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ESTUDOS DIRIGIDOS 2 Artigo do estudo 5 até a pag 22 Artigo do estudo 6 23 a 46 Artigo do estudo 7 47 a 71 Artigo do estudo 8 72 ate o fim cadernos pagu 27 julhodezembro de 2006 pp1334 Qual foi o impacto do feminismo na ciência Evelyn Fox Keller Resumo Neste artigo quero fazer a afirmação provocadora de que há algumas maneiras em que mudamos a ciência mesmo que uma vez mais não exatamente da maneira ampla que algumas de nós imagináramos Para fundamentar essa afirmação arrolarei algumas mudanças todas elas na biologia e todas em óbvia simpatia com os objetivos feministas mudanças que tiveram lugar tanto com o maior acesso das mulheres à ciência quanto com o surgimento da crítica feminista da ciência Palavraschave Gênero Ciência Crítica Feminista da Ciência Baseado em palestras feitas em Valencia em junho de 2003 em Bangalore em 19 de fevereiro de 2004 e referindo extensamente dois ensaios publicados anteriormente Keller 1996 2001 Este artigo se baseia somente nos casos da América do Norte e da Europa Ocidental Publicação original What impact if any has feminism had on science Journal of Biosciences vol 29 nº 1 March 2004 pp713 Tradução Maria Luiza Lara Revisão Valter Arcanjo da Ponte e Kikyo Yamamoto O Comitê Editorial dos cadernos pagu agradece as autorizações da autora e do editor do Journal of Biosciences para traduzir este artigo Departamento de História e Filosofia da Ciência Massachussets Institute of Technology efkellermitedu Qual foi o impacto do feminismo na ciência 14 What Impact if Any Has Feminism Had on Science Abstract In this article I want to make the provocative claim that there are some ways in which we did change science even if once again not quite in the sweeping ways some of us had envisioned To support this claim I will list a number of shifts all of them in biology and all of them in obvious sympathy with feminist goals that took place roughly contemporaneous both with the influx of women in science and the emergence of a feminist critique of science Key Words Gender Science Feminist Critique of Science Evelyn Fox Keller 15 O movimento das mulheres das décadas de 1970 e 80 ou como é muitas vezes referido o feminismo da segunda onda1 foi antes e acima de tudo um movimento político Tinha como objetivo mudar as condições das mulheres reconhecendo que para isso precisaria mudar o mundo A partir do projeto abertamente político logo surgiu um projeto intelectual acadêmico mesmo a teoria feminista A teoria feminista foi em geral entendida pelo menos por suas primeiras autoras como em si mesma uma forma de política isto é como política por outros meios Pretendia facilitar a mudança no mundo da vida cotidiana analisando e expondo o papel que as ideologias de gênero desempenham e têm desempenhado no esquema abstrato subjacente a nossos modos de organização Isso significava reexaminar nossas suposições básicas em todos os campos tradicionais do trabalho acadêmico história literatura ciência política antropologia sociologia etc Como cientista decidi estender os tipos de análises que as feministas empregavam nas humanidades e nas ciências sociais às ciências naturais Em particular procurei compreender a gênese da divisão sexual e emocional do trabalho tão conspicuamente dominante em minha própria geração que rotulava mente razão e objetividade como masculinas e coração e corpo sentimento e subjetividade como femininos e que portanto estão subjacentes à exclusão das mulheres do empreendimento científico Minha esperança era que identificar tais traços de ideologia machista nas ciências naturais levaria a seu expurgo pois era justamente aqui que isso não deveria ser tolerado Foi uma época interessante e como muitas de minhas colegas na teoria feminista tinha um objetivo ambicioso grandioso até talvez menos ambicioso do que tentar mudar o mundo tentava só mudar a ciência Explico minha meta não era tornar a ciência mais subjetiva ou mais feminina mas ao contrário fazêla mais verdadeiramente 1 Segunda onda para distinguílo do movimento feminista anterior nos EUA e no Reino Unido Qual foi o impacto do feminismo na ciência 16 objetiva e necessariamente independente do gênero Numa palavra procurava uma ciência melhor Uma ciência melhor argumentava seria inevitavelmente uma ciência mais abrangente mais acessível às mulheres Rapidamente este projeto que denominei gênero e ciência foi assumido por muitas outras algumas com objetivos semelhantes outras com objetivos diferentes Mas todas compartilhávamos o compromisso último de tornar essa realização inegavelmente humana mais humanizada e abrangente Agora um quarto de século depois parece apropriado perguntar o que de fato alcançamos Mudamos as condições das mulheres Mudamos o mundo Mudamos a ciência De muitas maneiras o movimento das mulheres das décadas de 1970 e 80 obviamente mudou o mundo Talvez não da maneira radical que algumas de nós imaginávamos mas certamente mudou a percepção das mulheres e do gênero em boa parte do mundo ocidental De fato mudou mais que a percepção mudou a condição de muitas mulheres nesta parte do mundo No que aqui nos interessa o feminismo contemporâneo mudou a posição das mulheres na ciência Ainda que não possamos afirmar igualdade plena pelo menos nos EUA testemunhamos uma impressionante transformação ao longo das últimas três décadas Enquanto que em 1970 apenas 8 dos doutorados outorgados nas ciências naturais iam para mulheres hoje essa cifra atinge 352 Ainda mais impressionante é o sucesso subseqüente dessas mulheres especialmente daquelas que obtiveram seus títulos nos últimos dez anos Por exemplo em 1970 era difícil encontrar mulheres como professoras titulares em qualquer das disciplinas científicas a maioria dos departamentos não tinha nenhuma Hoje em contraste entre os professores 2 Para um gráfico desses números no período ver httpwwwawisorgresource statisticsfigdoctoratesbywomenfield197099gif Evelyn Fox Keller 17 titulares nas ciências naturais que obtiveram seus títulos nos últimos dez anos as mulheres são impressionantes 463 Como essa mudança drástica aconteceu não é mistério em grande parte resultou de pressão política direta exercida por grupos de mulheres especialmente talvez por organizações de mulheres cientistas nas associações profissionais Essas estratégias foram eficazes é claro porque preenchiam uma necessidade mas acho que é justo dizer que essa mudança pelo menos foi resultado de ação política Minha pergunta aqui é podemos dizer mais Mudamos a ciência como eu esperava no começo Quero fazer a afirmação provocadora de que há algumas maneiras em que mudamos a ciência mesmo que uma vez mais não exatamente da maneira ampla que algumas de nós imagináramos Para fundamentar essa afirmação arrolarei algumas mudanças todas elas na biologia e todas em óbvia simpatia com os objetivos feministas mudanças que tiveram lugar tanto com o maior acesso das mulheres à ciência quanto com o surgimento da crítica feminista da ciência Essas mudanças todas elas envolvendo fenômenos referidos como efeitos maternos constituem o que considero o melhor argumento e quero perguntar como aconteceram O que tiveram a ver com a ação política com a ascensão das mulheres cientistas ou com os escritos das acadêmicas feministas 1 Efeitos maternos na fertilização Comecemos pelo exemplo mais simples e graças em boa parte ao trabalho de Martin 1991 e de Gilbert e seus estudantes Gender and Biology Study Group 1989 o exemplo que é provavelmente o mais conhecido o da fertilização até bem recentemente o espermatozóide era descrito como ativo vigoroso e autoimpelido o que lhe permitia atravessar a 3 No entanto apenas 168 daqueles que receberam seus títulos há mais de dez anos são mulheres Os números são de httpwwwawaisorgresource statisticshtml Qual foi o impacto do feminismo na ciência 18 capa do óvulo e penetrar o óvulo ao qual entregava seus genes e onde ativava o programa de desenvolvimento Por contraste o óvulo seria passivamente transportado ou varrido através da trompa de falópio até que assaltado penetrado e fertilizado pelo espermatozóide Martin 1991489490 O ponto a ressaltar não é que se trata de uma descrição sexista é claro que é mas que os detalhes técnicos que elaboram essa descrição foram pelo menos até os últimos anos impressionantemente consistentes o trabalho experimental forneceu descrições químicas e mecânicas da motilidade do espermatozóide de sua aderência à membrana do óvulo e de sua capacidade de efetuar a fusão das membranas A atividade do óvulo suposta não existente a priori não requeria qualquer mecanismo e tal mecanismo não foi encontrado Só recentemente esse quadro mudou e com essa mudança também mudou nosso entendimento técnico da dinâmica molecular da fertilização Numa marca inicial e autoconsciente dessa mudança dois pesquisadores no campo Gerald e Helen Schatten escreveram em 1983 A apresentação clássica dominante por séculos enfatizava o desempenho do espermatozóide e relegava o óvulo ao papel coadjuvante da Bela Adormecida O óvulo era central nesse drama mas era um personagem tão passivo quanto a princesa dos irmãos Grimm Agora tornase claro que o óvulo não é apenas uma grande esfera cheia de gema que o espermatozóide perfura para dotar de vida nova Pesquisas recentes sugerem a visão quase herética de que espermatozóide e óvulo são parceiros mutuamente ativos Schatten e Schatten 198329 De fato as mais recentes pesquisas sobre o tema enfatizam rotineiramente a atividade do óvulo na produção de proteínas ou moléculas necessárias à aderência e penetração Num número recente de Nature por exemplo podemos ler Evelyn Fox Keller 19 Num certo momento os óvulos eram vistos como a carga em um navio Hoje reconhecemos que cada óvulo influencia ativamente o desenvolvimento de seu próprio folículo distribui comandos que afetam o crescimento e diferenciação das células granulosas à sua volta enquanto recebe informação e nutrição delas Isso pode lançar uma luz nova sobre formas não explicadas de infertilidade e indicar novas estratégias para a contracepção Gosden 1996 Mesmo o amplamente utilizado manual The Molecular Biology of the Cell Biologia Molecular da Célula parece ter abraçado uma equidade pelo menos nominal sobre o assunto aqui fertilização é definida como o processo pelo qual óvulo e espermatozóide se encontram e fundem Alberts et alii 1990868 Essas referências igualitárias não são retóricas estão baseadas numa descrição que está agora firmemente apoiada por um rico acervo de mecanismos que os pesquisadores identificaram em anos recentes podese dizer que os pesquisadores os encontraram porque procuraram por eles 2 Mutações do efeito materno e biologia do desenvolvimento Esta estória requer uma breve introdução histórica há cem anos biólogos definiram a hereditariedade como subsumindo questões de transmissão e questões de desenvolvimento O problema central do que era então chamado de Embriologia como o ovo se desenvolve em organismo era também o problema central da biologia Mas com a ascensão da escola norteamericana de genética de Morgan na década de 1920 o que antes fora um único tema se dividiu em dois campos rivais genética e embriologia Ao longo da década de 30 as duas disciplinas seguiram cursos paralelos mas com o advento da II Guerra Mundial a embriologia começou um declínio de que custou a se recuperar Só nos últimos 25 anos o tema e sua questão retornaram ao primeiro plano Qual foi o impacto do feminismo na ciência 20 As relações entre as duas disciplinas no período anterior à guerra são bem captadas por um desenho do embriologista suíço Oscar Schotté apresentando duas visões da célula vista pelo geneticista a célula é quase toda núcleo mas vista pelo embriologista o núcleo é escassamente visível de Sander 1986 Nesse desenho núcleo e citoplasma são empregados como tropos das duas disciplinas cada uma empresta a seu objeto de estudo um tamanho diretamente proporcional à importância que lhe atribui Mas falar da rivalidade entre duas disciplinas aqui figuradas por dois domínios separados da célula sugere a possibilidade e a necessidade de coexistência Os geneticistas contudo tinham um programa de colonizar o citoplasma e com ele a disciplina embriologia Esse programa é captado num campo metafórico que em outro lugar descrevi como o Discurso da Ação do Gene Keller 19954 Com o Discurso da Ação do Gene eu procurava um modo de falar sobre o papel dos genes no desenvolvimento apresentado nas décadas de 20 e 30 pela primeira geração de geneticistas que atribuía ao gene uma espécie de onipotência não apenas primazia causal mas autonomia e talvez especialmente agência O desenvolvimento é controlado pela ação dos genes Tudo o mais na célula é mero excedente Como disse H J Muller em 1926 a grande massa do protoplasma era afinal apenas um subproduto da ação do material do gene sua função seu valor de sobrevivência está apenas na criação dos genes e os principais segredos comuns a toda vida vêm antes estão no próprio material do gene Muller 1929 4 A noção de ação do gene é hoje parte integrante de nossa linguagem e deve ser considerada uma metáfora morta e como muitas outras metáforas mortas conspícuas p ex os primeiros três minutos programa genético acumulando poder enquanto diminuem em vitalidade ou visibilidade Evelyn Fox Keller 21 O discurso da ação do gene em realidade evoca um retrato estilo Jano do gene em relação ao resto do organismo parte átomo do físico parte espírito platônico ao mesmo tempo matéria prima e força animadora Essa maneira de falar não só permitiu aos geneticistas avançarem com seu trabalho sem se preocuparem com o que não sabiam mas formulou suas perguntas e guiou suas escolhas tanto dos experimentos dignos de serem feitos quanto de organismos dignos de serem estudados Em nenhum lugar isso chama mais a atenção do que em sua reformulação dos problemas da embriologia Alfred H Sturtevant por exemplo foi explícito em 1932 escreveu Um dos problemas centrais da biologia é o da diferenciação como um zigoto se desenvolve num organismo complexo pluricelular Esse é é claro o principal problema tradicional da embriologia mas também aparece na genética na forma da pergunta como os genes produzem seus efeitos Sturtevant 1932304 Entre a atividade direta do gene e o produto final continua ele há uma reação em cadeia A tarefa do geneticista é analisar essas reações em cadeia em seus elos individuais Essa reformulação da questão da embriologia guiou a pesquisa na genética do desenvolvimento pelos 40 anos seguintes Estimulou a visão de que a pesquisa sobre a ação do gene era fundamental de que as cadeias de reação de desenvolvimento poderiam ser bem se não melhor estudadas em organismos unicelulares do que em organismos superiores e de que os efeitos citoplásmicos eram na melhor das hipóteses de interesse secundário nos termos de Morgan indiferentes O sucesso fenomenal desse programa de pesquisa primeiro na genética clássica e depois na molecular não precisa ser lembrado Mas ele também teve seus custos não só no longo eclipse da disciplina embriologia e seu problema original mas também de um gênero de experimentos e mesmo de organismos p ex o embrião da Drosophila Ao longo dos últimos 2530 anos esse problema Qual foi o impacto do feminismo na ciência 22 voltou a ganhar importância E seu retorno veio acompanhado de uma mudança de discurso À medida que aprendemos mais sobre como os genes realmente operam em organismos complexos o lugar percebido de controle mudou dos próprios genes para a complexa dinâmica bioquímica interações proteínaproteína e proteínaácido nucléico de células em constante comunicação entre si Novas metáforas abundam Nijhout chegou a sugerir que seria melhor pensar os genes como provedores das necessidades materiais do desenvolvimento como fontes passivas de materiais das quais as células podem se abastecer Nijhout 1990441 A proposta de Nijhout ecoa em referências mais recentes ao DNA como dados ver p ex Thomas 2004 Não há dúvida que uma nova maneira de falar está no ar acompanhando o surgimento de uma nova biologia os biólogos moleculares parecem ter descoberto o organismo Como isso aconteceu É uma pergunta grande e há poucas dúvidas de que a introdução de novas tecnologias de clonagem e manipulação de genes foi imensamente significativa Mas isso não conta toda a estória Considerese por exemplo que o trabalho sobre efeitos maternos dos genes e da recuperação citoplásmica na Drosophila começou no início dos anos 70 sendo mais tarde levado a ponto notável por Christiane NüssleinVolhard e seus colegas Esse trabalho ao estabelecer o papel crítico desempenhado pela estrutura citoplásmica do óvulo antes da fertilização é amplamente considerado como central para o recente renascimento do Biologia do Desenvolvimento Mas não dependeu de novas técnicas Em verdade Ashburner diz que ele poderia ter sido realizado 40 anos antes se alguém tivesse tido a idéia Tudo o que ele requeria era alguma genética padrão um gene mutante e um microscópio de dissecação tudo disponível na década de 1930 Ashburner 19931501 Evelyn Fox Keller 23 Então por que não foi feito antes Ashburner diz que ninguém teve a idéia mas isso não é exato Ao contrário sugiro o que faltou foi motivação Esses experimentos são extremamente difíceis e demorados seria preciso ter confiança de que valiam o esforço Ou posto de outra maneira não havia campo em que a idéia pudesse ter deitado raízes Antes o discurso da ação do gene tinha estabelecido um mapa espacial que emprestara ao citoplasma invisibilidade efetiva e um mapa temporal que definia o movimento de fertilização como origem sem tempo significativo antes da fertilização Nesse esquema não havia tempo nem lugar para conceber a idéia do citoplasma do óvulo exercendo seus efeitos De fato o termo preferido para os efeitos maternos era efeitos de ação tardia Enquanto se acreditasse que a mensagem genética do zigoto produz o organismo que o citoplasma é um mero substrato passivo por que se dar tanto trabalho Na década de 1970 porém o discurso da ação do gene já começava a perder terreno Vários tipos de mudanças acima e além do óbvio progresso técnico da Biologia Molecular contribuíram para seu declínio mencionarei apenas três Já me referi à invocação de Oscar Schotté do núcleo e do citoplasma como tropos para as disciplinas genética e embriologia Em seu esboço cada disciplina empresta a seu objeto de estudo um tamanho que reflete não só a importância que lhe atribui mas também seus próprios atributos de agência autonomia e poder Além disso contudo o núcleo e o citoplasma também vieram a figurar como tropos de importância agência e poder nacionais sendo o primeiro o domínio em que a genética norteamericana colocava sua força associada aos interesses e habilidades norte americanos e o segundo o dos interesses e habilidades europeus especialmente alemães Os biólogos alemães explicitavam muitas vezes o que viam como tentativa dos geneticistas norte americanos de apropriarem o campo inteiro Em 1927 por exemplo Haecker 1927 descrevia o campo entre a genética e o desenvolvimento como terra de ninguém da somatogênese um campo limítrofe por nós ladrilhado durante algum tempo Qual foi o impacto do feminismo na ciência 24 Os americanos não tomaram conhecimento disso Essa tensão persistiu através do período entre as guerras e só foi resolvida com a derrota da Alemanha e a virtual destruição da biologia alemã na Segunda Guerra Mundial Mas a referência metafórica mais conspícua ao núcleo e ao citoplasma seguramente se acha na reprodução sexual Pela tradição e também pela experiência biológica pelo menos até a Segunda Guerra núcleo e citoplasma também eram tropos para macho e fêmea Até o surgimento da genética das bactérias em meados da década de 40 toda pesquisa em genética e embriologia tanto na Europa como nos EUA focava organismos que passam por estágios embrionários de desenvolvimento e nesses organismos uma assimetria persistente se evidencia nas contribuições masculina e feminina à fertilização o gameta fêmea o óvulo é muitíssimo maior que o gameta macho o espermatozóide A diferença é o citoplasma derivado da mãe uma terra de ninguém de fato por contraste o espermatozóide é quase puro núcleo Não é então surpreendente que no discurso convencional sobre núcleo e citoplasma o citoplasma seja tomado rotineiramente como sinônimo do óvulo Além disso e por uma conhecida distorção lógica o núcleo foi tomado como sinônimo do espermatozóide Boveri por exemplo argumentou a favor da necessidade de reconhecer pelo menos alguma função para o citoplasma com base no absurdo da idéia de que seria possível levar o espermatozóide a se desenvolver num meio de cultura artificial5 Muitos dos debates sobre a importância relativa do núcleo e do citoplasma na hereditariedade assim refletem inevitavelmente debates mais antigos sobre a importância ou atividade relativa das contribuições materna e paterna para a reprodução onde atividade e força motivadoras eram rotineiramente atribuídas à contribuição paterna relegandose a contribuição feminina ao papel de ambiente passivo e facilitador O óvulo é o corpo e o núcleo o espírito ativador 5 Boveri 1918466 publicação póstuma traduzida em Baltzer 19678384 Evelyn Fox Keller 25 3 Biologia evolutiva e ecologia O impacto dessas novas percepções do gênero nas ciências biológicas cresceu constantemente ao longo das duas últimas décadas e se estende para além dos estudos de fertilização per se e mesmo além dos problemas do desenvolvimento inicial Passou a afetar um conjunto de iniciativas de pesquisa em ecologia e em Biologia Evolutiva todas enriquecidas por uma nova apreciação de uma ampla gama de fenômenos agrupados sob a expressão efeitos maternos Efeitos maternos agora se referem a aquelas influências de longo prazo sobre a biologia da progênie e mesmo sobre a evolução da espécie resultando em algum aspecto do comportamento ou fisiologia maternos Por essa definição ampliada o papel do óvulo permitindo ou iniciando a fertilização pode ser descrito como um efeito materno como também pode ser descrito e o é o papel do citoplasma originário do óvulo no zigoto em desenvolvimento Para ilustrar a nova importância que os efeitos maternos assumiram na biologia evolutiva e na ecologia citarei dois relatos em páginas recentes de Nature e Science Numa resenha do recente livro de William Eberhard sobre seleção sexual T R Birkhead 1996 assim escreve sobre a mudança nas percepções do papel das fêmeas na biologia evolutiva As fêmeas sempre foram maltratadas na especulação evolutiva Quando Darwin propôs pela primeira vez o conceito de seleção sexual imaginava dois processos competição entre machos e escolha das fêmeas Era óbvio que os machos lutavam pelo acesso às fêmeas mas a escolha das fêmeas estava longe de ser certa e algumas pessoas duvidavam de que as fêmeas tivessem até mesmo a capacidade mental para fazer tais escolhas Levou mais de um século de pesquisa dedicada para mostrar que a escolha feminina é parte sutil mas importante da seleção sexual Qual foi o impacto do feminismo na ciência 26 Em 1970 biólogos perceberam que havia mais coisas na seleção sexual e que mesmo depois da cópula e da inseminação a competição entre os machos poderia continuar através do processo de competição do espermatozóide Dentro do trato reprodutivo feminino passivo os espermatozóides de machos diferentes lutam pela paternidade A maioria dos ecologistas comportamentais é sexista e levou mais de uma década antes que surgisse a idéia complementar de escolha críptica feminina isto é de que as fêmeas também poderiam ser capazes de influenciar a paternidade de sua progênie Mas mesmo esse ideal era prematuro para a época e em geral recebia escassa credibilidade Há poucos anos uma combinação de eventos mudou essa percepção Chamando nossa atenção para as muitas maneiras diferentes em que as fêmeas podem controlar potencialmente a paternidade o livro de Eberhard abre um campo de pesquisas inteiramente novo Nature 382 29896 Elizabeth Pennisi 1996 tinha isto a dizer sobre os novos desenvolvimentos na ecologia Os ecologistas experimentais têm sido enganados por muito tempo por um fenômeno que tem sido observado muitas vezes mas até recentemente raramente considerado com seriedade um assim chamado efeito materno que ocorre quando alguma coisa no ambiente da mãe altera a maneira como sua progênie parece age e funciona Efeitos maternos estão provando que são muito mais que obstáculos que ocasionalmente frustram experimentos Efeitos maternos podem aumentar as chances de sobrevivência da progênie alterar as razões de sexo e produzir flutuações no tamanho da população Os pesquisadores têm sabido dos efeitos maternos por décadas mas em sua maior parte esses primeiros pesquisadores consideravam esses efeitos como ruído aleatório que tendia a obscurecer a variação genética em Evelyn Fox Keller 27 que estávamos interessados diz Mousseau Assim criadores de animais e biólogos evolucionistas criavam primeiro diversas gerações do organismo que desejavam estudar de maneira a eliminar esse ruído Science 273 691996 E em outra reiteração do tema Mousseau e Fox escrevem dois anos depois Recentemente a significação adaptativa dos efeitos maternos tem sido cada vez mais reconhecida Esses efeitos não são mais relegados como simples incômodas fontes de semelhança ambiental que prejudicam nossa capacidade de estimar de maneira acurada a base genética de traços de interesse Ao contrário tornouse evidente que muitos efeitos maternos foram conformados pela ação da seleção natural para atuarem como mecanismo de resposta fenotípica adaptativa à heterogeneidade do ambiente Mousseau e Fox 19984036 4 Discussão Estamos claramente num momento excitante na biologia Mas eis a questão como aconteceram essas mudanças que afetam a agenda substantiva de pesquisa Não gostaria de defender uma explicação de fator único pex a Biologia do Desenvolvimento mas dada a consonância entre esses desenvolvimentos e os objetivos feministas temos o direito de perguntar se o próprio feminismo teria desempenhado um papel E se isso for verdade que tipo de papel desempenhou o feminismo Ninguém argumentaria aqui pela ação política direta isto é não se formaram comissões para representar e defender tempo igual para o óvulo o citoplasma ou o ambiente materno 6 Citando Wade os autores observam que efeitos maternos podem também ter efeitos profundos na dinâmica evolutiva promovendo por exemplo processos exagerados e rápida especiação Wade 