um dos visados ambientalistas retrucou com a frase nós não somos contra o desenvolvimento só queremos que ele seja sustentável Tudo indica que a primeira vez que o adjetivo sustentável foi usado em um texto para qualificar o desenvolvimento ocorreu em um seminário promovido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente PNUMA em Estocolmo em 1979 Foi apresentado por W Burger com o título A busca de padrões sustentáveis de desenvolvimento A partir daí e por razões que até hoje não estão bem esclarecidas esse novo binômio tendeu a jogar uma pá de cal sobre o anterior empenho do PNUMA em tentar emplacar o neologismo ecodesenvolvimento que tinha a grande vantagem de ser uma única palavra tulos de dois livros a coletânea The Sustainable Society Implications for Limited Growth editada em 1977 por Dennis C Pirages e a obra de Lester Brown Building a Sustainable Society de 1981 Foram essas as circunstâncias em que despontou o qualificativo que na década seguinte sobretudo a partir de 1987 viria a ser selecionado para extinguir o concorrente ecodesenvolvimento Pode ter ficado obscuro contudo o próprio sentido ou significado que tinha e que depois passou a ter esse adjetivo O que de fato existia até os anos 1970 era o conceito de Máximo Rendimento Sustentável e sua origem remontava às primeiras tentativas de estabelecer critérios para melhorar a exploração das florestas A escassez de madeira que no século XVII criou sérias dificuldades para as nações que mais se desenvolviam na Europa fez brotar o princípio de que as florestas deveriam ser manejadas de modo a que sua reprodução sempre igualasse o consumo Essa regra já estava esboçada no livro Sylva apresentado em 1664 à Royal Society por John Evelyn assim como na Ordonnance para as florestas reais que JeanBaptiste Colbert baixara em 1669 Dois documentos que certamente contribuíram para que ela fosse teorizada em 1713 com a publicação na Saxônia do manual Sylvicultura Oeconomica tarefa encabeçada pelo nobre Hans Carl Von Carlowitz 16451714 Não fossem os dois séculos de total isolamento que se impôs o Japão talvez Carlowitz também tivesse se inspirado no edital de 1666 do xogum assim como em um dos principais tratados nipônicos de silvicultura publicado em 1697 por Miyazaki Antei o Nōgyō Zensho Aos poucos a ideia de uso razoável ou responsável wise use bon usage foi evoluindo para a de rendimento sustentável sustained yield nachhaltig e sendo adota por outras disciplinas tecnológicas e comunidades científicas mais diretamente voltadas à exploração de recursos naturais renováveis Particularmente pela engenharia de pesca ao pretender calcular a quantidade de capturas que podem ser retiradas de uma unidade populacional sem que sua capacidade de regeneração seja posta em risco Não é surpreendente portanto que nos anos 1970 o adjetivo sustentável tenha sido selecionado para qualificar o que poderia ser um desejado porvir para as sociedades humanas e que nos anos 1980 a mesma escolha tenha ocorrido para qualificar seu ideal de desenvolvimento Afinal foi justamente esse o momento histórico em que a ciência começou a ser mais enfática e persuasiva e principalmente mais ouvida sobre as incertezas que estavam se multiplicando no tocante à relação da humanidade com a biosfera da Terra 15 A VIRADA Nas primeiras décadas da segunda metade do século XX os dirigentes políticos dos países mais desenvolvidos só poderiam estar mesmo bem predispostos a perceber que problemas ambientais deveriam merecer muito mais atenção da comunidade internacional Desde janeiro de 1956 com a notícia do assustador envenenamento massivo por mercúrio na cidade de Minamata no Japão até 22 de abril de 1970 dia de gigantescas manifestações em cidades norteamericanas conhecido como o primeiro Earth Day uma longa série de acontecimentos e informações científicas haviam levado os governos das principais democracias do mundo a perceber que muitas questões habitualmente tachadas de ambientais podiam se revelar tão ou mais importantes que as tradicionalmente classificadas como sociais particularmente quando pudessem ser fonte de alguma ameaça ao desempenho econômico nacional Claro também é verdade que até esse momento nada parecido havia ocorrido com a percepção governamental no lado do bloco