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Relações Internacionais ·

Economia Política

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HANNAH ARENDT ORIGENS DO TOTALITARISMO Copyright 1973 1968 1966 1958 1951 1949 by Hannah Arendt Copyright renovado 1979 by Mary McCarthy West Published by arrangement with Harcourt Brace Jovanovich Inc Título original The origins of totalitarianism Weder dem Vergangenen anheimfallen noch dem Zukünftigen Es kommt darauf ein ganz gegenwàrtig zu sein Karl Jaspers Não almejar nem os que passaram nem os que virão Importa ser de seu próprio tempo I ÍNDICE Prefácio à primeira edição 11 Parte I ANTISEMITISMO Prefácio 17 1 O antisemitismo como uma ofensa ao bom senso 23 2 Os judeus o Estadonação e o nascimento do antisemitismo 31 3 Os judeus e a sociedade 76 4 O Caso Dreyfus 111 Parte II IMPERIALISMO Prefácio 147 1 A emancipação política da burguesia 153 2 O pensamento racial antes do racismo 188 3 Raça e burocracia 215 4 O imperialismo continental os movimentos de unificação 253 5 O declínio do Estadonação e o fim dos direitos do homem 300 Parte III TOTALITARISMO Prefácio 339 1 Uma sociedade sem classes 355 2 O movimento totalitário 390 3 O totalitarismo no poder 439 4 Ideologia e terror uma nova forma de governo 512 Bibliografia 533 PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO Duas guerras mundiais em uma geração separadas por uma série ininterrupta de guerras locais e revoluções seguidas de nenhum tratado de paz para os vencidos e de nenhuma trégua para os vencedores levaram à antevisão de uma terceira guerra mundial entre as duas potências que ainda restavam O momento de expectativa é como a calma que sobrevém quando não há mais esperança Já não ansiámos por uma eventual restauração da antiga ordem do mundo com todas as suas tradições nem pela reintegração das massas arremessadas ao caos produzido pela violência das guerras e revoluções e pela progressiva decadência do que sobrou Nas mais diversas condições e nas circunstâncias mais diferentes contemplamos apenas a evolução dos fenômenos entre eles o que resulta no problema de refugiados gente destituída de lar em número sem precedentes gente desprovida de raízes em intensidade inaudita Nunca antes nosso futuro foi mais imprevisível nunca dependemos tanto de forças políticas que podem a qualquer instante fugir às regras do bom senso e do interesse próprio forças que pareceriam insanas se fossem medidas pelos padrões dos séculos anteriores Ê como se a humanidade se houvesse dividido entre os que acreditam na onipotência humana e que julgam ser tudo possível a partir da adequada organização das massas num determinado sentido e os que conhecem a falta de qualquer poder como a principal experiência da vida A análise histórica e o pensamento político permitem crer embora de modo indefinido e genérico que a estrutura essencial de toda a civilização atingiu o ponto de ruptura Mesmo quando aparentemente melhor preservada o que ocorre em certas partes do mundo essa estrutura não autoriza antever a futura evolução do que resta do século XX nem fornece explicações adequadas aos seus horrores Incomensurável esperança entremeada com indescritível temor parece corresponder melhor a esses acontecimentos que o juízo equilibrado e o discernimento comedido Mas os eventos fundamentais do nosso tempo preocupam do mesmo modo os que acreditam na ruína final e os que se entregam ao otimismo temerário 11 Este livro foi escrito com mescla do otimismo temerário e do desespero temerário Afirma que o Progresso e a Ruína são duas faces da mesma medalha que ambos resultam da superstição não da fé Foi escrito com a convicção de serem passíveis de descoberta os mecanismos que dissolveram os tradicionais elementos do nosso mundo político e espiritual num amálgama onde tudo parece ter perdido seu valor específico escapando da nossa compreensão e tornandose inútil para fins humanos A passividade de ceder ao processo de desintegração converteuse em tentação irresistível não somente porque esse processo assumiu a espúria aparência de necessidade histórica mas também porque os valores em vias de destruição começaram a parecer inertes exangues inexpressivos e irreais A convicção de que tudo o que acontece no mundo deve ser compreensível pode levarnos a interpretar a história por meio de lugarescomuns Compreender não significa negar nos fatos o chocanteeliminar deleso inaudito ou ao èxplicaTtêHÔnTenos utifeaisedeánãlõgíãs e generalidades que diminuam o impacto da realidade e o choque da experiência Significa antes de mais nada examinar e suportar conscientemente o fardo que o nosso século colocou sobre nós sem negar sua existência nem vergar humildemente ao seu peso Compreenderignifiea em sumaxncarar a realidade sem preconceitos e com atenção e resistir la qualquer que seja Assim deve ser possível porêxemplo encarar e compreender o fato chocante decerto de que fenômenos tão insignificantes e desprovidos de importância na política mundial como a questão judaica e o antisemitismo se transformaram em agente catalisador primeiro do movimento nazista segundo de uma guerra mundial e finalmente da construção dos centros fabris de morte em massa Também há de ser possível compreender a grotesca disparidade entre a causa e o efeito que compunham a essência do imperialismo quando dificuldades econômicas levaram em poucas décadas à profunda transformação das condições políticas no mundo inteiro a curiosa contradição entre o realismo como era cinicamente enaltecido pelos movimentos totalitários e o visível desdém desses sistemas por toda a textura da realidade ou a irritante incompatibilidade entre o real poderio do homem moderno maior do que nunca tão grande que pode ameaçar a própria existência do seu universo e a sua incapacidade de viver no mundo que o seu poderio criou e de lhe compreender o sentido A tentativa totalitária da conquista global e do domínio total constituiu a resposta destrutiva encontrada para todos os impasses Mas a vitória totalitária pode coincidir com a destruição da humanidade pois onde quer que tenha imperado minou a essência do homem Assim de nada serve ignorar as forças destrutivas de nosso século O problema é que a nossa época interligou de modo tão estranho o bom e o mau que sem a expansão dos imperialistas levada adiante por mero amor à expansão o mundo poderia jamais terse tornado um só sem o mecanismo político da burguesia que implantou o poder pelo amor ao poder as dimensões da força humana poderiam nunca ter sido descobertas sem a realidade fictícia 12 dos movimentos totalitários nos quais pelo louvor da força por amor à força as incertezas essenciais do nosso tempo acabaram sendo desnudadas com clareza sem par poderíamos ter sido levados à ruína sem jamais saber o que estava acontecendo E se é verdade que nos estágios finais do totalitarismo surge um mal absoluto absoluto porque já não pode ser atribuído a motivos humanamente compreensíveis também é verdade que sem ele poderíamos nunca ter conhecido a natureza realmente radical do Mal O antisemitismo não apenas o ódio aos judeus o imperialismo não apenas a conquista e o totalitarismo não apenas a ditadura um após o outro um mais brutalmente que o outro demonstraram que a dignidade humana precisa de nova garantia somente encontrável em novos princípios políticos e em uma nova lei na terra cuja vigência desta vez alcance toda a humanidade mas cujo poder deve permanecer estritamente limitado estabelecido e controlado por entidades territoriais novamente definidas Já não podemos nos dar ao luxo de extrair aquilo que foi bom no passado e simplesmente chamálo de nossa herança deixar de lado o mau e simplesmente considerálo um peso morto que o tempo por si mesmo relegará ao esquecimento A corrente subterrânea da história ocidental veio à luz e usurpou a dignidade de nossa tradição Essa é a realidade em que vivemos E é por isso que todos os esforços de escapar do horror do presente refugiandose na nostalgia por um passado ainda eventualmente intacto ou no antecipado oblívio de um futuro melhor são vãos Hannah Arendt Verão de 1950 13 Parte I ANTISEMITISMO Este é um século extraordinário que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória Roger Martin du Gard PREFACIO Entre o antisemitismo como ideologia leiga do século XIX que de nome embora não de conteúdo era desconhecida antes da década de 1870 e o antisemitismo como ódio religioso aos judeus inspirado no antagonismo de duas crenças em conflito obviamente há profunda diferença Podese discutir até que ponto o primeiro deve ao segundo os seus argumentos e a sua atração emocional A noção de que foram ininterruptamente contínuas as perseguições expulsões e massacres dos judeus desde o fim do Império Romano até a Idade Média e depois sem parar até o nosso tempo freqüentemente conjugada com a idéia de que o antisemitismo moderno nada mais é senão uma versão secularizada de populares superstições medievais1 não é menos preconceituosa embora seja naturalmente menos nociva que a noção antisemita de uma secreta sociedade judaica que dominou ou procurou dominar o mundo desde a Antigüidade Historicamente o hiato entre os fins da Idade Média e a época moderna no que se refere à questão judaica é ainda mais marcante do que a 1 O exemplo mais recente dessa idéia é o livro de Norman Cohn Warrantfor genocide The myth of the Jewish worldconspiracy and the Protocols of the Elders ofZion Nova York 1966 publicado no Brasil sob o título A conspiração mundial dos judeus mito ou realidade Ibrasa São Paulo 1969 O autor nega implicitamente a existência da história judaica Na sua opinião os judeus são pessoas que viviam disseminadas em toda a Europa desde o canal da Mancha até o Volga tendo muito pouco em comum exceto o fato de descenderem de seguidores da religião judaica p 15 Os antisemitas ao contrário podem segundo ele reivindicar uma ascendência ininterrupta no espaço e no tempo desde a Idade Média quando os judeus haviam sido considerados agentes de Satã adoradores do diabo demônios com forma humana p 41 e a única restrição que o erudito autor de Pursuit ofthe Millenium achou adequado fazer a tais generalizações abrangentes foi a de que ele trata apenas da espécie mais mortífera de anti semitismo da qual resultam massacres e tentativas de genocídio p 16 O livro tenta ainda provar embora de modo bastante forçado que as massas da população alemã nunca realmente se fanatizaram contra os judeus e que o extermínio destes foi organizado e levado a cabo pelos profissionais do SD e da SS entidades que de modo algum representavam a amostra típica da sociedade alemã pp 212 ss Como seria bom se esta afirmação se ajustasse aos fatos O resultado é que se lê o livro como se ele tivesse sido escrito quarenta anos atrás por um membro excessivamente engenhoso do Verein zur Bekãmpfung des Antisemitismus Liga para o Combate do Antisemitismo de infeliz memória 17 brecha entre a Antigüidade romana e a Idade Média ou o abismo freqüentemente considerado o ponto decisivo e o mais importante da história judaica que separou os massacres perpetrados pelas primeiras Cruzadas e os primeiros séculos medievais Esse hiato durou quase duzentos anos do início do século XV até o fim do século XVI quando as relações entre judeus e gentios estiveram mais frágeis do que nunca quando a indiferença judaica às condições e eventos do mundo exterior foi mais profunda do que antes e o judaísmo se tornou um sistema fechado de pensamento Foi por essa época que os judeus sem qualquer interferência externa começaram a pensar que a diferença entre o povo judeu e as nações era fundamentalmente não de credo mas de natureza interior e que a antiga dicotomia entre judeus e gentios provinha mais provavelmente de origem étnica do que de discordância doutrinária2 Essa mudança na avaliação do caráter diferente do povo judeu que só surgiu entre os nãojudeus muito mais tarde na Era do Esclarecimento constituiu certamente a condição sine qua non do nascimento do antisemitismo e é de certa importância observar que ela ocorreu primeiro no ato da autointerpretação judaica surgido na época da fragmentação da cristandade européia em grupos étnicos os quais depois alcançariam a autonomia política formando o sistema de Estadosnações A história do antisemitismo como a história do ódio aos judeus é parte integrante da longa e intrincada história das relações que prevaleciam entre judeus e gentios desde o início da dispersão judaica O interesse por essa história praticamente nulo antes dos meados do século XIX surgiu coincidindo com a eclosão do antisemitismo hostil aos judeus emancipados e assimilados Obviamente esse foi o pior momento para a pesquisa historiográfica objetiva3 Desde então tanto os historiógrafos judeus quanto os nãojudeus dedicaramse embora por motivos opostos à ênfase dos elementos mutuamente antagônicos encontrados nas fontes cristãs e judaicas Ambos os lados sublinhavam as catástrofes expulsões e massacres que pontilharam a história dos judeus do mesmo modo como os conflitos armados e desarmados guerras fome e pestilência que pontilharam a história da Europa Desnecessário dizer enquanto os historiógrafos judeus com sua tendência polêmica e apologética detectavam da história cristã as ocorrências caracterizadas pelo ódio aos judeus os antisemitas de modo intelectualmente idêntico faziam o mesmo procurando as 2 Todas as citações são de Jacob Katz Exclusiveness and tolerance JewishGentile relations in medieval and modem times Nova York 1962 capítulo 12 estudo inteiramente original de elevado nível que realmente devia ter destruído muitas noções caras ao povo judeu contemporâneo como está escrito na capa mas que não o fez porque foi quase completamente ignorado pela imprensa em geral Katz pertence à jovem geração de historiadores judeus muitos dos quais ensinam na Universidade de Jerusalém e publicam suas obras em hebraico Com eles acabou realmente a versão lacrimogênea da história judaica contra a qual Saio W Baron protestou há quase quarenta anos 3 É interessante notar que o primeiro historiador judeu moderno Isaak Markus Jost que escreveu na Alemanha no século XIX rejeitava mais acentuadamente os preconceitos comuns da historiografia secular judaica que seus sucessores 18 enunciações das antigas autoridades judaicas que tivessem dado início à tradição judaica de antagonismo muitas vezes violento contra os cristãos e gentios A opinião pública judaica ficou então não só perplexa mas genuinamente pasmada4 tão bem tinham seus portavozes conseguido convencer a todos inclusive asi mesmos da veracidade do antifato que apresentava a segregação dos judeus como resultado exclusivo da hostilidade dos gentios e do seu completo obscurantismo Desde então os historiadores judeus passaram a afirmar ter sido o judaísmo sempre superior às outras religiões pelo simples fato de crer na igualdade e tolerância humana Essa teoria perniciosa aliada à convicção de que os judeus sempre constituíam objeto passivo e sofredor das perseguições cristãs na verdade prolongava e modernizava o velho mito de povo escolhido assim só podia levar a novas e freqüentemente complicadas práticas de segregação destinadas a manter a antiga dicotomia numa daquelas ironias que parecem reservadas aos que por quaisquer motivos buscam enfeitar e manipular os fatos políticos e os registros históricos Pois se os judeus tinham em comum com os seus vizinhos nãojudeus algo que justificasse a sua recémproclamada igualdade era precisamente o passado de mútua hostilidade determinada religiosamente passado tão rico em realização cultural no nível mais alto quanto abundante em fanatismo e superstições no nível das massas ignorantes Contudo até os irritantes estereótipos desse setor da historiografia judaica apóiamse mais solidamente em fatos históricos que as obsoletas necessidades políticas e sociais do povo judeu na Europa do século XIX e do começo do século XX Embora a história cultural judaica fosse infinitamente mais diversa do que se supunha naquela época e embora as causas do desastre judeu variassem ao longo das circunstâncias históricas e geográficas a verdade é que se alteravam mais em função do ambiente nãojudeu do que das comunidades judaicas Dois fatos reais foram decisivos para a formação dos conceitos errôneos e fatídicos que ainda permeiam as versões populares da história judaica Em parte alguma e em tempo algum depois da destruição do Templo de Jerusalém no ano 70 os judeus possuíram território próprio e Estado próprio sua existência física sempre dependeu da proteção de autoridades nãojudaicas embora se lhes concedessem em várias regiões alguns meios de autodefesa como por exemplo aos judeus da França e da Alemanha até começos do século XIII5 o direito de portar armas Isso não significa que os judeus nunca tiveram força mas a verdade é que em qualquer disputa violenta não importa por que motivos os judeus eram não apenas vulneráveis como indefesos Assim não admira que especialmente no decorrer dos séculos em que era completa a sua separação do meio nãojudeu e que foram anteriores à sua ascensão à igualdade política todas as múltiplas explosões da violência lhes parecessem meramente normais Além disso as catástrofes eram entendidas dentro da tradição judaica em termos de martirologia o que por sua vez tinha base histó 4 Katz op cit p 196 5 Ibid p 6 19 rica tanto nos primeiros séculos de nossa era quando judeus e cristãos desafiavam o poder do Império Romano quanto nas condições medievais quando se oferecia aos judeus o batismo como alternativa para se livrarem das perseguições mesmo se a causa da violência fosse política e econômica e não religiosa Essa seqüência de eventos conduziu à ilusão que desde então afeta tanto os historiadores judeus como os nãojudeus já que ambas as partes dão mais ênfase ao fato de os cristãos se desassociarem dos judeus do que do inverso6 Assim escondem o seguinte fenômeno a separação dos judeus do mundo gentio e mais especificamente do ambiente cristão tem tido maior relevância na história judaica do que o seu oposto pela razão óbvia de que a própria sobrevivência do povo judeu como entidade identificável dependia dessa separação que era voluntária e não como se costumava supor resultante da hostilidade dos cristãos e nãojudeus em geral Só nos séculos XIX e XX depois da emancipação e em conseqüência da assimilação dos judeus o antisemitismo veio a ter alguma importância para a preservação do povo judeu pois só então os judeus passaram a aspirar a serem aceitos pela sociedade nãojudaica Embora os sentimentos antijudaicos fossem correntes entre as classes educadas da Europa no século XIX o antisemitismo como ideologia constituía com muito poucas exceções área de atuação dos malucos e lunáticos Até os duvidosos produtos do judaísmo apologético que nunca convenceram ninguém senão os que já estavam convencidos formavam exemplos de elevada erudição e cultura se comparados com o que os inimigos dos judeus tinham a oferecer em matéria de pesquisa histórica7 Quando após o fim da Segunda Guerra Mundial comecei a organizar o material para este livro coletado a partir de documentos e monografias às vezes excelentes que cobriam um período de mais de dez anos não encontrei uma única obra sobre o antisemitismo compatível com os padrões mais elementares da apreciação histórica E de lá para cá a situação pouco mudou Isso é deplorável pois a necessidade do tratamento fiel e imparcial da história judaica tornouse recentemente maior do que jamais Os acontecimentos políticos do século XX atiraram o povo judeu no centro do turbilhão de eventos a questão judaica e o antisemitismo fenômenos relativamente sem importância em termos de política mundial transformaramse em agente catalisador inicialmente da ascensão do movimento nazista e do estabelecimento da estrutura organizacional do Terceiro Reich no qual todo cidadão tinha de provar que não era judeu ou descendente dos judeus e em seguida de uma guerra mundial de ferocidade nunca vista que culminou finalmente com o surgimento do genocídio crime até então desconhecido em meio à civilização ocidental Creio ser óbvio que isso exige não apenas lamentação e denúncia 6 Ibidp7 7 A única exceção é o historiador nazista e antisemita Walter Frank chefe do Reichsinstitut für Geschichte des Neuen Deutschlands Instituto Estatal para a História da Nova Alemanha e editor de nove volumes de Forschungen zur Judenfrage Pesquisas sobre a questão judaica publicados entre 1937 e 1944 As contribuições de Frank ainda podem ser consultadas com proveito 20 mas também compreensão Este livro é uma tentativa de compreender os fatos que à primeira vista pareciam apenas ultrajantes Repito compreender não significa negar o ultrajante subtrair o inaudito do que tem precedentes ou explicar fenômenos por meio de analogias e generalidades tais que se deixa de sentir o impacto da realidade e o choque da experiência Significa antes examinar e suportar conscientemente o fardo que os acontecimentos colocaram sobre nós sem negar sua existência nem vergar humildemente a seu peso como se tudo o que de fato aconteceu não pudesse ter acontecido de outra forma Compreender significa em suma encarar a realidade espontânea e atentamente e resistir a ela qualquer que seja venha a ser ou possa ter sido Para essa compreensão é indispensável embora não seja suficiente uma certa familiaridade com a história judaica na Europa do século XIX e a conseqüente evolução do antisemitismo Os capítulos que seguem tratam apenas daqueles elementos da história do século XIX que realmente importam para o estudo das origens do totalitarismo Ainda está por ser escrita a história analítica do antisemitismo o que foge ao escopo deste volume Enquanto existir essa lacuna justificase a publicação dos capítulos seguintes como contribuição para o estudo mais completo embora tenham sido originalmente concebidos tãosó como parte integrante da préhistória do totalitarismo Além disso não apenas a história do anti semitismo tem sido elaborada por nãojudeus mentecaptos e por judeus apologéticos sendo em geral evitada por historiadores de reputação mutatis mutandis com quase todos os elementos que se cristalizariam no fenômeno totalitário ocorreu o mesmo Ambos os fenômenos o antisemitismo e o totalitarismo mal haviam sido notados pelos homens cultos porque pertenciam à corrente subterrânea da história européia onde longe da luz do público e da atenção dos homens esclarecidos puderam adquirir virulência inteiramente inesperada Quando a derradeira catástrofe cristalizante a Segunda Guerra Mundial trouxe à tona essas correntes subterrâneas surgiu a tendência de confundir o totalitarismo com os seus elementos e com as suas origens como se cada explosão de antisemitismo ou racismo pudesse ser a priori identificada com o totalitarismo Essa atitude é tão enganadora na busca da verdade histórica como é perniciosa para a análise política A política totalitária longe de ser simplesmente antisemita ou racista ou imperialista ou comunista usa e abusa de seus próprios elementos ideológicos até que se dilua quase que completamente com a sua base inicialmente elaborada partindo da realidade e dos fatos realidade da luta de classes por exemplo ou dos conflitos de interesse entre os judeus e os seus vizinhos que fornecia aos ideólogos a força dos valores propagandísticos Constituiria certamente grave erro subestimar o papel que o racismo puro tem desempenhado e ainda desempenha no governo dos estados do sul dos Estados Unidos mas seria uma ilusão ainda mais grave chegar à conclusão retrospectiva de que amplas áreas desse país eram submetidas ao regime totalitário há mais de um século A única conseqüência direta e nãoadulterada dos movimentos antisemitas do século XIX não foi o nazismo 21 mas ao contrário o sionismo que pelo menos em sua forma ideológica ocidental assumiu o aspecto de consciente contraideologia de resposta ao antisemitismo Isso não significa que a autoconsciência grupai dos judeus resultasse do antisemitismo até mesmo o conhecimento superficial da história judaica cuja preocupação central desde o exílio babilônico sempre foi a sobrevivência do povo a despeito da dispersão seria suficiente para destruir esse mito sobre o assunto mito que se tornou até elegante a ponto de vir a ser repetido nos círculos intelectuais depois da interpretação existencialista de Sartre segundo a qual o judeu era alguém que os outros consideravam e definiam como tal O que melhor exemplifica tanto a diferença como a relação entre o antisemitismo prétotalitário e o totalitário é talvez a história dos Protocolos dos sábios do Sião O emprego dessa falsificação pelos nazistas que a usaram como livrotexto certamente não pertence à história do antisemitismo mas só a história do antisemitismo pode explicar porque era viável o uso da mentira para os fins de propaganda antijudaica Mas essa história não explica por que se transformou em fenômeno político a alegação obviamente totalitária do suposto domínio global a ser exercido com métodos esotéricos pelos membros de uma sociedade secreta A atração política decorrente do uso dos Protocolos é importante na medida em que suas origens estão no imperialismo em geral como foi elaborado em versão européia continental altamente explosiva a partir dos movimentos nacionalmente ou melhor etnicamente unificadores principalmente pangermânicos e paneslavos Este livro portanto é limitado no tempo e no espaço tanto quanto no assunto Suas análises cuidam da história judaica na Europa central e ocidental desde o tempo pósmedieval dos judeusdacorte até o Caso Dreyfus naquilo em que ele foi de um lado relevante para o nascimento do antisemitismo e do outro influenciado por ele Trata dos movimentos antisemitas que ainda se baseavam de modo bastante sólido nas realidades factuais das relações entre judeus e gentios isto é no papel desempenhado pelos judeus no desenvolvimento do Estadonação e no seu papel dentro da sociedade nãojudaica O surgimento dos primeiros partidos antisemitas nas décadas de 1870 e 1880 marca o instante em que foi superado o elemento factual e limitado do conflito de interesses e ultrapassada a experiência convivencial abrindo se assim o caminho que levou à solução final genocida Daí por diante na era do imperialismo já não é possível isolar a questão judaica ou a ideologia antisemita de questões que na verdade quase nada têm a ver com as realidades da moderna história judaica Isso não ocorre apenas e basicamente porque essas questões sejam tão importantes nos negócios mundiais mas porque o próprio antisemitismo é agora utilizado para fins que transcendem a problemática aparente e os quais embora sua implantação faça dos judeus as principais vítimas deixam para trás todas questões de interesse judaico e antijudaico Hannah Arendt Julho de 1967 22 1 O ANTISEMITISMO COMO UMA OFENSA AO BOM SENSO Muitos ainda julgam que a ideologia nazista girou em torno do antisemitismo por acaso e que desse acaso nasceu a política que inflexivelmente visou a perseguir e finalmente exterminar os judeus O horror do mundo diante do resultado derradeiro e mais ainda diante do seu efeito constituído pelos sobreviventes sem lar e sem raízes deu à questão judaica a proeminência que ela passou a ocupar na vida política diária O que os nazistas apresentaram como sua principal descoberta o papel dos judeus na política mundial e o que propagavam como principal alvo a perseguição dos judeus no mundo inteiro foi considerado pela opinião pública mero pretexto interessante truque demagógico para conquistar as massas É bem compreensível que não se tenha levado a sério o que os próprios nazistas diziam Provavelmente não existe aspecto da história contemporânea mais irritante e mais mistificador do que o fato de entre tantas questões políticas vitais ter cabido ao problema judaico aparentemente insignificante e sem importância a duvidosa honra de pôr em movimento toda uma máquina infernal Tais discrepâncias entre a causa e o efeito constituem ultraje ao bom senso a tal ponto que as tentativas de explanar o anti semitismo parecem forjadas com o fito de salvar o equilíbrio mental dos que mantêm o senso de proporção e a esperança de conservar o juízo Uma dessas apressadas explicações identifica o antisemitismo com desenfreado nacionalismo e suas explosões de xenofobia Mas na verdade o antisemitismo moderno crescia enquanto declinava o nacionalismo tradicional tendo atingido seu clímax no momento em que o sistema europeu de Estados nações com seu precário equilíbrio de poder entrara em colapso Os nazistas não eram meros nacionalistas Sua propaganda nacionalista era dirigida aos simpatizantes e não aos membros convictos do partido Ao contrário este jamais se permitiu perder de vista o alvo político supranacional O nacionalismo nazista assemelhavase à propaganda nacionalista da União Soviética que também é usada apenas como repasto aos preconceitos das massas Os nazistas sentiam genuíno desprezo jamais abolido pela estreiteza do nacionalismo e pelo provincianismo do Estado nação Repetiram muitas 23 vezes que seu movimento de âmbito internacional como aliás é o movimento bolchevista era mais importante para eles do que o Estado o qual necessariamente estaria limitado a um território específico E não só o período nazista mas os cinqüenta anos anteriores da história antisemita dão prova contrária à identificação do antisemitismo com o nacionalismo Os primeiros partidos antisemitas das últimas décadas do século XIX foram os primeiros a coligar se em nível internacional Desde o início convocavam congressos internacionais e preocupavamse com a coordenação de atividades em escala internacional ou pelo menos intereuropéia Tendências gerais como o declínio do Estadonação coincidente com o crescimento do anti semitismo não podem ser explicadas por uma única razão ou causa Na maioria desses casos o historiador depara com situação histórica complexa na qual tem a liberdade e isto quer dizer perplexidade de isolar um determinado fator como correspondente ao espírito da época Existem porém algumas regras gerais que são úteis A principal delas é a definição por Tocqueville em LAncien Regime et Ia Révolution livro II capítulo 1 dos motivos do violento ódio das massas francesas contra a aristocracia no início da Revolução ódio que levou Burke a observar que a Revolução se preocupava mais com a condição de um cavalheiro do que com a instituição de rei Segundo Tocqueville o povo francês passou a odiar os aristocratas no momento em que perderam o poder porque essa rápida perda de poder não foi acompanhada de qualquer redução de suas fortunas Enquanto os nobres dispunham de vastos poderes eram não apenas tolerados mas respeitados Ao perderem seus privilégios e entre eles o privilégio de explorar e oprimir o povo descobriu que eles eram parasitas sem qualquer função real na condução do país Em outras palavras nem a opressão nem a exploração em si chegam a constituir a causa de ressentimento mas a riqueza sem função palpável é muito mais intolerável porque ninguém pode compreender e conseqüentemente aceitar por que ela deve ser tolerada O antisemitismo alcançou o seu clímax quando os judeus haviam de modo análogo perdido as funções públicas e a influência e quando nada lhes restava senão sua riqueza Quando Hitler subiu ao poder os bancos alemães onde por mais de cem anos os judeus ocupavam posições chave já estavam quasejudenrein desjudaízados e os judeus na Alemanha após longo e contínuo crescimento em posição social e em número declinavam tão rapidamente que os estatísticos prediziam o seu desaparecimento em poucas décadas É verdade que as estatísticas não indicam necessariamente processos históricos reais mas é digno de nota que para um estatístico a perseguição e o extermínio dos judeus pelos nazistas pudessem parecer uma insensata aceleração de um processo que provavelmente ocorreria de qualquer modo em termos da extinção do judaísmo alemão O mesmo é verdadeiro em quase todos os países da Europa ocidental O Caso Dreyfus não ocorreu no Segundo Império quando os judeus da França estavam no auge de sua prosperidade e influência mas na Terceira República quando eles já haviam quase desaparecido das posições importantes embora 24 não do cenário político O antisemitismo austríaco tornouse violento não sob o reinado de Metternich e Francisco José mas na República austríaca após 1918 quando era perfeitamente óbvio que quase nenhum outro grupo havia sofrido tanta perda de influência e prestígio em conseqüência do desmembramento da monarquia dos Habsburgos quanto os judeus A perseguição de grupos impotentes ou em processo de perder o poder pode não constituir um espetáculo agradável mas não decorre apenas da mesquinhez humana O que faz com que os homens obedeçam ou tolerem o poder e por outro lado odeiem aqueles que dispõem da riqueza sem o poder é a idéia de que o poder tem uma determinada função e certa utilidade geral Até mesmo a exploração e a opressão podem levar a sociedade ao trabalho e ao estabelecimento de algum tipo de ordem Só a riqueza sem o poder ou o distanciamento altivo do grupo que embora poderoso não exerce atividade política são considerados parasitas e revoltantes porque nessas condições desaparecem os últimos laços que mantêm ligações entre os homens A riqueza que não explora deixa de gerar até mesmo a relação existente entre o explorador e o explorado o alheamento sem política indica a falta do menor interesse do opressor pelo oprimido Contudo o declínio dos judeus na Europa ocidental e central forma apenas o pano de fundo para os eventos subseqüentes e explica tão pouco esses eventos como o fato de a aristocracia ter perdido o poder explicaria a Revolução Francesa Conhecer essas regras gerais é importante para que seja possível refutar as insinuações do aparente bom senso segundo as quais o ódio violento ou a súbita rebelião são necessariamente decorrentes do exercício de forte poder e de abusos cometidos pelos que constituem o alvo do ódio e que conseqüentemente o ódio organizado contra os judeus só pode ter surgido como reação contra sua importância e o seu poderio Mais séria parece outra argumentação os judeus por serem um grupo inteiramente impotente ao serem envolvidos nos conflitos gerais e insolúveis da época podiam facilmente ser acusados de responsabilidade por esses conflitos e apresentados como autores ocultos do mal O melhor exemplo e a melhor refutação dessa explicação que é tão grata ao coração de muitos liberais está numa anedota contada após a Primeira Grande Guerra Um antisemita alegava que os judeus haviam causado a guerra A resposta foi Sim os judeus e os ciclistas Por que os ciclistas pergunta um E por que os judeus pergunta outro A teoria que apresenta os judeus como eterno bode expiatório não significa que o bode expiatório poderia também ser qualquer outro grupo Essa teoria defende a total inocência da vítima Ela insinua não apenas que nenhum mal foi cometido mas também que nada foi feito pela vítima que a relacionasse com o assunto em questão Contudo quem tenta explicar por que um determinado bode expiatório se adapta tão bem a tal papel abandona nesse momento a teoria e envolvese na pesquisa histórica E então o chamado bode expiatório deixa de ser a vítima inocente a quem o mundo culpa por todos os seus pecados e através do qual deseja escapar ao castigo tornase um grupo 25 entre outros grupos todos igualmente envolvidos nos problemas do mundo O fato de ter sido ou estar sendo vítima da injustiça e da crueldade não elimina a sua coresponsabilidade Até há pouco a falta de lógica aparente na formulação da teoria do bode expiatório bastava para descartála como escapista Mas o surgimento do terror como importante arma dos governos aumentoulhe a credibilidade A diferença fundamental entre as ditaduras modernas e as tiranias do passado está no uso do terror não como meio de extermínio e amedrontamento dos oponentes mas como instrumento corriqueiro para governar as massas perfeitamente obedientes O terror como o conhecemos hoje ataca sem provocação preliminar e suas vítimas são inocentes até mesmo do ponto de vista do perseguidor Esse foi o caso da Alemanha nazista quando a campanha de terror foi dirigida contra os judeus isto é contra pessoas cujas características comuns eram aleatórias e independentes da conduta individual específica Na Rússia soviética a situação é mais confusa já que o sistema bolchevista ao contrário do nazista nunca admitiu em teoria o uso de terror contra pessoas inocentes tal afirmação embora possa parecer hipócrita em vista de certas práticas faz muita diferença Por outro lado a prática russa é mais avançada do que a nazista em um particular a arbitrariedade do terror não é determinada por diferenças raciais e a aplicação do terror segundo a procedência sócioeconômica de classe do indivíduo foi abandonada há tempos de sorte que qualquer pessoa na Rússia pode subitamente tornarse vítima do terror policial Não estamos interessados aqui na última conseqüência do exercício do domínio pelo terror que leva à situação na qual jamais ninguém nem mesmo o executor está livre do medo em nosso contexto tratamos apenas da arbitrariedade com que as vítimas podem ser escolhidas e para isso é decisivo que sejam objetivamente inocentes que sejam selecionadas sem que se atente para o que possam ou não ter feito à primeira vista isso pode parecer confirmação tardia da velha teoria do bode expiatório e é verdade que a vítima do terror moderno exibe todas as características do bode expiatório no sentido objetivo é absolutamente inocente porque nada fez ou deixou de fazer que tenha alguma ligação com o seu destino Há portanto uma tentação de voltar à explicação que automaticamente tira toda a responsabilidade da vítima ela parece corresponder à realidade em que nada nos impressiona mais do que a completa inocência do indivíduo tragado pela máquina do terror e a sua completa incapacidade de mudar o destino pessoal O terror contudo assume a simples forma do governo só no último estágio do seu desenvolvimento O estabelecimento de um regime totalitário requer a apresentação do terror como instrumento necessário para a realização de uma ideologia específica e essa ideologia deve obter a adesão de muitos até mesmo da maioria antes que o terror possa ser estabelecido O que interessa ao historiador é que os judeus antes de se tornarem as principais vítimas do terror moderno constituíam o centro de interesse da ideologia nazista Ora uma ideo 26 logia que tem de persuadir e mobilizar as massas não pode escolher sua vítima arbitrariamente Em outras palavras se o número de pessoas que acreditam na veracidade de uma fraude tão evidente como os Protocolos dos sábios do Sião é bastante elevado para dar a essa fraude o foro do dogma de todo um movimento político a tarefa do historiador já não consiste em descobrir a fraude pois o fato de tantos acreditarem nela é mais importante do que a circunstancia historicamente secundária de se tratar de uma fraude A explicação tipo bode expiatório escamoteia portanto a seriedade do antisemitismo e da importância das razões pelas quais os judeus foram atirados ao centro dos acontecimentos Igualmente disseminada é a doutrina do eterno antisemitismo na qual o ódio aos judeus é apresentado como reação normal e natural e que se manifesta com maior ou menor virulência segundo o desenrolar da história Assim as explosões do antisemitismo parecem não requerer explicação especial como conseqüências naturais de um problema eterno É perfeitamente natural que os antisemitas profissionais adotassem essa doutrina é o melhor álibi possível para todos os horrores Se é verdade que a humanidade tem insistido em assassinar judeus durante mais de 2 mil anos então a matança de judeus é uma ocupação normal e até mesmo humana e o ódio aos judeus fica justificado sem necessitar de argumentos O aspecto mais surpreendente dessa premissa é o fato de haver sido adotada por muitos historiadores imparciais e até por um elevado número de judeus Essa estranha coincidência torna a teoria perigosa e desconcertante Em ambos os casos seu escapismo é evidente como os antisemitas desejam fugir à responsabilidade dos seus feitos também os judeus atacados e na defensiva ainda mais naturalmente recusam sob qualquer circunstância discutir a sua parcela de responsabilidade Contudo as tendências escapistas dos apologistas oficiais baseiamse em motivos mais importantes e menos racionais O aparecimento e o crescimento do antisemitismo moderno foram concomitantes e interligados à assimilação judaica e ao processo de secularização e fenecimento dos antigos valores religiosos e espirituais do judaísmo Vastas parcelas do povo judeu foram ao mesmo tempo ameaçadas externamente de extinção física e internamente de dissolução Nessas condições os judeus que se preocupavam com a sobrevivência do seu povo descobriram num curioso e desesperado erro de interpretação a idéia consoladora de que o antisemitismo afinal de contas podia ser um excelente meio de manter o povo unido de sorte que na existência de anti semitismo eterno estaria a eterna garantia da existência judaica Essa atitude decerto supersticiosa relacionada com a fé em sua eleição por Deus e com a esperança messiânica era fortalecida pelo real fato de ter sido a hostilidade cristã para os judeus autêntico fator que durante muitos séculos desempenhava o papel do poderoso agente preservador espiritual e político Os judeus confundem o moderno antisemitismo com o antigo ódio religioso antijudaico Esse erro é compreensível na sua assimilação processada à margem do cristianismo os judeus desconheciamlhe o aspecto religioso e cultural Enfrentando o cristianismo em declínio os judeus podiam imaginar em toda a inocência que o antisemitismo correspondia a uma espécie de 27 retrocesso à medieval e anacrônica Idade das Trevas A ignorância ou a incompreensão do seu próprio passado foi em parte responsável pela fatal subestimação dos perigos reais e sem precedentes que estavam por vir Mas é preciso lembrar também que a inabilidade de análise política resultava da própria natureza da história judaica história de um povo sem governo sem país e sem idioma A história judaica oferece extraordinário espetáculo de um povo único nesse particular que começou sua existência histórica a partir de um conceito bem definido da história e com a resolução quase consciente de realizar na terra um plano bem delimitado e que depois sem desistir dessa idéia evitou qualquer ação política durante 2 mil anos Em conseqüência a história política do povo judeu tornouse mais dependente de fatores imprevistos e acidentais do que a história de outras nações de sorte que os judeus assumiam diversos papéis na sua atuação histórica tropeçando em todos e não aceitando responsabilidade precípua por nenhum deles Após a catástrofe final isto é após a aniquilação quase completa dos judeus da Europa a tese do anti semitismo eterno tornouse mais perigosa do que nunca pois ela poderia levar até à absolvição os mais tenebrosos criminosos entre os antisemitas Longe de garantir a sobrevivência do povo judeu o anti semitismo ameaçouo claramente de extermínio Contudo essa explicação do antisemitismo tal como a teoria do bode expiatório e por motivos semelhantes sobreviveu ao confronto com a realidade pois ela acentua a absoluta inocência das vítimas do terror moderno o que aparentemente é confirmado pelos fatos Em comparação com a teoria do bode expiatório ela tem até a vantagem de responder à incômoda questão Por que os judeus e não outros de maneira simplória eterna hostilidade É deveras notável que as doutrinas que ao menos tentam explicar o significado político do movimento antisemita neguem qualquer responsabilidade específica da parte dos judeus e se recusem a discutir o assunto nestes termos Ao implicitamente recusarem abordar o significado da conduta humana assemelhamse às modernas práticas e formas dos governos que por meio do terror arbitrário liquidam a própria possibilidade de ação humana De certa forma nos campos de extermínio nazistas os judeus eram assassinados de acordo com a explicação oferecida por essas doutrinas à razão do ódio independentemente do que haviam feito ou deixado de fazer independentemente de vício ou virtude pessoais Além disso os próprios assassinos apenas seguindo ordens e orgulhosos de sua desapaixonada eficiência assemelhavamse sinistramente aos instrumentos inocentes de um ciclo inumano e impessoal de eventos exatamente como os considerava a doutrina do eterno antisemitismo Esses denominadores comuns entre a teoria e a prática não indicam por si sós a verdade histórica embora espelhem o caráter oportunista das opiniões popularmente propaladas revelando e explicando por que elas são tão facilmente aceitáveis pela multidão O historiador se interessa por elas enquanto são parte da história de que tratam e na medida em que se interpõem no caminho de sua busca à verdade Mas sendo contemporâneo dos eventos o historiador é tão sujeito ao poder persuasório dessas opiniões como qualquer outra pessoa 28 Para o historiador dos tempos modernos é especialmente importante ter cuidado com as opiniões geralmente aceitas que dizem explicar tendências históricas porque durante o último século foram elaboradas numerosas ideologias que pretendem ser as chaves da história embora não passem de desesperados esforços de fugir à responsabilidade Platão em sua luta contra os sofistas descobriu que a arte universal de encantar o espírito com argumentos Fedro 261 nada tinha a ver com a verdade mas só visava à conquista de opiniões que são mutáveis por sua pró pria natureza e válidas somente na hora do acordo e enquanto dure o acordo Teeteto 172b Descobriu também que a verdade ocupa uma posição muito instável no mundo pois as opiniões isto é o que pode pensar a multidão como escreveu decorrem antes da persuasão do que da verdade Fedro 260 A diferença mais marcante entre os sofistas antigos e os modernos é simples os antigos se satisfaziam com a vitória passageira do argumento às custas da verdade enquanto os modernos querem uma vitória mais duradoura mesmo que às custas da realidade Em outras palavras aqueles destruíam a dignidade do pensamento humano enquanto estes destroem a dignidade da ação humana O filósofo preocupavase com os manipuladores da lógica enquanto o historiador vê obstáculos nos modernos manipuladores dos fatos que destroem a própria história e sua inteligibilidade colocada em perigo sempre que os fatos deixam de ser considerados parte integrante do mundo passado e presente para serem indevidamente usados a fim de demonstrar esta ou aquela opinião É certo que seria difícil encontrar o caminho no labirinto dos fatos desarticulados se fossem abandonadas as opiniões e rejeitada a tradição Contudo essas perplexidades da historiografia são conseqüências ínfimas se forem consideradas as profundas transformações do nosso tempo e o seu efeito sobre as estruturas históricas do mundo ocidental Dessas transformações resultou o desnudamento dos componentes antes ocultos de nossa história Isso não significa que o que desabou na crise talvez a mais profunda na história do Ocidente desde a queda do Império Romano foi mera fachada que encobria esses componentes embora não passassem de fachada muitas coisas que há apenas algumas décadas eram consideradas essenciais A simultaneidade entre o declínio do Estadonação europeu e o crescimento de movimentos antisemitas a coincidência entre a queda de uma Europa organizada em nações e o extermínio dos judeus preparado pela vitória do antisemitismo sobre todos os outros ismos que competiam na luta pela persuasão e conquista da opinião pública têm de ser interpretadas como sério elemento no estudo da origem do anti semitismo O antisemitismo moderno deve ser encarado dentro da estrutura geral do desenvolvimento do Estadonação enquanto ao mesmo tempo sua origem deve ser encontrada em certos aspectos da história judaica e nas funções especificamente judaicas isto é desempenhadas pelos judeus no decorrer dos últimos séculos Se no estágio final da desintegração os slogans antisemitas constituíam o meio mais eficaz de inspirar grandes massas para leválas à expansão imperialista e à destruição das velhas formas de governo então a história da relação entre os judeus e o Estado 29 deve conter indicações elementares para entender a hostilidade entre certas camadas da sociedade e os judeus Trataremos disso no capítulo seguinte Se além disso a contínua expansão da ralé moderna isto é dos déclassés provenientes de todas as camadas produziu líderes que sem se preocuparem com o fato de serem ou não os judeus suficientemente importantes para se tornarem o foco de uma ideologia política repetidamente viram neles a chave da história e a causa central de todos os males então a história das relações entre os judeus e a sociedade deve conter indicações elementares para explicar a hostilidade entre a ralé e os judeus Trataremos da relação entre os judeus e a sociedade no terceiro capítulo O quarto capítulo ocupase do Caso Dreyfus que foi uma espécie de ensaio geral para o espetáculo do nosso próprio tempo Analisamos o caso em todos os detalhes dada a peculiar oportunidade que oferece de num breve momento histórico revelar as potencialidades do anti semitismo até então ocultas como importante arma política dentro da estrutura política do século XIX e isto apesar da sua relativa sanidade Os três capítulos seguintes analisam porém apenas os elementos preparatórios que chegaram ao estágio da completa realização quando a decadência do Estadonação e o surgimento do imperialismo se destacaram concomitantemente no cenário político 30 2 OS JUDEUS O ESTADONAÇÃO E O NASCIMENTO DO ANTISEMITISMO 1 OS EQUÍVOCOS DA EMANCIPAÇÃO E O BANQUEIRO ESTA TAL JUDEU No ápice do seu desenvolvimento no século XIX o Estadonação concedeu aos habitantes judeus a igualdade de direitos Esconde contradições profundas e fatais a evidente incoerência do fato de que os judeus receberam a cidadania dos governos que no decorrer dos séculos haviam feito da nacionalidade um prérequisito da cidadania e da homogeneidade de população a principal característica da estrutura política As leis e éditos que outorgavam aos judeus o direito à emancipação seguiam na Europa lenta e hesitantemente a lei francesa de 1792 Esses decretos foram precedidos e acompanhados pela atitude ambígua da parte do Estadonação em relação aos seus habitantes judeus Do colapso da ordem feudal surgiu o conceito revolucionário de igualdade segundo o qual não se podia mais tolerar uma nação dentro de outra nação Por conseguinte as restrições e os privilégios dos judeus tinham de ser abolidos juntamente com todos os outros direitos especiais Contudo essa expansão da igualdade dependia em grande parte do crescimento da força de uma máquina estatal independente que sob forma de despotismo esclarecido ou de governo constitucional superior às classes e aos partidos pudesse em esplêndido isolamento funcionar governar e representar os interesses da nação como um todo Assim quando a partir do fim do século XVII a expansão econômica estatal aumenta a necessidade de créditos e o alargamento da esfera de influência econômica do Estado era natural que se recorresse ao auxílio dos judeus velhos e experimentados emprestadores de dinheiro com ligações com a nobreza européia à qual deviam muitas vezes proteção local e cujas finanças costumavam administrar enquanto nenhum outro grupo entre as populações da Europa estava disposto a conceder crédito ao Estado ou a participar ativamente da evolução dos negócios estatais Era do interesse dos Estados conceder aos judeus certos privilégios em troca e tratálos como grupo à parte De modo algum o Estado poderia consentir que os judeus fossem assimilados pelo resto da população a qual lhe 31 recusava crédito negandose a participar dos negócios do Estado e a fomentálos Portanto a emancipação dos judeus como lhes foi concedida pelo sistema de Estados nacionais na Europa durante o século XIX tinha dupla origem e o significado ambíguo Por um lado ela decorria da estrutura política e jurídica de um sistema renovado que só podia funcionar nas condições de igualdade política e legal a ponto de os governos para seu próprio bem precisarem aplainar as desigualdades da velha ordem do modo mais completo e mais rápido possível Por outro lado a emancipação resultava claramente da gradual extensão de privilégios originalmente concedidos a apenas alguns indivíduos e depois a pequenas camadas de judeus ricos e que passaram a ser outorgados a todos os judeus da Europa central e ocidental para que atendessem às crescentes exigências dos negócios estatais a que os limitados grupúsculos de judeus ricos não conseguiam mais fazer face sozinhos1 Assim a emancipação significava ao mesmo tempo igualdade e privilégios a destruição da antiga autonomia comunitária judaica e a consciente preservação dos judeus como grupo separado na sociedade a abolição de restrições e direitos especiais e a extensão desses direitos a um grupo cada vez maior de indivíduos A igualdade de condição para todos os cidadãos constituiu a premissa do novo corpo político e embora essa igualdade houvesse sido realmente posta em prática pelo menos no tocante à privação das antigas classes governantes do privilégio de governar e das classes oprimidas do direito de serem protegidas o processo coincidia com o nascimento de uma sociedade de classes as quais novamente separavam os cidadãos econômica e socialmente de modo tão eficaz quanto o antigo regime A igualdade de condição como entendida pelos jacobinos da Revolução Francesa só se tornou realidade na América do Norte no continente europeu foi substituída por uma simples igualdade perante a lei A contradição fundamental entre o corpo político baseado na igualdade perante a lei e a sociedade baseada na desigualdade do sistema de classes impediu o desenvolvimento de sistemas eficazes e o nascimento de uma nova hierarquia política A intransponível desigualdade da condição social outor 1 Para o historiador moderno os direitos e liberdades concedidos aos judeusdacorte durante os séculos XVII e XVIII podem parecer precursores da igualdade esses judeus podiam viver onde quisessem tinham permissão de viajar livremente dentro do reino do seu soberano podiam portar armas e contavam com a proteção especial das autoridades locais Na verdade esses judeusda corte caracteristicamente chamados na Prússia Generalprivilegierte Juden gozavam não apenas de melhores condições de vida que seus correligionários ainda sujeitos a restrições quase medievais mas viviam até melhor que seus vizinhos nãojudeus Seu padrão de vida era muito mais alto que o da classe média da época e seus privilégios na maioria dos casos superavam os que eram concedidos aos outros mercadores Essa situação não deixou de ser percebida por seus contemporâneos Christian Wilhelm Dohm eminente advogado da emancipação judaica na Prússia do século XVIII queixouse da prática em vigor desde o tempo de Frederico Guilherme I de conceder aos judeus ricos toda sorte de favores e apoio muitas vezes às custas e ao descaso de cidadãos diligentes e legais isto é nãojudeus Em Denkwürdigkeiten meinerZeite Feitos memoráveis do meu tempo Lemgo 18149 IV p 487 32 gada ao indivíduo e quase garantida por nascimento coexistia paradoxalmente com a igualdade política Somente países politicamente atrasados como a Alemanha imperial haviam conservado alguns vestígios feudais Lá os membros da aristocracia que pouco a pouco adquiriam a consciência de serem uma classe dispunham de condição política privilegiada e assim podiam conservar como grupo certa relação especial com o Estado Mas tratavase apenas de vestígios do passado O sistema de classes completamente desenvolvido e maduro define a condição do indivíduo por sua associação com uma determinada classe dentro do relacionamento dela com as outras e não por sua posição pessoal no Estado Os judeus constituíam a única exceção a essa regra geral Não formavam uma classe nem pertenciam a qualquer das classes nos países em que viviam Como grupo não eram nem trabalhadores nem gente da classe média nem latifundiários nem camponeses Sua riqueza parecia fazer deles membros da classe média mas não participavam do seu desenvolvimento capitalista mal eram representados nas empresas industriais e se na última fase de sua história européia chegavam a conduzir importantes empresas dirigiam pessoal burocrático ou intelectual e não o operariado Em outras palavras embora seu status fosse definido pelo fato de serem judeus não o era por suas relações com as outras classes A proteção especial que recebiam do Estado quer sob antiga forma de privilégios quer sob forma de leis especiais de emancipação de que nenhum outro grupo necessitava e que muitas vezes precisava de reforço legal ulterior por causa da hostilidade da sociedade e os serviços especiais que prestavam a governos impediam ao mesmo tempo que submergissem no sistema de classes e que se estabelecessem como classe2 Assim mesmo que ingressassem na sociedade formavam um grupo bem definido que preservava a sua identidade mesmo dentro de uma das classes com as quais se relacionavam fosse esta aristocracia ou burguesia Não há dúvida de que o interesse do Estadonação no sentido de conservar os judeus como grupo especial e evitar que fossem assimilados pela sociedade de classes coincidia com o interesse dos judeus no sentido de sobreviverem como grupo Também é mais do que provável que sem essa coincidência as tentativas dos governos teriam sido vãs as fortes tendências de igualar todos os cidadãos por parte do Estado e de incorporar cada indivíduo numa classe por parte da sociedade implicavam claramente a completa assimilação dos judeus e só podiam ser frustradas por uma combinação de dois elementos intervenção do governo e cooperação voluntária Afinal a política oficial em relação aos judeus não era sempre tão consistente e inflexível como poderíamos pensar se apenas considerássemos os resultados finais3 É real 2 Jacob Lestschinsky numa discussão anterior do problema judaico salientou que os judeus não pertenciam a nenhuma classe social e falou de uma Klasseneinschiebsel interposição de classe em WeltwirtschaftsArchiv 1939 vol 30 p 123 ss mas viu apenas as desvantagens dessa situação na Europa oriental não suas grandes vantagens nos países da Europa ocidental e central 3 Por exemplo na Prússia de Frederico II após a Guerra dos Sete Anos fezse um esforço para incorporar os judeus numa espécie de sistema mercantil O antigo Judenreglement de 1750 foi 33 mente surpreendente ver com que uniformidade os judeus desprezaram as oportunidades de se engajar em empresas e negócios capitalistas normais4 Mas sem os interesses e as práticas dos governos os judeus mal poderiam ter conservado sua identidade grupai Em contraste cem todos os outros grupos os judeus eram definidos pelo sistema político e a sua posição era determinada por ele Como porém esse sistema político carecia de base assentada em realidade social eles se situavam socialmente falando no vácuo Sua desigualdade social era bem diferente da desigualdade decorrente do sistema de classes novamente ela resultava da relação com o Estado de modo que na sociedade o próprio fato de o indivíduo ter nascido judeu significava que ou era superprivilegiado por receber proteção especial do governo ou subprivilegiado privado de certos direitos e oportunidades negados aos judeus para impedir a sua assimilação O esquema da ascensão e queda do sistema de Estadosnações europeus com relação ao povo judeu segue grosso modo os seguintes estágios 1 Nos séculos XVII e XVIII o lento desenvolvimento dos Estadosnações processavase sob a tutela dos monarcas absolutos Em toda parte judeus emergiam individualmente do profundo anonimato marginalizador para as posições às vezes atraentes e quase sempre influentes de judeusdacorte que financiavam os negócios do Estado e administravam as transações financeiras dos seus soberanos Essas modificações afetavam de maneira insignificante os ju substituído por um sistema de licenças regulares concedidas apenas àqueles habitantes que investiam parte considerável de sua fortuna nas novas empresas manufatureiras Mas ali como em toda parte essas tentativas governamentais falharam completamente 4 Felix Priebatsch no ensaio Die Judenpolitik des fürstlichen Absolutismus im 17 und 18 Jahrhundert Política judaica do absolutismo principesco nos séculos XVII e XVIII publicado em Forschungen und Versuche zur Geschichte des Mittelalters und der Neuzeit Pesquisas e estudos da história medieval e moderna 1915 cita um exemplo típico do início do século XVIII Quando a fábrica de espelhos em Neuhaus na Baixa Ãustria que era subsidiada pela administração deixou de produzir o judeu Wertheimer deu ao imperador dinheiro para comprála Quando lhe pediram que assumisse a direção da fábrica ele recusou afirmando que seu tempo estava todo tomado por suas transações financeiras Ver também Max Kõhler Beitrage zur neueren jüdischen Wirtschaftsgeschichte Die Juden in Halberstadt und Umgebung Contribuições para a nova história econômica judaica Os judeus em Halberstadt e Umgebungem Studien zur Geschichte der Wirtschaft und Geistkultur Estudos para a história da economia e da cultura 1927 vol 3 Essa tradição que evitou que os judeus ricos tivessem posições de real poder no capitalismo é corroborada pelo fato de que em 1911 os Rothschild de Paris venderam sua parte nos campos petrolíferos de Baku ao grupo Royal Shell após haverem sido os maiores magnatas de petróleo do mundo depois de Rockefeller O incidente é narrado em Richard Lewinsohn Wie sie gross und reich wurden Como se tornaram poderosos e ricos Berlim 1927 Pode ser tomada como regra geral a afirmação de André E Sayou no ensaio Les Juifs publicado na Revue Economique Internationale março de 1932 como parte da polêmica com Werner Sombart o qual identificava os judeus com o desenvolvimento capitalista Os Rothschild e outros israelitas que estavam quase exclusivamente engajados no lançamento de empréstimos estatais e no movimento internacional de capital não procuraram absolutamente criar grandes indústrias p 531 34 deus em geral e as massas que continuavam a viver dentro dos padrões correspondentes à antiga ordem feudal 2 Após a Revolução Francesa que alterou bruscamente as condições políticas de todo o continente europeu surgiram Estadosnações no sentido moderno cujas transações comerciais exigiam muito mais capital e crédito de que jamais dispuseram os judeusdacorte Somente poderia satisfazer às novas e maiores necessidades governamentais a fortuna combinada dos grupos judeus mais ricos da Europa ocidental e central confiada por eles a banqueiros judeus que por conseguinte como banqueiros precisavam de coletividades judaicas organizadas como fontes da captação do dinheiro e as apoiavam nesse sentido Nesse período portanto começou a concessão de privilégios até então só necessários individualmente aos judeusdacorte à camada rica que havia conseguido estabelecerse no decorrer do século XVIII nos centros urbanos e financeiros mais importantes Por fim foi concedida aos judeus a emancipação em todos os Estadosnações exceto naqueles países em que os judeus devido ao seu elevado número e ao atraso social geral como na Rússia não conseguiram organizarse como grupo especial à parte de função econômica especificamente destinada a apoiar financeiramente o governo 3 Essa íntima relação entre judeus e governos era facilitada pela indiferença geral da burguesia no tocante à política em geral e às finanças do Estado em particular Esse período terminou com o surgimento do imperialismo no fim do século XIX quando os negócios capitalistas em expansão já não podiam ser realizados sem a intervenção e o apoio político ativo do Estado O imperialismo por outro lado minou as próprias bases do Estadonação e introduziu no conjunto de nações européias o espírito comercial de concorrência competitiva Os judeus perderam então sua posição exclusiva nos negócios do Estado para homens de negócios de mentalidade imperialista e a sua importância como grupo declinou embora alguns judeus conservassem individualmente sua influência como consultores financeiros e como mediadores intereuropeus Esses judeus contudo em contraste com os banqueiros estatais não precisavam do apoio e solidariedade das comunidades judaicas como os judeusdacorte dos séculos XVII e XVIII Assim isolavamse delas Aliás as comunidades judaicas já não eram financeiramente organizadas e embora alguns judeus em altas posições ainda representassem aos olhos do mundo gentio o povo judeu como um todo havia pouca ou nenhuma realidade material nesse fato 4 Como grupo o povo judeu do Ocidente europeu desintegrouse juntamente com o Estado nação nas décadas que precederam a deflagração da Primeira Guerra Mundial O rápido declínio da Europa após a guerra já os encontrou destituídos do antigo poder atomizados num rebanho de indivíduos mais ou menos ricos Mas na era imperialista a riqueza dos judeus havia se tornado insignificante para a Europa desprovida de equilíbrio de poder entre as nações que a compunham e carente de noções de solidariedade intereuropéia o elemento judeu intereuropeu e não nacional tornouse objeto de ódio devido à sua riqueza inútil e de desprezo devido à sua falta de poder 35 Os primeiros governos a necessitarem de renda regular e de finanças seguras foram as monarquias absolutistas sob as quais o Estadonação viria a nascer Antes príncipes e reis feudais também necessitavam de dinheiro e até mesmo de crédito mas apenas para fins específicos e operações temporárias mesmo no século XVI quando os Fugger puseram seu próprio crédito à disposição do Estado ainda não cogitavam de estabelecer crédito estatal especial Inicialmente os monarcas absolutos cuidavam de suas necessidades financeiras em parte pelo velho método de guerra e pilhagem e em parte pelo sistema de monopólio de impostos o que solapava o poder pois arruinava as fortunas da nobreza sem aplacar a hostilidade da população Durante muito tempo as monarquias absolutistas procuraram na sociedade um grupo do qual pudessem depender com a mesma segurança que a nobreza dava à monarquia feudal Na França desde o século XV desenvolviase incessante luta entre as corporações e a monarquia esta querendo integrar aquelas no sistema do Estado A mais interessante dessas experiências foi sem dúvida o surgimento do mercantilismo e as tentativas do Estado absolutista para impor o monopólio absoluto ao comércio e à indústria nacionais O conseqüente desastre do Estado absolutista e a sua bancarrota provocada pela resistência da burguesia em ascensão são suficientemente conhecidos5 Antes dos éditos de emancipação cada casa principesca cada monarca da Europa já possuía seu judeudacorte para administrar as finanças Durante os séculos XVII e XVIII esses judeus dacorte eram sempre indivíduos isolados que mantinham decerto conexões intereuropéias e dispunham de fontes de crédito intereuropéias mas não constituíam entidade financeira internacional6 Os judeus individualmente e as primeiras ricas pequenas comunidades 5 Contudo dificilmente pode ser superestimada a influência das experiências mercantilistas em acontecimentos futuros A França foi o único país onde o sistema mercantilista foi seriamente experimentado e resultou no precoce florescimento de manufaturas que deviam sua existência à intervenção do Estado e o país jamais se recuperou disso Na era da livre iniciativa sua burguesia evitava investimentos não garantidos em indústria enquanto que sua burocracia também produto do sistema mercantilista sobreviveu ao colapso Embora a burocracia tenha perdido todas as suas funções produtivas é ainda hoje característica do país dificultando mais que a burguesia a sua recuperação 6 Esse havia sido o caso na Inglaterra desde o banqueiro marrano da rainha Elizabeth e os financistas judeus dos exércitos de Cromwell até que um dos doze corretores judeus admitidos na Bolsa de Londres foi apontado como agenciador de um quarto de todos os empréstimos governamentais de seu tempo ver Saio W Baron A social and religious history of the Jews 1937 vol II Jews and capitalism na Áustria onde em 44 anos 16951739 os judeus creditaram ao governo mais de 35 milhões de florins e onde a morte de Samuel Oppenheimer em 1703 resultou numa grave crise financeira tanto para o Estado como para o imperador na Baviera onde em 1808 quase 80 de todos os empréstimos governamentais eram endossados e negociados por judeus ver M Grunwald Samuel Oppenheimer und sein Kreis S O e seu círculo 1913 na França onde as condições mercantis eram especialmente favoráveis aos judeus a ponto de Colbert já ter louvado sua grande utilidade para o Estado Baron op cit loc cit e onde em meados do século XVIII o judeu alemão Liefman Calmer recebeu um baronato de um rei agradecido que apreciava serviço e lealdade a Nosso Estado e Nossa pessoa Robert Anchel no ensaio Un baron juif français au 36 judaicas dispunham então de poder tão elevado que se permitiam abordar com maior franqueza não só as discussões sobre seus privilégios mas também sobre o direito de obtêlos enquanto as autoridades se referiam de maneira muito cuidadosa à importância dos serviços que os judeus prestavam ao Estado7 Não há sombra de dúvida quanto à conexão entre os serviços prestados e privilégios concedidos Na França na Baviera na Áustria e na Prússia os judeus privilegiados recebiam títulos de nobreza de modo que ultrapassavam o status de meros homens ricos Sobrepujadas as dificuldades enfrentadas pelos Rothschild em conseguir o título de nobreza aprovado pelo governo austríaco em 1817 findava cabalmente uma época Em fins do século XVIII já era evidente nos vários países que nenhuma das camadas ou classes estava desejosa ou tinha capacidade de tornarse classe governante isto é de identificarse com o governo como a nobreza o havia feito no decorrer dos séculos8 O fato de a monarquia não ter conseguido encontrar uma classe que substituísse a aristocracia dentro da sociedade levou ao rápido desenvolvimento do Estadonação e à presunção de que esse sistema estivesse acima de todas as classes completamente independente da sociedade com sua pluralidade de interesses particulares que a perfaziam enfim o verdadeiro e único representante da nação como um todo Esse sistema resultou por outro lado no aprofundamento da brecha entre o Estado e a sociedade na qual repousava a estrutura política da nação Sem essa brecha não seria necessário nem possível incluir os judeus na história européia em termos de igualdade Quando falharam todas as tentativas de aliarse a uma das classes principais da sociedade restou ao Estado imporse como poderosa empresa comercial O crescimento dos negócios estatais foi causado pelo conflito entre o Estado e as forças financeiramente poderosas da burguesia que preferiu dedicarse ao investimento privado evitando a intervenção do Estado e recusandose a participar de maneira ativa no que lhe parecia ser empresa improdutiva Foram assim os judeus a única parte da população disposta a financiar os primórdios do Estado e a ligar seu destino ao desenvolvimento estatal Com 18éme siècle Liefman Calmet publicado em Souvenir et Science 1930 pp 525 e também na Prússia onde os Münzjuden judeus cunhadores de moedas de Frederico II tinham títulos de nobreza e onde no fim do século XVIII quatrocentas famílias judias constituíam um dos grupos mais ricos de Berlim Uma das melhores descrições de Berlim e do papel dos judeus em sua sociedade no limiar do século XVIII pode ser encontrada em Wilhelm Dilthey Das Leben Schleiermachers A vida de S 1870 pp 182 ss 7 No começo do século XVIII os judeus austríacos conseguiram banir o Entdecktes Judentum O judaísmo desnudo de Eisemenger de r703 e no fim desse século O mercador de Veneza de Shakespeare só podia ser representado em Berlim com um pequeno prólogo em que se pediam desculpas ao público judeu 8 A única e irrelevante exceção é constituída pelos coletores de impostos chamados fermiersgénéraux da França que alugavam do Estado o direito de cobrar impostos garantindo uma quantia fixa ao governo Ganhavam da monarquia absoluta elevadas fortunas e dela dependiam diretamente mas eram numericamente por demais insignificantes como grupo e por demais efêmeros como fenômeno para exercerem influência econômica de per si 37 o seu crédito e suas ligações internacionais estavam em excelente posição para ajudar o Estado nação a afirmarse entre os maiores empregadores e empresas da época9 Acentuados privilégios e mudanças decisivas na condição da vida dos judeus constituíam o preço pela prestação de tais serviços e ao mesmo tempo a recompensa por grandes riscos Quando os Münzjuden judeus financistas de Frederico da Prússia ou os judeusdacorte do imperador austríaco receberam sob forma de privilégios gerais e patentes o mesmo status que meio século mais tarde todos os judeus da Prússia receberiam com o nome de emancipação e igualdade de direitos quando no fim do século XVIII no ápice de sua fortuna os judeus de Berlim conseguiram impedir o influxo dos judeus das províncias orientais ex polonesas do império germânico porque não desejavam dividir a sua igualdade com os correligionários mais pobres e menos cultos os quais não reconheciam como iguais quando ao tempo da Assembléia Nacional Francesa os judeus de Bordeaux e de Avignon protestaram violentamente contra a concessão de igualdade por parte do governo francês aos judeus das províncias orientais Alsácia principalmente ficou claro que os judeus não pensavam em termos de direitos iguais mas sim de privilégios e liberdades especiais E realmente não nos surpreende que os judeus privilegiados intimamente ligados aos negócios de governos e bem conscientes da natureza e condição de seu status relutassem em aceitar a outorga para todos os judeus dessa liberdade que eles conseguiram em troca por seus serviços e a qual portanto vista sob esse aspecto não podia segundo eles tornarse um direito a ser compartilhado por todos10 Só no fim do século XIX o imperialismo em evolução levou as classes proprietárias à mudança da opinião inicial sobre a suposta improdutividade dos negócios estatais A expansão imperialista juntamente com o gradativo aperfeiçoamento dos instrumentos de violência monopolizados de modo absoluto pelo Estado tornou interessantes os negócios comerciais com o Estado como parceiro Isso significou naturalmente que os judeus gradual mas automaticamente perderam sua posição exclusiva e singular 9 As necessidades que estreitavam os laços entre os governos estatais e os judeus podem ser avaliadas pela ambivalência entre as idéias antijudaicas e a prática política do governo que as professava Assim Bismarck em sua juventude fez alguns discursos antisemitas mas veio a tornarse como chanceler do Reich amigo íntimo de Bleichroeder e fiel protetor dos judeus contra o movimento antisemita de Stoecker em Berlim Guilherme II embora como príncipe da Coroa e membro da antijudaica nobreza prussiana tenha simpatizado com os movimentos anti semitas da década de 80 mudou suas convicções e abandonou seus protegidos antisemitas da noite para o dia quando subiu ao trono 10 Já no século XVIII onde quer que grupos de judeus se tornassem suficientemente ricos para serem úteis ao Estado gozavam de privilégios coletivos e separavamse como grupo de seus irmãos menos ricos e menos úteis ainda que fosse no mesmo país Como os Schutzjuden judeus protegidos da Prússia os judeus de Bordeaux e de Bayonne na França gozavam de igualdade muito antes da Revolução Francesa e foram até convidados a apresentar suas queixas e proposições juntamente com os outros grupos na Convocation des Etats Généraux de 1787 38 Mas a boa sorte dos judeus e a sua saída da obscuridade para a importância política teriam sido mais breves se eles se houvessem restringido a meras funções comerciais dentro do Estado nação em crescimento Em meados do século XIX alguns Estados adquiriram suficiente crédito para dispensar o financiamento e a garantia dos judeus para seus empréstimos Ademais a crescente consciência por parte dos cidadãos de que seus destinos particulares se tornavam cada vez mais dependentes dos destinos do país fez com que eles se dispusessem a conceder ao governo mais crédito necessário A própria igualdade era simbolizada pelo fato de qualquer um poder comprar papéis do governo ações apólices bônus etc já considerados a mais segura modalidade de investir capital na medida em que o Estado totalmente soberano para travar guerras e dispor da vida dos súditos tornouse a única entidade que podia realmente proteger as propriedades dos cidadãos A partir de meados do século XIX os judeus mantiveram posição de destaque porque ainda desempenhavam papel importante intimamente ligado à participação nos destinos do Estado Sem território e sem governo próprios os judeus constituíam elemento intereuropeu e o Estadonação necessariamente conservavalhes essa condição porque dela dependiam os serviços financeiros prestados por judeus Mas mesmo após o desaparecimento da sua utilidade econômica a condição intereuropéia dos judeus continuava sendo de suma importância para o Estado principalmente em tempo de conflitos e guerras entre as nações Enquanto a necessidade dos serviços dos judeus aos Estadosnações surgira de modo lento e lógico evoluindo a partir do contexto geral da história da Europa a ascensão dos judeus à posição de destaque político e econômico foi súbita e inesperada tanto para eles próprios como para os seus vizinhos No fim da Idade Média o emprestador de dinheiro judeu perdeu a sua antiga importância e já no começo do século XVI os judeus começaram a ser expulsos de cidades e centros comerciais para lugarejos e vilas do interior trocando assim a uniforme proteção das autoridades centrais por uma posição insegura concedida desigualmente por pequenos nobres locais12 O momento crítico surgiu no século XVII quando durante a Guerra dos Trinta Anos esses judeus insignificantes e dispersos emprestadores de dinheiro podiam garantir com o auxílio de judeus mercadores provisões para os exércitos mercenários dos chefes guerreiros situados em terras ocupadas e estranhas Como essas guerras eram semifeudais e mais ou menos particulares dos príncipes sem envolver 11 Jean Capefigue fíííojre des grandes opérationsfinancières vol III Emprunts bourses etc 1855 pretende que durante a Monarquia de Julho só os judeus e especialmente a casa dos Rothschild invalidaram a solidificação do crédito etatal baseado no Banco da França Diz ele que os acontecimentos de 1848 tornaram supérfluas as atividades dos Rothschild Raphael Strauss The Jews in the economic evolution of Central Europe em Jewish Social Studies III 1 1941 observa também que depois de 1830 o crédito público já se tornava risco menor de modo que bancos cristãos começaram a entrar no negócio cada vez mais Contra essas interpretações há o fato de que prevaleciam excelentes relações entre os Rothschild e Napoleão III embora não possa haver dúvida quanto à tendência geral da época 12 Ver Priebatsch op cit 39 quaisquer interesses de outras classes o que os judeus ganhavam em status era muito limitado e quase imperceptível Mas o número de judeusdacorte aumentava porque cada casa feudal precisava do seu financista particular Esses judeusdacorte eram servos de um grupo social apenas serviam tãosó a pequenos senhores feudais que como membros da nobreza não aspiravam a representar qualquer autoridade centralizada As propriedades que administravam o dinheiro que emprestavam e as provisões que compravam constituíam problemas particulares do senhor de modo que essas atividades não podiam envolver os judeus em questões políticas Portanto odiados ou favorecidos os judeus tampouco podiam transformarse em questão política de alguma importância Quando contudo mudou o status do senhor feudal quando ele se tornou príncipe ou rei alterouse também a função do judeudacorte Os judeus como elementos estranhos desinteressados pelas mudanças mal percebiam a gradativa melhora de sua posição No que lhes tocava continuavam a administrar negócios privados e sua lealdade continuava a ser questão pessoal que nada tinha a ver com considerações políticas A lealdade significava honestidade não obrigava a tomar partido nos conflitos ou a permanecer fiel por motivos políticos Comprar provisões vestir e alimentar um exército emprestar dinheiro para o recrutamento de mercenários refletia apenas o interesse pelo bemestar de um sócio comercial fosse ele quem fosse O tipo de relação entre os judeus e a aristocracia impediu que o grupo judeu se ligasse a outra camada da sociedade Depois que desapareceu no começo do século XIX nunca foi substituído Como seu vestígio entre os judeus permaneceu a inclinação por títulos aristocráticos especialmente na Áustria e na França e no tocante aos nãojudeus uma espécie de antisemitismo liberal que colocava judeus e nobreza no mesmo nível por alegar que ambos se aliavam financeiramente contra a burguesia em ascensão Esses argumentos correntes na Prússia e na França eram plausíveis antes da emancipação geral dos judeus pois os privilégios dos judeusdacorte realmente se assemelhavam aos direitos e às liberdades da nobreza os judeus demonstravam o mesmo medo da aristocracia de perder os seus privilégios e usavam os mesmos argumentos contra a igualdade de todos A plausibilidade tornouse ainda maior quando no século XVIII à maioria dos judeus privilegiados foram outorgados títulos menores de nobreza e no começo do século XIX quando os judeus ricos tendo perdido seus laços com as comunidades judaicas buscaram status social seguindo o modelo da aristocracia Mas tudo isso era inconseqüente primeiro porque já era óbvio que a nobreza estava em declínio enquanto os judeus ao contrário subiam continuamente em sua posição social e segundo porque a própria aristocracia especialmente na Prússia veio a ser a primeira classe a esboçar uma ideologia baseada no antisemitismo Os judeus eram fornecedores em tempo de guerra mas embora servos do rei jamais participavam dos conflitos nem se esperava que o fizessem Quando os conflitos cresceram e se tornaram guerras nacionais eles conti 40 nuaram mantendo a característica de grupo internacional cuja importância e utilidade decorriam precisamente do fato de nunca se terem ligado a qualquer causa nacional Não sendo mais banqueiros estatais nem fornecedores em tempo de guerra a última guerra financiada por um judeu foi a guerra austroprussiana de 1866 quando Bleichroeder ajudou Bismarck depois que o parlamento da Prússia negou a este último os créditos necessários os judeus tornaramse consultores financeiros e assistentes em tratados de paz e de modo menos organizado e mais indefinido mensageiros e intermediários na transmissão de notícias Os últimos tratados de paz elaborados sem assistência judaica foram os do Congresso de Viena entre a França e as demais potências da Europa O papel de Bleichroeder nas negociações de paz entre a Alemanha e a França em 1871 foi mais significativo do que seu auxílio na guerra e ele prestou serviços ainda mais importantes no fim da década de 1870 quando através1 de suas ligações com os Rothschild proporcionou a Bismarck um meio de comunicação indireta com Benjamin Disraeli13 Os tratados de paz após a Primeira Guerra Mundial foram os últimos nos quais os judeus desempenharam papel proeminente como consultores O último judeu que deveu sua ascensão no cenário nacional à sua conexão judaica internacional foi Walter Rathenau ministro do Exterior da República de Weimar Como disse um de seus colegas após o seu assassinato por nacionalistas antisemitas Rathenau pagou com a vida o fato de ter transferido aos ministros da nova república completamente desconhecidos no âmbito internacional seu prestígio no mundo internacional das finanças e o apoio dos judeus em todo o mundo14 É óbvio que os governos antisemitas não usassem os judeus para os negócios de guerra e paz Mas a eliminação dos judeus do cenário internacional tinha um significado mais amplo e mais profundo do que o antisemitismo propriamente dito Os judeus eram valiosos na guerra na medida em que usados como elemento nãonacional asseguravam as possibilidades de paz isto é enquanto o objetivo dos beligerantes nas guerras de competição era a paz de acomodação e o restabelecimento do modus vivendi Mas quando as guerras tornaramse ideológicas visando a completa aniquilação do inimigo os judeus deixaram de ser úteis Já isso levaria à destruição de sua existência coletiva embora seja necessário frisar que seu desaparecimento do cenário político e até mesmo a extinção da vida grupai específica não conduzia necessariamente ao extermínio físico dos judeus Contudo é verdadeiro apenas parcialmente o argumento de que os judeus alemães se teriam tornado nazistas se isso lhes 13 De acordo com um incidente fielmente relatado por todos os seus biógrafos Bismarck disse logo apôs a derrota francesa de 1871 Antes demais nada Bleichroeder tem de ir a Paris reunirse com os seus colegas judeus e discutir o assunto os 5 bilhões de francos de reparação com os banqueiros Ver Otto Joehlinger flismarcfc unddieJudenB e os judeus Berlim 1921 14 Ver o estudo de Walter Frank Walter Rathenau und die blonde Rasse W R e a raça loira emForschungenzurJudenfrage Pesquisas da questão judaica vol IV 1940 Frank a despeito de sua posição nazista não deixou de ser cuidadoso na escolha das fontes e métodos Nesse artigo ele cita os obituários de Rathenau no Israelitisches Familienblatt Hamburgo 6 de julho de 1922 Die Zeit junho de 1922 e Berliner Tageblatt 31 de maio de 1922 41 fosse permitido com a mesma facilidade com que o fizeram seus concidadãos arianos como aliás os judeus italianos se alistavam no partido fascista da Itália antes que o fascismo italiano introduzisse a legislação racial Essa asserção é verdadeira apenas com relação à psicologia dos judeus tomados individualmente psicologia que não diferia muito da então reinante ao redor mas é patentemente falsa no sentido histórico O nazismo mesmo sem pregar o antisemitismo teria levado o golpe de misericórdia na existência do povo judeu na Europa e seria suicídio para os judeus como povo apoiálo mesmo que não o fosse necessariamente para indivíduos de origem judaica A primeira contradição que marcou o destino dos judeus da Europa durante os últimos séculos é aquela entre a igualdade e o privilégio isto é entre a igualdade concedida sob a forma de privilégio e o privilégio como meio para alcançar a igualdade A esta é preciso acrescentar uma segunda contradição os judeus o único povo nãonacional da Europa foram mais ameaçados que quaisquer outros pelo colapso do sistema de Estados nacionais A situação é menos paradoxal do que pode parecer à primeira vista Os representantes da nação fossem jacobinos de Robespierre a Clemenceau ou representantes dos governos reacionários da Europa central desde Metternich até Bismarck tinham algo em comum todos estavam sinceramente preocupados com o equilíbrio do poder na Europa Buscavam naturalmente mudar esse equilíbrio em favor de seus respectivos países mas jamais sonhariam com o monopólio do poder que levasse à aniquilação dos seus competidores Os judeus não apenas podiam ser usados no interesse desse precário equilíbrio mas se tornaram até uma espécie de símbolo dos interesses comuns das nações européias Não foi portanto mero acidente que as derrotas dos povos da Europa foram antecedidas pela catástrofe do povo judeu Era fácil iniciar a dissolução do precário equilíbrio de forças na Europa a partir da eliminação dos judeus embora fosse difícil compreender que essa eliminação transcendia o nacionalismo inusitadamente cruel ou a inoportuna restauração de velhos preconceitos Quando veio a hecatombe o destino do povo judeu passou a ser considerado um caso especial cuja história seguia leis excepcionais e cuja sorte portanto por depender de determinismo histórico não era relevante Mas a esse colapso da solidariedade européia correspondeu o colapso da solidariedade interjudaica em toda a Europa Quando começou a perseguição aos judeus alemães os judeus dos outros países desse continente descobriram que os judeus da Alemanha constituíam uma exceção cujo destino não se assemelhava ao seu Do mesmo modo o colapso da comunidade judaica alemã foi precedido pela fragmentação em numerosas facções cada qual acreditando que seus direitos humanos seriam protegidos por privilégios especiais o privilégio de ter sido veterano da Primeira Grande Guerra ou filho de veterano ou filho do soldado morto em combate pela pátria Cada grupo julgava constituir uma exceção A aniquilação física dos indivíduos de origem judaica parece então estar sendo precedida pela destruição moral do grupo e pela autodissolução comunitária como se o povo judeu devesse sua existência exclusivamente aos outros povos e ao ódio que deles emanava 42 É ainda um dos aspectos mais comoventes da história judaica o fato de que o ingresso dos judeus na história da Europa tenha sido motivado por constituírem um elemento intereuropeu e nãonacional num mundo estruturado nacionalmente Que esse papel foi mais duradouro e mais essencial do que sua função como banqueiros estatais é uma das razões que engendraram o novo tipo moderno de produtividade judaica nas artes e nas ciências Não é sem lógica histórica que a queda dos judeus como grupo tenha coincidido com a ruína de um sistema e de um corpo político que quaisquer que tenham sido os seus defeitos haviam necessitado e podiam tolerar um elemento paneuropeu consubstanciado em judeus A grandeza dessa existência especificamente européia não deve ser esquecida Os poucos autores europeus que sentiam esse aspecto da questão judaica mesmo que não nutrissem simpatia pelos judeus sabiam avaliar imparcialmente a situação européia Entre eles estava Diderot o único filósofo francês do século XVIII que não era hostil aos judeus e que reconhecia neles um laço útil entre europeus de diferentes nacionalidades Wilhelm von Humboldt que testemunhando a emancipação dos judeus como resultado da Revolução Francesa observou que eles perderiam sua universalidade quando virassem franceses15 e finalmente Friedrich Nietzsche autor da expressão bom europeu que soube avaliar corretamente o papel dos judeus na história européia sem cair nas armadilhas do filosemitismo barato ou de atitude então progressista de proteção Essa análise embora correta na descrição de manifestações superficiais do fenômeno deixa de lado o paradoxo mais sério existente no centro da história política dos judeus De todos os povos europeus os judeus eram os únicos sem Estado próprio e precisamente por isso haviam aspirado tanto e tanto se prestavam a alianças entre governos e Estados independentemente do que esses governos e Estados representassem Por outro lado os judeus não tinham qualquer tradição ou experiência política e não percebiam a tensão nascente entre a sociedade e o Estado nem os riscos evidentes e a potencialidade decisória que assumiam decorrentes do seu novo papel O parco conhecimento da política resultava da prática já tradicional de sua convivência Essa falha surgiu ainda no Império Romano onde os judeus eram protegidos por assim dizer pelo soldado romano e depois na Idade Média quando haviam buscado e recebido proteção de remotas autoridades monárquicas e clericais a despeito da animosidade da população e dos governantes locais Essas experiências haviam de alguma forma lhes ensinado que a autoridade e especialmente a alta autoridade lhes era favorável e que os funcionários inferiores e espe 15 Wilhelm von Humboldt Tagebücher Diários editado por Leitzmann Berlim 19168 1475 O artigo Juif da Encyclopédie 175165 que provavelmente foi escrito por Diderot Assim dispersos em nossa época os judeus tornaramse instrumentos de comunicação entre as nações mais distantes Sào como as espigas e os pregos necessários num grande edifício para unir e manter juntas todas as outras partes 43 cialmente o povo comum eram perigosos Esse preconceito que expressava uma verdade histórica embora não mais correspondesse às novas circunstâncias estava tão profundamente arraigado entre os judeus e era tão inconscientemente compartilhado por eles como eram arraigados entre os gentios os preconceitos contrários aos judeus A história da relação entre os judeus e os governos é rica de exemplos da rapidez com que os banqueiros judeus transferiam a sua lealdade de um governo para outro mesmo após mudanças revolucionárias Os Rothschild franceses não levaram mais que 24 horas para transferir em 1848 seus serviços de Luís Filipe à nova e passageira República Francesa e depois para Napo leão III O mesmo processo se repetiu na França a um ritmo mais lento após a queda do Segundo Império e o estabelecimento da Terceira República Na Alemanha essa mudança súbita e fácil foi simbolizada depois da revolução republicana de 1918 pela política financeira da família banqueira dos Warburg de um lado e pelas volúveis ambições políticas de Walter Rathenau de outro16 Esse tipo de conduta envolve mais do que o simples padrão burguês que aceita como premissa nada ser tão bemsucedido como o sucesso17 Se os judeus tivessem sido burgueses no sentido lato do termo poderiam ter avaliado com exatidão as extraordinárias possibilidades de poder decorrentes de suas novas funções e ter pelo menos tentado representar com vista a manter a ilusão do sucesso aquele papel fictício de um poder mundial secreto que faz e desfaz governos e que os antisemitas de qualquer modo lhes atribuíam Nada porém estava mais longe da verdade Os judeus sem conhecer o poder ou se interessar por ele nunca pensaram em exercer senão suaves pressões para fins subalternos de autodefesa Essa falta de ambição foi mais tarde profundamente ressentida pelos filhos mais assimilados dos banqueiros e negociantes judeus Enquanto alguns deles sonhavam como Disraeli com alguma sociedade secreta judaica à qual poderiam pertencer mas que nunca existiu outros como Rathenau que eram melhor informados entregavamse a tiradas meio antisemitas contra os mercadores ricos que não tinham poder nem posição social Essa inocência nunca foi bem entendida por estadistas ou historiadores nãojudeus Por outro lado o desligamento dos judeus do poder era aceito com tanta naturalidade pelos representantes ou escritores judeus que eles quase nunca o mencionavam a não ser para exprimir sua surpresa ante as absurdas 16 Walter Rathenau ministro do Exterior da República de Weimar em 1921 e um dos mais eminentes representantes dos democratas na Alemanha havia declarado ainda em 1917 suas profundas convicções monarquistas de acordo com as quais somente um ungido e não um arrivista de duvidosa carreira devia liderar o país Ver seu Von kommenden Dingen Das coisas porvir 1917 p 247 17 Esse padrão burguês porém não deveria ser esquecido Se se tratasse apenas de uma questão de motivos individuais e padrões de comportamento os métodos da casa dos Rothschild não difeririam muito daqueles de seus colegas gentios Por exemplo o banqueiro de Napoleão Ouvrard depois de haver provido os meios financeiros para a guerra no governo dos cem dias imediatamente ofereceu seus serviços aos Bourbons restaurados 44 suspeitas levantadas contra eles Nas memórias dos estadistas do século XIX encontramse freqüentes observações que pressupõem a dependência da eclosão de guerras da vontade de um Rothschild de Londres Paris ou Viena Mesmo um historiador sóbrio e digno de fé como J A Hobson podia dizer ainda em 1905 Alguém supõe seriamente que qualquer Estado europeu pode fazer guerra ou subscrever um grande empréstimo estatal se a Casa dos Rothschild e suas conexões se opuserem18 O próprio Metternich mantinha firme convicção que os Rothschild desempenhavam na França papel superior ao de qualquer governo estrangeiro tendo afirmado aos Rothschild vienenses pouco antes da Revolução de 1848 Se eu desaparecer vossa casa desaparecerá comigo A verdade é que os Rothschild tinham tanta noção política quanto qualquer outro banqueiro judeu e como seus correligionários jamais se aliavam a um governo específico e sim a governos à autoridade em si Se naquela época mostravam preferência definida pelos governos monárquicos em detrimento das repúblicas foi por suspeitarem e com razão que as repúblicas se baseavam grandemente no desejo do povo do qual eles instintivamente desconfiavam Quão profunda era a fé que os judeus tinham no Estado e quão fantástica era a sua ignorância das verdadeiras condições da Europa foi revelado nos últimos anos da República de Weimar na véspera da tomada de poder por Hitler quando já razoavelmente apavorados com relação ao futuro os judeus procuraram uma vez engajarse na política Com o auxílio de alguns nãojudeus fundaram um partido de classe média que denominaram Partido do Estado Staatspartei já a sua denominação sendo contraditória Estavam tão ingenuamente convencidos de que seu partido que supostamente os representava na luta política e social se confundisse com o próprio Estado que lhes escapou até a análise da relação entre um partido e o Estado Se alguém levasse a sério esse partido de cavalheiros respeitáveis e perplexos teria concluído que a lealdade a qualquer preço encobria forças que tramavam apoderarse do Estado Do mesmo modo como os judeus ignoravam completamente a tensão crescente entre o Estado e a sociedade foram também os últimos a perceber as circunstâncias que os arrastavam para o centro do conflito Nunca portanto souberam avaliar o antisemitismo nunca chegaram a reconhecer o momento em que a discriminação se transformava em argumento político Durante mais de cem anos o antisemitismo havia lenta e gradualmente penetrado em quase todas as camadas sociais em quase todos os países europeus até emergir como a única questão que podia unir a opinião pública Foi simples como ocorreu esse processo cada classe social que entrava em conflito com o Estado virava antisemita porque o único grupo que parecia representar o Estado identificandose com ele servilmente eramos judeus E a única classe que demonstrou ser quase imune à propaganda antisemita foram os trabalhadores que absorvidos pela luta de classes e equipados com a explicação marxista da his 18 J A Hobson Imperialism a study 1902 p 57 da edição nãorevista de 1938 45 tória nunca entravam em conflito direto com o Estado mas só com outra classe social a burguesia que os judeus certamente não representavam e da qual nunca haviam sido parte importante A emancipação política dos judeus no fim do século XVIII em alguns países e a discussão do problema no resto da Europa central e ocidental causaram a mudança da atitude dos judeus em relação ao Estado a qual foi de certa forma simbolizada pela ascensão da casa dos Rothschild A nova política desses judeusdacorte que foram os primeiros a se tornar banqueiros estatais veio à luz quando insatisfeitos em servir a um príncipe ou a um governo decidiram internacionalizar seus serviços pondoos simultaneamente à disposição dos governos da Alemanha da França da GrãBretanha da Itália e da Áustria Até certo ponto essa orientação sem precedentes resultou da reação dos Rothschild aos perigos da verdadeira emancipação que juntamente com a igualdade ameaçava nacionalizar os judeus dos respectivos países e destruir assim as próprias vantagens intereuropéias sobre as quais havia repousado a posição dos banqueiros judeus O velho Meyer Amschel Rothschild fundador da casa deve ter reconhecido que a condição intereuropéia dos judeus já não estava segura e que era melhor que ele tentasse consolidar essa singular posição internacional no âmbito de sua família O estabelecimento de seus cinco filhos nas cinco capitais financeiras da Europa Frankfurt Paris Londres Nápoles e Viena foi a engenhosa resposta que encontrou para a solução do embaraçoso problema da emancipação dos judeus19 Os Rothschild haviam iniciado sua espetacular carreira a serviço financeiro do príncipe de Hessen Importante financista financiador e agiota o príncipe ensinou aos Rothschild a prática comercial e introduziuos a muitos dos seus clientes A vantagem de Rothschild era ter residido em Frankfurt o único grande centro urbano alemão do qual os judeus nunca haviam sido expulsos e onde no começo do século XIX constituíam quase 10 da população Os Rothschild iniciaramse como judeusdacorte sem estar sob a jurisdição de nenhum príncipe ou municipalidade submetidos à autoridade direta do imperador distante em Viena Aliavam assim as vantagens do status judaico da Idade Média com as do seu próprio tempo e dependiam muito menos da nobreza ou das autoridades locais que qualquer outro judeudacorte As atividades posteriores da casa a enorme fortuna que reuniram e sua fama tão simbólica são suficientemente conhecidas20 Ingressaram no mundo dos grandes negócios durante os últimos anos das guerras napoleônicas quando de 1811 19 Quão bem os Rothschild conheciam as origens de sua força é evidenciado por uma antiga lei da casa segundo a qual as filhas e seus maridos eram eliminados dos negócios do grupo As moças tinham permissão e depois de 1871 eram até encorajadas a se casarem com membros da aristocracia nãojudaica os descendentes masculinos tinham de se casar exclusivamente com moças judias e se possível membros da família na primeira geração este foi o caso de modo geral 20 Ver especialmente Egon César Conte Corti The rise ofthe House of Rothschild Nova York 1927 46 a 1816 quase metade das subvenções inglesas às potências do Continente europeu passaram por suas mãos Quando após a derrota de Napoleão a Europa inteira precisava de elevados empréstimos para reorganizar suas máquinas estatais e reconstruir estruturas financeiras os Rothschild detinham quase o monopólio da gestão dos empréstimos estatais Isso durou três gerações durante as quais conseguiram derrotar todos os concorrentes judeus e nãojudeus A Casa dos Rothschild tornouse como disse Capefigue o tesoureiro principal da Santa Aliança21 O estabelecimento internacional da Casa Rothschild e a sua hegemonia alcançada com relação aos demais banqueiros judeus mudaram a estrutura dos negócios estatais judaicos Desapareceu a evolução acidental desorganizada e sem plano quando indivíduos judeus suficientemente astutos para se aproveitarem de uma oportunidade freqüentemente galgavam posições de inco mensurável riqueza para cair em profunda miséria na geração seguinte Aliás isso não afetava os destinos do povo judeu como um todo exceto quando esses banqueiros agiam como protetores de alguma comunidade Mas não importa quão numerosos fossem os ricos agiotas judeus ou quão influentes fossem os judeusdacorte o fato é que não existia um grupo judeu definido que gozasse coletivamente de privilégios específicos e prestasse serviços específicos Foi precisamente o monopólio dos Rothschild na emissão de empréstimos governamentais que tornou possível e até necessária a utilização do capital judaico canalizando uma elevada porcentagem das fortunas judaicas para os negócios dos Estados o que gerou a base de uma renovada coesão intereuropéia dos judeus da Europa central e ocidental O que nos séculos XVII e XVIII foi uma ligação desorganizada entre judeus individuais de diferentes países transformouse em aproveitamento sistemático das oportunidades esparsas por uma única firma fisicamente presente em todas as importantes capitais européias e em constante contato com todas as camadas do povo judeu detentora da rede das informações úteis e capaz de dar formas organizadas a oportunidades decorrentes do sistema22 A posição exclusiva da casa Rothschild no mundo judaico substituiu até certo ponto os antigos laços de tradição espiritual e religiosa cuja gradual dissolução provocada pelo impacto da cultura ocidental pela primeira vez ameaçava a própria existência do povo judeu Para o mundo exterior essa família tornouse também o símbolo da realidade prática do internacionalismo judaico num mundo de Estadosnações e povos organizados politicamente em bases nacionais Onde poderiam os antisemitas encontrar melhor prova do fantástico conceito de um governo mundial judaico do que nessa família Unida embora ativa em cinco países diferentes proeminente em toda parte em íntima cooperação com governos distintos cujos freqüentes conflitos jamais 21 Capefigue op cit 22 Nunca foi possível determinar a que ponto os Rothschild usavam o capital judeu para suas próprias transações comerciais e até onde ia seu controle sobre os banqueiros judeus A família nunca permitiu que fossem pesquisados seus arquivos 47 abalavam a solidariedade de interesses existente entre seus banqueiros estatais constituiuse no símbolo que nenhuma propaganda poderia ter criado para fins políticos de modo mais eficaz A noção popular de que os judeus eram unidos por laços supostamente mais estreitos de sangue e de família que os outros povos era até certo ponto estimulada pelo que ocorria nessa família símbolo vivo e atuante da importância econômica e política que emanava da visão popular do povo judeu A conseqüência fatal foi simples quando por motivos que nada tinham a ver com a questão judaica os problemas raciais ocuparam o centro do cenário político os judeus imediatamente foram ajustados como alvo pelas ideologias e doutrinas que definiam grupos humanos por laços de sangue e por características genéticas familiares Contudo outro fato menos acidental explica essa imagem do judeu Na preservação do povo judeu a família havia sido mais importante do que em qualquer outro grupo político ou social do Ocidente com exceção da nobreza Os laços familiares constituíam o elemento mais forte e persistente na resistência do judeu à assimilação e à dissolução Como a nobreza européia em declínio fortalecia suas leis de casamento e linhagem os judeus tornaramse mais conscientes dos laços de família nos séculos de sua dissolução espiritual e religiosa Sem a antiga esperança da redenção por um Messias e sem o solo próprio o povo judeu tornouse cônscio de que sua sobrevivência havia sido conseguida num ambiente estranho e hostil Começou a ver o círculo interno da família como espécie de derradeiro baluarte e a conduzirse em relação aos membros do seu próprio grupo como se fossem membros de uma grande família Em outras palavras a imagem antisemita do povo judeu como uma família intimamente interligada por laços de sangue tinha de fato algo em comum com a idéia que os judeus faziam de si mesmos Essa situação foi um importante fator no início do surgimento e no crescimento contínuo do anti semitismo no século XIX Que um grupo de pessoas se tornasse antisemita em dado país num dado momento histórico dependia exclusivamente das circunstâncias gerais que as levavam a violento antagonismo contra o governo Mas sempre era notável a semelhança dos argumentos e o espontâneo relacionamento entre a imagem estereotipada e a realidade que esses estereótipos distorciam Vemos então os judeus sempre representados como uma organização de comércio internacional uma firma familiar global com interesses idênticos em toda parte uma força secreta por trás do trono que transforma outras forças em mera fachada e vários governantes em marionetes cujos cordões são puxados por trás do pano Assim devido à sua relação íntima com as fontes de poder do Estado os judeus eram invariavelmente identificados com o próprio poder e devido ao seu desligamento da sociedade e à sua concentração no fechado círculo familiar eram suspeitos de maquinarem mancomunados com o poder mas separados da sociedade a destruição desta sociedade e de suas estruturas 48 2 OS PRIMÓRDIOS DO ANTISEMITISMO É regra óbvia se bem que freqüentemente esquecida que o sentimento antijudaico adquire relevância política somente quando pode ser combinado com uma questão política importante ou quando os interesses grupais dos judeus entram em conflito aberto com os de uma classe dirigente ou aspirante ao poder O moderno antisemitismo tal como o vimos em países da Europa central e ocidental tinha causas políticas e não econômicas enquanto na Polônia e na Romênia foram as complicadas condições de classe que geraram o violento ódio popular contra os judeus Ali devido à incapacidade dos governos de resolver a questão de terras e de criar no Estadonação o mínimo de igualdade através da libertação dos camponeses a aristocracia ainda feudal pôde não apenas manter seu domínio político mas também evitar o surgimento de uma classe média Os judeus desses países numerosos embora desprovidos de força aparentemente preenchiam as funções da classe média porque eram na maioria donos de lojas e comerciantes e porque como grupo situavamse entre os grandes latifundiários e os grupos sociais sem propriedades A rigor pequenos proprietários podem existir tão bem numa economia feudal como numa economia capitalista Mas os judeus da Europa oriental como aliás em outros lugares não podiam não sabiam ou não queriam evoluir segundo o modelo capitalista industrial de modo que o resultado final de suas atividades era uma organização de consumo dispersa e ineficaz carente de sistema adequado de produção As posições judaicas criavam obstáculo ao desenvolvimento capitalista porque pareciam ser as únicas de onde se poderia esperar progresso econômico quando na realidade não eram capazes de satisfazer essa expectativa Assim os interesses judaicos eram tidos como conflitantes com aqueles setores da população dos quais poderia normalmente ter surgido uma classe média Os governos por outro lado numa ambivalência insensata tentavam tibiamente encorajar uma classe média mas sem pressionar ou enfraquecer a nobreza e os latifundiários A única tentativa séria que fizeram foi a liquidação econômica dos judeus em parte como concessão à opinião pública e em parte porque os judeus realmente ainda representavam um elemento que sobreviveu à antiga ordem feudal Durante séculos haviam sido intermediários entre a nobreza e os camponeses agora constituíam uma classe média sem exercer suas funções produtivas dificultando assim a industrialização e a capitalização23 Essas condições da Europa oriental contudo embora constituíssem a essência da problemática das massas judias têm pouca importância no nosso contexto Seu significado político limitavase a países atrasados onde o ódio aos judeus foi por demais onipresente para que servisse como arma para fins específicos O antisemitismo flamejou primeiro na Prússia imediatamente após a derrota ante Napoleão em 1807 quando a mudança da estrutura política 23 James Parkes The emergence ofthe Jewish problem 18791939 1946 discute essas condições de forma sintética e imparcial nos capítulos iv e vi 49 levou a nobreza à perda de seus privilégios e a classe média conquistou o direito à ascensão Essa reforma uma revolução de cima transformou a estrutura semifeudal do despotismo esclarecido prussiano num Estadonação mais ou menos moderno cujo estágio final foi o Reich alemão de 1871 Embora naquela época a maioria dos banqueiros de Berlim fosse judia as reformas não necessitavam de considerável auxílio financeiro de sua parte As francas simpatias dos reformadores da Prússia para com os judeus e a posição de defesa da emancipação judaica que eles assumiam resultavam da necessidade de impor a igualdade a todos os cidadãos abolindo os privilégios em face da introdução do livre comércio Não estavam interessados na conservação dos judeus como judeus para fins determinados Sua resposta ao argumento de que sob condições de igualdade os judeus cessariam de existir era esta E o que importa isso a um governo que pede apenas que eles se tornem bons cidadãos24 Além disso a emancipação não tinha muita importância para o país pois a Prússia havia acabado de perder para a Rússia as províncias orientais recémanexadas da Polônia onde era realmente numerosa e pobre a população judaica Assim o decreto de emancipação dos judeus da Prússia de 1812 referiase apenas àqueles grupos judeus úteis e ricos que já gozavam da maioria dos direitos civis e que com a abolição geral dos privilégios sofreriam grave perda do seu status específico Mas por outro lado para estes grupos a emancipação no sentido geral apenas confirmava o status quç Mas as simpatias dos reformadores prussianos pelos judeus encobriam a conseqüência lógica de suas aspirações políticas gerais Quando quase uma década depois e em meio à crescente onda de anti semitismo Wilhelm von Humboldt declarou que amo os judeus realmente só en masse en détail prefiro evitálos25 estava naturalmente opondose à moda da época que favorecia os judeus como indivíduos mas que desprezava o povo judeu Verdadeiro democrata Humboldt desejava ao contrário libertar um povo oprimido mas não outorgar privilégios a indivíduos Essa atitude seguia também a tradição das antigas autoridades do governo da Prússia cuja constante insistência durante todo o século XVIII em melhorar as condições de vida e aprimorar a educação para os judeus foi amplamente reconhecida Esse apoio não era motivado apenas pelas razões econômicas ou de Estado mas por simpatia natural de um grupo por um outro que também se colocava fora do corpo social e dentro da esfera do Estado embora por motivos completamente diferentes Tratavase do funcionalismo civil cuja lealdade ao Estado independia das mudanças de governo e que também desconhecia os laços de classe Esse grupo é decisivo na Prússia do século XVIII e é ele que forma os precursores da reforma pósnapoleônica Ele é a peça principal da máquina do Estado durante todo o sé 24 Christian Wilhelm Dohm Über die bürgeliche Verbesserung der Juden Da melhoria cívica dos judeus Berlim e Stettin 17811174 25 Wilhelm und Caroline von Humboldt in ihren Briefen W e C von H em suas cartas Berlim 1900 vol V p 236 50 culo XIX embora depois do Congresso de Viena passageiramente perdesse muito de sua influência para a aristocracia26 Quando ouviu falar de uma possível conversão em massa dos judeus Frederico II da Prússia exclamou Espero que não façam coisa tão diabólica27 Mas depois de Napoleão a necessidade do reconhecimento da utilidade dos judeus como tais deixou de existir A emancipação foilhes concedida em nome de princípios e de acordo com a mentalidade da época teria sido sacrílega qualquer alusão a serviços especiais prestados pelos judeus como judeus As condições especiais que haviam levado à emancipação embora conhecidas de todos os interessados eram acobertadas como se fossem um segredo O próprio édito por outro lado havia sido recebido como a última e em certo sentido a mais brilhante conquista na mudança de um Estado feudal para um Estadonação onde de então em diante não haveria mais quaisquer privilégios especiais para nenhum grupo Entre as reações naturalmente amargas da aristocracia que era a classe mais atingida pelas mudanças estava uma súbita e inesperada irrupção de antisemitismo Seu mais eloqüente portavoz Ludwig von der Marwitz proeminente ideólogo conservador apresentou ao governo uma petição na qual apresentava os judeus como único grupo a gozar de reais vantagens em conseqüência da alteração legal do sistema anunciando a transformação da antiga e imponente monarquia prussiana em um Estado judeu O ataque político foi seguido de um boicote social que alterou o aspecto da sociedade de Berlim Os aristocratas eram os primeiros a estabelecer relações sociais amistosas com os judeus e a sua presença havia tornado famosos os salões de anfitriãs judias no fim do século XVIII onde se reuniam grupos socialmente mistos É verdade que até certo ponto essa ausência de preconceito resultava dos serviços prestados pelos agiotas judeus que excluídos das transações comerciais maiores encontravam sua única oportunidade nos empréstimos economicamente improdutivos e insignificantes mas socialmente importantes a pessoas que tendiam a viver acima de suas posses Essas relações sociais sobreviveram às monarquias absolutistas que com suas amplas possibilidades financeiras tornaram obsoletos os negócios de empréstimos privados e por conseguinte a figura do judeudacorte A natural necessidade de um nobre em manter segura a fonte de auxílio em emergência levavao freqüentemente ao casamento com jovem filha do judeu rico o que enfraquecia entre a nobreza o ódio aos judeus Este surgia porém quando um judeu mesmo que rico deixava de socorrêlo como judeu 26 Excelente descrição desses servidores civis que não diferiam de um país para outro encontrase em Henri Pirenne A history ofEuropefrom tke Invasions to the XVI century Londres 1939 pp 3612 Sem preconceitos de classe e hostis aos privilégios dos grandes nobres que os desprezavam não era o rei que falava através deles mas a monarquia anônima superior a todos subjugando a todos com o seu poder O original francês foi publicado em 1936 27 VeroKleinesJahrbuch des Nützlichen und Angenehmen für Jsraeliten Pequeno anuário do útil e do agradável aos israelitas 1947 51 A explosão do antisemitismo aristocrático não resultava como se pode supor do contato mais íntimo cultivado entre judeus e nobreza contato que os unia na aversão contra os novos valores burgueses Essa aversão procedia de fontes muito semelhantes Nas famílias judias como nas famílias nobres o indivíduo era olhado antes de mais nada como membro da família seus deveres eram em primeiro lugar determinados pela família que transcendia os anseios e a importância do próprio indivíduo Tanto judeus como nobres eram anacionais e intereuropeus e um compreendia o modo de vida do outro no qual a afiliação nacional era menos importante que a lealdade a uma família geralmente espalhada por toda a Europa Compartilhavam a noção de que o presente é nada mais que um laço insignificante na corrente de gerações passadas e futuras A escritores liberais antisemitas não passou despercebida essa curiosa semelhança de princípios Por isso concluíam que talvez o melhor modo de se desfazer da nobreza fosse primeiro desfazerse dos judeus Isso não era sugerido por causa das ligações financeiras entre os dois grupos mas porque ambos eram considerados como um obstáculo ao desenvolvimento da personalidade inata da idéia do respeito ao indivíduo que as classes médias usavam como arma em sua luta contra os conceitos de nascimento família e linhagem Esses fatores tornam mais significativo o fato de terem sido exatamente os aristocratas que iniciaram a argumentação política de caráter antisemita Nem os laços econômicos nem a intimidade social continuavam válidos no momento em que a aristocracia decidiu oporse ao Estadonação igualitário Socialmente o ataque contra o Estado identificava os judeus com o governo embora os ganhos reais econômicos e sociais das reformas coubessem à classe média ela raramente era inculpada politicamente e suportava com indiferença a tradicional atitude desdenhosa dos aristocratas Os judeus podiam ser atacados mais facilmente perderam sua antiga influência e tradicionalmente catalisavam antipatias Assim tornandose antipática aos antipatizados judeus a aristocracia almejava tornarse simpática na opinião geral Após o Congresso de Viena quando durante as décadas de reação pacífica sob a Santa Aliança a nobreza prussiana havia recuperado grande parte de sua influência sobre o Estado e se tornara temporariamente ainda mais importante do que havia sido no século XVIII o antisemitismo aristocrata transformouse em tênue discriminação embora sem significação política28 Ao mesmo tempo com a ajuda dos intelectuais românticos o conservatismo alcançou pleno desenvolvimento como uma das ideologias políticas que na Alemanha adotaram uma atitude característica e engenhosamente equívoca em relação aos judeus Daí em diante o Estado nação baseado nos argumentos conservadores fez uma divisão bem distinta entre aqueles judeus que eram necessários e desejados e os que não o eram Sob o pretexto do caráter cristão do 28 Ao apresentar uma lei de emancipação dos judeus em 1847 quase todos os membros da aristocracia manifestaramse a favor dessa iniciativa do governo da Prússia Ver I Elbogen Geschichte derJuden in Deutschland História dos judeus na Alemanha Berlim 1935 p 244 52 Estado embora esta idéia fosse alheia aos déspotas esclarecidos a crescente intelligentsia judia podia agora sofrer aberta discriminação sem que fosse causado dano aos negócios de banqueiros e comerciantes Esse tipo de discriminação que tentou fechar as universidades aos judeus excluindoos também do funcionalismo civil apresentava dupla vantagem indicava que o Estadonação dava maior valor a serviços especiais do que à igualdade e evitava ou pelo menos adiava o nascimento de um grupo de judeus desprovidos de qualquer utilidade aparente para o Estado e que poderiam até ser assimilados pela sociedade29 Quando na década de 1880 Bismarck fez considerável esforço para proteger os judeus contra a propaganda antisemita de Stoecker disse literalmente que desejava protestar tãosó contra os ataques aos judeus ricos cujos interesses estão ligados à conservação de nossas instituições estatais e que seu amigo o banqueiro Bleichroeder não se queixava dos ataques aos judeus em geral o que podia até ter ignorado mas sim aos judeus ricos o que o atingia pessoalmente30 Esse aparente equívoco com que as autoridades governamentais protestavam de um lado contra a igualdade especialmente igualdade profissional para os judeus para se queixarem mais tarde da influência judaica na imprensa enquanto de outro lado sinceramente desejavam que fossem felizes em tudo31 servia mais aos interesses do Estado que o antigo zelo reformador Afinal o Congresso de Viena devolvera à Prússia algumas partes da Polônia desmembrada nas quais as massas judias pobres haviam vivido durante séculos e ninguém a não ser uns poucos intelectuais que sonhavam com a Revolução Francesa e com os Direitos do Homem jamais pensara em lhes dar posição de igualdade a qual aliás os seus irmãos ricos do Ocidente certamente não desejariam compartilhar vendo nela futuras conseqüências nefastas a competição e a ameaça à imagem do judeu culto que ostentavam32 Aliás eles já 29 Foi por essa razão que os soberanos da Prússia se preocuparam tanto com a mais estrita conservação dos costumes e ritos religiosos judeus Em 1823 Frederico Guilherme III proibiu as menores inovações e seu sucessor Frederico Guilherme IV declarou abertamente que o Estado não deve fazer coisa alguma que possa incrementar a mistura entre os judeus e os outros habitantes do seu reino Elbogen op cit pp 223 e 234 30 Numa carta ao Kultusminister ministro da Religião von Puttkamer em outubro de 1880 Ver também a carta de Herbert von Bismarck de novembro de 1880 a Tiedemann Ambas estão em Walter Frank Hofprediger Adolf Stoecker und die christlich soziale Bewegung O capelão da corte A S e o movimento socialcristão 1928 pp 304 e 305 31 August Varnhagen comenta uma observação feita por Frederico Guilherme IV Perguntouse ao rei o que ele pretendia fazer com os judeus Ele respondeu Desejo que sejam felizes em tudo mas quero que sintam que são judeus Estas palavras revelam muitas coisas Tagebücher Diários Leipzig 1861 II p 113 32 Era do dominio público no século XVIII que a emancipação judaica teria de ser realizada contra os desejos dos representantes judeus Mirabeau argumentou perante a Assemblée Nationale em 1789 Senhores é porque os judeus não querem ser cidadãos que vós não os proclamais cidadãos Num governo como o que vós constituis agora todos os homens devem ser homens deveis expulsar todos aqueles que não o são ou se recusam a tornarse homens A atitude dos judeus alemães no começo do século XIX é relatada por Isaac Markus Jost Neuere Geschichte der Israeliten 18151845 Nova história dos israelitas Berlim 1846 vol 10 53 previam que cada medida legal ou política no sentido da emancipação dos judeus em geral levaria necessariamente à deterioração de sua própria situação cívica e social33 E também sabiam o quanto seu poder dependia da posição e prestígio que alcançaram dentro das comunidades judaicas Assim sua política era de tentar obter mais influência para si mantendo os correligionários do Leste em isolamento nacional como se essa separação fizesse parte da religião Assim os outros dependendo deles cada vez mais poderiam ser usados exclusivamente por aqueles judeus que alcançaram a posição de mando34 As previsões eram corretas quando no século XX a emancipação tornouse pela primeira vez um fato consumado para as massas judaicas o poder dos judeus privilegiados havia desaparecido Estabeleceuse assim uma perfeita harmonia de interesses entre os judeus poderosos e o Estado Os judeus ricos quiseram e obtiveram o controle de seus correligionários pobres segregandoos em relação à sociedade nãojudaica o Estado podia combinar a política de benevolência para com judeus ricos à discriminação legal contra a intelligentsia judia e a promoção da segregação social tal como era expressa na teoria conservadora da essência cristã do Estado Enquanto o antisemitismo entre a nobreza permaneceu sem conseqüência política e acalmouse nas décadas da Santa Aliança os intelectuais liberais e radicais inspiraram e lideraram um movimento anti semita imediatamente após o Congresso de Viena A oposição liberal ao regime policial de Metternich estabelecido no continente europeu e violentos ataques ao governo reacionário prussiano levaram rapidamente a explosões antisemitas e a verdadeiro dilúvio de panfletos antisemitas Por serem muito menos sinceros e francos em sua oposição ao governo que o nobre Marwitz havia sido uma década antes os intelectuais atacavam mais os judeus que o governo Por serem intelectuais atacavam com maior eficácia qualitativa e quantitativa Interessados principalmente na igualdade de oportunidades e ressentindo a restauração de privilégios da aristocracia com a qual identificavam os judeus que limitavam sua admissão aos serviços públicos introduziram na discussão a diferença entre judeus individuais nossos irmãos e o povo judeu como grupo diferença esta que daí por diante se tornaria a marca registrada do antisemitismo da esquerda Cunharam para definir os judeus como grupo as expressões nacionalistas Estado dentro de um Estado e nação dentro de outra nação Positivamente errados no primeiro caso porquanto os judeus não tinham ambições políticas próprias e eram simplesmente o único grupo social incondicionalmente leal ao Estado estavam certos no segundo porque os judeus tomados como um grupo 33 Adam Mueller ver Ausgewàhlte Abhandlungen Ensaios escolhidos editados por J Baxa Jena 1921 p 215 numa carta de 1815 a Metternich 34 H E G Paulus Diejüdische Nationalabsonderung nach Ursprung Folgen und Besserungsmitteln A separação nacional dos judeus segundo origens conseqüências e meios de melhoria 1831 54 social e não político realmente constituíam um corpo separado dentro da nação35 Na Prússia embora não na Áustria ou na França esse antisemitismo radical foi tão efêmero e inconseqüente como o antigo antisemitismo da pobreza Os radicais foram gradualmente absorvidos pelo liberalismo das classes médias economicamente ascendentes que passaram a exigir por sua vez a emancipação dos judeus como símbolo da institucionalização da igualdade política Contudo esse anti semitismo estabeleceu certa tradição teórica e até mesmo literária cuja influência se pode sentir nos famosos escritos antijudaicos do jovem Marx tão freqüente e injustamente acusado de antisemitismo O fato de o judeu Karl Marx poder escrever do mesmo modo que os radicais antijudeus prova apenas quão pouco essa argumentação antijudaica tinha a ver com o antisemitismo ideologicamente maduro Como indivíduo judeu Marx sentiase tão pouco vexado por esses argumentos contra o povo judeu quanto Nietzsche por exemplo no tocante aos seus argumentos contra a Alemanha É verdade que Marx nos últimos anos de vida jamais escreveu ou expressou opinião sobre a questão judaica mas isso dificilmente pode ser atribuído à mudança fundamental de sua atitude Sua preocupação exclusiva com a luta de classes e com os problemas da produção capitalista na qual os judeus não estavam envolvidos nem como consumidores nem como fornecedores da mãodeobra e seu completo descaso pelas questões políticas automaticamente impediam que ele investigasse mais a fundo a estrutura do Estado e portanto o papel nele desempenhado pelos judeus A forte influência do marxismo no movimento trabalhista da Alemanha é uma das principais razões pelas quais os movimentos revolucionários alemães mostraram tão poucos sinais de sentimento antijudeu36 Os judeus realmente tinham pouca ou nenhuma importância nas lutas sociais da época Os primórdios do movimento antisemita moderno datam em toda parte do último terço do século XIX Na Alemanha começou de modo inesperado novamente entre a nobreza cuja oposição ao Estado foi de novo provocada pela transformação da monarquia prussiana num Estadonação completado depois de 1871 Bismarck o verdadeiro fundador do Reich alemão havia mantido estreitas relações com os judeus desde a época em que era primeiroministro agora era acusado de depender e de aceitar o suborno dos judeus Sua tentativa e o parcial sucesso de abolir os vestígios feudais resultou inevitavelmente em conflito com a aristocracia os ataques a Bismarck mostravamno como ví 35 Para uma apreciação clara e confiável do antisemitismo alemão no século XIX ver Waldemar Gurian Antisemitism in modern Germany emEssays on antiSemitism editados por K S Pinson 1946 36 O único antisemita alemão da esquerda que teve alguma importância foi E Duehring que embora de modo confuso inventou uma explicação naturalista da raça judia em seu Die Judenfrage ais Frage der Rassenschàdlichkeit für Existem Sitte und Cultur der Võlker mit einer weltgeschichtlichen Antwort A questão judaica como problema da nocividade racial para a existência permanência e cultura dos povos com uma solução historicamente universal 1880 55 tima inocente ou como agente a soldo do judeu Bleichroeder Na realidade a relação era exatamente oposta Bleichroeder era sem dúvida um agente muito estimado e bem pago de Bismarck37 Não obstante a aristocracia feudal embora ainda bastante poderosa para influenciar a opinião pública não era por si mesma bastante forte ou importante para iniciar um verdadeiro movimento antisemita como o que começou na década de 80 Seu portavoz o capelão da corte Stoecker ele próprio nascido na classe média inferior era representante muito menos sagaz dos interesses conservadores do que os seus predecessores os intelectuais românticos que haviam formulado os pontos principais da ideologia conservadora uns cinqüenta anos antes Além disso descobriu a utilidade da propaganda antisemita não graças a considerações práticas ou teóricas mas por acaso quando percebeu a sua utilidade para lotar auditórios que de outra forma permaneceriam vazios Mas sem compreender seu repentino sucesso como capelão da corte e empregado tanto da família real como do governo ele dificilmente estava em posição de usálo adequadamente Seu público entusiasmado era composto exclusivamente de pequenos burgueses isto é de lojistas e negociantes artesãos e artífices à moda antiga e os sentimentos antijudaicos dessa gente não eram ainda e por certo não exclusivamente motivados pelo conflito com o Estado 3 OS PRIMEIROS PARTIDOS ANTISEMITAS O surgimento simultâneo do antisemitismo como sério fator político na Alemanha na Áustria e na França nos últimos vinte anos do século XIX foi precedido por uma série de escândalos financeiros e negócios fraudulentos cuja origem principal era uma superprodução de capital disponível Na França a maioria dos membros do Parlamento e um número incrível de altos executivos governamentais estavam tão profundamente envolvidos em negociatas e subornos que a Terceira República jamais viria a recuperar o prestígio que perdeu durante as primeiras décadas de sua existência na Áustria e na Alemanha os aristocratas estavam entre os mais comprometidos Em todos esses três países os judeus participavam dos escândalos agindo individualmente como intermediários sem que nenhuma casa judia enriquecesse com as fraudes do Caso Panamá e do Gründungsschwindel Contudo outro grupo de pessoas além dos nobres das autoridades governamentais e dos judeus estava seriamente envolvido nesses fantásticos investimentos cujos lucros esperados só eram igualados pelas perdas inacreditáveis Esse grupo consistia principalmente nas classes médias inferiores que agora subitamente viravam antisemitas Haviam sido mais duramente atingi 37 Para os ataques antisemitas contra Bismarck ver Kurt Wawrzinek Die Entstehung der deutschen Antisemitenparteien O surgimento dos partidos antisemitas alemães 18731890 Historische Studien Estudos históricos caderno 168 1927 56 das que qualquer outro grupo tinham arriscado pequenas economias e estavam permanentemente arruinadas Sua credulidade tinha razões importantes A expansão capitalista no cenário nacional tendia cada vez mais a liquidar os pequenos proprietários para quem era uma questão de vida e morte aumentar rapidamente o pouco que possuíam já que era demasiado fácil perderem tudo Começavam a perceber que se não conseguissem elevarse até o status da burguesia poderiam escorregar para o nível do proletariado Mesmo que décadas de prosperidade geral freassem de modo considerável essa evolução em nada mudaram a sua tendência A ansiedade e o temor das classes médias inferiores correspondiam exatamente à previsão de Marx quanto à sua rápida dissolução A classe média inferior ou pequena burguesia descendia das associações de artesãos e comerciantes que durante séculos se protegeram dos riscos da vida por meio de um sistema fechado que bania a concorrência e era em última instância protegido pelo Estado Conseqüentemente atribuíram seu infortúnio ao sistema que os havia exposto às privações de uma sociedade competitiva e os destituíra de toda proteção especial e dos privilégios concedidos pelas autoridades públicas Foram portanto os primeiros a exigir o Estado protetor que os escudasse contra as dificuldades e os mantivesse nas profissões e vocações herdadas Como uma das principais características do século de livre comércio foi o acesso dos judeus a todas as profissões era quase natural pensar nos judeus como representantes do sistema competitivo levado ao extremo38 mesmo que nada estivesse mais longe da verdade Esse ressentimento que aliás encontrase em muitos escritores conservadores foi estimulado quando aqueles que haviam esperado auxílio do governo ou apostado em milagres tiveram de aceitar a ajuda duvidosa dos banqueiros Para o pequeno lojista o banqueiro parecia ser o mesmo tipo de explorador que o proprietário da grande empresa industrial era para o trabalhador Mas enquanto os trabalhadores europeus graças à sua experiência e à educação marxista sabiam que era dupla a função do capitalista de explorálos de um lado mas do outro darlhes a oportunidade de produzir o pequeno lojista não encontrou quem o esclarecesse a respeito de seu destino social e econômico Sua situação era pior que a do trabalhador e baseado em sua experiência considerava o banqueiro um parasita e usurário que ele era obrigado a aceitar como sócio silencioso embora esse banqueiro ao contrário do industrial nada tivesse a ver com o seu negócio Não é difícil compreender por que um homem que usa o seu dinheiro única e diretamente para gerar mais dinheiro pode ser odiado com mais intensidade que o que obtém seu lucro através de um longo e complicado processo de produção Como naquele tempo ninguém solicitava crédito se pudesse evitálo e os pequenos comerciantes certamente não 38 Otto Glagau Der Bankrott des Nationalliberalismus und die Reaktion A bancarrota do liberalismo nacional e a reação Berlim 1878 Der Boersen und Gruendungsschwindel As falcatruas da Bolsa e do solo 1876 do mesmo autor é um dos panfletos antisemitas mais importantes da época 57 podiam fugir desse caminho os banqueiros pareciam explorar não a mãodeobra e a capacidade produtiva mas a infelicidade e a miséria Muitos desses banqueiros eram judeus e mais importante ainda a imagem geral do banqueiro tinha traços definitivamente judaicos por múltiplas razões históricas Assim o movimento esquerdista da classe média inferior e toda a propaganda contra o capital bancário tornaramse antisemitas Esse aspecto teve pouca importância na Alemanha já industrializada mas alcançou profundo significado na França e em menor escala na Áustria Durante algum tempo pareceu que os judeus haviam realmente pela primeira vez entrado em conflito direto com outra classe sem a interferência do Estado Dentro da estrutura do Estadonação na qual a função do governo era mais ou menos definida por sua posição de domínio sobre todas as classes concorrentes tal conflito poderia até ter constituído um modo viável se bem que perigoso de normalizar a posição dos judeus Contudo a esse elemento sócioeconômico foi logo acrescentado um outro que a longo prazo revelou se mais nefasto A posição dos judeus como banqueiros não dependia de empréstimos a pessoas necessitadas sem importância mas principalmente da emissão de empréstimos estatais os pequenos empréstimos eram deixados para os pequenos banqueiros que desse modo se preparavam para alcançar as carreiras mais promissoras já seguidas por seus confrades mais ricos e mais honrados Mas o ressentimento social das classes médias inferiores abrangia todos os judeus e transformouse num elemento político altamente explosivo porque a pequena burguesia acreditava que esses judeus tão odiados estavam em vias de adquirir poder político Não eram eles conhecidos por sua relação com o governo em outros assuntos Por outro lado o ódio social e econômico reforçava o argumento político com a violência impulsiva até então desconhecida Friedrich Engels observou certa vez que os protagonistas do movimento antisemita do seu tempo eram os nobres e o coro era a ralé ululante da pequena burguesia Isso se aplica não só à Alemanha mas também ao socialismo cristão da Áustria e aos adversários de Dreyfus na França Em todos esses casos a aristocracia no último e desesperado esforço tentou aliarse às forças conservadoras das igrejas a Igreja Católica na Áustria e na França a Igreja Protestante na Alemanha sob o pretexto de combater o liberalismo com as armas do cristianismo A ralé era apenas o meio usado para fortalecerlhe a posição para darlhe maior ressonância à voz Obviamente a nobreza não desejava nem podia organizar a ralé e a abandonaria logo que atingisse seu objetivo Mas descobrira que os slogans antisemitas eram altamente eficazes para mobilizar amplas camadas da população Os seguidores do capelão da corte Stoecker não organizaram os primeiros partidos antisemitas da Alemanha Uma vez demonstrada a atração dos slogans antisemitas os antisemitas radicais imediatamente se separaram do movimento berlinense de Stoecker declararam guerra total ao governo e fundaram partidos cujos representantes no Reichstag o Parlamento apoiavam 58 em todas as questões domésticas importantes o maior partido oposicionista o socialdemocrata único partido da esquerda de então39 Rapidamente abandonaram sua inicial aliança de acomodação com as antigas forças Boeckel o primeiro membro antisemita do Parlamento devia sua cadeira aos votos dos camponeses de Hessen que ele afirmava defender contra os Junkers e os judeus isto é contra a nobreza a cujo latifúndio os camponeses sucumbiam e contra os judeus de cujo crédito dependiam Embora pequenos esses primeiros partidos antisemitas logo se distinguiram dos demais partidos Cada qual tinha a pretensão de ser não um partido entre partidos mas um partido acima de todos os partidos No Estadonação dividido entre partidos e classes só o Estado e o governo colocavamse acima de todos os partidos e classes outorgandose o direito de representar a nação como um todo Os partidos eram reconhecidamente grupos cujos deputados representavam os interesses de seus eleitores Embora lutassem pelo poder ficava implícito que cabia ao governo estabelecer o equilíbrio entre os interesses em conflito e entre seus representantes A pretensão dos partidos antisemitas de estarem acima de todas as idéias claramente anunciava sua aspiração de passar a representar toda a nação da qual seriam excluídos os judeus de galgar o poder exclusivo apossarse da máquina do Estado substituir o Estado E como por outro lado continuavam organizados como partidos ficava também claro que almejavam o poder estatal como partido de modo que seus eleitores pudessem realmente dominar o país A estrutura política do Estadonação foi instituída quando nenhum grupo em particular estava mais em posição de exercer o poder político exclusivo de modo que o governo assumia o verdadeiro domínio político que nem sempre dependia de fatores apenas sociais e econômicos Os movimentos revolucionários de esquerda que lutavam por uma mudança radical das condições sociais de início jamais visavam diretamente a essa suprema autoridade política Haviam desafiado o poder da burguesia e a sua influência sobre o Estado mas ao mesmo tempo dispunhamse sempre a aceitar a orientação do governo em assuntos estrangeiros nos quais estavam em jogo os interesses de uma nação supostamente unificada Em contraste com essa atitude os grupos antisemitas preocupavamse também desde o início com assuntos estrangeiros seu ímpeto revolucionário era dirigido contra o governo em geral e não contra uma classe social e o que realmente almejavam era destruir o padrão político do Estadonação por meio de uma organização partidária O fato de um partido pretender colocarse acima de todos os partidos tinha outras implicações mais significativas do que o antisemitismo Se a questão consistisse apenas em desfazerse dos judeus a proposta feita por Fritsch num dos primeiros congressos antisemitas de não criar um novo partido mas disseminar o antisemitismo até que finalmente todos os partidos existentes fossem hostis aos judeus teria chegado ao resultado almejado muito 39 Ver Wawrzinek op cit Um instrutivo relato de todos esses acontecimentos especialmente em relação ao capelão da corte Stoecker em Frank op cit 59 mais rapidamente10 Acontece que a proposta de Fritsch não encontrou eco porque o anti semitismo já se transformara na época num instrumento para a liquidação não apenas dos judeus mas também da estrutura política do Estadonação Não foi por acaso que esse alvo dos partidos antisemitas coincidisse com os primeiros estágios do imperialismo e encontrasse tendências parecidas tanto na GrãBretanha embora não contagiada pelo antisemitismo quanto nos movimentos antisemitas que sob vários enfoques nacionalistas pretendiam unificar sob pretexto paneuropeu a ideologia antisemita41 Na Alemanha essas tendências não incorporaram o antisemitismo para se reforçar popularmente mas se originaram diretamente dele e os partidos antisemitas precederam e sobreviveram à formação de grupos puramente imperialistas como a Liga Pangermânica todos proclamando transcenderem a grupos partidários Os movimentos análogos que porém se afastavam da demagogia dos partidos antisemitas com o fito de por apresentarem mais seriedade alcançar maiores chances de vitória foram aniquilados ou submersos pelo movimento antisemita o que bem indica a importância política da questão Os antisemitas estavam convencidos de que a sua pretensão de tomar o poder absoluto não era outra coisa senão aquilo que os judeus já haviam conseguido e que o seu anti semitismo era justificado pela necessidade de eliminar os reais ocupantes dos postos de mando os judeus Assim era necessário ingressar na área da luta contra os judeus para conquistar o poder político Fingiam estar lutando contra os judeus exatamente como os trabalhadores lutavam contra a burguesia e atacando os judeus que apresentavam de acordo com a idéia geral como detentores do poder por detrás dos governos agrediam abertamente o próprio Estado catalisando assim todos os descontentes e frustrados A segunda característica altamente significativa dos novos partidos antisemitas está na organização supranacional de todos os grupos europeus ligados à mesma corrente em flagrante contraste aos seus slogans nacionalistas A sua preocupação supranacional indicava claramente que visavam não apenas à conquista do poder político da nação mas que também almejavam e já o haviam planejado um governo intereuropeu acima de todas as nações42 Esse segundo elemento revolucionário que significava o rompimento fundamental com o status quo tem sido freqüentemente esquecido porque os próprios antisemitas usavam apesar da sua característica revolucionária a linguagem dos 40 Essa proposta foi feita em 1886 em Cassei onde foi fundado a Deutsche Antisemitische Vereinigung Associação AntiSemita Alemã 41 Para uma ampla discussão sobre os partidos acima de partidos e os movimentos de unificação ver o capítulo 8 42 O primeiro congresso internacional antijudeu realizouse em 1882 em Dresden com cerca de 3 mil delegados da Alemanha ÃustriaHungria e Rússia durante as discussões Stoecker foi derrotado pelos elementos radicais que se reuniram um ano mais tarde em Chemnitz atual KarlMarxStadt na Alemanha Oriental e fundaram a Alliance Antijuive Universelle Um bom relato dessas reuniões e congressos seus programas e discussões pode ser encontrado em Wawrzinek op cit 60 partidos reacionários em parte devido a hábitos tradicionais em parte porque mentiam conscientemente Uma íntima relação liga as condições peculiares da existência judaica e a ideologia de grupos antisemitas Os judeus constituíam o único elemento intereuropeu numa Europa organizada em base nacional Era lógico que seus inimigos se organizassem de acordo com o mesmo princípio e em sua luta contra o grupoquesuperaasnações criassem um partidoquesuperaos partidos já que pretendiam eliminar esses pretensos manipuladores do destino político de todas as nações apoderandose de seus segredos e de suas armas O sucesso do antisemitismo supranacional dependia ainda de outras considerações Mesmo no fim do século XIX e especialmente desde a guerra francoprussiana em 1870 um número crescente de pessoas considerava antiquada a organização nacional da Europa pois ela já não podia enfrentar adequadamente os novos desafios econômicos Popularizavase a convicção de que interesses idênticos envolviam toda a Europa43 Esse sentimento fornecia forte argumento a favor da organização internacional do socialismo Mas enquanto as organizações socialistas internacionais permaneciam passivas e desinteressadas no setor da política externa isto é precisamente nas questões em que seu internacionalismo poderia ter sido posto à prova os anti semitas começavam pelos problemas de política externa e chegavam a prometer a solução de problemas domésticos em base supranacional Se estudarmos as ideologias não pela aparência mas analisando profundamente os verdadeiros programas dos respectivos partidos verificaremos que os socialistas muito mais interessados pelos assuntos domésticos enquadravamse melhor na estrutura do Estadonação do que os antisemitas Isso não significa naturalmente que as convicções internacionalistas dos socialistas não fossem sinceras Ao contrário eram mais fortes e até anteriores aos interesses supranacionais de classes que ultrapassam as fronteiras de Estados nacionais Mas a consciência da importância transcendental da luta de classes dentro de cada Estado levouos a desprezar a herança que a Revolução Francesa havia legado aos partidos trabalhistas e que se realizada poderia têlos guiado à teoria política articulada no sentido interaacionalista Os socialistas mantiveram implicitamente intacta a validade do conceito nação entre nações todas pertencendo à família da humanidade mas não foram capazes de transformar essa idéia em fato aceito pelo mundo dos Estados soberanos Seu internacionalismo foi reduzido à convicção pessoal compartilhada por todos já desinteressados pela soberania nacional e agora também levados à indiferença irrealista pela política externa Aliás os partidos de esquerda não ti 43 A solidariedade internacional dos movimentos operários era até o ponto a que chegou uma questão intereuropéia Sua indiferença pela política externa também constituía uma espécie de autoproteção contra a participação ativa tanto nas políticas imperialistas de seus respectivos países como na luta contra elas Uma vez que interesses econômicos estavam envolvidos era bastante óbvio que todos os franceses britânicos e holandeses sentiriam todo o impacto da queda de seus respectivos impérios e não apenas os capitalistas e banqueiros 61 nham em princípio objeções a Estadosnações mas tãosó ao aspecto hegemônico das soberanias nacionais a ponto de preconizarem como solução política a formação de estruturas federalistas com a eventual integração de todas as nações em termos iguais o que pressupunha de certa forma liberdade e independência nacional de todos os povos oprimidos Por isso os partidos socialistas podiam operar dentro dos limites do Estadonação pensando em emergir quando decaíssem as estruturas sociais e políticas do Estado como o único partido hostil a fantasias expansionistas e que não sonhava com a destruição de outros povos O supranacionalismo dos antisemitas abordava a questão da organização internacional do ponto de vista exatamente oposto Seu objetivo era uma superestrutura estatal que destruísse as estruturas nacionais Seu ultranacionalismo que preparava a destruição do corpo político de sua própria nação baseavase no nacionalismo tribal com um desmedido desejo de conquista que constituiria uma das forças principais com que se poderiam aniquilar as fronteiras do Estado nação e de sua soberania44 Quanto mais eficientes se tornavam os meios de propaganda chauvinista mais fácil era persuadir a opinião pública da necessidade de uma estrutura supranacional que partindo da hegemonia do próprio grupo nacional reinasse de cima e sem distinções nacionais através de um monopólio universal da força e dos instrumentos de violência Resta pouca dúvida de que a condição especial dos judeus o fato de serem intereuropeus poderia ter servido aos fins do federalismo socialista pelo menos tão bem quanto iria servir às sinistras conspirações dos supranacionalistas Mas os socialistas se mostravam tão preocupados com a luta de classes e tão despreocupados das conseqüências políticas dos conceitos que haviam herdado que somente perceberam a existência dos judeus como fator político quando se defrontaram com um sério concorrente na frente doméstica o antisemitismo desenfreado Nessa oportunidade estavam não só despreparados para integrar a questão judaica às suas teorias mas também receosos de tocar no assunto Nesse ponto como em outras questões internacionais deixaram a iniciativa aos supranacionalistas que na época se faziam passar como os únicos a conhecer as respostas dos problemas mundiais Pelo final do século os efeitos das falcatruas dos anos 70 já haviam passado e uma era de prosperidade e bemestar geral especialmente na Alemanha pôs um fim às agitações prematuras da década de 80 Ninguém poderia ter previsto que esse fim era apenas uma pausa temporária que todas as questões políticas nãoresolvidas juntamente com todos os ódios políticos nãoapaziguados iriam redobrar em força e violência após a Primeira Guerra Mundial Na Alemanha os partidos antisemitas após alguns sucessos iniciais caíram novamente na insignificância seus líderes após uma breve agitação da opinião pública desapareceram pela porta traseira da história nas trevas da confusão doida e do charlatanismo curatudo 44 Ver o capítulo 8 62 4 O ANTISEMITISMO ESQUERDISTA Se não fossem as assustadoras conseqüências do antisemitismo em nosso próprio tempo poderíamos ter dado menor atenção ao seu desenvolvimento na Alemanha Como movimento político o antisemitismo do século XIX pode ser melhor estudado na França onde por quase uma década dominou o cenário político Como força ideológica concorrendo com outras ideologias mais respeitáveis atingiu sua forma mais eloqüente na Áustria Em parte alguma haviam os judeus prestado tão grandes serviços ao Estado como na Áustria onde numerosas nacionalidades conviviam conjugadas apenas pela Monarquia Dual dos Habsburgos e onde o banqueiro nacional judeu em contraste com o que ocorreu em todos os outros países europeus sobreviveu à queda da monarquia Exatamente como no início do seu desenvolvimento no alvorecer do século XVIII o crédito de um Samuel Oppenheimer havia sido idêntico ao crédito de que dispunha a própria casa dos Habsburgos enquanto no fim o crédito austríaco era o do Creditanstalt estabelecimento bancário dos Rothschild45 Embora a monarquia do Danúbio não tivesse população homogênea que é o prérequisito mais importante para a evolução de um Estadonação não pôde evitar a transformação do despotismo esclarecido em monarquia constitucional e a criação de um serviço público moderno Isso significou que ela teve de adotar certas instituições de um Estadonação O sistema de classes evoluiu ali ao longo de linhas nacionais de modo que certas nacionalidades começaram a ser identificadas com certas classes ou pelo menos profissões O austroalemão tornouse a nacionalidade dominante num sentido semelhante àquele em que a burguesia se tornou a classe dominante nos Estadosnações A aristocracia húngara dona de terras tinha o papel da nobreza de outros países A máquina estatal esforçavase para se manter a distância da sociedade governando acima das nacionalidades exatamente como os demais Estadosnações faziam com relação às classes governando acima delas O resultado para os judeus foi simples a nacionalidade judaica no império dos Habsburgos não pôde fundirse com as outras nem se constituir em nação como não se havia incorporado às outras classes no Estadonação nem se tornou classe em si mesma Do mesmo modo como nos Estadosnações os judeus diferiam das demais classes por causa da sua relação especial com o Estado diferiam de todas as outras nacionalidades na Áustria por causa da sua relação especial com a monarquia dos Habsburgos E da mesma forma como em toda parte toda classe que entrava em conflito aberto com o Estado virava antisemita assim na Áustria toda nacionalidade que entrava em conflito aberto com a monarquia iniciava seu combate atacando os judeus Mas houve uma diferença marcante entre esses conflitos na Áustria e os que ocorriam na Alemanha e na França Na Áustria eles eram mais agudos e ao romper a Primeira Grande Guerra todas as nacionalidades e isto significa todas as ca 45 Ver Paul H Emden The story of the Vienna Creditanstalt em Menorah Journal XXVIII 1 1940 63 madas sociais estavam em forte oposição ao Estado de modo que mais do que em qualquer outro país da Europa ocidental ou central a população do império austrohúngaro estava impregnada de antisemitismo ativo Entre esses conflitos destacase a crescente hostilidade antiestatal da população germânica acelerada após a fundação do Reich alemão em 1870 quando foi descoberta a utilidade dos slogans antisemitas principalmente depois da crise financeira de 1873 A situação social na Áustria era praticamente a mesma que na Alemanha mas a propaganda dos partidos que na Áustria multinacional operavam em bases nacionais destinavase a angariar os votos da classe média pregando abertamente a deslealdade para com o Estado O Partido Liberal Alemão por exemplo sob a direção de Schoenerer foi no início um partido da baixa classe média sem conexões ou restrições por parte da nobreza e com uma imagem definitivamente esquerdista Nunca obteve uma real base de massa mas foi notavelmente bemsucedido nas universidades nos anos 80 constituindo a primeira organização estudantil eficientemente estruturada no antisemitismo declarado O antisemitismo de Schoenerer de início dirigido quase que exclusivamente contra os Rothschild conquistou as simpatias do movimento trabalhista que via nele um verdadeiro radical desgarrado46 Sua principal vantagem era poder basear sua propaganda antisemita sobre fatos demonstráveis como membro do Reichsrat Parlamento austríaco Schoenerer havia lutado pela nacionalização das estradas de ferro da Áustria das quais a maior parte estava desde 1836 nas mãos dos Rothschild em virtude de uma licença estatal que expirava em 1886 Schoenerer conseguiu reunir 40 mil assinaturas contra a renovação da licença e colocar a questão judaica no picadeiro do interesse público As íntimas ligações entre os Rothschild e os interesses financeiros da monarquia tornaramse óbvias quando o governo tentou prorrogar a licença em condições que eram patentemente desvantajosas para o Estado A agitação comandada por Schoenerer desencadeou na Áustria um movimento antisemita politicamente articulado47 O problema é que esse movimento em contraste com a agitação de Stoecker na Alemanha foi iniciado e dirigido por um homem cuja sinceridade estava fora de dúvida e por isso não se limitaria a usar o antisemitismo como arma de propaganda mas desenvolveria rapidamente aquela ideologia pangermânica que iria influenciar o nazismo mais do que outro ramo do antisemitismo alemão Embora viesse a ser vitorioso a longo prazo o movimento de Schoenerer foi temporariamente derrotado por um outro partido antisemita o dos socialcristãos sob a liderança de Lueger Enquanto Schoenerer atacava a Igreja Ca 46 Ver F A Neuschaefer Georg Ritter von Schoenerer e Eduard Pichl Georg Schoenerer 1938 6 vols Mesmo em 1912 quando a agitação de Schoenerer já havia muito perdera todo significado a Arbeiterzeitung Folha do trabalhador expressoulhe sentimentos carinhosos através das palavras que uma vez Bismarck pronunciara a respeito de Lassalle E se trocássemos tiros a justiça ainda exigiria que admitíssemos mesmo durante o tiroteio Ele é um homem e os outros são velhas Neuschaefer p 33 47 Ver Neuschaefer op cit pp 22ss e Pichl op cit I pp 236ss 64 tólica e a sua considerável influência na política austríaca quase tanto quanto atacava os judeus os socialcristãos eram um partido católico que sempre procurou aliarse àquelas forças conservadoras reacionárias que se haviam demonstrado tão prestimosas na Alemanha e na França Como faziam maiores concessões sociais tiveram mais sucesso do que na França ou na Alemanha Os socialcristãos sobreviveram à queda da monarquia dos Habsburgos e tornaram se o grupo mais influente na Áustria republicana depois da guerra de 1918 Quando nos anos 90 Lueger foi levado pelo voto à prefeitura de Viena após veemente campanha antisemita seu partido já adotava atitude equívoca em relação aos judeus tão típica no Estadonação hostilidade aberta aos intelectuais judeus e benevolência para com os judeus comerciantes Assim não foi por acaso que após amarga e sangrenta luta pelo poder travada contra o movimento socialista dos trabalhadores os socialcristãos se assenhorearam da máquina estatal quando a Áustria reduzida à sua etnia alemã se estabeleceu após a derrubada dos Habsburgos em 1917 como Estadonação Demonstraram ser o único partido que estava preparado para esse papel Como os Habsburgos eram uma dinastia alemã e conferiam certa predominância aos seus súditos alemães os socialcristãos nunca atacaram a monarquia É lógico portanto que seu antisemitismo não teve conseqüências Foi arma eleitoral antes de tudo o que era significativo em termos de futuro mas as décadas do governo municipal de Lueger em Viena foram na verdade uma espécie de idade de ouro para os judeus Por mais que se excedessem em sua propaganda os socialcristãos nunca proclamaram como o fizeram Schoenerer e os pangermanistas que consideravam o antisemitismo o esteio principal de ideologia nacional a mais essencial expressão de genuína convicção popular e portanto a grande realização nacional do século48 E embora estivessem sob influência de círculos clericais exatamente como o movimento antisemita da França eram muito mais comedidos em seus ataques contra os judeus porque não atacavam a monarquia como os antisemitas da França atacavam a Terceira República Os sucessos e fracassos dos dois partidos antisemitas da Áustria demonstram a pouca relevância que os conflitos sociais ocupavam na problemática da época Comparada com a mobilização duradoura de todos os oponentes do governo a angariação dos votos da classe média inferior foi um fenômeno temporário O antisemitismo e a oposição à monarquia desapareceram em Viena e nas cidades por causa da prosperidade do período que antecedeu à guerra 1914 e que reconciliou a população urbana com o governo Mas no aparente paradoxo a espinha dorsal do movimento de Schoenerer continuava forte naquelas províncias de língua alemã do império dos Habsburgos que não tinham qualquer população judaica e onde a concorrência com os judeus ou o ódio pelos banqueiros judeus nunca havia existido A sobrevivência do movimento pangermânico e do seu violento antisemitismo nessas províncias à época em que ele 48 Citado de Pichl op cit vol I p 26 65 desaparecia nos centros urbanos foi simplesmente devida ao fato de que essas províncias nunca foram atingidas pela prosperidade que mudou momentaneamente a atitude dos habitantes das cidades reconciliados com o Estado A completa falta de lealdade para com o seu próprio país e governo que os pangermânicos austríacos substituíram pela franca lealdade ao Reich alemão de Bismarck e o conseqüente conceito de nacionalidade como independente de Estado e de território ligado mais à etnia e ascendência genética levaram o grupo de Schoenerer à ideologia verdadeiramente imperialista e nisso reside a chave da sua fraqueza temporária e do seu impulso final É também a razão pela qual o partido pangermânico na Alemanha o Alldeutschen que nunca ultrapassou os limites do chauvinismo comum permaneceu tão desconfiado e relutante em tomar as mãos estendidas de seus irmãos germanistas austríacos Esse movimento austríaco aspirava a mais do que subir ao poder como um partido a mais do que possuir a máquina do Estado Ele desejava reorganizar revolucionariamente a Europa central para que os alemães da Áustria juntamente com os alemães da Alemanha mutuamente fortalecidos se tornassem o povo governante do qual todos os outros povos seriam dependentes mantidos na mesma espécie de semiservidão em que viviam as nacionalidades eslavas da Áustria Por causa de sua estreita afinidade com o imperialismo e da mudança fundamental que trouxe ao conceito de nacionalidade devemos postergar a discussão sobre o movimento pangermânico austríaco Ele não é mais ao menos em suas conseqüências um mero movimento preparatório no século XIX pertence mais do que qualquer outro ramo do antisemitismo ao curso dos eventos de nosso século Com o antisemitismo francês ocorreu exatamente o oposto O Caso Dreyfus trouxe à tona os elementos do antisemitismo do século XIX em seus aspectos meramente ideológicos e políticos foi a culminância do antisemitismo resultante das condições especiais do Estado nação Contudo sua natureza violenta prefigurou acontecimentos futuros de modo que os principais atores do processo parecem às vezes estar realizando um grandioso ensaio geral do espetáculo que teria de ser adiado por mais de três décadas O Caso Dreyfus reuniu todas as correntes abertas ou subterrâneas sociais ou políticas que haviam levado a questão judaica à posição de predominância no século XIX por outro lado sua deflagração prematura fez com que permanecesse no quadro de uma ideologia típica do século XIX que embora sobrevivesse a todos os governos e crises políticas da França nunca realmente se encaixou no contexto político do século XX Quando após a derrota da França em 1940 o antisemitismo francês teve sua chance suprema sob o governo de Vichy assumiu caráter definitivamente antiquado e para os fins anunciados bastante inócuo o que os intelectuais nazistas da Alemanha nunca esqueceram de salientar49 Mas o anti 49 Ver especialmente Walfried Vernunft Die Hintergründe des franzósischen Antisemitismus Fundamentos do anti semitismo francês em Nationalsozialistische Monatshefte Cadernos mensais nacionalsocialistas junho de 1939 66 semitismo francês não teve qualquer influência na formação do nazismo e como fator histórico não chegaria a atuar na implantação da catástrofe final A razão principal dessas limitações foi simples os partidos antisemitas da França embora violentos no cenário doméstico não nutriam quaisquer aspirações supranacionais Afinal de contas pertenciam ao Estadonação mais antigo e estatalmente mais desenvolvido da Europa Nenhum dos antisemitas tentou seriamente organizar um partido acima dos partidos ou apossarse do Estado para os interesses partidários Os poucos golpes de Estado que foram tentados e que podem ser creditados à aliança entre os antisemitas e os oficiais superiores do Exército foram ou ridiculamente inadequados ou obviamente forjados50 Em 1898 dezenove membros do Parlamento foram eleitos em campanhas antisemitas mas esse ponto alto jamais foi alcançado depois daí em diante o declínio foi rápido Por outro lado esse foi o primeiro exemplo do sucesso do antisemitismo como catalisador das demais questões políticas Pode atribuirse esse fato à falta de autoridade da Terceira República que foi implantada com maioria parlamentar insignificante Aos olhos das massas o Estado havia perdido prestígio juntamente com a monarquia e os ataques contra o Estado já deixaram desde então de ser um sacrilégio As primeiras explosões de violência na França lembram muito a agitação semelhante que ocorreu nas repúblicas alemã e austríaca depois da Primeira Grande Guerra A ditadura nazista tem sido com tanta freqüência associada à chamada adoração do Estado que até os historiadores perdem de vista o truísmo de que ao contrário os nazistas tiraram vantagem do colapso da adoração ao Estado originada do louvor irrestrito e do culto devido a um soberano assentado no trono pela graça de Deus o que nunca ocorre numa república Na França cinqüenta anos antes de serem os países da Europa central afetados por essa perda universal de reverência a adoração do Estado já havia sofrido muitas derrotas Era muito mais fácil atacar os judeus e o governo juntos na França do que na Europa central onde os judeus eram atacados como meio de agredir o governo Além disso o antisemitismo francês é mais antigo que os seus similares europeus Para os representantes da Era do Esclarecimento que prepararam a Revolução Francesa era normal o desprezo aos judeus olhavamnos como sobreviventes da Idade Média e como agentes financeiros da aristocracia Os únicos amigos dos judeus na França que chegavam a se pronunciar eram escritores conservadores que denunciavam as atitudes antijudaicas como uma das teses favoritas do século XVIII51 Para o escritor mais liberal ou radical já pertencia à tradição denunciar os judeus como bárbaros que ainda viviam em estrutura patriarcal sem reconhecerem o poder leigo do Estado52 Durante e 50 Ver o capítulo 4 51 Ver X de Maistre Les soirées de SaintPetersburg 1821 II p 55 52 Charles Fourier Nouveau monde industriei et sociétaire 1829 vol VI de suas Oeuvres completes 1845 reeditadas em 1966 p 421 Para as doutrinas antijudaicas de Fourier ver também Edmund Silberner Charles Fourier on the Jewish Question em Jewish Social Studies outubro de 1946 67 após a Revolução Francesa o clero e os aristocratas da França uniram suas vozes ao sentimento antijudaico geral embora por motivos materiais acusaram o governo revolucionário de ter vendido propriedades da Igreja para pagar aos judeus e comerciantes que são credores do governo53 no que identificavam os judeus e o Estado como se essa situação ainda perdurasse Estes velhos argumentos que de uma forma ou de outra se mantiveram acesos na França durante a incessante luta entre a Igreja e o Estado alimentaram a violência e o acirramento de ódios provocados no fim do século XIX por outras forças mais modernas Foi principalmente por causa do apoio dado pela Igreja ao antisemitismo que o movimento socialista francês decidiu finalmente tomar posição contra a propaganda antisemita quando do Caso Dreyfus Até então os movimentos esquerdistas da França não escondiam a sua antipatia aos judeus Seguiam simplesmente a tradição do Esclarecimento do século XVIII que foi a fonte do liberalismo e radicalismo franceses e consideravam as atitudes antijudaicas como parte integrante do anticlericalismo Esses sentimentos da esquerda foram fortalecidos primeiro pelo fato de os judeus da Alsácia continuarem a viver de empréstimos de dinheiro aos camponeses procedimento que já em 1808 havia provocado um decreto específico de Napoleão para encontrar depois novo alento na política financeira da casa dos Rothschild que teve papel relevante no financiamento dos Bourbon manteve estreitas relações com o rei Luís Filipe e floresceu como nunca sob Napoleão III Por trás desses estímulos óbvios embora bastante superficiais existia causa mais profunda crucial a toda a estrutura do radicalismo especificamente francês e que quase conseguiu levar contra os judeus todo o movimento esquerdista francês Os banqueiros eram muito mais fortes na economia da França do que em outros países capitalistas e o desenvolvimento industrial francês após uma breve ascensão durante o governo de Napoleão III atrasouse de tal modo com relação às outras nações que as tendências socialistas précapistalistas continuaram a exercer considerável influência A classe média inferior na Áustria e na Alemanha tornouse antisemita somente durante os anos 70 e 80 quando já estava tão desesperada que podia ser levada por qualquer político mais hábil Na França essa classe revelouse anti semita cerca de cinqüenta anos antes quando com o auxílio dos trabalhadores levou a Revolução de 1848 à vitória Nos anos 40 do século XIX ao publicar Les Juifs róis de Vépoque livro mais importante entre numerosos panfletos lançados então contra os Rothschild Toussenel foi entusiasticamente recebido por toda a imprensa esquerdista que então representava a pequena burguesia revolucionária Os sentimentos dessa classe expressos por Toussenel embora menos eloqüentes e menos sofisticados não eram muito diferentes daqueles do jovem Marx e o ataque de Toussenel 53 Ver o jornal Le Patriote Français n 457 de 8 de novembro de 1790 citado por Clemens August Hoberg Die geistigen Grundlagen des Antisemitismus im modernen Frankreich Causas espirituais do antisemitismo na França moderna em Forschungen zur Judenfrage 1940 vol IV 68 contra os Rothschild foi apenas uma variante menos dotada mas mais elaborada das Cartas de Paris que Boerne havia escrito quinze anos antes54 Também esses dois judeus Marx e Boerne viam no banqueiro judeu a figura central do sistema capitalista erro que influenciou a burocracia municipal e a dos níveis inferiores do governo da França até os nossos dias55 Contudo essa explosão de sentimento popular antijudaico alimentado pelo conflito econômico entre os banqueiros judeus e a sua desesperada clientela não durou mais como fator importante em política do que outras explosões semelhantes causadas por motivos puramente econômicos ou sociais Os vinte anos do governo de Napoleão III constituíram para a comunidade judaica da França uma era de prosperidade e segurança semelhante às duas décadas que na Alemanha e na Áustria antecederam a Primeira Grande Guerra A única modalidade de antisemitismo francês que realmente vingou e que sobreviveu ao antisemitismo social e às atitudes desdenhosas dos intelectuais anticlericais estava ligada a uma xenofobia geral Especialmente após a Primeira Grande Guerra os judeus estrangeiros tornaramse estereótipo de todos os estrangeiros Em todos os países da Europa central e ocidental esboçouse uma diferenciação entre os judeus nativos e aqueles que invadiram o país provenientes do Leste Os judeus poloneses e russos eram tratados na Alemanha e na Áustria exatamente da mesma forma como os judeus romenos e alemães eram tratados na França Os judeus da Posnânia eram tratados na Alemanha com o mesmo desdém esnobe que na França era reservado aos judeus na Alsácia Mas somente na França essa diferenciação antioriental assumiu certa importância no cenário nacional E isso se deve provavelmente ao fato de que a casa dos Rothschild que mais do que em qualquer outro lugar era o alvo dos ataques antijudaicos havia emigrado para a França da Alemanha assim até a deflagração da Segunda Grande Guerra os franceses naturalmente suspeitavam que os judeus simpatizassem com o inimigo nacional alemão 54 O ensaio de Marx sobre a questão judaica é suficientemente bem conhecido assim não precisa ser citado Como as afirmações de Boerne em virtude de seu caráter meramente polêmico e nãoteórico vão hoje sendo esquecidas citamos parte de sua 72 carta de Paris janeiro de 1832 Rothschild beijou a mão do papa Finalmente chegou a ordem que Deus havia planejado quando criou o mundo Um cristão pobre beija os pés do papa e um judeu rico lhe beija a mão Se Rothschild houvesse obtido seu empréstimo romano a 60 em vez de a 65 e pudesse ter mandado ao tesoureiromor mais de 10 mil ducados terlheiam permitido abraçar o Santo Padre Não seria a maior ventura para o mundo se todos os reis fossem depostos e a família Rothschild colocada no trono EmBriefe aus Paris 18301833 Cartas de Paris 55 Essa atitude é bem descrita no prefácio da autoria do conselheiro municipal Paul Brousse à famosa obra de Cesare Lombroso sobre o antisemitismo 1899 A parte característica do argumento está contida no seguinte O pequeno comerciante precisa de crédito e sabemos como o crédito é caro e mal organizado hoje em dia O pequeno comerciante responsabiliza o banqueiro judeu também por isso Em escala abaixo todos até o trabalhador pensam que estão incrementando a revolução se a expropriação geral dos capitalistas for precedida pela expropriação dos capitalistas judeus que são os mais típicos e cujos nomes são mais conhecidos das massas 69 O antisemitismo nacionalista inofensivo quando comparado com os movimentos modernos nunca foi monopólio de reacionários e chauvinistas na França Nessa questão o escritor Jean Giraudoux ministro da propaganda no gabinete de guerra de Daladier concordava plenamente com Pétain e com o governo de Vichy56 Mas este por mais que se esforçasse em agradar aos alemães não conseguia ultrapassar as limitações dessa obsoleta antipatia pelos judeus Essa deficiência era digna de nota porquanto foram os franceses que haviam produzido um anti semita eminente e talentoso que percebia todo o alcance e as possibilidades das novas armas de moldar a opinião das massas E característico das condições da França onde o antisemitismo nunca caiu no descrédito social e intelectual como ocorreu em outros países europeus que esse homem fosse um ilustre romancista Louis Ferdinand Céline elaborou uma tese simples engenhosa e imaginária que deu ao racional antisemitismo francês um pouco da imaginação ideológica que lhe faltava Afirmava que os judeus haviam frustrado a evolução da Europa como entidade política causando todas as guerras européias desde o ano de 843 e planejando a ruína da França e da Alemanha ao incitar uma contra a outra Céline propôs essa fantástica explicação da história em seu livro Êcole des cadavres escrito na época do pacto de Munique 1938 e publicado durante os primeiros meses da guerra 1939 Um panfleto anterior sobre o assunto Bagatelle pour un massacre 1938 embora não incluísse nova interpretação da história européia já abordava a questão de modo surpreendentemente moderno evitava as diferenciações entre judeus nativos e estrangeiros entre judeus bons e maus e não se preocupando com laboriosas propostas legislativas característica particular do antisemitismo francês ia direto ao assunto e pedia o massacre de todos os judeus O primeiro livro de Céline teve recepção muito favorável entre os intelectuais mais importantes da França que se sentiam em parte satisfeitos com o ataque contra os judeus e em parte convencidos de que se tratava de interessante visão literária57 Exatamente por essas razões os fascistas franceses não levaram Céline a sério a despeito do fato de que os nazistas sempre souberam 56 Quanto à surpreendente continuidade dos argumentos antisemitas franceses comparese por exemplo a descrição por Charles Fourier do judeu Iscariotes que chega à França com 100 mil libras estabelecese numa cidade com seis competidores em seu ramo esmaga todas as firmas concorrentes junta uma grande fortuna e volta para a Alemanha Théorie des quatre mou vements 1808 em Oeuvres completes v I p 233 com a imagem de Giraudoux de 1939 Através de uma infiltração cujo segredo tentei em vão descobrir centenas de milhares de ashquenasim que fugiram dos guetos poloneses e romenos entraram em nosso país eliminando nossos concidadãos e ao mesmo tempo arruinando seus costumes e tradições profissionais Acostumados há séculos a trabalhar em piores condições em todos os setores do pequeno artesanato desafiam todas as investigações do censo do fisco e do trabalho Em Pleinspouvoirs 1939 57 Ver especialmente a apreciação crítica na Nouvelle Revue Française de Mareei Arland fevereiro de 1938 que afirma que a posição de Céline é essencialmente solide André Gide abril de 1938 acha que Céline ao descrever apenas a spécialité judaica conseguiu pintar não a realidade mas a própria alucinação que a realidade provoca 70 que ele era o único verdadeiro antisemita da França O bom senso inerente dos políticos franceses e sua arraigada responsabilidade proibiamnos de aceitarem um doido e só um doido poderia apresentar o massacre como solução de um problema Como resultado mesmo os alemães ao se esforçarem em vão para persuadir o povo francês de que o extermínio dos judeus seria uma cura para todos os males sob o sol tiveram de contar com colaboradores inadequados como Doriot um seguidor de Mussolini e Pétain um velho chauvinista francês sem qualquer compreensão dos problemas modernos O modo pelo qual essa situação evoluiu ao longo dos anos de boa vontade oficial e mesmo extraoficial em cooperar com a Alemanha nazista indica claramente o quanto o antisemitismo do século XIX era ineficaz para os novos fins políticos do século XX mesmo num país onde se havia desenvolvido ao máximo e sobrevivido a todas as outras mudanças de opinião públicaEm nada adiantou que jornalistas capazes do século XIX como Edouard Drumont e mesmo grandes escritores contemporâneos como Georges Bernanos contribuíssem para essa causa ela parecia ser melhor servida por loucos e charlatães Um dos elementos decisivos dessa situação foi este por várias razões a França nunca chegou a ter um partido paneuropeu Como muitos políticos franceses mostraram58 somente uma aliança francoalemã teria permitido à França competir com a Inglaterra na divisão do mundo e alcançar maior sucesso na disputa pela África Contudo de uma forma ou de outra a França nunca se deixou levar por essa competição a despeito de todo o seu ruidoso ressentimento e de sua hostilidade para com a GrãBretanha A França era e continuou sendo embora declinando em importância Ia nation par excellence da Europa Além disso como seu antisemitismo se nutrira principalmente do conflito francoalemão puramente nacional a questão judaica deixava quase automaticamente de ter qualquer papel importante na política supranacional ou imperialista apesar das condições da Argélia onde a população mista de judeus e árabes nativos teria oferecido para tanto excelente oportunidade59 A simples e brutal destruição do Estado nação francês pela agressão alemã e a pseudoaliança francoalemã baseada em ocupação nazista podem ter demonstrado quão pouca força própria Ia nation par excellence havia trazido do seu glorioso passado para os nossos dias mas isto em nada alterou os elementos essenciais da sua estrutura política 58 Como por exemplo RenéPinon em France et Allemagne 18701913 1913 59 Alguns aspectos da questão judaica na Argélia são tratados no artigo da autora Why the Crémieux Decree was abrogated em Contemporary Jewish Record abril de 1943 Por decreto do ministro da Justiça da França no governo republicano de 1870 Adolphe Crémieux de origem judaica os judeus da Argélia tornaramse cidadãos da França o que não aconteceu com a população árabe Este decreto foi revogado sob o regime de Vichy quando os judeus argelinos foram perseguidos tanto pelos árabes locais quanto pelas autoridades francesas e nazistas Temendo a independência da Argélia a maioria desses judeus valendose da sua cidadania francesa que lhes foi devolvida após a liberação da França em 1945 emigrou para a França N E 71 5 A IDADE DE OURO DA SEGURANÇA Somente duas décadas separam o declínio temporário dos movimentos antisemitas da deflagração da Primeira Grande Guerra Esse período tem sido adequadamente descrito como a Idade de Ouro da Segurança60 Apenas poucos sentiram a sua fraqueza própria da estrutura política obsoleta que a despeito de todas as profecias de colapso iminente continuava a funcionar em glória espúria e com inexplicável e monótona teimosia Lado a lado conseguiam sobreviver em aparente estabilidade um despotismo anacrônico na Rússia uma burocracia corrupta na Áustria um estúpido militarismo na Alemanha e uma república hesitante em contínua crise na França todos eles à sombra do poder mundial do Império Britânico Nenhum desses governos era muito popular e todos tinham de enfrentar crescente oposição doméstica mas em parte alguma parecia existir genuíno desejo político no sentido de mudança radical das condições políticas A Europa estava demasiado ocupada em expandirse economicamente para que qualquer nação ou camada social levasse a sério as questões políticas Tudo podia continuar porque ninguém se importava Ou nas palavras penetrantes de Chesterton a existência de tudo está se prolongando ao negar que ainda existe61 O rápido crescimento da capacidade industrial e econômica produziu constante enfraquecimento dos fatores puramente políticos enquanto as forças econômicas tornavamse dominantes na luta internacional pelo poder Pensavase que o poder fosse sinônimo de capacidade econômica até que se descobriu que as capacidades econômica e industrial são apenas seus prérequisitos modernos Até certo ponto o poder econômico podia levar os governos à submissão porque estes tinham tanta fé na economia quanto os simples homens de negócio que haviam conseguido convencêlos de que os meios de violência do Estado deviam ser usados exclusivamente para a proteção dos interesses comerciais e da propriedade nacional Durante certo tempo uns trezentos homens todos conhecidos uns dos outros tinham nas mãos