1998406 Qual foi o impacto do feminismo na ciência 28 inicial Contudo há dois outros tipos de argumento por um efeito mais ou menos direto do feminismo dos quais tratarei a seguir i As mudanças foram introduzidas pelas próprias cientistas Isto é a entrada de mulheres na ciência em grande número tornou possível que uma percepção feminina do mundo encontrasse lugar na ciência De fato algumas mulheres na biologia do desenvolvimento têm apresentado precisamente esse argumento mulheres como defensoras do óvulo como muitas primatologistas também fizeram A estória de NüssleinVolhard é instrutiva neste ponto exatamente por causa de sua forte ambivalência em relação ao feminismo às mulheres e ao gênero e penso pode ser utilizada para iluminar o papel que tudo isso teve na Biologia do Desenvolvimento Meu argumento básico é que quando a narrativa linear começando com a fertilização e terminando com a maturidade é perturbada como nesse momento foi a progressão linear pode ser substituída por uma circular em que nem a galinha nem o ovo podem mais ser priorizados E a despeito de sua ambivalência extensa e multifacetada Nüsslein Volhard estava colocada de tal maneira no tempo e no espaço tanto pessoal como cultural que foi capaz de desempenhar um papel significativo na produção da mudança NüssleinVolhard é conhecida por sua grande ambição sua agressividade e sua intolerância em relação a aqueles incapazes ou não desejosos de sobreviver ao fio do que ela vê como a boa ciência e por causa disso houve quem dissesse a despeito de seu hábito de servir chá e assar biscoitos natalinos ou de seu foco na importância de efeitos maternos no desenvolvimento que ela traiu uma visão feminista da ciência que ela pratica sua ciência exatamente como um homem Mas em última análise é preciso reconhecer que nenhuma dessas noções tem sentido fora de contexto Os significados particulares de gênero de feminismo e de ciência que são relevantes para NüssleinVolhard dependem das posições de sujeito particulares disponíveis para ela e essas são não só específicas de sua situação histórica e Evelyn Fox Keller 29 cultural mas são também múltiplas e contraditórias Ela se identifica simultaneamente como cientista e como mulher onde como sublinhou Hollway 1989 os significados de cada um desses termos são também múltiplos e variáveis As imagens evocadas pelo cientista oscilam entre imagens de um biólogo molecular ao estilo norteamericano um novo tipo de biólogo alemão moderno e um mais tradicional biólogo alemão do desenvolvimento enquanto que as imagens de mulher oscilam entre a cientista ao estilo norteamericano a precursora feminista adversária do feminismo alemão a mãe carinhosa a avó independente e a solitária vítima do sexismo alemão E a forma dessa oscilação suas freqüentes alternâncias entre as posições de sujeito depende como ficou muito claro em minhas entrevistas com ela do contexto particular das lutas ou relações de poder particulares em que ela está engajada Talvez a verdadeira moral da estória de NüssleinVolhard deva ser buscada em sua ambivalência mesma Ela não precisou ser uma defensora inequívoca nem do feminismo nem das mulheres para fazer uma intervenção de imenso valor para as mulheres na ciência assim como não precisou ser uma proponente explícita de um novo discurso para que o trabalho que realizou fosse fundamental para desalojar o discurso da ação do gene Também não precisou abraçar os interesses feministas para beneficiarse do que tais interesses poderiam nos levar a ver como vitórias O gênero faz diferença nessa estória não por causa de sua intenção mas por causa de sua situação como mulher num campo em que o gênero agora biológica social e culturalmente tem feito diferença por longo tempo tanto para seus praticantes quanto na cultura mais ampla Uma vez mais o gênero faz diferença para as mulheres na ciência não por causa do que trazem com seus corpos e às vezes nem mesmo pelo que podem trazer com sua socialização mas pelas percepções que as culturas da ciência trazem à comunidade tanto das mulheres quanto do gênero e por sua vez por causa do que tais Qual foi o impacto do feminismo na ciência 30 percepções trazem para os valores comuns de disciplinas científicas particulares Já se foram os dias em que se poderia esperar que as necessidades e objetivos das mulheres e das feministas se combinassem naturalmente por assim dizer ou mesmo em que se poderia falar das necessidades e objetivos tanto das mulheres quanto das feministas numa mesma frase A grande força da pesquisa feminista durante a última década foi o aprofundamento de sua compreensão do que posso chamar de situacionalidade do gênero Tornamonos cautelosas com frases que começam com as mulheres são percebendo que a única maneira de completar tal frase é dizer que as mulheres são pessoas definidas por muitas variáveis sociais e que se adaptam às pressões e oportunidades que encontram e têm recursos para isso Para as mulheres que trabalharam em Biologia do Desenvolvimento nas últimas décadas algumas dessas oportunidades surgiram do movimento social que chamamos de feminismo da segunda onda outras de diferentes mudanças políticas metodológicas ou conceituaislingüísticas que tiveram lugar ao mesmo tempo ii Outro argumento às vezes utilizado é que nós acadêmicas feministas que escrevemos sobre a ciência ajudamos a promover essas mudanças Gostaria de poder acreditar nisso Por que não Ao contrário sugeriria que essas mudanças foram uma conseqüência das oportunidades abertas pela mudança social que o feminismo da segunda onda produziu Afinal cientistas são humanos e em certo sentido caçadores Estão sempre por necessidade à procura de um novo ângulo alguma coisa que lhes forneça uma margem A mudança social que o feminismo produziu forneceu novos ângulos novas maneiras de ver o mundo de ver mesmo as coisas comuns abriu novos espaços cognitivos E os cientistas saltaram Você não precisava ser uma mulher para ver ou aproveitar essa oportunidade e você não precisava ler as acadêmicas feministas Tudo o que você tinha que fazer era ser membro de uma cultura diferente tudo o que você precisava fazer era assistir às novas mulheres fortes das Evelyn Fox Keller 31 sitcoms da TV na década de 80 Acredito que os dois argumentos se equivocam seriamente sobre a natureza da mudança social Por mais diferença que as acadêmicas feministas tenham feito e me incluo nesse rol por mais perceptivas que suas contribuições tenham sido quero argumentar que o verdadeiro agente da mudança se se quiser a verdadeira heroína das últimas três décadas foi o próprio movimento social De fato as acadêmicas feministas são elas mesmas agora e foram desde o começo produto desse movimento especialmente nos EUA A influência corre nos dois sentidos mas é um fato histórico digno de nota que pelo menos neste país o surgimento de acadêmicas feministas e mais especificamente do tema gênero e ciência foi em verdade precedido por um movimento político e social Certamente o movimento feminista começou com os esforços de poucos indivíduos e grupos mas rapidamente assumiu vida própria atraindo para seu centro ativo todo o maquinário cultural de uma geração isso foi o que fez dele um movimento social E acadêmicas feministas foram apenas alguns de seus subprodutos O redemoinho da segunda onda feminista fez surgir um movimento dos homens uma geração de pais carinhosos uma profusão de novas mulheres detetives tanto em romances como na televisão novas formas de falar nova legislação novos costumes sociais Numa palavra transformou o significado do gênero Um dos subprodutos mais notáveis dessa transformação especialmente no contexto de gênero e ciência foi a abertura da ciência da engenharia e da medicina para as mulheres e a dramática influência pelo menos das mulheres brancas nessas arenas Mas outro subproduto pode ser encontrado nos tipos de mudanças substantivas que venho referindo Foram as próprias mulheres que mudaram o fazer da ciência Por seu próprio exemplo trouxeram uma nova legitimação dos valores tradicionalmente femininos para a prática da ciência Assim colocado minha resposta seria provavelmente não Com poucas possíveis exceções não acredito que mulheres cientistas tenham procurado ou obtido sucesso na introdução de Qual foi o impacto do feminismo na ciência 32 valores femininos estereotipados no laboratório de fato a própria lógica parece ir contra tal possibilidade Como grupo mais recente a ser integrado as mulheres cientistas sofrem pressões específicas para abrir mão de quaisquer valores tradicionais que possam ter absorvido enquanto mulheres se não por outra razão simplesmente para provar sua legitimidade como cientistas Mas se reformulássemos a questão e perguntássemos se sua presença ajudou a restaurar a equidade no domínio simbólico em que o gênero operou por tanto tempo responderia com um inequívoco sim Especialmente diria que a presença corriqueira de mulheres em posições de liderança e autoridade na ciência ajudou a erodir o sentido de rótulos tradicionais de gênero no próprio campo em que trabalhavam e para todos os que estavam trabalhando nesse campo Como já disse é um momento tremendamente excitante na biologia Como na sociedade E pelo menos em parte devemos agradecer ao movimento das mulheres O feminismo da segunda onda foi um dos movimentos sociais mais fortes dos tempos modernos talvez especialmente nos EUA E as mudanças que ajudou a realizar foram enormes Mesmo assim gostaria de poder dizer mais Referências bibliográficas ALBERTS B BRAY D LEWIS J RAFF M ROBERTS K e WATSON JD Molecular biology of the cell New York Garland Press 1990 Tradução Biologia Molecular da Célula 4ª ed Porto Alegre Artes Médicas 2004 ASHBURNER M The development of Drosophila melanogaster New York Cold Spring Harbor Laboratory Press 1993 BALTZER F Theodor Boveri Berkeley University of California Press 1967 Trad Dorthea Rudnick BIRKHEAD T R In it for the eggs Science 273 1996 GENDER AND BIOLOGY STUDY GROUP The importance of feminist critique for contemporary cell biology Feminism and Science Nancy Evelyn Fox Keller 33 Tauna org Bloomington Indiana University Press 1987 pp172 187 GOSDEN R The Vocabulary of the Egg Nature 283 London 1996 pp485486 HAECKER V Phänogenetisch gerichtete Bestrebungen in Amerika Phenogenetic Directed Efforts in America Z Indukt Abst Vererb 41 1926 pp232238 HOLLWAY W Subjectivity and method in psychology Gender meaning and science London Sage Publications 1989 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pp403407 MULLER HJ The Gene as the Basis of Life International Congress of Plant Sciences Section of Genetics Symposium on The Gene Ithaca New York 19 August 1926 publicado in Proceedings of the International Congress of Plant Science I 1929 pp897921 Qual foi o impacto do feminismo na ciência 34 NIJHOUT HF Metaphors and the Role of Genes in Development Bioessays 12 1990 pp441446 PENNISI E A New Look at Maternal Guidance Science 273 1996 pp13341336 SANDER K The role of genes in ontogenesis In HERDER TJ WITKOWSKI JA e WYLIE CC orgs History of embryology Cambridge Cambridge University Press 1986 pp363395 SCHATTEN G and SCHATTEN H The Energetic Egg Science 23 1983 pp2834 STURTEVANT AH The Use of Mosaics in the Study of the Developmental Effects of Genes Proceedings of the Sixth International Congress of Genetics 1932 THOMAS P DNA as Data Harvard Magazine 2004 pp4548 TUANA N ed Feminism and science Bloomington Indiana University Press 1987 WADE M The evolutionary genetics of maternal effects In MOUSSEAU e FOX orgs Maternal effects as adaptations Oxford Oxford University Press 1998 pp307322 195 Tradução Artefatos têm política Langdon Winner WINNER Langdon Do Artifacts Have Politics In WINNER L The Whale and the Re actor A Search for Limits in an Age of High Technology Chicago The University of Chicago Press 1986 p 1939 Traduzido por Debora Pazetto Ferreira Luiz Henrique de Lacerda Abrahão Nas controvérsias sobre tecnologia e sociedade nenhuma ideia se mostra mais provocati va do que a noção de que coisas técnicas possuem qualidades políticas O que está em questão é a afirmação de que as máquinas as estruturas e os sistemas da cultura material moderna podem ser apreciados com precisão não apenas por suas contribuições em termos de eficiência e pro dutividade bem como seus efeitos ambientais secundários negativos ou positivos mas também pelas maneiras nas quais eles podem incorporar formas específicas de poder e autoridade Uma vez que ideias desse tipo assumem uma presença persistente e inquietante nas discussões sobre o significado da tecnologia elas merecem atenção explícita Escrevendo no início da década de sessenta Lewis Mumford elaborou a posição clássi ca para uma versão do tema argumentando que desde o período neolítico tardio no Oriente Próximo até os nossos dias duas tecnologias recorrentemente coexistiram uma autoritária a outra democrática sendo a primeira centrada no sistema imensamente poderosa mas ineren temente instável e a outra centrada no homem relativamente fraca mas dotada de recursos ANALYTICA Rio de Janeiro vol 21 nº 2 2017 p 195218 196 volume 21 número 2 2017 ARTEFATOS TÊM POLÍTICA e durável1 Essa tese encontrase no coração dos estudos de Mumford a respeito da cidade da arquitetura e da história das técnicas e espelha preocupações expressas anteriormente nos trabalhos de Peter Kropotkin Willian Morris e outros críticos da industrialização do século de zenove Durante a década de setenta movimentos a favor da energia solar e contra a energia nuclear na Europa e nos Estados Unidos adotaram uma noção similar como peça chave de sua argumentação De acordo com o ambientalista Denis Hayes O desenvolvimento crescente das instalações de energia nuclear certamente levará a sociedade na direção do autoritarismo Com efeito a confiança no poder nuclear como fonte principal de energia é possível apenas em um Estado totalitário Ecoando as concepções de muitos proponentes de tecnologias responsáveis e da energia não poluente Hayes alega que fontes solares dispersas são mais compatíveis com a equidade social a liberdade e o pluralismo cultural do que as tecnologias centralizadas2 A ânsia de interpretar artefatos técnicos nos termos da linguagem política não é de modo algum propriedade exclusiva de críticos dos sistemas de alta tecnologia de larga escala Uma longa linhagem de entusiastas tem insistido que o melhor que a ciência e a indústria dispo nibilizaram foram as máximas garantias de democracia liberdade e justiça social O sistema fabril os automóveis o telefone o rádio a televisão os programas espaciais e é claro a energia nuclear foram todos em um momento ou outro descritos como forças democratizantes e li bertadoras Por exemplo T V A Democracy on the March de David Lillienthal encontra essa promessa nos fertilizantes de fosfato e na eletricidade que o progresso técnico estava trazendo para os americanos da zona rural na década de 19403 Três décadas depois The Republic of Te chnology de Daniel Boorstin exaltou a televisão por seu poder de dispersar exércitos destituir presidentes criar um mundo democrático completamente novo democrático de maneiras nunca antes imaginadas nem mesmo na América4 Dificilmente surge uma nova invenção que não seja proclamada por alguém como a salvação de uma sociedade livre 1 Lewis Mumford Authoritarian and Democratic Technics Technology and Culture 5 18 1964 2 Denis Hayes Rays of Hope The Transition to a PostPetroleum World New York W W Norton 197771159 3 David Lillienthal T VA Democracy on the March New York Harper and Brothers 1944 7283 4 Daniel J Boorstin The Republic of Technology New York Harper and Row 1978 7 197 volume 21 número 2 2017 LANGDON WINNER Não causa surpresa saber que sistemas técnicos de vários tipos estejam profundamente interligados com as condições da política moderna Os arranjos físicos da produção industrial das questões militares das comunicações e coisas tais mudaram de modo fundamental o exer cício do poder e a experiência da cidadania Mas ir além desse fato óbvio e afirmar que certas tecnologias têm propriedades políticas nelas mesmas parece à primeira vista completamente equivocado Todos sabemos que pessoas têm política coisas não Detectar virtudes ou mal dades em agregados de metal plástico transistores circuitos integrados produtos químicos e similares parece simplesmente um erro um modo de mistificar os artifícios humanos e evitar as verdadeiras fontes as fontes humanas da liberdade e da opressão da justiça e da injustiça Culpar o hardware parece ainda mais tolo do que culpar as vítimas quando se trata de julgar condições da vida pública Portanto o austero aviso usualmente dado àqueles que flertam com a noção de que arte fatos técnicos têm qualidades políticas é o que importa não é a tecnologia em si mesma mas o sistema social ou econômico no qual ela se insere Esta máxima que em suas numerosas variações é a premissa central de uma teoria que pode ser chamada de a determinação social da tecnologia guarda uma sabedoria óbvia Ela serve como um corretor necessário àqueles que miram acriticamente em coisas como o computador e seu impacto social mas deixam de olhar para além dos instrumentos técnicos e perceber as circunstâncias sociais de seu desenvol vimento desdobramento e utilização Essa posição fornece um antídoto ao ingênuo determi nismo tecnológico a ideia de que a tecnologia se desenvolve como resultado exclusivo de uma dinâmica interna e então sem a mediação de quaisquer influências molda a sociedade para adequarse a seus padrões Aqueles que não reconheceram as maneiras pelas quais as tecnolo gias são moldadas por forças econômicas e sociais não foram muito longe Mas o corretivo tem suas próprias deficiências tomado de modo literal ele sugere que coisas técnicas não têm qualquer importância Uma vez que se tenha realizado o trabalho inves tigativo necessário para revelar as origens sociais os detentores do poder por trás de um exem plo particular de mudança tecnológica já se teria explicado tudo que importa Essa conclusão oferece certo conforto aos cientistas sociais Ela valida aquilo que eles sempre suspeitaram a saber que não há nada de distintivo a respeito do estudo da tecnologia Assim eles podem re tornar para os seus modelos padronizados do poder social aqueles da política de um grupo de interesse da política burocrática modelos marxistas de luta e classes e assim por diante e ter 198 volume 21 número 2 2017 tudo o que precisam Nessa perspectiva a determinação social da tecnologia é essencialmente igual à determinação social digamos da política de bemestar ou da tributação Há contudo boas razões para acreditar que a tecnologia é politicamente significante em si boas razões pelas quais os modelos padronizados das ciências sociais só alcançam certo ponto na consideração do que é mais interessante e problemático nesse assunto Muito do pen samento político e social moderno contém declarações recorrentes do que pode ser chamado de teoria da política tecnológica uma mistura estranha de noções frequentemente cruzadas com filosofias ortodoxas liberais conservadoras e socialistas5 A teoria da política tecnológica orienta sua atenção para o momentum de sistemas sociotécnicos de larga escala para a rea ção das sociedades modernas a certos imperativos tecnológicos e para os modos nos quais as finalidades humanas são poderosamente transformadas na medida em que são adaptadas aos meios técnicos Essa perspectiva oferece uma nova estrutura de interpretação e explicação para alguns dos mais enigmáticos padrões que se formaram em torno do desenvolvimento da cultu ra material moderna Seu ponto de partida é uma decisão de levar os artefatos técnicos a sério Em vez de que insistir que tudo é imediatamente reduzido ao jogo de forças sociais a teoria da política tecnológica sugere que prestemos atenção às características dos objetos técnicos e ao significado dessas características Como um complemento necessário e não uma substituição às teorias da determinação social da tecnologia essa abordagem identifica certas tecnologias como fenômenos políticos em si mesmos Ela nos remete para usar a prescrição filosófica de Edmund Husserl às coisas mesmas A seguir irei delinear e ilustrar dois modos nos quais os artefatos podm conter proprieda des políticas O primeiro referese a instâncias nas quais a invenção o design ou o arranjo de um dispositivo ou sistema técnico específico tornamse um modo de resolver um problema nas re lações de uma comunidade particular Vistos sob a luz correta exemplos desse tipo são bastante claros e facilmente compreensíveis O segundo referese a casos do que pode ser denominado de tecnologias inerentemente políticas sistemas produzidos por seres humanos que parecem de mandar ou ser fortemente compatíveis com tipos particulares de relações políticas Argumentos sobre casos desse tipo são muito mais problemáticos e próximos ao núcleo da questão Pelo ter 5 Langdon Winner Autonomous Technology TechnicsOutofControl as a Theme in Political Thought Cambridge MIT Press 1977 ARTEFATOS TÊM POLÍTICA 199 volume 21 número 2 2017 mo política entendo os arranjos de poder e autoridade nas associações humanas assim como as atividades que acontecem nesses arranjos Para os meus propósitos o termo tecnologia é en tendido aqui como significando todos os artifícios práticos modernos mas para evitar confusão prefiro usar tecnologias no plural para me referir a partes maiores ou menores ou sistemas de hardware de um tipo específico6 Minha intenção não é resolver os problemas colocados de uma vez por todas mas indicar suas dimensões gerais e sua significância Arranjos técnicos e ordem social Qualquer um que tenha viajado pelas rodovias da América e se acostumado com a altura normal dos viadutos pode notar algo um pouco estranho nas pontes sobre os estacionamentos de Long Island em Nova Iorque Muitos desses viadutos são espantosamente baixos com ape nas cerca de 25 metros de distância do meiofio Até mesmo aqueles que notaram essa peculia ridade estrutural não se inclinam a atribuir qualquer significado especial a ela Em nosso modo usual de perceber coisas como estradas e pontes vemos os detalhes das formas como inócuos e raramente pensamos nisso duas vezes Todavia aqueles aproximadamente duzentos viadutos baixos em Long Island estão lá por uma razão Eles foram deliberadamente projetados e construídos dessa maneira por alguém que queria atingir um efeito social em particular Robert Moses o empreiteiro das estradas par ques pontes e outras obras públicas de Nova Iorque entre as décadas de 1920 e 1970 construiu seus viadutos de acordo com especificações que deveriam desencorajar a presença de ônibus nas avenidas de parques Segundo evidências disponibilizadas pelo biógrafo de Moses Robert A Caro os motivos para isso refletem os preconceitos de classe social e racial de Moses Pro prietários de automóveis brancos de classe alta ou classe média burguesa como ele os cha mava estariam livres para usar as avenidas do parque para recreação e deslocamento Pessoas pobres e negros que normalmente usavam transporte público eram mantidas afastadas dessas estradas porque os ônibus com mais de 3 metros de altura não podiam passar pelos viadutos 6 O significado de tecnologia que emprego neste ensaio não engloba algumas das definições amplas do conceito encontradas na literatura contemporânea por exemplo a noção de técnica nos escritos de Jacques Ellul Meus propósitos aqui são mais limitados Para uma discussão das dificuldades que surgem na tentativa de definir tecnologia ver Autonomous Technology 812 LANGDON WINNER 200 volume 21 número 2 2017 Uma das consequências foi limitar o acesso de minorias raciais e de baixa renda ao Jones Beach o mais aclamado Parque Público de Moses A vida de Robert Moses é uma estória fascinante na história recente da política nortea mericana As negociações dele com prefeitos governadores e presidentes a cuidadosa manipu lação que ele realizava das legislações dos bancos dos sindicatos trabalhistas da imprensa e da opinião pública poderiam ser estudadas por cientistas sociais durante anos Contudo os resul tados mais importantes e duradouros do trabalho dele são suas tecnologias os grandes projetos de engenharia que deram a Nova Iorque grande parte de sua forma atual Por várias gerações após da morte de Moses e do encerramento das alianças que ele estabeleceu suas obras públi cas especialmente as rodovias e pontes que construiu para favorecer o uso de automóveis em detrimento do desenvolvimento do transporte público continuam a moldar a cidade Muitas de suas monumentais estruturas de concreto e aço incorporam uma desigualdade social siste mática um modo de engendrar relações entre as pessoas que depois de algum tempo apenas se transforma em outra parte da paisagem Como o urbanista novaiorquino Lee Koppleman revelou a Caro a propósito das pontes baixas nas avenidas de Wantagh o velho desgraçado certificouse de que os ônibus nunca poderiam usar suas malditas avenidas7 As histórias da arquitetura do planejamento urbano e das obras públicas contêm muitos exemplos de arranjos físicos que têm explicita ou implicitamente propósitos políticos Podese indicar as grandes vias parisienses do Barão Haussman projetadas sob a direção de Napoleão para prevenir quaisquer ocorrências de brigas de rua como as que aconteciam durante a revolu ção de 1848 Ou podese visitar as várias edificações grotescas de concreto e as imensas praças construídas nos campi universitários dos Estados Unidos entre o final da década de sessenta e início da década de setenta para neutralizar as manifestações estudantis Estudos sobre má quinas industriais e instrumentos também suscitam interessantes estórias políticas incluindo algumas que violam nossas expectativas normais sobre os motivos pelos quais as inovações tecnológicas são feitas Se acharmos que novas tecnologias são implementadas com vistas a alcançar um aumento da eficiência a história da tecnologia mostra que algumas vezes seremos contrariados A mudança tecnológica expressa uma miríade de motivos humanos e não é um 7 Robert A Caro The Power Broker Robert Moses and the Fall of New York New York Random House 1974 318 481 514 546 951958 952 ARTEFATOS TÊM POLÍTICA 201 volume 21 número 2 2017 motivo menor o desejo de uns dominarem os outros mesmo que isso exija um sacrifício oca sional da redução de custos e alguma violação do padrão normal de buscar mais por menos Um exemplo pungente pode ser encontrado na história da mecanização