soviético e na China ainda menos no que então era chamado de Terceiro Mundo Mas isso não chegou a impedir que o PNUMA logo pudesse mostrar notável desempenho para que os fundamentos ecológicos do desenvolvimento humano merecessem mais atenção e respeito da comunidade internacional Desde seus primeiros dias de funcionamento o PNUMA teve papel decisivo na criação das redes científicas e técnicas que alavancaram as comunidades epistêmicas voltadas à viabilização do combate à poluição que vitimava mares regionais Um dos processos considerados prioritários ele foi iniciado pelo caso do Mediterrâneo e quase ao mesmo tempo engendrou acordos regionais similares no Báltico e no Mar do Norte Também se deve a esse programa o surgimento da primeira declaração científica internacional sobre a gravidade do problema do ozônio estratosférico em conferência da Organização Meteorológica Mundial por ele promovida em 1975 assim como a subsequente criação do Painel das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas em 1988 o hoje célebre IPCC Intergovernmental Panel on Climate Change Na sequência a adoção de quatro importantes convenções anteriores à Rio92 também se deve principalmente à intensa ação do PNUMA a do comércio internacional de espécies ameaçadas de fauna e flora selvagens CITES de 1973 a da poluição atmosférica alémfronteiras CLRTAP de 1979 a da Lei do Mar UNCLOS de 1982 e a de Basileia de 1989 sobre o controle de movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos e sua eliminação Mas não há dúvida de que as três mais impactantes foram claro a de Viena em 1987 sobre as substâncias que destroem a camada de ozônio e as do clima e da biodiversidade adotadas na Rio92 Infelizmente com a exceção do regime do ozônio praticamente todos esses avanços não se mostraram suficientes para a resolução dos problemas que visavam pois os subsequentes protocolos que lhes dariam efetividade quase sempre dependeram de um mínimo denominador comum entre os Estados signatários E esse mínimo quase sempre foi ditado pelas posições das nações mais reticentes a começar pelos BRICS Brasil Rússia Índia China e África do Sul Dez indicadores de degradação global do meio ambiente mantiveramse em exponenciais trajetórias ascendentes como mostrou a abordagem das fronteiras planetárias planetary boundaries que haviam sido esboçadas em 2009 pelo Centro de Resiliência de Estocolmo SRC A segunda avaliação desse tipo publicada na edição de 15 de janeiro de 2015 da revista Science ressaltou que três desafios deveriam ser considerados os mais sérios pois já teriam até queimado o sinal vermelho o aquecimento global a erosão da biodiversidade principalmente genética e a perturbação de fluxos biogeoquímicos sobretudo o ciclo do nitrogênio Chegando perto do sinal amarelo mas ainda no verde estariam outras cinco grandes preocupações ecológicas globais acidificação dos oceanos acumulação de aerossóis na atmosfera deterioração da camada de ozônio consumo de água doce e poluições químicas E já teria avançado para o amarelo o desmatamento a principal das mudanças nos sistemas de uso dos solos O problema é que esse tipo de avaliação ainda não pode trazer respostas convincentes a uma série de dúvidas e ainda menos às críticas específicas que se acumularam desde 2009 da Guerra Mundial ou mesmo à década de 1970 o que mais interessa em termos práticos é perguntar se e como a humanidade será capaz de demonstrar um grau de autocontrole compatível com a necessidade de uma transição àquilo que os atores mais influentes preferiram denominar desenvolvimento sustentável em vez de ecodesenvolvimento Não faz sentido portanto aguardar que os cientistas naturais se entendam sobre a datação da passagem do Holoceno para o Antropoceno ou pior esperar que o conjunto da sociedade comece a entender o tamanho dessa encrenca para só então procurar as possíveis veredas de transição ao desenvolvimento sustentável Esse é precisamente o objeto dos pesquisadores das humanidades principalmente dos cientistas políticos que estudam as relações internacionais os internacionalistas que se juntaram em 2009 no âmbito de um vasto projeto sobre a governança do sistema Terra Em síntese feita sobre os primeiros cinco anos das investigações tocadas por essa rede seu principal idealizador