os destinos do mundo como observou Walter Rathenau Esse esquisito estado de coisas durou exatamente até 1914 quando pelo próprio fato da guerra desmoronou a confiança das massas no caráter providencial da expansão econômica Os judeus iludiramse mais com as aparências da idade de ouro da segurança do que qualquer outra facção de povos europeus O antisemitismo parecia pertencer ao passado quanto mais os governos perdiam em poder e prestígio menos atenção davam aos judeus À medida que se reduzia a importância do Estado a representação política tendia a tornarse uma espécie de palco 60 A expressão è de Stefan Zweig em sua autobiografia intitulada Die Welt von Gestern O mundo de ontem 61 Maravilhosa imagem do estado de coisas na GrãBretanha é descrita por G K Chesterton em The return of Don Quixote publicado em 1927 embora planejado e parcialmente escrito antes da guerra 72 teatral de qualidade variada até que na Áustria o próprio teatro tornouse foco da vida nacional uma instituição certamente mais significativa do que o Parlamento A aparência teatral do mundo político havia se tornado tão patente que o teatro suplantava esse mundo em vários aspectos da realidade A crescente influência dos grandes negociantes sobre o Estado e a necessidade decrescente do Estado em relação aos serviços prestados pelos judeus ameaçavam extinguir o banqueiro judeu e forçavam os judeus a mudanças ocupacionais O primeiro sinal do declínio dos bancos judeus foi a perda de prestígio e poder dentro das comunidades judaicas Já não eram bastante fortes para centralizar e até certo ponto monopolizar a riqueza geral judia Os judeus abandonavam cada vez mais as finanças estatais em favor de negócios independentes Das entregas de alimentos e roupas para os exércitos e governos nasceu o comércio judaico de alimentos e cereais e as indústrias de roupas em que eles logo se destacariam em todos os países lojas de penhor e armazéns gerais em pequenas cidades do interior onde se podia encontrar de tudo foram os predecessores das grandes lojas de departamentos nas cidades Isso não significa que a relação entre os judeus e os governos cessou de existir mas envolvia menos indivíduos de forma que no fim desse período refezse o quadro do início alguns indivíduos judeus mantêm posições financeiras importantes sendo pequena ou nenhuma a sua conexão com as camadas mais largas da classe média judaica Mais importante que a expansão dos judeus comerciantes independentes foi outra mudança na estrutura ocupacional As comunidades judaicas da Europa central e ocidental haviam atingido um ponto de saturação em matéria de riqueza e sucesso econômico Esse poderia ter sido o momento para os judeus demonstrarem o desejo do dinheiro pelo amor ao dinheiro ou ao poder No primeiro caso poderiam ter expandido os seus negócios para legálos aos seus descendentes no segundo poderiam terse firmado mais nos negócios estatais para reforçar a sua influência sobre o governo Não fizeram nem uma coisa nem outra Pelo contrário os filhos dos negociantes prósperos e em menor escala dos banqueiros abandonavam as carreiras dos seus pais em troca de profissões liberais ou atividades puramente intelectuais luxo ao qual não poderiam ter aspirado algumas gerações antes O que o Estadonação tanto temera no passado o surgimento de uma intelligentsia judia passou a ocorrer agora num ritmo rápido A afluência dos judeus filhos de pais ricos para as ocupações culturais foi especialmente marcante na Alemanha e na Áustria e as instituições culturais na área jornalística editorial musical e teatral se tornaram em grande proporção empreendimentos judeus Assim a tradicional preferência e respeito dos judeus pelas ocupações intelectuais resultou num verdadeiro rompimento com as tradições judaicas e na assimilação intelectual e nacional de importantes camadas judaicas da Europa central e ocidental Politicamente esse fenômeno indicava que os judeus se emancipavam da proteção do Estado adquiriam consciência dos laços que os uniam aos seus concidadãos enquanto afrouxava consideravelmente a união 73 intereuropéia entre os judeus Socialmente os intelectuais judeus foram os primeiros que como grupo necessitavam e almejavam obter acesso à sociedade nãojudaica A discriminação social que significava tão pouco para os seus pais indiferentes às relações com os gentios tomouse problema de vital importância para eles Em busca de uma estrada que os levasse à sociedade esse grupo foi forçado a adotar padrões de conduta social estabelecidos por indivíduos judeus que haviam sido aceitos na sociedade durante o século XIX como exceções à regra da discriminação Descobriram rapidamente a força que abria todas as portas o poder irradiante da Fama Stefan Zweig tornada irresistível pelos séculos da idolatria do gênio Essa busca da fama pelos judeus distinguiase da idolatria geral da fama pelo fato de que os judeus não se interessavam pela fama para si mesmos Viver na aura da fama era para eles mais importante do que tornarse famosos e assim eles se tomaram eminentes críticos comentaristas colecionadores e organizadores de tudo que era famoso O poder irradiante era uma força social muito real através da qual podiam estabelecer um lar os que socialmente eram destituídos de lar Em outras palavras os intelectuais judeus tentaram e até certo ponto conseguiram tornarse laços vivos que uniam indivíduos famosos numa sociedade de renomados por definição uma sociedade internacional pois as conquistas espirituais transcendem as fronteiras nacionais A debilitação geral dos fatores políticos que décadas antes haviam provocado uma situação em que a realidade e a aparência a realidade política e a encenação teatral podiam facilmente parodiarse uma à outra permitialhes agora tornaremse representantes de uma nebulosa sociedade internacional na qual os preconceitos nacionais não mais pareciam válidos E por paradoxal que fosse essa sociedade internacional parecia ser a única que reconhecia a nacionalização e a assimilação de seus membros judeus era muito mais fácil para um judeu austríaco ser aceito como austríaco na França do que na Áustria A espúria cidadania mundial dessa geração essa nacionalidade fictícia que sublinhavam sempre quando se mencionava sua origem judaica já fazia lembrar aqueles passaportes que mais tarde davam ao portador o direito de passear em qualquer país menos naquele que os emitia Por sua própria natureza essas circunstâncias não podiam levar os judeus à proeminência justamente quando suas atividades sua satisfação e felicidade no mundo das aparências demonstravam que como grupo não desejavam realmente nem dinheiro nem poder Enquanto os estadistas e jornalistas sérios preocupavamse com a questão judaica menos do que em qualquer época desde a emancipação e enquanto o antisemitismo quase que desaparecera da cena política os judeus tornaramse símbolo grupai da Sociedade e objeto de ódio de todos aqueles a quem a sociedade não aceitava O antisemitismo tendo perdido seu suporte com o desaparecimento das condições especiais que haviam influenciado seu desenvolvimento durante o século XIX podia ser livremente elaborado por charlatães e loucos naquela estranha mistura de meias verdades e fantásticas superstições que emergiu na Europa depois de 1914 tornandose a ideologia de todos os elementos frustrados e ressentidos 74 Como a questão judaica em seu aspecto social tomouse catalisadora de intranqüilidade social até que finalmente a sociedade desintegrada recristalizouse ideologicamente em tomo de um possível massacre de judeus é necessário esboçar alguns dos principais traços da história social da comunidade dos judeus emancipados na sociedade burguesa do século passado 75 3 OS JUDEUS E A SOCIEDADE A ignorância política dos judeus que os ajudava tão bem no cumprimento de seu papel na esfera de negócios do Estado e na manutenção de seus preconceitos contra o povo e em favor da autoridade cegavaos diante dos perigos políticos do antisemitismo embora aguçasselhes a sensibilidade diante de toda forma de discriminação social Eralhes difícil discernir entre o argumento político e a mera antipatia quando os dois se apresentavam concomitantemente Mas no caso dos judeus ambos se originaram de aspectos opostos do mesmo fenômeno que era a emancipação o antisemitismo político surgiu porque os judeus apesar dela constituíam um corpo à parte enquanto a discriminação social resultou da crescente igualdade dos judeus em relação aos demais grupos A igualdade de condições embora constitua o requisito básico da justiça é uma das mais incertas especulações da humanidade moderna Quanto mais tendem as condições para a igualdade mais difícil se torna explicar as diferenças que realmente existem entre as pessoas assim fugindo da aceitação racional dessa tendência os indivíduos que se julgam de fato iguais entre si formam grupos que se tornam mais fechados com relação a outros e com isto diferentes Essa desconcertante conseqüência foi percebida quando a igualdade deixou de ser aceita em termos de dogmatização ou de inevitabilidade Sempre que a igualdade se torna um fato social sem nenhum padrão de sua mensuração ou análise explicativa há pouquíssima chance de que se torne princípio regulador de organização política na qual pessoas têm direitos iguais mesmo que difiram entre si em outros aspectos há muitas chances porém de ela ser aceita como qualidade inata de todo indivíduo que é normal se for como todos os outros e anormal se for diferente Essa alteração do sentido da igualdade que do conceito político passou ao conceito social é ainda mais perigosa quando uma sociedade deixa pouca margem de atuação para grupos e indivíduos especiais pois então suas diferenças com relação à maioria se tornam ainda mais conspícuas O grande desafio do período moderno e seu perigo peculiar está nisso pela primeira vez o homem se confrontou com seu semelhante sem a pro 76 teção das condições pessoais que ostentava como diferenciadoras Foi esse novo conceito de igualdade que tornou difíceis as relações raciais pois nesse campo lidamos com diferenças naturais que nenhuma mudança política pode modificar É pelo fato de a igualdade exigir que eu reconheça que todo e qualquer indivíduo é igual a mim que os conflitos entre grupos diferentes que por motivos próprios relutam em reconhecer no outro essa igualdade básica assumem formas tão terrivelmente cruéis Portanto quanto mais a condição do judeu se aproximava da igualdade mais surpreendentes se revelavam as ambivalências de um lado o ressentimento social contra os judeus de outro e ao mesmo tempo uma atração peculiar por eles A combinação dessas reações determinou a história social da comunidade judaica da Europa ocidental Contudo tanto discriminação como atração eram politicamente estéreis Nem produziam um movimento político contra os judeus nem serviam para protegêlos contra seus inimigos Conseguiram porém envenenar a atmosfera social perverter as relações sociais entre judeus e gentios e influenciar a conduta dos judeus A formação do estereótipo do judeu foi devida a ambos esses fatos à especial discriminação e ao especial favorecimento A antipatia social pelos judeus que assumia diversas formas de discriminação não causou grande mal político nos países europeus pois neles nunca foram alcançadas igualdade social e econômica genuínas As novas classes se desenvolviam como grupos aos quais uma pessoa pertencia pela ascendência Não há dúvida de que somente em tal estrutura a sociedade poderia tolerar que os judeus se estabelecessem como um grupo especial A situação teria sido inteiramente diferente se como nos Estados Unidos a igualdade de condição houvesse sido aceita naturalmente se cada membro da sociedade vindo de qualquer camada tivesse a firme convicção de que por capacidade ou sorte podia tornarse herói de uma história de conquistas Em tal sociedade a discriminação tornase o único meio de distinção uma espécie de lei universal segundo a qual certos grupos podem ser privados da igualdade cívica política e econômica Não relacionada apenas à questão judaica a discriminação tornase o ponto de cristalização de um movimento político que deseja resolver através da violência e da lei do populacho todos os conflitos e dificuldades naturais de um país multinacional Um dos mais promissores e perigosos paradoxos dos Estados Unidos está na ousadia da prática de igualdade em meio à população mais desigual do mundo física e historicamente Nos Estados Unidos o antisemitismo social pode vir a ser um dia o núcleo muito perigoso de um movimento político1 Na Europa contudo influiu pouco na ascensão do antisemitismo político 1 Embora até agora não os judeus mas os negros historicamente o mais discriminado dos povos da América tenham sofrido a carga do preconceito neste hemisfério isso poderia mudar se essa discriminação meramente social se transformasse num movimento político Nesse caso os judeus poderiam subitamente tornarse objeto principal do ódio pela simples razão de que eles próprios ao contrário de todos os outros grupos deram expressão em sua história e religião ao princípio separatista o que não ocorre com os negros ou chineses os quais portanto correm menor 77 1 ENTRE O PÁRIA EONO VORICO O precário equilíbrio entre a sociedade e o Estado sobre o qual repousava social e politicamente o Estadonação resultou de uma lei peculiar que regulava a admissão dos judeus na sociedade Durante os 150 anos em que os judeus realmente viveram entre os povos da Europa ocidental e não apenas à margem deles tiveram de pagar a glória social com o sofrimento político e o sucesso político com o insulto social A assimilação isto é a aceitação da diluição dos judeus por parte da sociedade nãojudaica era concedida só excepcionalmente aos indivíduos claramente distintos das massas judaicas que ainda assim compartilhavam as mesmas condições políticas restritivas e humilhantes A sociedade confrontada com a igualdade política econômica e legal dos judeus deixou claro que nenhuma das suas classes estava preparada para acolhêlos dentro de preceitos de igualdade social e que somente seriam aceitas exceções individuais Os judeus lisonjeados como exceções os judeus excepcionais sabiam muito bem que só a ambigüidade isto é o fato de serem judeus mas presumivelmente não iguais aos judeus abrialhes as portas da sociedade Ao se satisfazerem com esse tipo de relação procuravam ao mesmo tempo ser e não ser judeus2 O aparente paradoxo tinha base sólida nos fatos A sociedade nãojudaica exigia que o judeu recémadmitido por ela fosse tão educado quanto os seus próprios componentes tradicionais e que embora não se comportasse como um judeu comum fosse e produzisse algo fora do comum uma vez que afinal de contas era judeu Exigiase dos judeus a assimilação isto é o seu ajustamento à sociedade como condição preliminar da emancipação judaica vendo nela a conseqüência automática da aceitação dos judeus pela sociedade Em outras palavras as condições dos judeus elaboradas por seus defensores judeus ou não eram analisadas apenas sob o aspecto social E um dos fatos mais infelizes da história do povo judeu tem sido exatamente este somente seus inimigos e quase nunca seus amigos compreenderam que a questão judaica era antes de tudo uma questão política Os defensores da emancipação apresentavam o problema sob o enfoque educacional conceito que aliás aplicavase tanto a judeus quanto a nãojudeus na sociedade burguesa do século XIX3 quando se aceitava como natural risco politicamente embora possam diferir da maioria populacional fisicamente de modo mais acentuado que os judeus Tempo decorrido entre a Revolução Francesa e a Segunda Guerra Mundial N E 2 Essa observação surpreendentemente perspicaz foi feita pelo teólogo liberal protestante H E G Paulus num precioso folheto Diejüdische Nationalabsonderung etc 1831 já citado nota 25 do capítulo 2 Paulus muito atacado pelos escritores judeus do seu tempo advogava a emancipação individual gradual à base da assimilação 3 Essa atitude é expressa por Wilhelm von Humboldt 1809 O Estado não devia exatamente ensinar o respeito pelos judeus mas devia abolir um modo de pensar desumano e cheio de preconceito Em Ismar Freud Die Emanzipation der Juden in Preussen A emancipação dos judeus na Prússia Berlim 1912 II p 270 78 que a elite de qualquer grupo consistiria sempre em pessoas educadas reciprocamente tolerantes e cultas Em conseqüência a elite nãojudaica tolerante educada e culta preocupavase socialmente só pelos judeus igualmente educados e cultos Os demais judeus a maioria estavam fora do interesse humanístico da elite nãojudaica isto é fora da alçada da emancipação Pouco a pouco a exigência da abolição do preconceito entre os educados tolerantes e cultos transformarseia numa questão unilateral até que por fim só se exigiria educação e cultura por parte dos judeus como elemento fundamental para serem aceitos pela sociedade nãojudaica Isso contudo é apenas um aspecto do assunto Exortavamse os judeus a se tornarem suficientemente educados para não se portarem como judeus comuns mas por outro lado consentiase em aceitálos enquanto e na qualidade de judeus isto é devido à atração exótica que deles emanava No século XVIII isso se originou do noVo humanismo que segundo Herder procurava expressamente por novos espécimes de humanidade com os quais se poderia estabelecer o relacionamento a servir como exemplo para a convivência entre todos os tipos humanos Os judeus constituiriam então uma prova cabal de que todos os homens eram humanos E pelo fato de serem os judeus desprezados e oprimidos como grupo seus líderes elite formavam o modelo ainda mais puro e exemplar da humanidade Foi Herder amigo declarado dos judeus quem primeiro usou a frase que mais tarde chegou a ser mal usada e mal citada estranho povo da Ãsia impelido para os nossos climas4 Com estas palavras ele e seus colegas humanistas aclamavam os novos espécimes da humanidade em busca dos quais o século XVIII havia procurado por toda a terra5 e que acabaram se revelando como sendo seus vizinhos seculares os judeus novos espécimes pojs que ignorados até então como elementos de convivência Para salientar a unidade básica de todos os homens mesmo dos espécimes estranhos tentavam mostrar que as origens do povo judeu eram mais exóticas do que realmente eram demonstravam assim que a humanidade reforçada por essa longínqua origem comum era realmente universal Durante algumas décadas no fim do século XVIII quando a comunidade judaica francesa já gozava da emancipação e a alemã não tinha quase nenhuma esperança ou desejo dela os judeus do mundo inteiro voltaram seus olhos para a comunidade de Berlim6 e não de Paris Isto se deveu em grande parte ao sucesso de Nathan o sábio de Lessing embora a sua afirmação de que os novos espécimes da humanidade pelo fato de se haverem tornado por fim exemplos da humanidade deveriam também se tornar indivíduos mais inten 4 J G Herder Ueber die politische Bekehrung der Juden Sobre a direção política dos judeus emAdrastea unddas 18 Jahrhundert 18013 5 Herder Briefe zur Befõrderung der Humanitãt Cartas sobre a melhoria da humanidade 17937 40 carta 6 Felix Priebatsch Die Judenpolitik des fürstlichen Absolutismus im 17 und 18 Jahrhundert em Forschungen und Versuche zur Geschichte des Mittelalters und der Neuzeit 1915 citado na nota 3 ao capítulo 2 p 646 79 samente humanos7 fosse bastante mal interpretada Mirabeau foi fortemente influenciado por essa idéia e costumava citar Mendelssohn como exemplo8 Herder esperava até que os judeus educados demonstrassem isenção de preconceitos superior aos nãojudeus porque o judeu é isento de certos julgamentos políticos que nós achamos muito difícil senão impossível abandonar Protestando contra concessões de novos privilégios mercantis via na educação o caminho que levaria os judeus a se emanciparem do judaísmo dos velhos e orgulhosos preconceitos nacionais dos costumes que não se enquadram em nossa era e em nossas constituições de modo que os judeus pudessem tornarse puramente humanizados e úteis ao desenvolvimento das ciências e de toda a cultura da humanidade9 Por volta da mesma época Goethe ao comentar um livro de poemas escrevia desapontado que o seu autor embora judeu não realizasse mais do que um étudiant en belles lettres cristão e queixavase de que onde havia esperado algo genuinamente novo alguma força além da convenção superficial encontrara apenas a mediocridade comum10 É fácil imaginar o desastroso efeito dessa exagerada embora na realidade preconceituosa boa vontade com relação aos judeus educados e recémocidentalizados bem como o impacto que essa atitude idealizadora teve sobre a posição social e psicológica dos judeus transformados em exemplo de certos anseios ideológicos De um lado eles enfrentavam a exigência indiscutivelmente desmoralizante de se tornarem exceções com relação ao seu próprio povo sendo que até um Schleiermacher preconizava que a separação entre eles os educados e os outros judeusjudeus fosse legalizada pelos governos11 por outro lado esperavase que esses judeus se tornassem espécimes excepcionais da humanidade o que tornava obviamente periclitante a posição dos outros judeus menos ocidentalmente educados Foi essa expectativa e não a conversão de um Heine que constituía o verdadeiro bilhete de entrada do judeu para a sociedade culta da Europa Que mais então podiam fazer esses judeus senão tentar desesperadamente não desapontar ninguém12 7 O próprio Lessing não tinha tais ilusões Sua última carta a Moses Mendelssohn exprimia claramente o que ele desejava O caminho mais breve e mais seguro para uma Europa sem cristãos nem judeus Para a atitude de Lessing em relação aos judeus ver Franz Mehring Die Lessinglegende A lenda de Lessing 1906 8 Ver Honoré Q R de Mirabeau Sur Moses Mendelssohn Londres 1788 9 J G Herder Ueber die politische Bekehrung der Juden op cit 10 Comentário de Johann Wolfgang von Goethe a respeito de Isachar Falkensohn Behr Gedichte eines polnischen Juden Poemas de um judeu polonês Mietau e Leipzig 1722 no Frankfurter Gelehrte Anzeigen 11 Friedrich Schleiermacher Briefe bei Gelegenheit der politisch theologischen Aufgabe und des Sendschreibens jüdischer Hausvãter Cartas por ocasião da edição políticoteológica das epístolas dos pais de família judeus 1799 em Werke Obras 18461 parte vol V p 34 12 Isso contudo não se aplica a Moses Mendelssohn que mal conhecia o modo de pensar de Herder Goethe Schleiermacher e outros membros da jovem geração alemã Mendelssohn era reverenciado por sua singularidade Sua firme adesão à religião judaica tornavalhe impossível vir a 80 Em suas primeiras décadas a assimilação ainda não se incorporou à tradição judaica resultava dos dotes individuais funcionava sem problemas sociais Enquanto a França era a terra da glória política para os judeus primeira a reconhecêlos como cidadãos a Prússia parecia estar a ponto de tornarse o país do esplendor social dos judeus Berlim esclarecida na qual Mendelssohn estabeleceu estreitas ligações com muitos homens famosos da época iniciava esse caminho As ligações de Mendelssohn com a sociedade nãojudaica ainda se assemelhavam à tradição dos laços eruditos que ligavam os sábios judeus aos sábios cristãos em quase todos os períodos da história européia Mas já os amigos de Mendelssohn se utilizavam dessas relações para fins impessoais ideológicos e até mesmo políticos embora ele próprio desaprovasse tais motivos expressando a sua completa satisfação com as condições em que vivia sem pressentir que o seu excepcional status pessoal e a liberdade que desfrutava dependiam do fato de ser um dos mais servis habitantes dos domínios do rei da Prússia13 Assim contentavase com esse status social e a liberdade individual mantendo a mais profunda indiferença com relação a direitos políticos e civis As ingênuas relações de Mendelssohn com os homens eruditos e esclarecidos do seu tempo foram transplantadas mais tarde para os salões daquelas damas judias que reuniam a sociedade culturalmente mais brilhante que Berlim jamais iria moldar Só depois da derrota prussiana de 1806 a introdução das leis napoleônicas em várias regiões da Alemanha colocou a questão da emancipação dos judeus na agenda pública transformando a indiferença inicial em pavor a emancipação libertaria os judeus educados juntamente com as massas judias atrasadas e essa igualdade destruiria aquela preciosa distinção sobre a qual como bem sabiam os judeus emancipados se baseava seu status social Assim quando a emancipação de todos os judeus finalmente se realizou a maioria dos judeus assimilados converteuse ao cristianismo achando que se era suportável e seguro ser judeu antes da emancipação de todos os judeus não seria sensato romper com o povo judeu o que os seus descendentes fizeram com a maior naturalidade Sentia ser membro de um povo oprimido que devia implorar a boa vontade e a proteção da nação governante ver sua Carta a Lavater de 1770 em Gesammelte Schriften Obra completa vol VII Berlim 1930 Ele sabia que a extraordinária estima por sua pessoa decorria do extraordinário desdém por seu povo Uma vez que ele ao contrário dos judeus das gerações seguintes não compartilhava desse desdém não se considerava uma exceção 13 A Prússia que Lessing havia descrito como o país mais escravizado da Europa era para Mendelssohn um país onde um dos mais sábios príncipes que já governaram os homens fez florescer as artes e as ciências e tornou tão geral a liberdade de pensamento que seus efeitos benéficos atingem mesmo os mais humildes habitantes do seu domínio Esse contentamento humilde é tocante e surpreendente quando se recorda que o mais sábio príncipe havia tornado muito difícil ao filósofo judeu obter a permissão para permanecer em Berlim e numa época em que seus Münzjuden gozavam de todos os privilégios não lhe outorgou nem a condição regular de um judeu protegido Mendelssohn sabia até que ele amigo de todos os alemães cultos estaria sujeito ao mesmo imposto que incidia sobre um boi levado ao mercado se um dia decidisse visitar seu amigo Lavater em Leipzig mas nunca lhe ocorreu qualquer conclusão política no tocante à melhoria de tais condições Ver a Carta a Lavater op cit e seu prefácio à tradução da obra de Menasseh benIsraelem Gesammelte Schriften vol III Leipzig 18435 81 manter o seu judaísmo conspurcado pela adesão das massas judaicas que retrógradas tirariam do judeu excepcional o halo que dele emanava O melhor exemplo desses salões judaicos em que a sociedade realmente se amalgamava representava na Alemanha Rahel Varnhagen Sua inteligência original inconvencional e pura aliada ao interesse pelas pessoas e à natureza genuinamente apaixonada fez dela a mais brilhante e a mais interessante das grandes damas judias As soirées na mansarda de Rahel reuniam não só os aristocratas esclarecidos e os intelectuais da classe média mas até atores e todos aqueles que exatamente como os judeus não pertenciam à sociedade respeitável Assim o salão de Rahel por definição e intencionalmente situavase à margem da sociedade e não compartilhava quaisquer de suas convenções e preconceitos É curioso observar como a assimilação dos judeus na sociedade seguiu de perto os preceitos que Goethe havia proposto para a educação do seu Wilhelm Meister no romance homônimo que iria constituir o modelo para a educação da classe média Nesse livro o jovem burguês é educado por nobres e atores para que possa aprender a apresentar e representar sua individualidade e desse modo progredir da modesta condição de filho de burguês para a condição de nobre Para as classes médias e para os judeus isto é para aqueles que estavam realmente fora da sociedade da alta aristocracia a almejada ascensão dependia não só da personalidade mas também da capacidade de exprimila O mais importante era saber representar o papel daquilo que a pessoa realmente pretendia ser O fato de que na Alemanha a questão judaica era vista como um problema de educação ligavase intimamente a essa atitude e resultou no filis teísmo educacional das classes médias judia e nãojudia Em sua maciça busca de profissões liberais os judeus seguiam os preceitos dos salões de Berlim convencidos de que nada realmente importava além da personalidade e da singularidade do caráter talento e expressão insubstituíveis pela ascendência social dinheiro sucesso ou fama literária e únicos meios de tornar possíveis a comunicação ilimitada e a intimidade irrestrita O breve período de encontros nos quais se juntavam lado a lado um príncipe Hohenzollern Louis Ferdinand e o banqueiro Abraham Mendelssohn um editor político e diplomata Friedrich Gentz e um escritor da escola romântica Friedrich Schlegel todos eles visitantes dos salões de Rahel chegou ao fim em 1806 quando segundo a anfitriã seu local de reuniões afundou como um navio carregado com os mais elevados prazeres da vida Juntamente com os aristocratas enveredaram pelo caminho do antisemitismo os intelectuais românticos e embora nenhum dos dois grupos abandonasse os seus amigos judeus a inconsciência e o esplendor da época prénapoleônica se evaporaram O ponto realmente crucial da história social dos judeus alemães não chegou no ano da derrota prussiana em 1806 mas dois anos mais tarde quando em 1808 o governo promulgou a lei municipal que outorgava aos judeus completos direitos cívicos embora não políticos No tratado de paz de 1807 a Prússia havia perdido com as suas províncias orientais expolonesas a maioria de sua população judaica os judeus que permaneceram nos territórios historica 82 mente germânicos eram de qualquer forma judeus protegidos isto é já gozavam embora sob a forma de antigos privilégios individuais de direitos cívicos A emancipação municipal apenas legalizou esses privilégios e sobreviveu ao decreto de emancipação geral de 1812 a Prússia tendo recuperado a Pos nânia e suas massas judaicas após a derrota de Napoleão praticamente rescindiu o decreto de 1812 o qual agora poderia ter significado direitos políticos até para os judeus pobres mas deixou a lei municipal intacta Embora de pouca importância política no que diz respeito à verdadeira melhoria da condição dos judeus esses decretos de emancipação juntamente com a perda das províncias nas quais vivia a maioria dos judeus da Prússia tiveram profundas conseqüências sociais Antes de 1807 os judeus protegidos da Prússia constituíam 20 da população judaica total Quando foi promulgado o decreto de emancipação em 1812 os judeus protegidos formavam a maioria na Prússia havendo apenas 10 de judeus estrangeiros sem que entre eles existissem a negra pobreza e o atraso tão característicos dos judeus orientais poloneses que aliás serviam para realçar e de modo vantajoso a excepcionalidade dos judeus da Prússia ricos e educados Esse pano de fundo essencial para os judeus prussianos como termo de comparação para o seu sucesso social e o sentimento de sua dignidade nunca mais voltou a ser o que era antes de Napoleão Quando as províncias expolonesas foram em parte recuperadas pela Prússia em 1816 os antigos judeus protegidos agora registrados como cidadãos prussianos de fé mosaica ainda eram mais de 60 da população judaica total14 Do ponto de vista social isso significava que os judeus da Prússia haviam perdido o ambiente que os realçava como exceções Os judeusexceção tornaramse simples judeus das exceções passaram a ser reflexo de um povo menosprezado Igualmente negativa foi a influência social da interferência do governo Não apenas as classes que antagonizavam o governo e que portanto hostilizavam os judeus mas todas as camadas da sociedade tornaramse conscientes de que os judeus que conheciam não eram exceções individuais mas simplesmente membros de um grupo a favor do qual o Estado estava disposto a tomar medidas excepcionais E isso era precisamente o que os judeusexceção haviam sempre temido A sociedade de Berlim abandonou os salões com incomparável rapidez e por volta de 1808 esses lugares de reunião já haviam sido suplantados pelas casas dos nobres burocratas e da classe média superior O desdém dos intelectuais e aristocratas berlinenses pelos judeus da Europa oriental na época em que foram anexados à Prússia transferiuse contra os judeus educados de Berlim que conheciam muito bem Esses últimos jamais recuperariam a dignidade proveniente da consciência coletiva de sua própria excepcionalidade de agora em diante não era mais suficiente distinguirse de uma massa mais ou menos 14 Ver Heinrich Silbergleit Die Bevòlkerungs und Berufsverhàltnisse der Juden im Deutschen Reich As condições populacionais e profissionais dos judeus na Alemanha vol I Berlim 1930 83 ignota de irmãos atrasados era preciso distinguirse como indivíduo que merecia ser congratulado por exceção do judeu e portanto do povo como um todo Foi a discriminação social e não o antisemitismo político que descobriu o fantasma do judeu O primeiro autor a fazer a distinção entre o indivíduo judeu e o judeu em geral o judeu de toda parte e de parte nenhuma foi um obscuro escritor C W F Grattenauer que em 1802 publicou uma sátira mordaz sobre a sociedade judia e a sua sede de instrução como caminho escolhido para ser acolhida pela sociedade Os judeus eram retratados como o reflexo da sociedade filistéia e arrivista15 Essa obra literária tão vulgar foi lida com prazer por vários membros eminentes do salão de Rahel e chegou a inspirar indiretamente um grande poeta romântico Clemens von Brentano a escrever um ensaio muito espirituoso no qual o filisteu era identificado com o judeu16 Junto com o anterior idílio da sociedade amalgamada desapareceu algo que jamais seria recuperado em qualquer país e em qualquer outra época Nunca mais qualquer grupo social aceitou os judeus com a mente e o coração abertos Poderia ser amável com os judeus porque lhe aprazia ser ousado e corajoso ou porque desejava protestar contra a manutenção de concidadãos como párias Mas mesmo que tivessem deixado de ser párias políticos e civis os judeus continuavam sendo párias sociais É importante lembrar que a assimilação como fenômeno grupai existiu apenas entre os judeus intelectuais Não foi por acaso que o primeiro judeu ocidentalmente educado Moses Mendelssohn foi também o primeiro que a despeito de sua baixa condição social foi aceito pela sociedade nãojudaica Os judeusdacorte e seus sucessores os judeus banqueiros e negociantes nunca foram aceitos socialmente nos países do Ocidente europeu nem desejavam abandonar os estreitos limites de seu gueto invisível De início orgulhavamse como todos os novosricos do ambiente de miséria de onde tinham vindo mais tarde na pobreza e no atraso das massas judaicas encontravam a razão da sua segurança Enquanto eram forçados pelas condições de sua posição a abandonar as exigências mais rigorosas da lei judaica sem terem jamais abandonado completamente as tradições religiosas exigiam cada vez mais orto 15 O panfleto de CWF Grattenauer Wider die Juden Contra os judeus de 1802 amplamente difundido já havia sido precedido em 1791 por outro Ueber diephysische undmoralische Verfassung der heutigen Juden Stimme eines Kosmopoliten Dos feitos físicos e morais dos judeus hodiernos a voz de um cosmopolita no qual a crescente influência dos judeus em Berlim já era mencionada Embora esse antigo panfleto fosse comentado no Allgemeine Deutsche Bibliothek 1792 vol CXII ficou praticamente desconhecido pela opinião pública de então o que não ocorreu com o panfleto seguinte 16 Der Philister vor in und nach der Geschichte O filisteu ante na e seguindo a História de Clemens von Brentano foi escrito e lido para o chamado ChristlichDeutsche Tischgesellschaft famoso clube de escritores e patriotas fundado em 1808 para combater Napoleão 84 doxia da parte das massas judias17 A dissolução da autonomia comunal judaica fez crescer neles o desejo de não apenas proteger das autoridades as comunidades judaicas mas também de dominálas com a ajuda do Estado de modo que os judeus pobres caíram em dupla dependência tanto do governo quanto dos seus irmãos ricos18 Esses judeus governavam as comunidades judaicas mas não pertenciam a elas nem social nem geograficamente Permaneciam tão fora da sociedade judaica como da sociedade dos gentios Tendo feito brilhantes carreiras individuais e valendose dos seus privilégios formavam uma espécie de comunidade de exceções embora com oportunidades sociais limitadas Tradicionalmente desdenhados pela sociedade da corte sem conexões comerciais com a classe média nãojudaica suas ligações estavam tão alheias às normas da sociedade em que viviam quanto sua ascensão econômica independia das condições econômicas contemporâneas Esse isolamento e essa independência davamlhes uma sensação de poder ilusório e aguçavamlhes o orgulho Exemplificao esta anedota que data do começo do século XVIII Um certo judeu repreendido por um nobre e culto médico cristão por ser orgulhoso embora não houvesse príncipes entre os judeus respondeu com insolência Não somos príncipes Nós os governamos 19 Esse tipo de orgulho era diferente da arrogância de classe que se desenvolveria depois entre os judeus privilegiados Reinando como príncipes absolutos entre o seu próprio povo ainda se sentiam como primi inter pares Aos atributos de rabinos privilegiados de todos os judeus e de príncipes da Terra Santa davam valor superior a quaisquer títulos que seus senhores pudessem oferecerlhes20 Até meados do século XVIII todos teriam concordado com o judeu holandês que disse Neque in totó orbi alicui nationi inservimus Não há nação no mundo a que não tenhamos servido mas nem então nem depois todos 17 Assim foi que na década de 1820 os Rothschild sustaram uma vultosa doação destinada à sua comunidade nativa de Frankfurt num contraataque à influência de reformadores que desejavam que as crianças judias recebessem educação geral Em Neuere Geschichte der Israeliten Nova história dos israelitas de Isaak Markus Jost Berlim vol 101846 p 102 18 Op cit IX 38 Os judeusdacorte e os ricos banqueiros judeus que seguiram seus passos nunca pretenderam abandonar a comunidade judaica Agiam como seus representantes e protetores contra as autoridades públicas das quais freqüentemente recebiam o direito de exercer o poder oficial sobre as comunidades religiosas que governavam de longe de modo que a antiga autonomia das comunidades judaicas havia sido solapada e destruída internamente muito antes de ser abolida pelo Estadonação O primeiro judeudacorte a alimentar ambições monárquicas em sua própria nação foi um judeu de Praga fornecedor de suprimentos a Mautício da Saxônia no século XVI Exigiu que todos os rabinos e chefes de comunidade fossem escolhidos dentre os membros de sua família Ver BondyDworsky Geschichte der Juden in Boehmen Maehren und Schlesien História dos judeus da Boêmia Morávia e Silésia Praga 1906 II 727 A prática de instituir os judeusdacorte como soberanos de suas comunidades generalizouse no século XVIII e foi sucedida pelo domínio dos notáveis no século XIX 19 Johann Jacob Schudt Jüdische Merkwürdigkeiten Curiosidades judaicas Frankfurt a M 17157 vol IV anexo p 48 20 Selma Sternud Suess Berlim 1929 pp 18ss 85 conseguiam alcançar a profundidade da resposta de um cristão erudito que disse Mas isso significa felicidade apenas para poucos O povo tomado como um todo é atacado em toda parte não tem governo próprio sujeitase ao domínio estrangeiro carece de poder e dignidade e erra pela terra inteira estranho onde quer que vá21 A arrogância de classe se externou quando se estabeleceram ligações comerciais entre os banqueiros judeus em geral estatais de diferentes países seguiramse casamentos entre famílias mais importantes gerando um verdadeiro sistema transnacional de casta até então desconhecido na sociedade judaica Esse fenômeno acontecia na época do desaparecimento dos velhos Estados feudais e da transformação das castas medievais em classes Concluíase assim e erradamente que o povo judeu era remanescente da Idade Média embora essa nova casta judaica fosse recente e desprovida de qualquer raiz anterior de fato completouse somente no século XIX e compreendia numericamente não mais do que talvez umas cem famílias Mas como elas apareciam na ribalta o povo judeu como um todo passou a ser olhado como uma casta22 Porém por maior que tenha sido o papel dos judeusdacorte na história política e no nascimento do antisemitismo a história social poderia facilmente esquecêlos não fossem suas afinidades traços psicológicos e padrões de conduta com os intelectuais judeus que eram afinal de contas geralmente filhos de comerciantes Mas enquanto os judeus ricos desejavam dominar o povo judeu e portanto não tinham vontade alguma de abandonálo o que caracterizava os judeus intelectuais era o contrário eles queriam deixar o seu povo para serem aceitos na sociedade ambos tinham noção de que constituíam exceções na sociedade circundante e essa noção estava em perfeita harmonia com o julgamento dos que os rodeavam Os judeusexceção endinheirados sentiamse como exceções que conseguiram apartarse do povo judeu e eram reconhecidos pelo governo pela sua utilidade excepcional os judeus exceção cultos sentiamse como exceções que conseguiram destacarse da imagem estereotipada do povo judeu e eram reconhecidos pela sociedade como seres humanos excepcionais A assimilação levada ou não ao extremo da conversão nunca chegou a constituir uma ameaça real à sobrevivência dos judeus23 Quer fossem rece 21 Schudt op cit vol I p 19 22 Christian Friedrich Ruehs ainda em 1815 define todo o povo judeu como uma casta de comerciantes Ueber die Ansprüche der Juden an das deutsche Bürgerrecht Sobre as reivindicações dos judeus e o Direito civil alemão em Zeitschrift für die neueste Geschichte der Vòlker undStaatenkunde Revista da moderna história dos povos e da geopolítica 1815 23 Um fato notável embora pouco conhecido é que a assimilação como programa levava mais freqüentemente à conversão do que ao casamento misto As estatísticas encobrem esse fato em lugar de revelálo porque consideram casamentos mistos todas as uniões entre cônjuges judeus cpnvertidos e nãoconvertidos Sabemos contudo que havia na Alemanha um bom número de famílias que durante gerações haviam sido batizadas e no entanto permaneciam puramente judias A explicação disso é que o judeu convertido só raramente deixava sua família e mais raramente ainda deixava seu ambiente judaico A família judia veio assim a constituir uma força mais conservadora do que a religião judaica 86 bidos quer fossem rejeitados ambas as atitudes se deviam ao fato de serem judeus A primeira geração de judeus cultos ainda queria sinceramente perder sua identidade como judeus e Boerne escreveu a esse respeito com certa amargura alguns me repreendem por ser judeu alguns me elogiam por isso alguns me perdoam por isso mas todos pensam nisso24 Educados ainda dentro das idéias do século XVIII sonhavam com um país onde não houvesse cristãos nem judeus dedicavamse à ciência e às artes e ficavam profundamente ressentidos quando os governos concediam toda sorte de privilégios e honrarias aos banqueiros judeus condenando os intelectuais judeus a morrer de fome25 As conversões que no começo do século XIX tinham sido provocadas pelo receio de serem confundidos com as massas judaicas tornaramse uma necessidade visto que facilitavam a conquista do pão de cada dia Que a falta de personalidade recebesse tal prêmio era algo tão revoltante que forçou uma geração inteira de jovens judeus à oposição contra o Estado e a sociedade Os novos espécimes da humanidade tornaramse rebeldes e como os governos mais reacionários da época eram apoiados e financiados pelos banqueiros judeus essa rebelião manifestavase com especial violência contra os representantes oficiais do seu próprio povo As denúncias antijudaicas de Marx e Boerne só podem ser adequadamente compreendidas à luz deste conflito entre judeus ricos e judeus intelectuais Esse conflito contudo existiu em pleno vigor somente na Alemanha Já na Áustria não houve intelligentsia judaica importante antes do fim do século XIX Sentindo ali o impacto da pressão antisemita esses judeus intelectuais como seus correligionários ricos preferiram confiar na proteção da monarquia dos Habsburgos e só se tornaram contestadores do status quo e socialistas depois da Primeira Grande Guerra quando o Partido SocialDemocrata subiu ao poder A exceção mais significativa embora não única dessa afirmação foi Karl Kraus o último representante da tradição de Heine Boerne e Marx Na sua denúncia dos negociantes Kraus incorporou ainda o jornalismo exercido por judeus como culto organizado da fama e se foi ainda mais amarga a sua atitude do que a dos seus correligionários alemães é porque ele estava mais isolado num país onde não existia nenhuma tradição contestatária judaica Na França onde o decreto de emancipação dos judeus sobreviveu a todas as mudanças de governo e regime os poucos intelectuais judeus não foram nem pioneiros da nova classe nem elementos especialmente importantes da vida intelectual A cultura como fim e a educação como programa não constituíram ali padrões de conduta judaica como aconteceu na Alemanha Em nenhum outro país houve algo como o curto período da verdadeira assimilação tão decisiva para a história dos judeus alemães quando a verdadeira vanguarda do povo não apenas aceitou os judeus mas mostrouse até ansiosa por associarse a eles Essa atitude nunca desapareceu completamente da sociedade alemã Até o fim podiamse facilmente discernir vestígios dos 24 Briefe aus Paris Cartas de P 74 carta fevereiro de 1832 25 Ibid 72 carta 87 judeus o que por outro lado pode demonstrar que as relações com os judeus nunca foram aceitas pelos alemães como totalmente naturais Na melhor das hipóteses a assimilação amalgamadora ficou sendo um programa na pior uma experiência bizarra e excitante O conhecido comentário de Bismarck acerca de garanhões alemães que deviam acasalarse com éguas judias é apenas a expressão mais vulgar do ponto de vista que prevalecia É natural porém que essa situação social a qual transformou os primeiros judeus cultos em rebeldes produzisse a longo prazo um tipo específico de conformismo no lugar de uma tradição efetiva de rebelião26 Ao se conformarem com uma sociedade que tomava atitude discriminatória contra os judeus comuns e na qual ao mesmo tempo era geralmente mais fácil a círculos elegantes admitirem um judeu culto do que um nãojudeu de condição semelhante os judeus tinham de se diferenciar claramente tanto do judeu em geral quanto de modo igualmente claro mostrar que eram judeus de maneira nenhuma se permitia que simplesmente desaparecessem Para racionalizar uma ambigüidade que eles próprios não entendiam inteiramente podiam fingir que cabia ao judeu ser um homem na rua e um judeu em casa27 Isso os levava à consciência de serem diferentes dos outros homens na rua porque eram judeus e de serem diferentes dos outros judeus em casa porque não eram como os judeus comuns Os padrões de conduta dos judeus assimilados determinados por esse esforço concentrado e contínuo de se distinguirem criaram um tipo de judeu que se podia reconhecer onde quer que ele estivesse Em lugar de serem definidos por nacionalidade e religião os judeus se transformavam num grupo social cujos membros compartilhavam certas qualidades e reações psicológicas das quais a soma total seria supostamente a condição de judeu Em outra palavras o judaísmo passou a ser uma condição psicológica e a questão judaica se tornou um complicado problema pessoal para cada judeu individualmente Nessa trágica busca do conformismo através da diferenciação e da distinção o novo tipo judeu tinha tão pouco em comum com o temido judeu em geral como com aquela outra abstração o herdeiro dos profetas e eternos promotores da justiça na terra que os apologistas dos judeus ressuscitavam sempre que um judeu jornalista era atacado O judeu criado pelos apologistas recebia atributos estereotipados humanidade bondade isenção de preconceitos sensibilidade à justiça que eram na verdade privilégios dos párias e que de fato caracterizavam certos rebeldes judeus marginalizados pela sociedade O problema era que essas qualidades não tinham nada a ver com os pro 26 O pária consciente Bernard Lazare constitui a única tradição de rebelião que se estabeleceu embora aqueles que pertenciam a ela dificilmente estivessem cientes de sua existência Ver The Jew as pariah a hidden tradition da autora emJewish Social Studies vol VI n 2 1944 27 Não deixa de ser irônico o fato de que essa excelente fórmula que pôde servir de lema à assimilação na Europa ocidental foi proposta por um judeu russo e publicada originalmente em hebraico Provém do poema hebreu de Judah Leib Gordon Hakitzah ami 1863 Ver S M Dubnow History oftheJews in Rússia and Poland 1918 II pp 228ss 88 fetas e pior ainda esses judeus geralmente não pertenciam nem à sociedade judaica nem aos círculos elegantes da sociedade nãojudaica Na história dos judeus assimilados essas qualidades representaram um papel insignificante Por outro lado o judeu em geral do modo como era descrito pelos antisemitas profissionais demonstrava exatamente as qualidades que o arrivista deve adquirir se quer alcançar algum êxito desumanidade cobiça insolência servilidade bajuladora e a determinação de vencer Tampouco nesse caso essas qualidades tinham algo a ver com atributos grupais Além disso esse tipo de judeu não sentia nenhum pendor pela sociedade nãojudaica e seu papel na história social judaica foi igualmente insignificante Mas enquanto forem exis tindo pessoas e classes difamadas os estereótipos de arrivista e de pária serão gerados com incomparável monotonia tanto faz que se trate da sociedade judaica ou de qualquer outra Contudo para a formação da história social dos judeus dentro da sociedade européia do século XIX foi decisivo que até certo ponto todo judeu de todas as gerações se não quisesse seguir o caminho de arrivismo tivesse de optar entre a sua permanência como pária completamente alheio à sociedade arrivista ou o conformismo aliado à condição degradante não só de esconder sua origem mas também de trair junto com o segredo de sua origem o segredo do seu povo28 Essa última escolha foi difícil na medida em que tais segredos não existiam e tinham de ser inventados pelo indivíduo à cata de sua ascensão Uma vez que falhou o esforço singular de Rahel Varnhagen para estabelecer a vida social fora da sociedade oficial os caminhos do pária e do arrivista eram ambos caminhos de extrema solidão enquanto a escolha do conformismo era a do arrependimento constante A complexa psicologia do judeu médio que chegou à sensibilidade exagerada baseavase em situação ambígua Os judeus sentiam simultaneamente o arrependimento do pária que não se tornou arrivista e a consciência pesada do arrivista que traiu seu povo ao trocar a participação na igualdade de direitos de todos por privilégios pessoais Uma coisa era certa quem desejasse evitar todas as ambigüidades da existência social precisava aceitar com resignação o fato de que ser judeu significava pertencer ou a uma classe superior superprivilegiada ou a uma massa marginal subprivilegiada Mas na Europa ocidental e central esse pertencer do judeu não resultava senão da artificial solidariedade intelectual O destino social do judeu médio foi determinado por sua eterna falta de decisão A sociedade certamente não compelia os judeus a se decidirem pois era precisamente essa ambigüidade de situação e de caráter que tornava atraente a relação com os judeus Assim a maioria dos judeus assimilados vivia num luscofusco de ventura e desventura só sabendo com certeza que tanto o sucesso como o fracasso estavam inerentemente ligados ao fato de que eram judeus Para eles a questão judaica havia perdido todo significado político mas obcecava suas vidas pessoais e influenciava suas decisões com redobrada tirania O 28 Foi assim que Karl Kraus definiu o problema por volta de 1912 Ver Untergang der Welt durch schwarze Magie O declínio do mundo pela magia negra 1922 89 adágio ser homem na rua e judeu em casa tornavase amarga realidade porque se os problemas políticos dificultavam ao judeu abandonar seu judaísmo no ambiente geral para ser um homem afastado do seu judaísmo o pesado fardo de problemas nãoresolvidos por exemplo na questão dos casamentos mistos dificultava muitas vezes o ser judeu em casa sem abdicar de ser homem simplesmente Assim as leis imprevisíveis da paixão e não as da política pareciam conduzir e até governar a vida dos judeus Não era fácil deixar de se assemelhar ao judeu e permanecer judeu fingir não ser como os judeus e contudo demonstrar com suficiente clareza a sua judeidade Apesar disso enquanto o mundo se mantinha em equilíbrio de paz essa atitude não funcionou mal e durante gerações chegou a constituir o modus vivendi dos judeus O fato de concentrarse em sua vida interior artificialmente complicada até ajudou o judeu a atender às exigências da sociedade mesmo que desprovidas de sentido e a parecer estranho e excitante a adquirir certa facilidade de expressão e apresentação originalmente atributos do ator e do virtuoso gente que a sociedade sempre em parte recusava e em parte admirava Os judeus assimilados meio orgulhosos e meio envergonhados de sua qualidade de judeus enquadravamse claramente nessa categoria O processo pelo qual a sociedade burguesa surgiu das ruínas de suas tradições e das lembranças revolucionárias envolveu com tédio a saturação econômica e a indiferença geral quanto às questões políticas Os judeus tornaramse pessoas com quem se esperava poder passar o tempo de modo diferente Quanto menos se pensava neles como iguais mais atraentes e mais interessantes se tornavam A sociedade burguesa em sua busca de entretenimento e em seu apaixonado interesse pelo indivíduo que diferisse das normas descobriu a atração por tudo que podia ser julgado misterioso perverso ou secretamente mau E foi precisamente esse febril e doentio interesse que abriu a porta da sociedade aos judeus pois dentro do cenário dessa sociedade a condição de judeu após haver sido distorcida tornandose qualidade psicológica podia ser facilmente vista como qualidade de perversão quase um vício A genuína tolerância e curiosidade que a Era do Esclarecimento sentia em relação a tudo o que era humano cedia lugar a mórbido desejo pelo que era exótico anormal e diferente Vários tipos na sociedade um após o outro representaram o exótico o anômalo e o diferente mas nenhum deles tinha a menor relação com questões políticas Desse modo só o papel dos judeus na sociedade decadente podia assumir uma estatura que transcendesse os estreitos limites de um caso social Antes de examinarmos os estranhos caminhos que levaram os judeusexceção aos salões do Faubourg St Germain na Paris do findesiècle precisamos lembrar o único grande homem que a complicada burla dos judeusexceção jamais produziu Aparentemente toda idéia comum recebe uma chance de se encarnar em um homem e atingir por seu intermédio o que se costumava chamar de grandeza histórica O grande homem dos judeusexceção foi Benjamin Disraeli 90 2 O PODEROSO MÁGICO Benjamin Disraeli cujo principal interesse na vida era a carreira de lorde Beaconsfield distinguiase por duas coisas primeiro pelo dom dos deuses que nós chamamos banalmente de sorte mas que em outras épocas era reverenciado como sendo da deusa chamada Fortuna e segundo pela despreocupada inocência de espírito e inconsciente imaginação tão intimamente relacionada com a Fortuna que na realidade nem sequer é possível classificálo como carreirista embora ele jamais pensasse seriamente em outra coisa que não fosse a sua carreira Sua inocência fêlo reconhecer quão insensato seria sentirse declassé e como seria mais excitante e mais útil para sua carreira acentuar o fato de que era judeu vestindose de modo diferente penteando o cabelo de modo estranho e através de maneirismos esquisitos de expressão e palavreado30 Desejava ser admitido na alta e na altíssima sociedade mais apaixonadamente e mais despudoradamente do que qualquer outro judeu intelectual mas foi o único que descobriu o segredo de como preservar a sorte esse milagre natural da marginalidade e que soube desde o início que um homem nunca deve curvarse para elevarse mais alto Jogava o jogo da política como um ator num palco e representava tão bem o seu papel que chegou a acreditar em seu próprio fazdeconta Sua vida e sua carreira pareciam uma história de fadas na qual era um príncipe que oferecia a flor azul dos românticos então prímula da Inglaterra imperialista à sua princesa rainha da Inglaterra As colônias britânicas eram o país encantado sobre o qual o sol nunca se punha e sua capital era a misteriosa Délhi asiática para onde o príncipe queria fugir com sua princesa da Londres nevoenta e prosaica Isso pode ter sido tolice e infantilidade mas quando uma esposa escreve para seu marido como escreveu lady Beaconsfield você sabe que se casou comigo por dinheiro mas eu sei que se você tivesse de fazêlo de novo fáloia por amor31 é preciso silenciar diante da felicidade que contraria todas as regras Eis aqui um homem que começou vendendo a alma ao diabo mas o diabo não quis a alma e os deuses lhe deram toda a felicidade do mundo Disraeli provinha de uma família inteiramente assimilada seu pai um cavalheiro culto batizou o filho porque desejava que ele tivesse todas as oportunidades dos mortais comuns Tinha poucas ligações com a sociedade judaica e nada sabia da religião ou dos costumes judaicos Desde o início seu judaísmo era apenas uma questão de origem que ele tinha a liberdade de embelezar sem os impedimentos do conhecimento de causa Encarou esse fato de modo semelhante ao de um gentio percebeu mais claramente que os outros judeus que ser judeu tanto podia ser uma desvantagem como uma oportunidade E como 29 Este titulo é extraído do ensaio sobre Disraeli de autoria de sir John Skleton 1867 Ver W F Monypenny e G E Buckle The life of Benjamin Disraeli Earl of Beaconsfield Nova York 1929 II pp 2923 30 Morris S Lazaron SeedofAbraham Nova York 1930 pp 260ss 31 Horace B Samuel The psychology of Disraeli em Modernities Londres 1914 91 ao contrário do seu pai modesto e simples o que ele menos desejava era tornarse um mortal comum e o que mais desejava era distinguirse acima de todos os contemporâneos32 começou a cultivar a pele cor de oliva e os olhos negros como carvão até que ostentando a poderosa cúpula da sua testa que certamente não era de um templo cristão passou a ser diferente de qualquer ser vivo que se conhecia33 Sabia instintivamente que seu sucesso dependia da capacidade com que conseguiria traçar a divisão entre si e os simples mortais exagerando conscientemente a sua afortunada estranhice Tudo isso demonstra uma singular compreensão da sociedade e de suas regras Ê significativo que Disraeli tenha dito O que para muitos é crime só para poucos pode ser apenas vício34 frase que revela a profunda intuição do princípio que norteou o lento declínio da sociedade do século XIX em direção ao abismo no qual prevaleceriam as normas da moral da ralé e do submundo Por conhecer essa regra sabia que em lugar algum os judeus poderiam ter chances melhores do que nos círculos que pretendendo ser exclusivos discriminavam contra eles pois se esses círculos assemelhandose nisso à multidão consideravam o fato de ser judeu um crime poderiam para se diferenciar das massas transformar a qualquer momento esse crime num vício atraente O exotismo o alienismo o mistério a mágica e o poder advindo de supostas fontes secretas que Disraeli demonstrava dominar tinham como alvo certo essa atitude da sociedade Seu virtuosismo no jogo social levouo a filiarse ao Partido Conservador daí conquistou uma cadeira no Parlamento o posto de primeiroministro e por fim o que não era menos importante a duradoura admiração da sociedade e a amizade da rainha Uma das razões do seu sucesso era a sinceridade do seu jogo A impressão que ele causava beirava entre curiosa mistura de representação teatral e a absoluta sinceridade e total espontaneidade35 Isso só podia ser fruto de genuína inocência devida em parte à educação desprovida de qualquer influência judaica específica36 Mas a consciência limpa de Disraeli era também devida ao fato de que ele havia nascido inglês A Inglaterra não conhecia as massas judaicas nem a pobreza judaica pois aceitou o regresso dos judeus às suas terras séculos após sua expulsão na Idade Média os judeus portugueses que se estabeleceram na Inglaterra no século XVIII eram ricos e cultos Foi somente no fim do século XIX quando os pogroms da Rússia provocaram amplo movimento 32 J A Froude encerra sua biografia Lord Beaconsfield 1890 com estas palavras O objetivo com o qual iniciou a vida era distinguirse acima de todos os seus contemporâneos e por mais fantástica que essa ambição possa ter parecido terminou por ganhar a aposta pela qual jogara com tanta bravura 33 SírJohnSkleton op cit 34 Em seu romance Tancred 1847 35 Sir John Skleton o cit 36 O próprio Disraeli conta Não fui criado entre os da minha raça fui educado isto sim dentro de ambiente de forte preconceito contra eles Para seus antecedentes familiares ver especialmente Joseph Caro Benjamin Disraeli Juden und Judentum B D judeus e judaísmo em Monatsschriftfür Geschichte und Wissenschaft des Judentums 1932 92 migratório de judeus que a pobreza dos judeus fezse presente em Londres e com ela a diferença entre as massas judaicas estrangeiras e estranhas e seus correligionários abastados e nativos No tempo de Disraeli desconheciase na Inglaterra a questão judaica em sua forma continental porque ali viviam somente os judeus aceitos pelo Estado Em outras palavras os judeusexceção ingleses não tinham consciência de que eram exceções como seus irmãos do continente Quando Disraeli escarnecia da perniciosa doutrina dos tempos modernos a igualdade natural dos homens37 seguia conscientemente os passos de Burke que havia preferido os direitos de um inglês aos Direitos do Homem mas desconhecia a situação real em que os direitos de todos haviam sido substituídos pelos privilégios de alguns Ignorava de tal modo as verdadeiras condições que prevaleciam entre o povo judeu e estava tão convencido da influência da raça judia nas comunidades modernas que exigia abertamente que os judeus recebessem toda a honraria e favor das raças nórdicas e ocidentais honraria que nas nações refinadas e civilizadas merecem aqueles que encantam o gosto público e elevam o sentimento do povo38 Como a influência política dos judeus na Inglaterra girava em torno do ramo inglês dos Rothschild sentiase orgulhoso pela ajuda dos Rothschild na derrota de Napoleão e não via motivo por que não devesse ser franco em suas opiniões políticas como judeu39 Por ser batizado não chegou jamais a ser naturalmente um portavoz oficial da comunidade judaica mas não deixa de ser verdadeiro que foi o único judeu de sua espécie e do seu século que tentou representar o povo judeu politicamente e da melhor forma que podia Disraeli que nunca negou que o fato fundamental a seu respeito é que ele era judeu40 sentia por todas as coisas judaicas uma admiração somente igualada por sua ignorância a respeito delas No entanto a mistura de orgulho e ignorância nesses assuntos era característica de todos os judeus recémassimilados A grande diferença é que Disraeli conhecia ainda menos do passado e do presente judaicos e portanto ousava dizer abertamente aquilo que outros apenas deixavam perceber na penumbra semiconsciente de padrões de conduta ditados pelo medo e pela arrogância Foi mais séria a conseqüência política da capacidade de Disraeli de comparar as possibilidades judaicas às aspirações políticas de um povo normal quase automaticamente fez vir à luz o conjunto de teorias quanto à influência e à organização judaicas que geralmente se encontram nos piores compêndios antisemitas Em primeiro lugar ele realmente acreditava ser o homem escolhido da raça escolhida41 Que melhor prova podia existir que sua própria carreira Um judeu sem nome nem fortuna ajudado apenas por alguns banqueiros judeus havia sido levado à posição de primeiro homem da Inglaterra 37 Lord George Bentinck A political biography Londres 1852 p 496 38 Ibid p 491 39 íi pp497ss 40 Monypenny e Buckle op cit p 1507 41 Horace S Samuel op cit 93 um dos homens menos simpáticos aos olhos do Parlamento tornavase primeiroministro e granjeava popularidade genuína entre aqueles que durante muito tempo o haviam visto como charlatão e tratado como pária42 O sucesso político porém nunca o satisfez Era difícil e mais importante ser aceito pela sociedade londrina do que conquistar a Câmara dos Comuns e era certamente um triunfo maior ser eleito membro do clube Grillions um círculo seleto de onde costumavam sair políticos ascendentes de ambos os partidos mas do qual eram rigorosamente excluídos os socialmente censuráveis43 do que ser ministro de sua Majestade A culminância deliciosamente inesperada de todos esses doces triunfos foi a amizade sincera da rainha pois se a monarquia na Inglaterra havia perdido a maior parte de suas prerrogativas políticas num Estadonação estritamente controlado e constitucional ela reteve a primazia absoluta na sociedade inglesa Ao medirmos a grandeza do triunfo de Disraeli devemos lembrar que lorde Robert Cecil um dos seus eminentes colegas no Partido Conservador podia ainda por volta de 1850 justificar um ataque particularmente violento ao afirmar que estava apenas dizendo o que todo mundo diz de Disraeli à boca pequena e ninguém diz em público44 A maior vitória de Disraeli estava exatamente no fato de que afinal ninguém dizia à boca pequena coisa alguma que não o houvesse lisonjeado ou gratificado se fosse dita em público Foi precisamente essa singular conquista da popularidade genuína que Disraeli conseguiu através de sua política de ver apenas as vantagens e pregar apenas os privilégios de ter nascido judeu Encarnação viva da ambição e da poderosa paixão Disraeli foi sempre capaz de se adaptar à sua época que aparentemente não admitia distinções nem diferenças Carlyle que interpretava a história do mundo segundo um ideal de herói do século XIX estava errado quando recusou um título das mãos de Disraeli45 Nenhum outro contemporâneo seu correspondia melhor aos heróis que ele mesmo idealizara do que Disraeli com sua noção da grandeza e autoconfiança nenhum outro homem satisfazia de modo tão exato as exigências do século XIX carente de gênio corporificado do que esse charlatão que levava a sério a sua função e representava o papel do Grande Homem com ingenuidade e assombrosa exibição de truques fantásticos e profissionalismo artístico Os políticos apaixonaramse pelo charlatão que transformava tediosas transações de negócios em sonhos de sabor oriental e quando a sociedade farejou um cheiro de magia negra nas espertas manobras de Disraeli o poderoso mágico já havia realmente conquistado os corações dos homens de sua época A ambição de Disraeli de distinguirse dos outros mortais e seu pendor pela sociedade aristocrática eram típicos das classes médias do seu tempo e do 42 Monypenny e Buckle op cit p 147 43 Ibid 44 O artigo de Robert Cecil foi publicado no Quarterly Review o mais prestigioso órgào do Partido Conservador Ver Monypenny e Buckle op cit pp 1922 45 Isso aconteceu em 1874 Dizse que Carlyle chamou Disraeli de judeu maldito o pior homem que já existiu ver Caro op cit 94 seu país Não foi por motivos políticos nem razões econômicas mas sim pelo ímpeto de sua ambição social que ele aderiu ao Partido Conservador46 Quando Disraeli evocou o orgulho racial para enfrentar o orgulho de casta47 sabia que a posição social dos judeus a despeito de qualquer outro comentário dependia unicamente do nascimento e não de suas realizações Disraeli foi adiante Sabia que a aristocracia que ano após ano tinha testemunhado os homens ricos da classe média comprarem títulos de nobreza externava sérias dúvidas quanto ao valor de tais títulos Assim usando a imaginação decidiu derrotar os aristocratas usando o jogo que impunham Afirmou que os ingleses descendiam de uma raça arrivista e híbrida enquanto ele próprio advinha do mais puro sangue da Europa que a vida de um nobre inglês era regulamentada principalmente por leis árabes e costumes sírios e que uma judia é a Rainha dos Céus48 Mas quando escreveu que não existia mais aristocracia na Inglaterra pois sua qualidade essencial é a superioridade do homemanimal49 tocou no ponto mais sensível das teorias já então em voga entre os aristocratas e que iriam constituir mais tarde o ponto de partida para a disseminação da ideologia racial entre a burguesia e a ralé O judaísmo e o fato de fazer parte do povo judeu tornouse entre os judeus assimilados mera questão de nascimento Antes a religião específica a nacionalidade específica e a manutenção de tradições compartilhadas agrupavam os judeus ao redor de certas vantagens econômicas peculiares A intelectualização e a assimilação dos judeus haviam secularizado de tal forma a consciência e a interpretação de si mesmos que nada restava das velhas lembranças e esperanças senão um vago sentimento de pertencerem a um povo escolhido Disraeli embora certamente não fosse o único judeuexceção que acreditava na sua qualidade de escolhido sem acreditar no Deus de quem partira a escolha e de quem poderia partir a rejeição elaborou uma doutrina racial a partir desse tolo conceito de missão histórica Afirmava que o princípio semita representa tudo o que é espiritual em nossa natureza que as vicissitudes da história encontraram na raça a sua solução principal que só existe uma aristocracia a aristocracia da natureza a qual consiste em raça pura primorosamente organizada50 É óbvia a relação entre essas afirmativas e as ideologias raciais modernas a formulação de Disraeli apenas comprova como elas servem para combater os sentimentos de inferioridade social Pois se é verdade que as doutrinas raciais foram engendradas para servir a fins sinistros de caráter político não é menos verdadeiro que só eram consideradas e aceitas pelo fato de que com seu apoio qualquer pessoa podia sentirse apenas pelo nascimento aristocrata dentro do grupo préescolhido pela ideologia como sendo o mais nobre 46 Segundo Lord Salisbury num artigo do Quarterly Review 1869 47 E T Raymond Disraeli the álién patriot Londres 1925 p 1 48 H B Samuel op cit Disraeli Tancred e Lord George Bentinck respectivamente 49 Em seu romance Coningsby 1844 50 Em suas obras Lord George Bentinck 1852 Endymion 1881 e Coningsby 1844 95 O fato de esses novos escolhidos não pertencerem à elite a um pequeno grupo seleto que afinal era um prérequisito inerente ao orgulho de um nobre mas que precisavam compartilhar a sua qualidade de escolhidos com a multidão crescente dos que aderiam à idéia não prejudicava essencialmente a doutrina pois aqueles que não pertenciam à raça escolhida aumentavam numericamente na mesma proporção rejeitados aprioristicamente pelos que se julgavam pertencentes a ela As doutrinas raciais de Disraeli resultavam não só de sua extraordinária percepção das regras da sociedade como também da secularização do judaísmo assimilado Os intelectuais judeus foram envolvidos no processo geral de secularização que no século XIX já havia perdido o encanto revolucionário da Era do Esclarecimento quando ainda perdurava a confiança da humanidade idealizada Esses intelectuais estavam também expostos às influências dos judeus reformistas que desejavam transformar a religião nacional em mera denominação religiosa Para atingir esse fim precisavam transformar os dois elementos básicos da fé judaica a esperança num Messias e a crença na eleição de Israel e eliminar das orações as visões de uma restauração do Sião Sem a esperança messiânica a idéia do povo escolhido significava eterna segregação sem a fé na escolha que dava a um povo específico a responsabilidade da redenção do mundo a esperança de um Messias diluíase na incerta névoa da filantropia e do universalismo tão característicos do empenho político especificamente judeu Como resultado transcendental da secularização dos judeus separouse do conceito de povo escolhido a esperança num Messias embora na religião judaica a conjugação desses dois elementos forme um só plano de redenção concebido por Deus para a humanidade Da esperança messiânica advinha a inclinação judaica por soluções idealizadas de problemas políticos que visariam ao estabelecimento de um paraíso na terra Da crença na escolha do povo por Deus advinha a fantástica ilusão compartilhada por judeus e nãojudeus de que os judeus são por natureza mais inteligentes melhores e mais aptos a sobrevjver promotores da história o sal da terra Assim certo de terse libertado dos laços e preconceitos nacionais o intelectual judeu ao sonhar com um paraíso na terra estava na verdade mais longe da realidade política do que seus pais que ao rezarem pela vinda do Messias pelo menos esperavam pelo retorno de seu povo à Judéia Por outro lado os assimilacionistas embora desprovidos da entusiástica esperança messiânica estavam persuadidos de que como judeus eram o sal da terra mas separandose das nações por essa profana presunção afastavamse delas mais do que seus pais que aceitavam a separação de Israel dos gentios pelo muro da Lei o qual todavia segundo a crença mística viria a ser destruído após a vinda do Messias Assim os judeusexceção chegaram a se julgar por demais esclarecidos para continuarem a crer em Deus e em virtude de sua excepcional posição em toda parte supersticiosos em demasia para abandonar a autoconfiança Esse conjunto de fatores corroía Lei segundo o conceito ortodoxo judaico é o conjunto normativo do Pentateuco destinado até a vinda do Messias tãosó aos judeus N E 96 os fortes laços de piedosa esperança que até então ainda uniam Israel ao resto da humanidade Assim a secularização produziu o paradoxo decisivo para a formação da psicologia do judeu moderno tendo transformado a religião nacional essência do grupo em formal denominação confessional e eliminando a consciência nacional ao substituir o ambíguo desejo de Estado e Sociedade próprios por não menos ambíguos engenhos e truques psicológicos a secularização engendrou o chauvinismo judeu entendendose por chauvinismo o nacionalismo pervertido no qual nas palavras tiradas de Chesterton o próprio indivíduo deve ser adorado como reflexo do grupo ao qual pertence tornandose o seu próprio ideal e até o seu próprio ídolo O antigo conceito religioso de escolha divina deixou de ser a essência do judaísmo tornandose em vez disso a essência distintiva da qualidade de ser judeu Esse paradoxo encontrou sua mais fascinante encarnação em Disraeli Disraeli era imperialista inglês e chauvinista judeu mas é fácil perdoar um chauvinismo que era um jogo da imaginação porque afinal de contas a Inglaterra era a Israel de sua imaginação51 e também não é difícil perdoar seu imperialismo inglês que tinha pouco em comum com a obstinada compulsão de expandirse por amor à expansão porque afinal de contas ele nunca foi um inglês completo e se orgulhava disso52 Todas essas curiosas contradições que indicam tão claramente que o poderoso mágico nunca se levou muito a sério e sempre representou um papel para conquistar a sociedade e granjear popularidade constituem um singular encanto dão a todos os seus pronunciamentos um quê de sonho e de entusiasmo charlatão que o torna completamente diferente dos seus seguidores imperialistas Teve sorte de alimentar seus sonhos e representar seu papel na época em que os negociantes ainda não haviam decidido realizar a idéia imperial e até se opunham às aventuras coloniais Sua supersticiosa crença em sangue e raça à qual ele acrescentava velhas credulidades populares e românticas acerca da ligação supranacional entre ouro e sangue ainda não engendrava suspeitas de possíveis massacres ocorressem eles na Ãfrica na Ãsia ou na Europa fossem quem fossem suas vítimas Começou sua carreira como um escritor não muito dotado e manteve sempre o papel de intelectual a quem o acaso fez membro do Parlamento líder do seu partido primeiroministro e amigo da rainha Vitória A noção que Disraeli tinha do papel dos judeus na política data da época em que era ainda simples escritor e não havia iniciado carreira política Suas idéias a respeito não eram portanto resultado da experiência própria mas atevese a elas com notável tenacidade durante toda a sua vida Em seu primeiro romance Alroy 1833 Disraeli elaborou o plano de um Império Judeu no qual os judeus reinariam como uma classe estritamente delimitada e separada O romance mostra a influência das ilusões reinantes na época a respeito das possibilidades de poder dos judeus bem como a ignorância 51 Sir John Skleton op cit 52 Horace B Samuel op cit 97 do jovem autor quanto às verdadeiras condições de poder no seu tempo Onze anos mais tarde a experiência política no Parlamento e as relações com homens eminentes haviam ensinado a Disraeli que os objetivos dos judeus quaisquer que tenham sido antes e depois estavam na sua época muito longe da afirmação da nacionalidade política sob qualquer forma53 Noutro romance Coningsby ele já abandonou o sonho de um Império Judeu e revelou um plano fantástico segundo o qual o dinheiro judeu domina a ascensão e a queda de cortes e de impérios e reina de modo supremo na diplomacia Nunca mais ele abandonou essa segunda noção de uma secreta e misteriosa influência dos homens escolhidos da raça escolhida que substituiu seu sonho anterior de misteriosa casta dominante abertamente constituída Essa idéia tornouse o pivô de sua filosofia política Em contraste com os seus mui admirados banqueiros judeus que concediam empréstimos aos governos e recebiam comissões Disraeli com a incompreensão de leigo não entendia como tais possibilidades de poder fossem manuseadas por pessoas desprovidas da ambição do poder e não compreendia que um banqueiro judeu estivesse ainda menos interessado em política do que seus colegas nãojudeus pelo menos para Disraeli era natural que a riqueza judaica servisse de instrumento para a política judaica Quanto mais vinha a saber da eficaz organização dos banqueiros judeus em questões de negócios e de sua troca internacional de notícias e informações mais se convencia de que se tratava de algo como uma sociedade secreta que sem que ninguém o soubesse tinha nas mãos os destinos do mundo A crença na conspiração alimentada por uma sociedade secreta alcançou a maior força propagandística na publicidade antisemita ultrapassando em importância as tradicionais superstições a respeito de assassinatos rituais e envenenamento de poços supostamente cometidos pelos judeus É altamente significativo que Disraeli para fins exatamente opostos e numa época em que ninguém pensava seriamente em sociedades secretas houvesse chegado a conclusões idênticas pois mostra claramente o quanto essas invenções foram devidas a motivos e ressentimentos sociais e até que ponto explicavam mais facilmente do que a verdade as atividades econômicas e políticas Aos olhos de Disraeli como aos olhos de muitos outros charlatães menos conhecidos e famosos depois dele todo o jogo político era travado entre sociedades secretas Não apenas os judeus mas qualquer outro grupo cuja influência não fosse politicamente organizada ou que estivesse em oposição ao sistema social e político eram para ele forças ocultas que agiam nos bastidores Em 1863 julgou assistir a uma luta entre as sociedades secretas e os milionários europeus até agora quem ganhou foi Rothschild54 Mas dizia também que a igualdade natural dos homens e a supressão da propriedade são proclamadas pelas sociedades secretas55 ainda em 1870 falava com seriedade das forças subterrâneas e acreditava sinceramente que sociedades secretas com suas ligações interna 53 Monypenny e Buckle op cit p 882 54 Ibid p 73 Numa carta à sra Brydges Williams de 21 de julho de 1863 55 Lord George Bentinck p 497 98 cionais e a Igreja de Roma usando de suas pretensões e métodos bem como o eterno conflito entre a ciência e a fé determinavam o curso da história humana56 A inacreditável ingenuidade de Disraeli faziao ligar todas essas forças secretas aos judeus Os primeiros jesuítas foram judeus aquela misteriosa diplomacia russa que tanto alarma a Europa ocidental é organizada e principalmente executada por judeus essa poderosa revolução que se prepara neste instante na Alemanha e que será de fato uma segunda e maior Reforma está sendo elaborada inteiramente sob os auspícios dos judeus homens de raça judia estão à frente de cada um dos grupos comunistas e socialistas O povo de Deus coopera com ateus os mais hábeis acumuladores de propriedade se aliam aos comunistas a raça singular e escolhida dá mãos à escória e às castas inferiores da Europa E tudo porque desejam destruir esse cristianismo ingrato que lhes deve até o nome e cuja tirania não podem mais suportar57 Na imaginação de Disraeli o mundo se havia subrepticiamente tornado judeu Nessa singular fantasia acabou sendo traçado até mesmo o mais engenhoso dos truques publicitários de Hitler a aliança secreta entre o judeu capitalista e o judeu socialista Por mais imaginária que fosse essa idéia não se pode negar que ela tinha sua lógica Ao partir da premissa como o era a de Disraeli de que milionários judeus eram arquitetos da política judaica ao levarse em conta os insultos que os judeus haviam recebido durante séculos que por mais reais que fossem não deixaram de ser exagerados pela propaganda de apologia dos judeus ao observar os casos não muito raros da ascensão de filhos milionários judeus à liderança de movimentos dos trabalhadores ao verificar a forte interligação existente entre as famílias judaicas não parecia tão inviável a ponto de chegar a ser rejeitada a imagem oferecida por Disraeli retomada por vários antisemitas no futuro de calculada vingança dos judeus contra os povos cristãos Na verdade os filhos dos milionários judeus se inclinavam para os movimentos de esquerda precisamente porque lhes faltava aquela consciência de classe peculiar no filho de um burguês comum exatamente como pelas mesmas razões os trabalhadores não alimentavam aqueles sentimentos antisemitas declarados ou não que sentiam as outras classes Assim os movimentos de esquerda em diversos países passaram a oferecer aos judeus as únicas possibilidades reais de assimilação genuína A persistente propensão de Disraeli a explicar a política em termos de sociedades secretas baseavase em experiências que mais tarde convenceram muitos outros intelectuais europeus de menor importância Sua experiência era esta era muito mais difícil penetrar na sociedade inglesa do que obter um lugar no Parlamento A sociedade inglesa do seu tempo reuniase em clubes elegantes que independiam de diferenças partidárias Os clubes embora fossem extremamente importantes na formação de elite política escapavam ao controle público Para quem estivesse de fora deviam ter parecido realmente muito 56 Em seu romance Lothair 1870 57 Lord George Bentinck id 99 misteriosos Eram secretos no sentido de que poucos lhes tinham acesso Tornavamse misteriosos na medida em que membros de outras classes que pediam admissão eram recusados após uma pletora de dificuldades incalculáveis imprevisíveis e aparentemente irracionais Nenhuma honraria política podia igualarse aos triunfos decorrentes daquela associação íntima com os privilegiados E mesmo no fim da vida as ambições de Disraeli nada pareciam sofrer embora ele experimentasse várias derrotas políticas já que permanecia sendo a mais importante figura da sociedade londrina58 Em sua ingênua certeza da suprema importância das sociedades secretas Disraeli foi precursor das camadas sociais que nascidas à margem da estrutura da sociedade jamais puderam compreender devidamente as suas normas e se encontravam no estado de coisas em que se confundiam as distinções entre sociedade e política mas onde a despeito de condições aparentemente caóticas saía sempre vitorioso o estreito interesse de classe Qualquer pessoa só podia concluir que era preciso uma instituição estar conscientemente estabelecida e ter objetivos definidos para ser responsável por tão notáveis resultados De fato nesse jogo bastava resoluta vontade política para dar uma imagem estereotipada do semiconsciente manuseio de interesses e maquinações basicamente sem propósito Foi o que ocorreu por um breve período na França durante o Caso Dreyfus e depois na Alemanha durante a década que precedeu a subida de Hitler ao poder Disraeli contudo situavase não só fora da sociedade inglesa mas também fora da sociedade judaica Pouco sabia da mentalidade dos banqueiros judeus que tanto admirava e teria ficado muito desapontado se houvesse compreendido que esses judeusexceção a despeito de serem excluídos da sociedade burguesa à qual nunca realmente procuraram ser admitidos compartilhavam o seu próprio princípio político de que a atividade política gira em torno da proteção da propriedade e dos lucros Disraeli via apenas um grupo sem nenhuma organização política aparente cujos membros permaneciam unidos por um número supostamente infinito de ligações familiares e comerciais e isso o impressionava Sua imaginação punhase a trabalhar sempre que tinha de lidar com eles e encontrava prova para tudo Não era difícil as ações do canal de Suez foram oferecidas ao governo inglês graças às informações de Henry Oppenheim que havia tomado conhecimento de que o quediva do Egito estava ansioso por vendêlas e a venda foi realizada com o auxílio de um empréstimo de 4 milhões de libras esterlinas concedidas por Lionel Rothschild 58 Monypenny e Buckle op cit p 1470 Essa excelente biografia avalia corretamente o triunfo de Disraeli Após ter citado In memoriam canto 64 de Tennyson continua assim Num particular o sucesso de Disraeli foi mais extraordinário do que sugerem os versos de Tennyson não apenas galgou a escada social até o topo e deu forma aos segredos do trono conquistou também a sociedade Dominou os banquetes e o que chamaríamos de salões de Mayfair e o sucesso social o que quer que pensem os filósofos do seu valor intrínseco certamente não foi menos difícil para um estranho menosprezado do que o sucesso político e foi talvez mais doce ao seu paladarp 1506 100 As convicções raciais de Disraeli e suas teorias a respeito de sociedades secretas originavamse em última análise do desejo de explicar algo aparentemente misterioso e de fato quimérico Não podia transformar o quimérico poder dos judeusexceção numa realidade política mas podia ajudar e ajudou a transformar a quimera em temor público e a divertir uma sociedade entediada com histórias da carochinha extremamente perigosas Com a consistência da maioria dos racistas fanáticos Disraeli mencionava sempre com desprezo o moderno princípio de nacionalidade novidadeiro e sentimental59 Detestava a igualdade política sobre a qual se assentava o Estadonação e temia pela sobrevivência dos judeus nessas condições Imaginava que só a raça poderia prover um refúgio social e político contra a equalização Como conhecia a nobreza do seu tempo muito melhor do que jamais veio a conhecer o povo judeu não é surpreendente que tenha moldado o conceito de raça à feição de conceitos da aristocracia Sem dúvida esses conceitos provindo dos socialmente subprivilegiados teriam tido pouca importância na política européia se não correspondessem a necessidades políticas reais quando após a corrida para a Ãfrica puderam ser adaptados a fins políticos Esse desejo de acreditar por parte da sociedade burguesa nos ideais de Disraeli deulhe o quinhão de genuína popularidade No fim não foi por culpa sua que a mesma tendência responsável por sua singular boa sorte pessoal levasse o seu povo à catástrofe 3 ENTRE O VÍCIO E O CRIME Paris foi chamada com justiça Ia capitale du dixneuvième siècle Walter Benjamin Cheio de promessas o século XIX havia começado com a Revolução Francesa testemunhara durante mais de cem anos o esforço inútil para evitar que o cidadão degenerasse em burguês alcançou seu apogeu no Caso Dreyfus e mantevese ainda por catorze anos de trégua mórbida A Primeira Grande Guerra pôde ainda ser ganha pelo encanto jacobino de Clemenceau o último filho da Revolução Francesa mas o século de glórias da nation par excellence estava por terminar60 e Paris foi abandonada sem significação política e sem esplendor social à vanguarda intelectual de todos os países A França desempenhou papel insignificante no século XX que começou após a morte de Disraeli com a corrida colonial para a Ãfrica numa competição pelo domínio imperialista da Europa O declínio da França portanto motivado em parte pela vitoriosa expansão econômica das outras nações e em parte por desintegração interna pôde assumir formas e seguir leis inerentes ao Estadonação 59 Ibidvo I livro 3 60 Yves Simon La grande crise de Ia Republique Française Montreal 1941 p 20 O espírito da Revolução Francesa sobreviveu à derrota de Napoleão por mais de um século Venceu mas apenas para desaparecer sem ser notado no dia 11 de novembro de 1918 A Revolução Francesa Suas datas deveriam ser fixadas em 17891918 101 O que ocorreu na França nos anos 80 e 90 aconteceria trinta a quarenta anos depois em todos os Estadosnações da Europa A despeito das distâncias cronológicas e étnicas a república alemã de Weimar e a austríaca tinham historicamente muito em comum com a Terceira República da França e certos padrões políticos e sociais na Alemanha e na Áustria dos anos 20 e 30 pareciam seguir quase conscientemente o modelo do findesiècle francês O antisemitismo do século XIX alcançou na França seu clímax e foi ali derrotado porque mantevese limitado à questão doméstica e nacional sem contato com correntes imperialistas Os traços principais desse tipo de antisemitismo reapareceram na Alemanha e na Áustria após a Primeira Grande Guerra e seu efeito social sobre as respectivas comunidades judaicas foi menos agudo mas sujeito a outras influências61 Escolhemos os salões do Faubourg SaintGermain como exemplo do papel dos judeus na sociedade nãojudaica da França Quando Mareei Proust que era semijudeu e em situações de emergência estava sempre pronto a identificarse como judeu saiu em busca do tempo perdido escreveu realmente o que um dos seus críticos mais apologéticos chamou de uma apologia pro vita sua A vida daquele que foi o maior escritor da França do século XX foi vivida quase exclusivamente em sociedade os eventos se lhe afiguravam como eram refletidos pela sociedade de modo que os reflexos e as reconsiderações constituem a realidade específica e a textura do mundo de Proust62 Em toda a Busca do tempo perdido o indivíduo e suas reconsiderações pertencem à sociedade mesmo quando ele se retira para a solidão muda e incomunicativa na qual o próprio Proust finalmente desapareceu quando decidiu escrever sua obra Ali sua vida que ele insistia em transformar em experiência interior e todos os acontecimentos mundanos tornaramse espelho em cujo reflexo surgia a única verdade O contemplador da experiência interna assemelhase ao observador que percebe a realidade somente quando esta é refletida Na verdade não existe melhor testemunho daquele período em que a sociedade se havia emancipado completamente dos interesses públicos e quando a própria política chegou a fazer parte da vida social A vitória dos valores burgueses sobre o senso de responsabilidade do cidadão significava a decomposição das questões políticas em fascinantes reflexos Proust era verdadeiro expoente dessa sociedade pois estava envolvido em dois vícios elegantes de que ele a maior testemunha do judaísmo desjudaizado63 era portador ao 61 O fato de certos fenômenos psicológicos não terem sido tão marcantes nos judeus alemães e austríacos provavelmente resulta em parte da profunda influência do movimento sionista sobre os intelectuais judeus O sionismo na década que se seguiu à Primeira Grande Guerra e mesmo na década que a antecedeu devia sua força menos à perspicácia política que à análise crítica de reações psicológicas e fatos sociológicos Sua influência era principalmente pedagógica e ia muito além do círculo relativamente pequeno dos membros do movimento sionista 62 Comparemse as interessantes observações sobre esse assunto feitas por Emmanuel Levinas em LAutre dans Proust noDeucalion n 2 1947 63 J E van Praag Mareei Proust témoin du Judaisme déjudaisé em Revue Juive de Genève 1937 ns 48 49 50 102 seu vício da homossexualidade juntava o vício de ser judeu Na análise social e na consideração individual ambos os vícios se assemelhavam64 Disraeli havia descoberto que o vício é apenas o reflexo aristocrático daquilo que quando é cometido entre as massas é crime A perversidade humana quando é aceita pela sociedade transformase e o ato deliberado assume as feições da qualidade psicológica inerente que o homem não pode escolher nem rejeitar que lhe é imposta de fora e que o domina de modo tão compulsivo como a droga domina o viciado Ao assimilar o crime e transformálo em vício a sociedade nega toda responsabilidade e estabelece um mundo de f atalidades no qual os homens se vêem enredados O julgamento que via no crime todo afastamento comportamental das normas espelhava pelo menos maior respeito pela dignidade humana Aceito o crime como espécie de fatalidade todos podem ser suspeitos de alguma inclinação por ele A punição é um direito do criminoso do qual ele é privado se nas palavras de Proust os juizes presumirem e estiverem inclinados a perdoar o assassínio nos homossexuais e a traição nos judeus por motivos devidos a suposta predestinação genética Mas num certo momento essa tolerância pode desaparecer substituída por uma decisão de liquidar não apenas os verdadeiros criminosos mas todos os que estão racialmente predestinados a cometer certos crimes o que pode ocorrer quando a máquina legal e política refletindo a sociedade vier a ser transformada pelos critérios sociais em leis a pregarem essa necessidade de libertação social do perigo em potencial Se for permitido estabelecer o código legal peculiar à aparente largueza de espírito que liberta o homem de responsabilidade pelo crime tornado igual ao vício ele será mais cruel e desumano do que as leis normativas mesmo que severas pois estas respeitam e reconhecem a responsabilidade do homem por sua conduta Contudo o Faubourg SaintGermain descrito por Proust estava ainda nos estágios iniciais desse desenvolvimento Proust descreve de que modo monsieur de Charlus tolerado a despeito do seu vício logo atingiu os cumes sociais graças ao seu encanto pessoal e nome tradicional Não mais precisava viver uma vida dupla e esconder suas dúbias amizades mas sim era até encorajado a trazêlas para as casas elegantes Certos tópicos de conversação que por medo de que alguém suspeitasse de sua anomalia ele antes teria evitado amor beleza ciúme eram agora avidamente recebidos em vista da experiência estranha secreta refinada e monstruosa sobre a qual ele baseava suas opiniões65 Algo muito semelhante aconteceu com os judeus As exceções individuais e os judeus enobrecidos haviam sido tolerados e até bem recebidos mesmo na sociedade do Segundo Império mas agora os judeus tornavamse cada vez Uma curiosa coincidência ou seria mais do que uma coincidência ocorre no filme Crossfire No Brasil Rancor que lida com a questão judaica A história foi tomada de The brickfoxhole de Richard Brooks em que o judeu assassinado de Crossfire era um homossexual 64 Para o texto que segue ver especialmente Sodome et Gomorrhe parte I 65 Sodome et Gomorrhe parte II capítulo iii 103 mais populares como tais Em ambos os casos a sociedade não modificava as suas idéias e preconceitos não se duvidava que os homossexuais eram criminosos nem que os judeus eram traidores apenas revisavase a atitude em relação ao crime e à traição em geral O que é perturbador no tocante a essa aparente largueza de espírito não está no fato de as pessoas não se horrorizarem diante da rejeição das normas mas que se tornavam indiferentes perante o crime A doença mais bem escamoteada do século XIX o tédio e o cansaço geral da burguesia havia eclodido como abcesso Ora os marginais e os párias a quem a sociedade recorria em busca do exótico fossem quem fossem jamais se deixavam dominar pelo tédio e se dermos crédito à opinião de Proust eram os únicos na sociedade do findesiècle ainda capazes de sentir e externar paixão Proust se encontra no labirinto das conexões e ambições sociais pela capacidade de amar de Charlus A paixão pervertida de monsieur de Charlus por Morei a devastadora lealdade do judeu Swann a sua cortesã o próprio ciúme desesperado do autor por Albertine que é no romance a própria personificação do vício deixam bem claro que Proust considerava os marginalizados e os arrivistas os habitantes de Sodoma e Gomorra não somente mais humanos mas também mais normais A diferença existente entre o Faubourg SaintGermain que havia descoberto a atração exercida pelos judeus e pelos homossexuais e a ralé que gritava morte aos judeus consistia no fato de que os salões ainda não se haviam associado abertamente ao crime Isso significava que por um lado ainda não desejavam participar ativamente na matança e por outro que ainda professavam antipatia pelos judeus e horror pelos sexualmente anormais Naquela situação equívoca os novos membros da sociedade não podiam ainda confessar abertamente a sua identidade mas tampouco podiam escondêla Tais foram as condições que advieram do complicado jogo de exibição e ocultamente de meias confissões e distorções mentirosas da humildade exagerada e da exagerada arrogância conseqüência do fato de que se a esotérica qualidade de ser judeu ou homossexual havia a ambos aberto as portas dos salões ao mesmo tempo tornava sua posição extremamente insegura Nessa situação equívoca a qualidade de judeu era para o judeu tanto uma mancha física como um misterioso privilégio pessoal ambos inerentes a uma predestinação racial Proust descreve longamente como a sociedade constantemente à espreita do estranho do exótico do perigoso finalmente identifica o refinado com o monstruoso e se prontifica a admitir monstruosidades reais ou imaginárias como a estranha e desconhecida peça russa ou japonesa representada por atores nativos66 A personagem pintada rechonchuda e apertada em seus botões lembra uma caixa de origem exótica e dúbia da qual escapa um curioso aroma de frutos de modo que só o pensamento de proválos já excita o coração67 O homem de gênio supõese transmitirá um senso de sobrena 66 lbid 67 lbid 104 tural e em torno dele a sociedade se reúne como em torno de távola giratória para aprender o segredo do Infinito68 Na atmosfera dessa necromancia um cavalheiro judeu ou uma senhora turca poderiam parecer como se fossem realmente criaturas invocadas pelo esforço de um médium69 Obviamente o papel do exótico do estranho e do monstruoso não podia ser representado por aqueles judeusexceção individuais que durante quase um século haviam sido admitidos e tolerados como arrivistas estrangeiros e de cuja amizade ninguém sonharia orgulharse70 Muito mais adequados eram naturalmente aqueles judeus que ninguém até então havia conhecido e que no estágio inicial de sua assimilação não eram identificados com a comunidade judaica nem eram seus representantes pois a identificação e certo grau de conhecimento teriam limitado severamente a imaginação e as expectativas da sociedade Aqueles que como Swann revelavam uma inata inclinação pela sociedade e pelo bom gosto em geral eram admitidos mais entusiasticamente aceitos porém eram aqueles que como Bloch pertenciam a uma família de pouca reputação e que tinham de suportar como no fundo do oceano a incalculável pressão do que lhes era imposto não apenas pelos cristãos mas por todas as camadas intermediárias de castas judaicas superiores à sua cada uma das quais esmagava com desprezo a que estava imediatamente abaixo A disposição da sociedade em receber o estranho e o viciado o mais estranho e o mais viciado possível pôs fim à ascensão de várias gerações em que os recémchegados tinham de cavar o seu caminho em direção ao ar livre erguendose de uma família judia à outra família judia71 Não foi por acidente que isso aconteceu pouco depois de a comunidade judaica nativa da França ter cedido ante a iniciativa e a falta de escrúpulos de alguns aventureiros judeus alemães demonstradas durante o escândalo do Panamá as exceções individuais com ou sem título nobiliárquico que ainda mais avidamente do que antes buscavam a sociedade de salões já antisemitas e monarquistas onde julgavam poder sonhar com os bons velhos tempos do Segundo Império encontravamse na mesma categoria daqueles judeus que eles próprios jamais convidariam para uma visita em sua casa Se a qualidade de ser judeu como a qualidade de ser exceção constituía a verdadeira razão para a aceitação dos judeus então preferiamse pelo menos aqueles que formavam claramente uma tropa sólida homogênea e completamente diferente das pessoas que a viam passar aqueles que ainda não haviam alcançado o mesmo estágio de assimilação dos seus irmãos arrivistas72 Embora Disraeli fosse um daqueles judeus que foram aceitos na sociedade por serem exceções sua autorepresentação secularizada de eleito prefigurou e esboçou as linhas ao longo das quais iria se dar a autointerpretação 68 Le côté de Guermantes parte I capítulo i 69 lbid 70 lbid 71 A Vombre des jeunesfilies enfleurs II Noms de pays le pays 72 lbid 105 judaica Se esta fantástica e crua como era não houvesse sido tão estranhamente semelhante ao que a sociedade esperava dos judeus eles jamais poderiam ter representado seu dúbio papel Não naturalmente que adotassem de maneira conspícua as convicções de Disraeli ou deliberadamente elaborassem aquela autointerpretação ainda tímida de seus predecessores prussianos do começo do século XIX a maioria deles tinha a sorte de ignorar toda a história judaica Mas onde quer que os judeus fossem educados secularizados e assimilados sob as condições ambíguas do Estado e sociedade na Europa central e ocidental perdiam aquela medida de responsabilidade política que sua origem implicava e que os judeus banqueiros ainda haviam sentido embora sob a forma de privilégio e domínio A origem judaica sem conotações religiosas e políticas tornouse por toda parte uma qualidade psicológica transformouse em qualidade de judeus e daí por diante podia ser considerada somente na categoria de virtude ou de vício Se é verdade que a qualidade de judeu não se podia ter pervertido em vício interessante sem um preconceito que a considerasse um crime também é verdade que tal perversão só foi possível graças àqueles judeus que a consideravam uma virtude inata Têmse acusado os judeus assimilados de se alienarem do judaísmo e freqüentemente se pensa no genocídio que os atingiu como um sofrimento tão horrível quanto insensato na medida em que foi desprovido até da antiga qualidade de martírio Esse argumento despreza o fato de que no que concerne aos velhos modos de crença e de vida a alienação era igualmente aparente nos países da Europa oriental Mas a noção costumeira de que os judeus da Europa ocidental eram desjudaizados é enganadora por outra razão O quadro pintado por Proust em contraste com as afirmações obviamente unilaterais do judaísmo oficial mostra que nunca o fato de se ter nascido judeu representou um papel tão decisivo na vida privada e na existência diária como entre os judeus assimilados O reformador judeu que transformou a religião nacional em denominação religiosa sabendo que a religião é um assunto privado o revolucionário judeu que fingia ser um cidadão do mundo para desfazerse da nacionalidade judaica o judeu educado que era um homem na rua e judeu em casa todos eles conseguiram converter uma qualidade nacional em assunto privado O resultado foi que suas vidas particulares suas decisões e sentimentos se tornaram centro de seu judaísmo E quanto mais o fato do nascimento judaico perdia seu significado religioso nacional e econômicosocial mais obcecante se tornava esse judaísmo os judeus se obcecavam por ele como se fosse um defeito ou uma qualidade física e se atinham a ele como há quem se atenha a um vício A disposição inata de Proust nada mais é senão uma obsessão pessoal e particular que era tão amplamente justificada por uma sociedade na qual o sucesso e o fracasso dependiam do fato de se ter nascido judeu Proust viu nela erradamente a predestinação racial porque apenas enxergou e descreveu seu aspecto social e seus efeitos sobre o indivíduo E é verdade que para o observador que a registrasse a conduta do grupo judaico mostrava a mesma obsessão que nos padrões de conduta adotavam os homossexuais 106 Ambos sentiamse superiores ou inferiores mas em ambos os casos orgulhosamente diferentes dos outros seres normais ambos acreditavam que a sua diferença era um fato natural adquirido por nascimento ambos estavam constantemente justificando não o que faziam mas o que eram e finalmente ambos hesitavam sempre entre a atitude de quem pede desculpas e a afirmação súbita e provocadora de quem se julga elite Como se a natureza houvesse congelado para sempre suas posições sociais nenhum dos dois podia sair do seu grupo e ingressar no outro Também outros membros da sociedade sentiam a necessidade de pertencer a um grupo a questão não é como era para Hamlet ser ou não ser mas sim pertencer ou não pertencer73 mas essa necessidade não era tão intensa Uma sociedade que já se desintegrava em pequenos grupos e não mais tolerava como indivíduos nem estranhos nem judeus nem homossexuais acolhendoos apenas em virtude das circunstâncias peculiares que permitiam essa aceitação parecia corporificar os sentimentos de clã Cada sociedade exige de seus membros uma certa dose de representação a capacidade de apresentar desempenhar interpretar aquilo que se realmente é Quando a sociedade se desintegra em grupos essa exigência não se aplica mais aos homens como indivíduos e sim como membros dos grupos A conduta passa então a ser controlada por exigências silenciosas e não por capacidades individuais exatamente do modo como o desempenho de um ator deve enquadrarse no conjunto de todos os outros papéis da peça Os salões do Faubourg SaintGermain enquadravamse nesse conjunto de grupos cada qual exibindo um padrão extremo de conduta O papel dos anormais sexuais era exibir sua anomalia o dos judeus era representar a magia negra o dos aristocratas era mostrar que não eram como pessoas comuns os burgueses A despeito do sentimento de clã era verdade que como observou Proust exceto em dias de catástrofe geral quando a maioria se agrupa em torno da vítima como os judeus se agruparam em torno de Dreyfus74 todos esses recémchegados evitavam relações com os outros membros de sua espécie Os sinais de distinção só sendo determinados pelo conjunto do grupo os judeus ou homossexuais sentiamse privados de sua distinção numa sociedade de judeus ou de homossexuais onde a condição de judeu ou de homossexual era a mais natural mais desinteressante e mais banal do mundo O mesmo contudo era também verdadeiro com relação àqueles que os acolhiam e que necessitavam de um conjunto de elementos em contraponto diante dos quais eles próprios pudessem ser diferentes os não aristocratas que admiravam os aristocratas como estes admiravam os judeus ou os homossexuais Embora esses grupos não tivessem nenhuma consistência própria dissolvendose logo que os membros de outros grupos se afastavam seus membros usavam de uma misteriosa linguagem de sinais como se necessitassem de algo estranho que os identificasse uns aos outros Proust trata com detalhes a importância desses sinais especialmente para os recémchegados Contudo ao con 73 Sodome et Gomorrhe parte II capítulo üi 74 Sodome et Gomorrhe parte I 107 trário dos homossexuais mestres em linguagem de sinais que pelo menos escondiam um segredo verdadeiro os judeus usavam essa linguagem apenas para criar a esperada atmosfera de mistério Seus sinais indicavam de modo misterioso e ridículo algo que todo o mundo sabia que no canto do salão da princesa de tal estava sentado outro judeu que não podia abertamente revelar sua identidade mas que sem essa qualidade no fundo desprovida de sentido nunca teria galgado aquele lugar Vale notar que a nova sociedade mista do fim do século XIX como os primeiros salões judeus de Berlim girava em torno da nobreza A essa altura a aristocracia havia perdido quase toda a sua avidez pela cultura e a curiosidade pelos novos espécimes da humanidade mas conservava ainda o velho desprezo pela sociedade burguesa Ansiava pela distinção social como resposta à igualdade política e à perda de posição e privilégios políticos que advieram com o estabelecimento da Terceira República Após a breve e artificial ascensão durante o Segundo Império a aristocracia francesa mantevese apenas às custas de sentimento de clã e de pálidas tentativas de reservar os mais altos postos do Exército para seus filhos Muito mais forte que a ambição política era o agressivo desdém pelos padrões da classe média que sem dúvida foi um dos principais motivos da aceitação de indivíduos e de grupos inteiros de pessoas que haviam pertencido a classes socialmente rejeitadas O mesmo motivo que havia levado os aristocratas prussianos a se reunirem socialmente com atores e judeus levou na França os invertidos ao prestígio social Por outro lado as classes médias não haviam adquirido a dignidade social embora houvessem entretanto galgado riqueza e poder A ausência de uma hierarquia política no Estadonação e a vitória da igualdade tornou a sociedade secretamente mais hierárquica à medida que se tornava externamente mais democrática75 Como os círculos sociais exclusivos do Faubourg SaintGermain encarnavam o princípio da hierarquia cada sociedade da França reproduzia as características mais ou menos modificadas mais ou menos em caricatura daquela sociedade do Faubourg SaintGermain que ela fingia às vezes desdenhar independentemente do status ou das idéias políticas de seus membros A sociedade aristocrática pertencia ao passado apenas na aparência na verdade permeava todo o corpo social e não apenas o povo e tinha suas ramificações não só na França assim impunha o tom e a letra da vida social elegante76 Quando Proust sentiu a necessidade de uma apologia pro vita sua e reanalisou a sua vida vivida em rodas dos aristocratas analisou a sociedade O aspecto principal do papel dos judeus nessa sociedade findesiècle foi paradoxal foi o anti semitismo do Caso Dreyfus que abriu aos judeus as portas da sociedade e foi o fim do Caso ou melhor a descoberta da inocência de Dreyfus que pôs um fim à sua glória social77 Em outras palavras não impor 75 Le côté de Guermantes parte II capítulo iii 76 Ramon Fernandez La vie sociale dans 1oeuvre de Mareei Proust em Les Cahiers Mareei Proust n 2 1927 XVI 77 Mas era o momento em que das conseqüências do Caso Dreyfus nascera um movimento antisemita paralelo a um movimento mais intenso de penetração dos israelitas na socie 108 tava o que os judeus pensassem de si mesmos ou de Dreyfus só podiam representar o papel que lhes fora ditado pela sociedade enquanto essa mesma sociedade estivesse convencida de que pertenciam a uma raça de traidores Quando se descobriu que o traidor era uma vítima assaz obtusa de uma conspiração ordinária e se provou a inocência dos judeus o interesse social pelos judeus murchou tão rapidamente quanto o antisemitismo político Os judeus passaram novamente a ser vistos como mortais comuns e retornaram à insignificância de onde haviam sido temporariamente guindados pelo suposto crime de um dos seus Imediatamente após a Primeira Grande Guerra os judeus da Alemanha e Áustria gozaram essencialmente do mesmo tipo de glória social embora sob circunstâncias muito mais severas Na época seu suposto crime era serem culpados da guerra crime que por não ser mais identificado como ato único de único indivíduo não podia ser negado de modo que o julgamento da ralé para a qual a condição de judeu já era um crime permaneceu inalterado e a sociedade pôde continuar até o fim a divertirse e sentirse fascinada com os judeus Se existe alguma verdade psicológica na teoria do bode expiatório ela está no efeito da atitude social em relação aos judeus pois quando a legislação antisemita forçou a sociedade a expulsar os judeus foi como se esses filosemitas tivessem de expurgarse de alguma depravação secreta limparse de algum estigma de que misteriosa e perversamente haviam gostado É certo que essa psicologia não chega a explicar por que esses admiradores dos judeus tornaramse finalmente seus verdugos e podese mesmo duvidar que estivessem entre os principais dirigentes das fábricas de morte embora seja espantosa a proporção das chamadas classes educadas entre aqueles que realmente assassinaram os judeus Mas explica a incrível deslealdade exatamente daquelas camadas da sociedade que mais intimamente haviam conhecido os judeus e que mais se haviam deleitado e encantado com seus amigos judeus Para os judeus a transformação do crime do judaísmo no vício elegante da condição de judeu era extremamente perigosa Os judeus haviam podido escapar do judaísmo para a conversão mas era impossível fugir da condição de judeu Além disso se um crime é punido com um castigo um vício só pode ser exterminado A interpretação dada pela sociedade ao fato de se nascer judeu e ao papel dos judeus na estrutura da vida social está intimamente ligada à catastrófica minuciosidade com que os mecanismos antisemitas puderam ser postos a funcionar O antisemitismo tinha suas raízes nessas condições sociais e não só nas circunstâncias políticas E embora o conceito de raça tivesse outros fins e funções mais imediatamente políticos sua aplicação à questão judaica em seu mais sinistro aspecto deveu muito do seu sucesso aos fenômenos e convicções sociais que virtualmente significavam o consentimento da opinião pública dade Não erravam os políticos ao pensarem que a descoberta do erro judiciário constituiria um golpe no antisemitismo Mas pelo menos provisoriamente um antisemitismo mundano seria assim ao inverso acrescido e exasperado Ver A fugitiva capítulo II 109 As forças decisórias nesse processo de levar os judeus ao centro da tempestade de acontecimentos eram indubitavelmente políticas mas as reações da sociedade ao antisemitismo e o reflexo psicológico da questão judaica no indivíduo tiveram algo a ver com aquele tipo específico de crueldade com aquela agressão premeditada contra todo indivíduo de origem judaica que já caracterizavam o antisemitismo do Caso Dreyfus Essa caça apaixonada ao judeu em geral judeu de toda parte e de parte nenhuma não pode ser compreendida se se considera a história do antisemitismo como entidade própria como mero movimento político Houve fatores sociais não explicados na história política ou econômica ocultos sob a tona dos acontecimentos nunca percebidos pelo historiador e registrados apenas pela força mais penetrante e apaixonada dos poetas e romancistas homens que a sociedade havia impelido à desesperada solidão e isolamento de uma apologia pro vita sua fatores que mudaram o rumo que o mero antisemitismo político teria tomado se fosse abandonado a si próprio e que o teria levado a leis antijudaicas e até à expulsão em massa mas não ao coletivo extermínio indiscriminado Desde a época em que o Caso Dreyfus e a ameaça política que ele constituiu aos direitos dos judeus da França produziram uma situação social na qual os judeus gozavam de uma glória ambígua o antisemitismo apareceu na Europa como uma mistura indissolúvel de motivos políticos e elementos sociais A primeira reação da sociedade a um forte movimento antisemita era uma marcante preferência pelos judeus de sorte que a observação de Disraeli de que não há raça atualmente que tanto deleite e fascine e enalteça e enobreça a Europa como os judeus se tornava particularmente verdadeira em tempo de perigo O filosemitismo social sempre terminava por dotar o antisemitismo político daquele fanatismo misterioso sem o qual o antisemitismo não poderia terse tornado o melhor lema para organizar as massas Todos os déclassés da sociedade capitalista estavam finalmente prontos a unirse e a estabelecer suas próprias organizações populares sua propaganda e sua atração repousavam na premissa de que uma sociedade que havia demonstrado estar disposta a incorporar à sua estrutura o crime sob a forma de vício estaria agora pronta a purificarse do mal reconhecendo abertamente os criminosos para publicamente cometer os crimes HO 4 O CASO DREYFUS 1 OS FATOS Aconteceu na França no fim de 1894 Alfred Dreyfus um oficial judeu do EstadoMaior francês foi acusado e condenado por espionagem em favor da Alemanha O veredicto deportação perpétua para a Ilha do Diabo foi unânime O julgamento foi realizado a portas fechadas De todo o volumoso dossiê da acusação só foi exibido o chamado bordereau Tratavase de uma carta supostamente escrita por Dreyfus endereçada ao adido militar alemão Schwartzkoppen Em julho de 1895 o coronel Picquard tornouse chefe da Seção de Estatística do EstadoMaior na realidade encarregada de informações e contraespionagem Em maio de 1896 disse ao chefe do EstadoMaior Boisdeffre que estava convencido da inocência de Dreyfus e da culpabilidade de um outro oficial major WalsinEsterhazy Seis meses mais tarde Picquard foi removido para um perigoso posto na Tunísia Ao mesmo tempo Bernard Lazare a pedido dos irmãos de Dreyfus publicava o primeiro panfleto sobre o Processo Une erreur judiciaire Ia vérité sur Vaffaire Dreyfus Em junho de 1897 Picquard informou Scheurer Kestner vicepresidente do Senado sobre o julgamento e a inocência de Dreyfus Em novembro de 1897 Clemenceau iniciou a sua luta para reexaminar o caso Quatro semanas mais tarde Zola aderiu aos partidários de Dreyfus Jaccuse foi publicado pelo jornal de Clemenceau em janeiro de 1898 Ao mesmo tempo Picquard era preso Zola levado em fevereiro a julgamento por calúnia contra o Exército foi condenado tanto pelo tribunal comum como pelo Tribunal de Apelação Em agosto de 1898 WalsinEsterhazy foi reformado por crime de peculato Imediatamente contou a um jornalista inglês que ele e não Dreyfus era o autor do bordereau tendo forjado a letra de Dreyfus por ordem do coronel Sandherr seu superior e antigo chefe da Seção de Estatística Alguns dias mais tarde o tenentecoronel Henry outro membro do mesmo departamento foi preso por ter forjado várias peças do dossiê secreto de acusação ele se suicidou na prisão Em seguida o Tribunal de Apelação ordenou uma nova investigação do processo Dreyfus Em junho de 1899 o Tribunal de Apelação anulou a sentença de 1894 contra Dreyfus Um novo processo foi realizado em Rennes em agosto A 9 de setembro a sentença foi mudada para dez anos de prisão devido a circunstâncias atenuantes Dez dias mais tarde Dreyfus foi indultado pelo presidente da República A Exposição Mundial foi inaugurada em Paris em abril de 1900 Em maio quando estava garantido o sucesso da Exposição a Câmara de Deputados por maioria absoluta votou contra qualquer nova revisão do processo Dreyfus Em dezembro do mesmo ano todos os julgamentos ligados ao caso foram encerrados por anistia geral Em 1903 Dreyfus solicitou nova revisão Sua petição foi ignorada até 1906 quando Clemenceau galgou o posto de primeiroministro Em julho de 1906 o Tribunal de Apelação anulou a sentença de Rennes e absolveu Dreyfus de todas as acusações embora segundo as leis da França não tivesse autoridade para absolver só poderia ter ordenado novo julgamento Nova revisão ante uma corte militar porém teria provavelmente e a despeito de todas as provas esmagadoras a favor de Dreyfus levado a nova condenação Portanto Dreyfus nunca foi absolvido de acordo com a lei e o processo Dreyfus nunca foi realmente encerradol A reintegração do acusado nunca foi reconhecida pelo povo francês e as paixões originalmente suscitadas nunca se acalmaram inteiramente Ainda por volta de 1908 nove anos após o perdão e dois anos depois de ter sido inocentado quando a pedido de Clemenceau o corpo de Emile Zola foi transferido para o Panteão Alfred Dreyfus foi atacado na rua Um tribunal de Paris absolveu o agressor afirmando discordar da decisão que havia inocentado Dreyfus Mais estranho ainda é o fato de que nem a Primeira nem a Segunda Guerra Mundial fizeram esquecer o processo Por iniciativa da Action Française o Précis de VAffaire Dreyfus1 foi reeditado em 1924 e tornouse de lá para cá o manual de referência oficial dos adversários de Dreyfus Na estréia de VAffaire Dreyfus peça teatral escrita por Rehfisch e Wilhelm Herzog sob o pseudônimo de René Kestner em 1931 reinava ainda a atmosfera dos anos 90 com discussões na platéia bombas asfixiantes nas primeiras filas tropas de choque da Action Française colocadas nos arredores para aterrorizar atores platéia e curiosos Aliás o governo de Lavai não agiu diferentemente dos seus predecessores de trinta anos antes confessou de bom grado que não podia garantir uma única representação sem tumulto oferecendo assim mais um triunfo tardio aos adversários de Dreyfus A peça teve de ser suspensa Quando 1 A obra até hoje indispensável sobre o assunto é a de Joseph Reinach Histoire de l Affaire Dreyfus Paris 190311 7 vols Dentre os estudos recentes o mais detalhado escrito de um ponto de vista socialista é de autoria de Wilhelm Herzog Der Kampf einer Republik Luta de uma república Zurique 1933 Suas completas tábuas cronológicas são muito valiosas A melhor apreciação política e histórica do processo é encontrada em D W Brogan The development of modem France 1940 livros VI e VII Breve e fidedigno é G Charensol VAffaire Dreyfus et Ia Troisième Republique 1930 2 Escrito por dois oficiais e publicado sob o pseudônimo de Henri DutraitCrozon 112 Dreyfus morreu em 1935 a imprensa por medo não comentou a questão3 Só os jornais da esquerda retomaram os velhos termos para se referir à inocência de Dreyfus enquanto os da direita voltaram à culpabilidade de Dreyfus Ainda hoje embora em menor escala o Caso Dreyfus divide a política francesa Quando Pétain foi condenado o influente jornal de província Voix du Nord de Lille comparou o processo Pétain ao de Dreyfus e afirmou que o país permanece dividido como estava após o processo Dreyfus porque o veredicto da corte não podia solucionar um conflito político e trazer para todos os franceses a paz de espírito ou de coração4 Enquanto o Caso Dreyfus em seu amplo aspecto político pertenceu ao século XX o processo Dreyfus e os vários julgamentos do capitão judeu Alfred Dreyfus são bem típicos do século XIX quando se seguiam com tanto interesse os processos legais porque cada instância tentava testar a maior conquista do século que era a completa imparcialidade da justiça É peculiar daquele período que um erro judicial pudesse despertar tais paixões políticas e inspirar uma sucessão tão infindável de julgamentos e revisões para não mencionar os duelos e as lutas corporais A doutrina da igualdade perante a lei estava ainda tão firmemente implantada na consciência do mundo civilizado que um único erro da justiça era capaz de provocar a indignação pública de Moscou a Nova York Ninguém exceto na própria França era suficientemente moderno para associar o assunto a questões políticas5 O mal causado a um único oficial judeu na França pôde provocar no resto do mundo reações mais veementes e mais unidas do que todas as perseguições a judeus alemães uma geração depois Até a Rússia czarista pôde acusar a França de barbárie enquanto na Alemanha os membros da entourage do Kaiser expressavam abertamente sua indignação6 As dramatis personal do processo pareciam ter saído das páginas de Balzac de um lado os generais classistas procurando freneticamente acobertar 3 O Action Française 19 de julho de 1935 louvou o autocontrole da imprensa francesa enquanto expressava a opinião de que os famosos campeões da justiça e da verdade de quarenta anos atrás não deixaram discípulos Action Française era o principal órgão de imprensa do mais ativo agrupamento francês do mesmo nome N E 4 Ver G H Archambault no New York Times 18 de agosto de 1945 p 5 5 Discutiremos adiante as únicas exceções que foram os jornais católicos a maioria dos quais promovia agitação contra Dreyfus em todos os países A opinião pública norteamericana chegou a tal exacerbação que além dos protestos foi iniciado um boicote organizado contra a Exposição Mundial de Paris a inaugurarse em 1900 Essa ameaça teve o efeito que comentaremos a seguir Para uma análise da situação ver a tese de doutorado de Rose A Halperin The American reaction to the Dreyfus Case 1941 arquivada na Universidade Columbia A autora deseja agradecer ao professor Saio W Baron pela gentileza de colocar esse estudo à sua disposição 6 Assim por exemplo H B von Buelow o chargédaffaires alemão em Paris escreveu para o chanceler do Reich Hohenlohe que o veredicto de Rennes era uma mistura de vulgaridade e covardia que são os sinais mais evidentes do barbarismo e que a França com isso rompeu com a família de nações civilizadas citado por Herzog op cit com data de 12 de setembro de 1899 Na opinião de von Buelow o Affaire era a senha do liberalismo alemão ver suas Denkwürdigkeiten Memórias Berlim 1930 11 p 438 113 os membros do seu próprio grupo e de outro o antagonista deles Picquard com sua honestidade calma clarividente e levemente irônica Ao lado deles a multidão indefinida dos homens do Parlamento cada qual apavorado com o que o vizinho podia saber o presidente da República notório patrono dos bordéis de Paris e os juizes encarregados do processo que viviam unicamente em função da ascensão social Depois há o próprio Dreyfus na verdade um arrivista que se gabava junto aos seus amigos que altas somas da fortuna da família ele gastava com as mulheres os seus irmãos pateticamente oferecendo de início toda a sua riqueza e depois reduzindo a oferta a 150 mil francos para a soltura do parente sem nunca revelarem ao certo se desejavam fazer um sacrifício ou simplesmente subornar o EstadoMaior e o advogado Démange realmente convencido da inocência do cliente mas baseando a defesa em itens secundários para livrarse de ataques e danos aos seus interesses pessoais Por último há o aventureiro Esterhazy de antiga linhagem tão completamente entediado por esse mundo burguês que buscava alívio tanto no heroísmo como na velhacaria Exsegundotenente da Legião Estrangeira impressionava seus colegas pelo arrojo altaneiro e pela imprudência Sempre em dificuldades vivia servindo de segundo aos oficiais judeus em duelos e chantageando seus ricos correligionários Chegava mesmo a lançar mão dos bons ofícios do próprio rabinomor para obter as necessárias apresentações Mesmo em sua queda final permaneceu fiel à tradição de Balzac O que o levou à ruína não foi a traição nem o sonho ardente de uma grande orgia em que 100 mil ulanos prussos embriagados cavalgariam furiosos através de Paris7 mas sim o reles desfalque do dinheiro de um parente E que falar de Zola com seu apaixonado fervor moral sua atitude patética um tanto fútil e a sua declaração melodramática à véspera da fuga para Londres em que diz ter escutado a voz de Dreyfus implorandolhe esse sacrifício8 Tudo isso pertence tipicamente ao século XIX e por si mesmo jamais teria sobrevivido a duas guerras mundiais O entusiasmo que o povo tinha por Esterhazy nos velhos tempos tal como seu ódio por Zola já virou cinzas há muito mas o mesmo aconteceu com aquela ardente paixão antiaristocrática e anticlerical de Jaurès que só ela assegurou a libertação final de Dreyfus Como o caso Cagoulard iria mostrar os oficiais do EstadoMaior já não precisavam temer a ira do povo quando maquinavam seus planos para levar adiante um golpe de Estado Desde a separação entre o Estado e a Igreja a França embora certamente não fosse mais clericalista havia perdido grande parte de seu sentimento anticlerical tal como a Igreja Católica havia perdido muito de sua aspiração política A tentativa de Pétain de transformar a república num Estado católico foi bloqueada pela completa indiferença do povo e pela hostilidade do baixo clero ao fascismo clerical O Caso Dreyfus em suas implicações políticas pôde sobreviver porque 7 Théodore Reinach Histoiresommaire de VAffaire Dreyfus Paris 1924 p 96 8 Relatado por Joseph Reinach através de citação de Herzog op cit com data de 18 de junho de 1898 114 dois de seus elementos cresceram em importância no decorrer do século XX O primeiro foi o ódio aos judeus o segundo a desconfiança geral para com a república o Parlamento e a máquina do Estado A maior parte do público podia ainda continuar a conceber certa ou erradamente que esta última estivesse sob a influência dos judeus e do poderio dos bancos Ainda em nossos dias o termo antidreyfusard pode definir na França de modo aceitável tudo o que é antirepublicano antidemocrático e antisemita Há alguns anos ele compreendia ainda o monarquismo da Action Française o bolchevismo nacional de Doriot e o fascismo social de Déat Não foi porém a esses grupos fascistas numericamente insignificantes que a Terceira República deveu o seu colapso Pelo contrário a verdade simples embora paradoxal é que a influência desses grupos antirepublicanos nunca foi tão insignificante quanto no momento em que o colapso da república realmente ocorreu O que provocou a queda da França foi o fato de que ela não tinha mais nenhum verdadeiro partidário de Dreyfus ninguém que acreditasse que a democracia e a liberdade a igualdade e a justiça ainda pudessem ser defendidas ou realizadas sob a república9 A república caiu finalmente como um fruto meio podre no colo daquele velho grupo antidreyfusard10 que sempre constituíra o âmago do seu Exército e isso numa época em que ela tinha é verdade poucos inimigos mas quase nenhum amigo Até o grupo de Pétain era em grau muito reduzido produto do fascismo alemão como claramente demonstrou a sua obstinada adesão às velhas fórmulas políticas de quarenta anos antes Enquanto a Alemanha nazista sagazmente mutilava a França e arruinava toda a sua economia através da linha de demarcação imposta pelo armistício os líderes da França em Vichy entretinhamse com a velha fórmula das províncias autônomas de Barres paralisandoa ainda mais Introduziram leis antijudaicas mais prontamente que qualquer Quisling gabandose por não precisarem importar o antisemitismo da Alemanha e de que suas leis sobre os judeus diferiam em pontos essenciais das do Reich11 Procuraram mobilizar o clero ca 9 Que nem mesmo Clemenceau acreditava mais nisso no fim da vida é demonstrado claramente pelo comentário citado por René Benjamin em seu livro Clemenceau dans Ia retraite Paris 1930 p 249 Esperança Impossível Como posso continuar esperando quando já não creio naquilo que me inspirou ou seja na democracia 10 O general Weygand membro da Action Française foi em sua juventude um adversário de Dreyfus Foi um dos subscritores do Memorial Henry criado pelo Libre Parole em homenagem ao infeliz coronel Henry que pagou com o suicídio suas falsificações no EstadoMaior A lista dos que assinaram o Memorial foi mais tarde publicada por Quillard um dos editores de VAurore o jornal de Clemenceau sob o título Le Monument Henry Paris 1899 Quanto a Pétain fez parte do EstadoMaior do governo militar de Paris de 1895 a 1899 época em que ninguém teria sido admitido se não fosse comprovadamente um inimigo de Dreyfus Ver J M Bourget La legende du marechal Pétain em Revue de Paris II 1931 pp 5769 D W Brogan op cit p 382 observa com propriedade que dos cinco marechais da Primeira Guerra Mundial quatro Foch Pétain Lyautey e Fayolle eram maus republicanos enquanto o quinto Joffre tinha inclinações clericais bem conhecidas 11 O mito que enganou quase todos os judeus da França de que a legislação antijudaica de Pétain lhe foi imposta pelo Reich foi desmascarado pelos próprios franceses Ver especialmente 115 tólico contra os judeus mas só conseguiram provar que os sacerdotes não apenas perderam suas influências políticas como também não eram verdadeiramente antisemitas Pelo contrário bispos e sínodos que o governo de Vichy queria mais uma vez transformar em força política protestaram mais enfaticamente contra a perseguição dos judeus do que qualquer outro grupo na França Não é o processo Dreyfus com seus julgamentos mas o Caso Dreyfus em suas implicações que traça a antevisão do século XX Como disse Bernanos em 193112 o Caso Dreyfus já pertence àquela era trágica que certamente não terminou com a última guerra O processo revela o mesmo caráter desumano conservando em meio ao tumulto de paixões desenfreadas e chamas de ódio um coração inconcebivelmente frio e empedernido Não foi certamente na França que ocorreu a seqüela exata do processo mas ao reler a história do caso não é difícil de encontrar o motivo pelo qual a França foi uma presa tão fácil do nazismo A propaganda de Hitler falava uma língua havia muito conhecida e jamais inteiramente esquecida Se o cesarismo13 da Action Française e o nacionalismo niilista de Barres e Maurras nunca vingaram em sua forma original isso se deve a uma variedade de causas todas elas negativas Careciam de visão social e não sabiam traduzir em termos populares aquelas fantasmagorias mentais que o seu desdém pelo intelecto havia engendrado Tratamos aqui essencialmente do significado político do Caso Dreyfus e não dos aspectos legais do processo Percebemse nele nitidamente vários traços característicos do século XX Tênues e mal discerníveis durante as primeiras décadas do século vieram finalmente à plena luz do dia e vêse hoje que pertencem às tendências principais dos tempos modernos Após trinta anos de uma forma benigna e puramente social de discriminação antijudaica era um pouco difícil lembrar que o grito Morte aos judeus já havia ecoado uma vez de ponta a ponta de um Estado moderno quando sua política doméstica se cristalizou ao redor da questão do antisemitismo Durante trinta anos quando as velhas lendas de conspiração mundial constituíam apenas o ganhapão dos pasquins e da subliteratura o mundo não se lembrava mais que havia pouco tempo na época em que os Protocolos dos sábios do Sião ainda eram desconhecidos toda uma nação culta quebrava a cabeça querendo descobrir quem tinha nas mãos as rédeas da política mundial se Roma Secreta ou o Reino Secreto de JudáM Ao mesmo tempo a filosofia veemente e niilista da autoaversão espi Yves Simon La Grande Crise de La Republique Française observations sur lapolitique des Français del918 a 1938 Montreal 1941 e Robert O Paxton Vichy France Knopf Nova York 1972 12 Georges Bernanos La grande peur des bienpensants Edouard Drumont Paris 1931 p 262 13 Waldemar Gurian Der integrale Nationalismus in Frankreich Charles Maurras und die Action Française Frankfurtam Main 1931 p 92 faz uma nítida distinção entre o movimento monarquista e outras tendências reacionárias O mesmo autor discute o processo Dreyfus em Die politischen undsozialen Ideen des franzòsischen Katholizismus Gladbach 1929 14 Sobre a criação desses mitos de ambos os lados ver o estudo de Daniel Halévy Apologie pour notre passe em Cahiers de Ia Quinzaine série XL n 10 1910 116 ritual15 sofreu certo eclipse quando um mundo temporariamente em paz consigo mesmo não produziu uma safra de criminosos eminentes que justificasse a exaltação da brutalidade e da falta de escrúpulos Os Jules Guérin tiveram de esperar quase quarenta anos antes que a atmosfera estivesse novamente pronta para a ação de tropas de choque Os declassés produzidos pela economia do século XIX tiveram de crescer numericamente até que formassem sólidas minorias nas nações antes que aquele golpe de Estado que não passara de uma conjura grotesca16 na França pudesse quase sem esforço tornarse realidade na Alemanha O prelúdio ao nazismo abrangeu todo o palco europeu O processo Dreyfus portanto é mais do que um crime17 bizarro e mal resolvido um caso de oficiais de EstadoMaior disfarçados com barbas postiças e óculos escuros espalhando suas estúpidas falsificações à noite nas ruas de Paris Seu herói não é Dreyfus mas sim Clemenceau e o caso começa não com a prisão de um oficial judeu do EstadoMaior mas com o escândalo do Panamá 2 A TERCEIRA REPUBLICA E OS JUDEUS DA FRANÇA Entre 1880 e 1888 a Companhia do Panamá sob a direção de Lesseps que havia construído o canal de Suez conseguiu muito pouco progresso prático em sua tarefa Não obstante chegou a levantar na França durante esse período nada menos que 1335538454 francos em empréstimos particulares18 Tratase de um êxito tão significativo quanto é sabido que a classe média francesa era cautelosa em questões de dinheiro O segredo do sucesso da companhia jaz no fato de que seus vários empréstimos públicos eram invariavelmente apoiados pelo Parlamento A construção do canal era geralmente considerada como um serviço público e nacional e não uma iniciativa privada Portanto quando a Companhia foi à falência foi a política exterior da república que realmente sofreu o choque Mas muito mais importante foi a ruína de cerca de meio milhão de franceses da classe média Tanto a imprensa como a Comissão Parla 15 A Carta à França escrita por Zola em 1898 soa perfeitamente moderna Ouvimos dizer por toda parte que o conceito de liberdade foi à falência Quando surgiu o processo Dreyfus esse ódio crescente à liberdade encontrou uma oportunidade extraordinária e as paixões começaram a se inflamar mesmo entre os inconscientes Não vêem que o único motivo pelo qual ScheurerKestner tem sido atacado com tanta fúria é que ele pertence a uma geração que acreditava na liberdade e trabalhava por ela Hoje não se dá importância a essas coisas Herzog op cit datado de 6 de janeiro de 1898 16 A natureza farsante das várias tentativas de coup détat feitas nos anos 90 na França foi claramente analisada por Rosa Luxemburg em seu artigo Die sozialistische Krise in Frankreich A crise socialista na França em Die Neue Zeit vol 11901 17 Não se sabe se o coronel Henry forjou o bordereau por ordens do chefe do EstadoMaior ou por iniciativa própria Do mesmo modo a tentativa de assassinato contra Labori advogado de Dreyfus no tribunal de Rennes nunca foi devidamente esclarecida Cf Emile Zola Correspondance lettres à Maitre Labori Paris 1929 p 32 nota 1 18 Walter Frank Demokratie und Nationalismus in Frankreich Democracia e nacionalismo na França Hamburgo 1933 p 273 117 mentar de Inquérito chegaram praticamente à mesma conclusão a companhia já estava falida havia muitos anos Afirmaram que Lesseps vivia com esperanças de milagre acalentando o sonho de que novos fundos viriam de alguma forma permitir a continuação da obra Para conseguir a aprovação de novos empréstimos foi levado a subornar a imprensa metade do Parlamento e todas as autoridades superiores Isso contudo tinha exigido o emprego de intermediários que por sua vez haviam pedido comissões exorbitantes Assim o que havia inicialmente inspirado a confiança do público na empresa ou seja o apoio do Parlamento aos empréstimos tornouse no fim o fator que converteu um negócio particular não muito seguro em colossal falcatrua Não havia judeus entre os membros do Parlamento subornados nem na diretoria da companhia Contudo foram Jacques Reinach e Cornélius Herz judeus que disputaram a honra de distribuir propinas entre os membros da Câmara o primeiro atuando sobre a ala direita dos partidos burgueses e o segundo sobre os radicais que compreendiam os partidos anticlericais da pequena burguesia19 Reinach foi conselheiro financeiro do governo durante os anos 80x e portanto era encarregado de suas relações com a Companhia do Panamá enquanto o papel de Herz era duplo por um lado servia a Reinach como elemento de ligação com as alas radicais do Parlamento às quais o próprio Reinach não tinha acesso por outro esse ofício lhe dava um conhecimento tão grande do alcance da corrupção que ele podia constantemente chantagear o patrão e envolvêlo cada vez mais21 Naturalmente havia um bom número de negociantes judeus menos importantes trabalhando tanto para Herz como para Reinach Seus nomes contudo podem continuar a repousar no esquecimento em que merecidamente caíram Quanto mais incerta era a situação da companhia mais altas naturalmente eram as comissões até que no fim a própria companhia recebia apenas uma pequena parte dos fundos que lhe eram destinados Um pouco antes da falência Herz recebeu por uma única transação intraparlamentar um adiantamento de nada menos que 600 mil francos Esse adiantamento porém foi prematuro O empréstimo não foi realizado e os acionistas simplesmente haviam perdido 600 mil francos22 Toda a negociata terminou de modo desastroso para Reinach Atormentado pela chantagem de Herz acabou por cometer suicídio23 Um pouco antes de morrer contudo havia tomado uma providência cujas conseqüências para a população judia da França foram das mais infelizes 19 Georges Suarez La vie orgueilleuse de Clémenceau Paris 1930 p 156 20 Tal por exemplo foi o testemunho do exministro Rouvier perante a Comissão de Inquérito 21 Barres citado por Bernanos op cit p 271 é sucinto a respeito do assunto Sempre que Reinach engolia alguma coisa era Cornélius Herz quem sabia como fazêlo vomitar 22 Cf Frank op cit no capítulo intitulado Panamá cf Suarez op cit p 155 23 A briga entre Reinach e Herz dá ao escândalo do Panamá um ar de gangsterismo incomum no século XIX Resistindo à chantagem de Herz Reinach chegou a recrutar o auxílio de exinspetores de polícia para pôr um preço de 10 mil francos sobre a cabeça do rival cf Suarez op cit p 157 118 havia fornecido ao Libre Parole diário antisemita de Edouard Drumont uma lista de membros do Parlamento subornados os chamados homens da remessa impondo como única condição que o jornal deveria protegêlo pessoalmente quando publicasse a denúncia O Libre Parole transformouse da noite para o dia passando de pequena publicação politicamente insignificante a um dos mais influentes jornais do país com circulação de 300 mil exemplares A oportunidade proporcionada por Reinach foi usada com habilidade A lista dos culpados foi publicada em pequenas doses de modo que centenas de políticos tinham de viver sob tensão dia após dia O jornal de Drumont e com ele toda a imprensa e movimentos antisemitas emergiu finalmente como força perigosa na Terceira República O escândalo do Panamá que no dizer de Drumont tornava visível o invisível trouxe consigo duas revelações Primeiro divulgou o fato de que membros do Parlamento e os funcionários públicos haviam se tornado negociantes Segundo mostrou que os intermediários entre a iniciativa privada neste caso a Companhia e a máquina do Estado eram quase exclusivamente judeus24 O mais surpreendente era que todos esses judeus que trabalhavam em contato tão íntimo com a máquina do Estado eram recémchegados à França Até o estabelecimento da Terceira República o manuseio das finanças do Estado tinha sido quase um monopólio dos Rothschild A tentativa dos seus competidores irmãos Pereire de arrebatar de suas mãos parte desse monopólio estabelecendo o Crédit Mobilier havia terminado num acordo E em 1882 o grupo Rothschild era ainda bastante poderoso para levar à falência a Union General banco católico cujo alvo real era causar a ruína dos banqueiros judeus25 Imediatamente após a conclusão do tratado de paz de 1871 cujas cláusulas financeiras haviam sido negociadas no lado francês por Rothschild e no lado alemão por Bleichroeder um antigo agente da mesma casa os Rothschild adotaram uma política sem precedentes declararamse abertamente a favor dos monarquistas e contra a república26 A novidade disso não era a tendência monarquista mas sim o fato de que pela primeira vez uma importante potência financeira judia se opunha ao regime em vigor Até então os Rothschild se acomodavam a qualquer sistema político que estivesse no poder Parecia portanto que a república era a primeira forma de governo que não precisava deles Tanto a influência política dos judeus como a sua condição social resultavam do fato de que eles constituíam um grupo fechado que trabalhava diretamente para o Estado sendo protegidos por ele em virtude de serviços especiais 24 Cf Levaillant La genèse de lantisémitisme sous Ia Troisième Republique na Révue des ÉtudesJuives vol LIII 1907 p 97 25 VerBernard Lazare Contre lantisémitisme histoire d une polemique Paris 18 e Jeanine VerdésLeroux Scandalefinancier et antisémitisme catholique 1969 26 Quanto à cumplicidade dos bancos no movimento orleanista ver G Charensol op cit Um dos portavozes desse poderoso grupo era Arthur Meyer editor do Gaulois Judeu batizado Meyer pertencia à mais virulenta facção dos adversários de Dreyfus Ver Clémenceau Le spectacle du jour em L Iniquité 1899 ver ainda os registros no diário de Hohenlohe em Herzog op cit com data de 11 de junho de 1898 119 que prestavam A ligação íntima e imediata com a máquina do governo só era possível enquanto o Estado permanecesse distanciado do povo e enquanto as classes dirigentes continuassem indiferentes a administrar o Estado Em tais circunstâncias os judeus eram do ponto de vista do Estado o elemento mais digno de confiança na sociedade exatamente porque não pertenciam realmente a ela O sistema parlamentar permitiu à burguesia liberal ganhar o controle da máquina estatal Contudo os judeus nunca haviam pertencido a essa burguesia e portanto olhavamna com suspeita não de todo injustificada O regime já não precisava dos judeus tanto quanto antes pois agora era possível atingir através do Parlamento uma expansão financeira além dos mais ousados sonhos dos antigos monarcas mais ou menos absolutos ou mesmo constitucionais Assim as principais casas judias desapareceram do cenário da política financeira e transferiramse para os salões antisemitas da aristocracia onde julgaram poder financiar movimentos reacionários destinados a restaurar os velhos bons tempos27 Enquanto isso outros círculos judeus recémchegados começavam a tomar parte crescente na vida comercial da Terceira República O que os Rothschild haviam quase esquecido e isso quase lhes havia custado o poder era o simples fato de que uma vez que cessavam por um momento sequer de ter interesse ativo num determinado regime imediatamente perdiam sua influência não apenas sobre os círculos governamentais mas também sobre os judeus Os imigrantes judeus foram os primeiros a ver essa oportunidade28 Compreenderam demasiado bem que a república tal como se havia desenvolvido não era a seqüência lógica da rebelião de um povo unido Do assassínio de cerca de 20 mil membros da Comuna de Paris em 1870 da derrota militar e do colapso econômico o que de fato emergiu foi um regime cuja capacidade de governar era duvidosa desde a sua implantação E isso era tão verdadeiro que três anos depois a França à beira da ruína clamava por um ditador Quando julgou têlo encontrado na pessoa do presidente general MacMahon cuja única pretensão ao destaque foi sua derrota em Sedan frustrouse pois esse indivíduo demonstrou ser um parlamentar da velha escola renunciando depois de alguns anos de fracassos contínuos 1879 Enquanto isso porém a sociedade paulatinamente demonstrava que a única política que a interessava consistia na defesa dos capitais investidos mesmo que o método certo fosse a corrupção29 Depois de 1881 a trapaça para citar Léon Say tornouse a única lei 27 Quanto às inclinações bonapartistas da época ver Frank op cit baseado em documentos inéditos tirados dos arquivos do Ministério do Exterior alemão 28 Jacques Reinach nasceu na Alemanha recebeu um baronato italiano e naturalizouse francês Cornélius Herz nasceu na França filho de pais bávaros Emigrou para os Estados Unidos onde adquiriu a cidadania norteamericana e fez fortuna Para maiores detalhes Brogan op cit p 268ss Característico do modo como os judeus nativos desapareceram do serviço público é o fato de que assim que começaram a ir mal os negócios da Companhia do Panamá LévyCrémieux seu primeiro consultor financeiro foi substituído por Reinach ver Brogan op cit livro VI capítulo 2 29 Georges Lachapelle Les finances de Ia Troisième Republique Paris 1937 pp 54ss descreve em detalhe como a burocracia assumiu o controle dos fundos públicos e como a Comissão de Orçamento era inteiramente governada por interesses privados 120 Já se observou com justiça que nesse período da história francesa todo partido político tinha seu judeu do mesmo modo como antes cada casa real havia tido um judeudacorte30 No entanto a diferença era profunda O investimento de capital judeu no Estado havia contribuído para dar aos judeus um papel produtivo na economia da Europa Sem sua ajuda o desenvolvimento do Estadonação no século XVIII e de seu serviço civil independente teria sido inconcebível Era afinal a esses judeusdacorte que a população judaica da Europa centro ocidental devia sua emancipação As duvidosas transações de Reinach e de seus cúmplices nem chegaram a levar à riqueza permanente31 Tudo o que fizeram foi envolver em trevas mais profundas as relações misteriosas e escandalosas existentes entre o negócio e a política Esses parasitas de um corpo corrupto serviam para proporcionar a uma sociedade completamente decadente um álibi extremamente perigoso Como eram judeus tornavase possível transformá los em bodes expiatórios quando fosse mister aplacar a indignação do público Depois as coisas podiam continuar como dantes Os antisemitas podiam imediatamente apontar para os parasitas judeus de uma sociedade corrupta para provar que todos os judeus de toda parte não passavam de uma espécie de cupim que infestava o corpo do povo o qual de outro modo seria sadio A eles não importava que a corrupção do corpo político houvesse começado sem o auxílio dos judeus que a política dos negociantes numa sociedade burguesa à qual os judeus não haviam pertencido e seu ideal de concorrência ilimitada houvessem levado à desintegração do Estado na política partidária que as classes governantes houvessem demonstrado não serem capazes de proteger os seus próprios interesses e muito menos os do país como um todo Os antisemitas que se diziam patriotas introduziram essa nova espécie de sentimento nacional que consiste primordialmente no completo encobertamente dos defeitos de um povo e na ampla condenação dos que a ele não pertencem Os judeus podiam permanecer como grupo separado fora da sociedade somente enquanto uma máquina estatal mais ou menos homogênea estável pudesse utilizálos e estivesse interessada em protegêlos A decadência da máquina estatal trouxe a dissolução das cerradas fileiras do povo judeu que havia tanto tempo estava ligado a ela O primeiro sinal disso surgiu nos negócios levados a efeito pelos judeus franceses recémnaturalizados sobre os quais seus irmãos nativos haviam perdido o controle de modo semelhante ao que ocorreu na Alemanha no período inflacionário Os recémchegados preencheram as lacunas entre o mundo comercial e o Estado Com relação à posição econômica dos membros do Parlamento ver Bernanos op cit p 192 Muitos deles como Gambetta não tinham nem roupa de baixo para trocar 30 Como observa Frank op cit pp 321ss a direita tinha seu Arthur Meyer o boulangerismo seu Alfred Naquet os oportunistas seu Reinach e os radicais seu dr Cornélio Herz 31 A esses recémchegados aplicase a acusação de Drumont Les trétaux du succès 1900 p 237 Esses grandes judeus que começam do nada e conseguem tudo vêm sabe Deus de onde vivem na miséria morrem não se sabe como Eles não chegam simplesmente acontecem Não morrem evanescemse 121 Muito mais desastroso foi outro processo que também começou nessa época e que foi imposto de cima A dissolução do Estado em facções embora destruísse a fechada sociedade dos judeus não os forçava para um vácuo onde pudessem continuar a vegetar fora do Estado e da sociedade Para isso os judeus eram demasiado ricos e numa época em que o dinheiro era um dos requisitos principais do poder demasiado poderosos Em vez disso tendiam a ser absorvidos pela variedade de círculos sociais de acordo com suas inclinações políticas ou mais freqüentemente suas conexões sociais Esse fato porém não levou ao seu desaparecimento Pelo contrário mantiveram certas relações com a máquina do Estado e continuaram embora de modo totalmente diferente a manipular os negócios do Estado Assim a despeito de sua conhecida oposição à Terceira República não foi outro senão Rothschild quem levou a cabo a colocação do empréstimo russo enquanto Arthur Meyer embora batizado e monarquista confesso estava envolvido no escândalo do Panamá Mas se os judeus haviam antes constituído um grupo forte e coeso cuja utilidade para o Estado era óbvia estavam agora divididos em círculos mutuamente antagônicos embora todos dedicados ao mesmo fim de ajudar a sociedade a enriquecer às custas do Estado 3 EXÉRCITO E CLERO CONTRA A REPÚBLICA Aparentemente distanciado de todos esses fatores aparentemente imune a toda corrupção estava o Exército herança do Segundo Império A república nunca ousara dominálo mesmo quando as simpatias e intrigas monarquistas foram abertamente expressas na crise Boulanger A classe dos oficiais consistia então como antes nos filhos daquelas velhas famílias aristocráticas cujos ancestrais como emigrados haviam lutado contra seu país natal durante as guerras revolucionárias Esses oficiais estavam sob forte influência do clero que mesmo antes da Revolução havia feito questão de apoiar movimentos reacionários e antirepublicanos Essa influência era talvez exercida com igual força sobre os oficiais de nascimento algo inferior mas que em conseqüência da antiga prática da Igreja de distinguir o talento sem atentar para o pedigree esperavam promoverse com a ajuda do clero Em contraste com os círculos mutáveis e fluidos da sociedade e do Parlamento onde a admissão era fácil e a fidelidade volúvel o Exército caracterizavase pela rigorosa exclusividade tão característica do sistema de castas Não era nem a vida militar nem a honra profissional nem o espritdecorps que mantinha unidos seus oficiais para formar um baluarte revolucionário contra a República e contra as influências democráticas era simplesmente o laço da casta32 A recusa por parte do Estado de democratizar o Exército e submetêlo a autoridades civis impôs sérias conseqüências fez do Exército uma entidade 32 Ver o excelente artigo anônimo The Dreyfus case a study of French opinion em The Contemporary Review vol LXXXIV outubro de 1898 122 separada da nação e criou uma força armada cujas lealdades podiam enveredar por caminhos imprevisíveis Que essa força dominada por casta quando entregue a si mesma não era nem a favor nem contra ninguém ficou claramente demonstrado na história dos golpes de Estado quase burlescos nos quais a despeito de afirmações do contrário o Exército realmente relutou em tomar parte Mesmo seu notório monarquismo era afinal de contas nada mais que um pretexto para preservarse como grupo de interesses independentes pronto a defender seus privilégios sem consideração para com a despeito de ou mesmo contra a república33 Os jornalistas contemporâneos e historiadores pósteros esforçaramse para explicar o conflito entre os poderes civil e militar durante o Caso Dreyfus em termos de antagonismo entre comerciantes e soldados34 Contudo sabemos quão injustificada é essa interpretação indiretamente antisemita O departamento de espionagem do EstadoMaior tinha uma razoável experiência comercial Negociavam com despreocupação os bordereaux forjados vendiam aos adidos militares estrangeiros informações com a facilidade de um comerciante de artigos de couro ao negociar peles podendo depois o que era impossível ao negociante de peles tornarse presidente da República cujo genro aliás não deixava de negociar honrarias e distinções35 Na verdade o zelo de Schwartzkoppen o adido alemão ansioso por descobrir mais segredos que a França tinha para esconder deve ter causado embaraço àqueles cavalheiros do serviço de contra espionagem que afinal não podiam vender mais do que produziam Os políticos católicos porém cometeram grave erro ao imaginar que para fins de sua política européia podiam se utilizar do Exército francês simplesmente porque ele parecia ser anti republicano Na verdade a Igreja iria pagar por esse erro a perda de toda a sua influência política na França36 Quando o departamento de espionagem emergiu finalmente como fábrica de fraudes comuns37 ninguém na França nem mesmo o Exército estava tão seriamente comprometido quanto a Igreja No fim do século XIX o clero católico buscava recuperar sua antiga força política exatamente naquelas áreas onde por uma razão ou outra a autoridade secular estava em declínio junto ao povo Exemplos disso foram a Espanha onde a aristocracia feudal decadente provocou a ruína econômica e cultural do país e a ÃustriaHungria onde o conflito de 33 Ver Rosa Luxemburg loc cit O motivo pelo qual o Exército relutava em agir era este desejava mostrar sua oposição ao poder civil da república sem ao mesmo tempo perder a força dessa oposição comprometendose com a monarquia 34 Foi sob esse título que Maximilian Harden um judeu alemão descreveu o processo Dreyfus em Die Zukunft 1898 Walter Frank o historiador antisemita emprega o mesmo lema no título do seu capítulo sobre Dreyfus enquanto Bernanos op cit p 413 observa no mesmo tom que certa ou errada a democracia vê no poder militar seu mais perigoso rival 35 O escândalo do Panamá foi precedido pelo chamado caso Wilson Verificouse que o genro do presidente traficava abertamente com honrarias e condecorações 36 Ver o padre Edouard Lecanuet Les signes avantcoureurs de Ia séparation 18941910 Paris 1930 37 Ver Bruno Weil L Affaire Dreyfus Paris 1930 p 169 123 nacionalidades ameaçava destruir o Estado E era este também o caso da França onde a nação parecia afundar rapidamente no lamaçal dos interesses em conflito38 O Exército abandonado num vácuo político pela Terceira República aceitou de bom grado a orientação do clero católico que pelo menos proporcionava liderança civil sem a qual os militares perdem sua raison dêtre que é defender o princípio corporifiçado pela sociedade civil como se expressou então Clemenceau A Igreja Católica portanto devia sua popularidade ao ceticismo disseminado entre o povo que via na república e na democracia a falta da ordem segurança e consciência política Para muitos o sistema hierárquico da Igreja parecia a única forma de evitar o caos Era isso realmente e não qualquer revivescência religiosa que fazia com que o clero fosse olhado com respeito39 Na verdade os mais firmes partidários da Igreja nesse período eram os expoentes daquele catolicismo chamado cerebral os católicos sem fé que iriam daí por diante dominar todo o movimento monarquista e nacionalista extremo Sem crerem em sua base extraterrena esses católicos clamavam por maior poder para todas as instituições autoritárias Essa é de fato a atitude primeiro assumida por Drumont e mais tarde endossada por Maurras40 A grande maioria do clero católico profundamente envolvida em manobras políticas seguia a estratégia de acomodação Nisso como o Caso Dreyfus torna claro foi praticamente bem sucedida Assim quando Victor Basch abraçou a causa de um novo julgamento sua casa em Rennes foi atacada sob a liderança de três padres41enquanto uma figura tão eminente quanto o padre dominicano Didon exortou os estudantes do Collège dArcueil a desembainhar a espada cortar cabeças e atacar às cegas42 Semelhante também era o ponto de vista dos trezentos clérigos que se imortalizaram no Memorial Henry como era chamada a lista de subscritores no Libre Parole de um fundo em benefício de Madame Henry viúva do coronel que se havia suicidado na prisão43 e que é certamente um monumento perpétuo da chocante corrupção das classes altas da França naquela época Durante o período da crise Dreyfus não foi o clero regular nem as ordens religiosas comuns e certamente não os homines religiosi que influenciaram a linha política da Igreja Católica No tocante à Europa sua política reacionária na França na Áustria e na Espanha e seu 38 Cf Clemenceau La croisade op cit A Espanha contorcese sob o jugo da Igreja Romana A Itália parece haver sucumbido Os únicos países restantes são a Áustria católica já em sua agonia de morte e a França da Revolução contra a qual as hostes do papa estão em pé de guerra neste instante p 152 39 Cf Bernanos op cit p 152 Não há como repetir suficientemente este ponto o verdadeiro beneficiário daquele movimento de reação que se seguiu à queda do império e à derrota foi o clero Graças a ele a reação nacional depois de 1873 assumiu o caráter de renovação religiosa 40 Quanto a Drumont e a origem do catolicismo cerebral ver Bernanos op cit pp 127ss 41 Cf Herzog op cit sob a data de 21 de janeiro de 1898 42 Ver Lecanuet op cit p 182 43 Ver acima nota 10 124 apoio a tendências antisemitas em Viena Paris e Argel foram provavelmente a conseqüência da influência jesuíta Foram os jesuítas que sempre melhor representaram tanto na palavra escrita como na falada a escola antisemita do clero católico44 Isso provavelmente se deve em grande parte aos seus estatutos de acordo com os quais cada noviço há de provar que não tem nenhum rastro de sangue judeu até a quarta geração45 E desde o começo do século XIX a direção da política internacional da Igreja já havia passado às suas mãos46 Já observamos como a dissolução da máquina estatal facilitou a entrada dos Rothschild nos círculos da aristocracia antisemita A roda elegante do Faubourg SaintGermain abriu suas portas não apenas a alguns judeus nobres mas também permitia que seus sicofantas batizados os judeus antisemitas penetrassem juntamente com os imigrantes recentes47 É curioso terem sido os judeus da Alsácia que como a família Dreyfus se haviam mudado para Paris após a cessão daquele território pela França para a Alemanha em 1870 que desempenharam papel especialmente proeminente nessa escalada social Seu patriotismo exagerado era mais marcantemente visível no modo como procuravam desassociarse dos novos imigrantes judeus adotando um tipo especial de antisemitismo48 Esse ajustamento à aristocracia francesa teve um resultado inevitável os judeus tentaram lançar seus filhos nas mesmas carreiras militares superiores preferidas pelos filhos dos seus novos amigos Foi aí que surgiu a 44 A revista dos jesuítas então órgão católico mais influente do mundo Civiltà cattolica foi durante décadas declaradamente antisemita Publicava propaganda antijudaica muito antes de a Itália ser fascista e sua política não foi afetada pela atitude anticristã dos nazistas Ver Joshua Starr Italys antisemites emJewish Social Studies 1939 De acordo com L Koch S J De todas as ordens a Sociedade de Jesus devido à sua constituição é a melhor protegida contra influência judaicas Em JesuitenLexikon Enciclopédia jesuítica Paderborn 1934 artigo Juden Judeus 45 Originalmente 1593 todos os cristãos de origem judaica eram excluídos da ordem Um decreto de 1608 introduziu investigações até a quinta geração o decreto de 1923 reduziu isso a quatro gerações Essas exigências só podem ser revogadas pelo chefe da ordem e em casos individuais 46 Cf H Boehmer Lesjésuites tradução do alemão Paris 1910 p 284 Desde 1820 não tem havido igrejas nacionais independentes capazes de resistir às ordens papais ditadas pelos jesuítas O clero superior de hoje armou suas tendas diante da Santa Sé e a Igreja se tornou o que Belarmino o grande controversista jesuíta sempre exigiu que ela fosse uma monarquia absoluta cuja política pode ser dirigida pelos jesuítas e cujo funcionamento pode ser controlado com o apertar de um botão 47 Cf Clemenceau Le spectacle du jour em op cit Rothschild amigo de toda a nobreza antisemita de braços dados a Arthur Meyer que é mais papista que o papa 48 Quanto aos judeus alsacianos aos quais Dreyfus pertencia ver André Foucault Un nouvel aspect de 1Affaire Dreyfus em Les ouevres libres 1938 p 310 Aos olhos da burguesia judaica de Paris eles eram a encarnação da rigidez nacionalista aquela atitude de remoto desdém que a gente de posição assume em relação aos seus colegas arrivistas Seu desejo de se assimilar completamente aos modos gálicos de viver em termos íntimos com as nossas famílias tradicionais de ocupar as posições mais ilustres do Estado e o desprezo que demonstrava pelos elementos comerciais da comunidade judaica pelos polaks judeus poloneses da Galícia província expolonesa da ÃustriaHungria recémnaturalizados davamlhes quase a aparência de traidores de sua própria raça Os Dreyfus de 1894 Pois eram antisemitas 125 primeira causa de fricção A admissão dos judeus na alta sociedade havia sido relativamente tranqüila As classes superiores a despeito de sonharem com uma monarquia restaurada careciam de fibra política mas quando os judeus começaram a procurar igualdade no Exército esbarraram com a decidida oposição dos jesuítas que não estavam dispostos a tolerar a existência de oficiais imunes à influência do confissionário49 Além disso defrontaramse com um inveterado espírito de casta que a atmosfera condescendente dos salões os tinha feito esquecer um espírito de casta que já robustecido pela vocação fortificavase mais ainda pela inflexível hostilidade à Terceira República e à administração civil Um historiador moderno descreveu a luta entre os judeus e os jesuítas como uma luta entre dois rivais na qual o clero jesuíta superior e a plutocracia judaica enfrentavamse cara a cara no meio da França como duas linhas de combate invisíveis50 A descrição é verdadeira no sentido de que os judeus encontraram nos jesuítas seus primeiros inimigos implacáveis enquanto estes prontamente compreenderam o valor da arma chamada antisemitismo Foi essa a primeira tentativa e a única antes de Hitler de explorar o importante conceito político51 do antisemitismo numa escala paneuropéia Por outro lado contudo se se presume que a luta era entre dois rivais que se eqüivaliam a descrição é visivelmente falsa Os judeus não procuravam poder maior do que era exercido por qualquer um dos outros grupos em que a república se havia fragmentado Tudo o que queriam na época era manter a influência suficiente para cuidar de seus interesses sociais e comerciais Não aspiravam a nenhum quinhão político na administração do Estado O único grupo organizado que buscava isso eram os jesuítas O julgamento de Dreyfus foi precedido por vários incidentes que mostravam quão resoluta e energicamente os judeus tentavam conquistar um lugar no Exército e como era comum mesmo naquela época a hostilidade contra eles Constantemente submetidos a pesados insultos os poucos oficiais judeus eram sempre obrigados a duelar enquanto seus camaradas gentios se recusavam a prestarlhes o serviço de segundos Nesse ponto aliás o infame Esterhazy surge em cena como uma exceção à regra52 49 Cf K V T em The Contemporary Review LXXIV 598 Pelo desejo da democracia todos os franceses devem ser soldados pelo desejo da Igreja só nas mãos de católicos devem estar os comandos principais 50 Herzog op Ht p 35 51 Cf Bernanos op cit p 151 Assim despojado de hipérboles ridículas o antisemitismo mostrou o que realmente é não simples ranzinzice ou sestro mental mas um importante conceito político 52 Ver a carta de Esterhazy de 2961894 a Edmond de Rothschild citada por J Reinach op cit II pp 93ss Não hesitei quando o capitão Crémieux não conseguiu encontrar um oficial cristão para servirlhe de segundo Cf T Reinach Histoire sommaire de VAffaire Dreyfus pp 60ss Ver também Herzog op cit sob data de 1892 e junho de 1894 onde esses duelos são relacionados em detalhe inclusive com os nomes de todos os intermediários de Esterhazy A última vez foi em setembro de 1896 quando ele recebeu 10 mil francos Essa generosidade mal dirigida teve mais tarde resultados inquietantes Quando na confortável segurança da Inglaterra Esterhazy 126 Até hoje não se esclareceu completamente se a prisão e condenação de Dreyfus foi simplesmente um erro judicial que por acaso deu lugar a uma conflagração política ou se o EstadoMaior deliberadamente forjou o bordereau e usouo como embuste para o fim expresso de finalmente estigmatizar um judeu como traidor Em apoio dessa última hipótese há o fato de que Dreyfus foi o primeiro judeu a galgar um posto no EstadoMaior e nas condições da época isso podia ter causado não apenas aborrecimento mas verdadeira fúria e consternação De qualquer forma o ódio antijudeu foi desencadeado antes mesmo de se anunciar o veredicto Contrariamente ao costume que exigia a retenção de toda informação num caso de espionagem ainda sub judice os oficiais do EstadoMaior alegremente forneceram ao Libre Parole detalhes do caso e o nome do acusado Receavam aparentemente que a influência judaica no governo levasse a uma supressão do julgamento e a um abafamento do assunto O fato de que certos círculos da comunidade judaica preocupavamse seriamente com as condições precárias dos oficiais judeus empresta plausibilidade a esse receio Convém ainda lembrar que o escândalo do Panamá estava naquela época bem vivo na mente do público e que depois do empréstimo de Rothschild à Rússia a desconfiança com relação aos judeus havia crescido consideravelmente53 O ministro da Guerra Mercier era não apenas elogiado pela imprensa burguesa a cada novo lance do julgamento mas até o jornal de Jaurès que era o órgão dos socialistas deulhe parabéns por haver oposto resistência à formidável pressão dos políticos corruptos e das altas finanças54 De modo característico esse encômio arrancou do Libre Parole a aprovação irrestrita de Bravo Jaurès Dois anos mais tarde quando Bernard Lazare publicou seu primeiro panfleto sobre o erro da justiça o jornal de Jaurès evitou cuidadosamente discutir o seu conteúdo mas acusou o autor embora socialista de admirar Rothschild e de ser provavelmente seu agente pago55 Do mesmo modo ainda em 1897 quando a luta pela reintegração de Dreyfus já havia começado Jaurès via nesse esforço apenas o conflito entre dois grupos burgueses os oportunistas e os clérigos Finalmente mesmo depois do novo julgamento de Rennes Wilhelm Liebknecht o socialdemocrata alemão ainda acreditava na culpa de Dreyfus porque não podia conceber que um membro das classes supe afinal fez suas revelações e forçou assim uma revisão do caso a imprensa antisemita sugeriu naturalmente que ele havia sido pago pelos judeus para se autocondenar 53 Herzog op cit em data de 1892 mostra em detalhe como os Rothschild começaram a adaptarse à república É curioso que a política papal de coalicionismo que representa uma tentativa de reaproximação por parte da Igreja Católica date precisamente do mesmo ano Não é impossível portanto que os Rothschild fossem influenciados pelo clero Quanto ao empréstimo de 500 milhões de francos à Rússia o conde Münster observou com pertinência A especulação morreu na França Os capitalistas não encontram meio de negociar seus títulos e isso contribuirá para o sucesso do empréstimo Os judeus importantes crêem que se ganharem dinheiro poderão melhor ajudar seus irmãos pobres O resultado é que embora o mercado francês esteja abarrotado de títulos russos os franceses ainda estão pagando bons francos por rublos inúteis Herzog ibid 54 Cf J Reinach opcit 1471 55 Cf Herzog op p 212 127 riores pudesse jamais ser vítima de um veredicto falso emitido pelos juizes pertencentes à mesma classe56 O ceticismo da imprensa radical e socialista fortemente impregnado de sentimentos antijudaicos era fortalecido pelas táticas bizarras da família Dreyfus em suas tentativas de iniciar um segundo julgamento Ao tentar salvar um inocente adotavam os métodos que geralmente se usam no caso de um culpado Tinham horror mortal da publicidade e confiavam exclusivamente em manobras clandestinas57 Eram pródigos com o dinheiro e tratavam Lazare um dos seus mais valiosos auxiliares e uma das maiores figuras do caso como se fosse agente pago58 Clemenceau Zola Picquard e Labori para citar apenas os mais ativos partidários de Dreyfus só no fim puderam salvar sua boa reputação desassociando seus esforços com mais ou menos alvoroço e publicidade dos aspectos mais concretos do caso59 Dreyfus podia ou devia ter sido salvo apenas à base de uma coisa As intrigas de um Parlamento corrupto a estéril podridão de uma sociedade em colapso e a sede de poder do clero deveriam ter sido enfrentadas diretamente pelo austero conceito jacobino de uma nação baseada nos direitos humanos essa visão republicana da vida comunal que afirma que nas palavras de Clemenceau quando se infringem os direitos de um infringemse os direitos de todos Confiar no Parlamento ou na sociedade era perder a luta antes de começála Primeiro porque os recursos dos judeus não eram de modo algum superiores aos da rica burguesia católica segundo porque todas as camadas da sociedade desde as famílias clericais e aristocratas do Faubourg SaintGermain até a pequena burguesia anticlerical e radical estavam simplesmente demasiado desejosas de ver os judeus formalmente removidos do corpo político Jul 56 Cf Max J Kohler Some new lights on the Dreyfus case em Studies in Jewish bibliography and relatedsubjects in metnory of A S Freidus Nova York 1929 57 A família Dreyfus por exemplo rejeitou sumariamente a sugestão de Arthur Lévy o escritor e de LévyBruhl o erudito de que devia circular uma petição de protesto entre todas as figuras mais importantes da vida pública Em vez disso encetou uma série de contatos pessoais com quaisquer políticos que viesse a encontrar cf DutraitCrozon op cit p 51 Ver também Foucault op cit p 309 A esta distância poderíamos nos perguntar por que os judeus franceses em vez de examinar os documentos secretamente não expressaram adequada e abertamente a sua indignação 58 Cf Herzog op cit em dezembro de 1894 e janeiro de 1898 Ver também Charensol op cit p 79 e Charles Péguy Le portrait de Bernard Lazare em Cahiers de Ia Quinzaine série XII n 21910 59 O afastamento de Labori pela família Dreyfus causou grande escândalo Um relato completo se bem que exagerado pode ser encontrado em Frank op cit p 432 A declaração do próprio Labori que fala alto de sua nobreza de caráter foi publicado em La Grande Revue fevereiro de 1900 Após o que aconteceu com o seu advogado e amigo Zola rompeu imediatamente as relações com a família Dreyfus Quanto a Picquard o Echo de Paris 30 de novembro de 1901 disse que depois disso ele nada mais tinha a ver com os Dreyfus Clemenceau diante do fato de que toda a França ou mesmo o mundo inteiro compreendia melhor o significado real dos julgamentos que o acusado ou sua família tendia mais a achar o incidente engraçado cf Weil op cit pp 307 8 128 gavam poder dessa forma livrarse de uma possível contaminação A supressão dos contatos sociais e comerciais com os judeus parecialhes um preço que bem valia a pena pagar Além disso como indicam as declarações de Jaurès o Caso era visto pelo Parlamento como uma oportunidade ímpar para reabilitar ou melhor recuperar sua tradicional reputação de incorruptibilidade Por último mas certamente não menos importante no apoio a slogans como Morte aos judeus ou A França para os franceses descobriase uma fórmula quase mágica para reconciliar as massas com o tipo de governo e sociedade existentes 4 O POVO EA RALÉ Se o erro comum dos nossos tempos é imaginar que a propaganda pode conseguir tudo e que um homem pode ser persuadido a fazer qualquer coisa contanto que a persuasão seja suficientemene forte e atraente era crença comum naquela época que a voz do povo era a voz de Deus e que a tarefa de um líder era como disse Clemenceau com tanto desdém60 seguir essa voz com esperteza As duas atitudes derivam do mesmo erro fundamental de considerarse a ralé idêntica do povo e não uma caricatura dele A ralé é fundamentalmente um grupo no qual são representados resíduos de todas as classes Ê isso que torna tão fácil confundir a ralé com o povo o qual também compreende todas as camadas sociais Enquanto o povo em todas as grandes revoluções luta por um sistema realmente representativo a ralé brada sempre pelo homem forte pelo grande líder Porque a ralé odeia a sociedade da qual é excluída e odeia o Parlamento onde não é representada Os plebiscitos portanto com os quais os líderes modernos da ralé têm obtido resultados tão excelentes correspondem à tática de políticos que se estribam na ralé Um dos mais inteligentes líderes dos adversários de Dreyfus Déroulède clamava por uma República através do plebiscito A alta sociedade e os políticos da Terceira República haviam apresentado à ralé francesa uma série de escândalos e fraudes públicas Invadiaos agora um tenro sentimento de familiaridade paterna por seu rebento um sentimento misto de admiração e medo O menos que a sociedade podia fazer por sua filha era protegêla com palavras Enquanto a ralé tomava de assalto as lojas dos judeus e os agredia na rua a linguagem da alta sociedade fazia com que a violência intensa e verdadeira parecesse inócua brincadeira de criança61 O mais impor 60 Cf o artigo de Clemenceau de 2 de fevereiro de 1898 em op cit Quando à futilidade de tentar arrebanhar os trabalhadores com lemas antisemitas e principalmente sobre a tentativa de Léon Daudet ver o escritor monarquista Dimier Vingt ans dAction Française Paris 1926 61 Muito característicos nesse ponto são os vários retratos da sociedade da época em J Reinach op cit I pp 233ss III p 141 As senhoras da sociedade acompanhavam o passo de Guérin A linguagem delas que mal ia além de seus pensamentos teria horrorizado uma amazona do Daomé De especial interesse a esse respeito é um artigo de André Chevrillon Huit jours à 129 tante dos documentos contemporâneos a esse respeito é o Memorial Henry e as várias soluções que propunha para a questão judaica os judeus deviam ser despedaçados como Marsias na lenda grega Reinach devia ser jogado vivo num caldeirão de água fervente os judeus deviam ser cozidos em óleo ou furados com agulhas até morrerem deviam ser circuncidados até o pescoço Um grupo de oficiais revelouse muito impaciente de experimentar um novo tipo de canhão nos 100 mil judeus do país Entre os subscritores havia mais de mil oficiais inclusive quatro generais da ativa e o ministro da Guerra Mercier O número relativamente alto de intelectuais e até de judeus que constavam da üsta é surpreendente As classes superiores sabiam que a ralé era a carne da sua própria carne e o sangue do seu próprio sangue Até um historiador judeu da época embora houvesse visto com os próprios olhos que os judeus não têm nenhuma segurança quando a ralé impera nas ruas falou com secreta admiração do grande movimento coletivo63 Isso mostra apenas quão profundas eram as raízes dos judeus numa sociedade que estava procurando eliminálos Ao descrever referindose ao Caso Dreyfus o antisemitismo como um importante conceito político Bernano está com a razão no tocante à ralé Havia sido experimentada anteriormente em Berlim e em Viena por Ahlwardt e Stoecker por Schoenerer e Lueger mas em lugar nenhum sua eficácia foi demonstrada mais claramente do que na França Não pode haver dúvida de que aos olhos da ralé os judeus passaram a representar tudo o que era detestável Se odiavam a sociedade podiam denunciar o modo como os judeus eram tolerados nela e se odiavam o governo podiam denunciar como os judeus haviam sido protegidos pelo Estado ou se confundiam com ele Embora seja um erro presumir que a ralé caça apenas a judeus estes estão certamente em primeiro lugar entre as suas vítimas favoritas Excluída como é da sociedade e da representação política a ralé recorre necessariamente a ação extraparlamentar Além disso sente a inclinação de procurar as verdadeiras forças da vida política naqueles movimentos e influências que os olhos não vêem e que atuam por trás das cortinas Não resta dúvida de que durante o século XIX o povo judeu incidiu nessa categoria exatamente como os maçons e os jesuítas64 É falso que qualquer um desses grupos realmente constituísse uma sociedade secreta propensa a dominar o mundo por meio de uma gigantesca conspiração Contudo é verdade que sua influência Rennes na Grande Revue de fevereiro de 1900 Conta ele inter alia o seguinte incidente revelador Um médico falando a alguns amigos meus a respeito de Dreyfus fez o comentário de que gostaria de torturálo E eu quisera acrescentou uma das senhoras que ele fosse inocente pois sofreria mais 62 Entre os intelectuais encontravase bastante estranhamente Paul Valéry que contribuiu com três francos non sans réflexion 63 J Reinach op cit I 233 64 Um estudo da superstição européia demonstraria provavelmente que os judeus se tornaram objetos dessa modalidade de superstição típica do século XIX em data bastante recente Foram precedidos pelos rosacruzes templários jesuítas e pela LivreMaçonaria O tratamento da história do século XIX ressentese muito da falta de tal estudo 130 por mais abstrata que fosse era exercida além da esfera formal da política e operava em grande escala nos corredores nos bastidores e no confissionário Desde a Revolução Francesa esses três grupos têm dividido a honra duvidosa de serem aos olhos da ralé européia o pivô da política mundial Durante a crise Dreyfus cada um deles pôde explorar essa noção popular jogando sobre o outro a acusação de conspirar pelo domínio do mundo O termo Judá Secreta é devido sem dúvida à inventividade de certos jesuítas que decidiram ver no primeiro Congresso Sionista 1897 o núcleo de uma conspiração mundial judaica65 Do mesmo modo o conceito de Roma Secreta se deve a maçons anticlericais e talvez também a calúnias indiscriminadas e impensadas de alguns judeus A volubilidade da ralé é proverbial como os oponentes de Dreyfus iriam aprender amargamente quando em 1899 tendo mudado os ventos o pequeno grupo de verdadeiros republicanos chefiados por Clemenceau compreendeu de repente um tanto confuso que parte da ralé havia aderido a ele66 Para alguns observadores os dois partidos da grande controvérsia pareciam agora dois bandos rivais de charlatães disputando o reconhecimento da ralé67 Assim o erudito Emile Duclaux pôde escrever Neste drama representado diante de todo um povo e tão explorado pela imprensa que todo o país terminou por nele participar vemos o coro e o anticoro da antiga tragédia bradando um contra o outro A cena é a França e o teatro é o mundo Chefiado pelos jesuítas e ajudado pela ralé o Exército finalmente entrou na briga certo da vitória O contraataque do poder civil havia sido eficazmente anulado A imprensa antisemita havia fechado a boca de todos ao publicar a lista Reinach dos deputados envolvidos no escândalo do Panamá68 Tudo sugeria um triunfo fácil A sociedade e os políticos da Terceira República seus escândalos e