industrial do século dezenove Na fábrica de ceifadores Cyrus McCormick em Chicago meados da década de 1880 máquinas de moldagem pneumática uma inovação recente e pouco testada foram adicionadas à fundição por um custo estimado de 500000 dólares A interpretação econômica padrão nos levaria a supor que esse passo foi dado para modernizar a fábrica e obter os tipos de eficiências geradas pela mecanização Mas o historiador Robert Ozanne situou esse desen volvimento em um contexto mais amplo Na época Cyrus McCormick II estava engajado em uma batalha com a União Nacional de Moldadores de Ferro Ele viu a inclusão de novas má quinas como um modo de extinguir os maus elementos entre os homens especificamente os trabalhadores qualificados que tinham organizado o sindicato em Chicago8 As novas máquinas manejadas por trabalhadores não qualificados efetivamente produziam moldagens inferiores a custo mais elevado do que o procedimento anterior Com efeito depois de três anos de uso as máquinas foram abandonadas mas nesse momento já tinham cumprido seu propósito a des truição do sindicato Assim a história desses desenvolvimentos técnicos na fábrica McCormick não podem ser adequadamente compreendidos fora do registro das tentativas de organização dos operários e da política de repressão ao movimento trabalhista em Chicago durante aquele período bem como dos eventos em torno do bombardeio da Praça Haymarket A história da tec nologia e a história política dos EUA estavam naquele momento profundamente entrelaçadas Nos exemplos das pontes baixas de Moses e das máquinas de moldagem da McCormick notase a importância dos arranjos técnicos que precedem o uso das coisas em questão É óbvio que as tecnologias podem ser usadas de modo a aumentar o poder a autoridade e o privilégio de algumas pessoas sobre outras por exemplo o uso da televisão para vender um candida to Em nossa maneira costumeira de pensar as tecnologias são percebidas como ferramentas neutras que podem ser usadas bem ou mal e para o bem ou para o mal ou algo entre eles Entretanto normalmente não paramos para perguntar se certo dispositivo pode ter sido pro jetado e construído de tal modo que ele produz um conjunto de consequências logicamente e 8 Robert Ozanne A Century of LaborManagement Relations at McCormick and International Harvester Madison University of Wisconsin Press 1967 20 LANGDON WINNER 202 volume 21 número 2 2017 temporalmente anteriores a quaisquer de seus pretensos usos As pontes de Robert Moses afinal eram usar para transportar automóveis de um lugar a outro as máquinas da McCormick eram usadas para fazer fundições de metal ambas as tecnologias contudo abarcavam propósitos que estavam muito além de seu uso imediato Se para avaliar a tecnologia nossa linguagem polí tica e moral incluir apenas categorias referentes às ferramentas e seus usos se ela não incluir alguma atenção ao significado dos designs e dos arranjos dos nossos artefatos então estaremos cegos a muito do que na prática e intelectualmente é crucial Tendo em vista que o assunto é mais facilmente compreendido à luz de intenções parti culares incorporadas na forma física eu ofereci até aqui exemplos que parecem quase conspi ratórios Mas reconhecer as dimensões políticas nas formas da tecnologia não exige que pro curemos conspirações conscientes ou intenções maliciosas Na década de 1970 o movimento organizado de pessoas com deficiência nos Estados Unidos salientou os incontáveis modos nos quais máquinas instrumentos e estruturas de uso cotidiano ônibus edifícios calçadas tubulações de esgoto e assim por diante tornavam impossível para muitas delas se moverem desimpedidamente uma condição que as excluía sistematicamente da vida pública Podese afirmar com segurança que os projetos impróprios às pessoas com deficiência surgiram mais pela usual negligência do que pela intenção ativa de alguém Todavia uma vez que o problema foi trazido à atenção pública tornouse evidente que a justiça exigia por um corretivo Uma enorme variedade de artefatos foi redesenhada e reconstruída com vistas a incluir essa minoria Com efeito muitos dos mais relevantes exemplos de tecnologias que têm consequências políticas são aqueles que transcendem as meras categorias do intencional e do não intencio nal São as instâncias nas quais o processo mesmo do desenvolvimento técnico é de tal modo inclinado para uma direção particular que ele regularmente produz resultados que são acla mados como maravilhosos avanços por alguns grupos sociais e como retrocessos esmagadores por outros Nesses casos não é correto nem inteligente afirmar que alguém pretendeu preju dicar outrem Ao invés disso devese afirmar que as cartas da tecnologia foram embaralhadas previamente em favor de certas demandas sociais e que algumas pessoas foram destinadas a receber uma mão melhor do que os outras O ceifador mecânico de tomates um notável aparelho aprimorado por pesquisadores na Universidade da Califórnia do final da década de quarenta até nossos dias oferece um relato ARTEFATOS TÊM POLÍTICA 203 volume 21 número 2 2017 ilustrativo A máquina consegue ceifar tomates passando uma única vez por cada fileira cor tando as plantas desde o chão balançandoas para cair as frutas e nos modelos mais novos selecionando os tomates eletronicamente em grandes gôndolas de plástico que suportam até vinte e cinco toneladas do produto que é enviado enlatado para as fábricas Para absorver o movimento brusco desses ceifadores no campo pesquisadores agrônomos reproduziram novas variedades de tomates que eram mais duros firmes e menos saborosos do que os cultivados anteriormente Os ceifadores substituem o sistema de coleta manual no qual multidões de tra balhadores rurais cruzavam os campos três ou quatro vezes colocando os tomates maduros em caixas e guardando os verdes para a colheita seguinte9 Estudos na Califórnia indicam que o uso da máquina reduz os custos entre cinco e sete dólares por tonelada aproximadamente em comparação à colheita manual10 Mas os benefícios não são de forma alguma divididos igualmente na economia agrícola Na verdade a máquina no campo tem sido nesse exemplo a ocasião para uma remodelagem profunda das relações sociais relativas à produção de tomate na Califórnia rural Em virtude de seu tamanho e custo de mais de cinquenta mil dólares cada as máquinas eram compatíveis apenas com uma forma concentrada de produção de tomates Com a intro dução desse novo método de colheita o número de produtores de tomate caiu de aproxima damente 4000 no início da década de sessenta para cerca de sessenta em 1973 e ainda assim houve um aumento substancial na quantidade de toneladas de tomates produzidos No final da década de setenta estimase que 32000 empregos na indústria de tomates foram eliminados como consequência direta da mecanização11 Assim ocorreu um salto na produtividade para o benefício de grandes produtores sacrificando as comunidades de agricultura rural A pesquisa e o desenvolvimento de máquinas agrícolas como o ceifador de tomates rea lizados pela Universidade da Califórnia eventualmente se tornaram o assunto de uma ação ju 9 A estória pregressa do ceifador de tomate está descrita em Wayne D Rasmussen Advances in Ameri can Agriculture The Mechanical Tomato Harvester as a Case Study Technology and Culture 9 531543 1968 10 Andrew Schmitz and David Seckler Mechanized Agriculture and Social Welfare The Case of the Tomato Harvester American Journal of Agricultural Economics 52 569577 1970 11 William H Friedland and Amy Barton Tomato Technology Society 13 6 SeptemberOctober 1976 Ver also William H Friedland Social Sleep walkers Scientific and Technological Research in California Agriculture University of California Davis Department of Applied Behavioral Sciences Research Monograph No 13 1974 LANGDON WINNER 204 volume 21 número 2 2017 dicial protocolada por procuradores da Assistência Rural Legal da Califórnia uma organização que representava um grupo de fazendeiros e outras partes interessadas A ação judicial susten tou que funcionários da Universidade estavam empregando dinheiro de impostos em projetos que beneficiavam um ínfimo grupo de interesses privados em detrimentos dos trabalhadores rurais pequenos fazendeiros consumidores e da Califórnia rural em geral e solicitava uma limi nar judicial para interromper tal prática A Universidade negou essas acusações argumentando que aceitálas exigiria extinguir todas as pesquisas com algum potencial de aplicação prática12 Até onde eu sei ninguém argumentou que o desenvolvimento do ceifador de tomates foi resultado de uma conspiração Dois estudiosos da controvérsia William Friedland e Amy Barton isentaram expressamente os desenvolvedores originais da máquina e dos tomates du ros de qualquer desejo de facilitar a concentração econômica naquela indústria13 O que vemos aqui ao invés disso é um processo social contínuo no qual conhecimento científico inovação tecnológica e lucro das empresas se fortalecem mutuamente em padrões profundamente arrai gados padrões que ostentam a inconfundível marca do poder político e econômico Por muitas décadas a pesquisa e o desenvolvimento agrícola nas faculdades de agronomia e nas univer sidades dos EUA tenderam a favorecer os interesses do grande agronegócio14 É em face de tais padrões sutilmente arraigados que os oponentes de inovações como o ceifador de tomate são caracterizados como antitecnologia ou antiprogresso Pois o ceifador não é apenas um símbolo de uma ordem social que recompensa uns enquanto pune outros ele é literalmente a incorporação dessa ordem Em uma dada categoria de transformação tecnológica há grosso modo dois tipos de es colha que podem afetar a distribuição relativa do poder da autoridade e do privilégio em uma comunidade Frequentemente a decisão crucial é uma simples escolha de sim ou não vamos desenvolver e adotar esse algo ou não Em anos recentes muitas disputas locais nacionais e in ternacionais sobre tecnologia estiveram centradas em juízos de sim ou não a respeito de coisas como aditivos alimentares pesticidas construção de rodovias reatores nucleares projetos de 12 University of California Clip Sheet 54 36 May 1 1979 13 Tomato Technology 14 Uma análise histórica e crítica da pesquisa em agricultura nas faculdades públicas é fornecida por James Hightower Hard Tomatoes Hard Times Cambridge Schenkman 1978 ARTEFATOS TÊM POLÍTICA 205 volume 21 número 2 2017 barragens e armas de alta tecnologia A escolha fundamental acerca de um míssil antibalístico ou de um transporte supersônico é se a coisa em questão vai ou não incluir a sociedade como uma parte de seu equipamento operacional As razões fornecidas a favor e contra são frequen temente tão relevantes quando àquelas concernentes à adoção de uma nova lei importante Uma segunda variedade de escolhas igualmente essenciais em muitos casos diz respeito a características específicas no design ou no arranjo de um sistema técnico após a decisão de seguir adiante com ele já ter sido tomada Mesmo após uma prestadora de serviços receber permissão para construir uma grande linha de energia elétrica podem permanecer importantes controvérsias referentes ao posicionamento da sua rota e do design das suas torres mesmo após uma empresa ter decidido instituir um sistema de computadores ainda podem surgir controvérsias relativas aos tipos de componentes programas modos de acesso e outras características específicas que o sistema deve incluir Uma vez que o ceifador mecânico de tomates foi desenvolvido em sua forma básica uma alteração de fundamental importância social no design a inclusão de selecionadores eletrônicos por exemplo mudou o caráter dos efeitos da máquina no equilíbrio de riqueza e po der na agricultura da Califórnia Algumas das pesquisas atuais mais interessantes sobre tecnologia e política focalizam a tentativa de demonstrar de modo detalhado e concreto como característi cas de design aparentemente inócuas nos sistemas de transporte público projetos hidráulicos maquinaria industrial e outras tecnologias efetivamente mascaram escolhas sociais de enorme significado O historiador David Noble estudou dois tipos de sistemas de máquinaferramenta automatizadas que tinham diferentes implicações para o poder relativo da gestão e do trabalho em indústrias que poderiam empregálos Ele mostrou que apesar dos componentes eletrônicos e mecânicos básicos de registroreprodução e os sistemas numéricos de controle serem semelhan tes a escolha de um design ou outro acarreta consequências cruciais para as lutas sociais no chão de fábrica Ver a questão unicamente em termos de corte de custos eficiência ou modernização de equipamento consiste em deixar passar um elemento decisivo na narrativa15 A partir desses exemplos eu ofereceria algumas conclusões gerais Eles correspondem à interpretação de tecnologias como formas de vida encaixandose nas dimensões explicita mente políticas dessa perspectiva 15 David F Noble Forces of Production A Social History of Machine Tool Automation New York Alfred A Knopf 1984 LANGDON WINNER 206 volume 21 número 2 2017 As coisas que denominamos de tecnologias são modos de construir ordem em nos so mundo Muitos equipamentos e sistemas técnicos importantes na vida cotidiana contêm possibilidades de ordenar a atividade humana de muitas maneiras diferentes Consciente ou inconscientemente deliberada ou inadvertidamente sociedades escolhem estruturas para tec nologias as quais influenciam de forma duradoura como as pessoas trabalham comunicam viajam consomem e assim por diante No processo pelo qual decisões estruturantes são toma das diferentes pessoas estão situadas diferentemente e possuem níveis desiguais de poder bem como níveis desiguais de consciência A liberdade de escolha é sem dúvida maior quando um instrumento um sistema ou uma técnica particular é introduzido pela primeira vez Dado que as escolhas tendem a se tornar firmemente fixadas no equipamento material no investimento econômico e no hábito social a flexibilidade original se extingue para todos os propósitos práti cos tão logo os primeiros compromissos sejam firmados Nesse sentido inovações tecnológicas são semelhantes a atos legislativos ou a decisões políticas que estabelecem uma estrutura para a ordem pública a qual irá subsistir por muitas gerações Por esse motivo a mesma atenção es pecial que se dá às regras funções e relações políticas deve também ser dada a coisas tais como a construção de rodovias a criação de redes televisivas e a inclusão de características aparen temente insignificantes em novas máquinas As questões que dividem ou unem as pessoas na sociedade estão assentadas não somente nas instituições e nas práticas da política propriamen te dita mas também e de modo menos óbvio nos arranjos tangíveis de aço e concreto fios e semicondutores porcas e parafusos Tecnologias inerentemente políticas Nenhum dos argumentos e exemplos considerados até aqui enfrenta uma afirmação mais robusta e problemática frequentemente presente em escritos sobre tecnologia e sociedade a crença de que por sua própria natureza algumas tecnologias são políticas de uma maneira específica De acordo com esta perspectiva a adoção de um dado sistema técnico inevitavel mente traz consigo condições para relações humanas as quais possuem em sua constituição modelos políticos característicos por exemplo centralizados ou descentralizados igualitários ou não igualitários repressivos ou libertadores É isso que em última análise está em questão em afirmações como as de Lewis Mumford de que duas tradições tecnológicas uma autoritária ARTEFATOS TÊM POLÍTICA 207 volume 21 número 2 2017 e a outra democrática coexistem na história Ocidental Em todos os casos citados acima as tecnologias são relativamente flexíveis em seu design e estrutura e variáveis em seus efeitos Ainda que se possa reconhecer um resultado particular produzido em uma configuração parti cular podese também facilmente imaginar como um aparelho ou sistema bastante semelhante poderia ter sido construído ou implantado com consequências políticas muito diferentes A ideia que devemos examinar e avaliar agora é que certos tipos de tecnologia não admitem tal flexibilidade e que os escolher corresponde a escolher irrevogavelmente uma forma de vida política em particular Uma afirmação peremptória de uma versão desse argumento aparece no pequeno en saio de Friedrich Engels Sobre a autoridade escrito em 1872 Respondendo aos anarquistas que acreditavam que a autoridade é um mal que deveria ser completamente abolido Engels se lança em um panegírico do autoritarismo sustentando entre outras coisas que uma autoridade forte é condição necessária para a indústria moderna Para avançar seu argumento da maneira mais forte possível ele pede a seus leitores para imaginarem que a revolução já ocorreu Suponha mos que uma revolução social houvesse destronado os capitalistas que atualmente exercem sua autoridade sobre a produção e a circulação da riqueza Suponhamos para adotar integralmente o ponto de vista dos antiautoritários que a terra e os instrumentos de trabalho converteramse em propriedade coletiva dos operários que os utilizam Teria desaparecido a autoridade ou teria apenas mudado de forma16 A resposta dele se baseia em lições extraídas de três sistemas sociotécnicos de sua épo ca moinhos de fiação de algodão ferrovias e navios no mar Ele observa que em seu processo para tornarse um fio o algodão passa por várias operações diferentes em diferentes locais da fábrica Os trabalhadores executam uma grande variedade de tarefas desde fazer funcionar a engrenagem a vapor até carregar os produtos de uma sala a outra Dado que essas tarefas devem ser coordenadas e dado que o tempo do trabalho é ditado pela autoridade do vapor os trabalhadores devem aprender a aceitar uma disciplina rígida Eles devem segundo Engels trabalhar em horas regulares e concordar em subordinar suas vontades individuais às pessoas encarregadas das operações da fábrica Se falharem em fazêlo correm o terrível risco de para 16 Friedrich Engels On Authority in The MarxEngels Reader ed 2 Robert Tucker ed NewYorkW W Norton 1978 731 LANGDON WINNER 208 volume 21 número 2 2017 lisar a produção Engels não poupa palavras A maquinaria automática de uma grande fábrica ele escreve é muito mais despótica do que os pequenos capitalistas que empregam os traba lhadores jamais o foram17 Lições semelhantes são aduzidas na análise de Engels das condições necessárias para operar ferrovias e navios no mar Ambos requerem a subordinação dos trabalhadores a uma imperiosa autoridade que verifica se as coisas estão acontecendo conforme o planejado En gels descobre que longe de ser uma idiossincrasia da organização social capitalista relações de autoridade e subordinação surgem independentemente de toda a organização social e nos são impostas junto com as condições materiais sob as quais produzimos e fazemos os produtos circular Novamente ele pretende que esse seja um alerta aos anarquistas que de acordo com Engels pensam ser possível simplesmente erradicar com um só golpe a subordinação e a rela ção de superioridade Todos esses esquemas não têm sentido As raízes do autoritarismo inevi tável são ele argumenta profundamente implantadas no envolvimento humano com a ciência e a tecnologia Se o ser humano pela graça de seu conhecimento e por seu gênio inventivo subjugou as forças da natureza estas vingamse dele submetendoo ainda que ele as utilize a um verdadeiro despotismo independentemente de toda organização social18 Tentativas de justificar uma autoridade forte na base de condições supostamente necessá rias da prática técnica têm uma história antiga Um tema crucial na República é a tentativa platô nica de tomar emprestada a autoridade da techné e empregála analogicamente para reforçar seu argumento a favor da autoridade do Estado Entre as ilustrações que ele escolhe como Engels está aquela do navio em altomar Uma vez que os grandes veleiros por sua própria natureza precisam ser conduzidos por uma mão firme os marinheiros precisam obedecer aos comandos do seu capitão nenhuma pessoa sensata acredita que navios podem fluir democraticamente Platão vai além e sugere que governar o Estado é bem parecido com ser o capitão de um navio ou com praticar medicina como um médico Muitas das condições que exigem regras centralizadas e ação decisiva em atividade técnica organizada também criam essas mesmas necessidades no governo 17 Ibid 18 Ibid 732 731 ARTEFATOS TÊM POLÍTICA 209 volume 21 número 2 2017 No argumento de Engels e em argumentos semelhantes a justificativa para a autoridade não é mais feita pela analogia clássica de Platão mas antes diretamente com referência à pró pria tecnologia Se o mais elementar é tão premente quando Engels acreditava podese esperar que a sociedade adote sistemas técnicos cada vez mais complicados como sua base material e as perspectivas para modos de vida autoritários seriam enormemente ampliadas O controle central feito pelos detentores do conhecimento que atuariam no topo de uma hierarquia social rígida pareceria cada vez mais prudente Acerca disso a posição dele em Sobre a autoridade parece divergir da posição de Karl Marx no Volume I de O Capital Marx tenta mostrar que o aumento da mecanização tornaria a divisão hierárquica do trabalho obsoleta bem como as relações de subordinação que segundo a visão dele foram necessárias durante os primeiros es tágios da manufatura moderna A Indústria Moderna ele escreve aniquila por meios técnicos a divisão do trabalho manufatureira na qual cada ser humano está por toda a vida atado a uma única operação particular Ao mesmo tempo a forma capitalista dessa indústria reproduz essa mesma divisão do trabalho em uma forma ainda mais atroz na própria fábrica convertendo o trabalhador em um apêndice vivo da máquina19 Na concepção de Marx as condições que eventualmente dissolverão a divisão capitalista do trabalho e facilitarão a revolução proletá ria são as condições latentes na própria tecnologia industrial As diferenças entre a posição de Marx em O Capital e a de Engels em seu ensaio suscitam uma importante questão para o socialismo afinal de contas o que a tecnologia moderna torna possível ou necessário na vida política A tensão teórica que vemos aqui espelha diversos problemas na prática da liberdade e da autoridade que turvaram as veredas da revolução socialista Argumentos a favor de que em certo sentido as tecnologias são inerentemente políticas foram desenvolvidos em uma grande variedade de contextos demasiados para serem sumari zados aqui Minha leitura dessas noções contudo revela que há dois modos básicos de expor o caso Uma versão afirma que a adoção de certo sistema técnico efetivamente requer a criação e manutenção de um conjunto particular de condições sociais como ambiente operador desse sistema A posição de Engels é desse tipo Uma visão semelhante é oferecida por um escritor contemporâneo que afirma que se você admite usinas de energia nuclear você também admite 19 Karl Marx Capital vol 1 ed 3 translated by Samuel Moore and Edward Aveling New York Mo dern Library 1906 530 LANGDON WINNER 210 volume 21 número 2 2017 uma elite técnicocientíficoindustrialmilitar Sem essas pessoas no comando não é possível ter energia nuclear20 Nessa concepção alguns tipos de tecnologia exigem que seu ambiente social seja estruturado de um modo particular quase no mesmo sentido em que um automóvel exige rodas para se mover A coisa não poderia existir como uma entidade operante efetiva a menos que certas condições sociais e também materiais fossem garantidas O significado de exigir aqui é o da necessidade prática e não lógica Assim Platão pensou ser uma necessidade prática que um navio no mar tivesse um capitão e uma tripulação inquestionavelmente obediente Uma segunda versão um pouco mais fraca do argumento sustenta que certo tipo de tecnologia é fortemente compatível com mas a rigor não exige relações sociais e políticas de uma espécie particular Muitos defensores da energia solar argumentaram que tecnologias desse tipo são mais compatíveis com uma sociedade democrática e igualitária do que siste mas energéticos baseados em carvão óleo e poder nuclear ao mesmo tempo eles não sus tentam que qualquer coisa relativa à energia solar demanda democracia O argumento deles é sucintamente que a energia solar é descentralizadora tanto no sentido técnico como no políti co tecnicamente é muito mais razoável construir sistemas solares de uma maneira dissociada e amplamente distribuída do que em plantas centralizadas de larga escala em termos políticos a energia solar acolhe os esforços de indivíduos e comunidades locais de gerir seus interesses efetivamente porque estão lidando com sistemas mais acessíveis abrangentes e controláveis do que enormes fontes centralizadas Nessa perspectiva a energia solar é desejável não apenas por seus benefícios econômicos e ambientais mas também pelas salutares instituições que ela é propensa a permitir em outras áreas da vida pública21 Em ambas as versões do argumento há uma distinção adicional a ser feita entre as con dições que são internas ao funcionamento de certo sistema técnico e aquelas que são externas 20 Jerry Mander Four Arguments for the Elimination of Television New York William Morrow 1978 44 21 Ver por exemplo Robert Argue Barbara Emanuel and Stephen Graham The Sun Builders A Peoples Guide to Solar Wind and Wood Energy in Canada Toronto Renewable Energy in Canada 1978 Pensamos que a descentralização é um componente implícito da energia renovável isso implica a descentralização dos sistemas de energia das comunidades do poder Energia renovável não exige fontes de geração colossais de corredores de transmissão disruptiva Nossas cidades e municípios os quais têm dependido de suprimentos centralizados podem se tornar capazes de alcançar algum grau de autonomia controlando e administrando assim suas próprias necessidades energéticas 16 ARTEFATOS TÊM POLÍTICA 211 volume 21 número 2 2017 a ele A tese de Engels concerne às relações sociais supostamente exigidas por exemplo no contexto das fábricas de algodão e ferrovias o que essas relações significam para a condição da sociedade como um todo é para ele uma questão à parte Em contrapartida a crença do de fensor das tecnologias de energia solar segundo a qual estas são compatíveis com a democracia pertence ao modo como elas complementam aspectos da sociedade separados da organização dessas tecnologias em si mesmas Assim há diversas direções que argumentos desse