fundador e coordenador o internacionalista Frank Biermann professor das universidades de Lund na Suécia e de Amsterdã defende a tese de que só se enfrentará esse grande desafio que é tornar sustentável a continuidade do progresso humano se surgirem novas formas de multilateralismo Em termos lógicoformais multilateralismo poderia ser qualquer entendimento entre três ou mais nações Todavia para esses casos passouse a usar o termo plurilateralismo pois desde a vitória contra os nazistas as relações internacionais passaram a ter fóruns que permitem a cooperação entre muitos Estados Principalmente na ONU é claro mas também o trio formado pelas organizações criadas em 1944 pelos acordos de Bretton Woods o Fundo Monetário Internacional FMI a atual Organização Mundial do Comércio OMC e o Banco Mundial BIRD Quando Biermann enfatiza a necessidade de novas formas de multilateralismo ele está rejeitando posicionamentos para os quais uma transição ao desenvolvimento sustentável exigiria ao contrário soluções bem alternativas Por exemplo uma subversão das Nações Unidas por um amplo movimento de baixo para cima a ser liderado por organizações transnacionais e multissetoriais da sociedade civil que incluem as crescentes iniciativas das cidades de empresários de sindicalistas e principalmente do já imenso terceiro setor No extremo oposto a concentração de esforços na direção de uma espécie de minilateralismo incremental que privilegiaria negociações entre poucos Estados nacionais com interesses comuns Ou ainda as propostas de iniciativas unilaterais de geoengenharia Isto é soluções tecnológicas mirabolantes que poderiam ser adotadas sem a necessidade de algum tipo de acordo internacional fosse ele bi pluri ou multilateral Biermann rema sistematicamente contra essas marés antimultilateralistas fazendo detalhadas descrições das atuais instituições e organizações internacionais sempre seguidas de proposições de reformas voltadas a fazer emergir uma efetiva governança dos maiores riscos e incertezas ambientais decorrentes das atividades humanas contemporâneas Entre as providências consideradas fundamentais uma parte não exigiria que a carta das Nações Unidas viesse a ser emendada Assim como sua Assembleia Geral pode criar um Conselho de Desenvolvimento Sustentável também poderia constituir outro conselho específico para as áreas além das jurisdições nacionais cuja missão seria cuidar dos dois terços dos oceanos que são de todos mas de ninguém assim como da Antártida Também dispensaria mudanças constitucionais a desejável criação de mecanismos capazes de permitir que as or 32 Para entender o desenvolvimento sustentável A mais generosa visão do futuro Seis das nove fronteiras planetárias mapeadas pelo SRC com certeza afetam negativamente a mudança climática mas é questionável que possam ser individualmente monitoradas como outras fronteiras planetárias desmatamento emprego de nitrogênio e de fósforo erosão da biodiversidade consumo de água doce acumulação de aerossóis na atmosfera e poluições químicas É altamente duvidoso que se possa chegar a cálculos mesmo que aproximados sobre o ritmo em que ocorreu está ocorrendo e poderá ocorrer a perda de biodiversidade o que torna inteiramente arbitrário o estabelecimento de porcentagens máximas globais para as reduções genética e funcional Além disso a relação custobenefício de muitas alterações ecossistêmicas só pode ser avaliada em circunstâncias bem concretas locais e regionais O exemplo mais gritante talvez seja o do emprego de nitrogênio na fertilização das lavouras Seu uso excessivo nos sistemas agropecuários de ponta está literalmente causando o óbito de amplas zonas oceânicas só que muito bem localizadas Simultaneamente é sua falta que causa a baixa produtividade de muitos dos sistemas agrícolas que continuam a ser praticados em amplas áreas rurais periféricas Claro nada disso pode servir de pretexto para eventual desqualificação do empenho do SRC na busca dos critérios que melhor permitam avaliar quais seriam as efetivas limitações biogeoquímicas planetárias à expansão das atividades humanas Todavia só duas das fronteiras propostas parecem ter suficiente consistência para que já desfrutem de largo consenso na comunidade científica mudança climática e a consequente