aventuras haviam criado uma nova classe de déclassés não se podia esperar que lutassem contra a própria progênie pelo contrário iriam adotar a linguagem e os pontos de vista da ralé Através do Exército os jesuítas ganhariam o controle do poder civil corrupto e o caminho estaria aberto para um golpe de Estado sem sangue Enquanto isso apenas a família Dreyfus tentava por meios bizarros salvar da Ilha do Diabo o seu parente e apenas alguns judeus preocupavamse 65 Vide II caso Dreyfus em Civiltà cattolica 5 de fevereiro de 1898 Entre as exceções à afirmação anterior a mais notável é o jesuíta Pierre Charles Louvain que denunciou os Protocolos dos sábios do Sião 66 Cf Martin du Gard Jean Barois pp 272ss e Daniel Halévy em Cahiers de Ia Quinzaine série II caderno 10 Paris 1910 67 Cf Georges Sorel La révolution dreyfusienne Paris 1911 pp 701 68 A que ponto os membros do Parlamento estavam de mãos atadas é demonstrado pelo caso de ScheurerKestner um dos seus melhores elementos e vicepresidente do Senado Assim que deu entrada em seu protesto contra o julgamento o Libre Parole proclamou o fato de que seu genro tinha estado envolvido no escândalo do Panamá Ver Herzog op cit sob data de novembro de 1897 131 com sua posição nos salões antisemitas e no Exército ainda mais antisemita Obviamente não havia motivo de esperar que um ataque ao Exército ou à sociedade viesse daquele lado Pois não era o desejo único dos judeus continuarem a ser aceitos na sociedade e tolerados nas forças armadas Ninguém nos círculos militares ou civis precisava perder o sono por causa deles69 Foi embaraçoso portanto quando transpirou que no gabinete de espionagem do EstadoMaior existia um alto oficial que embora dotado de uma boa formação católica excelentes perspectivas militares adequada dose da antipatia pelos judeus ainda não havia adotado o princípio de que o fim justifica os meios Esse homem completamente divorciado do classicismo social e da ambição profissional era Picquard e a esse espírito simples calmo e politicamente desinteressado o EstadoMaior iria em breve dizer um basta Picquard não era herói e certamente não era um mártir Era apenas aquele tipo comum de cidadão com interesse normal pelos negócios públicos que na hora do perigo mas não um minuto antes se ergue para defender o país da mesma forma como cumpre seus deveres diários sem discutir70 Contudo a causa só se tornou séria quando após muita demora e hesitação Clemenceau finalmente se convenceu de que Dreyfus era inocente e de que a república estava em perigo No começo da luta apenas um punhado de escritores e eruditos de renome aderiram à causa Zola Anatole France Emile Duclaux o historiador Gabriel Monod e Lucien Herr bibliotecário da Ecole Normale A estes deve acrescentarse o pequeno e na época insignificante círculo de jovens intelectuais que iriam mais tarde fazer história nos Cahiers de Ia Quinzaine71 Essa era a lista completa dos aliados de Clemenceau Não havia um grupo político sequer nem um único político de reputação disposto a lutar ao seu lado Clemenceau abordou a questão com grandeza porque não arremetia contra um determinado erro de justiça mas se estribava em coisas abstratas como Justiça Liberdade e Virtude Cívica Estribavase enfim naqueles mesmos conceitos que haviam sido a essência do antigo patriotismo jacobino e contra os quais muita lama e insulto já haviam sido atirados à medida que o tempo passava e indiferente a ameaças e decepções Clemenceau continuava anunciando as mesmas verdades ao transformálas em exigências fazia os nacionalistas perderem terreno Os seguidores de homens como Barres que havia acusado os partidários de Dreyfus de se perderem num torvelinho de metafísica vieram a compreender que as abstra 69 Cf Brogan op cit livro VII capítulo 1 O desejo de esquecer o assunto isto é o Caso Dreyfus não era raro entre os judeus franceses especialmente entre os mais ricos 70 Imediatamente após ter feito suas descobertas Picquard foi banido para um perigoso posto em Túnis Fez então seu testamento denunciou toda a trama e depositou com o seu advogado uma cópia do documento Alguns meses mais tarde quando se descobriu que ele ainda estava vivo começou a chegar uma enxurrada de cartas que o comprometiam e o acusavam de cumplicidade com o traidor Dreyfus Foi tratado como um gângster que ameaçasse soltar a língua Quando se viu que tudo isso era inútil ele foi preso expulso do Exército ao som dos tambores e despojado de suas condecorações tendo tudo suportado com serena equanimidade 71 A esse grupo liderado por Charles Péguy pertenciam o jovem Romain Rolland Suarez Georges Sorel Daniel Halévy e Bernard Lazare 132 ções do Tigre estavam na verdade mais próximas das realidades políticas que a limitada inteligência de comerciantes falidos ou o tradicionalismo estéril de intelectuais fatalistas72 A atitude concreta dos nacionalistas realistas terminou por leválos a um fim que foi tão bem exemplificado naquela história impagável que conta como Charles Maurras teve a honra e o prazer durante a Segunda Guerra ainda em 1939 de conhecer em sua fuga para o sul uma astróloga que lhe explicou o significado político dos acontecimentos recentes e o aconselhou a colaborar com os nazistas73 Embora o antisemitismo ganhasse terreno durante os três anos que se seguiram à prisão de Dreyfus antes do início da campanha de Clemenceau e embora a imprensa antijudaica atingisse uma circulação comparável à dos jornais principais as ruas haviam permanecido calmas Foi somente quando Clemenceau começou a publicar seus artigos em L Aurore quando Zola publicou Jaccuse e quando o tribunal de Rennes iniciou inabilmente a série de julgamentos e revisões que a ralé entrou em ação Cada lance dos partidários de Dreyfus que se sabiam em minoria era seguido de perturbação mais ou menos violenta nas ruas74 O modo como o Estado Maior organizou a ralé foi notável A pista leva diretamente do Exército ao Libre Parole que direta ou indiretamente através de seus artigos ou da intervenção pessoal de seus editores mobilizou estudantes monarquistas aventureiros e simples bandidos e atirouos nas ruas Se Zola dizia uma palavra imediatamente suas janelas eram apedrejadas Se ScheurerKestner escrevia ao ministro das Colônias era imediatamente agredido na rua enquanto os jornais dirigiam indecentes ataques à sua vida privada E todos os relatos concordam que se Zola quando foi acusado tivesse sido absolvido nunca teria saído vivo do tribunal O grito Morte aos judeus varreu o país Em Lyon Rennes Nantes Tours Bordeaux ClermontFerrant e Marselha na verdade em toda parte explodiam tumultos antisemitas invariavelmente atribuíveis à mesma fonte A indignação popular espoucava em todo canto no mesmo dia e exatamente à mesma hora75 Sob a chefia de Guérin a ralé assumia ares militares Tropas de choque antisemitas surgiam nas ruas para assegurarse de que todo comício 72 Cf M Barres Scènes et doctrines du nationalisme Paris 1902 73 Ver Yves Simon op cit pp 545 74 As salas dos mestres na Universidade de Rennes foram arrasadas depois que cinco professores se declararam a favor de novo julgamento Depois da publicação do primeiro artigo de Zola estudantes monarquistas fizeram uma demonstração diante dos escritórios do Figaro após a qual o jornal desistiu de publicar outros artigos do mesmo tipo O editor do La Bataille próDreyfus foi espancado na rua Os juizes do Tribunal de Cassação que finalmente revogaram o veredicto de 1894 declararam unanimemente que haviam sido ameaçados de agressão Os exemplos poderiam multiplicarse Clemenceau foi mais contundente Se Zola fosse absolvido ninguém de nós sairia vivo disse no Senado a 11 de dezembro de 1906 Nota do editor de tradução francesa 75 Em 18 de janeiro de 1898 ocorreram demonstrações antisemitas em Bordeaux Marselha ClermontFerrant Nantes Rouen e Lyon No dia seguinte eclodiram distúrbios estudantis em Rouen Toulouse e Nantes 133 próDreyfus terminasse em sangreira A cumplicidade da polícia era patente em toda parte76 A figura mais moderna entre os adversários de Dreyfus era provavelmente Jules Guérin Falido no comércio havia iniciado sua carreira política como alcagüete da polícia e adquiriu aquele instinto de disciplina e de organização que é a marca invariável do submundo Mais tarde iria canalizar esse instinto para fins políticos tornandose fundador e chefe da Ligue Antisémite A alta sociedade teve nele seu primeiro herói criminoso Em sua adulação de Guérin a sociedade burguesa deixou bem claro que havia definitivamente rompido com os próprios padrões de moral e ética Por trás da Ligue havia dois membros da aristocracia o duque de Orléans e o marquês de Mores Esse último havia perdido a fortuna na América e tornouse famoso por organizar os açougueiros de Paris numa brigada de rufiões A mais eloqüente dessas tendências modernas foi o ridículo ataque ao chamado Forte Chabrol Foi aí que a elite da Ligue Antisémite se reuniu quando a polícia finalmente decidiu prender o seu líder As instalações eram de alta perfeição técnica As janelas eram protegidas por persianas de ferro Havia um sistema de campainhas elétricas e telefones do porão ao teto A mais ou menos cinco metros por trás da maciça porta da entrada que estava sempre trancada e aferrolhada havia forte grade de ferro fundido à direita entre a grade e a porta principal havia pequena porta também coberta por uma placa de ferro atrás da qual as sentinelas escolhidas a dedo dentre as legiões de açougueiros montavam guarda dia e noite77 Max Régis instigador dos pogroms argelinos é outro desses homens que representava as velhas idéias sob aspectos modernos Foi o jovem Régis que uma vez incitou uma animada turba parisiense a regar a árvore da liberdade com o sangue dos judeus Régis representava aquele setor do movimento que esperava galgar o poder através de métodos legais e parlamentares Seguindo essa orientação fezse eleger prefeito de Argel e usou de sua posição para desencadear os pogroms nos quais vários judeus foram mortos mulheres judias foram violentadas e lojas de judeus foram pilhadas Foi a ele também que o polido e culto Edouard Drumont o mais famoso antisemita francês deveu sua cadeira no Parlamento O novo em tudo isso não era a atividade da ralé esta tinha abundantes precedentes O novo e surpreendente na época embora demasiado comum para nós era a organização da ralé e o fato de que adoravam seus líderes como heróis A ralé tornouse o agente direto daquele nacionalismo concreto esposado por Barres Maurras e Daudet que juntos constituíam o que sem dúvida era uma espécie de elite de jovens intelectuais Esses homens que menosprezavam o povo e apenas recentemente haviam eles próprios emergido de 76 O exemplo mais cru foi o do chefe de polícia de Rennes que aconselhou o professor Victor Basch quando sua casa foi assaltada por uma multidão de 2 mil pessoas a pedir demissão já que ele não lhe podia garantir segurança 77 Cf Bernanos op cit p 347 134 um desastroso e decadente culto da estética viram na ralé uma expressão viva da força viril e primitiva Foram eles e suas teorias que primeiro identificaram a ralé com o povo e converteram seus líderes em heróis nacionais78 Foi a sua filosofia do pessimismo e o seu prazer da ruína que constituíram o primeiro sinal do iminente colapso da intelectualidade européia Nem mesmo Clemenceau estava imune à tentação de identificar a ralé com o povo O que o tornava especialmente propenso a esse erro era a atitude consistentemente ambígua do Partido Socialista em relação à questão da justiça abstrata Nenhum partido inclusive o socialista estava disposto a lutar pelajustiçaperíe a tomar posição para o que der e vier em favor da justiça o único elo inquebrável de união entre homens civilizados79 Os socialistas defendiam os interesses dos trabalhadores os oportunistas os da burguesia liberal os coligacionistas os das classes católicas superiores e os radicais os da pequena burguesia anticlerical Os socialistas tinham a grande vantagem de falar em nome de uma classe homogênea e unida Diferentemente dos partidos burgueses não representavam uma sociedade que se havia fragmentado em numerosos grupos Contudo preocupavamse primária e essencialmente com os seus interesses de classe Não os estorvava qualquer obrigação mais alta para com a solidariedade humana e não tinham a menor idéia do que realmente fosse a vida comunal Típica de sua atitude era a observação feita por Jules Guesde principal líder socialista junto com Jaurès de que a lei e a honra são meras palavras O niilismo que caracterizava os nacionalistas não era monopólio dos antidreyfusards Pelo contrário grande parte dos socialistas e muitos dos que defendiam Dreyfus como Guesde falavam a mesma linguagem Se o católico La Croix observava que já não é mais uma questão de saber se Dreyfus é culpado ou inocente mas apenas de quem irá vencer os amigos do Exército ou os seus inimigos semelhante ponto de vista bem poderia ter sido expresso mutatis mutandis pelos partidários de Dreyfus80 Não apenas a ralé mas considerável segmento do povo francês se declarou na melhor das hipóteses bastante desinteressado pelo fato em si essencial de um grupo da população ser excluído dos benefícios da lei Assim que a ralé começou sua campanha de terror contra os partidários de Dreyfus encontrou diante de si o caminho aberto Como atesta Clemenceau os trabalhadores de Paris pouco se importavam com o caso Se os vários elementos da burguesia discutiam entre si isso pensavam eles pouco afetava seus interesses Com o consentimento aberto do povo escreveu Clemenceau eles 78 No tocante a essas teorias ver especialmente Charles Maurras Au Signe de Fore souvenirs de Ia viepolitique VAffaire Dreyfus et lafondation de VAction Française Paris 1931 M Barres op cit Léon Daudet Panorama de Ia Troisième Republique Paris 1936 79 Cf Clemenceau À Ia derive emop cit p 158 80 Foi precisamente isso que tanto decepcionou os defensores de Dreyfus especialmente o círculo em torno de Charles Péguy Essa perturbadora semelhança entre os defensores e os adversários de Dreyfus é o assunto do romance de Martin du Gard Jean Barois 1913 135 proclamaram diante do mundo a falência de sua democracia Graças a eles um povo soberano é despojado do seu trono de justiça privado de sua infalível majestade Pois não há como negar que esse mal caiu sobre nós com a inteira cumplicidade do próprio povo O povo não é Deus Qualquer um poderia ter previsto que essa nova divindade iria tombar do seu pedestal Um tirano coletivo dominando de ponta a ponta um país não é mais aceitável que um tirano único refestelado no trono81 Finalmente Clemenceau convenceu Jaurès de que a violação dos direitos de um homem era a violação dos direitos de todos Mas se foi bemsucedido quanto a Jaurès é porque os transgressores eram inveterados inimigos do povo desde a Revolução a aristocracia e o clero Foi contra os ricos e o clero e não a favor da república não a favor da justiça e da liberdade que finalmente os trabalhadores saíram às ruas É verdade que tanto os discursos de Jaurès como os artigos de Clemenceau cheiravam à antiga paixão revolucionária pelos direitos humanos Também é verdade que essa paixão era suficientemente forte para reagrupar o povo na luta mas antes tiveram de convencerse de que o que estava em jogo não era apenas a justiça e a honra da república mas também seus próprios interesses de classe Na verdade grande número de socialistas dentro e fora do país ainda consideravam um erro imiscuirse como dizam nas brigas intestinas da burguesia ou cuidar de salvar a república O primeiro a fazer com que os trabalhadores abandonassem pelo menos parcialmente essa atitude de indiferença foi aquele grande amigo do povo Emile Zola Mas em sua famosa acusação à república ele foi também o primeiro a afastarse da apresentação de fatos políticos precisos e ceder às paixões da ralé evocando o fantasma da Roma Secreta Clemenceau relutou em adotar esse tom embora Jaurès o fizesse com entusiasmo A verdadeira façanha de Zola cuja vida e obra haviam exaltado o povo a ponto de atingir os limites da idolatria foi a coragem audaz e resoluta para desafiar combater e finalmente conquistar as massas nas quais como Clemenceau ele mal sabia distinguir a ralé do povo Já houve homens que resistiram aos mais poderosos monarcas e se recusaram a inclinarse diante deles mas tem havido poucos capazes de resistir à multidão e sozinhos enfrentar as massas mal orientadas de encarar desarmado o seu implacável frenesi e de braços cruzados ousar dizer não quando o que a massa exige é um sim Esse homem foi Zola82 Mal havia aparecido Jaccuse os socialistas de Paris realizaram seu primeiro comício e votaram a favor de uma revisão do processo Dreyfus Mas apenas cinco dias mais tarde 32 autoridades socialistas emitiram uma declaração no sentido de que a sorte de Dreyfus o inimigo da classe não era de sua conta Apoiavam essa declaração numerosos líderes do partido em Paris Embora a dissensão em suas fileiras continuasse durante todo o Caso o partido contou com número suficiente de defensores de Dreyfus para evitar que a Ligue 81 Prefácio a Contre Ia Justice 1900 82 Clemenceau em discurso diante do Senado a 11 de dezembro de 1906 cf Weil op cit pp 1123 136 Antisemite controlasse as ruas daí por diante Um comício socialista chegou ao ponto de estigmatizar o antisemitismo como nova forma de reação Contudo alguns meses depois por ocasião das eleições parlamentares Jaurès não foi reeleito e logo depois quando Cavaignac ministro da Guerra presenteou a Câmara com um discurso atacando Dreyfus e louvando o Exército como indispensável os delegados socialistas resolveram com apenas dois votos em contrário colocar nos muros de Paris cartazes com o texto do discurso Da mesma forma quando a grande greve parisiense eclodiu em outubro do mesmo ano Münster o embaixador alemão pôde confidencialmente informar Berlim de que no que concerne às massas não se trata absolutamente de questão política Os trabalhadores querem apenas aumento de salário o que terminarão conseguindo Quanto ao processo Dreyfus nem pensavam em se envolver por ele83 Em termos gerais então quem eram os defensores de Dreyfus Quem foram aqueles 300 mil franceses que tão avidamente devoraram Taccuse de Zola e acompanharam religiosamente os editoriais de Clemenceau Quem foram os homens que na questão Dreyfus terminaram por dividir cada classe cada família da França em dois lados opostos A resposta é simples não constituíam qualquer partido ou grupo homogêneo É certo que provinham mais das classes inferiores que das superiores incluindo o que comprova a afirmação mais médicos que advogados e funcionários civis De modo geral porém formavam uma mistura de vários elementos homens tão diversos entre si como Zola e Péguy ou Jaurès e Picquard homens que no dia seguinte se separariam e tomariam caminhos diferentes Vêm de partidos políticos e grupos religiosos que nada têm em comum e às vezes estão até em conflito entre si Não se conhecem uns aos outros Já se digladiaram e a qualquer dia lutarão de novo Mas não se enganem esses homens é que são a elite da democracia francesa84 Se Clemenceau tivesse tido bastante autoconfiança naquela época para considerar que apenas aqueles que lhe davam ouvidos eram o verdadeiro povo da França não teria sido presa daquele orgulho fatal que marcou o resto de sua carreira O que ele experimentou durante o Caso Dreyfus motivou a sua descrença no povo seu desprezo pelos homens e finalmente a certeza de que ele e somente ele poderia salvar a república Nunca havia podido rebaixarse a aplaudir as momices da ralé Portanto quando começou a identificar a ralé com o povo o chão fugiu de seus pés e ele submeteuse àquele teimoso afastamento que o distinguiu daí por diante A desunião do povo francês era patente em cada família Caracteristicamente porém encontrou expressão política apenas nas fileiras dos socialistas Todos os outros bem como todos os grupos parlamentares eram unanimemente contra Dreyfus quando começou a campanha por um novo julgamento Mas os partidos burgueses já não representavam os verdadeiros sentimentos do eleitorado pois a mesma desunião tão patente entre os socialistas prevalecia entre quase todos os segmentos da população Por toda parte uma minoria 83 Ver Herzog op cit sob data de 10 de outubro de 1898 84 K V T op cit p 608 137 aceitava o apelo de Clemenceau por justiça e nessa minoria heterogênea agrupavamse os partidários de Dreyfus Sua luta contra o Exército e contra a cumplicidade corrupta da República que o apoiava foi o fator dominante da política interna da França desde fins de 1897 até a inauguração da Exposição em 1900 Exerceu também considerável influência na política externa do país Não obstante todo esse esforço que iria finalmente resultar num triunfo parcial ocorreu exclusivamente fora do Parlamento Nessa assembléia chamada representativa que compreendia seiscentos delegados de toda cor e matiz da burguesia e das classes trabalhadoras havia em 1898 apenas dois partidários de Dreyfus e um deles Jaurès não foi reeleito O que mais nos perturba no Caso Dreyfus é que não foi apenas a ralé que teve de agir com métodos extraparlamentares Toda aquela minoria embora lutasse como lutava pelo Parlamento pela democracia e pela república era também forçada a travar sua luta fora da Câmara Mas enquanto uns usavam as ruas os outros recorriam à imprensa e aos tribunais e essa foi a única diferença entre os dois elementos Em outras palavras toda a vida política da França durante a crise Dreyfus se passou fora do Parlamento Nem os vários votos parlamentares a favor do Exército e contra um novo julgamento invalidam de modo algum essa conclusão É importante não esquecer que quando o sentimento parlamentar começou a mudar pouco antes da inauguração da Exposição Internacional de Paris o ministro Gallifet pôde dizer com justeza que isso absolutamente não representava a atitude da nação85 Por outro lado o voto contra o novo julgamento não deve ser interpretado como endosso da política de golpe de Espado que os jesuítas e certos antisemitas estavam tentando realizar com o auxílio do Exército86 Deviase antes à mera resistência contra qualquer mudança no status quo Realmente uma maioria igualmente esmagadora na Câmara teria rejeitado uma ditadura clérico militar Os membros do Parlamento que haviam aprendido a ver a política como a representação profissional dos capitais investidos estavam naturalmente ansiosos por conservar aquele estado de coisas do qual dependiam tanto sua vocação quanto os seus lucros O processo Dreyfus revelou além disso que também o povo desejava que seus representantes cuidassem dos interesses peculiares de todos em vez de funcionarem como estadistas Era positivamente insensato mencionar o caso na propaganda eleitoral Se isso fosse devido unicamente ao anti semitismo a situação dos partidários de Dreyfus teria certamente 85 Gallifet ministro da Guerra escreveu para WaldeckRousseau Nãoesqueçamos que a grande maioria do povo na França é antisemita Nesta situação portanto temos o Exército e a maioria dos franceses junto com os deputados e senadores e todos os agitadores do outro lado há o ministério os dreyfusards e o estrangeiro Cf J Reinach op cit V 580 86 A mais conhecida dessas tentativas foi a de Déroulède que enquanto assistia ao funeral do presidente Félix Faure em fevereiro de 1899 procurou incitar ao motim o general Roget Os embaixadores e encarregados de negócios alemães em Paris relatavam tentativas semelhantes de meses a meses A situação é bem definida por Barres op cit p 4 Em Rennes encontramos nosso campo de batalha Só precisamos de soldados ou mais precisamente de generais ou ainda mais precisamente de um general Só que não foi por acaso que esse general não existia 138 sido desesperadora Na verdade durante as eleições eles já contavam com apoio considerável entre a classe trabalhadora No entanto nem mesmo aqueles que apoiavam Dreyfus desejavam ver essa questão política imiscuída nas eleições Foi realmente por insistir em fazer dela o pivô de sua campanha que Jaurès deixou de ser reeleito Se Clemenceau e os partidários de Dreyfus conseguiram convencer grandes segmentos de todas as classes a exigirem novo julgamento os católicos reagiram em bloco entre eles não houve divergências de opinião O que os jesuítas fizeram ao manobrar a aristocracia e o EstadoMaior foi feito para as classes média e baixa pelos assuncionistas cujo órgão La Croix tinha a maior circulação de todos os jornais católicos da França87 Ambos concentraram sua agitação contra a república em torno dos judeus Ambos se apresentaram como defensores do Exército e do bem estar público contra as maquinações do judaísmo internacional Mais extraordinário porém que a atitude dos católicos da França foi o fato de estar toda a imprensa católica do mundo unanimemente contra Dreyfus Todos os jornalistas marcharam e ainda estão marchando por ordem de seus superiores88 à medida que o caso avançava tornavase cada vez mais claro que a agitação contra os judeus na França seguia uma linha internacional Assim o Civiltà cattolica declarou que os judeus deviam ser excluídos da nação em toda parte na França na Alemanha na Áustria e na Itália Os políticos católicos foram os primeiros a compreender que a política do poder em nossos dias deve basearse no jogo das ambições coloniais Foram portanto os primeiros a ligar o antisemitismo ao imperialismo declarando que os judeus eram agentes da Inglaterra e assim identificavam com a anglofobia o antagonismo aos judeus89 O processo Dreyfus no qual os judeus eram figuras centrais deulhes desta forma uma boa oportunidade para que jogassem seu jogo Se a Inglaterra havia tomado o Egito dos franceses a culpa era dos judeus90 enquanto o movimento a favor de uma aliança angloamericana se devia naturalmente ao imperialismo dos Rothschild91 Que esse jogo não se limitava à França ficou bem claro quando o pano caiu sobre a cena Em fins de 1899 quando Dreyfus havia sido indultado e quando a opinião pública francesa havia recuado receando um planejado boicote à Exposição bastou uma entrevista com o papa Leão XIII para sustar a propagação do antisemitismo no mundo92 Mesmo nos Estados Unidos onde a defesa de Dreyfus era 87 Brogan vai ao ponto de culpar os assuncionistas por toda a agitação clerical 88 K V T emop cit p 597 89 O estimulo inicial do Caso muito provavelmente veio de Londres onde a missão do CongoNilo de 18961898 estava causando certo grau de inquietação é o que diz Maurras no Action Française 14 de julho de 1935 A imprensa católica de Londres defendia os jesuítas ver The Jesuits and the Dreyfus case em The Month vol XVIII 1899 90 Civiltà cattolica 5 de fevereiro de 1898 91 Ver o artigo particularmente característico do Rev George McDermot C S P Mr ChamberlaüVs foreign policy and the Dreyfus case na revista mensal americana Catholic World vol LXVI setembro de 1898 92 Cf Lecanuet op cit p 188 139 particularmente violenta entre os nãocatólicos era possível discernir na imprensa católica a partir de 1897 acentuado ressurgimento de sentimentos antisemitas que no entanto se acalmaram da noite para o dia após a entrevista de Leão XIII93 5 OS JUDEUS E OS PARTIDÁRIOS DE DREYFUS O caso do infeliz capitão Dreyfus havia mostrado ao mundo que em cada judeu nobre e multimilionário havia ainda algo do antigo pária sem nação para quem os direitos humanos não existem e de quem a sociedade teria prazer de retirar os seus privilégios Ninguém contudo teve maior dificuldade em compreender esse fato que os próprios judeus emancipados Não lhes basta escreveu Bernard Lazare rejeitar toda a solidariedade com seus irmãos estrangeiros têm ainda de atacálos com todos os males que sua covardia inventa Não se contentam em ser mais jingoístas que os franceses nativos como todos os judeus emancipados do mundo romperam por vontade própria com todos os laços de solidariedade De fato eles foram a tal ponto que para as três dúzias de homens na França dispostos a defender um dos seus irmãos mártires haveria milhares dispostos a montar guarda na Ilha do Diabo ao lado dos mais fanáticos patriotas do país94 Precisamente por haverem representado papel tão insignificante no desenvolvimento político dos países em que viviam a igualdade jurídica transformouse para eles num fetiche parecendolhes constituir a base indiscutível de sua eterna segurança Quando o Caso Dreyfus veio advertilos de que essa segurança estava ameaçada encontravam se mergulhados num processo de assimilação desintegradora durante o qual sua falta de sabedoria política havia aumentado em vez de diminuir Assimilavamse rapidamente àqueles elementos da sociedade nos quais todas as paixões políticas são sufocadas sob o peso morto do esnobismo social dos grandes negócios e de oportunidades de lucro Esperavam livrarse da antipatia que essas tendências inspiravam desviandoa contra os seus correligionários ainda não assimilados Usando as mesmas táticas que a sociedade gentia havia empregado contra eles empenharamse em dissociarse dos chamados Ostjuden judeus da Europa oriental O anti semitismo político tal como se manifestara nos pogroms da Rússia e da Romênia era levianamente desprezado por eles como fenômeno que sobreviveu à Idade Média mas que não acontecia nem aconteceria na política moderna do Ocidente Nunca puderam compreender que no Caso Dreyfus o que estava em jogo era algo mais que o simples status social pois se tratava de algo mais que o mero antisemitismo social São essas portanto as razões pelas quais se encontraram tão poucos defensores sinceros de Dreyfus entre os judeus da França Os judeus inclusive a 93 Cf Rose A Halperin op cit pp 59 77ss 94 Bernard Lazare Le nationalisme et lemancipation juive emUEcho Sioniste 20 de abril de 1901 p 152 140 própria família do acusado abstiveramse de iniciar uma luta política Por isso mesmo Labori advogado de Zola foi proibido de fazer a defesa no tribunal de Rennes enquanto o segundo advogado de Dreyfus Démange foi forçado a basear sua defesa numa questão de dúvida Esperavase assim sufocar sob uma enxurrada de lisonjas qualquer ataque possível ao Exército ou a seus oficiais O método que levaria à absolvição era o de fingir que tudo não passava de um erro judicial cuja vítima por acaso era um judeu O resultado foi o segundo veredicto é Dreyfus incapaz de encarar o peso da questão em vez de outro julgamento pediu clemência isto é admitiu sua culpa95 Os judeus falharam por não enxergarem que se tratava de uma organizada luta política contra eles Assim opuseramse à cooperação com aqueles que estavam dispostos a enfrentar o desafio nessas bases Quão cega era a sua atitude ficou claro no caso de Clèmenceau A luta de Clèmenceau pela justiça como fundamento do Estado certamente incluía a restauração de direitos iguais para os judeus Mas numa época de lutas de classe de um lado e de nacionalismo desenfreado de outro isso não teria passado de abstração política se não fosse concebido ao mesmo tempo em termos de luta de oprimidos contra opressores Clèmenceau foi um dos poucos verdadeiros amigos que o povo conheceu nos tempos modernos apenas porque reconheceu e proclamou perante o mundo que os judeus eram um dos povos oprimidos da Europa O antisemitismo tende a ver noparvenu judeu um pária conseqüentemente em cada vendedor ambulante receava ver um Rothschild em potencial e em cada subproletario judeu um arrivista Mas Clèmenceau em sua atormentada paixão de justiça via até nos Rothschild os membros de um povo humilhado Sua angústia pela desventura nacional da França abriulhe os olhos e o coração até para aqueles infelizes que posam como líderes do seu povo e logo o abandonam à própria sorte para aqueles elementos intimidados e submissos que em sua ignorância fraqueza e medo de tal modo se deslumbram pela admiração dos mais fortes que excluindo a idéia de associaremse a quem está em luta ativa só conseguem acorrer em auxílio do vencedor quando a batalha já foi ganha96 6 OIND ULTO E SEU SIGNIFICADO Só no ato final tornouse claro que na verdade o drama de Dreyfus era uma comédia O deus ex machina que uniu o país conturbado que fez o Parlamento pronunciarse a favor de novo julgamento e finalmente reconciliou os 95 F Labori Le mal politique et les partis em La Grande Revue outubrodezembro de 1901 A partir do momento em Rennes em que o acusado declarouse culpado e a defesa renunciou ao recurso a um novo julgamento na esperança de ganhar um perdão o processo Dreyfus como uma grande e universal questão humana estava defitivamente encerrado Em seu artigo intitulado Le spectacle du jour Clèmenceau fala dos judeus de Argel por cuja causa Rothschild não levantará o menor protesto 96 Ver os artigos de Clèmenceau Le Spectable du jour Et les Juifs La farce du syndicat e Encore les Juifs emLIniquité 141 elementos díspares do povo da extrema direita aos socialistas foi a Exposição de Paris de 1900 O que os editoriais diários de Clemenceau o patético de Zola os discursos de Jaurès e o ódio popular do clero e da aristocracia não conseguiram fazer isto é mudar a atitude parlamentar em favor de Dreyfus foi finalmente alterado por medo a um boicote O mesmo Parlamento que um ano antes havia unanimente rejeitado uma revisão do julgamento agora com a maioria de dois terços aprovava o voto de censura a um governo antiDreyfus Em julho de 1899 o gabinete WaldeckRousseau subiu ao poder O presidente Loubet indultou Dreyfus e acabou com o processo A Exposição pôde ser inaugurada sob o mais radioso dos céus comerciais seguindoselhe uma confraternização geral até os socialistas eram agora elegíveis para postos no governo Millerand o primeiro socialista a se tornar ministro da Europa recebeu a pasta do Comércio O Parlamento virou defensor de Dreyfus Era o cúmulo Para Clemenceau naturalmente era uma derrota Até o fim ele denunciou como ambíguo o indulto A anistia foi mais ambígua ainda Tudo o que se conseguiu escreveu Zola foi agrupar num mesmo perdão malcheiroso homens honrados e bandidos Todos foram jogados na mesma panela97 No começo Clemenceau permaneceu inteiramente só Os socialistas principalmente Jaurès receberam de bom grado tanto o perdão como a anistia Não encontraram por fim um lugar no governo e maior representação de seus interesses Alguns meses depois em maio de 1900 quando o sucesso da Exposição estava assegurado a verdade verdadeira veio finalmente à tona Todas essas táticas de apaziguamento iriam custar caro aos partidários de Dreyfus A moção em favor de nova revisão do julgamento foi derrotada por 425 votos contra sessenta e nem mesmo o próprio governo de Clemenceau em 1906 pôde mudar a situação não ousou confiar um novo julgamento a um tribunal normal A absolvição ilegal no Tribunal de Apelação foi uma solução de meiotermo Mas a derrota de Clemenceau não significou vitória para a Igreja e para o Exército A separação entre a Igreja e o Estado e a proibição da educação confissional acabaram com a influência política do catolicismo na França Da mesma forma a subordinação do serviço de espionagem ao ministro da Guerra isto é à autoridade que na França é civil privou o Exército de sua influência chantagista sobre o gabinete e sobre a Câmara e tiroulhe qualquer justificativa para conduzir inquéritos policiais por conta própria Em 1909 Drumont era candidato à Academia Tempos antes seu antisemitismo fora louvado pelos católicos e aclamado pelo povo Agora porém o maior historiador desde Fustel segundo Jules Lemaitre cedia lugar a Mareei Prévost autor do algo pornográfico Demivierges e o novo imortal recebeu os parabéns do padre jesuíta Du Lac98 Até mesmo a Companhia de Jesus havia acertado suas diferenças com a Terceira República O encerramento do 97 Cf carta de Zola de 13 de setembro de 1899 em Correspondance lettres à Maitre Labori Em Oeuvres completes Paris 1966 98 Cf Herzog op cit p 97 142 processo Dreyfus marcou o fim do antisemitismo clerical A solução adotada pela Terceira República inocentava o acusado sem lhe conceder julgamento normal enquanto restringia as atividades das organizações católicas Enquanto Bernard Lazare havia pedido direitos iguais para ambos os lados o Estado havia permitido uma exceção para os judeus e outra que ameaçava a liberdade de consciência para os católicos99 As partes em conflito foram colocadas praticamente fora da lei e tanto a questão judaica quanto o catolicismo político foram banidos daí por diante da arena política Assim termina o único episódio no qual as forças subterrâneas do século XIX vêm à plena luz nos registros da história O único resultado visível foi o nascimento do movimento sionista a única resposta política que os judeus encontraram para o antisemitismo e a única ideologia na qual chegaram a levar a sério o comportamento hostil o qual os impeliria para o centro dos acontecimentos mundiais 99 A posição de Lazare no Caso Dreyfus é melhor descrita por Charles Péguy Notre jeunesse em Cahiers de Ia Quinzaine Paris 1910 Encarandoo como o verdadeiro representante dos interesses judeus Péguy assim formula as exigências de Lazare Ele era partidário da imparcialidade da lei Imparcialidade da lei no processo Dreyfus lei imparcial no caso das ordens religiosas Isso parece pouco mas pode ir longe Levouo ao isolamento na hora da morte Lazare foi um dos primeiros dreyfusards a protestar contra a submissão das congregações ao Estado 143 Parte II IMPERIALISMO Se eu pudesse anexaria os planetas Cecil Rhodes PREFÁCIO Poucas vezes o começo de um período histórico pôde ser datado com tanta precisão e raramente os observadores contemporâneos tiveram tanta possibilidade de presenciar o seu fim definitivo como no caso da era imperialista Porque foi só a partir de 1884 que o imperialismo surgido do colonialismo e gerado pela incompatibilidade do sistema de Estados nacionais com o desenvolvimento econômico e industrial do último terço do século XIX iniciou a sua política de expansão por amor à expansão e esse novo tipo de política expansionista diferia tanto das conquistas de característica nacional antes levadas adiante por meio de guerras fronteiriças quanto diferia a política imperialista da verdadeira formação de impérios ao estilo de Roma Por outro lado o seu fim parecia inevitável depois que a liquidação do Império de Sua Majestade a que Churchill não quis presidir se tornou fato consumado em conseqüência da declaração de independência da índia O fato de os ingleses haverem liquidado voluntariamente o seu domínio colonial ainda constitui um dos mais momentosos acontecimentos da história do século XX depois disso nenhuma outra nação européia poderia continuar a reter as suas possessões de ultramar Portugal constituía a única exceção e a estranha capacidade portuguesa de continuar uma luta da qual todas as outras potências coloniais européias já haviam desistido pode ter resultado do seu atraso nacional mais do que da ditadura salazarista Pois não foi apenas mera fraqueza ou cansaço provocados por duas guerras sangrentas numa só geração mas também os escrúpulos morais e as apreensões políticas dos Estados nacionais plenamente desenvolvidos que desaconselharam tanto a introdução de medidas extremas como massacres administrativos A Carthill para derrotar a rebelião pacífica da índia quanto a continuação do governo sobre raças inferiores lorde Cromer cada vez mais temido pelo efeito de bumerangue que poderia exercer sobre o país colonizador Quando finalmente a França graças à até então incólume autoridade de De Gaulle ousou desfazerse da Argélia à qual antes considerava parte tão integrante do seu território quanto o Département de Ia Seine Denominação administrativa oficial do município de Paris N E 147 o mundo em sua evolução política havia atingido um ponto de onde era impossível voltar Aparentemente era dos mais válidos o caminho percorrido com tanta esperança Mas diante da guerra fria entre a União Soviética e os Estados Unidos que se seguiu à guerra quente contra a Alemanha nazista é preciso considerar as últimas décadas como o período em que as duas nações mais poderosas da terra trataram de ocupar posições hegemônicas mais ou menos nas mesmas regiões em que as nações européias haviam imperado antes Da mesma forma somos tentados a ver a política de détente entre a Rússia e os Estados Unidos como a conseqüência do surgimento de uma terceira potência mundial a China e não como resultado natural da destotalitarização da Rússia após a morte de Stálin E se os eventos futuros derem razão a estas interpretações provisórias isso significará em termos históricos que estaremos de volta ao mesmo ponto em que estávamos antes isto é na era imperialista e naquele desastroso caminho que levou o mundo à Primeira Guerra Mundial Já se disse muitas vezes que ps ingleses adquiriram o seu império num momento de descuido em conseqüência de tendências automáticas cedendo ao que parecia factível e ao que era tentador e não como resultado de uma política deliberada Se isso é verdade então o caminho que leva ao inferno pode muito bem ser construído pela ausência de intenções em lugar das proverbiais boas intenções E os fatos objetivos que convidam ao retorno à política imperialista são realmente tão graves hoje que somos inclinados a crer que a afirmação é pelo menos verdadeira pela metade apesar das boas intenções de ambos os lados a acomodação norteamericana com o inviável status quo da corrupção e da incompetência e a arenga pseudorevolucionária da Rússia quanto a guerras de libertação nacional O processo de criar nações em áreas atrasadas onde a ausência de todos os prérequisitos para a independência nacional é tão marcante quanto é óbvio o chauvisnismo violento e estéril leva a enormes vácuos de poder pelos quais a competição entre as superpotências cresce em proporção tanto maior quanto uma vez desenvolvidas as armas nucleares parece estar definitivamente afastada a confrontação direta dos meios de violência que proporcionam um recurso para resolver todos os conflitos Não apenas cada conflito entre as pequenas nações subdesenvolvidas nessas vastas áreas seja uma guerra civil no Vietnã seja um conflito nacional no Oriente Médio atrai imediatamente a intervenção potencial ou real das superpotências mas esses mesmos conflitos ou pelo menos o momento em que são deflagrados parecem estar sendo manipulados ou provocados diretamente por interesses e manobras que nada têm a ver com as lutas e interesses em jogo na própria região Nada caracteriza melhor a política de poder da era imperialista do que a transformação de objetivos de interesse nacional localizados limitados e portanto previsíveis em busca ilimitada de poder que ameaça devastar e varrer o mundo inteiro sem qualquer finalidade definida sem alvo nacional e territorialmente delimitado e portanto sem nenhuma direção previsível Essa volta à antiga prática surge também no nível ideológico pois a famosa teoria de dominó segundo a qual a política externa norteamericana se julga obrigada a fazer a guerra em determi 148 nado país em prol da integridade de outros que nem ao menos são seus vizinhos evidentemente não passa de nova versão do Grande Jogo cujas regras permitiam e até mesmo exigiam que nações inteiras fossem vistas como simples degraus para a conquista das riquezas e para o domínio de um terceiro país que por sua vez se tornava mero degrau no infindável processo de expansão e de acúmulo de poder Foi a respeito dessa reação em cadeia inerente à política imperialista de poder e tão bem representada no nível humano pela figura do agente secreto que Kipling disse em Kim Só quando todos estiverem mortos o Grande Jogo acabará não antes O único motivo pelo qual essa profecia não se realizou foi o freio constitucional dos Estadosnações ao passo que hoje se a nossa esperança de que não venha a realizarse no futuro baseiase em parte também na contenção constitucional da república norte americana ela decorre simultaneamente da autocoibição imposta pelo desenvolvimento tecnológico da era nuclear Não pretendemos negar que o ressurgimento da política e dos métodos imperialistas ocorre em condições e circunstâncias completamente diferentes A iniciativa da expansão ultramarina transferiuse na direção do oeste da Inglaterra e da Europa ocidental para a América e a iniciativa da expansão continental em cerrada continuidade geográfica já não parte da Europa central e oriental mas se localiza exclusivamente na Rússia Foi a política imperialista mais que qualquer outro fator que provocou o declínio da Europa e parecem terse realizado as previsões dos estadistas e historiadores de que os dois gigantes localizados nos flancos leste e oeste das nações européias emergiriam finalmente como herdeiros do poder europeu Hoje ninguém mais procura justificar a expansão com afirmações que a vêem como a carga do homem branco ou como a decorrência da consciência tribal ampliada que pretendia unir os povos de origem étnica semelhante em vez disso falase de compromissos com nações aliadas ou de responsabilidade do poder ou de solidariedade com os movimentos revolucionários de libertação nacional A própria palavra expansão desapareceu do vocabulário político que agora emprega termos como extensão ou união o que diz quase a mesma coisa Mais importantes politicamente os investimentos privados em terras distantes que originalmente constituíam a motivação básica do imperialismo estão hoje superados pela ajuda externa econômica e militar fornecida diretamente aos governos pelos governos Apenas em 1966 o governo americano despendeu 46 bilhões de dólares em ajuda econômica e créditos para o exterior mais 13 bilhão por ano em ajuda militar na década de 195665 enquanto o fluxo de capital privado foi de 369 bilhões de dólares em 1965 e de 391 bilhões em 19661 Isso significa que a era do chamado imperialismo do dólar que foi a versão especificamente norteamericana e politicamente menos perigosa do imperialismo anterior à Segunda Guerra Mundial terminou definitivamente Os investimentos privados 1 Esses números são retirados de Leo Model The politics of private foreign investment e Kenneth M Kauffman e Helena Stalson U S assistance to less developed countries 195665 respectivamente ambos em Foreign Affairs julho de 1967 149 as atividades de quase mil companhias norteamericanas que operam numa centena de países estrangeiros concentradas nos setores mais modernos mais estratégicos e de mais rápido crescimento da economia estrangeira criam muitos problemas políticos mesmo que não sejam protegidos pelo poder da nação que os origina2 mas o auxílio externo mesmo que seja fornecido por motivos puramente humanitários é político por natureza uma vez que desconhece a motivação do lucro Bilhões de dólares têm sido gastos em desertos políticos e econômicos onde a corrupção e a incompetência fizeramnos desaparecer antes que se pudesse dar início a algo produtivo e esse dinheiro não é o capital supérfluo que não podia ser investido produtiva e lucrativamente no país de origem mas o estranho produto da mera abundância que os países ricos podem darse ao luxo de perder Em outras palavras a motivação do lucro cuja importância para a política imperialista foi freqüentemente exagerada mesmo no passado agora desapareceu e somente os países muito ricos e muito poderosos podem suportar as enormes perdas que o imperialismo acarreta Provavelmente é muito cedo e foge a estas considerações analisar e definir com certa confiança essas tendências recentes O que parece incomodamente claro desde já é a força de certos processos aparentemente incontroláveis que tendem a destruir todas as esperanças de evolução constitucional nos novos países e a solapar as instituições republicanas dos países mais velhos Os exemplos são numerosos demais para permitirem uma enumeração mesmo sucinta mas a intromissão do governo invisível de serviços secretos nos assuntos domésticos nos setores culturais educacionais e econômicos da vida é um sinal por demais ominoso para passar desapercebido Não há por que duvidar da declaração de Allan W Dulles de que o serviço de espionagem dos Estados Unidos desde 1947 vem desfrutando de uma posição mais influente em nosso governo do que a espionagem desfruta em qualquer outro governo do mundo3 nem há motivo para acreditar que essa influência tenha diminuído desde que ele fez essa declaração em 1958 O perigo mortal do governo invisível para as instituições do governo visível já foi apontado muitas vezes o que talvez seja menos conhecido é a íntima ligação que tradicionalmente existiu entre a política imperialista e o domínio por meio do governo invisível e dos agentes secretos É um erro pensar que a criação de uma rede de serviços secretos nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial tenha sido a resposta a uma ameaça direta à sua sobrevivência nacional pela rede de espionagem da Rússia soviética a guerra havia guindado os Estados Unidos à posição de maior potência mundial e esse poder mundial e não a existência nacional é que era desafiado pelo poder revolucionário do comunismo dirigido por Moscou4 2 O artigo de L Model citado acima p 641 fornece uma análise muito valiosa e pertinente desses problemas 3 Foi o que disse Allan Dulles num discurso na Universidade Yale em 1957 segundo David Wise e Thomas B Ioss The invisibile government Nova York 1946 p 2 4 Dizia Allan Dulles que o governo tinha de combater fogo com fogo e com a desconcertante franqueza que distinguia o exchefe da CIA dos seus colegas de outros países passava a explicar o que isso queria dizer Pelo visto a CIA tinha de seguir o modelo do Serviço de Segu 150 Quaisquer que tenham sido as causas da ascensão dos Estados Unidos à posição de potência mundial certamente não foi a adoção deliberada de uma política estrangeira que a visasse nem qualquer pretensão de domínio global E o mesmo provavelmente se aplica aos passos recentes e ainda inseguros que esta nação tem dado na direção da política de poder imperialista para a qual a sua forma de governo é menos adequada que a de qualquer outro país O enorme abismo entre os países ocidentais e o resto do mundo não só e nem principalmente em riqueza mas em educação knowhow técnico e competência geral constitui o grave problema das relações internacionais desde o começo da implantação da genuína política de coexistência E esse abismo longe de diminuir nas últimas décadas sob a pressão dos sistemas de comunicação em rápido desenvolvimento e o conseqüente encolhimento das distâncias da terra tem constantemente aumentado e está agora assumindo proporções verdadeiramente alarmantes O crescimento populacional nos países menos desenvolvidos foi duas vezes maior que o dos países mais avançados5 e embora esse fator os obrigue a se voltarem para os que dispõem de alimentos excedentes e de conhecimentos técnicos e políticos ele inutiliza toda a ajuda Obviamente quanto maior a população de um país menos ajuda será recebida per capita e a verdade é que após duas décadas de maciços programas de ajuda todos aqueles países que não tinham a capacidade de se ajudarem a si mesmos como fez o Japão estão hoje mais pobres e mais distantes da estabilidade econômica ou política do que nunca Isso aumenta assustadoramente as possibilidades do imperialismo pela simples razão de que os números em si nunca tiveram tão pouca importância o domínio do branco na África do Sul onde a minoria tirânica é superada em números numa proporção de um para dez nativos provavelmente nunca foi tão seguro como hoje E é essa situação objetiva que transforma toda ajuda externa em instrumento de domínio e coloca todos os países que necessitam desse auxílio para sua sobrevivência física em posição cada vez mais difícil diante da alternativa entre a aceitação de alguma forma de governo de raças superiores e a probabilidade de afundar rapidamente na ruína da anarquia Este livro trata apenas do imperialismo colonial estritamente europeu que terminou com a liquidação do domínio britânico na índia Conta a história da desintegração do Estado nacional que continha quase todos os ingredientes necessários para gerar o subseqüente surgimento dos movimentos e governos totalitários Antes da era imperialista não existia o fenômeno de política mundial e sem ele a pretensão totalitária de governo global não teria sentido Durante esse período contudo o sistema de Estados nacionais revelouse incapaz de elaborar novas normas para o tratamento dos assuntos estrangeiros que se rança do Estado Soviético que é mais que uma organização de polícia secreta mais que uma organização de espionagem e contraespionagem É um instrumento para a subversão manipulação e violência para a intervenção secreta nos assuntos de outros países O grifo é do autor Ver Allan W Dulles Thecraftofintelligence Nova York 1963 p 155 5 Ver o artigo de Orville L Freeman Malthus Marx and the North American breadbasket emForeign Affairs julho de 1967 151 haviam tornado assuntos globais e de impor a sua pax romana ao resto do mundo Sua estreiteza ideológica e miopia política conduziram ao desastre do totalitarismo cujos horrores sem precedentes anularam a gravidade dos eventos ominosos e a mentalidade ainda mais ominosa do período precedente Assim os estudiosos do período totalitário têmse concentrado quase exclusivamente na Alemanha de Hitler e na Rússia de Stálin esquecendo os seus predecessores menos nocivos enquanto o domínio imperialista a não ser para fins de insulto parece semi esquecido o que é deplorável principalmente porque é mais do que óbvia a sua relevância para todos os acontecimentos contemporâneos Assim a controvérsia sobre a guerra não declarada dos Estados Unidos contra o Vietnã tem sido conduzida de ambos os lados em termos de comparações com exemplos tomados aos anos 30 época em que o domínio totalitário era realmente o único perigo claro e presente demasiado presente mas as ameaças e palavras têm semelhança muito mais agourenta com os atos e justificações verbais que precederam a eclosão da Primeira Grande Guerra quando uma centelha em região periférica e de interesse secundário para todos os interessados serviu de estopim a uma conflagração de dimensões mundiais Acentuar a infeliz relevância desse período semiesquecido para os eventos contemporâneos não significa naturalmente nem que a sorte esteja lançada e que estejamos entrando em novo período de política imperialista nem que o imperialismo deva sempre terminar no desastre do totalitarismo Por mais que possamos aprender com o passado isso não nos torna capazes de conhecer o futuro Hannah Arendt Julho de 1967 152 1 A EMANCIPAÇÃO POLÍTICA DA BURGUESIA Três décadas de 1884 a 1914 separam o século XIX que terminou com a corrida dos países europeus para a África e com o surgimento dos movimentos de unificação nacional na Europa do século XX que começou com a Primeira Guerra Mundial É o período do Imperialismo da quietude estagnante na Europa e dos acontecimentos empolgantes na Ãsia e na África1 Certos aspectos fundamentais dessa época assemelhamse tanto aos fenômenos totali tários do século XX que se poderia considerar esse período como estágio preparatório para as catástrofes vindouras Por outro lado sua calmaria faz com que pareça ainda parte integrante do século XIX Não podemos deixar de ver esse passado tão próximo e contudo tão remoto com os olhos demasiado bem informados de quem conhece o fim da estória e sabe que ele levou a uma interrupção quase completa do fluxo da história pelo menos no que diz respeito ao Ocidente como a conhecíamos havia mais de 2 mil anos No entanto devemos também confessar uma certa nostalgia pelo que ainda se pode chamar idade de ouro da segurança ou seja por uma época em que mesmo os horrores eram ainda caracterizados por certa moderação e controlados por certa respeitabilidade e podiam portanto conservar alguma relação com a aparência geral de sanidade social Em outras palavras por mais historicamente próximo que esteja esse passado a experiência ulterior de campos de concentração e fábricas de morte é tão alheia à sua atmosfera quanto o é de qualquer outro período anterior da história do Ocidente O principal evento intraeuropeu do período imperialista foi a emancipação política da burguesia a primeira classe na história a ganhar a proeminência econômica sem aspirar ao domínio político A burguesia havia crescido dentro e junto do Estadonação que quase por definição governava uma sociedade dividida em classes colocandose acima e além delas Mesmo quando 1 J A Hobson Imperialism Londres 1905 1938 p 19 Embora por conveniência o ano de 1870 tenha sido tomado como indicativo do início de uma política consciente de Imperialismo é evidente que esse movimento não atingiu o seu pleno ímpeto até meados da década de 80 mais precisamente a partir de cerca de 1884 153 a burguesia já se havia estabelecido como classe dominante delegara ao Estado todas as decisões políticas Só quando ficou patente que o Estadonaçãonão se prestava como estrutura para maior crescimento da economia capitalista a luta latente entre o Estado e a burguesia se transformou em luta aberta pelo poder Durante o período imperialista nem o Estado nem a burguesia conquistaram uma vitória definitiva As instituições nacionalestatais resistiram à brutalidade e à megalomania das aspirações imperialistas dos burgueses e as tentativas burguesas de usar o Estado e os seus instrumentos de violência para seus próprios fins econômicos tiveram apenas sucesso parcial Isso mudou quando a burguesia alemã apostou tudo no movimento hitlerista para governar com o auxílio da escória mas já era tarde demais para a total conquista do poder a burguesia conseguiu destruir o Estadonação que lhe perturbava o exercício da hegemonia mas foi uma vitória de Pirro a ralé mostrouse perfeitamente capaz de cuidar da política por si mesma e liquidou a burguesia juntamente com todas as outras classes e instituições 1 A EXPANSÃO E O ESTADONAÇÃO A expansão é tudo disse Cecil Rhodes deprimido ao ver no céu essas estrelas esses vastos mundos que nunca poderemos atingir Se eu pudesse anexaria os planetas2 Em menos de duas décadas as possessões coloniais britânicas cresceram em 115 milhões de km2 e 66 milhões de habitantes a França ganhou 9 milhões de km2e 26 milhões de pessoas os alemães formaram um novo império com 13 milhões de nativos e a Bélgica adquiriu 25 milhões de km2 com uma população de 85 milhões3 No entanto num rasgo de sabedoria Rhodes reconhecia ao mesmo tempo a inerente loucura dessa época e a sua contradição com a natureza humana Naturalmente nem essa sabedoria nem a tristeza dela decorrente alteraram o seu modo de agir A ele pouco importavam esses rasgos de clarividência que o levavam muito além da capacidade normal de um comerciante ambicioso com fortes tendências de megalomania A política mundial é para uma nação o que a megalomania é para um indivíduo4 disse no mesmo momento Eugen Richter líder do Partido Progressista alemão Mas a sua oposição no Reichstag à proposta de Bismarck de ajudar as companhias particulares a instalarem entrepostos marítimos e de comércio no ultramar demonstrou claramente que ele não conhecia as necessidades econômicas de uma nação burguesa daquela época Parecia que aqueles que se opunham ou ignoravam o imperialismo como Eugen Richter na Ale 2 S Gertrude Millin Rhodes Londres 1933 p 138 3 Esses algarismos citados por Cartton H H Hayes A generation ofmaterialism Nova York 1941 p 237 referemse ao período de 1871 a 1900 Ver também Hobson op cit p 19 4 Ernst Hasse Deutsche Weltpolitik Política mundial alemã Flugschriften des Alldeutschen Verbandes Folhas da Liga Pangermânica n 5 1897 p 1 154 manha Gladstone na Inglaterra ou Clemenceau na França haviam perdido contato com a realidade e não compreendiam que o comércio e a economia haviam envolvido todas as nações atrelandoas à política mundial O princípio nacionalista conduzia à ignorância provinciana e a luta contra a loucura estava perdida A oposição dos estadistas à expansão imperialista gerava ao lado da moderação a confusão política Em 1871 Bismarck rejeitou a oferta de possessões francesas na África em troca da AlsáciaLorena e vinte anos mais tarde adquiriu da GrãBretanha a pequena ilha de Heligoland em troca de Uganda Zanzibar e Vitu dois reinos por um banho de mar como os imperialistas alemães lhe disseram não sem razão E foi assim que na década de 80 do século XIX Clemenceau se opôs aos imperialistas da França quando quiseram enviar uma força expedicionária contra os ingleses no Egito e trinta anos mais tarde cedeu à Inglaterra os campos de petróleo do Mossul em troca da aliança anglofrancesa E foi por atitudes parecidas que Gladstone foi denunciado por Cromer como um homem a quem os destinos do Império Britânico não podem ser confiados com segurança Não era sem motivo que os estadistas homens que pensavam primariamente em termos do território nacional estabelecido desconfiavam do imperialismo mas este superava o que eles chamavam simploriamente de aventuras de ultramar Sabiam mais por instinto que por discernimento que esse movimento de expansão no qual o patriotismo se mede mais pelos lucros HuebbeSchleiden e a bandeira nacional é um trunfo econômico Rhodes só podia destruir o corpo político do Estadonação A conquista de novas terras e a fundação de um império eram alvos que haviam perdido a respeitabilidade por motivos muito sólidos Foram realizadas com êxito por governos que como o da República Romana eram primariamente baseados na lei de modo que a conquista podia levar à integração de povos heterogêneos graças à imposição de uma lei comum Contudo baseado no ativo consentimento le plebiscite de tous lesjours5 dado ao governo pela população homogênea o Estadonação ignorava esse princípio unificador e em caso de conquista teria de assimilar e não integrar impor o consentimento e não a justiça degenerando assim em tirania Já Robespierre sabia disso muito bem quando exclamou Périssent les colonies si elles nous coutent 1honneur Ia liberte Morram as colônias se elas nos custam a honra e a liberdade A expansão como objetivo permanente e supremo da política é a idéia central do imperialismo Não implica a pilhagem temporária nem a assimilação duradoura características da conquista Parecia um conceito inteiramente novo na longa história do pensamento e ação políticos embora na realidade não fosse um conceito político mas econômico já que a expansão visa ao permanente 5 Ernest Renan em seu clássico ensaio Qu estce quune nation Paris 1882 acentuava que o real consentimento o desejo de viver em comum a vontade de preservar dignamente a herança indivisível que foi legada eram os principais elementos que mantêm juntos os membros de um povo de modo a que eles constituam uma nação 155 crescimento da produção industrial e das transações comerciais alvos supremos do século XIX Na esfera econômica a expansão correspondia ao crescimento industrial realidade desejada e exeqüível porquanto a expansão significava o aumento da produção de bens a serem consumidos O processo de produção é tão ilimitado quanto a capacidade do homem de organizar produzir fornecer e consumir Quando se reduzem a produção e o crescimento econômico as causas são mais políticas do que econômicas já que a produção depende de muitos povos diferentes organizados em corpos políticos diversos que produzem e consomem de maneira incontrolavelmente desigual O imperialismo surgiu quando a classe detentora da produção capitalista rejeitou as fronteiras nacionais como barreira à expansão econômica A burguesia ingressou na política por necessidade econômica como não desejava abandonar o sistema capitalista cuja lei básica é o constante crescimento econômico a burguesia tinha de impor essa lei aos governos para que a expansão se tornasse o objetivo final da política externa Com o lema expansão por amor à expansão a burguesia tentou e parcialmente conseguiu persuadir os governos nacionais a enveredarem pelo caminho da política mundial Durante algum tempo a política proposta parecia ter limites e equilíbrios decorrentes da simultaneidade da competição expansionista entre as nações Em sua fase inicial o imperialismo podia ainda ser descrito como uma luta de impérios em concorrência diferente da idéia de império no mundo antigo e medieval que era a de federação de Estados sob uma hegemonia cobrindo todo o mundo conhecido6 Mas de acordo com o princípio nacional ainda em voga a humanidade constituía uma família de nações que disputavam a primazia e entre as quais a competição estabilizaria automaticamente seus limites antes que um competidor se impusesse sobre os demais Esse feliz equilíbrio no entanto certamente não correspondia ao inevitável resultado de misteriosas leis econômicas antes dependia de instituições políticas e ainda mais de instituições policiais que não permitiam aos concorrentes o uso de revólveres Dificilmente se pode compreender como a concorrência entre empresas comerciais impérios armadas até os dentes terminasse de outro modo que não a vitória para uma e morte para as outras Em outras palavras a concorrência como a expansão não é um princípio político ambas se baseiam em força política Contrariamente à estrutura econômica a estrutura política não pode expandirse infinitamente porque não se baseia na produtividade do homem que é de certo modo ilimitada pelo menos teoricamente De todas as formas de governo e organização de povos o Estadonação é a que menos se presta ao crescimento ilimitado porque a sua base que é o consentimento genuíno da nação não pode ser distendida além do próprio grupo nacional dificilmente conseguindo o apoio dos povos conquistados Nenhum Estadonação pode em sã consciência tentar conquistar povos estrangeiros a não ser que essa cons 6 Hobson op cit 156 ciência advenha da convicção que a nação conquistadora tem de estar impondo uma lei superior a sua a um povo de bárbaros7 A nação porém concebe as leis como produto da sua substância nacional que é única e não é válida além dos limites do seu próprio território não correspondendo aos valores e anseios dos outros povos Sempre que o Estadonação surgia como conquistador despertava a consciência nacional e o desejo de soberania no povo conquistado criando com esse ato um obstáculo para a execução da sua tentativa de construir um império Assim foi que os franceses incorporaram a Argélia como província da naçãomãe sem jamais conseguirem impor suas leis a um povo diferente Ao contrário acabaram respeitando a lei muçulmana e concedendo status especial aos cidadãos árabes nominalmente franceses o que produzia a híbrida insensatez de um território juridicamente francês que por lei era tão parte da França quanto o Département de Ia Seine mas cujos habitantes supostamente cidadãos franceses não eram cidadãos franceses pois adquiriram a consciência da sua diferenciação nacional quando a perderam legalmente por imposição Os antigos fundadores de impérios britânicos confiando na conquista como método permanente de domínio jamais conseguiram incorporar à vasta estrutura do Império Britânico ou da Comunidade Britânica de Nações os seus vizinhos mais próximos os irlandeses Essa mais antiga possessão denunciou unilateralmente sua condição de domínio em 1937 e rompeu todos os laços com a nação inglesa quando se recusou a participar da guerra A conquista permanente o fato de a Inglaterra ter simplesmente deixado de destruir a Irlanda Chesterton despertou muito menos o gênio do imperialismo8 nos ingleses do que havia despertado nos irlandeses o espírito de resistência nacional A estrutura nacional do Reino Unido tornara impossível a pronta assimilação e incorporação dos povos conquistados a Comunidade Britânica nunca foi apesar do nome uma Comunidade de Nações mas sim um herdeiro multiterritorial do Reino Unido em que os ingleses quiseram ver uma só nação espalhada pelo mundo A dispersão e a colonização transplantavam sem expandila a estrutura política Os ingleses visavam ligar por meio de leis comuns as nações membros do novo corpo federado ao seu país natal Mas o exemplo irlandês mostra quão despreparado estava o Reino Unido para criar uma estrutura imperial na qual muitos povos diferentes pudessem viver juntos 7 Essa máconsciência florescendo da crença no consenso enquanto fundamento de toda organização política é bem descrita por Harold Nicolson Curzon the last phase 19191925 BostonNova York 1934 na discussão da política britânica no Egito A justificação de nossa presença no Egito permanece baseada não no defensável direito de conquista ou na força mas na nossa própria crença no elemento do consenso Esse elemento em 1919 não existia em nenhuma forma articulada Ele foi dramaticamente desafiado pela explosão egípcia de março de 1919 8 Como lorde Salisbury colocou a questão regozijandose com a derrota do primeiro Home Rule Bill de Gladstone Durante os vinte anos seguintes de governo conservador e àquela época 18851905 imperialista o conflito angloirlandês não apenas não se resolveu mas também tornouse muito mais agudo Ver também Gilbert K Chesterton The crimes of England 1915 pp 57 ss 157 a contento9 A nação britânica revelou desconhecer a arte romana de criar um império embora cultivasse o modelo grego de colonização Em lugar de conquistar povos estrangeiros impondo lhes a sua lei os colonizadores ingleses estabeleciamse nos territórios recémconquistados mas onde quer que estivessem nos quatro cantos do mundo permaneciam membros da mesma nação britânica10 A estrutura federativa da Comunidade admiravelmente baseada em teoria na realidade de uma nação espalhada sobre a terra não foi suficientemente adequada para aceitar povos permanentemente nãobritânicos como sócios da empresa igualmente habilitados para gerila A condição de Domínio da índia absolutamente rejeitada pelos nacionalistas indianos ainda durante a Segunda Guerra Mundial foi considerada apenas uma solução temporária e transitória11 A inerente contradição entre o corpo político da nação e a conquista como mecanismo político tornouse óbvia desde o fracasso do sonho napoleônico Foi devido a essa experiência e não por motivos humanitários que a conquista foi desde então condenada como método de ação do Estadonação passando a ter importância insignificante mesmo no ajuste de conflitos fronteiriços O fracasso de Napoleão na tentativa de unir a Europa sob a bandeira francesa indicou que a conquista leva o povo conquistado ao despertar da sua consciência nacional e à conseqüente rebelião contra o conquistador ou à tirania deste E embora 9 È difícil entender por que durante a fase inicial de desenvolvimento nacional inglês dos Tudor a Irlanda não foi incorporada à GrãBretanha como os Valois haviam conseguido incorporar a Bretanha e a Borgonha à França Pode ser no entanto que um processo semelhante tenha sido brutalmente interrompido pelo regime de Cromwell que tratou a Irlanda como se fosse um simples despojo de guerra a ser dividido entre os seus seguidores De qualquer forma após a Revolução de Cromwell que foi tão crucial para a formação da nação britânica como a Revolução Francesa foi para os franceses o Reino Unido já havia atingido aquele estágio de maturidade que é sempre seguido da perda de poder de assimilação e integração que o corpo político da nação possui somente em seus estágios iniciais O que se seguiu depois foi realmente uma longa e triste história de coação imposta não para que o povo pudesse viver em paz mas para que o povo pudesse morrer em paz Chesterton op cit p 60 Para um estudo histórico da questão irlandesa ver o excelente e imparcial Britam and Ireland deNicholasManserghLongmansPamphletson theBritish Commonwealth Londres 1942 10 Muito característica é a seguinte declaração de J A Froude feita pouco antes do início da era imperialista Que fique estabelecido de uma vez que um inglês que emigrou para o Canadá ou para o Cabo ou para a Austrália ou para a Nova Zelândia não renunciou à sua nacionalidade mas permaneceu em solo inglês como se estivesse em Devonshire ou Yorkshire e permanecerá inglês enquanto durar o Império Britânico e que se gastássemos um quarto do dinheiro que foi atolado nos pântanos de Balaclava para enviar e estabelecer dois milhões de ingleses nessas colônias isso contribuiria mais para a força do nosso país do que todas as guerras em que nos metemos de Agincourt a Waterloo Citado por Robert Livingston Schuyler The fali of the old colonial system Nova York 1945 pp 2801 11 O eminente escritor sulafrícano Jan Disselboom expressou com bastante crueza a atitude dos povos da Comunidade a esse respeito A GrãBretanha é meramente um sócio da firma constituída de descendentes da mesma estirpe As partes do Império não habitadas pelas raças a que isso se aplica nunca foram sócias da firma Eram a propriedade privada do sócio importante Podese ter o domínio branco ou podese ter o Domínio da Índia mas não a ambos Citado por A Carthill The lost dominion 1924 158 a tirania por não necessitar de consentimento possa dominar com sucesso povos estrangeiros só pode permanecer como forma de poder se destruir antes de mais nada as instituições nacionais do seu próprio povo Os franceses em contraste com os britânicos e todas as outras nações da Europa chegaram a tentar ainda antes da Segunda Guerra Mundial uma combinação de ius com imperium para fundar um império no velho sentido romano Procuraram transformar a estrutura política da nação numa estrutura política imperial e acreditavam que a nação francesa estivesse marchando para disseminar os benefícios da civilização francesa Queriam incorporar à estrutura nacional as possessões ultramarinas tratando os povos conquistados como irmãos e súditos irmãos na fraternidade da civilização francesa comum e súditos no sentido de serem discípulos da luz francesa e seguidores da liderança francesa12 Em parte isso foi realizado quando representantes de populações africanas sentaramse no Parlamento francês e quando a Argélia foi declarada departamento da França Mas o resultado desse empreendimento foi uma exploração particularmente brutal das possessões de ultramar em benefício da nação A despeito de todas as teorias em contrário o Império Francês era realmente avaliado do ponto de vista da defesa nacional13 e as colônias eram consideradas terras de soldados capazes de produzir uma force noire que protegesse os habitantes da França contra os seus inimigos naturais A famosa frase de Poincaré de 1923 a França não é um país de 40 milhões é um país de 100 milhões indicava simplesmente a descoberta de uma forma econômica de dispor de carne para canhãou Quando Clemenceau insistiu na mesa de conferência de paz em 1918 em que nada lhe importava senão o direito ilimitado de recrutar tropas para ajudar a defesa do território francês na Europa se a França viesse a ser atacada no futuro pela Alemanha15 não salvou a nação francesa da agressão alemã embora o seu plano fosse posto em prática pelo EstadoMaior mas assestou um golpe mortal na possibilidade ainda hipotética de um Império Francês16 Em 12 Ernest Baker Ideas and ideais ofthe British Empire Cambridge 1941 p 4 Ver também as observações introdutórias sobre os fundamentos do Império Francês em The French Colonial Empire Information Department Papers n 25 publicados pelo Royal Instirute of International Affairs Londres 1941 pp 9 ss O objetivo é assimilar ao povo francês os povos coloniais ou quando isso não for possível nas comunidades mais primitivas associálos de modo que cada vez mais a diferença entre Ia France metrópole e Ia France doutremer seja geográfica e não fundamental 13 Ver G Hanotaux Le General Mangin em Revue des Deux Mondes 1925 t 27 14 W P Crozier France and her black empire em New Republic 23 de janeiro de 1924 15 David Lloyd George Memoirs ofthe Peace Conference New Haven 1939 I 362 ss A presença das tropas africanas na Europa provocou uma veemente reação de Hitler que em Mein Kampf acusa a França de conspurcar assim a pureza da raça branca na Europa NE 16 Uma tentativa semelhante de exploração das possessões de ultramar em favor da nação foi feita pela Holanda nas índias Orientais Holandesas depois que a derrota de Napoleão devolveu as colônias holandesas à mãepátría muito empobrecida Os nativos foram reduzidos à escravidão em benefício do governo da Holanda 159 comparação com esse nacionalismo cego e desesperado os imperialistas britânicos aceitando o sistema de mandatos pareciam guardiões da autodeterminação dos povos apesar do fato de terem abusado do sistema através dos governos indiretos um método que permite ao administrador governar um povo não diretamente mas através das autoridades tribais e locais17 Os britânicos procuraram criar o império abandonando os povos conquistados aos mecanismos de sua própria cultura religião e lei mantendose afastados e evitando disseminar a lei e a cultura britânicas Isso não impediu que os nativos desenvolvessem o sentimento de consciência nacional e clamassem por soberania e independência embora possa ter retardado o processo Agindo assim os britânicos fortaleciam o conceito imperialista baseado em superioridade fundamental de elementos elevados sobre os inferiores Por sua vez tal conceito exacerbava a luta pela liberdade entre os povos dominados e os impedia de aceitarem os indiscutíveis benefícios do domínio britânico A atitude dos administradores que embora respeitassem os nativos como povo e em alguns casos sentissem até amor por eles quase unanimemente descriam que eles fossem ou jamais viessem a ser capazes de se governarem sem supervisão18 levava os nativos a concluírem que o colonizador os excluía e separava para sempre do resto da humanidade Imperialismo não é construção de impérios e expansão não é conquista Os conquistadores britânicos os velhos infratores da lei na índia Burke tinham pouco em comum com os exportadores de dinheiro britânico ou com os administradores dos povos indianos Se esses últimos elaborassem leis em vez de baixar decretos poderiam terse tornado construtores de um império O fato contudo é que a nação inglesa não estava interessada nisso e dificilmente tê losia apoiado O que aconteceu é que os negociantes de mentalidade imperialista foram seguidos por funcionários desejosos de deixar o africano perma O Max Havelaar de Multatuli publicado pela primeira vez nos anos 60 do século passado destinavase ao governo na metrópole e não aos serviços no exterior Ver De Kat Angelino Colonialpolicy vol II The Dutch Eastíndia Chicago 1931 p 45 Esse sistema foi logo abandonado e as Índias Holandesas durante algum tempo mereceram a admiração de todas as nações colonizadoras Sir Hesketh Bell exgovernador da Uganda da Nigéria do Norte etc em Foreign colonial administration in the Far East 1928 parte I Os métodos holandeses assemelhamse aos dos franceses a outorga de status de europeus aos nativos que o mereciam introdução de um sistema escolar europeu e de outros meios de assimilação Com isso os holandeses conseguiram o mesmo resultado um forte movimento de independência nacional entre o povo dominado No presente estudo deixamos de lado o imperialismo holandês e o belga O primeiro é uma mistura curiosa e mutável de métodos franceses e ingleses o segundo não é a história da expansão da nação belga nem mesmo da burguesia belga mas da expansão do rei belga pessoalmente irrefreada por qualquer instituição Tanto o imperialismo holandês como o belga são atípicos A Holanda não se expandiu durante os anos 80 mas apenas consolidou e modernizou suas antigas possessões Por outro lado as atrocidades sem paralelo cometidas no Congo Belga pela companhia colonizadora pertencente ao rei não espelham o que estava acontecendo de modo geral nas demais possessões européias de ultramar 17 Ernest Barker op cit p 69 18 Selwyn James South ofthe Congo Nova York 1943 p 326 160 necer africano enquanto um bom número de outros apegados ainda ao que Harold Nicolson chamou certa vez de ideais de infância queriam ajudálo a tornarse um africano melhor20 seja lá o que isso pudesse significar mas de nenhum modo estavam dispostos a aplicar o sistema administrador e político do seu país para governar as populações atrasadas21 e realmente unir as vastas possessões da Coroa Britânica à nação inglesa Contrariamente às verdadeiras estruturas imperiais em que as instituições da naçãomãe se integram de várias maneiras às do império que criam é característico do imperialismo permanecerem as instituições nacionais separadas da administração colonial embora se lhes permita exercer controle O verdadeiro motivo dessa separação estava na curiosa mistura de arrogância e respeito a arrogância dos administradores que sabiam lidar com populações atrasadas ou raças inferiores contrabalançada pelo respeito dos estadistas antiquados no país de origem que acalentavam as idéias de que nenhuma nação tinha o direito de impor sua lei sobre um povo estrangeiro A arrogância yeio a ser um meio de domínio enquanto o respeito idealista tornado negativo não produziu nenhuma nova forma de convívio entre os povos mal conseguindo conservar dentro de certos limites as autoridades imperialistas que governavam por decretos Mas os serviços coloniais nunca cessaram de protestar contra a interferência da maioria inexperiente isto é a nação que tentava forçar a minoria experiente os administradores imperialistas na direção da imitação22 ou seja na linha do governo norteado pelos padrões gerais de justiça e liberdade válidos apenas no país de origem O surgimento de um movimento de expansão em Estadosnações que mais que qualquer outro corpo político eram definidos por fronteiras e pelas limitações de possíveis conquistas é um exemplo das disparidades aparentemente absurdas entre causa e efeito que assinalam a história moderna A terrível confusão da terminologia histórica moderna é apenas um subproduto dessas disparidades Fazendo comparações com os impérios antigos os historiadores modernos confundem expansão com conquista desprezam a diferença entre Comunidade e Império como os historiadores préimperialistas confundiam a diferença entre plantações e possessões ou colônias e dependências ou mais tarde colonialismo e imperialismo23 e ignoram em outras palavras a 19 Acerca desses ideais de infância e do papel que tiveram no imperialismo britânico ver o capítulo 7 O modo como surgiram e foram cultivados é descrito em Rudyard Kipling Stalky and Company 20 Ernest Barker op cit p 150 21 Lorde Cromer The government of subject races em Edinburgh Review janeiro de 1908 22 Ibid 23 O primeiro erudito a usar o termo imperialismo para distinguir claramente entre o Império e a Comunidade foi J A Hobson Mas a diferença essencial sempre foi bem conhecida O princípio da liberdade colonial por exemplo acalentado por todos os estadistas liberais ingleses depois da Revolução Americana só seria válido se a colônia fosse constituída de cidadãos britânicos ou misturas da população britânica que tornassem segura a introdução de institui 161 diversificação essencial existente entre a exportação de gente britânica e a exportação de dinheiro britânico24 Os historiadores contemporâneos diante do espetáculo proporcionado pelos capitalistas engajados em buscas predatórias empreendidas em todo o mundo por novas possibilidades de investimentos atribuem ao imperialismo a antiga grandeza de Roma e de Alexandre grandeza que tornaria as conseqüências do imperialismo mais toleráveis do ponto de vista humano A única grandeza do imperialismo está na batalha que a nação trava e perde contra ele A tragédia dessa oposição hesitante não está apenas no fato de muitos representantes nacionais terem sido comprados pelos novos comerciantes imperialistas pois pior do que a corrupção era a convicção dos incorruptos de que o imperialismo era a única maneira de conduzir a política mundial Uma vez que os entrepostos marítimos e o acesso às matériasprimas eram realmente necessários a todas as nações eles passaram a acreditar que a anexação e a expansão contribuíam para salvar o país Foram os primeiros a confundir a diferença fundamental entre o estabelecimento de entrepostos marítimos e mercantis para fins de comércio e a nova política de expansão Acreditaram em Cecil Rhodes quando ele lhes aconselhou que acordassem para o fato de que não podiam viver sem o comércio mundial que seu comércio é o mundo e sua vida é o mundo e não a Inglaterra e que portanto deviam cuidar dás questões de expansão e de retenção do mundo25 Sem querer e às vezes mesmo sem o saber tornavamse não apenas cúmplices da política imperialista mas também os primeiros a serem culpados e condenados por seu imperialismo Foi este o caso de Clemenceau que por preocuparse desesperadamente com o futuro da nação francesa virou imperialista na esperança de que a mãodeobra colonial protegesse os cidadãos franceses contra a agressão A consciência da nação representada pelo Parlamento e pela imprensa livre funcionou e foi sentida pelos administradores coloniais em todos os países europeus colonizadores Na Inglaterra para diferenciar entre o governo imperialista sediado em Londres e controlado pelo Parlamento e os administradores coloniais essa influência foi chamada de fator imperial Assim creditaramse ao imperialismo os méritos e o remanescente da justiça que ele tão ansiosamente buscava eliminar26 O fator imperial era expresso politicamente no ções representativas Ver Robert Livingston Schuyler op cit pp 236 ss No século XIX existiam três tipos de presença ultramarina britânica dentro do Império as povoações ou plantações ou colônias como a Austrália os entrepostos comerciais e possessões como a índia e os postos marítimos e militares como o Cabo da Boa Esperança mantidos para garantia dos primeiros 24 Ernest Barker op cit 25 Millin op cit p 175 26 A origem dessa denominação imprópria está provavelmente na história do domínio inglês na África do Sul e data dos tempos em que os governadores locais Cecil Rhodes e Jameson envolveram o Governo Imperial de Londres contra as intenções deste último na guerra contra os bôeres De fato Rhodes ou melhor Jameson era o senhor absoluto de um território três vezes maior que a Inglaterra que podia ser administrado sem ter de esperar pelo relutante consenti 162 conceito de que os nativos eram não apenas protegidos mas de certa forma representados pelo Parlamento britânico o Parlamento Imperial27 Com esse conceito os ingleses se aproximaram da experiência imperial francesa embora nunca tivessem chegado a outorgar representação real aos povos conquistados Contudo esperavam que a nação como um todo soubesse agir como espécie de curador em relação ao povos dominados e é verdade que sempre fizeram o possível para evitar o pior O conflito entre os representantes do fator imperial que seria melhor chamar de fator nacional e os administradores coloniais marca indelevelmente toda a história do imperialismo britânico A prece que Cromer dirigiu a lorde Salisbury durante sua administração do Egito em 1896 Deus me livre dos Departamentos Ingleses28 foi repetidamente ouvida até que na década dos 20 do século XX a nação e tudo o que ela representava foram abertamente responsabilizados pelos imperialistas pela futura perda da índia que já se esboçava Os imperialistas nunca se haviam conformado com o fato de o governo colonial da índia ter de justificar sua existência e sua política perante a opinião pública da Inglaterra esse controle impossibilitava lançar mão daquelas medidas de massacres administrativos29 que imediatamente após a Primeira Guerra Mundial haviam sido ocasionalmente experimentadas em toda parte como meio radical de pacificação30 e que realmente poderiam ter impedido a independência da índia Hostilidade semelhante prevaleceu na Alemanha entre os representantes nacionais e os administradores coloniais da África Em 1897 Carl Peters foi removido do seu posto no Sudeste Africano Alemão e teve de se demitir do serviço público devido a atrocidades ali cometidas contra os nativos O mesmo mento ou pela educada censura do altocomissário que era o representante de um Governo Imperial detentor apenas de controle nominal Reginald Ivan Lovell The strugglefor South África 18751899 Nova York 1934 p 194 E o que aconteceu com os territórios nos quais o governo britânico entregou sua jurisdição à população européia local desprovida dos freios tradicionais e constitucionais dos Estadosnações pode ser visto na trágica história da União da África do Sul desde a sua independência isto é desde quando o governo Imperial deixou de ter o direito de interferência 27 A discussão entre Charles Dilke e o secretário das Colônias na Câmara dos Comuns em maio de 1908 é interessante a esse respeito Dilke advertiu contra a concessão de autogoverno às colônias da Coroa porque isso resultaria no domínio dos plantadores brancos sobre os trabalhadores de cor Foilhe dito que os nativos também eram representados na Câmara dos Comuns da Inglaterra 28 LawrenceJ Zetland Lord Cromer 1923 p 224 29 A Carthill Thelost dominion 1924 pp 412 93 30 Um exemplo de pacificação no Oriente Próximo foi descrito detalhadamente por T E Lawrence num artigo France Britain and the Arabs escrito para The Observer 1920 Diante do sucesso preliminar dos árabes os reforços britânicos são enviados em missão punitiva O objetivo é bombardeado pela artilharia aviões ou canhoneiras Finalmente incendeiase uma aldeia e o distrito é pacificado É estranho que não usemos gases venenosos nessas oportunidades Bombardear as casas é um modo inadequado de matar as mulheres e as crianças Se atacássemos com gás toda a população de distritos delinqüentes poderia ser eliminada completamente e como método de governo não seria menos imoral que o sistema atual Ver suas Letters editadas por David Garnett Nova York 1939 pp 311 ss 163 sucedeu ao governador Zimmerer E em 1905 os chefes tribais dirigiram suas queixas pela primeira vez ao Reichstag de forma que quando os administradores coloniais os aprisionaram o governo alemão interveio31 O mesmo ocorreu com o domínio francês Os governadoresgerais nomeados pelo governo estavam sujeitos a fortes pressões dos colonos franceses como na Argélia ou simplesmente se recusavam a realizar reformas no tratamento dos nativos inspiradas segundo eles nos frágeis princípios democráticos de seu governo32 Em toda parte os administradores imperialistas achavam que o controle da naçãomãe constituía uma carga insuportável e uma ameaça à dominação E estavam absolutamente certos Conheciam bem as maneiras de subjugar os povos melhor do que aqueles que de um lado protestavam contra o governo por meio de decretos e contra a burocracia arbitrária e do outro esperavam conservar para sempre suas possessões para a glória maior do país Os imperialistas sabiam melhor que os nacionalistas que a estrutura política da nação era capaz de construir impérios Sabiam perfeitamente que a marcha da nação e a conquista de outros povos se seguissem o seu curso natural terminariam com os povos conquistados constituindose em nações e derrotando o conquistador Os métodos franceses portanto que sempre buscavam combinar as aspirações nacionais com o estabelecimento de um império tiveram muito menos sucesso que os métodos ingleses os quais após a década de 80 eram abertamente imperialistas embora refreados por uma naçãomãe que conservava suas instituições democráticas nacionais 2 O PODER EA BURGUESIA O que os imperialistas realmente desejavam era a expansão do poder político sem a criação de um corpo político A expansão imperialista havia sido deflagrada por um tipo curioso de crise econômica a superprodução de capital e o surgimento do dinheiro supérfluo causado por um excesso de poupança que já não podia ser produtivamente investido dentro das fronteiras nacionais Pela primeira vez o investimento de poderio não abria o caminho ao investimento de dinheiro mas a exportação do poder acompanhava os caminhos do dinheiro exportado seguindoo de perto visto que investimentos incontrolados nos países distantes ameaçavam transformar as vastas camadas da sociedade em meros jogadores mudar toda a economia capitalista de sistema de produção para um sistema de especulação financeira e substituir os lucros da produção por lucros de comissão Na década imediatamente anterior à era imperialista 31 Por outro lado em 1910 o secretário das Colônias Dernburg teve de renunciar ao cargo porque havia antagonizado os plantadores coloniais protegendo os nativos Ver Bary E Townsend Rise and fali of Germanys colonial Empire Nova York 1930 e P Leutwein Kàmpfe um Afrika Lutas pela África Luebeck 1936 32 Como disse Léon Cayla exgovernadorgeral de Madagascar e amigo de Pétain 164 os anos 70 do século XIX aumentaram de fato e sem precedentes as falcatruas os escândalos financeiros e a jogatina no mercado de ações Os pioneiros desses eventos préimperialistas foram aqueles financistas judeus que haviam conseguido fortunas fora do sistema capitalista após serem necessários para empréstimos internacionalmente garantidos aos Estadosnações em desenvolvimento33 Durante séculos eles ganharam dinheiro em comissões e foram naturalmente os primeiros a serem tentados e convidados a investir no exterior o capital que já não podia ser investido com lucros no mercado doméstico onde ademais o firme estabelecimento do sistema fiscal que proporcionava aos governos uma situação financeira mais saudável ameaçava esse grupo com a completa extinção Os financistas judeus pareciam de fato especialmente adequados a operações comerciais de natureza essencialmente internacional34 Além do mais os próprios governos dos quais alguma forma de auxílio era necessária para investimentos em países distantes tenderam de início a preferir os tradicionais financistas judeus muito mais conhecidos do que os neófitos das finanças internacionais entre os quais ainda abundavam os aventureiros Depois que os financistas haviam aberto os canais da exportação de capital para a riqueza supérflua condenada à ociosidade dentro da estreita estrutura da produção nacional verificou se que os acionistas ausentes não queriam correr os tremendos riscos relativos ao aumento dos seus lucros embora este fosse igualmente tremendo Mesmo dispondo da benevolente assistência do Estado ós financistas não eram bastante fortes para protegerse contra esses riscos só a força material do Estado poderia fazêlo Logo que se tornou claro que a exportação de dinheiro teria de ser seguida pela exportação da força do governo a posição dos financistas em geral e dos financistas judeus em particular enfraqueceu consideravelmente e a liderança das transações e empreendimentos comerciais imperialistas passou gradualmente aos membros da burguesia autóctone A esse respeito é muita instrutiva a carreira de Cecil Rhodes na África do Sul embora recémchegado pôde em 33 Quanto a este item e ao que se segue ver o capítulo 2 34 É interessante que todos os primeiros observadores do crescimento imperialista acentuam com ênfase esse elemento judaico ao passo que ele mal aparece na literatura mais recente Especialmente digna de nota porquanto muito fiel em sua observação e muito honesta em sua análise foi a maneira como J A Hobson tratou o assunto No primeiro ensaio que escreveu a respeito Capitalism and imperialism in South África em Contemporary Review 1900 ele dizia A maioria dos financistas eram judeus pois os judeus são os financistas internacionais par excellence e embora falem inglês a maioria é de origem continental Foram para lá para o Transvaal em busca de dinheiro e aqueles que vieram mais cedo e ganharam mais geralmente já se retiraram deixando suas garras econômicas na carcaça da presa Aferraramse ao Rand da mesma forma como estão prontos a se aterrarem a qualquer outro lugar da terra São principalmente especuladores financeiros que lucram não com os frutos genuínos da indústria mesmo que seja a indústria alheia mas com a construção promoção e manipulação financeira de companhias Contudo no estudo posterior de Hobson Imperialism os judeus nem são mencionados entre um trabalho e outro havia se tornado óbvio que a influência e o papel dos judeus fora temporária e algo superficial Quando ao papel dos financistas judeus na África do Sul ver o capítulo 7 165 poucos anos levar a melhor sobre os onipotentes financistas judeus Na Alemanha Bleichroeder que em 1885 havia ainda sido cofundador da Ostafrikanische Gesellschaft Companhia da África Oriental foi suplantado juntamente com o barão Hirsch pelos futuros gigantes do empreendimento imperialista a Siemens e o Deutsche Bank quando a Alemanha iniciou a construção da estrada de ferro de Bagdá catorze anos mais tarde De certa forma a hesitação do governo em delegar poder real aos judeus e a relutância destes em meterse em negócios com implicações políticas coincidiram tão bem que a despeito da grande riqueza do grupo judeu não houve nenhuma luta pelo poder após o término do estágio inicial quando os lucros provinham de especulações e comissões Vários governos nacionais viam com apreensão a crescente tendência de fazer dos negócios uma questão política e de identificar os interesses econômicos de grupos mesmo pequenos com os interesses nacionais Mas parecia que a única alternativa à exportação do poder era o sacrifício deliberado de grande parte da riqueza nacional Só a expansão dos instrumentos nacionais de violência poderia racionalizar o movimento de investimentos no estrangeiro e reintegrar na economia da nação as desenfreadas especulações com p capital supérfluo desviado para um jogo que tornava arriscadas as poupanças O Estado expandiu o seu poder porque dada a escolha entre as perdas maiores do que poderia agüentar a estrutura econômica de qualquer país e os lucros maiores do que qualquer povo sonharia obter só podia escolher estes últimos A primeira conseqüência da exportação do poder foi esta os instrumentos de violência do Estado a polícia e o Exército que na estrutura da nação existindo ao lado das demais instituições nacionais eram controlados por elas foram delas separados e promovidos à posição de representantes nacionais em países fracos ou nãocivilizados Aqui em regiões atrasadas sem indústria e sem organização política onde a violência campeava mais livre que em qualquer país europeu as chamadas leis do capitalismo tinham permissão de criar novas realidades O desejo da burguesia de fazer com que o dinheiro gerasse dinheiro como homens geravam homens não passava de um sonho o dinheiro tinha de percorrer longo caminho desde o investimento na produção o dinheiro não gerava dinheiro os homens é que faziam coisas e dinheiro O segredo do sucesso estava precisamente no fato de terem sido eliminadas as leis econômicas para não barrarem o caminho à cobiça das classes proprietárias O dinheiro podia finalmente gerar dinheiro porque a força em completo desrespeito às leis econômicas e éticas podia apoderar se de riquezas O dinheiro exportado só pôde realizar os desígnios de seus proprietários quando conseguiu estimular e concomitantemente exportar a força Somente o acúmulo ilimitado de poder podia levar ao acúmulo ilimitado de capital Os investimentos estrangeiros exportação de capital que havia começado como medida de emergência tornaramse característica permanente de todos os sistemas econômicos exportadores da força O conceito imperialista de expansão de acordo com o qual a expansão é por si mesma um fim e não um meio temporário foi introduzido no pensamento político quando se tornou 166 óbvio que uma das mais importantes funções permanentes do Estadonação seria a expansão do poder Os administradores da violência empregados pelo Estado logo formaram uma nova classe dentro das nações e embora seu campo de atividade fosse tão distante do país de origem eles chegaram a exercer importante influência no corpo político doméstico Como não passavam realmente de funcionários da violência só podiam pensar em termos de política de força Foram os primeiros a proclamar como classe e à base de sua experiência diária que a força é a essência de toda estrutura política O novo enfoque dessa filosofia política já imperialista não está no destaque que ela dava à violência nem na descoberta de que a força é uma das realidades políticas básicas A violência sempre foi a ultima ratio na ação política e a força sempre foi a expressão visível do domínio e do governo Mas nem uma nem outra constituíram antes o objetivo consciente do corpo político ou o alvo final de qualquer ação política definida Porque a força sem coibição só pode gerar mais força e a violência administrativa em benefício da força e não em benefício da lei tornase um princípio destrutivo que só é detido quando nada mais resta a violar Contudo essa contradição inerente em todas as conseqüências políticas de força parece fazer sentido quando vista no contexto de um processo supostamente permanente sem outro fim ou objetivo a não ser ele próprio Nesse caso tudo perde o significado a não ser a própria força como motor indestrutível e autoalimentador de toda ação política correspondente à lendária acumulação incessante de dinheiro que gera dinheiro O conceito de expansão ilimitada como único meio de realizar a esperança de acúmulo ilimitado de capital que traz um despropositado acúmulo de força torna quase impossível a fundação de novos corpos políticos que até a era do imperialismo sempre resultavam da conquista De fato sua conseqüência lógica é a destruição de todas as comunidades socialmente dinâmicas tanto dos povos conquistados quanto do próprio povo conquistador Porque se toda a estrutura política nova ou velha desenvolve naturalmente as forças estabilizadoras que se opõem à sua transformação todos os corpos políticos parecem obstáculos temporários quando vistos como parte da eterna corrente do acúmulo de poder Os administradores do poder nessa era passada de imperialismo moderado nem ao menos tentaram incorporar os territórios conquistados mas preservaram a organização política atrasada ali existente como se mantêm ruínas carentes da vida palpitante os seus sucessores totalitários porém dissolveram e destruíram todas as estruturas politicamente estabilizadas as suas próprias e as desses outros povos A mera exportação da violência transformava em senhores os servos porque eram servos esses administradores sem lhes dar a mais importante prerrogativa do senhor a possível criação de algo novo A concentração monopolista e o acúmulo de violência no país de origem tornavam os servos agentes ativos da destruição dos povos dominados até que finalmente a expansão totalitária passou a ser uma força destruidora de povos e nações A força tornouse a essência da ação política e o centro do pensamento político quando se separou da comunidade política à qual devia servir Ê ver 167 dade que isso foi provocado por um fator econômico Mas a resultante introdução da força como único conteúdo da política e da expansão como seu único objetivo dificilmente teria obtido aplauso tão universal nem a conseqüente dissolução do corpo político do país teria encontrado tão pouca oposição se não correspondessem de irodo perfeito aos desejos ocultos e às convicções secretas das classes social e economicamente dominantes A burguesia que durante tanto tempo fora excluída do governo pelo Estadonação e por sua própria falta de interesse das coisas públicas emancipouse politicamente através do imperialismo O imperialismo deve ser considerado o primeiro estágio do domínio político da burguesia e não o último estágio do capitalismo Sabese muito bem do pouco interesse demonstrado em exercer o poder pelas classes proprietárias préburguesas que se contentavam com qualquer tipo de Estado desde que lhe pudessem confiar a proteção da sua propriedade Na verdade para elas o Estado havia sido sempre uma força policial bem organizada Essa falsa modéstia contudo teve a curiosa conseqüência de manter toda a classe burguesa fora do corpo político antes de serem súditos numa monarquia ou cidadãos numa república eram essencialmente pessoas privadas Essa privatividade e a preocupação principal de ganhar dinheiro haviam gerado uma série de padrões de conduta que encontram expressão nos provérbios nada é tão bemsucedido como o sucesso a força é o direito o direito é a conveniência etc que são necessariamente frutos da experiência de uma sociedade competitiva Quando na era do imperialismo os comerciantes se tornaram políticos e foram aclamados como estadistas enquanto os estadistas só eram levados a sério se falassem a língua dos comerciantes bemsucedidos e pensassem em termos de continentes essas práticas e mecanismos privados transformaramse gradualmente em regras e princípios para a condução dos negócios públicos É significativo que esse processo de reavaliação iniciado no fim do século XIX e ainda em vigor tenha começado com a aplicação de convicções burguesas aos negócios estrangeiros e só lentamente tenha sido estendido à política doméstica Assim as nações interessadas mal perceberam que o desregramento que se introduzia na vida privada e contra o qual a estrutura política sempre tivera de defenderse a si própria e aos seus cidadãos estava a ponto de ser promovido ao posto de único princípio político publicamente reconhecido É importante observar que os modernos adeptos da força estão em completo acordo com a filosofia do único grande pensador que jamais tentou derivar o bem público a partir do interesse privado e que em benefício deste bem privado concebeu e esboçou um Commonwealth cuja base e objetivo final é o acúmulo do poder Hobbes é realmente o único grande filósofo de que a burguesia pode com direito e exclusividade se orgulhar embora os seus princípios não fossem reconhecidos pela classe burguesa durante muito tempo O Leviathan K de Hobbes expôs a única teoria política segundo a qual o Estado não se baseia 35 Todas as citações que se seguem e às quais corresponda uma nota são do Leviathan 168 em nenhum tipo de lei construtiva seja divina seja natural seja contrato social que determine o que é certo ou errado no interesse individual com relação às coisas públicas mas sim nos próprios interesses individuais de modo que o interesse privado e o interesse público são a mesma coisa36 É difícil encontrar um único padrão moral burguês que não tenha sido previsto pela inigualável magnificência da lógica de Hobbes Ele pinta um quadro quase completo não do Homem mas do homem burguês uma análise que em trezentos anos não se tornou antiquada nem foi suplantada A razão é nada mais que cálculo um súdito livre uma vontade livre são palavras sem significado isto é um Absurdo O homem é essencialmente uma função da sociedade e é portanto julgado de acordo com o seu valor ou merecimento seu preço ou seja aquilo que se lhe daria pelo uso da sua força Esse preço é constantemente avaliado e reavaliado pela sociedade fonte da estima dos outros de acordo com a lei da oferta e da procura O poder segundo Hobbes é o controle que permite estabelecer os preços e regular a oferta e a procura de modo que sejam vantajosas a quem detém este poder O indivíduo de início isolado do ponto de vista da minoria absoluta compreende que só pode atingir e realizar seus alvos e interesses com a ajuda de certa espécie de maioria Portanto se o homem não é realmente motivado por nada além dos seus interesses individuais o desejo do poder deve ser a sua paixão fundamental É esse desejo e poder que regula as relações entre o indivíduo e a sociedade e todas as outras ambições porquanto a riqueza o conhecimento e a fama são as suas conseqüências Hobbes mostra que na luta pelo poder como na capacidade inata de desejálo todos os homens são iguais pois a igualdade do homem reside no fato de que cada um por natureza tem suficiente potencialidade para matar um outro já que a fraqueza pode ser compensada pela astúcia A igualdade coloca todos os homens na mesma insegurança daí a necessidade do Estado A raison dêtre do Estado é a necessidade de dar alguma segurança ao indivíduo que se sente ameaçado por todos os seus semelhantes O traço crucial do retrato que Hobbes pinta do homem não está no seu pessimismo realista porque se fosse verdade que o homem é um ser como Hobbes o quer não seria capaz de fundar qualquer corpo político Na verdade Hobbes não consegue nem realmente procura incorporar definitivamente esse ser numa comunidade política O Homem de Hobbes não deve qualquer lealdade ao seu país se este for derrotado e é desculpado de qualquer traição caso venha a ser feito prisioneiro Aqueles que vivem fora da comunidade os escravos por exemplo não têm nenhuma obrigação para com os que a compõem 36 É muito significativo que essa identificação de interesses coincida com a alegação totalitária de haver abolido as contradições entre os interesses públicos e os individuais ver o capítulo 12 Contudo não se deve esquecer que Hobbes estava interessado principalmente em proteger os interesses privados alegando que corretamente interpretados eles eram também os interesses do corpo político ao passo que ao contrário os regimes totalitários proclamam a nãoexistência da privatividade 169 e podem matar tantos quantos quiserem mas ao contrário nenhum homem tem a liberdade de resistir à espada da comunidade em defesa de outro homem culpado ou inocente o que significa que não existe nem espírito de companheirismo nem responsabilidade entre os homens O que os mantêm juntos é um interesse comum como por exemplo algum crime capital pelo qual todos esperam ser punidos com a morte tendo neste caso o direito de se unirem ajudandose e defendendose uns aos outros Pois apenas defendem as suas vidas Assim a participação em qualquer forma de comunidade é para Hobbes temporária e limitada e essencialmente não muda o caráter solitário e privado do indivíduo que não tem prazer mas ao contrário muito desgosto em manter companhia quando não há força para obrigálo a tanto nem cria laços permanentes entre ele e seus companheiros O resultado é a inerente e confessada instabilidade da comunidade Commonwealth de Hobbes cuja própria concepção prevê a sua ulterior dissolução quando numa guerra estrangeira ou intestina os inimigos obtêm a vitória final então o Commonwealth é dissolvido e cada homem tem a liberdade de se proteger a si mesmo Essa instabilidade é surpreendente na teoria de Hobbes na medida em que o seu objetivo primário é assegurar um máximo de segurança e estabilidade Seria uma grave injustiça a Hobbes e à sua dignidade como filósofo considerar esse retrato do homem como tentativa de realismo psicológico ou verdade filosófica O fato é que Hobbes não está interessado nem num nem noutra mas se preocupa exclusivamente com a própria estrutura política e traça as feições do homem em função das necessidades do Leviatã Para fins de argumento e convicção apresenta seu esboço político partindo do desejo de poder pelo homem e passando para o plano do corpo político adaptado a essa sede de poder Esse corpo político foi concebido para o uso da nova sociedade burguesa que emergia no século XVII e esse quadro do homem é um esboço do novo tipo de Homem que se adequava a ele O Commonwealth é baseado na delegação da força e não do direito Adquire o monopólio de matar e dá em troca uma garantia condicional contra o risco de ser morto A segurança é proporcionada pela lei que emana diretamente do monopólio de força do Estado e não é estabelecida pelo homem segundo padrões humanos de certo e errado Porque na lei do Estado não existe a questão de certo ou errado mas apenas a obediência absoluta o cego conformismo da sociedade burguesa E como essa lei flui diretamente do poder que ela torna absoluto passa a representar a necessidade absoluta aos olhos do indivíduo que vive sob ela Despojado de direitos políticos o indivíduo para quem a vida pública e oficial se manifesta sob o disfarce da necessidade adquire o novo e maior interesse por sua vida privada e seu destino pessoal Excluído da participação na gerência dos negócios públicos que envolvem todos os cidadãos o indivíduo perde tanto o lugar a que tem direito na sociedade quanto a conexão natural com os seus semelhantes Agora só pode julgar sua vida privada individual comparandoa com a dos outros e suas relações com os companheiros dentro 170 da sociedade tomam a forma de concorrência Numa sociedade de indivíduos todos dotados pela natureza de igual capacidade de força e igualmente protegidos uns dos outros pelo Estado que regula os negócios públicos e os problemas de convívio sob o disfarce da necessidade somente o acaso pode decidir quem vencerá37 De acordo com os padrões burgueses aqueles que são automaticamente destituídos de sorte e não têm sucesso são automaticamente excluídos da competição que é a essência da vida da sociedade A boa sorte é identificada com a honra e a má sorte com a vergonha Transferindo ao Estado os seus direitos políticos o indivíduo delegalhe também suas responsabilidades sociais pede ao Estado que o alivie do ônus de cuidar dos pobres exatamente como pede proteção contra os criminosos Não há mais diferença entre mendigo e criminoso ambos estão fora da sociedade Os que fracassam perdem a virtude que a civilização clássica lhes legou os que são infelizes já não podem apelar à caridade cristã Hobbes isenta os que são excluídos da sociedade os fracassados os infelizes os criminosos de qualquer obrigação em relação ao Estado e à sociedade se o Estado não cuida deles Podem dar rédea solta ao seu desejo de poder e são até aconselhados a tirar vantagem de sua capacidade elementar de matar restaurando assim aquela igualdade natural que a sociedade esconde apenas por uma questão de conveniência Hobbes prevê e justifica que os prescritos sociais se organizem em bandos de assassinos como conseqüência lógica da filosofia moral burguesa Como a força é essencialmente apenas um meio para um fim qualquer comunidade baseada unicamente na força entra em decadência quando atinge a calma da ordem e da estabilidade sua completa segurança revela que ela é construída sobre a areia O poder só é capaz de garantir o status quo adquirindo mais poder só pode permanecer estável ampliando constantemente sua autoridade através do processo de acúmulo de poder O Commonwealth de Hobbes é uma estrutura vacilante que está sempre precisando buscar novos esteios de fora do contrário ruiria imediatamente para a insensatez do caos de interesses privados de onde surgiu Hobbes incorpora a necessidade de acumulação de poder à teoria do estado natural à condição de guerra perpétua de todos 37 A promoção do acaso à posição de árbitro final da vida iria atingir o seu ponto mais alto no século XIX Como resultado surgiu um novo gênero de literatura a novela que acompanhou o declínio do drama Pois o drama perdeu o seu sentido num mundo sem ação enquanto a novela podia tratar adequadamente os destinos de seres humanos que eram quer vitimas da necessidade quer favoritos da sorte Balzac demonstrou todo o alcance do novo gênero e chegou a apresentar as paixões humanas como o destino do homem sem vício nem virtude nem razão nem livre arbítrio Só a novela em sua completa maturidade tendo interpretado e reinterpretado toda a gama dos temas humanos podia pregar o novo evangelho da paixão do homem pelo seu próprio destino que teve papel tão importante entre os intelectuais do século XIX Através dessa paixão o artista e o intelectual tentavam traçar uma distinção entre si mesmos e os outros protegerse contra a desumanidade da boa e da má sorte e desenvolveram todos os dons da sensibilidade moderna pronta para o sofrimento a compreensão o desempenho de determinado papel tão desesperadamente necessária à dignidade humana que exige que um homem seja pelo menos uma vítima se não puder ser outra coisa 171 contra todos na qual os vários Estados mantêm com relação aos outros a posição que caracterizava os seus súditos antes de se submeterem à autoridade do Commonwealth 38 Essa perene possibilidade de guerra garante ao Commonwealth uma esperança de permanência porque torna possível ao Estado aumentar o seu poder à custa de outros Estados Seria errôneo tomar por seu valor aparente a óbvia inconsistência entre o apelo de Hobbes em favor da segurança do indivíduo e a inerente instabilidade do seu Commonwealth Novamente ele tenta aqui persuadir apelar a certos instintos básicos de segurança que como ele sabia muito bem podiam sobreviver nos súditos do Leviathan apenas sob a forma de absoluta submissão à força que os intimida a todos isto é um medo esmagador e universal que não é exatamente o sentimento básico do homem que se julga seguro O ponto de partida de Hobbes é uma incomparável compreensão das necessidades políticas do novo corpo social da burguesia em ascensão cuja crença fundamental num processo interminável de acúmulo de propriedade estava a ponto de eliminar toda segurança individual Hobbes chegou às necessárias conclusões a partir da análise dos padrões de conduta social e econômica quando propôs mudanças revolucionárias na constituição política Esboçou o novo corpo que corresponderia aos novos anseios e interesses da nova classe O que realmente conseguiu foi retratar o homem segundo os padrões de conduta da futura sociedade burguesa A insistência de Hobbes quanto ao poder como motor de todas as coisas humanas e divinas até o reino de Deus sobre os homens não provém de têlos criado mas do Poder Irresistível se devia à proposição teoricamente indiscutível de que o infindável acúmulo de propriedade deve basearse no infindável acúmulo de poder O correlativo filosófico da instabilidade inerente de uma comunidade baseada na força é a imagem de um processo histórico infindável que para ser consistente com o constante aumento de poder envolve inexoravelmente os indivíduos os povos e finalmente toda a humanidade O processo ilimitado de acúmulo de capital necessita de uma estrutura política de poder tão ilimitado que possa proteger a propriedade crescente tornandoa cada vez mais poderosa Dado o fundamental dinamismo da nova classe social é perfeitamente verdadeiro que ela não pode garantir o poder e os meios de viver bem que alcança num determinado instante sem adquirir mais A coerência dessa conclusão não é absolutamente afetada pelo fato de que durante cerca de trezentos anos não houve um soberano que convertesse esta verdade especulativa em utilidade prática nem uma burguesia com suficiente consciência política e maturidade econômica para adotar abertamente a filosofia do poder de Hobbes 38 A noção liberal de um Governo Mundial baseiase como todas as noções liberais de poder político no mesmo conceito de indivíduos que se submetem a uma autoridade central que os intimida a todos exceto que no caso as nações tomam o lugar dos indivíduos O Governo Mundial deve sobrepujar e eliminar a política autêntica que consiste na justaposição de povos diferentes vivendo uns com os outros em pleno exercício do seu próprio poder 172 Esse processo de constante acúmulo de poder necessário à proteção de um constante acúmulo de capital criou a ideologia progressista de fins do século XIX e prenunciou o surgimento do imperialismo Não a tola ilusão de um crescimento ilimitado de propriedade mas a compreensão de que o acúmulo de poder era o único modo de garantir a estabilidade das chamadas leis econômicas tornou irresistível o progresso A noção de progresso do século XVIII tal como era concebido na França prérevolucionária pretendia que a crítica do passado fosse um meio de domínio do presente e de controle do futuro o progresso culminava com a emancipação do homem Mas essa noção tinha pouco ou nada em comum com a infindável evolução da sociedade burguesa que não apenas não desejava a liberdade e autonomia do homem mas estava pronta a sacrificar tudo e todos a leis históricas supostamente suprahumanas O que chamamos de progresso é o vento que impele o anjo da história irresistivelmente para o futuro ao qual ele vira as costas enquanto o monte de ruínas diante de si erguese até os céus 39 Somente no sonho de Marx de uma sociedade sem classes que nas palavras de Joyce faria a humanidade despertar do pesadelo da história é que surge um vestígio último embora utópico do conceito do século XVIII O negociante de mentalidade imperialista a quem as estrelas aborreciam porque não podia anexálas sabia que o poder organizado como finalidade em si geraria mais poder Quando o acúmulo de poder atingiu seus naturais limites nacionais a burguesia percebeu que somente com uma ideologia de expansão e somente com um processo econômico que refletisse o do acúmulo de poder seria possível colocar novamente o motor em funcionamento Ao mesmo tempo porém quando parecia que o verdadeiro moto perpétuo havia sido descoberto a atitude especificamente otimista da ideologia do progresso foi abalada Não que alguém duvidasse da irresistibilidade do processo mas muitos começaram a perceber aquilo que havia assustado a Cecil Rhodes que a condição humana e os limites do globo eram um sério obstáculo a um processo que de um lado não podia parar nem estabilizarse e que por outro lado só podia provocar uma série de catástrofes destruidoras quando atingisse esses limites Na época imperialista a filosofia do poder tornouse a filosofia da elite que logo descobriu e estava pronta a admitir que a sede de poder só podia ser saciada pela destruição Foi esta a causa essencial do seu niilismo especialmente conspícuo na França do início do século XX e na Alemanha da década de 20 que substituía a superstição do progresso pela superstição da ruína e pregava a aniquilação automática com o mesmo entusiasmo com que os fanáticos do progresso automático haviam pregado a irresistibilidade das leis econômicas 39 Walter Benjamin em Über den Begriff der Geschichte Sobre o conceito da história publicado pelo Institut für Sozialforschung Nova York 1942 mimeografado Os próprios imperialistas conheciam muito bem as implicações do seu conceito de progresso O autor que escrevia sob o pseudônimo de A Carthill funcionário inglês que havia servido na Índia e que é bem representativo da época disse Devese sempre ter pena daqueles que são esmagados pelo carro triunfal do progresso op cit p 209 173 Hobbes o grande idolatra do Sucesso tinha levado três séculos para ser bem sucedido Isso foi em parte devido à Revolução Francesa que com a sua concepção do homem como legislador e citoyen quase havia conseguido evitar que a burguesia desenvolvesse inteiramente sua noção de história como processo necessário Mas em parte foi devido também às implicações revolucionárias do Commonwealth seu intrépido rompimento com a tradição ocidental coisas que Hobbes não deixou de apontar Todo homem e todo pensamento que não é útil e não se conforma ao objetivo final de uma máquina cujo único fim é a geração e o acúmulo de poder é um estorvo perigoso Hobbes achava que os livros dos antigos gregos e romanos eram tão prejudiciais quanto o ensinamento cristão do Summum bonum como é pronunciado nos livros dos velhos filósofos moralistas ou a doutrina de que tudo o que um homem faz contra a sua consciência é pecado e de que as leis são as regras do justo e do injusto A profunda suspeita alimentada por Hobbes em relação a toda a tradição ocidental de pensamento político não nos surpreende se lembrarmos que ele procurava nada menos que justificar a Tirania que embora houvesse ocorrido muitas vezes na história do Ocidente nunca havia sido homenageada com um fundamento filosófico Hobbes confessa orgulhosamente que o Leviatã é realmente um governo permanente de tirania a palavra Tirania significa nem mais nem menos que a palavra Soberania Acho que tolerar o ódio declarado à Tirania é tolerar o ódio à comunidade em geral Por ser filósofo Hobbes já podia perceber na ascensão da burguesia todas aquelas qualidades antitradicionalistas da nova classe que iriam levar três séculos para desenvolverse por completo Seu Leviathan não se perdia em especulações ociosas a respeito de novos princípios políticos nem da velha busca da razão que governa a comunidade dos homens era estritamente um cálculo das conseqüências que advêm da ascensão de uma nova classe na sociedade cuja existência está essencialmente ligada à propriedade como um mecanismo dinâmico produtor de mais propriedade O chamado acúmulo de capital que deu origem à burguesia mudou o próprio conceito de propriedade e riqueza estes já não eram mais considerados como resultado do acúmulo e da aquisição mas sim o seu começo a riqueza tornouse um processo interminável de se ficar mais rico A classificação da burguesia como classe proprietária é apenas superficialmente correta porquanto a característica dessa classe é que todos podem pertencer a ela contanto que concebam a vida como um processo permanente de aumentar a riqueza e considerem o dinheiro como algo sacrossanto que de modo algum deve ser usado como simples instrumento de consumo Contudo a propriedade em si é sujeita ao uso e ao consumo e portanto diminui constantemente A forma mais radical e a única segura de posse é a destruição pois só possuímos para sempre e com certeza aquilo que destruímos Os donos de propriedade que não consomem mas continuamente procuram aumentar as suas posses esbarram com um limite muito inconveniente o fato lamentável de que os homens morrem A morte é o verdadeiro motivo pelo qual a propriedade e a aquisição jamais podem tornarse um princípio político 174 verdadeiramente válido Um sistema social baseado essencialmente na propriedade não pode levar a outra coisa senão à destruição final de toda a propriedade A finitude da vida pessoal é um desafio tão sério à propriedade como fundamento social quanto os limites do globo são um desafio à expansão como fundamento do sistema político Por transcender os limites da vida humana o crescimento automático e contínuo da riqueza além das necessidades e possibilidades de consumo pessoais que é a base da propriedade individual vira assunto público e sai da esfera da simples vida privada Os interesses privados que por sua própria natureza são temporários limitados pela duração natural da vida do homem podem agora fugir para a esfera dos negócios públicos e pedirlhes emprestado aquele tempo infinito necessário à acumulação contínua Isso parece criar uma sociedade muito parecida com a das formigas e das abelhas onde o bem comum não difere do bem privado e naturalmente inclinadas para o benefício privado conseqüentemente procuram o benefício comum Como porém os homens não são formigas nem abelhas tudo não passa de uma ilusão A vida pública assume um aspecto enganador quando aparenta constituir a totalidade dos interesses privados como se esses interesses pudessem criar uma qualidade nova pelo simples fato de serem somados Todos os chamados conceitos liberais de política isto é todas as noções políticas préimperialistas da burguesia como a concorrência sem limites regulada por um secreto equilíbrio que provém de modo misterioso da soma total das atividades concorrentes a busca de um esclarecido interesse próprio como virtude política o progresso limitado baseado na simples sucessão dos acontecimentos têm isto em comum simplesmente adicionam vidas privadas e padrões de conduta pessoais e apresentam o resultado como leis de história de economia ou de política Mas os conceitos liberais embora expressem a instintiva suspeita da burguesia e a sua inata hostilidade com relação aos negócios públicos são apenas uma acomodação temporária entre os velhos padrões de cultura ocidental e a crença da nova classe na propriedade como princípio dinâmico e automotivo Os velhos padrões cedem à medida que a riqueza crescendo automaticamente passa realmente a substituir a ação política Embora nunca inteiramente reconhecido Hobbes foi o verdadeiro filósofo da burguesia porque compreendeu que a aquisição de riqueza concebida como processo sem fim só pode ser garantida pela tomada do poder político pois oprocesso de acumulação violará mais cedo ou mais tarde todos os limites territoriais existentes Previu que uma sociedade que havia escolhido o caminho da aquisição contínua tinha de engendrar uma organização política dinâmica capaz de levar a um processo contínuo de geração de poder E através de simples vôo da imaginação pôde até esboçar tanto os principais traços psicológicos do novo tipo de homem que se encaixaria em tal sociedade quanto a tirania da sua estrutura política Previu como necessária a idolatria do poder que caracteriza esse novo tipo humano e pressentiu que ele se sentiria lisonjeado ao ser chamado de animal sedento de poder embora na verdade a sociedade o forçasse a renunciar a todas as suas forças naturais suas virtudes e vícios e fizesse dele o 175 pobre sujeitinho manso que não tem sequer o direito de se erguer contra a tirania e que longe de lutar pelo poder submetese a qualquer governo existente e não mexe um dedo nem mesmo quando o seu melhor amigo cai vítima de uma raison détat incompreensível Assim um Commonwealth baseado no poder acumulado e monopolizado de todos os seus membros individuais torna a todos necessariamente impotentes privados de suas capacidades naturais e humanas Degrada o indivíduo à condição de peça insignificante na máquina de acumular poder üvre para consolarse se quiser com pensamentos sublimes a respeito do destino final dessa máquina construída de forma a ser capaz de devorar o mundo se simplesmente seguir a lei que lhe é inerente O objetivo final de destruição desse Commonwealth é pelo menos indicado na interpretação filosófica da igualdade humana como igual capacidade de matar Vivendo com as outras nações numa condição de guerra perpétua sempre à beira do combate com suas fronteiras armadas e canhões assestados contra os vizinhos não tem outra lei de conduta senão a que melhor leve ao seu benefício e gradualmente devorará as estruturas mais fracas até que chegue a uma última guerra que dê a todos os homens a vitória ou a morte Com vitória ou morte o Leviatã pode realmente suplantar todas as limitações políticas provenientes da existência de outros povos e envolver toda a terra em sua tirania Mas quando vier a última guerra e todos os homens tiverem recebido seu quinhão nenhuma paz final terá sido estabelecida na terra a máquina de acumular poder sem a qual a expansão contínua não teria sido possível precisará de novo material para devorálo em seu infindável processo Se o último Commonwealth vitorioso não puder anexar os planetas só poderá passar a devorarse a si mesmo para começar novamente o infinito processo da geração de poder 3 A ALIANÇA ENTRE A RALÉE O CAPITAL Quando o imperialismo ocupou o cenário político a partir do início da corrida para a África nos anos 80 do século XIX foi promovido por comerciantes combatido vigorosamente por governos e aclamado por uma parte surpreendentemente grande das classes educadas40 A esses últimos parecia ser uma cura abençoada para todos os males uma panacéia fácil para todos os conflitos E a verdade é que o imperialismo de certo modo não deixou de corresponder a essas esperanças Deu vida nova a estruturas políticas e sociais que estavam obviamente ameaçadas por novas forças sociais e políticas e que 40 Os Serviços Coloniais proporcionam o apoio mais perfeito e mais natural a uma política externa agressiva da expansão do império emana uma forte atração sobre a aristocracia e as classes profissionais porque oferece novos campos mais amplos para o emprego honrado e lucrativo dos seus filhos J A Hobson Capitalism and imperialism in South África op cit Foram principalmente professores e publicistas patriotas independentemente de afiliação política e sem olhar o interesse econômico pessoal que patrocinaram as investidas imperialistas dos anos 70 e 80 Hayes op cit p 220 176 em outras circunstâncias sem a intervenção dos acontecimentos imperialistas dificilmente teriam precisado de duas guerras para desaparecer Do modo como se desenrolava a história o imperialismo parecia levar à solução de todos os problemas produzindo aquele falso sentido de segurança tão universal na Europa de antes da guerra e que só deixou de enganar os espíritos mais sensíveis Péguy na França e Chesterton na Inglaterra sabiam instintivamente que viviam num mundo de fazdeconta e que a sua estabilidade era apenas fingida Mas até que tudo começasse a ruir a estabilidade de estruturas políticas evidentemente obsoletas parecia ser um fato e sua teimosia e indiferente longevidade pareciam desmentir aqueles que sentiam o solo tremer aos seus pés A solução da charada era o imperialismo A resposta à pergunta decisiva por que a irmandade de nações européias permitiu que esse mal se espalhasse até que tudo viesse a ser destruído o bom junto com o mau é simples todos os governos sabiam muito bem que seus países estavam se desintegrando ocultamente que o corpo político estava sendo destruído por dentro que estavam apenas ganhando tempo antes de morrer De modo bastante inocente a expansão afiguravase inicialmente como a válvula de escape para a produção excessiva de capital e oferecia um remédio a exportação de capital41 A riqueza tremendamente ampliada resultante da produção capitalista num sistema social baseado na má distribuição havia resultado num excesso de poupança isto é no acúmulo de um capital que estava condenado à ociosidade dentro da capacidade nacional existente de produção e consumo Esse dinheiro era realmente supérfluo ninguém necessitava dele embora pertencesse a uma classe crescente As crises e depressões que sobrevieram nas décadas que precederam a era do imperialismo42 haviam convencido os capitalistas de que todo o seu sistema econômico de produção dependia de uma oferta e procura que de agora em diante tinha de vir de fora da sociedade capitalista43 Essa oferta e essa procura vinham de dentro da nação enquanto o sistema capitalista não controlasse todas as classes juntamente com toda a sua capacidade produtiva Mas quando o capitalismo havia 41 A esse respeito e ao que se segue ver J A Hobson Imperialism que já em 1905 fez uma magistral análise das forças e motivos econômicos que levaram à expansão bem como de algumas de suas implicações políticas Quando em 1938 seu antigo estudo foi republicado Hobson pôde dizer com razão na introdução do texto inalterado que o seu livro era a verdadeira prova de que os principais perigos e distúrbios de hoje estavam todos latentes e visíveis no mundo uma geração antes 42 A óbvia conexão entre as graves crises do século XIX que ocorreram nos anos 60 na Inglaterra e nos anos 70 no continente europeu e do outro lado o imperialismo é mencionada por Hayes op cit em apenas uma nota de pé de página na p 219 e por Schuyler op cit o qual acredita que um renovado interesse pela emigração foi um fator importante no começo do movimento imperialista e que esse interesse tinha sido causado por uma séria depressão no comércio e na indústria da Inglaterra no fim da década de 60 do século XIX p 280 Schuyler descreve ainda em certo detalhe o forte sentimento antiimperial em meados da era vitoriana Infelizmente Schuyler não diferencia entre o Commonwealth e o império propriamente dito embora a discussão de assuntos préimperialistas pudesse facilmente sugerir essa diferenciação 43 Rosa Luxemburg Die Akkumulation des Kapitals Berlim 1923 p 273 177 permeado toda a estrutura econômica e todas as camadas sociais haviam entrado na órbita do seu sistema de produção e consumo os capitalistas tinham claramente de decidir entre assistir ao colapso de todo o sistema ou procurar novos mercados isto é penetrar em outros países que ainda não estivessem sujeitos ao capitalismo e portanto pudessem proporcionar uma nova ofertaeprocura de características nãocapitalistas As depressões dos anos 60 e 80 que deram início à era do imperialismo forçaram a burguesia a compreender pela primeira vez que o pecado original do roubo que séculos antes tornara possível o original acúmulo de capital Marx e gerara todas as acumulações posteriores teria eventualmente de ser repetido a fim de evitar que o motor da acumulação parasse de súbito44 Diante de tal perigo que ameaçava a nação inteira com um colapso catastrófico da produção os produtores capitalistas compreenderam que as formas e leis do seu sistema de produção haviam desde o início sido previstas para toda a terra45 A primeira reação a um mercado doméstico saturado à falta de matériasprimas e a crises crescentes foi a exportação de capital Os donos de riqueza supérflua tentaram primeiro o investimento sem expansão e sem controle político que resultou numa orgia sem precedentes de falcatruas escândalos financeiros e especulações no mercado de ações alarmantes na medida em que os investimentos no exterior cresciam muito mais depressa que os investimentos domésticos46 O dinheiro graúdo resultante do excesso de poupança abriu o caminho para o dinheiro miúdo que era o produto do trabalho dos pequeninos As empresas domésticas para acompanhar o ritmo dos altos lucros do investimento estrangeiro recorreram também a métodos fraudulentos e atraíram um número crescente de pessoas que na esperança de ganhos miraculosos jogaram dinheiro fora O escândalo do Panamá na França e o Gründungsschwindel na Alemanha e na Áustria tornaramse exemplos clássicos Os donos do dinheiro miúdo perderam tanto tão depressa que logo os donos do capital supérfluo ocupavam sozinhos o que era de certa forma um campo de batalha Não tendo 44 Rudolf Hilferding Das Finanzkapital Viena 1910 p 401 menciona mas não analisa o fato de que o imperialismo de súbito emprega novamente os métodos do acúmulo original da riqueza capitalista 45 De acordo com o brilhante estudo de Rosa Luxemburg sobre a estrutura política do imperialismo op cit pp 273 ss o processo histórico do acúmulo de capital depende em todos os seus aspectos da existência de camadas sociais nãocapitalistas de modo que o imperialismo é a expressão política do acúmulo de capital em sua competição pela posse dos restos do mundo não capitalista Essa dependência fundamental do capitalismo em relação a um mundo nãocapitalista está na base de todos os outros aspectos da superpoupança e da má distribuição Hobson op cit como resultado da superprodução e da conseqüente necessidade de novos mercados Lênin Imperialismo o último estágio do capitalismo 1917 como resultado de baixa oferta de matériasprimas Hayes op cit ou como exportação de capital para a uniformização da taxa de lucros nacional Hilferding op cit 46 De acordo com Hilferding op cit p 409 nota entre 1865 e 1898 a renda britânica proveniente de investimentos estrangeiros aumentou nove vezes enquanto a renda nacional apenas dobrava O autor presume que tenha havido aumento semelhante embora provavelmente menor no caso dos investimentos alemães e franceses 178 conseguido transformar toda a sociedade em uma comunidade de jogadores voltaram a ser supérfluos excluídos dos processos normais de produção para os quais depois de algum tumulto todas as outras classes voltaram mansamente se bem que algo mais pobres e mais rancorosas47 A exportação de dinheiro e o investimento no exterior não constituem por si o imperialismo e não levam necessariamente à expansão como mecanismo político Ao se contentar em investir grande parte de sua propriedade em terras estrangeiras mesmo que essa tendência fosse contra todas as tradições passadas do nacionalismo48 os donos do capital supérfluo apenas confirmavam a sua alienação do corpo nacional onde de qualquer modo eram parasitas Só tornaram a fazer parte da vida da nação quando exigiram que o governo protegesse seus investimentos depois que a fase inicial de falcatruas lhes abriu os olhos para o possível uso da política contra o risco do jogo Nessa exigência contudo seguiram as tradições estabelecidas da sociedade burguesa de sempre considerar as instituições políticas exclusivamente como instrumento de proteção da propriedade individual49 Só a afortunada coincidência do surgimento de uma nova classe de proprietários concomitantemente com a Revolução Industrial transformara a burguesia em produtores e estimuladores da produção Enquanto exercia essa função básica na sociedade moderna que é essencialmente uma comunidade de produtores sua riqueza desempenhava uma função importante para a nação como um todo Os donos do capital supérfluo foram o primeiro segmento dessa classe a desejar lucros sem exercer qualquer função social verdadeira mesmo que se tratasse da função de um produtor que explorasse os outros e conseqüentemente nenhuma polícia poderia jamais têlos salvo da ira do povo A expansão portanto não foi apenas uma fuga para o capital supérfluo O mais importante é que protegia os seus donos contra a ameaçadora perspec 47 No caso da França ver George Lachapelle Les finances de Ia Troisième Republique Paris 1937 e D W Brogan The development of Modem France Nova York 1941 Para o que sucedeu na Alemanha comparar os interessantes testemunhos contemporâneos como o de Max Wirth Geschichte der Handelskrisen História das crises comerciais 1873 capítulo 15 e A Schaeffle Der grosse Boersenkrach des Jahres 1873 A grande quebra da bolsa no ano 1873 emZeitschriftfürdiegesamteStaatswissenschaft 1874 vol 30 48 J A Hobson Capitalism and imperialism op cit 49 Ver Hilferding op cit p 406 Daí o clamor por um forte poder estatal por parte de todos os capitalistas que têm seus interesses em países estrangeiros O capital exportado sentese mais seguro quando o poder estatal de seu próprio país governa completamente o novo domínio Seus lucros devem ser garantidos pelo Estado se possível Assim a exportação do capital é a favor de uma política imperialista E a p 423 A atitude da burguesia em relação ao Estado sempre sofre completa mudança quando o poder político do Estado tornase um instrumento competitivo para o capital financeiro no mercado mundial A burguesia havia sido hostil ao Estado em sua luta contra o mercantilismo econômico e o absolutismo político Teoricamente pelo menos a vida econômica devia ser completamente livre da intervenção do Estado o Estado deveria limitarse politicamente à salvaguarda da segurança e ao estabelecimento da igualdade civil Na p 426 Contudo o desejo de uma política expansionista provoca uma mudança revolucionária na mentalidade da burguesia Esta deixa de ser pacifista e humanista P 470 Socialmente a expansão é uma condição vital para a preservação da taxa de lucros e para o seu temporário aumento 179 tiva de permanecerem inteiramente supérfluos e parasitários Salvou a burguesia das conseqüências da má distribuição e revitalizou o seu conceito de propriedade numa época em que a riqueza já não podia ser usada como fator produtivo dentro do âmbito nacional entrando em conflito com o ideal de produção da comunidade vista como um todo Mais antigo que o capital supérfluo era outro subproduto da produção capitalista o lixo humano que cada crise seguindose invariavelmente a cada período de crescimento industrial eliminava permanentemente da sociedade produtiva Os elementos tornados permanentemente ociosos eram tão supérfluos para a comunidade como os donos do capital supérfluo Durante todo o século XIX reconheceuse que ameaçavam a sociedade de tal modo que sua exportação foi promovida ajudando aliás a povoar os domínios do Canadá e da Austrália bem como os Estados Unidos O fato novo da era imperialista foi que essas duas forças supérfluas o capital supérfluo e a mãodeobra supérflua uniramse e juntos abandonaram seus países O conceito de expansão a exportação da força do governo e a anexação de todo território em que cidadãos tivessem investido a sua riqueza ou seu trabalho parecia a única alternativa para as crescentes perdas econômicas e demográficas O imperialismo e a sua idéia de expansão ilimitada pareciam oferecer um remédio permanente para um mal permanente50 É bastante irônico que o primeiro país em que se conjugaram a riqueza supérflua e homens supérfluos estava também se tornando supérfluo Os britânicos apoderaramse da África do Sul ainda no começo do século XIX porque ela garantia um caminho marítimo para a índia A abertura do canal de Suez porém e a subseqüente conquista administrativa do Egito diminuíram a importância do velho entreposto marítimo da Cidade do Cabo Tudo indicava que os ingleses se teriam retirado da África tal como outras nações européias fizeram antes sempre que perdiam suas possessões e interesses comerciais na índia A particular ironia e de certo modo a circunstância simbólica que inesperadamente transformaram a África do Sul no campo de cultura do imperialismo 51 residem na própria natureza de sua súbita atração quando havia perdido todo o valor para o Império propriamente dito nos anos 70 descobriramse jazidas de diamantes e ricas minas de ouro nos anos 80 O novo desejo de lucro a qualquer preço coincidiu pela primeira vez com a velha caça afortuna Garim 50 Esses motivos foram claramente declarados no imperialismo alemão As primeiras atividades do Alldeutsche Verband Liga Pangermânica fundada em 1891 esforçavamse para evitar que os emigrantes alemães mudassem de cidadania e o primeiro discurso imperialista de Guilherme II por ocasião do vigésimo quinto aniversário da fundação do Reich continha a seguinte passagem aliás muito típica O Império Alemão tornouse um Império Mundial Milhares de nossos compatriotas vivem em toda parte em lugares distantes da terra Senhores é vosso dever ajudarme a unir esse Império Alemão maior que o nosso país natal Comparar também a declaração de J A Froude na nota 10 51 E H Damce The Victorian ilusion Londres 1928 p 164 A África que não havia sido incluída no itinerário da saxonidade nem pelos filósofos profissionais da história imperial tornouse o campo da cultura do imperialismo britânico 180 peiros aventureiros e a escória das grandes cidades emigraram para o Continente Negro juntamente com o capital dos países industrialmente desenvolvidos De agora em diante a ralé gerada pela monstruosa acumulação de capital acompanhava sua genitora ideológica nessas viagens de descoberta nas quais nada era descoberto a não ser novas possibilidades de investimento Os donos de capital supérfluo eram os únicos que podiam usar os homens supérfluos vindos dos quatro cantos do mundo Juntos estabeleceram o primeiro paraíso de parasitas cujo sangue vital era o ouro O imperialismo produto de dinheiro supérfluo e de gente supérflua iniciou sua surpreendente carreira produzindo bens dos mais supérfluos e irreais É duvidoso que a panacéia da expansão pudesse constituir uma tentação tão grande para os não imperialistas se a perigosa solução que apresentava se aplicasse apenas àquelas forças supérfluas que de qualquer modo já estavam fora do corpo da nação A cumplicidade de todos os partidos parlamentares nos programas imperialistas é conhecida e registrada A história do Partido Trabalhista britânico constitui a esse respeito uma série quase ininterrupta de justificativas da antiga predição de Cecil Rhodes Os operários vêem que embora os americanos gostem muito deles dedicandolhes os sentimentos mais fraternos barram não obstante a entrada dos seus produtos Vêem que a Rússia a França e a Alemanha também estão fazendo o mesmo em escala local e que se não tomarem cuidado não lhes restará lugar algum no mundo onde possam comerciar com o que produzem E assim os operários estão se tornando imperialistas e o Partido Liberal segue a reboque52 Na Alemanha foram os liberais e não o Partido Conservador que promoveram aquela famosa política naval que tanto contribuiu para a deflagração da Primeira Guerra Mundial53 O Partido Socialista vacilava entre o apoio ativo à política naval imperialista tendo aprovado fundos para a construção de uma Marinha alemã depois de 1906 e o completo desdém por todas as questões de política estrangeira Advertências ocasionais contra o Lumpenproletariat e o possível suborno de segmentos da classe trabalhista com migalhas da mesa imperialista não contribuíam para ser compreendida a atração que os programas imperialistas exerciam sobre as fileiras inferiores do partido Em termos marxistas o novo fenômeno da aliança entre a ralé e o capital parecia tão artificial tão obviamente em conflito com a doutrina da luta entre as classes que foram completamente esquecidos os verdadeiros perigos da tentativa imperialista de dividir a humanidade em raças dominantes e raças escravas em raças inferiores e superiores em homens negros e homens brancos como meio de unificar o povo à base da ralé Nem mesmo o colapso da solidariedade internacional no início da Primeira Guerra Mundial perturbou a complacência dos socialistas 52 Citado por Millin op cit 53 Alfred von Tirpitz Erinnerungen Reminiscências 1919 Ver também Daniel Frymann pseudônimo de Heinrich Class Wenn ich der Kaiser war Se eu fosse Kaiser 1912 O verdadeiro partido imperialista é o Partido Liberal Nacional Frymann um proeminente chauvinista alemão durante a Primeira Guerra Mundial chega a acrescentar a respeito dos conservadores O alheamento dos meios conservadores no tocante às doutrinas raciais é também digno de nota 181 e a sua fé no proletariado Os socialistas ainda pesquisavam as leis econômicas do imperialismo muito depois de os imperialistas terem cessado de obedecêlas sacrificandoas nos países de ultramar ao fator imperial ou ao fator racial e quando apenas alguns venerandos cavalheiros das altas finanças ainda acreditavam nos direitos inalienáveis da taxa de lucros A curiosa fraqueza da oposição popular ao imperialismo e as numerosas inconsistências e promessas descaradamente quebradas dos estadistas liberais freqüentemente atribuídas ao oportunismo e ao suborno têm causas mais profundas Nem oportunismo nem suborno poderiam ter persuadido homens como Gladstone a quebrar a promessa feita quando líder do Partido Liberal de evacuar o Egito quando se tornasse primeiroministro De modo semiconsciente e raramente declarado esses homens compartilhavam junto com o povo a convicção de que o corpo nacional estava tão dividido em classes e que a luta de classes caracterizava tão universalmente a vida política moderna que a própria coesão do país estava em perigo Novamente a expansão surgia como a tábua de salvação se e enquanto pudesse proporcionar um interesse comum para a nação como um todo e foi principalmente por esse motivo que se permitiu que os imperialistas se tornassem parasitas do patriotismo54 Naturalmente essas esperanças ainda eram em parte afins da antiga prática daninha de curar conflitos nacionais com aventuras estrangeiras Mas havia uma diferença Por sua própria natureza as aventuras são limitadas no tempo e no espaço podem temporariamente resolver conflitos mas geralmente falham e tendem mesmo a agraválos Desde o começo a aventura do imperialismo a expansão pareceu uma solução eterna porque a expansão era concebida como fenômeno ilimitado Além disso o imperialismo não era uma aventura no sentido comum porque dependia menos de lemas nacionalistas que da base aparentemente mais sólida dos interesses econômicos Numa sociedade de interesses em conflito onde o bem comum era identificado com a soma total dos interesses individuais a expansão como tal tinha a aparência de possível interesse comum da nação como um todo Como as classes proprietárias e dominantes haviam persuadido a todos que o interesse econômico e a paixão pela propriedade formam uma base firme para o corpo político até mesmo estadistas nãoimperialistas eram facilmente persuadidos quando se divisava no horizonte um interesse econômico comum Por esses motivos portanto o nacionalismo descambou tão nitidamente para o imperialismo apesar da contradição inerente aos dois princípios55 Quanto menos adequadas eram as estruturas das nações para a incorporação de povos estrangeiros o que aliás contradiria a constituição de seu próprio corpo político mais se viam tentadas a oprimilos Teoricamente existe um 54 Hobson op cit p 61 55 Hobson op cit foi o primeiro a reconhecer tanto a oposição fundamental entre imperialismo e nacionalismo quanto a tendência do nacionalismo a se tomar imperialista Dizia que o imperialismo é uma perversão do nacionalismo na qual as nações transformam a sadia e estimulante rivalidade dos vários tipos nacionais na luta mortal dos impérios em competição p 9 182 abismo entre o nacionalismo e o imperialismo na prática esse abismo já foi transposto pelo nacionalismo tribal e pelo racismo desenfreado pois desde o início os imperialistas de toda parte diziamse acima de todos os partidos e ufanavamse disso julgandose os únicos que podiam falar em nome da nação como um todo Isso foi especialmente verdadeiro nos países da Europa oriental e central que tinham poucas possessões ou nenhuma no alémmar a aliança entre a ralé e o capital nesses países ocorreu dentro de casa revelou seu ressentimento com maior amargura e atacou com maior violência as instituições nacionais e todos os partidos nacionais56 Contudo a desdenhosa indiferença dos políticos imperialistas em relação às questões domésticas era acentuada em toda parte especialmente na Inglaterra Enquanto partidos acima de partidos como a Liga da Primavera tiveram influência secundária o imperialismo foi o principal motivo pelo qual o sistema bipartidário degenerou no sistema da Bancada de Frente que levou à diminuição do poder da oposição no Parlamento e ao aumento do poder do Gabinete em relação à Câmara dos Comuns57 Naturalmente isso foi realizado como política de lutas partidárias e interesses particulares e por homens que diziam falar em nome da nação como um todo Esse tipo de linguagem fatalmente atraía e iludia exatamente aqueles que ainda retinham uma centelha de idealismo político O apelo à unidade assemelhavase exatamente aos gritos de alerta que sempre haviam levado os povos à guerra e no entanto ninguém exceto Marx percebeu que aquele instrumento universal e permanente de unidade escondia o germe da guerra permanente e universal Mais do que qualquer outro grupo foram as autoridades governamentais que adotaram ativamente o imperialismo nacionalista tornandose assim responsáveis pela confusão que surgia entre o imperialismo e o nacionalismo Os Estadosnações haviam criado serviços civis sob a forma de grupos permanentes de funcionários servindo independentemente de interesses de classe e de mudanças de governo os Estados dependiam deles A integridade profissional e o amorpróprio desse grupo especialmente na Inglaterra e na Alemanha deviamse exatamente ao fato de servirem ao país como um todo Era esse o único grupo diretamente interessado em apoiar o Estado na sua alegação de não depender de classes nem de facções Em nosso tempo tornase óbvio que a autoridade do próprio Estadonação depende em grande parte da independência econômica e neutralidade política dos seus servidores públicos o declínio das nações é gerado invariavelmente pela corrupção da sua administração permanente e pela convicção geral de que os servidores públicos estão a soldo das classes proprietárias e não do Estado No fim do século XIX as classes 56 Ver capítulo 8 57 Hobson op cit pp 146ss Não pode haver dúvida de que o poder do Gabinete em contraposição à Câmara dos Comuns tem aumentado constante e rapidamente e parece que continua a aumentar observou Brice em 1901 emStudies in history and jurisprudence 1901 I 177 Quanto ao funcionamento da Bancada de Frente ver também Hilaire Belloc e Cecil Chesterton Thepartysystem Londres 1911 183 proprietárias eram de tal forma dominantes que era quase ridículo a um funcionário do Estado fingir que servia ao país A divisão do país em classes deixava os funcionários públicos alienados do corpo político e forçavaos a formar o seu próprio círculo Servindo nas colônias escapavam à desintegração do corpo nacional Dominando povos estrangeiros em países distantes podiam muito melhor passar por heróicos servidores da nação que com seus serviços glorificavam a raça58 do que se permanecessem no país de origem As colônias já não eram simplesmente um vasto sistema de recreio ao ar livre para as classes superiores como James Mill ainda as descrevia transformavamse em espinha dorsal do nacionalismo britânico que descobriu no domínio de países distantes e de povos estranhos a única forma de servir a interesses exclusivamente britânicos Os serviços coloniais realmente acreditavam que nada indicava mais claramente o gênio peculiar de uma nação do que o seu sistema de lidar com as raças dominadas59 Na verdade somente longe de casa um cidadão da Inglaterra da Alemanha ou da França podia ser apenas inglês alemão ou francês Em seu país enredavase de tal forma em interesses econômicos ou lealdades sociais que se sentia mais como um membro de sua classe num país estranho do que um homem de outra classe em seu próprio país A expansão deu nova vida ao nacionalismo e portanto foi aceita como instrumento de política nacional Os membros das associações colonialistas e ligas imperialistas sentiamse bem distantes das lutas partidárias e quanto mais se afastavam da pátria mais acreditavam representar apenas o propósito nacional60 Isso mostra quão desesperada era a situação das nações européias antes do imperialismo quão frágeis se haviam tornado as suas instituições e quão obsoleto o seu sistema social em face da crescente capacidade produtiva do homem Os meios de sobrevivência eram também desesperados e no fim pior do que a doença foi o próprio remédio que por sinal nada curou A aliança entre a ralé e o capital está na gênese de toda política imperialista Em alguns países particularmente na GrãBretanha essa nova aliança entre os demasiado ricos e os demasiado pobres limitouse às possessões de ultramar A hipocrisia da política britânica resultava do bom senso de estadistas ingleses que traçaram uma linha divisória bem definida entre os métodos coloniais e a política doméstica normal evitando assim com bastante sucesso o temido efeito de bumerangue do imperialismo em seu torrão natal Em outros 58 Lorde Curzon na inauguração da placa em memória a lorde Cromer Ver Lawrence J Zetland Lord Cromer 1923 p 362 59 Sir Hesketh Bell op cit parte I p 300 O mesmo sentimento existia nos serviços coloniais holandeses A tarefa mais alta a tarefa sem precedentes é aquela que espera o funcionário do Serviço Público das Índias Orientais servir em suas fileiras deve ser considerado a mais alta honra o corpo seleto que cumpre a missão da Holanda no ultramar Ver De Kat Angelino Colonial policy Chicago 1931 II 129 60 Palavras do presidente do Kolonialverein Associação Colonial alemão HohenloheLangenburg em 1884 Ver Mary Townsend Origin of modem German colonialism 18711885 1921 184 países particularmente na Alemanha e na Áustria essa aliança realizouse em casa sob a forma dos movimentos de unificação enquanto na França ela se refletia na chamada política colonial O objetivo desses movimentos era por assim dizer imperializar toda a nação e não apenas a sua parte supérflua concatenar a política doméstica com a política externa de modo a organizar o país para a pilhagem de territórios alheios e a degradação permanente de povos estrangeiros O surgimento da ralé na organização capitalista foi observado desde cedo e o seu crescimento foi notado por todos os grandes historiadores do século XIX O pessimismo histórico de Burckhardt a Spengler devese essencialmente a essa observação Mas o que os historiadores tristemente preocupados com o fenômeno em si deixaram de perceber é que a ralé não podia ser identificada com o crescimento da classe trabalhista industrial e certamente não com o povo como um todo composta que era do refugo de todas as classes Essa composição fazia parecer que a ralé e seus representantes haviam abolido as diferenças de classe e que aqueles que se haviam alienado da nação dividida em classes eram o próprio povo a Volksgemeinschaft como a chamariam os nazistas e não a sua distorção e caricatura Os pessimistas históricos compreenderam a irresponsabilidade fundamental dessa nova camada social e previram corretamente também a possibilidade de converterse a democracia num despotismo cujos tiranos surgiriam da ralé e dependeriam do seu apoio O que eles não compreenderam é que a ralé não é apenas o refugo mas também o subproduto da sociedade burguesa gerado por ela diretamente e portanto nunca separável dela completamente E por isso deixaram de notar a admiração cada vez maior da alta sociedade pelo submundo que tão bem se percebe no século XIX seu recuo gradual e contínuo em todas as questões de moral e seu crescente gosto pelo cinismo anárquico característico dos rebentos da ralé gerados pela sociedade No começo do século XX o Caso Dreyfus demonstrou que o submundo e a alta sociedade na França estavam tão intimamente ligados que era difícil situar quaisquer dós heróicos adversários de Dreyfus em uma dessas duas categorias Esse sentimento de parentesco essa junção entre os genitores e a prole já expressa de modo clássico nas novelas de Balzac antecede a todas as considerações práticas de caráter econômico político ou social e faz lembrar aqueles traços psicológicos fundamentais do novo tipo de homem ocidental que Hobbes esboçou há trezentos anos Mas foi principalmente devido à experiência adquirida pela burguesia durante as crises e depressões anteriores ao imperialismo que a alta sociedade finalmente confessou estar pronta a aceitar a mudança revolucionária de padrões morais sugeridas pelo realismo de Hobbes ora novamente propostas pela ralé e por seus líderes O fato de que o pecado original do acúmulo original de capital requeria novos pecados para manter Chamamos aqui movimentos de unificação lingüística nacional etnocultural etc p ex pangermânica paneslava o que a autora denomina em inglês panmovements N T 185 o sistema em funcionamento foi mais eficaz para persuadir a burguesia a abandonar as coibições da tradição ocidental do que o seu filósofo ou o seu submundo Foi esse fato que finalmente levou a burguesia alemã a arrancar a máscara da hipocrisia e a confessar abertamente seu parentesco com a escória recorrendo expressamente a ela para defender os seus interesses de proprietários É significativo que isso tenha acontecido na Alemanha Na Inglaterra e na Holanda o crescimento da sociedade burguesa ocorrera de modo relativamente calmo e a burguesia desses países gozou durante séculos de segurança isenta do medo Na França sua ascensão foi interrompida por uma revolução popular cujas conseqüências interferiram no crescimento de sua supremacia Na Alemanha porém onde a burguesia não atingiu o seu completo desenvolvimento até a última metade do século XIX sua ascensão foi acompanhada desde o início pelo crescimento de um movimento revolucionário da classe trabalhadora cuja tradição era quase tão antiga quanto a sua Era natural que quanto menos segura se sentisse a classe burguesa mais fosse tentada a esconder seus alvos na hipocrisia A afinidade da alta sociedade com a escória veio à luz na França mais cedo que na Alemanha mas no fim era igualmente forte em ambos os países A França contudo devido à sua tradição revolucionária e à relativa falta de industrialização produziu uma escória numericamente pequena de sorte que a burguesia francesa foi finalmente forçada a procurar auxílio além de suas fronteiras e a aliarse à Alemanha de Hitler Qualquer que tenha sido a natureza precisa da longa evolução histórica da burguesia nos vários países europeus os princípios políticos da ralé tal como os vemos nas ideologias imperialistas e nos movimentos totalitários denunciam uma afinidade surpreendentemente forte com as atitudes políticas da sociedade burguesa uma vez expurgadas da hipocrisia e das concessões à tradição cristã O fato de as atitudes niilistas da ralé terem atração intelectual tão grande para a burguesia demonstra um relacionamento de princípios que vai muito além do próprio nascimento da ralé Em outras palavras a disparidade entre a causa e o efeito que caracteriza o surgimento do imperialismo tem suas razões A conjuntura riqueza supérflua criada por acúmulo excessivo que precisou do auxílio da ralé para encontrar um investimento lucrativo e seguro pôs em ação uma força que sempre havia estado latente na estrutura básica da sociedade burguesa embora oculta pelas tradições mais nobres e por aquela abençoada hipocrisia que La Roche foucauld qualificou de homenagem que o vício presta à virtude Ao mesmo tempo uma política de força completamente destituída de princípios não podia ser exercida antes que existisse uma massa igualmente isenta de princípios e numericamente tão grande que o Estado e a sociedade já não pudessem controlála O fato de que essa ralé pudesse ser manuseada somente por políticos imperialistas e inspirada apenas por doutrinas raciais fez crer que somente o imperialismo podia resolver os graves problemas domésticos sociais e econômicos dos tempos modernos 186 E verdade que a filosofia de Hobbes nada contém das modernas doutrinas raciais que não apenas incitam as massas mas em sua forma totalitária definem claramente o tipo de organização através da qual a humanidade pode levar o processo incessante de acúmulo de capital e de poder a seu fim lógico de autodestruição Mas Hobbes pelo menos forneceu ao pensamento político o prérequisito de todas as doutrinas raciais isto é a exclusão em princípio da idéia de humanidade como o único conceito regulador da lei internacional Com a suposição de que a política estrangeira é necessariamente excluída do contrato humano empenhada na guerra perpétua de todos contra todos conforme a lei do estado natural Hobbes propicia o melhor fundamento teórico possível para todas as ideologias naturalistas que vêem nas nações meras tribos separadas umas das outras por natureza sem qualquer tipo de conexão ignorantes da solidariedade humana e tendo em comum apenas o instinto de autoconservação como os animais Se a idéia de humanidade cujo símbolo mais convincente é a origem comum da espécie humana já não é válida então nada é mais plausível que uma teoria que afirme que as raças vermelha amarela e negra descendem de macacos diferentes dos que originaram a raça branca e que todas as raças foram predestinadas pela natureza a guerrearem umas contra outras até que desapareçam da face da terra Se for verdade que somos dominados pelo processo de Hobbes de infindável acúmulo de poder então a organização da ralé levará inevitavelmente à transformação de nações em raças pois nas condições da sociedade acumuladoira não existe outro elo de ligação entre indivíduos já que no próprio processo de acúmulo de poder e expansão os homens estão perdendo todas as demais conexões com os seus semelhantes O racismo pode destruir não só o mundo ocidental mas toda a civilização humana Quando os russos se tornaram eslavos quando os franceses assumiram o papel de comandantes da mãode obra negra quando os ingleses viraram homens brancos do mesmo modo como durante certo período todos os alemães viraram arianos então essas mudanças significaram o fim do homem ocidental Pois não importa o que digam os cientistas a raça é do ponto de vista político não o começo da humanidade mas o seu fim não a origem dos povos mas o seu declínio não o nascimento natural do homem mas a sua morte antinatural 187 2 O PENSAMENTO RACIAL ANTES DO RACISMO Afirmouse várias vezes que a ideologia racial foi uma invenção alemã Se assim realmente fosse então o modo de pensar alemão teria influenciado uma grande parte do mundo intelectual muito antes que os nazistas se engajassem na malograda tentativa de conquistar o mundo Pois se o hitlerismo exerceu tão forte atração internacional e intereuropéia durante os anos 30 é porque o racismo embora promovido a doutrina estatal só na Alemanha refletia a opinião pública de todos os países Se a máquina de guerra política dos nazistas já funcionava muito antes de setembro de 1939 quando os tanques alemães iniciaram a sua marcha destruidora invadindo a Polônia é porque Hitler previa que na guerra política o racismo seria um aliado mais forte na conquista de simpatizantes do que qualquer agente pago ou organização secreta de quintacolunas Fortalecidos pela experiência de quase vinte anos os nazistas sabiam que o melhor meio de propagar a sua idéia estava na sua política racial da qual a despeito de muitas outras concessões e promessas quebradas nunca se haviam afastado por amor à conveniência1 O racismo não era arma nova nem secreta embora nunca antes houvesse sido usada com tão meticulosa coerência A verdade histórica de tudo isso é que a ideologia racista com raízes profundas no século XVIII emergiu simultaneamente em todos os países ocidentais durante o século XIX Desde o início do século XX o racismo reforçou a ideologia da política imperialista O racismo absorveu e reviveu todos os antigos pensamentos racistas que no entanto por si mesmos dificilmente teriam sido capazes de transformar o racismo em ideologia Em meados do século XIX as opiniões racistas eram ainda julgadas pelo critério da razão política Tocqueville escreveu a Gobineau a respeito das doutrinas deste último que elas são provavelmente erradas e certamente perniciosas2 Mas já no fim daquele sé 1 Mesmo após o pacto germanosoviético agosto de 1939 quando a propaganda nazista suspendeu todos os ataques ao bolchevismo nunca renunciou à sua linha racista 2 Lettres de Alexis de Tocqueville et de Arthur de Gobineau em Revue des Deux Mondes 1907 tomo 199 carta de 17 de novembro de 1853 188 culo concederamse ao pensamento racista dignidade e importância como se ele fosse uma das maiores contribuições espirituais do mundo ocidental3 Até o período da corrida para a África o pensamento racista competia com muitas idéias livremente expressas que dentro do ambiente geral de liberalismo disputavam entre si a aceitação da opinião pública4 Somente algumas delas chegaram a tornarse ideologias plenamente desenvolvidas isto é sistemas baseados numa única opinião suficientemente forte para atrair e persuadir um grupo de pessoas e bastante ampla para orientálas nas experiências e situações da vida moderna Pois a ideologia difere da simples opinião na medida em que se pretende detentora da chave da história e em que julga poder apresentar a solução dos enigmas do universo e dominar o conhecimento íntimo das leis universais ocultas que supostamente regem a natureza e o homem Poucas ideologias granjearam suficiente proeminência para sobreviver à dura concorrência da persuasão racional Somente duas sobressaíramse e praticamente derrotaram todas as outras a ideologia que interpreta a história como uma luta econômica de classes e a que interpreta a história como uma luta natural entre raças Ambas atraíram as massas de tal forma que puderam arrolar o apoio do Estado e se estabelecer como doutrinas nacionais oficiais Mas mesmo além das fronteiras dentro das quais a ideologia racial e a ideologia de classes formaram moldes obrigatórios de pensamento a opinião pública livre as adotou de tal modo que não apenas os intelectuais mas até grandes massas rejeitam apresentações de fatos passados ou presentes que não se ajustem a uma delas A extraordinária força de persuasão decorrente das principais ideologias do nosso tempo não é acidental A persuasão não é possível sem que o seu apelo corresponda às nossas experiências ou desejos ou em outras palavras a necessidades imediatas Nessas questões a plausibilidade não advém nem de fatos científicos como vários cientistas gostariam que acreditássemos nem de leis históricas como pretendem os historiadores em seus esforços de descobrir a lei que leva as civilizações ao surgimento e ao declínio Toda ideologia que se preza é criada mantida e aperfeiçoada como arma política e não como doutrina teórica É verdade que às vezes como ocorreu no caso do racismo uma ideologia muda o seu rumo político inicial mas não se pode imaginar nenhuma delas sem contato imediato com a vida política Seu aspecto científico é secundário Resulta da necessidade de proporcionar argumentos aparentemente coesos e assume características reais porque seu poder persuasório fascina também a cientistas desinteressados pela pesquisa propriamente dita e atraídos pela possibilidade de pregar à multidão as novas interpretações da vida e do mundo5 É 3 A melhor análise histórica do pensamento racista apresentada sob forma de história de idéias é de Erich Voegelin Rasse undStaat Raça e Estado Tuebingen 1933 4 Sobre as muitas opiniões conflitantes do século XIX ver Carlton J H Hayes A generation of materialism Nova York 1941 pp 1112 5 Huxley abandonou a sua própria pesquisa cientifica a partir dos anos 70 tão ocupado estava em seu papel de buldogue de Darwin de latir e morder os teólogos Hayes op cit p 126 A paixão de Ernest Haeckel de popularizar os resultados científicos tão forte quanto a sua 189 graças a esses pregadores científicos e não a quaisquer descobertas científicas que não há praticamente uma única ciência cujo sistema não tenha sido profundamente afetado por cogitações raciais6 Isso por sua vez levou vários historiadores alguns dos quais se viram tentados a responsabilizar a ciência pela ideologia racista a tomarem como causas certos resultados da pesquisa filológica ou biológica quando se tratava de conseqüências da ideologia racista A doutrina do Direito da Força precisou de vários séculos do XVII ao XIX para conquistar a ciência natural e formular a lei da sobrevivência dos mais aptos E se para dar outro exemplo a teoria de De Maistre e Schelling que dizia serem as tribos selvagens resíduos em decomposição dos antigos povos se houvesse ajustado tão bem aos mecanismos políticos do século XIX quanto a teoria do progresso provavelmente pouco teríamos ouvido falar de seres primitivos e nenhum cientista teria perdido seu tempo à procura do elo que faltava entre o macaco e o homem A culpa não é da ciência em si mas de certos cientistas não menos hipnotizados pelas ideologias que os seus concidadãos menos cultos Embora seja óbvio que o racismo é a principal arma ideológica da política imperialista ainda se crê na antiga e errada noção de que o racismo é uma espé paixão pela ciência foi acentuada por um escritor nazista que o aplaudia H Bruecher Ernest Haeckel ein Wegbereiter biologischen Staatsdenkens em Nationalsozialistische Monatshefte 1935 vol 69 Dois exemplos um tanto extremos mostram do que são capazes os cientistas Ambos eram reputados eruditos e escreveram durante a Primeira Guerra Mundial O historiador de arte alemão Josef Strzygowski em seu Altai Irem und Volkerwanderung Leipzig 1917 descobriu que a raça nórdica era constituída de alemães ucranianos armênios persas húngaros e turcos pp 3067 A Sociedade de Medicina de Paris não apenas publicou um relatório sobre a poliquesia defecação excessiva e bromidose cheiro de corpo na raça alemã mas propunha a análise da urina para a descoberta de espiões alemães verificavase que a urina alemã continha 20 de nitrogênio nãoúrico contra 15 das outras raças Ver Jacques Barzun Race Nova York 1937 p 239 6 Esse quidpro quo foi em parte resultado do zelo de estudiosos que queriam registrar cada circunstância na qual a raça tenha sido mencionada Dessa forma confundiam autores relativamente inofensivos para quem a explicação pela raça era uma opinião possível e às vezes fascinante com racistas completos Tais opiniões em si inócuas eram propostas pelos primeiros antropólogos como pontos de partida para suas investigações Um exemplo típico é a ingênua hipótese de Paul Broca destacado antropólogo francês de meados do século passado o qual afirmava que o cérebro tem algo a ver com a raça e a mensuração do formato do crânio é a melhor maneira de determinar o conteúdo do cérebro Citado por Jacques Barzun op cit p 162 Ê óbvio que tal assertiva sem o apoio de uma concepção da natureza do homem é simplesmente ridícula Quanto aos filólogos do início do século XIX cujo conceito de arianismo levou quase todos os estudiosos do racismo a contálos entre os propagandistas ou até mesmo os inventores do pensamento racial eles são tão inocentes quanto se possa ser Se ultrapassaram os limites da pesquisa pura foi porque desejavam incluir na mesma irmandade cultural o maior número de nações possível Nas palavras de Ernest Seillière Laphilosophie defimperialisme 4 vols 19036 Houve uma espécie de intoxicação a civilização moderna acreditava ter recuperado seu pedigree e nasceu um organismo que abraçou numa única e mesma fraternidade todas as nações cuja língua mostrasse alguma afinidade com o sânscrito Préface tomo I p XXXV Em outras palavras esses homens ainda pertenciam à tradição humanística do século XVIII e compartilhavam seu entusiasmo por povos estranhos e culturas exóticas 190 cie de exagerado nacionalismo Contudo valiosos trabalhos de estudiosos especialmente na França provaram que o racismo não é apenas um fenômeno anacional mas tende a destruir a estrutura política da nação Diante da gigantesca competição entre a ideologia racial e a ideologia de classes pelo domínio do espírito do homem moderno já houve quem se inclinasse a ver numa a expressão de tendências nacionais que preparavam mentalmente para guerras civis e na outra a expressão de tendências internacionais isto é a preparação mental para a guerra entre as nações Essa confusão foi possível porque a Primeira Guerra Mundial continha uma curiosa mistura de antigos conflitos nacionais e novos conflitos imperialistas mistura na qual os antigos lemas nacionais demonstraram ter ainda para as massas dos países envolvidos uma atração que superava qualquer objetivo imperialista Contudo a última guerra com seus Quislings e colaboracionistas em toda parte deveria ter provado que o racismo engendra conflitos civis em qualquer país e que é um dos métodos mais engenhosos já inventados para preparar uma guerra civil Porque a verdade é que as ideologias racistas ingressaram no palco da política ativa no momento em que os povos europeus já haviam preparado e até certo ponto haviam realizado o novo corpo político da nação O racismo deliberadamente irrompeu através de todas as fronteiras nacionais definidas por padrões geográficos lingüísticos tradicionais ou quaisquer outros e negou a existência políticonacional como tal A ideologia racial e não a de classes acompanhou o desenvolvimento da comunidade das nações européias até se transformar em arma que destruiria essas nações Historicamente falando os racistas embora assumissem posições aparentemente ultranacionalistas foram piores patriotas que os representantes de todas as outras ideologias internacionais foram os únicos que negaram o princípio sobre o qual se constróem as organizações nacionais de povos o princípio de igualdade e solidariedade de todos os povos garantido pela idéia de humanidade UMA RAÇA DE ARISTOCRATAS CONTRA UMA NAÇÃO DE CIDADÃOS O crescente interesse pelos povos diferentes estranhos e até mesmo selvagens caracterizou a França intelectual do século XVIII As pinturas chinesas eram admiradas e imitadas nessa época uma das obras mais famosas intitulavase Lettres persanes e as narrativas de viajantes eram a leitura favorita da sociedade A honestidade e a simplicidade dos povos selvagens e nãocivilizados opunhamse à sofisticação e frivolidade da cultura Muito antes que o século XIX com o aumento das oportunidades de viajar trouxesse o mundo nãoeuropeu ao alcance de qualquer cidadão médio a sociedade francesa do século XVIII já havia tentado espiritualmente compreender o conteúdo de culturas e países distantes das fronteiras européias Um fervoroso entusiasmo por novos espécimes da humanidade Herder orgulhava os heróis da Revolução 191 Francesa que juntamente com a nação francesa levaram liberdade aos povos de todas as cores que viviam sob a bandeira da França Esse entusiasmo por países estranhos e por estrangeiros culminou na mensagem da fraternidade porque se inspirava no desejo de demonstrar em cada novo e surpreendente espécime da humanidade o velho ditado de La Bruyère La raison est de tous les climats No entanto é nesse século criador de nações e é nesse país amante da humanidade que vamos encontrar o germe daquilo que mais tarde viria a ser o poderio racista destruidor das nações e aniquilador da humanidade7 É notável o fato de que o primeiro autor que preconizou a coexistência na França de diversos povos de diferentes origens fosse ao mesmo tempo o primeiro a desenvolver um modo definido de pensar em termos de classe O conde de Boulain villiers nobre francês que escreveu no começo do século XVIII e cujas obras foram publicadas após sua morte interpretava a história da França como a história de duas nações diferentes das quais uma de origem germânica havia conquistado os habitantes mais antigos os gauleses impondolhes suas leis tomando suas terras e estabelecendose como classe governante a nobreza cujos direitos supremos se baseavam no direito da conquista e na necessidade da obediência que sempre é devida ao mais forte8 Preocupado principalmente em encontrar argumentos contra o crescente poder político do Tiers État e de seus portavozes que eram o nouveau corps formado pelas gens de lettres et de lois Boulainvilliers passou a combater também a monarquia porque o rei da França já não queria representar a nobreza como primus inter pares e sim a nação como um todo durante algum tempo a nova classe em ascensão chegou a ter nele o seu mais poderoso protetor A fim de recuperar para a nobreza a primazia inconteste Boulainvilliers propôs que seus companheiros de nobreza negassem ter origem comum com o povo francês quebrassem a unidade da nação e alegassem uma distinção peculiar e eterna9 Mais ousado que a maioria dos defensores da nobreza depois dele Boulainvilliers negava qualquer conexão predestinada entre os homens e o solo Assim admitia que os gauleses estivessem na França havia mais tempo e que os francos eram estranhos e bárbaros Mas baseava sua doutrina exclusivamente no eterno direito de conquista e não tinha dificuldade em afirmar que a Frísia constituía o verdadeiro berço da nação francesa Séculos antes do surgimento do genuíno racismo imperialista e seguindo apenas a lei inerente ao seu conceito considerava os habitantes originais da França como nativos no sentido mo 7 François Hotman francês do século XVI autor de FrancoGallia é às vezes apontado como o faz Ernest Seillère op cit como um precursor das doutrinas raciais do século XVIII Contra essa concepção errônea protestou com justiça Théophile Simar Hotman surge não como apologista dos teutões mas como defensor do povo que foi oprimido pela monarquia Etude critique sur Ia formation de Ia doctrine des race au 18e et son expansion au 19e siècle Bruxelas 1922 p 20 8 Histoire de Vancien gouvernement de Ia France 1727 tomo I p 33 9 Montesquieu Esprit des lois 1748 XXX capítulo 7 afirma que a visão da história do conde Boulainvilliers era uma arma política contra o Tiers Etat 192 demo ou em seu próprio dizer