tipo podem seguir As condições so ciais em questão são tidas como demandadas pelo ou fortemente compatíveis com o fun cionamento de um dado sistema técnico Essas condições são internas ou externas ou as duas coisas ao sistema Embora textos que abordam tais questões sejam frequentemente obscuros quanto ao que está sendo afirmado argumentos nessa categoria genérica são uma parte im portante do discurso político moderno Eles encetam muitas tentativas de explicar como ocor rem mudanças na vida social em contextos de inovação tecnológica Mais importante eles são frequentemente usados para sustentar tentativas de justificar ou criticar os rumos de ação en volvendo novas tecnologias Oferecendo diferentes razões políticas a favor ou contra a adoção de uma tecnologia particular argumentos desse tipo se distinguem das posições mais comuns e mais facilmente quantificáveis acerca dos custos e benefícios econômicos dos impactos am bientais e dos possíveis riscos para a saúde e a segurança públicas que podem acarretar os sistemas técnicos A questão aqui não se relaciona à quantidade de empregos criados de renda gerada de poluentes adicionados ou de tumores produzidos Em vez disso o problema se rela ciona aos modos pelos quais as escolhas atinentes à tecnologia têm consequências importantes para a forma e a qualidade das associações humanas Se examinarmos os padrões sociais que caracterizam os ambientes dos sistemas técnicos certamente encontraremos certos aparelhos e sistemas quase invariavelmente conectados a for mas específicas de organização do poder e da autoridade A questão relevante é essa situação deriva de uma resposta social inevitável a propriedades incontroláveis nas coisas em si mesmas ou em vez disso é um padrão imposto independentemente por um governo uma classe do minante ou alguma outra instituição social ou cultural para promover seus próprios interesses Tomando o exemplo mais óbvio a bomba atômica é um artefato inerentemente político Enquanto ela existir suas propriedades letais exigem que seja controlada por uma cadeia de LANGDON WINNER 212 volume 21 número 2 2017 comando centralizada e rigidamente hierarquizada alheia a todas as influências que poderiam tornar seu funcionamento imprevisível O sistema social precisa ser autoritário não há alter nativa Esse cenário se impõe como uma necessidade prática independentemente de qualquer sistema político mais amplo no qual a bomba está inserida independentemente do tipo de regime ou da personalidade de seus governantes Na verdade Estados democráticos precisam encontrar maneiras de assegurar que as estruturas sociais e a mentalidade que caracterizam o gerenciamento de armas nucleares não transbordem ou se espalhem sobre a política como um todo É claro que a bomba é um caso especial Os motivos pelos quais relações muito rígidas de autoridade são necessárias na sua presença imediata deveriam ser óbvios para qualquer pessoa Contudo se procuramos outros casos nos quais tipos específicos de tecnologia são amplamente vistos como exigindo a presença de um padrão especial de poder e autoridade a história da técnica moderna contém uma profusão de exemplos Alfred D Chandler em A mão visível um monumental estudo sobre empresas de negó cios modernas apresenta uma impressionante documentação com vistas a defender a hipótese de que a construção e o funcionamento cotidiano de muitos sistemas de produção transporte e comunicação nos séculos dezenove e vinte requerem o desenvolvimento de uma forma so cial particular uma organização de larga escala centralizada hierárquica e administrada por gerentes altamente qualificados A análise de Chandler sobre o crescimento de rodovias é típica do seu raciocínio22 A tecnologia possibilitou o transporte rápido e em qualquer clima mas o movimento segu ro regular e confiável de bens e passageiros assim como a contínua manutenção e reparo de locomotivas trilhos leitos da estrada estações galpões de oficina e outros equipamen tos exigiu a criação de uma enorme organização administrativa Isto significou o empre go de um conjunto de gerentes para supervisionar tais atividades funcionais ao longo de extensas áreas geográficas além da designação de um comando administrativo de altos e médios executivos para monitorar avaliar e coordenar o trabalho dos gerentes responsáveis pelas operações cotidianas 22 Alfred D Chandler Jr The Visible Hand The Managerial Revolution in American Business Cambridge Belknap 1977 244 ARTEFATOS TÊM POLÍTICA 213 volume 21 número 2 2017 Ao longo de seu livro Chandler aponta para modos nos quais tecnologias usadas na pro dução e distribuição de eletricidade químicos e um vasto conjunto de bens industriais deman davam ou requeriam essa forma de associação humana Assim as exigências operacionais das ferrovias demandaram a criação das primeiras hierarquias administrativas nos negócios americanos23 Haveriam outros modos concebíveis de organizar esses agregados de pessoas e apare lhos Chandler mostra que uma forma social previamente dominante a pequena e tradicional empresa da família simplesmente não poderia dar conta da tarefa na maioria dos casos Embora não especule para além disso fica claro que para ser realista ele acredita que há pouquíssima liberdade nas formas de poder e autoridade apropriadas aos sistemas sociotécnicos modernos As propriedades de muitas tecnologias modernas oleodutos e refinarias por exemplo são tais que possibilitam economias de escala e velocidade absolutamente impressionantes Para esses sistemas funcionarem de forma efetiva eficiente veloz e segura certas exigências de organização social interna precisam ser preenchidas as possibilidades materiais que as tecnologias modernas tornam possíveis não poderiam ser exploradas de outra maneira Chandler reconhece que ao se comparar instituições sociotécnicas de diferentes nações notase os modos nos quais atitudes culturais valores ideologias sistemas políticos e estruturas sociais afetam esses imperativos24 Mas o peso do argumento e da evidência empírica contidos em A mão visível sugerem que qual quer desvio significativo do modelo de base seria no mínimo altamente improvável É possível que outros arranjos concebíveis de poder e autoridade por exemplo aqueles descentralizados democráticos e autogerenciados por trabalhadores se mostrassem capazes de administrar fábricas refinarias sistemas de comunicação e ferrovias tão bem quanto ou talvez até melhor do que as organizações que Chandler descreve Evidências oriundas de equipes de montagem de automóveis na Suíça e de fábricas gerenciadas por trabalhadores na Iugoslávia e em outros países são muitas vezes apresentadas para salvaguardar essas possibilidades In capaz de resolver as controvérsias sobre esse assunto aqui eu apenas aponto para o que consi dero ser o ponto de discórdia As evidências disponíveis tendem a mostrar que muitos sistemas tecnológicos complexos e sofisticados são na verdade altamente compatíveis com o controle 23 Ibid 24 Ibid 500 LANGDON WINNER 214 volume 21 número 2 2017 administrativo centralizado e hierárquico A questão intrigante todavia tem a ver com se esse padrão é ou não é em qualquer sentido uma exigência dos próprios sistemas uma questão que não é estritamente empírica Em última instância a questão reside em nossos juízos a respeito de quais são na prática os passos necessários caso existam para o funcionamento de certos tipos particulares de tecnologia e o que essas medidas exigem se é que exigem algo da estrutura das associações humanas Platão estava certo ao afirmar que um navio em alto mar precisa ser pilotado por uma mão firme e que isso apenas poderia ser feito por um único capitão e uma tripulação obediente Chandler estava correto ao dizer que as propriedades de sistemas de larga escala exigem um controle administrativo centralizado e hierárquico Para responder a essas questões precisaríamos examinar com alguma minúcia as exigên cias morais de necessidade prática incluindo aquelas defendidas nas doutrinas da economia e ponderálas com exigências morais de outros tipos por exemplo a noção de que é bom para os marinheiros participar do comando do navio ou que os trabalhadores têm o direito de se en volver nas decisões e na administração de uma fábrica No entanto é característico de socieda des baseadas em sistemas tecnológicos abrangentes e complexos que motivos morais que não estritamente aqueles de natureza prática apareçam como completamente obsoletos idealistas e irrelevantes Quaisquer exigências a que se possa aspirar em nome da liberdade da justiça ou da igualdade podem ser imediatamente neutralizadas quando confrontadas com argumentos do tipo Tudo bem mas não é assim que funciona uma companhia ferroviária ou siderúrgica ou aérea ou um sistema de comunicação e assim por diante Encontramos aqui uma qualidade importante do discurso político moderno e do modo como as pessoas comumente pensam a respeito de quais procedimentos são justificáveis em resposta às possibilidades que as tecnolo gias disponibilizam Em muitos casos dizer que algumas tecnologias são inerentemente políti cas consiste em dizer que certas razões de necessidade prática amplamente aceitas especial mente a necessidade de manter sistemas tecnológicos cruciais como entidades que funcionem sem obstáculos tendem a eclipsar outros tipos de raciocínios morais e políticos Uma tentativa de salvaguardar a autonomia da política face à prisão da necessidade prá tica envolve a noção de que as condições das associações humanas encontradas no funciona mento interno de sistemas tecnológicos podem ser facilmente separadas da política como um todo Por muito tempo americanos se contentaram com a crença de que arranjos de poder e autoridade dentro de corporações industriais serviços públicos e similares teriam pouca in ARTEFATOS TÊM POLÍTICA 215 volume 21 número 2 2017 fluência em instituições públicas práticas e ideias em sentido amplo A concepção segundo a qual a democracia para nos portões da fábrica foi tomada como uma regra da vida que não teria qualquer relação com a prática da liberdade política Mas as políticas internas da tecnolo gia e a política como um todo podem ser tão facilmente separadas Um estudo recente sobre dirigentes empresariais nos Estados Unidos paradigmas contemporâneos da mão visível da administração de Chandler considerouos extremamente impacientes com princípios de mocráticos tais como um homem um voto Se a democracia não funciona para a empresa a instituição mais fundamental de toda a sociedade indagam os executivos americanos como se pode esperar que ela funcione para o governo de uma nação particularmente quando esse governo tenta interferir nas conquistas da empresa Os autores do estudo observam que pa drões de autoridade que funcionam efetivamente em corporações tornamse para os homens de negócios o modelo desejável contra o qual comparar as relações políticas e econômicas do resto da sociedade25 Apesar de tais achados estarem longe de ser conclusivos eles refletem um sentimento cada vez mais comum no país o que dilemas tais como a crise energética precisam não é a redistribuição da riqueza ou a maior participação do público mas ao invés disso um gerenciamento público e privado mais forte e mais centralizado Um caso especialmente nítido no qual as exigências operacionais de um sistema técnico podem influenciar a qualidade da vida pública é o debate sobre os riscos da energia nuclear Na medida em que os suprimentos de urânio para reatores nucleares se esgotam propõese como combustível alternativo o plutônio gerado como subproduto nos núcleos dos reatores As conhecidas objeções à reciclagem de plutônio abordam seus custos econômicos inviáveis seu risco de contaminação ambiental e seu perigo com relação à proliferação internacional de armas nucleares Para além dessas preocupações contudo resta outro grupo de perigos bem menos considerados aqueles que envolvem o sacrifício de liberdades civis O uso difundido de plutônio como combustível aumenta o risco de que essa substância tóxica possa ser roubada por terroristas pelo crime organizado ou por outras pessoas Isso levanta a possibilidade nada trivial de que medidas extras deveriam ser tomadas com vistas a proteger o plutônio de roubos e para recuperálo caso a substância fosse roubada Trabalhadores da indústria nuclear bem 25 Leonard Silk and David Vogel Ethics and Profits The Crisis of Confidence in American Business New York Simon and Schuster 1976 191 LANGDON WINNER 216 volume 21 número 2 2017 como cidadãos comuns poderiam muito bem se tornar sujeitos à verificação de antecedentes vigilância discreta grampeamento de telefones delatores e até mesmo procedimentos emer genciais sob lei marcial tudo justificado pela necessidade de salvaguardar o plutônio O estudo de Russel W Ayres acerca das ramificações legais da reciclagem de plutônio conclui com o passar do tempo e com o aumento na quantidade de plutônio existente virá a pressão para eliminar a fiscalização tradicional que os tribunais e os órgãos legislativos exercem sobre as atividades do executivo bem como para elaborar uma autoridade central forte mais capaz de aplicar medidas de proteção rigorosas Ele declara que logo que uma certa quantida de de plutônio for roubada o argumento para literalmente virar o país dos pés à cabeça com o objetivo de reavêlo seria devastador Ayres antecipa e se preocupa com os tipos de pensamen to que como argumentei caracterizam tecnologias inerentemente políticas Ainda é verdade que em um mundo no qual seres humanos produzem e respeitam sistemas artificiais nada é exigido em um sentido absoluto Não obstante uma vez que um rumo de ação está em curso uma vez que artefatos como usinas nucleares foram construídos e colocados em operação os tipos de raciocínios que justificam a adaptação da vida social às demandas técnicas brotam tão espontaneamente quanto flores na primavera Nas palavras de Ayres Uma vez iniciada a reciclagem e os riscos de roubo de plutônio se tornam reais em vez de apenas hipotéticos a questão da infração governamental de direitos adquiridos se tornará manifesta26 A partir de um determinado ponto aqueles que não estão dispostos a aceitar os rigorosos requerimentos e imperativos serão desqualificados como sonhadores e tolos As duas variedades de interpretação que esbocei indicam como os artefatos podem ter qualidades políticas No primeiro caso notamos modos nos quais características específicas do design ou do arranjo de um dispositivo ou sistema poderiam proporcionar os meios convenien tes para estabelecer padrões de poder e autoridade em um dado cenário Tecnologias desse tipo 26 Russell W Ayres Policing Plutonium The Civil Liberties Fallout Harvard Civil RightsCivil Liberties Law Review 10 1975 443413414374 ARTEFATOS TÊM POLÍTICA 217 volume 21 número 2 2017 tem certa flexibilidade nas dimensões de sua forma material É exatamente porque são flexíveis que suas consequências para a sociedade devem ser entendidas com referência aos atores so ciais aptos a influenciar quais designs e arranjos são escolhidos No segundo caso examinamos modos nos quais as propriedades incontroláveis de certos tipos de tecnologia são fortemente talvez mesmo inevitavelmente conectadas a padrões institucionalizados de poder e autoridade Aqui a escolha inicial sobre adotar ou não algo é decisiva em relação às suas consequências Não existem designs físicos ou arranjos alternativos que fariam uma diferença significativa ademais não existem possibilidades genuínas para intervenção criativa por parte de diferentes sistemas sociais capitalistas ou socialistas que poderiam mudar tal característica incontrolá vel da entidade ou alterar significativamente a qualidade de seus efeitos políticos Conhecer qual variação de interpretação é aplicável em um dado caso é em geral o que está em questão nas disputas algumas delas acaloradas sobre o significado da tecnologia no modo como vivemos Eu defendi aqui uma posição do tipo ambase afinal pareceme que ambos os tipos de entendimento são aplicáveis em diferentes circunstâncias Com efeito pode ocorrer que em certo complexo tecnológico particular digamos um sistema de comunicação ou de trans porte alguns aspectos podem ser flexíveis em suas possibilidades para a sociedade enquanto outros podem ser para melhor ou para pior completamente incontroláveis As duas variantes de interpretação que examinei aqui podem se sobrepor e interseccionarse em muitos pontos Naturalmente essas são questões sobre as quais pessoas podem divergir Assim alguns proponentes da energia de fontes renováveis agora acreditam que eles finalmente descobriram um conjunto de tecnologias intrinsecamente democráticas igualitárias e comunitárias Na me lhor das minhas avaliações contudo as consequências sociais de construir sistemas de energia renovável certamente dependerão de configurações específicas tanto do equipamento como de instituições sociais criadas para trazer essa energia até nós Pode ser que encontremos maneiras de conseguir melhores resultados do que o que seria de esperar Comparativamente defensores de um maior desenvolvimento de energia nuclear parecem crer que estão trabalhando a favor de um tipo de tecnologia bem mais flexível cujos efeitos colaterais para a sociedade podem ser consertados através de uma mudança dos parâmetros de design dos reatores e dos sistemas de descarte do lixo nuclear Pelas razões indicadas acima acredito que eles estão completamente equivocados nessa crença Sim podemos ser capazes de gerenciar alguns dos riscos à saúde e segurança públicas que a energia nuclear acarreta Entretanto na medida em que a sociedade LANGDON WINNER 218 volume 21 número 2 2017 se adapta às características mais perigosas e aparentemente indeléveis do poder nuclear qual será o preço a longo prazo para a liberdade humana Minha crença de que devemos olhar mais de perto para os próprios objetos técnicos não significa que podemos ignorar os contextos nos quais esses objetos estão situados Como Platão e Engels insistiram um navio em alto mar pode exigir um único capitão além de uma tripulação obediente Mas um navio fora de serviço parado na doca não precisa de mais do que um zelador Entender quais tecnologias e quais contextos são importantes para nós e porquê é uma empreitada que deve envolver tanto o estudo de sistemas técnicos específicos e sua história como uma compreensão profunda de conceitos e controvérsias da teoria política Em nossa época é comum as pessoas se disporem a fazer mudanças profundas no modo como vivem visando acolher inovações tecnológicas enquanto ao mesmo tempo resistem a mu danças semelhantes justificadas por razões políticas Se não por outros motivos além desse é importante conquistarmos uma visão mais esclarecida a respeito desses problemas do que tem sido habitual até agora ARTEFATOS TÊM POLÍTICA Rivalidades científicas e metropolitanas São Paulo e Rio de Janeiro Sociologia e Ciência Política Lidiane Soares Rodrigues I N F O R M A Ç Ã O D O A R T I G O R E S U M O Recebido 08 de outubro 2017 Recebido em forma revisada 28 de novembro 2017 Aceito 29 de novembro 2017 Publicado on line 01 de dezembro 2017 O presente trabalho aborda a rivalidade de duas metrópoles brasileiras enquanto fator estruturante da emergência e do desenvolvimento de duas disciplinas científicas adversárias Tratase de um lado da Ciência Política no Rio de Janeiro e de outro da Sociologia em São Paulo A rivalidade entre as metrópoles Rio de Janeiro e São Paulo e a estrutura de oportunidades de suas elites dirigentes em disputa por posições no arranjo federativo brasileirocondicionaram a oposição entre os praticantes das duas disciplinas O artigo opõe o modelo de dominação e aliança adotado pelos mentores das instituições científicas oriundos das elites na relação com praticantes das novas disciplinas oriundos de camadas emergentes em ambas as cidades e disciplinas Este modelo é estruturante da oposição entre sociólogos e cientistas políticos que se ocupam da história das ciências sociais Além disso ao contrapor as modalidades de internacionalização dos cariocas à dos paulistas por meio do exame vertical das trajetórias de Wanderley Guilherme dos Santos e de Florestan Fernandes assinala duas maneiras de lidar com a tradição e com a inovação no pensamento brasileiro Palavras Chave Pensamento Social Brasileiro Ciências Sociais Brasileiras Capitais culturais internacionalização instituições científicas Para citar este artigo Soares Rodrigues L 2017 Rivalidades científicas e metropolitanas São Paulo e Rio de Janeiro Sociologia e Ciência Política Urbana 18 7195 Retrieved from httpwwwurbanauapporg Departamento de Ciências Sociais Universidade Federal de São CarlosBrasil UFSCar lidianesrguesgmailcom Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 72 Scientific and metropolitan rivalries São Paulo and Rio de Janeiro Sociology and Political Science A R T I C L E I N F O A B S T R A C T Received September 29 2017 Received in revised form November 28 2017 Accepted November 29 2017 Published online December 01 2017 This article addresses the rivalry between two Brazilian metropolises as a structuring factor for the emergence and development of two adversary scientific disciplines On one hand Political Science in Rio de Janeiro on the other hand Sociology in São Paulo The rivalry between the metropolises Rio de Janeiro and São Paulo and the structure of opportunities of their emergent elites who were fighting for positions in the Brazilian federal arrangement conditioned the opposition among the scholars of these two disciplines This article contrasts the model of domination and alliances adopted by the mentors of scientific institutions originating from the elites in relation to the followers of the new disciplines originating from the emerging social classes in both cities and disciplines This model structures the opposition between sociologists and political scientists who are dedicated to the history of social sciences Moreover by opposing the types of internationalization of citizens from Rio Cariocas and São Paulo Paulistas through the vertical evaluation of the trajectories of Wanderley Guilherme dos Santos and Florestan Fernandes this study describes two ways of dealing with tradition and innovation within Brazilian social thought Keywords Brazilian Social Thought Brazilian Social Sciences Cultural capitals internationalization scientific institutions To cite this article Soares Rodrigues L 2017 Rivalidades científicas e metropolitanas São Paulo e Rio de Janeiro Sociologia e Ciência Política Urbana 18 7195 Retrieved from httpwwwurbanauapporg Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 73 Introdução O presente trabalho aborda a rivalidade de duas metrópoles brasileiras enquanto fator estruturante da emergência e do desenvolvimento de duas disciplinas científicas adversárias Tratase de um lado da Ciência Política no Rio de Janeiro e de outro da Sociologia em São Paulo O Rio de Janeiro capital política do país até 1961 foi sede da institucionalização da Ciência Política no Brasil e pólo convergente dos postulantes à prática profissional desta disciplina originários de outros estados desde a constituição do IUPERJ Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro em 1967 Fundamentalmente o projeto do IUPERJ consistia em restabelecer o ISEB Instituto Superior de Estudos Brasileiros cujas atividades haviam sido encerradas quando a ditadura militar foi estabelecida em 1964 A viabilização disso requeria recursos econômicos e habilidades de negociação política em cenário adverso Estas dificuldades foram contornadas por Cândido Antônio José Francisco Mendes de Almeida 1928 responsável pela chancela do generalato no poder executivo por atrair o mecenato da Fundação Ford e por tornar Wanderley Guilherme dos Santos 1935 o mentor intelectual da mesma Canedo 2009 Keinert 2011 Forjaz 1997 Ambos eram antigos isebianos e tinham sofrido perseguição política com o estabelecimento do regime militar Santos 2011 Na década de 1950 a cidade de São Paulo era a vanguarda da modernização brasileira e seu dinamismo se manifestava na polifonia de projetos artísticos e científicos Um deles era a FFCLUSP Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo criada em 1934 Arruda 2001 p 194 Os mentores econômicos e políticos desta instituição eram frações das elites paulistas derrotadas na Revolução Constitucionalista de 1932 Por meio dessa instituição cujo objetivo era formar elites dirigentes diferenciadas de suas rivais de outras regiões os paulistas respondiam à humilhação da referida derrota militar à condição de alijamento do poder central e à centralização federal conduzida por Getulio Vargas desde 1930 Eles empenharam seus recursos capital econômico e social na contratação de missões de professores estrangeiros notadamente franceses para inaugurar a FFCLUSP Limongi 2001 Cardoso 1982 Nesta instituição as tomadas de posição e a obra de Florestan Fernandes 19201995 institucionalizaram e profissionalizaram a Sociologia moderna durante os quinze anos 19541969 em que ele trabalhou como catedrático regente até que fosse aposentado compulsoriamente pela ditadura militar A rivalidade entre as metrópoles Rio de Janeiro e São Paulo e a posição de suas elites dirigentes condicionaram a oposição entre os praticantes das duas disciplinas Ciência Política e Sociologia Mais especificamente a oposição de um segmento de praticantes em cada uma delas a saber o que se dedica à história das ciências sociais brasileiras De modo geral sociólogos e cientistas políticos tendem a se opor em torno de argumentos societais ou institucionalistas na explicação dos fenômenos políticos Limongi 2016 Por outro lado particularmente ocupados com a história das ciências sociais tendem a se dividir entre os que adotam a abordagem paulista identificandose com Florestan Fernandes e aqueles que adotam a carioca identificandose com Wanderley Guilherme dos Santos Maia 2017 Jackson 2017 Keinert 2011 O presente estudo tenciona reconstituir a gênese desta oposição e oferecer uma explicação dela Este objetivo requer a articulação de três dimensões processuais às quais dedica as sessões abaixo Em primeiro lugar trata dos respectivos padrões metropolitanos de intercâmbio com o mercado global dos bens científicos Eles correspondem à posição de São Paulo e Rio de Janeiro no pacto federativo e aos papeis assumidos pelas elites dirigentes destas cidades na divisão do trabalho de dominação Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 