acidificação dos oceanos Ao menos é o que indica a ampla revisão de tamanha controvérsia liderada por Ted Nordhaus e lançada em junho de 2012 pelo Breakthrough Institute 30 Para entender o desenvolvimento sustentável 16 BEMVINDO AO ANTROPOCENO De qualquer forma é dificílimo se não impossível encontrar algum cientista que discorde da tese segundo a qual o relacionamento da humanidade com o restante da natureza é um processo coevolucionário de escala planetária E também há amplo consenso no meio científico sobre a gravidade das atuais incertezas causadas pela força relativa que alcançaram as atividades humanas nos últimos tempos Após uma dúzia de milênios de extraordinária estabilidade ecossistêmica que tanto favoreceu o desenvolvimento humano acumulamse inúmeros indícios sobre o encerramento desse período de bonança Desde que a humanidade passou a acelerar a destruição de solos a extinção de espécies vegetais e animais a contaminação dos corpos de água a disseminação de lixo por todos os quadrantes a acidificação dos oceanos e outras consequências da excessiva carbonização da atmosfera etc impôsse a suspeita de que essa espécie esteja solapando as próprias bases biogeoquímicas de sua incomparável ascensão Não é por outro motivo que os estudiosos das geociências decidiram debater em seus fóruns internacionais qual deve ter sido o momento histórico da passagem do Holoceno para o Antropoceno Uma indagação que havia sido lançada em 2002 pelo Nobel de Química Paul Crutzen mas que somente cerca de dez anos depois se tornou explícita e oficialmente assumida pelas mais legítimas instâncias da comunidade científica Por mais importante que seja estabelecer se esse marco inaugural do Antropoceno correspondeu a alguma das etapas da expansão agrícola a alguma conjuntura específica da história dos combustíveis fósseis à síntese da amônia à Segun 31 A mais generosa visão do futuro Para entender o desenvolvimento sustentável verno administração ou gerenciamento Além disso o uso correto do termo global envolve grande variedade de agentesatores e de níveisescala Por isso a governança global precisa ser encarada como um fenômeno múltiplo tanto em termos sociológicos e políticos quanto em termos de hierarquias territoriais Pois bem experimentalistas seriam processos que se destacam por uma tripla originalidade participação aberta de um amplo leque de entidades públicas ou privadas ausência de hierarquia formal no interior dos arranjos e intensa concertação nos processos decisórios e executivos Enquanto nos padrões mais tradicionais regras precisas obrigatórias e definitivas são sempre fixadas pois correspondem a pretensas certezas no experimentalista prevalecem normas e metas provisórias sujeitas a procedimentos de revisão periódica baseada em avaliação por pares refletindo a consciência dos limites passageiros ou duradouros das previsões Com isso por enquanto somente três casos de experimentalismo podem ser apontados o controle das substâncias prejudiciais à camada de ozônio pelo Protocolo de Montreal a proteção interamericana de golfinhos ameaçados pela pesca do atum e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Também há estudiosos das relações internacionais que preferem enfatizar que o momento é de grande bloqueio ou impasse devido a um problema bem mais profundo cujo caráter é históricoconjuntural o imenso congestionamento gridlock advindo do próprio sucesso da cooperação multilateral ao longo da segunda metade do século XX Para esse grupo não adiantaria tentar entender o atual déficit de cooperação em áreas estratégicas como a da não proliferação de armas nucleares a climática a comercial ou a financeira sem ter em conta a dinâmica comum que sustenta tais entraves Essa tendência mais ampla e profunda também não poderia ser explicada por uma única causa seja a ascensão dos países emergentes ou a sobreposição de arranjos internacionais Muito menos poderia ser atribuída à forte persistência do soberanismo nacional pois ele não impediu o avanço da cooperação durante o período da grande aceleração que ocorreu entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a década de 1970 e que também foi chamado de era de ouro do capitalismo ou de os trinta anos gloriosos Em vez disso agora essa cooperação se revela