súditos não do rei mas daqueles cujo privilégio era descenderem dos conquistadores e que por direito de nascimento mereciam o nome de franceses Boulainvilliers foi fortemente influenciado pelas doutrinas do direito da força do século XVII e foi certamente um dos discípulos contemporâneos mais aplicados de Spinoza cuja Ética ele traduziu e cujo Tratado teológicopolítico analisou Porém ao aceitar e aplicar as idéias políticas de Spinoza transformou a força em conquista e esta aparecia como qualidade natural como privilégio inato dos homens e das nações Contudo a teoria de Boulainvilliers ainda se refere a pessoas e não a raças baseia o direito do povo superior num dado histórico a conquista e não num fato físico embora o dado histórico já resultasse das qualidades naturais do povo conquistado Inventa dois povos diferentes na França para atacar a idéia nacional representada pela monarquia absoluta aliada ao Tiers État Boulainvilliers é antinacional numa época em que a idéia de nação era tomada por nova e revolucionária a Revolução Francesa demonstraria quão intimamente era aparentada a uma forma democrática de governo Boulainvilliers preparou seu país para a guerra civil sem saber o que uma guerra civil significava Representava muitos daqueles nobres que não se consideravam partícipes da nação mas sim de uma casta governante à parte que se sentia mais próxima de estrangeiros desde que da mesma sociedade e condição do que de seus compatriotas Na verdade foram essas tendências antinacionais que exerceram significativa influência entre os emigres pósrevolucionários para serem finalmente absorvidas pelas doutrinas raciais expostas com franqueza já no século XIX De fato só quando a Revolução forçou grande parte da nobreza da França a procurar refúgio na Alemanha e na Inglaterra as idéias de Boulainvilliers demonstraram sua utilidade como arma política Até lá sua influência sobre a aristocracia francesa mantevese viva como se pode ver pela obra de um outro nobre o conde DubuatNançay10 que sublinhava com força ainda maior a ligação entre a nobreza da França e seus pares nos demais países do continente europeu Ãs vésperas da Revolução esse portavoz do feudalismo francês sentiuse tão inseguro que preconizava a criação de uma espécie de Internationale da aristocracia de origem bárbara11 e como a nobreza alemã era a única da qual se podia esperar uma eventual ajuda não hesitou em identificar a origem da nação francesa com a dos alemães Assim segundo ele as classes inferiores da França embora já não fossem escravas não eram livres por nascimento mas por affranchissement ou seja pela graça daqueles que estes sim eram livres por nascimento a nobreza Alguns anos mais tarde os exilados franceses realmente tentaram organizar uma Internationale de aristocratas para estrangular de antemão a revolta daqueles que desprezavam considerandoos um grupo estrangeiro escravizado E embora o lado mais prático dessas tentativas 10 Les Origines de Vancien gouvernement de Ia France de 1Allemagne et deVItalie 1789 11 SeiUière op cit p XXXII 193 sofresse o espetacular desastre de Valmy os emigres não admitiram derrota como entre outros Charles François Dominique de Villiers que por volta de 1800 distinguia entre os galoromanos inferiores e os germânicos superiores ou William Alter que uma década mais tarde sonhou com uma federação de todos os povos germânicos12 nobres franceses inclusive Provavelmente nunca lhes havia ocorrido que eram na realidade traidores tão firmemente estavam convencidos de que a Revolução Francesa era uma guerra entre dois povos estrangeiros como disse François Guizot mais tarde Enquanto Boulainvilliers com a calma equanimidade de um tempo menos perturbado baseou os direitos da nobreza unicamente nos direitos de conquista sem depreciar diretamente a própria natureza da outra nação conquistada o conde de Montlosier uma das personagens mais dúbias entre os exilados franceses expressou francamente o seu desprezo por esse povo que veio de escravos uma mistura de todas as raças e de todos os tempos13 Os tempos obviamente haviam mudado e os nobres que já não pertenciam mais a uma raça inconquistável também tinham de mudar Assim acabaram abandonando a velha idéia tão cara a Boulainvilliers e até a Montesquieu de que somente a conquista fortune des armes determinava os destinos dos homens A derrota das ideologias da nobreza parecia ter chegado quando o abade Siéyès em seu famoso panfleto conclamou o Tiers Etat a mandar de volta para as florestas da Francônia todas essas famílias que conservavam a absurda pretensão de descenderem da raça conquistadora e de terem herdado os seus direitos14 É um fato bastante curioso que desde o momento em que os nobres franceses em sua luta de classe contra a burguesia descobriram pertencer a uma outra nação descender de outra origem genealógica e estar mais intimamente ligados a uma casta internacional do que ao solo da França todas as teorias raciais francesas tenham apoiado o germanismo ou pelo menos a suposta superioridade dos povos nórdicos em relação aos seus próprios compatriotas Assim os homens da Revolução Francesa se identificavam mentalmente com Roma não porque combatiam o germanismo da nobreza francesa opondolhe o latinismo do Tiers Etat mas porque se sentiam como herdeiros espirituais dos republicanos romanos Essa pretensão histórica em contraste com a identificação tribal da nobreza pode ter sido uma das causas que impediram o latinismo de surgir como doutrina racial De qualquer modo por mais Na Batalha de Valmy 20 de setembro de 1792 o exército prussiano enviado à França para pôr um fim na Revolução e reinstalar o antigo regime foi fragorosamente derrotado pelo exército revolucionário N E 12 Ver René Maunier Sociologie coloniale Paris 1932 tomo II p 115 13 Montlosier mesmo no exílio mantinha íntimas relações com o chefe da polícia francesa Fouché que o ajudou a melhorar sua triste condição financeira de refugiado Mais tarde serviu como agente secreto de Napoleão na alta sociedade francesa Ver J Brugerette Le Comte de Montlosier 1931 e Simar op cit 14 Questceque le Tiers Etat 1789 publicado pouco antes do início da Revolução Citado por J H Clapham The Abbé Siéyès Londres 1912 p 62 194 paradoxal que seja o fato é que foram os franceses a insistirem antes dos alemães e dos ingleses nessa idée fixe de superioridade germânica15 Nem o nascimento da consciência racial alemã após a derrota de 1806 dirigida desde então contra os franceses alterou o curso das ideologias racistas na França Nos anos 40 do século XIX Augustin Thierry ainda aderia à identificação de classes e raças e distinguia a nobreza germânica da burguesia celta16 enquanto outro nobre francês o conde Rémusat proclamava a origem germânica de toda a aristocracia européia Finalmente o conde Gobineau transformou em elaborada doutrina histórica uma opinião já aceita de modo geral entre a nobreza francesa dizendo haver descoberto a lei secreta da queda das civilizações e elevado a história à dignidade de ciência natural Com ele a ideologia racista completou o seu primeiro estágio iniciando o segundo cujas influências seriam sentidas até a década dos anos 20 do século XX 2 UNIDADE RACIAL COMO SUBSTITUTO DA EMANCIPAÇÃO NACIONAL A ideologia racista na Alemanha só se desenvolveu após a derrota do velho exército prussiano ante Napoleão Seu surgimento foi obra dos patriotas prussianos e do romantismo político e não da nobreza e de seus portavozes Em contraste com o tipo francês de ideologia racista forjada como arma para a guerra civil e para a divisão do país o pensamento racial dos alemães resultou do esforço de unir o povo contra o domínio estrangeiro Seus autores não procuraram aliados além das fronteiras buscaram despertar no povo a consciência de uma origem comum Isso na verdade excluía a nobreza por causa das suas relações notoriamente cosmopolitas embora estas fossem menos acentuadas entre os Junkers prussianos do que entre o resto da nobreza européia de qualquer forma excluía a possibilidade de basear o racismo na classe mais exclusiva do povo A ideologia racista alemã acompanhou as longas e frustradas tentativas de unir os numerosos Estados alemães permaneceu pelo menos em seus estágios iniciais tão intimamente ligada a sentimentos nacionais que se tornou difícil distinguir na Alemanha o mero nacionalismo do racismo declarado Sentimentos nacionais inofensivos eram expressos em termos que hoje sabemos racistas de modo que até mesmo os historiadores que identificaram o racismo alemão do século XX com a linguagem peculiar do nacionalismo alemão são levados a confundir o nazismo com o nacionalismo alemão contribuindo desse modo para que se subestime a extraordinária atração que a propaganda de Hitler exerceu internacionalmente As peculiares condições do nacionalismo alemão só mudaram após 1870 quando o país se unificou e o racismo alemão 15 O arianismo histórico tem sua origem no feudalismo do século XVIII e foi apoiado pelo germanismo do século XIX observa Séillière op cit p II 16 Lettres surl histoire de France 1840 195 juntamente com o imperialismo alemão pôde se manifestar integralmente Desde então porém várias características diferentes modificaram o pensamento racista na Alemanha tornandoo ideologicamente específico Contrariamente ao que ocorreu na França a nobreza prussiana sentia que os seus interesses estavam estreitamente ligados à posição da monarquia absoluta e pelo menos desde os tempos de Frederico II almejava ser reconhecida como legítima representante da nação como um todo Com exceção do período das reformas prussianas de 1808 a 1812 a nobreza da Prússia não se assustou com a ascensão da burguesia nem receou uma coligação entre as classes médias e a casa governante já que o rei da Prússia era o maior latifundiário do país permanecendo primus inter pares a despeito dos esforços dos reformadores Portanto foi fora da nobreza que surgiu a ideologia da raça que na Alemanha transformouse em arma para os nacionalistas Desejando a união de todos os povos de língua alemã eles insistiam na importância da origem étnica racial comum Eram liberais na medida em que se opunham ao domínio exclusivo dos Junkers prussianos Enquanto essa origem comum era definida pela língua comum não se podia chamá la de ideologia racial propriamente dita17 Somente a partir de 1814 essa origem comum passa a ser freqüentemente descrita em termos de parentesco de sangue de laços familiares de unidade tribal de origem pura sem misturas Essas definições que surgem quase simultaneamente nas obras do católico Josef Goerres e de liberais nacionalistas como Ernst Moritz Arndt e F L Jahn comprovam o fracasso das esperanças de despertar verdadeiros sentimentos nacionais no povo alemão por outros meios culturais como idioma ou história Por causa dessa impossibilidade de transformar o povo alemão em nação da ausência de reminiscências históricas comuns e da aparente apatia popular pelo futuro destino comum nasceu uma exortação nacionalista dirigida a instintos tribais como eventual substituto daquela aparente unidade nacional que constituía aos olhos de todo mundo a esplêndida força da nação francesa A idéia apresentada como doutrina orgânica da história e segundo a qual cada raça é um todo separado e completo18 foi inventada por homens que necessitavam de definições ideológicas de unidade nacional para substituir o conceito de nacionalidade política inexistente na Alemanha Esse nacionalismo frustrado levou Arndt a afirmar que os alemães os últimos a adquirirem a unidade orgânica tinham pelo menos a sorte de formarem uma raça pura e sem mistura um povo genuíno19 A definição orgânica e naturalista da origem dos povos é uma das principais características das ideologias historicistas alemãs Não obstante não 17 Esse era o caso por exemplo da Philosophische Vorlesungen aus den Jahren 18041806 II 357 de Friedrich Schlegel O mesmo se aplica a Ernst Moritz Arndt Ver Alfred P Pundt Arndt and the national awakening in Germany Nova York 1935 pp 116 ss 18 Joseph Goerres em Rheinischer Merkur 1814 n 25 19 Em Phantasien zur Berichtigung der Urteile über Künftige deutsche Verfassungen Fantasias para a retificação dos juízos sobre as condições futuras da Alemanha 1815 196 constitui ainda o verdadeiro racismo pois mesmo aqueles que se utilizavam da terminologia racial defendiam com ela o conceito da genuína nacionalidade que é o princípio da igualdade dos povos Assim no mesmo artigo em que compara as leis dos povos com as leis do mundo animal Jahn insiste em que na genuína e equitativa pluralidade dos povos e em sua completa multitude se encontra a única forma de realização dos anseios da humanidade20 E Arndt que mais tarde expressaria forte simpatia pelos movimentos de libertação nacional dos poloneses e italianos exclamou Maldito aquele que subjugar e dominar povos estrangeiros21 Uma vez que os sentimentos nacionais alemães não haviam resultado do genuíno desenvolvimento nacional mas foram simples reações contra a ocupação estrangeira22 as doutrinas nacionais tinham um caráter negativo peculiar destinavamse a erguer um muro em torno do povo a atuar como substitutos de fronteiras que não podiam ser definidas com clareza pela geografia ou pela história Enquanto a forma primitiva da ideologia racista da aristocracia francesa servia como instrumento de divisão interna e como arma para a guerra civil a forma inicial da doutrina racista alemã criavase como arma de unidade interna vindo a transformarse depois em arma para a guerra entre as nações Assim como o declínio da nobreza francesa como classe importante na França teria anulado essa arma se os inimigos da Terceira República não a houvessem ressuscitado também a realização da unidade nacional alemã teria roubado o significado da doutrina orgânica da história se os maquinadores do imperialismo moderno não a houvessem restaurado com o fito de atrair o povo e esconder a realidade de seus interesses sob a respeitável máscara do nacionalismo O mesmo não se pode dizer porém de outra fonte do racismo alemão que embora aparentemente afastada do âmbito político teve influência bem mais forte sobre as ideologias posteriores O romantismo político tem sido acusado de haver gerado a ideologia racista como foi e sempre poderia vir a ser acusado de inventar qualquer outra opinião irresponsável desde que se queira Adam Mueller e Friedrich Schlegel representam a frivolidade geral do pensamento moderno onde praticamente qualquer opinião pode entrar em voga durante certo tempo Nenhuma verdade 20 Os animais de raça mista carecem de verdadeira potência geradora da mesma forma pessoas híbridas não se propagam como um povo por si mesmas O ancestral da humanidade está morto e a raça original está extinta É por isso que cada povo moribundo é um infortúnio para a humanidade A nobreza humana não pode ser expressa num povo só Em Deutsches Volkstum 1810 A mesma posição é expressa por Goerres que a despeito de sua definição naturalista de povo todos os membros são unidos por um laço sangüíneo comum adota um verdadeiro princípio nacional quando diz Nenhum ramo tem o direito de dominar o outro op cit 21 Blick aus der Zeit aufdie Zeit Olhar do tempo sobre o tempo 1814 Citado por Alfred P Pundt op cit 22 Só depois que a Áustria e a Prússia haviam caído após uma luta vã é que realmente comecei a amar a Alemanha Quando a Alemanha sucumbiu diante da conquista e da dominação tornouse para mim única e indissolúvel escreve E M Arndt em seu Erínnerungen aus Schweden Lembranças da Suécia 1818 p 82 Citado por Pundt op cit p 151 197 nenhum evento histórico nenhuma idéia política estava a salvo da mania que a tudo podia atingir e a tudo destroçar desde que fossem novas e originais as maneiras de emitir novas e fascinantes opiniões O mundo deve ser romantizado disse Novalis querendo conferir alto sentido ao que era comum aparência misteriosa ao que era ordinário e dignidade de incógnita ao que era conhecido23 Um dos objetos romantizados o povo podia de um momento para o outro transformarse em Estado em família em nobreza ou em qualquer outro elemento que pelo menos no começo passasse pela cabeça de um desses intelectuais ou que mais tarde quando já maduros haviam aprendido a realidade do pão de cada dia lhe fosse encomendado por algum freguês pagante24 É portanto quase impossível estudarse a evolução de qualquer das opiniões que competiam livremente entre si e das quais o século XIX é tão assombrosamente rico sem que se analise o romantismo em sua forma alemã O que esses primeiros intelectuais modernos realmente prepararam não foi tanto a evolução de qualquer opinião particular quanto a mentalidade genérica dos modernos eruditos alemães estes já provaram mais de uma vez que não existe ideologia a que não se submetam de bom grado quando está em jogo a única realidade que nem mesmo um romântico poderia darse ao luxo de ignorar a realidade das posições pessoais Para esse tipo de conduta o romantismo serviu de excelente pretexto em sua ilimitada idolatria da personalidade do indivíduo cuja própria arbitrariedade era prova de gênio Qualquer coisa que servisse à assim chamada produtividade do indivíduo ou seja ao jogo totalmente arbitrário de suas idéias podia tornarse o centro de todo um modo de encarar a vida e o mundo Esse cinismo peculiar ao culto romântico da personalidade tornou possíveis certas atitudes modernas entre os intelectuais atitudes estas razoavelmente bem representadas por Mussolini um dos últimos herdeiros desse movimento quando ele dizia ser ao mesmo tempo aristocrata e democrata revolucionário e reacionário proletário e antiproletário pacifista e antipacifista O implacável individualismo do romantismo nunca significou algo mais sério do que isto todos têm o direito de criar a sua própria ideologia O que havia de novo na experiência de Mussolini era a tentativa de pôla em prática com toda a energia possível25 Devido a esse relativismo a contribuição direta do romantismo para a evolução do sentimento racista foi quase nula Do jogo anárquico que a qualquer instante permite a qualquer um ter pelo menos uma opinião pessoal e arbitrária decorre quase naturalmente o direito à formulação e divulgação de qualquer opinião concebível Muito mais característica do que esse caos era a 23 Neue Fragmentensammlung Nova coletânea dos fragmentos 1798 em Schriften Escritos Leipzig 1929 tomo II p 335 24 A respeito da atitude romântica na Alemanha ver Carl Schmitt Politische Romantik Munique 1925 25 Mussolini Relativismo e fascismo em Diuturna Milão 1924 Tradução citada por F Neumann Behemoth 1942 pp 4623 198 crença fundamental na personalidade como fim último Na Alemanha onde o conflito entre a nobreza e a classe média em ascensão nunca foi travado no campo político o culto da personalidade tornouse o único meio de alcançar pelo menos certa forma de emancipação social A classe governante do país mostrava tão abertamente seu tradicional desprezo pelo comércio e seu desgosto por associações com os comerciantes a despeito da riqueza e da importância crescentes desses últimos que não lhes era fácil encontrar um meio de atingir certa dignidade O clássicoBildungsroman alemão Wilhelm Meister no qual o herói da classe média é educado por nobres e atores porque o burguês de sua própria esfera social é desprovido de personalidade prova suficientemente a irremediabilidade da situação então reinante para a classe média Os intelectuais alemães embora raramente promovessem lutas políticas em prol da classe média à qual pertenciam travaram uma batalha amarga e infelizmente muito bemsucedida em prol de sua própria posição social Até mesmo aqueles que haviam escrito em defesa da nobreza sentiam que os seus próprios interesses estavam em jogo quando se tratava da ascensão social Para poderem competir com direitos e qualidades de nascimento formularam o novo conceito de personalidade inata que iria obter a aprovação geral da sociedade burguesa A personalidade inata exatamente como o título de herdeiro de uma família antiga passou a decorrer do nascimento sem ser adquirida pelo mérito Assim como a falta de história comum para a formação da nação havia sido artificialmente sanada pela implantação do conceito naturalista de desenvolvimento orgânico também na esfera social supunhase que a natureza proporcionava ao indivíduo o título que a realidade política lhe havia negado Cedo escritores liberais passaram a vangloriarse de serem os verdadeiros nobres em contraposição aos surrados títulos de barão e quejandos que afinal podiam ser concedidos e cancelados e afirmavam implicitamente que seus privilégios naturais a força ou o gênio não podiam ser atribuídos a qualquer feito humano26 Logo ficou patente o aspecto discriminatório desse novo conceito social Durante o período de anti semitismo social que introduziu e preparou a descoberta do ódio aos judeus como arma política foi o conceito da falta da personalidade inata ou da inata falta de tato da inata falta de produtividade da inata vocação para o comércio etc que distinguiu a conduta do comerciante judeu da dos seus colegas em geral Em sua febril tentativa de invocar algum orgulho próprio contra a arrogância de classe dos Junkers sem contudo ousar baterse por liderança política a burguesia buscou desde o início olhar com desprezo não tanto as classes inferiores mas simplesmente os outros povos Muito típica disso é a pequena obra literária de Clemens Brentano27 26 Ver o interessante panfleto contra a nobreza do escritor liberal Buchholz Untersuchungen ueber den Geburtsadel Pesquisas sobre a nobreza de nascenca Berlim 1807 p 68 A verdadeira nobreza não pode ser dada ou tomada pois como a força e o gênio estabelecese a si mesma e existe por si mesma 27 Clemens Brentano Der Philister vor in und nach der Geschichte O filisteu antes durante e na história 1811 199 escrita para o clube ultranacionalista antinapoleônico e lida por seus membros que se reuniram em 1808 sob o nome de Die ChristlichDeutsche Tischgesellschaft A Sociedade Alemã e Cristã de Reuniões Em sua maneira altamente sofisticada e espirituosa Brentano mostra o contraste entre a personalidade inata o indivíduo genial e o filisteu que ele identificava com franceses e judeus Doravante a burguesia alemã tentaria pelo menos atribuir a outros povos inicialmente aos franceses mais tarde aos ingleses e sempre aos judeus todas as qualidades que a nobreza desprezava como tipicamente burguesas Quanto às misteriosas qualidades que uma personalidade inata recebia ao nascer eram exatamente as mesmas que os verdadeiros Junkers diziam possuir Embora os padrões da nobreza contribuíssem desse modo para o surgimento do pensamento racista não se pode atribuir aos próprios Junkers a culpa pela formação dessa mentalidade O único Junker desse período a desenvolver uma teoria política própria Ludwig von der Marwitz nunca fez uso de termos racistas Segundo ele as nações eram separadas pelos idiomas uma diferença espiritual e não física e embora fosse violento inimigo da Revolução Francesa falava como Robespierre quando se tratava de possível agressão de uma nação contra outra Aquele que planeja expandir suas fronteiras deveria ser considerado um pérfido traidor em meio a toda a república européia de Estados28 Foi Adam Mueller quem insistiu na descendência pura como teste de nobreza e foi Haller que indo além do fato óbvio de que os poderosos dominam os que não têm poder disse ser da lei natural que os fracos fossem dominados pelos fortes Os nobres naturalmente aplaudiram com entusiasmo quando souberam que sua usurpação do poder era não somente legal como também estava de acordo com as leis naturais e foi em decorrência das definições burguesas que no decorrer do século XIX foram mais cautelosos do que antes em evitar mésalliances29 Essa insistência na origem tribal comum como essência da nacionalidade formulada pelos nacionalistas alemães durante e após a guerra de 1814 e a ênfase que os românticos davam à personalidade inata e à nobreza natural prepararam a Alemanha intelectualmente para pensar em termos racistas Da primeira idéia surgiu a doutrina orgânica da história com as suas leis naturais da outra surgiu no fim do século XIX a grotesca imitação de superhomem com o destino natural de dominar o mundo Enquanto essas tendências evoluíam paralelamente representavam apenas meios temporários de fuga da realidade política Mas fundidas numa só constituíram a própria base do racismo como ideologia plenamente desenvolvida Isso contudo não veio a acontecer primeiramente na Alemanha e sim na França e não foi obra de intelectuais da 28 Entwurf eines Friedenspaktes A elaboração de um tratado de paz em Gerhard Ramlow Ludwig von der Marwitz und die Anfànge konservativer Politik und Staatsauffassung in Preussen Marwitz e o início da política conservadora e organização estatal da Prússia Historische Studien vol 185 p 92 29 Vide Sigmund Neumann Die Stufen des preussischen Konservatismus Primórdios do conservadorismo prussiano Historische Studien vol 1901930 Quanto a Adam Mueller é importante a leitura de seu Elemente der Staatskunst Elementos da arte de Estado 1809 200 classe média mas de um nobre altamente talentoso e frustrado o conde de Gobineau 3 A NO VA CE A VE DA HISTÓRIA Em 1853 o conde Arthur de Gobineau publicou seu Essai sur Vinégalité des races humaines que somente cerca de cinqüenta anos mais tarde já no início do século XX se tornaria fundamental para as teorias racistas da história A frase inicial dessa obra de quatro volumes O declínio da civilização é o fenômeno mais notável e ao mesmo tempo o mais obscuro da história revela claramente o interesse essencialmente novo e moderno do autor e o tom pessimista que domina sua obra gerando a força ideológica capaz de unir todos os fatores ideológicos anteriores e as opiniões em conflito De fato desde tempos imemoriais a humanidade tem desejado saber tanto quanto possível sobre culturas passadas impérios derrubados e povos extintos mas ninguém antes de Gobineau cuidou de encontrar uma única razão uma força única que rege as civilizações em sua ascensão e declínio As doutrinas da decadência parecem ter alguma conexão ideológica íntima com o sentimento racista Certamente não foi por coincidência que outro dos primeiros apologistas do racismo Benjamin Disraeli sentia igual fascínio pelo declínio das culturas enquanto por outro lado Hegel cuja filosofia cuidava em grande parte da lei dialética da evolução aplicada à história nunca se interessou pela ascensão e declínio das culturas em si nem por lei alguma que explicasse as causas da extinção das nações Foi precisamente essa a lei que Gobineau formulou Sem o darwinismo ou qualquer outra teoria evolucionista a influenciálo esse historiador jactavase de haver colocado a história na categoria das ciências naturais detectado a lei natural que regia o curso de todos os acontecimentos e reduzido todas as manifestações espirituais e fenômenos culturais a algo que graças à ciência exata nossos olhos podem ver nossos ouvidos podem ouvir nossas mãos podem tocar O aspecto mais surpreendente da teoria apresentada em pleno otimismo do século XIX está no fato de o autor sentirse fascinado pelo declínio das civilizações sem interessarse por sua ascensão Ao escrever o Essai Gobineau não previu o possível uso de sua teoria como arma da política prática e assim teve a coragem de chegar às conseqüências inteiramente sinistras da sua lei do declínio Em contraste com Spengler que prediz o declínio apenas da cultura ocidental Gobineau prevê com precisão científica nada menos que o desaparecimento definitivo do homem ou em suas palavras da raça humana da face da terra Após reescrever a história humana em quatro volumes ele conclui Somos tentados a atribuir uma duração total de 12 a 14 mil anos ao As citações de Gobineau em inglês no original foram confrontadas com Essai sur Vinégalité des races humaines Ed Librairie de Paris FirminDidot Paris 1933 e traduzidas diretamente do francês N E 201 domínio do homem na Terra sendo esse tempo dividido em dois períodos o primeiro já passou e pertenceu à juventude o segundo já começou para testemunhar o declínio em direção à decrepitude Já se observou que Gobineau trinta anos antes de Nietzsche se interessava pelo problema da décadence30 Há contudo uma diferença Nietzsche vivia a experiência da decadência européia escrevendo no ápice desse movimento concomitantemente com as atividades de Baudelaire na França Swinburne na Inglaterra e Wagner na Alemanha Gobineau porém mal conhecia essa variação então moderna de taedium vitae e deve ser considerado o último herdeiro de Boulainvilliers e da nobreza francesa exilada que sem complicações psicológicas simplesmente e corretamente temia pelo futuro da aristocracia como casta Com certa ingenuidade aceitava quase literalmente as doutrinas do século XVIII acerca da origem do povo francês os burgueses descendem de escravos galoromanos os nobres são germânicos31 O mesmo se aplica à sua insistência no caráter internacional da nobreza Embora em termos nobiliárquicos Gobineau fosse possivelmente um impostor seu título francês é mais do que duvidoso exagerava e levava além dos limites as doutrinas genealógicas expondoas ao ridículo quando afirmava descender por intermédio de pirata escandinavo do deus germânico Odim e gabavase por também pertencer à raça dos deuses32 Mas sua real importância reside no fato de que em meio a ideologias que louvavam o progresso ele profetizava a ruína e o fim da humanidade numa lenta catástrofe natural Quando Gobineau iniciou sua obra nos dias do rei burguês Luís Filipe o destino da nobreza parecia estar traçado A nobreza não precisava mais recear a vitória do Tiers Etat esta já havia ocorrido e aos nobres só restava lastimaremse em vão Seu infortúnio expresso por Gobineau é muito semelhante ao profundo desespero dos poetas da decadência que um decênio mais tarde cantavam a fragilidade de todas as coisas humanas comparandoas com les neiges dantan as neves de antanho No tocante a Gobineau essa afinidade é perfeitamente acidental mas é interessante notar que uma vez estabelecida nada podia evitar que intelectuais muito respeitáveis do fim do século XIX como Robert Dreyfus na França ou Thomas Mann na Alemanha levassem a sério esse descendente de Odim Muito antes que o horrível e o ridículo se conjugassem nessa mistura humanamente incompreensível que caracteriza nosso século o ridículo já havia perdido o seu poder de matar Foi também à peculiar atmosfera pessimista e ao desespero das últimas décadas do século XIX que Gobineau deveu a sua fama tardia Isso contudo não significa necessariamente que ele tenha sido um precursor da geração da alegre dança da morte e do comércio como a define Joseph Conrad Ele não era nem um estadista que acreditasse em negócios nem um poeta que louvasse 30 Ver Robert Dreyfus La vie et les prophéties du Comte de Gobineau Paris 1905 em Cahiers de Ia Quinzaine série VI cad 16 p 56 31 Essai tomo II livro IV e o artigo Ce qui est arrivé à Ia France en 1870 em Europe 1923 32 L Duesberg Le Comte de Gobineau em Revue Générale 1939 202 a morte Era apenas uma curiosa mistura de nobre frustrado e intelectual romântico que inventou o racismo quase por acaso quando em lugar de aceitar simplesmente as antigas doutrinas dos dois povos franceses percebeu que era mais sensato e preferível reformular a idéia de que os melhores homens galgam necessariamente o topo da sociedade Cabialhe porém obviamente explicar por que os melhores homens os nobres não tinham mais esperanças de recuperar sua antiga posição social Assim passo a passo identificou a queda do seu próprio castelo com a queda da França com a queda da civilização ocidental e finalmente com a de toda a humanidade chegando à descoberta pela qual foi tão admirado por escritores e biógrafos pósteros de que a queda das civilizações se deve à degenerescência da raça e de que esta ao conduzir ao declínio é causada pela mistura de sangue Isso implica logicamente que qualquer que seja a mistura é a raça inferior que acaba preponderando Mas essa argumentação quase lugarcomum no fim do século XIX encontrou entre os contemporâneos de Gobineau uma outra idéefixe a da sobrevivência dos mais aptos O otimismo liberal da burguesia ainda triunfante preferia reformular a teoria do direito da força rechaçando a chave da história e a prova do declínio inevitável Em vão Gobineau tentou granjear um público maior tomando partido na questão da escravatura americana e construindo jeitosamente todo um sistema próprio para explicar o conflito básico entre negros e brancos Teve de esperar quase cinqüenta anos pelo sucesso que só alcançaria junto à elite e suas obras conquistaram grande popularidade só em decorrência da Primeira Guerra Mundial que permitiu o surgimento de tantas escolas de filosofia da destruição33 O que Gobineau realmente procurou na política foi a definição e a criação de uma elite que substituísse a aristocracia Em lugar de príncipes propunha uma raça de príncipes os arianos que segundo dizia corriam o risco de serem engolfados através do sistema democrático pelas classes nãoarianas inferiores O conceito de raça tornava possível organizar as personalidades inatas do romantismo alemão e definilas como membros de uma aristocracia natural destinada a dominar todos os outros Se a raça e a mistura de raças são os fatores que tudo determinam num indivíduo e Gobineau não pressupunha a existência de raças puras é possível encontrar a viabilidade do surgimento de superioridades físicas em qualquer indivíduo independentemente de sua situação social do momento sendo lógico para Gobineau que todo homem excepcional pertença aos verdadeiros sobreviventes dos merovíngios os filhos dos reis Graças à raça podia ser formada uma elite com direito às antigas prerrogativas das famílias feudais e isso apenas pela afirmação de que 33 Ver a revista francesa Europe 1923 número dedicado à memória de Gobineau especialmente o artigo de Clément Serpeille de Gobineau Le gobinisme et Ia pensée moderne Foi só em meados da guerra que achei que o Essai sur les races era inspirado por uma hipótese produtiva a única que podia explicar certas coisas que estavam acontecendo debaixo dos nossos olhos Fiquei surpreso ao verificar que esta opinião era quase unânime Após a guerra notei que para quase toda a geração mais moça as obras de Gobineau haviam se tornado uma revelação 203 se sentiam como nobres e bastava aceitar a ideologia racial para provar o fato de ser bem nascido e de ter sangue azul em suas veias a origem superior recebida pelo nascimento implicava direitos superiores A partir portanto de um só evento político o declínio da nobreza o conde tirou duas conseqüências contraditórias a decadência da raça humana e a formação de uma nova aristocracia natural Mas não sobreviveu para assistir à aplicação prática dos seus ensinamentos com a qual a nova aristocracia racial resolveu as contradições de sua teoria quando realmente iniciou o inevitável declínio da humanidade num supremo esforço de destruíla Seguindo o exemplo de seus precursores isto é dos nobres franceses exilados Gobineau viu nessa elite racial não apenas um baluarte contra a democracia mas também contra a monstruosidade canaanita do patriotismo34 E como sucedia que a França era a patrie par excellence pois o seu governo fosse reino império ou república baseavase sempre na igualdade essencial dos homens e como pior ainda a França era o único país de sua época onde mesmo gente de cor preta gozava de direitos civis era natural que Gobineau declarasse sua lealdade não ao povo francês mas ao inglês e mais tarde após a derrota francesa de 1871 aos alemães35 Não se pode chamar de acidental essa falta de dignidade nem de infeliz coincidência esse oportunismo O velho ditado de que nada é tão bemsucedido como o sucesso aplicase principalmente a pessoas afeitas a opiniões arbitrárias Os ideólogos que pretendem dispor da chave da verdade são forçados a alterar e torcer suas opiniões sobre casos específicos de acordo com os acontecimentos e jamais podem darse ao luxo de entrar em conflito com o seu deus mutável a realidade Seria absurdo exigir fidelidade daqueles que por suas próprias convicções são forçados a justificar qualquer situação É preciso admitir que até a época em que os nazistas ao se estabelecerem como elite racial admitiram com franqueza o seu desprezo por todos os povos inclusive pelo povo alemão o racismo francês foi o mais consistente pois jamais caiu na fraqueza do patriotismo Mesmo durante a última guerra essa atitude não mudou é verdade que a essência ariana já não era monopólio dos alemães e sim dos anglosaxões suecos e normandos mas a nação o patriotismo e a lei eram tidos como preconceitos valores fictícios e nominais36 Até 34 Essai tomo II livro IV A palavra patrie recuperou sua importância somente depois da ascensão das camadas galoromanas que assumiram um papel político Com o seu triunfo o patriotismo novamente se tornou uma virtude 35 Ver Seillière op cit vol I Le Comte de Gobineau et 1aryanisme historique p 32 NoEssai a Alemanha mal é germânica a GrãBretanha é muito mais germânica Certamente Gobineau mudou de opinião mais tarde mas sob a influência do sucesso É interessante notar que para Seillière que durante os seus estudos se tornou adepto ardoroso do gobinismo o clima intelectual ao qual provavelmente os pulmões do século XX terão de se adaptar o sucesso parecia razão suficiente para que Gobineau subitamente mudasse de opinião 36 Poderíamos multiplicar os exemplos A citação é tirada de Camille Spiess Impérialismes Gobinisme en France Paris 1917 204 mesmo Taine acreditava firmemente no gênio superior da naçãogermânica37 e Ernest Renan foi provavelmente o primeiro a opor os semitas aos arianos numa definitiva divisão do gênero humano embora afirmasse ao mesmo tempo que a civilização era a força superior destruidora das especificidades locais e diferenças raciais38 Todo o linguajar racista tão típico dos escritores franceses após 187039 mesmo que não fossem racistas num sentido estrito deste termo segue um padrão antinacional e prógermânico Enquanto a consistente tendência antinacional do gobinismo serviu para aliciar aliados reais ou fictícios além das fronteiras aos inimigos da democracia francesa e mais tarde da Terceira República o amálgama dos conceitos de raça e de elite deu à intelligentsia internacional novos e excitantes jogos psicológicos com que brincar no grande parque de diversões da história Os fils des róis de Gobineau eram parentes chegados dos heróis santos gênios e super homens do fim do século XIX todos românticos de indisfarçável origem germânica A inerente irresponsabilidade das opiniões românticas encontrou na mistura de raças de Gobineau um novo alento porque essa mistura mostrava grandiosos eventos históricos que podiam ser reconhecidos no íntimo de cada um Isso significava que as experiências íntimas podiam ter importância histórica e que a história se desenrolava no íntimo de cada pessoa Desde que li o Essai sempre que algum conflito perturbava as fontes ocultas do meu ser sentia como se uma batalha interminável se travasse em minha alma a batalha entre o negro o amarelo os semitas e os arianos40 Por mais significativas que sejam esta e outras confissões semelhantes que revelavam o estado de espírito de intelectuais modernos verdadeiros herdeiros do romantismo independentemente das opiniões que professem ressalta delas a inocuidade espiritual e a inocência política de homens que provavelmente poderiam ter sido facilmente persuadidos a adotar toda e qualquer ideologia 4 OS DIREITOS DOS INGLESES vs OS DIREITOS DO HOMEM Enquanto as sementes da ideologia racial alemã foram plantadas durante as guerras napoleônicas o início do racismo inglês data da Revolução Francesa Pode ser atribuído ao homem que a denunciou violentamente como a mais espantosa crise que jamais ocorreu no mundo a Edmund Burke41 É bem conhecida a profunda influência que a sua obra exerceu não apenas sobre o 37 Quanto à posição de Taine ver John S White Taine on race and genius em Social Research fevereiro de 1943 38 Na opinião de Gobineau os semitas eram uma raça branca híbrida abastardada por uma mistura com os negros Quanto a Renan ver a Histoire générale et système compare des langues 1863 parte I pp 4 503 e passim A mesma distinção em seu Langues sémitiques I 15 39 Isso foi muito bem exposto por Jacques Barzun op cit 40 Esse surpreendente cavalheiro é ninguém mais que o conhecido escritor e historiador Elie Faure Gobineau et le problème des races emEurope 1923 41 Reflections on the revolution in France 1790 Everymans Library Edition Nova York p8 205 pensamento político inglês mas também sobre o alemão Convém sublinhar esse fenômeno dadas as semelhanças entre os sentimentos raciais alemão e inglês em oposição ao francês Essas semelhanças decorrem do fato de ambas as nações terem derrotado a França tendendo em conseqüência à classificação negativa das idéias de LibertéEgalitéFraternité como resultantes do pensamento estrangeiro Como a desigualdade social era a base da sociedade inglesa os conservadores britânicos não se sentiam muito à vontade quando se tratava dos direitos do homem Ao contrário segundo a opinião geral que emitiam no século XIX a desigualdade fazia parte do caráter nacional inglês Para Disraeli nos direitos dos ingleses existia algo melhor que os Direitos do Homem e para sir James Stephen poucos fatos da história eram mais deploráveis do que a maneira pela qual os franceses se deixavam empolgar por essas questões42 Esse é um dos motivos pelos quais os ingleses foram capazes de desenvolver pensamentos racistas numa base nacional antes do fim do século XIX quando na França as mesmas opiniões revelaram desde o começo seu caráter antinacional O principal argumento de Burke contra os princípios abstratos da Revolução Francesa está contido na seguinte frase A constante política da nossa constituição consiste em afirmar e assegurar as nossas liberdades como herança vinculada que recebemos dos nossos antepassados e que devemos transmitir à nossa posteridade como um patrimônio pertencente especialmente ao povo deste reino sem qualquer referência a outros direitos mais genéricos e anteriores O conceito de herança aplicado à natureza da liberdade foi a base ideológica da qual o nacionalismo inglês recebeu um curioso toque de sentimentos raciais desde a Revolução Francesa Formulado por um escritor da classe média significava a aceitação do conceito feudal de liberdade vista como soma de privilégios herdados juntamente com o título e a terra sem infringir os direitos da classe privilegiada dentro da nação inglesa Burke estendeu o princípio desses privilégios a todo o povo inglês elevandoo como todo ao nível de nobreza entre as nações Daí o seu desprezo por aqueles que davam à liberdade o nome de direitos do homem quando esses direitos em sua opinião só tinham sentido como os direitos dos ingleses Na Inglaterra o nacionalismo surgiu sem que houvesse sérias ameaças às antigas classes feudais Isso foi possível porque a pequena fidalguia inglesa a partir do século XVIII havia assimilado as camadas superiores da burguesia de forma que às vezes até mesmo o homem comum podia atingir a posição de um lorde Esse processo permitiu eliminar grande dose da habitual arrogância dos nobres criando considerável senso de responsabilidade pela nação como um todo mas ao mesmo tempo a mentalidade feudal e seus conceitos influenciavam mais facilmente que em outros países as idéias políticas das classes inferiores sempre passíveis de ascensão Assim o conceito de herança foi aceito quase sem contestação e aplicado a toda a estirpe britânica Resultou dessa 42 Liberty equality fraternity 1873 p 254 Quanto a lorde Beaconsfield ver Benjamin Disraeli Lord George Bentinck 1853 p 184 206 assimilação de valores por todas as classes a preocupação quase obsessiva da ideologia racial inglesa com as teorias de hereditariedade e com o seu equivalente moderno a eugenia Desde o momento em que os europeus tentaram incluir todos os povos da terra no conceito de humanidade ampla começaram a irritarse com a descoberta das substanciais diferenças físicas que os distinguiam dos homens dos outros continentes43 O entusiasmo que se manifestava no século XVIII pela diversidade em que se consubstanciava a natureza na realidade idêntica e onipresente do homem e da razão deparava com a seguinte questão crucial se o dogma cristão da unidade e igualdade de todos os homens baseavase na descendência comum de um casal original como poderiam reagir os homens diante das tribos que ao que se sabia nunca haviam engendrado por si mesmas qualquer expressão da razão ou paixão humanas quer em atos culturais quer em costumes populares e cujas instituições nunca haviam ultrapassado um nível muito baixo Esse novo problema que surgiu na cena histórica da Europa e da América em conseqüência do conhecimento mais profundo das tribos africanas já havia provocado especialmente na América e em algumas possessões britâncias um retrocesso a formas de organização social que se acreditavam definitivamente ultrapassadas pelo cristianismo Mas nem mesmo a escravidão embora estabelecida em base estritamente racial engendrou ideologias racistas entre os povos escravizadores antes do século XIX Durante todo o século XVIII até os senhoresdeescravos americanos consideravam a escravidão uma instituição provisória e pensavam em abolila gradualmente Mas muito deles provavelmente repetiram com Jefferson Aterrorizame pensar que Deus é justo Na França onde o problema das tribos negras havia provocado o desejo de assimilálas e educá las o grande cientista Leclerc de Buffon elaborou uma classificação de raças que catalogando todos os outros povos segundo as diferenças com relação aos europeus transmitia a idéia de igualdade através de justaposição de vários elementos44 O século XVIII para usar a frase de Tocqueville admiravelmente precisa acreditava na variedade das raças mas na unidade da espécie humana45 Na Alemanha Herder se recusara a aplicar aos homens a ignóbil palavra raça e mesmo o primeiro historiador da cultura humana a usar a classificação de espécies diferentes Gustav Klemm46 ainda respeitava a idéia da humanidade como o escopo geral dos seus estudos Mas na América e na Inglaterra onde os povos tinham de resolver um problema de 43 Encontramse ecos significantes se bem que moderados dessa perplexidade em muitas narrativas de viagens do século XVIII Voltaire achou que ela valia uma nota especial em seu Dictionnaire philosophique Além disso já vimos como são diferentes as raças que habitam este planeta e quão grande deve ter sido a surpresa do primeiro negro e do primeiro branco ao se encontrarem artigo Homme 44 HistoireNaturelle 176989 45 Op cit carta de 15 de maio de 1852 46 Allgemeine Kulturgeschichte der Menschheit A história geral da cultura da humanidade 184352 207 convivência após a abolição da escravatura as coisas se afiguravam bem mais difíceis Com a exceção da África do Sul nação que só influenciou o racismo ocidental depois da corrida para a África na década de 80 esses países foram os primeiros a lidar com o problema racial na política prática A abolição da escravatura acirrou os conflitos internos em vez de solucionar as dificuldades existentes Isso ocorreu especialmente na Inglaterra onde os direitos dos ingleses não foram substituídos por uma nova orientação política que pudesse ter proclamado os direitos do homem Assim a abolição da escravatura nas possessões britânicas em 1834 e a discussão que precedeu a Guerra Civil Americana encontraram na Inglaterra uma opinião pública altamente confusa solo fértil para as várias doutrinas naturalistas que surgiram nessas décadas A primeira delas foi representada pelos poligenistas que acusando a Bíblia de ser um livro de piedosas mentiras negavam qualquer relação entre as raças humanas seu principal feito foi a destruição da idéia da lei natural como elo de ligação entre todos os homens e todos os povos Embora sem estipular uma superioridade racial predestinada o poligenismo isolou arbitrariamente todos os povos resultado do profundo abismo gerado pela impossibilidade física da compreensão e comunicação humanas O poligenismo ao explicar porque o Leste é o Leste e o Oeste é o Oeste e nunca os dois se encontrarão ajudou a evitar casamentos interraciais nas colônias e a promover a discriminação contra indivíduos de origem mista que segundo o poligenismo não são verdadeiros seres humanos pois não pertencem a raça alguma ao contrário cada homem misto é uma espécie de monstro porque nele cada célula é o palco de uma guerra civil47 Por mais duradoura que a longo prazo tenha sido a influência do poligenismo sobre a ideologia racial inglesa ele foi derrotado e substituído por uma outra doutrina o darwinismo que também partia do princípio da hereditariedade mas acrescentavalhe o princípio político peculiar ao século XIX o progresso Assim chegava à conclusão oposta mas muito mais convincente de que o homem é aparentado não apenas com os outros homens mas também com a vida animal que a existência de raças inferiores mostra claramente que somente diferenças graduais separam o homem do animal e que uma forte luta pela existência domina todos os seres vivos O darwinismo devia sua força especialmente ao fato de seguir o caminho da antiga doutrina do direito da força Mas enquanto essa doutrina quando usada por aristocratas expressavase em orgulhosos termos de conquista agora era traduzida na amarga linguagem de pessoas que apenas haviam conhecido a luta pelo pão de cada dia e que se batalhavam era só para conseguir a relativa segurança dos arrivistas O esmagador sucesso do darwinismo resultou também do fato de ter fornecido a partir da idéia de hereditariedade as armas ideológicas para o domínio de uma raça ou de uma classe sobre outra podendo ser usado tanto a favor como contra a discriminação racial Do ponto de vista político o darwinismo era neutro em si servia como base tanto ao pacifismo e cosmopolitismo 47 A Carthill Thelosí dominion 1924 p 158 208 como às formas mais agudas de ideologias imperialistas48 Nas décadas de 70 e 80 do século XIX o darwinismo era ainda quase exclusivamente manejado na Inglaterra pelos anticolonialistas E o primeiro filósofo da evolução Herbert Spencer que tratou a sociologia como parte da biologia acreditava que a seleção natural era benéfica à evolução da humanidade e que dela resultaria a paz eterna Para a discussão política o darwinismo oferecia dois conceitos importantes a luta pela existência com a otimista afirmação da necessária e automática sobrevivência dos mais aptos e as infinitas possibilidades que pareciam haver na evolução do homem a partir da vida animal e que deram origem à nova ciência da eugenia A doutrina da necessária sobrevivência do mais apto com a implicação de que as camadas superiores da sociedade são eventualmente as mais aptas morreu como havia morrido a doutrina da conquista no momento em que as classes dominantes da Inglaterra e a hegemonia inglesa nas colônias já não estavam absolutamente seguras isto é quando se tornou altamente duvidoso que os mais aptos hoje continuariam ainda os mais aptos amanhã Mas a outra parte do darwinismo a evolução do homem a partir da vida animal infelizmente sobreviveu A eugenia prometia vencer as incômodas incertezas da doutrina da sobrevivência segundo a qual era tão impossível prever quem viria a ser o mais apto quanto proporcionar a uma nação os meios de desenvolver aptidão eterna Essa possível conseqüência da eugenia aplicada foi enfatizada na Alemanha nos anos 20 como uma reação ao Declínio do Ocidente de Spengler49 Bastava transformar o processo de seleção natural que funcionava às ocultas do homem em instrumento racional conscientemente empregado A bestialidade sempre esteve inerente na eugenia e é bem característica a velha observação de Haeckel de que a eutanásia pouparia muitas despesas inúteis à família e ao governo50 Finalmente os últimos discípulos do darwinismo na Alemanha decidiram abandonar inteiramente o campo da pesquisa científica esquecer a busca do elo que faltava entre o homem e o macaco e em contrapartida dar início aos esforços práticos para transformar o homem naquilo que os darwinistas acreditavam que o macaco fosse Mas antes que o nazismo no decurso de sua política totalitária tentasse transformar o homem em animal houve numerosos esforços de transformálo num deus por meios estritamente hereditários51 Não somente Herbert Spencer 48 Ver Friedrich Brie Imperialistische Stròmungen in der englischen Literatur Correntes imperialistas na literatura inglesa Halle 1928 49 Ver por exemplo Otto Bangert Gold oder Blut Ouro ou sangue 1927 Assim a civilização pode ser eterna p 17 50 Em Lebenswunder O milagre da vida 1904 pp 128 ss 51 Quase um século antes que o evolucionismo tivesse vestido o manto de ciência vozes alertadoras previram as conseqüências inerentes de uma loucura que estava então apenas no estágio da pura imaginação Voltaire mais de uma vez havia entretido opiniões evolucionistas ver principalmente Philosophie générale métaphysique morale et théologie em Oeuvres completes 1785 tomo 40 pp 16 ss Em seu Dictionnaire philosophique artigo Chaine des êtres créés ele escreveu De início nossa imaginação se compraz com a imperceptível transição da matéria 209 mas todos os primeiros evolucionistas e darwinistas acreditavam tão fortemente no futuro angelical da humanidade como na origem simiesca do homem52 Acreditavase que a hereditariedade selecionada resultaria do gênio hereditário53 e voltavase a afirmar que a aristocracia era o produto natural não da política mas da seleção natural de raças puras Transformar toda a nação numa aristocracia natural da qual exemplares seletos viriam a ser gênios e superhomens era uma das muitas idéias produzidas por intelectuais liberais frustrados em seus sonhos de substituir as antigas classes governantes por uma nova elite através de meios nãopolíticos No fim do século XIX escritores tratavam de assuntos políticos em termos de biologia e zoologia e zoólogos escreviam Observações biológicas sobre nossa política externa como se houvessem descoberto um guia infalível para os estadistas54 Todos eles apresentavam novas maneiras de controlar e regular a sobrevivência dos mais aptos segundo os interesses nacionais do povo inglês55 O aspecto mais perigoso dessas doutrinas evolucionistas estava no fato de aliarem o conceito da hereditariedade à insistência nas realizações pessoais e nos traços de caráter individuais tão importantes para o amorpróprio da classe bruta para a matéria organizada das plantas aos zoófitos desses zoófitos aos animais destes ao homem do homem para os espíritos destes espíritos envoltos num pequeno corpo aéreo para as substâncias imateriais e para o próprio Deus Mas pode tornarse Deus o mais perfeito espírito criado pela Entidade Suprema Não há um infinito entre Deus e ele Não existe obviamente um vazio entre o macaco e o homem 52 Hayes op cit p 11 Hayes corretamente acentua a forte moralidade prática de todos esses primeiros materialistas Explica esse curioso divórcio entre a moral e a crença pelo que sociólogos descreveram mais tarde com uma defasagem no tempo p 130 Essa explicação contudo parece bastante débil quando se recorda que outros materialistas que como Haeckel na Alemanha ou Vacher de Lapouge na França haviam abandonado a calma dos seus estudos e pesquisa para se dedicarem a atividades de propaganda não foram muito afetados por essa defasagem de tempo que por outro lado os seus contemporâneos não imbuídos de doutrinas materialistas como Barres Cia na França eram adeptos muito práticos da perversa brutalidade que varreu a França durante o Caso Dreyfus A súbita decadência da moral no mundo ocidental parece ter sido causada menos pelo desenvolvimento de certas idéias do que por uma série de novos eventos políticos e problemas sociais com os quais se defrontou uma humanidade surpresa 53 Era esse o título de um livro muito lido de autoria de F Galton publicado em 1869 que provocou um dilúvio literário sobre o assunto nas décadas seguintes 54 A biological view of our foreign policy foi publicado por P Charles Michel no Saturday Review Londres fevereiro de 1896 As obras mais importantes desse tipo são Thomas Huxley The strugglefor existence in human society 1888 sua tese principal a queda das civilizações só é necessária quando a taxa de nascimento não é controlada Benjamin Kidd Social evolution 1894 John B Crozier History of intellectual development on the Unes of modem evolution 18971901 Karl Pearson National Life 1901 professor de eugenia na Universidade de Londres e um dos primeiros a descrever o progresso como uma espécie de monstro impessoal que devora tudo o que encontra pelo caminho Charles H Harvey em The biology of British politics 1904 argumenta que por meio de um rígido controle da luta pela existência dentro de um país esse país pode se tornar todopoderoso para a luta pela existência com os outros povos 55 Ver K Pearson op cit Mas Fr Galton já havia afirmado Desejo acentuar o fato de que o aperfeiçoamento dos dons naturais das gerações futuras da raça humana está em grande parte sob o nosso controle op cit ed 1892 p xxvi 210 média do século XIX Essa classe média queria cientistas que provassem que os grandes homens e não os aristocratas eram os verdadeiros representantes da nação em que se personificava o gênio da raça Esses cientistas proporcionaram uma fuga ideal da responsabilidade política quando provaram a verdade da antiga afirmação de Benjamim Disraeli de que o grande homem é a personificação da raça o seu exemplar seleto O desenvolvimento desse gênio teve o seu fim lógico quando outro discípulo do evolucionismo simplesmente declarou O inglês é o Homem Superior Overman e a história da Inglaterra é a história da sua evolução56 É significativo que o pensamento racial inglês como aliás aconteceu na Alemanha se tenha originado entre os escritores da classe média e não entre a nobreza que tenha nascido do desejo de estender os benefícios dos padrões de nobreza a todas as classes e que se nutrisse de sentimentos verdadeiramente nacionais A esse respeito as idéias de Carlyle referentes ao gênio e ao herói correspondiam mais às armas de um reformador social do que às doutrinas do pai do imperialismo britânico como foi acusado com injustiça57 A idolatria do herói que lhe granjeou vastas platéias tanto na Inglaterra como na Alemanha tinha as mesmas origens que a idolatria da personalidade do romantismo alemão Tratavase da mesma afirmação e glorificação da grandeza inata do caráter individual independentemente do ambiente social Entre os homens que influenciaram o movimento colonial a partir de meados do século XIX até o surgimento do verdadeiro imperialismo no fim desse século nenhum escapou à influência de Carlyle mas nenhum pode ser acusado de pregar um racismo declarado O próprio Carlyle em seu ensaio A questão do negro preocupase com os meios de ajudar as Índias Ocidentais a produzirem heróis Charles Dilke cujo Greater Britam 1869 é apontado às vezes como o início do imperialismo58 era um radical avançado que glorificava os colonizadores ingleses como parte da nação britânica discordando dos que desdenhandoos viam em suas terras meras colônias J R Seeley cujo Expansion ofEngland 1883 vendeu 80 mil exemplares em menos de dois anos ainda respeita os hindus como um povo estrangeiro e faz clara distinção entre eles e os bárbaros Mesmo Froude cuja admiração pelos bôeres o primeiro povo branco a aceitar abertamente a filosofia tribal do racismo pode parecer suspeita opunhase à concessão de direitos excessivos à África do Sul porque o autogoverno na África do Sul significaria o governo dos nativos pelos colonizadores europeus e isso não era autogoverno59 De modo semelhante ao que ocorreu na Alemanha o nacionalismo inglês foi estimulado por uma classe média que nunca se havia emancipado inteiramente da nobreza e que portanto trazia em si o germe da ideologia racial 56 Testamentof John Davidson 1908 57 C A Bodelsen Studiesin midVictorian Imperialism 1924 pp 22 ss 58 E H Damce The Victorian Ulusion 1928 O imperialismo começou com um livro O Greater Britam de Dilke 59 Two lectures on South África em Short Studies on great subjects 186782 211 Mas diferentemente da Alemanha cuja falta de unidade nacional tornara necessário erguer uma muralha ideológica que unisse o povo carente de história comum e de unificação geográfica as Ilhas Britânicas eram completamente separadas do mundo por fronteiras naturais e a Inglaterra como nação teve de formular uma teoria de unidade entre homens que viviam em colônias distantes no alémmar separados do país de origem por mares e oceanos O elo que os unia era a descendência comum a origem comum a língua comum A separação dos Estados Unidos havia demonstrado que esses elos por si só não garantiam o domínio e não só a América mas também outras colônias embora não com a mesma violência evidenciaram forte tendência de adotar uma orientação constitucional diferente da do país de origem Para salvar esses antigos cidadãos britânicos Dilke influenciado por Carlyle falou de saxonidade palavra que parecia ter o dom de seduzir e trazer de volta à pátria até mesmo o povo dos Estados Unidos ao qual ele devota um terço do seu livro Como radical Dilke podia agir como se a Guerra de Independência não houvesse sido uma guerra entre duas nações e sim uma espécie de guerra civil inglesa do século XVIII E uma das razões que explicam o surpreendente fato de os reformadores sociais e os radicais promoverem o nacionalismo na Inglaterra é esta desejavam manter as colônias não apenas por acharem que eram uma válvula de escape necessária às classes baixas queriam na verdade conservar sobre o país natal a influência exercida por esses filhos mais radicais das Ilhas Britânicas Essa motivação transparece em Froude que desejava manter as colônias porque achava possível reproduzir nelas um estado social simples e um modo de vida mais nobre do que seria possível na Inglaterra industrial60 e influiu definitivamente no Expansion ofEngland de Seeley Quando nos habituarmos a contemplar todo o Império reunido e chamarmos todo ele de Inglaterra veremos que também existem os Estados Unidos Qualquer que tenha sido o sentido que escritores pósteros deram à palavra saxonidade esta levava na obra de Dilke um genuíno sentido político para uma nação que já não era coesa num país limitado No decurso de todas as minhas viagens a idéia que foi ao mesmo tempo minha companheira e guia a chave que iria revelarme as coisas ocultas das terras novas e estranhas era o conceito da grandeza de nossa raça que já envolvia a terra e cujo destino era talvez vir a cobrila no futuro escreve Para Dilke a origem comum a hereditariedade a grandeza da raça não eram fatos físicos nem a chave da história mas um guia muito necessário no mundo atual o único laço digno de confiança num espaço sem limites Como os colonizadores ingleses se haviam espalhado por toda a terra acontecia que o conceito de nacionalismo mais perigoso a idéia de missão nacional era forte em especial na Inglaterra Embora a idéia de missão nacional em si tenha crescido durante muito tempo desprovida de influências raciais nos países cujos povos aspiravam à nacionalidade ela veio finalmente de 60 C A Bodelsenop cit p 199 212 monstrar sua afinidade com a ideologia racial Os nacionalistas ingleses que citamos acima podem ser considerados casos extremos à luz dos conhecimentos mais recentes não causaram mais danos que por exemplo Auguste Comte na França quando manifestou a esperança de uma humanidade unida organizada e regenerada sob a liderança aprésidence da França61 Não abandonavam a idéia da humanidade embora só na Inglaterra vissem a sua suprema garantia Não podiam afastarse da ênfase dada a esse conceito nacionalista já que a dissolução dos laços entre o solo e o povo implícita na idéia de missão não era uma simples ideologia para a política inglesa mas sim um fato consumado que qualquer estadista tinha de levar em conta O que os distingue definitivamente dos racistas que os sucederam é que nenhum deles jamais se preocupou seriamente em discriminar outros povos como raças inferiores e isso senão por outros motivos pelo menos devido ao fato de que os países a que se referiam o Canadá e a Austrália eram quase desabitados e não tinham qualquer problema sério de população Assim não foi por acaso que o primeiro estadista inglês a acentuar repetidamente a sua crença nas raças e na superioridade racial como fator determinante na história e na política tenha sido um homem que sem qualquer interesse particular com relação as colônias e aos colonizadores ingleses que chamou de peso morto das colônias que não governamos quis estender o poder imperial britânico até a Ãsia e na verdade fortaleceu consideravelmente a posição da GrãBretanha na única colônia que se defrontava com um problema populacional e cultural Foi Benjamin Disraeli quem fez da rainha da Inglaterra a imperatriz da Índia foi ele o primeiro estadista inglês a considerar a índia como pedra fundamental de um Império e a querer cortar os laços que uniam o povo inglês às nações do continente62 Construiu assim um dos alicerces de uma mudança básica no domínio inglês da índia A colônia havia sido governada com a crueldade habitual dos conquistadores homens a quem Burke havia chamado de transgressores das leis na índia Agora ela iria ter uma administração cuidadosamente planejada cujo objetivo era o estabelecimento de um corpo permanente que governaria por meio de medidas administrativas Essa experiência aumentou para a Inglaterra o perigo contra o qual Burke havia alertado o perigo de que os transgressores das leis na índia viessem a ser os fazedores da lei na Inglaterra63 Pois todos eles para os quais não existia transação na história da Inglaterra que mais nos orgulhe que o estabelecimento 61 Em seu Discours sur Vensemble dupositivisme 1848 pp 384 ss 62 Devemos ter poder e influência na Ãsia conseqüentemente na Europa ocidental W F Monypenny e G E Buckle The life of Benjamin Disraeli Earl ofBeaconsfield Nova York 1929 II 210 Mas se a Europa por sua miopia vier a decair para um estado inferior e exausto restará para a Inglaterra um futuro ilustre ibid I livro IV Porque a Inglaterra já não é mais uma simples potência européia émais uma potência asiática do que européia ibid II 201 63 Burke op cit pp 423 O poder da Câmara dos Comuns é realmente grande e possa ela preservar a sua grandeza durante muito tempo e o fará enquanto puder evitar que o infrator da lei na índia se torne o legislador da Inglaterra 213 do Império da índia afirmavam que a liberdade e a igualdade eram grandes nomes para pequenas coisas64 A política introduzida por Disraeli significou o estabelecimento de uma casta exclusiva num país estrangeiro cuja única função era o domínio e não a colonização Para que esse conceito se materializasse e Disraeli não sobreviveu para vêlo realizado o racismo iria ser realmente um instrumento indispensável Vislumbrava a ameaçadora transformação do povo de uma nação em raça pura primorosamente organizada que se considerava a aristocracia da natureza para repetir as palavras do próprio Disraeli65 O que traçamos até aqui foi a história de uma opinião na qual só agora podemos ver depois de todas as terríveis experiências do nosso tempo os primeiros albores do racismo Mas embora o racismo tenha introduzido novos componentes ideológicos em todos os países não se trata de uma idéia dotada de lógica inerente O pensamento racial constituía uma fonte de argumentos de conveniência para diversos conflitos políticos mas nunca monopolizou a vida política dos respectivos países acirrou e explorou interesses opostos ou conflitos políticos mas jamais criou novos conflitos nem produziu novas categorias de pensamento político O racismo surgiu de experiências e constelações políticas que eram desconhecidas e teriam sido completamente estranhas até mesmo para ardorosos defensores da raça como Gobineau e Disraeli Entre homens de idéias brilhantes e ágeis e homens de ações brutais e bestiais existe um abismo que nenhuma explicação intelectual pode transpor É provável que esse racismo tivesse desaparecido a tempo juntamente com outras opiniões irresponsáveis do século XIX se a corrida para a África e a nova era do imperialismo não houvessem exposto a população da Europa ocidental a novas e chocantes experiências O imperialismo teria exigido a invenção do racismo como única explicação e justificativa de seus atos mesmo que nunca houvesse existido uma ideologia racista no mundo civilizado Mas como existiu o racismo recebeu considerável substância teórica A própria existência de uma opinião até certo ponto tradicional serviu para ocultar a essência destruidora da nova doutrina que sem essa aparência de respeitabilidade nacional ou sem a aparente sanção da tradição teria revelado de imediato a incompatibilidade com todos os padrões morais e políticos ocidentais antes que lhe fosse permitido destruir a comunidade das nações européias 64 Sir James F Stephen op cit p 253 epassim ver também seu Foundations of the government of índia 1883 em The Nineteenth Century LXXX 65 Quanto ao racismo de Disraeli compare o capítulo 3 214 3 RAÇA E BUROCRACIA Dois novos mecanismos de organização política e de domínio dos povos estrangeiros foram descobertos durante as primeiras décadas do imperialismo Um foi a raça como princípio da estrutura política o outro a burocracia como princípio do domínio no exterior Sem a raça para substituir a nação a corrida para a África e a febre dos investimentos poderiam terse reduzido para usar a expressão de Joseph Conrad à desnorteada dança da morte e do comércio das corridas do ouro Sem a burocracia para substituir o governo a possessão britânica da índia poderia ter sido abandonada à temeridade dos infratores da lei na índia Burke sem que isso alterasse o clima político de toda uma época Ambas as descobertas foram realizadas no Continente Negro A raça foi uma tentativa de explicar a existência de seres humanos que ficavam à margem da compreensão dos europeus e cujas formas e feições de tal forma assustavam e humilhavam os homens brancos imigrantes ou conquistadores que eles não desejavam mais pertencer à mesma comum espécie humana Na idéia da raça encontrouse a resposta dos bôeres à monstruosidade esmagadora descoberta na África todo um continente povoado e abarrotado de selvagens e a justificação da loucura que os iluminou como o clarão de um relâmpago num céu sereno no brado Exterminemos todos esses brutos1 Dessa idéia resultaram os mais terríveis massacres da história o extermínio das tribos hotentotes pelos bôeres as selvagens matanças de Carl Peters no Sudeste Africano Alemão a dizimação da pacata população do Congo reduzida de uns 20 milhões para 8 milhões er o que é pior a adoção desses métodos de pacificação pela política externa européia comum e respeitável Foi um chefe de Estado civilizado o Kaiser Guilherme II que ousou pronunciar a exortação dirigida a um contingente expedicionário alemão em luta contra a insurreição dos boxers em 1900 1 Joseph Conrad Heart of Darkness O coração das trevas em Youth and Other Tales 1902 é a obra mais elucidativa quanto a experiências raciais na Ãfrica Chineses nacionalistas que combatiam a influência ocidental os boxers massacraram missionários estrangeiros em 1900 o que provocou a intervenção de um corpo expedicionário internacional comandado por Waldersee um general alemão N E 215 Tal como os hunos ha mil anos sob o comando de Atila ganharam uma reputação que ainda hoje vive na história assim também possa o nome da Alemanha tornarse de tal modo conhecido na China que nenhum chinês jamais ouse novamente olhar com desdém um alemão2 A raça quer sob forma de conceito ideológico gerado na Europa ou como explicação de emergência para experiências chocantes e sangrentas sempre atraiu os piores elementos da civilização ocidental Já a burocracia foi descoberta pelas mais elevadas e por vezes as mais esclarecidas camadas da intelligentsia européia às quais atraía a princípio O administrador que governava por relatórios3 e decretos num sigilo pior que o de qualquer déspota oriental surgiu de uma tradição de disciplina militar introduzida em meio a homens sem compaixão e sem lei Vivendo de acordo com os ideais sinceros e honestos da infância sentiase como moderno cavaleiro enviado em missão para proteger a povos desamparados e primitivos E cumpriu essa tarefa de um modo ou de outro enquanto vivia num mundo dominado pela velha trindade guerra comércio e pirataria Goethe Porém o complicado jogo de políticas de investimento de longo alcance exigia a subjugação de um povo não em virtude das suas riquezas como anteriormente mas das riquezas de um outro país Foi a burocracia a base organizacional do grande jogo da expansão no qual cada zona era considerada um degrau para envolvimentos futuros e cada povo era um instrumento para futuras conquistas Embora fossem múltiplas as relações entre o racismo e a burocracia ambos foram descobertos e se desenvolveram independentemente E entre aqueles que de um modo ou de outro tiveram algo a ver com o seu aperfeiçoamento ninguém chegou jamais a perceber todo o potencial de acúmulo de poder e de destruição oferecido por essa combinação Lorde Cromer que no Egito passou de mero chargê daffaires britânico a burocrata imperialista não teria sonhado em misturar administração com massacre massacres administrativos como Carthill francamente os chamou quarenta anos mais tarde do mesmo modo que os racistas fanáticos da África do Sul jamais pensaram em organizar massacres com o fito de estabelecer comunidades políticas circunscritas e racionais como os nazistas fizeram nos campos de extermínio O MUNDO FANTASMA DO CONTINENTE NEGRO Até o fim do século XIX os empreendimentos coloniais dos povos marítimos da Europa produziram duas formas principais de realizações nos territórios recémdescobertos e escassamente povoados a colonização por meio da 2 Citado por Carlton J Hayes A generationofmaterialism Nova York 1941 p 338 Um caso ainda pior é o de Leopoldo II da Bélgica responsável pelas páginas mais negras da história da África Só havia um homem que podia ser acusado das atrocidades que reduziram a população nativa do Congo de cerca de 20 a 40 milhões em 1890 para 8500000 em 1911 Leopoldo II Ver Selwyn James South ofthe Congo Nova York 1943 p 305 3 Ver A Carthill e sua descrição do sistema indiano de governo por meio de relatórios em The lost dominion 1924 p 70 216 fundação de centros populacionais que adotavam as instituições políticas e legais do país de origem e nos países bem conhecidos embora exóticos entre povos estrangeiros o estabelecimento de entrepostos marítimos e comerciais cuja função única era a de facilitar a troca nem sempre muito pacífica das riquezas do mundo A colonização ocorreu na América e na Austrália dois continentes que sem cultura ou história próprias haviam caído nas mãos dos europeus Já os entrepostos comerciais foram característicos da Ásia onde durante séculos os europeus não haviam demonstrado qualquer ambição de domínio permanente ou de conquista não pretendendo dizimar a população nativa nem estabelecerse de modo duradouro4 Ambas as formas desses empreendimentos ultramarinos surgiram ao cabo de um longo processo que começou no século XVI Desde então alguns povos gradualmente conseguiram conquistar a sua independência enquanto os entrepostos comerciais passavam das mãos de uma nação para as de outra de acordo com o seu relativo poder ou fraqueza na Europa O único continente que a Europa não havia tocado no decurso de sua história colonial era a África Só seu litoral norte habitado desde o século VIII por povos e tribos arabizados era bem conhecido por ter pertencido na Antigüidade à área de influência européia Demasiado povoadas para atrair colonizadores e demasiado pobres para serem exploradas essas regiões sofreram todas as modalidades de domínio estrangeiro e todos os tipos de abandono anárquico mas por mais estranho que pareça desde o declínio do império egípcio e a destruição de Cartago nunca até a década 60 do século XX alcançaram independência genuína ou organização política estável É certo que os países europeus tentavam volta e meia atravessar o Mediterrâneo e impor o seu domínio às terras árabes e o cristianismo aos povos muçulmanos mas sem tratar os territórios da África do Norte como possessões ultramarinas pelo contrário aspiraram muitas vezes a incorporálos aos respectivos países colonizadores Essa antiga tradição seguida ainda em tempos recentes pela Itália e pela França foi quebrada na década de 80 do século XIX quando a Inglaterra dominou o Egito para proteger o canal de Suez mas ainda assim sem qualquer intenção de conquista ou de incorporação política do país já que a Inglaterra não se situando nas praias do Mediterrâneo como a França ou a Itália não podia de forma alguma estar interessada no Egito como esses dois países se interessaram pela Argélia ou Líbia respectivamente precisando dele tãosó por causa das riquezas da índia Enquanto o imperialismo transformava o Egito de país ocasionalmente cobiçado em entreposto militar a caminho da índia e ponto de apoio para as 4 É importante ter em mente que a colonização da América e da Austrália desenrolouse concomitantemente com a rápida e cruel liquidação dos nativos talvez em parte devido à fraqueza numérica destes enquanto para compreender a gênese da sociedade sul africana moderna é muito importante saber que a terra que se situava além do Cabo não era aberta como a que se estendia diante do colonizador australiano Era uma área povoada e povoada por uma grande população bantu Ver C W de Kiewiet A history of South África social and economic Oxford 1941 p 59 217 eventuais expansões futuras com a África do Sul ocorria exatamente o oposto Desde o século XVII a importância do cabo da Boa Esperança dependia da índia centro da riqueza colonial por conseguinte qualquer país que estabelecesse ali seus entrepostos comerciais precisava de um apoio logístico no Cabo que de fato só foi abandonado quando acabou o comércio unilateralmente explorado com a índia No fim do século XVIII a Companhia das índias Orientais britânica derrotou Portugal Holanda e França e conquistou o monopólio do comércio com a índia logicamente seguiuse a essa vitória a ocupação da África do Sul Se o imperialismo simplesmente continuasse as tradicionais tendências do comércio colonial que é tão freqüentemente confundido com o imperialismo a Inglaterra teria liquidado a sua posição na África do Sul após a abertura do canal de Suez em 18695 Mesmo quando a África do Sul pertencia à Comunidade Britânica sempre foi diferente dos outros domínios da coroa seu solo não sendo fértil e a população não sendo escassa o país carecia de dois prérequisitos para o estabelecimento definitivo do colonizador O único esforço para instalar ali mil colonos 5 mil ingleses desempregados ocorreu ainda no começo do século XIX e acabou em fracasso Não somente as correntes migratórias britânicas evitaram a África do Sul durante todo o século XIX mas curiosamente a África do Sul era o único domínio do qual emigrantes retornavam para a Inglaterra ainda em tempos recentes6 A África do Sul que se tornou solo de cultivo do imperialismo Damce não foi reclamada nem sequer pelos mais radicais defensores ingleses da saxonidade e não fazia parte das visões dos mais românticos sonhadores de um Império Asiático Isso demonstra quão pequena foi a influência da empresa colonial préimperialista no desenvolvimento do próprio imperialismo Se a política préimperialista houvesse prevalecido a colônia do Cabo teria sido abandonada justamente quando era maior a sua importância As descobertas de minas de ouro e de jazidas de diamantes nos anos 70 e 80 teriam tido conseqüências insignificantes se não tivessem servido de agente catalisador para as forças imperialistas É notável a alegação dos imperialistas 5 Ainda em 1884 o governo britânico havia estado disposto a diminuir a sua autoridade e influência na África do Sul Kiewiet op cit p 113 6 Os seguintes dados de imigração e emigração britânicas na África do Sul entre 1924 e 1928 mostram que os ingleses eram mais inclinados a deixar o país do que outros imigrantes e que com uma exceção cada ano mostrava um número maior de ingleses deixando o país que chegando Imigração Imigração Emigração Emigração Ano britânica total britânica total 1924 1724 5265 5275 5857 1925 2400 5426 4019 4483 1926 4094 6575 3512 3799 1927 3681 6595 3717 3988 1928 3285 7050 3409 4127 17184309111993222254 Cf L Barnes Caliban in África An impression of colour madness 1931 Filadélfia p 59 218 de terem encontrado numa corrida em busca da matériaprima mais supérflua da terra a solução permanente para o problema da superfluidade A importância do ouro é mínima quando comparada à do ferro do carvão do petróleo e da borracha por outro lado é o mais antigo símbolo da riqueza Em sua inutilidade para a produção industrial o ouro se assemelha ao dinheiro supérfluo que financiou a sua mineração e aos homens supérfluos que cavaram as suas minas À pretensão dos imperialistas de haverem descoberto a salvação permanente para uma sociedade decadente e uma organização política antiquada acrescentavase outra suposição a da perene estabilidade gerada pelo ouro e sua independência de todos os outros fatores funcionais É significativo que uma sociedade às vésperas de romper com todos os tradicionais valores absolutos começasse a buscar um valor absoluto no mundo da economia onde na verdade não existe nem pode existir valor absoluto já que tudo é funcional e mutável por definição Essa ilusão do valor absoluto fez com que a produção do ouro desde os tempos antigos fosse a atividade de aventureiros jogadores e criminosos de elementos alheios à sociedade normal e sadia A novidade na corrida do ouro sulafricano era que os aventureiros não eram de todo alheios à sociedade civilizada mas ao contrário constituíam o seu subproduto um resíduo inevitável do sistema capitalista representantes de uma economia que originava e produzia incessantemente homens e capital supérfluos Os homens supérfluos os boêmios dos quatro continentes7 que acorreram ao Cabo ainda tinham muito em comum com os antigos aventureiros Eles também diziam como Kipling Ponhamme num navio que vá para leste de Suez onde o bom é como o mau onde não existem os Dez Mandamentos e onde todos os desejos são permitidos A diferença não estava na sua moralidade ou imoralidade mas sim no fato de que se se uniam a esse bando de homens de todas as nações e de todas as cores8 não era por escolha própria não se haviam retirado voluntariamente da sociedade mas sim tinham sido cuspidos por ela eram suas vítimas sem função e sem uso Sua única escolha havia sido negativa haviam optado contra os movimentos operários onde os rejeitados da sociedade criavam uma espécie de contrasociedade através da qual podiam voltar ao mundo da camaradagem e do bom senso Não resultavam de realizações próprias eram símbolos vivos do que lhes havia acontecido testemunhas vivas do absurdo das instituições humanas Ao contrário dos antigos aventureiros eram sombras de acontecimentos com os quais nada tinham a ver Como o sr Kurtz em Heart of Darkness de Conrad eram ocos por dentro arrojados sem atrevimento cobiçosos sem audácia e cruéis sem coragem Em nada acreditavam mas podiam chegar a crer em tudo Expulsos de um mundo com valores sociais estabelecidos e jogados à mercê de si mesmos sequer tinham onde se apoiar a não ser lampejos de talento que os tornariam tão perigosos quanto Kurtz se um dia lhes fosse permitido voltar aos 7 J A Froude Leaves from a South African journal 1874 em Short studies on great subjects 186782 vol IV 8 Ibid 219 seus países Pois o único talento que germinava em suas almas vazias era o dom do fascínio que marca o esplêndido líder de um partido extremista Os mais talentosos eram encarnações vivas do ressentimento como o alemão Carl Peters possível modelo de Kurtz que confessava abertamente estar farto de ser considerado pária ele que queria pertencer a uma raça de senhores9 Mas talentosos ou não topavam tudo desde jogar caraecoroa até matar alguém e para eles a vida do próximo tanto fazia como tanto fez Assim trouxeram consigo ou logo aprenderam o código de boas maneiras ajustado ao futuro tipo de assassino que só conhecia um pecado imperdoável perder a calma É verdade que entre eles havia cavalheiros autênticos como ò sr Jones do Victory de Conrad que por enfado pagavam de bom grado o preço de viver no mundo do perigo e da aventura ou como o sr Heyst cheio de desprezo por tudo o que era humano até que foi levado na correnteza como uma folha solta sem jamais se agarrar a nada Sentiamse irresistivelmente atraídos por um mundo onde tudo era uma piada que lhes podia ensinar o gracejo máximo que é controlar o desespero O cavalheiro perfeito e o canalha perfeito vieram a conhecer muito bem um ao outro na grande selva selvagem sem lei e verificaram ser parecidos em sua dissimilitude almas idênticas em disfarces diferentes Conhecemos a conduta da alta sociedade francesa durante o Caso Dreyfus e vimos Disraeli descobrir a relação social entre o vício e o crime mais uma vez estamos diante da alta sociedade que se apaixona por seu próprio submundo e do criminoso que se sente enaltecido quando desde que com frieza civilizada sem esforço desnecessário e com boas maneiras lhe é permitido criar uma atmosfera de refinado vício em torno de seus crimes Esse refinamento o próprio contraste entre a brutalidade do crime e a maneira de cometêlo cria um laço de profunda compreensão entre o criminoso perfeito e o cavalheiro perfeito Mas aquilo que afinal levou décadas para surgir na Europa dado o efeito retardador dos valores éticos sociais explodiu subitamente como um curtocircuito no mundo fantasma da aventura colonial Longe de qualquer controle e da hipocrisia social tendo como pano de fundo só o mundo dos nativos o cavalheiro e o criminoso sentiam não apenas a afinidade de homens da mesma cor e origem mas também o impacto de um mundo que oferecia possibilidades infinitas para crimes em nome da diversão para uma mistura de horror e de riso ou seja para a plena realização de suas existências fantasmas A vida nativa forrava esses eventos fantasmagóricos com aparente garantia contra quaisquer conseqüências uma vez que os nativos pareciam a esses homens mero movimento de sombras Sombras em movimento a raça dominante podia caminhar entre elas impunemente e sem ser percebida em busca de seus incompreensíveis propósitos e necessidades Heart of darkness O mundo dos selvagens nativos compunha perfeito cenário para homens 9 Citado por Paul Ritter Kolonien im deutschen Schriftum As colônias na literatura alemã 1936 prefácio 220 que haviam fugido da realidade da civilização Sob o sol inclemente rodeados pela natureza hostil deparavam com seres humanos que vivendo sem um determinado alvo para o futuro e sem um passado que incorporasse as suas realizações pareciamlhes tão incompreensíveis como os loucos de um hospício Esse homem préhistórico nos amaldiçoava implorava ou dava as boasvindas Quem poderia saber Entre nós e o meio ambiente não havia qualquer entendimento passávamos entre eles como fantasmas cheios de espanto mas secretamente apavorados como homens sãos diante da exaltada rebeldia de loucos A terra parecia aqui um outro mundo e os homens Não não eram inumanos Mas isso era o pior essa suspeita que me invadia aos poucos de que não eram inumanos Porque ao urrarem e pularem e darem cambalhotas e fazerem trejeitos horríveis o que nos impressionava era justamente a idéia de que fossem humanos como nós e foi difícil pensar em nosso remoto parentesco com esse tumulto selvagem e violento Heart of darkness É estranho que do ponto de vista histórico a existência de homens préhistóricos tenha tido tão pouca influência sobre o homem ocidental antes da corrida para a África No entanto o fato é que nada aconteceu enquanto tribos selvagens apesar da desvantagem numérica dos colonizadores eram exterminadas enquanto navios negreiros levavamnas como escravos enquanto eram apenas alguns indivíduos que se embrenhavam no interior do Continente Negro onde os selvagens eram suficientemente numerosos para constituírem seu mundo próprio um mundo de loucura ao qual o aventureiro europeu acrescentava a loucura da caça ao marfim Muitos desses aventureiros haviam enlouquecido na vastidão silenciosa daquele continente onde a presença de seres humanos somente agravava a enorme solidão e onde uma natureza intacta avassaladoramente hostil que jamais ninguém se dispusera a transformar em ambiente humano parecia aguardar com sublime paciência que acabasse a fantástica invasão do homem Mas enquanto não passava de experiências individuais essa loucura era sem conseqüências Isso mudou com os homens que chegaram durante a corrida colonialista para a África Já não se tratava de indivíduos solitários toda a Europa contribuía para a corrida Concentraramse na parte sul do continente onde encontraram os bôeres um grupo de holandeses desgarrados já quase esquecidos pela Europa mas que agora serviam como guias naturais no desafio do novo ambiente A reação dos homens supérfluos foi em grande parte determinada pela reação do único grupo europeu que jamais tivera de viver num mundo de selvagens negros embora em completo isolamento Os bôeres descendem de colonos holandeses que em meados do século XVII habitavam um posto marítimo no Cabo destinado a fornecer carne e legumes aos navios que demandavam a índia Um pequeno grupo de huguenotes franceses os seguiu no decorrer do século XVIII Graças à alta taxa de natalidade o pequeno bando de holandeses pôde chegar à categoria de modesto grupo populacional Completamente isolados da corrente da história européia 221 escolheram um caminho que poucas nações haviam percorrido antes deles e quase nenhuma com sucesso10 Os dois principais fatores materiais do desenvolvimento dos bôeres foram o solo de péssima qualidade que só podia ser usado para a criação de gado e a numerosa população negra organizada em tribos nômades que viviam da caça11 O solo adverso tornava inviável a construção de povoados impedindo que aqueles camponeses holandeses imitassem a organização urbana de sua terra natal As grandes famílias isoladas umas das outras por vastas regiões incultiváveis formaram uma espécie de organização clânica e somente a constante ameaça de um inimigo comum muito mais numeroso que os colonos brancos impedia que esses clãs guerreassem entre si Á solução para a falta de fertilidade do solo foi a pecuária e para a abundância de nativos a escravidãon Contudo escravidão é uma palavra insuficiente para descrever o que realmente aconteceu Em primeiro lugar a escravidão embora domesticasse certa parte da população selvagem nunca atingiu a todos de sorte que os bôeres jamais puderam esquecer o primeiro horrível susto diante de homens que seu orgulho e seu senso de dignidade não permitiam aceitar como semelhantes Esse pavor de algo semelhante a nós que contudo não devia de modo algum ser semelhante a nós justificou em termos ideológicos a escravidão e constituiu a base da sociedade racista A humanidade conhece a história dos povos mas seu conhecimento de tribos préhistóricas é apenas lendário O termo raça só chega a ter um significado preciso quando e onde os povos com história conhecida se defrontam com tribos das quais não têm nenhum registro histórico e que ignoram a sua própria história E não sabemos se essas tribos representam o homem pré histórico os espécimes das primeiras formas de vida humana na terra que por acaso sobreviveram ou se são os sobreviventes póshistóricos de algum desastre desconhecido que pôs fim a alguma civilização Parecem sem dúvida sobreviventes de alguma grande catástrofe seguida de desastres menores até que a monotonia catastrófica passou a ser a condição natural da sua vida De qualquer modo só se encontravam raças desse tipo em regiões onde a natureza era particularmente hostil O que os fazia diferentes dos outros seres humanos não era absolutamente a cor da pele mas o fato de se portarem como se fossem parte da natureza tratavamna como sua senhora inconteste não haviam 10 Lorde Selbourne em 1907 Os povos brancos da Ãfrica do Sul escolheram um caminho que poucas nações trilharam antes deles e quase nenhuma com sucesso Ver Kiewiet op cit cap 6 11 Ver especialmente o cap iii de Kiewiet op cit 12 Juntos os escravos e os hotentotes provocaram notáveis mudanças no pensamento e nos hábitos dos colonizadores pois o clima e a geografia não foram os únicos fatores formadores das características da raça dos bôeres Os escravos e as secas os hotentotes e o isolamento a mãodeobra e a terra barata combinaramse para criar as instituições e os hábitos da sociedade sulafrícana Os filhos e filhas dos robustos holandeses e huguenotes aprenderam a ver o trabalho do campo e todo esforço físico intenso como funções de uma raça servi Kiewiet op cit p 21 222 criado um mundo de domínio humano uma realidade humana e portanto a natureza havia permanecido em toda a sua majestade como a única realidade esmagadora diante da qual os homens pareciam meros fantasmas irreais e espectrais Pareciam tão amalgamados com a natureza que careciam de caráter especificamente humano de realidade especificamente humana de sorte que quando os europeus os massacravam de certa forma não sentiam que estivessem cometendo um crime contra homens Além disso os insensatos massacres das tribos do Continente Negro pelos brancos não destoavam das próprias tradições dessas mesmas tribos O extermínio de grupos hostis foi norma em todas as guerras entre os nativos africanos que não foi abolida nem mesmo quando um líder negro veio a unir várias tribos sob o seu comando O rei Tchaka que no início do século XIX uniu as tribos zulus para formar uma organização extraordinariamente disciplinada e guerreira não chegou na realidade a estabelecer uma nação de zulus Conseguiu apenas exterminar mais de 1 milhão de membros das tribos mais fracas13 Como a disciplina e a organização militar por si sós não podem estabelecer uma estrutura política a destruição ficou como um episódio não registrado num processo irreal e incompreensível que não pôde ser aceito pelo homem e portanto não é relembrado pela história humana A escravidão no caso dos bôeres foi uma forma de ajustamento de um povo europeu a uma raça negra14 apenas superficialmente lembra fenômenos históricos resultantes da conquista ou do comércio escravo Nenhuma estrutura política nenhuma organização comunitária unia os bôeres nenhum território delimitado foi definitivamente colonizado por eles e os escravos negros não serviam a nenhuma civilização branca Os bôeres haviam perdido tanto a sua relação de camponeses com o solo quanto o seu sentimento civilizado de solidariedade humana A regra do país preconizava a necessidade de cada um fugir da tirania da presença do vizinho15 e assim cada família bôer repetia em completo isolamento a mesma experiência geral dos bôeres que viviam entre selvagens negros e os dominavam em completo desrespeito às leis sem serem impedidos por bondosos vizinhos prontos a te aplaudir ou cair em cima de ti interpondose delicadamente entre o assassino e o policial num santo horror de escândalo de cadeia e asilo de lunáticos Joseph Conrad Dominando tribos e vivendo aparasitados ao seu trabalho passaram a ocupar uma posição muito semelhante à dos chefes tribais nativos cujo poder haviam liquidado Fosse como fosse os nativos reconheciam neles uma forma superior de liderança tribal uma espécie de deidade natural à qual era mister obedecer de sorte que o divino papel dos bôeres não foi imposto apenas pela escravização dos negros 13 Ver James op citp 28 14 A verdadeira história da colonização da África do Sul é a história da evolução não de uma povoação de europeus mas de uma sociedade inteiramente nova e singular de raças cores e culturas diferentes caracterizada por conflitos de herança racial e pela luta entre grupos sociais desiguais Kiewiet op cit p 19 15 Kiewiet op cit p 19 223 mas também livremente assumido por eles E para esses deuses brancos de escravos negros lei significava apenas a redução da própria liberdade e governo significava apenas restrições à desenfreada arbitrariedade do seu clã16 Os bôeres descobriram nos nativos a única matéria prima que a África lhes oferecia em abundância e a usaram não para produzir riqueza mas apenas para a satisfação das suas necessidades básicas Os escravos negros da África do Sul tornaramse rapidamente a única parte da população que trabalhava Seus esforços portavam a marca de todas as desvantagens do trabalho escravo falta de iniciativa preguiça desleixo com as ferramentas e ineficiência geral Suas atividades portanto mal permitiam manter vivos os seus senhores e nunca produziram a abundância que sustenta a civilização Essa absoluta dependência do trabalho alheio e o completo desprezo por qualquer forma de produtividade e pelo trabalho transformaram o holandês no bôer e deram ao seu conceito de raça um significado primordialmente econômico17 Os bôeres foram o primeiro grupo europeu a alienarse completamente do orgulho que o homem ocidental sentia em viver num mundo criado e fabricado por ele mesmo18 Tratavam os nativos como matériaprima e viviam à custa deles como se vive dos frutos de uma árvore Preguiçosos e improdutivos concordaram em vegetar mais ou menos no mesmo nível em que as tribos negras haviam vegetado durante milhares de anos O grande horror que se apossara dos europeus por ocasião de sua primeira confrontação com a vida nativa foi inspirado exatamente por essa qualidade que transformava os seres humanos em parte da natureza tanto quanto os animais Mas os bôeres viviam à custa dos escravos do mesmo modo como os nativos viviam à custa da natureza despreparada e inculta Quando os bôeres em seu pavor e miséria decidiram usar esses selvagens como se eles fossem apenas uma forma de vida animal como qualquer outra deram início a um processo que só podia terminar fazendoos degenerar num grupo racial branco que vivia ao lado em separação mas em conjunto com as raças negras das quais finalmente iriam diferir apenas na cor da pele 16 A sociedade dos bôeres era rebelde mas não revolucionária ibid p 58 17 Pouco esforço foi feito para elevar o padrão de vida ou aumentar as oportunidades dos escravos e dos servos Assim a limitada riqueza da colônia era o privilégio da população branca Cedo portanto a África do Sul aprendeu que um grupo consciente de si mesmo pode fugir aos piores males da vida numa terra pobre e nefasta transformando as distinções de raça e de cor em meios de discriminação social e econômica ibid p 22 18 Enquanto nas índias Ocidentais um número tão grande de escravos como o que existia no Cabo teria sido um sinal de riqueza e uma fonte de prosperidade no Cabo a escravidão era sinal de economia estagnada cujo trabalho era usado com desperdício e ineficiência ibid Isso levou Barnes op cit p 107 e muitos outros observadores à conclusão de que a África do Sul é um país estrangeiro não apenas no sentido de que tem pontos de vista definitivamente alheios aos da Inglaterra mas também no sentido muito mais radical de que sua própria raison dêtre como tentativa de sociedade organizada está em contradição com os princípios sobre os quais se baseiam os países cristãos 224 Os brancos pobres da África do Sul que em 1923 constituíam 10 de toda a população branca19 e cujo padrão de vida não diferia muito dos membros das tribos bantus são um claro exemplo desta afirmação Sua pobreza resulta quase exclusivamente do desprezo pelo trabalho e também da adaptação ao modo de vida das tribos negras Como os negros abandonavam as terras quando o solo deixava de produzir o pouco que lhes era necessário ou quando haviam exterminado os animais da região20 Juntamente com os seus antigos escravos iam para os centros auríferos e diamantíferos abandonando as fazendas quando os trabalhadores negros partiam Mas ao contrário dos nativos que eram imediatamente empregados como mãodeobra barata e nãoqualificada exigiam e recebiam caridade como um direito naturalmente decorrente de sua pele branca tendo perdido a noção de que normalmente um homem não ganha a vida às custas da cor de sua pele21 Seus sentimentos raciais são hoje violentos não apenas porque nada têm a perder exceto sua associação com outros brancos mas também porque o conceito de raça parece definir a sua condição bem melhor que a dos seus antigos escravos que estão gradualmente se tornando trabalhadores ou seja parte normal da civilização humana O racismo como instrumento de domínio foi usado nessa sociedade de brancos e negros antes que o imperialismo o explorasse como idéia política Sua base e sua justificativa ainda eram a própria experiência uma terrível experiência de algo tão estranho que ficava além da compreensão e da imaginação para os brancos foi mais fácil negar que os pretos fossem seres humanos No entanto a despeito de todas as explicações ideológicas o homem negro teimosamente insistia em conservar suas características humanas só restando ao homem branco reexaminar a sua própria humanidade e concluir que nesse caso ele era mais do que humano isto é escolhido por Deus para ser o deus do homem negro Era uma conclusão lógica e inevitável no caminho da radical negação de qualquer laço comum com os selvagens na prática significou que o cristianismo não pôde atuar como força repressiva contra as perigosas perversões da consciência humana o que prenunciava sua ulterior ineficácia em outras sociedades raciais22 Os bôeres simplesmente negavam a doutrina cristã 19 Isso correspondia a cerca de 160 mil indivíduos Kiewiet op cit p 181 James op cit p 43 calculava o número de brancos pobres em cerca de 500 mil em 1943 o que corresponderia a cerca de 20 da população branca 20 O branco pobre vivendo no mesmo nível de subsistência dos bantus é o resultado da incapacidade ou da obstinada recusa dos bôeres de aprenderem a ciência da agricultura Como o bantu o bôer gosta de vagar de uma área para outra trabalhando o solo até que deixe de ser fértil matando a caça até que deixe de existir ibid 21 A raça era a sua garantia de superioridade sobre os nativos e executar trabalhos manuais não condizia com a dignidade que a raça lhes outorgava Essa aversão degenerou entre os mais desmoralizados na exigência da caridade como um direito Kiewiet op cit p 216 22 A Igreja Reformada Holandesa está à vanguarda da luta dos bôeres contra a influência dos missionários cristãos no Cabo Em 1944 ela adotou sem uma voz em contrário uma moção que se opunha aos casamentos de bôeres com cidadãos de língua inglesa Segundo o Times do Cabo editorial de 18 de julho de 1944 Citado pelo New África Council on African Affairs boletim mensal outubro de 1944 225 da origem comum dos homens e aquelas passagens do Antigo Testamento que ainda não transcendiam os limites da velha religião nacional israelita eles as transformaram numa superstição que nem poderia ser chamada de heresia23 Como os judeus acreditavam firmemente que eram o povo escolhido24 com a diferença fundamental de que haviam sido escolhidos não para a divina salvação da humanidade mas para a ociosa dominação de outra espécie condenada a um trabalho forçado não menos ocioso25 Esta é a vontade de Deus na Terra segundo a Igreja Reformada Holandesa que diverge dos missionários de todas as outras denominações cristãs26 O racismo bôer em contraste com outros tipos de racismo caracterizase por uma certa autenticidade A completa ausência de literatura local e de outras realizações intelectuais é a melhor prova desta afirmação27 Resultou de uma reação desesperada a condições de vida desesperadoras e era mudo e inconseqüente enquanto o mundo o ignorava A situação mudou após a chegada dos ingleses que demonstravam pouco interesse por sua mais nova colônia à qual em 1849 ainda chamavam de posto militar Mas a sua presença e a sua atitude diferente em relação aos nativos nos quais não viam mera espécie diferente de animais bem como suas tentativas posteriores de abolir a escravidão e seus esforços de fixar limites às terras particulares tudo isso levou a estagnada sociedade bôer a reações violentas É típico dos bôeres reagirem segundo o padrão que repetiam durante todo o século XIX os fazendeiros bôeres escapavam à lei britânica fugindo em carros de boi para o interior do país abandonando sem remorsos os seus lares e as suas fazendas A aceitar limitações de suas posses preferiam abandonálas de todo28 Isso não significa que os bôeres não se sen 23 Kiewiet op cit p 181 menciona a doutrina de superioridade racial extraída da Bíblia e reforçada pela interpretação popular que o século XIX dava às teorias de Darwin 24 O Deus do Velho Testamento tem sido para eles uma figura nacional quase tanto quanto o foi para os judeus Lembrome de uma cena memorável num clube da Cidade do Cabo onde um ousado inglês jantando por acaso com três ou quatro holandeses observou que Cristo não sendo europeu teria sido do ponto de vista legal proibido de imigrar para a União da África do Sul Os holandeses ficaram tão chocados com essa observação que quase caíram das cadeiras Barnes op cit p 33 25 Para a família bôer a separação e a degradação dos nativos resultam de mandamento de Deus e é crime e blasfêmia dizer o contrário Norman Bentwich South África Dominion of racial problems emPolitical Quartely 1939 vol X n 3 26 Até hoje o missionário é para o bôer o traidor fundamental o homem branco que defende o preto contra o branco S Gertrude Millin Rhodes Londres 1933 p 38 27 Como tinham pouca arte menos arquitetura e nenhuma literatura dependiam de suas fazendas suas bíblias e seu sangue para se distinguirem dos nativos e dos estrangeiros Kiewiet op cit p 121 28 O verdadeiro Vortrekker nome que se aplicava ao bôer que emigrava para o interior em carros de boi detestava fronteiras Quando o governo inglês insistiu em limites fixos para a colônia e suas fazendas o bôer sentiu como se lhe roubassem algo Sentiase mais seguro além do limite do poder inglês onde havia água e terra livre e nenhum governo inglês para revogar as Leis de Vagabundagem e onde o homem branco não seria arrastado aos tribunais para responder a queixas de seus servos ibid pp 545 A Grande Fuga em carros de boi movimento único na 226 tissem em casa onde quer que estivessem sentiamse e ainda se sentem muito mais em casa na África do que quaisquer imigrantes depois deles mas na África e não em qualquer território especificamente limitado Suas fantásticas jornadas em carros de boi demonstraram claramente que eles haviam virado uma tribo tendo perdido o apego europeu a um território a uma pátria própria Portavamse exatamente como as tribos negras que haviam vagado pelo Continente Negro durante séculos sentindose à vontade onde quer que o grupo estivesse e fugindo como quem foge da morte de qualquer tentativa de permanência O desarraigamento é característico de todas as organizações raciais O que os movimentos racistas europeus conscientemente almejavam a transformação do povo numa horda pode ser estudado como num teste de laboratório na velha e triste tentativa dos bôeres O desarraigamento como objetivo consciente baseavase principalmente no ódio a um mundo onde não havia lugar para homens supérfluos de sorte que a destruição desse mundo podia tornar se supremo objetivo político mas o desarraigamento dos bôeres foi o resultado normal de uma prematura emancipação do trabalho e da completa ausência de um meio ambiente construído por seres humanos A mesma semelhança existe entre os movimentos e a interpretação bôer do conceito de escolha Mas enquanto nos movimentos pangermânicos paneslavos ou poloneses messiânicos o conceito de escolha era um instrumento mais ou menos consciente para fins de domínio a perversão do cristianismo dos bôeres era solidamente enraizada na terrível realidade em que miseráveis homens brancos eram adorados como divindades por homens negros igualmente infelizes Vivendo num ambiente que não podiam transformar em mundo civilizado não conseguiram encontrar nenhum valor que fosse superior à imagem de si mesmos Não obstante quer o racismo resulte de uma catástrofe quer seja instrumento consciente para provocála está sempre intimamente ligado ao desprezo pelo trabalho à rejeição de limitações de posse ao desarraigamento geral e à fé na divina escolha do seu grupo Os primeiros conquistadores britânicos da África do Sul com os seus missionários soldados e exploradores não compreenderam que a atitude dos bôeres era baseada até certo ponto na realidade Não compreenderam que a absoluta supremacia européia na qual eles afinal estavam tão interessados quanto os bôeres não poderia ser mantida senão através do racismo na medida em que a população européia era irremediavelmente suplantada em história da colonização p 58 foi a derrota de uma política de colonização mais intensa A prática que exigia a área de todo um município canadense para o estabelecimento de dez famílias foi estendida a toda a África do Sul Ela impossibilitou para sempre a segregação das raças branca e negra em áreas diferentes de fixação Ao colocar os bôeres além do alcance da lei britânica a Grande Fuga possibilitoulhes estabelecer relações adequadas com a população nativa p 56 Nos anos seguintes a Grande Fuga iria ser mais que um protesto tomarseia uma revolta contra a administração britânica e a pedra fundamental do racismo anglobôer do século XX James op cit p 28 227 quantidade de homens29 e ficavam chocados ao ver europeus radicados na África agindo como selvagens pelo fato de ser esse o costume do país30 Para seu espírito simples e utilitário parecia tolice sacrificar a produtividade e o lucro por amor a um mundo fantasma de deuses brancos que comandavam sombras negras Somente com o estabelecimento colonial dos ingleses e outros europeus durante a corrida do ouro na África do Sul é que se adaptaram gradualmente a uma população que não podia ser atraída de volta à civilização européia nem mesmo com a motivação do lucro e que havia perdido contato até com os mais simples incentivos do homem europeu ao renunciar às suas motivações mais elevadas porque tudo perde seu sentido e atração numa sociedade em que ninguém quer realizar nada e todos são deuses 2 OURO E RAÇA As jazidas de diamantes de Kimberley e as minas de ouro do Witwatersrand estavam por acaso localizadas nesse fantasmagórico mundo Aquela terra a cujo largo passaram indiferentes centenas de navios de emigrantes com destino à Nova Zelândia e à Austrália via agora um turbilhão de recémchegados que partiam apressados terra a dentro em direção às minas A maioria vinha da Inglaterra mas entre eles havia gente de Riga e Kiev Hamburgo e Frankfurt Rotterdam e San Francisco31 Todos pertenciam a um tipo de pessoas que prefere a aventura e a especulação à indústria organizada e não se dá bem com as limitações da vida comum Havia escavadores da América e da Austrália especuladores alemães comerciantes taberneiros jogadores profissionais advogados exoficiais do Exército e da Marinha rapazotes filhos de boas famílias um maravilhoso conjunto heterogêneo onde o dinheiro corria como água graças à espantosa produtividade das minas A essa gente uniamse milhares de nativos que a princípio vinham para roubar diamantes e gastar seus lucros em rifles e pólvora32 mas que logo começaram a trabalhar por um salário e se transformaram em fonte de mãodeobra barata aparentemente inesgotável quando a mais estagnada das regiões explodiu subitamente em atividade33 A abundância de nativos ou seja da mãodeobra barata foi a primeira e talvez a mais importante diferença entre esta corrida do ouro e as outras Logo tornouse claro que a ralé dos quatro cantos da terra não teria nem de cavar de qualquer forma a atração permanente da África do Sul o recurso que seduziu 29 Em 1939 a população total da União SulAfricana era de 95 milhões de habitantes dos quais 7 milhões eram nativos e 25 milhões europeus Desses últimos mais de 125 milhão era bôeres cerca de um terço eram ingleses e 100 mil eram judeus Ver Norman Bentwich op cit 30 J A Froude op cit p 375 31 Kiewiet op citp 119 32 Froude op cit p 400 33 Kiewietopcitp 119 228 os aventureiros a ali ficarem permanentemente não foi o ouro mas sim essa matériaprima humana que prenunciava uma vida para sempre livre de trabalho34 Os europeus serviam apenas como supervisores e nem ao menos tentaram produzir engenheiros e operários qualificados que tinham de ser constantemente importados da Europa Essa corrida do ouro não se processava ao acaso Através da riqueza supérflua acumulada e com o auxílio de financistas principalmente judeus a corrida era financiada organizada e ligada à economia européia Desde o início os mercadores judeus quase uma centena reunidos como águias sobre a presa35 agiram como intermediários entre o capital europeu investido e as indústrias de mineração de ouro e diamantes A única parte da população da África do Sul que não compartilhava nem queria compartilhar as atividades do país em súbita explosão econômica eram os próprios bôeres Detestavam todos aqueles uitlanders forasteiros que não pretendiam tornarse cidadãos mas que necessitavam da proteção britânica e a obtinham desse modo fortalecendo a influência do governo britânico no Cabo Os bôeres reagiram como sempre haviam reagido venderam as suas terras abarrotadas de diamantes em Kimberley e as suas fazendas cheias de minas de ouro perto de Johannesburgo e novamente se foram de carro de boi pelo sertão adentro Não compreenderam que aquela nova invasão era diferente do influxo de missionários britânicos funcionários do governo ou colonos comuns e somente quando era tarde demais e quando já haviam perdido o seu quinhão de lucros na corrida de ouro perceberam que o novo ídolo do ouro não era de forma alguma irreconciliável com o seu ídolo de sangue que o novo populacho era tão refratário ao trabalho e tão incapaz de criar uma civilização quanto eles próprios e que portanto seriam poupados da aborrecida insistência dos ingleses no que se referia à lei e do conceito irritante dos missionários cristãos no que se referia à igualdade humana Os bôeres temiam o que de fato nunca aconteceu ou seja a industrialização do país E estavam certos no sentido de que a civilização e a produção normal teriam realmente destruído de modo automático a maneira de vida de uma sociedade racial Um mercado normal para mercadorias e trabalho teria acabado com os privilégios raciais Mas o ouro e os diamantes que cedo passaram a ser o sustento de metade da população sulafricana não eram mercadorias no mesmo sentido e não eram produzidos do mesmo modo como a lã na Austrália a carne na Nova Zelândia ou o trigo no Canadá O papel irracional e nãofuncional do ouro na economia tornavao independente de métodos racionais de produção que naturalmente jamais poderiam tolerar as fantásticas 34 O que a abundância de chuva e relva era para os carneiros da Nova Zelândia o que a fartura de pasto era para a lã da Austrália o que os hectares de campinas férteis eram para o trigo canadense a mãodeobra barata dos nativos era para a mineração e indústrias da África do Sul op cit p 96 35 J A Froude ibid 229 disparidades entre os salários de brancos e pretos O ouro objeto de especulação tornouse o sangue da Âfricja do Sul36 mas não podia constituir nem constituiu a base da nova ordem econômica Os bôeres temiam também a simples presença dos uitlanders porque os tomavam por colonos britânicos Contudo os uitlanders haviam vindo apenas para ficar ricos depressa e só permaneceram aqueles que não obtiveram sucesso ou que como os judeus não tinham país para onde voltar Nem uns nem outros estavam muito propensos a fundar uma comunidade segundo o modelo dos países europeus como os colonos britânicos haviam feito na Austrália no Canadá e na Nova Zelândia De fato o governo do Transvaal não se parecia com nenhum outro governo do mundo Na verdade não se tratava absolutamente de governo mas de uma companhia ilimitada de cerca de 120 mil acionistas37 Uma série de malentendidos levou finalmente os bôeres à guerra contra os ingleses a qual eles erradamente julgaram ser o ponto culminante da longa campanha do governo britânico em prol de uma África do Sul unida quando na verdade o que a provocou foi o interesse no dinheiro investido38 Quando os bôeres perderam a guerra e com ela o que já haviam abandonado deliberadamente isto é o seu quinhão nos lucros ganharam definitivamente o consentimento de todos os outros elementos europeus inclusive do governo britânico para a instauração de uma sociedade racial regida pela falta de direito39 Hoje todas as camadas da população sulafricana branca ingleses e africânderes trabalhadores organizados e capitalistas concordam quanto à questão racial40 E se a ascensão de uma Alemanha nazista e sua tentativa de 36 As minas de ouro são o sangue da União Metade da população vivia direta ou indiretamente da indústria da mineração e metade das finanças do governo vinha direta ou indiretamente da mineração do ouro Kiewiet op cit p 155 37 Ver Paul H Emden Jews of Britain a series of biographies Londres 1944 capítulo From Cairo to the Cape 38 Kiewiet op cit pp 1389 menciona contudo mais um conjunto de circunstâncias Qualquer tentativa por parte do governo inglês de obter concessões ou reformas do governo do Transvaal tornavao inevitavelmente agente dos magnatas da mineração A GrãBretanha deu o seu apoio aos investimentos de capitais e de mineração com ou sem o claro consentimento de Do wning Street 39 Muito da conduta evasiva e hesitante dos estadistas britânicos antes da Guerra dos Bôeres pode ser atribuído à indecisão do governo britânico entre a sua obrigação para com os nativos e sua obrigação em relação às comunidades brancas Agora contudo a Guerra dos Bôeres obrigava a uma decisão quanto à política em relação aos nativos Nos tempos de paz o governo inglês prometeu que não seria feita qualquer tentativa de alterar o status político dos nativos antes que fosse concedido governo autônomo às exrepúblicas brancas Assim o governo inglês recuava de sua posição humanitária permitindo que os bôeres obtivessem uma importante vitória nas negociações de paz que se seguiram à sua derrota militar A GrãBretanha abandonou o seu esforço de exercer controle sobre as relações entre o branco e o negro e Downing Street haviase rendido à lei da selva Kiewiet op cit pp 1434 40 Há uma noção completamente errada de que os africânderes de língua holandesa e os sulafricanos de língua inglesa discordam quanto ao tratamento que deve ser dado aos nativos Pelo contrário esta é uma das poucas coisas em que eles concordam James op cit p 47 230 transformar o povo alemão numa raça fortaleceram consideravelmente a posição política dos bôeres a derrota alemã em 1945 não a enfraqueceu Mais do que aos outros estrangeiros os bôeres odiavam e temiam os financistas De certo modo compreendiam que o financista era uma figurachave na combinação da riqueza supérflua com homens supérfluos e que a sua função era transformar a corrida do ouro essencialmente transitória num negócio muito mais amplo e permanente41 Além disso a guerra contra os ingleses demonstrou ter sido provocada por investidores que exigiam como se isto lhes fosse devido que o governo protegesse seus tremendos lucros obtidos nos países distantes como se os exércitos que lutavam contra povos estrangeiros não passassem de forças policiais em luta contra criminosos nativos Aos financistas que introduziam esse tipo de violência nos escusos negócios da produção do ouro e diamantes os bôeres preferiam os que de um modo ou de outro haviam saído da própria ralé e que como Cecil Rhodes não acreditavam tanto nos lucros como na expansão por amor à expansão42 Os financistas na maioria judeus representantes apenas e não donos do capital supérfluo não tinham nem a necessária influência política nem o poder econômico suficiente para introduzir alvos políticos e o uso de violência no que era especulação e jogo É fora de dúvida que os financistas embora não constituíssem o fator decisivo do imperialismo foram no início os seus notáveis representantes43 Haviam tirado proveito da superprodução de capital e da completa reversão de valores econômicos e morais que a acompanhou As transações de bens e os lucros da produção foram substituídos pelas transações de capital em escala sem precedentes Isso teria sido suficiente para lhes dar uma posição importante acresce que os lucros do investimento em países estrangeiros aumentavam muito mais rapidamente que os lucros do comércio de sorte que os comerciantes e mercadores cederam sua primazia ao financista44 A principal característica econômica do financista está em que ele não recebe o seu lucro nem da produção nem da exploração nem da troca de mercadorias nem da operação bancária comum mas apenas da comissão Isso é importante em nosso con 41 Isso se deveu em grande parte aos métodos de Alfred Beit que havia chegado em 1875 para comprar diamantes para uma firma de Hamburgo Até então somente especuladores haviam sido acionistas das companhias de mineração O método de Beit atraiu também o investidor genuíno Emden op cit 42 A esse respeito é muito típica a atitude de Barnato no caso da fusão de seu negócio com o grupo de Rhodes Para Barnato a fusão nada mais era que uma transação financeira para ganhar dinheiro Queria portanto que a companhia nada tivesse a ver com a política Mas Rhodes não era um simples homem de negócios ibid 43 Ver capítulo 5 notas 34 e 35 44 O aumento dos lucros dos investimentos estrangeiros e um relativo declínio dos lucros com o comércio exterior caracterizam o lado econômico do imperialismo Em 1899 estimavase que todo o comércio exterior e colonial da Grã Bretanha lhe havia proporcionado uma renda de 18 milhões de libras enquanto no mesmo ano os lucros provenientes dos investimentos estrangeiros foram de 90 a 100 milhões de libras Ver J A Hobson Imperialism Londres 1938 pp 53 ss É óbvio que o investimento exigia uma política de longo alcance muito mais consciente do que o simples comércio 231 texto porque lhe dá aquele caráter de irrealidade de existência fantasma de futilidade que é essencial mesmo numa economia normal e que são fatores típicos de tantos fatos que ocorreram na Ãfrica do Sul Os financistas certamente não exploravam ninguém e o que menos controlavam era o desenrolar dos seus negócios viessem estes a ser simples falcatruas ou sólidos investimentos tardiamente confirmados É significativo também que foi precisamente o elemento mais baixo do povo judeu que virou financista É verdade que a descoberta do ouro na Ãfrica do Sul coincidira com os primeiros pogroms na Rússia de modo que algumas levas de judeus começaram a emigrar da Rússia para a Ãfrica do Sul Sua importância porém entre as hordas internacionais de desesperados e de caçadores de fortuna teria sido quase nula se um punhado de financistas judeus não houvesse chegado lá antes interessandose por aqueles correligionários recémchegados na medida em que pudessem representálos entre a população Os financistas judeus vieram de quase todos os países da Europa onde eram em termos de classe tão supérfluos quanto os outros imigrantes sulafricanos Eram muito diferentes das poucas famílias estabelecidas de notáveis judeus cuja influência havia decrescido rapidamente depois de 1820 e em cujo meio não poderiam mais ser assimilados Pertenciam àquela nova casta de financistas judeus que a partir da década dos 70 do século XIX encontramos em todas as capitais européias aonde tinham ido geralmente após deixar seus países de origem para tentar a sorte no jogo das bolsas de valores internacionais Foi o que fizeram em toda parte para a consternação das tradicionais famílias judias cuja influência não era suficiente para pôr paradeiro à falta de escrúpulo dos recémchegados Assim esses judeus tradicionais principalmente banqueiros se davam por felizes quando os recémchegados transferiam para o ultramar o seu campo de atividades Em outras palavras os financistas judeus haviam se tornado tão supérfluos na atividade bancária judaica normal quanto a riqueza que representavam era supérflua no empreendimento industrial legítimo e como eram supérfluos os caçadores de fortuna no mundo da mãodeobra legítima Na própria Ãfrica do Sul onde o comerciante logo perderia a sua posição na economia do país para o financista os recémchegados os Barnatos os Beits os Sammy Marks alijaram os colonos judeus mais antigos muito mais facilmente que na Europa45 Na Ãfrica do Sul embora em nenhum outro país eles foram o terceiro fator da aliança inicial entre o capital e a ralé em grande parte foram responsáveis pela dinamização dessa aliança dirigiram o influxo de capital e o seu investimento em minas de ouro e diamantes e logo se tornaram mais conspícuos do que todos os outros 45 Os primeiros colonos judeus da Ãfrica do Sul no século XVIII e na primeira metade do século XIX eram aventureiros negociantes e mercadores seguiramnos na segunda metade entre os quais os mais proeminentes dedicaramse a indústrias como a pesca e a caça de focas e baleias os irmãos De Pass e criação de avestruzes a família Mosenthal Mais tarde foram praticamente forçados a entrarem nas indústrias de diamantes de Kimberley onde contudo nunca atingiram a proeminência dos Barnato e Beit 232 A origem judaica acrescentava uma qualidade indefinível ao papel dos financistas uma ausência de pátria e de raízes que introduzia um elemento de mistério e simbolizava o que estava acontecendo Além disso as conexões internacionais estimulavam as ilusões populares relativas ao poder político dos judeus no mundo É fácil compreender que as fantásticas noções de um secreto poder judeu internacional noções que resultaram originalmente da intimidade entre o capital bancário judeu e a esfera de negócios do Estado tenham se tornado mais virulentas na Ãfrica do Sul do que no continente europeu Aqui pela primeira vez os judeus se viam em meio a uma sociedade racial e foram quase automaticamente escolhidos pelos bôeres entre todos os demais brancos para objeto de ódio especial como raça diferente a encarnar um princípio diabólico introduzido no mundo normal de pretos e brancos A violência desse ódio era em parte devida à suspeita de que os judeus com a sua pretensão messiânica mais antiga e mais autêntica dificilmente aceitariam a idéia de serem os bôeres um povo eleito por Deus O cristianismo simplesmente rejeitava essa idéia mas o judaísmo surgia como uma ameaça ideológica e um rival direto na área messiânica Muito antes que os nazistas promovessem conscientemente um movimento antisemita na Ãfrica do Sul a questão racial já tomara conta do conflito entre os estrangeiros e os bôeres sob a forma do antisemitismo46 apesar de a importância dos judeus na economia aurífera e diamantífera sulafricana não ter sobrevivido ao fim do século XIX Logo que as indústrias de ouro e diamantes atingiram o estágio de desenvolvimento imperialista em que os acionistas exigem a proteção política de seus governos verificouse que os judeus não podiam conservar a sua importante posição econômica Não tinham governo nacional a que apelar e a sua posição na sociedade sulafricana era tão insegura que para eles estava em jogo muito mais que a simples perda de influência Só podiam garantir a segurança econômica e a fixação permanente na Ãfrica do Sul da qual necessitavam mais que qualquer outro grupo de uitlanders se galgassem alguma posição na sociedade o que no caso significava admissão aos exclusivos clubes ingleses Foram forçados a trocar a sua influência pela posição de cavalheiros como disse Cecil Rhodes ao comprar sua admissão ao Barnato Diamond Trust depois de haver fundido sua De Beers Company com a companhia de Alfred Beist47 Mas esses judeus tinham mais a oferecer que o simples poder econômico foi graças a eles que Cecil Rhodes tão recémchegado e tão aventureiro quanto eles foi finalmente aceito no respeitável mundo bancário da Inglaterra com o qual afinal de contas os judeus mantinham relações melhores do que ninguém48 Nenhum 46 Ernst Schultze Die Judenfrage in SüdAfrika A questão judaica na Ãfrica do Sul em Der Weltkampf outubro de 1938 vol XV n 178 47 Barnato vendeu suas ações a Rhodes para ser apresentado ao Kimberley Club Não se trata de mera transação financeira Rhodes teria dito a Barnato pretendo fazer de você um cavalheiro Barnato desfrutou sua vida de cavalheiro durante oito anos depois suicidouse Ver Millin op cit pp 1485 48 A passagem de um judeu no caso Alfreid Beit de Hamburgo para outro era fácil Rhodes foi à Inglaterra para ver lorde Rothschild e lorde Rothschild o aprovou ibid 233 dos bancos ingleses teria emprestado um único xelim pela segurança das ações do ouro Foi a confiança ilimitada dos homens do diamante de Kimberley que operou como um magneto sobre seus correligionários em casa49 A corrida do ouro só se tornou empresa capitalista completa depois que Cecil Rhodes desapossou os judeus transferiu a política de investimentos das mãos da Inglaterra para as suas próprias e se tornou a principal figura do Cabo Setenta e cinco por cento dos dividendos pagos aos acionistas iam para o exterior em sua maioria para a GrãBretanha Rhodes conseguiu que o governo britânico se interessasse por seus negócios pessoais persuadiuo de que a expansão e a exportação dos instrumentos de violência eram necessárias para proteger os investimentos e de que tal política era um dever sagrado de qualquer governo nacional Por outro lado introduziu no próprio Cabo aquela política econômica tipicamente imperialista de desprezo a qualquer empreendimento industrial que não pertencesse a acionistas ausentes de modo que ao final não apenas as companhias de mineração mas o próprio governo desencorajavam a exploração de abundantes jazidas de metais nãopreciosos e a produção de bens de consumo50 Dando início a essa política Rhodes introduziu o fato mais poderoso para a eventual pacificação dos bôeres desprezar toda empresa industrial autêntica era a mais forte garantia de evitar a normal evolução capitalista e portanto a morte natural de uma sociedade racista Os bôeres levaram várias décadas para entender que não precisavam temer o imperialismo porquanto este nem desenvolveria o país como a Austrália e o Canadá haviam sido desenvolvidos nem tiraria proveito do país como um todo contentandose apenas com um alto rodízio de investimentos num campo específico Assim o imperialismo estava disposto a abandonar as chamadas leis da produção capitalista e suas tendências igualitárias contanto que fossem assegurados os lucros de investimentos específicos Isso levou por fim à abolição da lei da simples rentabilidade e a Ãfrica do Sul tornouse o primeiro exemplo do fenômeno que ocorre quando a ralé passa a ser o fator dominante na aliança que mantém com o capital Num plano particular o mais importante de todos os bôeres permaneceram donos incontestes do país sempre que as normas racionais do trabalho e da produção entravam em conflito com os interesses raciais estes últimos saíam vitoriosos Os lucros eram constantemente sacrificados às exigências da sociedade racista muitas vezes a um preço enorme A rentabilidade das estradas de ferro foi destruída da noite para o dia quando o governo despediu 49 Emden op cit 50 A Ãfrica do Sul concentrava na produção do ouro quase toda a sua energia industrial dos tempos de paz O investidor médio empregava o seu dinheiro no ouro porque este lhe proporcionava lucros maiores e mais rápidos Mas a África do Sul tem também tremendos depósitos de minério de ferro cobre asbestos manganês estanho chumbo platina cromo mica e grafite Essas indústrias juntamente com as minas de carvão e a meia dúzia de fábricas que produziam artigos de consumo eram chamadas de indústrias secundárias O público investidor tinha por elas um interesse limitado E o desenvolvimento dessas indústrias secundárias era desencorajado pelas companhias de mineração de ouro e em grande parte pelo governo James op cit p 333 234 17 mil empregados bantus para pagar aos brancos salários que eram 200 mais altos51 as despesas do governo municipal tornaramse proibitivas quando os empregados municipais nativos foram substituídos por brancos e finalmente a Lei da Barreira de Cor excluiu das tarefas mecânicas todo trabalhador negro levando a empresa industrial a um tremendo aumento em seus custos de produção O mundo racista dos bôeres não tinha mais a quem temer e menos ainda os trabalhadores brancos cujos sindicatos queixavamse amargamente de que a Lei da Barreira de Cor não tinha ido suficientemente longe52 à primeira vista é surpreendente que um violento antisemitismo tenha sobrevivido aos financistas judeus e à bemsucedida doutrinação racista de toda a população européia já que os próprios judeus certamente ajustaramse ao racismo tão bem quanto quaisquer outros e a sua conduta em relação aos negros era irrepreensível em termos da África do Sul53 Não obstante sem o pressentir os judeus tinham quebrado uma das mais fortes tradições do país O primeiro sintoma de sua conduta anormal surgiu logo depois que os financistas judeus perderam sua posição nas indústrias do ouro e do diamante Em vez de deixarem o país instalaramse permanentemente54 o que constituía uma atitude nova para um grupo branco já que não faziam parte nem da aristocracia branca da Ãfrica nem do pobre lixo branco Em lugar disso passaram quase imediatamente a fundar indústrias e ingressar em profissões que de acordo com a opinião sulafricana eram secundárias porque não se relacionavam com o ouro55 Os judeus se tornaram fabricantes de móveis e de roupas lojistas e profissionais liberais médicos advogados e jornalistas Em outras palavras por mais que julgassem haverse adaptado às condições da ralé do país e à sua atitude racial os judeus acabaram violando a sua norma mais importante ao introduzirem na economia sulafricana um fator de normalidade e produtividade com o resultado de que quando o sr Malan apresentou ao 51 James op cit pp 1112 O governo achou que esse era um bom exemplo para os empregadores privados e a opinião pública logo forçou mudanças nas políticas de contratação de muitos empregadores 52 James op cit p 108 53 Aqui mais uma vez uma diferença nítida entre os primeiros imigrantes e os financistas pode ser identificada até o fim do século XIX Saul Salomon por exemplo um amigo dos negros e membro do Parlamento do Cabo descendia de uma família que se estabelecera na Ãfrica do Sul no início do século XIX Emden op cit 54 Entre 1924 e 1930 12319 judeus imigraram para a África do Sul enquanto apenas 491 deixaram o país São algarismos muito surpreendentes quando se considera que a imigração total no mesmo período após a dedução de emigrantes foi de 14241 pessoas Ver Schultze op cit Se compararmos estes algarismos com os dados de imigração nota 6 vêse que os judeus constituíram perto de um terço de toda a imigração da África do Sul nos anos 20 e que eles em grande contraste com todas as outras categorias de uitlanders ficaram lá permanentemente 55 Líderes nacionalistas africânderes deploraram o fato de que existem 102 mil judeus na União a maioria deles são escriturados empregados industriais lojistas ou profissionais livres Os judeus contribuíram em muito para as indústrias secundárias da Ãfrica do Sul isto é indústrias que não as de mineração de ouro e diamantes concentrandose especialmente na fabricação de roupas e de móveis James op cit p 46 235 Parlamento um projeto de lei para expulsar todos os judeus da União teve o apoio entusiástico de todos os brancos pobres e de toda a população af ricânderx Essa mudança de função econômica dos judeus sulafricanos e a sua transformação de nebulosas personagens do sombrio mundo do ouro e da raça na única parte produtiva da população veio como tardia confirmação dos antigos receios do bôeres Eles odiavam os judeus não tanto como intermediários da riqueza supérflua ou representantes do mundo do ouro haviamnos odiado e desprezado como a própria imagem dos uitlanders que procurariam transformar o país em mais uma área produtiva da civilização ocidental e cuja motivação de lucro ameaçaria mortalmente o mundo fantasma da raça E quando os judeus foram finalmente afastados do negócio do ouro e não puderam deixar o país como o teriam feito quaisquer outros estrangeiros nas mesmas condições mas se dedicaram a indústrias secundárias ficou patente que os bôeres tinham razão Os judeus inteiramente sozinhos e sem constituírem reflexo de ninguém ou de coisa alguma haviam se tornado verdadeira ameaça à sociedade racista Assim os judeus concentraram contra si as hostilidades de todos os que acreditam em raça e em ouro ou seja de quase toda a população européia da África do Sul Contudo não podem e não querem unir a sua causa à do único outro grupo que lenta e gradualmente está se libertando da sociedade racial os trabalhadores negros que se tornam cada vez mais conscientes de sua humanidade exatamente sob o impacto do trabalho industrial e da vida urbana Embora esses negros em contraste com os brancos tenham uma origem racial genuína não fizeram da raça um fetiche e a abolição da sociedade racista significa somente a promessa de sua libertação Em contraste com os nazistas para os quais o racismo e o antisemitismo foram armas políticas importantes para a destruição da civilização e para o estabelecimento de uma nova estrutura o racismo e o antisemitismo da África do Sul são conseqüências naturais do status quo Não precisaram do nazismo para nascer e só indiretamente influenciaram o nazismo Não obstante a sociedade racista da África do Sul teve efeitos de bumerangue sobre a conduta dos povos europeus em conseqüência da importação da barata mãodeobra indiana e chinesa pela África do Sul verificouse uma mudança de atitude também em relação aos nativos na Ásia quando pela primeira vez as pessoas de cor passaram a ser tratadas quase do mesmo modo como os assustados europeus tratavam os selvagens africanos57 Mas dessa vez não havia desculpas ou razões logicamente compreensíveis para que tratassem indianos e chineses como se não fossem seres humanos De certo modo o verdadeiro crime nasceu nesse momento pois agora o homem branco não tinha motivos para 56 Wdpp678 57 Mais de 100 mil coolies trabalhadores nãoespecializados indianos foram importados no século XIX para as plantações de canadeaçúcar situadas na província de Natal Foram seguidos por trabalhadores chineses nas minas que eram cerca de 55 mil em 1907 Em 1910 o governo britânico ordenou o repatriamento de todos os trabalhadores chineses das minas e em 1913 proibiu a imigração de indianos e de outros povos da Ãsia Em 1931 142 mil asiáticos que ainda viviam na União eram tratados como nativos africanos Ver também Schultze op cit 236 ignorar o que estava fazendo É certo que na Ásia a noção de raça foi ligeiramente modificada estirpes superiores e inferiores ainda indicavam uma diferença de grau e uma possibilidade de evolução idéia que de certa forma escapava ao conceito de duas espécies animais inteiramente diferentes Por outro lado como o princípio racial suplantava a noção de povos estrangeiros e exóticos na Ãsia tornouse uma arma que com relação a eles foi aplicada muito mais conscientemente para o domínio e para a exploração do que na África De significado menos imediato mas de maior importância para os governos totalitários foi outra experiência da sociedade racista da África a motivação do lucro não é algo sagrado e pode ser suplantada as sociedades podem funcionar segundo princípios nãoeconômicos e tais circunstâncias podem favorecer aqueles que nas condições de produção racional e de sistema capitalista seriam subprivilegiados A sociedade racista da África do Sul ensinou à ralé a grande lição da qual sempre tivera uma noção confusa de que por meio de mera violência um grupo subprivilegiado podia criar uma classe ainda inferior a si próprio que para isso não era necessária uma revolução mas bastava que ele se unisse aos grupos das classes dominantes e que os povos estrangeiros ou atrasados ofereciam as melhores oportunidades para o emprego dessas táticas Os primeiros a perceber todo o impacto da experiência africana foram os líderes da ralé como Carl Peters que se julgavam legitimamente pertencentes à raça de senhores As possessões coloniais africanas tornaramse o solo mais fértil para que florescesse o grupo que viria a ser mais tarde a elite nazista Viram ali como era possível transformar povos em raças e como pelo simples fato de tomarem a iniciativa desse processo podiam elevar o seu próprio povo à posição de raça dominante A África serviu para curálos da ilusão de que o processo histórico é necessariamente progresssista pois se o destino dos antigos colonos era a marcha em alguma direção os holandeses na África do Sul fugiam de toda direção e não deixaram de conquistar a hegemonia58 e se a história econômica havia ensinado que o homem progredira gradualmente do estágio da caça à condição de pastores e finalmente à vida sedentária e agrícola a história dos bôeres demonstrava claramente que também era possível vir de uma terra que fora a pioneira da agricultura próspera e intensiva e gradualmente voltar a ser pastor e caçador59 Esses líderes compreendiam muito bem que precisamente por terem descido ao nível das tribos selvagens os bôeres eram agora seus senhores absolutos Conscientes disso estavam perfeitamente dispostos a pagar o preço necessário a retroceder ao nível de uma organização racista desde que com isso pudessem conseguir o domínio de outras raças E sabiam pelo contato com indivíduos dos quatro cantos do mundo que acorreram à África do Sul que toda a ralé do mundo ocidental civilizado estaria com eles60 58 Barnes op cit p 13 59 Kiewiet op cit p 13 60 Quando os economistas declararam que salários mais altos eram uma forma de subvenção e que o trabalho protegido era antieconômico respondeuse que o sacrifício seria benéfico 237 3 O CARÁTER IMPERIALISTA Dos dois principais mecanismos políticos do domínio imperialista a raça foi descoberta na África do Sul e a burocracia na Argélia Egito e índia a primeira foi inicialmente a reação quase inconsciente diante de tribos cuja humanidade atemorizava e envergonhava o homem europeu enquanto a segunda resultou da aplicação de princípios administrativos através dos quais os europeus haviam tentado dominar povos estrangeiros considerados inferiores e carentes de sua proteção especial Em outras palavras a raça foi a fuga para a irresponsabilidade desprovida de qualquer aspecto humano e a burocracia foi a conseqüência da tentativa de assumir uma responsabilidade que na verdade nenhum homem pode assumir por outro homem e nenhum povo por outro povo O exagerado senso de responsabilidade dos administradores britânicos da índia que sucederam os trangressores da lei de Burke resultava do fato de que o Império Britânico havia sido adquirido num momento de descuido Assim aqueles que se defrontavam com o fato consumado e com a tarefa de conservar aquilo que haviam herdado acidentalmente tinham de encontrar uma interpretação que transformasse o acaso em ato consciente Desde os tempos antigos as lendas servem para alterar fatos históricos dessa natureza e as lendas fabricadas pelos intelectuais britânicos tiveram um papel decisivo na formação do burocrata e do agente secreto dos serviços ingleses As lendas sempre influenciaram fortemente a feitura da história O homem que não tem o poder de modificar o passado que herda as ações alheias sem consulta prévia e sente o peso da responsabilidade resultante de uma série infinita de acasos e não de atos conscientes exige uma explicação e uma interpretação do passado onde parece esconderse a misteriosa chave do seu destino futuro As lendas foram o alicerce espiritual dos povos antigos uma promessa de guia seguro para a vastidão do amanhã Sem jamais relatar fielmente os fatos mas expressando sempre o seu verdadeiro significado oferecem uma verdade que transcende a realidade uma lembrança além da memória As explicações lendárias da história sempre serviram como tardias correções de fatos e eventos reais necessárias precisamente porque a própria história iria responsabilizar o homem por atos que ele não havia cometido e por conseqüências que não tinha previsto A veracidade das lendas antigas aquilo que lhes empresta uma fascinante atualidade muitos séculos após a destruição das cidades impérios e povos a que serviram estava na forma a que eram redu se os elementos menos afortunados da população branca finalmente encontrassem um lugar seguro na vida moderna Mas não tem sido apenas na Ãfrica do Sul que a voz do economista convencional não é mais ouvida desde o fim da Grande Guerra Numa geração que viu a Inglaterra abandonar o livre comércio a América deixar o padrãoouro o Terceiro Reich abraçar a autarquia a insistência da Ãfrica do Sul em que sua vida econômica se organize de forma a assegurar a posição dominante da raça branca não está realmente fora de lugar Kiewiet op cit pp 224 e225 238 zidos os fatos passados para ajustálos à condição humana em geral e a determinadas aspirações políticas em particular Somente através das narrativas francamente inventadas o homem consentia em assumir a responsabilidade pelos acontecimentos e em considerar os eventos passados como o seu passado As lendas davamlhe o domínio sobre o que não fora obra sua e a capacidade de lidar com o que não podia desfazer Nesse sentido as lendas não são apenas as primeiras lembranças da humanidade mas também o verdadeiro começo da história humana O florescimento das lendas históricas e políticas terminou de modo bastante abrupto após o nascimento do cristianismo A interpretação cristã da história desde os tempos de Adão até o Juízo Final como uma estrada única para a redenção e a salvação ofereceu a mais poderosa e completa explicação lendária do destino humano Somente depois que a unidade espiritual dos povos cristãos cedeu à pluralidade das nações quando a estrada da salvação tornouse um artigo incerto da fé individual e não mais a teoria universal aplicável a todos os casos é que surgiram novos tipos de explicações históricas O século XIX ofereceunos o curioso espetáculo do nascimento quase simultâneo das mais diversas e contraditórias ideologias cada uma das quais pretendia conhecer a verdade a respeito de fatos que de outra forma seriam incompreensíveis As lendas porém não são ideologias não visam a explicações universais interessamse por fatos concretos Parecenos bastante significativo que o surgimento de estruturas nacionais não tenha em parte alguma sido reforçado por lendas que legitimassem a sua fundação e que somente quando era óbvio o declínio da entidade nacional e quando o imperialismo parecia substituir o nacionalismo antiquado surgisse a lenda do imperialismo O autor da lenda imperialista é Rudyard Kipling seu tema é o Império Britânico seu resultado é o homem imperialista o imperialismo foi a única escola formadora de caráter na política moderna E embora a lenda do Império Britânico tenha pouco a ver com as realidades do imperialismo inglês conseguiu levar para os serviços do Império por força ou por ilusão os melhores filhos da Inglaterra Pois as lendas atraem a elite como as ideologias atraem os homens comuns e como as descrições de terríveis forças ocultas atraem a ralé e a escória Nenhuma estrutura política é mais evocativa de lendas e justificações que o Império Britânico ou o povo inglês que passava de consciente fundador de colônias a dominador de povos estrangeiros em todo o mundo A lenda da fundação contada por Kipling começa com a realidade fundamental do povo das Ilhas Britânicas61 Cercados pelo mar necessitam do auxílio dos três elementos Ãgua Vento e Sol e o obtêm com a invenção do Navio O navio tornou possível a sempre perigosa aliança com os elementos e fez do inglês o senhor do mundo Conquistarás o mundo diz Kipling sem que ninguém se importe como conservarás o mundo em teu poder sem que ninguém saiba como e levarás o mundo em tuas costas sem que ninguém se aperceba como Mas nem tu nem teus filhos ganharão coisa alguma por esse 61 Rudyard Kipling The first sailor em Humorous tales 1891 239 pequeno feito a não ser os Quatro Dons um do Mar um do Vento um do Sol e um do Navio que te leva Pois conquistando o mundo e conservando o mundo e levando o mundo às tuas costas na terra no mar ou no ar os teus filhos terão sempre Quatro Dons Serão intelectualmente astutos macios no falar e terão a mão pesada terrivelmente pesada e estarão sempre um pouco a barlavento do inimigo para que possam salvaguardar os que cruzam os mares para fins lícitos O que torna essa pequena história de The first sailor tão próxima das antigas lendas de fundação é o fato de apresentar o povo britânico como o único politicamente amadurecido e preocupado com a lei e encarregado do bemestar do mundo em meio aos bárbaros que não sabem nem querem saber o que faz o mundo girar Infelizmente da história de Kipling não emana a verdade inata das lendas antigas o mundo se importava e sabia e viu como eles fizeram tudo e nenhuma lenda podia jamais convencer a ninguém que os ingleses não haviam ganho coisa alguma com aquele pequeno feito Existia contudo uma certa realidade na própria Inglaterra que correspondia à lenda de Kipling e que a tornara possível a existência de virtudes como cavalheirismo nobreza bravura embora completamente deslocadas numa realidade política dominada por Cecil Rhodes ou por lorde Curzon símbolos de um mundo e de um tipo de domínio O racismo e a hipocrisia escondida na definição do fardo do homem branco não impediram que alguns dos melhores homens da Inglaterra a aceitassem seriamente transformandose em trágicos e quixotescos bobos do imperialismo Existe na Inglaterra outra tradição menos óbvia do que a tradição da hipocrisia que poderíamos chamar de tradição de matadoresdedragões São os que partem entusiasmados para países distantes e exóticos ao encontro de povos estranhos e ingênuos para matar os numerosos dragões que os atormentam há séculos Há uma boa dose de verdade na outra história de Kipling The tomb of his ancestors62 na qual a família Chinn serve a índia geração após geração como uma fileira de golfinhos a cruzar o mar aberto Matam o cervo que devora a plantação do pobre a quem ensinam os mistérios de métodos agrícolas melhores livrandoo de algumas superstições em que crê trucidam leões e tigres e sua única recompensa é um túmulo de ancestrais e uma lenda familiar aceita por toda a tribo indiana segundo a qual o respeitado ancestral tem o seu próprio tigre um tigre de sela que ele monta para andar pelo mato sempre que tem vontade Infelizmente esses passeios são sinal certo de guerra ou peste ou ou de algo que no caso do conto revelase ser sinal de vacina De modo que Chinn o Moço subalterno sem importância na hierarquia do Exército mas de suma importância para os indianos tem de matar a montaria do seu ancestral para que o povo possa ser vacinado sem medo de guerras ou peste ou algo Se levarmos em conta a vida moderna os Chinn são realmente mais afortunados que a maioria Têm a sorte de nascer para uma carreira que 62 Em The dayswork 1898 240 suave e naturalmente os leva a realizar os melhores sonhos da juventude Quando outros jovens têm de esquecer seus nobres sonhos eles se encontram na idade certa para transformálos em ação E quando se aposentam após trinta anos de serviço seu navio cruza com o carregamento de tropas que parte levando para o Oriente o filho que vai cumprir o dever da família de modo que o vigor da existência do velho Chinn como matadordedragão eleito pelo governo e pago pelo Exército pode ser transmitido à próxima geração E certo que o governo britânico recompensalhes os serviços mas não se sabe ao certo a quem terminam servindo É muito provável que sirvam realmente a essa tribo indiana geração após geração e é sem dúvida um consolo o fato de que pelo menos a própria tribo pensa assim Se os serviços superiores nada sabem dos estranhos deveres e aventuras do pequeno tenente Chinn e ignoram que ele é a reencarnação vitoriosa do seu avô isso dá à sua dupla vida onírica uma tranqüila base de realidade Ele simplesmente se sente à vontade nos dois mundos separados por muralhas à prova dágua e à prova de mexericos Nascido no coração da floresta mirrada e feroz e educado entre o seu próprio povo na Inglaterra pacata equilibrada e mal informada está pronto a viver permanentemente com dois povos e é bem entrosado e versado na tradição língua superstição e preconceitos de ambos De um momento para outro pode mudar de obediente e subalterno soldado de Sua Majestade para a excitante e nobre figura do mundo nativo protetor bemamado dos fracos e matadordedragões das velhas histórias Mas esses curiosos e quixotescos protetores dos fracos que desempenhavam seu papel por trás dos bastidores do domínio oficial britânico não eram tanto o produto da ingênua imaginação de um povo primitivo quanto de sonhos que encerravam as melhores tradições européias e cristãs mesmo quando estas já se haviam deteriorado na futilidade de ideais de infância Nenhum soldado de Sua Majestade nenhum oficial superior britânico podia ensinar aos nativos algo da grandeza do mundo ocidental só aqueles que nunca tinham podido desfazerse de seus ideais de infância e que portanto haviam se alistado nos serviços coloniais estavam à altura da tarefa O imperialismo era para eles somente uma oportunidade acidental de fugirem de uma sociedade na qual para crescer o homem tinha de esquecer sua mocidade Para a sociedade inglesa era um alívio vêlos partirem para países distantes circunstância que permitia que se tolerassem e até se estimulassem os ideais de infância no sistema de public schools internatos particulares os serviços coloniais levavamnos para longe da Inglaterra e evitavam que transformassem seus ideais infantis nas idéias maduras de um homem As terras estranhas e curiosas atraíram os melhores jovens da Inglaterra desde o fim do século XIX privaram sua sociedade dos elementos mais honestos e mais perigosos e garantiram uma certa conservação ou talvez petrificação da nobreza dos jovens que preservou e infantilizou os padrões morais do Ocidente Lorde Cromer secretário do vicerei e membro financeiro do governo préimperialista da Índia pertencia ainda à categoria dos matadoresdedragões 241 ingleses Guiado apenas pelo senso de sacrifício em relação às populações atrasadas e pelo senso de dever63 para com a glória da GrãBretanha que fez surgir uma classe de funcionários com o desejo e a capacidade de governar64 declinou em 1894 do posto de vicerei e recusou dez anos mais tarde o lugar de secretário de Estado dos Negócios Exteriores Em lugar de tais honrarias que teriam satisfeito a um homem de menor calibre tornouse o pouco conhecido mas todopoderoso cônsulgeral britânico no Egito de 1883 a 1907 Lá veio a ser o primeiro administrador imperialista certamente não inferior a nenhum dos que glorificaram a raça inglesa com os seus serviços65 e talvez o último a morrer com tranqüilo orgulho Let these sufficefor Britain s Meed No nobler price was ever won The blessings of a people freed The consciousness ofduty done66 Cromer foi para o Egito porque compreendia que o inglês que se esforça em conservar sua amada índia tem de ter um pé firme nas margens do Nilo67 O Egito para ele não passava de um meio para atingir um fim uma expansão necessária em prol da segurança da índia Sucedeu que quase ao mesmo tempo outro inglês assentou o pé no continente africano embora no extremo oposto e por motivos opostos Cecil Rhodes foi para a África do Sul e salvou a colônia do Cabo quando esta havia perdido toda a importância para a amada índia dos ingleses As idéias expansionistas de Rhodes eram muito mais avançadas que as do seu colega mais respeitável do norte para ele a expansão não precisava ser justificada por motivos sensatos como a necessidade de preservar o que já se possuía A expansão é tudo dizia e nesse sentido a índia a África do Sul e o Egito eram igualmente importantes ou desimportantes como degraus numa expansão a que só o tamanho da terra impunha limites Havia por certo um abismo entre Rhodes o vulgar megalômano e Cromer o culto homem do dever e do sacrifício contudo alcançaram resultados mais ou menos idênticos e foram igualmente responsáveis pelo Grande Jogo do segredo que não foi menos insano nem menos nocivo para a política do que o mundo fantasma das raças A principal semelhança entre o governo de Rhodes na África do Sul e o domino de Cromer no Egito era esta ambos olhavam os seus países não como fins mas simplesmente como meios para uma finalidade supostamente mais elevada Igualavamse portanto em sua indiferença e alheamento em sua genuína falta de interesse pelos súditos atitude tão distinta da crueldade e arbitrariedade dos déspotas nativos da Ãsia como da incúria exploradora dos conquistadores ou da anárquica e louca opressão de uma tribo por outra Assim 63 LawrenceJ Zetland Lord Crommer 1932 p 16 64 Lorde Cromer The government of subject races em Edinburgh Review janeiro de 1908 65 Lorde Curzon na inauguração da placa em memória de Cromer Ver Zetland op cit p 362 66 Que a Inglaterra se contente com este prêmio jamais outro mais nobre foi conseguido as bênçãos de um povo libertado a consciência do dever cumprido Citado de um longo poema de Cromer Ver Zetland op cit pp 178 67 De uma carta escrita por lorde Cromer em 1882 Ibid p 87 242 que Cromer começou a governar o Egito por amor à índia perdeu o seu papel de protetor de povos atrasados e já não podia crer sinceramente que a defesa do interesse pelas raças subjugadas é o principal fundamento de toda a estrutura imperial68 O alheamento passou a ser a atitude de todos os membros da administração britânica numa forma de governo mais perigosa que o despotismo e a arbitrariedade porque nem ao menos tolerava aquele último elo de ligação entre o déspota e seus súditos que eram o suborno e os presentes A própria integridade da administração britânica tornou seu governo mais desumano e mais inacessível aos seus súditos que o de qualquer dominador ou conquistador69 A integridade e o alheamento simbolizavam uma absoluta separação de interesses a ponto de nem poderem entrar em conflito Comparada a eles a exploração a corrupção ou a opressão parece salvaguardar a dignidade humana porque o explorador e o explorado o opressor e o oprimido o corruptor e o corrupto ainda vivem no mesmo mundo ainda têm objetivos comuns ainda se batem pela posse das mesmas coisas e era isso que o alheamento destruía E o pior era que o administrador alheado mal percebia ter inventado uma nova forma de governo acreditava realmente que a sua atitude era condicionada pelo contato forçado com pessoas que viviam num plano inferior Assim em vez de crer na sua superioridade individual com algum rastro de vaidade inofensiva sentiase como membro de uma nação que havia atingido um nível relativamente alto de civilização70 e portanto podia manter a sua posição por direito de nascimento independentemente de realizações pessoais A carreira de lorde Cromer é fascinante porque personifica o ponto de transição entre os antigos serviços coloniais e os serviços imperialistas Sua primeira reação às funções que desempenharia no Egito foi certa inquietude e preocupação com um estado de coisas que sem ser anexação era uma forma híbrida de governo à qual não se pode dar nome e para a qual não há precedente71 Em 1885 depois de dois anos de serviço ainda alimentava sérias dúvidas a respeito de um sistema no qual ele era normalmente o cônsulgeral inglês e na prática o governante do Egito e escreveu que um mecanismo altamente delicado cujo funcionamento eficaz depende muito do julgamento e da habilidade de alguns indivíduos pode ser justificado somente se pudermos ter sempre em vista a possibilidade de evacuação Se essa possibilidade se tornar tão remota a ponto de ser quase inexistente sernosá preferível acertar com as outras potências que assumiremos o governo do país garantindo sua dívida etc72 Não há dúvida de que Cromer tinha razão e que tanto a ocupação como a evacuação teriam normalizado aquele estado de 68 Lorde Cromer op cit 69 O suborno era talvez a instituição mais humana na trama de arame farpado da ordem russa Olgin ThesouloftheRussianrevolutiontioaYorí 1917 70 Zetland op cit p 89 71 De uma carta de lorde Cromer de 1884 Ibid p 117 72 Numa carta a lorde Granville membro do Partido Liberal em 1885 Ibid p 219 243 coisas Mas aquela forma híbrida de governo sem precedentes iria marcar todo o empreendimento imperialista de tal modo que algumas décadas depois ninguém se lembrava da sensata opinião de Cromer quanto a formas possíveis e impossíveis de governo da mesma maneira como foi esquecido o que lorde Selbourne percebera havia muito tempo quando disse que uma sociedade racista como modo de vida era um fenômeno sem precedentes Nada caracteriza melhor o estágio inicial do imperialismo do que a combinação dessas duas opiniões sobre as condições existentes na Ãfrica um modo de vida sem precedentes no sul e um governo sem precedentes no norte Nos anos que se seguiram Cromer reconciliouse com a forma híbrida de governo começou a justificá la em suas cartas e expôs a necessidade de um governo sem denominação e sem precedentes No fim da vida traçou em seu ensaio sobre O governo de raças dominadas as linhas mestras do que se pode chamar a filosofia do burocrata De início Cromer reconhecia que a influência pessoal sem qualquer tratado político escrito podia bastar para uma supervisão suficientemente eficaz dos negócios públicos73 nos países estrangeiros Esse tipo de influência informal era preferível a uma política bem definida porque podia ser alterada de um momento para outro e não envolvia necessariamente o governo inglês em caso de dificuldade Exigia um corpo de assistentes altamente treinados e dignos de confiança cuja lealdade e patriotismo não estivessem ligados à ambição e à vaidade pessoal e que teriam de renunciar até mesmo à aspiração tão humana de verem o nome que portavam associado às suas façanhas Sua maior paixão teria de ser o sigilo quanto menos se falar dos funcionários britânicos melhor 74e uma função por trás dos bastidores seu maior desprezo seria pela publicidade e por aqueles que a apreciavam O próprio Cromer caracterizavase em alto grau por todas estas qualidades nunca ficou mais furioso do que quando o tiraram do esconderijo quando a realidade que antes só uns poucos conheciam tornou se patente aos olhos de todos75 Seu orgulho era realmente permanecer mais ou menos oculto e puxar os cordões76 Em contrapartida e para que possa executar o seu trabalho o burocrata tem de se sentir a salvo de controles tanto de louvor como de reprovação de todas as instituições públicas seja o Parlamento os Departamentos Ingleses ou a imprensa Cada avanço da democracia ou mesmo o simples funcionamento das instituições democráticas existentes só pode tornarse uma ameaça pois é impossível governar um povo por intermédio de outro povo o povo da índia através do povo da Inglaterra77 A burocracia é sempre um governo de peritos de uma minoria experiente 73 De uma carta a lorde Rosebery em 1886 Ibid p 134 74 Ibid p 352 75 De uma carta a Lord Rosebery em 1893 Ibid pp 2045 76 Ibid p 192 77 De um discurso de Cromer no Parlamento após 1904 Ibid p 311 244 que tem de resistir da melhor forma possível à constante pressão da maioria inexperiente Todo povo é basicamente formado por uma maioria inexperiente e portanto não se lhe pode confiar um assunto tão altamente especializado como política e negócios públicos Além disso os burocratas não devem absolutamente ter idéias gerais a respeito de assuntos políticos seu patriotismo não deve desorientálos a ponto de acreditarem na virtude intrínseca dos princípios políticos do seu próprio país isto apenas resultaria numa vulgar aplicação imitativa desses princípios ao governo das populações atrasadas o que na opinião de Cromer era o principal defeito do sistema francês78 Ninguém jamais dirá que Cecil Rhodes sofria de falta de vaidade Segundo Jameson ele esperava ser lembrado durante pelo menos 4 mil anos No entanto a despeito de todo o seu apetite de autoglorificação teve a mesma idéia de governo sigiloso que o supermodesto lorde Cromer Extremamente dado a redigir testamentos Rhodes insistiu em todos eles no decorrer de duas décadas de vida pública em que o seu dinheiro deveria ser usado para fundar uma sociedade secreta que realizasse os seus planos sociedade que devia ser organizada como a de Loyola com o apoio da riqueza acumulada daqueles cuja aspiração é o desejo de fazer algo de sorte que eventualmente existiriam de 2 a 3 mil homens na flor da vida espalhados pelo mundo cada um dos quais levaria gravado na alma desde os anos mais tenros o sonho do fundador e além disso teriam sido especialmente matematicamente escolhidos para a finalidade prevista pelo Fundador79 Possuidor de visão mais larga que a de Cromer Rhodes abriu desde logo a sociedade a todos os membros da raça nórdica80 de sorte que o seu objetivo não era tanto a expansão ou a glória da GrãBretanha e a ocupação por ela de todo o continente africano da Terra Santa do vale do Eufrates das ilhas de Chipre e Creta de toda a América do Sul das ilhas do Pacífico de todo o arquipélago malaio dos litorais da China e do Japão e a recuperação final dos Estados Unidos81 quanto a expansão da raça nórdica a qual unida em sociedade secreta fundaria um governo burocrático para dominar todos os povos da terra O que venceu a monstruosa vaidade inata de Rhodes e o fez descobrir os atrativos do sigilo foi o mesmo que venceu o senso do dever inato de Cromer a descoberta de uma expansão que não era motivada pelo apetite específico por um país específico mas sim concebida como processo infindável no qual cada 78 No decorrer das negociações e considerações das normas administrativas para a anexação do Sudão Cromer insistiu em que o assunto fosse mantido fora da esfera de influência francesa fez isso porque sentia a mais completa falta de confiança no sistema administrativo francês aplicado às raças dominadas de uma carta a Salisbury em 1899 Ibid p 248 79 Rhodes escreveu seis testamentos o primeiro foi redigido em 1877 todos os quais mencionam a sociedade secreta Para maiores detalhes ver Basil Williams Cecil Rhodes Londres 1921 e Millin op cit pp 128 e 331 As citações são feitas por W T Stead 80 A sociedade secreta de Rhodes terminou sendo a mui respeitável Rhodes Scholarship Association à qual ainda hoje são admitidos só os ingleses e membros das demais raças nórdicas como alemães escandinavos e norte americanos 81 Basil Williams op cit p 51 245 país serviria de degrau para expansões futuras Diante de tal conceito o desejo de glória já não era saciado pelo glorioso triunfo sobre determinado povo nem o senso do dever era apaziguado pela consciência de determinados serviços ou pelo cumprimento de determinadas tarefas Não importam as qualidades ou defeitos individuais que um homem possa ter uma vez mergulhado no turbilhão de um processo expansionista sem limites cessa por assim dizer de ser o que era e obedece às leis do processo identificase com as forças anônimas a que deve servir para manter o processo em andamento concebe a si próprio como mera função e chega a ver nessa função nessa encarnação da tendência dinâmica a sua mais alta realização A essa altura como o próprio Rhodes foi suficientemente louco para dizer não pode realmente fazer nada errado e assim tudo o que fizer passa a ser certo Era seu dever fazer o que quisesse Sentiase como um deus nem mais nem menos82 Mas lorde Cromer apontou com sensatez o mesmo fenômeno homens que baixavam voluntariamente à condição de meros instrumentos ou meras funções quando chamou os burocratas de instrumentos de incomparável valor na execução da política do imperialismoM É óbvio que esses agentes secretos ou anônimos da força expansionista não tinham o menor senso de obediência às leis humanas A única lei que seguiam era a lei da expansão e a única prova de sua legalidade era o sucesso Tinham de estar perfeitamente dispostos a desaparecer no completo esquecimento em caso de fracasso sumir se por algum motivo deixassem de ser instrumentos de incomparável valor Enquanto alcançavam o sucesso a sensação de forças incorporadoras maiores do que eles próprios tornava relativamente fácil dispensar e mesmo desprezar o aplauso e a glorificação Eram monstros de presunção no sucesso e monstros de modéstia no fracasso Essa superstição de uma possível identificação mágica do homem com as forças da história está na base da burocracia como forma de governo e da definitiva substituição da lei por decretos provisórios e mutáveis Para tal estrutura política o ideal será sempre o homem que puxa os cordões da história por trás da cortina Cromer finalmente chegou a evitar todo instrumento escrito ou qualquer coisa tangível84 em suas relações com o Egito até mesmo uma proclamação de anexação para ter a liberdade de obedecer somente à lei da expansão sem se sujeitar a tratados redigidos por homens Do mesmo modo o burocrata evita toda lei geral e trata cada caso separadamente por meio de decreto porque a estabilidade da lei gera a ameaça de formar uma comunidade na qual ninguém pode vir a ser um deus porque todos têm de obedecêla As duas figuras centrais desse sistema cuja própria essência é o processo sem fim são de um lado o burocrata e do outro o agente secreto Enquanto serviam apenas o imperialismo britânico nem um nem outro chegaram a negar 82 Mfflinop cit p 92 83 Cromer op cit 84 De uma carta de lorde Cromer a lorde Rosebery em 1886 Zetland op cit p 134 246 que descendessem de matadoresdedragões e protetores dos fracos e portanto nunca levaram os regimes burocráticos aos seus naturais extremos Quase vinte anos depois da morte de Cromer um burocrata inglês sabia que os massacres administrativos podiam forçar a índia a permanecer parte do Império Britânico mas sabia também como era utópico tentar obter o apoio da administração em Londres para esse tipo de planos embora fossem bastante realistasK Lorde Curzon o vicerei da índia não mostrou nada da nobreza de Cromer e era produto bem típico de uma sociedade cada vez mais tendente a aceitar os padrões raciais da ralé se estes lhe fossem oferecidos sob a forma de esnobismo elegante86 Mas o esnobismo é incompatível com o fanatismo e portanto nunca é realmente eficaz O mesmo se aplica aos membros do Serviço Secreto Britânico Sua origem também é ilustre o que o matadordedragões era para o burocrata o aventureiro é para o agente secreto e também eles tinham o direito de reclamar sua lenda fundamental a lenda do Grande Jogo como é narrada em Kim por Rudyard Kipling Todo aventureiro sabe naturalmente o que Kipling queria dizer quando louvava Kim porque ele amava o jogo pelo próprio jogo Toda pessoa ainda capaz de admirarse ante este grande e maravilhoso mundo sabe que não é nenhum argumento contra o jogo o fato de que missionários e secretários de beneficências não podiam compreender a sua beleza E aqueles que julgam um pecado beijar a boca de uma branca e uma virtude beijar o sapato de um negro87 têm ainda menos razão de falar Uma vez que a própria vida afinal tem de ser vivida e amada pelo que é a aventura e o amor ao jogo pelo próprio jogo facilmente parecem simbolizar a vida de um modo intensamente humano É esse apaixonado senso de humanidade em Kim que faz dele o único romance da era imperialista no qual uma genuína fraternidade une as estirpes superiores e inferiores eKim um sahib e filho de um sahib pode legitimamente dizer nós quando fala de escravos encadeados todos puxados por uma corda só Esse nós expressão estranha na boca de um adepto do impe 85 O sistema indiano de governo por meio de relatórios era suspeito na Inglaterra Na Índia não havia julgamento por júri e todos os juizes eram servidores pagos da Coroa muitos dos quais podiam ser removidos à vontade Certos legisladores formais não viam com muito bons olhos o sucesso da experiência indiana Se diziam eles o despotismo e a burocracia funcionam tão bem na índia não virá isso a ser usado como argumento para a introdução do mesmo sistema aqui De qualquer modo o governo da índia sabia muito bem que teria de justificar a sua política perante a opinião pública da Inglaterra e também sabia que a opinião pública jamais toleraria a opressão A Carthill op cit pp 70 e 412 86 Harold Nicolson em seu Curzon the last phase 19191925 BostonNova York 1934 conta a seguinte história Por trás das linhas de combate em Flandres havia uma grande cervejaria em cujos toneis os soldados se banhavam ao regressar das trincheiras Levaram Curzon para assistir a essa dantesca exibição Ele olhou interessado aquela centena de corpos nus saracoteando nas nuvens de vaporOra esta exclamou não tinha a menor idéia que a gente das classes inferiores tivesse pele tão branca Curzon negava a autenticidade dessa história mas não obstante gostava dela pp 478 87 Carthill op cit p 88 247 rialismo tem mais conteúdo que o completo anonimato dos que se orgulham de não ter um nome mas apenas um número e uma letra mais que o orgulho comum de ter um preço sobre a cabeça O que os torna camaradas no perigo no medo na constante surpresa na completa ausência de tradição e na constante disposição de trocar de identidade é a experiência comum de serem símbolos da própria vida símbolos do que acontecia por toda a índia onde participavam de toda aquela vida no momento mesmo em que ela ocorria passando como um comboio que atravessa o Hind de ponta a ponta portanto não se sentiam sozinhos pessoas isoladas no meio de tudo aquilo enclausurados na limitação de sua própria individualidade e nacionalidade Jogando o Grande Jogo o homem pode sentir que vive a única vida que vale a pena porque se despe de tudo o que ainda pode ser considerado acessório A própria vida parece ficar para trás numa pureza fantasticamente intensa quando ele se liberta de todos os laços sociais comuns família ocupação regular objetivo definido ambições e o lugar numa comunidade à qual pertence por nascimento Só quando todos estão mortos é que o Grande Jogo acaba Não antes Só quando se morre é que a vida acaba e não antes não quando se vem a conseguir tudo o que se desejou O que faz o jogo tão perigosamente semelhante à própria vida é o fato de não ter um objetivo final A ausência de objetivos é exatamente o encanto da existência de Kim Não foi pela Inglaterra que ele aceitou os seus estranhos encargos nem pela índia nem por qualquer outra causa digna ou indigna Noções imperialistas como a expansão por amor à expansão ou o poder por amor ao poder poderiam tê lo contentado mas eram fórmulas que não o atraíam muito e ele certamente não as teria inventado Adotou o seu peculiar modo de vida de não perguntar a razão mas apenas agir ou morrer sem ao menos ter feito a primeira pergunta Foi tentado apenas pela interminabilidade do jogo e pelo segredo em si E o segredo também parece simbolizar o mistério básico da vida De certa forma não foi culpa dos aventureiros natos daqueles que por sua própria natureza viviam fora da sociedade e de todas as estruturas políticas terem encontrado no imperialismo um jogo político que era interminável por definição como iriam saber que na política jogos intermináveis só podem terminar em catástrofe e que o segredo político raramente termina em algo melhor que a vulgar duplicidade do espião O logro desses jogadores do Grande Jogo é que os seus patrões sabiam o que eles buscavam e usavam o seu amor pelo anonimato para fins de mera espionagem No entanto esse triunfo dos investidores famintos de lucro foi temporário foram logrados a seu turno quando algumas décadas depois enfrentaram os que jogavam o jogo do totalitarismo um jogo sem motivos ulteriores como o lucro e portanto jogado com eficiência tão mortal que devorou até mesmo aqueles que o financiaram Antes porém que isso acontecesse os imperialistas haviam destruído o melhor homem que em todos os tempos passou de aventureiro com uma forte dose de matadordedragões a agente secreto Lawrence da Arábia Nunca mais a experiência da política secreta foi levada a cabo de maneira mais pura 248 por um homem mais decente Lawrence fez sem medo a experiência em si próprio para depois retornar e acreditar que pertencia à geração perdida Julgou que isso aconteceu porque os velhos se ergueram de novo e nos roubaram a vitória para refazer o mundo à semelhança do mundo antigo que conheciam88 Na realidade os velhos foram bem ineficazes até nisso e entregaram sua vitória juntamente com o poder a outros homens da mesma geração perdida nem mais velhos que Lawrence nem muito diferentes dele A única diferença era que Lawrence ainda se apegava firmemente a uma moralidade que no entanto já havia perdido toda a sua base objetiva e não passava de cavalheirismo quixotesco Lawrence foi levado a tornarse agente secreto na Arábia pelo forte desejo de abandonar o mundo da respeitabilidade insípida cuja continuidade tornarase simplesmente sem sentido e por seu desgosto com o mundo e consigo mesmo O que mais o atraiu na civilização árabe foi o seu evangelho da pobreza que também parece incluir uma espécie de pobreza moral que se limpou completamente de seus deuses domésticos89 Depois que voltou para a civilização inglesa o que ele mais evitou foi viver uma vida própria de sorte que terminou alistandose de maneira aparentemente incompreensível como soldado raso do Exército britânico obviamente a única instituição onde a honra de um homem podia identificarse com a perda de sua personalidade individual Quando a deflagração da Primeira Guerra Mundial levou T E Lawrence ao Oriente Próximo com o encargo de fazer com que os árabes se rebelassem contra os dominadores turcos e lutassem ao lado dos ingleses ele se viu engolfado pelo Grande Jogo Só podia atingir o seu objetivo se um movimento nacional irrompesse entre as tribos árabes um movimento nacional destinado a servir ao imperialismo inglês Lawrence tinha de fingir que aquele movimento nacional árabe era o seu principal interesse e o fez tão bem que terminou acreditando nele Mas novamente se sentia deslocado não podia afinal de contas pensar como eles e assumir o seu caráter90 Fingindo ser árabe podia apenas perder sua natureza inglesa91 e o que o fascinou foi o completo segredo da anulação de si mesmo não se deixando enganar pela óbvia justificativa de um governo benevolente sobre um povo atrasado que lorde Cromer teria preferido Apenas uma geração mais velho e mais triste do que Cromer Lawrence encontrou profunda satisfação num papel que exigia um recondicionamento de toda a sua personalidade até que se adaptasse ao Grande Jogo até que se tornasse a encarnação da força do movimento nacional árabe até que perdesse toda vaidade natural em sua misteriosa aliança com forças necessariamente superiores a ele próprio por maior que ele fosse até que adquirisse um 88 T E Lawrence Seven pillars ofwisdom introdução primeira edição 1926 que foi omitida por conselho de George Bernard Shaw da edição posterior Ver T E Lawrence Letters editado por David Garnett Nova York 1939 pp 262 ss 89 De uma carta escrita em 1918 Letters p 224 90 T E Lawrence Seven pillars ofwisdom Garden City 1938 cap i 91 Ibid 249 mortal desprezo não pelos outros homens mas por tudo o que eles fazem por iniciativa própria e não em concerto com as forças da história Quando ao fim da guerra Lawrence teve de abandonar a falsa aparência do agente secreto e recuperar de algum modo a sua natureza inglesa92 viu com outros olhos o Ocidente e as suas convenções destruíram tudo para mim93 Do Grande Jogo de incalculável grandeza que nenhuma publicidade havia glorificado ou limitado e que o havia erigido em sua mocidade acima de reis e de primeirosministros porque ele os fizera ou se divertira com eles94 Lawrence voltou para casa com um desejo obsessivo de anonimato e com a profunda convicção de que jamais o satisfaria o que ainda pudesse fazer em sua vida Essa conclusão advinha de sua perfeita consciência de que a grandeza não tinha sido sua mas apenas do papel que havia eficientemente assumido que a sua grandeza havia sido o resultado do Jogo e não produto de si próprio Agora já não queria ser grande e decidido a não ser respeitável de novo curou se de vez de qualquer desejo de fazer algo por si mesmo95 Havia sido o fantasma de uma força e tornouse um fantasma entre os vivos quando lhe tiraram a força e a função O que ele buscava desesperadamente era outro papel a desempenhar e isso por sinal era a essência do jogo a respeito do qual George Bernard Shaw indagou com tanta bondade mas com tanta incompreensão como se a sua indagação viesse de outro século sem compreender por que um homem de tão grandes realizações não se mantinha à altura delas96 Somente outro papel outra função seria capaz de evitar que ele próprio e todo o mundo o identificasse com o que havia feito na Arábia que substituísse sua antiga natureza por uma nova personalidade Não queria tornarse Lawrence da Arábia uma vez que basicamente não queria retomar uma nova natureza após haver perdido a anterior Sua grandeza reside no fato de ter sido suficientemente arrebatado para recusar concessões baratas e saídas fáceis para a realidade e a respeitabilidade e de nunca haver perdido a consciência de que havia sido apenas uma função representado um papel e que portanto não devia beneficiarse de forma alguma pelo que havia feito na Arábia Recusou as honrarias que havia ganho Rejeitou os empregos oferecidos em virtude de sua repu 92 Como esse processo deve ter sido ambíguo e difícil é exemplificado pela seguinte ocorrência Lawrence havia aceito um convite para jantar no Claridge e depois para uma festa em casa da sra Harry Lindsay Deixou de ir ao jantar mas foi à festa vestido de árabe Isso aconteceu em 1919 Letters p 272 nota 1 93 Lawrence op cit cap I 94 Lawrence escreveu em 1929 Quem tivesse subido tão rápido como eu e tivesse visto como é por dentro o topo do mundo poderia muito bem perder suas aspirações e cansarse dos motivos comuns da ação que o impeliram até que alcançasse o topo Eu não era rei nem primeiroministro