74 política nacional e na conformação de uma sociabilidade intelectual característica Miceli 2001 1989 Carvalho 1994 Em segundo lugar apresenta a divergência que opôs Wanderley Guilherme dos Santos e Florestan Fernandes os mentores intelectuais das disciplinas duas figuras que encarnaram os princípios divisores acima mencionados Finalmente caracteriza e analisa o modelo de dominação e aliança adotado pelos mentores das instituições científicas oriundos das elites na relação com praticantes das novas disciplinas oriundos de camadas emergentes Este modelo é estruturante da mencionada oposição entre sociólogos e cientistas políticos que se ocupam da história das ciências sociais Internacionalização periférica em duas cidades centrais A experiência cultural e a produção científica dos países que se tornaram independentes após os três séculos da colonização dos tempos modernos XVXVIII e que não se tornaram grandes potências no século XX como os Estados Unidos da América EUA estruturamse em torno de uma relação assimétrica com as matrizes estrangeiras dos domínios simbólicos de que as elites ambicionam dotar seus países No que tange às Ciências Sociais não seria diferente Gingras 2002 Heilbron 2002 2008 2014 Sapiro 2013 Em âmbito global as desigualdades econômicas e políticas estruturam tanto a ordem geopolítica quanto as trocas culturais e simbólicas Entretanto estas últimas assumem dinâmica específica irredutíveis à logica econômica e política O presente exame adota a orientação sugerida por Johan Heilbron a respeito de uma história transnacional das ciências Segundo ele tratase de analisar o funcionamento das instituições científicas internacionais e das redes transnacionais os tipos de mobilidade dos universitários as políticas de trocas conduzidas pelas instituições não universitárias como as fundações filantrópicas Heilbron 2009 No Brasil nos anos 1930 as modernas ciências sociais tiveram como eixo estruturante a tensão entre o impulso cosmopolita e os constrangimentos da tradição nacional Ela foi vivida de modo dramático pelos agentes de sua gênese pois as práticas culturais e científicas brasileiras foram historicamente marcadas por sua posição periférica no mundo desde a construção do Estado Nacional no período posterior à independência política de sua metrópole portuguesa em 1822 Por este motivo importa caracterizar as modalidades diferenciadas de internacionalização periférica dos cientistas brasileiros de suas especializações disciplinares e de suas agendas de pesquisa Os projetos institucionais que viabilizaram as ciências sociais brasileiras tiveram patrocínio político de elites dirigentes em afanosa disputa por posições de mando no Estado Nacional É portanto o arranjo político dos estados dentro do Estado Nacional que explica as diversas modalidades de internacionalização das elites regionais Sem um ligeiro recuo histórico a inteligibilidade desses nexos não é possível Em 1930 conduzido por um golpe militar Getúlio Vargas assume a Presidência da República tratase da Revolução de 1930 A ascensão de Vargas reconfigurou o pacto federativo brasileiro Esta reconfiguração implica mudança de peso das elites regionais na composição do governo central e portanto novo padrão de disputa entre elas na conquista de posições de mando no interior dele São Paulo perdeu a partir da ascensão de Vargas a centralidade que tinha neste pacto E a isso reagiu militarmente ameaçando separarse da federação Tratase da conhecida Revolução Constitucionalista de 1932 da qual os paulistas saem militarmente derrotados A partir daí passam à disputa por autoridade cultural e pela condução da nação por meio da constituição de modernas instituições de ensino superior com o objetivo de formar as elites dirigentes Eis a origem do projeto e fundação da Universidade de São Paulo USP em 1934 Entre os anos de 1937 e 1945 o governo de Getúlio Vargas Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 75 caracterizase como ditatorial com a supressão da Constituição e a repressão dos inimigos políticos deixando o Partido Comunista Brasileiro na ilegalidade Ao fim da Segunda Guerra Mundial em que o Brasil tomou parte junto aos aliados em 1942 Vargas é destituído da presidência pelo Alto Comando do Exército que garante a entrega do poder executivo ao presidente eleito general Enrico Gaspar Dutra O período entre 1945 e 1964 é denominado de República Democrática em função de relativa estabilidade do sistema partidário e da regularidade das eleições Em 1964 os militares dão novo golpe político reagindo às medidas populares e socializantes dos governos anteriores Os militares assumem o poder executivo permanecendo nele até 1985 quando o civil José Sarney eleito por vias indiretas assume a Presidência da República Esta exposição contempla dois momentos conhecidos como redemocratização o fim da ditadura Vargas 1946 e o fim da ditadura militar 1985 ambos caracterizados pela elaboração de novas Cartas Constitucionais a Constituição Brasileira de 1946 invalidada pela ditadura militar e a atual Constituição Brasileira de 1988 elaborada depois dela As duas ditaduras a de Vargas e a dos militares caracterizaramse por intensos investimentos nos setores de ciência e tecnologia por uma modernização econômica acelerada voltada a setores industriais e combinando capitais nacionais estatais e estrangeiros variando contudo a proporção deles e o nível de controle e subordinação deste último aos dois primeiros Considerandose a dinâmica interna da evolução das modernas Ciências Sociais no Brasil duas fases são discerníveis e estão entrelaçadas à história política acima recuperada A primeira foi caracterizada pelo estabelecimento de instituições universitárias e pelo início de práticas modernas de pesquisa entre as décadas de 1930 e 1970 Jackson 2017 Nela ocorreram três tipos de intercâmbio principais a importação de professores franceses a recepção de pesquisadores americanos e a realização da pesquisa sobre relações raciais encomendada pela Organização das Nações Unidas para Educação Ciência e Cultura UNESCO A experiência mais bem sucedida deste período em termos de luta pelo estabelecimento de condições de trabalho e conquista por autonomia científica em relação aos poderes religiosos e políticos ocorreu em São Paulo no setor de Sociologia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo FFCLUSP sob a liderança de Florestan Fernandes 19201995 especialmente entre os anos 1954 e 1964 A criação da FFCLUSP em 1934 foi idealizada pelos paulistas como alternativa compensatória à derrota militar sofrida dois anos antes ao desafiarem o governo do presidente Getúlio Vargas que os eliminou do pacto federativo tão logo assumiu o poder executivo em 1930 A segunda fase de desenvolvimento das ciências sociais brasileiras situase nas décadas de 19701990 Ela se caracterizou pelo desenvolvimento da Ciência Política e da Antropologia incipientes no período anterior Sobretudo a primeira disputou temas e análises com Sociologia mais consolidada e contando com mais praticantes e interessados leigos Apesar da expansão institucional o sudeste mantevese largamente dominante em função dos recursos econômicos que concentrava de modo que a integração nacional evoluiu mantendo drásticas assimetrias regionais Do ponto de vista das relações com o espaço global diferentemente da etapa anterior os dois vetores das trocas se desenvolveram tanto importação quanto exportação E a predominância de um país estrangeiro os Estados Unidos da América EUA em detrimento dos demais se consolidou Garcia 2012 Estas duas fases apresentam modos distintos de se relacionar com a cultura científica global Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 76 Na primeira fase a importação de professores franceses ou as célebres Missões Universitárias Francesas resultaram da contratação de professores franceses por frações elites políticas dos estados do Rio de Janeiro do Rio Grande do Sul e de São Paulo para iniciarem as atividades de ensino e pesquisa nas universidades que estavam criando Martinière 2005 Suppo 1999 Petitjean 1996 Lefebvre 1990 As missões se compunham de filósofos antropólogos historiadores geógrafos sociólogos economistas apresentando muita variação disciplinar em cada estado da união Enquanto o financiamento da vinda dos franceses ficava por conta dos brasileiros as visitas dos americanos eram pagas por convênios de seus próprios organismos e universidades Três tipos de pesquisadores podem ser identificados os itinerantes como Herskovits e os pesquisadores do projeto BahiaColumbia além dos antropólogos oriundos das universidades de Columbia de Harvard e do Smithsonian Institute os sedentários como Donald Pierson que trabalhou na Escola Livre de Sociologia e Política uma concorrente paulista da FFCLUSP e os sazonais como Charles Wagley Peixoto 2001 Já a realização da pesquisa encomendada pela UNESCO entrelaçou os influxos americanos e franceses nas ciências sociais brasileiras Maio 1999 A agenda da UNESCO estava interessada no estudo de situações de tolerância racial Tratavase no final da Segunda Guerra Mundial de encontrar uma experiência contrastante tanto à vivida na Alemanha nazista quanto à de intolerância com os negros nos EUA Visto como um paraíso racial o Brasil afigurouse hipoteticamente como a situação quase laboratorial para a investigação de padrões de tolerância e convivência interracial O antropólogo Alfred Métraux foi assistido na qualidade de diretor do Setor de Relações Raciais do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO pelo brasileiro Ruy Coelho exaluno de Roger Bastide membro da segunda missão francesa de fundação da FFCLUSP e de Melville Herskovits na Universidade de Northwestern Ambos elaboraram o projeto a respeito das relações raciais no Brasil que foi dirigido a Bahia Pernambuco Rio de Janeiro e São Paulo Nesta cidade Roger Bastide e Florestan Fernandes coordenaram as atividades da pesquisa A mencionada equipe de sociólogos de Florestan Fernandes foi gestada e formada nesta experiência e o tema da integração do negro determinou os rumos das pesquisas posteriores da equipe Na segunda fase o caso particular da área de ciência política apresenta interesse redobrado pois à posição dominada estruturante do espaço nacional das práticas simbólicas sobrepõese o quadro político global da Guerra Fria A gênese desta disciplina remonta aos vínculos estabelecidos entre os Estados Unidos da América a América Latina e o Brasil por meio dos agenciadores dos intercâmbios acadêmicos que viabilizaram a institucionalização dela durante os anos 1970 do século passado Holmes 2013 Iber 2015 Gremion 1998 Os protagonistas da ciência política brasileira no Rio de Janeiro em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul foram a o mecenato estrangeiro sobretudo a Fundação Ford representada pela figura carismática de Peter Bell que dotou alunos com bolsas de doutorado e centros de pesquisa com insumos financeiros b as elites regionais que negociaram a permissão política para os empreendimentos institucionais posto que o país era governado por uma ditadura militar c os artífices intelectuais da nova disciplina acadêmica antigos militantes das esquerdas radicais Canedo 2009 Forjaz 1997 Keinert 2011 Sublinhese que na segunda fase da prática institucionalizada das ciências sociais que tange à presença estrangeira transformouse o papel desempenhado pelos estrangeiros O declínio dos franceses e do predomínio dos americanos foi acompanhado da mudança no padrão de trocasAo invés da importação de professores os brasileiros passam a receber insumos econômicos e a exportar seus alunos Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 77 As duas fases são indissociáveis da importação seletiva de recursos oriundos dos países dominantes no espaço global do intercâmbio científico e discerníveis também pelas modalidades de internacionalização dominantes em cada uma delas Estas modalidades são inteligíveis por meio de uma dupla caracterização Por um lado da dinâmica das demandas internas de estruturação do segmento do campo científico de que se trata as Ciências Sociais que opera como princípio seletivo das importações culturais Por outro do leque de escolhas ao qual esta seleção se aplica a estrutura externa da oferta pertinente recursos institucionais como modelos de organização financiamento avaliação do trabalho científico recursos humanos como embaixadores culturais professores pesquisadores e recursos intelectuais como doutrinas obras conceitos autores oriunda dos países dominantes aos quais prioritariamente os países dominados se voltam no período considerado a saber França Inglaterra e Estados Unidos da América Dezalay Garth 2002 Wagner Réau 2015 Charle Schriewer Wagner 2004 Nem sempre evidente para as elites dirigentes destes países cujo consumo condicionase à afanosa disputa pela manutenção e valorização de suas posições e portanto à lógica nacional este leque de escolhas resulta da competição por influência nos territórios para os quais os países mais poderosos exportam produtos materiais e simbólicos e portanto à dinâmica das assimetrias globais entre os dominantes Lebaron 2016 Garcia Attencourt 2015 Em ambas as etapas observase um desenvolvimento acentuadamente desequilibrado entre as cinco regiões do território e entre as três disciplinas que compõem as ciências sociais no Brasil sociologia ciência política e antropologia Os desequilíbrios regionais se explicam pela forte concentração de recursos econômicos no sudeste e pelo desfecho de disputas travadas entre elites regionais por posição hegemônica no difícil pacto federativo e pela condução de aparelhos de Estado Já os disciplinares não se subsumem ao campo político mas não se desvencilham dele Considerandose apenas a região mais competitiva e dinâmica do espaço nacional observase a emergência em meados dos anos 1950 de uma oposição estruturante entre São Paulo capital econômica e o Rio de Janeiro capital política do país até 1961 Os sociólogos paulistas tomavam posições favoráveis à autonomia científica e ensaiavam o estabelecimento de práticas correlatas a ela juízo dos próprios pares padronização de critérios de apreciação e depreciação etc No Rio de Janeiro a proximidade com os aparelhos de Estado inclinava os principais cientistas sociais ligados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros ISEB ao engajamento e à prática de ciência aplicada como subsídio à assessoria dos poderes públicos Esta oposição entre paulistas e cariocas ligase de modo complexo aos projetos das elites mentoras das instituições A criação do ISEB em 1955 não ocorreu contra o Estado Ao contrário Ele era um organismo associado a ele isto é ao MEC Ministério da Educação e da Cultura Já a FFCLUSP é originalmente antifederal contra Vargas e contra a centralização política que tornou diminuta a posição de São Paulo No Rio de Janeiro a condição de centro administrativo não só era insuficiente para respaldar iniciativas autônomas quanto principalmente impedia que elas se manifestassem à margem do Estado Em que se pese a presença estrangeira como estímulo a CLACSO Centro LatinoAmericano de Ciências Sociais o escritório da Fundação Ford desde 1962 para mencionar os mais ilustres a contigüidade com o poder público facilitava a construção das instituições promovendoas mas por outro lado obstava a sua liberdade de ação Arruda 2001 p 208 Oliveira 1995 Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 78 Com ou contra o passado dois modos historiográficos de tratar a tradição Nesta seção tratase das duas versões opostas a respeito da história das ciências sociais brasileiras Uma foi elaborada pelo cientista político carioca Wanderley Guilherme dos Santos e a outra pelo sociólogo Florestan Fernandes A oposição do primeiro ao segundo foi assumida explicitamente A história das ciências sociais brasileiras elaborada por Wanderley Guilherme dos Santos discute preliminarmente os critérios de seleção e análise utilizados na pesquisa e investigação da formação e desenvolvimento das disciplinas sociais no Brasil Santos 1978a p 25 Ele elenca e critica os balanços bibliográficos que antecederam os seus Dentre eleso balanço de Florestan Fernandes é reprovado por três motivos a periodização o estabelecimento das particularidades brasileiras em relação a outras experiências nacionais e o argumento sociológico ver abaixo Contra trechos III IV V Segundo a avaliação de Wanderley Guilherme dos Santos Florestan Fernandes adota uma premissa historiográfica insustentável orientada pela evolução linear do pensamento de etapa précientífica para a etapa científica e por isso sustenta uma visão estereotipada do passado cultural brasileiro Santos 1967 p 182 Elaborada em oposição à perspectiva errônea que reputa a Florestan Fernandes a história de Wanderley Guilherme dos Santos invertea O autor ressalta continuidades entre os pensadores sociais e políticos do século XIX e XX e é generoso com o nível das elaborações valem as boas eou as ruins interessam os que pensaram os dramas políticos de seu tempo Elimina o fator institucionalização das atividades intelectuais como divisor da periodização e também o fator social da explicação das ideias e dos ideais dos pensadores Empenhase em afirmar que todos os países se forjam no intercâmbio com outras culturas Assim durante o período colonial a metrópole portuguesa intermediava as trocas intelectuais com outros países a partir da Independência o Estado Nacional passa a ser o intermediário e o pensamento brasileiro tende a se nacionalizar Seu esforço historiográfico possui sentido apoiandose na recuperação da tradição ver abaixo trecho I e II Os textos de Florestan Fernandes criticados por Wanderley Guilherme dos Santos são Ciência e sociedade na evolução social do Brasil e Desenvolvimento histórico social da Sociologia no Brasil redigidos em 1956 Diferentemente de Wanderley Guilherme dos Santos Florestan Fernandes não constroi sua narrativa em oposição às anteriores O mote historiográfico consiste na premissa de que o saber científico não se desenvolve aleatoriamente sob quaisquer circunstâncias porém sob determinadas condições e demandas sociais Assim algumas sociedadesencorajam o saber científico e outras o bloqueiam É em busca das condições que propiciam e bloqueiam a ciência que Florestan Fernandes observa o passado colonial e nacional Sem que o acesso aos papeis de produção intelectual se torne aberto deixando de ser prerrogativa de determinadas castas estamentos ou círculos sociais a vida do espírito origina ensaios diletantes e mantémse sob rédeas personalistas incongruentes com o universalismo e a impessoalidade racional da ciência Fernandes 1977 p 15 Por isso ele segmenta a história das ciências sociais em fases de ausência e presença de formalização e regramento de suas práticas tratando as instituições como prérequisito da produção e da competição propriamente científica Seria impossível haver ciência social no período colonial dominada pelo clero católico atrelado à tutela do estado metropolitano As transformações morfológicas que antecedem as demandas por instituições científicas encerram processos lentos de secularização O sociólogo paulista as situa no século XIX com a formação do Estado Nacional e a segmentação interna às elites na origem de reações não uniformes às pressões conservadoras das camadas dominantes Fernandes 1977b p 33 E no entanto a institucionalização das ciências Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 79 sociais não é considerada suficiente para o desenvolvimento delas posto que a escassez de recursos materiais e humanos tem impedido seus avanços Ver abaixotrecho VI A quais demandas objetivas imediatas as duas narrativasapresentadas acima atendiam Paradigma e história a ordem burguesa na imaginação social brasileira foi encomendado por Cândido Mendes e escrito em fevereiro de 1975 Tratavase de responder à solicitação da UNESCO Organização das Nações Unidas para Educação Ciência e Cultura que preparava uma de suas típicas publicações sobre Ciências Sociais incluindo Brasil URSS Holanda Austrália Tunísia Tanzânia e Camarões Com efeito a UNESCO é uma força promotora do espaço global das ciências sociais nos anos 1970 Bustamante 2014 Os textos de Florestan Fernandes criticados por Wanderley Guilherme dos Santos e produzidos duas décadas antes têm outra motivação imediata Porém como os dele prestamse ao trabalho de construção disciplinar e negociação com os patronos políticos e econômicos dela A respeito deles sabese apenas que Ciência e sociedade na evolução social do Brasil é parte de estudo mais amplo cujo objeto é a constituição de um sistema institucional de pesquisa científica no campo da etnologia e da sociologia e que Desenvolvimento histórico social da Sociologia no Brasil foi preparado para a revista alemã Sociologus Fernandes 1977b p 25 E no entanto eles foram concebidos em concomitância com outros textos cujos objetivos idênticos têm uma direção inequívoca o governo do estado de São Paulo e o governo federal o quadro abaixo Providências de um jovem regente na periferia da malha social apresentaos indicando estes destinatários nacionais O sociólogo negociou com o governador do estado de São Paulo Jânio Quadros cada contratação docente para a cadeira de Sociologia I Vale lembrar que de um lado este governador era originário do curso de Direito do Largo São Francisco estabelecimento de ensino assumidamente hostil à FFCLUSP Em contrapartida desde que assumiu a cátedra em 1954 Florestan Fernandes foi presidente e relator de sucessivas comissões de estudos no interior da FFCLUSP responsáveis pela elaboração de relatórios que justificavam a demanda por pessoal e recursos econômicos Com o mesmo propósito dirigiuse ao governo federal particularmente a Anísio Teixeira então secretáriogeral da CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Esta conduta o singularizou no conjunto dos catedráticos pois ele era singularmente destituído de recursos dos quais os demais dispunham Enquanto outros digladiavamse na imprensa desafiando o governador João Cruz Costa Eurípedes Simões de Paula e Mario Schenberg Florestan Fernandes produzia artigos valorizando o trabalho realizado na FFCLUSP e relatórios sobre as dificuldades de trabalho na instituição Rodrigues 2011 202 Eis a origem e a motivação dos artigos escritos concomitantemente àqueles criticados por Wanderley Guilherme dos Santos duas décadas depois Em suma Paradigma e história a ordem burguesa na imaginação social brasileira resulta de um serviço prestado por Wanderley Guilherme dos Santos a Cândido Mendes interessado em garantir o lugar das ciências sociais brasileiras entre as outras nacionalidades reunidas pela UNESCO Florestan Fernandes desdobravase por si próprio dirigindose aos poderes políticos Portanto o alvo global o âmbito nacional e a oposição regional a São Paulo conformam o espaço discursivo do cientista político carioca contra Florestan Fernandes com a tradição brasileira Em contrapartida Florestan Fernandes se opõe preferencialmente à penúria de recursos que ameaça a sobrevivência da cátedra que acabava de assumir e por isso seus destinatários são os poderes temporais capazes de dotálo de recursos Bourdieu 1984 p 144 As histórias Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 80 das ciências sociais brasileiras são indissociáveis das motivações imediatas apresentadas acima Não se encerram nelas contudo a inteligibilidade desta oposição supõe recuo e avanço no tempo Elas tiveram desdobramentos de média duração ainda hoje atuantes As nuances entre a letra do texto de Florestan Fernandes e a apresentação que dele fez Wanderley Guilherme dos Santos não chamaram atenção dos sucessivos leitores de ambos1 Seria necessária outra pesquisa para tratar do artifício que transformou o argumento sociológico de Florestan Fernandes a respeito da emergência de uma ordem social não estamental moderna competitiva e com impulsos racionalistas igualitários em interesse de classe tal como apresentado por Wanderley Guilherme dos Santos ver nos trechos I e V Este não é contudo o interesse deste estudo Estas nuanças foram ignoradas em proveito dos princípios de apreciação que Wanderley Guilherme dos Santos impôs aos textos de Florestan Fernandes E os defensores tanto de um quanto de outro evidenciam a força desse enquadramento pois o adotam como orientação para próprias investigações De um lado encontramse os contextualistas seguidores da perspectiva institucional de Florestan Fernandes e que se ocupam de fatores externos aos textos dos intelectuais que estudam De outro os seguidores da perspectiva de Santos que recusam o peso do contexto das instituições e dos interesses e que afiram ocuparemse apenas dos textos dos intelectuais Keinert 2011 102 Portanto dentre os argumentos dos dois autores em oposição aquele que teve mais efeitos na organização do espaço daspráticas tornandose efetivoprincípio de divisão dos agentes foio de Wanderley Guilherme dos Santos Ele reservou à história das ciências sociais escrita por cariocas a valorização da tradição em detrimento das instituições e destinou à escrita por paulistas a valorização das instituições em detrimento da tradição Jackson 2017 2 Não é o objetivo deste artigo indagar por que e como os adeptos de um e de outro lado retiveram esta dimensão em detrimento de outras oposições entre Wanderley Guilherme dos Santos e Florestan Fernandes De modo mais circunscrito a última sessão ocupase apenas da sociogênese da oposição recuando no tempo Com a tradição Trecho I esquecido o critério institucionallegal e também o formalismo estreito que consiste em desprezar as investigações sociais que foram produzidas de maneira pouco sofisticada a evolução das ciências sociais no Brasil pode ser ordenada de acordo com a evidência empírica mais simples em função do conteúdo manifesto dos trabalhos publicados Não é difícil exercitando este tipo de ordenação revelar a coincidência entre o conteúdo de questões discutidas e a agenda de problemas sociais e politicamente importantes início XVIII interessante que no limite coincide com a literatura brasileira para A Cândido p 35 Vai para o tema da organização social e do Estado justamente os mesmos que mobilizam os cientistas políticos naquele momento Santos 1978a 35 1 Estas observações baseiamse na discussão de Michael Baxandall 2006 3143 a respeito da descrição de obras de arte assim como no exame das leituras de LéviStrauss realizado