dificílima justamente quando mais necessária Pesquisas realizadas com a ajuda da Teoria dos Jogos confirmam essa possibilidade de amplo impasse dos processos de governança pois o resultado mais comum em todas as simulações é o caráter inevitavelmente cíclico da dinâmica da cooperação Por isso o maior desafio atual é identificar os processos que serão mais decisivos para o arranque da próxima fase ascendente do ciclo entre os quais certamente se destacam os que têm sido chamados de experimentalistas 18 E A SUSTENTABILIDADE É bem provável que o leitor nem tenha percebido mas até aqui o substantivo sustentabilidade foi sistematicamente evitado a não ser em uma única passagem em que se tornou obrigatório informar o enunciado do sétimo ODM garantir a sustentabilidade ambiental E logo em seguida foi considerada problemática essa maneira de tratar a questão pois na noção de desenvolvimento sustentável o qualificativo se refere ao próprio desenvolvimento o que não ocorre quando se diz que o desenvolvimento tem oito objetivos essenciais um dos quais seria a garantia de um meio ambiente sustentável Se até aqui o substantivo sustentabilidade foi sempre que possível evitado isso se deve ao fato de ser bem discutível se ele poderia ser considerado sinônimo de desenvolvimento sustentável como muitos acreditam Da mesma forma que o sétimo ODM evoca sustentabilidade ambiental também é muito comum que se fale de sustentabilidade agrícola corporativa cultural da construção civil da moda da pecuária empresarial financeira geográfica habitacional hospitalar humana industrial organizacional política tecnológica territorial urbana e assim por diante E quando se usa sustentabilidade sem nenhum acréscimo isso não quer dizer de modo algum que haja alguma referência implícita ao desenvolvimento Ao contrário é frequente que sustentabilidade sem acréscimos seja justamente a fórmula preferida pelos que acham imprescindível combater o ideal do desenvolvimento sustentável Esse é aliás um imbróglio muito sério na área pedagógica na qual os pioneiros da educação ambiental abominam o programa da ONU via UNESCO que promove a educação para o desenvolvimento sustentável Por isso tendem a preferir a expressão educação para a sustentabilidade como forma de manter forte oposição ao uso da noção desenvolvimento sustentável Há vários motivos então para que se tente esclarecer o sentido atual do substantivo sustentabilidade antes de se avançar nesta exposição sobre desenvolvimento sustentável Para começar é preciso reconhecer que o substantivo sustentabilidade passou a servir a gregos e troianos quando querem exprimir vagas ambições de continuidade durabilidade ou perenidade todas remetendo ao futuro Com isso aumentou muito a queixa dos que acham que essa noção já deveria ter alguma definição precisa No entanto também é necessário perguntar a quem assim pensa se existe definição precisa de justiça por exemplo É uma noção incomparavelmente mais antiga e nem por isso menos controversa Mesmo que não seja difícil concordar sobre o que é injusto é exatamente o inverso que ocorre quando se tenta definir o que é justiça Nem todas as ideias são desse tipo No caso dos algarismos não pode haver divergência sobre o sentido dos números 1 2 ou 3 por mais que se erre na tabuada Ou a força de atração mútua que os corpos materiais exercem uns sobre os outros chamada de gravidade Por mais que haja diferenças nas formas de descrevêla ou mesmo de explicála ou teorizála não há divergência alguma sobre o significado do vocábulo O fato é que por um lado o próprio termo conceito foi demasiadamente diluído pela banalização de seu uso Muitos usam esse termo como se fosse sinônimo de ideia Por outro noções importantíssimas jamais poderão ter definições suficientemente claras para que seu sentido venha a ser aceito por largo consenso Tomese por exemplo a noção de felicidade Pode ser unânime o entendimento dos motivos que fazem infeliz quem é deixado por um ente querido ou quem é atirado no desemprego Mas nada disso permite que exista o menor acordo quando se tenta definir felicidade É esse tipo de contraste que impossibilita o surgimento de definições precisas para grande parte das ideias particularmente quando elas exprimem valores exatamente o que ignoram as queixas