mas eu os fizera ou brincara com eles depois disso que mais poderia eu fazer Letters p 653 95 Ibid pp 244 447 450 Comparese especialmente a carta de 1918 p 244 com as duas cartas a George Bernard Shaw de 1923 p 447 e 1928 p 616 96 George Bernard Shaw ao perguntar a Lawrence em 1928 O que é que você pretende realmente sugeriu que não eram autênticos nem o seu papel no Exército nem o fato de ele estar procurando emprego como vigia noturno para o que podia conseguir boas referências 250 tação e recusouse a explorar seus sucessos escrevendo uma única contribuição jornalística remunerada sob o nome de Lawrence97 A história de T E Lawrence em toda a sua comovente amargura e grandeza não foi apenas a história de um funcionário pago ou espião assalariado mas precisamente a história de um autêntico agente ou funcionário de alguém que realmente acreditava haver penetrado ou ter sido atirado na correnteza da necessidade histórica e que se tornou funcionário ou agente das forças secretas que governam o mundo Eu havia empurrado o meu barco ao sabor da corrente eterna de modo que ele ia mais rápido que os que tentavam cortála ou ir contra ela No fim eu já não acreditava no movimento árabe mas achavao necessário em seu tempo e lugar98 Do mesmo modo como Cromer havia governado o Egito por causa da índia e Rhodes a África do Sul pela necessidade de expansão Lawrence havia agido para algum fim ulterior e imprevisível A única satisfação que podia derivar disso na falta da consciência tranqüila por alguma realização limitada advinha do próprio senso de haver funcionado de ter sido abraçado e dirigido por algum movimento grandioso De regresso a Londres desesperado procurava encontrar algum substituto para esse tipo de satisfação própria e só o achava na velocidade de uma motocicleta99 Embora Lawrence não houvesse ainda sucumbido ao fanatismo de uma ideologia de movimento provavelmente por ser demasiado educado para as superstições do seu tempo já havia experimentado aquele fascínio baseado no desespero de toda responsabilidade humana possível exercido pela corrente eterna e por seu eterno movimento Afogouse nessa corrente e dele nada restou senão certa decência inexplicável e o orgulho de se haver esforçado na direção certa Ainda não sei quanto valor tem o indivíduo muito acho eu se se esforçar na direção certa100 Eis portanto o fim do verdadeiro orgulho do homem ocidental que já não tem valor como um fim em si próprio que já não faz nada de si próprio nem tem a decência de ser ele mesmo101 dotando o mundo de leis e que só tem chance se se esforçar na direção certa em uníssono com as forças secretas da História e da necessidade das quais é mera função Quando a ralé européia descobriu a linda virtude que a pele branca podia ser na África102 quando o conquistador inglês da índia se tornou um administrador que já não acreditava na validez universal da lei mas em sua própria capacidade inata de governar e dominar quando os matadoresdedragões se transformaram em homens brancos de raças superiores ou em burocratas e espiões jogando o Grande Jogo de infindáveis motivos ulteriores num movimento sem fim quando os Serviços de Informações Britânicos espe 97 Garnett op cit p 264 98 Letters em 1930 p 693 99 èideml924p456 100 Ibid p 693 101 Lawrence op cit p 15 102 Millino cit p 15 251 cialmente depois da Primeira Guerra Mundial começaram a atrair os melhores filhos da Inglaterra que preferiam servir a forças misteriosas no mundo inteiro a servir o bem comum de seu país o cenário parecia estar pronto para todos os horrores possíveis Sob o nariz de todos estavam muitos dos elementos que reunidos podiam criar um governo totalitário à base do racismo Burocratas indianos propunham massacres administrativos enquanto funcionários africanos declaravam que nenhuma consideração ética tal como os Direitos do Homem poderá se opor ao domínio do homem branco Afortunadamente embora o governo imperialista britânico descesse a certo nível de vulgaridade a crueldade teve um papel secundário entre uma Grande Guerra e outra e sempre se preservou um mínimo de direitos humanos Foi essa moderação em meio à pura loucura que preparou o caminho para o que Churchill chamou de liquidação do Império de Sua Majestade e que podç vir a transformar a nação inglesa numa Comunidade de povos ingleses 103 Como disse sir Thomas Watt cidadão da África do Sul de origem inglesa Ver Barnes op cit p 230 252 4 O IMPERIALISMO CONTINENTAL OS MOVIMENTOS DE UNIFICAÇÃO O nazismo e o bolchevismo devem mais ao pangermanismo e ao paneslavismo respectivamente do que a qualquer outra ideologia ou movimento político Isso se torna mais evidente na política externa onde as estratégias da Alemanha nazista e da Rússia soviética seguiram tão de perto os programas de conquistas traçados antes e durante a Primeira Guerra Mundial por esses dois movimentos unificadores que certos objetivos totalitários são muitas vezes erradamente interpretados como interesses permanentes alemães ou russos Embora nem Hitler nem Stálin jamais reconhecessem o que deviam ao imperialismo quando elaboraram os seus métodos de domínio ambos confessaram sem hesitação o quanto deviam à ideologia dos movimentos de unificação e até que ponto imitavam os seus slogans1 O nascimento dos movimentos de unificação não coincidiu com o nascimento do imperialismo por volta de 1870 o paneslavismo já se havia libertado das vagas e confusas teorias dos eslavófilos2 e já em meados do século XIX o sentimento pangermânico era corrente na Áustria Contudo somente após a triunfal expansão imperialista das nações ocidentais nos anos 80 cristalizaramse em movimentos seduzindo a imaginação de camadas mais amplas As nações da Europa central e oriental que não tinham possessões coloniais e mal 1 Hitler escreveu em Mein Kampf Minha luta em Viena lancei as bases de um conceito do mundo em geral e um modo de pensamento político em particular que mais tarde tive apenas de completar em detalhe mas que depois nunca me abandonaram p 129 Stálin voltou aos slogans paneslavos durante a Segunda Guerra Mundial O Congresso PanEslavo de Sofia convocado pelos russos vitoriosos adotou uma resolução declarando ser não apenas uma necessidade política internacional mas uma necessidade moral declarar o russo a língua de comunicação geral e a língua oficial de todos os países eslavos Ver Aufbau Nova York 6 de abril de 1945 Pouco depois a rádio da Bulgária transmitiu uma mensagem do metropolita Stefan vigário do Santo Sínodo búlgaro na qual ele exortava o povo russo a lembrar a sua missão messiânica e profetizava a próxima unidade dos povos eslavos Em Politics janeiro de 1945 2 Para uma apresentação e discussão completa dos eslavófilos ver Alexandre Koyré La philosophie et le problème national en Russie au début du 19e siècle Institut Français de Leningrad vol X Paris 1929 253 podiam almejar a uma presença no ultramar decidiram então que tinham o mesmo direito à expansão que os outros grandes povos e que se não lhes fosse concedida essa possibilidade no alémmar seriam forçadas a fazêlo na Europa3 Pangermanistas e paneslavistas concordavam em que vivendo em Estados continentais e sendo povos continentais tinham de procurar colônias no continente4 e expandirse de modo geograficamente contínuo a partir de um determinado centro de poder5 que contra a idéia da Inglaterra expressa nas palavras Dominarei o mar está a idéia da Rússia expressa nas palavras Dominarei a terra6 e que mais cedo ou mais tarde a tremenda superioridade da terra sobre o mar e o significado maior do poder terrestre em relação ao poder marítimo se tornariam evidentes7 O imperialismo continental é mais importante quando comparado com o imperialismo de ultramar porque o seu conceito de expansão é amalgamador eliminando qualquer distância geográfica entre os métodos e instituições do colonizador e os do colonizado de modo que não foi preciso haver efeito de bumerangue para que as suas conseqüências fossem sentidas em toda a Europa O imperialismo continental de fato começa em casa8 Se compartilhava com o imperialismo ultramarino o desprezo pela estreiteza do Estadonação combatiao não tanto com argumentos econômicos que afinal de contas freqüenteis Ernst Hasse Deutsche Politik A política alemã vol 4 Die Zukunft des deutschen Volkstums O futuro do povo alemão 1907 p 132 4 Ibid vol 3 Deutsche Grenzpolitik A política fronteiriça da Alemanha pp 1678 As teorias geopolíticas dessa natureza eram correntes entre os membros da Liga Pangermânica Comparavam sempre as necessidades geopolíticas da Alemanha com as da Rússia Caracteristicamente os pangermanistas austríacos nunca fizeram tal paralelo 5 O escritor eslavófilo russo Danilewski cujo Rússia e Europa 1871 se tornou a obra padrão do paneslavismo louvava a capacidade política dos russos devido ao seu extraordinário Estado milenar que continua a crescer e cujo poder não se expande como o poder europeu de maneira colonial mas permanece sempre concentrado em torno do seu núcleo que é Moscou Ver K Staehlin Geschichte Russlands von den Anfàngen bis zur Gegenwart A história da Rússia desde os primórdios até o presente 192339 5 vol IV1 274 6 A citação é de Juliusz Slowacki publicista polonês que escrevia nos meados do século XIX Ver N O Lossky Three chapters from the history ofPolish Messianism Praga 1936 International Philosophical Library II 9 O paneslavismo o primeiro dos panismos ver Hoetzsch Russland Berlim 1913 p 349 expressou essas teorias geopolíticas quase quarenta anos antes que o pangermanismo começasse a pensar em continentes O contraste entre o poder naval inglês e o poder terrestre continental era tão conspícuo que seria desnecessário procurar por influências 7 ReismannGrone Ueberseepolitik oder Festlandspolitik Política ultramarina ou territorial 1905 Alldeutsche Flugschriften n 22 p 17 8 Ernst Hasse da Liga Pangermânica propôs que na Europa certas nacionalidades poloneses tchecos judeus italianos etc fossem tratadas do mesmo modo como o imperialismo de ultramar tratava os nativos em continentes nãoeuropeus Ver Deutsche Politik vol 1 Das Deutsche Reich ais Nationalstaat O Reich alemão como Estado nacional 1905 p 62 Essa é a principal diferença entre a Liga Pangermânica fundada em 1886 e as sociedades coloniais anteriores como a CentralVerein fur Handelsgeographie Associação Central para a Geografia Comercial fundada em 1863 Uma descrição muito fiel das atividades da Liga Pangermânica é feita por Mildred S Wertheimer The PanGerman League 189019141924 254 mente expressavam autênticas necessidades nacionais mas com a formulação da ampliada consciência tribal9 a qual segundo julgavam devia unir todos os povos de origem étnica semelhante independentemente da história ou do lugar em que residissem10 Destarte o imperialismo continental partiu de uma afinidade muito mais íntima com os conceitos raciais e absorveu com entusiasmo a tradição de ideologia racial11 Seus conceitos de raça eram exclusivamente ideológicos e se tornaram armas políticas muito mais rapidamente que teorias afins expressas por imperialistas ultramarinos com base na experiência autêntica Geralmente quando se debate o imperialismo prestase pouca atenção aos movimentos de unificação pangermânica e paneslava Os sonhos de impérios continentais foram eclipsados pelos resultados mais tangíveis da expansão no alémmar enquanto o desinteresse desses movimentos pela economia12 contrastava ridiculamente com os tremendos lucros conseguidos inicialmente pelo imperialismo ultramarino Ademais numa época em que quase todos acreditavam que política e economia eram mais ou menos a mesma coisa era fácil perder de vista as semelhanças entre os dois tipos de imperialismo um ultramarino de características aparentemente apenas econômicas outro continental de aspectos políticos Contudo os protagonistas dos movimentos de unificação compartilhavam com os imperialistas ocidentais o conhecimento das questões de política externa que haviam sido esquecidas pelos grupos dominantes mais antigos do Estadonação13 9 Emil Deckert Panlatinismus Panslavismus und Panteutonismus in ihrer Bedeutung fiir die politische Weltage Panlatinismo paneslavismo e pangermanismo e sua importância para a situação política do mundo Frankfurt a M 1914 p 4 10 Já antes da Primeira Guerra Mundial os pangermanistas falavam da diferença entre Staatsfremde pessoas de origem germânica que viviam sob a autoridade de um outro Estado e Volksfremde pessoas de origem nãogermânica que viviam na Alemanha Ver Daniel Frymann pseudônimo de Henrich Class Wenn ich der Kaiser wàr Politische Wahrheiten und Notwendigkeiten Se eu fosse Kaiser Verdades e necessidades políticas 1912 Quando a Áustria foi incorporada ao Terceiro Reich Hitler se dirigiu ao povo alemão da Áustria com slogans tipicamente pangermanistas Onde quer que tenhamos nascido somos todos filhos do povo alemão Hitlers speeches editados por N H Baynes 1942 II 1408 11 T G Masaryk futuro primeiro presidente da Tchecoslováquia independente 1918 em Zur russischen Geschichtes und Religionsphilosophie Da história e filosofia religiosa russa 1913 descreve o nacionalismo zoológico dos eslavófilos desde Danilewski Otto Bonhard o historiador oficial da Liga Pangermânica deixou clara a íntima relação entre a sua ideologia e o racismo de Gobineau de H S Chamberlain Geschichte des alldeutschen Verbandes História da Liga Pangermânica 1920 p 95 12 Uma exceção é Friedrich Naumann Central Europe Londres 1916 que queria substituir as numerosas nacionalidades da Europa Central por um povo econômico Wirtschaftsvolk unido sob a liderança alemã Embora seu livro alcançasse sucesso durante toda a Primeira Guerra Mundial só chegou a influenciar o Partido SocialDemocrata austríaco ver Karl Renner Oesterreichs Emeuerung Politischprogrammatische Aufsàtze Renovação da Áustria Esboço do programa político Viena 1916 pp 37 ss 13 Pelo menos antes da guerra o interesse dos grandes partidos pela política estrangeira havia sido completamente ofuscado pelas questões domésticas A atitude da Liga Pangermânica é 255 Foi ainda mais pronunciada a influência dos movimentos unificadoras sobre os intelectuais a intelligentsia russa com apenas algumas exceções era paneslava e o pangermanismo começou na Áustria praticamente como um movimento estudantil14 A principal diferença entre esses dois movimentos continentais e o imperialismo mais respeitável das nações ocidentais estava na falta de apoio capitalista suas tentativas de expansão não foram nem podiam ser precedidas pela exportação de dinheiro supérfluo e homens supérfluos porque a Europa centrooriental onde agiam não oferecia oportunidades coloniais Assim não se encontram entre os seus líderes quase nenhum comerciante e somente poucos aventureiros Por outro lado há muitos membros das profissões liberais professores e servidores públicos15 Enquanto o imperialismo ultramarino não obstante suas tendências antinacionais conseguiu dar vida nova às antiquadas instituições do Estadonação o imperialismo continental era e permaneceu inequivocamente hostil a todas as estruturas políticas existentes Assim a sua atitude era muito mais rebelde e os seus líderes muito mais adeptos da retórica revolucionária O imperialismo de ultramar havia oferecido panacéias bastante reais aos resíduos de todas as classes mas o imperialismo continental nada tinha a oferecer além de uma ideologia e de um movimento Isso porém era bastante numa época que preferia uma chave da história à ação política quando os homens em meio à desintegração da comunidade e à atomização social precisavam aterse a alguma coisa a qualquer preço De modo análogo a visível diferença da pele branca cujas vantagens num país negro ou pardo são facilmente compreendidas podia ser perfeitamente igualada por uma diferença puramente imaginária entre uma alma oriental e ocidental ou ariana e nãoariana O fato é que uma ideologia bastante complicada e uma organização que não servia a nenhum interesse imediato demonstraram ser mais atraentes do que certas vantagens tangíveis e convicções comuns A despeito de sua falta de sucesso com o seu proverbial apelo à ralé os movimentos de unificação étnica exerceram desde o início uma atração muito mais forte do que o imperialismo ultramarino Essa atração popular que suportou sensíveis fracassos e constantes mudanças de programa prenunciava futuros grupos totalitários igualmente vagos quanto a objetivos reais e sujeitos a mudanças constantes em sua linha política O que mantinha coesos os mem diferente e isso é sem dúvida uma vantagem propagandistica Martin Wenck Alldeutsche Taktik Tática pangermânica 1917 14 Ver Paul Molisch Geschichte der deutschnazionalen Bewegung in Oesterreich História do movimento nacional alemão na Áustria Jena 1926 p 90 é um fato que o corpo estudantil não refletia apenas a constelação política geral pelo contrário fortes opiniões pangermânicas geralmente originavamse do corpo estudantil e dali afluíam à política geral 15 Podese encontrar informação útil a respeito da composição social dos membros da Liga Pangermânica suas autoridades locais e executivas em Wertheimer op cit Ver também LotharWernerjDeraWcuíscAe Verband 1890 1918 Historische Studien vol 278 Berlim 1935 e Gottfried Nippold Der deutsche Chauvinismus 1913 pp 179 ss 256 bros dos movimentos de unificação étnica era muito mais um estado de espírito geral do que um objetivo claramente definido É verdade que o imperialismo ultramarino também colocava a expansão em si acima de qualquer programa de conquista e portanto se apossava de qualquer território que se oferecesse como presa fácil No entanto enquanto a exportação de dinheiro supérfluo serviu para delimitar a expansão dela resultante aos objetivos dos movimentos de unificação étnica faltava até mesmo esse elemento que por anárquico que fosse levava ao planejamento humano e à limitação geográfica Mas mesmo sem um programa específico de conquista mundial esses movimentos assumiram um ar de total predomínio de inclusão universal de todas as questões humanas de panhumanismo como disse Dostoiévski certa vez16 Na aliança imperialista entre a ralé e o capital a iniciativa ficava principalmente com os representantes do comércio exceto na África do Sul onde muito cedo se desenvolveu uma política definida da ralé O contrário ocorria com os movimentos de unificação étnica nos quais a iniciativa pertencia exclusivamente à ralé guiada então como hoje por certo tipo de intelectuais que ainda não tinham a ambição de dominar o globo nem sonhavam com as possibilidades da hegemonia total mas já sabiam como organizar a ralé e conheciam os usos organizacionais e não meramente ideológicos e propagandísticos dos conceitos raciais Percebe se a sua importância de modo apenas superficial nas teorias relativamente modestas de política externa quando preconizavam uma Europa central germanizada ou uma Europa meridional e oriental russificada mas foram essas idéias que serviram de pontos de partida para os programas de conquista mundial do nazismo e do bolchevismo17 Os povos germânicos fora do Reich e nossos irmãos menores eslavos fora da Rússia Sagrada criavam uma conveniente cortina de fumaça de direitos nacionais de autodeterminação que abria acesso para maior expansão Contudo foi muito mais importante o fato de que os governos totalitários herdaram uma auréola de santidade bastavalhes invocar o passado da Rússia Sagrada ou do Santo Império Romano para atiçar toda espécie de superstição nos intelectuais russos ou alemães18 Tolices pseudomísticas enriquecidas por inúmeras e arbitrárias memórias históricas forneciam um apelo emocional que parecia transcender em profundidade e amplitude as limitações do nacionalismo De qualquer forma foi desse apelo que surgiu um novo tipo de sentimento nacionalista cuja vio 16 Citado de Hans Kohn The permanent mission em The Review of Politics julho 1948 17 Danilewski op cit incluía num futuro império russo todos os países bálticos Turquia Hungria Tchecoslováquia Galícia então parte oriental do Império Austrohúngaro depois Polônia oriental hoje Ucrânia soviética ocidental e a Istria com Trieste 18 O eslavófilo K S Áksakov escrevendo em meados do século XIX tomava literalmente a expressão Rússia Sagrada como o fizeram outros paneslavos depois dele Ver T G Masaryk op cit pp 234 ss Muito típico da vaga tolice do pangermanismo é Moeller van der Bruck Germanys Third Empire Nova York 1934 que proclama Só existe um Ünico Império como só existe uma Igreja Única Qualquer outra coisa que se arrogue esse título pode ser um Estado ou uma comunidade ou uma seita Só existe o Império p 263 257 lência movimentava as massas e podia substituir o antigo patriotismo nacional como centro de emoções Esse novo tipo de nacionalismo tribal característico das nações e nacionalidades da Europa central e oriental era diferente em conteúdo e importância embora não em violência dos excessos nacionalistas do Ocidente O chauvinismo geralmente concebido hoje em conexão com o nationalisme integral de Maurras e Barres do fim do século XIX com a sua romântica glorificação do passado e o seu mórbido culto dos mortos mesmo em suas manifestações mais loucamente fantásticas nunca afirmou que homens de origem francesa nascidos e criados em outro país sem qualquer conhecimento da língua ou da cultura francesa eram franceses natos em virtude de certas intrínsecas e misteriosas qualidades do corpo ou da alma Só com a consciência tribal ampliada é que surgiu essa peculiar identificação da nacionalidade do indivíduo com a sua alma ou origem esse orgulho introvertido que já não se relaciona apenas com os negócios públicos mas permeia cada etapa da vida privada até que como se dizia na Polônia do século XIX A vida privada de cada verdadeiro polonês correspondia à vida pública da polonidade19 Em termos psicológicos a principal diferença entre o mais violento chauvinismo e esse nacionalismo tribal era esta o primeiro é extrovertido interessado nas evidentes realizações espirituais e materiais da nação o segundo mesmo em suas formas mais benignas por exemplo o movimento da juventude alemã é introvertido concentrado na própria alma do indivíduo que é tida como a encarnação intrínseca de qualidades nacionais A mística chauvinista ainda aponta algo que de fato existiu no passado como no caso do nationalisme integral e busca eleválo a um plano fora do controle humano o tribalismo por outro lado parte de elementos pseudomísticos inexistentes que se propõe realizar inteiramente no futuro Reconhecese esse tribalismo facilmente por uma tremenda arrogância que ousa avaliar um povo seu passado e seu presente em termos de exaltadas qualidades interiores inatas enquanto rejeita sua existência tradição instituições e cultura visíveis Do ponto de vista político o nacionalismo tribal insiste sempre em que o povo está rodeado por um mundo de inimigos um contra todos e que há uma diferença fundamental entre esse povo e todos os outros Afirma que o povo é único individual incompatível com todos os outros e nega teoricamente a própria possibilidade de uma humanidade comum muito antes de ser usado para destruir a humanidade do homem 1 NACIONALISMO TRIBAL Do mesmo modo como o imperialismo continental nasceu das ambições frustradas de países que não participaram da súbita expansão dos anos 80 do século XIX o tribalismo surgiu como o nacionalismo daqueles povos que não 19 George Cleinow Die Zukunft Polens O futuro da Polônia Leipzig 1914 II pp 93 ss 258 haviam participado da emancipação nacional e não haviam alcançado a soberania de Estado nação Onde as duas frustrações existiam lado a lado como ocorria em países multinacionais como a ÂustriaHungria e a Rússia os movimentos de unificação étnica encontravam naturalmente o solo mais fértil Além disso como a Monarquia Dual abrigava as nacionalidades irredentistas eslavas e alemã o paneslavismo e o pangermanismo concentraramse desde o início em sua destruição e a ÃustriaHungria se tornou o real centro desses movimentos Os paneslavistas russos já em 1870 diziam que o melhor ponto de partida possível para um império paneslavo seria a desintegração da Áustria20 e os pangermanistas austríacos eram tão violentamente agressivos em relação ao seu próprio governo que até mesmo o Alldeutsche Verband na Alemanha se queixava freqüentemente dos exageros dos seus correligionários austríacos21 O plano para a união econômica da Europa central sob a égide da Alemanha concebido pelos alemães bem como todos os projetos semelhantes dos pangermanistas alemães para criar um império continental transformouse subitamente tão logo caiu nas mãos dos pangermanistas austríacos numa estrutura que viria a ser o centro da vida alemã em toda a terra aliado a todos os outros Estados germânicos22 É claro que as tendências expansionistas do paneslavismo eram tão embaraçosas para o czar quanto eram para Bismarck os gratuitos protestos de lealdade ao Reich e a deslealdade à Áustria dos pangermanistas austríacos23 Pois por mais que fossem ocasionalmente exaltados os sentimentos nacionais ou por mais ridículas que se tornassem as alegações nacionalistas em tempos de crise permaneciam dentro de certos limites uma vez que se cingiam a um território nacional definido e eram controlados pelo orgulho num Estado nacional limitado enquanto os movimentos de unificação logo ultrapassavam esse limites 20 Durante a Guerra da Criméia 18536 Michael Pagodin folclorista e filólogo russo escreveu uma carta ao czar na qual chamava os povos eslavos de únicos fortes e fiéis aliados da Rússia Staehlin op cit p 35 pouco depois o general Nikolai Muravyev Amursky um dos grandes construtores de império da Rússia fazia votos pela liberação dos eslavos da Turquia e da Áustria Hans Kohn op cit e já em 1870 surgia um panfleto militar que exigia a destruição da Áustria como condição necessária para uma federação paneslava ver Staehlin op cit p 282 21 Ver Otto Bonhard op cit pp 58 ss e Hugo Grell Der alldeutsche Verban seine Geschichte seine Bestrebungen seine Erfolge A Liga Pangermânica sua história seus sucessos Alldeutsche Flugschriften n 8 22 Segundo o programa pangermanista austríaco de 1913 citado por Eduard Pichl Georg Schoenerer 1938 6 vols VI 375 23 Enquanto Schoenerer com a sua admiração por Bismarck declarou em 1876 que a Áustria como grande potência deve deixar de existir Pichl op cit I 90 Bismarck achava e dizia aos seus admiradores austríacos que uma Áustria poderosa é uma necessidade vital para a Alemanha VerF A Neuschafer Georg Rittervon Schoenerer tese Hamburgo 1935 A atitude do czar em relação ao paneslavismo era muito mais ambígua porque o pan eslavismo tinha uma concepção de Estado que incluía forte apoio popular ao governo despótico Contudo mesmo em circunstâncias tão tentadoras o czar não apoiou a exigências expansionista dos eslavófilos e dos seus sucessores Ver Staehlin op cit pp 30 ss 259 Podese melhor avaliar a modernidade dos movimentos de unificação por sua posição inteiramente nova em relação ao antisemitismo As minorias reprimidas como os eslavos na Áustria e os poloneses na Rússia czarista em virtude do antagonismo que as apartava dos seus respectivos governos estavam predispostas a descobrir as relações ocultas entre as comunidades judaicas e os Estadosnações europeus e essa descoberta podia facilmente leválas à hostilidade Nos países em que o antagonismo ao Estado não era identificado com falta de patriotismo como na Polônia então incorporada à Rússia onde a deslealdade ao czar era sinônimo de lealdade à nação polonesa ou como na Áustria onde a população de língua alemã via em Bismarck sua grande figura nacional o antisemitismo assumia formas mais violentas porque os judeus aparentavam ser não só agentes de uma máquina estatal opressora mas de um opressor estrangeiro O papel fundamental do antisemitismo nos movimentos de unificação não se justifica nem pela posição das minorias nem pelas experiências específicas que Schoenerer o líder do pangermanismo austríaco havia tido no início da sua carreira quando ainda membro do Partido Liberal viera a saber das ligações entre a monarquia dos Habsburgos e o domínio dos Rothschild sobre a rede ferroviária da Áustria24 Isso não o teria levado a declarar que nós os pangermanistas consideramos o antisemitismo como o esteio de nossa ideologia nacional25 como nenhum evento similar poderia ter induzido Rozanov o escritor paneslavo russo a pretender que não existe problema na vida russa no qual como uma vírgula na frase não exista também a questão de como enfrentar o judeu26 A chave do súbito aparecimento do antisemitismo como centro de todo um conceito de vida e de mundo em contraposição ao seu papel meramente político na França durante o Caso Dreyfus ou como mero instrumento de propaganda no movimento alemão de Stoecker está na natureza do tribalismo e não em fatos e circunstâncias políticas A verdadeira importância do antisemitismo dos movimentos de unificação étnica está nisto o ódio aos judeus foi pela primeira vez isolado de toda experiência real política social ou econômica seguindo apenas a lógica peculiar de uma ideologia O nacionalismo tribal a força motora do imperialismo continental tinha pouco em comum com o nacionalismo do Estadonação ocidental plenamente desenvolvido O Estadonação com a sua reivindicação de representação popular e soberania nacional tal como havia evoluído desde a Revolução Francesa até o século XIX resultava da combinação de dois fatores que ainda separados no século XVIII permaneceram separados na Rússia e na ÀustriaHungria até 1919 nacionalidade e Estado As nações adentravam a história e se emancipavam quando os povos adquiriam a consciência de serem entidades culturais e históricas e a de ser o seu território um lar permanente marcado pela história 24 Ver o capítulo 2 25 Pichl op citl 26 26 Vassilif Rozanov Fallen leaves 1929 pp 1634 260 comum fruto do trabalho dos ancestrais e cujo futuro dependeria do desenvolvimento de uma civilização comum Onde quer que surgissem os Estadosnações cessavam quase que por completo os movimentos migratórios enquanto na Europa oriental e meridional onde fracassou a fundação de Estadosnações isso ocorreu porque faltava ainda o apoio de classes rurais firmemente enraizadas27 Do ponto de vista sociológico o Estadonação era o corpo político das classes camponesas européias emancipadas isto é dos proprietários rurais e é por isso que os exércitos nacionais só puderam conservar sua posição permanente nesses Estados enquanto constituíam a verdadeira representação da classe rural ou seja até o fim do século XIX O Exército como disse Marx era o ponto de honra dos fazendeiros transformados em senhores o Exército os corporificava defendendo no exterior sua propriedade recémadquirida O uniforme era a sua roupa de gala a guerra era a sua poesia o seu lote de terra era a pátria e o patriotismo era a forma ideal da propriedade28 O nacionalismo ocidental que culminou no recrutamento geral foi produto de classes firmemente enraizadas e emancipadas Enquanto a consciência da nacionalidade é comparativamente recente a estrutura do Estado é fruto da secular evolução da monarquia e do despotismo esclarecido Fosse sob forma de nova república ou de monarquia constitucional reformada o Estado herdou como função suprema a proteção de todos os habitantes do seu território independentemente de nacionalidade e devia agir como instituição legal suprema A tragédia do Estadonação surgiu quando a crescente consciência nacional do povo interferiu com essas funções Em nome da vontade do povo o Estado foi forçado a reconhecer como cidadãos somente os nacionais a conceder completos direitos civis e políticos somente àqueles que pertenciam à comunidade nacional por direito de origem e fato de nascimento Isso significa que o Estado foi parcialmente transformado de instrumento da lei em instrumento da nação A conquista do Estado pela nação29 foi facilitada pela queda da monarquia absoluta e pelo subseqüente surgimento de classes O monarca absoluto devia servir aos interesses da nação como um todo e ser expoente e prova visível da existência de tal interesse comum O despotismo esclarecido baseavase no que disse Rohan Os reis comandam os povos e o interesse comanda os reis30 Abolidos os reis esse interesse comum corria o perigo de ser substituído por um permanente conflito entre numerosos interesses de classes e por uma luta pelo controle da máquina estatal ou seja por uma guerra civil permanente O único laço comum que restava aos cidadãos do Estadonação sem um monarca que 27 Ver C A Macartney National states and national minorities Londres 1935 pp 432 ss 28 Karl Marx O ISBrumário de Luís Bonaparte 29 Ver J T Delos La nation Montreal 1944 importante estudo sobre o assunto 30 Ver o duque de Rohan DeVintérêt desprinces et états de Ia chrétienté 1638 dedicado ao cardeal Richelieu 261 simbolizasse a essência do grupo era a origem comum Assim num século em que cada classe e cada segmento da população eram dominados por interesses próprios o interesse da nação como um todo era supostamente garantido pela origem comum que encontrou sua expressão sentimental no nacionalismo O conflito latente entre o Estado e a nação veio à luz por ocasião do próprio nascimento do Estadonação moderno quando a Revolução Francesa ao declarar os Direitos do Homem expôs a exigência da soberania nacional De uma só vez os mesmos direitos essenciais eram reivindicados como herança inalienável de todos os seres humanos e como herança específica de nações específicas a mesma nação era declarada de uma só vez sujeita a leis que emanariam supostamente dos Direitos do Homem e soberana isto é independente de qualquer lei universal nada reconhecendo como superior a si própria31 O resultado prático dessa contradição foi que daí por diante os direitos humanos passaram a ser protegidos e aplicados somente sob a forma de direitos nacionais e a própria instituição do Estado cuja tarefa suprema era a de proteger e garantir ao homem os seus direitos como hdmem como cidadão isto é indivíduo e como membro de grupo perdeu a sua aparência legal e racional e podia agora ser interpretada pelos românticos como a nebulosa representação de uma alma nacional que pelo próprio fato de existir devia estar além e acima da lei Conseqüentemente a soberania nacional perdeu a sua conotação original de liberdade do povo e adquiriu uma aura pseudomística de arbitrariedade fora da lei Em sua essência o nacionalismo é a expressão dessa perversa transformação do Estado em instrumento da nação e da identificação do cidadão com o membro da nação A relação entre o Estado e a sociedade foi determinada pela luta de classes que havia suplantado a antiga ordem feudal Permeou a sociedade um liberalismo individual que acreditava erradamente que o Estado governava meros indivíduos quando na realidade governava classes e que via no Estado uma espécie de entidade suprema diante da qual todos os indivíduos tinham de curvarse Parecia ser o desejo da nação que o Estado a protegesse das conseqüências de sua atomização social e ao mesmo tempo garantisse a possibilidade de permanecer nesse estado de atomização Para poder enfrentar essa tarefa o Estado teve de reforçar todas as antigas tendências de centralização pois só uma administração fortemente centralizada que monopolizasse todos os instrumentos de violência e possibilidades de poder poderia contrabalançar as forças centrífugas constantemente geradas por uma sociedade dominada por classes A essa altura o nacionalismo tornouse o precioso aglutinante que iria unir um Estado centralizado a uma sociedade atomizada e realmente demonstrou ser a única ligação operante e ativa entre os indivíduos formadores do Estadonação 31 Uma das mais esclarecedoras discussões do princípio da soberania é ainda Jean Bodin Six livres de Ia republique 1576 Para um bom relato e discussão das principais teorias de Bodin verGeorge H Sabine A history qfpolitical theory 1937 262 O nacionalismo sempre conservou essa íntima lealdade ao governo e nunca chegou a perder a sua função de manter um precário equilíbrio entre a nação e o Estado de um lado e entre os cidadãos de uma sociedade atomizada do outro Os cidadãos nativos de um Estadonação freqüentemente olhavam com desprezo os cidadãos naturalizados aqueles que haviam recebido seus direitos por lei e não por nascimento do Estado e não da nação mas nunca chegaram ao extremo de propor a distinção pangermanista entre Staatsfremde alienígenas do Estado e Volksfremde alienígenas da nação que foi mais tarde incorporada à legislação nazista Como o Estado permaneceu instituição legal mesmo em sua forma pervertida a lei controlava o nacionalismo e como este havia surgido da identificação dos cidadãos com o seu território era delineado por fronteiras definidas Muito diferente foi a primeira reação nacional de povos cuja nacionalidade não havia ainda ultrapassado o estágio de mal definida consciência étnica cujo idioma não havia ainda saído daquela fase de dialetos por que passaram todas as línguas européias antes de se prestarem a fins literários cuja classe camponesa não havia assentado raízes e não estava à beira da emancipação e para os quais conseqüentemente a qualidade nacional parecia ser muito mais um sentimento privado e portátil inerente à própria personalidade do indivíduo do que uma questão do interesse público e da civilização32 Se tentavam igualar o orgulho nacional das nações do Ocidente constatavam não ter país nem Estado nem sequer realizações nacionais e podiam apenas apontar para si mesmos ou seja para o seu idioma como se a língua em si já fosse uma realização ou para a sua alma eslava germânica ou sabe Deus o quê No entanto num século que ingenuamente julgava que todos os povos eram virtualmente nações só isso restava aos povos oprimidos da ÃustriaHungria e da Rússia czarista onde não existiam condições para a realização da trindade ocidental de povoterritórioEstado onde as fronteiras mudavam constantemente durante séculos e as populações permaneciam em movimento migratório mais ou menos contínuo Essas massas não tinham a menor idéia do significado dos conceitos pátria e patriotismo nem a mais vaga noção de responsabilidade comunitária limitada Era este o problema do cinturão de populações mistas Macartney que estendendose do Báltico ao Adriático de Danzig a Trieste encontrou a sua melhor expressão da Monarquia Dual O nacionalismo tribal surgiu dessa atmosfera de desarraigamento Alastrouse não apenas entre os povos da ÃustriaHungria mas também embora 32 Interessante nesse contexto são as proposições socialista de Karl Renner e Otto Bauer na Áustria de separar a nacionalidade inteiramente de sua base territorial e tornála uma espécie de status pessoal isso naturalmetne correspondia a uma situação em que grupos étnicos se disseminavam por todo o império sem perder suas características nacionais Ver Otto Bauer Die Nationalitàtenfrage und die osterreichische Sozialdemokratie A questão nacional e a socialdemocracia austríaca Viena 1907 quanto ao princípio pessoal em oposição ao territorial da nacionalidade pp 332 ss 353 ss O princípio pessoal deseja organizar as nações não como entidades territoriais mas como meras associações de pessoas 263 em nível mais alto entre os membros da infeliz intelligentsia da Rússia czarista O desarraigamento foi a verdadeira fonte daquela consciência tribal ampliada que na verdade significava que os indivíduos desses povos não tinham um lar definido mas sentiamse em casa onde quer que vivessem outros membros desuatribo Somosdiferentes diziaSchoenerer por ão gravitarmos em direção a Viena mas por gravitarmos para onde quer que vivam outros alemães 33 O que caracterizou os movimentos de unificação étnica é que nunca tentaram ao menos alcançar a emancipação nacional mas imediatamente em seus sonhos de expansão transcenderam os estreitos limites da comunidade nacional e proclamaram a comunidade de um povo que permaneceria como fator político ainda que os seus membro estivessem espalhados por toda a terra Do mesmo modo e em contraste com os verdadeiros movimentos de libertação nacional de povos pequenos que sempre começavam com uma exploração do passado nacional não se detiveram para explorar o passado mas projetaram a base de sua comunidade num futuro em cuja direção o movimento deveria marchar O nacionalismo tribal alastrandose entre todas as nacionalidades oprimidas da Europa oriental e meridional assumiu novo aspecto organizacional os movimentos de unificação entre aqueles povos que dispunham ao mesmo tempo de alguma forma de país natal como a Alemanha e a Rússia e de grandes populações dispersas no exterior como era o caso dos alemães e eslavos em outros países34 Em contraste com o imperialismo de ultramar que se contentava com a relativa superioridade da missão nacional ou da tarefa do homem branco os movimentos de unificação étnica partiam da reivindicação absoluta de escolha divina Já se disse muitas vezes que o nacionalismo é um substituto emocional da religião mas só o tribalismo dos movimentos de unificação étnica ofereceu nova teoria religiosa e novo conceito de santidade A função e a posição religiosa do czar na Igreja grecoortodoxa não seriam suficientes para levar os paneslavos russos a descobrir a natureza e a essência cristãs do povo russo o qual segundo Dostoiévski era o próprio são Cristóvão das nações que levava Deus diretamente aos problemas deste mundo35 Foi devido às 33 Picbl opcit 1152 34 Somente nessas condições é que surgia um movimento de unificação étnica completamente organizado O panlatinismo foi a denominação errada de certas tentativas frustradas das nações latinas de entrarem em alguma aliança contra o perigo alemão e o messianismo polonês nunca exigiu outra coisa senão o que foi no passado território dominado pela Polônia Ver também Deckert op cit que disse em 1914 o panlatinismo tem declinado cada vez mais e o nacionalismo e a consciência estatal têm se tornado mais fortes e conservado um potencial maior aqui do que em qualquer outra parte da Europa p 7 35 Nicolas Berdyaev The origin of Russian communism 1937 p 102 K S Aksakov chamava o povo russo de único povo cristão na terra em 1855 ver Hans Ehrenberg e N V Bubnoff Oestliches Christentum Cristandade oriental parte I pp 92 ss e o poeta Tyutchev dizia na mesma época que o povo russo é cristão não apenas pela ortodoxia de sua fé mas também por algo mais íntimo É cristão por aquela capacidade de renúncia e sacrifício que é o fundamento de sua natureza moral Citado por Hans Kohn op cit 264 pretensões de serem os russos o único povo divino dos tempos modernos que os pan eslavistas abandonaram suas antigas tendências liberais e apesar da oposição e de certa perseguição do governo tornaramse fiéis defensores da Rússia Sagrada Os pangermanistas austríacos formulavam reivindicações semelhantes quanto à divina escolha embora com igual passado liberal permanecessem anticlericais e se tornassem anticristãos Quando Hitler discípulo confesso de Schoenerer disse durante a Segunda Guerra Mundial Deus todopoderoso construiu nossa nação Ao defendermos sua existência estamos defendendo o Seu trabalho37 a resposta que veio do outro lado de um seguidor do pan eslavismo foi no mesmo tom Os monstros alemães não são apenas nossos inimigos são os inimigos de Deus38 Essas formulações não decorriam de necessidades propagandísticas do momento esse fanatismo é algo mais que simples abuso de linguagem religiosa por trás dele há uma infraestrutura teológica responsável pelo ímpeto dos primeiros movimentos de unificação étnica e que teve considerável influência na evolução dos modernos movimentos totalitários Os movimentos de unificação étnica pregavam a origem divina dos seus próprios povos em contraposição à fé judaicocristã na origem divina do Homem Segundo eles o homem por pertencer inevitavelmente a algum povo só através desse povo podia receber sua qualidade divina O indivíduo portanto só tem valor divino enquanto pertence ao povo escolhido cuja origem é divina Perdea quando decide mudar de nacionalidade pois com este ato destrói todos os laços através dos quais fora dotado de origem divina e cai num estado de apatria metafísica Era dupla a vantagem política desse conceito Fazia da nacionalidade uma qualidade permanente que já não era afetada pela história não importando o que acontecesse a determinado povo emigração conquista ou dispersão Mas de impacto ainda mais imediato era o fato de que no contraste absoluto entre um povo de origem divina e todos os outros povos desapareciam todas as diferenças entre os indivíduos desse povo econômicas sociais ou psicológicas A origem divina transformava o povo numa massa uniforme escolhida de robôs arrogantes39 A inverdade dessa teoria é tão notável quanto a sua utilidade política Deus não criou nem os homens cuja origem é obviamente a procriação 36 Segundo Chaadayev cujas Cartas filosóficas 18291831 constituem a primeira tentativa sistemática de apresentar a história do mundo evoluindo ao redor do povo russo como seu centro Ver Ehrenberg op cit I 5ss 37 Discurso de 30 de janeiro de 1945 New York Times 31 de janeiro de 1945 38 Palavras de Lucas arcebispo de Tambov citadas no Jornal do Patriarcado de Moscou n 21944 39 Isso já era reconhecido pelo jesuíta russo príncipe Ivan S Gagarin em seu panfleto La Russie seratelle catholique 1856 no qual atacava os eslavófilos porque querem estabelecer a mais completa uniformidade religiosa política e nacional Em sua política exterior querem fundir todos os cristãos ortodoxos de qualquer nacionalidade e todos os eslavos de qualquer nacionalidade num grande império eslavo e ortodoxo Citado por Hans Kohn op cit 265 nem os povos que passaram a existir como resultado da organização humana em grupos sociais Os homens são desiguais segundo sua origem natural sua diferente organização e seu destino na história Sua igualdade é apenas uma igualdade de direitos isto é uma igualdade de objetivo humano contudo atrás dessa igualdade de objetivo humano existe segundo a tradição judaicocristã uma outra igualdade expressa no conceito de uma origem comum que está além da história humana da natureza humana e dos objetivos humanos a origem comum do Homem místico e inidentificável o único que foi criado por Deus Essa origem divina é o conceito metafísico no qual pode basearse a igualdade de objetivo político o objetivo de estabelecer a humanidade na terra O positivismo e o progressismo do século XIX perverteram a finalidade dessa igualdade humana quando tentaram demonstrar o que não pode ser demonstrado isto é que os homens são iguais por natureza e diferem apenas pela história e pelas circunstâncias de modo que podem ser igualados não por direitos mas por circunstâncias e pela educação O nacionalismo e o seu conceito de missão nacional perverteram por sua vez o conceito nacional da humanidade como família de nações transformandoa numa estrutura hierárquica onde as diferenças de história e de organização eram tidas como diferenças entre homens resultantes de origem natural O racismo que negava a origem comum do homem e repudiava o objetivo comum de estabelecer a humanidade introduziu o conceito da origem divina de um povo em contraste com todos os outros encobrindo assim com uma nuvem pseudomística de eternidade e finalidade o que era resultado temporário e mutável do engenho humano É essa finalidade que age como denominador comum entre a filosofia dos movimentos de unificação étnica e os conceitos raciais e explica sua afinidade intrínseca no que tange à teoria Politicamente não importa que Deus ou a natureza venham a constituir a origem de um povo num caso ou no outro por mais elevadas que sejam suas reivindicações os povos se transformam em espécies animais de modo que um russo parece tão diferente de um alemão quanto um lobo difere de uma raposa Um povo divino vive num mundo no qual é o perseguidor inato de todas as outras espécies mais fracas ou a vítima inata de todas as outras espécies mais fortes Só as regras do mundo animal podem aplicarse aos seus destinos políticos O tribalismo dos movimentos de unificação com seu conceito da origem divina de um povo deve parte da atração que exerceu ao desprezo com que via o individualismo liberal40 o ideal de humanidade e a dignidade do homem Nenhuma igualdade subsiste quando o indivíduo deve o seu valor apenas ao fato de ter nascido russo ou alemão mas fica em seu lugar uma nova coerência um sentido de confiança mútua entre todos os membros do povo que realmente é capaz de aplacar as justificadas apreensões dos homens modernos quanto ao 40 Todos reconhecerão que o homem não tem outro destino neste mundo senão trabalhar pela destruição de sua personalidade e sua substituição por uma existência social e impessoal Chaadayev op cit p 60 266 que lhes poderia acontecer se como indivíduos isolados numa sociedade atomizada não fossem protegidos pelo próprio número e pela imposição de uma coerência uniforme Analogamente o cinturão de populações mistas mais exposto que outras partes da Europa às tormentas da história e menos enraizado na tradição ocidental sentiu antes de outros povos europeus o terror do ideal de humanidade e da fé judaicocristã na origem comum do homem Esses povos não alimentavam quaisquer ilusões quanto ao nobre selvagem pois conheciam bastante a potencialidade do mal sem precisarem pesquisar os hábitos dos canibais Quanto mais um povo aprende a respeito de outro menos quer reconhecêlo como seu igual e mais se afasta do ideal de humanidade A tendência para o isolamento tribal e para a ambição de raça dominante resultava em parte do sentimento instintivo de que o conceito de humanidade como ideal religioso ou humanístico implica a responsabilidade comum41 O encurtamento das distâncias geográficas transformava isso em realidade política de primeira grandeza42 E transformou em coisa do passado a discussão idealista sobre a humanidade e dignidade do homem pelo simples fato de que todas essas idéias excelsas mas oníricas com as suas tradições consagradas pelo tempo perdiam repentina e assustadoramente o sentido de tempo Nem mesmo a insistência sobre a natureza pecadora dos homens naturalmente omitida da fraseologia dos representantes liberais da humanidade bastava para a aceitação do fato de que a idéia de humanidade despida de sentimentalismo tem a gravíssima conseqüência de tornar os homens de um modo ou de outro responsáveis por todos os crimes cometidos pelos homens e eventualmente forçar todas as nações a responderem pelo mal cometido pelas outras O tribalismo e o racismo são maneiras muito realistas se bem que muito destrutivas de fugir a essa situação de responsabilidade comum Seu desarraigamento metafísico que correspondia tão bem ao desarraigamento territorial das primeiras nacionalidades que vieram a seduzir amoldavase igualmente bem às necessidades das massas flutuantes das cidades modernas e foi portanto absorvido prontamente pelo totalitarismo E até mesmo a fanática adoção do marxismo a maior das doutrinas antinacionais pelos bol 41 O seguinte trecho de Frymann op cit p 186 é característico Conhecemos o nosso próprio povo suas qualidades e seus defeitos não conhecemos a humanidade e nos recusamos a ter alguma preocupação ou entusiasmo por ela Onde começa e onde termina aquilo a que devemos amar porque pertence à humanidade O camponês russo do mir comuna decadente e semianimalesco o negro da Ãfrica o mestiço do Sudoeste Africano ou os insuportáveis judeus da Galícia e da Romênia são todos membros da humanidade É possível crer na solidariedade dos povos germânicos e não importa para nós quem estiver fora dessa esfera 42 Foi esse encurtamento das distâncias geográficas que Friedrich Naumann expressou em Central Europe Ainda está longe o dia em que haverá um só rebanho e um só pastor mas já se foi o tempo em que um semnúmero de pastores maiores ou menores dirigiam os seus rebanhos livremente pelos pastos da Europa O espírito da indústria em larga escala e da organização supranacional tomou conta da política As pessoas pensam como disse certa vez Cecil Rhodes em termos de continentes Estas poucas frases foram citadas em inúmeros artigos e panfletos da época 267 chevistas foi depois contraatacada pela propaganda paneslavista reintroduzida na União Soviética tal o valor isolacionista dessas teorias43 É verdade que o sistema de governo na ÃustriaHungria e na Rússia czarista baseado na opressão de nacionalidades servia como verdadeiro aprendizado de nacionalismo tribal Na Rússia essa opressão era monopolizada exclusivamente pela burocracia que também oprimia o povo russo de sorte que somente a intelligentsia russa veio a ser paneslavista A Monarquia pelo contrário dominava as nacionalidades indóceis outorgandolhes liberdade suficiente para que oprimissem outras nacionalidades de modo que estas se transformaram na verdadeira base para a ideologia dos movimentos de unificação O segredo da sobrevivência da casa dos Habsburgos no século XIX está no cuidadoso equilíbrio de uma máquina supranacional proporcionado pelo mútuo antagonismo e pela exploração dos tchecos pelos alemães dos eslovacos pelos húngaros dos rutênios pelos poloneses e assim por diante Todos aceitavam com naturalidade o fato de que cada grupo poderia ser promovido a nação à custa dos outros grupos nacionais e renunciaria com prazer à liberdade se a opressão viesse de um governo nacional próprio Os dois movimentos unificadores paneslavo e pangermânico surgiram sem qualquer ajuda dos governos russo ou alemão Isto não evitou que os seus adeptos austríacos se entregassem ao prazer da alta traição contra o governo de seu país Foi a possibilidade de educar as massas no espírito da alta traição que deu aos movimentos austríacos de unificação étnica o considerável apoio popular que nunca tiveram na Alemanha e na Rússia propriamente ditas Era muito mais fácil induzir o trabalhador alemão a atacar a burguesia alemã do que a atacar o governo como era muito mais fácil na Rússia levantar os camponeses contra os proprietários rurais do que contra o czar44 As diferenças entre as atitudes dos trabalhadores alemães e dos camponeses russos eram sem dúvida tremendas os primeiros olhavam um monarca embora não muito querido como símbolo da unidade nacional enquanto os últimos viam no governo o verdadeiro representante de Deus na terra Essas diferenças contudo eram menos significativas do que o fato de que nem na Rússia nem na Alemanha o governo era tão fraco como na Áustria nem sua autoridade havia caído em tal descrédito que os movimentos de unificação étnica pudessem capitalizar politicamente a agitação revolucionária Somente na Áustria o ímpeto revolucionário encontrou essa válvula de escape natural nos movimentos de unificação O expediente de divide et impera não muito habilmente conduzido pelo governo 43 Muito interessantes a esse respeito são as teorias genéticas da Rússia soviética que surgiram na década dos 50 A herança de caracteres adquiridos significa claramente que as populações que vivem sob condições desfavoráveis transferem a seus descendentes uma hereditariedade inferior e viceversa Em uma palavra teríamos raças dominantes e dominadas inatas Ver H S Muller The soviet master race theory em New Leader 30 de junho de 1949 44 G Fedotov Rússia and Freedom em The Review ofPolitics vol VIII n 1 janeiro de 1946 Tratase de verdadeira obraprima em matéria de trabalho histórico dá um resumo de toda a história da Rússia 268 pouco contribuiu para diminuir as tendências centrífugas dos sentimentos nacionais mas criou complexos de superioridade e levou a uma atmosfera geral de deslealdade A hostilidade do Estado como instituição é parte das teorias de todos os movimentos de unificação étnica Já se disse com razão que a oposição dos eslavófilos ao Estado é inteiramente diferente de tudo que é encontrável na atitude do sistema do nacionalismo oficial45 O Estado por sua própria natureza era declarado estranho ao povo Assim a superioridade eslava segundo se pensava jazia na indiferença com que o povo russo via o Estado no fato de o povo se manter como um corpus separatum do seu próprio governo É isso o que os eslavófilos queriam dizer quando chamaram o povo russo de povo sem Estado Mas isso também possibilitou a esses liberais reconciliaremse com o despotismo pois o fato de o povo não interferir com o poder estatal isto é com o absolutismo desse poder estava de acordo com a exigência do despotismo Os pangermanistas politicamente mais articulados sempre insistiam na prioridade do interesse nacional sobre o interesse do Estado47 e geralmente argumentavam que a política mundial transcende a estrutura do Estado que o único fator permanente no decorrer da história era o povo e não o Estado e que portanto as necessidades nacionais mudando com as circunstâncias deviam sempre determinar os atos políticos do Estado48 Mas o que na Alemanha e na Rússia não passou de frases altissonantes até o fim da Primeira Guerra Mundial tornouse real e efetivo na Monarquia Dual cuja decadência gerou um permanente desprezo pelo governo Seria erro grave presumir que os líderes dos movimentos de unificação eram reacionários ou contrarevolucionários Embora não estivessem via de regra muito interessados em questões sociais nunca cometeram o equívoco de se aliar à exploração capitalista a maioria havia pertencido e alguns continuavam a pertencer a partidos liberais e progressistas De certo modo é fato que a Liga Pangermânica concretizou uma verdadeira tentativa de controle popular no campo da política estrangeira Acreditava firmemente na eficiência de uma opinião pública forte voltada para a nação para ditar a política nacional pela força da exigência popular49 Mas a ralé que se agrupava nos movimentos de unificação inspirados por ideologias raciais não era a mesma 45 N Berdyaev op cit p 29 46 K S Aksakov emEhrenberg op cit p 97 47 Ver por exemplo a queixa de Schoenerer de que o Verfassungspartei partido da situação austríaco ainda subordinava os interesses nacionais aos interesses do Estado Pichl op cit I 151 Ver também os trechos característicos do Judas KampfundNiederlageinDeutschland 1937 pp 39ss do pangermanista conde E Reventlow O autor via no nazismo a realização do pangermanismo dada a sua recusa de idolatrar o Estado considerado apenas como uma das funções da vida do povo 48 Ernst Hasse Deutsche Weltpolitik A política mundial alemã 1897 Alldeutsche Flugschriften n 5 e Deutsche Politik vol I Das deutsche Reich ais Nationalstaat O Reich alemão como Estado nacional 1905 p 50 49 Wertheimer op cit p 209 269 massa cujas ações revolucionárias haviam levado à criação do governo constitucional e cujos verdadeiros representantes àquela altura só se podiam encontrar nos movimentos trabalhistas essa ralé com a sua consciência tribal ampliada e com a sua notável falta de patriotismo se assemelhava mais a uma raça Em contraste com o pangermanismo o paneslavismo foi formado pela intelligentsia russa à qual impregnou totalmente Muito menos desenvolvido como organização e muito menos consistente em sua programação política manteve por um tempo surpreendentemente longo um nível muito alto de sofisticação literária e especulação filosófica Enquanto Rozanov analisava as misteriosas diferenças entre a força sexual de judeus e cristãos e chegava à surpreendente conclusão de que os judeus estão unidos a essa força enquanto os cristãos estão separados dela50 o líder os pangermanistas da Áustria descobria as maneiras de atrair o interesse do homem do povo através de músicas de propaganda cartõespostais canecas de cerveja bengalas e caixas de fósforossl Mas finalmente as filosofias de Schelling e Hegel foram abandonadas e a ciência natural foi convocada a fornecer a munição teórica também aos pan eslavistas52 O pangermanismo fundado por um só homem Georg von Schoenerer e apoiado principalmente pelos estudantes austroalemães empregou desde o início uma linguagem extraordinariamente vulgar destinada a atrair camadas sociais mais vastas e diferentes Conseqüentemente Schoenerer foi também o primeiro a perceber as possibilidades do anti semitismo como instrumento para forçar a direção da política externa e destruir a estrutura interna do Estado53 Algumas das razões pelas quais o povo judeu se prestava a essa finalidade são óbvias sua posição muito proeminente em relação à monarquia dos Habsburgos aliada ao fato de que num país multinacional era mais fácil reconhecêlos como nacionalidade à parte do que nos Estadosnações cujos cidadãos pelo menos teoricamente tinham origem homogênea Isso contudo embora explique a violência do antisemitismo austríaco e revele a sagacidade política de Schoenerer na exploração da questão não ajuda a compreender o papel ideológico central que o antisemitismo desempenhou em ambos os movimentos A consciência tribal ampliada como motor emocional dos movimentos de unificação já era madura quando o antisemitismo tornouse questão central e centralizadora O paneslavismo com a sua tradição mais duradoura e mais respeitável de especulação filosófica e com a sua ineficácia política mais notável só virou antisemita nas últimas décadas do século XIX Schoenerer o 50 Rozanov op cit pp 567 51 Oscar Karbach op cit 52 Louis Levine PanSlavism and European politics Nova York 1914 descreve essa transformação dos eslavófilos antigos 53 Oscar Karbach op cit 270 pangermanista já havia anunciado abertamente sua hostilidade às instituições estatais quando muitos judeus ainda eram membros do seu partido54 Na Alemanha onde o movimento de Stoecker havia demonstrado a utilidade do antisemitismo como arma de propaganda política a Liga Pangermância teve de início certa tendência antisemita mas antes de 1918 nunca chegou a excluir os seus membros judeus55 A ocasional antipatia dos eslavófilos pelos judeus transformouse em antisemitismo no seio de toda a intelligentsia russa quando após o assassínio do czar em 1881 uma onda de pogroms organizados pelo governo focalizou a atenção pública na questão judaica Schoenerer que descobriu o antisemitismo na mesma época provavelmente percebeu suas possibilidades quase por acaso como o que desejava acima de tudo era destruir o império dos Habsburgos não era difícil calcular o efeito da exclusão de uma nacionalidade da estrutura estatal que se apoiava numa multitude de nacionalidades Toda a textura dessa constituição peculiar e o precário equilíbrio de sua burocracia podiam ser destruídos se os movimentos populares sabotassem a moderada opressão sob a qual todas as nacionalidades tinham certa igualdade Essa finalidade poderia ter sido igualmente atingida pelo furioso ódio que os pangermanistas sentiam com relação às nacionalidades eslavas ódio que arraigado antes que o movimento se tornasse antisemita era também aprovado por seus membros judeus O que tornou o antisemitismo dos movimentos de unificação étnica tão eficaz a ponto de ter sobrevivido ao declínio da propaganda antisemita durante a enganadora calma que precedeu a deflagração da Primeira Guerra Mundial foi a sua fusão com o nacionalismo tribal da Europa oriental Pois havia uma afinidade inerente entre as teorias daqueles movimentos a respeito dos povos e a existência sem raízes do povo judeu Os judeus pareciam ser o único exemplo perfeito de um povo no sentido tribal sua organização tornouse modelo que os movimentos de unificação procuravam copiar sua sobrevivência e suposta força pareciam a melhor prova da correção das teorias raciais Se outras nacionalidades na Monarquia Dual tinham apenas débeis raízes no solo e pouca noção do significado de um território comum os judeus eram o exemplo de um povo que sem país de qualquer espécie havia podido manter sua identidade no decorrer dos séculos e portanto podia ser citado como prova de que não havia necessidade de território para que se constituísse uma nacionalidade56 Se os movimentos de unificação étnica insistiam na importância secundária do Estado e na suprema importância do povo organizado em vários países e não necessariamente representado por instituições visíveis os judeus 54 O Programa de Linz que ficou sendo o programa dos pangermanistas da Áustria foi originalmente redigido sem o parágrafo sobre os judeus havia até três judeus no comitê que o esboçou em 1882 O parágrafo sobre os judeus foi acrescentado em 1885 Ver Oscar Karbach op cit 55 Otto Bonhard op cit p 45 56 Como o foi pelo socialista Otto Bauer op cit p 373 que certamente não era antisemita 271 eram o modelo perfeito de uma nação sem Estado e sem essas instituições57 Se as nacionalidades tribais apontavam para si mesmas como o centro de seu orgulho nacional independentemente de realizações históricas e de participação em acontecimentos registrados se acreditavam que alguma qualidade inerente misteriosa psicológica ou física fazia delas a encarnação não da Alemanha mas do germanismo não da Rússia mas da alma russa sentiam de alguma forma mesmo que não soubessem expressálo que a judeidade dos judeus assimilados correspondia exatamente ao mesmo tipo de encarnação individual e pessoal do judaísmo e que o orgulho peculiar dos judeus secularizados que não haviam desistido de sua antiga qualidade de escolhidos realmente significava que acreditavam ser diferentes e melhores pelo simples fato de terem nascido judeus independentemente das realizações e tradição judaicas É bem verdade que essa atitude judaica esse tipo judaico de nacionalismo tribal por assim dizer fora resultado da posição anormal dos judeus nos Estados modernos fora do âmbito da sociedade e da nação Mas a posição daqueles grupos étnicos flutuantes que só tomaram consciência de sua nacionalidade através do exemplo de outras nações ocidentais e mais tarde a posição das massas desarraigadas das grandes cidades que o racismo mobilizou com tanta eficácia eram semelhantes em muitos aspectos Também se situavam fora do âmbito social e também estavam fora do corpo político do Estadonação que parecia ser a única organização política satisfatória para um povo Logo reconheceram nos judeus os seus concorrentes mais felizes mais protegidos pela sorte pois em sua opinião os judeus haviam encontrado um meio de constituir uma sociedade própria que precisamente por não ter representação visível nem escoadouro político normal podia vir a substituir a nação Mas o que arrastou os judeus para o centro dessas ideologias racistas mais que qualquer outro fato foi a pretensão judaica ser de um povo eleito único obstáculo sério à igual pretensão que emanava dos movimentos de unificação étnica Não importava que o conceito judaico nada tivesse em comum com as teorias tribais acerca da origem divina de um povo A ralé não estava muito interessada nessas sutilezas de correção histórica e mal percebia a diferença que havia entre uma histórica missão judaica de realizar o estabelecimento da humanidade na terra e a sua própria missão de dominar todos os outros povos da terra Mas os líderes dos movimentos sabiam muito bem que os judeus haviam dividido o mundo exatamente como eles o preconizavam em duas partes eles próprios e todos os outros58 Nessa dicotomia os judeus 57 Muito elucidativo quanto à autointerpretação judaica é o ensaio de A S Steinberg Die weltanschaulichen Voraussetzungen der jüdischen Geschichtsschreibung Os pressupostos ideológicos da escrita histórica judaica em Dubnow Festschrífi 1930 Se um homem se convence do conceito da vida conforme é expresso na história judaica então a questão do Estado perde o seu significado sem que importe como se venha a definilo 58 A similaridade que existe entre esses conceitos pode ser vista na seguinte coincidência à qual se poderiam ajuntar muitos outros exemplos Steinberg op cit diz dos judeus a sua história ocorre fora de todas as leis históricas comuns Chaadayev chama os russos de povoexceção Ber 272 surgiam mais uma vez como os concorrentes mais afortunados que haviam herdado algo e eram reconhecidos por algo que os gentios tinham de construir a partir do nadaS9 Ê um truísmo que não se tornou mais verdadeiro com a repetição que o antisemitismo seja apenas uma forma de inveja Mas no tocante à escolha dos judeus ele é bastante verdadeiro Sempre que um povo é apartado da ação e da realização sempre que esses laços naturais com o mundo comum são rompidos ou não existem por um motivo ou outro ele tende a voltarse para dentro de si mesmo em sua elementaridade nua e natural e a alegar divindade e uma missão de redimir a terra Quando isso acontece na civilização ocidental tal povo encontra a antiga pretensão dos judeus a barrarlhe o caminho messiânico Foi isso que perceberam os portavozes dos movimentos de unificação étnica e é por isso que se incomodaram tão pouco com a questão realista de saber se o problema judeu em termos de números e de poder era suficientemente importante para fazer do ódio aos judeus o esteio de suas ideologias Do mesmo modo como o seu próprio orgulho nacionalindependia de qualquer realização também o seu ódio pelos judeus independia de qualquer coisa que os judeus houvessem feito de bom ou de mau Nesse ponto todos os movimentos de unificação concordavam plenamente embora nenhum deles soubesse como utilizar esse esteio ideológico para fins de organização política A defasagem entre a formulação da ideologia dos movimentos e a possibilidade de sua aplicação séria na política é demonstrada pelo fato de que os Protocolos dos sábios do Sião forjados por volta de 1900 por agentes da polícia secreta russa em Paris mediante sugestão de Pobiedonostzev conselheiro político de Nicolau II e o único paneslavista a galgar uma posição influente ficaram como um panfleto semi esquecido até 1919 quando iniciaram sua marcha verdadeiramente triunfal em todos os países e idiomas europeus60 trinta anos mais tarde sua circulação só era inferior à do Mein Kampf de Hitler Nem o falsificador nem o seu patrão sabiam que viria um tempo em que a polícia seria realmente a instituição central de uma sociedade e toda a força do país se organizaria de acordo com os princípios supostamente judeus expostos nos Protocolos Talvez tenha sido Stalin o primeiro a descobrir todo o potencial de domínio da polícia certamente foi Hitler quem mais sagaz que o seu pai espiritual Schoenerer soube como usar o princípio hierárquico do racismo como explorar a afirmação antisemita da existência de um povo que era o pior de todos a fim de organizar devidamente o melhor de todos ficando entre estes dois extremos todos os outros povos conquistados e oprimidos como dyaev disse claramente op cit p 135 O messianismo russo é semelhante ao messianismo judaico 59 Ver o antisemita E Reventlow op cit mas também o filósofo russo filosemita Vladimir Slovyov O judaísmo e a questão cristã 1884 entre as duas nações religiosas os russos e os poloneses a história introduziu um terceiro povo religioso os judeus Ver Ehrenberg op cit p 314ss Ver também Cleinow op cit pp 44ss 60 Ver John S Curtiss Theprotocols ofZion Nova York 1942 273 generalizar o complexo de superioridade dos movimentos de unificação de modo que cada povo com a necessária exceção dos judeus pudesse olhar com desprezo aquele povo que era ainda pior que ele próprio Foram necessárias mais algumas décadas de caos encoberto e de franco desespero antes que muitas pessoas confessassem alegremente que iriam realizar justamente aquilo que segundo pensavam somente os judeus em seu diabolismo inato tinham conseguido fazer até então De qualquer forma os líderes dos movimentos de unificação embora já tivessem uma vaga noção da questão social foram muito unilaterais em sua ênfase na política externa e não conseguiram ver que o antisemitismo poderia constituir o necessário elo de ligação entre os métodos domésticos e externos não sabiam ainda como estabelecer uma comunidade popular isto é uma horda completamente desarraigada e racialmente doutrinada O fato de que o fanatismo dos movimentos de unificação étnica tenha escolhido os judeus para seu centro ideológico que foi o começo do fim das comunidades judaicas européias constitui uma das mais lógicas e mais amargas vinganças de toda a história Porque há certa dose de verdade nas afirmações esclarecidas desde Voltaire até Renan e Taine de que o conceito de escolha divina dos judeus o modo como identificavam a religião com a nacionalidade sua reivindicação de uma posição absoluta na história e uma relação especial com Deus trouxeram para a civilização ocidental por um lado um elemento de fanatismo até então desconhecido e que foi herdado pelo cristianismo em sua pretensão de posse exclusiva da Verdade e por outro lado um elemento de orgulho tão perigosamente próximo da perversão racial61 Politicamente não teve a menor importância o fato de que o judaísmo e a devoção judaica ainda intacta houvessem sido sempre isentos da imanência direta da Divindade e até hostis a esse conceito Porque o nacionalismo tribal é a perversão da religião que fez com que Deus escolhesse uma nação entre as demais e somente porque esse velho mito e o único povo sobrevivente da Antigüidade tinham raízes profundas na civilização ocidental o líder da moderna ralé podia com certa plausibilidade e imprudência trazer Deus para a luta mesquinha entre os povos e pedir o Seu consentimento para outra eleição que ele líder em nome dos potencialmente elegíveis já havia manipulado62 O ódio dos racistas aos judeus advinha da supersticiosa apreensão de que Deus 61 Ver Berdyaev op cit p 5 A religião e a nacionalidade desenvolveramse juntas no reino moscovita como ocorreu na consciência do antigo povo hebreu E do mesmo modo como a consciência messiânica era um atributo do judaísmo foi também um atributo da ortodoxia russa 62 Um fantástico exemplo de toda essa loucura é a seguinte passagem de Léon Bloy que felizmente não é típica do nacionalismo francês A França está colocada tão acima das outras nações que todas elas não importa quais sejam devem sentirse honradas se tiverem a permissão de comer as migalhas dos seus cães Se a França for feliz então o resto do mundo pode darse por satisfeito mesmo que tenha de pagar pela felicidade da França com a escravidão e a destruição Mas se a França sofrer então o próprio Deus o terrível Deus sofre também Isto é tão absoluto e inevitável como o segredo da predestinação Citado por R Nadolny Germanisie rungoder5avíííeruiGermanizaçaooueslavização 1928 p 55 274 poderia ter realmente escolhido os judeus e não a eles de que a divina providência realmente houvesse concedido o sucesso aos judeus Havia um certo ressentimento indeciso contra um povo que ao que se receava tinha recebido uma garantia racionalmente incompreensível de que surgiria finalmente e a despeito de todas as aparências como vencedor final na história do mundo Pois para a mentalidade da ralé o conceito judeu de uma missão divina de realizar o reino de Deus só podia ser entendido em termos vulgares de sucesso e fracassso O temor e o ódio eram alimentados e até certo ponto racionalizados pelo fato de que o cristianismo religião de origem judaica já havia conquistado a humanidade ocidental Levados por suas próprias superstições ridículas os líderes dos movimentos de unificação descobriram aquela pequena mola oculta na mecânica da devoção judaica que possibilitava uma completa reversão e perversão de modo que a escolha já não correspondia mais ao mito da realização final do ideal de uma humanidade comum mas da sua destruição final 2 A HERANÇA DA ILEGALIDADE O franco desrespeito à lei e às instituições legais e a justificação ideológica da ilegalidade foram muito mais típicos do imperialismo continental do que do imperialismo ultramarino Em parte isso se deveu ao fato de que o imperialismo continental não podia se valer daquela distância geográfica que separava a ilegalidade de domínio de continentes estrangeiros da legalidade das instituições do país dominador Igualmente importante foi o fato de que os movimentos de unificação étnica originaramse nos países que jamais haviam conhecido governo constitucional de modo que a concepção que os seus líderes tinham de governo e de poder correspondia à visão de decisões arbitrárias vindas de cima O desprezo pela lei foi a característica de todos esses movimentos Embora encontrasse maior expressão no paneslavismo do que no pangermanismo refletia as verdadeiras condições do governo na Rússia e na ÃustriaHungria Descrever esses dois despotismos os únicos remanescentes na Europa quando da eclosão da Primeira Guerra Mundial só em termos de Estados multinacionais é apresentar apenas um lado da questão Eles se distinguiam dos outros Estados por governarem e não apenas explorarem os povos por meio de uma burocracia o papel dos partidos era insignificante e os parlamentos careciam de quaisquer funções legislativas o Estado governava através de uma administração que aplicava decretos Para a Monarquia Dual o Parlamento era pouco mais que uma associação de debates e não muito inteligente Na Rússia como na Áustria de antes da Primeira Guerra muito pouca oposição séria partia de lá era exercida por grupos externos que sabiam que se ingressassem no sistema parlamentar só podiam perder a atenção e o apoio do povo Legalmente governar por meio de burocracia é governar por decreto o que significa que a força que no governo constitucional apenas faz cumprir a lei se torna a fonte direta de toda legislação Além disso os decretos têm um 275 generalizar o complexo de superioridade dos movimentos de unificação de modo que cada povo com a necessária exceção dos judeus pudesse olhar com desprezo aquele povo que era ainda pior que ele próprio Foram necessárias mais algumas décadas de caos encoberto e de franco desespero antes que muitas pessoas confessassem alegremente que iriam realizar justamente aquilo que segundo pensavam somente os judeus em seu diabolismo inato tinham conseguido fazer até então De qualquer forma os líderes dos movimentos de unificação embora já tivessem uma vaga noção da questão social foram muito unilaterais em sua ênfase na política externa e não conseguiram ver que o antisemitismo poderia constituir o necessário elo de ligação entre os métodos domésticos e externos não sabiam ainda como estabelecer uma comunidade popular isto é uma horda completamente desarraigada e racialmente doutrinada O fato de que o fanatismo dos movimentos de unificação étnica tenha escolhido os judeus para seu centro ideológico que foi o começo do fim das comunidades judaicas européias constitui uma das mais lógicas e mais amargas vinganças de toda a história Porque há certa dose de verdade nas afirmações esclarecidas desde Voltaire até Renan e Taine de que o conceito de escolha divina dos judeus o modo como identificavam a religião com a nacionalidade sua reivindicação de uma posição absoluta na história e uma relação especial com Deus trouxeram para a civilização ocidental por um lado um elemento de fanatismo até então desconhecido e que foi herdado pelo cristianismo em sua pretensão de posse exclusiva da Verdade e por outro lado um elemento de orgulho tão perigosamente próximo da perversão racial61 Politicamente não teve a menor importância o fato de que o judaísmo e a devoção judaica ainda intacta houvessem sido sempre isentos da imanência direta da Divindade e até hostis a esse conceito Porque o nacionalismo tribal é a perversão da religião que fez com que Deus escolhesse uma nação entre as demais e somente porque esse velho mito e o único povo sobrevivente da Antigüidade tinham raízes profundas na civilização ocidental o líder da moderna ralé podia com certa plausibilidade e imprudência trazer Deus para a luta mesquinha entre os povos e pedir o Seu consentimento para outra eleição que ele líder em nome dos potencialmente elegíveis já havia manipulado62 O ódio dos racistas aos judeus advinha da supersticiosa apreensão de que Deus 61 Ver Berdyaev op cit p 5 A religião e a nacionalidade desenvolveramse juntas no reino moscovita como ocorreu na consciência do antigo povo hebreu E do mesmo modo como a consciência messiânica era um atributo do judaísmo foi também um atributo da ortodoxia russa 62 Um fantástico exemplo de toda essa loucura é a seguinte passagem de Léon Bloy que felizmente não é típica do nacionalismo francês A França está colocada tão acima das outras nações que todas elas não importa quais sejam devem sentirse honradas se tiverem a permissão de comer as migalhas dos seus cães Se a França for feliz então o resto do mundo pode darse por satisfeito mesmo que tenha de pagar pela felicidade da França com a escravidão e a destruição Mas se a França sofrer então o próprio Deus o terrível Deus sofre também Isto é tão absoluto e inevitável como o segredo da predestinação Citado por R Nadolny Germanisierung oder Slavisierung Germanização ou eslavização 1928 p 55 274 poderia ter realmente escolhido os judeus e não a eles de que a divina providência realmente houvesse concedido o sucesso aos judeus Havia um certo ressentimento indeciso contra um povo que ao que se receava tinha recebido uma garantia racionalmente incompreensível de que surgiria finalmente e a despeito de todas as aparências como vencedor final na história do mundo Pois para a mentalidade da ralé o conceito judeu de uma missão divina de realizar o reino de Deus só podia ser entendido em termos vulgares de sucesso e fracassso O temor e o ódio eram alimentados e até certo ponto racionalizados pelo fato de que o cristianismo religião de origem judaica já havia conquistado a humanidade ocidental Levados por suas próprias superstições ridículas os líderes dos movimentos de unificação descobriram aquela pequena mola oculta na mecânica da devoção judaica que possibilitava uma completa reversão e perversão de modo que a escolha já não correspondia mais ao mito da realização final do ideal de uma humanidade comum mas da sua destruição final 2 A HERANÇA DA ILEGALIDADE O franco desrespeito à lei e às instituições legais e a justificação ideológica da ilegalidade foram muito mais típicos do imperialismo continental do que do imperialismo ultramarino Em parte isso se deveu ao fato de que o imperialismo continental não podia se valer daquela distância geográfica que separava a ilegalidade de domínio de continentes estrangeiros da legalidade das instituições do país dominador Igualmente importante foi o fato de que os movimentos de unificação étnica originaramse nos países que jamais haviam conhecido governo constitucional de modo que a concepção que os seus líderes tinham de governo e de poder correspondia à visão de decisões arbitrárias vindas de cima O desprezo pela lei foi a característica de todos esses movimentos Embora encontrasse maior expressão no paneslavismo do que no pangermanismo refletia as verdadeiras condições do governo na Rússia e na ÃustriaHungria Descrever esses dois despotismos os únicos remanescentes na Europa quando da eclosão da Primeira Guerra Mundial só em termos de Estados multinacionais é apresentar apenas um lado da questão Eles se distinguiam dos outros Estados por governarem e não apenas explorarem os povos por meio de uma burocracia o papel dos partidos era insignificante e os parlamentos careciam de quaisquer funções legislativas o Estado governava através de uma administração que aplicava decretos Para a Monarquia Dual o Parlamento era pouco mais que uma associação de debates e não muito inteligente Na Rússia como na Áustria de antes da Primeira Guerra muito pouca oposição séria partia de lá era exercida por grupos externos que sabiam que se ingressassem no sistema parlamentar só podiam perder a atenção e o apoio do povo Legalmente governar por meio de burocracia é governar por decreto o que significa que a força que no governo constitucional apenas faz cumprir a lei se torna a fonte direta de toda legislação Além disso os decretos têm um 275 aspecto de anonimato enquanto as leis podem ser atribuídas a determinados homens ou assembléias e portanto parecem emanar de algum supremo poder dominante que não precisa justificarse O desprezo de Pobiedonostzev pelas armadilhas da lei era o eterno desprezo do administrador pela suposta falta de liberdade do legislador que é tolhido por princípios e pela inação dos executantes da lei que são limitados pela necessidade de interpretálos O burocrata que sendo mero administrador de decretos tem a ilusão de ação permanente sentese tremendamente superior a esses homens pouco práticos eternamente emaranhados em sutileza legais e portanto fora da esfera do poder que para ele é a fonte de tudo Para o administrador a lei é impotente porque por definição ela é isolada de sua aplicabilidade Por outro lado o decreto só existe e vale se e quando aplicado a única justificação que o decreto requer é a possibilidade de ser aplicado É verdade que todos os governos usam decretos numa emergência mas nesse caso a própria emergência é uma nítida justificação e uma automática limitação No governo burocrático os decretos surgem em sua pureza nua como se já não fossem obras de homens poderosos mas encarnassem o próprio poder sendo o administrador seu mero agente acidental Não existem princípios gerais por trás do decreto que a simples razão possa entender mas apenas circunstâncias que mudam constantemente e só um perito pode conhecer em detalhe Os povos governados por decretos nunca sabem o que os governa dada não só a impossibilidade de compreender os decretos em si mesmos mas também a ignorância cuidadosamente organizada no que se refere a circunstâncias específicas e seu significado prático ignorância em que os administradores na medida em que desempenham o papel de fonte de poder conservam os seus súditos O imperialismo colonial que também governava por decretos e era às vezes definido como o regime des décrets62 já era suficientemente perigoso contudo o próprio fato de que os administradores de populações nativas eram importados e tidos como usurpadores diminuía a sua influência sobre os povos dominados Somente em países como a Rússia e a Áustria onde os governantes nativos e uma burocracia nativa eram aceitos como governo legítimo pôde o regime de decretos criar uma atmosfera de arbitrariedade e de segredo que ocultasse com sucesso o seu oportunismo Era amplamente vantajoso o regime de decretos no domínio de territórios extensos com populações heterogêneas e na política de opressão Sua eficiência é superior simplesmente porque ele ignora todos os estágios intermediários entre a fonte emissora e o meio de aplicação e porque impede o raciocínio político do povo graças à retenção de informações Pode suplantar facilmente os costumes locais e não precisa depender do processo necessariamente lento do desenvolvimento da lei É muito útil na implantação de uma administração centralizada porque suprime automaticamente toda a autonomia local Se o go 62a Ver M Larcher Traité elémentaire de législation algérienne vol II pp 1502 O governo de todas as colônias francesas é o regime des decrets 276 verno de boas leis já foi chamado de governo de sabedoria o governo de decretos adequados pode ser corretamente chamado de governo da esperteza Porque levar em conta motivos e objetivos ulteriores é esperteza enquanto compreender e criar algo por dedução a partir de princípios geralmente aceitos é sabedoria O governo pela burocracia não deve ser tomado por mero produto dos serviços públicos que freqüentemente acompanharam o declínio do Estadonação como foi principalmente o caso da França Lá a administração sobreviveu a todas as mudanças do regime desde a Revolução entrincheirouse como um parasita na estrutura política desenvolveu seus próprios interesses de classe e tornouse um organismo inútil cuja única finalidade parece ser dificultar e impedir o desenvolvimento econômico e político normal Há naturalmente muitas semelhanças superficiais entre os dois tipos de burocracia principalmente se se der muita atenção à notável similaridade psicológica dos pequenos funcionários de todos os países Mas se o povo francês cometeu o grave erro de aceitar a sua administração como um mal necessário jamais cometeu o erro fatal de permitir que ela governasse o país embora o resultado tenha sido que ninguém o governa A atmosfera governamental francesa é uma atmosfera de ineficiência e dificuldade mas nunca criou uma aura de pseudomisticismo É esse pseudomisticismo que caracteriza a burocracia quando ela se torna forma de governo Como o povo que ela governa nunca sabe realmente por que algo acontece e como não existe uma interpretação racional das leis subsiste apenas uma coisa que importa o próprio evento brutal e nu O que acontece com o indivíduo fica então sujeito a uma interpretação de possibilidades infinitas sem que a razão as limite e sem que o conhecimento o estorve Na estrutura dessa ilimitada especulação interpretativa que caracteriza toda a literatura russa prérevolucionária toda a textura da vida e do mundo assume um misterioso segredo e uma misteriosa profundidade Dessa aura emana um perigoso encanto devido à sua riqueza aparentemente inesgotável a interpretação do sofrimento tem um alcance muito maior que a interpretação da ação porque a primeira ocorre no interior da alma e liberta todas as possibilidades da imaginação humana enquanto a segunda é constantemente refreada e possivelmente reduzida ao absurdo pelas conseqüências externas e pela experiência controlável É facilmente perceptível uma das diferenças mais berrantes entre o antigo governo pela burocracia e o moderno governo totalitário os governantes russos e austríacos de antes da Primeira Guerra Mundial contentavamse com a ociosa irradiação de poder e satisfeitos em controlar seus destinos exteriores deixavam intacta toda a vida espiritual interior A burocracia totalitária conhecendo melhor o significado do poder absoluto interfere com igual brutalidade com o indivíduo e com a sua vida interior Como resultado dessa radical eficiência extinguiuse a espontaneidade dos povos sob o domínio totalitário juntamente com as atividades sociais e políticas de sorte que a simples esterilidade política que existia nas burocracias mais antigas foi seguida de esterilidade total sob o regime totalitário 277 A era em que nasceram os movimentos de unificação tinha porém a felicidade de ignorar essa esterilização total Pelo contrário para o observador inocente como o é a maioria dos ocidentais a chamada alma oriental parecia ser incomparavelmente mais rica sua psicologia mais profunda sua literatura mais significativa do que as das ocas democracias ocidentais Essa aventura psicológica e literária nas profundezas do sofrimento não veio a ocorrer na ÃustriaHungria porque a sua literatura era principalmente em língua alemã e por isso era e permaneceu parte integrante da literatura alemã em geral Em lugar de inspirar imposturas profundas a burocracia austríaca levou o seu maior escritor moderno a ridicularizar e criticar tudo aquilo Franz Kafka conhecia muito bem a superstição de destino que toma conta daqueles que vivem sob o domínio perpétuo do acaso a inevitável tendência a encontrar um significado sobrehumano especial em eventos cujo significado racional fica além do conhecimento e da compreensão dos interessados Tinha plena consciência da estranha atração dessa gente das estórias populares e melancólicas lindamente tristes que pareciam tão superiores à literatura mais leve e mais alegre das pessoas mais felizes Denunciou o orgulho da necessidade até mesmo da necessidade do mal e a repugnante vaidade que identifica a desventura e o mal com o destino O que nos espanta é que ele tenha conseguido fazer isso num mundo em que os elementos dessa atmosfera ainda não estavam inteiramente articulados confiou no grande poder de sua imaginação para tirar todas as conclusões necessárias e completar o que a realidade havia deixado de focalizar inteiramente63 Só o Império Russo da época oferecia um quadro completo do governo pela burocracia As condições caóticas do país grande demais para ser governado povoado por gente primitiva sem experiência em organização política de qualquer espécie que vegetava sob o incompreensível domínio da burocracia czarista criavam uma atmosfera de anarquia e de acaso na qual os caprichos conflitantes dos pequenos funcionários e as ocorrências diárias da incompetência e da incoerência inspiravam uma filosofia que via no Acidente o verdadeiro Senhor da Vida algo como a aparição da Divina Providência64 Para o paneslavista que sempre insistia nas condições muito mais interessantes da 63 Ver especialmente a magnífica história de O castelo que parece o estranho arremedo de uma obra da literatura russa A família vive sob uma maldição sendo seus membros tratados como leprosos até o ponto de se sentirem como tais apenas porque uma de suas bonitas filhas teve uma vez a ousadia de rejeitar as propostas indecentes de uma autoridade importante Os aldees modestos controlados no mínimo detalhe pela burocracia e escravos até em pensamento dos caprichos de suas autoridades todopoderosas já tinham havia muito chegado à conclusão de que estar certos ou errados era uma questão de mero destino que não podiam alterar Não é o remetente de uma carta obscena que é denunciado como K ingenuamente presume e sim o destinatário que se torna marcado e contaminado E é a isso que os aldeões se referem quando falam do seu destino 64 A deificação do acaso serve naturalmente como racionalização para o povo que não é o senhor do próprio destino Ver por exemplo Steinberg op cit Pois o Acaso é que foi decisivo para a estrutura da história judaica E o Acaso na língua da religião se chama Providência p 34 278 Rússia em contraste com o tédio vazio dos países civilizados parecia que a Divindade havia encontrado uma imanência íntima na alma do infeliz povo russo sem igual em toda a terra Numa torrente infindável de variações literárias os paneslavistas mostravam a profundeza e a violência da Rússia em oposição à banalidade superficial do Ocidente que não conhecia o sofrimento nem o significado do sacrifício e sob cuja superfície civilizada e estéril escondiam se a frivolidade e a banalidade65 Grande parte da atração dos movimentos totalitários foi ainda devida à vaga e amargurada atitude antiocidental que esteve em moda especialmente na Alemanha antes de Hitler e na Áustria mas que nos anos 20 havia tomado conta também da intelligentsia européia em geral Até o momento em que tomaram o poder os movimentos totalitários puderam tirar proveito dessa paixão pelo irracional e durante os anos em que os intelectuais russos exerceram considerável influência sobre o estado de espírito de uma Europa inteiramente conturbada verificouse que essa atitude puramente literária era um forte fator emocional na abertura do caminho para o totalitarismo66 Em contraposição aos partidos os movimentos unificadores não degeneraram simplesmente em máquinas burocráticas67 mas viram nos regimes burocráticos possíveis modelos de organização O paneslavista Pogodin descreveu a máquina burocrática da Rússia czarista com admiração compartilhada por quase todos Uma tremenda máquina construída segundo os princípios mais simples guiada pela mão de um só homem que a aciona a cada instante com um único movimento na direção e na velocidade que deseja E não se trata de um movimento puramente mecânico a máquina é inteiramente ativada por emoções herdadas subordinação confiança sem limites e devoção pelo czar que é o seu Deus na terra Quem ousaria atacarnos e quem não poderíamos forçar à obediência68 Os paneslavistas faziam menos oposição ao Estado que os seus colegas 65 Um escritor russo disse certa vez que o paneslavismo engendra um ódio implacável ao Ocidente um culto mórbido de tudo o que é russo a salvação do universo ainda é possível mas só pode vir por intermédio da Rússia Os pan eslavistas vendo inimigos de sua idéia por toda parte perseguem todos aqueles que não concordam com eles Victor Bérard Vempire russe et le tsarisme 1905 Ver também N V Bubnoff Kultur und Geschichte im russischen Denken der Gegenwart Cultura e história no pensamento russo contemporâneo 1927 Osteuropa Quellen und Studien vol 2 cap V 66 Ehrenberg op cit acentua isso no epílogo as idéias de um Kireievski Chomiakov Leontiev podem ter morrido na Rússia após a revolução Mas agora se espalharam por toda a Europa e vivem hoje em Sofia Constantinopla Berlim Paris Londres Os russos e precisamente os discípulos desses autores publicam livros e editam revistas que são lidos em todos os países europeus através deles essas idéias as idéias dos seus pais espirituais são representadas O espírito russo tornouse europeu p 334 67 Para a burocratizaçâo das máquinas partidárias Robert Michels Political parties a sociológica study of the oligarchial tendencies of modem democracy tradução inglesa Glencoe 1949 da edição alemã de 1911 ainda é a obra padrão 68 K Staehlin Die Entstehung des Panslawismus O surgimento do paneslavismo em GermanoSIavica 1936 vol 4 279 pangermanistas Por vezes chegaram a tentar convencer o czar a encabeçar o movimento A razão dessa tendência era naturalmente que a posição do czar diferia consideravelmente daquela de qualquer monarca europeu sem a exceção do imperador da ÃustriaHungria e que o despotismo russo nunca chegou a ser um Estado racional no sentido ocidental mas permaneceu fluido anárquico e desorganizado Assim o czarismo parecia às vezes aos olhos dos pan eslavistas simbolizar uma gigantesca força motora com uma auréola de singular santidade69 Em contraste com o pangermanismo o paneslavismo não precisou inventar uma ideologia nova que satisfizesse as necessidades da alma eslava e do seu movimento mas pôde interpretar e transformar em mistério o czarismo como a expressão antiocidental anticonstitucional e antiestatal do próprio movimento Essa mistificação do poder anárquico inspirou ao pan eslavismo suas mais perniciosas teorias a respeito da natureza transcendental e da inerente virtude de todo poder Concebia o poder como uma emanação divina que permeava toda atividade natural e humana Não constituía mais um meio para a realização de alguma coisa simplesmente existia os homens dedicavamlhe seu serviço por amor a Deus e qualquer lei que viesse a regular ou reprimir sua força terrível e sem limites era evidentemente sacrílega Em sua completa arbitrariedade o poder em si era considerado sagrado fosse o poder do czar ou o poder do sexo As leis não somente eram incompatíveis com ele eram pecado armadilhas feitas pelo homem para impedir a completa realização do divino70 Fizesse o que fizesse o governo era sempre o Supremo Poder em ação71 e bastava ao movimento paneslavo aderir a esse poder e organizarlhe o apoio popular para santificar todo o povo uma horda colossal obe 69 M N Katkov Todo poder deriva de Deus o czar da Rússia porém recebeu uma importância especial que o distingue de todo o resto dos governantes do mundo Ele é sucessor dos Césares do Império Oriental fundadores do próprio credo da Fé de Cristo Reside nisto o mistério da profunda diferença entre a Rússia e todas as nações do mundo Citado por Saio W Baron Modem nationalism andreligion 1947 70 Pobiedonostzev em Reflections ofa Russian statesman Londres 1898 O poder existe não apenas por si mas pelo amor a Deus Ê um serviço ao qual os homens se dedicam Dai a força terrível e ilimitada do poder e o seu ônus terrível e ilimitado p 254 Ou A lei tornase uma armadilha não apenas para o povo mas para as próprias autoridades que cuidam da sua administração se a cada passo o executor da lei encontra restrições na própria lei então toda a autoridade se perde na dúvida é enfraquecida pela lei e esmagada pelo medo da responsabilidade p 88 71 Segundo Katkov o governo na Rússia significa uma coisa totalmente diferente do que se entende por governo em outros países Na Rússia o governo em sua mais alta acepção é o Supremo Poder em ação Moissayel Olgin The soul ofthe Russian Revolution Nova York 1917 p 57 Numa forma mais racionalizada encontramos a teoria de que as garantias legais eram necessárias em Estados baseados em conquista e ameaçados pelo conflito de classes e raças eram supérfluas na Rússia onde havia harmonia de classes e amizade entre as raças Hans Kohn op cit Embora a idolatria do poder fosse menos acentuada no pangermanismo houve sempre certa tendência antilegal evidente em Frymann op cit que já em 1912 propôs a instituição daquela custódia protetora Sicherheitshaft isto é prisão sem qualquer razão legal que os nazistas depois usaram para encher os campos de concentração 280 diente ao desejo arbitrário de um só homem que não era governada pela lei nem pelo interesse mas se mantinha coesa unicamente pela força do seu número e pela convicção de sua própria santidade Desde o início os movimentos carentes da força das emoções herdadas tiveram de diferenciarse do modelo já existente do despotismo russo em dois aspectos Tiveram de fazer propaganda da qual a burocracia estabelecida mal precisava e o fizeram com a introdução de um elemento de violência72 e encontraram um substituto para a função das emoções herdadas nas ideologias que os partidos continentais já haviam desenvolvido consideravelmente Nesse emprego de ideologia havia porém uma diferença não apenas acrescentavam a justificação ideológica à representação de interesses mas usavam as ideologias como princípios organizacionais Se os partidos haviam sido entidades para a organização de interesses de classes os movimentos se tornaram corporificações de ideologias Em outras palavras os movimentos estavam carregados de filosofia e proclamavam haver posto em marcha a individualização do universo moral dentro de um coletivo73 A concretização das idéias originalmente concebida na teoria hegeliana do Estado e da história foi desenvolvida por Marx que deu ao proletariado o papel de protagonista da humanidade Não foi por acaso naturalmente que o paneslavismo russo foi tão influenciado por Hegel quanto o bolchevismo foi influenciado por Marx Contudo nem Marx nem Hegel supunham que seres humanos reais e partidos ou países existentes chegassem a encarnar as idéias ambos acreditavam no processo histórico em que as idéias só se podiam concretizar num complicado movimento dialético Foi preciso que a vulgaridade da ralé descobrisse as extraordinárias possibilidades dessa concretização para a organização das massas Seus líderes começaram a dizer ao populacho que cada um dos seus membros podia tornarse essa sublime e importantíssima encarnação viva do ideal desde que fizesse parte do movimento Assim ninguém mais precisaria ser leal ou generoso ou corajoso pois automaticamente seria a própria encarnação da Lealdade Generosidade e Coragem O pangermanismo demonstrou ser superior em teoria organizacional pois espertamente privava o indivíduo alemão de todas essas extraordinárias qualidades se não aderisse ao movimento prenunciando já o rancoroso desprezo que o nazismo mais tarde expressou pelos membros nãopartidários do povo alemão enquanto o paneslavismo profundamente absorvido em suas infindáveis especulações a res 72 Há naturalmente uma patente semelhança entre a organização da ralé francesa durante o Caso Dreyfus ver parte I cap IV e os grupos russos promotores âe pogroms nos quais como na Centúria Negra a escória mais violenta e menos culta da velha Rússia se agrupava sob a égide da maioria do episcopado ortodoxo Fedotow op cit enquanto a Liga do Povo Russo com os seus Esquadrões de Combate secretos recrutava os seus adeptos entre os agentes inferiores da polícia pagos pelo governo e liderados por intelectuais Ver E Cherikover Novos materiais acerca dospogroms na Rússia no começo dos anos 80 em Historische Schriftn Vilna II 463 e N M Gelber Os pogroms russos no início dos anos 80 à luz da correspondência diplomática austríaca ibid 73 Delos op cit 281 peito da alma eslava supunha que todo eslavo consciente ou inconscientemente possuía tal alma fosse ele devidamente organizado ou não Foi necessária a desumanidade de Stálin para introduzir no bolchevismo o mesmo desdém pelo povo russo que os nazistas demonstraram pelos alemães Ê esse absolutismo dos movimentos que mais que qualquer outro elemento os separa das estruturas e da parcialidade dos partidos e serve para justificar sua pretensão de invalidar todas as objecões da consciência individual A realidade particular do indivíduo é posta contra o pano de fundo da realidade espúria do geral e do universal reduzse a uma quantidade insignificante ou desaparece na corrente do movimento dinâmico do próprio universal Nessa corrente a diferença entre os fins e os meios evaporase juntamente com a personalidade e o resultado é a monstruosa imoralidade da política ideológica Tudo o que é pertinente é encarnado pelo próprio movimento em ação toda idéia e todo valor desaparecem na confusão da imanencia pseudocientífica e supersticiosa 3 PARTIDOEMOVIMENTO A principal diferença entre o imperialismo continental e o ultramarino é que os sucessos e os fracassos iniciais dos dois foram exatamente opostos Enquanto o imperialismo continental mesmo em seu começo conseguiu realizar sua hostilidade contra o Estadonação organizando vastas camadas do povo fora do sistema partidário mas sem jamais obter resultados em termos de expansão perceptível o imperialismo ultramarino em sua louca e bemsucedida carreira para a anexação de um número crescente de territórios extensos nunca teve muito sucesso em mudar a estrutura política do seu país de origem A ruína do sistema de Estadosnações preparada por seu próprio imperialismo de ultramar foi finalmente levada a cabo por aqueles movimentos que se haviam originado fora do seu próprio âmbito E quando os movimentos começaram a competir vitoriosamente com o sistema partidário do Estadonação verificouse também que eles só podiam debilitar países que tivessem um sistema multipartidário e que a mera tradição imperialista não era suficiente para lhes dar apelo de massa A GrãBretanha o clássico país do governo bipartidário não chegou a produzir um movimento de orientação fascista ou comunista de qualquer importância fora do seu sistema de partidos O slogan acima dos partidos o apelo a homens de todos os partidos e a bazófia de se manterem bem longe de lutas partidárias e de representarem somente um objetivo nacional eram característicos de todos os grupos imperialistas74 parecendo conseqüência natural do seu interesse exclusivo em polí 74 Como disse o presidente da Kolonialverein Associação Colonial alemã em 1884 Ver Mary E Townsend Origin of modem German colonialism 18711885 Nova York 1921 A Liga Pangermânica sempre insistiu em que estava acima dos partidos isto era e é uma condição vital para a Liga Otto Bonhard op cit O primeiro partido verdadeiro que alegou ser mais de um partido ou seja um partido imperial foi o Partido Nacional Liberal da Alemanha sob a liderança de Ernest BassermannFrymann op cit 282 tica externa esfera em que a nação de qualquer modo devia agir como um todo independente de classes e de partidos75 Além disso como nos sistemas continentais essa representação da nação como um todo havia sido o monopólio do Estado76 poderia até parecer que os imperialistas colocavam os interesses do Estado acima de tudo ou que o interesse da nação como um todo finalmente encontrara neles o apoio popular que buscava havia tanto tempo Contudo a despeito de todas essas pretensões de verdadeira popularidade os partidos acima de partidos não passavam de pequenas sociedades de intelectuais que como a Liga Pangermânica só encontravam maior apoio em horas de emergência nacional77 A invenção decisiva dos movimentos de unificação portanto não foi o alegarem estar fora e acima do sistema partidário mas sim o fato de se chamarem de movimentos sua própria denominação refletindo a profunda desconfiança nos partidos tão corrente na Europa desde o fim do século XIX que nos dias da República de Weimar cada novo grupo achava que a melhor maneira de se legitimizar e apelar às massas era insistir em que não era um partido e sim um movimento 78 Na verdade a real desintegração do sistema partidário europeu não foi provocada pelos movimentos de unificação mas pelos movimentos totalitários Os movimentos de unificação porém que se situavam entre as pequenas e relativamente inofensivas sociedades imperialistas e os movimentos totalitários foram precursores destes últimos no sentido de já terem abandonado o elemento de esnobismo tão marcante de todas as ligas imperialistas fosse o esnobismo da riqueza e da linhagem dos ingleses ou da educação na Alemanha podendo portanto tirar partido do profundo ódio do povo contra essas insti Na Rússia bastava que os paneslavos pretendessem ser apenas uma fonte do apoio popular ao governo para deixarem de competir com os partidos pois o governo como o Supremo poder em ação não pode ser concebido como tendo relação com os partidos Esta é a opinião de M N Katkov íntimo colaborador jornalístico de Pobiedonostzev Ver Olgin op cit p 57 75 Evidentemente esse era ainda o propósito dos primeiros grupos acima de partidos entre os quais até 1918 a Liga Pangermânica se deve ainda incluir Permanecendo fora de todos os partidos políticos organizados podemos agir à nossa maneira puramente nacional Não perguntamos você é conservador Ê liberal A nação alemã é o ponto de encontro onde todos os partidos podem ter causa comum Lehr Zwecke und Ziele des alldeutschen Verbandes Fins e alvos da Liga Pangermânica Flugschriften Folhas n 14 Tradução citada por Wertheimer op citp 110 76 Carl Schmitt Staat Bewegung Volk Estado movimento povo 1934 fala do monopólio da política que o Estado adquiriu durante os séculos XVII e XVIII 77 Wertheimer op cit descreve bastante corretamente a situação quando diz Ê completamente absurdo que tenha havido qualquer ligação vital antes da guerra entre a Liga Pangermânica e o governo imperial Por outro lado era perfeitamente verdadeiro que a política alemã durante a Primeira Guerra Mundial era decisivamente influenciada pelos pangermanistas porque o corpo de oficiais superiores se haviam tornado pangermanista Ver Hans DelbrUck Ludendorffs Selbstportrait O autoretrato de Ludendorff Berlim 1922 Compare também seu artigo anterior sobre o assunto Die Alldeutschen Os pangermanistas em Preussische Jahrbücher Anais prussianos 154 dezembro de 1913 78 Sigmund Neumann Die deutschen Parteien Os partidos alemães 1932 283 tuições que supostamente o representavam79 Não é surpreendente que a atração dos movimentos na Europa pouco tenha diminuído com a derrota do nazismo e com o crescente medo do bolchevismo Atualmente a GrãBretanha é o único país da Europa em que o Parlamento não é desprezado e onde o sistema partidário não desperta a animosidade do povo80 Diante da estabilidade das instituições políticas nas Ilhas Britânicas e o simultâneo declínio de todos os Estadosnacões do continente europeu é preciso concluir que a diferença entre o sistema partidário anglo saxão e o continental deve ter sido fator importante Porque não era tão grande a diferença meramente material entre uma Inglaterra fortemente empobrecida e uma França nãodestruída após a Segunda Guerra Mundial o desemprego importante fator gerador de revoluções na Europa antes da guerra havia atingido a Inglaterra com maior gravidade que a muitos países continentais e os choques aos quais foi submetida a estabilidade política da Inglaterra logo depois da guerra quando o governo trabalhista liquidava a presença imperialista na índia tentando construir uma política externa em bases nãoimperialistas devem ter sido tremendos Nem a simples diferença de estrutura social explica a relativa força da GrãBretanha pois a base econômica do seu sistema foi profundamente alterada pelo governo socialista sem que surgisse qualquer mudança decisiva nas instituições políticas Por trás da diferença externa entre o sistema bipartidário anglosaxônico e o sistema multipartidário da Europa continental existe uma distinção fundamental e de profundas conseqüências para a atitude do partido em relação ao poder entre a função do partido dentro do corpo político e a posição do cidadão dentro do Estado No sistema bipartidário um partido sempre representa o governo e realmente governa o país de sorte que temporariamente o partido no poder identificase com o Estado O Estado como garantia permanente da unidade do país é representado apenas pela permanência da função do rei81 Como ambos os partidos são planejados e organizados para governarem alternadamente82 todos os setores da administração são planejados e 79 Moeller van den Bruck Das dritteReich O Terceiro Reich 1923 pp viiviii descreve a situação Quando a Guerra Mundial terminou em derrota encontrávamos alemães por toda parte que diziam estar fora de todos os partidos que falavam de se libertarem dos partidos que buscavam um ponto de vista acima de partidos Uma completa falta de respeito pelos Parlamentos que nunca sabem o que realmente se passa no país é muito comum entre o povo 80 A insatisfação inglesa com certos fenômenos parlamentares nada tem a ver com esse sentimento antiparlamentar os ingleses só se opõem ao que impede o Parlamento de funcionar devidamente 81 O sistema partidário inglês que é o mais antigo de todos começou a tomar forma somente quando os negócios do Estado deixaram de ser a exclusiva prerrogativa da Coroa isto é depois de 1688 O papel do rei tem sido historicamente o de representar a nação como unidade em contraposição com a luta faccional dos partidos Ver o artigo Political parties 3 Great Bri tain de W A Rudin naEncyclopedia ofthe social sciences 82 No livro que parece ser a primeira história do partido George W Cooke The history ofparty Londres 1836 define o assunto no prefácio como um sistema pelo qual duas classes de estadistas governam alternadamente um poderoso império 284 organizados para essa alternação E como o governo de cada partido é limitado no tempo o partido da oposição exerce um controle cuja eficiência é fortalecida pela certeza de que governará amanhã De fato é a oposição e não a posição simbólica do rei que garante a integridade do todo contra a ditadura unipartidária As vantagens desse sistema são óbvias elimina as diferenças essenciais entre o governo e o Estado mantém tanto o poder como o Estado ao alcance do cidadão organizado em partido que representa o Estado de hoje ou de amanhã e conseqüentemente não dá azo a especulações grandiosas a respeito do Poder e do Estado como se fossem algo fora do alcance humano entidades metafísicas independentes da vontade e da ação do cidadão O sistema partidário do continente pressupõe que cada partido se defina conscientemente como parte do todo e este todo por sua vez é representado por um Estado acima dos partidos83 enquanto o governo unipartidário só pode significar o domínio ditatorial de um partido sobre todos os outros Já os governos formados por alianças entre líderes partidários são apenas governos partidários claramente distintos do Estado que permanece acima e além de todos eles Uma das desvantagens desse sistema é que os membros do gabinete não podem ser escolhidos segundo sua competência pois quando há muitos partidos representados os ministros são necessariamente escolhidos segundo as alianças partidárias84 o sistema britânico por outro lado permite a escolha dos homens mais capazes dentre os vastos escalões de um só partido Muito mais importante contudo é o fato de que o sistema multipartidário nunca permite que um só homem ou um só partido assuma inteira responsabilidade Assim é perfeitamente natural que nenhum governo formado por alianças entre partidos se sinta inteiramente responsável Mas se acontecer o improvável e a maioria absoluta de um partido dominar o Parlamento e formar um governo unipartidário resultará em uma ditadura pois o sistema não está preparado para esse tipo de governo ou em problemas para a liderança que ainda que democrata e acostumada a exercer o poder apenas em parte reluta em usálo plenamente Essa consciência funcionou de modo quase exemplar quando após a Primeira Guerra Mundial os partidos socialdemocratas da Alemanha e da Áustria fo 83 A melhor descrição da essência do sistema partidário continental é dada pelo jurista suíço Johann Caspar Bluntschli Charakter und Geist der politischen Parteien Caráter e espírito dos partidos políticos 1869 Diz ele È verdade que um partido é apenas parte de um todo maior nunca o próprio todo Nunca deve identificarse com o todo o povo ou o Estado Portanto um partido pode lutar contra outros partidos mas não deve nunca ignorálos e geralmente não deve querer destruílos Nenhum partido pode existir apenas por si mesmo p 3 A mesma idéia é expressa por Karl Rosenkrantz filósofo hegeliano alemão cujo livro sobre os partidos políticos surgiu antes que existissem partidos na Alemanha Ueber den Begrieff der politischen Partei Do alcance dos partidos políticos 1843 O partido é a parcialidade consciente p 9 84 Ver John Gilbert Heinberg Comparative major European governments Nova York 1937 capítulo vii e viii Na Inglaterra um dos partidos políticos geralmente tem uma maioria na Câmara dos Comuns e os líderes dos partidos são membros do Gabinete Na França nenhum partido político ativo jamais chegou a alcançar a maioria da Câmara de Deputados e conseqüentemente o Conselho de Ministros é formado de líderes de vários grupos partidários p 158 285 ram guindados por breve tempo à posição de partidos de maioria absoluta e no entanto repudiaram o poder que essa posição lhes dava85 Desde o surgimento do sistema patidário é corriqueiro identificar os partidos com interesses particulares econômicos ou de outra natureza86 todos os partidos continentais e não apenas grupos trabalhistas admitiamno com franqueza seguros de que o Estado acima dos partidos exerceria o seu poder mais ou menos no interesse de todos O partido anglosaxão ao contrário baseado em princípios para servir ao interesse nacional87 representa o atual ou futuro Estado do país os interesses particulares têm a sua representação dentro do próprio partido sob forma de ala direita ou esquerda e são refreados pelas próprias necessidades do governo E como no sistema bipartidário um partido não pode existir durante tempo algum se não tem força suficiente para assumir o poder não há necessidade de qualquer justificativa teórica não se criam ideologias e não existe o fanatismo peculiar à luta partidária do continente que resulta não tanto do conflito de interesses quanto de ideologias antagônicasM Separados do governo e do poder os partidos continentais estavam presos à mesquinhez dos interesses particulares mais do que isso envergonhavamse desses interesses e assim criaram justificativas que levariam cada um a uma ideologia que alegava que os seus interesses particulares coincidiam com os interesses gerais da humanidade O partido conservador não se contentava em defender os interesses da propriedade rural necessitava de uma filosofia segundo a qual Deus havia criado o homem para trabalhar a terra com o suor do 85 Ver a introdução a Demokratie und Partei Democracia e partido editado por Peter R Rohden Viena 1932 Os partidos alemães se caracterizam pelo fato de os grupos parlamentares não aceitarem a representação da volonté générale Por isso os partidos ficaram tão embaraçados quando a Revolução de Novembro de 1918 os trouxe ao poder Cada um deles era organizado de modo a só poder fazer uma reivindicação relativa ou seja reconhecia sempre a existência dos outros partidos que representavam outros interesses parciais e eram assim naturalmente limitados em suas próprias ambições pp 134 86 O sistema partidário continental é muito recente Com exceção dos partidos franceses que datam da Revolução Francesa nenhum país europeu conhecia a representação partidária antes de 1848 Os partidos vieram a existir através da formação de facções no Parlamento Na Suécia o Partido SocialDemocrata foi o primeiro em 1889 a ter um programa completamente formulado Encyclopedia of socialsciences loc cit Quanto à Alemanha ver Ludwig Bergstraesser Geschischte der politischen Parteien A história dos partidos políticos 1921 Todos os partidos se baseavam abertamente na defesa de interesses o Partido Conservador Alemão por exemplo surgiu da Associação para a defesa dos interesses dos proprietários de terra fundada em 1848 Contudo os interesses não eram necessariamente econômicos Os partidos holandeses por exemplo foram formados em redor das duas questões que tanto preocupam a política holandesa a ampliação do direito de voto e o subsídio da educação privada principalmente confessional Encyclopedia of thesocialscience loc cit 87 Esta é a definição de partido de Edmund Burke O partido é um grupo de homens unidos para promoverem o interesse nacional pelo trabalho conjunto de acordo com algum princípio particular que todos os seus membros aceitam Uponparty 2 edição Londres 1850 88 Arthur N Holcombe Encyclopedia ofthe social sciences loc cit acentuou com razão que no sistema bipartidário os princípios dos dois partidos tem tido a tendência de serem idênticos Se não fossem substancialmente os mesmos a submissão ao vencedor teria sido intolerável para o vencido 286 seu rosto O mesmo se aplica à ideologia do progresso dos partidos da classe média e à asserção dos partidos trabalhistas de que o proletariado é o líder da humanidade Essa estranha combinação de alta filosofia e comezinhos interesses só é paradoxal à primeira vista Uma vez que esses partidos não organizavam os seus adeptos nem educavam os seus líderes para o fim de cuidarem dos negócios públicos mas os representavam apenas como indivíduos privados com interesses privados tinham de atender a todas as necessidades privadas tanto espirituais como materiais Em outras palavras a principal diferença entre o partido anglosaxônico e o partido continental é que o primeiro é uma organização política de cidadãos que precisam agir em conjunto para poderem agir com eficácia89 enquanto o segundo é a organização de indivíduos privados que querem proteger os seus interesses contra a interferência dos negócios públicos Coerente com esse sistema a filosofia estatal do continente europeu reconhecia o homem como cidadão somente enquanto ele não fosse membro de um partido ou seja em seu relacionamento individual e não organizado com o Estado Staatsbürger ou em seu entusiasmo patriótico em casos de emergência citoyens90 Esse foi o infeliz resultado da transformação do citoyen da Revolução Francesa no bourgeois do século XIX e do antagonismo entre o Estado e a sociedade Os alemães tendiam a considerar o patriotismo como um obediente auto esquecimento diante das autoridades e os franceses como uma entusiástica lealdade ao fantasma da França eterna Em ambos os casos o patriotismo consistia no abandono dos interesses partidários e parciais do homem em favor dos interesses do governo e da nação O fato é que essa deformação nacionalista era quase inevitável num sistema que criava partidos políticos a partir de interesses privados de sorte que o bem público dependia da força que emanava de cima e de um vago e generoso autosacrifício vindo de baixo o qual só podia ser conseguido através da exaltação de paixões nacionalistas Na Ingla 89 Burke op cit Eles acreditavam que os homens não podem agir com eficácia se não agirem em concerto que não podem agir em concerto se não agirem com confiança que não podem agir com confiança se não forem ligados por opiniões comuns afeições cpmuns e interesses comuns 90 Quanto ao conceito centroeuropeu de cidadão Staatsbürger em contraposição ao membro do partido ver Bluntschli op cit Os partidos não são instituições estatais não fazem parte de um organismo do Estado mas são associações sociais livres cuja formação depende de um corpo de membros mutável unido para a ação política comum por uma convicção definida A diferença entre o Estado e o partido é repetidamente acentuada O partido nunca deve colocarse acima do Estado e nunca deve colocar o seu interesse partidário acima do interesse do Estado pp 9el0 Burke pelo contrário argumenta contra o conceito segundo o qual os interesses partidários ou o fato de pertencer a um partido fazem do homem um cidadão pior As comunidades são feitas de famílias as comunidades livres são feitas de partidos e afirmar que nossas preocupações naturais e nossos laços de sangue tendem a transformar o homem em mau cidadão é como dizer que os laços dos nossos partidos enfraquecem os laços que nos ligam à nação op cit Lorde John Russel Onparty 1850 vai um passo adiante quando afirma que o melhor dos efeitos dos partidos é que dão substância às vagas opiniões dos políticos e os prendem a princípios constantes e duradouros 287 terra pelo contrário o antagonismo entre os interesses privados e nacionais nunca teve papel decisivo na política Assim quanto mais o sistema pluripartidário refletia os interesses de classe mais a nação necessitava do nacionalismo de algum apoio por parte do povo aos interesses nacionais apoio do qual a Inglaterra com seu governo direto baseado em partido e oposição nunca precisou muito Quando consideramos a diferença entre o sistema multipartidário do Continente e o sistema bipartidário britânico no que tange à predisposição para a criação de movimentos parece mais fácil a uma ditadura unipartidária assenhorearse da máquina estatal em países onde o Estado está acima dos partidos e portanto acima dos cidadãos do que em países onde os cidadãos por agirem em conjunto isto é através da organização de um partido podem galgar legalmente o poder e se sentem como donos do Estado seja o de hoje seja de amanhã Mais plausível ainda é que a mistificação do poder inerente aos movimentos cresça com facilidade diretamente proporcional ao afastamento dos cidadãos das fontes do poder ou seja o misticismo do poder ocorre mais facilmente nos países governados por burocracia onde o poder positivamente transcende a capacidade de compreensão do governado do que nos países governados constitucionalmente onde a lei se coloca acima do poder e o poder é apenas um meio de fazêla cumprir e ainda mais facilmente nos países em que o poder estatal fica além do alcance dos partidos isto é fora do alcance da ação do cidadão mesmo que permaneça ao alcance de sua inteligência A alienação das massas em relação ao governo que originou o seu ódio ao Parlamento foi diferente na França e em outras democracias do Ocidente de um lado e nos países da Europa central principalmente na Alemanha de outro Na Alemanha onde o Estado se colocava por definição acima dos partidos os líderes partidários geralmente abandonavam sua fidelidade partidária assim que se tornavam ministros e recebiam encargos oficiais A deslealdade ao próprio partido era o dever de quem quer que assumisse um cargo público91 Na França governada por coligações partidárias desde o estabelecimento da Terceira República com seu recorde fantástico de gabinetes não foi possível formar um verdadeiro governo A fraqueza da França era o oposto da fraqueza alemã os franceses haviam liquidado o Estado que se colocava acima dos partidos e acima do Parlamento sem reorganizarem seu sistema partidário num corpo capaz de governar O governo tornouse necessariamente um expoente ridículo das atitudes do Parlamento e da opinião pública em constante mu 91 Comparese com essa atitude o marcante fato de que na GrãBretanha Ramsay Mac Donald nunca conseguiu que sua traição ao Partido Trabalhista fosse esquecida Na Alemanha o espírito do serviço público exigia que um ocupante de cargo público estivesse acima dos partidos Contra esse espírito do velho serviço público prussiano os nazistas afirmaram a prioridade do partido porque almejavam a ditadura Goebbels exigiu explicitamente Cada membro do Partido que se tornar um funcionário do Estado tem de permanecer em primeiro lugar um nacional socialista e cooperar intimamente com a administração do Partido citado por Gottfried Neesse Partei und Staat Partido e Estado 1939 288 tação Por outro lado o sistema alemão transformou o Parlamento num campo de batalha mais ou menos útil a interesses e opiniões em conflito sendo sua principal função a de influenciar o governo embora sua utilidade prática na condução dos negócios estatais fosse discutível Na França os partidos sufocaram o governo na Alemanha o governo emasculou os partidos Desde o fim do século XIX a reputação desses parlamentos e partidos constitucionais declinara constantemente para o povo em geral pareciam instituições caras e desnecessárias Bastava este motivo para que um grupo que alegasse apresentar alguma coisa acima dos interesses de partidos e de classe e que surgisse fora do Parlamento tivesse muita chance de se tornar popular Esses grupos pareciam mais competentes mais sinceros e mais interessados nos negócios públicos do que os partidos Mas isso era assim apenas na aparência pois o verdadeiro objetivo de todo partido acima dos partidos era promover um interesse particular até subjugar todos os outros e fazer com que um grupo particular se apossasse da máquina do Estado Foi isso o que finalmente ocorreu na Itália sob o fascismo de Mussolini que até 1938 não era totalitário mas apenas uma ditadura nacionalista comum que havia evoluído logicamente a partir de uma democracia multipartidária Porque se há realmente um grão de verdade no velho truísmo acerca da afinidade entre o governo majoritário e a ditadura essa afinidade nada tem a ver com o totalitarismo É óbvio que após muitas décadas de governo multipartidário ineficiente e confuso a tomada do poder por um só partido pode parecer um alívio pois garante pelo menos se bem que por tempo limitado certa coerência certa permanência e um pouco menos de contradição O fato de que a tomada do poder pelos nazistas foi tida geralmente como uma dessas ditaduras unipartidárias demonstrou simplesmente até que ponto o pensamento político ainda estava arraigado nos velhos padrões estabelecidos e quão pouco estava o povo preparado para o que realmente estava por vir É verdade que também o partido fascista insistiu em que era um movimento Mas não o era havia meramente usurpado a expressão movimento para atrair as massas como se evidenciou logo que se apossou da máquina do Estado sem mudar drasticamente a estrutura de poder do país contentandose em preencher todas as posições governamentais com os membros do partido Exatamente por identificarse com o Estado o que tanto os nazistas como os bolchevistas sempre evitaram cuidadosamente o partido fascista deixou de ser movimento já que os movimentos caracterizavamse pela luta contra a estrutura do Estado enquanto o fascismo o aceitou na sua imobilidade estrutural Embora os movimentos totalitários e os seus predecessores os movimentos de unificação não fossem partidos acima de partidos que aspirassem à tomada da máquina estatal e sim formações que visavam à destruição do Estado os nazistas lucraram fingindo que constituíam um partido e que seguiriam fielmente o modelo italiano do fascismo Puderam assim granjear o apoio da elite da classe alta e do mundo dos negócios que julgaram tratarse de um daqueles antigos grupos parapartidários que eles mesmos haviam fundado tantas vezes e cuja única e modesta pretensão era conquistar a máquina estatal 289 para um só partido92 Os negociantes que ajudaram Hitler a galgar o poder acreditavam ingenuamente estarem apenas apoiando um ditador um ditador feito por eles mesmos e que naturalmente governaria em proveito de sua própria classe e em detrimento de todas as outras Os partidos acima de partidos de inspiração imperialista nunca souberam como capitalizar o ódio popular ao sistema partidário em si o frustrado imperialismo alemão de antes da Primeira Guerra a despeito dos seus sonhos de expansão continental e de sua violenta denúncia das instituições democráticas do Estadonaçâo jamais chegou a constituir movimento Certamente não bastava a arrogância de deixar de lado os interesses de classe que eram a própria base do sistema partidário da nação pois isso os tornava ainda menos atraentes que os partidos comuns O que faltava aos imperialistas alemães apesar do seu altissonante fraseado nacionalista era uma ideologia verdadeira quer nacionalista quer de outra natureza Após a Primeira Guerra Mundial quando os pangermanistas alemães especialmente Ludendorff reconheceram esse erro e tentaram corrigilo fracassaram a despeito de sua notável capacidade de apelar às crenças mais supersticiosas da massa porque se apegavam a um culto estatal desatualizado e não totalitário e não compreendiam que o furioso interesse das massas pelos chamados poderes supraestatais überstaatliche Mâchté como jesuítas judeus e maçons não provinha do apreço ao Estado ou à nação mas ao contrário da inveja e do desejo de se tornarem também uma força supraestatal93 Os únicos países onde ao que tudo indicava a idolatria do Estado e o culto da nação ainda estavam em moda e onde os slogans nacionalistas contra as forças supraestatais ainda correspondiam ao interesse do povo eram aquelas nações latinoeuropéias como a Itália e em menor intensidade a Espanha e Portugal cujo desenvolvimento nacional havia sido seriamente prejudicado pelo poder da Igreja Em parte devido a esse fator de atraso no desenvolvimento nacional e em parte graças à sabedoria da Igreja que sensatamente reconheceu não ser o fascismo nem anticristão nem totalitário em seus princípios e apenas estabeleceu uma separação entre Igreja e Estado que já existia em outros países a atitude inicialmente anticlerical do nacionalismo fascista rapidamente deu lugar a um modus vivendi como na Itália ou a uma aliança como na Espanha e em Portugal A interpretação de Mussolini da idéia do Estado corporativo era uma tentativa de vencer os notórios perigos nacionais de uma sociedade dominada por 92 Como o Kolonialverein o Centralverein für Handelsgeographie o Flottenverein Liga Naval ou mesmo a Liga Pangermânica que embora anterior à Primeira Guerra Mundial não tinha qualquer conexão com os grandes negócios Ver Wertheimer op cit p 73 Típicos desses partidos acima dos partidos da burguesia eram naturalmente os Nationalliberalen nacionalliberais ver nota 74 93 Erich Ludendorff Die überstaatlichen Màchte im letzten Jahre des Weltkrieges As forças supraestatais no último ano da Guerra Mundial Leipzig 1927 Ver também Feldhermworte 1938 2 vols 14355 II 80 290 classes graças a uma nova organização social integrada94 para assim solucionar o antagonismo entre o Estado e a sociedade sobre a qual o Estadonação se havia baseado incorporando a sociedade ao Estado95 O movimento fascista que era um partido acima de partidos na medida em que dizia representar o interesse da nação como um todo apoderouse da máquina estatal identificouse com a mais alta autoridade nacional e tentou transformar todo o povo em parte do Estado Não se considerava contudo acima do Estado e os seus líderes não se julgavam acima da nação96 No tocante aos fascistas seu movimento havia terminado com a tomada do poder pelo menos no que se referia à política doméstica agora só podiam manter o seu ímpeto em assuntos de política externa no sentido de expansão imperialista e aventuras tipicamente imperialistas Quanto aos nazistas mesmo antes de tomarem o poder mantiveramse claramente alheios a essa forma fascista de ditadura na qual o movimento serve apenas para trazer o partido ao poder e conscientemente usaram o partido para levar adiante o movimento que ao contrário do partido não deve ter quaisquer objetivos definidos rigorosamente determinados97 O melhor exemplo da diferença entre o movimento fascista e os movimentos totalitários é a sua atitude em relação ao Exército isto é em relação à instituição nacional par excellence Ao contrário dos nazistas e dos bolchevistas que destruíram o espírito do Exército subordinandoo aos comissários políticos ou às formações totalitárias de elite os fascistas se utilizavam do Exército com o qual se identificavam como se haviam identificado com o Estado Queriam um Estado fascista e um Exército fascista mas que ainda fossem um Exército e um Estado só na Alemanha nazista e na Rússia soviética é que Exército e 94 A principal finalidade do Estado corporativo era a de corrigir e neutralizar uma condição provocada pela revolução industrial do século XIX que desassociou o capital do trabalho fazendo surgir de um lado uma classe capitalista de empregadores de mãodeobra e de outro uma grande classe sem propriedades o proletariado industrial A justaposição dessas classes levava inevitavelmente ao choque dos seus interesses opostos A era fascista publicado pela Confederação Fascista das Indústrias Roma 1939 cap iii 95 Se o Estado deve realmente representar a nação então o povo que compõe a nação deve ser parte do Estado Como conseguir isto A resposta fascista é organizando o povo em grupos segundo suas respectivas atividades grupos que através dos seus lideres ascendem por estágios como numa pirâmide em cuja base estão as massas e em cujo vértice está o Estado Nenhum grupo fora do Estado nenhum grupo contra o Estado todos os grupos dentro do Estado que é a nação articulada Ibid 96 Quanto à relação entre o partido e o Estado nos paises totalitários e especialmente a incorporação do partido fascista pelo Estado italiano ver Franz Neumann Behemoth 1942 capítulo 1 97 Ver a apresentação extremamente interessante da relação entre partido e movimento no Dienstvorschrift für die Parteiorganisation der NSDAP Normas de serviço para a organização partidária do NSDAP 1932 pp II ss e a apresentação de Werner Best em Die deutsche Polizei A polícia alemã 1941 p 107 que tem a mesma orientação E a tarefa do Partido manter o movimento unido e darlhe apoio e direção 291 Estado se tornaram funções subordinadas ao movimento O ditador fascista mas não Hitler nem Stálin era no sentido da teoria política clássica o verdadeiro usurpador e o seu governo unipartidário era em certo sentido o único que ainda permanecia intimamente ligado ao sistema multipartidário Realizou aquilo que as ligas sociedades e partidos acima de partidos de orientação imperíalista haviam almejado de sorte que o fascismo italiano veio a ser particularmente o único exemplo de uni movimento de massa moderno organizado dentro da estrutura de um Estado existente inspirado exclusivamente pelo extremo nacionalismo e que transformou o povo permanentemente naqueles Staatsbürger oupatriotes que ostadonação só havia conseguido mobilizar em horas de emergência e de union sacrée Não existem movimentos sem ódio ao Estado e este ódio era virtualmente desconhecido dos pangermanistas alemães na relativa estabilidade da Alemanha antes da Primeira Guerra Os movimentos partiram da ÃustriaHungria onde o ódio ao Estado era uma expressão de patriotismo das nacionalidades oprimidas e onde os partidos com a exceção do Partido SocialDemocrata que junto com o Partido SocialCristão era o único sinceramente leal à Áustria tinham uma orientação nacional e não de classes Isso havia sido possível porque na Áustria os interesses econômicos e de nacionalidades eram quase idênticos e porque a posição econômica e social do indivíduo dependia grandemente da nacionalidade o nacionalismo portanto que havia sido uma força unificadora nos Estadosnações tornouse ali um elemento de destruição interna o que resultou numa diferença decisiva na estrutura dos partidos nos Estadosnações em relação aos partidos na ÃustriaHungria O que unia os membros dos partidos na ÃustriaHungria multinacional não era um interesse particular como nos outros sistemas partidários continentais ou um princípio particular de ação organizada como no sistema anglosaxão mas principalmente o sentimento de pertencer à mesma nacionalidade A rigor isso deveria ter sido e foi uma grande fraqueza dos partidos austríacos porque não é possível deduzir objetivos ou programas definidos a partir do sentimento de se pertencer a uma tribo Os movimentos de unificação étnica fizeram dessa desvantagem uma virtude transformando os partidos em movimentos e descobrindo aquela forma de organização que em contraste com todas as outras nunca teria necessidade de um objetivo ou programa podendo mudar sua política de um dia para outro sem com isso perder os seus membros Muito antes que o nazismo orgulhosamente anunciasse que embora tivesse um programa não precisava têlo o pangermanismo descobriu o quanto uma atitude geral era mais importante para a conquista das massas do que plataformas ideológicas e programas escritos Pois a única coisa que importa num movimento é precisa 98 Mussolini em seu discurso de 14 de novembro de 1933 defende o seu governo unipartidário com os mesmos argumentos usados em todos os Estadosnações durante uma guerra um único partido político é necessário para que possa existir disciplina política e para que o laço de um destino comum possa unir a todos contra interesses conflitantes Benito Mussolini Quatro discursos sobre o Estado corporativo Roma 1935 292 mente manterse em constante movimento99 Assim os nazistas costumavam referirse aos catorze anos da República de Weimar como a era do Sistema Systemzeit querendo dizer com isso que fora uma época estéril sem dinamismo que não se movia enquanto a deles seria a era do movimento O Estado mesmo como ditadura unipartidária era considerado um estorvo às necessidades em contínua mutação de um movimento em constante crescimento A diferença mais característica entre o grupo imperíalista acima de partidos da Liga Pangermânica na própria Alemanha e o movimento pangermânico da Áustria estava exatamente nas suas atitudes em relação ao Estado100 enquanto o partido acima de partidos queria apenas apoderarse da máquina estatal o verdadeiro movimento visava a sua destruição enquanto o primeiro ainda reconhecia no Estado a sua mais alta autoridade quando a representação do Estado caía nas mãos dos membros de um partido como na Itália de Mussolini o último via o movimento independente do Estado e superior a ele em autoridade A hostilidade dos movimentos de unificação étnica contra o sistema partidário adquiriu significado prático quando depois da Primeira Guerra Mundial o sistema partidário deixou de ser um mecanismo operante e o sistema de classes da sociedade européia entrou em colapso sob o peso crescente das massas inteiramente marginalizadas pelos acontecimentos A essa altura o que veio à tona já não eram simples movimentos de unificação mas os seus sucessores totalitários que em poucos anos determinaram a política dos demais partidos a tal ponto que todos se tornaram antifascistas antibolchevistas ou ambos101 Com essa atitude negativa aparentemente imposta por forças externas os partidos mais antigos demonstraram claramente que também já não eram capazes de funcionar como representantes de interesses específicos de classe e que se haviam transformado em meros defensores do status quo A rapidez com que os pangermanistas alemães e austríacos aderiram ao nazismo tem um paralelo no modo muito menos rápido e mais complicado pelo qual os paneslavistas descobriram finalmente que a liquidação da Revolução Russa de Lênin havia sido suficientemente completa para que eles pudessem dar a Stálin seu entusiástico apoio Não foi culpa dos pangermanistas nem dos pan eslavos e mal serviu para refrear o seu entusiasmo o fato de que o nazismo e o bolchevismo no 99 É digna de nota a seguinte ocorrência registrada por Berdyaev Um jovem soviético foi à França e lhe perguntaram que impressão a França lhe havia deixado Respondeu Não há liberdade neste país O jovem explicou sua idéia de liberdade A chamada liberdade francesa era do tipo que deixava tudo inalterado cada dia era como os dias anteriores e assim o jovem que viera da Rússia estava entediado na França op cit pp 1823 100 A hostilidade austríaca ao Estado às vezes aparecia também entre os pangermanistas alemães especialmente se se tratasse deAusIandsdeutsche alemães no exterior como Moeller van den Bruck 101 Hitler descreveu a situação corretamente quando disse durante as eleições de 1932 Contra o nacionalsocialismo só existem na Alemanha as maiorias negativas citado por Konrad Heiden DerFührer 1944 p 564 293 Estado se tornaram funções subordinadas ao movimento O ditador fascista mas não Hitler nem Stálin era no sentido da teoria política clássica o verdadeiro usurpador e o seu governo unipartidário era em certo sentido o único que ainda permanecia intimamente ligado ao sistema multipartidário Realizou aquilo que as ligas sociedades e partidos acima de partidos de orientação imperialista haviam almejado de sorte que o fascismo italiano veio a ser particularmente o único exemplo de unimovimento de massa moderno organizado dentro da estrutura de um Estado existente inspirado exclusivamente pelo extremo nacionalismo e que transformou o povo permanentemente naqueles Staatsbürger owpatriotes que ostadomação só havia conseguido mobilizar em horas de emergência e de union sacrée96 Não existem movimentos sem ódio ao Estado e este ódio era virtualmente desconhecido dos pangermanistas alemães na relativa estabilidade da Alemanha antes da Primeira Guerra Os movimentos partiram da ÀustriaHungria onde o ódio ao Estado era uma expressão de patriotismo das nacionalidades oprimidas e onde os partidos com a exceção do Partido SocialDemocrata que junto com o Partido SocialCristão era o único sinceramente leal à Áustria tinham uma orientação nacional e não de classes Isso havia sido possível porque na Áustria os interesses econômicos e de nacionalidades eram quase idênticos e porque a posição econômica e social do indivíduo dependia grandemente da nacionalidade o nacionalismo portanto que havia sido uma força unificadora nos Estadosnações tornouse ali um elemento de destruição interna o que resultou numa diferença decisiva na estrutura dos partidos nos Estadosnações em relação aos partidos na ÃustriaHungria O que unia os membros dos partidos na ÃustriaHungria multinacional não era um interesse particular como nos outros sistemas partidários continentais ou um princípio particular de ação organizada como no sistema anglosaxão mas principalmente o sentimento de pertencer à mesma nacionalidade A rigor isso deveria ter sido e foi uma grande fraqueza dos partidos austríacos porque não é possível deduzir objetivos ou programas definidos a partir do sentimento de se pertencer a uma tribo Os movimentos de unificação étnica fizeram dessa desvantagem uma virtude transformando os partidos em movimentos e descobrindo aquela forma de organização que em contraste com todas as outras nunca teria necessidade de um objetivo ou programa podendo mudar sua política de um dia para outro sem com isso perder os seus membros Muito antes que o nazismo orgulhosamente anunciasse que embora tivesse um programa não precisava têlo o pangermanismo descobriu o quanto uma atitude geral era mais importante para a conquista das massas do que plataformas ideológicas e programas escritos Pois a única coisa que importa num movimento é precisa 98 Mussolini em seu discurso de 14 de novembro de 1933 defende o seu governo unipartidário com os mesmos argumentos usados em todos os Estadosnações durante uma guerra um único partido político é necessário para que possa existir disciplina política epara que o laço de um destino comum possa unir a todos contra interesses conflitantes Benito Mussolini Quatro discursos sobre o Estado corporativo Roma 1935 292 mente manterse em constante movimento99 Assim os nazistas costumavam referirse aos catorze anos da República de Weimar como a era do Sistema Systemzeit querendo dizer com isso que fora uma época estéril sem dinamismo que não se movia enquanto a deles seria a era do movimento O Estado mesmo como ditadura unipartidária era considerado um estorvo às necessidades em contínua mutação de um movimento em constante crescimento A diferença mais característica entre o grupo imperialista acima de partidos da Liga Pangermânica na própria Alemanha e o movimento panger mânico da Áustria estava exatamente nas suas atitudes em relação ao Estado100 enquanto o partido acima de partidos queria apenas apoderarse da máquina estatal o verdadeiro movimento visava a sua destruição enquanto o primeiro ainda reconhecia no Estado a sua mais alta autoridade quando a representação do Estado caía nas mãos dos membros de um partido como na Itália de Mussolini o último via o movimento independente do Estado e superior a ele em autoridade A hostilidade dos movimentos de unificação étnica contra o sistema partidário adquiriu significado prático quando depois da Primeira Guerra Mundial o sistema partidário deixou de ser um mecanismo operante e o sistema de classes da sociedade européia entrou em colapso sob o peso crescente das massas inteiramente marginalizadas pelos acontecimentos A essa altura o que veio à tona já não eram simples movimentos de unificação mas os seus sucessores totalitários que em poucos anos determinaram a política dos demais partidos a tal ponto que todos se tornaram antifascistas antibolchevistas ou ambos101 Com essa atitude negativa aparentemente imposta por forças externas os partidos mais antigos demonstraram claramente que também já não eram capazes de funcionar como representantes de interesses específicos de classe e que se haviam transformado em meros defensores do status quo A rapidez com que os pangermanistas alemães e austríacos aderiram ao nazismo tem um paralelo no modo muito menos rápido e mais complicado pelo qual os paneslavistas descobriram finalmente que a liquidação da Revolução Russa de Lênin havia sido suficientemente completa para que eles pudessem dar a Stálin seu entusiástico apoio Não foi culpa dos pangermanistas nem dos paneslavos e mal serviu para refrear o seu entusiasmo o fato de que o nazismo e o bolchevismo no 99 É digna de nota a seguinte ocorrência registrada por Berdyaev Um jovem soviético foi à França e lhe perguntaram que impressão a França lhe havia deixado Respondeu Não há liberdade neste país O jovem explicou sua idéia de liberdade A chamada liberdade francesa era do tipo que deixava tudo inalterado cada dia era como os dias anteriores e assim o jovem que viera da Rússia estava entediado na França op cit pp 1823 100 A hostilidade austríaca ao Estado às vezes aparecia também entre os pangermanistas alemães especialmente se se tratasse deAuslandsdeutsche alemães no exterior como Moeller van den Bruck 101 Hitler descreveu a situação corretamente quando disse durante as eleições de 1932 Contra o nacionalsocialismo só existem na Alemanha as maiorias negativas citado por Konrad Heiden DerFührer 1944 p 564 293 auge do poder superaram o mero nacionalismo tribal e pouco se interessaram por aqueles que ainda acreditavam nele em vez de o reconhecerem como mero instrumento de propaganda A decadência do sistema partidário continental acompanhou o declínio do prestígio do Estado nação A homogeneidade nacional foi severamente abalada por migrações e a França a nation par excellence tornouse em poucos anos dependente da mãodeobra estrangeira a política imigratória restritiva inadequada às novas necessidades por mais genuinamente nacional que fosse tornava óbvio o fato de que o Estadonação não tinha mais condições de enfrentar as principais questões políticas da época102 Mais grave ainda foi a malfadada tentativa dos tratados de paz de 1919 de introduzir organizações estatais nacionais na Europa oriental e meridional onde o grupo nacional que formava o Estado dispunha muitas vezes apenas de maioria relativa e era sobrepujado numericamente pelas minorias reunidas dentro das fronteiras do país Essa nova situação bastaria para solapar gravemente a base classista do sistema partidário em toda parte organizavamse partidos de orientação nacional como se a liquidação da Monarquia Dual tivesse servido apenas para desencadear experiências semelhantes embora em escala reduzida103 Em outros países onde o Estadonação e a base classista dos partidos não haviam sido afetados pelas migrações e pela heterogeneidade da população foram a inflação e o desemprego que levaram ao colapso e é evidente que quanto mais rígido era o sistema de classes de um país e quanto mais consciente de classes era o seu povo tanto mais dramático e mais perigoso era esse colapso Tal era a situação entre as duas guerras quando cada movimento tinha mais oportunidade que qualquer partido porque o movimento atacava a instituição do Estado desprezando os apelos de classes O fascismo e o nazismo sempre alardearam que o seu ódio não era dirigido contra determinadas classes mas contra o sistema de classes em si o qual denunciavam como invenção marxista Mais significativo ainda foi que até os comunistas a despeito de sua ideologia marxista tiveram de abandonar a rigidez dos seus apelos de classe quando após 1935 a pretexto de ampliarem sua base de massa formaram Frentes Populares por toda parte e se puseram a apelar às massas dos que não pertenciam a classe alguma e que até então haviam sido presa natural dos movimentos fascistas Nenhum dos partidos mais antigos estava preparado para receber essas massas e não avaliou corretamente a crescente importância do seu número e a crescente influência política dos seus líderes Esse erro de julgamento dos partidos mais antigos explicase pelo fato de que sua posição segura no Parla 102 Quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial pelo menos 10 da população da França era composta de estrangeiros nãonaturalizados Nas minas do Norte trabalhavam principalmente poloneses e belgas na agricultura do Sul espanhóis e italianos Ver CarrSaunders World population Oxford 1936 pp 14558 103 Desde 1918 nenhum dos Estados sucessórios produziu um partido que pudesse abranger mais de uma raça uma religião uma classe social ou uma região A única exceção é o Partido Comunista da Tchecoslováquia Encyclopedia ofthe socialsciences loc cit 294 mento e sua representação garantida nos cargos e instituições do Estado faziam com que se sentissem muito mais próximos das fontes do poder do que das massas julgavam que o Estado permaneceria sempre senhor inconteste de todos os instrumentos de violência e que o Exército a suprema instituição do Estadonação seria sempre o elemento decisivo em todas as crises domésticas Sentiamse portanto perfeitamente à vontade para ridicularizar as numerosas formações paramilitares que surgiam sem qualquer apoio oficial Pois quanto mais o sistema partidário se enfraquecia sob a pressão dos movimentos alheios ao Parlamento e às classes mais depressa desaparecia todo o antigo antagonismo dos partidos em relação ao Estado Os partidos em seu equívoco de um Estado acima de partidos interpretavam essa harmonia erradamente como fonte de força como portentoso relacionamento com algo que pertencia a uma ordem superior Mas a pressão dos movimentos revolucionários era uma ameaça para o Estado como o era para o sistema partidário e o Estado não podia darse ao luxo de manter uma posição necessariamente impopular acima das lutas domésticas internas O Exército havia muito deixara de ser baluarte seguro contra a agitação revolucionária não porque simpatizasse com a revolução mas porque havia perdido a sua posição Por duas vezes em tempos recentes e ambas as vezes na França o Exército havia demonstrado sua absoluta relutância ou incapacidade de ajudar aos que estavam no poder ou de tomar o poder em suas mãos em 1850 quando havia permitido que a turba da Sociedade 10 de Dezembro levasse Napoleão III ao poder104 e novamente no fim do século XIX durante o Caso Dreyfus quando nadateria sido mais fácil que estabelecer uma ditadura militar A neutralidade do Exército sua disposição de servir a qualquer senhor deixou finalmente o Estado numa posição de mediador entre interesses partidários organizados Já não estava acima mas entre as classes da sociedade105 Em outras palavras o Estado e os partidos juntos defendiam o status quo sem se aperceberem de que nessa mesma aliança já estava o embrião da mudança do status quo O colapso do sistema partidário europeu ocorreu de modo espetacular com a subida de Hitler ao poder Hoje muitas vezes esquecese que quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial a maioria dos países europeus já havia adotado alguma forma de ditadura e se afastado do sistema partidário e que essa revolucionária mudança de governo ocorrera na maioria dos países sem qualquer agitação revolucionária A ação revolucionária na maioria das vezes não refletia verdadeira luta pelo poder mas era uma concessão teatral aos desejos das massas violentamente descontentes Afinal não importava muito que alguns milhares de pessoas sem armas marchassem sobre Roma e tomassem o governo da Itália ou que na Polônia em 1934 um chamado bloco sem partido com um programa de apoio a um governo semifascista e com a participação de gente vinda da nobreza e das mais pobres massas camponesas trabalhadores e ho 104 Ver Karl Marx op cit 105 Carl Schmitt op cit p 31 295 mens de negócios católicos e judeus ortodoxos conquistasse legalmente dois terços das cadeiras do Parlamento106 Na França a subida de Hitler ao poder acompanhada pelo crescimento do comunismo e do fascismo rapidamente anulou as antigas relações entre os partidos e alterou da noite para o dia as antigas linhas partidárias A direita francesa até então fortemente antialemã e a favor da guerra tornouse após 1933 a vanguarda do pacifismo e do entendimento com a Alemanha Com a mesma rapidez a esquerda abandonou o pacifismo a qualquer preço por uma firme posição contra a Alemanha e logo foi acusada de ser um partido de fomentadores de guerra pelos mesmos partidos que apenas alguns anos antes haviam denunciado o seu pacifismo como traição nacional107 Os anos que se seguiram à subida de Hitler ao poder foram ainda mais desastrosos para a integridade do sistema partidário francês Na crise de Munique todos os partidos da direita à esquerda dividiramse internamente quanto à única questão política relevante quem era a favor e quem era contra a guerra com a Alemanha108 Cada partido tinha uma ala da paz e uma ala da guerra nenhum conseguia permanecer unido no tocante a decisões políticas de importância e nenhum resistiu ao teste do fascismo ou do nazismo sem se dividir em antifascistas de um lado e simpatizantes do nazismo de outro Que Hitler tenha podido escolher livremente em todos os partidos os elementos para a formação de regimes fantoches foi conseqüência dessa situação anterior à guerra e não de alguma manobra nazista particularmente esperta Não houve um único partido na Europa que não produzisse colaboracionistas Contra a desintegração dos partidos mais antigos destacavase a clara unidade dos movimentos fascistas e comunistas de toda parte os primeiros fora da Alemanha e da Itália lealmente advogando a paz mesmo ao preço da dominação externa e os últimos pregando a guerra mesmo ao preço da ruína nacional Contudo o que importa não é o fato de a extrema direita em toda a Europa ter abandonado o seu tradicional nacionalismo em favor da submissão a Hitler enquanto a extrema esquerda esquecia o seu tradicional pacifismo em favor de velhos slogans nacionalistas mas sim que ambos os movimentos puderam contar com a lealdade de associados e líderes que não se deixaram perturbar pelas súbitas mudanças políticas Isso ficou dramaticamente evidente no pacto de nãoagressão germanosoviético quando os nazistas tiveram de abandonar o seu principal slogan contra o bolchevismo e os comunistas tiveram de voltar a um pacifismo que sempre haviam denunciado como pequenoburguês Tais guinadas não os afetaram de modo algum Os comunistas permaneceram fortes mesmo após sua segunda volteface ocorrida menos de dois anos depois 106 Vaclav Fiala Les partis politiques polonais em Monde Slave fevereiro de 1935 107 Ver a cuidadosa análise de Charles A Micaud The French Right and Nazi Germany 19331939 1943 108 O exemplo mais famoso foi a ruptura do Partido Socialista Francês em 1938 quando a facção de Blum ficou em minoria contra o grupo próMunique de Déat durante o congresso do partido no Département de Ia Seine 296 quando a União Soviética foi atacada pela Alemanha nazista e isso a despeito de ambas as linhas políticas terem envolvido o povo em atividades políticas sérias e perigosas que exigiam reais sacrifícios e constante ação Diferente na aparência mas muito mais violento na realidade foi o colapso do sistema partidário da Alemanha antes de Hitler Isso ficou patente durante as últimas eleições presidenciais de 1932 quando todos os partidos adotaram formas complicadas e inteiramente novas de propaganda de massa A própria escolha dos candidatos foi peculiar Enquanto era natural que os dois movimentos situados fora do sistema parlamentar e combatendoo de lados opostos apresentassem candidatos próprios Hitler pelos nazistas e Thãlmann pelos comunistas foi surpreendente ver que todos os outros partidos subitamente concordavam em relação a um só candidato E não deixou de ser sério o fato de que esse candidato viesse a ser o velho Hindenburg que gozava da popularidade sem igual que desde os tempos de MacMahon na França parece aguardar um general derrotado que volta ao seu país esse fato demonstrava o quanto os velhos partidos desejavam meramente identificarse com o Estado dos velhos tempos Estado acima dos partidos cujo símbolo mais forte havia sido o Exército nacional Em outras palavras os partidos já haviam desistido do próprio sistema partidário Pois em presença dos movimentos as diferenças entre os partidos haviam realmente perdido todo o seu significado a existência de todos eles estava em jogo e conseqüentemente ajuntaramse uns aos outros e esperavam manter um status quo que garantisse a sua existência Hindenburg tornavase o símbolo do Estadonação e do sistema partidário enquanto Hitler e Thãlmann disputavam a primazia de se tornar cada qual o verdadeiro símbolo do povo Tão significativos quanto a escolha dos candidatos foram os cartazes eleitorais Nenhum deles louvava o candidato por méritos próprios os cartazes a favor de Hindenburg proclamavam simplesmente que um voto para Thãlmann é um voto para Hitler advertindo os trabalhadores a não desperdiçarem o seu voto num candidato que certamente seria derrotado Thãlmann desse modo levando Hitler ao poder Foi assim que os socialdemocratas se reconciliaram com Hindenburg a quem nem ao menos mencionavam Os partidos da direita jogavam o mesmo jogo e acentuavam que um voto para Hitler era um voto para Thãlmann Além disso ambos os lados aludiam claramente às ocasiões em que nazistas e comunistas haviam lutado por uma causa comum de modo a convencer todos os membros leais dos partidos da esquerda ou da direita de que a preservação do status quo exigia Hindenburg Em contraste com a propaganda a favor de Hindenburg que apelava àqueles que desejavam o status quo a qualquer preço e em 1932 esse preço era o desemprego de quase a metade do povo alemão os candidatos dos movimentos tinham de levar em conta aqueles que desejavam uma mudança a qualquer preço mesmo ao preço da destruição de todas as instituições legais e estes eram pelo menos tão numerosos quanto os crescentes milhões de desempregados e suas famílias Os nazistas portanto não recuaram diante do absurdo de que um voto para Thãlmann é um voto para Hindenburg e os comu 297 nistas não hesitaram em responder que um voto para Hitler é um voto para Hindenburg ambos ameaçando os seus eleitores com a permanência do status quo da mesma maneira como os seus oponentes haviam ameaçado os seus seguidores com o espectro da revolução Por trás da curiosa uniformidade do método dos que apoiavam os candidatos estava a tácita suposição de que o eleitorado iria às urnas por estar amedrontado com medo dos comunistas com medo dos nazistas ou com medo do status quo Nesse medo geral todas as divisões de classe desapareciam do cenário político enquanto a aliança dos partidos para a defesa do status quo fazia esvaecer a estrutura de classes mantida nos diferentes partidos os escalões inferiores dos movimentos eram completamente heterogêneos e tão dinâmicos e flutuantes como o próprio desempregom Enquanto dentro da estrutura das instituições nacionais a esquerda parlamentar se havia unido à direita parlamentar os dois movimentos estavam ocupados em organizar conjuntamente a famosa greve dos transportes nas ruas de Berlim em novembro de 1932 Quando se considera o declínio extraordinariamente rápido do sistema partidário europeu devese ter em mente que essa instituição teve vida muito curta Não existia em parte alguma antes do século XIX na maioria dos países europeus a formação de partidos políticos ocorreu somente depois de 1848 de sorte que o seu reinado como instituição inconteste em política nacional mal chegou a durar quarenta anos Durante as últimas duas décadas do século XIX todos os acontecimentos políticos importantes na França como na ÃustriaHungria ocorreram fora do âmbito dos partidos parlamentares e em oposição a eles enquanto em toda parte os partidos acima de partidos que eram menores e imperialistas desafiavam o sistema partidário em busca de apoio popular para uma política externa agressiva e expansionista Ao passo que as ligas imperialistas se colocavam acima dos partidos para se identificarem com o Estado nação os movimentos de unificação atacavam esses mesmos partidos como parte integrante de um sistema geral que incluía o Estadonação não se colocavam tanto acima de partidos como acima do Estado a fim de se identificarem diretamente com o povo No fim os movimentos totalitários foram levados a se descartarem também do povo ao qual não obstante usaram para fins de propaganda seguindo de perto o rastro dos movimentos de unificação O Estado totalitário é Estado apenas na aparência e o movimento não mais se identifica verdadeiramente nem mesmo com as necessidades do povo O movimento a essa altura está acima do Estado e do povo pronto a sacrificar a ambos por amor à sua ideologia o Movimento 109 O partido socialista alemão sofreu uma mudança típica desde o inicio do século XX até 1933 Antes da Primeira Guerra Mundial somente 10 dos seus membros pertenciam à classe trabalhadora enquanto cerca de 25 dos seus votos vinham das classes médias Contudo em 1930 apenas 60 dos seus membros eram trabalhadores e pelo menos 40 dos seus votos eram votos da classe média Ver Sigmund Neumann op cit pp 28 ss 298 é o Estado assim como é o Povo e nem o atual Estado nem o atual povo alemão pode ser concebido sem o Movimento110 Nada demonstra melhor o irreparável declínio do sistema partidário do que os esforços feitos após a Segunda Guerra para ressuscitálo no continente europeu os parcos resultados alcançados a renovada atração dos movimentos após a derrota do nazismo e a óbvia ameaça do bolchevismo às independências nacionais O resultado de todos os esforços para restaurar o status quo foi apenas a restauração de uma situação política na qual os movimentos destrutivos tomaram a forma de partidos que funcionam devidamente Sua liderança vem mantendo a autoridade nas circunstâncias mais adversas apesar de mudarem constantemente as linhas partidárias Para que possamos avaliar corretamente as probabilidades de sobrevivência do Estadonação europeu não devemos prestar demasiada atenção aos slogans nacionalistas que os movimentos ocasionalmente adotam com o fito de ocultar suas verdadeiras intenções mas sim considerar que agora todos sabem que eles são ramificações regionais de organizações internacionais que os seus escalões inferiores absolutamente não se perturbam quando se evidencia que a sua política serve aos interesses da política externa de outra potência mesmo que seja hostil e que o fato de os seus líderes serem denunciados como quintacolunas traidores do país etc em nada impressiona os seus membros Em contraste com os antigos partidos os movimentos sobreviveram à última guerra e são hoje os únicos partidos que permanecem vivos e significativos para os seus seguidores 110 Schmitt op cit 299 5 O DECLÍNIO DO ESTADONAÇÃO E O FIM DOS DIREITOS DO HOMEM Ainda hoje é quase impossível descrever o que realmente aconteceu na Europa a 4 de agosto de 1914 Os dias que antecedem e os que se seguem à Primeira Guerra Mundial não são como o fim de um velho período e o começo de um novo mas como a véspera de uma explosão e o dia seguinte Contudo esta figura de retórica é tão inexata como todas as outras porque a calma dolorosa que sobrevém à catástrofe perdura até hoje A primeira explosão parece ter provocado uma reação em cadeia que desde então nos engolfou e que ninguém tem o poder de estancar A Primeira Guerra Mundial foi uma explosão que dilacerou irremediavelmente a comunidade dos países europeus como nenhuma outra guerra havia feito antes A inflação destruiu toda a classe de pequenos proprietários a ponto de não lhes deixar esperança de recuperação o que nenhuma crise financeira havia feito antes de modo tão radical O desemprego quando veio atingiu proporções fabulosas sem se limitar às classes trabalhadoras mas alcançando nações inteiras com poucas exceções As guerras civis que sobrevieram e se alastraram durante os vinte anos de paz agitada não foram apenas mais cruéis e mais sangrentas do que as anteriores foram seguidas pela migração de compactos grupos humanos que ao contrário dos seus predecessores mais felizes não eram bemvindos e não podiam ser assimilados em parte alguma Uma vez fora do país de origem permaneciam sem lar quando deixavam o seu Estado tornavamse apátridas quando perdiam os seus direitos humanos perdiam todos os direitos eram o refugo da terra Nada do que estava sendo feito por mais incrível que fosse e por mais numerosos que fossem os homens que conheciam e previam as conseqüências podia ser desfeito ou evitado Cada evento era definitivo como um julgamento final um julgamento que não era passado nem por Deus nem pelo Diabo mas que parecia a expressão de alguma fatalidade irremediavelmente absurda Antes que a política totalitária conscientemente atacasse e destruísse a própria estrutura da civilização européia a explosão de 1914 e suas graves conseqüências de instabilidade haviam destruído a fachada do sistema político o bastante para deixar à mostra o seu esqueleto Ficou visível o sofrimento de um número cada vez maior de grupos de pessoas às quais subitamente já não se 300 aplicavam as regras do mundo que as rodeava Era precisamente a aparente estabilidade do mundo exterior que levava cada grupo expulso de suas fronteiras antes protetoras parecer uma infeliz exceção a uma regra sadia e normal e que ao mesmo tempo inspirava igual cinismo tanto às vítimas quanto aos observadores de um destino aparentemente injusto e anormal Para ambos esse cinismo parecia sabedoria em relação às coisas do mundo mas na verdade todos estavam mais perplexos e portanto mais ignorantes do que nunca O ódio que certamente não faltara ao mundo antes da guerra começou a desempenhar um papel central nos negócios públicos de todos os países de modo que o cenário político nos anos enganadoramente calmos da década de 20 assumiu uma atmosfera sórdida e estranha de briga em família à Strindberg Nada talvez ilustre melhor a desintegração geral da vida política do que esse ódio universal vago e difuso de todos e de tudo sem um foco que lhe atraísse a atenção apaixonada sem ninguém que pudesse ser responsabilizado pelo estado de coisas nem governo nem burguesia nem potência estrangeira Partia conseqüentemente em todas as direções cega e imprevisivelmente incapaz de assumir um ar de indiferença sadia em relação a coisa alguma sob o sol Essa atmosfera de desintegração embora característica de toda a Europa entre as duas guerras era mais visível nos países derrotados que nos vitoriosos e atingiu o seu ponto mais alto nos Estados recémestabelecidos após a liquidação da Monarquia Dual e do império czarista Os últimos restos de solidariedade entre as nacionalidades não emancipadas do cinturão de populações mistas evaporaramse com o desaparecimento de uma despótica burocracia central que também havia servido para centralizar e desviar uns dos outros os ódios difusos e as reivindicações nacionais em conflito Agora todos estavam contra todos e mais ainda contra os seus vizinhos mais próximos os eslovacos contra os tchecos os croatas contra os sérvios os ucranianos contra os poloneses E isso não resultava do conflito entre as nacionalidades e os povos formadores de Estados ou entre minorias e maiorias os eslovacos não apenas sabotavam constantemente o governo democrático de Praga como ao mesmo tempo perseguiam a minoria húngara em seu próprio solo enquanto semelhante hostilidade contra o povo estatal por um lado e entre si mesmas por outro animava as minorias insatisfeitas da Polônia à primeira vista esses distúrbios no velho centro nevrálgico da Europa pareciam ser apenas mesquinhas querelas nacionalistas sem conseqüência para os destinos políticos do continente Contudo nessas regiões e como resultado da liquidação dos dois Estados multinacionais europeus de antes da guerra a Rússia e a ÃustriaHungria surgiram dois grupos de vítimas cujos sofrimentos foram muito diferentes dos de todos os outros grupos no intervalo entre as duas guerras mundiais ambos estavam em pior situação que as classes médias desapossadas os desempregados os pequenos rentiers os pensionistas aos quais os eventos haviam privado da posição social da possibilidade de trabalhar e do direito de ter propriedades eles haviam perdido aqueles direitos que até então eram tidos e até definidos como inalienáveis ou seja os Direitos do Homem Os apátridas e as minorias denominados com razão primos em pri 301 meiro grau1 não dispunham de governos que os representassem e protegessem e por isso eram forçados a viver ou sob as leis de exceção dos Tratados das Minorias que todos os governos com exceção da Tchecoslováquia haviam assinado sob protesto e nunca reconheceram como lei ou sob condições de absoluta ausência da lei Com o surgimento das minorias na Europa oriental e meridional e com a incursão dos povos sem Estado na Europa central e ocidental um elemento de desintegração completamente novo foi introduzido na Europa do apósguerra A desnacionalização tornouse uma poderosa arma da política totalitária e a incapacidade constitucional dos Estadosnações europeus de proteger os direitos humanos dos que haviam perdido os seus direitos nacionais permitiu aos governos opressores impor a sua escala de valores até mesmo sobre os países oponentes Aqueles a quem haviam escolhido como refugo da terra judeus trotskistas etc eram realmente recebidos como o refugo da terra em toda parte aqueles a quem a perseguição havia chamado de indesejáveis tornavamse de fato os indésirables da Europa O jornal oficial da SS o Schwartze Korps disse explicitamente em 1938 que se o mundo ainda não estava convencido de que os judeus eram o refugo da terra iria convencerse tão logo transformados em mendigos sem identificação sem nacionalidade sem dinheiro e sem passaporte esses judeus começassem a atormentálos em suas fronteiras2 E o fato é que esse tipo de propaganda factual funcionou melhor que a retórica de Goebbels não apenas porque fazia dos judeus o refugo da terra mas também porque a incrível desgraça do número crescente de pessoas inocentes demonstrava na prática que eram certas as cínicas afirmações dos movimentos totalitários de que não existiam direitos humanos inalienáveis enquanto as afirmações das democracias em contrário revelavam hipocrisia e covardia ante a cruel majestade de um mundo novo A própria expressão direitos humanos tornouse para todos os interessados vítimas opressores e espectadores uma prova de idealismo fútil ou de tonta e leviana hipocrisia 1 S Lawford Childs Refugees a permanent problem in international organization em War is not inevitable Problems ofpeace 13 série Londres 1938 publicado pelo Internacional Labor Office 2 O início da perseguição dos judeus alemães pelos nazistas deve ser considerado uma tentativa de espalhar o anti semitismo entre aqueles povos que simpatizam com os judeus principalmente as democracias ocidentais e não um esforço de se descartar dos judeus Uma circular do Ministério das Relações Exteriores para todas as autoridades alemãs no exterior logo depois dos pogroms de novembro de 1938 dizia O movimento imigratório de apenas cerca de 100 mil judeus já foi suficiente para despertar o interesse de muitos países para o perigo judaico A Alemanha está muito interessada em manter a dispersão dos judeus o influxo de judeus em todas as partes do mundo desperta a oposição da população nativa e assim se constitui na melhor propaganda para a política judaica alemã Quanto mais pobre for o imigrante judeu e portanto quanto mais incômodo para o país que o absorve mais fortemente reagirá o país Ver Nazi conspiracy and agression Washington 1946 publicado pelo governo norte americano VI 87 ss 302 1 A NAÇÃO DE MINORIAS E OS POVOS SEM ESTADO As modernas condições do poder que exceto para os Estados gigantes transformam a soberania nacional em pilhéria junto com o advento do imperialismo e dos movimentos de unificação étnica foram fatores externos que solaparam a estabilidade do sistema europeu de Estadosnações Nenhum deles adviera diretamente da tradição e das instituições dos próprios Estadosnações Sua desintegração interna só começou após a Primeira Guerra Mundial em conseqüência do surgimento das minorias criadas pelos Tratados de Paz e do movimento crescente de refugiados resultado de revoluções A inadequação dos Tratados de Paz tem sido freqüentemente explicada pelo fato de que os seus autores pertenciam a uma geração formada pelas experiências da era anterior à guerra e jamais chegaram a compreender inteiramente todo o impacto da guerra cujo armistício tiveram de assinar A melhor prova disso é a tentativa de resolver o problema da Europa oriental e meridional criando Estadosnações e introduzindo tratados de minorias Se já se podia colocar em dúvida a prudência de estender uma forma de governo que mesmo nos países de antiga e estabelecida tradição nacional não sabia como resolver os novos problemas da política mundial era ainda mais duvidoso que ela pudesse ser transplantada para uma área onde sequer existiam as condições básicas para o surgimento de Estadosnações ou seja a homogeneidade da população e a fixação ao solo Mas pensar que fosse possível criar Estadosnações pelos métodos dos Tratados de Paz era simplesmente absurdo De fato basta um olhar ao mapa etnográfico da Europa para mostrar que o princípio do Estadonação não pode ser introduzido na Europa oriental3 Os Tratados aglutinaram vários povos num só Estado outorgaram a alguns o status de povos estatais e lhes confiaram o governo supuseram silenciosamente que os outros povos nacionalmente compactos como os eslovacos na Tchecoslováquia ou os croatas e eslovenos na Iugoslávia chegassem a ser parceiros no governo o que naturalmente não aconteceu4 e com igual arbitrariedade criaram com os povos que sobraram um terceiro grupo de nacionalidades chamadas minorias acrescentando assim aos muitos encargos dos novos Estados o problema de observar regulamentos especiais impostos de fora para uma parte de sua população5 Como resultado os povos não agraciados com Estados fossem minorias na 3 Kurt Tramples Volkerbund und Võlkerfreiheit União dos povos e liberdade dos povos em Süddeutsche Monatshefte 26 Jahrgang julho de 1929 4 A luta dos eslovacos contra o governo tcheco de Praga terminou com a independência da Eslováquia apoiada por Hitler a Constituição iugoslava de 1921 foi aceita pelo Parlamento dominado pelos sérvios contra os votos de todos os representantes croatas e eslovenos Um bom resumo da história da Iugoslávia entre as duas guerras se encontra em Propylàen Weltgeschichte Das Zeitalter des Imperialismus 1933 vol 10 p 471 ss 5 Mussolini tinha toda a razão quando escreveu após a crise de Munique Se a Tchecoslováquia se encontra hoje no que se pode chamar de situação delicada é porque ela não era apenas Tchecoslováquia mas Tchecogermano polonomagiarorutenoromenoeslováquia Citado por Hubert Ripka Munich before andafter Londres 1939 p 117 303 cionais ou nacionalidades consideraram os Tratados um jogo arbitrário que dava poder a uns colocando em servidão os outros Os Estados recémcriados por sua vez que haviam recebido a independência com a promessa de plena soberania nacional acatada em igualdade de condições com as nações ocidentais olhavam os Tratados das Minorias como óbvia quebra de promessa e como prova de discriminação uma vez que somente os novos Estados e nem mesmo a Alemanha derrotada com exceção do território da Silésia oriental dividida em 1920 com a Polônia em decorrência de plebiscito ficavam subordinados a eles O desconcertante vácuo de poder deixado pela dissolução da Monarquia Dual e pela libertação da Polônia e dos países bálticos do despotismo da Rússia não foi o único fator que levou os estadistas a essa desastrosa experiência Muito mais importante era a impossibilidade de continuar ignorando mais de 100 milhões de europeus que nunca haviam atingido o estágio de liberdade nacional e de autodeterminação a que já aspiravam até os povos coloniais mas que lhes era negada a esses europeus pela manutenção de tradições políticas Na Europa ocidental e central o papel do proletariado ou seja do grupo oprimido e historicamente sofredor cuja emancipação era uma questão de vida ou de morte para todo o sistema social europeu era representado no Leste pelos povos sem história6 Os movimentos de libertação nacional do Leste europeu eram revolucionários no mesmo sentido em que os movimentos trabalhistas do Oeste ambos refletiam os anseios das camadas nãohistóricas da população européia e ambos lutavam por reconhecimento e participação dos grupos marginais nos negócios públicos Como o objetivo de todos era preservar o status quo europeu a concessão do direito à autodeterminação nacional e à soberania a todos os povos europeus parecia realmente inevitável a alternativa seria condenálos impiedosamente à posição de povos coloniais coisa que os movimentos de unificação étnica sempre propuseram introduzindo assim métodos coloniais na convivência européia7 6 Essa expressão foi cunhada primeiro por Otto Bauer Die Nationalitàtenfrage und die ósterreischische Sozialdemokratie O problema das nacionalidades e a socialdemocracia austríaca Viena 1907 A consciência histórica tinha papel importante na formação da consciência nacional A emancipação das nações do domínio dinástico e da soberania de uma aristocracia internacional nascia da emancipação da literatura nacional da língua internacional dos eruditos latim e mais tarde francês desenvolvendose as línguas nacionais a partir do vernáculo popular Aqueles povos cuja língua chegava a ser usada na