por Lygia Sigaud 2007 2 Não foi a única e nem a primeira vez que Florestan Fernandes era eleito como alvo privilegiado da crítica de um cientista social do Rio de Janeiro Em meados dos 1950 contrapondose ao universalismo científico defendido pelo paulista o sociólogo baiano Guerreiro Ramos trabalhando no Rio de Janeiro no ISEB defendia uma sociologia nacional a serviço da solução imediata dos problemas do país Oliveira 1995 Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 81 Trecho II Entre 1930 e 1939 produzemse no Brasil as mais argutas análises sobre o processo político nacional elaboramse as principais hipóteses sobre a formação e funcionamento do sistema social e articulase o conjunto de questões que em verdade permanecerão até hoje como o núcleo fundamental embora não exaustivo de problemas a serem resolvidos teórica e praticamente A quantidade e qualidade da análise empreendidas no período recomenda modéstia em qualquer tentativa de síntese Sempre fiará de fora algo de significativo que não se deixa aprisionar pelos esquemas classificatórios mesmo quando se procura simplesmente relacionar os temas presentes explicitamente nas obras É viável contudo relacionar um conjunto básico de volumes que exprimem as diversas orientações presentes naquele período e nos quais certamente se encontram discriminadas as interrogações principais da época São conservadores são autoritários são integralistas são católicos indecisos revolucionários inquietos Sem preocupação sistemática embora muitas vezes revelando surpreendente familiaridade com a produção internacional pertinente despreocupados quanto aos cânones acadêmicos fixaram entretanto solidamente o repertório de problemas que sob roupagens linguísticas as mais variadas se vem transmitindo de geração em geração até hoje Santos 1978a p 40 Contra Florestan Fernandes Trecho III para Florestan Fernandes a oficialização dos estudos sociais no Brasil sob a forma de sua organização burocrática universitária coincide com a difusão de técnicas modernas de investigação social os estudos de campo por amostragem o questionário a entrevista e assinalam a passagem no tempo do período précientífico para o período científico da investigação social no Brasil é basicamente à institucionalização das atividades científico sociais que se atribui o caráter de divisor de águas entre o período précientífico e o período científico da produção intelectual brasileira Embora rudimentar tal periodização tornouse de certo modo clássica Santos 1978a p 26 Trecho IV As Ciências Sociais no Brasil surgiram e se têm desenvolvido sob a influência conjugada de dois processos o da forma de absorção e difusão interna dos avanços metodológicos e substantivos gerados em centros culturais no exterior e o dos estímulos produzidos pelo desenrolar da história econômica social e política do país É possível considerar a evolução das Ciências Sociais em qualquer país como subordinada ao mesmo conjunto de influências e determinações e por isto indispensável esclarecer que a ênfase deve ser colocada sobretudo na forma de absorções e difusão da produção estrangeira e no tipo de interação exigente entre os eventos sociais e a reflexão científica A reflexão sobre os processos sociais é em qualquer cultura fruto da relação simultânea que a sociedade entretém com seu passado e presente e com o presente de outras comunidades O que pode tornála peculiar é a qualidade e repercussão do conteúdo e da forma que resultam do processamento dos diversos aspetos em que aquela relação e estabelece e progride Também no Brasil portanto a reflexão sobre processos sociais apenas revela uma dimensão do complexo processo através do qual um país e sua cultura vai adquirindo individualidade nacional ao mesmo tempo em que se integram na história universal Santos 1978a p 17 Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 82 Trecho V Os dois textos de Florestan Fernandes assinalam o ponto máximo a que atingiu a matriz sociológica na análise do pensamento social brasileiro Com frequência o que se encontra são tentativas manquées de sociologia do conhecimento onde a simples enunciação e descrição de atributos dos processos sociais seriam evidências suficientes para demonstrar a relação de dependência funcional entre o conteúdo do que se pensa e o desdobrar empírico da história social Tomase por premissa exatamente o que incumbe demonstrar isto é que os processos sociais são de racionalidade cristalina é sintomático que em nenhuma análise que simplesmente se tenha equivocado inteiramente quanto a seus interesses de classe diante das virtualidades do processo objetivo No máximo obtémse a indicação de que este ou aquele autor falhou no seu prognóstico porque não percebeu que a defesa ou implementação dos interesses de sua classe era de todo inviável ou pelo menos difícil nos termos pretendidos pelo autor tendo em vista as condições objetivas do processo histórico que faziam com que as demais classes também conscientes e ciosas de seus próprios interesses se organizassem para defendêlos Jamais entretanto admitese que o autor se tenha equivocado quanto ao diagnóstico que faz da situação social e que consequentemente a forma de explicar mais simplesmente seu pensamento seria a de que de acordo com o critério de interesse de classe ele simplesmente estava errado A posteriori todos os pensamentos podem ser remetidos à estrutura social de uma ou de outra maneira bastando mero exercício de imaginar as mediações necessárias quer de natureza sociológica quer de natureza psicológica se o objetivo é referir a reflexão social a esta ou aquela condição objetiva da sociedade assumindose que estamos bastante certos do que significa condição objetiva da sociedade Santos 1978a 29 Os pressupostos da ciência para Florestan Fernandes Trecho VI É preciso notar que a referência a autores Tavares Bastos Perdigão Malheiros e Joaquim Nabuco etc e à sua produção intelectual não é feita com a intenção de analisar as suas contribuições mas apenas de estabelecer um ponto de referência explícito para a compreensão das ligações da transformação da sociedade brasileira com o processo de desenvolvimento da sociologia Fernandes 1977b p 33 Trecho VII O saber racional floresce em sociedades estruturalmente diferenciadas e estratificadas nas quais a divisão do trabalho e a especialização dos papeis de produção intelectual se associam a concepções secularizadas da existência da natureza humana e do funcionamento das instituições O acesso aos papeis de produção intelectual se torna aberto deixando de ser prerrogativa de determinadas castas estamentos ou círculos sociais Estilos divergentes de pensamento passam a disputarse o reconhecimento público de sua legitimidade ou validade o saber racional assume naturalmente a forma de saber positivo ou científico Fernandes 1977a p 15 Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 83 Providências de um jovem regente na periferia da malha social Autoria Data Documento 1ª publicação Florestan Fernandes 1955 Sugestões para o desenvolvimento das ciências humanasDestinatário Anísio Teixeira Florestan Fernandes 1956 Relatório sobre a situação do ensino de ciências sociais na Universidade de São PauloDestinatário Jânio Quadros Florestan Fernandes 1956 Ciência e Sociedade na evolução social do Brasil Revista Brasiliense n 6 Florestan Fernandes 1956 Desenvolvimento históricosocial da Sociologia no Brasil Sociologus Versão reduzida n 2 1956 completa Anhembi n 75 e 76 fevereiro de 1957 Florestan Fernandes 1957 As Ciências Sociais em São Paulo Jornal do Comércio RJ 10111957 Jornal do Ceupes n 1 1959 Florestan Fernandes 1958 O padrão do trabalho científico dos sociólogos brasileiros Revista Brasileira de Estudos Políticos BH n 3 1958 Florestan Fernandes presidente e redator 1959 Comissão de 111958da Congregação da FFCLUSP Relatório sobre as necessidades urgentes da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo Destinatário governo do estado de São Paulo Seção Gráfica da FFCL da USP São Paulo 1959 Florestan Fernandes redator Comissão de 081959 da Congregaçãoda FFCLUSP FFCL da USP lições pedagógicas de uma crise de crescimento Extraído e adaptado de Rodrigues 2011 p 252 Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 84 O enraizamento e o desterro as disposições de duas posições A minha mãenão lia trabalhava não é Eu não sei como apareceu o gosto por leitura eu tinha que pegar carona no bonde tinha que entrar no cinema sem pagar tinha que roubar maçã da Confeitaria Tijuca tinha que ser homem não é Era a concepção prevalecente em Vila Isabel nos anos finais dos anos 1940 e início dos anos 1950 Então se eu dissesse que lia qualquer coisa era uma coisa meio esquisita Então em casa eu era o leitor ávido passava o tempo lendo lia o tempo todo na rua eu era o bagunceiro nãoé Santos 2001 p 45 Eu não possuía o instrumental requerido para ser um professor honesto de filosofia grega fui abandonando cada vez mais a perspectiva e ao mesmo tempo eu me envolvia e gostando cada vez mais de pensar cada vez mais pensava epistemologicamente sobre problemas econômicos políticos e sociais Então eu fui juntando pedaços da filosofia que me interessava buscando ter uma abordagem nãodogmática não escolar no sentido de escolas ou doutrinas Quando eu leio os sociólogos eu leio como filósofo ou quando leio um cientista político eu leio como epistemólogo eu leio como filósofo Eu não leio no sentido político Eu vejo onde eles estãovulneráveis do ponto de vista do que eles propõem como proposição do que eles apresentam como evidência e como aquilo é frágil logicamente Eu leio como filósofo Essa foi uma das vantagens quando eu fui fazer o doutorado no exterior porque tinha essa educação Santos 2011 p 28 Wanderley Guilherme dos Santos nasceu em 1935 no Rio de Janeiro e cresceu em Vila Isabel bairro modesto habitado por classes médias baixas Ele estudou em escola privada e seu gosto pela leitura e pela vida intelectual se forjaram numa ambígua relação com a cultura masculina das ruas de seu bairro e dos colegas da escola Durante o ensino secundário precisou trabalhar ao concluílo teve suas primeiras experiências políticas no movimento estudantil liderando a gestão do diretório acadêmico Ingressou na Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro desde 1958 Universidade Federal do Rio de JaneiroUFRJ e concluiu o bacharelado em Filosofia em 1958 Seu desempenho intelectual chamou a atenção de seus professores e ele foi convidado por Álvaro Vieira Pinto para ser seu assistente Ele engajouse politicamente à esquerda por um breve período e de modo intenso Sua vida profissional foi impactada por isso Entre 1958 e 1963 ele militou no Partido Comunista Brasileiro PCB rompeu com ele e aderiu ao Movimento Revolucionário Tiradentes aproximandose do movimento das Ligas Camponesas Tomado pelo clima da época participou de alguns dos muitos movimentos de jovens universitários em caravanas de alfabetização de adultos Ridenti 2014 Tornouse célebre pelo folheto Quem dará o golpe no Brasil publicado em 1962 O acúmulo de visibilidade e sucesso rendeulhe aliados e adversários Em função de conflitos com Eremildo Luiz Vianna foi impedido de ser assistente de Vieira Pinto e como alternativa ingressou sem remuneração nos quadros do ISEB foi demitido de seu trabalho no SESC por ter assinado uma carta de apoio à revolução cubana Quanto às ambições intelectuais elas se orientavam para a Filosofia Contudo não dominar os idiomas valorizados nesta área notadamente línguas antigas mortas como latim e grego além de alemão o impediram de prosseguir na direção idealizada Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 85 inicialmente Ao calibrar suas competências intelectuais com a área a que se dedicaria vislumbrou o estudo filosófico de autores brasileiros daí seu interesse pelo estudo da história das ideias e de autores brasileiros Já casado e pai trabalhou na imprensa no jornal Correio da Manhã até que fosse atingido pela perseguição político policial do regime militar em 1966 Por intermédio do economista Gilberto Paim antigo isebiano o vínculo com Cândido Mendes fundador do setor de História do ISEB foi retomado por ele Herdeiro de uma linhagem familiar distinta Cândido Mendes tinha trânsito na cúpula militar na elite do clero católico Ele circulava habilmente entre os aparelhos de Estado brasileiro desde o período anterior à ditadura militar Keinert 2011 p 70 Bacharel em Direito e Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUCRJ nos anos 1960 administrou as empresas educacionais de sua família foi docente mentor político eou investidor econômico das principais escolas de quadros para o governo federal com sede na capital do país e chefe da assessoria técnica do presidente Jânio Quadros 19613 Desde o encerramento das atividades do ISEB Candido Mendes pretendia fazêlo reviver e ele foi hábil na condução deste objetivo Em reação à perseguição policial a partir de 1964 ele trabalhou com os católicos do Movimento Democrático Brasileiro MDB na defesa de presos políticos realizou viagens ao exterior estabelecendo vínculos com organismos internacionais e privilegiando o sistema acadêmico norteamericano Enquanto visitante em Harvard Princeton Stanford e Columbia agenciou recursos humanos e econômicos na origem do IUPERJ 1969 Em 1969 ele se tornou subsecretário da Comissão Nacional dos Bispos Brasileiros CBBB em 1973 membro do Conselho Executivo da Federação Internacional de Universidades Católicas Concomitantemente assumiu o papel de mediador de numerosas relações entre jovens pretendentes a cientistas políticos e os nomes de peso desta área nos EUA Em parceria com Júlio Barbosa antigo isebiano professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais instituição igualmente beneficiária da Fundação Ford ele organizouo Seminário Internacional de Desenvolvimento Político 1966 Neste seminário numerosas parcerias de trabalho entre doutorandos brasileiros e professores americanos foram estabelecidas Reis 2016 Destacouse como introdutor de Samuel Huntington e de suas ideias a respeito da descompressão política entre os generais à frente do poder executivo Lemos 2014 4Estas posições de mando e gerenciamento do espaço dos cientistas sociais foram reforçadaspor meio de intensa circulação nos organismos internacionais Em 1974 assumiu a presidência do Comitê de Programas do International Social Science Council ISSC entidade representativa das organizações nãogovernamentais de ciências sociais reconhecidas pela UNESCO de 1974 a 1976 foi secretário do Grupo de Estudos Políticos da CLACSO por dois mandatos foi vicepresidente da IPSA InternationalPolitical Science Association da qual se tornou presidente em 1982 Abreu 2010 3 Guardadas as devidas diferenças PUCRJ ISEB e EBAPFGVRJ Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro formam um sistema similar ao das grandes escolas no cenário brasileiro Bourdieu 1989 sobretudo no que tange à área de Economia Loureiro 1997 4 Samuel Huntington esteve no Brasil em 1965 1966 1968 1969 1972 e 1974 As cinco primeiras viagens são agenciadas por Cândido Mendes mentor institucional do IUPERJ com o propósito de participar de eventos acadêmicos na área de ciência política O grau de adoção das ideias do cientista político americano pelo generalato é motivo de discordâncias há os que postulem pelas conversações que estabeleceram a influência da descompressão política na estratégia de abertura lenta gradual e segura Skidmore 1989 p 326 Keinert 2011 p 73 Lemos 2014 Há outros que não endossam esta assertiva Pereira 2017 Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 86 O convênio estabelecido por Cândido Mendes com a Fundação Ford ofertou a Wanderley Guilherme dos Santos uma bolsa para realizar entre 1967 e 1970 seu doutorado nos EUA Ele foi recepcionado por Robert Packenham em Stanford onde elaborou a tese Sessenta e quatro anatomia da crise com o objetivo de explicar a dinâmica da competição política por meio de um modelo que estabelece mediante a descrição de sistemas polarizados que uma crise de paralisia decisória tornase o resultado mais provável do confronto político quando os recursos de poder se dispersam entre atores radicalizados em suas posições Precisamente o que caracteriza segundo ele os anos entre 1961 e 1964 Santos 1986 p 9 Ao voltar ao país assumiu as tarefas de construção institucional do IUPERJ recrutou professores ministrou cursos organizou o periódico Dados e dinamizou a instituição que atraiu pesquisadores de regiões menos centrais do Brasil notadamente de Minas Gerais Não surpreende portanto que em sua história das ciências sociais brasileiras dirija tanta atenção aos autores que estiveram próximos do Estado e preocupados com a relação deste com a sociedade brasileira O desencontro entre sua tomada de posição por uma ciência da política e os possíveis usos que seus interlocutores militares políticos e profissionais Ver abaixo campo político e campo científico dois princípios de percepção das evidências Campo político e campo científico dois princípios de percepção das evidências Em outubro de 1973 antes do anúncio do projeto de redemocratização pelo presidente Ernesto Geisel ocorrido no ano seguinte o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos pronunciou a conferência Estratégias de descompressão política para membros do ARENA Aliança Renovadora Nacional e do MDB Movimento Democrático Brasileiro A conferência tratou cientificamente de um objetivo prático a sugestão de alternativas ao comportamento político para a nova etapa do autoritarismo brasileiro em que s ia ingressar Santos 1978b p 11 O argumento sustentava que a descompressão política capaz de estabelecer um regime que comportasse o dissenso e a divergência de modo estável pressupunha um pacto coletivo em torno de seu regramento Por isso era necessário não apenas o afastamento de distorções autoritárias como também uma deliberada política de implantação e manutenção de uma ordem nãoautoritáriaSantos 1978b p 182 Dentre os ouvintes alguns lhe saudaram ironicamente o tom frio e cientificista da abordagem outros duvidaram de sua recusa em oferecer receitas políticas e as extraíram da conferencia e por fim houve quem sugerisse que ao afirmar que o retorno à democracia deveria ser obra de cálculo e não de espontaneísmo o cientista político estava defendendo o regime autoritário As reações evidenciam a dissonância dos propósitos do cientista político e das elites políticas Santos 1978b p 165182 Florestan Fernandes nasceu em 1920 na cidade de São Paulo teve uma infância modesta com trajetória escolar regular interrompida Já adulto retomou de São Paulo teve uma infância modesta com trajetória escolar regular interrompida Já adulto retomou estudos Ao ingressar na FFCLUSP encontrou um ambiente elitizado no qual a atividade intelectual não era praticada com a rotina do trabalho regular Em meados dos anos 1940 era incipiente o processo que conferiria identidade a esta instituição Ela foi resultado do desencontro entre o projeto original das elites voltado à Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 87 formação de suas frações dirigentes e a realização dele que se efetivou por meio de camadas sociais modestas Miceli 1989 A vida intelectual regrada e contínua de que eram portadores os professores franceses não foi atraente para os setores da elite mais inclinados ao feitio mundano da vida intelectual de salões Já para as camadas destituídas de chances de ingresso nas escolas de Direito Medicina e Engenharia a FFCLUSP representou uma grande oportunidade Ao lado de alguns membros cultivados das elites decadentes numerosos alunos com este perfil empenharamse na construção da instituição Camadas ascendentes imigrantes e mulheres faziam ingressar novas condutas de trabalho e disposições cognitivas estranhas ao diletantismo indisciplinado dos polígrafos grãfinos Por isso elas foram esteio social da construção de uma dignidade lastreada nos pressupostos do saber científico exercido com a sistemática profissional Arruda 2001 p 195 Florestan Fernandes consiste no caso exemplar deste processo Em que se pesem as dificuldades de traquejo social do moço modesto que tentou de muitas maneiras se aproximar de figuras de relevo cenário paulistano Ramassote 2013 seu desempenho estudantil chamou atenção de um dos mentores da instituição que era docente nela Fernando de Azevedo assim como de um membro da segunda missão francesa incumbido tanto da inauguração dos cursos quanto da dotação de condições autônomas de funcionamento dos mesmos o que implica escolher pessoal para tanto Roger Bastide Florestan Fernandes cursou Ciências Sociais entre 1941 e 1944 em seguida cursou o mestrado em Sociologia e Antropologia Tratavamse de áreas indiferenciadas à época e de titulação acadêmica pouco usual Sob orientação de Herbert Baldus na escola vizinha e concorrente da FFCLUSP a ELSP Escola Livre de Sociologia e Política fundada em 1933 defendeu em 1947 A organização social dos Tupinambá Em 1952 quando Roger Bastide decidiu voltar à França Florestan Fernandes foi escolhido por ele para assumir a cátedra de Sociologia I até então regida por Bastide Tratouse de um apadrinhamento estrangeiro que implicou na sua ausência dificuldades para o prosseguimento das atividades na cátedra apesar do prestígio da escolha A superfície social de circulação de Florestan Fernandes entre 1947 e 1952 ilustra a indeterminação do momento que antecede esta nomeação e os conflitos desencadeados por ela Em 1944 ao papel de arrimo somouse o de pai de família ao contrair matrimônio com Myriam Rodrigues No ano seguinte a convite de Fernando Azevedo tornase segundo assistente na cátedra de Sociologia II da FFCLUSP Nesse ínterim flertou com o movimento político e a efervescência cultural em São Paulo Traduziu e escreveu uma Introdução para a Contribuição à crítica da economia política de Karl Marx a convite de seu amigo de militância trotskista HermínioSachetta Em 1951 tornouse doutor em Sociologia pela FFCLUSP sob direção de Fernando de Azevedo defendendo A função social da guerra na sociedade Tupinambá No ano seguinte acumulou o trabalho de assistente em duas cadeiras pois aceitou o convite de Roger Bastide para ser seu primeiro assistente na Sociologia I Bastide colocou à prova a capacidade de trabalho de Florestan convidandoo para participar da pesquisa encomendada pela UNESCO a respeito da democracia racial no Brasil Florestan demonstroua energicamente A docência foi cumprida em concomitância à montagem de uma equipe de trabalho média para os padrões da época com alunos do bacharelado coletou dados em pesquisa de campo realizou reconstituição histórica exemplar Em meio a esta pesquisa defendeu a tese de livredocência na Sociologia I Ensaio sobre o método de interpretação funcionalista na Sociologia O percurso coerente das titulações e racionalizador do trabalho intelectual acumulado nelas era algo inteiramente inédito Arminda 2001 Pontes 1998 Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 88 É certo que o patriarcalismo do regime de cátedras impediria que mulheres as assumissem Spirandelli 2011 Silva 2008 Por outro lado o intenso trabalho de Florestan junto a Bastide parecia reproduzir em miniatura factual a ordem social aberta ao mérito que foiidealizada pelo moço modesto em ascensão por esforços próprios Ao escolhêlo para reger a cátedra Bastide o reconhecia pelo trabalho nesta pesquisa Não por acaso têmse assinalado que ao assumir o posto Florestan Fernandes formou a equipe mais dinâmica e coesa do cenário revirando as posições mais ou menos estáveis dos que ainda se apraziam em praticar um estilo erudito ensaísticoe diletante de pensar o Brasil Os jovens que ele reuniu em seu entorno eram os mesmos que haviam trabalhado na pesquisa encomendada pela UNESCO Portanto ele conhecia as competências específicas e recursos econômicos e sociais que a reunião destes indivíduos renderia Como Florestan Fernandes eles se diferenciavam numa ilha de sociologiacercada de literatura por todos os lados como disse Ruy Coelho dando forma verbal ao estranhamento de tantos outros como Bento Prado Jr Antonio Candido Pontes 1998 As disciplinas científicas são espaços sociais Heilbron Gingras 2016 Renisio 2016 Abbot 2001 configurados segundo uma dinâmica que lhe é própria Portanto apresentam cenários por vezes propícios à colaboração por vezes tendentes à concorrência e à polarização Gingras Prudhomme 2016 Fabiani 2008 A imagem dos sociólogos ilhados pela literatura circundante exprime de modo cabal os perfis opostos dos grupos de produtores simbólicos no microcosmo paulista De um lado os membros decadentes cujo capital cultural foi adquirido no ambiente familiar inclinados à crítica cultural e à literatura De outro as camadas ascendentes dotadas de competências conferidas pela própria instituição úteis cientificamente mas de pouco valor simbólico postas sob a suspeita de filistinismo Rodrigues 2011 p 452 Pontes 1998 Estes últimos convergiam para a cadeira de Florestan Fernandes A Sociologia I isolada e destituída do suporte e do apoio das elites mentoras da instituição só sobreviveria com a contratação deles e a manutenção das pesquisas iniciadas anteriormente Foi com este objetivo que o sociólogo se inseriu nas comissões da FFCLUSP e elaborouos textos criticados por Wanderley Guilherme dos Santos abaixo Providências de um jovem regente na periferia da malha social A construção de si próprio da jovem disciplina e da instável instituição se confundiram desde que assumiu a regência da cátedra em 1954 No momento em que Candido Mendes e Wanderley Guilherme dos Santos empenhamse na construção do IUPERJ o ocaso do projeto de Florestan Fernandes é incontornável As tentativas de blindar o espaço que havia construído deram origem a numerosos conflitos interpessoais junto a outros catedráticos e aos membros de sua própria equipe Romão 2006 Em 1969 Florestan Fernandes foi aposentado compulsoriamente pela ditadura civilmilitar e passou a amargar a experiência anterior Efetivamente a reconfiguração da morfologia institucional das ciências sociais eliminouo da prática delas relegando a posições dominadas e voltadas apenas ao ensino Rodriguessd Tomar parte no cenário de expansão das ciências sociais não implicaria somente a incorporação de novos aportes teóricos e metodológicos As incontornáveis negociações com omecenato filantrópico estrangeiro e com frações do generalato dirigente tão habilmente realizadas pelo patronato da