de que falta uma definição de sustentabilidade Não se leva em conta que se trata de um novo valor que só começou a se firmar meio século depois da adoção pela ONU da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 sem ter merecido algum destaque ou ênfase na Declaração e Programa de Ação da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena em junho de 1993 Sustentabilidade é o único valor a dar atenção às futuras gerações Isto é a evocar a responsabilidade contemporânea pelas oportunidades leque de escolhas e direitos que nossos trinetos e seus descendentes terão alguma chance de usufruir Não há portanto resposta simples direta e muito menos definitiva para a indagação o que é sustentabilidade Por isso mesmo exige muito cuidado com vulgares abusos que estão sendo cometidos no emprego dessa expressão Também não há como interditar sua apropriação em outros contextos e muito menos proibir o emprego metafórico que já se consolidou dizer que o comportamento de uma empresa de uma família ou mesmo de um indivíduo segue código ético de responsabilidade socioambiental Ou que tal código foi observado na produção e comercialização de alguma mercadoria ou serviço Nada garante que tais comportamentos ou processos sejam realmente sustentáveis mas essa foi a formulação socialmente selecionada para se comunicar que está sendo feito algum esforço nessa direção Igualmente fundamental é admitir que a durabilidade das organizações e particularmente das empresas não é uma exigência da sustentabilidade Ao contrário da crença que se generaliza pode ocorrer exatamente o inverso Nada impede que sustentabilidade sistêmica da sociedade frequentemente exija renovadores choques de destruição criativa Como nos ecossistemas o que está em risco é a resiliência do conjunto não a durabilidade específica de seus indivíduos famílias grupos ou mesmo espécies 19 HÁ ATÉ QUEM SEJA CONTRA Evidentemente também há quem veja no processo de legitimação do substantivo sustentabilidade a perversão de um conceito ou até mesmo desvio e ocultamento por quem tenta seguir desconhecendo as leis de limite da natureza Foi o que disse em 2010 o economista mexicano Enrique Leff que prefere se definir como sociólogo ambiental e ambientalista O problema é que está ocorrendo exatamente o inverso o processo necessariamente contraditório da emergência de um novo valor cujo sentido essencial é de responsabilidade por oportunidades e limites que condicionarão as vidas das próximas gerações da espécie humana Outro que se manifesta de forma cáustica contra a ideia de sustentabilidade é o eminente físico quântico de Oxford David Deutsch autor do ótimo livro The Beginning of Infinity 2011 No capítulo em que a ataca ele deu um depoimento muito significativo sobre certo catastrofismo que vicejava principalmente nos Estados Unidos pouco antes da emergência da noção de desenvolvimento sustentável Diz ter tido uma experiência traumática em 1971 no colegial ao assistir a uma conferência de Paul Ehrlich intitulada População recursos e ambiente Acha que provavelmente deve ter sido essa a primeira vez que ouviu o termo meio ambiente environment e que com certeza nada o havia preparado para tão brutal demonstração de pessimismo nothing had prepared me for such a bravura display of raw pessimism Segundo Deutsch Ehrlich enfatizou nessa palestra que meia dúzia de catástrofes já podiam ser facilmente previstas que algumas não poderiam ser contornadas por já ser tarde demais e que todas estavam intimamente ligadas à superpopulação O livro também relata em detalhes suas discussões com um colega de universidade que se inscrevera no então novo curso de graduação em ciência ambiental Para esse amigo o surgimento da televisão colorida era não apenas um sinal do colapso iminente da sociedade de consumo mas um exemplo de um fenômeno muito mais amplo que estaria ocorrendo em muitas outras áreas tecnológicas os limites finais estavam sendo tocados Tudo o que parecia progresso era para esse seu companheiro uma corrida insana pela exploração dos últimos recursos que haviam sobrado no planeta Ele manifestava a certeza de que os anos 1970 seriam um momento terrível e único da história humana Quarenta anos depois o premiado físico usou essas recordações para contrastar as duas únicas