literatura eram considerados como tendo atingido a maturidade nacional Portanto os movimentos de liberação das nacionalidades da Europa oriental começavam impondo a seus membros a renovação filológica com resultados que iam do grotesco ao sério e útil A função política dessa ascensão de idioma consistia em provar que o povo que possuía uma literatura e uma história próprias tinha o direito à soberania nacional 7 Essa não era naturalmente uma alternativa muito clara Até hoje ninguém se deu ao trabalho de descobrir as semelhanças entre a exploração colonial e a exploração da minoria Somente Jacob Robinson Staatsbürgerliche und wirtschaftliche Gleichberechtigung Igualdade cívicoestatal e econômica em Süddeutsche Monatshefte 26 Jahrgang julho de 1929 observa de passagem Surgiu um tipo peculiar de protecionismo econômico não dirigido contra outros países 304 Na verdade porém o status quo europeu não podia ser mantido Só após a queda dos últimos remanescentes da autocracia européia ficou claro que a Europa havia sido governada por um sistema que nunca levou em conta as necessidades de pelo menos 25 da sua população Esse mal contudo não foi sanado pela criação dos Estados sucessores dos impérios desmembrados porque cerca de 30 dos seus quase 100 milhões de habitantes eram oficialmente reconhecidos como exceções a serem especialmente protegidas por tratados de minorias Além disso esse algarismo de modo nenhum conta toda a história apenas indica a diferença entre povos com governo próprio e aqueles que supostamente eram pequenos ou dispersos demais para obterem o direito de atingir o status pleno de nação Assim mesmo os Tratados das Minorias protegiam apenas nacionalidades das quais existia um número considerável em pelo menos dois Estados sucessórios mas não mencionaram deixandoas à margem de direito todas as outras nacionalidades sem governo próprio concentradas num só país de sorte que em alguns desses Estados os povos nacionalmente frustrados constituíam 50 da população total8 O pior aspecto dessa situação não era o fato de que se tornava natural às nacionalidades serem desleais com o governo que lhes fora imposto e aos governos oprimirem suas nacionalidades do modo mais eficiente possível e sim que a população nacionalmente frustrada estava firmemente convencida como aliás todo o mundo de que a verdadeira liberdade a verdadeira emancipação e a verdadeira soberania popular só podiam ser alcançadas através da completa emancipação nacional e que os povos privados do seu próprio governo nacional ficariam sem a possibilidade de usufruir dos direitos humanos Essa convicção baseada no conceito da Revolução Francesa que conjugou os Direitos do Homem com a soberania nacional era reforçada pelos próprios Tratados das Minoriasos quais não confiavam aos respectivos governos a proteção das diferentes nacionalidades do país mas entregavam à Liga das Nações a salvaguarda dos direitos daqueles que por motivos de negociações territoriais haviam ficado sem Estados nacionais próprios ou deles separados quando existiam Mas as minorias não confiavam na Liga das Nações mais do que haviam confiado ou confiariam nos povos estatais A Liga afinal era composta de estadistas nacionais cujas simpatias obviamente estavam com os governos e principalmente com os governos novos que sofriam oposição de cerca de 25 a 50 mas contra certos grupos da população surpreendente que se pudessem observar certos métodos de exploração colonial na Europa central 8 Calculase que antes de 1914 existiam cerca de 100 milhões de pessoas cujas aspirações nacionais não haviam sido realizadas Ver Charles Kingsley Webster Minorities history em Encyclopedia britannica 1929 A população das minorias foi calculada em cerca de 25 a 30 milhões P de Azcarate Minorities League of Nations ibid A situação real na Tchecoslováquia e na Iugoslávia era muito pior Na primeira o povo estatal tcheco constituía com 7200000 pessoas cerca de 50 da população na última os 5 milhões de sérvios compunham apenas 42 do total Ver W Winkler Statistisches Handbuch der europãischen Nationalitàten Manual estatístico das nacionalidades européias Viena 1931 Otto Junghann National minorities in Europe 1932 Algarismos ligeiramente diferentes são apresentados por Tramples op cit 305 dos seus habitantes Os criadores dos Tratados das Minorias portanto logo tiveram de formular as suas reais intenções e dar uma interpretação mais precisa dos deveres das minorias em relação aos novos Estados9 verificouse então que os Tratados haviam sido concebidos meramente como método indolor e supostamente humano de assimilação e isso enfureceu as minorias10 Mas não se podia esperar outra coisa de um sistema de Estadosnações soberanos se os Tratados das Minorias tivessem sido concebidos como algo mais do que mero remédio temporário para uma situação caótica sua restrição implícita à soberania nacional teria afetado a própria soberania nacional das potências européias mais antigas Os representantes das grandes nações sabiam demasiado bem que as minorias existentes num Estadonação deviam mais cedo ou mais tarde ser assimiladas ou liquidadas E não importa se foram movidos por considerações humanitárias de proteger contra a perseguição as nacionalidades minoritárias ou se as considerações políticas os levaram a oporse a tratados bilaterais entre os Estados onde havia minorias e os países nacionais dessas minorias afinal os alemães residentes fora da Alemanha constituíam a mais forte de todas as minorias oficialmente reconhecidas tanto em número como em posição econômica o fato é que não quiseram nem puderam revogar as leis às quais os Estadosnações deviam a sua existência11 Nem a Liga das Nações nem os Tratados das Minorias teriam evitado que os Estados recém estabelecidos assimilassem as suas minorias mais ou menos à força O fator mais poderoso contra a assimilação era a fraqueza numérica e cultural dos chamados povos estatais A minoria russa ou judaica da Polônia não considerava a cultura polonesa superior à sua e nem uma nem outra se impressionava muito com o fato de os poloneses constituírem cerca de 60 da população da Polônia Amarguradas e ignorando completamente a Liga das Nações as nacionalidades minoritárias logo decidiram tratar do assunto por conta própria Agruparamse num congresso de minorias que já pelo nome contradizia a própria idéia geradora dos tratados da Liga pois se denominou Congresso dos 9 P de Azcarate op cit Os Tratados não estipulavam os deveres das minorias em relação aos Estados dos quais faziam parte Mas a Terceira Assembléia Ordinária da Liga das Nações em 1922 adotou resoluções a respeito dos deveres das minorias 10 Os delegados franceses e ingleses foram bem claros a esse respeito Disse Briand O processo que devemos ter em mente não é o desaparecimento das minorias mas uma espécie de assimilação E sir Austen Chamberlain representante inglês chegou a dizer que o objetivo dos Tratados das Minorias é assegurar o tipo de proteção e justiça que gradualmente as prepararão para se fundirem à comunidade à qual pertencem C A Macartney National states and national minorities Londres 1934 pp 276 277 11 É verdade que alguns estadistas tchecos os mais liberais e democratas dos líderes dos movimentos nacionais chegaram a sonhar com uma república tcheca como a da Suíça O motivo pelo qual nem Benes tentou seriamente levar a cabo essa solução é que a Suíça não era um modelo que pudesse ser imitado mas sim uma exceção particularmente feliz que comprovava a regra estabelecida Os Estados recémformados não tinham a segurança suficiente para abandonar uma aparelhagem estatal centralizada e não podiam criar da noite para o dia aquelas pequenas comunas e cantões autônomos sobre cujos vastos poderes se baseia o sistema federativo suíço 306 Grupos Nacionais Organizados nos Estados Europeus anulando assim o esforço dos estadistas despendido durante as negociações de paz para evitar a expressão Nacional12 Em conseqüência todas as nacionalidades mesmo oficialmente iguais ao povo estatal e não apenas as minorias aderiram ao Congresso e o número de nações de minorias cresceu de modo tão considerável que somadas as nacionalidades minoritárias dos Estados sucessórios superavam em número os povos estatais Mas também sob outro aspecto o Congresso dos Grupos Nacionais assestou um golpe decisivo nos tratados da Liga Um dos mais desconcertantes aspectos do problema das nacionalidades da Europa oriental mais desconcertante que o pequeno tamanho e o grande número dos povos envolvidos ou o cinturão de populações mistas13 era o caráter interregional das nacionalidades que quando colocavam seus interesses nacionais acima dos interesses de seus próprios governos constituíam óbvio perigo à segurança de seus países14 Os tratados da Liga haviam tentado ignorar o caráter interestatal das minorias assinando com cada país um tratado separado bilateral e não multilateral como se não existissem minorias judaica ou germânica fora das fronteiras dos respectivos Estados O Congresso dos Grupos Nacionais não apenas colocou de lado o princípio territorial da Liga ele foi naturalmente dominado pelas duas nacionalidades que representadas em todos os Estados sucessórios dos antigos impérios estavam em posição de fazer sentir o seu peso em toda a Europa oriental e meridional Esses dois grupos foram os alemães e os judeus As minorias alemãs da Romênia e da Tchecoslováquia votavam naturalmente junto com as minorias alemãs da Polônia e da Hungria da Letônia ou Lituânia e ninguém podia esperar que os judeus poloneses por exemplo permanecessem indiferentes às práticas discriminatórias antijudaicas do governo romeno Em outras palavras a verdadeira base da associação no Congresso eram os interesses nacionais de cada minoria e não o interesse comum de todas as minorias15 A harmoniosa relação entre os judeus e os alemães até o advento de Hitler mantinha o congresso coeso Mas 12 Wilson ardente defensor da idéia de se concederem direitos raciais religiosos e lingüísticos às minorias receava que direitos nacionais podiam ser danosos porquanto os grupos minoritários caracterizados como entidades nacionalmente separadas poderiam ficar sujeitos a inveja e ataques Oscar J Janowsky TheJews and minority rights Nova York 1933 p 351 13 O termo é de Macartneys op cit passim 14 Como resultado da negociação da Paz cada Estado situado no cinturão de populações mistas se considerava agora um Estado nacional Mas os fatos contrariavam essa asserçâo Nenhum desses Estados era realmente uninacional da mesma forma como não havia por outro lado nação alguma da qual todos os membros vivessem num único Estado Macartney op cit p 21D 15 Em 1933 o presidente do Congresso fez questão de acentuar Uma coisa é certa não nos reunimos em nossos congressos apenas como membros de minorias abstratas cada um de nós pertence de corpo e alma a um povo específico o seu próprio povo e se sente ligado ao destino desse povo para mal ou para bem Conseqüentemente cada um de nós está aqui se me permitem dizer como um alemão puro ou um judeu puro como um húngaro puro ou como um ucraniano puro Em Sitzungsbericht des Kongresses der oganisierten nationalen Gruppen in den Staaten Europas Relatório da Assembléia do Congresso dos Grupos Nacionais Organizados nos Estados Europeus 1938 p 8 307 quando em 1933 a delegação judaica exigiu um protesto contra o tratamento dos judeus no Terceiro Reich moção que a rigor não tinha o direito de fazer pois os judeus alemães não eram considerados e não constituíam uma minoria os alemães nacionalmente minoritários anunciaram sua solidariedade com a Alemanha já nazista e conseguiram o apoio da maioria das delegações dos grupos minoritários que abraçaram o antisemitismo florescente em todos os Estados sucessórios O Congresso abandonado para sempre pela delegação judaica mergulhou desde então em completa insignificância A verdadeira importância dos Tratados das Minorias não está na sua aplicação prática mas no fato de que eram garantidos por uma entidade internacional a Liga das Nações Minorias haviam existido antes16 mas a minoria como instituição permanente o reconhecimento de que milhões de pessoas viviam fora da proteção legal normal e normativa necessitando de uma garantia adicional dos seus direitos elementares por parte de uma entidade externa e a admissão de que esse estado de coisas não era temporário mas que os Tratados eram necessários para criar um modus vivendi duradouro tudo isso constituía novidade na história européia pelo menos em tal escala Os Tratados das Minorias diziam em linguagem clara aquilo que até então era apenas implícito no sistema operante dos Estadosnações isto é que somente os nacionais podiam ser cidadãos somente as pessoas da mesma origem nacional podiam gozar de toda a proteção das instituições legais que os indivíduos de nacionalidade diferente precisavam de alguma lei de exceção até que ou a não ser que estivessem completamente assimilados e divorciados de sua origem Os discursos interpretativos sobre os tratados da Liga das Nações pronunciados por estadistas de países sem obrigações com as minorias eram ainda mais claros aceitavam como natural que a lei de um país não pudesse ser responsável por pessoas que insistiam numa nacionalidade diferente17 Confessavam assim e logo tiveram oportunidade de demonstrálo na prática com o surgimento dos povos sem Estado que havia sido consumada a transformação do Estado de Os judeus alemães ao contrário dos poloneses romenos lituanos etc tinham cidadania alemã e nacionalidade alemã que lhes seriam retiradas por Hitler Os judeus dos países sucessórios dos impérios russo e austrohúngaro tinham a cidadania do país em que viviam mas a nacionalidade judaica definida indicada em todos os seus documentos N E 16 As primeiras minorias surgiram quando o princípio protestante de liberdade de consciência conseguiu suprimir o princípio cuius regio eius religio de tal região sua religião O Congresso de Viena em 1815 realizado vinte anos após a partilha da Polônia já havia tomado medidas para assegurar certos direitos às populações polonesas incorporadas à Rússia Prússia e Áustria direitos esses que certamente não eram apenas religiosos contudo é bem característico o fato de que todos os tratados posteriores o que garantia a independência da Grécia em 1830 o que garantia a independência da Moldávia e da Valáquia precursoras da Romênia em 1856 e o Congresso de Berlim em 1878 que tratou especificamente da Romênia falam de minorias religiosas e não nacionais que receberiam direitos civis mas não políticos 17 Afrânio de Mello Franco representante do Brasil no Conselho da Liga das Nações definiu o problema claramente Querme parecer óbvio que aqueles que conceberam esse sistema de proteção não sonhavam criar dentro de certos Estados um grupo de habitantes que se consideraria permanentemente estranho à organização geral do país Macartney op cit p 277 308 instrumento da lei em instrumento da nação a nação havia conquistado o Estado e o interesse nacional chegou a ter prioridade sobre a lei muito antes da afirmação de Hitler de que o direito é aquilo que é bom para o povo alemão Mais uma vez a linguagem da ralé era apenas a linguagem da opinião pública expurgada da hipocrisia e do comedimento Certamente o perigo desse desfecho já era inerente à estrutura do Estadonação Mas como a sua criação coincidia com a de governos constitucionais os Estadosnações sempre haviam representado o domínio da lei e nele se baseavam em contraste com o domínio da burocracia administrativa e do despotismo ambos arbitrários De modo que ao se romper o precário equilíbrio entre a nação e o Estado entre o interesse nacional e as instituições legais ocorreu com espantosa rapidez a desintegração dessa forma de governo e de organização espontânea de povos E a desintegração por mais curioso que pareça começou precisamente no momento em que o direito à autodeterminação era reconhecido em toda a Europa e quando a convicção fundamental da supremacia da nação sobre todas as instituições legais e abstratas do Estado tornavase universalmente aceita Por ocasião dos Tratados das Minorias poderseia dizer a seu favor e de fato se disse quase como desculpa que as nações mais antigas gozavam de constituições que implícita ou explicitamente como no caso da França a nationpar excellence se fundamentavam nos Direitos do Homem que mesmo se existisse outras nacionalidades em seu território não precisariam de leis adicionais e que somente nos Estados criados como sucessórios aos impérios desintegrados tornavase necessária a excepcional imposição temporária dos direitos humanos18 Essa ilusão acabou ao surgirem os povos sem Estado Na realidade as minorias eram povos sem Estado apenas parcialmente de jure pertenciam a algum corpo político embora necessitassem de proteção adicional sob forma de tratados e garantias especiais certos direitos secundários tais como o uso do seu próprio idioma e a preservação da sua própria cultura estavam ameaçados e só relutantemente eram protegidos por uma entidade estatal externa habitada em sua maioria pela mesma etnia nação cuja parte constituía uma minoria num outro Estado mas os direitos elementares como o de residir viver e trabalhar sempre permaneciam intactos Os arquitetos dos Tratados das Minorias não previram a possibilidade de transferências maciças de população nem o problema de pessoas tornadas indeportáveis por falta de um país que as quisesse acolher As minorias podiam ser olhadas ainda como fenômeno excepcional peculiar a certos territórios que diferiam da norma Era um argumento sempre tentador pois deixava intacto o próprio 18 O regime de proteção das minorias destinavase a remediar aqueles casos em que a negociação territorial era inevitavelmente imperfeita do ponto de vista da nacionalidade Joseph Roucek The minority principie as a problem of political science Praga 1928 p 29 O problema é que a imperfeição dos acordos territoriais não existia apenas nos acordos das minorias mas também no próprio estabelecimento dos Estados sucessórios porquanto não havia território naquela região que não pudesse ser reivindicado por várias nacionalidades ao mesmo tempo e sob várias alegações igualmente válidas 309 sistema e de certa forma sobreviveu à Segunda Guerra Mundial cujos pacificadores convencidos da impraticabilidade dos tratados de minorias puseramse a repatriar o maior número possível de nacionalidades a fim de desembaralhar o cinturão de populações mistas19 Essa tentativa de repatriação em massa não resultou diretamente das desastrosas experiências com os Tratados das Minorias representava antes a esperança de que tal providência resolvesse finalmente o problema dos povos sem Estado que nas décadas anteriores assumira proporções cada vez mais agudas e para o qual simplesmente não existia método internacionalmente reconhecido e aceito Muito mais persistentes na realidade e muito mais profundas em suas conseqüências têm sido a condição de apátrida que é o mais recente fenômeno de massas da história contemporânea e a existência de um novo grupo humano em contínuo crescimento constituído de pessoas sem Estado grupo sintomático do mundo após a Segunda Guerra Mundial20 A culpa da sua existência não pode ser atribuída a um único fator mas se considerarmos a diversidade grupai dos apátridas parece que cada evento político desde o fim da Primeira Guerra Mundial inevitavelmente acrescentou uma nova categoria aos que já viviam fora do âmbito da lei sem que nenhuma categoria por mais que se houvesse alterado a constelação original jamais pudesse ser devolvida à normalidade21 19 Uma prova quase simbólica dessa mudança de atitude é encontrada em declarações do presidente Eduard Benes da Tchecoslováquia o único país que após a Primeira Guerra Mundial havia aceito de bom grado as obrigações dos Tratados das Minorias Pouco depois de irromper a Segunda Guerra Mundial Benes começou a dar o seu apoio ao princípio da transferência de populações que finalmente levou à expulsão da minoria alemã da região dos Sudetos Quanto à posição de Benes ver Oscar I Janowsky Nationalities and national minorities Nova York 1945 pp 136 136 ss 20 O problema dos apátridas tornouse de extrema importância depois da Segunda Grande Guerra Antes da guerra existiam leis em alguns países principalmente nos Estados Unidos segundo as quais a naturalização podia ser revogada nos casos em que a pessoa naturalizada deixasse de manter uma ligação genuína com o país de adoção Aqueles que eram desnaturalizados dessa forma tornavamse apátridas Durante a guerra os principais Estados europeus acharam necessário reformar suas leis para poderem cancelar a naturalização John Hope Simpson The refugee problem Institute of International Affairs Oxford 1939 p 231 O grupo de apátridas criado pela revogação da naturalização era ínfimo contudo esse precedente expôs os cidadãos naturalizados ao perigo de se tornarem apátridas O cancelamento de naturalizações em massa como foi introduzido pela Alemanha nazista em 1933 quando atingiu todos os alemães naturalizados de origem judaica geralmente precedia a desnacionalização de cidadãos natos pertencentes a categorias semelhantes e a introdução de leis que permitiam a desnaturalização por simples decreto como as da Bélgica e de outras democracias do Ocidente nos anos 30 geralmente precedia a desnaturalização em massa um bom exemplo é a prática do governo grego com relação aos refugiados armênios de 45 mil refugiados armênios mil foram naturalizados entre 1923 e 1928 Depois de 1928 uma lei que visava à naturalização de todos os refugiados com menos de 22 anos de idade foi suspensa e em 1936 todas as naturalizações foram canceladas pelo governo Ver Simpson op cíp 41 21 Vinte e cinco anos após o regime soviético ter repudiado 15 milhão de russos calculavase que pelo menos 350 mil a 450 mil ainda eram apátridas o que é uma porcentagem elevadíssima quando se considera o tempo decorrido desde a fuga inicial Ver Simpson op cit p 310 Entre eles viamse ainda os mais antigos entre os apátridas os Heimatlosen apátridas produzidos pelos Tratados de Paz de 1919 pela dissolução da ÃustriaHungria e pelo estabelecimento dos Estados bálticos Em certos casos foi impossível determinar a sua verdadeira origem especialmente se ao terminar a guerra não estavam residindo em sua cidade natal22 outras vezes o seu lugar de origem mudara de mãos tantas vezes no burburinho de disputas do pósguerra que a nacionalidade de seus habitantes alteravase de ano para ano como acontecia com Vilna que um funcionário francês uma vez chamou de Ia capitale des apatrides e mais freqüentemente do que se imagina certas pessoas se refugiaram na situação de apátridas após a Primeira Guerra Mundial para permanecer onde estavam e evitar a deportação para uma pátria onde seriam estranhos como no caso de muitos judeus poloneses e romenos residentes na França e na Alemanha que como apátridas tinham ali mais direitos do que teriam como cidadãos nos países em que nasceram onde eram excluídos do convívio social por serem judeus Nessas tentativas foram misericordiosamente ajudados pela atitude anti semita dos seus respectivos consulados Desprovido de importância aparentemente apenas uma anomalia legal o apatride recebeu atenção e consideração tardias quando após a Segunda Guerra Mundial sua posição legal foi aplicada também aos refugiados que expulsos de seus países pela revolução social eram desnacionalizados pelos governos vitoriosos A esse grupo pertencem milhões de russos e de alemães centenas de milhares de armênios romenos húngaros e espanhóis para citar apenas as categorias mais importantes A conduta desses governos pode hoje parecer apenas conseqüência natural da guerra mas na época as desnacionalizações em massa constituíam fenômeno inteiramente novo e imprevisto Pressupunham uma estrutura estatal que se não era ainda inteiramente totalitária já demonstrava a incapacidade de tolerar qualquer oposição preferindo perder os seus cidadãos a abrigálos com opiniões diferentes da vigente Revelavam além disso que não era necessária uma guerra para que as soberanias de países vizinhos entrassem em conflito e que este podia se desenvolver em termos ideológicos não só no caso extremo da guerra mas também durante a paz Tornavase claro 559 Eugene M Kulischer The displacement ofpopulation in Europe Montreal 1943 Winifred N Hadsel Can Europes refugees find new homes emForeign Policy Reports agosto de 1943 vol X n 10 É verdade que os Estados Unidos haviam colocado os imigrantes apátridas em pé de igualdade com os outros estrangeiros mas isso só havia sido possível porque esse país o país da imigração par excellence sempre considerou quaisquer recémchegados como seus próprios cidadãos em potencial independentemente de sua nacionalidade anterior 22 O American Friends Service Bulletin General Relief Bulletin março de 1943 publica o relato de um de seus colaboradores na Espanha que havia deparado com o problema de um homem que havia nascido em Berlim na Alemanha mas é considerado de origem polonesa porque seus pais nasceram na Polônia e é portanto apátrida mas que alega ser de nacionalidade ucraniana e que foi portanto reclamado pelo governo russo para ser repatriado e servir no Exército Vermelho Vilna atual Vilnius capital da Lituânia soviética fez até 1919 parte da Rússia depois até 1939 da Polônia depois da Lituânia e agora da URSS 311 que a completa soberania nacional só era possível enquanto existisse uma convivência supranacional de nações européias porque só o espírito de solidariedade podia impedir o exercício por algum governo de todo o poder potencialmente soberano Em teoria a lei internacional admitia que em questões de emigração naturalização nacionalidade e expulsão a soberania é mais absoluta23 Na verdade as considerações práticas e o reconhecimento tácito de interesses recíprocos restringiram a soberania nacional mesmo nessa área até o surgimento dos regimes totalitários Somos quase tentados a medir o grau de infecção totalitária de um governo pelo grau em que usa o seu soberano direito de desnacionalização e se o fizéssemos seria interessante verificar que a Itália de Mussolini relutou muito em tratar os seus refugiados dessa forma24 Mas ao mesmo tempo devemos lembrar que mal restava um país no continente europeu que não houvesse aprovado entre as duas guerras alguma legislação formulada de modo a permitir a rejeição de elevado número de seus habitantes a qualquer momento oportuno25 mesmo que este direito não chegasse a ser usado Nenhum paradoxo da política contemporânea é tão dolorosamente irônico como a discrepância entre os esforços de idealistas bemintencionados que persistiam teimosamente em considerar inalienáveis os direitos desfrutados pelos cidadãos dos países civilizados e a situação de seres humanos sem direito algum Essa situação deteriorouse até que o campo de internamente que antes da Segunda Guerra Mundial era exceção e não regra para os grupos apátridas tornouse uma solução de rotina para o problema domiciliar dos deslocados de guerra 23 Lawrence Preuss La dénationalisation imposée pour des motifs politiques em Revue Internationale Française du Droit des Gens 1937 vol IV ns 1 2 5 24 Uma lei italiana de 1926 contra emigração abusiva parecia prenunciar medidas de desnaturalização contra refugiados antifascistas contudo a partir de 1929 a política de desnaturalização foi abandonada e estabeleceramse organizações fascistas no exterior Dos 40 mil membros da Unione Popolare Italiana da França pelo menos 10 mil eram autênticos refugiados antifascistas mas apenas 3 mil não tinham passaporte Ver Simpson op cit pp 122 ss 25 A primeira lei desse tipo foi uma medida francesa tomada durante a guerra em 1915 que se relacionava apenas a cidadãos naturalizados de origem inimiga que houvessem conservado sua nacionalidade original Portugal foi muito mais longe num decreto de 1916 que desnaturalizava automaticamente todas as pessoas nascidas de pai alemão A Bélgica emitiu uma lei em 1922 que cancelava a naturalização de pessoas que houvessem cometido atos contra a nação durante a guerra e a reafirmou com um novo decreto de 1934 tipicamente vago que falava de pessoas manquant gravement à leurs devoirs de citoyen belge Na Itália desde 1926 qualquer pessoa que não fosse digna da cidadania italiana ou constituísse ameaça à ordem pública podia ser desnaturalizada O Egito e a Turquia em 1926 e 1928 respectivamente aprovaram leis segundo as quais as pessoas que constituíssem ameaça à ordem social podiam perder sua naturalização A França ameaçou desnaturalizar os seus novos cidadãos que cometessem atos contrários aos interesses da França 1927 A Áustria em 1933 podia privar da nacionalidade austríaca qualquer um dos seus cidadãos que cometesse atos hostis à Áustria no exterior ou deles participassem Finalmente a Alemanha em 1933 seguiu de perto os vários decretos russos sobre nacionalidade emitidos desde 1921 declarando que qualquer pessoa residente no exterior podia a critério das autoridades ser privada da nacionalidade alemã 312 Até a terminologia aplicada ao apátrida deteriorouse A expressão povos sem Estado pelo menos reconhecia o fato de que essas pessoas haviam perdido a proteção do seu governo e tinham necessidade de acordos internacionais que salvaguardassem a sua condição legal A expressão displaced persons pessoas deslocadas foi inventada durante a guerra com a finalidade única de liquidar o problema dos apátridas de uma vez por todas por meio do simplório expediente de ignorar a sua existência O nãoreconhecimento de que uma pessoa pudesse ser sem Estado levava as autoridades quaisquer que fossem à tentativa de repatriála isto é de deportála para o seu país origem mesmo que este se recusasse a reconhecer o repatriado em perspectiva como cidadão ou pelo contrário desejasse o seu retorno apenas para punilo Como os países nãototalitários a despeito do clima de guerra geralmente têm evitado repatriações em massa o número de pessoas sem Estado era substancialmente elevado ainda doze anos após o fim da guerra A decisão dos estadistas de resolver o problema do apátrida ignorandoo é revelada ainda pela falta de quaisquer estatísticas dignas de confiança sobre o assunto Contudo sabese pelo menos que enquanto existia 1 milhão de apátridas reconhecidos havia mais de 10 milhões de apátridas de facto embora ignorados O pior é que o número de pessoas que são apátridas em potencial continua a aumentar Antes da última guerra somente os países totalitários ou as ditaduras semitotalitárias recorriam à arma da desnaturalização contra pessoas que eram cidadãos por nascimento mas chegouse ao ponto em que até as democracias livres como por exemplo os Estados Unidos pensaram seriamente em privar da cidadania os americanos natos que fossem comunistas O aspecto sinistro dessas medidas é que são estudadas com toda a inocência No entanto para que se compreendam as verdadeiras implicações da condição do apátrida basta lembrar o extremo zelo dos nazistas que insistiam em que todos os judeus de nacionalidade nãoalemã deviam ser privados de sua cidadania antes da deportação ou ao mais tardar no dia em que fossem deportados252 para os judeus alemães esse decreto não era necessário porque existia uma lei no Terceiro Reich segundo a qual todo judeu que deixasse o território inclusive se fosse deportado perdia automaticamente a cidadania O primeiro e grave dano causado aos Estadosnações pela chegada de centenas de milhares de apátridas foi a abolição tácita do direito de asilo antes símbolo dos Direitos do Homem na esfera das relações internacionais Sua longa e sagrada história data do começo da vida política organizada Desde os tempos antigos com esse direito protegeuse o refugiado e a área que o acolhia contra situações que o forçassem a colocarse fora da lei por circunstâncias alheias ao seu controle Assim o asilo era o único remanescente mo 25a De uma ordem do Hauptsturmführer Dannecker de 10 de março de 1943 referente à deportação de 5 mil judeus da França cota de 1942 O documento cópia fotostática no Centro de Documentation Juive de Paris é parte dos Nuremberg Documents n RF 1216 Medidas semelhantes foram tomadas contra os judeus búlgaros Cf ibidem o relevante memorando de L R Wagner datado de 3 de abril de 1943 Documento NG 4180 313 derno do princípio de que quid est in território est de território pois em todos os outros casos o Estado moderno tendia a proteger os seus cidadãos além de suas fronteiras para que graças a tratados recíprocos permanecessem sujeitos às leis do seu país mesmo morando fora dele Mas embora o direito de asilo continuasse a funcionar num mundo organizado em Estadosnações e em certos casos tenha até sobrevivido às duas guerras mundiais tornouse paulatinamente anacrônico entrando até em conflito com os direitos internacionais do Estado Assim não se encontra esse direito na lei escrita em nenhuma constituição ou acordo internacional e o Pacto da Liga das Nações nem ao menos o menciona26 A esse respeito tem o mesmo destino da Declaração dos Direitos do Homem que também nunca em lugar algum foi transformada em lei levando uma existência mais ou menos irreal como recurso em certos casos excepcionais em que as instituições legais normais não eram suficientes27 O segundo choque que o mundo europeu sofreu com o surgimento dos refugiados28 decorria da dupla constatação de que era impossível desfazerse deles e era impossível transformálos em cidadãos do país de refúgio principalmente porque todos concordavam em que só havia duas maneiras de resolver o problema repatriação ou naturalização29 Quando o exemplo das primeiras 26 S Lawford Childs op cit deplora o fato de que o Pacto da Liga das Nações não contenha nenhuma concessão para os refugiados políticos nenhum alivio para os exilados A tentativa das Nações Unidas de obter pelo menos para um pequeno grupo de apátridas os chamados apátridas de jure uma melhora de status legal não passou de um simples gesto de reunir os representantes de pelo menos vinte países mas com a garantia explícita de que a participação na conferência não implicaria quaisquer obrigações Mesmo assim ainda era extremamente duvidoso que a conferência pudesse ser realizada Ver a notícia no New York Times 17 de outubro de 195 p 9 27 As únicas defensoras do direito de asilo eram aquelas poucas sociedades cujo objetivo especial era a proteção dos direitos humanos A mais importante delas a Ligue des Droits de VHomme patrocinada pela França e com ramificações em todos os países democráticos da Europa agia como se a questão ainda fosse simplesmente a salvação de indivíduos perseguidos em virtude de suas convicções e atividades políticas Essa suposição não tinha sentido por exemplo no caso de milhões de refugiados russos e era simplesmente absurda para os judeus e armênios A Ligue não estava equipada ideológica ou administrativamente para enfrentar esses problemas Como não queria enfrentar a nova situação tropeçava ao tentar exercer as funções que eram muito melhor resolvidas por qualquer uma das muitas agências de caridade que os próprios refugiados haviam criado com o auxílio dos seus compatriotas Ao se tornarem objeto de uma organização de caridade ineficaz os Direitos do Homem caíram em descrédito ainda maior 28 Os numerosos e diferentes esforços dos legisladores no sentido de simplificar o problema declarando uma diferença entre o apátrida e o refugiado como argumentar que o status do apátrida é caracterizado pelo fato de não ter nacionalidade enquanto o do refugiado é determinado por sua perda de proteção diplomática Simpson op cit p 232 foram sempre anulados pelo fato de que todos os refugiados são apátridas para fins práticos Simpson op cit p 4 29 A formulação mais irônica dessa expectativa geral foi feita por R Yewdall Jermings Some international aspects of the refugee question em British Yearbook of International Law 1939 O status do refugiado naturalmente não é permanente O objetivo é que ele se liberte dessa condição o mais depressa possível ou pela repatriação ou pela naturalização no país de refúgio 314 ondas de refugiados armênios e russos demonstrou que nem uma coisa nem outra levavam a resultados tangíveis os países de refúgio simplesmente se recusaram a reconhecer a condição de apátrida nos que vieram depois tornando assim ainda mais intolerável a situação dos refugiados30 Do ponto de vista dos governos interessados era bastante compreensível que constantemente lembrassem à Liga das Nações que o seu trabalho sobre os refugiados devia ser concluído com a maior rapidez possível31 tinham muita razão de recear que os expulsos da velha trindade Estadopovoterritório constituíssem apenas o começo de um movimento crescente primeira gota de um dilúvio que se prenunciava cada vez maior Era óbvio e até mesmo a Conferência de Evian o reconheceu em 1938 que todos os judeus alemães e austríacos eram apátridas em potencial e era natural que os países com numerosos grupos minoritários se sentissem encorajados pelo exemplo da Alemanha a livrarse de algumas dessas populações minoritárias32 Dentre as minorias judeus e armênios corriam o risco maior e logo exibiram a mais alta proporção de apátridas mas também demonstraram que os tratados de minorias não eram necessariamente uma proteção podendo servir de instrumento de escolha de certos grupos para futura expulsão coletiva Quase tão assustador quanto esses novos perigos que provinham do antigo centro nevrálgico da Europa era o tipo inteiramente novo de conduta de todos os cidadãos europeus nas lutas ideológicas Não apenas se expulsavam pessoas de um país e se lhes roubava a cidadania mas crescia o número de pessoas que em todos os países inclusive nas democracias ocidentais se apresentavam para lutar em guerras civis estrangeiras o que até então só pertencia ao campo de ação de poucos idealistas ou aventureiros mesmo que isso significasse a sua separação das comunidades nacionais a que pertenciam Essa foi a 30 Apenas os russos sob todos os aspectos a aristocracia dos apátridas e os armênios que foram equiparados ao status russo chegaram a ser reconhecidos oficialmente como apátridas colocados sob a proteção da Agência Nansen da Liga das Nações e contemplados com documentos que lhes permitiam viajar livremente 31 Childs op cit O motivo dessa desesperada exigência de rapidez era o temor de todos os governos de que o menor gesto positivo pudesse encorajar os países a se descartarem de seus residentes indesejáveis e de que muitos daqueles que de outra forma permaneceriam em seus países mesmo em condições de séria desvantagem pudessem emigrar Louise W Holborn The legal status of political refugees 192038 em American Journal of International Law 1939 Ver também Georges Mauco em Esprit ano 7 n 82 julho de 1939 p 590 A equiparação dos refugiados alemães ao status de outros refugiados sob os cuidados da Agência Nansen teria solucionado melhor o problema Mas os governos não queriam estender os privilégios já concedidos a uma nova categoria de refugiados o que além do mais ameaçaria aumentar o seu número indefinidamente 32 Aos 600 mil judeus da Alemanha e da Áustria que eram apátridas em potencial em 1938 devem ser acrescentados os judeus da Romênia o presidente da Comissão Federal Romena de Minorias professor Dragomir havia acabado de anunciar ao mundo a iminente revisão da cidadania de todos os judeus romenos e da Polônia cujo ministro do Exterior Beck havia oficialmente declarado que a Polônia tinha o excesso de 1 milhão de judeus Ver Simpson op cit p 235 315 lição da Guerra Civil Espanhola e uma das razões pelas quais os governos se assustaram tanto com a Brigada Internacional O fenômeno não teria sido tão negativo se apenas significasse que os homens já não se apegavam tanto a nacionalidade e estavam dispostos a serem eventualmente assimilados por outra comunidade nacional Mas este não era absolutamente o caso As pessoas sem Estado haviam demonstrado surpreendente teimosia em reter a sua nacionalidade os refugiados pertencentes a minorias estrangeiras evitavam a sua diluição e nem sequer se agrupavam às outras como as minorias haviam feito temporariamente para defender interesses comuns33 A Brigada Internacional dividiase em batalhões nacionais nos quais os alemães pensavam estar lutando contra Hitler e os italianos contra Mussolini da mesma forma que apenas alguns anos depois na Resistência os refugiados espanhóis julgavam estar lutando contra Franco quando ajudavam os franceses contra o governo colaboracionista de Vichy O que os governos europeus temiam tanto nesse processo era que os povos apátridas já não pudessem mais ser declarados de nacionalidade dúbia ou duvidosa de nationalité indeterminéé Mesmo que tivessem renunciado à sua cidadania deixando de lado qualquer conexão ou lealdade em relação ao país de origem e sem se identificarem com uma nacionalidade legalmente oriunda do governo reconhecido retinham um forte apego à sua nacionalidade de fato Já não era apenas o Leste europeu que possuía grupos nacionais minoritários sem raízes no território do Estado e sem qualquer lealdade a esse Estado Agora sob a forma de refugiados e apátridas esses grupos se haviam infiltrado também nos países da Europa ocidental A dificuldade surgiu em conseqüência de fracassos da aplicação dos dois remédios reconhecidos como válidos a repatriação e a naturalização As me 33 É difícil saber o que ocorreu primeiro se a relutância dos Estadosnaçes em naturalizar os refugiados com a chegada destes a prática de naturalização tornouse cada vez mais limitada e a prática da desnaturalização cada vez mais comum ou a relutância dos refugiados em aceitar outra cidadania Em países com populações minoritárias como a Polônia os refugiados russos e ucranianos tinham uma clara tendência de se incorporarem às minorias russa e ucraniana sem contudo exigirem cidadania polonesa Ver Simpson op cit p 364 A conduta dos refugiados russos é bem típica O passaporte Nansen descrevia o portador comopersonne dorigine russe porque ninguém ousaria dizer ao emigrante russo que ele não tinha nacionalidade ou era de nacionalidade duvidosa Ver Marc Vichniac Le status international des apatrides em Recueil des Cours de VAcadêmie de Droit International vol XXXIII 1933 Uma tentativa de dar a todos os apátridas cartões de identidade uniformes foi contestada pelos portadores de passaportes Nansen que alegavam que o seu passaporte era um símbolo do reconhecimento legal de seu status peculiar Ver Jermings o cit Antes do início da guerra nem mesmo os refugiados da Alemanha estavam ansiosos por se incorporar à massa dos apátridas e preferiam a descrição refugieprovenant dAllemagne com o seu vestígio de nacionalidade Mais convincentes do que as queixas de países europeus acerca das dificuldades de assimilar refugiados são as declarações de países de ultramar que concordam com os primeiros quanto ao fato de que de todos os imigrantes europeus os menos fácis de serem assimilados são os que vêm da Europa meridional oriental e central Canada and the doctrine of peaceful changes editado por H F Angus em International studies conference demographic questions peaceful changes 1937 pp 756 316 didas de repatriação falharam pois nenhum país aceitou admitir aquelas pessoas E falharam não porque os apátridas se recusassem a regressar à pátria que rejeitavam como pode parecer hoje quando a Rússia soviética reclama seus excidadãos e os países democráticos têm de protegêlos contra uma repatriação que eles não desejam e não em virtude de sentimentos humanitários por parte dos países abarrotados de refugiados mas sim porque nem o país de origem nem qualquer outro concordavam em recebêlos Pode parecer que essa inde portabilidade de uma pessoa sem Estado impedisse um governo de expulsála mas como o homem sem Estado um foradalei por definição era uma anomalia para a qual não existia posição apropriada na estrutura da lei geral34 ficava completamente à mercê da polícia que por sua vez não hesitava muito em cometer atos ilegais para diminuir a carga de indésirables no país35 Em outras palavras o Estado insistindo em seu soberano direito de expulsão era forçado pela natureza ilegal da condição de apátrida a cometer atos confessadamente ilegais36 Os apátridas assim expulsos eram contrabandeados para os países vizinhos com o resultado de que esses últimos retribuíam do mesmo modo A solução ideal da repatriação contrabandear o refugiado de volta ao seu país de origem só teve sucesso em poucos casos em parte porque uma polícia nãototalitária ainda era refreada por certas considerações éticas rudimentares e em parte porque todo esse tráfico só podia realizarse entre países vizinhos Em conseqüência desse contrabando eclodiam conflitos entre polícias fronteiriças que não contribuíam exatamente para melhorar as relações internacionais e cresciam as sentenças de prisão para os apátridas que com auxílio da polícia de um país haviam entrado ilegalmente em outro Todas as tentativas das conferências internacionais no sentido de estabelecer alguma condição legal para os apátridas falharam porque nenhum acordo poderia jamais substituir o território para o qual um estrangeiro dentro da estrutura da lei existente poderia ser deportado Enquanto a discussão do problema do refugiado girava em torno da questão de como podia o refugiado tornarse deportável novamente o campo de internamente tornavase único substi 34 Jermings op cit 35 Uma circular das autoridades holandesas 7 de maio de 1938 chama expressamente cada refugiado de estrangeiro indesejável e define o refugiado como um estrangeiro que deixou o país pela força das circunstâncias Lemigration problème révolutionnaire em Esprit n 82 julho de 1939 p 602 36 Lawrence Preuss op cit descreve nestes termos a difusão da ilegalidade O ato ilegal inicial do país que desnacionaliza uma pessoa coloca a nação expulsora na posição de infratora da lei internacional uma vez que suas autoridades violam a lei do país para o qual o apátrida é expulso Esse país por sua vez não pode descartarse dele a não ser violando a lei de um terceiro país O apátrida depara com a seguinte alternativa ou viola a lei do país onde reside ou viola a lei do país para o qual é expulso Sir John Fischer Williams Denationalisation em British YearBook of International Law VII 1927 conclui dessa situação que a desnacionalização é contrária à lei internacional contudo na Conference pour Codification du Droit International realizada em Haia em 1930 o governo finlandês foi o único a afirmar que a perda da nacionalidade jamais deve constituir punição nem ser usada para que um pais se desfaça de uma pessoa indesejável através da expulsão 317 tuto prático de uma pátria De fato desde os anos 30 esse era o único território que o mundo tinha a oferecer aos apátridas37 Por outro lado a naturalização também resultou em fracasso Todo o sistema de naturalização dos países europeus desmoronou pelo mesmo motivo que levou ao abandono o direito de asilo quando teve de defrontarse com os povos sem Estado Fundamentalmente a naturalização era um apêndice à legislação do Estadonação que levava em conta tãosomente os nacionais isto é as pessoas nascidas em seu território e cidadãs por nascimento A naturalização nos países europeus previa casos excepcionais para indivíduos a quem as circunstâncias haviam levado a um território estrangeiro O processo falhou porém quando foi preciso atender a pedidos de naturalização em massa mesmo do ponto de vista meramente administrativo nenhum serviço público europeu estava em condições de lidar com o problema Em lugar de naturalizar pelo menos parte dos recémchegados os países começaram a cancelar naturalizações concedidas no passado em parte devido ao pânico geral em parte porque a chegada de grandes massas realmente alterava a posição sempre precária dos cidadãos naturalizados da mesma origem39 O cancelamento de naturalizações ou a introdução de novas leis que obviamente abriam o caminho para a desnaturalização em massa destruíram a pouca confiança que os refugiados ainda pudessem ter na possibilidade de se ajustarem a uma vida normal se a assimilação a um novo país havia no passado parecido um tanto vergonhosa e desleal agora era simplesmente ridícula A diferença entre um cidadão naturais Childs op cit chegou à triste conclusão de que a verdadeira dificuldade em receber um refugiado é esta se ele demonstrar ser um mau elemento não há maneira de o país livrarse dele Depois propôs a criação de centros de transição que em outras palavras substituiriam a pátria mas só para fins de deportação 38 Dois casos de naturalização em massa no Oriente Próximo foram claramente excepcionais um envolveu os gregos expulsos da Turquia que o governo grego naturalizou em bloco em 1922 porque se tratava realmente de um minoria grega mesmo que formada por cidadãos juridicamente estrangeiros o outro beneficiou os refugiados armênios da Turquia estabelecidos na Síria Líbano e outros países exotomanos isto é uma população com a qual todo o Oriente Próximo compartilhava a cidadania turcootomana ainda poucos anos antes 39 Quando uma onda de refugiados encontrava membros de sua própria nacionalidade já estabelecidos no país para o qual haviam imigrado como foi o caso dos armênios e italianos na França por exemplo e dos judeus por toda parte ocorria um certo retrocesso na assimilação daqueles que haviam estado lá havia mais tempo Pois o seu auxílio e solidariedade só podiam ser mobilizados por um apelo à nacionalidade original que tinham em comum com os refugiados Isso era do interesse imediato dos países inundados de refugiados mas incapazes ou não desejosos de lhes dar auxílio direto ou o direito de trabalhar Em todos esses casos os sentimentos nacionais do grupo mais antigo foi um dos principais fatores da bemsucedida fixação dos refugiados Simpson op cit pp 456 mas apelando para essa consciência e solidariedade nacional os países receptores naturalmente aumentavam o número de elementos nãoassimilados que assim prolongavam a sua condição real de estrangeiros Para citar apenas um caso 10 mil refugiados italianos bastaram para que se adiasse indefinidamente a assimilação de quase 1 milhão de imigrantes italianos na França 40 O governo francês seguido por outros países ocidentais introduziu nos anos 30 um número cada vez maior de restrições para os cidadãos naturalizados eram eliminados de certas profissões por até dez anos da naturalização não tinham direitos políticos etc 318 lizado e um residente apátrida não era suficientemente grande para justificar o esforço de se naturalizar pois o primeiro era freqüentemente privado de direitos civis e ameaçado a qualquer momento com o destino do segundo As pessoas naturalizadas eram em geral equiparadas aos estrangeiros comuns e como o naturalizado já havia perdido a sua cidadania anterior essas medidas simplesmente ameaçavam tornar apátrida um outro grupo considerável Era quase patético verificar quão impotentes eram os governos europeus a despeito da sua consciência do perigo que era a condição do apátrida para as suas instituições legais e políticas e a despeito de todos os seus esforços no sentido de deter o dilúvio Já não havia necessidade de acontecimentos explosivos Uma vez que dado número de pessoas sem Estado era admitido num país o despatriamento se alastrava como doença contagiosa Não apenas os cidadãos naturalizados corriam o risco de reverter ao estado de apátridas mas as condições de vida de todos os estrangeiros deterioravam visivelmente Nos anos 30 tornouse cada vez mais difícil distinguir claramente entre refugiados sem Estado isto é apátridas e estrangeiros residentes isto é cidadãos de um outro país Sempre que o governo tentava usar o seu direito repatriando um estrangeiro residente contra a sua vontade este fazia o máximo para se refugiar na condição de apátrida Durante a Primeira Guerra Mundial estrangeiros inimigos isto é cidadãos de um país inimigo já haviam descoberto as vantagens dessa condição Mas aquilo que na época fora a esperteza de indivíduos que encontravam uma brecha na lei agora constituía a reação instintiva das massas A França a maior área de recepção de imigrantes da Europa41 pois controlava o caótico mercado de mãodeobra ao apelar para trabalhadores estrangeiros em tempos de necessidade e deportandoos em tempos de desemprego e de crise ensinou aos seus estrangeiros uma lição sobre as vantagens da condição do apátrida que eles não iriam esquecer facilmente Depois de 1935 ano da repatriação em massa empreendida pelo governo de Lavai da qual só os apátridas escaparam os assim chamados imigrantes econômicos e outros grupos que haviam vindo antes balcânicos italianos poloneses e espanhóis misturaramse às ondas de refugiados numa mixórdia que jamais pôde ser destrinçada novamente Muito pior que o dano causado pela condição de apátrida às antigas e necessárias distinções entre nacionais e estrangeiros e ao direito soberano dos Estados em questões de nacionalidade e expulsão foi aquele sofrido pela própria estrutura das instituições legais da nação quando um crescente número de residentes teve de viver fora da jurisdição dessas leis sem ser protegido por quaisquer outras O apátrida sem direito à residência e sem o direito de trabalhar tinha naturalmente de viver em constante transgressão à lei Estava sujeito a ir para a cadeia sem jamais cometer um crime Mais do que isso toda a hierarquia de valores existente nos países civilizados era invertida no seu caso Uma vez que ele constituía a anomalia nãoprevista na lei geral era melhor que se convertesse na anomalia que ela previa o criminoso 41 Simpson op cit p 289 319 A melhor forma de determinar se uma pessoa foi expulsa do âmbito da lei é perguntar se para ela seria melhor cometer um crime Se um pequeno furto pode melhorar a sua posição legal pelo menos temporariamente podemos estar certos de que foi destituída dos direitos humanos Pois o crime passa a ser então a melhor forma de recuperação de certa igualdade humana mesmo que ela seja reconhecida como exceção à norma O fato importante é que a lei prevê essa exceção Como criminoso mesmo um apâtrida não será tratado pior que outro criminoso isto é será tratado como qualquer outra pessoa nas mesmas condições Só como transgressor da lei pode o apâtrida ser protegido pela lei Enquanto durem o julgamento e o pronunciamento da sua sentença estará a salvo daquele domínio arbitrário da polícia contra o qual não existem advogados nem apelações O mesmo homem que ontem estava na prisão devido à sua mera presença no mundo que não tinha quaisquer direitos e vivia sob ameaça de deportação ou era enviado sem sentença e sem julgamento para algum tipo de internação por haver tentado trabalhar e ganhar a vida pode tornarse quase um cidadão completo graças a um pequeno roubo Mesmo que não tenha um vintém pode agora conseguir advogado queixarse contra os carcereiros e ser ouvido com respeito Já não é o refugo da terra é suficientemente importante para ser informado de todos os detalhes da lei sob a qual será julgado Ele tornase pessoa respeitável42 Um modo muito menos seguro e muito mais difícil de passar de anomalia nãoreconhecida à posição de exceção reconhecida seria tornarse gênio Assim como a lei só conhece uma diferença entre seres humanos a diferença entre o nãocriminoso normal e o criminoso anômalo também a sociedade conformista reconhece apenas uma forma de individualismo determinado o gênio A sociedade burguesa européia queria que o gênio permanecesse além das leis humanas que fosse uma espécie de monstro cuja principal função social fosse criar excitamento e não importava realmente que fosse um foradalei Além do mais a perda da cidadania privava a pessoa não apenas de proteção mas também de qualquer identidade claramente estabelecida e oficialmente reconhecida fato cujo símbolo exato era o seu eterno esforço de obter pelo menos certidão de nascimento do país que a desnacionalizava Mas o seu problema só estava resolvido quando conseguia aquele grau de distinção que separa o homem da multidão gigantesca e anônima Somente a fama podia vir a atender a repetida queixa dos refugiados de todas as camadas sociais de que ninguém 42 Na prática qualquer sentença a que for condenado será insignificante comparada com um mandado de expulsão cancelamento do direito de trabalhar ou um decreto que o mande para um campo de internamente Um nipo americano da costa ocidental dos Estados Unidos que estivesse na prisão quando o Exército ordenou o internamente de todos os americanos de ascendência japonesa não teria sido forçado a desfazerse dos seus bens a qualquer preço teria permanecido onde estava munido de um advogado para cuidar dos seus interesses e se tivesse a sorte de receber uma sentença longa voltaria honesta e tranqüilamente ao seu antigo negócio ou profissão mesmo que esta fosse a de ladrão Sua sentença condenatória garantialhe os direitos constitucionais que nenhuma atitude mesmo de total lealdade lhe poderia garantir uma vez que a sua cidadania fosse posta em dúvida 320 aqui sabe quem eu sou e a verdade é que as chances de um refugiado famoso aumentam da mesma forma que um cachorro perdido com pedigree sobrevive mais facilmente que um outro cachorro perdido que é apenas um cão como os demais43 O Estadonação incapaz de prover uma lei para aqueles que haviam perdido a proteção de um governo nacional transferiu o problema para a polícia Foi essa a primeira vez em que a polícia da Europa ocidental recebeu autoridade para agir por conta própria para governar diretamente as pessoas nessa esfera da vida pública já não era um instrumento para executar e fazer cumprir a lei mas se havia tornado autoridade governante independente de governos e de ministérios44 A sua força e a sua independência da lei e do governo cresceram na proporção direta do influxo de refugiados Quanto maior era o número de apátridas e de apátridas em potencial e na França antes da Segunda Guerra Mundial esse grupo atingiu 10 da população total maior era o perigo da gradual transformação do Estado da lei em Estado policial Não é preciso dizer que os regimes totalitários onde a polícia havia galgado o auge do poder ansiavam particularmente pela consolidação desse poder através do domínio de vastos grupos de pessoas que independentemente de quaisquer ofensas cometidas por indivíduos estavam de qualquer modo fora do âmbito da lei Na Alemanha nazista as leis de Nuremberg com a sua distinção entre os cidadãos do Reich Reichsbürger cidadãos completos e nacionais Volksbürger cidadãos de segunda classe sem direitos políticos haviam aberto o caminho para um estágio final no qual os nacionais de sangue estrangeiropodiam perder a nacionalidade por decretos só a deflagração da guerra evitou a promulgação de uma legislação nesse sentido que havia sido detalhadamente preparada44aPor outro lado os crescentes grupos de apátridas 43 O fato de que o mesmo princípio de formação das elites funcionou muitas vezes nos campos de concentração totalitários onde a aristocracia era constituída de criminosos e alguns gênios isto é artistas ou escritores mostra quão intimamente são relacionadas as posições sociais desses grupos 44 Na França por exemplo ficou comprovado que uma ordem de expulsão que emanasse da polícia era muito mais grave do que outra que viesse apenas do Ministério do Interior e que o ministro do Interior só raramente podia cancelar uma expulsão ordenada pela polícia enquanto o processo oposto dependia muitas Vezes somente de suborno Constitucionalmente a policia está subordinada ao Ministério do Interior 44a Em fevereiro de 1939 o Ministério do Interior do Reich e da Prússia apresentou o projeto de uma lei referente à aquisição e à perda da nacionalidade alemã que ia muito além da legislação de Nuremberg Segundo esse projeto todos os filhos de judeus judeus de sangue misto ou pessoas de outro sangue estrangeiro que nunca poderiam vir a ser cidadãos do Reich de qualquer forma também não tinham mais o direito à nacionalidade mesmo que o pai tivesse nacionalidade alemã por nascimento Essas medidas já não estavam interessadas na legislação antijudaica como ficou evidenciado por uma opinião emitida a 19 de julho de 1939 pelo ministro da Justiça que sugeriu que as palavras judeu e judeu de sangue misto fossem omitidas da lei e substituídas por pessoas de sangue estrangeiro ou pessoas de sangue nâoalemão ou nãogermânico nicht artverwandt Uma interessante faceta desse plano de aumentar extraordinariamente a população apâtrida da Alemanha nazista diz respeito aos enjeitados que são considerados explicitamente apátridas até que uma investigação de suas características raciais possa ser feita Eis 321 nos países não totalitários levaram a uma forma de ilegalidade organizada pela polícia que praticamente resultou na coordenação do mundo livre com a legislação dos países totalitários O fato de virem a existir campos de concentração para os mesmos grupos em todos os países embora houvesse diferenças consideráveis no tratamento dos internos foi característico da época se os nazistas confinavam uma pessoa num campo de concentração e ela conseguisse fugir digamos para a Holanda os holandeses a colocavam num campo de internação Assim muito antes do início da guerra as policias em muitos países ocidentais a pretexto da segurança nacional haviam por iniciativa própria estabelecido íntimas ligações com a Gestapo e a GPU de modo que se poderia dizer que existia uma política estrangeira policial independente Essa política estrangeira dirigida pela polícia funcionava à margem das diretrizes dos governos oficiais as relações entre a Gestapo e a polícia francesa por exemplo nunca foram tão cordiais como na época do governo da Frente Popular de Léon Blum que determinou uma política decididamente antigermânica Em contraste com os governos as organizações policiais não nutriam preconceitos contra os regimes totalitários as informações e denúncias recebidas de agentes da GPU eram tão bemvindas quanto a dos agentes fascistas e da Gestapo Conheciam o papel do aparelho policial em todos os regimes totalitários sabiam da sua elevada posição social e importância política e nunca se preocuparam em esconder as suas simpatias O fato de que os alemães encontraram tão pouca resistência por parte das polícias dos países que haviam ocupado e de que os alemães puderam organizar o terror com a ajuda das polícias locais foi em parte devido à poderosa posição que a polícia havia conquistado no decorrer dos anos em seu irrestrito e arbitrário domínio sobre os apátridas e os refugiados Os judeus tiveram papel importante tanto na história da nação de minorias como na formação dos povos apátridas Estiveram à frente do chamado movimento de minorias não só em virtude de sua necessidade de proteção somente igualada pela necessidade dos armênios e da capacidade de aproveitamento de suas excelentes conexões internacionais mas acima de tudo porque não constituíam maioria em país algum e portanto podiam ser considerados a minoritépar excellence isto é a única minoria cujos interesses só podiam ser defendidos por uma proteção garantida internacionalmente45 As necessidades especiais do povo judeu constituíam o melhor pretexto aqui deliberadamente invertido o princípio de que todo indivíduo nasce com direitos inalienáveis garantidos por sua nacionalidade agora todo indivíduo nasce sem direitos a não ser que mais tarde se possa determinar o contrário O dossiê original referente ao projeto dessa legislação incluindo as opiniões de todos os ministérios e do Alto Comando da Wehrmacht encontrase nos arquivos do Yiddish Scientific Institute Nova York 45 Quanto ao papel dos judeus na formulação dos Tratados das Minorias ver Macartney op cit pp 4 213 281 epassim David Erdstein Le status juridique des minorités en Europe Paris 1932 pp 11 ss Oscar J Janowsky op cit 322 para que se negasse que os Tratados fossem uma solução entre a tendência das novas nações de assimilarem povos estrangeiros e a situação de nacionalidades às quais tãosó por questões de conveniência não se podia conceder o direito de autodeterminação nacional Aliás os primeiros Heimatlosen ou apatrides como foram denominados pelos Tratados de Paz eram na maioria exatamente judeus que vinham dos Estados sucessórios e não podiam ou não queriam colocarse sob a proteção da maioria que havia sido levada ao poder nos seus países de origem Somente quando a Alemanha forçou os judeus alemães a emigrar tornandoos apátridas é que os judeus passaram a constituir uma parte realmente significativa dos grupos apátridas Mas nos anos que se seguiram à bemsucedida perseguição de Hitler aos judeus todos os países com minorias começaram a pensar em se desfazer de algum modo de seus grupos minoritários e era natural que começassem a realizar essas idéias a partir da minoritépar excellance a única nacionalidade que realmente não tinha qualquer outra proteção além de um sistema de minorias que a essa altura não era mais que simples zombaria A noção de que o problema do apátrída era primariamente judeu46 foi um pretexto usado por todos os governos que tentavam resolver o problema ignorandoo Nenhum dos estadistas se apercebia de que a solução de Hitler para o problema judaico primeiro reduzir os judeus alemães a uma minoria nãoreconhecida na Alemanha depois expulsálos como apátridas e finalmente reagrupálos em todos os lugares em que passassem a residir para enviálos aos campos de extermínio era uma eloqüente demonstração para o resto do mundo de como realmente liquidar todos os problemas relativos às minorias e apátridas Depois da guerra viu se que a questão judaica considerada a única insolúvel foi realmente resolvida por meio de um território colonizado e depois conquistado mas isso não resolveu o problema geral das minorias nem dos apátridas Pelo contrário a solução da questão judaica meramente produziu uma nova categoria de refugiados os árabes acrescentando assim cerca de 700 mil a 800 mil pessoas ao número dos que não têm Estado nem direitos E o que aconteceu na Palestina em território menor e em termos de poucas centenas de milhares de pessoas foi repetido depois na índia em larga escala envolvendo muitos milhões de homens Desde os Tratados de Paz de 1919 e 1920 os refugiados e os apátridas têmse apegado como uma maldição aos Estados recémestabelecidos criados à imagem do Estadonação Para esses novos Estados essa maldição contém o germe de uma doença mortal Pois o Estado nação não pode existir quando o princípio de igualdade perante a lei é quebrado Sem essa igualdade legal que originalmente se desti 46 Essa noção não é de modo algum privilégio da Alemanha nazista embora somente um autor nazista ousasse expressála É verdade que continuará a existir uma questão dos refugiados mesmo quando já não exista a questão dos judeus mas como os judeus constituem uma porcentagem tão alta dos refugiados a questão dos refugiados será bem mais simples Kabermann Das internationale Flflchtlingsproblem O problema internacional dos refugiados em Zeitschrifi für Politik vol 29 3 1939 323 nava a substituir as leis e ordens mais antigas da sociedade feudal a nação se dissolve numa massa anárquica de indivíduos super e subprivilegiados As leis que não são iguais para todos transformamse em direitos e privilégios o que contradiz a própria natureza do Estadonação Quanto mais clara é a demonstração da sua incapacidade de tratar os apátridas como pessoas legais e quanto mais extenso é o domínio arbitrário do decreto policial mais difícil é para os Estados resistir à tentação de privar todos os cidadãos da condição legal e dominálos com uma polícia onipotente 2 AS PERPLEXIDADES DOS DIREITOS DO HOMEM A Declaração dos Direitos do Homem no fim do século XVIII foi um marco decisivo na história Significava que doravante o Homem e não o comando de Deus nem os costumes da história seria a fonte da Lei Independente dos privilégios que a história havia concedido a certas camadas da sociedade ou a certas nações a declaração era ao mesmo tempo a mostra de que o homem se libertava de toda espécie de tutela e o prenuncio de que já havia atingido a maioridade Mas havia outra implicação que os autores da Declaração apenas perceberam pela metade A Declaração dos Direitos Humanos destinavase também a ser uma proteção muito necessária numa era em que os indivíduos já não estavam a salvo nos Estados em que haviam nascido nem embora cristãos seguros de sua igualdade perante Deus Em outras palavras na nova sociedade secularizada e emancipada os homens não mais estavam certos daqueles direitos sociais e humanos que até então independiam da ordem política garantidos não pelo governo ou pela constituição mas pelo sistema de valores sociais espirituais e religiosos Assim durante todo o século XIX o consenso da opinião era de que os direitos humanos tinham de ser invocados sempre que um indivíduo precisava de proteção contra a nova soberania do Estado e a nova arbitrariedade da sociedade Como se afirmava que os Direitos do Homem eram inalienáveis irredutíveis e indeduzíveis de outros direitos ou leis não se invocava nenhuma autoridade para estabelecêlos o próprio Homem seria a sua origem e seu objetivo último Além disso julgavase que nenhuma lei especial seria necessária para protegêlos pois se supunha que todas as leis se baseavam neles O Homem surgia como o único soberano em questões de lei da mesma forma como o povo era proclamado o único soberano em questões de governo A soberania do povo diferente da do príncipe não era proclamada pela graça de Deus mas em nome do Homem de sorte que parecia apenas natural que os direitos inalienáveis do Homem encontrassem sua garantia no direito do povo a um autogoverno soberano e se tornassem parte inalienável desse direito Em outras palavras mal o homem havia surgido como ser completamente emancipado e isolado que levava em si mesmo a sua dignidade sem referência a 324 alguma ordem superior que o incorporasse diluíase como membro do povo Desde o início surgia o paradoxo contido na declaração dos direitos humanos inalienáveis ela se referia a um ser humano abstrato que não existia em parte alguma pois até mesmo os selvagens viviam dentro de algum tipo de ordem social E se uma comunidade tribal ou outro grupo atrasado não gozava de direitos humanos é porque obviamente não havia ainda atingido aquele estágio de civilização o estágio da soberania popular e nacional sendo oprimida por déspotas estrangeiros ou nativos Toda a questão dos direitos humanos foi associada à questão da emancipação nacional somente a soberania emancipada do povo parecia capaz de assegurálos a soberania do povo a que o indivíduo pertencia Como a humanidade desde a Revolução Francesa era concebida à margem de uma família de nações tornouse gradualmente evidente que o povo e não o indivíduo representava a imagem do homem A total implicação da identificação dos direitos do homem com os direitos dos povos no sistema europeu de Estadosnações só veio à luz quando surgiu de repente um número inesperado e crescente de pessoas e de povos cujos direitos elementares eram tão pouco salvaguardados pelo funcionamento dos Estadosnações em plena Europa como o teriam sido no coração da África Os Direitos do Homem afinal haviam sido definidos como inalienáveis porque se supunha serem independentes de todos os governos mas sucedia que no momento em que seres humanos deixavam de ter um governo próprio não restava nenhuma autoridade para protegêlos e nenhuma instituição disposta a garantilos Ou quando como no caso das minorias uma entidade internacional se investia de autoridade nãogovernamental seu fracasso se evidenciava antes mesmo que suas medidas fossem completamente tomadas não apenas os governos se opunham mais ou menos abertamente a essa usurpação de sua soberania mas as próprias nacionalidades interessadas deixaram de reconhecer uma garantia nãonacional desconfiando de qualquer ato que não apoiasse claramente os seus direitos nacionais em contraposição aos meros direitos lingüísticos religiosos e étnicos e preferiam voltarse para a proteção de sua mãepátria nacional como os alemães e húngaros que viviam fora da Alemanha ou Hungria ou para alguma espécie de solidariedade internacional como os judeus47 Os apátridas estavam tão convencidos quanto as minorias de que a perda de direitos nacionais era idêntica à perda de direitos humanos e que a primeira 47 Exemplos patéticos dessa confiança exclusiva em direitos nacionais foram o consentimento antes da Segunda Guerra Mundial de quase 75 da minoria alemã do Tirol italiano em deixar os seus lares e se reinstalarem na Alemanha a transferência voluntária para a Alemanha de uma comunidade alemã da Eslovênia ali presente desde o século XIV e imediatamente após o término da guerra a unânime rejeição por parte dos refugiados judeus de um campo de refugiados de guerra situado na Itália de oferta de naturalização em massa feito pelo governo italiano Ante a experiência dos povos europeus entre as duas guerras seria grave erro interpretar essa conduta simplesmente como mais um exemplo de fanático sentimento nacionalista essas pessoas já não se sentiam seguras com os seus direitos elementares se não fossem protegidas por um governo de Estadonação à qual pertenciam por nascimento Ver Eugene M Kulischer op cit 325 levava à segunda Quanto mais se lhes negava o direito sob qualquer forma mais tendiam a buscar a reintegração numa comunidade nacional em sua própria comunidade nacional Os refugiados russos foram apenas os primeiros a insisti1 em sua nacionalidade e a se defender contra as tentativas de aglutinação com outros povos apátridas Desde então nenhum grupo de refugiados ou displaced persons deixou de desenvolver uma violenta campanha em prol da manutenção da consciência grupai exigindo os seus direitos na qualidade de poloneses judeus alemães etc e somente nessa qualidade O pior é que as sociedades formadas para a proteção dos Direitos do Horriem e as tentativas de se chegar a uma nova definição dos direitos humanos erarf1 patrocinadas por figuras marginais por alguns poucos juristas internacionais sem experiência política ou por filantropos apoiados pelos incertos sentimentos de idealistas profissionais Os grupos que formavam e as declarações qUe faziam tinham uma estranha semelhança de linguagem e composição com os das sociedades protetoras dos animais Nenhum estadista nenhuma figura de certa importância podia leválos a sério e nenhum dos partidos liberais ou radicais da Europa achava necessário incorporar aos seus programas uma nova declaração dos direitos humanos Nem sequer as próprias vítimas em suas numerosas tentativas de escapar do labirinto de arame farpado no qual haviam sido atiradas pelos acontecimentos invocaram nem antes nem depois da Segiinda Guerra Mundial esses direitos fundamentais que tão evidentemente lhes eram negados Pelo contrário as vítimas compartilhavam o desdém e a indiferença das autoridades constituídas em relação a qualquer tentativa das sociedades marginais de impor os direitos humanos em qualquer sentido elementar ou geral Certamente não era devido à má vontade o fracasso de todos os responsáveis em atender à calamidade de um grupo cada vez mais numeroso de pessoas forçadas a viver fora do âmbito de toda lei tangível Os Direitos do Homem solenemente proclamados pelas revoluções francesa e americana como novo fundamento para as sociedades civilizadas jamais haviam constituído questão prática em política Durante o século XIX esses direitos haviam sido invocados de modo bastante negligente para defender certos indivíduos contra o poder crescente do Estado e para atenuar a insegurança social causada pela Revolução Industrial Nessa época o significado dos direitos humanos adquiriu a conotação de slogans usados pelos protetores dos subprivilegiados um direito de exceção para quem não dispunha de direitos usuais O conceito dos direitos humanos foi tratado de modo marginal pelo pensamento político do século XIX e nenhum partido liberal do século XX houve por bem incluílos em seu programa mesmo quando havia urgência de fazer valef esses direitos O motivo para isso parece óbvio os direitos civis isto é os vários direitos de que desfrutava o cidadão em seu país supostamente personificavam e enunciavam sob forma de leis os eternos Direitos do Homem que em si se supunham independentes de cidadania e nacionalidade Todos os seres humanos eram cidadãos de algum tipo de comunidade política se as leis do seu país não atendiam às exigências dos Direitos do Homem esperavase que nos 326 países democráticos eles as mudassem através da legislação e nos despóticos por meio da ação revolucionária Os Direitos do Homem supostamente inalienáveis mostraramse inexeqüíveis mesmo nos países cujas constituições se baseavam neles sempre que surgiam pessoas que não eram cidadãos de algum Estado soberano A esse fato por si já suficientemente desconcertante deve acrescentarse a confusão criada pelas numerosas tentativas de moldar o conceito de direitos humanos no sentido de definilos com alguma convicção em contraste com os direitos do cidadão claramente delineados A primeira perda que sofreram essas pessoas privadas de direito não foi a da proteção legal mas a perda dos seus lares o que significava a perda de toda a textura social na qual haviam nascido e na qual haviam criado para si um lugar peculiar no mundo Essa calamidade tem precedentes pois na história são corriqueiras as migrações forçadas por motivos políticos ou econômicos de indivíduos ou de povos inteiros O que era sem precedentes não era a perda do lar mas a impossibilidade de encontrar um novo lar De súbito revelouse não existir lugar algum na terra aonde os emigrantes pudessem se dirigir sem as mais severas restrições nenhum país ao qual pudessem ser assimilados nenhum território em que pudessem fundar uma nova comunidade própria Além do mais isso quase nada tinha a ver com qualquer problema material de superpopulação pois não era um problema de espaço ou de demografia Era um problema de organização política Ninguém se apercebia de que a humanidade concebida durante tanto tempo à imagem de uma família de nações havia alcançado o estágio em que a pessoa expulsa de uma dessas comunidades rigidamente organizadas e fechadas viase expulsa de toda a família das nações A segunda perda sofrida pelas pessoas destituídas de seus direitos foi a perda da proteção do governo e isso não significava apenas a perda da condição legal no próprio país mas em todos os países Os tratados de reciprocidade e os acordos internacionais teceram uma teia em volta da terra que possibilita ao cidadão de qualquer país levar consigo a sua posição legal para onde quer que vá de modo que por exemplo um cidadão alemão sob o regime nazista não poderia nem no exterior contrair um casamento racialmente misto devido às leis de Nuremberg No entanto quem está fora dessa teia está fora de toda legalidade assim durante a última guerra os apátridas estavam em posição invariavelmente pior que os estrangeiros inimigos que ainda eram de certo modo protegidos por seus governos através de acordos internacionais A perda da proteção do governo foi um fenômeno tão sem precedentes quanto a perda do lar Os países civilizados ofereciam o direito de asilo àqueles que por motivos políticos haviam sido perseguidos por seus governos e essa 48 As poucas oportunidades de integração que restavam à maioria dos emigrantes eram geralmente baseadas em sua nacionalidade de origem os refugiados espanhóis por exemplo eram até certo ponto bemvindos no México Os Estados Unidos no inicio da década dos 20 adotaram um sistema de cotas segundo o qual cada nacionalidade já representada no país tinha por assim dizer o direito de receber um número de compatriotas proporcional à sua fração da população 327 prática embora nunca fosse incorporada oficialmente a qualquer constituição funcionou bem no século XIX e ainda no início do século XX A dificuldade surgiu quando se verificou que as novas categorias de perseguidos eram demasiado numerosas para serem atendidas por uma prática oficiosa destinada a casos excepcionais Além disso a maioria dos refugiados sequer poderia invocar o direito de asilo na medida em que ele implicitamente pressupunha convicções políticas e religiosas que ilegais ou combatidas no pais de origem não o eram no país de refúgio Mas os novos refugiados não eram perseguidos por algo que tivessem feito ou pensado e sim em virtude daquilo que imutavelmente eram nascidos na raça errada como no caso dos judeus na Alemanha ou na classe errada como no caso dos aristocratas na Rússia ou convocados pelo governo errado como no caso dos soldados do Exército Republicano espanhol49 Quanto mais elevado era o número de pessoas sem direitos maior era a tentação de olhar menos para o procedimento dos governos opressores que para a condição dos oprimidos E era clamoroso que essas pessoas embora perseguidas por algum pretexto político já não constituíssem como sempre acontecia com os perseguidos no decorrer da história um risco e uma imagem vergonhosa para os opressores não eram consideradas nem pretendiam ser inimigos ativos mas eram e não pareciam ser outra coisa senão seres humanos cuja própria inocência de qualquer ponto de vista e especialmente do ponto de vista do governo opressor era o seu maior infortúnio A inocência no sentido de completa falta de responsabilidade era a marca da sua privação de direitos e o selo da sua perda de posição política Portanto só aparentemente a necessidade da imposição dos direitos humanos se relaciona com o destino dos autênticos refugiados políticos Estes necessariamente pouco numerosos ainda gozam do direito de asilo em muitos países e esse direito age de maneira informal como genuíno substituto da lei nacional Um dos aspectos surpreendentes da nossa experiência com os apátridas que podem beneficiarse legalmente com a perpretação de um crime é o fato de que parece mais fácil privar da legalidade uma pessoa completamente inocente do que alguém que tenha cometido um crime Assumiu uma horrível realidade o famoso chiste de Anatole France se eu for acusado de roubar as torres de Notre Dame a única coisa que posso fazer é fugir do país Os juristas habituaramse a pensar na lei em termos de castigo que realmente nos priva de certos direitos para eles pode ser mais difícil que para um leigo reconhecer que a privação da legalidade isto é de todos os direitos já não se relaciona com crimes específicos 49 Quão perigosa pode ser a inocência do ponto de vista do governo opressor ficou claro quando durante a guerra passada o governo americano ofereceu asilo a todos os refugiados alemães ameaçados de extradição segundo o armistício assinado pela França de Pétain e a Alemanha de Hitler Naturalmente a condição era que o proponente pudesse provar que havia feito algo contra o regime nazista Mas a proporção dos refugiados alemães que podiam satisfazer esta condição era muito pequena e por estranho que pareça não eram esses os que corriam o maior perigo 328 Essa situação é um exemplo das muitas perplexidades inerentes ao conceito dos direitos humanos Não importa como tenham sido definidos no passado o direito à vida à liberdade e à procura da felicidade de acordo com a fórmula americana ou a igualdade perante a lei a liberdade a proteção da propriedade e a soberania nacional segundo os franceses não importa como se procure aperfeiçoar uma fórmula tão ambígua como a busca da felicidade ou uma fórmula antiquada como o direito indiscutível à propriedade a verdadeira situação daqueles a quem o século XX jogou fora do âmbito da lei mostra que esses são direitos cuja perda não leva à absoluta privação de direitos O soldado durante a guerra é privado do seu direito à vida o criminoso do seu direito à liberdade todos os cidadãos numa emergência do direito de buscarem a felicidade mas ninguém dirá jamais que em qualquer desses casos houve uma perda de direitos humanos Por outro lado esses direitos podem ser concedidos se não usufruídos mesmo sob condições de fundamental privação de direitos A calamidade dos que não têm direitos não decorre do fato de terem sido privados da vida da liberdade ou da procura da felicidade nem da igualdade perante a lei ou da liberdade de opinião fórmulas que se destinavam a resolver problemas dentro de certas comunidades mas do fato de já não pertencerem a qualquer comunidade Sua situação angustiante não resulta do fato de não serem iguais perante a lei mas sim de não existirem mais leis para eles não de serem oprimidos mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles nem que seja para oprimi los Só no último estágio de um longo processo o seu direito à vida é ameaçado só se permanecerem absolutamente supérfluos se não se puder encontrar ninguém para reclamá los as suas vidas podem correr perigo Os próprios nazistas começaram a sua exterminação dos judeus privandoos primeiro de toda condição legal isto é da condição de cidadãos de segunda classe e separandoos do mundo para ajuntálos em guetos e campos de concentração e antes de acionarem as câmaras de gás haviam apalpado cuidadosamente o terreno e verificado para sua satisfação que nenhum país reclamava aquela gente O importante é que se criou uma condição de completa privação de direitos antes que o direito à vida fosse ameaçado O mesmo se aplica com certa ironia em relação ao direito de liberdade que é às vezes tido como a própria essência dos direitos humanos Não há dúvida de que os que estão fora do âmbito da lei podem ter mais liberdade de movimento do que um criminoso legalmente encarcerado ou de que gozam de mais liberdade de opinião nos campos de internação dos países democráticos do que gozariam sob qualquer regime despótico comum para não falar de países totalitários50 Mas nem a sua segurança física como o fato de serem alimentados por alguma instituição beneficiente estatal ou privada nem a liberdade 50 Mesmo nas condições do terror totalitário os campos de concentração foram às vezes o único lugar onde ainda existia algum vestígio de liberdade de pensamento e de discussão Ver David Rousset Lesjours de notre mort Paris 1947 passim quanto à liberdade de discussão em Buchenwald e Anton Ciliga The Russian enigma Londres p 200 acerca de ilhas de liberdade a liberdade espiritual que reinava em alguns locais soviéticos de detenção 329 de opinião alteram a sua situação de privação de direitos O prolongamento de suas vidas é devido à caridade e não ao direito pois não existe lei que possa forçar as nações a alimentálos a sua liberdade de movimentos se a têm não lhes dá nenhum direito de residência do qual até o criminoso encarcerado desfruta naturalmente e a sua liberdade de opinião é uma überdade fútil pois nada do que pensam tem qualquer importância Estes últimos pontos são cruciais A privação fundamental dos direitos humanos manifestase primeiro e acima de tudo na privação de um lugar no mundo que torne a opinião significativa e a ação eficaz Algo mais fundamental do que a liberdade e a justiça que são os direitos do cidadão está em jogo quando deixa de ser natural que um homem pertença à comunidade em que nasceu e quando o não pertencer a ela não é um ato da sua livre escolha ou quando está numa situação em que a não ser que cometa um crime receberá um tratamento independente do que ele faça ou deixe de fazer Esse extremo e nada mais é a situação dos que são privados dos seus direitos humanos São privados não do seu direito à liberdade mas do direito à ação não do direito de pensarem o que quiserem mas do direito de opinarem Privilégios em alguns casos injustiças na maioria das vezes bênçãos ou ruínas lhes serão dados ao sabor do acaso e sem qualquer relação com o que fazem fizeram ou venham a fazer Só conseguimos perceber a existência de um direito de ter direitos e isto significa viver numa estrutura onde se é julgado pelas ações e opiniões e de um direito de pertencer a algum tipo de comunidade organizada quando surgiram milhões de pessoas que haviam perdido esses direitos e não podiam recuperálos devido à nova situação política global O problema não é que essa calamidade tenha surgido não de alguma falta de civilização atraso ou simples tirania mas sim que ela não pudesse ser reparada porque já não há qualquer lugar incivilizado na terra pois queiramos ou não já começamos realmente a viver num Mundo Ünico Só com uma humanidade completamente organizada a perda do lar e da condição política de um homem pode eqüivaler à sua expulsão da humanidade Antes que isso ocorresse aquilo que hoje devemos chamar de direito humano teria sido concebido como característica geral da condição humana que nenhuma tirania poderia subtrair Sua perda envolve a perda da relevância da fala e o homem desde Aristóteles tem sido definido como um ser que comanda o poder da fala e do pensamento e a perda de todo relacionamento humano e o homem de novo desde Aristóteles tem sido concebido como o animal político isto é que por definição vive em comunidade isto é a perda em outras palavras das mais essenciais características da vida humana Este era até certo ponto o caso dos escravos a quem Aristóteles portanto não incluía entre os seres humanos A ofensa fundamental com que a escravidão atingia os direitos humanos não consistia na eliminação de sua liberdade o que pode ocorrer em muitas outras situações mas no fato de ter tirado de uma categoria de pessoas até mesmo a possibilidade de lutarem pela liberdade luta que ainda era 330 possível sob a tirania e mesmo sob as condições desesperadas do terror moderno mas não nas condições de vida dos campos de concentração O crime de instituir a escravidão não começou quando um povo derrotou e escravizou os seus inimigos embora naturalmente isso já fosse bastante mas quando a escravidão se tornou uma instituição na qual alguns homens nasciam livres e outros escravos quando foi esquecido que foi o homem que privara os seus semelhantes da überdade e quando se atribuiu à natureza a aprovação do crime Contudo à luz de eventos recentes é possível dizer que mesmo os escravos ainda pertenciam a algum tipo de comunidade humana seu trabalho era necessário usado e explorado e isso os mantinha dentro do âmbito da humanidade Ser um escravo significava afinal ter uma qualidade diferente mas sempre com um lugar na sociedade portanto algo mais que a abstrata nudez de ser unicamente humano e nada mais Assim a calamidade que se vem abatendo sobre um número cada vez maior de pessoas não é a perda de direitos específicos mas a perda de uma comunidade disposta e capaz de garantir quaisquer direitos O homem pode perder todos os chamados Direitos do Homem sem perder a sua qualidade essencial de homem sua dignidade humana Só a perda da própria comunidade é que o expulsa da humanidade O direito que corresponde a essa perda e que nunca foi sequer mencionado entre os direitos humanos não pode ser expresso em termos das categorias do século XVIII pois estas presumem que os direitos emanam diretamente da natureza do homem e portanto faz pouca diferença se essa natureza é visualizada em termos de lei natural ou de um ser criado à imagem de Deus se se refere a direitos naturais ou a mandamentos divinos O fator decisivo é que esses direitos e a dignidade humana que eles outorgam deveriam permanecer válidos e reais mesmo que somente existisse um único ser humano na face da terra não dependem da pluralidade humana e devem permanecer válidos mesmo que um ser humano seja expulso da comunidade humana Quando os Direitos do Homem foram proclamados pela primeira vez foram considerados independentes da história e dos privilégios concedidos pela história a certas camadas da sociedade Essa nova independência constituía a recémdescoberta dignidade do homem Desde o início a natureza dessa nova dignidade era um tanto ambígua Os direitos históricos foram substituídos por direitos naturais a natureza tomou o lugar da história e se supunha tacita mente que a natureza era menos alheia à essência do homem que a história A própria linguagem da Declaração da Independência americana e da Declaration des Droits de VHomme inalienáveis recebidos por nascimento verdades evidentes por si mesmas implica a crença em certa natureza humana que seria sujeita às mesmas leis de evolução que a do indivíduo e da qual os direitos e as leis podiam ser deduzidos Hoje estamos talvez em melhor posição para julgar o que é exatamente essa natureza humana pelo menos ela demonstrou potencialidades não reconhecidas e nem mesmo suspeitadas pela filosofia e pela religião do Ocidente que a definiram por mais de 3 mil anos Mas não é apenas o aspecto por assim dizer humano da natureza que se tornou duvidoso para nós O homem alienouse da natureza desde que apren 331 deu a dominála a tal ponto que a destruição de toda a vida orgânica da terra com instrumentos feitos por ele se tomou concebível e tecnicamente possível Desde que um conhecimento mais profundo dos processos naturais instilou sérias dúvidas quanto à existência de quaisquer leis naturais a própria natureza assumiu um aspecto sinistro Como deduzir leis e direitos de um universo que aparentemente os desconhece O homem do século XX se tomou tão emancipado da natureza como o homem do século XVIII se emancipou da história A história e a natureza tornaramse ambas alheias a nós no sentido de que a essência do homem já não pode ser compreendida em termos de uma nem de outra Por outro lado a humanidade que para o século XVIII na terminologia kantiana não passava de uma idéia reguladora tomouse hoje de fato inelutavel Esta nova situação na qual a humanidade assumiu de fato um papel antes atribuído à natureza ou à história significaria nesse contexto que o direito de ter direitos ou o direito de cada indivíduo de pertencer à humanidade deveria ser garantido pela própria humanidade Nada nos assegura que isso seja possível Pois contrariamente às tentativas humanitárias das organizações internacionais por melhor intencionadas que sejam ao formular novas declarações dos direitos humanos é preciso compreender que essa idéia transcende a atual esfera da lei internacional que ainda funciona em termos de acordos e tratados recíprocos entre Estados soberanos e por enquanto não existe uma esfera superior às nações Além disso o dilema não seria resolvido pela criação de um governo mundial Esse governo mundial está realmente dentro dos limites do possível mas há motivos para suspeitar que na realidade seria muito diferente daquele que é promovido por organizações idealistas Os crimes contra os direitos humanos especialidade dos regimes totalitários podem sempre justificarse pela desculpa de que o direito eqüivale ao que é bom ou útil para um todo em contraste com as suas partes O lema de Hitler de que o direito é aquilo que é bom para o alemão é apenas a forma vulgar de uma concepção da lei que pode ser encontrada em toda parte e que na prática só não permanecerá eficaz se as tradições mais antigas ainda em vigor nas constituições o evitarem Uma concepção da lei que identifica o direito com a noção do que é bom para o indivíduo ou para a família ou para o povo ou para a maioria tomase inevitável quando as medidas absolutas e transcendentais da religião ou da lei da natureza perdem a sua autoridade E essa situação de forma alguma se resolverá pelo fato de ser a humanidade a unidade à qual se aplica o que é bom Pois é perfeitamente concebível e mesmo dentro das possibilidades políticas práticas que um belo dia uma humanidade altamente organizada e mecanizada chegue de maneira democrática isto é por decisão da maioria à conclusão de que para a humanidade como um todo convém liquidar certas partes de si mesma Aqui nos problemas da realidade concreta confrontamonos com uma das mais antigas perplexidades da filosofia política que pôde permanecer desapercebida somente enquanto uma teologia cristã estável fornecia a estrutura de todos os problemas políticos e filosóficos mas que há muito tempo atrás levou Platão a dizer Não o homem mas um deus deve ser a medida de todas as coisas 332 Estes fatos e reflexões constituem o que parece uma confirmação irônica amarga e tardia dos famosos argumentos com que Edmund Burke se opôs à Declaração dos Direitos do Homem feita pela Revolução Francesa Parecem dar alento à sua afirmação de que os direitos humanos eram uma abstração que seria muito mais sensato confiar na herança vinculada dos direitos que o homem transmite aos seus filhos como transmite a própria vida e afirmar que os seus direitos são os direitos de um inglês e não os direitos inalienáveis do homem51 De acordo com Burke os direitos de que desfrutamos emanam de dentro da nação de modo que nem a lei natural nem o mandamento divino nem qualquer conceito de humanidade como o de raça humana de Robespierre a soberana da terra são necessários como fonte da lei52 A validade pragmática do conceito de Burke parece estar fora de dúvida à luz de nossas muitas experiências Não apenas a perda de direitos nacionais levou à perda dos direitos humanos mas a restauração desses direitos humanos como demonstra o exemplo do Estado de Israel só pôde ser realizada até agora pela restauração ou pelo estabelecimento de direitos nacionais O conceito de direitos humanos baseado na suposta existência de um ser humano em si desmoronou no mesmo instante em que aqueles que diziam acreditar nele se confrontaram pela primeira vez com seres que haviam realmente perdido todas as outras qualidades e relações específicas exceto que ainda eram humanos O mundo não viu nada de sagrado na abstrata nudez de ser unicamente humano E em vista das condições políticas objetivas é difícil dizer como teriam ajudado a resolver o problema os conceitos do homem sobre os quais se baseiam os direitos humanos que é criado à imagem de Deus na fórmula americana ou que representa a humanidade ou que traz em si as sagradas exigências da lei natural na fórmula francesa Os sobreviventes dos campos de extermínio os internados nos campos de concentração e de refugiados e até os relativamente afortunados apátridas puderam ver mesmo sem os argumentos de Burke que a nudez abstrata de serem unicamente humanos era o maior risco que corriam Devido a ela eram considerados inferiores e receosos de que podiam terminar sendo considerados animais insistiam na sua nacionalidade o último vestígio da sua antiga cidadania como o último laço remanescente e reconhecido que os ligaria à humanidade Sua desconfiança em relação aos direitos naturais e sua preferência pelos direitos nacionais advêm precisamente da sua compreensão de que os direitos naturais são concedidos até aos selvagens Burke já havia temido que os direitos naturais inalienáveis somente confirmariam o direito do selvagem nu53 e portanto reduziriam as nações civilizadas à condição de selvageria Uma vez que somente os selvagens nada têm em que se apoiar senão o fato mínimo de sua 51 Edmund Burke Reflections on the revolution in France 1790 editado por E J Payne Everymans Library 52 Discurso de Robespierre do dia 24 de abril de 1793 53 Introdução de Payne ao livro de Burke op cit 333 origem humana as pessoas se apegam à sua nacionalidade tão desesperadamente quando perdem os direitos e a proteção que essa nacionalidade lhes outorgou no passado Somente esse passado com a sua herança vinculada parece atestar o fato de que ainda pertencem ao mundo civilizado Se um ser humano perde o seu status político deve de acordo com as implicações dos direitos inatos e inalienáveis do homem enquadrarse exatamente na situação que a declaração desses direitos gerais previa Na realidade o que acontece é o oposto Parece que o homem que nada mais é que um homem perde todas as qualidades que possibilitam aos outros tratálo como semelhante Este é um dos motivos pelos quais é muito mais difícil destruir a personalidade legal de um criminoso isto é de um homem que assumiu a responsabilidade de um ato cujas conseqüências agora determinarão o seu destino que a de um homem a quem foram negadas todas as responsabilidades humanas comuns Os argumentos de Burke portanto assumem novo significado quando olhamos apenas a condição humana geral daqueles que foram expulsos de todas as comunidades políticas Independentemente de tratamento de liberdades ou de opressão de justiça ou de injustiça perderam todos aqueles elementos do mundo e todos aqueles aspectos da existência humana que são o resultado do nosso trabalho comum produto do artifício humano Se a tragédia das tribos selvagens é que habitam uma natureza inalterada que não são capazes de dominar mas de cuja abundância ou fragilidade dependem para viver que vivem e morrem sem deixar vestígio algum sem terem contribuído em nada para um mundo comum então essas pessoas sem direitos retrocedem realmente ao estado da natureza Certamente não são bárbaros na verdade alguns deles pertencem às camadas mais educadas dos seus respectivos países contudo num mundo que já quase extinguiu a selvageria são como os primeiros sinais de um possível retrocesso da civilização Quanto mais altamente desenvolvida a civilização quanto mais perfeito o mundo que ela produziu quanto mais à vontade os homens se sentem dentro do artifício humano mais ressentem tudo aquilo que não produziram tudo o que lhes é dado simples e misteriosamente Para o ser humano que perdeu o seu lugar na comunidade a condição política na luta do seu tempo e a personalidade legal que transforma num todo consistente as suas ações e uma parte do seu destino restam apenas aquelas qualidades que geralmente só se podem expressar no âmbito da vida privada e que necessariamente permanecerão ineptas simples existência em qualquer assunto de interesse público Essa simples existência isto é tudo o que nos é misteriosamente dado por nascimento e que inclui a forma do nosso corpo e os talentos da nossa mente só pode ser aceita pelo acaso imprevisível da amizade e da simpatia ou pela grande e incalculável graça do amor que diz como santo Agostinho Volu ut sis quero que sejas sem poder oferecer qualquer motivo particular para essa suprema e insuperável afirmação Desde o tempo dos gregos sabemos que a vida política altamente desenvolvida gera uma suspeita profunda em relação a essa esfera privada um pro 334 fundo ressentimento contra o incômodo milagre contido no fato de que cada um de nós é feito como é único singular intransponível Toda essa esfera do que é meramente dado relegada à vida privada na sociedade civilizada é uma permanente ameaça à esfera pública porque a esfera pública é tão consistentemente baseada na lei da igualdade como a esfera privada é baseada na lei da distinção e da diferenciação universal A igualdade em contraste com tudo o que se relaciona com a mera existência não nos é dada mas resulta da organização humana porquanto é orientada pelo princípio da justiça Não nascemos iguais tornamonos iguais como membros de um grupo por força da nossa decisão de nos garantirmos direitos reciprocamente iguais Nossa vida política baseiase na suposição de que podemos produzir igualdade através da organização porque o homem pode agir sobre o mundo comum e mudálo e construílo juntamente com os seus iguais e somente com os seus iguais O cenário obscuro do que é simplesmente dado o pano de fundo constituído por nossa natureza imutável adentra a cena política como elemento alheio que em sua diferença demasiado óbvia nos lembra as limitações da atividade humana que são exatamente as mesmas limitações da igualdade humana A razão pela qual comunidades políticas altamente desenvolvidas como as antigas cidadesEstados ou os modernos Estadosnações tão freqüentemente insistem na homogeneidade étnica é que esperam eliminar tanto quanto possível essas distinções e diferenciações naturais e onipresentes que por si mesmas despertam silencioso ódio desconfiança e discriminação porque mostram com impertinente clareza aquelas esferas onde o homem não pode atuar e mudar à vontade isto é os limites do artifício humano O estranho é um símbolo assustador pelo fato da diferença em si da individualidade em si e evoca essa esfera onde o homem não pode atuar nem mudar e na qual tem portanto uma definida tendência a destruir Se um negro numa comunidade branca é considerado nada mais do que um negro perde juntamente com o seu direito à igualdade aquela liberdade de ação especificamente humana todas as suas ações são agora explicadas como conseqüências necessárias de certas qualidades do negro ele passa a ser determinado exemplar de uma espécie animal chamada homem Coisa muito semelhante sucede aos que perderam todas as suas qualidades políticas distintas e se tornaram seres humanos e nada mais Sem dúvida onde quer que a vida pública e a sua lei da igualdade se imponham completamente onde quer que uma civilização consiga eliminar ou reduzir ao mínimo o escuro pano de fundo das diferenças o seu fim será a completa petrificação será punida por assim dizer por haver esquecido que o homem é apenas o senhor e não o criador do mundo O grande perigo que advém da existência de pessoas forçadas a viver fora do mundo comum é que são devolvidas em plena civilização à sua elementaridade natural à sua mera diferenciação Faltalhes aquela tremenda equalização de diferenças que advém do fato de serem cidadãos de alguma comunidade e no entanto como já não se lhes permite participar do artifício humano passam a pertencer à raça humana da mesma forma como animais pertencem a uma dada espécie de animais O paradoxo da perda dos direitos humanos é que essa 335 perda coincide com o instante em que a pessoa se torna um ser humano em geral sem uma profissão sem uma cidadania sem uma opinião sem uma ação pela qual se identifique e se especifique c diferente em geral representando nada além da sua individualidade absoluta e singular que privada da expressão e da ação sobre um mundo comum perde todo o seu significado O perigo da existência dessas pessoas é duplo primeiro e mais óbvio o seu número cada vez maior ameaça a nossa vida política o nosso artificio humano o mundo que é o resultado do nosso esforço comum e coordenado da mesma forma e talvez de forma ainda mais terrível que a violência dos elementos da natureza ameaçaram no passado a existência das cidades e dos países construídos pelo homem Já não é provável que venha de fora algum perigo mortal à civilização A natureza já foi domada e não há bárbaros ameaçando destruir o que não podem compreender como os mongóis ameaçaram a Europa durante séculos Até mesmo o surgimento de governos totalitários é um fenômeno interno e não externo da civilização O perigo é que uma civilização global universalmente correlata possa produzir bárbaros em seu próprio seio por forçar milhões de pessoas a condições que a despeito de todas as aparências são as condições da selvageria54 54 Essa moderna expulsão da humanidade tem conseqüências muito mais radicais que o costume antigo e medieval da proscrição A prescrição ostracismo na Grécia excomunhão na Europa cristã certamente o mais terrível destino que a lei primitiva podia infligir colocando a vida do proscrito à mercê de quem deparasse com ele desapareceu com o estabelecimento de um sistema eficaz de execução da lei e foi finalmente substituída pelos tratados de extradição entre os países Havia sido principalmente um substituto da força policial destinada a fazer com que os criminosos se entregassem à justiça A Idade Média em sua fase inicial parece ter estado bem consciente do perigo relacionado com a morte civil A excomunhão nos últimos anos do Império Romano significava morte eclesiástica mas deixava à pessoa que havia perdido sua participação na igreja plena liberdade em todos os outros aspectos A morte civil e a morte eclesiástica só se tornaram idênticas na era merovíngia época em que a excomunhão geralmente era limitada à retirada ou suspensão temporária de direitos de participação que podiam ser recuperados Ver os artigos Outlawry e Excommunication em Encyclopedia of social sciences Também o artigo Friedlosigkeit no SchweizerLexikon 336 Parte III TOTALITARISMO Os homens normais não sabem que tudo é possível David Rousset PREFÁCIO 1 O manuscrito original de As origens do totalitarismo foi terminado no outono de 1949 mais de quatro anos depois da derrota da Alemanha de Hitler e menos de quatro anos antes da morte de Stálin A primeira edição do livro veio à luz em 1951 Os anos em que foi redigido de 1945 em diante pareciam ser o primeiro período de relativa calma após décadas de tumulto confusão e horror desde as revoluções que se seguiram à Primeira Guerra Mundial até o surgimento de toda sorte de novas tiranias fascistas e semifascistas unipartidárias e militares e por fim o firme estabelecimento de governos totalitários baseados no apoio das massas1 na Rússia em 1929 ano do que se costuma chamar de segunda revolução e na Alemanha em 1933 A derrota da Alemanha nazista pôs fim a um capítulo da história O momento parecia apropriado para olhar os eventos contemporâneos com a retrospecção do historiador e com o zelo analítico do cientista político a primeira oportunidade para tentar narrar e compreender o que havia acontecido não ainda sine ira et studio e sim com desgosto e pesar e portanto com certa tendência à lamentação mas já sem a cólera muda é sem o horror impotente Era pelo menos o primeiro momento em que se podia elaborar e articular as perguntas com as quais a minha geração havia sido obrigada a viver a maior parte da sua vida adulta O que havia acontecido Por que havia acontecido 1 É muito perturbador o fato de o regime totalitário malgrado o seu caráter evidentemente criminoso contar com o apoio das massas Embora muitos especialistas neguemse a aceitar essa situação preferindo ver nela o resultado da força da máquina de propaganda e de lavagem cerebral a publicação em 1965 dos relatórios originalmente sigilosos das pesquisas de opinião pública alemã dos anos 193944 realizadas então pelos serviços secretos da SS Meldungen aus dem Reich Auswahl aus den Geheimen Lageberichten des Sicherheitsdienstes der S S 19391945 Relatórios do Reich Seleção dos relatórios sigilosos colhidos pelo Serviço de Segurança da SS Neuwied Berlin 1965 demonstra que a população alemã estava notavelmente bem informada sobre o que acontecia com os judeus ou sobre a preparação do ataque contra a Rússia sem que com isso se reduzisse o apoio dado ao regime 339 Como pôde ter acontecido Porque da derrota alemã que havia deixado para trás um país em ruínas e uma nação que sentia haver retornado ao ponto zero da sua história haviam emergido montanhas de papéis virtualmente intactos uma superabundância de documentação a respeito de todos os aspectos dos doze anos que durou o Reich milenar de Hitler As primeiras e ricas seleções desse embarras de richesses que até hoje não foram adequadamente divulgadas e investigadas começaram a aparecer em decorrência do Julgamento de Nurembergue dos Principais Criminosos de Guerra em 1946 nos doze volumes de Nazi conspiracy and aggression2 Contudo muitos outros documentos e as mais diversas contribuições sobre o regime nazista haviam chegado às bibliotecas e arquivos quando a segunda edição deste livro apareceu em 1958 O que então aprendi foi muito interessante e embora não chegasse a exigir mudanças substanciais na análise nem no argumento da minha tese original tornava necessárias numerosas adições e substituições do material citado nas notas e considerável aumento do texto Além disso com um certo número de adendos levei em consideração alguns dos eventos mais importantes ocorridos depois da morte de Stálin como a crise da sucessão e o discurso de Khrushchev perante o Vigésimo Congresso do Partido bem como novas informações sobre o regime de Stálin fornecidas em publicações mais recentes Fiz assim uma revisão da Parte III e do último capítulo da Parte II enquanto a Parte I sobre o antisemitismo e os primeiros quatro capítulos da Parte II sobre o imperialismo permaneceram inalterados Ademais havia certos conhecimentos de natureza estritamente teórica intimamente ligados à minha análise dos elementos do domínio total de que eu não dispunha quando terminei o manuscrito original O último capítulo desta edição Ideologia e terror substituiu as Conclusões da primeira edição que foram incorporadas a outros capítulos A segunda edição trazia ainda um Epílogo no qual se discutia a introdução do sistema russosoviético nos países satélites e a Revolução Húngara de 1956 Superado em muitos detalhes esse Epílogo foi eliminado Obviamente o fim da guerra em 1945 não trouxe o fim do governo totalitário na Rússia Pelo contrário foi seguido pela bolchevização da Europa oriental ou seja pela expansão do regime totalitário e a paz nada mais era que uma oportunidade de analisar as semelhanças e diferenças nos métodos e instituições dos dois regimes totalitários Decisivo nesse sentido não foi o fim da guerra mas a morte de Stálin oito anos depois Retrospectivamente parece que essa morte foi seguida não apenas de uma crise de sucessão e de um temporário degelo até que um novo líder se houvesse afirmado mas de um autêntico se bem que sinuoso e equívoco processo de destotalitarização Do ponto de vista 2 Desde o início a investigação e a publicação de material documental têmse guiado pelo interesse quanto a atividades criminosas e usualmente a seleção tem sido feita para fins de acusação de criminosos de guerra Como resultado uma grande quantidade de material altamente interessante foi negligenciada O livro mencionado na nota 1 é uma exceção muito bemvinda à regra 340 dos acontecimentos portanto não havia por que atualizar essa parte do meu livro e no tocante ao nosso conhecimento daquele período nada sofreu mu danças suficientemente drásticas para exigir extensas revisões e adições Em contraste com a Alemanha onde Hitler usou a guerra conscientemente para desenvolver e aperfeiçoar o governo totalitário o período da guerra na Rússia foi uma época de suspensão temporária do domínio total Para fins do meu estudo os anos de 1929 a 1941 e de 1945 a 1953 são de interesse fundamental e para esses períodos nossas fontes desinformações são da mesma natureza e tão escassas como o eram em 1958 ou mesmo em 1949 Nada aconteceu nem parece provável que aconteça no futuro que nos apresente o mesmo inequívoco fim da história ou as mesmas provas horríveis claras e irrefutáveis desse fim como foi o caso da Alemanha nazista A única contribuição nova para o nosso conhecimento o conteúdo dos Arquivos de Smolensk publicados em 1958 por Merle Fainsod demonstrou a que ponto a escassez da mais elementar documentação e estatística prejudicará todos os estudos desse período da história russa Porque embora os arquivos descobertos no quartelgeneral do partido em Smolensk pelos alemães e depois capturados na Alemanha derrotada pela força de ocupação norte americana contenham cerca de 200 mil páginas de documentos e estejam virtualmente intactos no tocante ao período de 1917 a 1938 a quantidade de informação que eles claramente deixam de fornecer é realmente espantosa Apesar da abundância de material sobre os expurgos de 1929 a 1937 não contêm indicação alguma do número de vítimas nem quaisquer outros dados estatísticos vitais Os algarismos quando surgem são irremediavelmente contraditórios cada uma das organizações fornece dados diferentes e tudo o que ficamos sabendo com certeza é que muitos deles foram retidos na fonte por ordem do governo3 Além disso os arquivos não informam das relações entre os vários setores de autoridade entre o Partido os militares e a NKVD ou entre o partido e o governo e silenciam quanto aos canais de comunicação e comando Enfim nada nos ensinam quanto à estrutura organizacional do regime da qual tanto sabemos no que tange à Alemanha nazista4 Em outras palavras embora sempre se tenha sabido que as publicações oficiais soviéticas serviam a fins de propaganda e eram completamente indignas de confiança agora parece claro que nunca existiram em parte alguma fontes dignas de fé e material estatístico em que se pudesse confiar Mais séria ainda é outra questão um estudo do totalitarismo pode ignorar o que aconteceu e está acontecendo na China Aqui o nosso conhecimento é ainda menos seguro do que era em relação à Rússia dos anos 30 em parte porque esse país conseguiu isolarse muito mais radicalmente contra os estrangeiros após a vitória da Revolução e em parte porque ainda não tivemos o auxílio de desertores dos escalões superiores do Partido Comunista Chinês o 3 Ver Merle Fainsod Smolensk under Soviet rule Cambridge 1958 pp 210 306 365 etc 4 Ibid pp 7393 341 que aliás é bem significativo Durante dezessete anos as poucas informações claras que possuíamos indicavam diferenças muito importantes após o período inicial de sangrentos expurgos cujas vítimas são estimadas em cerca de 15 milhões ou cerca de 3 da população de 1949 isto é em termos percentuais muito menos que as perdas populacionais devidas à segunda revolução de Stálin não houve recrudescimento do terror nem massacres de pessoas inocentes nem categorias de inimigos objetivos nem julgamentos para fins de propaganda embora tenha havido muitas confissões e autocríticas públicas O famoso discurso de Mao em 1957 Sobre o modo correto de tratar as contradições do povo conhecido sob o título Que mil flores floresçam certamente não era nenhuma declaração de liberdade mas reconhecia as contradições nãoantagônicas entre as classes e o que era mais importante entre o povo e o governo comunista O modo de lidar com os oponentes era a retificação do pensamento um complicado processo de constante moldagem e remoldagem dos espíritos ao qual aparentemente quase toda a população estava sujeita Nunca soubemos muito bem como isso funcionava na vida de cada dia e quem era isento isto é quem procedia à remoldagem dos outros e não tínhamos a menor idéia dos resultados da lavagem cerebral se era duradoura e se realmente produzia mudanças de personalidade Se era isso terror como certamente era tratavase de um terror diferente e quaisquer que tenham sido os seus resultados não dizimou a população Reconhecia claramente o interesse nacional permitiu que o país se desenvolvesse em paz utilizou a competência dos descendentes das antigas classes governantes e não destruiu os critérios acadêmicos e profissionais pelo menos até a Revolução Cultural cujo alvo e métodos nos escapam Enfim era óbvio que os pensamentos de Mao TseTung não seguiam as linhas estabelecidas por Stálin ou Hitler que ele não era um assassino instintivo e que o sentimento nacionalista tão proeminente em todos os levantes revolucionários nos países que tinham sido colônias era suficientemente forte para impor limites ao domínio total Tudo isso parece contrariar certos receios expressos neste livro Por outro lado o Partido Comunista Chinês após a vitória procurou logo ser internacional em sua organização universal em sua ideologia e global em suas aspirações políticas evidenciando o caráter totalitário que se tornou mais nítido durante o desenvolvimento do conflito sinosoviético embora o próprio conflito possa ter sido provocado por questões nacionais e não ideológicas A insistência dos chineses em reabilitar Stálin e denunciar as tentativas russas de destotalitarização como um desvio revisionista era por si bastante ominosa e para tornar as coisas piores foi seguida de uma política internacional que visava a infiltrar com agentes chineses todos os movimentos revolucionários É difícil julgar todos esses acontecimentos neste instante em parte porque não sabemos o suficiente e em parte porque tudo está ainda em estado de fluidez A essas incertezas inerentes à situação acrescentamos infelizmente nossos próprios preconceitos Pois o fato de havermos herdado do período da guerra fria uma contraideologia oficial o anticomunismo não facilita as coisas nem na teoria nem na prática e esse anticomunismo tende também a tornarse 342 global em sua aspiração e nos leva a construir uma ficção nossa de sorte que nos recusamos em princípio a distinguir entre as várias ditaduras unipartidárias comunistas com as quais nos defrontamos na realidade e o autêntico governo totalitário que possa vir a surgir mesmo sob formas diferentes na China O que importa naturalmente não é que a China comunista seja diferente da Rússia comunista como não importava que a Rússia de Stálin fosse diferente da Alemanha de Hitler A embriaguez e a incompetência tão comuns em qualquer descrição da Rússia dos anos 20 e 30 e tão comuns ainda hoje não representaram qualquer papel importante na Alemanha nazista enquanto a indescritível crueldade gratuita dos campos de concentração e de extermínio alemães parece ter estado geralmente ausente dos campos russos onde os prisioneiros morriam de abandono e não de tortura A corrupção que foi desde o início a maldição da administração russa esteve também presente nos últimos anos do regime nazista mas parece estar completamente ausente da China após a revolução Poderíamos dar muitos exemplos dessas diferenças que são muito significativas e fazem parte da história nacional dos respectivos países mas não influem diretamente sobe a forma de governo Sem dúvida a monarquia absoluta foi muito diferente na Espanha do que foi na França na Inglaterra ou na Prússia mas em todos esses países a forma de governo era a mesma Q que é importante emHpsso contexto é que o governo totalitário é diferente das tiranias e das ditaduras a distinção entre eles não é de modo algum ufliaqüêstãõãcãdemica que possa ser deixada sem riscos aos cuidados dos teóricos porque o domínio total é a única forma de governo com a qual não é possível coexistir Assim temos todos os motivos para usar a palavra totalitarismo com cautela Em absoluto contraste com a escassez e a incerteza das novas fontes de informação sobre os governos totalitários vemos uma enorme afluência de estudos sobre as novas ditaduras totalitárias ou não Isso se aplica de modo especial à Alemanha nazista e à Rússia soviética Existem hoje muitas obras realmente indispensáveis para posteriores consultas e estudos do assunto e fiz o possível para fazêlas constar de minha bibliografia O único tipo de literatura que com raras exceções propositadamente omiti são as diversas memórias publicadas por antigos generais e altos funcionários nazistas após o fim da guerra pois é perfeitamente compreensível que esse tipo de apologia não prime pela honestidade Se isso não deve eliminála de nossas considerações a falta de compreensão que essas reminiscências demonstram quanto ao que estava realmente acontecendo e ao papel que os seus autores representaram no curso dos acontecimentos é verdadeiramente espantosa e roubalhes todo o interesse a não ser talvez para os psicólogos 2 No tocante às provas em si o fato de este livro haver sido concebido e escrito há tanto tempo não foi tão desvantajoso como se poderia supor e isto se 343 aplica ao que escrevemos tanto a respeito do totalitarismo nazista como do bolchevista Uma das estranhezas da literatura sobre o totalitarismo é que as tentativas prematuras por parte de contemporâneos de escrever a sua história que segundo as regras acadêmicas deveriam esbarrar na ausência de fontes impecáveis de documentação e no superenvolvimento individual resistem relativamente bem à prova do tempo A biografia de Hítler por Konrad Heiden e a biografia de Stálin por Boris Souvarine ambas escritas e publicadas nos anos 30 são em alguns aspectos mais precisas e em quase todos os aspectos mais relevantes que as biografias clássicas de Alan Bullock e Isaac Deutscher respectivamente Haverá muitas razões para isso mas uma delas certamente é o simples fato de que o material documentário em ambos os casos tendeu a confirmar e a acrescentar ao que já se sabia há muito tempo através de proeminentes desertores e relatos de outras testemunhas oculares Podemos dizer um tanto drasticamente não foi preciso o discurso secreto de Nikita Khrushchev para que soubéssemos que Stálin havia cometido crimes nem que esse homem que se supunha loucamente desconfiado havia decidido confiar em Hitler Quanto a esse último fato é a melhor prova de que Stálin ão era louco Tinha razão de suspeitar de todos os que desejava ou se preparava para eliminar e estes eram sempre os que ocupavam posição de destaque nos escalões superiores do partido e do governo e confiava naturalmente em Hitler porque não lhe desejava mal Quanto ao primeiro fato as surpreendentes confissões de Khrushchev escondiam muito mais do que revelavam pela óbvia razão de que tanto ele como os seus ouvintes estavam totalmente envolvidos na verdadeira história Em conseqüência indivíduos eruditos com o seu amor profissional pelas fontes oficiais minimizaram a gigantesca criminalidade do regime de Stálin que afinal de contas não consistiu meramente na calúnia e no assassinato de uns poucos milhares de figuras importantes do campo político e literário reabilitáveis postumamente mas no extermínio de um número literalmente sem conta de milhões de pessoas que ninguém nem mesmo Stálin podia acusar de atividades contrarevolucionárias Foi precisamente por admitir alguns crimes que Khrushchev escondeu a criminalidade do regime como um todo e é contra essa camuflagem e contra a hipocrisia dos atuais dirigentes russos todos treinados e promovidos por Stálin que as gerações mais jovens de intelectuais russos entraram em rebelião quase aberta Estes sabem tudo o que se pode saber a respeito de expurgos em massa e deportação e aniquilação de povos inteiross Além disso a explicação de Khrushchev para os crimes que confessou era simplória a demência de Stálin 5 Às vitimas do Primeiro Plano Qüinqüenal Piatiletka 192833 estimadas em 9 a 12 milhões de pessoas é preciso adicionar aproximadamente 3 milhões de executados durante os Grandes Expurgos e de 5 a 9 milhões de deportados Mas todas essas estimativas ainda parecem situarse aquém da realidade factual Prova disso são diversas execuções maciças como a de milhares de pessoas descoberta pelos alemães em Vinitsa que data de 1937 ou 1938 e das quais nada se sabia no Ocidente Isso reforça a semelhança existente entre os regimes nazista e bolchevista a despeito das variantes entre esses dois modelos 344 mas escondia o aspecto mais característico do terror totalitário que é desencadeado quando toda a oposição organizada já desapareceu e quando o governante totalitário sabe que já não precisa ter medo Stálin iniciou os seus gigantescos expurgos não em 1928 quando admitia que temos inimigos internos e quando realmente tinha motivos de receio pois sabia que Bukharin convencido de que sua política estava levando o país à fome à ruína e a um regime policial6 como realmente levou o comparava a Gengis Khan mas em 1934 quando todos os antigos oponentes haviam confessado os seus erros e o próprio Stálin no Décimo Sétimo Congresso do Partido que ele também chamou de Congresso dos Vencedores havia declarado Neste Congresso já não há o que provar e ao que parece não há ninguém mais a combater7 No que tange ao nosso conhecimento da era de Stálin o arquivo de Smolensk citado acima e publicado por Fainsod é ainda sem dúvida o mais importante documento e é deplorável que a primeira seleção feita ao acaso não tenha sido ainda seguida de outra mais extensa A julgar pelo livro de Fainsod há muito o que aprender no tocante ao período da luta de Stálin pelo poder em meados da década de 20 sabemos agora como era precária a posição do Partido8 não somente porque prevalecia no país um ânimo de franca oposição mas também porque infestavamno a corrupção e a embriaguez que quase todas as exigências de liberalização eram acompanhadas de um antisemitismo declarado9e que o esforço de coletivização e eliminação dos kulaks de 1928 em diante na verdade interrompeu a NEP a Nova Política Econômica de Lênin e com ela a embrionária reconciliação entre o povo e o seu governo10 Sabemos também como era feroz a oposição solidária de toda a classe camponesa que achava melhor não ter nascido do que aderir aos kolkhoz11 e condenava essas medidas recusandose a ser classificada em camponeses ricos médios e pobres para ser a seguir recrutada para a luta contra os kulaks12 pois havia alguém pior do que os kulaks sentado em alguma parte planejando a 6 Tucker op cit pp XVIIXVIII 7 Citado por Merle Fainsod em How Rússia is ruled Cambridge 1959 p 516 Segundo Abdurakham Avtorkhanov que sob o pseudônimo de Uralov publicou em 1953 em Londres o livro The reign of Stálin numa reunião secreta do Comitê Central do Partido realizada em 1936 Bukharin teria acusado Stálin de transformar o partido de Lênin em um Estado policial De qualquer modo segundo Fainsod op cit pp 449 ss o descontentamento geral era particularmente forte entre os componentes e até 1928 as greves não eram raras na União Soviética 8 O curioso não é que o Partido fosse vitorioso mas que ele conseguiu simplesmente sobreviver Fainsod op cit p 38 9 Um relato de 1929 menciona violentas manifestações antisemitas durante uma reunião estando os jovens do Komsomol tacitamente solidários com os atacantes dos judeus ibid pp 49 ss 10 Os relatórios de 1926 falam da diminuição dos participantes nas manifestações contrarevolucionárias o que corresponde à trégua que o regime deu ao campesinato Comparados aos de 1926 os relatórios de 192930 parecemse com os comunicados de uma frente de batalha ibidp 177 11 Ibid pp 252ss 12 Ibid especialmente pp 240 ss e 446 ss 345 campanha de perseguição contra o povo13 e que a situação não era muito melhor nas cidades onde os trabalhadores se recusavam a cooperar com os sindicatos controlados pelo partido chamando a gerência de diabos bemalimentados espiões hipócritas entre outros epítetos14 Fainsod aponta com razão que esses documentos mostram claramente não apenas o descontentamento geral mas também a falta de qualquer oposição suficientemente organizada contra o regime como um todo O que ele deixa de observar e o que em minha opinião é igualmente corroborado pelas provas é que existia uma alternativa óbvia para a tomada do poder por Stálin e a sua transformação da ditadura unipartidária em domínio total e essa alternativa era a continuação da Nova Política Econômica tal como havia sido iniciada por Lênin15 Além disso as medidas tomadas por Stálin com a introduçãcuiaPrimeiroílano Qüinqüenal de 1928 quando o seu controle do partido era quase completo demonstram que a transformação das classes em massas e a concomitante eliminação da solidariedade grupai são condições sine qua non do domínio total Com relação ao período de inconteste domínio de Stálin de 1929 em diante o arquivode Smolensk tende a confirmar o que já sabíamos antes através de fontes menos irrefutáveis Isso se aplica até a algumas de suas estranhas lacunas especialmente quanto a dados estatísticos Pois essa falta de dados prova apenas neste ponto como em outros que o regime de Stálin era cruelmente coerente eram tratados como mentiras todos os fatos que não concordassem ou pudessem discordar com a ficção oficial fossem dados sobre as colheitas de trigo a criminalidade ou as reais ocorrências de atividades contrarevolucionárias Todas as regiões e todos os distritos da União Soviética recebiam os seus dados estatísticos oficiais como recebiam as normas não menos fictícias que lhes eram destinadas pelos Planos Qüinqüenais16 Enumerarei brevemente alguns dos pontos mais importantes que antes apenas podíamos adivinhar e que agora são confirmados pela prova documentária Sempre suspeitamos e agora sabemos que o regime nunca foi monolítico mas conscientemente construído em torno de funções superpostas du 13 Ibid Todas as declarações desse tipo provêm dos relatórios da GPU ver especialmente pp 248 ss Mas é bastante característico que tais observações tenham se tornado muito menos freqüentes após 1934 o começo do Grande Expurgo 14 Ibidp 310 15 A literatura sobre esse assunto negligencia em geral tal alternativa por causa da convicção compreensível embora historicamente insustentável de que houve de Lênin a Stálin uma evolução normal É verdade que Stálin se utilizava de terminologia leninista mas como lembra Tucker Stálin preencheu os velhos conceitos leninistas com o conteúdo novo eminentemente stalinista Robert C Tucker Stálin Bukharin and history as conspiracy em The Great Purge trial Nova York 1965 p XVI A diferença não consiste apenas na brutalidade na loucura de Stálin mas também na insistência totalmente antileninista por parte dele de que a história se desenrola atualmente sob o signo da conspiração constante contra a revolução 16 Ver Fainsod op cit especialmente pp 365 ss 346 plicadas e paralelas e que o que segurava essa estrutura grotescamente amorfa era o mesmo princípio de liderança o chamado culto da personalidade que encontramos na Alemanha nazista1 que o ramo executivo desse governo não era o partido mas a polícia cujas atividades operacionais não eram reguladas através de canais do partido18 que as pessoas inteiramente inocentes as quais o regime liquidava aos milhões os inimigos objetivos na linguagem bolchevista sabiam que eram criminosos sem crime19 que foi precisamente essa nova categoria e não os antigos e verdadeiros inimigos do regime assassinos de autoridades incendiários ou terroristas que reagiu com a mesma completa passividade x que vimos tão bem na conduta das vítimas do terror nazista Nunca duvidamos de que o dilúvio de denúncias mútuas durante o Grande Expurgo foi tão desastroso para o bemestar econômico e social do país como foi eficaz para fortalecer o governante totalitário mas só agora sabemos quão deliberadamente Stálin colocou essa ominosa cadeia de denúncias em movimento21 quando proclamou oficialmente a 29 de julho de 1936 A qualidade inalienável de cada bolchevista nas condições atuais deve ser a capacidade de reconhecer um inimigo do Partido não importa como ele se disfarce22 Pois tal como a solução final de Hitler significava tornar realmente obrigatório para a elite do partido nazista o mandamento Matarás o pronunciamento de Stálin recomendava como regra de conduta para todos os membros do partido bolchevista Levantarás falso testemunho Finalmente todas as dúvidas que ainda se poderiam alimentar quanto à verdade da teoria segundo a qual o terror dos anos 20 e 30 foi o alto preço da dor exigido pela industrialização e pelo progresso econômico dissipamse com esse primeiro documento do verdadeiro 17 Ibid pp 93 e 71 É característico constatar que todas as mensagens em todos os níveis se referiam às obrigações para com o camarada Stálin e jamais para com o regime o partido ou o país A semelhança entre os dois sistemas o nazista e o comunista transparece da comparação entre as declarações dos chefes nazistas logo após a derrota alemã Hitler de nada sabia os culpados eram os líderes locais chefes de polícia etc e dos escritores e intelectuais que como Ilia Ehrenburg compactuaram com o stalinismo dizendo depois cf Tucker op cit p XIII que Stálin de nada sabia quanto às atrocidades cometidas a culpa sendo de tal ou qual chefe de polícia local 18 Ibid pp 166ss 19 As palavras são tiradas do apelo de um elemento individualista de 1936 Não quero ser criminoso sem crime p 229 20 Um relatório da GPU de 1931 sublinha a completa apatia e passividade resultantes do terror exercido sobre os inocentes Ele menciona a diferença entre a resistência inicial quando um homem inimigo do regime mobilizava dois milicianos no seu aprisionamento e os aprisionamentos maciços quando um miliciano pode conduzir grandes grupos que marcham tranqüilamente sem que ninguém sequer tente fugir p 248 21 Ibidp 135 22 Ibid pp 578 No tocante à histeria crescente e às denúncias maciças ver também as pp 222 e 229 ss e a deliciosa história da p 235 onde ficamos sabendo como um dos camaradas estava convicto de que o camarada Stálin havia tido uma atitude conciliatória frente ap grupo trotskistazinovievista uma acusação que na época implicava no mínimo a expulsão imediata do partido Mas ele não teve tal sorte O orador seguinte acusouo de ser politicamente desleal ao criticar o camarada Stálin após o que ele prontamente confessou seu erro 347 estado de coisas relativo a uma região em particular23 O terror não produziu industrialização nem progresso O que a eliminação dos kulaks a coletivização e o Grande Expurgo produziram foi a fome as caóticas condições da produção de alimentos e o despovoamento As conseqüências têm sido uma perpétua crise na agricultura uma interrupção do crescimento populacional e a incapacidade de desenvolver e colonizar o interior da Sibéria Além disso como o arquivo de Smolensk mostra em detalhes os métodos stalinistas de governo conseguiram acabar com toda a competência e knowhow técnico que o país havia adquirido após a Revolução de Outubro Tudo isso é realmente um preço incrivelmente alto cobrado não apenas em dor pela abertura de vagas no partido e na burocracia do governo para setores da população que muitas vezes não eram apenas politicamente analfabetos24 Na verdade o preço do regime totalitário foi tão alto que ainda não foi inteiramente pago na Alemanha pós nazista nem na Rússia pósstalinista 3 Mencionei antes o processo de destotalitarização que se seguiu à mofte de Stálin Em 1958 eu ainda não estava certa de que o degelo fosse mais que um relaxamento temporário uma espécie de medida de emergência devida à crise de sucessão não muito diferente do afrouxamento dos controles totalitários durante a Segunda Guerra Mundial Ainda hoje não podemos saber se este processo é final e irreversível mas já não podemos chamálo de temporário ou provisório Pois como quer que interpretemos a linha sinuosa e freqüentemente desnorteante da política soviética desde 1953 é inegável que o enorme império policial foi liquidado que a maioria dos campos de concentração foi dissolvida que não houve mais expurgos de inimigos objetivos e que os conflitos entre os membros da nova liderança coletiva são agora resolvidos pela remoção e pelo exílio e não por julgamentos ostensivos confissões e assassinatos É verdade que os métodos usados pelos governantes nos anos que se seguiram à morte de Stálin ainda obedeciam aos padrões estabelecidos por este após a morte de Lênin surgiu novamente um triunvirato chamado de liderança coletiva termo cunhado por Stálin em 1925 e após quatro anos de intrigas e de luta pelo poder houve uma repetição do coup détat de Stálin em 1929 ou seja a tomada 23 Fainsod não é o único autor que tira conclusões desse tipo embora elas sejam tão incompatíveis com os fatos revelados pelos documentos O terror e a permanente instabilidade que ele cria permitem manter o totalitarismo como contribuem também para organizar o sistema de satélites enquanto a gradativa liberalização da Rússia soviética embora levasse ao reforço da sua economia a fez perder o controle tanto sobre os satélites quanto sobre os cidadãos 24 Quando em 1922 os professores reacionários isto é não pertencentes ao partido foram eliminados provocando protestos dos estudantes que quiseram manter o corpo docente de alto nível independentemente da filiação política os expurgos atingiram de imediato os elementos individualistas entre os estudantes Aliás é provável que um dos alvos dos Grandes Expurgos fosse abrir carreiras à geração jovem criada após a Revolução e sem contato com o passado 348 do poder por Nikita Khrushchev em 1957 Tecnicamente o golpe de Khrushchev seguiu muito de perto os métodos do seu falecido e denunciado mestre Ele também precisou de uma força externa para galgar o poder na hierarquia do partido e usou o apoio do marechal Zhukov e do Exército exatamente do mesmo modo como Stálin havia usado suas relações com a polícia secreta na luta sucessória de trinta anos antes25 Tal como no caso de Stálin quando o poder supremo depois do golpe continuou a residir no partido e não na polícia também no caso de Khrushchev em fins de 1957 o Partido Comunista da União Soviética havia alcançado uma posição de supremacia inconteste em todos os aspectos da vida soviética26 porque do mesmo modo como Stálin jamais hesitara em expurgar os seus escalões policiais e liquidar o seu chefe também Khrushchev havia imitado suas manobras intrapartidárias removendo Zhukov do Presidium e do Comitê Central do Partido ao qual havia sido eleito após o golpe além de afastálo do posto de mais alto comandante dò Exército É verdade que quando Khrushchev recorreu ao apoio de Zhukov a ascendência do Exército sobre a polícia era um fato consumado na União Soviética Essa havia sido uma das conseqüências automáticas da destruição do império policial cujo domínio sobre enorme parte das iadústrias minas e propriedades imobiliárias soviéticas fora herdado pelo grupo administrativo que de súbito se viu livre do seu mais sério concorrente econômico A ascendência automática do Exército foi ainda mais decisiva possuía agora um claro monopólio dos instrumentos de violência com que decidir os conflitos intrapartidários O fato de Khrushchev haver percebido mais depressa que os seus colegas as conseqüências do que presumivelmente haviam feito em conjunto mostra a sua perspicácia Mas quaisquer que tenham sido os seus motivos essa transferência de ênfase da polícia para os militares no jogo do poder teve grandes conseqüências É verdade que a ascendência da polícia secreta sobre o aparelho militar é a marca de muitas tiranias e não somente das tiranias totalitárias mas no caso do governo totalitário a preponderância da polícia não apenas atende à necessidade de suprimir a população em casa como se ajusta à pretensão ideológica de domínio global Pois é evidente que os que vêem toda a terra como seu futuro território darão destaque ao órgão de violência doméstica e governarão os territórios conquistados com as medidas e o pessoal da polícia e não com o Exército Assim os nazistas usaram as suas tropas SS essencialmente uma força policial para governar e até conquistar territórios estran 25 Armstrong op cit p 319 afirma que a importância da intervenção do marechal Zhukov na luta intrapartidária foi extremamente exagerada e sustenta que Khrushchev triunfou sem qualquer necessidade de intervenção militar porque era apoiado pelo aparato do partido Isso não parece ser verdade Mas é verdade que muitos observadores estrangeiros por causa do papel do Exército no apoio a Khrushchev contra o aparato partidário chegaram à conclusão equivocada de um aumento duradouro do poder dos militares às expensas do partido como se a União Soviética estivesse para passar de uma ditadura partidária para uma ditadura militar 26Wdp320 349 geiros visando ulteriormente a uma fusão do exército com a polícia sob a liderança da SS Além do mais a importância dessa mudança no balanço do poder havia sido evidente antes por ocasião da supressão da Revolução Húngara pela força A sangrenta repressão da revolução terrível e eficaz como foi havia sido obra das unidades do Exército regular e não das tropas policiais e conseqüentemente não representou uma solução tipicamente stalinista Embora a operação militar fosse seguida da execução dos líderes e da prisão de milhares de pessoas não houve nenhuma deportação em massa de fato não houve qualquer tentativa de despovoar o país E como se tratava de uma operação militar e não de uma ação policial os soviéticos puderam mandar para o país derrotado o auxílio necessário para evitar a fome em massa e adiar um completo colapso da economia no ano que se seguiu à revolução Certamente nada estaria mais longe do espírito de Stálin em circunstâncias semelhantes O sinal mais evidente de que a União Soviética já não se pode mais chamar totalitária no estrito sentido do termo é naturalmente a espantosamente rápida e fecunda recuperação das artes durante a última década É verdade que de vez emquando surgem esforços para reabilitar Stálin e refrear as crescentes exigências de liberdade de expressão e de pensamento por parte de estudantes escritores e artistas mas nenhum desses esforços tem sido muito bemsucedido nem pode ser bemsucedido sem um completo restabelecimento do terror e do domínio policial Sem dúvida o povo da União Soviética não tem qualquer forma de liberdade política faltalhe não apenas a liberdade de associação mas também a liberdade de pensamento opinião e expressão pública Nada parece ter mudado mas de fato tudo mudou Quando Stálin morreu as gavetas dos escritores e dos artistas estavam vazias hoje existe toda uma literatura que circula em forma de manuscrito e toda forma de pintura moderna é experimentada nos estúdios dos pintores e se torna conhecida embora não possa ser exibida Não pretendemos minimizar a diferença entre a censura tirânica e a liberdade das artes mas apenas acentuar o fato de que a diferença entre uma literatura clandestina e nenhuma literatura é igual à diferença entre um e zero Ademais o próprio fato de que os membros da oposição intelectual são levados a julgamento mesmo que não seja um julgamento aberto podem fazerse ouvir nos tribunais e contar com apoio fora das cortes de justiça nada confessam e declaramse inocentes demonstra que já não estamos mais lidando com o domínio total O que sucedeu a Sinyavsky e Daniel os dois escritores que em fevereiro de 1966 foram julgados por haverem publicado no exterior livros que não poderiam ter sido publicados na União Soviética e foram condenados a sete e cinco anos de trabalho forçado respectivamente foi sem dúvida um absurdo do ponto de vista dos critérios da justiça de um governo constitucional mas o que tinham a dizer foi ouvido em todo o mundo e não será facilmente esquecido Não desapareceram no poço do esquecimento que os governantes totalitários abrem para os seus oponentes Menos divulgado e talvez ainda mais importante é o fato de que a ambiciosa tentativa de Khrushchev de 350 reverter o processo de destotalitarização foi um completo fracasso Em 1957 ele introduziu uma nova lei contra os parasitas sociais que poderia ter dado ao regime o poder de retornar às deportações em massa reinstituir o trabalho escravo em grande escala e o que era mais importante para o domínio total desencadear nova onda de denúncias em massa pois os parasitas seriam selecionados pelo próprio povo em comícios maciços A lei porém foi obstada pelos juristas soviéticos e abolida antes que pudesse ser posta em prática27 Em outras palavras o povo da União Soviética emergiu do pesadelo do governo totalitário para as muitas privações perigos e injustiças da ditadura unipartidária e embora seja perfeitamente verdadeiro que essa moderna forma de tirania não oferece nenhuma das segurancas do governo constitucional que mesmo aceitando os pressupostos da ideologia comunista todo poder na URSS é em última análise ilegítimo28 e que portanto o país pode voltar ao totalitarismo da noite para o dia sem grandes convulsões também é verdade que a mais horrível forma de governo cujos elementos e origens históricas me propus analisar terminou na Rússia com a morte de Stálin da mesma forma como o totalitarismo terminou na Alemanha com a morte de Hitler Este livro trata do totalitarismo suas origens e elementos As conseqüências do totalitarismo na Alemanha ou na Rússia são pertinentes apenas na medida em que possam esclarecer o que sucedeu no passado Assim é relevante em nosso contexto não o período após a morte de Stálin mas a era do seu governo no pósguerra E esses oito anos de 1945 a 1953 confirmam e desenrolam diante dos nossos olhos sem contradizer nem acrescentar novos elementos o que havia se tornado evidente desde meados da década de 30 Os acontecimentos que se seguiram à vitória as medidas tomadas para reafirmar o domínio total após o temporário relaxamento do período da guerra na União Soviética bem como aquelas através das quais o governo totalitário fora introduzido nos países satélites todos seguem as regras do jogo que viemos a conhecer A bolchevização dos países satélites começou com as táticas da frente popular e um falso sistema parlamentar passou rapidamente ao franco estabelecimento de ditaduras unipartidárias nas quais os líderes e os membros dos partidos que eram tolerados antes foram liquidados e depois atingiu o estágio final quando os líderes comunistas nativos dos quais Moscou suspeitava com ou sem razão foram brutalmente incriminados humilhados em julgamentos ostensivos torturados e mortos sob o domínio dos mais corruptos e desprezíveis elementos do partido ou seja aqueles que eram fundamentalmente não comunistas mas agentes de Moscou Foi como se Moscou repetisse apressadamente todos os estágios da Revolução de Outubro até o surgimento da ditadura totalitária A história portanto embora indescritivelmente horrível não tem por si mesma muito interesse e muda pouco o que sucedeu a um país satélite ocor 27 Ibidp 325 28 Ibid pp 339 ss 351 reu quase ao mesmo tempo a todos os outros do Báltico ao Adriático Os acontecimentos diferiram em regiões não incluídas no sistema de satélites Os Estados bálticos foram diretamente incorporados à União Soviética e sofreram muito mais que os satélites mais de meio milhão de pessoas foram deportadas dos três pequenos países e um enorme influxo de colonizadores russos começou a ameaçar as populações nativas transformadas em minoritárias em seus próprios países29 Até a Alemanha Oriental após a construção do muro de Berlim acabou sendo inteiramente incorporada ao sistema dos satélites tendo sido tratada antes como mero território ocupado governado por um quisling Para o nosso contexto são mais importantes os acontecimentos da União Soviética especialmente depois de 1948 o ano da misteriosa morte de Zhdanov e do processo de Leningrado Pela primeira vez depois do Grande Expurgo Stálin mandou executar grande número de altos e altíssimos funcionários e sabemos sem sombra de dúvida que isso foi planejado como início de outro expurgo de dimensões nacionais Este teria sido deflagrado pela conspiração dos médicos se a morte de Stálin não viesse antes Um grupo de médicos a maioria dos quais judeus foi acusado de haver tramado eliminar os escalões superiores da URSS30 Tudo o que sucedeu na Rússia entre 1948 e janeiro de 1953 quando a conspiração dos médicos estava sendo descoberta tinha uma notável e ominosa semelhança com os preparos do Grande Expurgo dos anos 30 a morte de Zhdanov e o expurgo de Leningrado correspondiam à não menos misteriosa morte de Kirov em 1934 que foi imediatamente seguida de uma espécie de expurgo preparatório de todos os antigos opositores que ainda existiam no Partido31 Além do mais o próprio conteúdo da absurda acusação contra os médicos que iriam matar pessoas em posição de destaque em todo o país deve ter enchido de temerosos presságios todos os que conheciam o método de Stálin de acusar um inimigo fictício do crime que ele mesmo ia cometer O melhor exemplo conhecido é naturalmente a acusação de que Tukhachévski conspirava junto com a Alemanha no próprio momento em que Stálin pensava em aliarse àos nazistas É claro que em 1952 o séquito de Stálin conhecia muito melhor o real significado de suas palavras do que nos anos 30 e o próprio fraseado da acusação deve ter semeado o pânico entre todos os altos funcionários do regime Esse pânico pode ainda ter sido a explicação mais plausível da morte de Stálin das misteriosas circunstâncias em que ocorreu e do rápido cerrar de fileiras nos altos escalões do partido notoriamente minado por conflitos e intrigas durante os primeiros meses da crise de sucessão Por menos que conheçamos os detalhes da história sabemos mais do que o suficiente para confirmar a minha convicção original de que operações de desmonte como o Grande Expurgo não eram episódios isolados não eram excessos do regime motivados por circunstâncias raras mas constituíam uma 29 Ver Stanley Vardys How the Baltic republics fare in the Soviet Union em Foreign Affairs abril de 1966 30 Armstrong op cit pp 235 ss 31 Fainsod op cit p 56 352 instituição do terror e deviam ser esperadas a intervalos regulares a não ser naturalmente que mudasse a própria natureza do regime O elemento novo mais dramático desse último expurgo planejado por Stálin nos últimos anos de sua vida foi uma importante mudança de ideologia a introdução de uma conspiração mundial judaica Durante anos os fundamentos para essa mudança haviam sido cuidadosamente elaborados numa série de julgamentos nos países satélites o julgamento de Rajk na Hungria o caso Ana Pauker na Romênia e em 1952 o julgamento de Slansky na Tchecoslováquia Nessas medidas preparatórias altos funcionários do partido foram escolhidos por suas origens burguesojudaicas e acusados de sionismo aos poucos essa acusação foi alterada para implicar agências notoriamente nãosionistas especialmente o Comitê JudaicoAmericano JOINT insinuando que todos os judeus eram sionistas e que todos os grupos sionistas eram assalariados do imperialismo norteamericano Naturalmente nada havia de novo no crime do sionismo mas à medida que a campanha progredia e começava a concentrarse nos judeus da União Soviética outra mudança importante ocorreu os judeus eram agora acusados de cosmopolitismo e não de sionismo e o tipo de acusação que derivava desse slogan seguia cada vez mais de perto o modelo nazista de uma conspiração mundial judaica ao estilo dos sábios do Sião Ficou surpreendentemente claro como fora profunda a impressão que esse fundamento da ideologia nazista deve ter causado a Stálin a primeira indicação disso tornarase evidente desde o pacto HitlerStálin É verdade que em parte isso se devia ao seu óbvio valor propagandístico na Rússia bem como em todos os países satélites onde o sentimento antijudaico era corrente e a propaganda antijudaica sempre fora popular mas também em parte porque esse tipo de conspiração mundial fictícia era um pano de fundo ideologicamente mais adequado às pretensões totalitárias de donjiínio mundial do que Wall Street capitalismo e imperialismo A adoção franca e despudorada do que se havia tornado para o mundo inteiro o sinal mais evidente do nazismo foi a última homenagem que Stálin prestou ao seu falecido colega e rival no domínio total com quem muito a contragosto não pudera chegar a um acordo duradouro Stálin como Hitler morreu sem terminar o horror que havia planejado E quando isso aconteceu a história que este livro vai contar e os eventos que procura interpretar e compreender chegaram a um fim pelo menos provisório Hannah Arendt Junho de 1966 353 UMA SOCIEDADE SEM CLASSES 1 AS MASSAS Nada caracteriza melhor os movimentos totalitários em geral e principalmente a fama de que desfrutam os seus líderes do que a surpreendente facilidade com que são substituídos Stálin conseguiu legitimarse como herdeiro político de Lênin à custa de amargas lutas intrapartidárias e de vastas concessões à memória do antecessor Já os sucessores de Stálin procuraram substituílo sem tais condescendências embora ele houvesse permanecido no poder por trinta anos e dispusesse de uma máquina de propaganda desconhecida ao tempo de Lênin para imortalizar o seu nome O mesmo se aplica a Hitler que durante toda a vida exekeu um fascínio que supostamente cativava a todos1 e que depois de derrotado e morto está hoje tão completamente 1 O feitiço com que Hitler dominava os seus ouvintes foi reconhecido muitas vezes e recentemente pelos editores de ffitlers Tischgespràche Bonn 1951 Hitlers table talks edição americana Nova York 1953 citações da edição original alemã Esse fascínio o estranho magnetismo que Hitler irradiava com tanta força era devido à crença fanática que ele tinha em si mesmo introdução de Gerhard Ritter p 14 em sua competência sobre qualquer assunto e no fato de que qualquer parecer que emitisse fosse a respeito dos efeitos nocivos do fumo ou sobre a política de Napoleâo sempre podia ser incluído numa ideologia que pretendia abranger todas as coisas do mundo O fascínio é um fenômeno social e o fascínio que Hitler exercia sobre o seu ambiente deve ser definido em termos daqueles que o rodeavam A sociedade tende a aceitar uma pessoa pelo que ela pretende ser de sorte que um louco que finja ser um gênio sempre tem certa possibilidade de merecer crédito pelo menos no início Na sociedade moderna com a sua falta de discernimento essa tendência é ainda maior de modo que uma pessoa que não apenas tem certas opiniões mas as apresenta num tom de inabalável convicção não perde facilmente o prestígio não importa quantas vezes tenha sido demonstrado o seu erro Hitler descobriu que o inútil jogo entre as várias opiniões e a convicção de que tudo é conversa fiada p 281 podia ser evitado se se aderisse a uma das muitas opiniões correntes com inflexível consistência A arbitrariedade de tal atitude exerce um forte fascínio sobre a sociedade porque lhe permite salvarse da confusão de opiniões que ela mesma constantemente produz Esse dom do fascínio no entanto tem importância apenas social Em Tischgespràche Hitler estava envolvido num jogo social falando não aos da sua espécie 355 esquecido que mal representa alguma coisa mesmo entre os grupos neofascistas e neonazistas da Alemanha Essa impermanência tem certamente algo a ver com a volubilidade das massas e da fama que as tem por base mas seria talvez mais correto atribuíla à essência dos movimentos totalitários que só podem permanecer no poder enquanto estiverem em movimento e transmitirem movimento a tudo o que os rodeia Assim até certo ponto essa impermanência é um testemunho lisonjeiro para os líderes mortos pois significa que conseguiram contaminar os seus súditos com aquele vírus especificamente totalitário que se caracteriza entre outras coisas pela extraordinária adaptabilidade e falta de continuidade Donde se conclui que pode ser errado presumir que a inconstância e o esquecimento das massas signifiquem estarem curadas da ilusão totalitária vez por outra identificada com o culto a Hitler ou a Stálin a verdade pode ser exatamente o oposto Seria um erro ainda mais grave esquecer em face dessa impermanência que os regimes totalitários enquanto no poder e os líderes totalitários enquanto vivos sempre comandam e baseiamse no apoio das massas2 A ascensão de Hitler ao poder foi legal dentro do sistema majoritário3 e ele não poderia ter mantido a liderança de tão grande população sobrevivido a tantas crises internas e externas e enfrentado tantos perigos de lutas intrapartidárias se não tivesse contado com a confiança das massas Isso se aplica também a Stálin Nem os julgamentos de Moscou nem a liquidação do grupo de Rohm teriam sido possíveis se essas massas não tivessem apoiado Stálin e Hitler A crença generalizada de que Hitler era simplesmente um agente dos industriais alemães e a de que Stálin só venceu a luta sucessória depois da morte de Lênin graças a uma conspiração sinistra são lendas que podem ser refutadas por muitos fatos e acima de tudo pela indiscutível popularidade dos dois líderes4 Não se pode atribuir essa popularidade ao sucesso de uma propaganda magistral e mentirosa que conseguiu arrolar a ignorância e a estupidez Pois a propaganda dos mas aos generais da Wehrmacht dos quais todos pertenciam à sociedade Seria porém errôneo acreditar que os sucessos de Hitler se baseassem em seu poder de fascínio se fosse só por isso nunca teria passado de figura de proa dos círculos sociais 2 Ver as esclarecedoras observações de Carlton J H Hayes sobre The novelty of totalitarianism in the history of Western civilization em Symposium on the totalitarian state 1939 Proceedings of the American Philosophical Society Filadélfia 1940 vol LXXXII 3 Tratavase da primeira grande revolução da história realizada com a aplicação da lei existente no momento da tomada do poder Hans Frank Recht und Verwaltung 1939 p 8 4 O melhor estudo de Hitler e da sua carreira é a biografia de Hitler por Alan Bullock Hitler a study in tyranny Londres 1952 Segundo a tradição inglesa da biografia política o autor emprega meticulosamente todas as fontes disponíveis e dá uma visão completa do ambiente político contemporâneo Com esta publicação as excelentes obras de Konrad Heiden principalmente Der Fuehrer Hitlers rise to power Boston 1944 foram superadas embora continuem sendo importantes para a interpretação geral dos acontecimentos No tocante à carreira de Stálin uma obra fundamental é ainda Stalin a criticai survey ofBolshevism Nova York 1939 de Boris Souvarine Isaac Deutscher Stalin apolitical biography Nova York e Londres 1949 é indispensável pela rica documentação e grande conhecimento das lutas internas do partido bolchevista peca pela comparação de Stálin a Cromwell Napoleão e Robespierre 356 movimentos totalitários que precede a instauração dos regimes totalitários e os acompanha é invariavelmente tão franca quanto mentirosa e os governantes totalitários em potencial geralmente iniciam suas carreiras vangloriandose de crimes passados e planejando cuidadosamente os seus crimes futuros Os nazistas estavam convencidos de que o mal em nosso tempo tem uma atração mórbida5os bolchevistas diziam não reconhecer os padrões morais comuns e esta afirmação feita dentro e fora da Rússia tornouse um dos pilares da propaganda comunista e a experiência demonstrou que o valor propagandístico do mal e o desprezo geral pelos padrões morais independem do interesse pessoalT que se supõe ser o fator psicológico mais poderoso na política A atração que o mal e o crime exercem sobre a mentalidade da ralé não é novidade Para a ralé os atos de violência podiam ser perversos mas eram sinal de esperteza6 Mas o que é desconcertante no sucesso do totalitarismo é o verdadeiro altruísmo dos seus adeptos É compreensível que as convicções de um nazista ou bolchevista não sejam abaladas por crimes cometidos contra os inimigos do movimento mas o fato espantoso é que ele não vacila quando o monstro começa a devorar os próprios filhos nem mesmo quando ele próprio se torna vítima dapressão quando é incriminado e condenado quando é expulso do partido e enviado para um campo de concentração ou de trabalhos forçados Pelo contrário para o assombro de todo o mundo civilizado estará até disposto a colaborar com a própria condenação e tramar a própria sentença de mõrtè contanto que o seu status como membro do movimento permaneça intacto7 Seria ingênuo pensar que essa obstinada convicção que sobrevive a toldas as experiências reais e anula todo interesse pessoal seja mera expressão dé idealismo ardente O idealismo tolo ou heróico nasce da decisão e da convicção individuais mas forjase na experiência8 O fanatismo dos movimentos tota 5 Franz Borkenau The totalitarian enemy Londres 1940 p 231 6 Citado da edição alemã dos Protocolos dos sábios do Sião Die Zionistischen Protokolle mit einem VorundNachwort von Theodor Fritsch 1924 p 29 7 Essa é na verdade uma especialidade do totalitarismo russo É interessante observar que nos primeiros julgamentos de engenheiros estrangeiros da União Soviética a simpatia pelo comunismo era usada para induzir a pessoa à autoacusação Durante todo o tempo as autoridades insistiam em que devia confessar haver cometido atos de sabotagem dos quais não era culpado Recuseime Disseramme Se és a favor do governo soviético como afirmas provao pelos teus atos o governo precisa da tua confissão Relatado por Anton Ciliga The Russian enigma Londres 1940 p 153 Trótski nos deu uma justificativa teórica para esse tipo de conduta Só podemos ter razão com o Partido e através dele pois a história não nos concede outra forma de certeza Os ingleses têm um ditado Minha pátria certa ou errada Temos um motivo histórico muito melhor para dizer que o partido certo ou errado em certos casos individuais é o meu partido Souvarine op cit p 362 Por outro lado os oficiais do Exército Vermelho que não pertenciam ao movimento eram julgados a portas fechadas 8 O autor nazista Andreas Pfenning rejeita explicitamente a idéia de que a SA estivesse lutando por um ideal ou fosse motivada por uma experiência idealista A experiência básica dos homens da SA ocorreu no decorrer da luta Em Gemeinschaft und Staatswissenschaft 357 litários ao contrário das demais formas de idealismo desaparece no momento em que o movimento deixa em apuros os seus seguidores fanáticos matando neles qualquer resto de convicção que possa ter sobrevivido ao colapso do próprio movimento9 Mas dentro da estrutura organizacional do movimento enquanto ele permanece inteiro os membros fanatizados são inatingíveis pela experiência e pelo argumento a identificação com o movimento e o conformismo total parecem ter destruído a própria capacidade de sentir mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou o medo da morte Os movimentos totalitários objetivam e conseguem organizar as massas e não as classes como o faziam os partidos de interesses dos Estados nacionais do continente europeu nem os cidadãos com suas opiniões peculiares quanto à condução dos negócios públicos como o fazem os partidos dos países anglosaxões Todosjosgrupespotíticos dependem da força numérica mas não na escala dos movimentos totalitários que dependem da força bruta a tal ponto que os regimes totalitários parecem impossíveis em países de população relativamente pequena10 mesmo que outras condições lhes sejam favoráveis Depois da Primeira Guerra Mundial uma onda antidemocrática e próditatorial de movimentos lotalitários e semitotalitários varreu a Europa da Itália disseminaramse movimentos fascistas para quase todos os países da Europa central e oriental os tchecos mas não os eslovacos foram uma das raras exceções contudo nem mesmo Mussolini embora useiro da expressão Estado totalitáro tentou estabelecer um regime inteiramente totalitário11 contentandose Comunidade e ciência do Estado publicada na revista Zeitschrift für die gesamte Staatswissenschaft vol 96 Tradução citada de Ernst Fraenkel The dual state Nova York e Londres 1941 p 92 Vêse aliás do extenso material impresso pelo HauptamtSchulungsamt principal centro de doutrinação da SS que a palavra idealismo foi cuidadosamente evitada Não se exigia idealismo dos membros da SS mas perfeita consistência lógica em todas as questões de ideologia e o prosseguimento impiedoso da luta política Werner Best Die deutsche Polizei 1941 p 99 9 A esse respeito a Alemanha do pósguerra oferece muitos exemplos esclarecedores O fato de que as tropas negras americanas não foram de modo algum recebidas com hostilidade a despeito da maciça doutrinação racial levada a cabo pelos nazistas já é bastante interessante De modo igualmente surpreendente a WaffenSS não lutou até o último homem e os componentes dessa unidade especial cujos sacrifícios ultrapassaram de longe os da Wehrmacht se comportavam nas últimas semanas de guerra como qualquer unidade militar composta de civis Karl O Paetel Die SS em Vierteljahresheftefür Zeitgeschichte janeiro de 1954 10 Excluamse dessa afirmativa os governos da Europa oriental dominados por Moscou pois eles governam em beneficio de Moscou e atuam como agentes do Comintern sendo exemplos do alastramento do movimento totalitário dirigido por Moscou não de criações nativas A única exceção parece ter sido Tito da Iugoslávia que pôde romper com Moscou não apenas por perceber que os métodos totalitários inspirados pela Rússia lhe custariam o apoio da população mas por estar longe do alcance do Exército Vermelho 11 Uma prova da natureza nãototalitária da ditadura fascista é o número surpreendentemente pequenode criminosos políticos e as sentenças relativamente suaves que lhes eram ãpli cidãsTDuranterãnos dêI926ã 1932 êm que foram particularmente ativos os tribunais especiais para julgamento dos criminosos políticos pronunciaram sete sentenças de morte 257 sentenças de dez ou mais anos de prisão 1360 de menos de dez anos e muitos outros mais foram exilados 358 com a ditadura unipartidária Ditaduras nãototalitárias semelhantes surgiram antes da Segunda Guerra Mundial na Romênia Polônia nos Estados bálticos Lituânia e Letônia na Hungria em Portugal e mais tarde na Espanha Os nazistas cujo instinto era infalível para discernir essas diferenças costumavam comentar com desprezo as falhas dos seus aliados fascistas ao passo que a genuína admiração que nutriam pelo regime bolchevista da Rússia e pelo Partido Comunista da Alemanha só era igualada e refreada por seu desprezo em relação às raças da Europa oriental12 O único homem pelo qual Hitler sentia respeito incondicional era Stálin o gênio13 e embora no caso de Stálin e do regime soviético não possamos dispor e provavelmente nunca 12 mil pessoas foram presas e julgadas inocentes o que seria inconcebível nas condições do terror nazista ou bolchevista Ver E KohnBramstedt Dictatorship and political police the technique ofcontrolbyfear Londres 1945 pp 51 ss 12 Os teóricos políticos do nazismo sempre afirmaram enfaticamente que o estado ético de Mussolini e o Estado ideológico Weltanschauungsstaat de Hitler não podem ser mencionados no mesmo fôlego Gottfried Neesse Die verfassungsrechtliche Gestaltung der EinPartei em Zeitschrift für die gesamte Staatswissenschaft 1938 vol 98 Disse Goebbels acerca da diferença entre o fascismo e o nacionalsocialismo O fascismo é completamente diferente do nacionalsocialismo Enquanto este último desce até as raízes o fascismo é superficial The Goebbels diaries 19421943 ed por Louis Lochner Nova York 1948 p 71 O Duce não é um revolucionário como oFührer ou Stálin Está tão preso ao povo italiano que lhe faltam as amplas qualidades de um revolucionário em escala mundial ibid p 468 Himmler expressou a mesma opinião num discurso pronunciado em 1943 numa Conferência de Oficiais Comandantes O fascismo e o nacionalsocialismo são fundamentalmente diferentes não há absolutamente nenhuma comparação entre eles como movimentos espirituais e ideológicos Ver KohnBramstedt op cit apêndice A Por outro lado ainda no começo da década de 20 Hitler reconheceu a afinidade entre os movimentos nazista e comunista Em nosso movimento os dois extremos se tocam os comunistas da esquerda e os oficiais e estudantes da direita Esses sempre foram os dois elementos mais ativos Os comunistas foram os idealistas do socialismo Ver Heiden op cit p 147 Rohm o chefe da SA apenas repetia uma opinião corrente quando escreveu no fim da década de 20 Muito nos separa dos comunistas mas respeitamos a sinceridade de sua convicção e sua disposição de fazer sacrifícios em benefício da própria causa e isto nos une a eles Ernst Rohm Die Geschichte eines Hochverràters A história de um traidor 1933 Volksausgabe p 273 Durante a guerra os nazistas reconheceriam os russos como seus pares com mais facilidade do que qualquer outra nação Falando em maio de 1943 Hitler começou mencionando o fato de que nesta guerra a burguesia e os Estados revolucionários se confrontam Para nós tem sido fácil condenar os Estados burgueses pois são bastante inferiores a nós em sua educação e atitude Os países que têm uma ideologia ostentam uma vantagem sobre os Estados burgueses No Leste encontramos um oponente que também alimenta uma ideologia embora errada Goebbels diaries p 355 Essa opinião baseavase em considerações ideológicas nãomilitares Gottfried Neesse Partei und Staat Partido e Estado 1936 oferecenos a versão oficial da luta do movimento pelo poder quando escreve Para nós a frente unida do sistema abrange desde o Partido Nacional do Povo Alemão i e a extremadireita até os social democratas O Partido Comunista é um inimigo fora do sistema Por isto quando nos primeiros meses de 1933 a morte do sistema já estava decretada ainda nos restava travar uma batalha decisiva contra o Partido Comunista p 76 13 Hitlers Tischgespràche p 113 Nessa obra encontramos ainda numerosos exemplos que demonstram que ao contrário de certas lendas do pósguerra Hitler nunca pretendeu defender 359 venhamos a ter a riqueza de documentos que encontramos na Alemanha nazista sabemos desde o discurso de Khrushchev perante o Vigésimo Congresso do Partido Comunista que também Stálin só confiava num homem e que esse homem era Hitler14 Em todos esses países menores da Europa movimentos totalitários precederam ditaduras nãototalitárias como se o totalitarismo fosse um objetivo demasiadamente ambicioso e como se o tamanho do país forçasse os candidatos a governantes totalitários a enveredar pelo caminho mais familiar da ditadura de classe ou de partido Na verdade esses países simplesmente não dispunham de material humano em quantidade suficiente para permitir a existência de um domínio total qualquer que fosse e as elevadas perdas populacionais decorrentes da implantação de tal sistema15 Sem muita possibilidade de conquistar territórios os ditadores desses pequenos países eram obrigados à moderação sem a qual corriam o risco de perder os poucos súditos de que dispunham Por isto também o nazismo antes do início da guerra ficou tão aquém do seu similar russo em matéria de coerência e crueldade uma vez que nem sequer o povo alemão era suficientemente numeroso para permitir o completo desenvolvimento dessa nova forma de governo Somente se tivesse vencido a guerra a Alemanha teria conhecido um governo totalitário completo e podemse avaliar e vislumbrar os sacrifícios a que isso teria levado não apenas as raças inferiores mas os próprios alemães através dos planos de Hitler que ficaram para a posteridade16 De qualquer modo foi só durante a guerra de o Ocidente contra o bolchevismo mas sempre esteve disposto a unirse aos vermelhos para destruir o Ocidente mesmo durante a luta contra a União Soviética Ver especialmente pp 95 108 113 ss 158 385 14 Sabemos hoje que Stálin foi repetidamente advertido quanto ao iminente ataque de Hitler à União Soviética Mesmo quando o adido militar soviético em Berlim o informou quanto ao dia do ataque nazista Stálin recusouse a crer que Hitler violaria o tratado Ver Speech on Stálin de Khrushchev texto distribuído pelo Departamento de Estado norteamericano New York Times 5 de junho de 1956 15 A seguinte informação relatada por Souvarine op cit p 669 constitui importante exemplo Segundo W Krivitsky cuja excelente fonte de informes confidenciais é a GPU Em lugar dos 171 milhões de habitantes estimados para 1937 só foram recenseados 145 milhões assim não se conseguem encontrar 30 milhões de pessoas na União Soviética Como se sabe só a liquidação dos kulaks no início da década de 30 havia custado perto de 8 milhões de vidas Ver Communism in action U S Government Washington 1946 p 140 16 Parte desses planos relativa ao extermínio de povos nãogermânicos principalmente dos eslavos pode ser encontrada no Bréviaire de Ia haine de Léon Poliakov Paris 1951 cap 8 Um projeto de lei de saúde do Reich escrito pelo próprio Hitler mostra que a máquina de destruição nazista não se teria detido nem mesmo diante do povo alemão Nesse projeto ele propõe isolar do resto da população todas as famílias que tenham casos de moléstias do coração ou do pulmão sendo que o próximo passo nesse programa era naturalmente a liquidação física Este e vários outros projetos preparados para depois da vitória estão contidos numa circular aos líderes distritais Kreisleiter de HesseNassau sob a forma de relatório de uma discussão havida no quartelgeneral doFührer sobre medidas que deviam ser adotadas antes e depois da vitória Ver a coleção de documentos em Nazi conspiracy and aggression Washington 1946 et seq vol VII p 175 Neste contexto há ainda a planejada promulgação de uma legislação global 360 pois que as conquistas do Leste forneceram grandes massas e tornaram possíveis os campos de extermínio que a Alemanha pôde estabelecer um regime verdadeiramente totalitário O regime totalitário encontra ambiente assustadoramente favorável nas áreas de tradicional despotismo oriental como a índia ou a China onde existe material humano quase inesgotável para alimentar a máquina de poder e de destruição de homens que é o domínio total e onde além disso o sentimento de superfluidade do homem da massa um fenômeno inteiramente novo na Europa resultado do desemprego em massa e do crescimento populacional dos últimos 150 anos prevalece há séculos no desprezo pela vida humana A moderação ou métodos menos sangrentos de domínio não se deviam tanto ao receio dos governos de que pudesse haver rebelião popular resultaram de uma ameaça muito mais séria o despovoamento de seus próprios países Somente onde há grandes massas supérfluas que podem ser sacrificadas sem resultados desastrosos de despovoamento é que se torna viável o governo totalitário diferente do movimento totalitário Os movimentos totalitários são possíveis onde quer que existam massas quejjjor um motivo ou outro desenvolveram certo gosto pela organização política As massas não se unem pela consciência de um interesse comum e faltalhes aquela específica articulação de classes que se expressa em objetivos determinados limitados e atingíveisO termo massa só se aplica quando lidamos com pessoas que simplesmente devido ao seu número ou à sua indiferença ou a uma mistura de ambos não se podem integrar numa organização baseadajio interesse comum seja partido político organização profissional ou sindicato de trabalhadores Potencialmente as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto Em sua ascensão tanto o movimento nazista da Alemanha quanto os movimentos comunistas da Europa depois de 193017 recrutaram os seus membros dentre essa massa de pessoas aparentemente indiferentes que todosjos outros partidos haviam abandonado por lhes parecerem demasiadoâpálkas ou quanto a estranhos por meio da qual a autoridade institucional da polícia promoverá o embarque para os campos de concentração de pessoas inocentes de quaisquer crimes Paul Werner SSStandartenführer em Deutsches Jugendrecht vol 4 1944 Com relação a essa política de população negativa que no seu objetivo de extermínio positivamente se iguala aos expurgos no partido bolchevista da década de 30 é importante lembrar que neste processo de seleção não deve haver nenhuma solução de continuidade Himmler Die Schutztaffel O Esquadrão de Proteção ou seja a unidade SSl em Grundlagen Aufbau und Wirtschaftsordnung des nationalsozialistischen Staates Fundamentos estrutura e ordem econômica do Estado nacionalsocialista n 7b A luta do Führer e do seu partido fora uma seleção que até agora não tinha sido atingida Esta seleção e esta luta foram ostensivamente realizadas em 30 de janeiro de 1933 O Führer e sua velha guarda sabiam que o verdadeiro esforço apenas havia começado Robert Ley Der Weg zur Ordensburg O caminho para a liderança o D Verlag der Deutsçhen Arbeitsfront Livro fora de comércio 17 F Borkenau descreve corretamente a situação Os comunistas obtiveram sucesso apenas modesto na tentativa de influenciar as massas da classe trabalhadora portanto sua base 361 estúpidas para lhes merecerem a atenção A maioria dos seus membros portanto consistia em elementos que nunca antes haviam participado da política Isto permitiu a introdução de métodos inteiramente novos de propaganda política e a indiferença aos argumentos da oposição os movimentos até então colocados fora do sistema de partidos e rejeitados por ele puderam moldar um grupo que nunca havia sido atingido por nenhum dos partidos tradicionais Assim sem necessidade e capacidade de refutar argumentos contrários preferiram métodõsque levavam à morte em vez da persuasão que traziam terror em lugar de convicção As discórdias ideológicas com outros partidos serlhesiam desvantajosas se eles competissem sinceramente com esses partidos não o eram porém porquanto lidavam com pessoas que tinham motivos parahostilizar igualmente a todos os partidos O sucesso dos movimentos totalitários entre as massas significou o fim de duas ilusões dos países democráticos em geral e em particular dos Estadosnações europeus e do seu sistema partidário A primeira foi a ilusão de que o povo em sua maioria participava ativamente do governo e todo indivíduo simpatizava com um partido ou outro Esses movimentos pelo contrário demonstraram que as massas politicamente neutras e indiferentes podiam facilmente constituir a maioria num país de governo democrático e que portanto uma democracia podia funcionar de acordo com normas que na verdade eram aceitas apenas por uma minoria A segunda ilusão democrática destruída pelos movimentos totalitários foi a de que essas massas politicamente indiferentes não importavam que eram realmente neutras e que nada mais constituíam senão um silencioso pano de fundo para a vida política da nação Agora os movimentos totalitários demonstravam que o governo democrático repousava na silenciosa tolerância e aprovação dos setores indiferentes e desarticulados do povo tanto quanto nas instituições e organizações articuladas e visíveis do país Assim quando os movimentos totalitários invadiram o Parlamento com o seu desprezo pelo governo parlamentar pareceram simplesmente contraditórios mas na verdade conseguiram convencer o povo em geral de que as maiorias parlamentares eram espúrias e não correspondiam necessariamente à realidade do país solapando com isto a dignidade e a confiança dos governos na soberania da maioria Tem sido freqüentemente apontado que os movimentos totalitários usam e abusam das liberdades democráticas com o objetivo de suprimilas Não porque os seus líderes sejam diabolicamente espertos ou as massas sejam infantilmente ignorantes As liberdades democráticas podem basearse na igualdade de todos os cidadãos perante a lei mas só adquirem significado e funcionam organicamente quando os cidadãos pertencem a agremiações ou são representados por elas ou formam uma hierarquia social e política O colapso do sistema de classes como estratificação social e política dos Estadosnações europeus foi certamente um dos mais dramáticos acontecimentos da recente história ale de massa se a têm é cada vez mais afastada do proletariado Die neue Komintern O novo Comintern em DerMonat O Mês Berlim 1949 vol 4 362 mã16 e favoreceu a ascensão do nazismo na mesma medida em que a ausência deestratificação social na imensa população rural da Rússia esse grande corpo flácido destituído de educação política quase inacessível a idéias capazes de ãçâõ nobilitante como disse Górki19 favoreceu a deposição pelos bolchevistas do governo democrático de Kerenski As condições sociais da Alemanha antes de Hitler mostraram os perigos implícitos no desenvolvimento do Ocidente uma vez qüe com o fim da Segunda Guerra Mundial o mesmo dramático colapso do sistema de classes se repetiu em quase todos os países europeus enquanto as ocorrências na Rússia indicam claramente o rumo que podem tomar as inevitáveis mudanças revolucionárias na Ásia Na prática pouco importa que os movimentos totalitários adotem os padrões do nazismo ou do bolchevismo que organizem as massas