geração 68 eramlhe simplesmente impossível Nos anos 1970 quando ele foi eleito alvo das críticas do cientista político carioca suas atividades estavam orientadas para um espaço de intersecção entre ciência e política situandose num ponto duplamente dominado destes dois âmbitos Rodrigues 2010 O perfil sociológico do conjunto de seus vínculos no período compreendido entre 1969 e 1986 Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 89 realçaa ampliação da distância tomada no espaço social dos membros das elites políticas e intelectuais5 Vale sistematizar sumariamente a comparação dos dois casos Wanderley Guilherme dos Santos e Florestan Fernandes Em similaridade encontramse os flertes com o pólo político radical no início das trajetórias a tomada de posição nas disciplinas caracterizada pela defesa do universalismo e do ponto de vista autônomo Os percursos sociais em que se pesem nuanças do ponto de partida apresentam a ascensão viabilizada por meio dos esforços e da ética do trabalho dirigida ao âmbito científico Florestan Fernandes figura como o expoente da Sociologia paulista que estabelece o trabalho profissional como métrica de avaliação para o conjunto dos praticantes da disciplina no Brasil na primeira fase de institucionalização disciplinar Wanderley Guilherme dos Santos realiza o trabalho equivalente na Ciência Política guardandose as devidas particularidades da segunda fase da institucionalização das ciências sociais Ademais ambos apresentam ao longo da trajetória concepções demiúrgicas de intelectual Keinert 2011 p 200 As linhas definidoras dos dois retratos indicam nitidamente o paralelo que os torna similares em termos de direção disciplinar e científica e opostos em termos de condições de realização dela A relação com as elites dirigentes mentoras das instituições e disciplinas das quais ambos são patronos determina que um se faça sob o signo do enraizamento que compensa o não pertencimento inicial a elas eo outro do desterro que reforça a origem social estranha Enquanto o cientista político carioca conta com o patronato nacional Santos Mendes como alavanca e suporte da circulação internacional nos EUA o sociólogo paulista depende fortemente do reconhecimento estrangeiro Bastide para lhe garantir um posto de trabalho local cátedra de Sociologia I No caso de Wanderley Guilherme dos Santos o perfil da produção intelectual a versãoda história das ciências sociais brasileiras e sua carreira profissional caracterizamse por rara articulação entre elementos da tradição nacional e da inovação requerida pelas transformações modernizantes No que tange à produção intelectual ele articulou duas vertentes raramente praticadas pelo mesmo indivíduo De um lado o estilo americanizado de ciência política com modelização matematização e demonstrações empíricas rigorosas De outro o estilo erudito e ensaístico da tradição brasileira cujo valor no mercado das trocas simbólicas permanece alto6 No tange à história das ciências sociais brasileiras ele reivindicou a recuperação da dignidade valor e peso de autores que não produziram suas obras sob regime de trabalho científico institucionalizado Recusou a periodização que cindia a ciência social institucionalizada 5 Entre a aposentadoria compulsória e o ingresso no Partido dos Trabalhadores PT em 1986 Florestan Fernandes passou três anos no Canadá ao passo que seus pares ou se dirigiam aos EUA e Europa ou trabalhavam no CEBRAP Centro Brasileiro de Análise e Planejamento Durante os anos 1970 ele trabalhou em editoras coordenou a coleção Grandes Cientistas Sociais da Editora Ática a coleção Pensamento Socialista da Editora Hucitec animou os periódicos Debate e Crítica e Contexto Foram esporádicas as atividades de docência na PUCSP onde em 1977 e 1978 ofereceu um curso sobre a revolução cubana Contribuiu com periódicos oficiais e alternativos como Leia Livros Voz da Unidade Nova Escrita Ensaio Opinião Movimento Senhor Senzala Folhetim A partir de 1983 escreveu periodicamente na Folha de S Paulo Foi eleito duas vezes como deputado federal pelo PT ao qual se filiou com o intuito precípuo de participar da elaboração da Constituinte Rodrigues 2010 6 Os títulos de alguns livros ilustram cabalmente esta combinação empirismo e demonstração rigorosa de um lado e de outro erudição filosófica ensaísmo político referências literárias O paradoxo de Rousseau 2007 Paradoxos do liberalismo 1999 Dois escritos democráticos de José de Alencar 1991 Discurso sobre o objeto uma poética do social 1990 Crise e castigo 1987 Kantianas brasileiras 1984 Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 90 da que a precedeu Do mesmo modo que suas pesquisas e seus livros empenhouse em articular o antigo e o novo Estas inclinações são indissociáveis do terceiro elemento No que tange à carreira ele encontrou no esteio social dos herdeiros da elite dirigente o apoio que viabilizou seu ingresso no segmento intelectual das mesmas O patronato de Candido Mendes foi decisivo na fase em que sua trajetória passava de uma fase de indeterminação em que os possíveis rumos dela permaneciam abertos e incertos à de determinação na qual eles se encerraram Além disso o perfil de internacionalização do patronato institucional Candido Mendes e dos cientistas políticos para os quais o caso de Wanderley Guilherme dos Santos é paradigmático distinguese do paulista Enquanto em São Paulo as elites opinaram pela importação dos quadros estrangeiros no Rio de Janeiro foi possível em função da conjuntura da Guerra Fria aproveitarse de recursos econômicos estrangeiros e exportar os quadros brasileiros como estudantes de doutorados Arriscase afirmar que esta maneira de lidar com a cultura científica estrangeira impacta a visão que se tem da excepcionalidade brasileira Quanto mais intensa a circulação internacional e os mecanismos de troca recíprocos menos inclinado o cientista social a tratar o Brasil como caso excepcional de modernidade O inverso ocorre na produção dos cientistas sociais em São Paulo cidade menos voltada ao duplo vetor do intercâmbio exportaçãoimportação e mais inclinada à importação de estrangeirosdocentes No caso de Florestan Fernandes a produção científica a narrativa da história das ciências sociais brasileiras e sua carreira profissional caracterizamse por rupturas constantes com elementos oriundos da tradição No que tange à produção intelectual enquanto o ensaísmo e a crítica cultural e literária vicejavam ele foi o expoente inicial da defesa da articulação coerente entre teoria social métodos e demonstração empírica Nesta defesa seguia parcialmente as orientações dos estrangeiros com os quais trabalhou no Brasil Baldus e Bastide Tanto sua formação ocorre inteiramente em São Paulo como impôs como regra à sua equipe ela sairia para circular internacionalmente apenas depois do doutorado e ainda assim sob advertências estritas de sua parte Arruda 2001 No tange à história das ciências sociais brasileiras a eleição da divisa pré e pós instituições indica a percepção de que trajetórias como a sua dependem delas e do que adotou como meio sociológico pressuposto para o desenvolvimento delas Poderia ser diferente Seu caso parece ser o inverso do observado na ciência política carioca em que a camada ascendente foi prevista como agente do projeto institucional Como sublinhouse o ingresso destas camadas em descenso no interior da FFCLUSP estava em dissonância com as expectativas que animava as elites mentoras Os professores estrangeiros em contrapartida com aguda percepção da ambiguidade sabiamse contratados por indivíduos que não garantiriam a sistemática do trabalho intelectual Maugué 1982 LéviStrauss 1955 2007 e alguns como Bastide entravam em afinidade com o ethos do trabalho dos plebeus Assim no que tange à carreira Florestan Fernandes não gozou do esteio permanente dos herdeiros da elite dirigentee construiu o seu próprio dirigindose aos alunos que conseguiu reunir Rodrigues 2011 p 457 O patronato inicial de Fernando de Azevedo a amizade de Antonio Candido a admiração de Bento Prado Jr não desempenharam papel equivalente ao de Candido Mendes para a fase inicial da carreira de Wanderley Guilherme dos Santos E nada mais equivocado do que supor que se tratasse de problemas interpessoais os membros da elite próximos de Florestan Fernandes simplesmente não dispunham das posições de mando do acesso ao aparelho de Estado do capital social e político que confere fisionomia inconfundível ao empreendimento de Candido Mendes no IUPERJ arranjo típico da cidade do Rio de Janeiro Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 91 Considerações Finais A vida urbana e a vida do espírito em termos culturais amplos e científicos em particular apresentam nexos diversos cuja sondagem tem sido profícua Peixoto Gorelik 2016 Charle 2012 Ginzburg Castelnuovo 1981 Eksteins 2001 Schorske 1989 Morse 1990 Carvalho 1994 Pontes 2003 Arruda 2001 Este trabalho tratou da rivalidade entre duas cidades dos recursos de suas respectivas elites da criação de instituições científicas na origem de duas disciplinas concorrentes e das condições objetivas da prática das mesmas Esta última dimensão foi desenvolvida pela análise vertical das trajetórias de Wanderley Guilherme dos Santos e Florestan Fernandes O artigo colocou em paralelo de duas trajetórias ascensionais como pivôs do estabelecimento de instituições em que Ciência Política e Sociologia foram abrigadas no Rio de Janeiro e em São Paulo Quanto às escalas geopolíticas o trabalho empenhouse em articular o âmbito nacional regional e internacional de modo palpável por meio da caracterização dos interesses e das alianças dos agentes orientadas àqueles níveis O cosmopolitismo imaginário de São Paulo que decreta o país como exceção nos quadros modernos pois importa estrangeiros se opõe ao cosmopolitismo prático do Rio de Janeiro pois aí importação e exportação se articulam Nesta cidade o duplo intercâmbio exportação importação é rotinizado como herança do período em que foi capital política e atraía empreendimentos estrangeiros de toda ordem Daí a representação do país dos cientistas sociais formados em instituições com sede carioca acentuarem menos os aspectos da excepcionalidade brasileira inclinaremse ao nacionalismo Vale assinalar que o período da Guerra Fria particularmente merece mais atenção no que tange a estas escalas Os empreendimentos institucionais em âmbito continental como a Cepal entrelaçaram a concorrência política e intelectual entre os países e a vida metropolitana da capital em que foi sediada Santiago do Chile Cáceres 2016 Beigel 2016 Sublinhese por fim que a experiência dos agentes elites políticas mentoras institucionais e camadas plebeias mentoras intelectuais de que se tratou acima não parece consistir numa anomalia Ao contrário ela equivale à de outros grupos e agentes cujo pioneirismo e inovação se fizeram na tensão entre os trunfos intelectuais específicos de que eram dotados e a defasagem dasposições titubeantes que ocupavam no espaço social e político tanto no âmbito da ciência quanto no âmbito das artes Elias 2011 p 2363 Bourdieu 2013 1998 Joly 2017 Heilbron 1991 Referências Abbot A 2001 Chaos of disciplines Chicago Chicago University Press Abreu A Beloch I 2010 Dicionário históricobiográfico brasileiro pós1930 Rio de Janeiro CPDOC Almeida M H T 1987 Castelos na Areia Dilemas da Institucionalização das Ciências Sociais no Rio de Janeiro 19301964 Boletim Informação bibliográfica 24 4160 Arruda M A N 2001 Metrópole e cultura São Paulo no meio do século XX BauruSão Paulo Edusc Baxandall M 2006 Padrões de intenção São Paulo Companhia das Letras Beigel F 2016 El nuevo carácter de la dependencia intelectualCuestiones de Sociología 14 117 Bourdieu P 1984 Homo academicus Paris Minuit 1989 La noblesse dÉtat Grandes écoles et esprit de corps Paris Les Editions de Minuit Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 92 1998 Les Règles de lart genèse et 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os novaiorquinos da PartisanReviewe os paulistas de Clima entre 1930 e 1950 Revista Brasileira de Ciências Sociais 18 53 3352 1998 Destinos mistos os críticos do grupo Clima em São Paulo 19401968 São Paulo Companhia das Letras 1998 Reis F W2016 HuisClos no Chile e ciência política no Brasil In Avritzer L Milani Socorro M ed 2016 A ciência política no Brasil 19602015 São Paulo FGV Renisio Y 2016 Loriginesociale des disciplines Actes de la recherche en sciences sociales 210 1027 Ramassote R 2013 A vida social das formas literárias Tese de doutorado Unicamp Ridenti M 2014 Em busca do povo brasileiro São Paulo Unesp 2ª ed Romão W M 2006 A experiência do Cesit sociologia e política acadêmica nos anos 1960 São Paulo Humanitas Rodrigues L S 2011 A produção social do marxismo universitário em São Paulo 19581978 Tese de doutorado FFLCHUSP 2010 Florestan Fernandes interlúdio São Paulo Hucitec 2016 Marx em três tempos de Florestan Dois pontos 13 1 89109 sd no prelo Centralidade de um cosmopolitismo periférico Aprovado para publicação Santos W G 2011 Depoimento FGV 36p On line at httpcpdocfgvbrcientistassociaishistorico Accessed September 06 2017 1967 A imaginaçãopolíticosocial brasileira Dados 3 182192 1970 Raízes da imaginaçãopolítica brasileira Dados 7 137161 1978a Paradigma e história a ordem burguesa na imaginação social brasileira In Ordem burguesa e liberalismo político São Paulo Duas Cidades 1986 Sessenta e quatro anatomia da crise São Paulo Vértice 1978b Poder e política Crônica do autoritarismo brasileiro Rio de Janeiro ForenseUniversitária Skidmore T 1989 Brasil de castelo a Tancredo 19641985 Rio de Janeiro Paz e Terra Soares Rodrigues Rivalidades científicas e metropolitanas Urbana Vol XVIII 2017 95 Sapiro G 2013 Le champestilnational In Actes de la Recherche en Sciences Sociales 200 7085 Schorske C 1989 Viena Findesiècle Política e Cultura São Paulo Cia das Letras Sigaud L 2007 Doxa e crença entre os antropólogos In Novos Estudos Cebrap 77 129152 Silva D P 2008 Da política à ciência política da ciência política à política a trajetória acadêmica de Paula Beiguelman 19491969 Dissertação de mestrado FFLCHUSP Spirandelli C C 2011 Trajetórias intelectuais professoras do Curso de Ciências Sociais da FFCLUSP 19341969 São PauloHumanitas Suppo H 1999 La politique culturelle française au Brésil entre les années 19201950 Thèse Doctorat Paris III Wagner A C Réau B 2015 Le capital international un outil danalyse de la reconfiguration des rapports de domination In Siméant J ed Guide de l enquête globale en sciences sociales Paris Éditions du CNRS RBCS Vol 27 n 80 outubro2012 A IMINENTE REVOLUÇÃO NA TEORIA SOCIAL Raewyn Connell Tradução de João Maia processo de trabalho mais amplo no qual o conhe cimento é produzido e circulado Na produção contemporânea de conhecimen to tal como vista em universidades o processo de trabalho intelectual como um todo envolve a coleta de dados o processamento teórico desses dados e a disseminação e aplicação dos resultados Isso tudo pode ser feito por apenas uma pessoa e uma for ma artesanal de organizar o processo de trabalho realmente existe nas disciplinas universitárias Tan credSheriff 1985 Mas na maioria dos campos de saber há uma força de trabalho maior e mais complexa e uma detalhada divisão social de traba lho relacionada à produção de conhecimento há tarefas organizativas e gerenciais nessa divisão do trabalho as quais são realizadas no nível estratégi co pela teoria Conforme apontado por Paulin hountond ji 1997 esta divisão social do trabalho sempre teve uma dimensão geopolítica Tanto nas ciências A inclusão do que é diferente da diferença no corpo das teorias atuais encontra resistência vigorosa pois há uma enraizada relutância em encarar o problema crítico que é a reestruturação do próprio aparato conceitual universal anouar abdelmalek The future of social theory 1971 O que é teoria Eu proponho uma definição algo ortodoxa Teoria é o trabalho que o centro1 faz É claro que a palavra também implica a for mação de conceitos a construção de argumentos causais e a definição e o desenvolvimento de méto dos Meu ponto é que essas atividades são formas de trabalho intelectual que ocorrem dentro de um Conferência realizada no 35º Encontro Anual da An pocs Caxambu Minas Gerais em 26 de outubro de 2011 12068rBCS80AF4indd 9 101012 1037 Am 10 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS VOL 27 N 80 naturais como nas sociais o mundo colonizado e a periferia global póscolonial têm sido a zona na qual se coletam os dados em grande escala e pos teriormente aplicase o conhecimento organizado A metrópole2 o centro imperial tem sido o lugar preeminente para a teoria Metodologia forma ção conceitual processamento de dados e debate intelectual aconteceram principalmente nas uni versidades nos museus nos jardins botânicos e nos institutos de pesquisa dessa região do mun do Assim uma divisão imperial do trabalho es trutura o processo social que fundamenta os tex tos que usualmente nomeamos como teoria As formas de trabalho que constituem e direcionam o processo de produção de conhecimento estão concentradas principalmente nas instituições de elite do Norte global Na Austrália ou no Brasil nós não citamos Foucault Bourdieu Giddens Beck habermas etc porque eles conhecem algo mais profundo e pode roso sobre nossas sociedades Eles não sabem nada sobre nossas sociedades Nós os citamos repetidas vezes porque suas ideias e abordagens tornaramse os paradigmas mais importantes nas instituições de conhecimento da metrópole e porque nossas instituições de conhecimento são estruturadas para receber instruções da metrópole Se teoria é o trabalho que o centro faz então a mudança revolucionária é possível Caso esse trabalho seja feito em outros lugares o centro será fatalmente relocalizado Os possíveis significados desse processo para as ciências sociais serão o tema deste artigo A estrutura geopolítica do pensamento sociológico A construção de conceitos nas ciências sociais sempre envolve uma reificação da experiência so cial Dizer isso não é uma crítica em si algum tipo de reificação é necessário para se ir além da situa ção imediata e concreta para podermos falar sobre outras situações Mas colocar isso dessa maneira imediatamente provoca a seguinte questão que ex periência social está sendo reificada e mais especifi camente experiência social de quem Os textos de teoria social envolvem princi palmente uma reificação da experiência social do Norte3 Às vezes isso é bem direto como quando somos informados de que vivemos numa sociedade de redes ou numa sociedade de risco ou na pós modernidade todas caracterizadas por experiên cias sociais que a maioria da população do mundo não vive Nas formas mais sofisticadas e poderosas de teoria contudo a reificação da experiência so cial da metrópole ocorre num nível mais abstrato Eu explorei esse ponto em uma análise de três grandes textos de teoria social geral escritos por Coleman Bourdieu e Giddens Connell 2006 A despeito das grandes diferenças em estilo e substân cia entre os autores seus trabalhos compartilham as mesmas características lógicas que refletem o posi cionamento típico enraizado na metrópole Talvez o mais importante seja que eles constroem concei tos e métodos para analisar uma sociedade desprovi da de determinações externas Isso implica dizer que suas metodologias teóricas excluem o colonialismo Eles não escrevem a partir da experiência social de quem foi colonizado ou se envolveu na coloniza ção ou ainda está imerso numa situação neocolo nial E na verdade suas imaginações teóricas não incorporam o colonialismo como um processo so cial significativo Esse metrocentrismo4 da imaginação socioló gica é mais evidente nas teorias da globalização De todos os tópicos sociológicos é nesse que as re lações entre metrópole e periferia são mais nítidas Ainda assim a abundante literatura sociológica fei ta no Norte frequentemente projeta características da modernidade ou pósmodernidade da metrópo le para outros espaços Para muitos teóricos isso é tudo o que globalização significa Ao refletirem sobre neoliberalismo escritores do Norte quase nunca citam pensadores do Sul que pudessem cor rigir seus pressupostos Connell 2007 A sombra do metrocentrismo no Norte é o metrocentrismo no Sul Escritores de partes muito distintas da periferia global identificaram o mes mo problema em línguas diferentes Um crítico literário australiano escreveu sobre o servilismo cultural5 que infestou a vida cultural de seu país Phillips 1950 Um novelista do sudoeste asiático que também foi crítico social inventou um termo 12068rBCS80AF4indd 10 101012 1037 Am A IMINENTE REVOLUÇÃO NA TEORIA SOCIAL 11 em Farsi Gharbzadegi grosso modo Westoxica tion ou ser golpeado pelo Ocidente para no mear a condição neocolonial do Irã Ale Ahmad 1982 1962 Um sociólogo do sudeste asiático fala sobre a dependência acadêmica na periferia um aspecto da divisão global do trabalho nas ciên cias sociais Alatas 2003 Um filósofo da África ocidental nomeia a extroversão6 dos intelectuais no mundo colonizado isto é a condição de ser orientado para fontes de autoridade externas à sua própria sociedade hountondji 1997 As formas materiais dessa dependência são familiares Intelectuais da periferia viajam para a metrópole para obter treinamento avançado Nós buscamos publicar nos jornais da metrópole juntarnos aos invisible colleges 7 de lá e se tiver mos sorte obter empregos nas suas instituições Essas práticas agora são poderosamente reforçadas pela governança neoliberal das universidades pre ocupada com a posição competitiva nos rankings internacionais que são surpresa centrados no Norte global e utilizam o critério de excelência lá desenvolvido As conseqüências intelectuais são menos discu tidas mas são profundas Para publicar em periódi cos da Metrópole devese escrever seguindo os gê neros da Metrópole citar a literatura da Metrópole e tornarse parte do discurso lá produzido Para um cientista social isso significa tanto descrever sua própria sociedade como se fosse a metrópole supri mindo sua especificidade histórica ou descrevêla em termos comparativos situando sua especifici dade nos parâmetros da metrópole Neste último caso o cientista social tornase o informante nativo para o mundo intelectual da metrópole É claro que essas pressões são discutidas e podem ser resistidas De fato existem numerosas formas identificáveis de resistência a maioria delas envolvendo uma busca por especificidade local Nas ciências sociais a estratégia mais familiar de resistência à hegemonia da metrópole é enfatizar as distintas tradições nacionais ou estilos de traba lho intelectual Este projeto tem sido proeminente recentemente na Associação Internacional de So ciologia agregando as histórias de muitas sociolo gias nacionais Burawoy Chang e hsieh 2010 Pa tel 2010 Um exemplo notável com grande grau de detalhamento é o recente livro Doing sociology in India Patel 2011 Outra estratégia é a busca por sistemas indíge nas de conhecimento8 entendidos como contextos para produção de um conhecimento que esteve ori ginalmente fora do sistema eurocentrado e que tal vez ainda possa estabelecer uma base para autono mia Essa busca tem sido particularmente vigorosa na África Odora hoppers 2002 Como a abor dagem baseada nas tradições nacionais ela implica o pluralismo epistemológico debatido numa pu blicação recente da CLACSO Olivé et al 2009 Uma terceira estratégia é a crítica póscolonial do pensamento europeu comum no trabalho de Edward Said A tentativa de provincializar a Eu ropa e os projetos decoloniais9 que discutem e questionam a América Latina Chakrabarty 2000 Mignolo 2005 são os últimos desenvolvimentos dessa estratégia Um livro recente Decolonizing European sociology Gutiérrez Rodríguez Boatcã e Costa 2010 aplica essa crítica diretamente para as ciências sociais Uma quarta estratégia é a tentativa de encon trar fora das tradições europeia e norteamericana bases para um universalismo alternativo Interlocu tores respeitáveis nessa seara são a ciência islâmica incluindose aí as tradições islâmicas nas ciências so ciais e a filosofia inspirada em Ghandi Alatas 2006 Lal 2002 Tais projetos não demandam pluralismo epistemológico mas na verdade uma racionalidade que está fundada em um lugar que não aquele ocu pado pelas tradições metrocentradas O encontro colonial como o ponto crucial para a teoria social Presente em todos esses projetos mas não na teoria eurocêntrica está o próprio encontro co lonial Este encontro não é apenas o momento de conquista colonial ou de controle indireto não importa quão importante seja Implica também a constituição da sociedade colonial a transforma ção de relações sociais sob o poder colonial as lutas pela descolonização a instalação de novas relações de dependência e as lutas para aprofundar ou desa fiar essa dependência 12068rBCS80AF4indd 11 101012 1037 Am 12 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS VOL 27 N 80 O pensamento social que emerge dessa ex periência histórica é o que chamei de Southern theory Connell 2007 Seja como for chamada e analisada essa experiência histórica que vale lembrar envolve a maioria das pessoas no mun do é crucial para a teoria social Qualquer for ma de teoria social que não discute o encontro colonial definese automaticamente como um as sunto de menor importância Isso inclui a maior parte do que é atualmente conhecido como teo ria na sociologia Entender e teorizar a partir do encontro co lonial é uma tarefa desafiadora além de ser tra balho para muitas mãos Sem a pretensão de to mar a frente desse trabalho talvez seja útil indicar alguns de seus componentes que implicam uma tarefa distinta das realizadas pelos já conhecidos projetos de teoria do Norte Primeiro a escala a extensão e o impacto so cial da violência mundo afora A supressão violenta da resistência durou por quatrocentos e cinquenta anos dos espanhóis atracando no Caribe com espa das e armas de fogo até os ingleses e franceses bom bardeando aldeias do alto de jatos se contarmos as recentes guerras estadunidenses em apoio aos seus próprios regimes prepostos a contagem está em quinhentos anos As duas guerras mundiais na Europa e no Pa cífico Norte empalidecem em comparação esta foi a verdadeira Guerra Mundial Ela não apenas subs tituiu regimes políticos mas destroçou mundos sociais exterminou algumas populações e deixou um rastro poderoso de corpos e deficiências físicas e mentais ao redor do planeta Meekosha 2011 Para tomar um padrão social como exemplo a vio lência