concepções do mundo que lhe parecem possíveis A otimista que se comprovou correta diz que os humanos são solucionadores de problemas A pessimista ao contrário afirma que essa capacidade de resolver um problema criando o próximo é na verdade uma doença para a qual a sustentabilidade seria a cura Chega a ser irônico que Deutsch mostre ignorar por exemplo que a principal revista dedicada à temática da sustentabilidade tem por título justamente Solutions e que seus principais editores são chamados de solutionaries A origem de tamanha barbeiragem parece estar em sua estranha convicção semântica de que o verbo sustentar só teria dois significados quase opostos garantir o que se necessita e evitar ou impedir que as coisas mudem to provide someone with what they need and to prevent things from changing Outros intelectuais que também se revoltam contra a legitimação desse novo valor que é a sustentabilidade como Leff e Deutsch têm defendido a proposta de trocar essa noção pela de resiliência Resiliência sim é um conceito Por séculos ficou confinado às engenharias principalmente naval mas há quarenta anos foi simultaneamente adotado por ecólogos 1973 e psicólogos 1974 para designar a capacidade de recuperação sistêmica póschoques ou capacidade de absorção de choques e subsequente reorganização para funcionar como antes Hoje quem explica essa noção da forma a mais amigável são os psicólogos Dar a volta por cima é como interpreta a jornalista Chris Bueno Pessoas resilientes são as que enfrentam as adversidades conseguindo delas se beneficiar para aprender e amadurecer emocionalmente Pessoas que mostram a habilidade de superar crises traumas ou perdas tornandoos oportunidades positivas de transformação Nada a ver portanto com resistência pois resistente é quem segura as pontas em situações de pressão em vez de mostrar flexibilidade para se adaptar e criatividade para tocar adiante Já para os ecólogos resiliência é a capacidade de um sistema absorver perturbação e reorganizarse mantendo essencialmente a mesma função a estrutura e os feedbacks de modo a conservar sua identidade Mas eles também consideram razoável a definição menos formal sobre a capacidade de lidar com choques para manter o funcionamento sem grandes alterações Talvez até se possa acrescentar a velha metáfora didática da fábula O carvalho e o junco em que La Fontaine elogia a superioridade do flexível junco ao comparálo ao rígido carvalho 110 DOIS SÉRIOS EQUÍVOCOS Outro físico o holandês Roland Kupers diz que sempre preferiu a ideia de resiliência por lhe parecer bem mais adequada ao aprofundamento do conhecimento analítico sobre sistemas complexos por mais que admita ser superior o apelo intuitivo e emocional da ideia de sustentabilidade É muito importante lembrar contudo que o que está em jogo nessa perspectiva é a reorganização póschoque dos sistemas socioecológicos definidos como sistemas com plexos e integrados nos quais os humanos são parte da natureza Já a sustentabilidade é definida por ecólogos como a capacidade de criar testar e manter capacitação adaptativa E eles definem o desenvolvimento sustentável como a combinação da sustentabilidade com a geração de oportunidades Também propõem uma mudança de foco de sustentabilidade para resiliência as professoras Melinda Harm Benson Geografia Novo México e Robin K Craig Direito Utah Para elas a invocação contínua da sustentabilidade nas discussões de políticas ignora as realidades emergentes do Antropoceno caracterizado pela extrema complexidade incerteza e mudança radical sem precedentes Em um mundo assim seria impossível até mesmo definir e muito menos perseguir a sustentabilidade Não porque seja má ideia dizem elas mas porque é duvidoso que essa ideia ainda seja útil à governança ambiental Nesse caso parecem ocorrer dois equívocos um epistêmico e outro de avaliação do processo histórico que legitimou a sustentabilidade como um novo valor Em primeiro lugar tende a ser consensual na comunidade científica que a resiliência é um dos principais vetores da sustentabilidade Isto é um dos meios de atingir tal fim Mais grave porém talvez seja o segundo erro que é de avaliação Desde os anos 1980 tanto o projeto de um desenvolvimento sustentável quanto o valor sustentabilidade não cessaram de ganhar