em nome de classes ou de raças ou que pretendam seguir as leis da vida e da natureza ou as da dialética e da economia A indiferença em relação aos negócios públicos e a neutralidade em questões de política não são por si causas suficientes para o surgimento de movimentqsjoiaüiárips A sociedade competitiva de consumo criada pela burguesia gerou apatia e até mesmo hostilidade em relação à vida pública não apenas entre as camadas sociais exploradas e excluídas da participação ativa no governo do país mas acima de tudo entre a sua própria classe O longo período de falsa modéstia em que a burguesia se contentou em ser a classe social dominante sem aspirar ao domínio político relegado à aristocracia foi seguido pela era imperialista durante a qual a burguesia tornouse cada vez mais hostil às instituições nacionais existentes e passou a exigir o poder político e a organizar se para exercêlo Tanto a antiga apatia como a nova exigência de direção monopolística e ditatorial resultavam de uma filosofia para a qual o sucesso ou o fracasso do indivíduo em acirrada competição era o supremo objetivo de4al modo queoexercício dos deveres e responsabilidades do cidadão era tido cojnp perda desnecessária do seu tempo e energia Essas atitudes burguesas são muito úteis àquelas formas da ditadura nas quais um homem forte assume a incômoda responsabilidade de conduzir os negócios públicos mas constituem um obstáculo para os movimentos totalitários que não podem tolerar o individualismo burguês ou qualquer outro tipo de individualismo Os elementos apáticos da sociedade burguesa por mais que relutem em assumir as responsabilidades de cidadãos mantêm intacta a sua personalidade pelo menos porque ela lhes permite sobreviver na luta competitiva pela vida É difícil perceber onde as organizações da ralé do século XIX diferem dos movimentos de massa do século XX porque os modernos líderes totalitários não diferem muito em psicologia e mentalidade dos antigos líderes da escória cujos padrões morais e esquemas políticos aliás tanto se assemelhavam aos da burguesia Embora o individualismo caracterizasse tanto a atitude da burguesia como a da ralé em relação à vida os movimentos totalitários podem com justiça afirmar terem sido os primeiros partidos realmente antiburgueses o que 18 William Ebenstein The Nazi state Nova York 1943 p 247 19 Na descrição de Maksim Górki Ver Souvarine op cit p 290 363 não aconteceu com os seus predecessores do século XIX Nem a Sociedade do 10 de Dezembro que ajudou a colocar Luís Napoleão no poder nem as brigadas de açougueiros que atuaram no Caso Dreyfus nem as Centenas Negras que organizavam os pogroms na Rússia nem os movimentos étnicos de unificação envolveram os seus membros ao ponto de fazêlos perder completamente suas reivindicações e ambições individuais nem chegaram a conceber que uma organização conseguisse apagar a identidade do indivíduo para sempre e não apenas por um instante de heróico gesto coletivo A relação entre a sociedade de classes dominada pela burguesia e as massas qüè emergiram do seu colapso não é a mesma entre a burguesia e a ralé que era um subproduto da produção capitalista As massas têm em comum com a ralé apenas uma característica ou seja ambas estão fora de qualquer ramificação social e representação política normal As massas não herdam como o faz a ralé os padrões e atitudes da classe dominante mas refletem e de certo modo pervertem os padrões e atitudes de todas as classes em relação aos negócios públicos Os padrões do homem da massa são determinados não apenas pela classe específica à qual antes pertenceu mas acima de tudo por influências e convicções gerais que são tácita e silenciosamente compartilhadas por todas as classes da sociedade Fazer parte de uma classe embora mais vaga e nunca tão inevitavelmente determinada pela origem social como nas ordens e Estados da sociedade feudal era geralrnente uma questão de nascimento e somente a sorte ou dons extraordinários poderiam mudála O status social era decisivo para que um indivíduo participasse da política e exceto em casos de emergência quando se esperava que ele agisse apenas como um nacional independentemente de classe ou partido ele nunca se defrontava diretamente com as coisas públicas ou se sentia diretamente responsável por conduzilas À ascensão de uma classe correspondia a intensificação da instrução e treinamento de certo número de seus membros para a política como carreira e para o serviço do governo pago ou gratuito se a isso podiam permitirse e para a representação da classe no Parlamento A ninguém importava que a maioria dos membros de cada classe permanecesse fora de qualquer partido ou organização política Em outras palavras o fato de um indivíduo pertencer a uma classe que tinha obrigações grupais limitadas e certas atitudes tradicionais em relação ao governo impediu o crescimento de um corpo de cidadãos que se sentissem individual e pessoalmente responsáveis pelo governo do país Esse caráter apolítico das populações dos Estadosnações veio à tona somente quando o sistema de classes entrou em colapso e destruiu toda a urdidura de fios visíveis e invisíveis que ligavam o povo à estrutura política O colapso do sistema de classes significou automaticamente o colapso do sistema partidário porque os partidos cuja função era representar interesses não mais podiam representálos uma vez que a sua fonte e origem eramas classeüJSua continuidade tinha ainda certa importância para os membros das antigas classes que esperavam inutilmente recuperar o status social e mantinhamse coesos não porque ainda tivessem interesses comuns mas porque espe 364 ravam restaurálos Conseqüentemente os partidos tornaramse mais e mais psicológicos e ideológicos em sua propaganda e mais apologéticos e nostálgicos em sua orientação política Além disso haviam perdido sem que o percebessem aqueles simpatizantes neutros que nunca se haviam interessado por política por acharem que os partidos existiam para cuidar dos seus interesses Assim o primeiro sintoma do colapso do sistema partidário continental não foi a deserção dos antigos membros do partido mas o insucesso em recrutar membros dentre a geração mais jovem e a perda do consentimento e apoio silencioso das massas desorganizadas que subitamente deixavam de lado a apatia e marchavam para onde vissem oportunidade de expressar a sua violejUaoposiçãjO A queda das paredes protetoras das classes transformou as maiorias adormecidas que existiam por trás de todos os partidos numa grande massa desorganizada e desestruturada de indivíduos furiosos que nada tinham em comum exceto a vaga noção de que as esperanças partidárias eram vãs que conseqüentemente os mais respeitados eloqüentes e representativos membros da comunidade eram uns néscios e que as autoridades constituídas eram não apenas perniciosas mas também obtusas e desonestas Para o nascimento dessa solidariedade pouco importava que o trabalhador desempregado odiasse o status quo e as autoridades sob a forma do Partido SocialDemocrata que o pequeno proprietário desapossado o fizesse sob a forma de um partido centrista ou de direita e que os antigos membros das classes média e superior se manifestassem sob a forma de extremadireita tradicional Essa massa de homens insatisfeitos e desesperados aumentou rapidamente na Alemanha e na Áustria após a Primeira Guerra Mundial quando a inflação e o desemprego agravaram as conseqüências desastrosas da derrota militar despontou em todos os Estados sucessórios e apoiou os movimentos extremistas da França e da Itália desde a Segunda Guerra Mundial Foi nessa atmosfera de colapso da sociedade de classes que se desenvolveu a psicologia do homemde massa da Europa O fato de que o mesmo destino com monótona mas abstrata uniformidade tocava a grande número de indivíduos não evitou que cada qual se julgasse a si próprio em termos de fracasso individual e criticasse o mundo em termos de injustiça específica Contudo essa amargura egocêntrica embora constantemente repetida no isolamento individual e a despeito da sua tendência niveladora não chegaria a constituir laço comum porque não se baseava em qualquer interesse comum fosse econômico social ou político Esse egocentrismo portanto trazia consigo um claro enfraquecimento do instinto de autoconservação A consciência da desimportância e da dispensabilidade deixava de ser a expressão da frustração individual e tornavase um fenômeno de massa O velho provérbio de que o pobre e o oprimido nada têm a perder exceto o sofrimento nem sequer se aplicava aos homens da massa porque ao perderem o interesse no próprio bemestar eles perdiam muito mais do que o sofrimento da miséria perdiam a fonte das preocupações e cuidados que inquietam e moldam a vida humana Himmler que conhecia tão bem a mentalidade daqueles a quem organizava descreveu não 365 apenas os membros da SS mas as vastas camadas de onde os recrutava quando disse que eles não estavam interessados em problemas do diaadia mas somente em questões ideológicas de importância para as próximas décadas ou séculos conscientes de que trabalham numa grande tarefa que só aparece uma vez a cada 2 mil anos20 A gigantesca formação de massas produziu um tipo de mentalidade que como Cecil Rhodes quarenta anos antes raciocinava em termos de continentes e sentia em termos de séculos Eminentes homens de letras e estadistas europeus predisseram a partir do começo do século XIX o surgimento do homem da massa e o advento de uma era da massa Toda uma literatura sobre a conduta da massa e a psicologia da massa demonstrou e popularizou o conhecimento tão comum entre os antigos da afinidade entre a democracia e a ditadura entre o governo da ralé e a tirania Mas embora as previsões quanto ao surgimento de demagogia credulidades superstições e brutalidade tenham se realizado até certo ponto grande parte do seu significado se diluiu em vista de fenômenos inesperados e imprevistos como a perda radical do interesse do indivíduo em si mesmo21 a indiferença cínica ou enfastiada diante da morte a inclinação apaixonada por noções abstratas guindadas ao nível de normas de vida e o desprezo geral pelas óbvias regras do bom senso As massas contrariamente ao que foi previsto não resultaram da crescente igualdade de condição e da expansão educacional com a sua conseqüente perda de qualidade e popularização de conteúdo pois até os indivíduos altamente cultos se sentiam particularmente atraídos pelos movimentos de massa Nem o mais sofisticado individualismo evitava aquele autoabandono em díreção à massa que os movimentos de massa propiciavam O fato de a individualização e a cultura não evitarem a formação de atitudes de massa era tão inesperado que foi atribuído àmorbidez e ao niilismo da moderna intelligentsia ao ódio de si próprios que supostamente caracteriza os intelectuais Não obstante os caluniados intelectuais constituíam apenas o exemplo mais ilustrativo e eram os portavozes mais eloqüentes de um fenômeno geral A atomização social e a individualização extrema precederam os movimentos de massa que muito antes de atraírem com muito mais facilidade os membros sociáveis e nãoindividualistas dos partidos tradicionais acolheram os completamente desorganizados os típicos não alinhados que por motivos individualistas sempre se haviam recusado a reconhecer laços ou obrigações sociais A verdade é que as massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada cuja estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram con 20 Discurso de Heinrich Himmler sobre a Organização e dever da SS e da polícia publicado emNational politischerLehrgang der Wehrmacht vom 1523 Januarl937 Instrução políticonacional das Forças Armadas 1523 de janeiro de 1937 Tradução citada de Nazi conspiracy and aggression Office of the United States Chief of Counsel for the Prosecution of Axis Criminality U S Government Washington 1946 IV 616 ss 21 Gustave heBon La psychologie des foules 1895 menciona o peculiar desprendimento das massas Ver o cap II parágrafo 5 366 troladas apenas quando se pertencia a uma classe A principal característkajdo JhomeHLda rftassanão é a brutalidade nenLa mdezãL mas o seu isolamento e a sua falta de relações sociais norjnais Vindas da sociedade do Estádõnãçãb que era dominada por classes cujas fissuras haviam sido cimentadas pelo sentimento nacionalista essas massas no primeiro desamparo da sua existência tenderam para um nacionalismo especialmente violento que os líderes aceitavam por motivos puramente demagógicos contra os seus próprios instintos e finalidades22 Nem o nacionalismo tribal nem o niilismo rebelde são característicos das massas ou lhes são ideologicamente apropriados como o eram para a ralé Mas os mais talentosos líderes de massa de nossa época ainda vieram da ralé e não das massas23 Hitler cuja biografia se lê como um livrotexto exemplar a esse respeito e Stálin provinham da aparelhagem conspirativa do partido onde se misturavam proscritos e revolucionários O antigo partido de Hitler composto quase exclusivamente de desajustados fracassados e aventureiros constituía na verdade um exército de boêmios24 que eram apenas o avesso da sociedade burguesa e a quem conseqüentemente a burguesia alemã poderia ter usado com sucesso para seus próprios fins Na realidade a burguesia se deixou enganar pelos nazistas do mesmo modo como a facção RõhmSchleicher no Reichswehr o Exército regular da República de Weimar que também julgou que Hitler a quem havia usado como alcagüete ou a SA que tinha sido usada para propaganda militarista e treino paramilitar agiriam como seus agentes e ajudariam a criar uma ditadura militar25 Ambos consideraram o movimento 22 Os fundadores do partido nazista referiamse uma vez ou outra a esse nacionalismo mesmo antes de Hitler havêlo chefiado como partido da Esquerda Interessante também é um incidente que ocorreu após as eleições parlamentares de 1932 Gregor Strasser disse ao Führer com certa amargura que antes das eleições os nazistas poderiam ter constituído no Reichstag uma maioria com o Centro agora já não havia essa possibilidade os dois partidos tinham menos da metade das cadeiras do parlamento Mas com os comunistas ainda tinham uma maioria disse Hitler e por isto ninguém pode governar contra nós Heiden op cit pp 94 e 495 respectivamente 23 Comparese Carlton J H Hayes op cit que não diferencia entre a ralé e as massas e supõe que os ditadores totalitários vieram das massas e não das classes 24 Essa é a teoria central de K Heiden cujas análises do movimento nazista ainda são das mais importantes Dos escombros das classes mortas surge a nova classe de intelectuais e à sua frente vão os mais inescrupulosos aqueles que menos têm a perder e portanto os mais fortes os boêmios armados para quem a guerra é o lar e a pátria é a guerra civil op cit p 100 25 A trama entre o general Schleicher do Reichswehr e Rohm o chefe da SA consistia em um plano para colocar todas as formações paramilitares sob o comando militar do Reichswehr o que de imediato acrescentaria milhões às fileiras do Exército Isto naturalmente teria certamente levado a uma ditadura militar Em junho de 1934 Hitler liquidou Rohm e Schleicher As negociações iniciais começaram com o pleno conhecimento de Hitler que usou as conexões de Rohm com o Reichswehr para ludibriar os círculos militares alemães acerca de suas verdadeiras intenções Em abril de 1932 Rohm declarou como testemunha em um dos processos legais de Hitler que a condição militar da SA era perfeitamente entendida pelo Reichswehr Para documentação comprovatória do plano Rõhm Schleicher ver Nazi conspiracy V 466 ss Ver também Heiden op cit p 450 O próprio Rõhm fala com orgulho das suas negociações com Schleicher que segundo ele 367 I nazista em seus próprios termos de filosofia política da ralé26 e não perceberam o apoio independente e espontâneo das massas aos novos líderes da ralé nem o genuíno talento desses líderes para a criação de novas formas de organização A ralé enquanto força motriz das massas já não era o agente da burguesia nem de ninguém a não ser das próprias massas Os movimentos totalitários dependiam menos da falta de estrutura de uma sociedade de massa do que das condições específicas de uma massa atomizada e individualizada como se pode constatar por uma comparação do nazismo coiíí o bolchevismo que surgiram em seus respectivos países em circunstâncias muito diversas A fim de transformar a ditadura revolucionária de Lênin em completo regime totalitário Stálin teve primeiro de criar artificialmente aquela sociedade atomizáda que havia sido preparada para os nazistas na Alemanha por circunstâncias históricas A vitória surpreendentemente fácil da Revolução de Outubro ocorreu num país onde a burocracia despótica e centralizada governava uma massa populacional desestruturada que não se enquadrava organizacionalmente nem nos vestígios das ordens feudais rurais nem nas classes capitalistas urbanas nascentes e débeis Quando Lênin declarou que em nenhuma outra parte do mundo teria sido tão fácil galgar o poder e tão difícil conserválo sabia não só da fraqueza da classe operária russa mas também das anárquicas condições sociais em geral que propiciavam mudanças súbitas Desprovido do instinto de um líder de massas pois não era orador e tinha o vezo de confessar e analisar publicamente os próprios erros o que atentava contra as regras da demagogia Lênin se apegou imediatamente a toda diferenciação possível fosse social nacional ou profissional que pudesse dar alguma estrutura à população e parecia estar convencido de que só essa estratificação podia salvar a revolução Legalizou a anárquica expropriação dos donos de terra pelos camponeses e assim estabeleceu na Rússia pela primeira vez e provavelmente a última aquela classe camponesa emancipada que desde a Revolução Francesa havia sido o mais firme esteio dos Estadosnações ocidentais Tentou fortalecer a classe trabalhadora encorajando os sindicatos independentes Tolerou a tímida aparição de uma nova classe média proveniente da NEP Nova Política Econômica após o fim da guerra civil Introduziu outras formas de distinção organizando e às foram iniciadas em 1931 Schleicher havia prometido colocar a SA sob o comando dos oficiais do Reichswehr em caso de emergência Ver Die Memoiren des Stabschefs Rôhm As memórias do comandante Rõhm Saarbrücken 1934 p 170 O caráter militar da SA moldado por Rôhm e constantemente combatido por Hitler continuou a ditar o seu vocabulário mesmo depois da liquidação da facção de Rõhm Ao contrário dos SS os membros da SA sempre insistiram em que eram os representantes da vontade militar da Alemanha e para eles o Terceiro Reich era uma comunidade militar apoiada em duas colunas o Partido e a Wehrmacht verHandbuch der SA Berlim 1939 e Victor Lutze Die Sturmabteilungen As Seções de Assalto ou seja a SA em Grundlagen Aufbau und Wirtschaftsordnung des nationalsozialisxischen Staates n 7a 26 A autobiografia de Rõhm é em especial um verdadeiro clássico desse tipo de literatura 368 vezes até inventando o maior número possível de nacionalidades fomentando a consciência nacional e a percepção de diferenças históricas e culturais mesmo entre as tribos mais primitivas da União Soviética Parece claro que nessas questões políticas puramente práticas Lênin seguiu seus instintos de estadista e não as suas convicções marxistas de qualquer forma a sua política demonstra que temia mais a ausência de uma estrutura social ou de outra natureza do que dpossível desenvolvimento de tendências centrífugas nas nacionalidades recémemancipadas ou mesmo o crescimento de uma nova burguesia a partir das classes média e camponesa recém estabelecidas Sem dúvida Lênin sofreu a suajnaior derrota quando com o espoucar da guerra civil o supremo poder que ele originalmente planejava concentrar nos Sovietes passou definitivamente às mãos da burocracia do Partido mas mesmo isto trágico como era para o curso da Revolução não teria levado necessariamente ao totalitarismo Uma ditadura unipartidária acrescentava apenas mais uma classe à estratificação do país já em curso isto é a burocracia que segundo os críticos socialistas da revolução possuía o Estado como propriedade privada Marx27 No momento da morte de Lênin os caminhos ainda estavam abertos A formação de operários camponeses e classes médias não precisaria levar à luta de classes que havia sido característica do capitalismo europeu A agricultura ainda podia ser desenvolvida numa base coletiva cooperativa ou privada e a economia nacional ainda estava livre para seguir um padrão capitalista estatalcapitalista ou de mercado Nenhuma dessas alternativas teria destruído automaticamente a nova estrutura do país Todas essas novas classes e nacionalidades barravam o caminho de Stálin quando ele começou a preparar o país para o governo totalitário A fim de produzir uma massa atomizáda e amorf a necessitava primeiro liquidar o resto de poder dos Sovietes que como órgão principal de representação nacional ainda tinham certa função e impediam o domínio absoluto da hierarquia do Partido Assim debilitou primeiro os Sovietes nacionais introduzindo neles células bolchevistas das quais sairiam com exclusividade os funcionários superiores para os comitês centrais28 Por volta de 1930 ps últimos vestígios das antigas instituições comunais haviam desaparecido em seu lugar existia uma 27 Os antistalinistas basearam a sua crítica do desenvolvimento da União Soviética nessa formulação marxista e até hoje continuam dominados por essa idéia Rakovsky escrevendo do seu exílio na Sibéria em 1930 é da seguinte opinião Sob as nossas vistas surgiu e está sendo formada uma ampla classe de diretores que tem suas subdivisões internas e que cresce através de cooptação calculada e nomeações diretas ou indiretas O que une essa classe original é uma forma também original de propriedade privada a saber o poder do Estado citado por Souvarine op cit p 564 Tratase de uma análise bastante precisa do desenvolvimento da era préstalinista Para a evolução da relação entre o partido e os sovietes que tem importância decisiva no curso da Revolução de Outubro ver1 Deutscher The prophet armed Trotsky 18791921 1954 28 Em 1927 90 dos membros dos sovietes rurais e 75 dos seus presidentes não eram membros do Partido os comitês executivos das regiões eram formados por 50 de nãopartidários enquanto no Comitê Central 75 dos delegados eram membros do partido Ver o artigo Bolshevism de Maurice Dobb na Encyclopedia of social sciences 369 buroçxaeiapartidária firmemente centralizada cujas tendências para a russificação não eram muito diferentes daquelas do regime czarista exceto que os novos burocratas já não tinham medo de quem soubesse ler e escrever O governo bolchevista empreendeu então a liquidação das classes e começou por motivos ideológicos e de propaganda com as classes proprietárias a nova classe média das cidades e os camponeses do interior Por serem numerosos e possuírem propriedades os camponeses haviam sido até então potencialmente a classe mais poderosa da União conseqüentemente a sua liquidação foi mais meticulosa e cruel que a de qualquer outro grupo e foi levada a cabo por meio de fome artificial e deportação a pretexto de expropriação dos kulaks e de coletivização A liquidação das classes média e camponesa terminou no início da década de 30 os que não se incluíam entre os muitos milhões de mortos ou milhões de deportados sabiam agora quem mandava neste país e haviam compreendido que as suas vidas e as vidas de suas famílias não dependiam dos seus concidadãos mas somente dos caprichos do governo aos quais tinham de enfrentar em completa solidão sem qualquer tipo de auxílio do grupo a que pertencessem Nem estatísticas nem documentos situam o momento exato em que a nova classe agrícola produzida pela coletivização e ligada por interesses comuns passou a representar um perigo latente para o governo totalitário devido ao seu número e posição vital da economia do país Mas para aqueles que sabem decifrar as informações oficiais do totalitarismo esse instante ocorrera dois anos antes da morte de Stálin quando ele propôs dissolver as fazendas coletivas e transformálas em unidades maiores Não sobreviveu para realizar esse plano dessa vez os sacrifícios teriam sido ainda mais altos e as caóticas conseqüências para a economia global ainda mais catastróficas do que por ocasião do extermínio da primeira classe camponesa mas não há motivo para julgar que ele não o teria conseguido nlojiá classe que não possa ser extinta quando se mata um número suficientemente grande de seus membros A próxima classe a ser liquidada como grupo era a dos operários Como classe eram mais débeis e ofereciam muito menor resistência que os camponeses porque a expropriação dos donos de fábricas que eles haviam realizado espontaneamente durante a Revolução ao contrário da expropriação dos donos de terra pelos camponeses havia sido imediatamente frustrada pelo governo que confiscara as fábricas como sendo propriedade do Estado sob o pretexto de que o Estado de qualquer modo pertencia ao proletariado O sistema stakhanovista adotado no início da década de 30 eliminou a solidariedade e a consciência de classe dos trabalhadores pela concorrência feroz implantada pela solidificação de uma aristocracia operária separada do trabalhador comum por uma distância social mais aguda que a distância entre os trabalhadores e a gerência Esse processo foi completado em 1938 quando a criação do docu A Rosenberg A history ofbolshevism Londres 1934 cap VI descreve em detalhes como os membros do partido nos sovietes votando de acordo com as instruções que recebiam das autoridades permanentes do Partido destruíram internamente o sistema dos sovietes 370 mento de trabalho transformou oficialmente toda a classe operária russa num gigantesco corpo de trabalhadores forçados Finalmente veio a liquidação daquela burocracia que havia ajudado a executar as medidas anteriores de extermínio Stálin levou dois anos de 1936 a 1938 para se desfazer de toda a aristocracia administrativa e militar da sociedade soviética quase todas as repartições públicas fábricas entidades econômicas e culturais e agências governamentais partidárias e militares passaram a novas mãos quando quase a metade do pessoal administrativo do partido ou não üavia sido eliminada e foram liquidados mais de 50 de todos os membros do partido épélõ menos outros 8 milhões de pessoas29 A criação de um passaporte interno no qual tinham de ser registradas e autorizadas todas as viagens de uma cidade para outra completou a destruição da burocracia como classe No que diz respeito ao seu status jurídico a burocracia e os funcionários do partido estavam agora no mesmo nível dos operários eram também parte da vasta multidão de trabalhadores forçados russos e o seu status como clasif privilegiada na sociedade soviética era mera lembrança do passado E como esse expurgo geral terminou com a liquidação das mais altas autoridades policiais as mesmas que antes haviam organizado o expurgo geral nem mesmo rs oficiais da GPU que haviam instaurado o terror podiam pensar que como grupo ainda representassem alguma coisa muito menos poder Nenhum desses imensos sacrifícios de vida humana foi motivado por uma raison détat no antigo sentido do termo Nenhuma das camadas sociais liquidadas era hostil ao regime nem era provável que se tornasse hostil num futuro previsível A oposição ativa e organizada havia cessado de existir por volta de 1930 quando Stálin em seu discurso no Décimo Sexto Congresso do Partido declarou ilegais as divergências ideológicas dentro do partido sendo que mesmo essa frouxa oposição mal pudera basearse em alguma classe existente30 O terror ditatorial xjue difere do terror totalitário por ameaçar apenas adversários autênticos mas não cidadãos inofensivos e carentes de opiniões políticas havia sido suficientemente implacável para sufocar toda a atividade política ostensiva ou clandestina mesmo antes da morte de Lênin A intervenção do exterior que poderia apoiar um dos setores descontentes da população já não 29 Citamos esses algarismos do livro de Victor Kravchenko I chose freedom thepersonal andpolitical life ofa Soviet official Nova York 1946 pp 278 e 303 Tratase naturalmente de uma fonte altamente duvidosa Mas como no caso da Rússia soviética basicamente não se pode recorrer a não ser a fontes duvidosas e temos de confiar inteiramente em reportagens relatos e estimativas de um tipo ou de outro tudo o que podemos fazer é usar qualquer informação que pelo menos pareça ter alto grau de probabilidade Alguns historiadores acreditam que o método oposto ou seja usar exclusivamente o material fornecido pelo governo russo é mais fidedigno mas não é o caso porque o material oficial não passa de propaganda 30 O Relatório de Stálin ao Décimo Sexto Congresso denunciava o deviacionismo como reflexo da resistência dos camponeses e das classes pequenoburguesas nos escalões do partido Ver Leninism 1933 vol II cap III O curioso é que a oposição ficava indefesa contra esses ataques porque também os opositores e especialmente Trótski estavam sempre ansiosos por descobrir uma luta de classes por trás da luta de cliques Souvarine pp cit p 440 371 constituía perigo em 1930 quando a União Soviética já reconhecida pela maioria dos Estados e firmemente implantada tornouse parceira do sistema internacional vigente Contudo se Hitler fosse um conquistador comum e não um governante totalitário rival poderia ter tido excelente oportunidade de conquistar pelo menos a Ucrânia com o consentimento de sua população Se politicamente o extermínio de classes não fazia sentido foi simplesmente desastroso para a economia soviética As conseqüências da fome artificialmente criada em 1933 foram sentidas durante anos em todo o país a introdução do sistema stakhanovista em 1935 com a arbitrária aceleração da produção individual resultou num desequilíbrio caótico da jovem indústria31 a liquidação da burocracia isto é da classe de gerentes e engenheiros das fábricas terminou privando as empresas industriais da escassa experiência e do pouco knowhow que a nova intelligentsia técnica russa havia conseguido adquirir Desde os tempos antigos a imposição da igualdade de condições aos governados constituiu um dos principais alvos dos despotismos e das tiranias mas essa equalização não basta para o governo totalitário porque deixa ainda intactos certos laços nãopolíticos entre os subjugados tais como laços de família é de interesses culturais comuns O totalitarismo que se preza deve chegar ao ponto em que tem de acabar com a existência autônoma de qualquer atividade que seja mesmo que se trate de xadrez Os amantes do xadrez por amor ao xadrez adequadamente comparados por seu exterminador aos amantes da arte por amor à arte32 demonstram que ainda não foram absolutamente atomizados todos os elementos da sociedade cuja uniformidade inteiramente homogênea é a condição fundamental para o totalitarismo Do ponto de vista dos governantes totalitários uma sociedade dedicada ao xadrez por amor ao xadrez difere apenas um pouco da classe de agricultores que o são por amor à agricultura embora seja menos perigosa Himmler definiu muito bem o elemento da SS como o novo tipo de homem que em nenhuma circunstância fará jamais alguma coisa apenas por amor a essa coisa33 A atomização da massa na sociedade soviética foi conseguida pelo habilidoso uso de repetidos expurgos que invariavelmente precediam o verdadeiro extermínio de um grupo A fim de destruir todas as conexões sociais e familiares os expurgos eram conduzidos de modo a ameaçarem com o mesmo destino o acusado e todas as suas relações desde meros conhecidos até os parentes e amigos íntimos A culpa por associação é uma invenção engenhosa e sim 31 Kravchenko op cit p 187 32 Souvarine op cit p 575 33 A senha da SS formulada pelo próprio Himmler começa com as palavras Não existe tarefa dedicada a si mesma Ver Gunter dAlquen Die SS em Schriften der Hochschule für Politik Escritos da Escola Superior de Política 1939 Os panfletos publicados pela SS para o consumo interno repetidamente insistem na absoluta necessidade de se compreender a futilidade de tudo o que venha a ser um fim por si mesmo ver Der Reichsführer SS und Chef der deutschen Polizei O líder nacional da SS e chefe da polícia alemã sem data exclusivamente para uso interno da polícia 372 les Jogo que um homem é acusado os seus antigos amigos se transformam nos mais amargos inimigos para salvar a própria pele prestam informações e acorrem com denúncias que corroboram provas inexistentes a única maneira que encontram de demonstrarem a sua própria fidelidade Em seguida tentam provar que a sua amizade com o acusado nada mais era que um meio de espionálo e delatálo como sabotador trotskista espião estrangeiro ou fascista Uma vez que o mérito é julgado pelo número de denúncias apresentadas contra os camaradas34 é óbvio que a mais elementar cautela exige que se evitem se possível todos os contatos íntimos não para evitar que outros descubram os pensamentos secretos mas para eliminar em caso quase certo de problemas futuros a presença daqueles que sejam obrigados pelo perigo da própria vida à necessidade de arruinar a de ou trem Em última análise foi através do desenvolvimento desse artifício até os seus máximos e mais fantásticos extremos que os governantes bolchevistas conseguiram criar uma sociedade atomizada e individualizada como nunca se viu antes e a qual nenhum evento ou catástrofe poderiam por si só ter suscitado Os movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos atomizados e isolados Distinguemse dos outros partidos movimentos pela exigência de lealdade total irrestrita incondicional e inalterável de cada membro individual Essa exigência é feita pelos líderes dos movimentos totalitários mesmo antes de tomarem o poder e decorre da alegação já contida em sua ideologia de que a organização abrangerá no devido tempo toda a raça humana Con tudo onde o governo totalitário não é preparado por um movimento totalitário como foi o caso da Rússia em contraposição com a Alemanha nazista o movimento tem de ser organizado depois e as condições para o seu crescimento têm de ser artificialmente criadas de modo a possibilitar a lealdade total que é a base psicológica do domínio total Não se pode esperar essa lealdade a não ser de seres humanos completamente isolados que desprovidos de outros laços sociais dejamília amizade camaradagem só adquirem o sentido de terem lugar neste mundo quando participam de um movimento pertencem ao partido A lealdade total só é possível quando a fidelidade é esvaziada de todo o seu conteúdo concreto que poderia dar azo a mudanças de opinião Os movimentos totalitários cada um ao seu modo fizeram o possível para se livrarem de programas que especificassem um conteúdo concreto herdados de estágios anteriores e nãototalitários da sua evolução Por mais radical que seja todo objetivo político que não inclua o domínio mundial todo programa político definido que trate de assuntos específicos em vez de referirse a questões ideológicas que serão importantes durante séculos é um entrave para o totalitarismo A grande realização de Hitler ao organizar o movimento nazista que ele gradualmente construiu a partir de um pequeno partido tipicamente nacionalista formado por gente obscura e meio louca é que ele liberou o movi 34 A própria prática tem sido abundantemente documentada W Krivitsky em seu livro In Stalin i secret services Nova York 1939 remonta esto diretriz diretamente a Stàlin 373 mento do antigo programa do partido não por mudálo ou abolilo oficialmente mas simplesmente por recusarse a mencionálo ou discutir os seus pontos35 Nesse aspecto como em outros a tarefa de Stálin foi muito mais difícil o programa socialista do partido bolchevista era uma carga muito mais incômoda36que os 25 pontos do programa do partido nazista redigidos por um economista amador e político maluco37 Mas Stálin após haver abolido as facções do partido conseguiu finalmente o mesmo resultado através dos constantes ziguezagues da linha partidária comunista e da constante reinterpretação e aplicação do marxismo o que esvaziava a doutrina de todo o seu conteúdo já que não era possível prever o rumo ou ação que ela ditaria O fato de que o mais perfeito conhecimento do marxismo e do leninismo já não servia de guia para a conduta política e de que pelo contrário só era possível seguir a linha do partido se se repetisse a cada manhã o que Stálin havia dito na véspera resultou naturalmente no mesmo estado de espírito na mesma obediência concentrada imune a qualquer tentativa de se compreender o que se estava fazendo expressa pelo engenhoso lema de Himmler para os homens da SS Minha honra é a minha lealdade38 A falta de um programa partidário ou o fato de se ignorálo não é por si só necessariamente um sinal de totalitarismo O primeiro a considerar pro gramas e plataformas como desnecessários pedaços de papel e embaraçosas promessas não condizentes com o estilo e o ímpeto de um movimento foi Mussolini com a sua filosofia fascista de ativismo e inspiração no próprio momento histórico39 Todo líder da ralé é caracterizado pela mera sede de poder e pelo 35 Hitler escreveu em Mein Kampf 2 vols 1 edição alemã 1925 e 1927 respectivamente que era melhor ter um programa antiquado do que permitir uma discussão de programa livro II cap V Pouco depois declararia publicamente Quando tomarmos o governo o programa virá por si mesmo O primeiro passo deverá ser uma inconcebível onda de propaganda Isto é uma ação política que pouco teria a ver com os outros problemas do momento Ver Heiden op cit p 203 36 Souvarine sugere erradamente em nossa opinião que já Lênin havia abolido o papel de um programa partidário Nada podia mostrar mais claramente que o bolchevismo como doutrina não existia a não ser na cabeça de Lênin todo bolchevista se fosse deixado sozinho desviavase da linha de sua facção pois o que unia esses homens era o seu temperamento e a autoridade de Lênin e não as idéias op cit p 85 37 O programa de Gottfried Feder para o partido nazista com os seus famosos 25 pontos teve papel mais importante na literatura acerca do movimento do que no próprio movimento 38 O impacto do lema formulado pelo próprio Himmler é difícil de traduzir Em alemão MeineEhre heisst Treue indica uma devoção e uma obediência absolutas que transcendem o significado da mera disciplina ou fidelidade pessoal Nazi conspiracy cujas traduções de documentos alemães e da literatura nazista são uma fonte indispensável de material mas que infelizmente são muito irregulares traduz a senha da SS como Minha honra significa fidelidade V 346 39 Mussolini foi provavelmente o primeiro líder de partido a rejeitar conscientemente um programa formal e substituílo apenas pela liderança e pela ação inspiradas Por trás dessa atitude estava a noção de que a atualidade do próprio momento era o principal elemento de inspiração ao qual um programa partidário somente poderia prejudicar A filosofia do fascismo italiano foi expressa pelo atualismo de Gentile e não pelos mitos de Sorel Comparese também o artigo Fascism da Encyclopedia of social sciences O programa de 1921 foi formulado quando o movimento existia havia apenas dois anos e continha na maior parte a sua filosofia nacionalista 374 desprezo à tagarelice quando se lhe perguniajxquíLpjetende fazer com ele O vexddÊÍroobjetivo do fascismo era apenas a tomada do poder e a instalação da elite fascista no governo O totalitarismo jamais se contenta em governar por meios externos ou seja através do Estado e de uma máquina de violência graças à sua ideologia peculiar e ao papel dessa ideologia no aparelho de coação o totalitarismo descobriu um meio de subjugar e aterrorizar os seres humanos internamente Neste sentido elimina a distância entre governantes e governados e estabelece uma situação na qual o poder e o desejo de poder tal como os entendemos não representam papel algum ou na melhor das hipóteses têm um papel secundário Essencialmente o líder totalitário é nada mais e naíia menos que o funcionário das massas que dirige não é um indivíduo sedento de poder impondo aos seus governados uma vontade tirânica e arbitrária Como simples funcionário pode ser substituído a qualquer momento e depende tanto do desejo das massas que ele incorpora como as massas dependem dele Sem ele elas não teriam representação externa e não passariam de um bando amorfo sem as massas o líder seria uma nulidade Hitler que conhecia muito bem essa interdependência exprimiua certa vez num discurso perante a SA Tudo o que vocês são o são através de mim tudo o que eu sou sou somente através de vocês40 Infelizmente nossa tendência é dar pouca importância a declarações deste tipo ou interpretálas erradamente Na tradição polítiear do Ocidente41 a ação é definida em termos de dar e executar ordens Mas esta idéia sempre pressupôs alguém que comanda que pensa e deseja e em seguida impõe o seu pensamentos o seu desejo sobre um grupo destituído de pensamento e de vontade seja por meio da persuasão da autoridade ou da violência Hitler porém era da opinião de que até mesmo o pensamento só existe em virtude da formulação ou execução de uma ordem42 eliminando assim mesmo teoricamente de um lado a diferença entre pensar e agir e do outro a diferença entre governantes e governados Nem o nacionalsocialismo nem o bolchevismo jamais proclamaram uma nova forma de governo ou afirmaram que o seu objetivo seria alcançado comJJ tomada do poder e o controle da máquina estatal Sua idéia de domínio a dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida43 é algo que nenhum Estado ou mecanismo de violência jamais pôde conseguir mas que é realizável por um movimento totalitário constantemente acionado A tomada do poder através dos instrumentos de violência nunca é um 40 Ernst Bayer Die SA Berlim 1938 Traduzido do Nazi conspiracy IV 783 41 Isso ocorre pela primeira vez na Política de Platão 305 onde a ação é interpretada em termos de archein e prattein de ordenar o início de um ato e de executar a ordem 42 Hitlers Tischgesprache p 198 43 Mein Kampf livro I cap XI Vejase também por exemplo Dieter Schwartz Angriffe auf die nationalsozialistische Weltanschauung Ataques à ideologia nacionalsocialista em Aus dem Schwarzen Korps n 2 1936 que responde à crítica óbvia de que o nacionalsocialismo após haver galgado o poder continuava a falar de luta Como ideologia Weltanschauung o nacionalsocialismo não abandonará a sua luta até que o modo de vida de cada indivíduo alemão tenha SKIO moldado segundo os seus valores fundamentais postos em prática a cada dia 375 venhamos a ter a riqueza de documentos que encontramos na Alemanha nazista sabemos desde o discurso de Khrushchev perante o Vigésimo Congresso do Partido Comunista que também Stálin só confiava num homem e que esse homem era Hitler14 Em todos esses países menores da Europa movimentos totalitários precederam ditaduras nãototalitárias como se o totalitarismo fosse um objetivo demasiadamente ambicioso e como se o tamanho do país forçasse os candidatos a governantes totalitários a enveredar pelo caminho mais familiar da ditadura de classe ou de partido Na verdade esses países simplesmente não dispunham de material humano em quantidade suficiente para permitir a existência de um domínio total qualquer que fosse e as elevadas perdas populacionais decorrentes da implantação de tal sistema15 Sem muita possibilidade de conquistar territórios os ditadores desses pequenos países eram obrigados à moderação sem a qual corriam o risco de perder os poucos súditos de que dispunham Por isto também o nazismo antes do início da guerra ficou tão aquém do seu similar russo em matéria de coerência e crueldade uma vez que nem sequer o povo alemão era suficientemente numeroso para permitir o completo desenvolvimento dessa nova forma de governo Somente se tivesse vencido a guerra a Alemanha teria conhecido um governo totalitário completo e podemse avaliar e vislumbrar os sacrifícios a que isso teria levado não apenas as raças inferiores mas os próprios alemães através dos planos de Hitler que ficaram para a posteridade16 De qualquer modo foi só durante a guerra de o Ocidente contra o bolchevismo mas sempre esteve disposto a unirse aos vermelhos para destruir o Ocidente mesmo durante a luta contra a União Soviética Ver especialmente pp 95 108 113 ss 158 385 14 Sabemos hoje que Stálin foi repetidamente advertido quanto ao iminente ataque de Hitler à União Soviética Mesmo quando o adido militar soviético em Berlim o informou quanto ao dia do ataque nazista Stálin recusouse a crer que Hitler violaria o tratado Ver Speech on Stálin de Khrushchev texto distribuído pelo Departamento de Estado norteamericano New York Times 5dejunhodel956 15 A seguinte informação relatada por Souvarine op cit p 669 constitui importante exemplo Segundo W Krivitsky cuja excelente fonte de informes confidenciais é a GPU Em lugar dos 171 milhões de habitantes estimados para 1937 só foram recenseados 145 milhões assim não se conseguem encontrar 30 milhões de pessoas na União Soviética Como se sabe só a liquidação dos kulaks no início da década de 30 havia custado perto de 8 milhões de vidas Ver Communism in action U S Government Washington 1946 p 140 16 Parte desses planos relativa ao extermínio de povos nãogermânicos principalmente dos eslavos pode ser encontrada no Bréviaire de Ia haine de Léon Poliakov Paris 1951 cap 8 Um projeto de lei de saúde do Reich escrito pelo próprio Hitler mostra que a máquina de destruição nazista não se teria detido nem mesmo diante do povo alemão Nesse projeto ele propõe isolar do resto da população todas as famílias que tenham casos de moléstias do coração ou do pulmão sendo que o próximo passo nesse programa era naturalmente a liquidação física Este e vários outros projetos preparados para depois da vitória estão contidos numa circular aos líderes distritais Kreisleiter de HesseNassau sob a forma de relatório de uma discussão havida no quartelgeneral áoFührer sobre medidas que deviam ser adotadas antes e depois da vitória Ver a coleção de documentos em Nazi conspiracy and aggression Washington 1946 et seq vol VII p 175 Neste contexto há ainda a planejada promulgação de uma legislação global 360 pois que as conquistas do Leste forneceram grandes massas e tornaram possíveis os campos de extermínio que a Alemanha pôde estabelecer um regime verdadeiramente totalitário O regime totalitário encontra ambiente assustadoramente favorável nas áreas de tradicional despotismo oriental como a índia ou a China onde existe material humano quase inesgotável para alimentar a máquina de poder e de destruição de homens que é o domínio total e onde além disso o sentimento de superfluidade do homem da massa um fenômeno inteiramente novo na Europa resultado do desemprego em massa e do crescimento populacional dos últimos 150 anos prevalece há séculos no desprezo pela vida humana A moderação ou métodos menos sangrentos de domínio não se deviam tanto ao receio dos governos de que pudesse haver rebelião popular resultaram de uma ameaça muito mais séria o despovoamento de seus próprios países Somente onde há grandes massas supérfluas que podem ser sacrificadas sem resultados desastrosos de despovoamento é que se torna viáveo governo totalitário diferente do movimento totalitário Os movimentos totalitários são possíveis onde quer que existam massas quejpojr ura motivo ou outro desenvolveram certo gosto pela organização política As massas não se unem pela consciência de um interesse comum e faltalhes aquela específica articulação de classes que se expressa em objetivos determinados limitados e atingíveisO terma massa só se aplica quando lidamos com pessoas que simplesmente devido ao seu número ou à sua indiferença ou a uma mistura de ambos não se podem integrar numa organização baseada no interesse comum seja partido político organização profissional ou sindicato de trabalhadores Potencialmente as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto Em sua ascensão tanto o movimento nazista da Alemanha quanto os movimentos comunistas da Europa depois de 193017 recrutaram os seus membros dentre essa massa de pessoas aparentemente indiferentes que todosos outros partidos haviam abandonado por lhes parecerem demasiado apáticas ou quanto a estranhos por meio da qual a autoridade institucional da polícia promoverá o embarque para os campos de concentração de pessoas inocentes de quaisquer crimes Paul Werner SSStandartenführer emDeutschesJugendrecht vol 4 1944 Com relação a essa política de população negativa que no seu objetivo de extermínio positivamente se iguala aos expurgos no partido bolchevista da década de 30 é importante lembrar que neste processo de seleção não deve haver nenhuma solução de continuidade Himmler Die Schutztaffel O Esquadrão de Proteção ou seja a unidade SS em Grundlagen Aufbau und Wirtschaftsordnung des nationalsozialistischen Staates Fundamentos estrutura e ordem econômicado Estado nacional socialista n 7b A luta do Führer e do seu partido fora uma seleção que até agora não tinha sido atingida Esta seleção e esta luta foram ostensivamente realizadas em 30 de janeiro de 1933 O Führer e sua velha guarda sabiam que o verdadeiro esforço apenas havia começado Robert Ley Der Weg zur Ordensburg O caminho para a liderança o D Verlag der Deutsçhen Arbeitsfront Livro fora de comércio 17 F Borkenau descreve corretamente a situação Os comunistas obtiveram sucesso apenas modesto na tentativa de influenciar as massas da classe trabalhadora portanto sua base 361 estúpidas para lhes merecerem a atenção A maioria dos seus membros portanto consistia em elementos que nunca antes haviam participado da política Isto permitiu a introdução de métodos inteiramente novos de propaganda política e a indiferença aos argumentos da oposição os movimentos até então colocados fora do sistema de partidos e rejeitados por ele puderam moldar um grupo que nunca havia sido atingido por nenhum dos partidos tradicionais Assim sem necessidade e capacidade de refutar argumentos contrários preferiram métodõsque levavam à morte em vez da persuasão que traziam terror em lugar de convicção As discórdias ideológicas com outros partidos serlhesiam desvantâjosas se eles competissem sinceramente com esses partidos não o eram porém porquanto lidavam com pessoas que tinham motivos parahostilizar igualmente a todos os partidos O sucesso dos movimentos totalitários entre as massas significou o fim de duas ilusões dos países democráticos em geral e em particular dos Estadosnações europeus e do seu sistema partidário A primeira foi a ilusão de que o povo em sua maioria participava ativamente do governo e todo indivíduo simpatizava com um partido ou outro Esses movimentos pelo contrário demonstraram que as massas politicamente neutras e indiferentes podiam facilmente constituir a maioria num país de governo democrático e que portanto uma democracia podia funcionar de acordo com normas que na verdade eram aceitas apenas por uma minoria A segunda ilusão democrática destruída pelos movimentos totalitários foi a de que essas massas politicamente indiferentes não importavam que eram realmente neutras e que nada mais constituíam senão um silencioso pano de fundo para a vida política da nação Agora os movimentos totalitários demonstravam que o governo democrático repousava na silenciosa tolerância e aprovação dos setores indiferentes e desarticulados do povo tanto quanto nas instituições e organizações articuladas e visíveis do país Assina quando os movimentos totalitários invadiram o Parlamento com o seu desprezo pelo governo parlamentar pareceram simplesmente contraditórios mas na verdade conseguiram convencer o povo em geral de que as maiorias parlamentares eram espúrias e não correspondiam necessariamente à realidade do país solapando com isto a dignidade e a confiança dos governos na soberania da maioria Tem sido freqüentemente apontado que os movimentos totalitários usam e abusam das liberdades democráticas com o objetivo de suprimilas Não porque os seus líderes sejam diabolicamente espertosou as massas sejam infantilmente ignorantes As liberdades democráticas podem basearse na igualdade de todos os cidadãos perante a lei mas só adquirem significado e funcionam organicamente quando os cidadãos pertencem a agremiações ou são representados por elas ou formam uma hierarquia social e política O colapso do sistema de classes como estratificação social e política dos Estadosnações europeus foi certamente um dos mais dramáticos acontecimentos da recente história ale de massa se a têm é cada vez mais afastada do proletariado Die neue Komintern O novo Comintern em DerMonat O Mês Berlim 1949 vol 4 362 mã18 e favoreceu a ascensão do nazismo na mesma medida em que a ausência deestratificação social na imensa população rural da Rússia esse grande corpo flácido destituído de educação política quase inacessível a idéias capazes de ãçao riobilitante como disse Górki19 favoreceu a deposição pelos bolchevistas do governo democrático de Kerenski As condições sociais da Alemanha antes de Hitler mostraram os perigos implícitos no desenvolvimento do Ocidente uma vez qúe com o fim da Segunda Guerra Mundial o mesmo dramático colapso do sistema de classes se repetiu em quase todos os países europeus enquanto as ocorrências na Rússia indicam claramente o rumo que podem tomar as inevitáveis mudanças revolucionárias na Ãsia Na prática pouco importa que os movimentos totalitários adotem os padrões do nazismo ou do bolchevismo que organizem as massas em nome de classes ou de raças ou que pretendam seguir as leis da vida e da natureza ou as da dialética e da economia v A indiferença em relação aos negócios públicos e a neutralidade em questões de política não são por si causas suficientes para o surgimento de movimentosjQtalitários A sociedade competitiva de consumo criada pela burguesia gerou apatia e até mesmo hostilidade em relação à vida pública não apenas entre as camadas sociais exploradas e excluídas da participação ativa no governo do país mas acima de tudo entre a sua própria classe O longo período de falsa modéstia em que a burguesia se contentou em ser a classe social dominante sem aspirar ao domínio político relegado à aristocracia foi seguido pela era imperialista durante a qual a burguesia tornouse cada vez mais hostil às instituições nacionais existentes e passou a exigir o poder político e a organizar se para exercêlo Tanto a antiga apatia como a nova exigência de direção monopolística e ditatorial resultavam de uma filosofia para a qual o sucesso ou o fracasso do indivíduo em acirrada competição era o supremo objetivo detal modo queoexercício dos deveres e responsabilidades do cidadão era tido cojnp perda desnecessária do seu tempo e energia Essas atitudes burguesas são muito úteis àquelas formas da ditadura nas quais um homem forte assume a incômoda responsabilidade de conduzir os negócios públicos mas constituem um obstáculo para os movimentos totalitários que não podem tolerar o individualismo burguês ou qualquer outro tipo de individualismo Os elementos apáticos da sociedade burguesa por mais que relutem em assumir as responsabilidades de cidadãos mantêm intacta a sua personalidade pelo menos porque ela lhes permite sobreviver na luta competitiva pela vida É difícil perceber onde as organizações da ralé do século XIX diferem dos movimentos de massa do século XX porque os modernos líderes totalitários não diferem muito em psicologia e mentalidade dos antigos líderes da escória cujos padrões morais e esquemas políticos aliás tanto se assemelhavam aos da burguesia Embora o individualismo caracterizasse tanto a atitude da burguesia como a da ralé em relação à vida os movimentos totalitários podem com justiça afirmar terem sido os primeiros partidos realmente antiburgueses o que 18 William Ebenstein TheNazistate Nova York 1943 p 247 19 Na descrição de Maksim Górki Ver Souvarine op cit p 290 363 não aconteceu com os seus predecessores do século XIX Nem a Sociedade do 10 de Dezembro que ajudou a colocar Luís Napoleão no poder nem as brigadas de açougueiros que atuaram no Caso Dreyfus nem as Centenas Negras que organizavam ospogroms na Rússia nem os movimentos étnicos de unificação envolveram os seus membros ao ponto de fazêlos perder completamente suas reivindicações e ambições individuais nem chegaram a conceber que uma organização conseguisse apagar a identidade do indivíduo para sempre e não apenas por um instante de heróico gesto coletivo A relação entre a sociedade de classes dominada pela burguesia e as massas quê emergiram do seu colapso não é a mesma entre a burguesia e a ralé que era um subproduto da produção capitalista As massas têm em comum com a ralé apenas uma característica ou seja ambas estão fora de qualquer ramificação social e representação política normal As massas não herdam como o faz a ralé os padrões e atitudes da classe dominante mas refletem e de certo modo pervertem os padrões e atitudes de todas as classes em relação aos negócios públicos Os padrões do homem da massa são determinados não apenas pela classe específica à qual antes pertenceu mas acima de tudo por influências e convicções gerais que são tácita e silenciosamente compartilhadas por todas as classes da sociedade Fazer parte de uma classe embora mais vaga e nunca tão inevitavelmente determinada pela origem social como nas ordens e Estados da sociedade feudal era geralmente uma questão de nascimento e somente a sorte ou dons extraordinários poderiam mudála O status social era decisivo para que um indivíduo participasse da política e exceto em casos de emergência quando se esperava que ele agisse apenas como um nacional independentemente de classe ou partido ele nunca se defrontava diretamente com as coisas públicas ou se sentia diretamente responsável por conduzilas à ascensão de uma classe correspondia a intensificação da instrução e treinamento de certo número de seus membros para a política como carreira e para o serviço do governo pago ou gratuito se a isso podiam permitirse e para a representação da classe no Parlamento A ninguém importava que a maioria dos membros de cada classe permanecesse fora de qualquer partido ou organização política Em outras palavras o fato de um indivíduo pertencer a uma classe que tinha obrigações grupais limitadas e certas atitudes tradicionais em relação ao governo impediu o crescimento de um corpo de cidadãos que se sentissem individual e pessoalmente responsáveis pelo governo do país Esse caráter apolítico das populações dos Estadosnações veio à tona somente quando o sistema de classes entrou em colapso e destruiu toda a urdidura de fios visíveis e invisíveis que ligavam o povo à estrutura política O colapso do sistema de classes significou automaticamente o colapso do sistema partidário porque os partidos cuja função era representar interesses não mais podiam representálos uma vez que a sua fonte e origem eramjis classes Sua continuidade tinha ainda certa importância para os membros das antigas classes que esperavam inutilmente recuperar o status social e mantinhamse coesos não porque ainda tivessem interesses comuns mas porque espe 364 ravam restaurálos Conseqüentemente os partidos tornaramse mais e mais psicológicos e ideológicos em sua propaganda e mais apologéticos e nostálgicos em sua orientação política Além disso haviam perdido sem que o percebessem aqueles simpatizantes neutros que nunca se haviam interessado por política por acharem que os partidos existiam para cuidar dos seus interesses Assim o primeiro sintoma do colapso do sistema partidário continental não foi a deserção dos antigos membros do partido mas o insucesso em recrutar membros dentre a geração mais jovem e a perda do consentimento e apoio silencioso das massas desorganizadas que subitamente deixavam de lado a apatia e marchavam para onde vissem oportunidade de expressar a sua violenjtaojosição A queda das paredes protetoras das classes transformou as maiorias adormecidas que existiam por trás de todos os partidos numa grande massa desorganizada e desestruturada de indivíduo furiosos que nada tinham em comum exceto a vaga noção de que as esperanças partidárias eram vãs que conseqüen tementej os mais respeitados eloqüentes e representativos membros da comunidade eram uns néscios e que as autoridades constituídas eram não apenas perniciosas mas também obtusas e desonestas Para o nascimento dessa solidariedade pouco importava que o trabalhador desempregado odiasse o status quo e as autoridades sob a forma do Partido SocialDemocrata que o pequeno proprietário desapossado o fizesse sob a forma de um partido centrista ou de direita e que os antigos membros das classes média e superior se manifestassem sob a forma de extremadireita tradicional Essa massa de homens insatisfeitos e desesperados aumentou rapidamente na Alemanha e na Áustria após a Primeira Guerra Mundial quando a inflação e o desemprego agravaram as conseqüências desastrosas da derrota militar despontou em todos os Estados sucessórios e apoiou os movimentos extremistas da França e da Itália desde a Segunda Guerra Mundial Foi nessa atmosfera de colapso da sociedade de classes que se desenvolveu a psicologia do homemde massa da Europa O fato de que o mesmos destino com monótona mas abstrata uniformidade tocava a grande número de indivíduos não evitou que cada qual se julgasse a si próprio em termos de fracasso individual e criticasse o mundo em termos de injustiça específica Contudo essa amargura egocêntrica embora constantemente repetida no isolamento individual e a despeito da sua tendência niveladora não chegaria a constituir laço comum porque não se baseava em qualquer interesse comum fosse econômico social ou político Esse egocentrismo portanto trazia consigo um claro enfraquecimento do instinto de autoconservação A consciência da desimportância e da dispensabilidade deixava de ser a expressão da frustração individual fe tornavase um fenômeno de massa O velho provérbio de que o pobre e o oprimido nada têm a perder exceto o sofrimento nem sequer se aplicava aos homens da massa porque ao perderem o interesse no próprio bemestar eles perdiam muito mais do que o sofrimento da miséria perdiam a fonte das preocupações e cuidados que inquietam e moldam a vida humana Himmler que conhecia tão bem a mentalidade daqueles a quem organizava descreveu não 365 apenas os membros da SS mas as vastas camadas de onde os recrutava quando disse que eles não estavam interessados em problemas do diaadia mas somente em questões ideológicas de importância para as próximas décadas ou séculos conscientes de que trabalham numa grande tarefa que só aparece uma vez a cada 2 mil anos20 A gigantesca formação de massas produziu um tipo de mentalidade que como Cecil Rhodes quarenta anos antes raciocinava em termos de continentes e sentia em termos de séculos Eminentes homens de letras e estadistas europeus predisseram a partir do começo do século XIX o surgimento do homem da massa e o advento de uma era da massa Toda uma literatura sobre a conduta da massa e a psicologia da massa demonstrou e popularizou o conhecimento tão comum entre os antigos da afinidade entre a democracia e a ditadura entre o governo da ralé e a tirania Mas embora as previsões quanto ao surgimento de demagogia credulidades superstições e brutalidade tenham se realizado até certo ponto grande parte do seu significado se diluiu em vista de fenômenos inesperados e imprevistos como a perda radical do interesse do indivíduo em si mesmo21 a indiferença cínica ou enfastiada diante da morte a inclinação apaixonada por noções abstratas guindadas ao nível de normas de vida e o desprezo geral pelas óbvias regras do bom senso As massas contrariamente ao que foi previsto não resultaram da crescente igualdade de condição e da expansão educacional com a sua conseqüente perda de qualidade e popularização de conteúdo pois até os indivíduos altamente cultos se sentiam particularmente atraídos pelos movimentos de massa Nem o mais sofisticado individualismo evitava aquele autoabandono em direção à massa que os movimentos de massa propiciavam O fato de a individualização e a cultura não evitarem a formação de atitudes de massa era tão inesperado que foi atribuído à morbidez e ao niilismo da moderna intelligentsia ao ódio de si próprios que supostamente caracteriza os intelectuais Não obstante os caluniados intelectuais constituíam apenas o exemplo mais ilustrativo e eram os portavozes mais eloqüentes de um fenômeno geral A atomização social e a individualização extrema precederam os movimentos de massa que muito antes de atraírem com muito mais facilidade os membros sociáveis e nãoindividualistas dos partidos tradicionais acolheram os completamente desorganizados os típicos nãoalinhados que por motivos individualistas sempre se haviam recusado a reconhecer laços ou obrigações sociais A verdade é que as massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada cuja estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram con 20 Discurso de Heinrich Himmler sobre a Organização e dever da SS e da polícia publicado em Nationalpolitischer Lehrgang der Wehrmacht vom 1523 Januar 1937 Instrução políticonacional das Forças Armadas 1523 de janeiro de 1937 Tradução citada de Nazi conspiracy and aggression Office of the United States Chief of Counsel for the Prosecution of Axis Criminality U S Government Washington 1946 IV 616 ss 21 GustaveLeBon La psychologie desfoules 1895 menciona o peculiar desprendimento das massas Ver o cap II parágrafo 5 366 troladas apenas quando se pertencia a uma classe A principal característicajlo jiçmeHLdamassanão é a brutalidade nenta rudeza mas ó seu isolamento e a sua falta de relações sociais norjnais Vindas da sociedade do Estadõiiãção que era dominada por classes cujas fissuras haviam sido cimentadas pelo sentimento nacionalista essas massas no primeiro desamparo da sua existência tenderam para um nacionalismo especialmente violento que os líderes aceitavam por motivos puramente demagógicos contra os seus próprios instintos e finalidades22 Nem o nacionalismo tribal nem o niilismo rebelde são característicos das massas ou lhes são ideologicamente apropriados como o eram para a ralé Mas os mais talentosos líderes de massa de nossa época ainda vieram da ralé e não das massas23 Hitler cuja biografia se lê como um livrotexto exemplar a esse respeito e Stálin provinham da aparelhagem conspirativa do partido onde se misturavam proscritos e revolucionários O antigo partido de Hitler composto quase exclusivamente de desajustados fracassados e aventureiros constituía na verdade um exército de boêmios24 que eram apenas o avesso da sociedade burguesa e a quem conseqüentemente a burguesia alemã poderia ter usado com sucesso para seus próprios fins Na realidade a burguesia se deixou enganar pelos nazistas do mesmo modo como a facção RõhmSchleicher no Reichswehr o Exército regular da República de Weimar que também julgou que Hitler a quem havia usado como alcagüete ou a SA que tinha sido usada para propaganda militarista e treino paramilitar agiriam como seus agentes e ajudariam a criar uma ditadura militar25 Ambos consideraram o movimento 22 Os fundadores do partido nazista referiamse uma vez ou outra a esse nacionalismo mesmo antes de Hitler havêlo chefiado como partido da Esquerda Interessante também é um incidente que ocorreu após as eleições parlamentares de 1932 Gregor Strasser disse ao Fiihrer com certa amargura que antes das eleições os nazistas poderiam ter constituído no Reichstag uma maioria com o Centro agora já não havia essa possibilidade os dois partidos tinham menos da metade das cadeiras do parlamento Mas com os comunistas ainda tinham uma maioria disse Hitler e por isto ninguém pode governar contra nós Heiden op cit pp 94 e 495 respectivamente 23 Comparese Carlton J H Hayes op cit que não diferencia entre a ralé e as massas e supõe que os ditadores totalitários vieram das massas e não das classes 24 Essa é a teoria central de K Heiden cujas análises do movimento nazista ainda são das mais importantes Dos escombros das classes mortas surge a nova classe de intelectuais e à sua frente vão os mais inescrupulosos aqueles que menos têm a perder e portanto os mais fortes os boêmios armados para quem a guerra é o lar e a pátria é a guerra civil op cit p 100 25 A trama entre o general Schleicher do Reichswehr e Róhm o chefe da SA consistia em um plano para colocar todas as formações paramilitares sob o comando militar do Reichswehr o que de imediato acrescentaria milhões às fileiras do Exército Isto naturalmente teria certamente levado a uma ditadura militar Em junho de 1934 Hitler liquidou Róhm e Schleicher As negociações iniciais começaram com o pleno conhecimento de Hitler que usou as conexões de Ròhm com o Reichswehr para ludibriar os círculos militares alemães acerca de suas verdadeiras intenções Em abril de 1932 Ròhm declarou como testemunha em um dos processos legais de Hitler que a condição militar da SA era perfeitamente entendida pelo Reichswehr Para documentação comprovatória do plano RõhmSchleicher ver Nazi conspiracy V 466 ss Ver também Heiden op cit p 450 O próprio Róhm fala com orgulho das suas negociações com Schleicher que segundo ele 367 nazista em seus próprios termos de filosofia política da ralé26 e não perceberam o apoio independente e espontâneo das massas aos novos líderes da ralé nem o genuíno talento desses líderes para a criação de novas formas de organização A ralé enquanto força motriz das massas já não era o agente da burguesia nem de ninguém a não ser das próprias massas Os movimentos totalitários dependiam menos da falta de estrutura de uma sociedade de massa do que das condições específicas de uma massa atomizada e individualizada como se pode constatar por uma comparação do nazismo com o bolchevismo que surgiram em seus respectivos países em circunstâncias muito diversas A fim de transformar a ditadura revolucionária de Lênin em completo regime totalitário Stálin teve primeiro de criar artificialmente aquela sociedade atomizada que havia sido preparada para os nazistas na Alemanha por circunstâncias históricas A vitória surpreendentemente fácil da Revolução de Outubro ocorreu num país onde a burocracia despótica e centralizada governava uma massa populacional desestruturada que não se enquadrava organizacionalmente nem nos vestígios das ordens feudais rurais nem nas classes capitalistas urbanas nascentes e débeis Quando Lênin declarou que em nenhuma outra parte do mundo teria sido tão fácil galgar o poder e tão difícil conserválo sabia não só da fraqueza da classe operária russa mas também das anárquicas condições sociais em geral que propiciavam mudanças súbitas Desprovido do instinto de um líder de massas pois não era orador e tinha o vezo de confessar e analisar publicamente os próprios erros o que atentava contra as regras da demagogia Lênin se apegou imediatamente a toda diferenciação possível fosse social nacional ou profissional que pudesse dar alguma estrutura à população e parecia estar convencido de que só essa estratificação podia salvar a revolução Legalizou a anárquica expropriação dos donos de terra pelos camponeses e assim estabeleceu na Rússia pela primeira vez e provavelmente a última aquela classe camponesa emancipada que desde a Revolução Francesa havia sido o mais firme esteio dos Estadosnações ocidentais Tentou fortalecer a classe trabalhadora encorajando os sindicatos independentes Tolerou a tímida aparição de uma nova classe média proveniente da NEP Nova Política Econômica após o fim da guerra civil Introduziu outras formas de distinção organizando e às foram iniciadas em 1931 Schleicher havia prometido colocar a SA sob o comando dos oficiais do Reichswehr em caso de emergência Ver Die Memoiren des Síabschefs Rohm As memórias do comandante Rôhm Saarbrücken 1934 p 170 O caráter militar da SA moldado por Rõhm e constantemente combatido por Hitler continuou a ditar o seu vocabulário mesmo depois da liquidação da facção de Rõhm Ao contrário dos SS os membros da SA sempre insistiram em que eram os representantes da vontade militar da Alemanha e para eles o Terceiro Reich era uma comunidade militar apoiada em duas colunas o Partido e a Wehrmacht ver Handbuch der SA Berlim 1939 e Victor Lutze Die Sturmabteilungen As Seções de Assalto ou seja a SA em Grundlagen Aufbau und Wirtschaftsordnung des nationalsozialistischen Staates n 7a 26 A autobiografia de Rõhm é em especial um verdadeiro clássico desse tipo de literatura 368 vezes até inventando o maior número possível de nacionalidades fomentando a consciência nacional e a percepção de diferenças históricas e culturais mesmo entre as tribos mais primitivas da União Soviética Parece claro que nessas questões políticas puramente práticas Lênin seguiu seus instintos de estadista e não as suas convicções marxistas de qualquer forma a sua política demonstra que temia mais a ausência de uma estrutura social ou de outra natureza do que cpossível desenvolvimento de tendências centrífugas nas nacionalidades recémemancipadas ou mesmo o crescimento de uma nova burguesia a partir das classes média e camponesa recém estabelecidas Sem dúvida Lênin sofreu a suajnaior derrota quando com o espoucar da guerra civil o supremo poder que ele originalmentepianejava concentrar nos Sovietes passou definitivamente às mãos da burocracia do Partido mas mesmo isto trágico como era para o curso da Revolução não teria levado necessariamente ao totalitarismo Uma ditadura unipartidária acrescentava apenas mais uma classe à estratificação do país já em curso isto é a burocracia que segundo os críticos socialistas da revolução possuía o Estado como propriedade privada Marx27 No momento da morte de Lênin os caminhos ainda estavam abertos A formação de operários camponeses e classes médias não precisaria levar à luta de classes que havia sido característica do capitalismo europeu A agricultura ainda podia ser desenvolvida numa base coletiva cooperativa ou privada e a economia nacional ainda estava livre para seguir um padrão capitalista estatalcapitalista ou de mercado Nenhuma dessas alternativas teria destruído automaticamente a nova estrutura do país Todas essas novas classes e nacionalidades barravam o caminho de Stálin quando ele começou a preparar o país para o governo totalitário A fim de produzir uma massa atomizada e amorfa necessitava primeiro liquidar o resto de poder dos Sovietes que como órgão principal de representação nacional ainda tinham certa função e impediam o domínio absoluto da hierarquia do Partido Assim debilitou primeiro os Sovietes nacionais introduzindo neles células bolchevistas das quais sairiam com exclusividade os funcionários superiores para os comitês centrais28 Por volta de 1930 ps últimos vestígios das antigas instituições comunais haviam desaparecido em seu lugar existia urna 27 Os antistalinistas basearam a sua crítica do desenvolvimento da União Soviética nessa formulação marxista e até hoje continuam dominados por essa idéia Rakovsky escrevendo do seu exílio na Sibéria em 1930 é da seguinte opinião Sob as nossas vistas surgiu e está sendo formada uma ampla classe de diretores que tem suas subdivisões internas e que cresce através de cooptação calculada e nomeações diretas ou indiretas O que une essa classe original é uma forma também original de propriedade privada a saber o poder do Estado citado por Souvarine op cit p 564 Tratase de uma análise bastante precisa do desenvolvimento da era préstalinista Para a evolução da relação entre o partido e os sovietes que tem importância decisiva no curso da Revolução de Outubro verl Deutscher Theprophet armed Trotsky 18791921 1954 28 Em 1927 90 dos membros dos sovietes rurais e 75 dos seus presidentes não eram membros do Partido os comitês executivos das regiões eram formados por 50 de nãopartidários enquanto no Comitê Central 75 dos delegados eram membros do partido Ver o artigo Bolshevism de MauriceDobb naEncyclopedia of socialsciences 369 burocraeiapartidária firmemente centralizada cujas tendências para a russificàção não eram muito diferentes daquelas do regime czarista exceto que os novos burocratas já não tinham medo de quem soubesse ler e escrever O governo bolchevista empreendeu então a liquidação das classes e começou por motivos ideológicos e de propaganda com as classes proprietárias a nova classe média das cidades e os camponeses do interior Por serem numerosos e possuírem propriedades os camponeses haviam sido até então potencialmente a classe mais poderosa da União conseqüentemente a sua liquidação foi mais meticulosa e cruel que a de qualquer outro grupo e foi levada a cabo por meio de fome artificial e deportação a pretexto de expropriação dos kulaks e de coletivização A liquidação das classes média e camponesa terminou no início da década de 30 os que não se incluíam entre os muitos milhões de mortos ou milhões de deportados sabiam agora quem mandava neste país e haviam compreendido que as suas vidas e as vidas de suas famílias não dependiam dos seus concidadãos mas somente dos caprichos do governo aos quais tinham de enfrentar em completa solidão sem qualquer tipo de auxílio do grupo a que pertencessem Nem estatísticas nem documentos situam o momento exato em que a nova classe agrícola produzida pela coletivização e ligada por interesses comuns passou a representar um perigo latente para o governo totalitário devido ao seu número e posição vital da economia do país Mas para aqueles que sabem decifrar as informações oficiais do totalitarismo esse instante ocorrera dois anos antes da morte de Stálin quando ele propôs dissolver as fazendas coletivas e transformálas em unidades maiores Não sobreviveu para realizar esse plano dessa vez os sacrifícios teriam sido ainda mais altos e as caóticas conseqüências para a economia global ainda mais catastróficas do que por ocasião do extermínio da primeira classe camponesa mas não há motivo para julgar que ele não o teria conseguido nãojiá classe que não possa ser extinta quando se mata um número suficientemente grande de seus membros A próxima classe a ser liquidada como grupo era a dos operários Como classe eram mais débeis e ofereciam muito menor resistência que os camponeses porque a expropriação dos donos de fábricas que eles haviam realizado espontaneamente durante a Revolução ao contrário da expropriação dos donos de terra pelos camponeses havia sido imediatamente frustrada pelo governo que confiscara as fábricas como sendo propriedade do Estado sob o pretexto de que o Estado de qualquer modo pertencia ao proletariado O sistema stakha novista adotado no início da década de 30 eliminou a solidariedade e a consciência de classe dos trabalhadores pela concorrência feroz implantada pela solidificação de uma aristocracia operária separada do trabalhador comum por uma distância social mais aguda que a distância entre os trabalhadores e a gerência Esse processo foi completado em 1938 quando a criação do docu A Rosenberg A history ofbolshevism Londres 1934 cap VI descreve em detalhes como os membros do partido nos sovietes votando de acordo com as instruções que recebiam das autoridades permanentes do Partido destruíram internamente o sistema dos sovietes 370 mento de trabalho transformou oficialmente toda a classe operária russa num gigantesco corpo de trabalhadores forçados Finalmente veio a liquidação daquela burocracia que havia ajudado a executar as medidas anteriores de extermínio Stálin levou dois anos de 1936 a 1938 para se desfazer de toda a aristocracia administrativa e militar da sociedade jíOviética quase todas as repartições públicas fábricas entidades econômicas e culturais e agências governamentais partidárias e militares passaram a novas mãos quando quase a metade do pessoal administrativo do partido ou não Tiavia sido eliminada e foram liquidados mais de 50 de todos os membros do partido é pèlõ menos outros 8 milhões de pessoas29 A criação de um passaporte interno no qual tinham de ser registradas e autorizadas todas as viagens de uma cidade para outra completou a destruição da burocracia como classe No que diz respeito ao seu status jurídico a burocracia e os funcionários do partido estavam agora no mesmo nível dos operários eram também parte da vasta multidão de trabalhadores forçadosTussos e o seu status como cksüf privilegiada na sociedade soviética era mera lembrança do passado E como esse expurgo geral terminou com a liquidação das mais altas autoridades policiais as mesmas que antes haviam organizado o expurgo geral nem mesmo i s oficiais da GPU que haviam instaurado o terror podiam pensar que como grupo ainda representassem alguma coisa muito menos poder Nenhum desses imensos sacrifícios de vida humana foi motivado por uma raison détat no antigo sentido do termo Nenhuma das camadas sociais liquidadas era hostil ao regime nem era provável que se tornasse hostil num futuro previsível A oposição ativa e organizada havia cessado de existir por volta de 1930 quando Stálin em seu discurso no Décimo Sexto Congresso do Partido declarou ilegais as divergências ideológicas dentro do partido sendo que mesmo essa frouxa oposição mal pudera basearse em alguma classe existenteJerror ditatorial xjue difere do terror totalitário por ameaçar apenas adversários autênticos mas não cidadãos inofensivos e carentes de opiniões políticas havia sido suficientemente implacável para sufocar toda a atividade política ostensiva ou clandestina mesmo antes da morte de Lênin A intervenção do exterior que poderia apoiar um dos setores descontentes da população já não 29 Citamos esses algarismos do livro de Victor Kravchenko I chose freedom thepersonal andpolitical life ofa Soviet official Nova York 1946 pp 278 e 303 Tratase naturalmente de uma fonte altamente duvidosa Mas como no caso da Rússia soviética basicamente não se pode recorrer a não ser a fontes duvidosas e temos de confiar inteiramente em reportagens relatos e estimativas de um tipo ou de outro tudo o que podemos fazer é usar qualquer informação que pelo menos pareça ter alto grau de probabilidade Alguns historiadores acreditam que o método oposto ou seja usar exclusivamente o material fornecido pelo governo russo é mais fidedigno mas não é o caso porque o material oficial não passa de propaganda 30 O Relatório de Stálin ao Décimo Sexto Congresso denunciava o deviacionismo como reflexo da resistência dos camponeses e das classes pequenoburguesas nos escalões do partido Ver Leninism 1933 vol II cap III O curioso é que a oposição ficava indefesa contra esses ataques porque também os opositores e especialmente Trótski estavam sempre ansiosos por descobrir uma luta de classes por trás da luta de cliques Souvarine op cit p 440 371 constituía perigo em 1930 quando a União Soviética já reconhecida pela maioria dos Estados e firmemente implantada tornouse parceira do sistema internacional vigente Contudo se Hitler fosse um conquistador comum e não um governante totalitário rival poderia ter tido excelente oportunidade de conquistar pelo menos a Ucrânia com o consentimento de sua população Se politicamente o extermínio de classes não fazia sentido foi simplesmente desastroso para a economia soviética As conseqüências da fome artificialmente criada em 1933 foram sentidas durante anos em todo o país a introdução do sistema stakhanovista em 1935 com a arbitrária aceleração da produção individual resultou num desequilíbrio caótico da jovem indústria31 a liquidação da burocracia isto é da classe de gerentes e engenheiros das fábricas terminou privando as empresas industriais da escassa experiência e do pouco knowhow que a nova intelligentsia técnica russa havia conseguido adquirir Desde os tempos antigos a imposição da igualdade de condições aos governados constituiu um dos principais alvos dos despotismos e das tiranias mas essa equalização não basta para o governo totalitário porque deixa ainda intactos certos laços nãopolíticos entre os subjugados tais como laços de família é de interesses culturais comuns O totalitarismo que se preza deve chegar ao ponto em que tem de acabar com a existência autônoma de qualquer atividade que seja mesmo que se trate de xadrez Os amantes do xadrez por amor ao xadrez adequadamente comparados por seu exterminador aos amantes da arte por amor à arte32 demonstram que ainda não foram absolutamente atomizados todos os elementos da sociedade cuja uniformidade inteiramente homogênea é a condição fundamental para o totalitarismo Do ponto de vista dos governantes totalitários uma sociedade dedicada ao xadrez por amor ao xadrez difere apenas um pouco da classe de agricultores que o são por amor à agricultura embora seja menos perigosa Himmler definiu muito bem o elemento da SS como o novo tipo de homem que em nenhuma circunstância fará jamais alguma coisa apenas por amor a essa coisa33 A atomização da massa na sociedade soviética foi conseguida pelo habilidoso uso de repetidos expurgos que invariavelmente precediam o verdadeiro extermínio de um grupo A fim de destruir todas as conexões sociais e familiares os expurgos eram conduzidos de modo a ameaçarem com o mesmo destino o acusado e todas as suas relações desde meros conhecidos até os parentes e amigos íntimos A culpa por associação é uma invenção engenhosa e sim 31 Kravchenko op cit p 187 32 Souvarine op cit p 575 33 A senha da SS formulada pelo próprio Himmler começa com as palavras Não exisfe tarefa dedicada a si mesma Ver Gunter dAlquen Die SS em Schriften der Hochschule für Politik Escritos da Escola Superior de Política 1939 Os panfletos publicados pela SS para o consumo interno repetidamente insistem na absoluta necessidade de se compreender a futilidade de tudo o que venha a ser um fim por si mesmo ver Der Reichsführer SS und Chef der deutschen Polizei O líder nacional da SS e chefe da polícia alemã sem data exclusivamente para uso interno da polícia 372 les Jogo que um homemé acusado os seus antigos amigos se transformam nos mais amargos inimigos para salvar a própria pele prestam informações e acorrem com denúncias que corroboram provas inexistentes a única maneira que encontram de demonstrarem a sua própria fidelidade Em seguida tentam provar que a sua amizade com o acusado nada mais era que um meio de espionálo e delatálo como sabotador trotskista espião estrangeiro ou fascista Uma vez que o mérito é julgado pelo número de denúncias apresentadas contra os camaradas34 é óbvio que a mais elementar cautela exige que se evitem se possível todos os contatos íntimos não para evitar que outros descubram os pensamentos secretos mas para eliminar em caso quase certo de problemas futuros a presença daqueles que sejam obrigados pelo perigo da própria vida à necessidade de arruinar a de outrem Em última análise foi através do desenvolvimento desse artifício até os seus máximos e mais fantásticos extremos que os governantes bolchevistatf conseguiram criar uma sociedade atomizada e individualizada como nunca se viu antes e a qual nenhum evento ou catástrofe poderiam por si só ter suscitado Os movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos atomizados e isolados Distinguemse dos outros partidos e movimentos pela exigência de lealdade total irrestrita incondicional e inalterável de cada membro individual Essa exigência é feita pelos líderes dos movimentos totalitários mesmo antes de tomarem o poder e decorre da alegação já contida em sua ideologia de que a organização abrangerá no devido tempo toda a raça humana Con tudo onde o governo totalitário não é preparado por um movimento totalitário como foi o caso da Rússia em contraposição com a Alemanha nazista o movimento tem de ser organizado depois e as condições para o seu crescimento têm de ser artificialmente criadas de modo a possibilitar a lealdade total que é a base psicológica do domínio total Não se pode esperar essa lealdade a não ser de seres humanos completamente isolados que desprovidos de outros laços sociais deJamília amizade camaradagem só adquirem o sentido de terem lugar neste mundo quando participam de um movimento pertencem ao partido A lealdade total só é possível quando a fidelidade é esvaziada de todo o seu conteúdo concreto que poderia dar azo a mudanças de opinião Os movimentos totalitários cada um ao seu modo fizeram o possível para se livrarem de programas que especificassem um conteúdo concreto herdados de estágios anteriores e nãototalitários da sua evolução Por mais radical que seja todo objetivo político que não inclua o domínio mundial todo programa político definido que trate de assuntos específicos em vez de referirse a questões ideológicas que serão importantes durante séculos é um entrave para o totalitarismo A grande realização de Hitler ao organizar o movimento nazista que ele gradualmente construiu a partir de um pequeno partido tipicamente nacionalista formado por gente obscura e meio louca é que ele liberou o movi 34 A própria prática tem sido abundantemente documentada W Krivitsky em seu livro In Stalin s secret services Nova York 1939 remonta esta diretriz diretamente a Stálin i 373 mento do antigo programa do partido não por mudálo ou abolilo oficialmente mas simplesmente por recusarse a mencionálo ou discutir os seus pontos35 Nesse aspecto como em outros a tarefa de Stálin foi muito mais difícil o programa socialista do partido bolchevista era uma carga muito mais incômoda36 que os 25 pontos do programa do partido nazista redigidos por um economista amador e político maluco37 Mas Stálin após haver abolido as facções do partido conseguiu finalmente o mesmo resultado através dos constantes ziguezagues da linha partidária comunista e da constante reinterpretação e aplicação do marxismo o que esvaziava a doutrina de todo o seu conteúdo já que não era possível prever o rumo ou ação que ela ditaria O fato de que o mais perfeito conhecimento do marxismo e do leninismo já não servia de guia para a conduta política e de que pelo contrário só era possível seguir a linha do partido se se repetisse a cada manhã o que Stálin havia dito na véspera resultou naturalmente no mesmo estado de espírito na mesma obediência concentrada imune a qualquer tentativa de se compreender o que se estava fazendo expressa pelo engenhoso lema de Himmler para os homens da SS Minha honra é a minha lealdade38 A falta de um programa partidário ou o fato de se ignorálo não é por si só necessariamente um sinal de totalitarismo O primeiro a considerar pro gramas e plataformas como desnecessários pedaços de papel e embaraçosas promessas não condizentes com o estilo e o ímpeto de um movimento foi Mussolini com a sua filosofia fascista de ativismo e inspiração no próprio momento histórico39 Todo líder da ralé é caracterizado pela mera sede de poder e pelo 35 Hitler escreveu em Mein Kampf 2 vols 1 edição alemã 1925 e 1927 respectivamente que era melhor ter um programa antiquado do que permitir fcma discussão de programa livro II cap V Pouco depois declararia publicamente Quando tomarmos o governo o programa virá por si mesmo O primeiro passo deverá ser uma inconcebível onda de propaganda Isto é uma ação política que pouco teria a ver com os outros problemas do momento Ver Heiden op cit p 203 36 Souvarine sugere erradamente em nossa opinião que já Lênin havia abolido o papel de um programa partidário Nada podia mostrar mais claramente que o bolchevismo como doutrina não existia a não ser na cabeça de Lênin todo bolchevista se fosse deixado sozinho desviavase da linha de sua facção pois o que unia esses homens era o seu temperamento e a autoridade de Lênin e não as idéias op cit p 85 37 O programa de Gottfried Feder para o partido nazista com os seus famosos 25 pontos teve papel mais importante na literatura acerca do movimento do que no próprio movimento 38 O impacto do lema formulado pelo próprio Himmler é difícil de traduzir Em alemão Meine Ehre heisst Treue indica uma devoção e uma obediência absolutas que transcendem o significado da mera disciplina ou fidelidade pessoal Nazi conspiracy cujas traduções de documentos alemães e da literatura nazista são uma fonte indispensável de material mas que infelizmente são muito irregulares traduz a senha da SS como Minha honra significa fidelidade V 346 39 Mussolini foi provavelmente o primeiro líder de partido a rejeitar conscientemente um programa formal e substituílo apenas pela liderança e pela ação inspiradas Por trás dessa atitude estava a noção de que a atualidade do próprio momento era o principal elemento de inspiração ao qual um programa partidário somente poderia prejudicar A filosofia do fascismo italiano foi expressa pelo atualismo de Gentile e não pelos mitos de Sorel Comparese também o artigo Fascism da Encyclopedia of social sciences O programa de 1921 foi formulado quando o movimento existia havia apenas dois anos e continha na maior parte a sua filosofia nacionalista 374 desprezo à tagarelice quando se lhe pergualaoquepreteade fazer comele O verdadeiro objetivo do fascismo era apenas a tomada do poder e a instalação da elite fascista no governo O totalitarismo jamais se contenta em governar por meios externos ou seja através do Estado e de uma máquina de violência graças à sua ideologia peculiar e ao papel dessa ideologia no aparelho de coação o totalitarismo descobriu um meio de subjugar e aterrorizar os seres humanos internamente Neste sentido elimina a distância entre governantes e governados e estabelece uma situação na qual o poder e o desejo de poder tal como os entendemos não representam papel algum ou na melhor das hipóteses têm um papel secundário Essencialmente o líder totalitário é nada mais e nada menos que o funcionário das massas que dirige não é um indivíduo sedento de poder impondo AOS seus governados uma vontade tirânica e arbitrária Como simples funcionário pode ser substituído a qualquer momento e depende tanto do desejo das massas que ele incorpora como as massas dependem dele Sem ele elas não teriam representação externa e não passariam de um bando amorfo sem as massas o líder seria uma nulidade Hitler que conhecia muito bem essa interdependência exprimiua certa vez num discurso perante a SA Tudo o que vocês são o são através de mim tudo o que eu sou sou somente através de vocês40 Infelizmente nossa tendência é dar pouca importância a declarações deste tipo ou interpretálas erradamente Na tradição política do Ocidente41 a ação é definida em termos de dar e executar ordens Mas esta idéia sempre pressupôs alguém que comanda que pensa e deseja e i em seguida impõe o seu pensamentos o seu desejo sobre um grupo destituído de pensamento e de vontade seja por meio da persuasão da autoridade ou da violência Hitler porém era da opinião de que até mesmo o pensamento só existe em virtude da formulação ou execução de uma ordem42 eliminando assim mesmo teoricamente de um lado a diferença entre pensar e agir e do outro a diferença entre governantes e governados Nem o nacionalsocialismo nem o bolchevismo jamais proclamaram uma nova forma de governo ou afirmaram que o seu objetivo seria alcançado com a tomada do poder e o controle da máquina estatal Sua idéia de domínio a dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida43 é algo que nenhum Estado ou mecanismo de violência jamais pôde conseguir mas que é realizável por um movimento totalitário constantemente acionado A tomada do poder através dos instrumentos de violência nunca é um 40 Ernst Bayer Die SA Berlim 1938 Traduzido do Nazi conspiracy IV 783 41 Isso ocorre pela primeira vez na Política de Platão 305 onde a ação é interpretada em termos de archein eprattein de ordenar o início de um ato e de executar a ordem 42 Hitlers Tischgespràche p 198 43 Mein Kampf livro I cap XI Vejase também por exemplo Dieter Schwartz Angriffe auf die nationalsozialistische Weltanschauung Ataques à ideologia nacionalsocialista em Aus dem Schwarzen Korps n 2 1936 que responde à crítica óbvia de que o nacionalsocialismo após haver galgado o poder continuava a falar de luta Como ideologia Weltanschauung o nacionalsocialismo não abandonará a sua luta até que o modo de vida de cada indivíduo alemão tenha sido moldado segundo os seus valores fundamentais postos em prática a cada dia 375 fim em si mas apenas um meio para um fim e a tomada do poder em qualquer país é apenas uma etapa transitória e nunca o fim do movimento O fim prático do movimento é amoldar à sua estrutura o maior número possível de pessoas acionálas e mantêlas em ação um objetivo político que constitua a finalidade do movimento totalitário simplesmente não existe 2 A ALIANÇA TEMPORÁRIA ENTRE A RALÉ EA ELITE O que perturba os espíritos lógicos mais que a incondicional lealdade dos membros dos movimentos totalitários e o apoio popular aos regimes totalitários é a indiscutível atração que esses movimentos exercem sobre a elite e não apenas sobre os elementos da ralé da sociedade Seria realmente temerário atribuir à excentricidade artística ou à ingenuidade escolástica o espantoso número de homens ilustres que são simpatizantes companheiros de viagem ou membros registrados dos partidos totalitários Essa atração da elite é um indício tão importante para a compreensão dos movimentos totalitários embora não se possa dizer o mesmo dos regimes totalitários quanto a sua ligação com a ralé Denota a atmosfera específica o clima geral que propicia o surgimento do totalitarismo É preciso lembrar que a idade dos líderes dos movimentos totalitários e dos seus simpatizantes supera a dos membros das massas que organizam de modo que do ponto de vista cronológico as massas não precisam aguardar impotentes que os seus líderes surjam de uma sociedade de classes em declínio da qual são o produto mais importante Aqueles que voluntariamente abandonaram a sociedade antes do colapso das classes juntamente com a ralé que é o subproduto mais recente do domínio da burguesia estão prontos para aclamálos Os atuais governantes totalitários e os líderes dos movimentos totalitários têm ainda os traços característicos da ralé cuja psicologia e filosofia política são bastante conhecidas o que sucederá quando um autêntico homem da massa assumir o comando ainda não sabemos embora possamos supor que ele se assemelhe mais a um Himmler com a sua meticulosa e calculada correção do que a um Hitler com o seu fanatismo histérico e lembrará mais a teimosa obtusidade de um Molotov do que a crueldade sensual e vingativa de um Stálin A esse respeito a situação da Europa após a Segunda Guerra Mundial não foi muito diferente daquela que sucedeu à Primeira Do mesmo modo como na década de 20 foram formuladas as ideologias do fascismo bolchevismo e nazismo e seus respectivos movimentos foram liderados pela chamada geração de vanguarda por aqueles que haviam sido criados nos tempos de antes da guerra e se recordavam perfeitamente dessa época o clima político e intelectual do totalitarismo de pósguerra foi determinado por uma geração que conheceu a época anterior a 1939 Isso se aplica especialmente à França onde o colapso do sistema de classes ocorreu após a Segunda Guerra e não após a Primeira Os Udrdsjnoyinaenjtos totalitários exatamente como os homens da ralé e os aventureiros da era imperiaíista têm em comum com os seus simpatizantes 376 intelectuais o fato de que uns eoutros já estavam fora do sistema de classes e nacionalidades da respeitável sociedade européia antes que esse sistema entrasse em colapso Quando a falsa respeitabilidade cedeu ao desespero da anarquia esse colapso pareceu oferecer a primeira grande oportunidade tanto para a elite quanto para a ralé e obviamente para os novos líderes das massas Suas carreiras lembram as dos primeiros líderes da ralé fracasso na vida profissional e social perversão e desastre na vida privada O fato de que as suas vidas antes do seu ingresso na carreira política haviam sido um fracasso ingenuamente apontado em seu detrimento pelos líderes mais respeitáveis dos velhos partidos era o ponto alto da sua atração para as massas Parecia demonstrar que individualmente eles encarnavam o destino da massa do seu tempo e que o desejo de tudo sacrificarem pelo movimento a devoção por aqueles que haviam sofrido alguma catástrofe a determinação de jamais cederem à tentação da segurança da vida normal e o desprezo pela respeitabilidade eram perfeitamente sinceros e não apenas inspirados por ambições passageiras Por outro lado a elite do pósguerra era apenas ligeiramente mais jovem que aquela geração que se deixara usar e abusar pelo imperialismo como jogadores espiões e aventureiros cavaleiros de armadura polida e matadoresdedragões por amor a carreiras gloriosas longe da respeitabilidade Compartilhavam com Lawrence da Arábia o anseio de perderem o seu eu e sentiam violenta repulsa por todos os padrões existentes e por toda autoridade constituída Se ainda não tinham esquecido a idade de ouro da segurança lembravam melhor ainda o quanto a haviam odiado e como se haviam entusiasmado com a deflagração da Primeira Guerra Mundial Não foi somente Hitler nem somente os fracassados que agradeceram a Deus de joelhos quando em 1914 a mobilização varreu a Europa44 Nem ao menos precisaram censurarse por terem sido presa fácil da propaganda chauvinista ou das explicações mentirosas a respeito do caráter puramente defensivo da guerra A elite partiu para a guerra na exultante esperança de que tudo o que conhecia toda a cultura e textura da vida desmoronaria em tempestades de aço Ernst Jünger Nas palavras cuidadosamente escolhidas de Thomas Mann a guerra era castigo e purificação a guerra em si e não as vitórias é que inspirava o poeta Ou nas palavras de um estudante da época o que importa não é o objeto pelo qual se faz o sacrifício mas a eterna disposição de fazêlo ou ainda nas palavras de um jovem trabalhador não importa que a gente viva ou não alguns anos a mais A gente quer ter alguma coisa que possa dizer que fez na vida45 E 44 Ver a descrição que Hitler faz de suas reações ao eclodir a Primeira Guerra Mundial Mein Kampf livro 1 cap V 45 Ver a coleção de artigos sobre a crônica interna da Primeira Guerra Mundial por Hanna Hafkesbrink Unknown Germany New Haven 1948 pp 43 45 e 81 respectivamente Tratase de trabalho de profundo valor que nos revela os fatores imponderáveis da atmosfera histórica e que torna deplorável a ausência de estudos semelhantes para a França Inglaterra e Itália 377 muito antes que um dos simpatizantes intelectuais do nazismo dissesse quando ouço a palavra cultura puxo o revólver os poetas já haviam proclamado a sua repulsa pela cultura de lixo e poeticamente invocavam os bárbaros citas negros e indianos para esmagála46 Tachar simplesmente de acesso de niilismo esta violenta insatisfação com a era que precedeu a guerra e as subseqüentes tentativas de restaurála de Nietzsche e Sorel a Pareto de Rimbaud e T E Lawrence a Jünger Brecht e Malraux de Bakúnin e Nechayev a Alexander Blok seria ignorar quão justificada pode ser a repulsa numa sociedade inteiramente impregnada com a atitude ideológica e os padrões morais da burguesia Contudo também é verdade que a geração de vanguarda em agudo contraste com os pais espirituais que ela mesma havia escolhido estava completamente absorvida pelo desejo de ver a ruína de todo este mundo de segurança falsa cultura falsa e vida falsa Esse desejo era tão forte que o seu impacto e eloqüência eram maiores que os dè todas as tentativas anteriores de transformação de valores como a de Nietzsche ou de reorganização da vida política como indica a obra de Sorel ou de restauração da autenticidade humana como em Bakúnin ou de apaixonado amor pela vida na pureza das aventuras exóticas de Rimbaud A destruição sem piedade o caos e a ruína assumiam a dignidade de valores supremos47 Çuião genuínos eram esses sentimentos prova o fato de que muito poucos dessa geração perderam o seu entusiasmo pela guerra ao experimentarem pessoalmente os seus horrores Os sobreviventes das trincheiras não se tornaram pacifistas Conservaram carinhosamente aquela experiência que segundo pensavam podia separálos definitivamente do odiado mundo da respeitabilidade Apegaramse às lembranças de quatro anos de vida nas trincheiras como se fossem um critério objetivo para a criação de uma nova elite Nem cederam à tentação de idealizar esse passado pelo contrário os adoradores da guerra eram os primeiros a admitir que na era da máquina a guerra certamente não podia gerar virtudes como o cavalheirismo a coragem a honra e a hombridade48 mas apenas impunha ao homem a experiência da destruição pura e simples juntamente com a humilhação de serem apenas peças da grande máquina da carnificina Essa geração recordava a guerra como o grande prelúdio do colapso das classes e da sua transformação em massas A guerra com a sua arbitrariedade 46 Ibidpp201 47 Tudo começava com uma sensação de completo alheamento em relação à vida normal Escreveu Rodolf Binding por exemplo Cada vez mais fazemos parte dos mortos dos alienados porque a grandeza do que ocorre nos aliena e separa e não dos banidos cuja volta é possível ibid p 160 Uma curiosa reminiscência da pretensão da elite da geração das trincheiras pode ainda ser encontrada no relato de Himmler sobre a forma de seleção para a reorganização da SS o processo de seleção mais severo é proporcionado pela guerra pela luta de vida e morte Nesse processo o valor do sangue se manifesta pela realização Mas a guerra é uma circunstância excepcional e era preciso encontrar uma forma de seleção contínua também em tempos de paz opcit 48 Ver por exemplo Ernst Jünger The storm ofsteel Londres 1929 378 constante e assassina tornouse o símbolo da morte a grande niveladora49 e portanto a mãe da nova ordem mundial A ânsia de igualdade e justiça o desejo de transcender os estreitos e inexpressivos limites de classes de abandonar privilégios e preconceitos estúpidos pareciam encontrar na guerra um modo de fugir às velhas atitudes condescendentes de piedade pelos oprimidos e deserdados Em épocas de crescente miséria e desamparo individual é tão difícil resistir à piedade quando ela se transforma em paixão como deixar de condenar a sua própria universalidade que parece matar a dignidade humana mais definitivamente que a própria miséria Nofrpfimeiros anosde sua carreira quando a restauração do status quo europeu ainda constituía a mais séria ameaça às ambições da ralé50 Hitler apelou quase exclusivamente para esses sentimentos da geração de vangustdaCo peculiar desprendimento do homem da massa parecia corresponder ao desejo de anonimato ao desejo de ser apenas um número e funcionar apenas como uma peça para que se pudesse apagar a sua falsa identificação com tipos específicos ou funções predeterminadas na sociedade A guerra havia sido sentida como aquela ação coletiva mais poderosa de todas que obliterava as diferenças individuais de sorte que até mesmo o sofrimento que tradicionalmente distinguia os indivíduos com destinos próprios não intercambiáveis podia agora ser interpretado como instrumento de progresso histórico51 A elite do pósguerra desejava incorporarse a qualquer massa sem distinções nacionais Um tanto paradoxalmente a Primeira Guerra Mundial havia quase liquidado os sentimentos nacionais da Europa onde entre as duas guerras era muito mais importante haver pertencido à geração das trincheiras não importa de que lado do que ser alemão ou francês52 Os nazistas basearam toda a sua propaganda nessa camaradagem indistinta nessa comunidade de destino e conquistaram grande número de organizações de veteranos de guerra em todos os países europeus demonstrando assim quão inexpressivos se haviam tornado os slogans nacionais mesmo entre os escalões da chamada ala direita que os empregavam em virtude da sua conotação de violência e não pelo que continham de especificamente nacional Nenhum dos elementos era muito novo nesse clima intelectual geral do pósguerra europeu Bakúnin já havia confessado que não quero ser eu quero 49 Hafkesbrink op cit p 156 50 Heiden op cit mostra a consistência com que Hitler preferia a catástrofe nos primeiros dias do movimento como receava uma possível recuperação da Alemanha Uma meia dúzia de vezes durante o Ruhrputsch com palavras diferentes declarou às suas tropas de choque quei Alemanha estava afundando Nossa tarefa é assegurar o sucesso do nosso movimento p 167 sucesso que naquele instante dependia do colapso da luta no Ruhr 51 Hafkesbrink op cit pp 1567 52 Esse sentimento já era generalizado durante a guerra quando Rudolf Binding escteveu Esta guerra não deve ser comparada a uma campanha Pois numa campanha a vontade de um líder se confronta com a de outro Mas nesta guerra ambos os adversários jazem por terra e somente a Guerra impõe a sua vontade ibid p 67 379 ser nós53 e Nechayev já havia pregado o evangelho do homem condenado que não tem quaisquer interesses pessoais quaisquer afazeres sentimentos ligações propriedades nem mesmo um nome que possa chamar de seu54 Os instintos antihumanistas antiliberais antiindividualistas e anticulturais da geração de vanguarda o seu brilhante e espirituoso louvor da violência do poderda crueldade haviam sido precedidos pelas pomposas e desajeitadas demonstrações científicas da elite imperialista de que a lei do universo é a luta de todos contra todos de que a expansão é uma necessidade psicológica antes de ser mecanismo político e de que o homem deve conduzirse de acordo com essas leis universais55 O elemento novo nas obras da geração de vanguarda era o seu alto nível literário e a grande profundidade da sua paixão Os escritores do pósguerra já não tinham necessidade das demonstrações científicas da genética e de pouco ou nada lhes serviam as obras completas de Gobineau ou de Houston Stewart Chamberlain que já pertenciam ao cabedal cultural dos filisteus Liam não Darwin mas o marquês de Sade56 Se acreditavam em leis universais certamente não estavam muito ansiosos em seguilas Para eles a violência o poder e a crueldade eram as supremas aptidões do homem que havia perdido definitivamente o seu lugar no universo e era demasiado orgulhoso para desejar uma teoria de força que o trouxesse de volta e o reintegrasse no mundo Contentavase em participar cegamente de qualquer coisa que a sociedade respeitável houvesse banido independentemente de teoria e conteúdo e promovia a crueldade à categoria de virtude maior porque contradizia a hipocrisia humanitária e liberal da sociedade Comparados aos ideólogos do século XIX cujas teorias parecem às vezes compartilhar tanto os homens dessa geração diferem principalmente por sua maior paixão e autenticidade A miséria haviaos tocado mais fundo as per 53 Bakúnin numa carta escrita a 7 de fevereiro de 1870 Ver Max Nomad Apostles of Revolution Boston 1939 p 180 54 O Catecismo da Revolução não foi escrito nem pelo próprio Bakúnin nem por seu discípulo Nechayev Quanto à questão da autoria e tradução do texto completo ver Nomad op cit pp 227 ss De qualquer forma o sistema de completo descaso por quaisquer dogmas de simples decência e integridade na atitude do revolucionário em relação aos outros seres humanos ficou na história da revolução russa com o nome de Nechayevshtchina ibid p 224 55 Ernest Seillière Mysticisme et domination essais de critique impérialiste 1913 é um dos principais teóricos políticos do imperialismo Ver também Cargill Sprietsma We imperialists notes on Ernest Seillières philosophy ofimperialism Nova York 1931 G Monod em La Revue Historique janeiro de 1912 e Louis Esteve Une nouvelle psychologie de Vimpérialisme Ernest Seillière 1913 56 Na França desde 1930 o marquês de Sade tornouse um dos autores favoritos da avantgarde literária Jean Paulhan em sua introdução a uma nova edição de Les infortunes de Ia vertu de Sade Paris 1946 observa Quando vejo hoje tantos escritores tentando conscientemente negar o artifício e o jogo literário em benefício do inexprimível un événement indicible ansiosamente buscando o sublime no infame o grande no subversivo perguntome se a nossa literatura moderna naqueles setores que nos parecem mais vitais ou pelo menos mais agressivos não se voltou inteiramente para o passado e se a causa disso não foi precisamente Sade Ver também Georges Batailte Le secret de Sade em La critique tomo III ns 156 17 1947 380 plexidades os inquietavam mais e a hipocrisia os feria mais mortalmente do que a todos os apóstolos da boa vontade e da irmandade humana E já não podiam fugir para terras exóticas já não podiam darse ao luxo de serem matadoresdedragões entre povos estranhos e apaixonantes Não havia meio de fugir à rotina diária de miséria humildade frustração e ressentimentos embelezada por uma falsa cultura de fala educada nenhum conformismo aos costumes desses países de fazdeconta podia salválos da crescente náusea que essa combinação inspirava continuamente Essa impossibilidade de fugir pelo mundo afora esse sentimento de cair repetidamente nas armadilhas da sociedade tão diferente das circunstâncias que haviam formado o caráter imperialista acrescentavam à velha paixão do anonimato e da perda de si mesmos uma tensão constante e um desejo de violência Sem a possibilidade de mudança radical de papel e de caráter o mergulho voluntário nas forças sobrehumanas da destruição parecia salválos da Videntificação automática com as funções preestabelecidas da sociedade e sua completa banalidade ao mesmo tempo em que parecia ajudar a destruir o próprio funcionamento Esses homens sentiamse atraídos pelo pronunciado ativismedos movimentos totalitários pela curiosa e aparentemente contraditória insistência no primado simultâneo da ação pura e da força irresistível da necessidade Era uma mistura que correspondia exatamente à experiência de guerra dageração de vanguarda à experiência da atividade constante dentro da estrutura da fatalidade inelutávei Além disso o ativismo parecia fornecer novas respostas à velha e incômoda pergunta quem sou eu que ocorre com redobrada persistência em tempos de crise Se a sociedade insistia em és o que pareces ser o ativismo do pósguerra respondia és o que fizeste por exemplo o homem que pela primeira vez atravessou o Atlântico num aeroplano como em Der Flüg der Lindberghs resposta que após a Segunda Guerra Mundial foi repetida com uma pequena variação por Sartre és a tua vida em Huis cios A pertinência dessas respostas estava menos na sua validez como redefinições da identidade pessoal do que na sua utilidade para eventual fuga da identificação social da multiplicidade de papéis e funções intercambiáveis que a sociedade havia imposto A questão era fazer algo fosse heróico ou criminoso que nenhuma outra pessoa pudesse prever ou determinar O pronunciado ativismo dos movimentos totalitários sua preferência pelo terrorismo em relação a qualquer outra forma de atividade política atraíram da mesma forma a elite de intelectuais e a ralé precisamente porque esse terrorismo era tão diferente daquele das antigas sociedades revolucionárias Já não era uma questão de política calculada que via em atos terroristas o único meio de eliminar certas personalidades importantes que se haviam tornado símbolos de opressão O que era tão atraente é que o terrorismo se havia tornado uma espécie de filosofia através da qual era possível exprimir frustração ressentimento e ódio cego uma espécie de expressionismo político que tinha bombas porUnguagem que observava comrazer a publicidade dada a seus feitos estrondosos e que estava absolutamente disposto a pagar com a vida o fato de 381 conseguir impingir às camadas normais da sociedade o reconhecimento da existência de alguém Foi esse mesmo espírito e esse mesmo jogo que levaram Goebbels muito antes da derrota final da Alemanha nazista a anunciar com óbvio deleite que os nazistas em caso de derrota saberiam fechar a porta atrás de si de modo a não serem esquecidos durante séculos Contudo se existe um critério válido para distinguir a elite da ralé na atmosfera prétotalitária é aqui que podemos encontrálo o que buscava a ralé e o que Goebbels expressou de modo tão preciso era o acesso à história mesmo ao preço da destruição A sincera convicção de Goebbels de que a maior felicidade que um homem pode experimentar hoje é ser um gênio ou servir a um gênio57 era típica da ralé mas não da massa nem da elite simpatizante Esta última pelo contrário levava muito a sério o anonimato ao ponto de negar seriamente a existência do gênio todas as teorias da arte dos anos 20 tentaram desesperadamente provar que a excelência resulta da habilidade do artesanato da lógica e da realização das potencialidades do material58 A ralé e não a elite sentiase fascinada pelo radiante poder da fama Stefan Zweig e aceitava entusiasticamente a idolatria do gênio que caracterizara o extinto mundo burguês Nisso a ralé do século XX seguiu fielmente o padrão dos antigos parvenusTque também haviam descoberto que a sociedade burguesa abria mais facilmente as portas ao fascinante anormal ou seja ao gênio ao homossexual ou ao judeu do que ao simples mérito O desprezo que a elite nutria pelo gênio e o seu desejo de anonimato ainda revelavam um espírito que nem as massas nem a ralé estavam em posição de compreender e que nas palavras de Robespierre tentava afirmar a grandeza do homem contra a pequenez dos grandes A despeito dessa diferença entre a elite e a ralé não há dúvida de que a elite se deleitava sempre que o submundo forçava a sociedade respeitável através do terror a aceitálo em pé deigualdade Os membros da elite concordavam em pagar o preço que era a destruição da civilização pelo prazer de ver como aqueles que dela haviam sido excluídos injustamente no passado agora penetravam nela à força Não se ofendiam muito com as monstruosas contrafações da história perpetradas por todos os regimes totalitários e claramente perceptíveis na propaganda totalitária Estavam convencidos de que a historiografia tradicional era de qualquer forma uma fraude pois havia excluído da memória da humanidade os subprivilegiados e os oprimidos Aqueles a quem a sua própria época rejeitava eram geralmente esquecidos pela história e o insulto aliado ao crime sempre perturbou todas as consciências sensíveis desde que desapareceu a fé num mundo em que os últimos seriam os primeiros As injustiças do passado e do presente tornaramse intoleráveis quando evaporouse a esperança de que a balança da justiça jamais viesse a endireitarse A tentativa de Marx de reescrever a história do mundo em termos de luta de classes fas 57 Goebbels op cit p 139 58 As teorias da arte de Bauhaus eram características nesse particular Ver também as observações de Bertolt Brecht sobre o teatro em Gesammelte Werke Londres 1938 382 cinou até mesmo aqueles que não acreditavam na correção da sua tese dada a intenção original de encontrar um meio de introduzir à força na lembrança da posteridade os destinos daqueles que haviam sido excluídos da história Aüaneíutemporáiiaentre a elite e a ralébaseavase em grande parte nesse prazer genuíno com que a primeira assistia à destruição da respeitabilidade pela segunda o que aconteceu por exemplo quando os barões do acopla Alemanha foram forçados a receber socialmente a Hitler o pintor de paredes e eyífacassado confesso ou quando os movimentos totalitários cometeram fraudes grosseiras e vulgares em todos os campos da vida intelectual reunindo todos os elementos subterrâneos e espúrios da história européia num conjunto que parecia fazer sentido Dgsserjònto de vista era sem dúvida agradável ver o bolchevismo e o nazismo passarem a repudiar até mesmo aquelas fontes de suas ideologias que já haviam conquistado algum reconhecimento em círculos acadêmicos e outros círculos oficiais O que inspirava os manejadores da história não era o materialismo dialético de Marx mas a conspiração das trezentas famílias não o pomposo cientificismo de Gobineau e de Chamberlain mas os Protocolos dos sábios do Sião não a demonstrável influência da Igreja Católica e o papel do anticlericalismo nos países latinos mas a literatura clandestina sobre jesuítas e maçons A finalidade das mais variadas e variáveis interpretações era sempre denunciar a história oficial como uma fraude expor uma esfera de in fluências secretas das quais a realidade histórica visível demonstrável e conhecida era apenas uma fachada externa construída com o fim expresso de enganar o povo A essa aversão da elite de intelectuais pela historiografia oficial à sua convicção de que nada impedia que a história fraudulenta como era fosse usada como brinquedo por alguns malucos deve acrescentarse o terrível fascínio exercido pela possibilidade de que gigantescas mentiras e monstruosas falsidades viessem a transformarse em fatos incontestes de que o homem pudesse ter a liberdade de mudar à vontade o seu passado e de que a diferença entre a verdade e a mentira pudesse deixar de ser objetiva e passasse aSer apenas uma questão de poder e de esperteza de pressão e de repetição infinita O que os fascinava não era a habilidade com que Hitler e Stálin mentiam mas o fato de que pudessem organizar as massas numa unidade coletiva para dar às suas mentiras uma pompa impressionante O que era simples fraude do ponto de vista factual e intelectual parecia receber a bênção da própria história quando toda a realidade dinâmica dos movimentos passou a sustentar a mentira fingindo tirar dela o entusiasmo necessário para a ação É desconcertante a atração que os movimentos totalitários exerceram sobre a elite enquanto e onde não houvessem tomado o poder porque as doutrinas patentemente vulgares arbitrárias e dogmáticas do totalitarismo são mais visíveis para o espectador que está de fora Essas doutrinas discrepavam tanto dos padrões intelectuais culturais e morais geralmente aceitos que se podia concluir que somente um defeito básico inerente do caráter do intelectual Ia trahison des clercs Julien Benda ou um doentio ódio do espírito contra si mesmo explicava o prazer com que a elite aceitava as idéias da ralé Cque 383 os portavozes do humanismo e do liberalismo geralmente esquecem no seu amargo desapontamento e no seu desconhecimento das experiências mais gerais da época é que numa atmosfera em que todos os valores e proposições tradicionais se haviam evaporado e no século XIX as ideologias se haviam refutado umas às outras e esgotado o seu apelo vital era de certa forma mais fácil aceitar proposições patentemente absurdas do que as antigas verdades que haviam virado banalidades exatamente porque não se esperava que ninguém levasse a sério os absurdos A vulgaridade com o seu cínico repúdio dos padrões respeitados e das teorias aceitas trazia em si um franco reconhecimento do que havia de pior e um desprezo por toda simulação que facilmente passava por bravura e novo estilo de vida No crescente triunfo das atitudes e convicções da ralé que não eram mais que as atitudes e convicções da burguesia despidas de fingimento aqueles que tradicionalmente odiavam a burguesia e tinham voluntariamente abandonado a sociedade respeitável viam apenas a falta de hipocrisia e de respeitabilidade não o seu conteúdo59 Desde que a burguesia afirmava ser a guardiã das tradições ocidentais e confundia todas as questões morais exibindo em público virtudes que não só não incorporava na vida privada e nos negócios mas que realmente desprezava parecia revolucionário admitir a crueldade o descaso pelos valores humanos e a amoralidade geral porque isso pelo menos destruía a duplicidade sobre a qual a sociedade existente parecia repousar Como era tentador assumir atitudes extremas na meialuz hipócrita dos duplos padrões de moral colocar publicamente no rosto a máscara da crueldade quando todos fingiam ser bondosos e ostentar a maldade num mundo que nem sequer era de maldade mas de mesquinhez A elite intelectual dos anos 20 que pouto sabia da antiga relação entre a ralé e a burguesia estava convencida de que o velho jogo de épater le bourgeois podia ser jogado com perfeição se o primeiro lance fosse chocar a sociedade com a caricatura irônica da sua própria conduta Naquela época ninguém podia imaginar que a verdadeira vítima dessa ironia seria a elite e não a burguesia A avantgarde ignorava que estava investindo não contra paredes mas contra portas abertas o sucesso unânime desmentiria a sua pretensão de ser uma minoria revolucionária e demonstraria que ela buscava apenas exprimir um novo espírito de massa que era o espírito do seu tempo A este respeito foi particularmente significativa a acolhida que a Dreigroschenoper de Brecht teve na Alemanha de antes de Hitler A peça mostrava bandidos como respeitáveis negociantes e respeitáveis negociantes como bandidos A ironia não atingiu o alvo pois os respeitáveis negociantes da platéia enxergaram naquilo uma visão profunda das coisas do mundo e a ralé tomou a 59 O seguinte trecho de autoria de Ròhm é típico do sentimento de quase toda a geração mais jovem e não apenas de uma elite a hipocrisia e o domínio do fariseu são as mais notáveis características da sociedade de hoje Nada podia ser mais falso do que a chamada moral da sociedade Os moços estão perdidos no mundo filisteu da dupla moral burguesa e já não sabem como distinguir entre a verdade e o erro Die Geschichte eines Hochverràters pp 267 e 269 A homossexualidade que reinava nesses círculos era também pelo menos em parte uma expressão do seu protesto contra a sociedade 384 peça como a aprovação artística do banditismo O tema musical da peça Erst koíhmt das Fressen dann kommt die Moral Antes vem a comida depois vem a moral recebeu o aplauso delirante de todos embora de cada um por motivos diferentes A ralé aplaudiu porque levou a sério a afirmação a burguesia aplaudiu porque fora lograda durante tanto tempo por sua própria hipocrisia que se cansara do esforço e via profunda sabedoria na expressão da banalidade da sua vida a elite aplaudia porque desmascarar a hipocrisia era um elevado e maravilhoso divertimento O efeito da obra foi exatamente o oposto do que Brecht pretendia A burguesia já não se chocava com coisa alguma acolhia com prazer a denúncia da sua filosofia cuja popularidade provava que sempre estivera certa de sorte que o único resultado político da revolução de Brecht foi encorajar todo o mundo a arrancar a máscara incômoda da hipocrisia e aceitar abertamente os padrões da ralé Cerca de dez anos mais tarde na França o Bagatelles pour un massacre no qual Céline propunha que se massacrassem todos os judeus provocou reação igualmente ambígua André Gide expressou publicamente o seu deleite nas páginas àaNouvelle RevueFrançaise naturalmente não porque quisesse matar os judeus da França mas porque exultava com a brutal confissão desse desejo e com a fascinante contradição entre a grosseria de Céline e a polidez hipócrita que cercava a questão judaica em todos os círculos respeitáveis O desejo da elite de desmascarar a hipocrisia era tão irresistível que nem mesmo a perseguição muito real que Hitler promoveu contra os judeus chegou a prejudicar essa exultação e a perseguição já estava em pleno andamento quando Céline escreveu o livro A aversão contra o filo semitismo dos liberais tinha muito mais a ver com essa reação do que o ódio aos judeusjalo notável deque as conhecidas opiniões de Hitler e de Stálin sobre arte e a perseguição que ambos moveram contra os artistas modernos nunca eliminaram a atração que os movimentos totalitários exerciam sobre os artistas da avantgarde pode ser explicado por um estado de espírito semelhante o que demonstra a falta de senso de realidade da elite e o seu pervertido desprendimento muito afins do mundo fictício em que viviam e da falta de interesses das massas por si mesmas A grande oportunidade dos movimentos totalitários e o motivo pelo qual uma aliança temporária entre a elite intelectual e a ralé pôde ocorrer foi que de certo modo elementar e indistinto os seus problemas se tornavam os mesmos e prefiguravam os problemas e a mentalidade das massas O irresistível apelo da falsa pretensão dos movimentos totalitários de haverem abolido a separação entre a vida pública e a vida privada e de haverem restaurado no homem uma totalidade misteriosa e irracional tinha muito a ver com a atração que a elite sentia pela ausência de hipocrisia da ralé e pela ausência de interesse das massas por si mesmas Desde que Balzac revelou as vidas privadas de figuras públicas da sociedade francesa e desde que a dramatização de Ibsen dos pilares da sociedade conquistou o teatro da Europa a questão da dupla moralidade tem sido um dos principais tópicos de tragédias e romances A dupla moralidade praticada pela burguesia tornouse o principal sinal do esprit de sérieux sempre pomposo e nunca sincero Essa divisão entre a 385 vida privada e a vida pública ou social nada tinha a ver com a justa separação entre as esferas pessoal e pública mas era antes o reflexo psicológico da luta do século XIX entre bourgeois e citoyens entre os burgueses que usavam e julgavam todas as instituições públicas pela medida dos seus interesses privados e os cidadãos responsáveis que se preocupavam com as coisas públicas do interesse de todos Nesse particular a filosofia política dos liberais segundo a qual a mera soma dos interesses individuais constitui o milagre do bem comum parecia apenas uma racionalização da temeridade com que se atendia aos interesses privados sem se atentar para o bem comum Contra o espírito de classe dos partidos europeus que sempre confessaram representar certos interesses e contra o oportunismo resultante da sua concepção de si mesmos como simples partes de um todo os movimentos totalitários afirmavam a sua superioridade pelo fato de conterem uma Weltanschauung através da qual tomariam posse do homem como um todo60 Nessa pretensão de totalidade os líderes da ralé dos movimentos totalitários formulavam a sua ideologia invertendo apenas a própria filosofia política da burguesia A classe burguesa tendo aberto caminho para si por meio da pressão social e freqüentemente através de chantagem econômica contra instituições políticas sempre acreditara que os órgãos públicos oficiais do poder fossem dirigidos por seus próprios interesses e influxos secretos Nesse sentido a filosofia política da burguesia era sempre totalitária supunha sempre que política economia e sociedade fossem uma coisa só na qual as instituições políticas serviam apenas de fachada para os interesses privados O duplo padrão da burguesia sua distinção entre a vida pública e a vida pessoal era uma concessão ao Estado nacional que havia desesperadamfente tentado manter separadas as duas esferas O que atraía a elite era o radicalismo em si As esperançosas previsões de Marx de que o Estado feneceria e surgiria uma sociedade sem classes não eram suficientemente radicais nem messiânicas Se Berdyaev tem razão quando afirma que os revolucionários russos sempre foram totalitários então a atração que a Rússia soviética exerceu sobre os simpatizantes intelectuais do nazismo e do comunismo residia precisamente no fato de que na Rússia a revolução era uma religião e uma filosofia e não um simples conflito interessado no lado social e político da vida61 A verdade é que a transformação das classes em massas e o colapso do prestígio e da autoridade das instituições políticas haviam provocado nos países da Europa ocidental condições semelhantes às que existiam na Rússia de modo que não foi por acaso que os seus revolucionários adquiriram o fanatismo revolucionário tipicamente russo que não esperava mudar as condições sociais ou políticas mas destruir completa 60 O papel da Weltanschauung na formação do movimento nazista foi acentuado muitas vezes pelo próprio Hitler É interessante notar que em Mein Kampf ele alega ter compreendido a necessidade de basear um partido numa Weltanschauung em virtude dâ superioridade dos partidos marxistas livro II cap I Weltanschauung e o Partido 61 NicolaiBerdyaev Theorigin of Russian Communism 1937 pp 1245 386 mente todos os credos valores e instituições existentes A ralé apenas aproveitouse desse novo estado de ânimo e provocou uma efêmera aliança entre revolucionários e criminosos aliança esta que também havia ocorrido em muitas facções revolucionárias da Rússia czarista mas que sempre estivera ausente do cenário europeu A perturbadora aliança entre a ralé e a elite e a curiosa coincidência das suas aspirações originamse do fato de que essas duas camadas haviam sido as primeiras a serem eliminadas da estrutura do Estadonação e da estrutura da sociedade de classes Se uma encontrou a outra com tanta facilidade embora temporariamente é porque ambas percebiam que representavam o destino da época que seriam seguidas por massas sem fim que mais cedo ou mais tarde a maioria dos povos europeus estaria com elas prontos a fazerem a sua revolução segundo pensavam Ambas estavam enganadas como se viu depois A ralé Q submundo da classe burguesa esperava que as massas impotentes a ajudassem a galgar o poder a apoiassem quando tentasse promover os seus interesses privados e qüè poderia simplesmente substituir as camadas mais antigas da sociedade burguesa instilando nela o espírito mais dinâmico do submundo Mas uma vez nq poder o totalitarismo logo aprendeu que não eram só as camadas da ralé que tinham espírito de iniciativa e que de qualquer forma essa iniciativa só podia ameaçar o domínio total do homem Por outro lado a falta de escrúpulos também não era privilégio da ralé e se necessário podia ser ensinada em tempo relativamente curto Para a máquina impiedosa do domínio e do extermínio as massas coordenadas da burguesia constituíam material capaz de crimes ainda piores que os cometidos pelos chamados criminosos profissionais contanto que esses crimes fossem bem organizados e assumissem a aparência de tarefas rotineiras Não foi por acaso portanto que os poucos protestos contra as atrocidades em massa dos nazistas contra os judeus e os povos da Europa oriental partiram não dos militares nem de qualquer outro setor das massas coordenadas compostas por homens respeitáveis mas precisamente daqueles primeiros camaradas de Hitler que eram típicos representantes da ralé62 E Himmler a partir 62 Houve por exemplo a curiosa intervenção de Welhelm Kube comissáriogeral em Minsk e um dos mais antigos membros do partido que em 1941 ou seja no começo do assassínio em massa escreveu a seu chefe Não há dúvida de que desejo cooperar com a solução da questão judaica mas aqueles que foram criados em nossa cultura são afinal de contas diferentes das hordas bestiais locais Devemos designar para a tarefa de matálos os lituanos e letões que são desprezados até mesmo pela população local Não poderia fazêlo Solicito que me sejam dadas instruções claras para tratar do assunto do modo mais humano possível em benefício do prestígio do nosso Rêich e do nosso Partido Essa carta foi publicada em Hitler sprofessors de Max Weinreich Nova York 1946 pp 1534 A intervenção de Kube foi prontamente rejeitada mas uma tentativa quase idêntica de salvar a vida de judeus dinamarqueses feita por W Best plenipotenciário do Reich na Dinamarca e conhecido nazista foi melhor sucedida Ver Nazi conspiracy V 2 Da mesma forma Alfred Rosenberg que havia pregado a inferioridade dos povos eslavos obviamente nunca imaginara que as suas teorias seriam um dia usadas para liquidálos Encar 387 de 1936 o homem mais poderoso da Alemanha não era um daqueles boêmios armados Heiden cujas características eram penosamente semelhantes às da elite intelectual Himmler era mais normal isto é mais filisteu do que qualquer outro dos primeiros líderes do movimento nazista63 Não era um boêmio como Goebbels nem criminoso sexual como Streicher nem louco como Rosenberg nem fanático como Hitler nem aventureiro como Gõring Demonstrou sua suprema capacidade de organizar as massas sob o domínio total partindo do pressuposto de que a maioria dos homens não são boêmios fanáticos aventureiros maníacos sexuais loucos nem fracassados mas acima e antes de tudo empregados eficazes e bons chefes de família O isolamento desses filisteus na vida privadajiua sincera devoção a questões de família e de carreira pessoal era o último e já degenerado produto da crença do burguês na suma importância do interesse privado O filisteu é o burguês isolado da sua própria classe o indivíduo atomizado produzido pelo colapso da própria classe burguesa O homem da massa a quem Himmler organizou para os maiores crimes de massa jamais cometidos na história tinha os traços do filisteu e não da ralé e era o burguês que em meio às ruínas do seu mundo cuidava mais da própria segurança estava pronto a sacrificar tudo a qualquer momento crença honra dignidade Nada foi tão fácil de destruir quanto a privacidade e a moralidade pessoal de homens que só pensavam em salvaguardar as suas vidas privadas Em poucos anos de poder e de coordenação sistemática os nazistas podiam anunciar com razão A única pessoa que ainda é um indivíduo privado na Alemanha é alguém que esteja dormindo64 Por outro lado para fazer justiça àqueles elementos da elite que vez por outra se deixavam seduzir pelos movimentos totalitários e que devido à sua capacidade intelectual são às vezes acusados de haver inspirado o totalitarismo é preciso dizer que nada do que esses homens desesperados do século XX fizeram ou deixaram de fazer teve qualquer influência sobre o totalitarismo embora tivesse muito a ver com as primeiras e bemsucedidas tentativas dos movimentos regado da administração da Ucrânia escreveu relatórios indignados sobre as condições que lá prevaleciam no outono de 1942 depois de haver tentado obter a intervenção direta do próprio Hitler Ver Nazi conspiracy III 83 ss e IV 62 Há naturalmente certas exceções a esta regra O homem que salvou Paris da destruição foi o general Von Choltitz que no entanto ainda temia ser destituído do comando por não haver cumprido as ordens embora soubesse que a guerra estava perdida havia anos Parece duvidoso que ele houvesse tido a coragem de resistir às ordens de transformar Paris num monte de ruínas sem o enérgico apoio de um velho nazista Otto Abetz embaixador alemão na França segundo o seu próprio testemunho durante o julgamento de Abetz em Paris 63 Um inglês Stephen H Roberts The house that Hitler built Londres 1939 descreve Himmler como um homem de fina cortesia e ainda interessado nas coisas simples da vida Não tem aquela pose dos nazistas que agem como se fossem semideuses Nenhum homem aparenta menos o cargo que exerce do que esse ditador da polícia alemã e estou convencido de que ninguém que eu tenha encontrado na Alemanha é mais normal pp 8990 Isso nos faz lembrar de modo curioso a observação da mãe de Stálin que segundo a propaganda bolchevista disse dele Um filho exemplar Quisera que todos fossem como ele Souvarine op cit p 656 64 Quem fez essa observação foi Robert Ley Ver KohnBramstedt op cit p 178 388 de fazerem o mundo exterior levar a sério as suas doutrinas Sempre que os movimentos totalitários tomavam o poder todo esse grupo de simpatizantes era descartado antes mesmo que o regime passasse a cometer os seus piores crimes A iniciativa intelectual espiritual e artística é tão perigosa para o totalitarismo como a iniciativa de banditismo da ralé e ambos são mais perigosos que a slmplèToposição política A uniforme perseguição movida contra qualquer for ma de atividade intelectual pelos novos líderes da massa devese a algo mais que o seu natural ressentimento contra tudo o que não podem compreender O domínio total não permite a livre iniciativa em qualquer campo de ação nem qualquer atividade que não seja inteiramente previsível O totalitarismo no poder invariavelmente substitui todo talento quaisquer que sejam as suas simpatias pelos loucos e insensatos cuja falta de inteligência e criatividade 4 aindaTíT melhor garantia de lealdade65 65 A política bolchevista que nesse particular é surpreendentemente coerente é bem conhecida e dispensa maiores comentários Picasso para citar o exemplo mais famoso não é apreciado na Rússia embora se tenha tornado comunista Ê possível que a súbita mudança de atitude de André Gide depois que viu a realidade bolchevique na Rússia soviética Retour de IVRSS em 1936 tenha definitivamente convencido Stálin da inutilidade dos artistas criativos mesmo como simpatizantes A política nazista diferia das medidas bolchevistas apenas no fato de que não matava os seus talentos Valeria a pena estudar em detalhe a carreira dos eruditos alemães comparativamente poucos que foram além da mera cooperação e ofereceram os seus serviços por serem nazistas convictos Weihreich op cit não distingue entre os professores que adotaram o credo nazista e os que deviam sua carreira exclusivamente ao regime omite as carreiras anteriores dos eruditos que se preocupavam com a situação e coloca assim indiscriminadamente conhecidos homens de grandes méritos na mesma categoria de fanáticos Interessantíssimo é o exemplo do jurista Carl Schmitt cujas engenhosas teorias acerca do fim da democracia e do governo legal ainda constituem leitura impressionante já em meados da década de 30 foi substituído pelo tipo nazista de teóricos políticos como Hans Frank que mais tarde foi governador da Polônia ocupada Gottfried Neesse e Reinhard Hoehn O último a cair em desgraça foi Walter Frank que havia sido antisemita convicto e membro do partido nazista antes da tomada do poder e que em 1933 foi diretor do recémfundado Reichsinstitut für Geschichte des Neuen Deutschlands Instituto do Reich para a História da Nova Alemanha com o seu famoso Forschungsabteilung Judenfrage Seção de Pesquisas para a Questão Judaica e editor da volumosa nove tomos obra Forschungen zur Judenfrage 193744 Em começos da década de 40 Frank teve de ceder a sua posição e influência a Alfred Rosenberg cujo Der Mythos des 20 Jahrhunderts O mito do século XX certamente não constitui nenhum exemplo de erudição O motivo pelo qual Frank não merecia a confiança dos nazistas era obviamente o fato de não ser charlatão O que nem a elite nem a ralé que abraçava o nacionalsocialismo com tanto fervor podia compreender era que não se pode abraçar esta Ordem por acaso Além e acima do desejo de servir está a implacável necessidade da seleção que não reconhece nem circunstâncias atenuantes nem clemência Der Weg der SS O caminho da SS emitido pela SS HauptamtSchulungsamt sem data p 4 Em outras palavras no tocante à seleção dos que desejavam unirse a eles os nazistas tomavam sua própria decisão independentemente do acidente das opiniões O mesmo parece aplicarse à seleção de bolchevistas para a polícia secreta F Beck e W Godin contam em Russian purge and the extraction of confessions 1951 p 160 que os membros da NKVD eram arregimentados dentre membros do partido que não tinham tido a menor oportunidade de se oferecerem para essa carreira 389 2 O MOVIMENTO TOTALITÁRIO 1 A PROPAGANDA TOTALITÁRIA jJomente a ralé e a elite podem ser atraídas pelo ímpeto do totalitarismo as massas têm de ser conquistadas por meio da propaganda Sob um governo constitucional e havendo liberdade de opinião os movimentos totalitários que lutam pelo poder podem usar o terror somente até certo ponto e como qualquer outro partido necessitam granjear aderentes e parecer plausíveis aos olhos de um público que ainda não está rigorosamente isolado de todas as outras fontes de informação Nos países totalitários a propaganda e o terror parecem ser duas faces da mesma moeda1 Isso porém só é verdadeiro em parte Quando o totalitarismo detém o controle absoluto substitui a propaganda pela doutrinação e emprega a violência não mais para assustar o povo o que só é feito nos estágios iniciais quando ainda existe a oposição política mas para dar realidade às suas doutrinas ideológicas e às suas mentiras utilitárias O totalitarismo não se contenta em afirmar apesar de prova em contrário que o desemprego não existe elimina de sua propaganda qualquer menção sobre os benefícios para os desempregados2 Igualmente importante é o fato de que a recusa em reconhecer o 1 Ver por exemplo E KohnBramstedt em Dictatorship andpoliticalpolice the technique ofcontrol byfear Londres 1945 pp 164 ss afirma que o terror sem a propaganda perderia muito do seu efeito psicológico enquanto a propaganda sem o terror cresce de impacto p 175 O que não é considerado nessa e em outras declarações que na sua maioria andam em círculos é o fato de que não apenas a propaganda política mas toda a moderna publicidade de massa contêm um elemento de ameaça que o terror por outro lado pode ser totalmente efetivo sem a propaganda desde que se trate apenas do terror político convencional da tirania Somente quando o terror objetiva coagir não apenas de fora mas como foi o caso de dentro quando o regime político quer mais do que poder somente então o terror precisa da propaganda Nesse sentido o teórico nazista Eugen Hadamovsky pôde dizer em Propaganda und nationale Macht Propaganda e poder nacional 1933 A propaganda e a violência nunca são contraditórias O uso da violência pode ser parte da propaganda p 22 2 Quando se anunciou oficialmente que o desemprego havia sido eliminado na Rússia soviética foram realmente eliminados como resultado desse sintoma todos os benefícios para os desempregados Anton Ciliga The Russian enigma Londres 1940 p 109 390 desemprego corrobora embora de modo inesperado a velha doutrina socialista de que quem não trabalha não come Ou para citar outro exemplo quando Stálin decidiu reescrever a história da Revolução Russa a propaganda da sua nova versão consistiu em destruir juntamente com os livros e documentos os seus autores e leitores a publicação em 1938 da nova história oficial do Partido Comunista assinalou o fim do superexpurgo que havia dizimado toda uma geração de intelectuais soviéticos Da mesma forma nos territórios ocupados da Europa oriental os nazistas se utilizaram no início de propaganda antisemita principalmente para assegurar um controle mais firme da população Não precisaram lançar mão do terror para nele apoiar a sua propaganda nem o fizeram Quando liquidaram a maioria dos intelectuais poloneses não o fizeram devido à sua oposição mas porque segundo a doutrina nazista os poloneses não tinham intelecto e quando planejaram levar para a Alemanha as crianças de olhos azuis e cabelos louros não pretendiam com isso aterrorizar a população mas apenas salvar o sangue germânico3 Por existirem num mundo que não é totalitário os movimentos totalitários são forçados a recorrer ao que comumejite chamamos de propaganda Más essa propaganda é sempre dirigida a um público de fora sejam as camadas nãototalitárias da população do próprio país sejam os países nãototalitários do exterior Essa área externa à qual a propaganda totalitária dirige o seu apelo pode variar grandemente mesmo depois da tomada do poder a propaganda totalitária pode ainda dirigirse àqueles segmentos da própria população cuja coordenação não foi seguida de doutrinação suficiente Nesse ponto os discursos de Hitler aos seus generais durante a guerra são verdadeiros modelos de propaganda caracterizados principalmente pelas monstruosas mentiras com 3 A chamada Operação Feno começou com um decreto datado de 16 de fevereiro de 1942 assinado por Himmler referente a indivíduos de raça germânica na Polônia Segundo o decreto as crianças de características arianas deveriam ser enviadas a famílias alemãs dispostas a aceitálas sem reserva por amor ao bom sangue que elas têm Documento de Nurembergue R 135 Parece que em junho de 1944 o Nono Exército seqüestrou aproximadamente 40 mil a 50 mil crianças transportandoas para a Alemanha Um relatório sobre o assunto remetido ao EstadoMaior Geral da Wehrmacht em Berlim por um funcionário chamado Brandenburg menciona planos semelhantes para a Ucrânia Documento PS 031 publicado por Léon Poliakov em Bréviaire de Ia haine p 317 O próprio Himmler fez várias referências a esse plano Ver Nazi conspiracy and aggression Office of the United States Chief of Counsel for the Prosecution of Axis Criminality U S Government Washington 1946 III 640 que contém excertos do discurso de Himmler proferido em Cracóvia em março de 1942 ver também os comentários sobre o discurso de Himmler em Bad Schachen de 1943 em KohnBramstedt op cit p 244 O modo de selecionar essas crianças pode ser deduzido pelos certificados médicos emitidos pela Seção Médica II em Minsk na BieloRússia em 10 de agosto de 1942 O exame racial de Natalie Harpf nascida a 4 de agosto de 1922 mostrou uma jovem normalmente desenvolvida de tipo predominantemente bálticooriental com traços nórdicos Exame de Arnold Coenies nascido a 19 de fevereiro de 1930 mostrou um garoto normalmente desenvolvido de doze anos de idade de tipo predominantemente oriental com traços nórdicos Assinado N Wc Documento nos arquivos do Yiddish Scientific Institute Nova YorknOccE3a 17 Quanto ao extermínio da intelectualidade polonesa que na opinião de Hitler podia ser liquidada sem escrúpulos ver Poliakov op cit p 321 e Documento NO 2471 391 que o Führer entretinha os seus convidados na tentativa de conquistálos4 A esfera externa pode também ser representada por grupos de simpatizantes que ainda não estejam preparados para aceitar os verdadeiros alvos do movimento E em muitos casos até mesmo certos membros do partido são considerados pelo círculo íntimo do Führer ou pelos membros das formações de elite como pertencentes a essa esfera externa e ainda necessitados de propaganda já que não podem ainda ser dominados com segurança Para que não se subestime a importância das mentiras da propaganda convém lembrar os muitos casos em que Hitler foi completamente sincero e brutalmente claro na definição dos verdadeiros objetivos do movimento os quais no entanto simplesmente deixaram de ser percebidos pelo público despreparado para tamanho despropósito5 Basicamente porém o domínio totalitário procura restringir os métodos propa gandísticos unicamente à sua política externa ou às ramificações do movimento no exterior a fim de lhes fornecer material adequado Sempre que a doutrinação totalitária no país de origem entra em conflito com a linha de propaganda para consumo externo como sucedeu na Rússia durante a guerra não quando Stálin se aliou a Hitler mas quando a guerra com Hitler fêlo passar para o lado das democracias a propaganda é explicada no país de origem como temporária manobra tática6 Na medida do possível estabelecese logo na fase anterior à tomada do poder a diferença entre a doutrina ideológica destinada aos iniciados do movimento que já não precisam de propaganda e a propaganda para o mundo exterior A relação entre a propaganda e a doutrinação depende 4 Ver Hitlers Tischgespráche No verão de 1942 ele ainda fala de expulsar até o último judeu para fora da Europa p 113 e de reinstalálos na Sibéria ou na África p 311 ou em Madagascar quando na realidade muito antes de invadir a Rússia provavelmente em 1940 já havia tomado a decisão quanto à solução final e havia mandado construir as câmaras de gás no outono de 1941 ver Nazi conspiracy and aggression II pp 265 ss III pp 783 ss Documento PS 1104 V pp 322 ss Documento PS 2605 Na primavera de 1941 Himmler já sabia que os judeus devem ser exterminados pois este é o desejo e ordem inequívoca do Führer Dossiê Kersten no Centre de Documentation Juive 5 A esse respeito há um relatório muito interessante datado de 16 de julho de 1940 sobre uma discussão no quartelgeneral do Führer na presença de Rosenberg Lammers e Keitel a que Hitler deu início declarando os seguintes princípios básicos Era essencial então não exibir nosso objetivo ulterior aos olhos de todo o mundo Portanto não deve ficar óbvio que os decretos que mantenham ordem nos territórios ocupados levem à solução final Idos judeus Todas as medidas necessárias execuções transferências de população etc podem ser e serão executadas apesar da letra dos decretos Seguese uma discussão que não faz qualquer referência às palavras de Hitler e da qual Hitler já não participa Ê óbvio que ele não foi compreendido Documento L 221 no Centre de Documentation Juive Paris 6 Quanto à convicção de Stálin de que Hitler não atacaria a Rússia ver Isaac Deutscher Stálin a political biography Nova York Londres 1949 pp 454 ss e especialmente a nota ao pé da página 458 Foi somente em 1948 que o chefe da Comissão de Planejamento do Estado o vicepremiê N Voznessensky revelou que os planos econômicos para o terceiro trimestre de 1941 haviam sido baseados na premissa de que haveria paz sendo que um novo plano adequado à guerra só havia sido elaborado após o início das hostilidades A suposição de Deutscher foi confirmada por relato de Khrushchev quanto à reação de Stálin ao ataque alemão contra a União Soviética Ver o seu Discurso sobre Stálin no Vigésimo Congresso transcrito pelo New York Times 5 de junho de 1956 392 do tamanho do movimento e da pressão externa Quanto menor o movimento mais energia despenderá em sua propaganda Quanto maior for a pressão exercida pelo mundo exterior sobre os regimes totalitários pressão que não é possível ignorar totalmente mesmo atrás da cortina de ferro mais ativa será a propaganda totalitária O fato essencial é que as necessidades da propaganda são sempre ditadas pelo mundo exterior por si mesmos os movimentos não propagam e sim doutrinam Por outro lado a doutrinação inevitavelmente aliada ao terror cresce na razão direta da força dos movimentos ou do isolamento dos governantes totalitários que os protege da interferência externa A propaganda é de fato parte integrante da 5guerra psicológica mas o terror o é mais Mesmo depois de atingido o seu objetivo psicológico o regime totalitário continua a empregar o terror o verdadeiro drama é que ele é aplicado contra uma população já completamente subjugada Onde o reino dolerror atinge a perfeição como nos campos de concentração a propaganda desaparece inteiramente na Alemanha nazista chegou a ser expressamente proibida7 Em outras palavras a propaganda é um instrumento do totalitarismo possivelmente o mais importante para enfrentar o mundo nãototalitário o terror ao contrário é a própria essência da sua forma de governo Sua existência não depende do número de pessoas que a infringem O terror como substituto da propaganda alcançou maior importância no nazismo do que no comunismo Os nazistas não cometeram atentados contra personalidades importantes como havia acontecido anteriormente em ondas de crimes políticos na Alemanha assassinatos de Rathenau e de Erzberger em vez disso matavam pequenos funcionários socialistas ou membros influentes dos partidos inimigos procurando mostrar à população o perigo que podia acarretar o simples fato de pertencer a um partido Esse tipo de terror dirigido contra a massa era valioso no sentido daquilo que um autor nazista chamou adequadamente de propaganda de força8 e aumentou progressivamente porque nem a polícia nem os tribunais processavam seriamente os criminosos políticos da chamada Direita Para a população em geral tornavase claro que o poder dos nazistas era maior que o das autoridades e que era mais seguro pertencer a uma organização paramilitar nazista do que ser um republicano leal Essa impressão foi grandemente reforçada pelo uso específico que os nazistas fizeram dos seus crimes políticos Sempre os confessavam publicamente nunca se desculpavam por excessos dos escalões inferiores essas justificativas eram usadas apenas pelos simpatizantes do nazismo e impressionavam 7 A educação nos campos de concentração consiste em disciplina e nunca em instrução baseada na ideologia uma vez que os prisioneiros em sua maioria têm almas de escravos Heinrich Himmler Nazi conspiracy IV 616 ss 8 Eugen Hadamovsky op cit é um dos mais importantes autores na literatura sobre propaganda totalitária Sem o dizer explicitamente Hadamovsky oferece uma inteligente e reveladora interpretação prónazista da exposição do próprio Hitler sobre o assunto em Propaganda e organização no livro II capítulo xi de Mein Kampf 2 vols 1 edição alemã 1925 e 1927 respectivamente Ver também F A Six Die politische Propaganda der NSDAP im Kampf um die MachtlA propaganda política do NSDAP na luta pelo poder 1936 pp 21 ss 393 a população por serem muito diferentes dos meros faladores dos outros partidos As semelhanças entre esse tipo de terror e o simples banditismo são claras demais para serem enumeradas Isto não significa que o nazismo era banditismo como às vezes se diz mas apenas que os nazistas sem o confessarem aprenderam tanto com as organizações dos gângsteres americanos quanto a sua propaganda confessadamente aprendeu com a publicidade comercial americana Contudo o que caracteriza a propaganda totalitária melhor do que as ameaças diretas e os crimes contra indivíduos é o uso de insinuações indiretas veladas e ameaçadoras contra todos os que não derem ouvidos aos seus ensinamentos seguidas de assassinato em massa perpetrado igualmente contra culpados e inocentes A propaganda comunista ameaça as pessoas com a possibilidade de perderem o trem da história de se atrasarem irremediavelmente em relação ao tempo de esbanjarem as suas vidas inutilmente tal como os nazistas as ameaçavam com uma existência contrária às eternas leis da natureza e da vida e com uma irreparável e misteriosa degeneração do sangue A forte ênfase que a propaganda totalitária dá à natureza científica das suas afirmações tem sido comparadaieertas técnicas publicitárias igualmente dirigidas às massas De fato os anúncios mostram o cientificismo com que um fabricante comprova com fatos algarismos e o auxílio de um departamento de pesquisa que o seu sabonete é o melhor do mundo9 Também é verdade que há um certo elemento de violência nos imaginosos exageros publicitários por trás da afirmação de que as mulheres que não usam essa determinada marca de sabonete podem viver toda a vida espinhentas e solteironas há um arrojado sonho monopolista o sonho de que algum dia o fabricante do único sabonete que evita espinhas tenha o poder de privar de maridos todas as mulheres que não o usem Tanto no caso da publicidade comercial quanto no da propaganda totalitária a ciência é apenas um substituto do poder A obsessão dos movimentos totalitários pelas demonstrações científicas desaparecejassim que eles assumem o poder Os nazistas dispensaram até mesmo os eruditos que procuraram servilos e os bolchevistas usam a reputação dos seus cientistas para finalidades completamente nãocientíficas transformandoos em charlatães Mas cessa aí a semelhança freqüentemente exagerada entre a publicidade e a propaganda de massa Os homens de negócio geralmente não se árrogam a profetas e não demonstram constantemente a correção de suas predições O cientificismo da propaganda totalitária é caracterizado por sua insistência quase exclusiva na profecia científica em contraposição com o apelo ao passado já fora de moda Nunca se percebe tão claramente a origem ideológica do socialismo e do racismo como quando os seus portavozes alegam ter descoberto 9 A análise de Hitler da Propaganda de guerra Mein Kampf livro I cap vi acentua o lado comercial da propaganda e usa exatamente o exemplo da publicidade de sabonetes Sua importância tem sido geralmente superestimada enquanto suas positivas idéias posteriores sobre Propaganda e organização foram negligenciadas 394 as forças ocultas que lhe trarão boa sorte na corrente da fatalidade As massas sentemse naturalmente atraídaspelos sistemas absolutistas que pretendem ver todos os eventos da história dependentesjdas grandes causas originais ligadas pela corrente da fatalidade corno que eliminando os homens da história dá raça humana Tocqueville Mas não se pode duvidar que a liderança nazista realmente acreditava em doutrinas como a que segue e não as usava apenas como propaganda Quanto mais fielmente reconhecemos e seguimos as leis da natureza e da vida tanto mais nos conformamos ao desejo do TodoPoderoso Quanto melhor conhecermos o desejo do TodoPoderoso maior será o nosso sucesso10 É evidente que o credo de Stálin pode ser expresso em duas sentenças muito parecidas Quanto mais fielmente reconhecemos e observamos as leis da história e da luta de classes mais nos conformamos ao materialismo dialético Quanto mais conhecermos o materialismo dialético maior será o nosso sucesson A propaganda totalitária aperfeiçoou o cientificismo ideológico e a técnica de afirmações proféticas a um ponto antes ignorado de eficiência metódica é absurdode conteúdo porque do ponto de vista demagógico a melhor maneira de evitar discussão étornar o argumento independente de verificação no presente e afirmar queó o futuro lhe revelará os méritos Contudo não foram as ideologias totalitárias que inventaram esse método e não foram elas as únicas a empregálo O cientificismo da propaganda de massa tem sido empregado de modo tão universal na política moderna que chegou a ser identificado como sintoma mais geral da obsessão com a ciência que caracterizou o Ocidente desde o florescimento da matemática e da física no século XVI Assim o totalitarismo parece ser apenas o último estágio de um processo durante o qual a ciência tornouse um ídolo que num passe de mágica cura os males da existência e transforma a natureza do homem12 Realmente há uma antiga ligação entre o cientificismo e o surgimento das massas O coletivismo das massas foi acolhido de bom grado por aqueles que viam no surgimento de leis naturais do desenvolvimento histórico a eliminação da incômoda imprevisibilidade das ações e da conduta do indivíduo13 Citase o exemplo de Enfantin que pressentia a chegada do tempo em que a arte de movimentar as massas estará tão 10 Ver o importante memorando de Martin Borman sobre A relação entre o nacionalsocialismo e o cristianismo em Nazi conspiracy VI 1036 ss Formulações semelhantes se repetem com freqüência na literatura panfletária publicada pela SS para a doutrinação ideológica de seus cadetes As leis da natureza estão sujeitas a uma vontade imutável que não pode ser influenciada Daí ser necessário reconhecer essas leis SSMann und Blutsfrage O SS e a questão do sangue emSchriftenreihefürdieweltanschaulicheSchulung der Ordnungspolizei Escritos para a instrução ideológica da policia 1942 Todas elas são meras variações de certas frases extraídas de Mein Kampf de Hitler das quais esta é citada como lema para o panfleto que acabamos de mencionar Quando o homem tenta lutar contra a lógica de ferro da natureza entra em conflito com os princípios básicos aos quais deve a sua própria existência como homem 11 J Stálin Leninism 1933 vol II capítulo iii 12 Eric Voegelin The origins of scientism em Social Research dezembro de 1948 13 Ver F A v Hayek The counterrevolution of science em Econômica vol VIII fevereiro maio agosto de 1941 p 13 395 perfeitamente desenvolvida que o pintor o músico e o poeta terão o poder de agradar e comover com a mesma certeza com que os matemáticos resolvem um problema geométrico ou um químico analisa qualquer substância Talvez tenha sido nesse instante que nasceu a propaganda moderna14 Contudo quaisquer que sejam as falhas do positivismo do pragmatismo e do behaviorismQx e por maior que seja a sua influência na formação do tipo de bom senso característico do século XIX não é de modo algum o produto canceroso do segmento utilitário da existêncials que caracteriza as massas atraídas pela propaganda totalitária e pelo cientificismo A convicção dos positivistas como a conhecemos através de Comte de que b futuro pode vir a ser previsto cientificamente repousa na crença de que o interesse é a força que existe por trás de tudo na história e na pressuposição de que o poder tenha leis objetivas que podem ser descobertas O cerne do utilitarismo moderno positivista ou socialista é a teoria política de Rohan de que os reis comandam os povos e os interesses comandam os reis de que o interesse objetivo é a única lei que não falha e de que mal ou bem compreendido o interesse é responsável pela existência e pelo desaparecimento dos governos Mas nenhuma dessas teorias aceita a possibilidade de transformar a natureza do homem como o totalitarismo realmente procura fazer Pelo contrário implícita ou explicitamente todas presumem que a natureza do homem é sempre a mesma que a história é o relato de circunstâncias e que o interesse corretamente compreendido pode levar a uma mudança de circunstâncias mas não à mudança das reações humanas em si O cientificismo da política ainda pressupõe que o bemestar humano é a sua finalidade conceito que é completamente alheio ao totalitarismo16 Exatamente porque se supunha que as ideologias tivessem um natural conteúdo utilitário a conduta antiutilitária dos governos totalitários e a sua completa indiferença pelo interesse da massa causaram um choque tão profundo Essa conduta introduziu na política contemporânea um elemento de imprevisibilidade até então desconhecido Contudo a propaganda totalitária já havia indicado antes mesmo que o totalitarismo tomasse o poder até que ponto as massas se haviam afastado da preocupação pelo seu próprio interesse Assim não se justificava a suspeita dos aliados de que a matança dos loucos ordenada por Hitler no começo da guerra fosse ditada pelo desejo de eliminar bocas desnecessárias17 Hitler não foi forçado pela guerra a atirar pelos ares 14 Ibid p 137 A citação é da revista saintsimonista Producteur I p 399 15 Voegelin op cit 16 William Ebenstein The Nazi state Nova York 1943 quando discute a permanente economia de guerra do Estado nazista é praticamente o único crítico a compreender qúè a interminável discussão quanto à natureza socialista ou capitalista da economia alemã sob o regime nazista é em grande parte artificial porque tende a esquecer o fato vital de que tanto o capitalismo quanto o socialismo são categorias pertinentes à economia de bem estar ocidental p 239 17 Nesse contexto é característico o testemunho de Karl Brandtum dos médicos encarregados por Hitler de executar o programa de eutanásia Medicai tryil US against Karl Brandi et ai Hearing of May 14 1947 Brandt protestou violentamente contra a suspeita de que o projeto 396 todas as considerações de ordem ética mas sim considerava a carnificina da guerra uma excelente oportunidade para dar início a um programa de assassinatos que como todos os outros pontos do seu programa se media em termos de milênios18 Como virtualmente toda a história européia durante muitos séculos havia ensinado o povo a julgar cada ação política por seu cui bono proveito vantagem e todos os acontecimentos políticos por seus interesses subjacentes estavase agora subitamente diante de um elemento de imprevisibilidade sem precedentes Dadas as suas características demagógicas a propaganda totalitária que muito antes da tomada do poder mostrava claramente quão pouco as massas de deixavam motivar pelo famoso instinto de autoconservação não foi tomada a sério Mas o sucesso da propaganda totalitária não se deve tanto à sua demagogia quanto ao conhecimento de que o interesse como força coletiva só se faz sentir onde um corpo social estável proporciona a necessária conexão motora entre o indivíduo e o grupo nenhuma propaganda baseada no mero interesse pode ser eficaz entre as massas já que a sua característica principati não pertencerem a nenhum corpo social ou político e constituírem por tanto um verdadeiro caos de interesses individuais O fanatismo dos membros dosmovímèntos totalitários cuja intensidade difere tão claramente da lealdade dos membros dos partidos comuns resulta exatamente da falta de egoísmo interesseiro dos indivíduos que formam as massas e que estão perfeitamente dispostos a se sacrificarem pela idéia Os nazistas demonstraram que se pode levar todo um povo à guerra com o lema de outra forma pereceremos o que a propaganda de guerra evidentemente evitou em 1914 mesmo em época que não seja de miséria de desemprego ou de frustradas ambições nacionais O mesmo espírito prevaleceu durante os últimos meses de uma guerra obviamente perdida quando a propaganda nazista consolou a população já grandemente atemorizada com a promessa de que o Führer em sua sabedoria havia preparado uma morte suave para o povo alemão por meio de gás em caso de derrota19 Os movimentos totalitários empregam o socialismo e o racismo esvaziandoos do seu conteúdo utilitário dos interesses de uma classe ou de uma nação A forma de predição infalível sob a qual esses conceitos são apresentados havia sido iniciado com a finalidade de eliminar consumidores supérfluos de alimentos acentuou que os membros do partido que haviam mencionado tais argumentos na discussão tinham sido severamente repreendidos Em sua opinião as medidas haviam sido ditadas unicamente por considerações éticas Naturalmente o mesmo se aplica às deportações Os arquivos estão cheios de memorandos desesperados dos militares queixandose de que as deportações de milhões de judeus poloneses constituíam um completo descaso às necessidades econômicas e militares Ver Poliakov 6p cit p 321 bem como os documentos ali publicados 18 O decreto decisivo que originou todos os assassínios em massa subseqüentes foi assinado por Hitler a 1 de setembro de 1939 no dia em que foi declarada a guerra à Polônia e se refere não aos loucos apenas como se supõe erradamente muitas vezes mas a todos os que eram doentes incuráveis Os loucos foram apenas os primeiros a morrer 19 Ver Friedrich Percyval ReckMalleczewen Tagebuch eines Verzweifelten Diário de um desesperado Sttutgart 1947 p 190 397 é mais importante que o seu conteúdo20 A principal qualificação de um líder de massas é a sua infinita infalibilidade jamais pode admitir que errouj1 Além dissòTa pressuposição de infalibilidade baseiase não tanto na inteligência superior quanto na correta interpretação de forças históricas ou naturais essencialmente seguras forças que nem a derrota nem a ruína podem invalidar porque a longo prazo tendem a prevalecer22 Uma vez no poder os líderes da massa cuidam de algo que está acima de quaisquer considerações utilitárias fazer com que as suas predições se tornem verdadeiras Os nazistas não hesitaram em lançar mão no fim da guerra de toda a força da sua organização ainda intacta para destruir a Alemanha do modo mais completo possível a fim de que fosse verdadeira a sua predição de que o povo alemão seria arruinado em caso de derrota Peíejto propagandístico da infalibilidade o extraordinária sucesso que decorre da humilde pose de mero agente interpretador de forças previsíveis estimulou nos ditadores totalitários o hábito de anunciar as suas intenções políticas sob a forma de profecias O exemplo mais famoso é o anúncio que Hitler fez ao Reichstag alemão em janeiro de 1939 Desejo hoje mais uma vez fazer uma profecia caso os financistas judeus consigam novamente arrastar os povos a uma guerra mundial o resultado será a aniquilação da raça judaica na Europa23 Traduzido em linguagem nãototalitária isso significa pretendo travar uma guerra e pretendo matar os judeus da Europa Da mesma forma Stálin no discurso proferido perante o Comitê Central do Partido Comunista em 1930 ao descrever os seus dissidentes no partido como representantes de classes agonizantes24 abriu o caminho para a sua eliminação física Em estilo totalitário essa definição anunciava a destruição física daqueles cuja agonia 20 Hitler baseava a superioridade dos movimentos ideológicos em relação aos partidos políticos no fato de que as ideologias Weltanschsmungen sempre proclamam sua infalibilidade Aem Kampf livro II capítulo v Weltanschauung e organização As primeiras páginas do manual oficial da Juventude Hitlerista The Naziprimer Nova York 1938 acentuam conseqüentemente que todas as questões de Weltanschauung antes consideradas irrealistas e incompreensíveis se tornaram tão claras simples e definidas o grifo é meu que qualquer um dos nossos camaradas pode entendêlas e cooperar na sua solução 21 O primeiro dos juramentos do membro do Partido enumerados pelo Organisationsbuch der NSDÀP diz O Führer sempre tem razão Edição publicada em 1936 p 8 Mas o Dienstvorschrift für die P D der NSDAP 1932 p 38 assim se exprime A decisão de Hitler é final Notese a grande diferença de fraseologia A pretensão de serem infalíveis o fato de que nenhum deles jamais sinceramente admitiu um erro eis a diferença decisiva entre Stálin e Trótski de um lado e Lênin de outro Ver Boris Souvarine Stálin a criticai survey ofBolshevism Nova York 1939 p 583 22 É óbvio que a dialética hegeliana constitui maravilhoso instrumento para que sempre se tenha razão uma vez que permite a interpretação de todas as derrotas como o começo da vitória Um dos mais belos exemplos desse tipo de sofisma ocorreu após 1933 quando os comunistas alemães durante quase dois anos recusaramse a reconhecer que a vitória de Hitler havia sido uma derrota para o Partido Comunista Alemão 23 Ver Goebbels The Goebbels diaries 19421943 editados por Louis Lochner Nova York 1948 p 148 24 Stálin op cit loc cit 398 í acabava de ser profetizada Em ambos os casos conseguese o mesmo objetivo o extermínio vira processo histórico no qual o homem apenas faz ou sofre aquilo que de acordo com leis imutáveis sucederia de qualquer modo Assim que as vítimas são executadas a profecia transformase em álibi retrospectivo o que sucedeu foi apenas o que havia sido predito25 Pouco importa se leis históricas acarretam a ruína de certas classes e de seus representantes ou se leis naturais exterminam todos aqueles elementos democracias judeus subhomens Untermenschen do Leste europeu ou doentes incuráveis que de qualquer forma não são dignos de viver Por sinal Hitler também mencionou classes agonizantes que deviam ser eliminadas sem mais problemas26 ilsjejnétodQorneutros dâropaganda totalitária só é infalível depois que os movimentos tomam o poder A essa altura discutir a verdade ou a mentira da predição de um ditador totalitário é tão insensato como discutir com um assassino em potencial se a sua próxima vítima está morta ou viva pois matando a pessoa em questão o assassino pode prontamente demonstrar que a sua afirmação era correta O único argumento válido nessas ocasiões seria a imediata salvação da pessoa cuja morte é profetizada Antes que os líderes das massas tomem o poder para fazer com que a realidade se ajuste às mentiras quê proclamam sua propaganda exibe extremo desprezo pelos fatos em si pois na sua opinião os fatos dependem exclusivamente do poder do homem que os inyentíL27 A afirmação de que o metrô de Moscou é o único do mundo só é falsa enquanto os bolchevistas não puderem destruir os outros Em outras palavras o método da predição infalível mais que qualquer outro expediente da propaganda totalitária revela o seu objetivo último de conquista mundial pois somente num mundo inteiramente sob o seu controle pode o governante totalitário dar realidade prática às suas mentiras e tornar verdadeiras todas as suas profecias A linguagem do cientificismo profético correspondia às necessidades ias massas que haviam perdido o seu lugar no mundo e agora estavam preparadas para se reintegrar nas forças eternas e todopoderosas que por si impeliriam o 25 Num discurso que pronunciou em setembro de 1942 quando o extermínio dos judeus estava em pleno andamento Hitler referiuse explicitamente ao seu discurso de 30 de janeiro de 1939 publicado como folheto com o título Der Führer vor dem ersten Reichstag Grossdeutchlands O Führer diante do primeiro Parlamento da Grande Alemanha 1939 e à sessão do Reichstag de 1 de setembro de 1939 quando anunciou que se o povo judeu instigasse o mundo internacional a exterminar os povos arianos da Europa não os povos arianos mas os judeus seriam resto da frase abafado pelos aplausos ver Der Führer zum Kriegswinterhilfswerd Schriften NSV n 14 p 33 26 No discurso de 30 de janeiro de 1939 cf citado acima 27 Konrad Heiden De Fuehrer Hitlers rise topower acentua a fenomenal deslealdade de Hitler a falta de realidade demonstrável em quase todos os seus pronunciamentos a sua indiferença pelos fatos que ele não considerava vitalmente importantes pp 368 374 Em termos quase idênticos Khrushchev descreve a relutância de Stálin em levar em conta as realidades da vida e a sua indiferença quanto ao verdadeiro estado das coisas op cit O melhor exemplo da opinião de Stálin quanto à importância dos fatos são as revisões a que ele periodicamente submetia a história da Rússia 399 homem nadador no mar da adversidade para praia segura MoldamosavMa do nosso povo e a nossa legislação segundo o veredicto da genética28 afirmaram os nazistas do mesmo modo como os bolchevistas asseguraram aos seus seguidores que as forças econômicas têm o poder de um veredicto histórico Assim prometiam uma vitória que não dependia de derrotas e fracassos temporários Pois as massas em contraste com as classes desejam a vitória e o sucesso em si mesmos em sua forma mais abstrata não as unem quaisquer interesses coletivos especiais que considerem essenciais à sua sobrevivência como um grupo e pelos quais portanto poderiam lutar contra a adversidade Mais importante que a causa que venha a ser vitoriosa ou o empreendimento que tenha possibilidades de vencer é para elas a vitória em não importa que causa e o sucesso em não importa que empreendimento Á propaganda totalitária aperfeiçoa as técnicas da propaganda de massa mas não lhe inventa os temas Estes foram preparados pelos cinqüenta anos de imperialismo e desintegração do Estado nacional quando a ralé adentrou o cenário da política européia Tal como os primeiros líderes da ralé os portavozes dos movimentos totalitários tinham um modo infalível de distinguir tudo aquilo que a propaganda partidária comum ou a opinião pública evitava ou não ousava abordar Tudo o que fosse oculto tudo o que fosse mantido em silêncio adquiria grande importância qualquer que fosse o seu valor intrínseco A ralé realmente acreditava que a verdade era tudo aquilo que a sociedade respeitável houvesse hipocritamente escamoteado ou acobertado com a corrupção O primeiro critério para a escolha dos tópicos era o mistério em si A origem do mistério não importava podia estar num desejo de segredo razoável e politicamente compreensível como no caso dos Serviços Secretos Britânicos ou do Deuxième Bureau francês ou na necessidade conspiratória de grupos revolucionários como no caso das seitas anárquicas e terroristas ou na estrutura de sociedades secretas embora seu conteúdo secreto já fosse conhecido e somente o ritual formal retivesse ainda o antigo mistério como no caso da maçonaria ou em superstições antiqüíssimas que haviam gerado lendas em torno de certos grupos como no caso dos jesuítas e judeus Os nazistas eram sem dúvida mestres na escolha desses tópicos para uso em propaganda de massa mas os bolchevistas pouco a pouco aprenderamlhes os truques embora confiassem menos em mistérios tradicionalmente aceitos e preferissem suas próprias invenções desde meados da década de 30 uma misteriosa conspiração mundial tem seguido outra na propaganda bolchevista a começar pelo complô dos trotskistas passando pelo domínio das trezentas famílias até as sinistras maquinações imperialistas dos serviços secretos britânicos e americanos29 28 Do Manual da Juventude Hitlerista Hitlerjugend 29 Ê interessante notar que os bolchevistas durante a era de Stálin de certa forma acumularam conspirações e que a descoberta de uma nova trama não significava que abandonassem a anterior A conspiração trotskista começou por volta de 1930 a das trezentas famílias foi acrescentada no período da Frente Popular na França a partir de 1935 o imperialismo britânico foi 400 A eficácia desse tipo de propaganda evidencia uma das principais características das massas modernas Não acreditam em nada visível nem4iarealidade da sua própria experiência não confiam em seus olhos e ouvidos mas apenas em sua imaginação que pode ser seduzida por qualquer coisa ao mesmo tempo universal e congruente em si O que convence as massas aão são os fatos mesmo que sejam fatos inventados mas apenas a coerência com o sistema do qual esses fatos fazem parte O que as massas se recusam a compreender é a fortuidade de quea realidade é feita Predispõemse a todas as ideologias porque estas explicam os fatos como simples exemplos de leis e ignoram as coincidências inventando uma onipotência que a tudo atinge e que supostamente está na origem de todo acaso A propaganda totalitária prospera nesse clima de fuga da realidade para a ficção da coincidência para a coerência A principal desvantagem da propaganda totalitária é que não pode satisfazer esse anseio das massas por um mundo completamente coerente compreensível e previsível sem entrar em sério conflito com o bom senso Se por exemplo todas as confissões de inimigos políticos na União Soviética empregam os mesmos termos e admitem os mesmos motivos as massas sedentas de coerência aceitam a ficção como prova suprema da veracidade dos fatos no entanto o bom senso nos diz que é exatamente essa coerência que é irreal demonstrando que as confissões são falsas De modo figurado é como se as massas exigissem uma repetição constante do milagre da Septuaginta quando segundo a lenda aceita pelo judaísmo e cristianismo setenta sábios alexandrinos isolados entre si apresentaram a mesma idêntica tradução grega do Velho Testamento O bom senso só pode aceitar essa história como lenda mas ela também pode ser tomada como prova da absoluta e divina fidelidade de cada palavra do texto traduzido Em outras palavras embora seja verdade que as massas são obcecadas pelo desejo de fugirem da realidade porque privadas de um lugar no mundo já não podem suportar os aspectos acidentais e incompreensíveis dessa situação também é verdade que a sua ânsia pela ficção tem algo a ver com aquelas faculdades do espírito humano cuja coerência estrutural transcende a mera ocorrência Fugindo à realidade as massas pronunciam um veredicto contra um mundo no qual são forçadas a viver e onde não podem existir uma vez que o acaso é o senhor supremo deste mundo e os seres humanos necessitam transformar constantemente as condições do caos e do acidente num padrão humano de relativa coerência A revolta das massas contra o realismo o bom senso e todas as plausibilidades do mundo Burke resultou da sua atomização da perda de seu status social juntamente com todas as relações comunitárias em cuja estrutura o bom senso faz sentido Em sua condição de deslocados espirituais e sociais um conhecimento medido da interdependência entre o arbitrário e o planejado entre o acidental e o necessário já não produz efeito A propa apontado como verdadeira conspiração durante a aliança StálinHitler o Serviço Secreto Americano seguiuselhe pouco depois do fim da guerra 401 ganda totalitária pode insultar o bom senso