colonial foi extremamente marcante na for mação das masculinidades nas sociedades coloniais da periferia Nandy 1983 Morrell 2001 Segundo a reelaboração dos enquadramentos de causalidade social e temporalidade A teoria so cial europeia pressupôs uma sucessão inteligível de formas sociais isto é assumiu uma ideia de tempo contínuo A colonização criou o tempo descontí nuo uma sucessão que não é inteligível a partir das dinâmicas sociais da sociedade précolonial Essa disjunção é levada à frente nas culturas colonial e póscolonial Ela foi mesmo incorporada pela so ciologia do século XIX por meio do contraste entre primitivo e moderno A teoria do Norte geralmente pressupõe uma epistemologia consolidada dentro da qual formas sociais coerentes podem ser traçadas uma ordem de gênero uma estrutura de classe etc Como Nina Laurie 2005 observou de forma aguda ao discu tir formas de gênero que emergiam nas guerras da água em Cochabamba na periferia tal episte mologia não pode ser pressuposta A colonialidade do poder para usar a expressão de Aníbal Quijano 2000 cria diferentes condições para o entendi mento do social Terceiro o fato de que o encontro colonial foi ontoformativo10 em grande escala ele criou reali dades sociais que não existiam anteriormente Isto foi afirmado com clareza particular por Valenti ne Mudimbe no seu A invenção da África 1988 Essa invenção é não apenas uma imagem cultu ral tal como mapeada por Said e Mignolo em ou tros contextos É também a criação de uma nova ordem social A conquista instala uma estrutura colonizadora cujas tarefas tal como Mudimbe as vê são dominar o espaço reformar as mentes dos nativos e integrar as economias locais ao capitalis mo global Essa história inclui a criação do Estado colonial a atividade dos missionários a criação de economias de plantation e da criação pastoril e a história completa do desenvolvimento das minas assassinas de Potosí aos buquês feitos de flores que são agora transportadas de forma chocante de avião da África Central para a Europa Ocidental Estruturas de gênero e de classe são criadas sob condições únicas no mundo colonial e não sim plesmente importadas ou modificadas Sempre que mencionamos o outro componente das análises interseccionais atuais raça estamos diante de uma das mais fundamentais criações do colonialis mo pois conceitos modernos de raça são precisa mente um produto tardio do Império A teoria do Sul também pode ser expressa em outros gêneros O livro Gharbzadegi de Ale Ahmads tem uma forma literária bem diferente de digamos Bowling alone Putnam 2000 em bora ambos tratem da alienação e contenham aná lise social combinada à crítica cultural Diferenças ainda mais radicais podem ser encontradas Alguns 12068rBCS80AF4indd 12 101012 1037 Am A IMINENTE REVOLUÇÃO NA TEORIA SOCIAL 13 elementos importantes do pensamento social de Ali Shariati 1986 são expressos na forma de sermões e não se encontra tal formato tão facilmente na so ciologia feita no Norte Como as condições do trabalho intelectual e a história social das intelligentsias são diferentes no mundo colonizado daquelas existentes na metrópo le o caráter da teorização provavelmente também será distinto Instituições acadêmicas são menos poderosas e movimentos sociais importam mais É claro que se podem encontrar importantes pensa dores no Norte que escreveram no contexto desses movimentos Antônio Gramsci logo vem à men te Mas não são muitos comparados com os aca dêmicos Na lista de chamada dos teóricos do Sul encontramse frequentemente pessoas como Plaa tje Sun Kenyata Fanon Prebisch cujos trabalhos foram produzidos em um contexto de luta política ou Shariati Amin hauofa e outros que trabalha ram na fronteira entre academia e ativismo A estruturação colonial da realidade social não termina com a descolonização formal como Qui jano entre outros enfatizou Uma ciência social adequada globalmente deve se preocupar com as formas tomadas pelo encontro colonial após a in dependência política A brilhante e triste análise do desastre de Bhopal11 por Veena Das em seu Critical events 1995 é exemplar relacionando corporações transnacionais o estado desenvolvimentista pós colonial a ideologia legalista e o silenciamento da voz popular We are the ocean 2008 de Epeli hauofa uma rara contribuição para o pensamen to social oriunda de pequenos estados insulares oferece uma análise afiada do contínuo desorde namento de sociedades insulares do Pacífico des de suas independências formais a criação de uma classe dominante dependente em torno da ajuda internacional e dos negócios e a relegação da lín gua e culturas locais para áreas habitadas pelos pobres e sem escolaridade Como Wiebke Keim 2008 observa o apartheid sulafricano propiciou a emergência de uma escola específica de ciências sociais na forma de uma sociologia industrial crí tica Após o fim do apartheid trabalhos notáveis foram feitos sobre relações de gênero e sexualidade no contexto da grande crise de hIV na África do Sul e da conversão neoliberal da ANC Congresso Nacional Africano Eu não quero sugerir que a teoria do Sul é profundamente distinta da teoria do Norte e que habita um mundo diferente Isso remete à crítica que Domingues 2009 corretamente fez à versão de Mignolo do projeto decolonial o de que este inverte a dicotomia modernidadetradição da teoria do desenvolvimento Intelectuais na periferia estão constantemente utilizando elementos do pensa mento produzido na metrópole e as preocupações de pesquisadores do Sul obviamente se encontram com aquelas das disciplinas do Norte Mas o pen samento social na periferia global ocorre sob con dições diferentes tem pressupostos e possibilidades distintas e suas consequências têm para utilizar uma metáfora um centro diferente de gravidade Mudando o conteúdo da teoria Uma teoria social focada no Sul global tem uma conexão com o projeto do conhecimento in dígena conforme sugerido acima mas é fundamen talmente preocupada com as transformações da so ciedade e do conhecimento no mundo colonizado Considerese por exemplo a discussão sobre gêne ro e terra feita por Marcia Langton uma intelectual aborígene12 de destaque na Austrália em seu paper sobre a Grandmothers Law 1997 Na antropologia dominante no mundo anglo saxão a cultura aborígene australiana tem sido retratada como patrilinear e patriarcal Mas essa representação veio predominantemente de antro pólogos homens convencidos da inferioridade das mulheres As mulheres por sua vez têm demons trado que os direitos femininos estavam inscritos em sistemas précoloniais de posse da terra embora estes operassem de forma distinta ou abarcassem lugares diferentes do que os direitos masculinos sobre a terra Nas condições da conquista colonial violenta e da pressão radical sobre culturas aborígenes no mundo póscolonial essa ordem terragênero foi brutalmente interrompida conforme demonstrado seja pela memória social seja pela documentação histórica Somerville e Perkins 2010 Mas o povo 12068rBCS80AF4indd 13 101012 1037 Am 14 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS VOL 27 N 80 aborígene lutou tenazmente por sua vida Langton argumenta que as tradições femininas suas regras seus enraizamentos nos lugares e o conhecimen to para seguir em frente Grandmothers Law13 provaramse extraordinariamente persistentes e mostraramse fundamentais para a manutenção da sociedade aborígene Mulheres mais velhas portan to tornaramse a chave para a sobrevivência social sob o impacto severo do colonialismo Na vida aborígene contemporânea aunty14 é um termo de grande respeito A ênfase de Langton nos direitos sobre a terra a preocupação mais importante da política aborí gene australiana na última geração é notável A terra é um assunto quase ausente da teoria de gê nero no Norte com exceção do ecofeminismo e praticamente ausente também da teoria social do Norte em geral Entretanto é um assunto funda mental para o entendimento do poder colonial e póscolonial Isso não é novidade no Brasil dada a presença do Movimento dos Sem Terra MST na política contemporânea e os insolúveis conflitos sobre o uso da terra na região amazônica Nesse ponto de vista o trabalho de João Maia 2008 sobre Eu clides da Cunha e o espaço no pensamento social brasileiro abre excitantes perspectivas para a histó ria da teoria A celebração e a estereotipação dos sertanejos na criação da identidade nacional têm importantes ressonâncias no culto ao outback15 por parte dos colonos australianos na mesma épo ca Trazendo a discussão para o presente a terra e o seu lugar no processo social serão um assunto de suma importância no desenvolvimento de uma sociologia do meio ambiente como por exem plo na investigação sobre a criação de mercados globais de carbono BentonConnell 2011 há novos trabalhos surgindo que desenvolvem pers pectivas do Sul na teoria sobre o urbano Edensor e Jayne 2011 A mudança que ocorrerá na teoria social pelo crescimento de perspectivas do Sul é em parte por conta do advento de novos assuntos tais como a violência ontoformativa e a importância social da terra mas também em parte envolve perspectivas alternativas sobre temas já existentes Os mercados globais de carbono já mencionados são um projeto do neoliberalismo e a agenda do neoliberalismo é um caso em questão Até agora embora amplamente criticado no Sul global o neoliberalismo tem sido teorizado a partir do Norte global Suas raízes históricas estão supostamente fincadas nas ideologias dominantes da metrópole seu núcleo político seria composto de desregulamentação privatização e o recuo do Estado de bemestar social e acreditase que ele tenha sido exportado para o resto do mundo por conta do triunfo da nova direita liderada por Rea gan e Thatcher16 De uma perspectiva do Sul contudo deve se começar com o fato de que o primeiro regime neoliberal não emergiu nem nos Estados Unidos nem no Reino Unido mas no Chile Silva 1996 Boa parte da periferia global não tinha um Estado de bemestar social para ser revertido Na Austrá lia e na Nova Zelândia foram os governos traba lhistas de centroesquerda não os da nova direita os quais trouxeram o neoliberalismo em meio ao pânico diante da posição competitiva declinante na economia global A coerção também esteve relacio nada à história latinoamericana do neoliberalismo tanto quanto o pânico social Gómez 2004 Em boa parte do mundo a mudança chave trazida pelo neo liberalismo foi uma alteração na estratégia desen volvimentista de uma industrialização substitutiva da importação para um crescimento liderado por exportações e baseado em vantagens competitivas A estatística chave para o neoliberalismo não é o ta manho do setor público em relação ao setor privado na economia nacional mas o crescimento agregado do comércio mundial O neoliberalismo não pode ser entendido apenas como economia política pois envolve fundamentalmente mudanças nas relações sociais e na vida organizacional Connell 2010 Assim Moeletsi Mbeki 2009 vê a era dos programas de ajuste estrutural na África como nada menos do que um novo mercantilismo ba seado num pacto faustiano entre elites políticas africanas e corporações multinacionais que que rem acesso aos recursos do continente petróleo minerais etc São as desigualdades do poder global que estão no coração do problema que espremem a produção local feita fora do setor agrícola e pro duzem uma situação na qual largas somas de aju 12068rBCS80AF4indd 14 101012 1037 Am A IMINENTE REVOLUÇÃO NA TEORIA SOCIAL 15 da externa produzem nada a não ser estagnação econômica Eu não concordo totalmente com o argumento de Mbeki ele vê outro tema neoli beral como solução uma transição para a cultura empreendedora Mas eu acho que o seu argumen to oferece uma visão significativamente diferente daquelas encontradas nas análises do Norte sobre o neoliberalismo Refazendo o processo Eu defini teoria como uma forma de trabalho intelectual em especial a parte diretiva do processo de produção na formação de conhecimento Isso liga a compreensão da teoria ao ser social dos traba lhadores intelectuais que executam esse trabalho às suas condições industriais e às práticas nos locais de trabalho A orientação dos intelectuais na periferia para a metrópole global intitulada extroversão ou dependência acadêmica na literatura acima men cionada é um fato empírico e pode ser traçada por intermédio de surveys com a força de trabalho intelectual como fizemos para o caso australiano Connell Wood e Crawford 2005 As condições de trabalho afetam a produção intelectual de outras maneiras ainda Thandika Mkandawire 2005 chamou a atenção para as tendências de financiamento de ciências sociais na África que deixaram a maior parte do finan ciamento de pesquisa nas mãos de ONGs de de senvolvimento que administram ajuda externa Tais ONGs irão provavelmente preferir pesquisas aplicadas com resultados práticos à pesquisa fun damental além de terem horizontes curtos e por tanto provavelmente não financiarem programas contínuos de pesquisa Além disso têm agendas que mudam rapidamente o que torna difícil a formação de perspectivas de longo prazo Isso é em geral verdadeiro para as partes mais pobres da periferia embora não se aplique tão rigorosa mente para países ricos na periferia tais como a Austrália nem para instituições de elite no Brasil e na África de Sul As circunstâncias materiais de pesquisa podem portanto criar uma dependên cia de pacotes teóricos e metodológicos já prontos oriundos da metrópole Quais recursos poderiam ajudar a mudar essa situação O mais óbvio é o próprio recurso represen tado por outras partes da periferia Conexões SulSul são comuns nas discussões econômicas e políticas e estão entrando na agenda intelectual O recente encontro na Malásia de organizações de ciências so ciais da América Latina África e Ásia é um exemplo promissor Eu estou feliz de ver que as associações nacionais de ciências sociais da Austrália que histori camente selecionaram seus conferencistas apenas nos Estados Unidos e no Reino Unido estão começando a convidar palestrantes de outras partes da periferia Como uma socióloga australiana que sou estou fe liz de ter sido convidada este ano para palestras em conferências na Costa Rica na África do Sul e no Brasil Na Austrália nós temos um site wwwsou thernperspectivesnet dedicado às ligações SulSul ao redor de um amplo arco de disciplinas Essas ainda são pequenas iniciativas elas são promissoras mas ainda não têm escala para pro duzir impacto nas práticas estabelecidas de de pendência O impacto dos movimentos sociais ao menos em termos potenciais tem escala maior Os movimentos de povos indígenas têm certamente produzido a base para projetos de conhecimen tos indígenas na Nova Zelândia no Canadá e na África Movimentos de mulheres ao redor do Sul global forneceram as bases para múltiplos feminis mos Bulbeck 1998 O Fórum Social Mundial que liga movimentos sociais ao longo do Sul ten tou agir como um intelectual coletivo mas não sei como avaliar o resultado final Nós ainda estamos diante do fato de que a maior parte dos recursos mundiais para o trabalho intelectual localizase no Norte global AbdelMa lek 1971 notou isso quarenta anos atrás há dois grandes obstáculos por um lado a concentração no Ocidente dos principais ins trumentos culturais e científicos os frutos do Império e a revolução científica e tecnológi ca que enfatizou significativamente os efeitos desta concentração e por outro lado a rela tiva fraqueza daqueles instrumentos nos paí ses da esfera Tricontinental ou seja o Sul o que acelera a fuga de cérebros AbdelMalek 1971 p 25 12068rBCS80AF4indd 15 101012 1037 Am 16 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS VOL 27 N 80 Será que a enorme concentração de recursos no sistema universitário do Norte e suas instituições de pesquisa pode ser um ativo para o projeto do Sul Gayatri Spivak lançou a famosa pergunta Pode o subalterno falar A questão agora é Pode a metró pole escutar E caso escute que mudanças práticas poderiam resultar disso Eu não subestimo a dificuldade de mudança nas instituições do Norte Eu ensinei por cinco anos em universidades norteamericanas e estou ciente da dimensão fortemente institucionalizada do currículo e da pedagogia de pesquisa lá Mais uma vez a ascensão da governança neoliberal com seu sistema de competição e ranqueamento prova velmente vai reforçar a homogeneidade dos progra mas universitários gerentes acadêmicos não po dem se dar ao luxo de se desviarem muito daquilo que é feito pelos líderes do mercado Ao mesmo tempo estou ciente da diversidade cultural e intelectual nesse mesmo sistema universi tário e da existência de grupos relevantes de traba lhadores intelectuais que têm compromisso com o internacionalismo e com a justiça social daí a exis tência de revistas como a Third World Quaterly O outro lado da fuga de cérebros mencionada por AbdelMalek é a presença na metrópole de inte lectuais expatriados do Sul sendo que alguns deles têm feito contribuições formidáveis ao irem além do conhecimento eurocêntrico Não se pode deixar de mencionar Edward Said Chandra Talpade Mo hanty Amartya Sen e Walter Mignolo Possibilidades portanto existem As tarefas envolvem refazer o currículo nas universidades do Norte desenvolver novas formas de conexões práti cas entre trabalhadores intelectuais e encontrar for mas de financiar trabalho intelectual transnacional que não impliquem a replicação da agenda formu lada no Norte A necessidade de ciências sociais e a urgência da teoria A consolidação do neoliberalismo como o enquadramento dominante da vida política eco nômica e organizacional numa escala global tem consequências de longo prazo importantes para as ciências sociais Na imaginação neoliberal há apenas uma ciência social a economia neoclássi ca Cada problema ou quase cada problema tem uma solução de mercado e se os mercados para uma dada área da vida social não existem ainda os neoliberais são assombrosamente bons em criálos mercados para educação para água para créditos de carbono para tecidos humanos e muito mais Em tal contexto as outras ciências sociais tor namse residuais ou cosméticas e têm pouca presen ça nas principais políticas públicas A sociologia tem um lugar no mundo neoliberal por um lado como pesquisa de mercado e por outro como a ciência responsável por descobrir como gerenciar e contro lar grupos que são falhas do mercado os pobres os desprezados os incompetentes os criminosos os não empreendedores Mas há outras possibilidades para as ciências sociais A ciência social pode dar voz aos margina lizados pode fazer críticas das estruturas de poder e pode circular ideias sobre novas possibilidades so ciais Isso pode acontecer por exemplo na sociologia da educação como evidenciado na pesquisa social mente engajada sobre escolas na África do Sul Vally et al 2008 Se uma democracia ativa e participativa deve ser desenvolvida o conhecimento científicoso cial é necessário e é mesmo um componente chave para o autoconhecimento da sociedade Atualmente o conhecimento produzido por grande parte das pesquisas de mercado o maior volume de pesquisa social vale lembrar é apro priado pelos ricos e poderosos É utilizado tatica mente pelos seus representantes na gerência corpo rativa ao mesmo tempo que é preservado dos olhos do público e dos competidores na forma de infor mação confidencial Mas a princípio a produção de conhecimento social pode ser alargada na forma de um empreendimento transparente e cooperati vo Ela pode ser usada para guiar um processo de decisão coletivo que entre outras coisas pode ser direcionado para resistir às manipulações de mer cado Para que a democracia participativa flores ça em uma escala mundial um dos requisitos é a produção de conhecimento social acessível na mais ampla escala possível e que seja gerado a partir das preocupações da maioria das pessoas Uma ciência centrada no Sul de fato 12068rBCS80AF4indd 16 101012 1037 Am A IMINENTE REVOLUÇÃO NA TEORIA SOCIAL 17 Em tal projeto a teoria é central entendida como trabalho diretivo no processo de produção da formação de conhecimento Mas esse próprio trabalho deve ser descentralizado e democratiza do caso não se deseje que esse processo caia em armadilhas vanguardistas ou tecnocráticas Minha definição da teoria na abertura deste artigo é histo ricamente específica e pode ser ultrapassada caso o trabalho diretivo na formação de conhecimento seja feito de baixo para cima em processos parti cipativos de definição da agenda Isso eu sugiro é a essência da revolução iminente na teoria social Não se trata apenas de relocalizar esse trabalho no Sul global que de qualquer modo não é um cen tro Tratase de democratizar todo o processo diri gido pela teoria isto é a produção e circulação de conhecimento social Notas 1 NT Raewyn utiliza constantemente o par centro periferia para descrever a assimetria na geopolítica do conhecimento global Mantivemos a expressão pois ela é utilizada em língua portuguesa mas ressal tamos que Raewyn está se referindo uma relação espe cífica e histórica entre centro e periferia marcada pela expansão do colonialismo europeu sobre o mundo a partir do século XV 2 NT Raewyn utiliza o termo metrópole como sinô nimo de imperial center isto é o mundo europeu e angloamericano no qual se concentram os recursos materiais intelectuais e científicos que reproduzem as assimetrias entre Norte e Sul Preferimos traduzir o termo como metrópole por entendermos que há pre cedente na vida intelectual brasileira para esse uso em especial no caso da historiografia marxista inspirada em Caio Prado Júnior Afinal toda a discussão sobre o sentido da colonização familiar a quase todos os cientistas sociais leitores da RBCS repousa sobre uma descrição das relações entre colônia e metrópole Em bora esse sentido nativo remeta principalmente à dinâmica BrasilPortugal não nos parece desproposi tado reter o conceito para ilustrar uma assimetria mais ampla e em última instância colonial em sua natu reza Entretanto evitamos traduzir metropolitan por metropolitano por entendermos que esse adjetivo seria imediatamente associado pelo leitor ao mundo urbano e suas características Nesse caso optamos por da metrópole e similares 3 NT Raewyn utiliza frequentemente o par Norte Sul para designar as regiões ricas do Atlântico Norte Estados Unidos Canadá e Europa e os países tidos como periféricos na geopolítica global respectiva mente Mantivemos a tradução literal por entender mos que o conceito de Sul global já tem boa circula ção nas ciências sociais nacionais por mais que restem dúvidas sobre sua precisão 4 NT A partir deste momento Raewyn irá utilizar frequentemente o neologismo metrocentrism para designar o viés adotado pela teoria social Optamos por um neologismo em português metrocentrismo 5 NT O conceito original em inglês é cultural crin ge que guarda uma poderosa aliteração que se perde na tradução Com a anuência da autora optamos pela tradução para o português 6 NT O conceito utilizado por Raewyn no original em inglês é extraversion termo consagrado na psi cologia de Carl Jung para designar uma atitude de obter satisfação em objetos do mundo exterior ao su jeito Mantivemos a tradução para extroversão por conta da palavra ser assim traduzida por dicionários jungianos no Brasil Notese que o uso sociológico do conceito implica certo deslizamento semântico já que o citado hountondji está falando de propriedades de uma coletividade histórica e não do sujeito da teoria psicanalítica 7 NT O conceito de invisible colleges tem largo trân sito na sociologia da ciência e é utilizado para desig nar a formação de redes não explícitas ou oficiais que exercem efeito sobre a produção de ideias e o reconhe cimento e prestígio das mesmas Preferimos manter o conceito em inglês e situar o leitor nesta nota Para maiores informações cf Crane 1965 8 NT Aqui Raewyn referese ao clássico debate so bre indigenous knowledge que ocupou muitos dos melhores sociólogos africanos ao longo da década de 1980 e 1990 entre eles o nigeriano Akinsola Akiwowo Esse debate buscava na cultura nativa das sociedades africanas conceitos e epistemologias que pudessem servir de alternativa ao repertório teórico europeu No caso da língua portuguesa encontra mos as seguintes traduções conhecimento indígena conhecimento local e conhecimento tradicional Em acordo com a autora optamos por conhecimento indígena a despeito do lugar semântico específico que o termo indígena tem no Brasil em relação ao caso africano Ressaltamos que o debate original referese a formas de pensamento que não estariam contidas nas matrizes da racionalidade iluminista europeia 12068rBCS80AF4indd 17 101012 1037 Am 18 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS VOL 27 N 80 9 O termo decolonial tem origem no grupo de estu diosos latinoamericanos que se apropriaram critica mente da discussão lançada pelos estudos subalternos indianos Grosso modo esses estudiosos afirmaram que a relação entre modernidade e colonialismo não data do século XVIII mas sim do início da expansão eu ropeia sobre o mundo ainda nos estertores do sécu lo XV Nesse sentido a Renascença e a formação do pensamento moderno europeu devem ser encarados como o outro lado do colonialismo o que exigiria portanto um trabalho crítico de decolonização Os pensadores identificados com esse grupo são Fernan do Coronil Walter Mignolo e Ramón Grosfoguel entre outros 10 NT Raewyn aqui utiliza o conceito de ontoforma tive elaborado por ela para analisar como processos de construção de gênero implicam modelagens e rup turas sociais e culturais violentas que são inscritas no próprio corpo 11 NT O assim chamado Bophal disaster foi um va zamento industrial de gás ocorrido na Índia em 1984 e até hoje considerado um dos piores desastres indus triais da história mundial causando milhares de feri mentos e outros efeitos no longo prazo 12 NT Aqui Raewyn referese ao povo aborígene na tivo da Austrália O termo não está sendo usado de forma genérica e pejorativa como às vezes ocorre na língua portuguesa mas historicamente precisa 13 NT Uma tradução aproximada para esse termo po deria ser Lei da vovó 14 NT tiazinha 15 Outback referese às vastas e áridas terras no interior do continente australiano guardando portanto al guma semelhança com a categoria sertão utilizada também de forma muito livre pelos brasileiros 16 Para exemplo amplamente citado dessa abordagem ver harvey 2005 o qual teoriza o neoliberalismo como uma expressão do capitalismo avançado na metrópole BIBLIOGRAFIA ABDELMALEK Anouar 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