força social como bem demonstra aliás a participativa formulação dos já mencionados ODS Além disso o maior problema é que todas as abordagens da resiliência voltamse sistematicamente para as reações a choques enquanto a sustentabilidade é algo muito mais amplo e abrangente pois envolve fenômenos erosivos ou cumulativos como são os casos da perda de biodiversidade ou da overdose de gases de efeito estufa na atmosfera Ambos certamente aumentam a frequência de eventos extremos mas a sustentabilidade não se limita a reações a choques deles decorrentes Mais estranha ainda é a completa ausência nisso tudo da questão central que desde finais do século passado vem consolidando a sustentabilidade como um novo valor Vale repetir que foi somente quando a comunidade internacional começou a se responsabilizar pelas possíveis consequências de seus comportamentos atuais para as condições de vida de gerações futuras que a ambição pelo desenvolvimento ou prosperidade ou progresso passou a exigir a qualificação que lhe dá o adjetivo sustentável Então não há a mínima chance de que a noção de sustentabilidade venha a ser preterida em favor do conceito de resiliência E tal inviabilidade não se deve a um suposto apelo intuitivo e emocional da ideia de sustentabilidade que segundo Kupers impediria sua superação por um conceito mais técnico ou mais preciso como é o de resiliência O fato é que resiliência é uma noção restrita cujo alcance lógico e cognitivo é muito parcial se comparado ao de sustentabilidade De resto chega a ser assustadoramente ingênuo o reducionismo que pretende abordar a questão pelo seu lado semântico Mesmo que sustentabilidade refletisse uma visão de mundo pessimista o que é simplesmente falso ou que o termo resiliência pudesse ser mais adequado para o Antropoceno em desacordo com o consenso científico é incrível que se possa ignorar ou desprezar a relevância política do processo de superação cognitiva do catastrofismo dos pioneiros muito bem representados por Ehrlich 111 EM SUMA O uso do termo sustentável para qualificar o desenvolvimento sempre exprimíu a possibilidade e a esperança de que a humanidade poderá sim se relacionar com a biosfera de modo a evitar os colapsos profetizados nos anos 1970 Sustentabilidade é portanto uma noção incompatível com a ideia de que o desastre só estaria sendo adiado ou com qualquer tipo de dúvida sobre a real possibilidade do progresso da humanidade Em seu âmago está uma visão de mundo dinâmica na qual transformação e adaptação são inevitáveis mas dependem de elevada consciência sóbria prudência e muita responsabilidade diante dos riscos e principalmente das incertezas O desenvolvimento sustentável deve ser entendido portanto como um dos mais generosos ideais Comparável talvez ao bem mais antigo de justiça social ambos exprimem desejos coletivos enunciados pela humanidade ao lado da paz da democracia da liberdade e da igualdade 2 PARA ENTENDER O DESENVOLVIMENTO Muitos pensam que o ideal do desenvolvimento seja hoje unanimidade ao menos entre pessoas educadas ou instruídas no mundo dito ocidental pois é claro que muitas são as culturas e sociedades com outras visões de mundo Embora raramente sejam lembrados existem muitos grupos humanos que nem sequer almejam a intensificação das trocas e da produção simples de mercadorias que alavancaram a emergência de mercados Deve ser praticamente impossível explicar para a maioria dos povos com os quais se preocupam organizações como a Survival Internacional ou no Brasil o Instituto Socioambiental o que as culturas ditas ocidentais entendem por desenvolvimento Além disso foi tão forte na segunda metade do século XX a identificação do desenvolvimento ao crescimento que mesmo alguns dos melhores intelectuais do hemisfério norte se sentiram obrigados a propor um drástico banimento do próprio ideal de desenvolvimento pois ele seria um mito que inevitavelmente se reduz ao crescimento econômico Por isso antes de apresentar argumentação que permita entender esse ideal parece ser útil explicar essa sua atual antítese Por terem testemunhado muitos dos estragos que a visão dominante sobre o desenvolvimento acabou causando em sociedades mais tradicionais vários estudiosos chegaram à conclusão de que o melhor seria rejeitar a própria noção de