somente quando o bom senso perde a sua validade Entre enfrentar a crescente decadência com a sua anarquia e total arbitrariedade e curvarse ante a coerência mais rígida e fantasticamente fictícia de uma ideologia as massas provavelmente escolherão este último caminho dispostas a pagar por isso com sacrifícios individuais não porque sejam estúpidas ou perversas mas porque no desastre geral essa fuga lhes permite manter um mínimo de respeito próprio Enquanto a propaganda nazista especializavase em tirar proveito do anseio das massas pela coerência os métodos bolchevistas demonstraram claramente o seu impacto sobre o homem de massa isolado A polícia secreta soviética tão ávida de convencer suas vítimas a assumirem responsabilidade por crimes que nunca cometeram e que em muitos casos nem sequer estavam em posição de cometer isola e elimina completamente todos os fatores reais de sorte que a própria lógica a própria congruência da estória contida na confissão forjada se torna irrefutável Diante de uma situação na qual a linha divisória entre a ficção e a realidade é apagada pela inerente coerência da acusação é indispensável não apenas a firmeza de caráter para resistir a constantes ameaças mas também uma grande dose de confiança na existência de semelhantes parentes amigos ou vizinhos que nunca acreditarão na estória para que se resista à tentação de ceder a uma abstrata possibilidade de culpa È verdadfque esse extremo de loucura artificialmente forjada só pode ser atingido num mundo inteiramente totalitário No entanto já hoje faz parte do aparelho de propaganda dos regimes totalitários onde as confissões não são indispensáveis para levarem à punição As confissões são uma especialidade do regime bolchevista como o curioso pedantismo da legalização de crimes por meio de leis retrospectivas e retroativas era especialidade do sistema nazista Em ambos os casos o objetivo é a coerência Antes de tomarem o poder e criarem um mundo à imagem da sua doutrina os movimentos totalitários invocam esse falso mundo de coerências que é mais adequado às necessidades da mente humana do que a própria realidade nele através de pura imaginação as massas desarraigadas podem sentirse à vontade e evitar os eternos golpes que a vida e as experiências verdadeiras infligem aos seres humanos e às suas expectativas A força da propaganda totalitária antes que os movimentos façam cair cortinas de ferro para evitar que alguém perturbe com a mais leve realidade a horripilante quietude de um mundo completamente imaginário reside na sua capacidade de isolar as massas do mundo real Os únicos sinais que o mundo real ainda oferece à compreensão das massas desintegradas e em desintegração que se tornam mais crédulas a cada golpe de má sorte são por assim dizer as suas lacunas as perguntas que ele prefere não discutir em público os boatos que não ousa contradizer porque ferem embora de modo exagerado e distorcido algum ponto fraco Ê desses pontos fracos que as mentiras da propaganda totalitária extraem o elemento de veracidade e experiência real de que necessitam para transpor o abismo entre a realidade e a ficção Só o terror poderia confiar na mera ficção 402 mas mesmo as ficções sustentadas pelo terror dos regimes totalitários ainda não se tornaram completamente arbitrárias embora sejam geralmente mais grosseiras mais descaradas e mais originais que as ficções geradas pelos movimentos É preciso ter força não talento propagandístico para fazer circular uma história revisada da Revolução Russa na qual nenhum homem chamado Trótski jamais foi comandanteemchefe do Exército Vermelho Já as mentiras dos movimentos são muito mais sutis Atêmse a todo aspecto da vida social e política que esteja oculto aos olhos do público Conseguem maior sucesso onde as autoridades oficiais vivam numa atmosfera de segredo Aos olhos da massa adquirem então a reputação de realismo superior porque se referem supostas condições reais cuja existência vinha sendo ocultada A revelação de escândalos na alta sociedade de corrupção de homens públicos tudo ó que interessa à imprensa marrom se torna em suas mãos uma arma de importância mais que sensacional A mais eficaz ficção da propaganda nazista foi a história de uma conspiração mundial judaica Concentrarse em propaganda antisemita era expediente comum dos demagogos desde fins do século XIX e muito difundido na Alemanha e na Áustria na década de 1920 Quanto mais constantemente os partidos e órgãos da opinião pública evitavam discutir a questão judaica mais a ralé se convencia de que os judeus eram os verdadeiros representantes das autoridades constituídas e de que a questão judaica era o símbolo da hipocrisia e da desonestidade de todo o sistema O verdadeiro conteúdo da propaganda antisemita do pósguerra depois de 1918 não era monopólio dos nazistas nem particularmente novo e original Mentiras acerca de uma conspiração mundial judaica haviam sido veiculadas desde o Caso Dreyfus e baseavamse na interrelação e interdependência do povo judaico disseminado por todo o mundo Mais antigas ainda são as noções exageradas do poder mundial dos judeus encontramolas em fins do século XVIII quando a estreita relação entre os comerciantes judeus e os Estadosnações se tornou visível A apresentação de o judeu como a encarnação do mal é geralmente atribuída a vestígios e supersticiosas lembranças da Idade Média mas na verdade tem íntima ligação com o papel mais recente e mais ambíguo que os judeus representaram na sociedade européia depois da sua emancipação Uma coisa era inegável no período do pósguerra os judeus haviam se tornado mais proeminentes do que nunca Mas no tocante aos próprios judeus o fato é que se haviam tornado mais proeminentes e mais notórios na razão inversa da sua verdadeira influência e posição de poder Cada perda de estabilidade e de força dos Estadosnações era um golpe direto contra a posição dos judeus A conquista do Estado pela nação parcialmente bemsucedida tornou impossível à máquina governamental manter a sua posição acima de todas as classes e partidos e anulou o valor da aliança com o segmento judaico da população o qual ademais era rechaçado da estrutura estatal que se pretendia uniformemente nacional e mantido fora dos escalões sociais assim permanecia indiferente à política dos partidos à 403 crescente preocupação da burguesia imperialista com a política externa e à sua crescente influência sobre a máquina estatal seguiuse a firme recusa por parte daquele setor judaico que realmente concentrava riquezas de se engajar em indústrias e abandonar a tradição do comércio de capitais A soma de todos esses fatores quase acabou com a utilidade econômica para o Estado dos judeus como um grupo e com a vantagem para os judeus da sua separação social Depois da Primeira Guerra Mundial as comunidades judaicas da Europa central foram assimiladas e incorporadas à nação como ocorreu à comunidade judaica da França durante as primeiras décadas da Terceira República O grau de consciência dos Estados interessados dessa nova situação veio à luz quando em 1917 o governo da Alemanha seguindo uma antiga tradição tentou usar os seus judeus para negociações experimentais de paz com os aliados Em lugar de se dirigir aos líderes estabelecidos das comunidades judaicas alemãs o governo apelou para a pequena e relativamente pouco influente minoria sionista que ainda gozava da sua confiança porque insistia na existência de um povo judaico independente de cidadania e da qual portanto se poderiam esperar serviços que dependessem de conexões internacionais Isso porém como se verificou mais tarde foi um erro do governo alemão Os sionistas fizeram algo que nenhum dos banqueiros judeus havia feito antes estabeleceram as suas próprias condições e disseram ao governo que só negociariam a paz sem anexações ou reparações30 Já não existia a velha indiferença dos judeus pela política a maioria dos judeus já não podia ser usada pois não estava mais isolada da nação em cujo seio vivia e a minoria sionista era inútil porque tinha idéias políticas próprias A substituição dos governos monárquicos pela república na Europa central completou a desintegração das comunidades judaicas da região do mesmo modo que a criação da Terceira República o havia feito na França cerca de cinqüenta anos antes Os judeus já haviam perdido grande parte da sua influência quando os novos governos se estabeleceram em condições nas quais não tinham poder para proteger os judeus nem interesse em fazêlo Por ocasião das negociações de paz em Versalhes os judeus foram usados principalmente como peritos e mesmo certos antisemitas admitiram que os pequenos escroques judeus da era do pósguerra dos quais muitos eram recémchegados aos países em que agiam e atrás de cujas atividades fraudulentas que os distinguiam claramente dos seus correligionários nativos havia uma atitude vagamente semelhante à antiga indiferença pelas normas do meio ambiente em que passavam a viver não tinham quaisquer conexões com os representantes de uma suposta internacional judaica31 30 Ver a autobiografia de Chaim Weizmann Trial and error Nova York 1949 p 185 Em 1917 para conquistar as simpatias dos sionistas disseminados entre os judeus de todos os países o governo imperial alemão apôs a consulta com seu aliado a Turquia otomana revelou ser favorável à colonização judaica na Palestina com o que pretendia enfraquecer a posição idêntica do governo britânico N E 31 Ver por exemplo Otto Bonhard Jüdische Geld WeltherrschaftDomínio financeiro e mundial judaico 1926 p 57 404 Em meio a um grande número de grupos antisemitas concorrentes e numa atmosfera carregada de antisemitismo a propaganda nazista elaborou um método específico de tratar esse assunto método diferente e superior a todos os outros Não obstante nenhum dos slogans nazistas era novo nem mesmo a astuta imagem oferecida por Hitler de uma luta de classes provocada pelo comerciante judeu que explorava os trabalhadores enquanto outro judeu na fábrica os incitava a entrarem em greve32 O único elemento novo era que o nazismo exigia prova de ascendência nãojudaica aos candidatos a membros do Partido Ademais o nazismo sempre foi não obstante o programa de Feder extremamente vago quanto às verdadeiras medidas que tomaria contra os judeus quando galgasse o poder33 Os nazistas deram à questão judaica a posição central na sua propaganda no sentido de que o antisemitismo já não era uma questão de opinião acerca de um povo diferente da maioria nem uma questão de política nacional34 mas sim a preocupação íntima de todo indivíduo na sua existência pessoal ninguém podia pertencer ao partido se a sua árvore genealógica não estivesse em ordem e quanto mais alto o posto na hierarquia nazista mais longe no passado se vasculhava essa árvore genealógica35 Do mesmo modo embora sem tanta coerência o bolchevismo alterou a dou 32 Hitler usou esta imagem pela primeira vez em 1922 Moisés Kohn por um lado incita a sua companhia a recusar as exigências dos trabalhadores enquanto o seu irmão Isaac na fábrica convida as massas a entrarem em greve Hitlers speeches 19221939 editado por Baynes Londres 1942 p 29 digno de nota que nenhuma coleção completa dos discursos de Hitler jamais foi publicada na Alemanha nazista de modo que é necessário recorrer à edição inglesa Não se trata de mero acaso como se pode ver da bibliografia compilada por Philipp Bouhler Die Reden des Führers nach der Machtübemahme Os discursos do Führer após a tomada do poder 1940 somente os discursos públicos eram impressos verbatim no Võlkischer Beobachter os outros discursos para o Fuehrerkorps e outras unidades do partido eram meramente mencionados naquele jornal Não se destinavam de modo algum à publicação 33 Os 25 pontos de Feder continham apenas medidas habituais exigidas por todos os grupos antisemitas expulsão do país dos judeus naturalizados e tratamento dos judeus nativos como estrangeiros A oratória antisemita nazista era sempre muito mais radical do que o seu programa Waldemar GurianAntisemitism in modemGermany emEssayson antisemitism editado por Koppel S Pinson Nova York 1946 p 243 acentua a falta de originalidade do antisemitismo nazista Nenhuma dessas exigências e opiniões era notável por sua originalidade eram evidentes em todos os círculos nacionalistas o que era notável era a habilidade demagógica e oratória com que eram apresentadas 34 Um exemplo típico de mero antisemitismo nacionalista dentro do próprio partido nazista é Rohm que escreve E mais uma vez neste ponto a minha opinião difere da do filisteu nacional Não digo o Judeu é culpado de tudo Nós é que temos a culpa do fato de o judeu poder dominar hoje em dia Ernst Ròhm Die Geschichte eines Hochverràters 1933 Volksausgabe p 284 35 Os candidatos à SS tinham de vasculhar seus antepassados até o ano de 1750 Os que se candidatavam a posições de liderança partidária tinham de responder a apenas três perguntas 1 O que é que você fez pelo Partido 2 Você é absolutamente são física mental e moralmente 3 Sua árvore genealógica está em ordem Ver Naziprimer Típico da afinidade entre os dois sistemas é o fato de que a elite e as formações policiais dos bolchevistas a NKVD também exigiam prova da genealogia dos seus membros Ver F Beck e W Godin Russian purge and the extraction of confessions 1951 405 trina marxista da inevitável vitória final do proletariado organizando os seus membros como proletários de nascença e tornando vergonhoso e escandaloso descender de qualquer outra classe36 A propaganda nazista foi suficientemente engenhosa para transformar o antisemitismo em princípio de autodefinição libertandoo assim da inconstância de uma mera opinião Usou a persuasão da demagogia de massa apenas como fase preparatória e nunca superestimou sua duradoura influência fosse em discursos ou por escrito37 Isso deu às massas de indivíduos atomizados indefiníveis instáveis e fúteis um meio de se autodefinirem e identificarem não somente restaurando a dignidade que antes lhes advinha da sua função na sociedade como também criando uma espécie de falsa estabilidade que fazia deles melhores candidatos à participação ativa Através desse tipo de propaganda o movimento podia apresentarse como extensão artificial das reuniões de massa e racionalizar os fúteis sentimentos de empáfia e de histérica segurança que oferecia aos indivíduos isolados de uma sociedade atomizada38 Percebiase a mesma engenhosa aplicação de slogans criados por terceiros e já experimentados antes no tratamento que os nazistas davam a outras questões importantes Quando a atenção pública concentrouse no nacionalismo de um lado e no socialismo de outro quando se julgava que os dois eram incompatíveis e constituíam a verdadeira linha divisória ideológica entre a Direita e a Esquerda o Partido NacionalSocialista dos Trabalhadores Alemães nazista ofereceu uma síntese que supostamente levaria à unidade nacional uma solução semântica cuja dupla marca registrada alemão e trabalhador ligava o nacionalismo da Direita ao internacionalismo da Esquerda O próprio nome do movimento nazista esvaziava politicamente todos os outros partidos e pretendia implicitamente incorporálos a todos Misturas de doutrinas políticas supostamente antagônicas nacionalsocialista socialcristâ etc já haviam sido experimentadas antes com sucesso mas os nazistas deram tal realidade prática à sua mistura que toda a luta parlamentar entre os socialistas e os nacionalistas entre aqueles que pretendiam ser trabalhadores em primeiro lugar e aqueles que em primeiro lugar eram alemães parecia uma farsa destinada a ocultar motivos ulteriores e sinistros pois o membro do movimento nazista não era tudo isso e de uma só vez 36 As tendências totalitárias do macarthismo nos Estados Unidos também vieram à tona claramente na tentativa de não apenas perseguir os comunistas mas de forçar todo cidadão a provar que não era comunista 37 Não se deve exagerar a influência da imprensa ela geralmente diminui à medida que cresce a influência da organização Hadamovsky op cit p 64 Os jornais são inúteis quando procuram lutar contra a força agressiva de uma organização viva ibid p 65 As formações de poder que têm sua origem na mera propaganda são instáveis e podem desaparecer rapidamente a não ser que a violência de uma organização apoie a propaganda ibid p 21 38 As reuniões de massa são a forma mais poderosa de propaganda porque cada indivíduo se sente mais confiante e mais forte na unidade da massa ibid p 47 O entusiasmo do momento tornase um princípio e uma atitude espiritual através da organização e do treinamento e disciplina sistemáticos ibid pp 212 406 É interessante notar que mesmo no seu começo os nazistas sempre tiyeram a prudência de não usar slogans que como democracia república ditadura ou monarquia indicassem uma forma específica de governo39 Ê como se pelo menos nesse assunto sempre soubessem que iriam ser completamente originais Toda discussão a respeito da verdadeira forma do seu futuro governo podia ser rejeitada como conversa fiada a respeito de meras formalidades pois o Estado segundo Hitler era apenas um meio para a preservação da raça do mesmo modo como segundo a propaganda bolchevista o Estado é apenas um instrumento na luta de classes40 De outro modo curioso e indireto porém os nazistas deram uma resposta propagandística à pergunta sobre qual seria o seu futuro papel e o fizeram pela maneira comojisaram os Protocolos dos sábios do Sião como modelo para a futura organização das massas alemãs num império mundial Não foram apenas os nazistas que usaram os Protocolos centenas de milhares de cópias foram vendidas na Alemanha após a guerra de 1918 e a sua franca adoção como manual político sequer constituía novidade41 A fraude porém era usada principalmente com a finalidade de denunciar os judeus e despertar a ralé para os perigos do domínio judaico42 Em termos de mera propaganda a descoberta 39 Nas pqueasvezesem que Hitler sepreocupou com essa questão costumava acentuar Aliás não sou chefe de um Estado como o é um ditador ou monarca mas sou o líder do povo alemão ver Ausgewáhlte Reden des Führers Discursos escolhidos doFiihrer 1939 p 114 Hans Frank expressase no mesmo tom O Reich Nacional Socialista não é um regime ditatorial e muito menos arbitrário Baseiase na lealdade mútua do Führer e do povo em Recht und Verwaltung Direito e administração Munique 1939 p 15 40 Hitler repetiu muitas vezes O Estado é apenas um meio para um fim O fim é conservação da raça Reden 1939 p 125 Acentuou ainda que o seu movimento não se baseia na idéia do Estado mas principalmente na Volksgemeinschaft fechada ver Reden 1933 p 125 e o discurso à nova geração de líderes políticos Führernachwuchs 1937 que é publicado como adendo em Hitlers Tischgespràche p 446 Mutatis mutandi é esse também o cerne da complicada algaravia que é a teoria estatal de Stálin Somos a favor da morte do Estado e ao mesmo tempo defendemos o fortalecimento da ditadura do proletariado que representa a mais forte e poderosa autoridade entre todas as formas de Estado que já existiram até hoje O desenvolvimento maior possível do poder do Estado com o fim de preparar as condições para a morte do Estado eis a fórmula marxistaop cit loc cit 41 Alexander Stein em Adolf Hitler Schüler der Weisen von Zion A H aluno dos sábios do Sião Karlsbad 1936 foi o primeiro a analisar por comparação filolôgica a identidade ideológica entre os ensinamentos dos nazistas e os dos sábios do Sião Ver também R M Blank Adolf Hitler et les Protocoles des sages de Sion Paris 1938 O primeiro a admitir a sua dívida para com os ensinamentos dos Protocolos foi Theodor Fritsch o patriarca do anti semitismo alemão do pósguerra Diz ele no epílogo da sua edição dos Protocolos 1924 Nossos futuros estadistas e diplomatas terão de aprender com os mestres orientais da velhacaria até mesmo o ABC do governo e para esse fim os Protocolos do Sião são um excelente curso preparatório 42 Quanto à história dos Protocolos ver John S Curtiss An appraisal of the Protocols of Zion 1942 O fato de que os Protocolos eram forjados não importava para fins de propaganda O publicista russo S A Nilus que publicou a edição russa em 1905 conhecia muito bem o caráter duvidoso desse documento e acrescentou o óbvio Mas se fosse possível demonstrar a sua autentici 407 dos nazistas foi que as massas não receavam tanto que os judeus dominassem o mundo quanto estavam interessadas em saber como isso podia ser feito que a popularidade dos Protocolos se baseava mais na admiração e na avidez de aprender do que no ódio e que seria boa idéia adotar algumas de suas principais fórmulas como no caso do famoso slogan O direito é aquilo que é bom para o povo alemão que foi copiado das palavras dos Protocolos tudo o que beneficia o povo judaico é moralmente correto e sagrado43 Em muitos sentidos os Protocolos são um documento curioso e digno de nota à parte o seu maquiavelismo barato sua característica política essencial é que de modo um tanto doido abordam todas as questões políticas importantes da época São por princípio antinacionais e pintam o Estadonação como um colosso de pés de barro Rejeitam a soberania nacional e acreditam como Hitler disse certa vez num império mundial à base de uma nação44 Não se satisfazem com a revolução num determinado país mas visam à conquista e domínio do mundo Prometem que a despeito da inferioridade em número território e poder estatal o seu povo poderá conquistar o mundo através da mera organização É certo que parte de sua força persuasiva se deve a superstições muito antigas A noção da existência ininterrupta de uma seita internacional que luta pelos mesmos objetivos revolucionários desde a Antigüidade é muito velha45 e desempenhou certo papel na literatura política clandestina desde a Revolução Francesa embora não tivesse ocorrido a nenhum escritor do fim do século XVIII que a seita revolucionária essa nação peculiar em meio a todas as nações civilizadas pudesse ser o povo judeu46 dade por meio de documentos ou do depoimento fidedigno de testemunhas se fosse possível revelar quem são as pessoas à frente dessa trama mundial então a secreta iniqüidade poderia ser desfeita Tradução de Curtiss op cit Hitler não precisou de Nilus para usar o mesmo truque a melhor prova de sua autenticidade é o fato de ter se provado que se trata de uma falsificação E acrescentou ainda o argumento da sua plausibilidade O que muitos judeus podem fazer inconscientemente é conscientemente exposto aqui com clareza E isto é o que importa Mein Kampf livro I capítulo xi 43 Fritsch op cit Der Juden oberster Grundsatz laute Alies was dem Volke Juda nützt ist moralisch undist heilig 44 Os impérios mundiais têm origem numa base nacional mas logo se expandem muito além dela Reden 45 Henri Rollin VAppocalypse de notre temps Paris 1939 em cuja opinião a popularidade dos Protocolos só perde para a Bíblia p 40 mostra a semelhança entre eles e os Monita secreta publicados pela primeira vez em 1612 e ainda vendidos em 1939 nas ruas de Paris que pretendem denunciar uma conspiração jesuíta que justifica todas as vilezas e todos os usos da violência Tratase de verdadeira campanha contra a ordem estabelecida p 32 46 Um significativo representante de toda essa literatura é Chevalier de Malet Recherches politiques et historiques qui prouvent Vexistence dune secte révolutionnaire 1817 com extensas citações de autores anteriores Para ele os heróis da Revolução Francesa são mannequins de uma agence secrète agentes da francomaçonaria Mas a francomaçonaria é apenas o nome que os seus contemporâneos deram a uma seita revolucionária que existiu em todas as épocas e cujo método sempre consistiu em atacar permanecendo atrás das cortinas manipulando os cordões das marionetes que lhe convinha colocar em cena Começa dizendo Provavelmente será difícil acreditar num plano que foi concebido na Antigüidade e se manteve com a mesma constância os autores 408 O que mais atraía as massas nos Protocolos era o tema de uma conspiração global que correspondia à nova situação de forças Logo no início da sua carreira Hitler prometeu que o movimento nazista iria transcender os estreitos limites do nacionalismo moderno47 e já durante a guerra houve tentativas dentro da SS de riscar a palavra nação do vocabulário nacionalsocialista Só as potências mundiais pareciam ter ainda uma chance de sobrevivência independente e só a política global parecia poder conseguir resultados duradouros É bastante compreensível que essa situação assustasse as nações menores que não eram potências mundiais Os Protocolos pareciam apontar uma solução que não dependia de condições objetivas e inalteráveis mas apenas do poder da organização A propaganda nazista em outras palavras descobriu no judeu supranacional porque intensamente nacional48 o precursor do conquistador germânico do mundo e assegurou às massas que as nações que primeiro conhecerem o judeu pelo que é e forem as primeiras a combatêlo tomarão o seu lugar no domínio mundial4LAilusão de um domínio mundial judeu já existente constituiu a base da ilusão do futuro domínio mundial alemão Isto era o que Himmler tinha em mente quando disse que devemos a arte de governar aos judeus ou seja aos Protocolos que oFührer sabia de cor50 Assim os Protocolos apresentavam a conquista mundial como uma possibilidade prática insinuavam que tudo era apenas uma questão de know how inspirado ou astuto e que o único obstáculo à vitória alemã sobre o mundo inteiro era um povo sabidamente pequeno os judeus que dominava sem possuir instrumentos de violência um adversário fácil portanto uma vez que se desvendasse o seu segredo e se emulasse o seu método em maior escala A propaganda nazista concentrou toda essa nova e promissora visão num só conceito que chamou de Volksgemeinschaft Essa nova comunidade tentativamente concretizada no movimento nazista na atmosfera prétotalitáriaL ba da Revolução não são mais franceses do que alemães italianos ingleses etc Constituem uma nação peculiar que nasceu e cresceu às ocultas em meio a todas as nações civilizadas com o objetivo de submetêlas ao seu domínio Para uma ampla discussão dessa literatura ver E Lesueur La FrancMaçonnerie Artesiénne au 18e siècle Bibliothèque dHistoire Révolutionnaire 1914 Verificase como são persistentes essas lendas de conspiração mesmo em circunstâncias normais pela enorme quantidade de livros malucos antimaçons na França tão numerosos quanto os seus equivalentes antisemitas Uma espécie de compêndio de todas as teorias que viam na Revolução Francesa o produto de sociedades conspirativas secretas pode ser encontrado em G Bord La FrancMaçonnerie en France dês origines à 1815 1908 47 Reden Ver a transcrição de uma sessão do Comitê da SS para Questões Trabalhistas no quartelgeneral da SS em Berlim no dia 12 de janeiro de 1943 onde se sugeriu que a palavra naço conceito carregado de conotações liberais devia ser eliminada por ser inadequada aos povos germânicos Documento 705 PS em Nazi conspiracy and aggression V 515 48 Hitlers speeches editado por Baynes p 6 49 Goebbels op cit p 377 Essa promessa implícita em toda propaganda antisemita do tipo nazista já se anunciava nas palavras deHitler OjnaioiLeontraste do ariano é o judeu Mein Kampf livro I capítulo xiv 50 Dossiê Kersten no Centre de Documentation Juive Paris 409 seavase na absoluta igualdade de todos os alemães igualdade não de direitos mas de natureza e na suprema diferença que os distinguia de todos os outros povos51 Depois que os nazistas chegaram ao poder esse conceito gradualmente perdeu a sua importância e cedeu lugar por um lado a um desprezo geral pelo povo alemão desprezo que os nazistas sempre haviam nutrido mas que não podiam demonstrar até então em público52 e por outro lado a um grande desejo de aumentarem os próprios escalões com arianos de outros países idéia que não tivera muita importância na fase da propaganda nazista anterior à tomada do poder53 A Volksgemeinschaft era apenas a preparaçãapjrppagandística para uma sociedade racial ariana que no fim teria destruído todos os povos inclusive os alemães Até certo ponto a Volksgemeinschaft era a tentativa nazista de combater a promessa comunista de uma sociedade sem classes A vantagem propagandística da primeira sobre a segunda parece clara se desprezarmos todas as implicações ideológicas Embora ambas prometessem acabar com todas as diferenças sociais e de propriedade a sociedade sem classes tinha a conotação óbvia de que todos desceriam ao nível de um empregado de fábrica enquanto a Volksgemeinschaft com a sua conotação de conspiração para a conquista mundial oferecia uma razoável esperança de que todo alemão poderia vir a ser um dono de fábrica Mas a vantagem ainda maior da Volksgemeinschaft era que a sua criação não precisava esperar por alguma data futura e não dependia de condições objetivas podia ser realizada imediatamente no mundo fictício do movimento 51 A antiga promessa de Hitler Reden Nunca reconhecerei que as outras nações têm o mesmo direito que a nação alemã tornouse doutrina oficial O fundamento do modo nacionalsocialista de encarar a vida é a percepção da dessemelhança entre os homens Naziprimer p5 52 Por exemplo Hitler disse em 1923 O povo alemão consiste em um terço de heróis outro terço de covardes e outros são traidores Hitlers speeches editado por Baynes p 76 Após a tomada do poder essa tendência tornouse mais brutal e franca Ver por exemplo Goebbels em 1934 Quem é o povo para reclamar Membros do Partido Não O resto do povo alemão Devem darse por felizes por ainda estarem vivos Seria o cúmulo se deixássemos que nos criticassem aqueles que vivem à nossa mercê Citado de KohnBramstedt op cit pp 1789 Hitler declarou durante a guerra Sou apenas um ímã que se move constantemente sobre a nação alemã extraindo o aço dessa gente E já disse muitas vezes que o tempo virá em que todos os homens de valor da Alemanha se passarão para o meu lado E os que não passarem para o meu lado não valem nada Já nessa época o séquito imediato de Hitler sabia muito bem o que sucederia àqueles que não valiam nada ver Dergrossdeutsche Freiheitskampf Reden Hitlers vom 191939 1031940 A luta pela liberdade da Grande Alemanha Discursos do Führer p 174 Himmler queria dizer a mesma coisa quando declarou O Führer não pensa em alemão mas em termos germânicos Dossiê Kersten cf acima mas sabemos pelo Hitlers Tischgesprache pp 315 ss que já naquele tempo ele ridicularizava esse clamor germânico e pensava mais amplamente em termos arianos 53 Himmler num discurso para os lideres da SS em Kharkov em abril de 1943 Nazi Conspiracy IV 572 ss disse Logo fundei uma SS germânica nos vários países Uma velha indicação da fase anterior à tomada do poder dessa política nãonacional foi dada por Hitler Reden Certamente aceitaremos também na nova classe dominante representantes de outras nações ou seja aqueles que o merecerem devido à sua participação em nossa luta 410 O verdadeiro objetivo da propaganda totalitária não é a persuasão mas a organização o acúmulo da força sem a posse dos meios de violência54 Para esse fim a originalidade do conteúdo ideológico só pode ser considerada como dificuldade desnecessária Não foi por acaso que os dois movimentos totalitários do nosso tempo tão assustadoramente novos em seus métodos de domínio e engenhosos em suas formas de organização nunca prepararam uma doutrina nova nunca inventaram uma ideologia que já não fosse popular55 Não são os sucessos passageiros da demagogia que conquistam as massas mas a realidade palpável e a força de uma organização viva56 Os brilhantes dons de Hitler como orador de massa não lhe conquistaram a posição que ocupava no movimento mas levaram os seus oponentes a subestimálo como simples demagogo enquanto Stálin pôde derrotar o outro orador superior da Revolução Russa57 O que distingue os líderes e ditadores totalitários é a obstinada e simplória determinação com que entre as ideologias existentes escolhem os elementos que mais se prestam como fundamentos para a criação de um mundo inteiramente fictício A ficção dos Protocolos era tão adequada quanto a ficção de uma conspiração trotskista pois ambas continham um elemento de plausibilidade a influência oculta dos judeus no passado a luta pelo poder entre Trótski e Stálin que nem mesmo o mundo fictício do totalitarismo pode de todo dispensar Sua arte consiste em usar e ao mesmo tempo transcender o que há de real de experiência demonstrável na ficção escolhida generalizando tudo num artifício que passa a estar definitivamente fora de qualquer controle possível por parte do indivíduo Com tais generalizações a propaganda totalitária cria um mundo fictício capaz de competir com o mundo real cuja principal desvantagem é nãoser lógico coerente e organizado A coerência da ficção e o rigor organizacional permitem que a generalização sobreviva ao desmascaramento de certas mentiras mais específicas o poder dos judeus após o seu 54 Hadamovsky op cit 55 Heiden op cit p 139 a propaganda não é a arte de inspirar nas massas uma opinião Na verdade é a arte de receber uma opinião das massas 56 Hadamovsky op cit passim A expressão é extraída do Mein Kampf de Hitler livro II capítulo ix em que a organização viva de um movimento é contrastada com o mecanismo morto de um partido burocrático 57 Seria grave erro interpretar os líderes totalitários em termos da categoria de Max Wcbwde liderança carismática Ver Hans Gerth The Nazi Party em American Journal oSociology 1940 vol XLV Um erro semelhante constitui o defeito da biografia de Heiden op cit Gerth descreve Hitler como líder carismático de um partido burocrático Em sua opinião somente isso pode explicar o fato de que por mais flagrante que fosse a contradição entre os atos e as palavras nada podia destruir a organização firmemente disciplinada Essa contradição aliás é muito mais característica de Stálin que tinha o cuidado de dizer sempre o oposto do que fazia e de fazer o oposto do que dizia Souvarine op cit p 431 Para a origem desse erro de interpretação ver Alfred von Martin Zur Soziologie der Gegenwart Para a sociologia da atualidade em Zeitschrifi für Kulturgeschichte vol 27 e Arnold Koettgen Die Gesetzmãssigkeit der Verwaltung im Führerstaat A normalidade administrativa no Estado do Führer em Reichsverwaltungsblatt 1936 ambos caracterizam o Estado nazista como uma burocracia sob liderança carismática 411 massacre sem defesa a sinistra conspiração global dos trotskistas após a sua liquidação na União Soviética e o assassínio do próprio Trótski A obstinação com que os ditadores totalitários se aferram às suas mentiras originais mesmo diante do absurdo devese a algo mais que a supersticiosa gratidão àquilo que funcionou e pelo menos no caso de Stálin não pode ser explicada pela psicologia do mentiroso cujo sucesso faz dele próprio a sua última vítima Uma vez integrados numa organização viva esses slogans de propaganda não podem ser eliminados sem riscos sem destruir toda a estrutura A propaganda totalitária transformou a suposição de uma conspiração mundial judaica de assunto discutível que era em principal elemento da realidade nazista o fato é que os nazistas agiam como se o mundo fosse dominado pelos judeus e precisasse de uma contraconspiração para se defender Para eles o racismo já não era uma teoria debatível de duvidoso valor científico mas sim a realidade prática de cada dia na hierarquia operante de uma organização política em cuja estrutura teria sido muito irrealista pôlo em dúvida Do mesmo modo o bolchevismo já não precisa vencer uma discussão a respeito da luta de classes do internacionalismo e da dependência incondicional do proletariado em relação ao bemestar da União Soviética a organização ativa do Comintern até a sua dissolução nessa forma oficial foi mais convincente do que qualquer argumento ou mera ideologia O motivo fundamental da superioridade da propaganda totalitária em comparação com a propaganda de outros partidos e movimentos é que o seu conteúdo pelo menos para os membros do movimento não é mais uma questão objetiva a respeito da qual as pessoas possam ter opiniões mas tornouse parte tão real e intocável de sua vida como as regras da aritmética A organização de toda a textura da vida segundo uma ideologia só pode realizarse completamente sob um regime totalitário Na Alemanha nazista duvidar da validade do racismo e do antisemitismo quando nada importava senão a origem racial quando uma carreira dependia de uma fisionomia ariana Himmler costumava selecionar os candidatos à SS por fotografias e a quantidade de comida que cabia a uma pessoa dependia do número dos seus avós judeus era como colocar em dúvida a própria existência do mundo As vantagens de uma propaganda que constantemente empresta à voz fraca e falível do argumento a força da organização58 e dessa forma realiza por assim dizer instantaneamente tudo o que diz são tão óbvias que dispensam demonstração Garantida contra argumentos baseados numa realidade que os movimentos prometeram mudar contra uma propaganda adversária desqualificada pelo simples fato de pertencer ou defender um mundo que as massas ociosas não podem e não querem aceitar sua inverdade só pode ser demonstrada por outra realidade mais forte ou melhor 58 Hadamovsky op cit p 21 Para fins totalitários é um erro propagar a ideologia através do ensino e da persuasão Nas palavras de Robert Ley ela não pode ser ensinada nem aprendida mas apenas exercida e praticada em Der Weg zur Ordensburg sem data 412 É no momento da derrota que a fraqueza inerente da propaganda totalitária se torna visível Sem a força do movimento seus membros cessam imediatamente de acreditar no dogma pelo qual ainda ontem estavam dispostos a sacrificar a vida Jggojjueiimovimento isto é o mundo fictício que as abrigou édestruído as massas revertem ao seu antigo status de indivíduos isolados que aceitam de bom grado uma nova função num mundo novo ou mergulham novamente em sua antiga e desesperada superfluidade Os membros dos movimentos totalitários inteiramente fanáticos enquanto o movimento existe não seguem o exemplo dos fanáticos religiosos morrendo como mártires embora estivessem antes tão dispostos a morrer como robôs59 mas abandonam calmamente o movimento como algo que não deu certo e procuram em torno de si outra ficção promissora ou esperam até que a velha ficção recupere força suficiente para criar novo movimento de massa A experiência dos aliados que em vão tentaram localizar um único nazista confesso e convicto entre o povo alemão 90 do qual fora sincero simpatizante num ou noutro momento não deve ser tomada simplesmente como sinal de fraqueza humana e grosseiro oportunismo O nazismo como ideologia havia sido realizado de modo tão completo que o seu conteúdo deixara de existir como um conjunto independente de doutrinas Perdera assim a sua existência intelectual a destruição da realidade portanto quase nada deixou em seu rastro muito menos o fanatismo dos adeptos 2 A ORGANIZAÇÃO TOTALITÁRIA As formas da organização totalitária em contraposição com o seu con I teúdo ideológico e os slogans de propaganda são completamente novas60 ViJ sam a dar às mentiras propagandísticas do movimento tecidas em torno de uma ficção central a conspiração dos judeus dos trotskistas das trezentas famílias etc a realidade operante e a construir mesmo em circunstâncias nãototalitárias uma sociedade cujos membros ajam e reajam segundo as regras de um mundo fictício Em contraste com partidos e movimentos aparentemente semelhantes de orientação fascista ou socialista nacionalista ou comunista que dão à sua propaganda o apoio terrorista assim que atingem um certo grau de extremismo o que geralmente depende do grau de desespero dos seus 59 R Hoehn um dos principais teóricos políticos nazistas interpreta essa ausência de doutrina ou mesmo de um conjunto comum de ideais e crenças no movimento em seu Reichsgemeinschaft und Volksgemeinschaft Hamburgo 1935 Do ponto de vista da comunidade do povo é destrutiva toda a comunidade de valores p 83 60 Hitler discutindo a relação entre a Weltanschauung e a organização admite como natural que os nazistas tomassem emprestado a outros grupos e partidos a idéia racial die vòlkische Idee e se agiram como se fossem os seus únicos representantes é por terem sido os primeiros a basearem nela uma organização combativa e a formularemna para fins práticos Op cit livro II capítulo v 413 membros o movimento totalitário realmente leva a sério a sua propaganda e essa seriedade se expressa muito mais assustadoramente na organização dos seus adeptos do que na liquidação física dos seus oponentes A organização e a propaganda e não o terror e a propaganda são duas faces da mesma moeda61 O mais surpreendentemente novo expediente organizacional dos movimentos na fase que antecede a tomada do poder é a criação de organizações de vanguarda ou seja a definição da diferença entre os membros do partido e os seus simpatizantes Comparadas a essa invenção outras características tipicamente totalitárias como a nomeação de funcionários por uma cúpula ideológica e a monopolização final das nomeações por um homem só são de menor importância O chamado princípio de liderança não é totalitário em si algumas de suas características derivam do autoritarismo e da ditadura militar que muito contribuíram para obscurecer e subestimar o fenômeno essencialmente totalitário1 Se os funcionários nomeados por alguém de cima tivessem verdadeira autoridade e responsabilidade estaríamos lidando com uma estrutura hierárquica na qual a autoridade e o poder são delegados e regulados por lei O mesmo também se aplica à organização de um exército e à ditadura estabelecida segundo o modelo militar neste caso o poder absoluto de comando de cima para baixo e a obediência absoluta de baixo para cima correspondem a uma situação de extrema emergência em combate e é precisamente por isso que não são totalitárias Uma escala de comando hierarquicamente organizada significa que o poder do comandante depende de todo o sistema hierárquico dentro do qual atua Toda hierarquia por mais autoritária que seja o seu funcionamento e toda escala de comando por mais arbitrário e ditatorial que seja o conteúdo das ordens tende a estabilizarse e constituiria um obstáculo ao poder total do líder de um movimento totalitário62 Na linguagem dos nazistas é o desejo do Führer dinâmico e sempre em movimento e não as suas ordens expressão que poderia indicar uma autoridade fixa e circunscrita que é a lei suprema num Estado totalitário63 O caráter totalitário do princípio de liderança advém unicamente da posição em que o movimento totalitário graças à sua peculiar organização coloca o líder ou seja da importância funcional do líder para o movimento Comprova essa asserção o fato de que tanto no caso de Hitler como no de Stálin o verdadeiro princípio de liderança só se cristalizou lentamente em paralelo com a gradual totalitarização do movimento 61 Ver Hitler Propaganda e organização op cit livro II capítulo xi 62 Exemplo disso é o pedido de Himmler veementemente urgente para que não se emitisse nenhum decreto referente à definição do termo judeu porque com todos esses compromissos idiotas estaremos atando as nossas próprias mãos Documento de Nurembergue n 626 carta a Berger datada de 28 de julho de 1942 cópia fotostática no Centre de Documentation Juive 63 A fórmula O desejo do Führer é a lei suprema encontrase em todas as normas e regulamentações oficiais sobre a conduta do Partido e da SS A melhor fonte nesse assunto é Otto Gauweiler Rechtseinrichtungen und Rechtaufgaben der Bewegung Disposições e tarefas jurídicas do movimento 1939 64 Heiden op cit p 292 menciona a seguinte diferença entre a primeira edição e as edições seguintes de Mein Kampf a primeira edição propõe a eleição de autoridades do partido 414 Um anonimato que muito contribui para a esquisitice do fenômeno encobre as origens dessa estrutura organizacional Não sabemos quem primeiro decidiu organizar os simpatizantes em grupos de vanguarda quem viu primeiro uma força decisiva em si e não apenas um reservatório de onde se poderiam arregimentar membros nas massas vagamente simpatizantes com as quais todo partido costumava contar no dia da eleição mas que eram consideradas demasiado flutuantes para serem aceitas como membros As primeiras organizações de simpatizantes de inspiração comunista tais como os Amigos da União Soviética tornaramse grupos de vanguarda embora originalmente não fossem mais do que os seus nomes indicavam agrupamentos de simpatizantes para ajuda financeira ou de outra natureza como por exemplo assistência legal Hitler foi ojrimejroJ44Íizerque cada movimento devia dividir as massas conquistadas pela propaganda em duas categorias simpatizantes e memjbxjgjsto em si já é muito interessante porém mais significativo ainda é ter baseado essa divisão numa filosofia mais ampla segundo a qual as pessoas em sua maioria são demasiado preguiçosas e covardes para qualquer ato que ultrapasse o mero conhecimento teórico é só uma minoria está disposta a lutar por suas convicções65 Conseqüentemente Hitler foi o primeiro a traçar uma política de contínua ampliação dos escalões de simpatizantes ao mesmo tempo em que mantinha o número de membros do partido estritamente limitado66 Essa noção de uma minoria de membros do partido cercada por uma maioria de simpatizantes aproximase do que vieram a ser as organizações de vanguarda termo que que somente após a eleição recebem poder e autoridade ilimitados todas as edições posteriores estabelecem a nomeação das autoridades do partido pelo líder imediatamente superior Naturalmente para a estabilidade dos regimes totalitários a nomeação vinda de cima é um princípio muito mais importante do que a autoridade ilimitada da autoridade eleita Na prática a autoridade do sublíder era limitada pela absoluta soberania do líder Stálin que vinha do aparelho conspiratório do partido bolchevista provavelmente nunca achou que isso constituísse problema Para ele as nomeações na máquina do partido eram uma questão de acúmulo de poder pessoal Contudo foi somente em meados da década de 30 depois de haver estudado o exemplo de Hitler que ele se deixou tratar por líder Mas é forçoso admitir que poderia facilmente justificar esses métodos citando a teoria de Lênin de que a história de todos os países demonstra que a classe trabalhadora se depender apenas dos seus próprios esforços só é capaz de desenvolver uma consciência sindical e que a sua liderança portanto advém necessariamente de fora Ver Que fazer publicado pela primeira vez em 1902 O fato é que Lênin considerava o Partido Comunista como a parte mais progressista da classe trabalhadora e ao mesmo tempo a alavanca da organização política que dirige toda a massa do proletariado isto é uma organização que está fora e acima da classe Ver W H Chamberlin The Russian Revolution 19171921 Nova York 1935 II 361 Não obstante Lênin não punha em dúvida a validez da democracia intrapartidária embora se inclinasse pela restrição da democracia com relação à própria classe trabalhadora 65 Hitler op cit livro II capítulo xi 66 Ibid Esse princípio foi rigorosamente adotado logo que os nazistas tomaram o poder Dos 7 milhões de membros da juventude hitlerista somente 50 mil foram aceitos como membros do partido em 1937 Ver o prefácio de H L Childs a The Nazi primer Comparese também Gottfried Neesse Die verfassungsrechtliche Gestaltung der EinPartei tmZeitschriftfürdiegesamteStaatswissenschaft 1948 vol 98 p 678 MesmaoPartidp Ünico jamais deve crescer a ponto de incluir toda a população Ele é total devido à influência ideológica que exerce sobre a nação 415 realmente exprime muito bem a sua função ulterior e indica a relação entre membros e simpatizantes dentro do próprio movimento Pois as organizações de vanguarda de simpatizantes não são menos essenciais ao funcionamento do movimento do que os seus verdadeiros membros As organizações de vanguarda cercam os membros dos movimentos com uma parede protetora que os separa do mundo exterior normal ao mesmo tempo constituem a ponte que os leva de volta à normalidade e sem a qual os membros na fase anterior à tomada do poder sentiriam com demasiada clareza as diferenças entre as suas crenças e as das pessoas normais entre a mentirosa ficção do seu mundo e a realidade do mundo normal A engenhosidãde desse expediente durante a luta do movimento pelo poder é que a organização de vanguarda não apenas isola os membros mas lhes empresta uma aparência de normalidade externa que amortece o impacto da verdadeira realidade de maneira mais eficaz que a simples doutrinação O que consolida a crença de um nazista ou bolchevista na explicação fictícia do mundo é a diferença entre a sua atitude e a do simpatizante porque afinal o simpatizante tem as mesmas convicções embora de um modo mais normal isto é menos fanático e mais confuso de forma que parece ao membro do partido que qualquer pessoa a quem o movimento não tenha expressamente apontado como inimigo um judeu um capitalista etc está do seu lado e que o mundo é cheio de aliados secretos que apenas não têm ainda a necessária força de espírito e de caráter para tirar as conclusões lógicas de suas próprias convicções67 Por outro lado o mundo exterior geralmente tem o primeiro vislumbre do movimento totalitário através das organizações de vanguarda Os simpatizantes que ao que tudo indica são ainda concidadãos inofensivos numa sociedade nãototalitária não podem propriamente ser chamados de fanáticos obstinados através deles os movimentos fazem com que suas fantásticas mentiras sejam mais geralmente aceitas podem divulgar sua propaganda em formas mais suaves e respeitáveis até que toda a atmosfera esteja impregnada de elementos totalitários disfarçados em opiniões e reações políticas normais As organizações de simpatizantes dão aos movimentos totalitários uma aparência de normalidade e respeitabilidade que engana os seus membros quanto à verdadeira natureza do mundo exterior da mesma forma que engana o mundo exterior quanto ao verdadeiro caráter do movimento As organizações de vanguarda funcionam nas duas direções como fachada do movimento totalitário para o mundo não totalitário e como fachada deste mundo para a hierarquia interna do movimento Ainda mais notável do que essa relação é o fato de que ela se repele em níveis diferentes dentro do próprio movimento Os membros do partido mantêm a mesma distância e relação com os simpatizantes que as formações de elite do movimento mantêm com os membros comuns Se o simpatizante parece ser 67 Ver a diferenciação feita por Hitler entre as pessoas radicais que eram as únicas que estavam preparadas para se tornarem membros do partido e as centenas de milhares de simpatizantes que eram demasiado covardes para fazer o necessário sacrifício Op cit loc cit 416 ainda um habitante normal do mundo exterior que adotou o credo totalitário como se pode adotar o programa de um partido comum o membro comum do movimento nazista ou bolchevista ainda pertence em muitos aspectos ao mundo exterior suas relações profissionais e sociais ainda não são determinadas de modo absoluto pelo fato de pertencer ao partido embora ele compreenda ao contrário do simples simpatizante que em caso de conflito entre a fidelidade partidária e a vida privada deverá prevalecer a primeira Por outro lado o membro do grupo militante identificase completamente com o movimento não tendo profissão nem vida pessoal independente deste último Assim como os simpatizantes constituem um muro de proteção em torno dos membros do movimento e representam para eles o mundo exterior também os membros comuns envolvem os grupos militantes e representam para estes o mundo exterior normal Uma vantagem definida dessa estrutura é que ela neutraliza o impacto de um dos dogmas básicos do totalitarismo que afirma ser o mundo dividido em dois gigantescos campos inimigos um dos quais é o movimento e que este pode e deve lutar contra o resto do mundo afirmação que abre o caminho para a indiscriminada agressividade dos regimes totalitários O choque da terrível e monstruosa dicotomia totalitária é neutralizado e nunca totalmente percebido graças a uma cuidadosa graduação de militância na qual cada escalão reflete para o escalão imediatamente superior a imagem do mundo nãototalitário porque é menos militante e os seus membros são menos organizados Esse tipo de organização evita que os seus membros jamais venham a encarar diretamente o mundo exterior cuja hostilidade permanece para eles um simples pressuposto ideológico Permanecem tão bem protegidos contra a realidade do mundo nãototalitário que subestimam constantemente os tremendos riscos da política totalitária Não há dúvida de que os movimentos totalitários atacam o status quo mais radicalmente que qualquer antigo partido revolucionário Podem darse ao luxo desse radicalismo aparentemente tão inadequado para organizações de massa porque a sua organização proporciona um substituto temporário para a vida comum nãopolítica que o totalitarismo realmente procura abolir Todas as pessoas que formam o mundo das relações sociais nãopolíticas das quais o revolucionário profissional teve de separarse ou aceitar como eram existem sob a forma de grupos menos militantes dentro do movimento nesse mundo hierarquicamente organizado os que lutam pela conquista do mundo e pela revolução mundial nunca se expõem ao choque inevitável da discrepância entre as crenças revolucionárias e o mundo normal O motivo pelo qual os movimentos em sua fase revolucionária anterior ao poder podem atrair tantos ho menscomuns é que osjejusmernbros vivem num mundo ilusoriamente normal os membros do partido são rodeados pelo mundo normal dos simpatizantes e as formações de elite pelo mundo normal dos partidários comuns Outra vantagem do modelo totalitário é que pode ser repetido indefinidamente e mantém a organização num estado de fluidez que permite a constante inserção de novas camadas e a definição de novos graus de militância Toda a 417 história do partido nazista pode ser narrada em termos de novas formações dentro do movimento A SA as tropas de assalto fundada em 1922 foi a primeira formação nazista supostamente mais militante que o próprio partido68 em 1926 foi fundada a SS como a formação de elite da SA três anos depois a SS foi separada da SA e colocada sob o comando de Himmler Himmler levou apenas mais alguns anos para repetir o mesmo jogo dentro da SS um após outro e cada qual mais militante que o grupo anterior vieram à luz primeiro as Tropas de Choque69 depois as unidades da Caveira criadas para guardarem os campos de concentração e mais tarde reunidas para formar a SSArmada WaffenSS e finalmente o Serviço de Segurança o serviço de espionagem ideológica do Partido com a sua ramificação para executar a política de população negativa e o Centro para Questões de Raça e Colonização Rasseund Siedlungswesen cuja função era de natureza positiva todos emanados da SS Geral cujos membros com a exceção da elite do Corpo do Führer permaneciam em suas ocupações civis Daí em diante as relações entre essas novas formações e o membro do Corpo do Führer eram as mesmas que entre o membro da SA e o membro da SS ou entre o membro do partido e o membro da SA ou entre o membro da organização de vanguarda e o membro do partido70 Agora a SS Geral era encarregada não apenas de salvaguar 68 Ver Hitler capítulo sobre a SA op cit livro II cap ix 2 parte 69 Ao traduzir Verfügungstruppe ou seja as unidades da SS que deviam estar à disposição especial de Hitler como tropas de choque sigo O C Giles The Gestapo Oxford Pamphlets on World Affairs n 36 1940 70 A fonte mais importante para a organização e a história da SS é Wesen und Aufgabe der SS und der Polizei Caráter e função da SS e da polícia de Himmler em Sammelhefte ausgewàhlter Vortrage und Reden 1939 No decorrer da guerra quando os escalões da WaffenSS tiveram de ser preenchidos com voluntários devido às perdas noronf a WaffenSS perdeu o seu caráter de elite dentro da SS a tal ponto que a SS Geral isto é o Corpo do Führer mais elevado passou mais uma vez a representar o verdadeiro núcleo de elite do movimento em seu aspecto geral Documentação muito reveladora sobre essa última fase da SS encontrase nos arquivos da Hoover Library arquivo Himmler pasta n 278 Mostra que a SS passou a recrutar trabalhadores estrangeiros e a população nativa imitando deliberadamente os métodos e normas da Legião Estrangeira Francesa O recrutamento entre os alemães baseavase numa ordem de Hitler nunca publicada de dezembro de 1942 segundo a qual a classe de 1925 devia ser recrutada para a WaffenSS carta de Himmler a Bormann A convocação e o recrutamento eram tratados ostensivamente como serviços voluntários Mas numerosos relatórios de líderes da SS encarregados da tarefa mostram o que de fato aconteceu Um relatório de 21 de julho de 1943 descreve como a polícia cercava o pavilhão dos trabalhadores franceses que seriam recrutados e como os franceses primeiro cantavam a Marselhesa e depois tentavam pular pelas janelas As tentativas de recrutamento dos jovens alemães também não eram encorajadoras Embora fossem submetidos a extraordinárias pressões e fosselhes dito que certamente não iriam querer incorporar se aos bandos sujos vestidos de cinza o Exército somente dezoito de 220 membros da Juventude Hitlerista apresentaramse para o serviço da SS segundo relatório de 30 de abril de 1943 submetido por Hàussler chefe do Centro de Recrutamento do Sudoeste da WaffenSS todos os outros preferiram alistarse na Wehrmacht É possível que as perdas da SS maiores que as da Wehrmacht influenciassem a sua decisão ver Karl O Paetel Die SS em VierteljahresheftfürZeitgeschichte janeiro de 1954 Mas esse fator por si só não poderia ter sido decisivo como prova o seguinte já em janeiro de 1940 Hitler havia ordenado o recrutamento de homens da SApara as fileiras da WaffenSS os resultados em Koe 418 dar a corporificação da idéia nacionalsocialista mas também de proteger os membros de todos os escalões especiais da SS para que não se afastassem do próprio movimento71 sse tipo de hierarquia flutuantejconi a constante adição de novas camadas e mudanças de autoridade é bem conhecido existe em entidades secretas descontrole como a polícia secreta ou os serviços de espionagem nos quais Sempre há necessidade de novos controles para controlar os controladores Antes que os movimentos tomem o poder a espionagem total ainda não é possível mas a hierarquia flutuante semelhante à dos serviços secretos torna possível mesmo sem o poder efetivo degradar qualquer escalão ou grupo que vacile ou mostre sinais de perda de radicalismo através da mera inserção de mais uma camada radical deslocando assim o grupo mais velho em direção da organização periférica de vanguarda ou seja na direçãooposta ao centro do movimento Assim as formações de elite nazista eram fundamentalmente organizações vindas do âmago do partido a SA galgou a posição de superpartido quando o radicalismo do partido pareceu diminuir e foi depois por sua vez e por motivos semelhantes substituída pela SS Exagerase freqüentemente o valor militar das formações de elite totalitárias especialmente da SA e da SS e de certa forma esquecese o significado puramente interno que tinham para o partido72 Nenhuma das organizações fascistas caracterizadas pela cor da camisa foi fundada para fins específicos de defesa ou de agressão embora a defesa dos líderes ou dos membros comuns do partido fosse citada como pretexto73 A natureza paramilitar dos grupos de elite nazistas e fascistas resultou do fato de terem sido fundados como instrumentos para a luta ideológica do movimento74 contra o pacifismo corrente na Europa depois da Primeira Guerra Mundial Para fins totalitários era muito mais importante criar como expressão de uma atitude agressiva75 um exército de imitação que se assemelhasse o mais possível ao falso exército dos pacifistas os quais incapazes de compreender a função constitucional do Exército dentro da estrutura política denunciavam todas as instituições militares como bandos de assassinos voluntários do que ter uma tropa de soldados bemtreinados A SA e a SS eram sem dúvida organizações exemplares para fins de violência arbitrária e de assassinato não eram tão bemtreinadas quanto o Reichswehr nigsberg baseados num relatório que foi preservado foram esses 1807 membros da SA foram convocados para serviço policial de SS desses 1094 deixaram de apresentarse 631 foram desclassificados 82 estavam aptos para servir na SS 71 WernerBest op cit 1941 p 99 72 Hitler sempre insistiu em que o próprio nome da SA Sturmabteilung indicava que ela era apenas uma secção do movimento como qualquer outra formação partidária Ele procurou também desfazer a ilusão do possível valor militar de uma formação paramilitar e queria que o treinamento fosse realizado segundo as necessidades do partido e não segundo os princípios de um exército Op cit loc cit 73 O motivo oficial da fundação da SA foi a proteção dos comícios nazistas enquanto a tarefa original da SS era a proteção dos líderes nazistas 74 Hitler op cit loc cit 75 ErnstBayerDH4 Berlim 1938 Tradução citada de Naziconspiracy IV 419 Negro e não estavam equipadas para lutar contra tropas regulares A propaganda militarista foi mais popular na Alemanha do pósguerra do que o treinamento militar e os uniformes não aumentaram o valor militar das tropas paramilitares embora fossem úteis como indicação clara da abolição das normas e da moral dos civis de certo modo esses uniformes apaziguavam consideravelmente a consciência dos assassinos e além disso tornavamnos ainda mais acessíveis à obediência cega diante da autoridade inconteste Apesar desses enfeites militares a facção interna do partido nazista que era primordialmente nazista e militarista e portanto encarava as tropas paramilitares não apenas como meras formações partidárias mas como ampliação ilegal do Reichswehr que havia sido limitado pelo Tratado de Paz de Versalhes foi a primeira a ser liquidada Rohm o líder das tropas de assalto da SA havia realmente imaginado e negociado a incorporação da sua SA ao Reichswehr depois que os nazistas tomassem o poder Hitler mandou matálo por sua tentativa de transformar o novo regime nazista em ditadura militar76 Vários anos antes Hitler havia deixado claro que o movimento nazista não desejava tal coisa da chefia da SA demitiu Rohm um verdadeiro soldado cuja experiência na guerra e na organização do Reichswehr Negro teria feito dele um elemento indispensável a um programa sério de treinamento militar e escolheu Himmler um homem sem o menor conhecimento de assuntos militares para reorganizar a SS Além da importância das formações de elite para a estrutura organizacional dos movimentos onde constituíam núcleos mutáveis da militância o seu caráter paramilitar deve ser compreendido em conjunto com outras organizações partidárias profissionais como as dos mestres advogados médicos estudantes professores universitários técnicos e trabalhadores Todos eram essencialmente duplicatas de sociedades profissionais nãototalitárias existentes eram paraprofissionais como as tropas de assalto eram paramilitares Era típico que quanto mais claramente os partidos comunistas europeus se tornavam ramificações do movimento bolchevista dirigido por Moscou tanto mais usa 76 A autobiografia de Ròhm mostra claramente quão pouco as suas convicções políticas concordavam com as dos nazistas Ele desejou um Soldatenstaat Estado dos soldados e insistiu na primazia do soldado com relação ao político op cit p 349 A seguinte passagem revela especialmente a sua incapacidade de compreender o totalitarismo Não vejo por que estas três coisas não possam ser compatíveis a minha lealdade ao príncipe herdeiro da casa de Wittelsbach herdeiro da coroa da Baviera minha admiração pelo intendentegeral da Guerra Mundial isto é Ludendorff que hoje representa a consciência do povo alemão e a minha camaradagem com o arauto e veículo da luta política Adolf Hitler p 348 O que finalmente custou a Rohm a sua cabeça foi que após a tomada do poder pelos nazistas ele visualizava uma ditadura fascista nos moldes do regime italiano na qual o partido nazista quebraria as correntes do partido e se tornaria ele próprio o Estado o que era exatamente o que Hitler estava disposto a evitar Ver o discurso pronunciado por Ernst Rõhm perante o corpo diplomático em dezembro de 1933 em Berlim e publicado sem data sob o título Warum SA Por que a SA Dentro do partido nazista nunca foi esquecida a possibilidade de uma trama entre a SA e o Reichswehr contra o domínio da SS e da polícia Até Hans Frank governadorgeral da Polônia ocupada foi posto sob suspeita em 1942 isto é oito anos depois do assassínio de Rõhm SA e do general Schleicher Reichswehr por desejar após a guerra iniciar a luta pela justiça contra a SS com a ajuda das Forças Armadas e da SA Nazi conspiracy VI 747 420 vam também as suas organizações de vanguarda para competir com grupos puramente profissionais A diferença entre os nazistas e os bolchevistas a esse respeito era que os nazistas tinham forte tendência de considerar essas formações paraprofissionais como parte da elite do partido enquanto os bolchevistas preferiam recrutar delas o material para as suas organizações de vanguarda Q importaníejpara os movimentos totalitários é antes mesmo de tomarem o poder darem a impressão de que todos os elementos da sociedade estão representados em seus escalões o fim último da propaganda nazista eraoiganizar tqdojL os alemães como simpatizantes77 Os nazistas foram um passo adiante neste jogo e criaram uma série de falsos departamentos moldados segundo a administração regular do Estado tais como o seu próprio departamento de relações exteriores educação cultura esportes etc O valor profissional dessas instituições era tão pequeno quanto o valor militar da imitação de exército representada pelas tropas de assalto mas juntas criavam um perfeito mundo de aparências onde cada realidade do mundo nãototalitário era servilmente reproduzida sob forma de embuste Esta técnica de duplicação que de nada serve para a derrubada direta de um governo foi extremamente útil no trabalho de solapar instituições atuantes existentes e na decomposição do status quo1B tarefa que as organizações totalitárias invariavelmente preferem a uma franca exibição de força Se o objetivo dos movimentos é penetrarem como pólipos em todas as posições de poder79 devem estar prontos para qualquer posição específica social ou política Dadaa pretensão dedemínio total todo grupo organizado na sociedade não totalitária parece constituir especificamente uma ameaça de destruir o movimento cada um deles requer um instrumento específico de destruição O valor prático das falsas organizações veio à luz quando os nazistas tomaram o poder e demonstraram estar preparados para destruir imediatamente as organizações existentes de professores por meio de outras organizações de professores os clubes existentes de advogados por meio de um clube de advogados patrocinado pelos nazistas etc Puderam mudar da noite para o dia toda a estrutura da sociedade alemã e não apenas a vida política precisamente porque haviam preparado o correspondente exato de cada setor dentro dos seus próprios escalões Por sinal a tarefa das formações paramilitares terminou quando a hierarquia militar regular pôde ser colocada durante os últimos estágios da guerra sob a autoridade dos generais da SS A técnica dessa coordenação era tão engenhosa e irresistível quanto era rápida e radical a deterioração dos padrões profissionais embora esses resultados fossem mais imediatamente sentidos no campo altamente técnico e especializado da arte militar do que em qualquer outro 77 Hitler op cit livro II capítulo xi afirma que a propaganda procura forçar uma doutrina sobre todo o povo enquanto a organização incorpora apenas uma proporção relativamente pequena dos seus membros mais militantes Comparese também G Neesse op cit 78 Hitlerop citJoc cit 79 Hadamovsky op cit p 28 421 Se a importância das formações paramilitares para os movimentos totalitários não reside no seu duvidoso valor militar também não reside inteiramente na sua falsa imitação do Exército regular Como formações de elite são mais nitidamente separadas do mundo externo do que qualquer outro grupo Os nazistas cedo compreenderam a íntima relação entre a militância total e a separação total da normalidade as tropas de assalto nunca eram enviadas a serviço para as suas comunidades de origem e os oficiais ativos da SA no estágio anterior ao poder e os da SS já sob o regime nazista eram tão móveis e tão freqüentemente substituídos que simplesmente não podiam habituarse ou deitar raízes em nenhuma parte do mundo comum80 Eram organizados segundo o modelo das gangues de criminosos e usados para o assassinato organizado81 Esses assassinatos eram perpetrados publicamente e oficialmente confessados pela alta hierarquia nazista de modo que essa franca cumplicidade quase impossibilitava aos membros deixarem o movimento mesmo sob o governo nãototalitário e mesmo que não fossem ameaçados como realmente o eram por seus antigos camaradas A esse respeito a função das formações de elite é exatamente oposta àquela das organizações de vanguarda enquanto as últimas emprestam ao movimento um ar de respeitabilidade e inspiram confiança as primeiras disseminando a cumplicidade fazem com que cada membro do partido sinta que abandonou para sempre o mundo normal onde o assassinato é colocado fora da lei e que será responsabilizado por todos os crimes da elite82 Conseguese isto ainda no estágio anterior ao poder quando a liderança sistematicamente assume responsabilidade por todos os crimes e não deixa dúvida de que foram cometidos para o bem final do movimento A criação de condições artificiais de guerra civil através das quais os nazistas exerceram chantagem até subir ao poder não pretende apenas provocar desordens Para o movimento a violência organizada é o mais eficaz dos muros protetores que cercam o seu mundo fictício cuja realidade é comprovada 80 As unidades da Caveira da SS eram submetidas às seguintes regras 1 Nenhuma unidade é convocada para serviço em seu distrito natal 2 Toda unidade é transferida após três semanas de serviço 3 Os membros nunca devem ser enviados às ruas sozinhos nem devem jamais exibir em público sua insígnia da Caveira Ver Secret speech by Himmler to the German Army General Staff 1938 o discurso foi proferido em 1937 em Nazi conspiracy IV 616 Publicado também pelo American Committee for AntiNazi Literature 81 Heinrich Himmler Die Schutzstaffel ais antibolschewistische Kampforganisation A SS como organização de luta antibolchevista em Aus dem Schwarzen Korps n 3 1936 disse publicamente Sei que existem pessoas na Alemanha que sentem náuseas quando vêem este dólmã negro Compreendemos isto e não esperamos que muita gente goste de nós 82 Em seus discursos para a SS Himmler sempre acentuava os crimes cometidos mencionando a sua gravidade Diria por exemplo acerca da liquidação dos judeus Desejo também falarvos de um assunto muito grave Entre nós ele pode ser mencionado francamente mas nunca o mencionaremos em público Sobre a liquidação dos intelectuais poloneses deveis ser informados disto e também esquecêlo imediatamente Nazi conspiracy IV 558 e 553 respectivamente Goebbels op cit p 266 observa no mesmo tom No tocante à questão judaica especialmente tomamos uma posição da qual não é possível recuar Aexperiência nos ensina que um movimento e um povo que queimou as suas pontes luta com determinação muito maior que aqueles que ainda podem recuar 422 quando um membro receia mais abandonar o movimento do que as conseqüências da sua cumplicidade em atos ilegais e se sente mais seguro como membro do que como oponente Esse sentimento de segurança resultante da violência organizada com a qual as formações de elite protegem os membros do partido contra o mundo exterior é tão importante para a integridade do mundo fictício da organização quanto o medo do seu terrorismo No centro do movimento como o motor que o aciona sentase o Líder Separao da formação de elite um círculo interno de iniciados que o envolvem numa aura de impenetrável mistério correspondente à sua preponderância inatingível83 Sua posição dentro desse círculo íntimo depende da habilidade com que arma intrigas entre os membros e efetua constantes mudanças de pessoal Deve a liderança mais à sua extrema capacidade de manobrar as lutas intestinas do partido pelo poder do que a qualidades demagógicas ou burocráticoorganizacionais Difere do antigo tipo de ditador por não precisar vencer por meio da simples violência Hitler não necessitou nem da SA nem da SS para assegurar a sua posição como líder do movimento nazista pelo contrário Rõhm o chefe da SA que podia contar com a lealdade da SA em relação à sua pessoa era um dos inimigos de Hitler dentro do partido Stálin venceu Trótski que não somente tinha muito maior poder de atração sobre as massas mas que ainda como chefe do Exército Vermelho detinha em suas mãos o maior potencial de poder da Rússia soviética na época84 E não era Stálin mas Trótski o maior talento organizacional o burocrata mais capaz da Revolução Russa85 Por outro lado tanto Hitler como Stálin eram mestres em detalhes e nos estágios iniciais de suas carreiras dedicaramse quase exclusivamente a questões de pessoal de modo que alguns anos depois quase todo homem importante no partido devia a eles a sua posição86 Tais capacidades pessoais no entanto embora sejam um prérequisito absoluto para os primeiros estágios da carreira e mesmo mais tarde estejam 83 Souvarine op cit p 648 A maneira como os movimentos totalitários mantiveram absolutamente secreta a vida privada dos seus líderes Hitler e Stálin contrasta com a importância que as democracias vêem na divulgação da vida privada de presidentes reis primeirosministros etc Os métodds totalitários não permitem uma identificação baseada na convicção de que mesmo o mais importante dos homens é apenas um ser humano Souvarine op cit cita os rótulos mais freqüentemente usados para descrever Stálin Stálin o misterioso morador do Kremlin Stálin personalidade impenetrável Stálin a Esfinge Comunista Stálin o Enigma o mistério insolúvel etc 84 Se Trótski houvesse preferido montar um coup détat militar teria possivelmente derrotado os triúnviros Mas deixou o cargo sem fazer a menor tentativa de chamar em sua defesa o exército que havia criado e comandado durante sete anos Isaac Deutscher op cit p 297 85 O Comissariado da Guerra sob Trótski era uma instituição tão modelar que Trótski era procurado sempre que havia desordem nos outros ministérios Souvarine op cit p 288 86 As circunstâncias da morte de Stálin parecem contradizer a infalibilidade desses métodos Ê muito possível que Stálin o qual antes de morrer sem dúvida planejava outro expurgo geral tenha sido morto por alguns elementos do seu séquito devido ao fato de que ninguém mais se sentia seguro mas isto nunca pôde ser provado O fato é que os sucessores de Stálin seus 423 longe de serem insignificantes já não são decisivas a partir do momento em que o movimento totalitário se consolida em que se estabelece o princípio de que o desejo do Führer é a lei do Partido e toda a hierarquia partidária está eficazmente treinada para o único fim de transmitir rapidamente o desejo do Líder a todos os escalões A essa altura o Líder tornase insubstituível porque toda a complicada estrutura do movimento perderia a sua raison dêtre sem as suas ordens Agora a despeito das eternas cabalas do círculo íntimo e das infindáveis mudanças de pessoal com as tremendas acumulações de ódio amargura e ressentimento pessoal que acarretam a posição do Líder pode repousar em segurança contra as caóticas revoluções palacianas não devido aos seus dons superiores a respeito dos quais os homens dos círculos íntimos geralmente não têm ilusões mas graças à sincera e sensata convicção desses homens de que sem ele todo o movimento iria imediatamente por água abaixo A suprema tarefa do Líder é personificar a dupla função que caracteriza cada camada do movimento agir como a defesa mágica do movimento contra o mundo exterior e ao mesmo tempo ser a ponte direta através da qual o movimento se liga a esse mundo O Líder representa o movimento de um modo totalmente diferente de todos os líderes de partidos comuns já que proclama a sua responsabilidade pessoal por todos os atos proezas e crimes cometidos por qualquer membro ou funcionário em sua qualidade oficial Essa responsabilidade total é o aspecto organizacional mais importante do chamado princípio de liderança segundo o qual cada funcionário não é apenas designado pelo Líder mas é a sua própria encarnação viva e toda ordem emana supostamente dessa única fonte onipresente Essa completa identificação do Líder com todo sublíder nomeado por ele e esse monopólio de responsabilidade centralizado por tudo o que foi está sendo ou virá a ser feito são também oslimusmãis visíveis da grande diferença entre o líder totalitário e o ditador ou désposta comum Um tirano jamais se identificaria com os seus subordinados e muito menos com cada um dos seus atos87 poderia usálos como bodes expiatórios deixando com prazer que fossem criticados para colocarse a salvo da ira do povo mas sempre manteria uma distância absoluta de todos os seus subordinados e súditos O Líder ao contrário não pode tolerar críticas aos seus subordinados uma vez que todos agem em seu nome se deseja corrigir os próprios erros tem que liquidar aqueles que os cometerem por ele se deseja inculpar a outros por esses erros tem de matálos Pois nessa estrutura organizacional o erro só pode ser uma fraude o Líder estava sendo representado por um impostor88 acólitos sem dúvida mas talvez dentro dos critérios acima seus assassinos desfizeramse depois do único homem que entre eles detinha o poder suficiente para eliminálos Tratase de Beria o todopoderoso chefe da polícia secreta da URSS N E 87 Hitler telegrafou pessoalmente aos assassinos da SA assumindo a responsabilidade pelo assassinato de Potempa embora provavelmente nada tivesse a ver com ele O que importava no caso era estabelecer um princípio de identificação ou nas palavras dos nazistas a lealdade mútua do Líder e do povo na qual se baseava o Reich Hans Frank op cit 88 Uma das principais características de Stálin é jogar sistematicamente os seus crimes e malfeitorias bem como os seus erros políticos nos ombros daqueles que ele planeja 424 Essa responsabilidade total por tudo o que o movimento faz e essa identificação total com cada um dos funcionários têm a conseqüência muito prática de que ninguém se vê numa situação em que tem de se responsabilizar por suas ações ou explicar os motivos que levaram a elas Uma vez que o Líder mono poliza o direito e a possibilidade de explicação ele é para o mundo exterior à única pessoa que sabe o que está fazendo isto é o único representante do movimento com quem ainda é possível conversar em termos nãototalitários e queem caso de censura ou de oposição não dirá não me pergunte pergunte ao Líder Estando no centro do movimento o Líder pode agir como se estivesse acima dele Ê portanto perfeitamente compreensível embora perfeitamente fútil que pessoas de fora depositem muitas vezes suas esperanças numa conversa pessoal com o próprio Líder quando têm de tratar com movimentos ou governos totalitários O verdadeiro mistério do Líder totalitário reside na organização que lhe permite assumir a responsabilidade total por todos os crimes cometidos pelas formações de elite e ao mesmo tempo adotar a honesta e inocente respeitabilidade do mais ingênuo simpatizante89 Os movimentos totalitários têm sido chamados de sociedades secretas montadas à luz do dia90 Realmente embora pouco se saiba quanto à estru desacreditar e arruinar Souvarine op cit p 655 É óbvio que um líder totalitário pode escolher livremente quem ele deseja que assuma a culpa dos seus erros uma vez que todos os atos conhecidos pelos sublíderes são inspirados por ele de modo que qualquer pessoa pode ser forçada a assumir o papel de impostor 89 Já ficou provado por meio de numerosos documentos que era o próprio Hitler e não Himmler nem Bormann nem Goebbels quem sempre tomava a iniciativa das medidas realmente radicais que essas medidas eram sempre mais radicais que aquelas propostas por seus seguidores imediatos que até mesmo Himmler ficou horrorizado quando recebeu a incumbência da solução final da questão judaica E tampouco merece alguma fé a lenda de que Stálin era mais moderado que as facções esquerdistas do partido bolchevista É importante lembrar que os líderes totalitários procuram invariavelmente parecer mais moderados para o mundo exterior e que o seu principal papel que é o de impelir para frente o movimento a qualquer preço e de acelerálo e não retardálo é sempre cuidadosamente oculto Ver por exemplo o memorando do almirante Erich Raeder My relationship to Adolf Hitler and to the Party em Nazi conspiracy VIII 707 ss Quando surgiram informações e boatos acerca de medidas radicais do Partido e da Gestapo era possível chegarse à conclusão pela conduta do Führer de que essas medidas não haviam sido ordenadas pelo próprio Führer Em anos subseqüentes cheguei gradualmente à conclusão de que o próprio Führer sempre se inclinava pela solução mais radical sem deixar que ninguém o percebesse Na luta intrapartidária que precedeu a subida ao poder absoluto Stálin sempre teve o cuidado de assumir a pose do homem do meiotermo ver Deutscher op cit pp 295 ss embora certamente não fosse nenhum homem afeito a acomodações nunca abandonou inteiramente esse papel Quando por exemplo um jornalista estrangeiro lhe indagou em 1936 acerca dos objetivos de revolução mundial do movimento comunista ele respondeu Nunca tivemos tais planos e intenções Tratase de um malentendido Um malentendido cômico ou antes tragicô mico Deutscher op cit p 422 90 Ver Alexandre Koyré The political function of the modern lie em Contemporary Jewish Record junho de 1945 Hitler op cit livro II capitulo ix discute longamente os prós e contras das sociedades secretas como modelos para os movimentos totalitários Na verdade as considerações que ele faz 425 tura sociológica e à história mais recente das sociedades secretas a estrutura dos movimentos sem precedentes quando comparada com partidos e facções lembranos em primeiro lugar certas características dessas sociedades91 As sociedades secretas formam também hierarquias de acordo com o grau de iniciação regulam a vida dos seus membros segundo um pressuposto secreto e fictício que faz com que cada coisa pareça ser outra coisa diferente adotam uma estratégia de mentiras coerentes para iludir as massas de fora não iniciadas exigem obediência irrestrita dos seus membros que são mantidos coesos pela fidelidade a um líder freqüentemente desconhecido e sempre misterioso rodeado ou supostamente rodeado por um pequeno círculo de iniciados e estes por sua vez são rodeados por semiiniciados que constituem uma espécie de amortecedor contra o mundo profano e hostil 9MDs movimentos totalitários têm ainda em comum com as sociedades secretas a divisão dicotômica do mundo entre irmãos jurados de sangue e uma massa indistinta e inarticulada de inimigos jurados93 Essa distinção baseada na absoluta hostilidade contra o mundo que os rodeia é muito diferente da tendência dos partidos comuns de dividir o povo entre os que pertencem e os que não pertencem à organização Os levamno à conclusão de Koyré de que é preciso adotar os princípios das sociedades secretas sem o seu sigilo e instalálas à plena luz do dia No estágio anterior à tomada do poder os nazistas nada mantinham em segredo Foi somente durante a guerra quando o regime nazista se tornou inteiramente totalitarizado e a liderança do partido se viu cercada por todos os lados pela hierarquia militar da qual dependia para a condução da guerra que as formações de elite receberam instruções perfeitamente claras para manterem absolutamente secreto tudo o que dissesse respeito à solução final isto é o extermínio em massa dos judeus Foi também por essa época que Hitler passou a agir como chefe de um bando de conspiradores mas não sem anunciar e divulgar pessoalmente esse fato com bastante clareza No decorrer de uma reunião com o EstadoMaior em maio de 1939 Hitler estabeleceu as seguintes normas que parecem haver sido copiadas de uma cartilha de sociedades secretas 1 Nenhuma informação será dada a quem não precisa saber 2 Ninguém deve saber mais do que precisa 3 Ninguém deve saber antes do tempo necessário citadas por Heinz Holldack Was wirklich geschah O que realmente aconteceu 1949 p 378 91 A análise que fazemos a seguir acompanha de perto Sociology of secrecy and of secret societies de Georg Simmel em The American Journal of Sociology vol XI n 4 janeiro de 1906 que constitui o capítulo v de suaSoziologie Leipzig 1908 da qual alguns trechos foram traduzidos por Kurt Wolff sob o título The sociology of Georg Simmel 1950 92 Exatamente pelo fato de que os graus inferiores da sociedade constituem uma transição mediatória para o verdadeiro centro do segredo permitem a compreensão gradual da esfera de repulsa em torno do mesmo o que proporciona uma proteção mais segura do que adviria da aspereza de uma posição radical fosse de fora ou de dentro ibid p 489 93 As expressões irmãos jurados camaradas jurados comunidade jurada etc são repetidas ad nauseam em toda a literatura nazista em parte devido à atração que tinham para o romantismo juvenil muito comum no movimento da juventude alemã Foi principalmente Himmler quem usou essas expressões com um sentido mais definido introduzindoas na senha central da SS Unimonos assim e marchamos para um futuro distante segundo as leis imutáveis como uma classe nacionalsocialista de homens nórdicos e comunidade jurada das suas tribos Sippen Ver DAlquen op cit e lhes deu o expressivo significado de absoluta hostilidade contra todos os outros ver Simmel op cit p 489 Assim quando a massa da humanidade de 1 a 15 bilhão sic se unir contra nós o povo alemão Ver o discurso de Himmler na reunião dos generais da SS em Posen atual Poznan Polônia a 4 de outubro de 1943 Nazi conspiracy IV 558 426 partidos e as sociedades abertas geralmente só consideram inimigos aqueles que se lhes opõem expressamente enquanto o princípio das sociedades secretas sempre foi que aquele que não estiver expressamente incluído está excluído94 Esse princípio esotérico parece inteiramente inadequado a organizações de massa contudo os nazistas ofereciam aos seus membros pelo menos o equivalente psicológico do ritual de iniciação das sociedades secretas quando em lugar de simplesmente excluírem os judeus da organização exigiam prova de ascendência não judaiçar dos seus membros estabelecendo um complicado mecanismo para esclarecer a obscura origem genética de 80 milhões de alemães O resultado foi uma comédia e uma comédia cara quando 80 milhões de alemães saíram à cata de avós judeus mas aqueles que passavam a prova sentiam pertencer a um grupo de incluídos que se destacava contra uma multidão imaginária de inelegíveis O mesmo princípio é aplicado no movimento bolchevista através de repetidos expurgos no partido que inspiram em todos os que sobram uma reafirmação da sua inclusão Talvez a mais clara semelhança entre as sociedades secretas e osjnovimentos totalitários esteja na importância do ritual As marchas na praça Vermelha em Moscou são nesse ponto tão típicas quanto as pomposas formalidades do nazismo do tempo de Nurembergue No centro do ritual nazista estava a chamada bandeira de sangue e no centro do ritual bolchevista está o corpo mumificado de Lênin ambos impregnando a cerimônia com um forte elemento de idolatria Essa idolatria não prova a existência de tendências pseudoreligiosas ou heréticas que muitos querem ver nos movimentos totalitários Os ídolos são simples truques organizacionais muito praticados nas sociedades secretas que também forçavam os seus membros a guardar segredo por medo e respeito a símbolos assustadores As pessoas unemse mais firmemente através da experiência partilhada de um ritual secreto do que pela simples admissão ao conhecimento do segredo O fato de que o segredo dos movimentos totalitários é exibido em plena luz do dia não muda necessariamente a natureza da experiência95 Naturalmente essas semelhanças não são acidentais não podem ser explicadas simplesmente pelo fato de que tanto Hitler como Stálin haviam sido membros de sociedades secretas antes de se tornarem líderes totalitários Hitler no serviço secreto do Reichswehr e Stálin na conspiração do partido bolche 94 Simmel op cit p 490 Esse princípio como tantos outros foi adotado pelos nazistas após cuidadoso estudo das implicações dos Protocolos dos sábios do Sião Hitler dizia já em 1922 Os homens da Direita ainda não compreenderam que não é necessário ser inimigo dos judeus para que um dia acabem na forca Basta não ser judeu com isso se vai parar na forca Hitlers speeches p 12 Na época ninguém podia imaginar que esse tipo de propaganda realmente significava que um dia não seria necessário ser um inimigo dos nazistas para ser levado à forca bastaria ser um judeu ou finalmente membro de algum outro povo para ser declarado racialmente inapto à vida por alguma Comissão de Saúde Himmler acreditava e pregava que toda a SS se baseava no princípio de que devemos ser honestos decentes leais e amigos com os membros do nosso próprio sangue e com ninguém mais op cit loc cit 95 Simmel op cit pp 4801 427 vista São até certo ponto resultado natural da ficção conspiratória do totalitarismo cujas organizações são supostamente criadas para combater as sociedades secretas a sociedade secreta dos judeus ou a sociedade dos conspiradores trotskistas O que é notável nas organizações totalitárias é que saibam adotar expedientes organizacionais das sociedades secretas sem jamais manter em segredco seu próprio objetivo Que os nazistas queriam conquistar o mundo deportar todos os que fossem racialmente estrangeiros e exterminar todos os que tivessem herança biológica inferior que os bolchevistas lutam pela revolução mundial nada disso jamais foi segredo pelo contrário esses objetivos sempre fizeram parte da sua propaganda Em outras palavras os movia mentos totalitários imitam todos os acessórios das sociedades secretas mas es vaziamnas do único elemento que poderia justificar os seus métodos a necessidade de manter segredo Nisso como em tantos outros aspectos o nazismo e o bolchevismo chegaram ao mesmo resultado organizacional a partir de origens históricas muito diferentes Os nazistas começaram com a ficção de uma conspiração e imitaram mais ou menos conscientemente o modelo da sociedade secreta dos sábios do Sião enquanto os bolchevistas vieram de um partido revolucionário cujo objetivo era a ditadura de um só partido atravessaram a fase em que o partido ficava inteiramente acima e separado de tudo até o instante em que o Politburo do partido ficou inteiramente acima e separado de tudo96 finalmente Stálin impôs a essa estrutura partidária as rígidas normas totalitárias do seu setor conspirativo e somente então descobriu a necessidade de uma ficção central para manter na organização de massa a férrea disciplina de uma organização secreta A evolução nazista pode ser mais lógica mais coerente consigo mesma mas a história do partido bolchevista é um exemplo melhor da natureza essencialmente fictícia do totalitarismo precisamente porque as fictícias conspirações globais contra as quais e de acordo com as quais a conspiração bolchevista supostamente se organizou não foram ideologicamente fixadas Mudaram dos trotskistas para as trezentas famílias depois para os vários imperialismos e mais recentemente para o cosmopolitismo sem raízes e foram ajustadas à realidade política segundo as necessidades do momento mas nunca e em nenhuma das mais diversas circunstâncias pôde o bolchevismo passar sem algum tipo de ficção Os meios pelos quais Stálin transformou a ditadura unipartidária russa em regime totalitário e os partidos comunistas revolucionários de todo o mundo em movimentos totalitários foram a liquidação das facções divergentes a abolição da democracia interna do partido e a transformação dos partidos comunistas nacionais em ramificações do Comintern dirigidas a partir de Moscou As sociedades secretas em geral e o aparelho conspirativo dos partidos revolucionários em particular sempre foram caracterizados pela ausência de facções pela supressão de opiniões dissidentes e pela absoluta centralização do co 96 Souvarine op cit p 319 adota uma expressão de Bukharín 428 mando Todas essas medidas têm a óbvia finalidade utilitária de proteger os membros contra a perseguição e a sociedade contra a traição a obediência total exigida de cada membro e o poder absoluto nas mãos do chefe foram apenas subprodutos inevitáveis de necessidades práticas O problema porém é que os conspiradores têm uma tendência compreensível aliás de julgar como mais eficazes na política os métodos das sociedades conspirativas e de supor que se esses métodos puderem ser aplicados abertamente com o apoio dos instrumentos de violência de toda uma nação as possibilidades de acúmulo de poder tornamse infinitas97 O setor conspirativo de um partido revolucionário pode enquanto o próprio partido ainda está intacto ser equiparado ao Exército dentro de uma estrutura política intacta embora as suas próprias regras de conduta sejam radicalmente diferentes das regras do corpo civil o Exército serve ao corpo político e permanece sujeito e controlado por ele Da mesma forma que o perigo de uma ditadura militar surge quando o Exército já não quer servir mas dominar o corpo político também o perigo do totalitarismo surge quando o setor conspirativo do partido revolucionário se emancipa do controle do partido e aspira à liderança Foi isso o que aconteceu aos partidos comunistas sob o regime de Stálin Os métodos de Stálin sempre foram típicos de um homem proveniente do setor conspirativo do partido a devoção ao detalhe a ênfase quanto ao lado pessoal da política a crueldade no uso e na liquidação de companheiros e amigos Quem mais o apoiou na luta pela sucessão após a morte de Lenin foi a polícia secreta98 que na época já era uma das mais importantes e poderosas seções do partido99 Nada mais natural que as simpatias da Cheka a polícia secreta da URSS pendessem a favor do representante da seção conspirativa do homem que já a encarava como uma espécie de sociedade secreta e que portanto provavelmente lhe preservaria e até acrescentaria os privilégios A tomada dos partidos comunistas pelos setores conspirativos foi porém apenas o primeiro passo da sua transformação em movimento totalitário Não bastava que a polícia secreta da Rússia e os seus agentes nos partidos comunistas do exterior desempenhassem no movimento o mesmo papel das formações de elite criadas pelos nazistas sob forma de tropas paramilitares Os próprios partidos tinham de ser transformados para que o domínio da polícia secreta permanecesse seguro A liquidação das facções e da democracia interna do partido foi conseqüentemente acompanhada na Rússia pela admissão 97 Souvarine op cit p 113 menciona que Stálin sempre se impressionava com aqueles que eram bemsucedidos nos negócios Via a política como um negócio que exigia destreza 98 Nas lutas intrapartidárias dos anos 20 os colaboradores da GPU eram quase sem exceção fanáticos seguidores de Stálin Os serviços da GPU naquela época eram os baluartes da secção stalinista Ciliga op cit p 48 Souvarine op cit p 289 relata que mesmo anes Stálin havia continuado a ação policial que havia iniciado durante a Guerra Civil e havia sido representante do Politburo na GPU 99 Imediatamente após a guerra civil na Rússia o Pravda afirmava que a fórmula Todo o poder aos Sovietes havia sido substituída por Todo o poder à Cheka O fim das hostilidades armadas reduziu o controle militar mas deixou uma Cheka ramificada que se aperfeiçoava através da simplificação operacional Souvarine op cit p 251 429 como membros de grandes massas politicamente deseducadas e neutras manobra que foi rapidamente seguida pelos partidos comunistas no estrangeiro depois que a Frente Popular a adotou na França O totalitarismo nazista começou com uma organização de massa que foi apenasgradualmente dominada pelas formações de elite enquanto os bolchevistas começaram com formações de elite e organizaram as massas de acordo com elas Em ambos os casos ò resultado foi idêntico Além disso os nazistas em virtude da tradição e preconceitos militaristas moldaram inicialmente suas formações de elite segundo o padrão do Exército enquanto os bolchevistas desde o início outorgaram à polícia secreta o direito de exercer o poder supremo Contudo bastaram poucos anos para que também essa diferença desaparecesse o chefe da SS tornouse chefe da polícia secreta e as formações da SS foram gradualmente incorporadas ao antigo pessoal da Gestapo ao qual iriam substituir embora esse pessoal já fosse constituído de nazistas dignos de confiança100 É devido à afinidade fundamental entre o funcionamento de uma sociedade secreta de conspiradores e a polícia secreta organizada para combatêla qüe os regimes totalitários baseados na ficção de um conspiração global e visando ao domínio global passam a concentrar todo o poder nas mãos da polícia Na fase que antecede o poder porém as sociedades secretas à luz do diaJroporcionam outras vantagens organizacionais A contradição óbvia entre uma organização de massa e uma sociedade exclusiva que é a única à qual se pode confiar um segredo não tem importância quando é comparada ao fato de que a própria estrutura das sociedades secretas e conspiradoras pode transformar em princípio organizacional a dicotomia ideológica do totalitarismo a cega hostilidade das massas contra o mundo existente independentemente de divergências e diferenças Do ponto de vista da organização que funciona segundo o princípio de que quem não está incluído está excluído e quem não está comigo está contra mim o mundo perde todas as nuances diferenciações e aspectospluralísticos coisas que afinal se haviam tornado confusas e insuportáveis para as massas que perderam o seu lugar e a sua orientação dentro dele101 O que as levou à inabalável lealdade de membros de sociedades secretas não foi tanto o segredo como a dicotomia entre nós e todos os outros Um meio 100 A Gestapo Geheime Staatspolizei Polícia Secreta do Estado foi instituída por Gõring em 1933 Himmlerfoi nomeado chefe da Gestapo em 1934 e passou imediatamente a substituir o seu pessoal por homens da SS no fim da guerra 75 dos agentes da Gestapo eram homens da SS Devese considerar também que as unidades da SS eram particularmente qualificadas para esse tipo de trabalho uma vez que Himmler as havia organizado mesmo na fase anterior ao poder para tarefas de espionagem entre membros do partido Heiden op cit p 308 Quanto à história da Gestapo ver Giles op cit e também Nazi conspiracy vol II capítulo xii 101 Provavelmente um dos erros ideológicos decisivos de Rosenberg que caiu na desgraça do Führer e perdeu a sua influência no movimento a favor de homens como Himmler Bormann e até mesmo Streicher foi que o seu Mito do século XX admite um pluralismo racial do qual somente os judeus eram excluídos Violou assim o princípio conforme o qual quem nâo estivesse incluído o povo germânico estava excluídoa massa da humanidade Cf nota 87 430 de conservar intacta essa lealdade era imitar a eniturajoxganizacional das sociedades secretas esvaziandoa da finalidade racional de preservar um segredo Tampouco importava que isso fosse motivado por uma ideologia deíonspifãÇão como no caso dos nazistas ou pela hipertrofia parasitária do setor conspirativo de um partido revolucionário como no caso dos bolchevistas A afirmação fundamental da organização totalitária é que tudo o que está fora do movimento está morrendo afirmação que é drasticamente posta em prática no clima assassino do regime totalitário mas que mesmo no estágio anterior ao poder parece plausível a massas que fugiram da desintegração e da desorientação para o fictício abrigo do movimento Os movimentos totalitários têmrepetidamente demonstrado que podem inspirar a mesma lealdade total na vida e na morte que caracterizava as sociedades secretas e conspiradoras102 Espetáculo curioso foi a completa ausência de resistência de uma tropa perfeitamente treinada e armada como a SA diante do assassínio de um líder bemamado Rohm e de centenas de camaradas Naquele instante era Rohm e não Hitler quem contava com o apoio do Reich swehr Hoje porém esses incidentes do movimento nazista perdemse de vista diante do constante espetáculo de criminosos confessos nos partidos bolchevistas Julgamentos baseados em confissões absurdas tornaramse parte de um ritual que é importantíssimo internamente e incompreensível para quem está de fora Contudo independentemente de como as vítimas sejam preparadas hoje em dia o ritual deve a sua existência às confissões provavelmente verdadeiras da velha guarda bolchevista de 1936 Muito antes da época dos Julgamentos de Moscou os condenados à morte recebiam a sentença com grande calma atitude que predominava especialmente entre os membros da Cheka10 Enquanto o movimento existe a sua forma peculiar de organização faz com que pelo menos as formações de elite não possam conceber a vida fora do grupo fechado de homens que mesmo condenados ainda se sentem superiores ao resto do mundo nãoiniciado E como o fim único dessa organização sempre foi burlar combater e finalmente conquistar o mundo exterior os seus membros pagam de bom grado com a própria vida contanto que isso ajude a burlar o mundo mais uma vez104 Mas o principal valor da estrutura organizacional e dos padrões morais das organizações secretas ou conspiratórias para fins de organização da massa não está na garantia intrínseca de participação incondicional e lealdade incon 102 Simmel op cit p 492 menciona sociedades secretas criminosas nas quais os membros voluntariamente escolhem um comandante ao qual passam a obedecer sem crítica e sem limite 103 Ciliga op cit pp 967 O autor descreve como os prisioneiros comuns da prisão da GPU em Leningrado condenados à morte deixavamse levar à execução sem uma palavra sem um grito de revolta contra o governo que os executava p 183 104 Ciliga nos diz que os membros do partido que haviam sido condenados achavam que se essas execuções serviam para salvar a ditadura burocrática como um todo se levavam à calma os camponeses rebelados ou antes ao erro o sacrifício de suas vidas não teria sido em vão op cit pp 967 431 dicional nem na manifestação organizacional de hostilidade cega contra o mundo exterior mas na sua incomparável capacidade de estabelecer e proteger o mundo fictício por meio de constantes mentiras Toda a estrutura hierárquica dos movimentos totalitários desde os ingênuos simpatizantes até os membros do partido as formações de elite o círculo íntimo que rodeia o Líder e o próprio Líder pode ser descrita em termos da mistura curiosamente variada de credulidade e cinismo com que se espera que cada membro dependendo do seu grau e da posição que ocupa no movimento reaja às diversas declarações mentirosas do Líder e à ficção ideológica central e imutável do movimento Certa mistura de credulidade e cinismo havia sido importante característica da mentalidade da ralé antes que se tornasse fenômeno diário de massa Num mundo incompreensível e em perpétua mudança as massas haviam chegado a um ponto em que ao mesmo tempo acreditavam em tudo e em nada julgavam que tudo era possível e que nada era verdadeiro A própria mistura por si já era bastante notável pois significava o fim da ilusão de que a credulidade fosse fraqueza de gente primitiva e ingênua e que o cinismo fosse o vício superior dos espíritos refinados A propaganda de massa descobriu que o seu público estava sempre disposto a acreditar no pior por mais absurdo que fosse sem objetar contra o fato de ser enganado uma vez que achava que toda afirmação afinal de contas não passava de mentira Os líderes totalitários basearamasua propaganda no pressuposto psicológico correto de que em tais condições era possível fazer com que as pessoas acreditassem nas mais fantásticas afirmações em determinado dia na certeza de que se recebessem no dia seguinte a prova irrefutável da sua inverdade apelariam para o cinismo em lugar de abandonarem os líderes que lhes haviam mentido diriam que sempre souberam que a afirmação era falsa e admirariam os líderes pela grande esperteza tática Essa reação das audienciasde massa tornouse importante principiohierárquico para as organizações de massa Uma mistura de credulidade e cinismo prevalece em todos os escalões dos movimentos totalitários e quanto mais alto o posto mais o cinismo prevalece sobre a credulidade A convicção essencial compartilhada por todos os escalões desde os simpatizantes até o Líder é de que a política é um jogo de trapaças e que o primeiro mandamento do movimento o Fiihrer sempre tem razão é tão necessário aos fins da política mundial isto é da trapaça mundial como as regras da disciplina militar o são para as finalidades da guerra105 A máquina que gera organiza e dissemina as monstruosas falsidades dos movimentos totalitários também depende da posição do Líder À afirmação 105 A imagem do papel da diplomacia na política expressa por Goebbels é típica Não há dúvida que o melhor a fazer é manter os diplomatas desinformados quanto ao que ocorre na política O argumento mais convincente de sua fidedignidade política é a sinceridade com que representam o papel de apaziguadores op cit p 87 432 propagandística de que todo evento é cientificamente previsível segundo leis naturais ou econômicas a organização totalitária acrescenta a posição dêTum homem que monopolizou esse conhecimento e cuja principal qualidade é o fato de que sempre teve razão e sempre terá razão106 Para o membro do movimento totalitário esse conhecimento nada tem a ver com a verdade da mesma forma que o fato de se estar com a razão nada tem a ver com a veracidade objetiva das afirmações do Líder que não podem ser desmentidas pela realidade mas somente pelos sucessos ou fracassos futuros O Líder sempre tem razão nos seus atos e como estes são planejados para os séculos vindouros o exame final do que ele faz é inacessível aos seus contemporâneos107 Q único grupo que deve acreditar leal e textualmente nas palavrasdo Líder são os simpatizantes cuja confiança envolve o movimento numa atmosfera de honestidade e ingenuidade e que ajudam o Líder a cumprir a metade da sua tarefa isto é inspirar confiança no movimento Os membros dsLPartído jamais acreditam em declaraçõespúblicas nem se espera isso deles mas a propaganda totalitária louvalhes a inteligência superior que supostamente os distingue do mundo externo nãototalitário ao qual por sua vez só conhecem através da anormal credulidade dos simpatizantes Só os simpatizantes nazistas acreditaram em Hitler quando ele prestou juramento de legalidade perante a Suprema Corte da República de Weimar os membros do movimento sabiam muito bem que ele estava mentindo e confiaram nele mais do que nunca exatamente porque ele era capaz de iludir a opinião pública e as autoridades Quando anos depois Hitler repetiu a manobra diante do mundo inteiro quando protestou boas intenções ao mesmo tempo em que preparava abertamente os seus crimes a admiração dos membros do partido foi naturalmente enorme Da mesma forma somente os simpatizantes bolchevistas acreditaram na dissolução do Comintern e somente as massas não organizadas do povo russo e os simpatizantes no exterior aceitaram como honestas as declarações pródemocracias de Stálin durante a guerra Os membros do partido bolchevista foram expressamente advertidos a não se deixarem enganar por manobras táticas deviam admirar a esperteza com que o seu Líder atraiçoava os aliados108 Seriam inoperantes as mentiras do Líder sem a divisão organizacional do movimento em formações de elite membros e simpatizantes A graduação do cinismo traduzida na hierarquia do desdém é pelo menos tão necessária ante a constante refutação quanto a simples credulidade O fato é que os simpatizantes 106 Rudolf Hess numa transmissão radiofônica em 1934 Nazi conspiracy 1193 107 Werner Best op cit explica O fato de a vontade do governo estabelecer as normas certast já não é uma questão de lei mas de destino Pois os abusos que ocorrerem serão punidos perante a história de modo mais seguro pelo próprio destino com oinf ortúnio a destituição e a ruína devido à violação das leis da vida do que por uma Corte de Justiça Tradução citada de Nazi conspiracy IV 490 108 Ver Kravchencko op cit p 422 Nenhum comunista devidamente doutrinado achava que o Partido estivesse mentindo por pregar em público um tipo de política enquanto na intimidade professava o oposto 433 das organizações de vanguarda desdenhavam a completa laicidade dos seus concidadãos os membros dos partidos desdenhavam a credulidade e a falta de radicalismo dos simpatizantes as formações de elite desdenhavam os membros dos partidos pelas mesmas razões e dentro das formações de elite uma idêntica hierarquia de desdém acompanhava cada nova criação ou invenção do partido109 O resultado desse sistema é que a credulidade dos simpatizantes torna as mentiras aceitáveis para o mundo exterior enquanto ao mesmo tempo o gradua cinismo dos membros e das formações de elite afasta o perigo de que o Líder venha a ser forçado pelo peso da sua própria propaganda a legitimar as próprias declarações e o próprio simulacro de respeitabilidade Uma das principais desvantagens do mundo exterior no trato com sistemas totalitários é que ele ignorava esse sistema e portanto confiava em que por um lado a própria enormidade das mentiras do totalitarismo o levaria à ruína e por outro lado seria possível aceitar a palavra do Líder e fazer com que ele a cumprisse a despeito das suas intenções originais Infelizmente o sistema totalitário é imune a essas conseqüências normais sua engenhosidade reside precisamente em eliminar a realidade que desmascara o mentiroso ou o força a legitimar as suas mentiras Embora os membros não creiam em declarações proferidas para o consumo público acreditam fervorosamente nos chavões comuns da justificação ideológica e nas explicações da história passada e futura que os movimentos totalitários tomaram emprestado às ideologias do século XIX e transformaram através da organização em realidade operante Esses elementos ideológicos nos quais de um modo ou de outro as massas haviam terminado por acreditar se bem que vaga e abstratamente foram convertidos em mentiras concretas de natureza universal o domínio do mundo pelos judeus em lugar da teoria racial geral e a conspiração de Wall Street em lugar da teoria geral das classes e foram integrados num plano geral de ação no qual somente os agonizantes as classes agonizantes dos países capitalistas ou as nações decadentes obstariam o caminho do movimento Em contraste com as mentiras táticas do movimento que mudam a cada dia essas mentiras ideológicas exigem crença absoluta como verdades intocáveis e sagradas Cercaas um sistema cuidadosamente elaborado de provas científicas que não precisam ser convincentes para os leigos mas que satisfazem certa sede popular de conhecimentos através da demonstração da inferioridade dos judeus ou da miséria dos que vivem sob o regime capitalista As formações de elite distinguemse dos membros comuns do partido por não necessitarem dessas demonstrações e nem mesmo serem obrigadas a acreditar literalmente na verdade dos chavões ideológicos Estes são fabricados para atender a uma busca da verdade por parte das massas que no seu vezo de explicar e demonstrar ainda têm muito em comum com o mundo normal A 109 O nacionalsocialista despreza o seu vizinho alemão o homem da SA despreza os outros nacionalsocialistas e o homem da SS despreza o homem da SA Heiden op cit p 308 434 elite nlosecompõe de ideólogos toda a educação dos seus membros objetiva abolir a capacidade de distinguir entre a verdade e a mentira entre a realidade èTá íícção Sua superioridade consiste na capacidade de transformar imediatamente qualquer declaração de fato em declaração de finalidade Em contraposição às massas que por exemplo necessitam de alguma demonstração da inferioridade da raça judaica antes que se lhes possa exigir sem riscos que matem os judeus as formações de elite compreendem que a afirmação de que todos os judeus são inferiores significa que todos os judeus devem ser mortos quando se lhes diz que somente Moscou tem um metrô sabem que o verdadeiro significado da declaração é que todos os outros metrôs devem ser destruídos e não se sentem muito surpresos quando descobrem o metrô de Paris O tremendo choque da desilusão sofrida pelo Exército Vermelho na sua conquista da Europa só pôde ser curado nos campos de concentração e no exílio forçado de grande parte das tropas vitoriosas mas as formações policiais que acompanharam o Exército estavam preparadas para o choque não por meio de informação diferente ou mais correta não existe na Rússia nenhuma escola de treinamento secreto que forneça dados autênticos sobre a vida no exterior mas simplesmente por meio de um treino de supremo desprezo por todo fato e toda realidade Essa mentalidade da elite não constitui simples fenômeno de massa nem simples conseqüência de desarraigamento social desastre econômico ou anarquia política exige cuidadosa preparação e cultivo e foi uma parte mais importante embora menos facilmente reconhecível do currículo das escolas de liderança totalitária as Ordensburgen nazistas para os membros da SS e os centros de treinamento bolchevistas para os agentes do Comintern do que a doutrinação racial ou as técnicas da guerra civil Sem a elite e sem a sua incapacidadeartifieialmente adquirida de compreender os fatos como fatos de distinguir entre a verdade e a mentira o movimento nunca poderia partir para a realização prática da ficção A mais importante qualidade negativãda elite totalitária é que nunca se detém a pensar no mundo como realmente ele é e jamais compara as mentiras com a realidade Paralelamente a sua virtude mais cultivadaé a lealdade ao Líder que como um talismã assegura a vitória final da mentira e da ficção sobre a verdade e a realidade A camada superior da organização dos movimentos totalitários é constituída pelo círculo íntimo em torno do Líder que pode ser uma instituição formal como o Politburo bolchevista ou um círculo mutável de homens que não exercem necessariamente uma função pública como o séquito de Hitler Para eles os chavões ideológieessão meros expedientes destinados a congregar as massas e não sentem qualquer constrangimento quando têm de alterálos segundo as necessidades do momento contanto que o princípio organizador permaneça intacto Nesse ponto o principal mérito da reorganização da SS por Himmler foi que ele descobriu um método muito simples de resolver o problema do sangue pela ação isto é de selecionar os membros da elite segundo o bom sangue e preparálos para realizar uma impiedosa luta racial contra todos os que não pudessem remontar a sua origem ariana até 1750 ou ti 435 vessem menos de um metro e setenta de altura sei que as pessoas que cresceram até determinada altura devem possuir em certo grau o sangue desejado ou não tinham olhos azuis e cabelos louros110 Esse racismo em ação tornava a organização independente de quase todo ensinamento concreto de qualquer ciência racial e também independente do antisemitismo que era uma doutrina específica e temporária referente à natureza e ao papel dos judeus e cuja utilidade terminaria quando os judeus fossem exterminados111 O racismo não oferecia riscos e independia do cientificismo da propaganda uma vez que a elite houvesse sido selecionada por uma comissão racial e posta sob a autoridade das leis especiais de casamento112 enquanto no extremo oposto e sob a jurisdição dessa elite racial existiam campos de concentração para uma melhor demonstração das leis da hereditariedade e da raça113 À base dessa organização viva os nazistas podiam dispensar o dogmatismo e estender a sua amizade a povos semitas como os árabes ou fazer alianças com os próprios representantes do perigo amarelo os japoneses A realidade de uma sociedade racial a formação de uma elite selecionada de um ponto de vista supostamente racial constituiria melhor garantia da doutrina do racismo do que as provas científicas ou pseudocientíficas Os homens que ditam a política do bolchevismo mostram idêntica superioridade em relação aos dogmas que eles mesmos professam São perfeitamente capazes de interromper qualquer luta de classes com uma súbita aliança com o capitalismo sem abalar a confiança dos seus escalões e sem trair a crença na luta de classes Uma vez que o princípio dicótomo da luta de classes se torna expediente organizacional e por assim dizer se petrifica na inflexível hostili 110 Himmler selecionava os candidatos à SS em primeiro lugar por fotografias Mais tarde um Comitê Racial perante o qual o candidato tinha de comparecer pessoalmente aprovava ou desaprovava a sua aparência racial Ver Himmler no tocante à Organização e obrigação da SS e da polícia Naziconspiracy IV 616 ss 111 Himmler estava bem consciente do fato de que uma de suas mais importantes realizações era haver transformado a questão racial de conceito negativo baseado no antisemitismo natural em uma tarefa organizacional para a constituição da SS Der Reichsführer SS und Chef der deutschen Polizei exclusivamente para uso da polícia sem data Assim pela primeira vez a questão racial havia sido colocada em foco ou melhor se tornara o próprio foco indo muito além do conceito negativo que havia por trás do ódio natural aos judeus A idéia revolucionária do Führer recebia uma infusão de sangue novo Der Weg der SS Der Reichsführer SS SSHauptamtSchulungsamt Na jaqueta difusão proibida sem data p 25 112 Logo que foi nomeado chefe da SS em 1929 Himmler introduziu o princípio de seleção racial e leis de casamento e acrescentou A SS sabe muito bem que esta ordem é da maior importância A zombaria o escárnio e a incompreensão não nos afetam o futuro é nosso Citado por DAlquen op cit E novamente catorze anos mais tarde num discurso em Kharkov Nazi conspiracy IV 572 ss Himmler lembra aos seus líderes da SS que fomos os primeiros a realmente resolver o problema do sangue pela ação e por problema de sangue não entendemos naturalmente o antisemitismo O antisemitismo é exatamente a mesma coisa que catar piolhos Catar piolhos não é uma questão de ideologia é uma questão de limpeza Mas para nós a questão do sangue era um lembrete do nosso próprio valor um lembrete do que realmente mantém unido este povo alemão 113 Himmler op cit Nazi conspiracy IV 616 ss 436 dade contra o mundo inteiro através dos altos escalões policiais secretos na Rússia e dos agentes do Comintern no exterior a política bolchevista fica surpreendentemente isenta de preconceitos E essa liberdade em relação ao conteúdo de sua própria ideologia que cazt racteriza os mais altos escalões da hierarquia totalitária São homens que vêem y a tudo e a todos em termos de organização inclusive ao Líder que para eles v não é nem talismã inspirado nem aquele que sempre tem razão mas a simples conseqüência desse tipo de prganização é necessário não como pessoa mas como função e como tal é indispensável ao movimento Contudo diferentemente de outras formas despóticas de governo nas quais freqüentemente quem governa é um círculo restrito e o déspota tem apenas o papel representativo de governante fantoche os líderes totalitários podem realmente fazer o que bem entendem e contar com a lealdade dos membros de seu séquito mesmo que um dia se decidam a matálos Uma razão mais técnica dessa lealdade suicida é que não há leis de hg rança ou de outra natureza que regulem a sucessão ao posto supremo Uma o revolta palaciana bemsucedida teria resultados tão desastrosos para o movi mento como sistema quanto uma derrota militar É da própria natureza do movimento que uma vez que o Líder assume o posto toda a organização se identifica com ele de modo tão absoluto que qualquer confissão de erro ou remoção do cargo quebraria a magia de infalibilidade que envolve a posição de Líder e arruinaria a todos os que estivessem ligados ao movimento A base da estrutura não está na veracidade das palavras do Líder mas na infalibilidade dos seus atos Sem ela e no calor de uma discussão que presume falibilidade todo o reino da carochinha do totalitarismo se esboroa esmagado imediatamente pela verdade do mundo real que somente o movimento guiado pelo Líder c numa direção infalivelmente certa é capaz de evitar Contudo a lealdade dos que não acreditam nem em chavões ideológicos nem na infalibilidade do Líder tem também razões mais profundas e menos téc A nicas O que une esses homens é uma firme crença na onipotência humana Ó seu cinismo moral e a sua crença de que tudo é permitido repousam na sólida convicção de que tudo é possível É verdade que esses homens pouco numerosos não são facilmente apanhados em suas próprias mentiras específicas e não crêem necessariamente em racismo ou em economia em conspirações de judeus ou de Wall Street Contudo são também iludidos iludidos pela idéia impudente e presunçosa de que se pode fazer tudo e pela insolente convicção de que tudo o que existe é apenas um obstáculo temporário a ser certamente vencido pela organização superior Confiantes de que a força da organização pode destruir a força da substância como a violência de uma gangue bem organizada poderoubar a riqueza mal guardada de um homem subestimam constantemente a força das comunidades estáveis e superestimam a força motora do movimento Além disso como não crêem realmente que exista contra eles uma conspiração mundial mas usamna apenas como expediente organizacional não percebem que a sua própria conspiração pode eventualmente levar o mundo inteiro a unirse para combatêlos 437 Mas como quer que venha a ser finalmente derrotada a ilusão da onipotência humana através da organização a sua conseqüência prática dentro do movimento é que o séquito do Líder em caso de desacordo com ele nunca estará muito seguro de suas próprias opiniões pois acredita sinceramente que o desacordo não tem importância e que mesmo o mais louco expediente tem boas possibilidades de sucesso se receber a devida organização O que caracteriza a sua lealdade não é a crença na infalibilidade do Líder más a convicção de que pode tornarse infalível qualquer pessoa que comande os instrumentos de viojência com os métodos superiores da organização totalitária Essa ilusão é fortalecida quando os regimes totalitários estão no poder demonstrando como até uma perda de substância pode tornarse uma vitória da organização A administração das empresas industriais na Rússia soviética fantasticamente deficiente levou à atomização da classe operária enquanto o terrivelmente cruel tratamento dos prisioneiros civis pelos nazistas nos territórios ocupados da Europa oriental embora causasse uma deplorável perda de mãodeobra não podia ser lastimado em termos de gerações114 Além disso decidir o que é sucesso ou fracasso em circunstâncias totalitárias é em grande parte uma questão de opinião pública organizada e aterrorizada Num mundo totalmente fictício não é preciso registrar confessar e relembrar os fracassos Para que a factualidade continue a existir é preciso que exista o mundo nãototalitário 114 Himmler em seu discurso em Posen Nazi conspiracy IV 558 438 3 O TOTALITARISMO NO PODER Quando um movimento internacional em sua organizaçãouniversal em seu alcance ideológico e global em sua aspiração política toma o poder num único país colocase obviamente em situação contraditória O movimento socialista escapou a essa crise em primeiro lugar porque a questão nacional ou seja o problema estratégico suscitado pela revolução havia sido curiosamente negligenciado por Marx e Engels e em segundo lugar porque só teve de encarar o problema de governar depois que a Primeira Grande Guerra retirou da Segunda Internacional a autoridade sobre os membros nacionais que em toda parte haviam aceito como fato inalterável a prioridade dos sentimentos nacionais em relação à solidariedade internacional Em outras palavras quando chegou o momento da tomada do poder em seus respectivos países os movimentos socialistas já eram partidos nacionais Essa transformação nunca chegou a ocorrer nos movimentos totalitários nazista e bolchevista No momento da tomada do poder os perigos para o movimento eram a mumificação que poderia ocorrer se a posse da máquina estatal o levasse ao congelamento sob forma de governo absoluto1 e a limitação de sua liberdade de movimento imposta pelas fronteiras do território em que havia galgado o poder Para um movimento totalitário ambos os perigos são igualmente mortais a evolução na direção do absolutismo poria fim ao ímpeto interno do movimento enquanto a evolução na direção do nacionalismo frustraria a expansão externa sem a qual o movimento não pode sobreviver A forma de governo que os dois movimentos tomaram ou melhor que resultou quase que automaticamente da sua dupla pretensão de domínio total e governo mundial é melhor definida pelo slogan de Trótski de revolução permanente embora a teoria de Trótski fosse apenas a previsão socialista de uma série de revoluções desde a revolução antifeudal da burguesia até a antiburguesa do prole 1 Os nazistas compreendiam muito bem que a tomada do poder poderia levar ao estabelecimento do absolutismo Mas o nacionalsocialismo não encabeçou a luta contra o liberalismo para atolarse no absolutismo e começar tudo de novo Werner Best Die deutsche Polizei p 20 A advertência desta frase é dirigida ao absolutismo do Estado 439 tariado que se alastrariam de um país para outro2 De permanente a teoria tinha apenas o nome com todas as suas implicações semianárquicas mas até Lênin impressionouse mais com o nome do que com o seu conteúdo teórico Seja como for as revoluções sob forma de expurgos gerais viraram instituições permanentes na União Soviética sob o regime de Stálin após 19343 Neste caso como em outros Stálin concentrou os seus ataques contra o semi esquecido slogan de Trótski exatamente porque havia decidido usar a sua técnica4 Na Alemanha nazista percebiase claramente uma tendência semelhante na direção da revolução permanente embora os nazistas não tivessem tido o tempo de realizála na mesma medida De modo típico a sua revolução permanente começou também com a liquidação da facção partidária que havia ousado proclamar abertamente o próximo estágio da revolução5 oFührer e a sua velha 2 A teoria de Trótski enunciada pela primeira vez em 1905 naturalmente não diferia da estratégia revolucionária de todos os leninistas para quem a própria Rússia é apenas o primeiro domínio o primeiro baluarte da revolução internacional os seus interesses seriam subordinados à estratégia supranacional do socialismo militante Por enquanto porém os limites da Rússia e os do socialismo vitorioso são os mesmos Isaac Deutscher Stálin apolitical biography Nova York e Londres 1949 p 243 3 O ano de 1934 é significativo devido ao novo estatuto do Partido anunciado no Décimo Sétimo Congresso que estabelecia que periódicos expurgos serão realizados para a limpeza sistemática do Partido Citado de A Avtorkhanov Social differentiation and contradictions in the Party Bulletin ofthe Institute for the Study ofthe USSR Munique fevereiro de 1956 Os expurgos do Partido realizados durante os primeiros anos da Revolução Russa nada têm em comum com a sua transformação posterior em instrumento de instabilidade permanente Os primeiros expurgos foram levados a efeito por comissões locais de controle perante um foro aberto ao qual membros do Partido ou mesmo os de fora do Partido tinham livre acesso Foram planejados como um órgão democrático de controle contra a corrupção burocrática do Partido e deveriam servir como substituto das verdadeiras eleições Deutscher op cit pp 2334 Um excelente apanhado da evolução dos expurgos encontrase no artigo de Avtorkhanov que também refuta a lenda de que o assassinato de Kirov tenha motivado a nova política O expurgo geral já havia começado antes da morte de Kirov que não passou de um pretexto para lhe dar mais força Em vista das muitas circunstâncias inexplicáveis e misteriosas em torno do assassinato de Kirov suspeitase que o pretexto foi cuidadosamente planejado e executado pelo próprio Stálin Ver o Discurso sobre Stálin de Khrushchev New York Times 5 de junho de 1956 4 Deutscher op cit p 282 descreve o primeiro ataque contra a revolução permanente de Trótski e a contrafórmula de Stálin de socialismo num só país como um acidente em manobras políticas Em 1924 a finalidade imediata de Stálin era desacreditar Trótski Rebuscando o passado de Trótski os triúnviros encontraram a teoria de revolução permanente que ele havia formulado em 1905 Foi no decurso dessa polêmica que Stálin chegou à sua fórmula do socialismo num só país 5 A liquidação da facção de Rõhm em junho de 1934 foi precedida por um breve intervalo de estabilização No começo do ano Rudolf Diels chefe da polícia política de Berlim podia comunicar que não havia mais prisões ilegais revolucionárias por parte da SA e que as prisões anteriores desse tipo estavam sendo investigadas Nazi conspiracy U S Government Washington 1946 V 205 Em abril de 1934 o ministro do Interior Wilhelm Frick antigo membro do partido nazista assinou um decreto limitando a prática da custódia protetora ibid III 555 em face da estabilização da situação nacional Ver Das Archiv abril de 1934 p 31 Esse decreto porém nunca foi publicado Nazi conspiracy VII 1099 II 259 A polícia política da Prússia havia preparado para Hitler um relatório especial sobre os excessos da SA cometidos em 1933 e sugeriu que se processassem os líderes da SA nele mencionados 440 guarda sabiam que a verdadeira luta apenas havia começado6 No nazismo em lugar do conceito bolchevista de revolução permanente encontramos a noção dejjma seleção racial que não pode parar e que exige a constante radicalização dos critérios pelos quais é feita a seleção isto é o extermíniojdos ineptos7 O fato é que tanto Hitler como Stálin estenderam promessas de estabilidade para esconder a intenção de criar um estado de instabilidade permanente Não poderia ter havida melhor solução para a intrínseca ambivalência resultante da coexistência entre governo e movimento entre a pretensão totalitária e o poder limitado num território limitado entre a participação ostensiva na comunidade de nações na qual cada uma respeita a soberania da outra e a pretensão de domínio mundial do que essa fórmula esvaziada do seu primitivo conteúdo Porque o líder totalitário enfrenta duas tarefas que a princípio parecem absurdamente contraditórias tem de estabelecer o mundo fictício do movimento como realidade operante da vida de cada dia e tem por outro lado de evitar que esse novo mundo adquira nova estabilidade pois a estabilização de suas leis e instituições certamente liquidaria o próprio movimento e com ele a esperança da futura conquista do mundo O líder totalitário tem de evitar a qualquer preço que a normalização atinja um ponto em que poderia surgir um novo modo de vida um modo de vida que após certo tempo poderia deixar de parecer tão falso e conquistar um lugar entre os modos de vida muito diferentes e profundamente contrastantes das outras nações da terra No momento em que as instituições revolucionárias se tornassem modo nacional de vida no momento em que a alegação de Hitler de que o nazismo não é produto de exportação ou a de Stálin de que o socialismo só pode estabelecerse num único país fosse algo mais que uma tentativa de iludir o mundo nãototalitário Hitler resolveu a situação matando esses líderes da SA sem processo legal e demitindo todas as autoridades policiais que se haviam oposto à SA Ver o testemunho sob juramento de Rudolf Diels ibid V 224 Dessa forma ele ficava completamente a salvo de qualquer legalização e estabilização Entre os numerosos juristas que entusiasticamente serviram à idéia nacionalsocialista somente uns poucos compreenderam o que realmente estava em jogo A esse grupo pertence principalmente Theodor Maunz cujo ensaio Gestalt und Recht der Polizei Constituição e jurisdição da polícia Hamburgo 1943 é citado e aprovado mesmo por aqueles autores que como Paul Werner pertenciam à camada superior Fuehrerkorps da SS 6 Robert Ley Der Weg zur Ordensburg sem data cerca de 1936 Edição especial para o Führerkorps do Partido Venda Proibida 7 Heinrich Himmler Dei Schutzstaffel em Grundlagen Aufbau und Wirtschaftsordnung des nationalsozialitischen Staates Nr 7b A radicalização do princípio da antiga seleção racial pode ser verificada em todas as fases da política nazista Assim os primeiros a serem exterminados eram os judeus purosangue seguidos dos que eram meiojudeus e umquartojudeus em outra área os primeiros a serem incluídos eram os loucos seguidos dos portadores de doenças incuráveis e depois pelas famílias em que surgisse algum doente incurável A seleção que não pode serdetida não o foi nem sequer diante dos membros da SS Um decreto áoFührer de 19 de maic de 1943 ordenava que todos os que tivessem ligações com estrangeiros através de laços familiares casamento ou amizade deviam ser eliminados do Estado do partido da Wehrmacht e da economia isso afetou 1200 líderes da SS ver os Hoover Library Archives arquivo Himmler pasta 300 441 o totalitarismo perderia a sua qualidade total e ficaria sujeito às leis das nações segundo as quais cada uma possui um território um povo e uma tradição histórica específicos que determinam a sua relação com as outras nações uma pluralidade que refuta ipsofacto qualquer alegação de que uma determinada forma de governo possa ser absolutamente válida Do ponto de vista prático a posse de todos os instrumentos de força e de violência por parte do totalitarismo no poder cria uma situação difícil e paradoxal para o movimento totalitário O possuir poder significa o confronto direto com a realidade e o totalitarismo no poder procura constantemente evitar esse confronto mantendo o seu desprezo pelos fatos e impondo a rígida observância das normas do mundo fictício que criou Já não basta que a propaganda e a organização afirmem que o impossível é possível que o incrível é verdadeiro e que uma coerente loucura governa o mundo o principal esteio psicológico da ficção totalitária o ativo ressentimento contra ostatus quo que as massas recusaram aceitar como o único mundo possível já não existe e cada fragmento de informação concreta que se infiltra através da cortina de ferro construída para deter a sempre perigosa torrente da realidade vinda do lado nãototalitário é uma ameaça maior para o domínio totalitário do que era a contrapropaganda para o movimento totalitário A luta pelo domínio total de toda a população da terra a eliminação de toda realidade rival não totalitária eis a tônica dos regimes totalitários se não lutarem pelo domínio global como objetivo último correm o sério risco de perder todo o poder que porventura tenham conquistado Nem mesmo um homem sozinho pode ser dominado de forma absoluta e segura a não ser em condições de totalitarismo global Portanto a subida ao poder significa antes de mais nada o estabelecimento de uma sede oficial e oficialmente reconhecida para o movimento ou sucursais no caso de países satélites e a aquisição de uma espécie de laboratório onde o teste possa ser feito com realismo ou contra a realidade o teste de organizar um povo para objetivos finais que desprezam a individualidade e a nacionalidade O totalitarismo no poder usa a administração do Estado para o seu objetivo a longo prazo de conquista mundial e para dirigir as subsidiárias do movimento instala a polícia secreta na posição de executante e guardiã da experiência doméstica de transformar constantemente a ficção em realidade e finalmente erige campos de concentração como laboratórios especiais para o teste do domínio total 1 O CHAMADO ESTADO TOTALITÁRIO A história ensina que a subida ao poder e à posição de responsabilidade afeta profundamente a natureza dos partidos revolucionários A experiência e o bom senso tinham o direito de esperar que o totalitarismo no pader perdesse aos poucos o ímpeto revolucionário e o caráter utópico que o afã diário de governar e a posse do verdadeiro poder moderassem as pretensões do movimento e destruíssem gradualmente o mundo fictício criado por suas organizações Afinal 442 parece ser da natureza das coisas que as exigências e as metas extremas sejam refreadas pela objetividade e a realidade como um todo dificilmente é determinada pela tendência à ficção de uma massa de indivíduos atomizados Entre os erros cometidos pelo mundo nãototalitário em suas negociações diplomáticas com os governos totalitários dos quais os principais foram a confiança no pacto de Munique com Hitler e nos acordos de Ialta com Stálin muitesresultaram da aplicação da experiência e do bom senso a situações em que se haviam tornado obsoletos Ao contrário de todas as expectativas as importantes concessões que lhes foram feitas e o considerável prestígio internacional que alcançaram não levaram os países totalitários a reintegraremse na comunidade das nações nem os induziram a desistir da falsa queixa de que o munílo inteiro se havia unido em bloco contra eles Ao contrário as vitórias diplomáticas faziam com que recorressem ainda mais rigidamente aos instrumentos de violência e resultavam sempre em maior hostilidade contra as potências que se haviam mostrado dispostas a transigir Essas decepções de estadistas e diplomatas são comparáveis às anteriores desilusões de benévolos observadores e simpatizantes em relação aos novos governos totalitários O que eles haviam esperado era o estabelecimento de novas instituições e a criação de um novo código de leis que por mais revolucionário que fosse o seu conteúdo levasse a uma estabilização de condições tendente a refrear o ímpeto dos movimentos totalitários pelo menos nos países onde já haviam tomado o poder Em lugar disso o terror tanto na Rússia soviétíçaçomo na Alemanha nazista aumentou na razão inversa da existência de oposição política interna demonstrando que a oposição política ao invés de fornecer o pretexto do terror foi o último impedimento para que este alcançasse a fúria total8 8 Ê sabido que na Rússia a repressão contra os socialistas e anarquistas aumentou na mesma proporção em que o pais foi sendo pacificado Ánton Ciliga The Russian enigma Londres 1940 p 244 Deutscher op cit p 218 acha que a razão para o desaparecimento do espírito de liberdade da revolução no momento da vitória está numa mudança de atitude dos camponeses estes viraramse contra o bolchevismo tanto mais resolutamente quanto mais se convenciam de que o poder dos proprietários de terras e dos generais brancos tinha sido destruído A explicação parece muito débil em face das dimensões que o terror assumiria depois de 1930 E deixa de levar em consideração o fato de que o terror total não foi desencadeado na década de 20 mas na de 30 quando nem sequer a oposição das classes camponesas era atuante Também Khrushchev op cit observa que medidas extremas de repressão não foram usadas contra a oposição durante a luta contra os trotskistas e bukharinistas mas que a repressão contra eles começou muito mais tarde quando já estavam vencidos havia muito tempo O terror no regime nazista alcançou o seu ponto mais alto durante a guerra quando a nação aemã realmente já estava unida A preparação do terror data de 1936 quando havia desaparecido toda a resistência interna organizada e Himmler propôs uma expansão do sistema de campos de concentração Típico desse espírito de opressão independentemente de resistência é o discurso de Himmler em Kharkov perante os líderes da SS em 1943 temos uma só tarefa levar adiante a luta racial sem dó nem piedade Nunca deixaremos que se perca aquela excelente arma o pavor e a terrível reputação que nos precedeu nas batalhas por Kharkov mas continuaremos a cultivála Nazi conspiracy IV 572 ss 443 Mais pertuihadorainda era o m odo pelo qual os regimes totalitários tratavam ü questão constitucional Nos primeiros anos de poder os nazistas desencadearam uma avalanche de leis e dec tos mas nunca se deram ao trabalho de abolir oficialmente a Constituição de iVeimar chegaram até a deixar mais ou menos intactos os serviços públicos fato que levou muitos observadores locais e estrangeiros a esperar que o partido mostrasse comedimento e que o novo regime caminhasse rapidamente para a normalização Mas apó a promulgação das Leis de Nuremberg verificouse que os nazistas não tinham o menor respeito sequer pelas suas próprias leis Em vez disso continuou a constante caminhada na direção de setores sempre novos de modo que afinal o objetivo e a alçada da polícia secreta do Estado bem como de todas as outras instituições estatais ou partidárias criadas pelos nazistas não podiam de forma alguma definirse pelas leis e normas que as regiam9 Na prática esse estado de permanente ilegalidade era expresso pelo fato de que muitas das normas em vigor já não eram do domínio público10 Teoricamente correspondia ao postulado de Hitler segundo o qual Estado total não deve reconhecer qualquer diferença entre a lei e a ética11 porque quando se presume que a lei em vigor é idêntica à ética comum que emana da consciência de todos então não há mais necessidade de decretos públicos A União Soviética onde os serviços públicos pré revolucionários haviam sido exterminados durante a revolução e onde o regime pouco se havia incomodado com questões constitucionais durante o período de mudança revolucionária chegou a darse ao trabalho de promulgar em 1936 uma constituição inteiramente nova e muito minuciosa um véu de frases e preceitos liberais encobrindo a guilhotina escondida no fundo12 fato que foi aclamado na Rússia e no exterior como o fim do período Leis que baniram os judeus de todos os aspectos da vida nacional 9 Ver Theodor Maunz op cit pp 5 e 49 O pouco caso que os nazistas faziam das leis e normas que eles próprios haviam criado e que eram regularmente publicadas por W Hoche sob o título Die Gesetzgebung des Kabinetts Hitler A legislação do gabinete Hitler Berlim 1933 et seq è exemplificado pela observação feita ao acaso por um dos seus juristas constituintes Achava ele que a despeito da inexistência de nova estrutura legal tinha havido não obstante uma ampla reforma ver Ernst R Huber Die deutsche Plizei em Zeitschrift für diegesamte Staatswissenschaft vol 101 19401 p 273 ss 10 Maunz op cit p 49 Ao que se saiba Maunz é o único autor nazista que menciona essa circunstância e lhe dá a devida ênfase Somente através do estudo dos cinco volumes de Verfügungen Anordnungen Bekanntgaben Decretos disposições editais coletados e impressos durante a guerra pela chancelaria do partido segundo instruções de Martin Bormann é possível obter algum conhecimento dessa legislação secreta pela qual a Alemanha era governada De acordo com o prefácio os volumes destinavamse apenas ao uso interno do partido e deviam ser tratados como confidenciais Quatro desses volumes evidentemente muito raros comparada aos quais a coleção de Hoche da legislação do gabinete de Hitler era mera fachada estão na Hoover Library 11 Hitler aos juristas em 1933 citado por Hans Frank Nationateozialistische Leitsàtze für ein neues deutsches Strafrecht Diretivas nacionalsocialistas para um novo direito penal alemão 2 parte 1936 p 8 12 Deutscher op cit p 381 Em 1918 e 1924 foram feitas tentativas de redigir uma constituição A reforma constitucional de 1944 segundo a qual algumas das Repúblicas Soviéticas 444 revolucionário No entanto a publicação da Constituição coincidiu com o início do gigantesco superexpurgo que em menos de dois anos liquidou a administração existente e apagou todos os vestígios de vida normal e da recuperação econômica conseguida durante os quatro anos que se seguiram à liquidação dos kulaks e à coletivização forçada da população rural13 Daí por diante a Constituição stalinista de 1936 teve exatamente o mesmo papel que a Constituição de Weimar sob o regime nazista completamente ignorada nunca foi abolida a única diferença é que Stálin pôde darse ao luxo de mais um absurdo com a exceção de Vishinski todos os autores da Constituição que nunca foi repudiada foram executados como traidores O que mais chama a atenção de quem observa o Estado totalitário não é por certo a sua estrutura monoKtica Pelo contrário todos os estudantes sérios do assunto concordam pelo menos quanto à coexistência ou conflito de uma dupla autoridade o partido e o Estado Além disso muitos já acentuaram que o gOvernototalitário é peculiarmente amorfo14 Thomas Masaryk percebeu logo que o chamado sistema bolchevista não passava de completa ausência de sistema15 e é perfeitamente verdadeiro que até mesmo um perito enlouqueceria se tentasse destrinchar as relações entre o partido e o Estado no Terceiro Reich16 A relação entre as duas fontes da autoridade entre o Estado e o Partido é a relação entre uma autoridade aparente e outra real de modo que muitos descrevem a máquina governamental do regime totalitário como fachada importante a esconder e disfarçar o verdadeiro poder do partido17 teriam os seus próprios representantes estrangeiros e os seus próprios exércitos foi uma manobra tática destinada a conseguir para a União Soviética mais de uma representação nas Nações Unidas 13 Ver Deutscher op cit p 375 Uma atenta leitura do discurso de Stálin referente à Constituição o seu relatório ao Oitavo Congresso Extraordinário dos Sovietes de 25 de novembro de 1936 revela que nunca houve intenção de tornála definitiva Stálin disse explicitamente Esta é a estrutura da nossa constituição no dado momento histórico O projeto da nova constituição representa assim a soma total dos caminhos que já trilhamos a soma total das realizações já existentes Em outras palavras a constituição já estava datada no instante em que foi anunciada e o seu interesse era meramente histórico Não se trata de uma interpretação arbitrária como o prova Molotov que em seu discurso sobre a constituição servese do tema de Stálin e acentua o seu caráter provisório Realizamos apenas a primeira fase do comunismo e mesmo essa primeira fase que é o socialismo ainda não é completa só erigimos até agora o seu esqueleto ver Die Verfassung des Sozialistischen Staates der Arbeiter und Bauern A Constituição do Estado Socialista dos Trabalhadores e Camponeses Estrasburgo Editions Prométhée 1937 pp 42 e 84 14 A vida constitucional alemã caracterizase por sua completa informidade em contraste com a Itália Franz Neumann Behemoth 1942 apêndice p 521 15 Citado por Boris Souvarine Stálin a criticai surveyofBolshevism Nova York 1939 p 695 f16 StephenH Roberts The housethat Hitler built Londres 1939 p 72 17 O juiz Robert H Jackson em seu discurso de abertura dos Julgamentos de Nuremberg baseou sua descrição da estrutura política da Alemanha nazista na coexistência de dois governos na Alemanha o verdadeiro e o ostensivo A forma da República Alemã foi mantida durante certo tempo e constituía o governo externo e visível Mas a verdadeira autoridade estatal estava fora e acima da lei e repousava no Corpo de Liderança do Partido Nazista Nazi conspiracy I 125 445 Todos os níveis da máquina administrativa do Terceiro Reich eram submetidos a uma curiosa duplicação de órgãos Com fantástica meticulosidade os nazistas duplicaram no partido através de algum órgão todas as funções administrativas do Estado18 até a divisão da Alemanha em Estados e províncias introduzida pela constituição de Weimar foi duplicada quando os nazistas dividiram o país em Gaue de fronteiras diferentes das administrativas de sorte que cada localidade pertencia mesmo geograficamente a duas unidades administrativas completamente diferentes19 Essa duplicação foi mantida mesmo quando a partir de 1933 os ministérios foram ocupados por importantes elementos nazistas quando Frick por exemplo foi nomeado ministro do Interior e Guerthner ministro da Justiça Uma vez engajados em carreiras oficiais fora do partido esses antigos e fiéis nazistas perdiam o poder tornandose tão pouco influentes como qualquer outro servidor civil Ambos estavam sob a autoridade real de Himmler o prestigioso chefe de polícia que normalmente seria subordinado ao ministro do Interior20 Mais conhecido do resto do mundo foi o destino da antiga Secretaria de Relações Exteriores alemã na Wilhelmstrasse Os nazistas deixaram o seu pessoal quase intacto e naturalmente nunca a aboliram Os estudiosos da Alemanha nazista concordam que o Estado tinha apenas uma função ostensiva Para a única exceção ver Ernst Fraenkel The dual state Nova York e Londres 1941 que afirma que o Estado normativo governo formal era mantido pelos nazistas para a proteção da ordem capitalista e da propriedade privada e tinha plena autoridade em todas as questões econômicas enquanto o Estado prerrogativo Partido era supremo em todos os assuntos políticos 18 No caso daquelas posições do poder estatal que os nacionalsocialistas não podiam preencher com os seus próprios elementos criavam na própria organização do Partido órgãosfantasmas correspondentes montando assim um segundo Estado ao lado do Estado Konrad Heiden DerFueher Hitlers rise topower Boston 1944 p 616 19 O C Giles The Gestapo Oxford Pamphlets on World Affairs n 36 1940 descreve a constante superposição dos departamentos do Partido e do Estado 20 É bem característico um memorando do ministro do Interior Frick que se ressentia do fato de que Himmler líder da SS tivesse poderes superiores aos dele Ver Nazi conspiracy III 547 Dignas de nota a esse respeito são também as observações feitas por Rosenberg acerca de uma conversa com Hitler em 1942 Rosenberg nunca havia antes ocupado uma posição estatal mas pertencia ao círculo íntimo de Hitler Agora que era ministro para os Territórios Ocupados no Leste defrontavase constantemente com ações diretas de outros plenipotenciários principalmente homens da SS que o menosprezavam porque ele pertencia ao aparelho ostensivo do Estado Ver ibid IV 65 ss O mesmo sucedeu a Hans Frank governadorgeral da Polônia Houve apenas dois casos em que a promoção a ministro não acarretou perda de poder ou de prestígio o do ministro da Propaganda Goebbels e o do ministro do Interior Himmler No tocante a Himmler possuímos um memorando presumivelmente do ano de 1935 que é um exemplo da sistemática obstinação com que os nazistas regulamentavam as relações entre o partido e o Estado Esse memorando que parece ter partido do séquito imediato de Hitler e que foi encontrado entre a correspondência do Reichsadjudantur do Führer e da Gestapo contém uma advertência contra a nomeação de Himmler para o cargo de secretário de Estado do Ministério do Interior porque em tal caso ele já não poderia ser um líder político e seria alienado do partido Nele encontramos também o princípio técnico que regulava as relações entre o partido e o Estado Um Reichsleiter líder do partido não deve ser subordinado a um Reichsminister ministro de Estado O memorando sem data e sem assinatura intitulado Die Geheime Staatspolizei pode ser encontrado na Hoover Library arquivo P Wiedemann 446 mas ao mesmo tempo mantinham ainda da fase anterior ao poder a Secretaria de Relações Exteriores do Partido chefiada por Rosenberg21 e como esta agência se especializara em manter contatos com as organizações fascistas da Europa oriental e dos Bálcãs criaram um novo órgão para competir com a secretaria da Wilhelmstrasse a chamada Secretaria Ribbentrop que tratava dos negócios exteriores no Ocidente e sobreviveu à nomeação do seu responsável para a embaixada na Inglaterra Finalmente além dessas instituições partidárias a Secretaria de Relações Exteriores recebeu nova duplicação sob forma de um órgão da SS responsável por negociações com todos os grupos racialmente germânicos da Dinamarca Noruega Bélgica e Holanda22 Esses exemplos provam que para os nazistas a duplicação de órgãos era questão de princípio e não apenas expediente destinado a criar empregos para os membros do partido A mesma divisão entre governo verdadeiro e governo ostensivo resultou de causas muito diferentes na Rússia soviética23 O governo ostensivo surgiu inicialmente do Congresso Soviético PanRusso que durante a guerra civil perdeu a influência e o poder para o partido bolchevista Esse processo começou quando o Exército Vermelho se tornou autônomo e a polícia política secreta se restabeleceu como órgão do partido e não do Congresso Soviético24 e terminou em 1923 durante o primeiro ano do Secretariado Geral de Stálin25 Daí por diante os sovietes passaram a ser o governo fantasma em cujo meio através de células formadas por membros do partido bolchevista funcionavam os representantes do verdadeiro poder nomeados pelo Comitê Central de Moscou e subordinados a ele O ponto crucial deste último desfecho não foi a conquista dos sovietes pelo partido mas o fato de que embora pudessem têlo feito sem dificuldades os bolchevistas não aboliram os sovietes mas usaramnos como símbolo externo e decorativo da sua autoridade26 Portanto a coexistência do governo ostensivo com o real resultou em par 21 Ver o Brief report on activities of Rosenbergs Foreign Affairs Bureau of the Party from 1933 to 1943 ibid III 27 ss 22 Baseado num decreto âoFueher de 12 de agosto de 1942 Ver Verfügungen Anordnungen Bekanntgaben op cit Nr A 5442 23 Por trás do governo ostensivo estava o verdadeiro governo que Victor Kravchenko chose freedom the personal life of a soviet official Nova York 1946 p 111 via no sistema da polícia secreta 24 Ver Arthur Rosenberg A history of Bolshevism Londres 1934 capítulo vi Existem na realidade dois edifícios políticos na Rússia que se erguem paralelamente um ao outro o governo fantasma dos sovietes e o governo de fato do partido bolchevista 25 Deutscher op cit pp 2556 resume o relatório de Stálin ao Décimo Segundo Congresso do Partido acerca do trabalho do departamento de pessoal durante o primeiro ano de sua gestão como secretáriogeral No ano anterior somente 27dos lideres regionais dos sindicatos eram membros do partido Atualmente 57 deles são comunistas A percentagem de comunistas na gerência das cooperativas havia subido de 5 para 50 e entre os oficiais comandantes das Forças Armadas de 16 para 24 O mesmo sucedia em todas as outras instituições que Stálin descrevia como as correias de transmissão que ligavam o partido ao povo 26 Arthur Rosenberg op citloc cit 447 te da própria revolução e precedeu a ditadura totalitária de Stálin Contudo enquanto os nazistas simplesmente conservaram a administração existente destituindoa de todos os poderes Stálin foi forçado a reavivar o seu governo fantasma que no começo da década de 30 já havia perdido todas as funções e estava semiesquecido na Rússia e introduziu a Constituição soviéticacomo símbolo da existência e da impotência dos sovietes Nenhum parágrafo dessa constituição jamais teve o menor significado prático na vida ou na jurisdição russa mas o governo ostensivo russo completamente desprovido do fascínio da tradição tão necessária a uma fachada aparentemente precisava da aura sagrada da lei escrita O desafio do totalitarismo à lei e à legalidade que a despeito das maiores mudanças ainda são a expressão de uma ordem permanentemente desejada27 encontrou na Constituição soviética escrita como na Constituição de Weimar que nunca foi repudiada um modo de lançar um repto permanente ao mundo e aos critérios nãototalitários cujo desamparo e impotência podiam ser demonstrados diariamente28 A duplicação de órgãos e a divisão da autoridade a existência de um poder real ao lado de um poder aparente são suficientes para criar confusão mas não explicam o amorfismo de toda a estrutura Não se deve esquecer que somente uma construção pode ter estrutura e que um movimento se tomarmos o termo tão sério e literal como o queriam os nazistas pode ter apenas direção e que qualquer forma de estrutura legal ou governamental só pode estorvar um movimento que se dirige com velocidade crescente numa certa direção Mesmo na fase anterior ao poder os movimentos totalitários já representavam aquelas massas que não queriam viver em qualquer tipo de estrutura qualquer que fosse a sua natureza massas que começavam a mover se para transpor as barreiras legais e geográficas fortemente impostas pelo governo Portanto julgados segundo a nossa concepção de estrutura de governo e de Estado esses movimentos quando ainda fisicamente limitados a um território específico devem necessariamente procurar destruir toda e qualquer estrutura e não basta para essa deliberada destruição a mera duplicação de todos os órgãos na existência simultânea de instituições partidárias e estatais Como a duplicação implica um relacionamento entre a fachada do Estado e o miolo do partido poderia resultar dele também algum tipo de estrutura na qual a relação entre o partido e o Estado levaria automaticamente a uma regulamentação legal que restringiria e estabilizaria as duas autoridades29 27 Maunz op cit p 12 28 O jurista e Obersturmbannfueher professor R Hoehn exprimiu isso nas seguintes palavras Havia também outra coisa à qual os estrangeiros e também os alemães tinham de acostumarse a tarefa da polícia secreta do Estado estava nas mãos de um grupo de pessoas que provinham de dentro do movimento e ainda estavam enraizadas nele Grundfragen der deutschen Polizei Questões fundamentais da polícia alemã Relatório da Sessão Constitutiva do Comitê de Legislação Policial da Academia de Direito Alemão 11 de outubro de 1936 Hamburgo 1937 contendo contribuições de Frank Himmler e Hoehn 29 Por exemplo Uma tentativa de circunscrever as diversas responsabilidades e combater a anarquia da autoridade foi empreendida por Hans Frank em Recht und Verwaltung Direito e 448 De fato a duplicação de órgãos que aparentemente resulta do problema suscitado pelo relacionamento entre o partido e o Estado em todas as ditaduras unipartidárias é apenas o principal sintoma de um fenômeno mais complicado melhor definido como multiplicação de órgãos e não duplicação Os nazistas não se contentaram em criar Gaue que se somassem às antigas províncias mas introduziram ainda uma série de outras divisões geográficas segundo as diferentes organizações do Partido as unidades territoriais da SA que não coincidiam nem com as Gaue nem com as províncias e que além disso diferiam das da SS sendo que nenhuma delas correspondia às zonas em que se dividia a Juventude Hitlerista30 A essa confusão geográfica deve acrescentarse o fato de que o relacionamento original entre o poder real e o poder ostensivo se repetia èm cada nível se bem que de modo sempre diferente O habitante do Terceiro Reich de Hitler não apenas vivia sob a simultânea e freqüentemente contraditória autoridade de poderes rivais tais como a administração estatal o partido a SA e a SS como também nunca sabia ao certo e nunca se lhe dizia explicitamente qual autoridade deveria considerar acima de todas as outras Tinha de desenvolver uma espécie de sexto sentido para saber a cada momento a quem devia obedecer e a quem devia ignorar Por outro lado os que tinham de executar as ordens que a liderança julgava genuinamente necessárias para o bem do movimento e que em contraste com as medidas governamentais eram confiadas somente às formações de elite do partido ficavam na mesma situação Geralmente essas ordens eram intencionalmente vagas emitidas na expectativa de que quem as recebesse perceberia a intenção de quem ordenava e agisse de acordo31 pois as administração 1939 e repetida num discurso intitulado Technik des Staates Técnica do Estado em 1941 Expressava a opinião de que as garantias legais não eram a prerrogativa dos sistemas liberais de governo e que a administração devia continuar a ser governada como antes pelas leis do Reich agora inspiradas e guiadas pelo programa do partido nacionalsocialista Precisamente porque queria impedir essa nova ordem legal a qualquer preço Hitler nunca reconheceu o programa do partido nazista A respeito dos membros do partido que faziam tais propostas Hitler costumava falar com desprezo descrevendoos como eternamente amarrados ao passado como pessoas incapazes de pular por cima da própria sombra Felix Kersten Totenkopf und Treue Caveira e fidelidade Hamburgo 30 As 32 Gaue não coincidem com as regiões administrativas nem com as militares nem com as 21 divisões da SA nem com as dez regiões da SS nem com as 23 zonas da Juventude Hitlerista O mais notável dessas discrepâncias é que não havia motivo para elas Roberts op cit p 98 31 Documento de Nuremberg PS 3063 no Centre de Documentation Juive de Paris é um relatório da Suprema Corte do Partido acerca de eventos e debates na Corte do Partido relativos às demonstrações antisemitas de 9 de novembro de 1938 à base das investigações da polícia e do gabinete do procuradorgeral a Suprema Corte chegou à conclusão de que todos os líderes do Partido devem ter compreendido que as instruções verbais do Reichspropagandaleiter significavam que para observadores de fora o Partido não queria aparecer como o instigador da demonstração mas na verdade deveria organizála e levála a cabo O reexame dos escalões de comando revelou que o nacionalsocialista ativo temperado na luta que antecedeu o poder Kampfzeit aceita naturalmente que as ações em que o Partido não deseja aparecer no papel de organizador não são 449 formações de elite não eram obrigadas a obedecer apenas as ordens do Führer mas a obedecer o desejo da liderança32 E como indicam os longos processos submetidos às cortes do partido referentes a excessos as duas coisas não eram em forma alguma idênticas A única diferença era que as formações de elite graças à doutrinação especial haviam sido treinadas para compreender que certas insinuações significavam mais do que meros conteúdos verbais33 Tecnicamente falando o movimento dentro do aparato de domínio totalitário deriva a sua mobilidade do fato de que a liderança está continuamente transferindo o verdadeiro centro do poder muitas vezes para outras organizações mas sem dissolver e nem mesmo denunciar publicamente os grupos cuja autoridade foi eliminada Na fase inicial do regime nazista imediatamente após o incêndio do Reichstag a SA era a verdadeira autoridade e o partido era o poder ostensivo depois o poder foi transferido da SA para a SS e finalmente da SS para o Serviço de Segurança34 O fato é que nenhum dos órgãos jamais foi privado do direito de pretender representar o desejo do Líder35 A constante divisão sempre alterada entre a verdadeira autoridade secreta e a representação franca e ostensiva fazia da verdadeira sede do poder um mistério por definição a tal ponto que sequer os membros dos círculos governantes jamais podiam estar absolutamente seguros quanto a sua própria posição na secreta hierarquia ordenadas com clareza inequívoca nem com todos os detalhes Assim está habituado a compreender que uma ordem pode significar mais que o seu conteúdo verbal como se tornou mais ou menos rotina para quem dá as ordens no interesse do Partido não dizer tudo e apenas insinuar o que deseja obter com a ordem Desse modo as ordens de que por exemplo não o judeu Grünspan mas todo o povo judeu deve levar a culpa pela morte do camarada Von Rath de que devem trazerse pistolas de que todo homem da SA devia a esta altura saber o que tinha que fazer eram compreendidas por um número de sublideres como indicativas de que haveria de correr sangue judeu pela morte do camarada Von Rath Particularmente significativo é o fim do relatório no qual a Suprema Corte do Partido abertamente objeta contra esses métodos Outra questão é se no interesse da disciplina a ordem intencionalmente vaga dada na expectativa de que quem a recebe reconhece a intenção de quem ordena e aja de acordo não deva ser relegada ao passado Eis aqui novamente pessoas que nas palavras de Hitler tinham medo de pularem sobre a própria sombra e insistiam em medidas legislativas por não compreenderem que a lei suprema não era a ordem mas o desejo do Fuehrer Fica bem clara neste exemplo a diferença de mentalidade entre as formações de elite do partido e os seus diversos órgãos 32 Best op cit assim se expressa Enquanto a polícia executa esse desejo da liderança age em conformidade com a lei se o desejo da liderança é violado então não a polícia mas um membro da polícia cometeu uma violação 33 Ver nota 31 34 Em 1933 após o incêndio do Reichstag os líderes da SA eram mais poderosos que um Gauleiter Recusavam se também a obedecer a Gõring Ver Rudolf Diels em suas declarações sob juramento em Nazi conspiracy V 224 Diels era chefe da polícia política sob Gõring 35 Sem dúvida a SA se ressentia da perda de posição e de poder na hierarquia nazista e tentou desesperadamente manter as aparências Em suas revistas Der SAMann Das Archiv etc encontramse muitas indicações veladas ou abertas de sua impotente rivalidade com a SS O mais interessante é que Hitler ainda em 1936 quando a SA já havia perdido a sua força assegurava aos seus homens num discurso Tudo o que vocês são o são através de mim tudo o que eu sou sou através de vocês Ver Ernst Bayer Die SA Berlim 1938 A fonte desta citação é Nazi conspiracy IV 782 450 do poder Alfred Rosenberg por exemplo a despeito da longa carreira no partido e do impressionante acúmulo de poder e cargos ostensivos na hierarquia do nazismo ainda falava em criar uma série de Estados na Europa oriental como proteção contra Moscou numa época em que aqueles que detinham o verdadeiro poder já háviám decidido que nenhuma estrutura estatal deveria sobreviver à derrota da União Soviética e que a população dos territórios ocupados no Leste já era definitivamente apátrida e portanto podia ser exterminada36 Jsm outras palavras uma vez que o conhecimento da fonte das ordens e a sedimentação comparativamente permanente da hierarquia poderiam introduzir um elemento de estabilidade alheio ao domínio totalitário os nazistas constantemente repudiavam a verdadeira autoridade sempre que esta se tornava pública e criavam novas instâncias de governo em relação às quais a anterior virava governo fantasma um jogo que é claro podia continuar ad infinitum Uma das mais importantes diferenças técnicas entre o sistema soviético e o sistema nazista é que Stálin sempre que transferia a ênfase do poder dentro do movimento de um aparelho para outro tendia a liquidar o aparelho juntamente com o seu pessoal enquanto Hitler apesar dos seus desdenhosos comentários sobre pessoas que têm medo de pular sobre a própria sombra37 estava perfeitamente disposto a continuar a usar essas sombras embora em outra função A multiplicação de órgãos era extremamente útil para a constante transferência do poder além disso quanto mais tempo um regime totalitário permanece no poder maiores se tornam o número de órgãos e a possibilidade de empregos que dependem exclusivamente do movimento uma vez que nenhum órgão é abolido quando a sua autoridade é liquidada O regime nazista começou essa multiplicação com uma coordenação inicial de todas as associações sociedades e instituições existentes sem que essa coordenação implicasse incorporálas às organizações partidárias Como resultado surgiram duas organizações de estudantes nacionalsocialistas duas organizações nazistas femininas duas organizações nazistas de professores universitários advogados médicos e assim por diante38 Mas nunca se sabia ao certo se a organização partidária era 36 Comparese o discurso de Rosenberg de junho de 1941 Creio que a nossa tarefa política será organizar esses povos em certos tipos de corpos políticos que se anteponham a Moscou com o Memorando sem data para a Administração dos Territórios Ocupados do Leste Com a dissolução da União Soviética após sua derrota nenhuma estrutura política restará nos territórios do Leste e portanto sua população não terá cidadania Trial of the major war criminal Nuremberg 1947 XXVI pp 616 e 604 respectivamente 37 Hitlers Tischgespràche Bonn 1951 p 213 38 Quanto à variedade de organizações partidárias superpostas ver Rangund Organisationsliste der NSDAP Stuttgart 1947 e Nazi conspiracy I 178 que enumera quatro categorias principais 1 Gliederungen der NSDAP que haviam existido antes da subida ao poder 2 Angeschlossene Verbande derNSDAP que abrange aquelas sociedades que haviam sido coordenadas 3 Bereute Organisationen derNSDAP e 4 Weitere nationalsozialistische Organisationen Em quase todas essas categorias encontrase uma organização diferente de estudantes de mulheres de professores e de trabalhadores 451 mais poderosa que a sua rival coordenada39 nem se podia prever com segurança qual o órgão partidário a ser promovido nos escalões da hierarquia interna do partido40 Um exemplo clássico dessa informidade planejada ocorreu na organização do antisemitismo científico Em 1933 foi fundado em Munique um instituto para o estudo da questão judaica Institut zur Erforschung der Judenfrage Partindo da premissa de que a questão judaica houvesse determinado a evolução de toda a história da Alemanha esse órgão foi logo ampliado para tornarse um instituto de pesquisa da histoúa alemã moderna Chefiado pelo conhecido historiador Walter Frank transformou as universidades tradicionais em sedes do aparente saber pseudocientífico Em 1940 outro instituto para o estudo da questão judaica foi criado em Frankfurt sob a chefia de Alfred Rosenberg cuja posição como membro do partido era muito superior Conseqüentemente o instituto de Munique foi relegado a uma existência fantasma o instituto de Frankfurt não o de Munique é que deveria receber os tesouros das coleções judaicas roubadas na Europa e transformarse em biblioteca central sobre o judaísmo No entanto quando alguns anos mais tarde essas coleções chegaram à Alemanha o que havia de mais precioso não foi para Frankfurt mas para Berlim para as mãos do departamento especial da Gestapo encarregado da liquidação e não apenas do estudo da questão judaica cujo chefe era Eichmann Nenhuma das instituições anteriores foi abolida de sorte que em 1944 a situação era esta atrás da fachada dos departamentos de história das universidades erguiase o poder mais legítimo do instituto de Munique por trás do qual estava o instituto de Frankfurt de Rosenberg e somente por trás dessas três fachadas escondido e protegido por elas estava o verdadeiro centro da autoridade o Reichssicherheitshauptamt uma divisão especial da Gestapo A despeito da sua constituição escrita a fachada do governo soviético é ainda mais inconsistente Destinase ainda mais a impressionar os estrangeiros do que a administração estatal que os nazistas herdaram da República de Weimar e conservaram em funcionamento Não tendo como os nazistas processado a duplicação de cargos na fase de coordenação o regime soviético confia ainda mais na criação de novos órgãos para relegar à sombra os antigos centros do poder O gigantesco aumento do aparelho burocrático que esse método acarreta é controlado pela repetida liquidação através de expurgos Não obstante 39 A gigantesca organização das obras públicas chefiada por Todt e mais tarde por Albert Speer foi criada por Hitler fora de qualquer hierarquia ou afiliação partidária Essa organização podia ser usada contra a autoridade do partido e até mesmo da polícia É digno de nota que Speer pudesse arriscarse a apontar a Hitler durante uma conferência em 1942 a impossibilidade de organizar a produção sob o regime de Himmler e até mesmo exigir jurisdição sobre o trabalho escravo e os campos de concentração Ver Nazi conspiration I 9167 40 Por exemplo uma organização inócua e sem importância como a NSKK agremiação nazista de automobilistas fundada em 1930 foi subitamente promovida em 1933 à posição de formação de elite compartilhando com a SA e a SS o privilégio de unidade independente afiliada ao partido Essa ascensão na escala hierárquica do nazismo não teve maiores conseqüências em retrospecto parece ter sido apenas uma fútil ameaça à SA e à SS 452 podemos distinguir também na Rússia pelo menos três organizações absolutamente distintas o aparelho soviético ou estatal o aparelho do partido e o aparelho da NKVD cada qual dispondo de seus próprios departamentos independentes de economia e de política um ministério de educação e cultura uni departamento militar etc41 Na Rússia o poder ostensivo da burocracia do partido em contraposição com o verdadeiro poder da polícia secreta corresponde à duplicação original de partido e Estado que ocorreu na Alemanha nazista e a multiplicação só é evidente na própria polícia secreta que possui uma rede extremamente complicada e vastamente ramificada de agentes na qual um departamento está sempre ocupado em supervisionar e espionar o outro Cada empreendimento na União Soviética tem o seu departamento especial de polícia secreta que espiona tanto os membros do partido como o pessoal comum Coexiste com esse departamento outra divisão de polícia do próprio partido que por sua vez vigia todo mundo inclusive os agentes da NKVD e cujos membros são desconhecidos pela entidade rival A essas duas organizações de espionagem devem acrescentarse os sindicatos das fábricas cuja função é fazer com que os trabalhadores cumpram as metas que lhes foram atribuídas Muito mais importante que esses aparelhos porém é o departamento especial da NKVD que representa uma NKVD dentro da NKVD ou seja uma polícia secreta dentro da polícia secreta42 Todos os relatórios dessas agências policiais rivais vão terminar no Comitê Central de Moscou e no Politburo É aí que se decide qual dos relatórios será levado em conta e qual das divisões terá o direito de tomar as respectivas medidas policiais Nem o habitante comum do país nem qualquer dos departamentos de polícia sabem naturalmente que decisão será tomada Entre todos esses departamentos não há nenhuma hierarquia de poder ou de autoridade com base na lei a única certeza é que eventualmente um deles será escolhido para encarnar o desejo da liderança A única regra segura num Estado tatalitálÍQéqueJguanto mais visível é uma agência governamental menos poder detém e quanto menos se sabe da existência de uma instituição mais poderosa ela é De acordo com esta regra os soviétes reconhecidos por uma constituição escrita como a mais alta autoridade do Estado têm menos poder que o partido bolchevista o partido bolchevista que recruta abertamente os seus membros e é reconhecido como classe governante tem menos poder que a polícia secreta O verdadeiro poder começa onde o segredo começa Neste particular os Estados nazista e bolchevista foram muito parecidos a diferença era principalmente o monopólio e a centralização 41 F BeckeW Godin Russian purge and the extraction of confessions 1951 p 153 42 Ibid p 159 ss Segundo outras fontes existem vários exemplos dessa desconcertante multiplicação do aparelho de polícia soviético principalmente as associações locais e regionais da NKVD que funcionam independentemente uma da outra e têm suas correspondentes nas redes locais e regionais dos agentes do partido Ê natural que saibamos muito menos a respeito das condições na Rússia do que a respeito do que ocorria na Alemanha especialmente no tocante a detalhes da organização 453 dos serviços de polícia secreta nas mãos de Himmler no primeiro caso e o labirinto de atividades policiais russas aparentemente sem qualquer relação ou ligação umas com as outras no segundo caso Se considerarmos o Estado totalitário unicamente como instrumento de poder e deixarmos de lado as questões de eficiência administrativa capacidade industrial e produtividade econômica então o seu amorfismox passa a ser instrumento ideal para a realização do chamado princípio de liderança A contínua rivalidade entre os órgãos cujas funções não apenas se sobrepõem mas que são encarregados das mesmas tarefas43 quase não permite que a oposição ou a sabotagem venham a ser eficazes a rápida mudança de ênfase que relega um órgão ao esquecimento para promover outro ao nível da autoridade pode resolver todos os problemas sem que ninguém perceba a mudança ou mesmo o fato de ter existido oposição a vantagem adicional é que o órgão opositor provavelmente nunca virá a descobrir que foi derrotado uma vez que nunca é abolido como no caso do regime nazista ou é liquidado muito mais tarde sem qualquer relação aparente com a questão específica Isso pode ser levado a cabo com extrema facilidade pois ninguém exceto poucos iniciados conhece a relação exata entre as autoridades Só de vez em quando o mundo nãototalitário tem um vislumbre dessa situação como no caso de um alto funcionário no exterior confessar que um obscuro empregado da embaixada era o seu superior imediato Em retrospecto é possível muitas vezes determinar por que ocorreu tão súbita perda de autoridade ou antes determinar se ela realmente ocorreu Por exemplo não é difícil compreender hoje o motivo pelo qual ao eclodir a guerra homens como Alfred Rosenberg ou Hans Frank foram removidos dos seus cargos partidários e dessa forma eliminados do verdadeiro centro do poder ou seja do círculo interno do Führer44 O que importa é que eles não somente ignoravam as razões dessas manobras como provavelmente nem suspeitavam que os novos cargos aparentemente tão altos como os de governadorgeral da Polônia ou Reichsminister para todos os territórios do Leste significavam não o clímax mas o fim de suas carreiras nacionalsocialistas O princípio do Líder não estabelece nenhuma hierarquia ncrEstado totalitário como não ó faz no movimento totalitário a autoridade não se filtrãjíe cirnalpãira baixo através de todas as camadas intermediárias até a base dajesiruMrapolítíca como no caso doíregimes autoritários A razão concreta é que não há hierarquíàhTaütoridade e a despeito dos muitos erros de interpretação 43 Segundo o testemunho de um dos seus exfuncionários Nazi conspiracy VI 461 Himmler confiava a mesma tarefa a duas pessoas diferentes 44 No discurso mencionado acima ver nota 29 Hans Frank deixou claro que em alguma data futura queria estabilizar o movimento as suas numerosas queixas como governadorgeral da Polônia demonstram a total falta de compreensão das tendências absolutamente antiutilitárias da policia nazista Ele não podia compreender por que os povos dominados não eram explorados mas exterminados Rosenberg aos olhos de Hitler era racialmente indigno de fé uma vez que pretendia estabelecer Estados satélites nos territórios conquistados do Leste e não compreendia que a política de despopulação de Hitler visava a esvaziar esses territórios 454 cometidos em relação à personalidade autoritária o princípio da autoridade é para todos os efeitos diametralmente oposto ao princípio do domínio totalitário O seu caráter primígeno já aparece na história romana aH a autoridade sob qualquer forma visa a restringir ou limitar a liberdade mas nunca a abolila O domínio totalitário porém visa à abolição da liberdade e até mesmo à eliminação de toda espontaneidade humana e não a simples restrição por mais tirânica que seja da liberdade Essa ausência da autoridade hierárquica no sistema totalitário é demonstrada pelo fato de que entre o supremo poder oFührer e os governos não existem níveis intermediários definidos cada uma com o seu devido quinhão de autoridade e de obediência O desejo do Führer pode encarnarse em qualquer parte e a qualquer momento sem que o próprio Führer esteja ligado a qualquer hierarquia nem mesmo àquela que ele mesmo possa ter criado Portanto não é exato dizer que o movimento após a tomada do poder cria uma multidão de principados onde cada pequeno líder é livre para fazer o que quiser e imitar o grande líder lá de cima45 A afirmação nazista de que o partido é uma concatenação dos líderes46 não passava de balela Do mesmo modo como como a multiplicação infinita de órgãos e a confusão da autoridade leva ao estado de coisas no qual cada cidadão se sente diretamente confrontado com o desejo do Líder que escolhe arbitrariamente o órgão executante das suas decisões também o milhão e meio de führers disseminados por todooTerceiro Reich47 sabia muito bem que a sua autoridade emanava diretamente de Hitler sem os níveis intermediários de uma hierarquia operante48 A dependência direta era real e a hierarquia intermediária apenas imitava de maneira ostensiva mas espúria um Estado autoritário O absoluto monopólio do poder e da autoridade por parte do Líder é mais evidente no seu relacionamento com o chefe de polícia que num país totalitário ocupa o cargo público mais poderoso Contudo a despeito do enorme poderio material e organizacional colocado à sua disposição como dirigente de um verdadeiro exército policial e de formações de elite o chefe de polícia aparentemente nunca está em posição de tomar o poder e tornarse o governante do país Assim antes da queda de Hitler Himmler nunca sonhou com a liderança49 e 45 A noção da divisão em pequenos principados constituindo uma pirâmide de poder fora da lei com o Fuehrer no topo é de Robert H Jackson Ver o cap xii de Nazi conspiracy II 1 ss Para evitar a criação desse tipo de Estado autoritário Hitler já em 1934 baixou o seguinte decreto O tratamento de Mein Führer fica reservado apenas para o Fuehrer Todos os sublíderes do NSDAP ficam doravante proibidos a se deixarem tratar por Mein Reichsleiter etc tanto por escrito como oralmente Em vez disso o tratamento deve ser Pg abreviatura de Parteigenosse Camarada do Partido ou Gauleiter etc Ver Verfügungen Anordnungen Bekanntgaben op cit decreto de 20 de agosto de 1934 46 Ver o Organisationsbuch der NSDAP 47 Ver o quadro n 14 do vol VIII de Nazi conspiracy 48 Todos os juramentos no partido e nas formações de elite eram feitos com a invocação pessoal de Adolf Hitler 49 O primeiro passo de Himmler nessa direção foi dado no outono de 1944 quando mandou por iniciativa própria desmontar as câmaras de gás em alguns dos campos de extermínio e parar a matança em massa Foi a sua maneira de dar início às negociações de paz com as potências 455 nunca foi proposto por ninguém como seu eventual sucessor Neste particular ainda mais interessante foi a malfadada tentativa de Béria de tomar o poder após a morte de Stálin Embora Stálin nunca houvesse permitido que qualquer um dos seus chefes de polícia gozasse de posição semelhante à que Himmler desfrutava durante os últimos anos de governo nazista Béria também dispunha de tropas suficientes para desafiar o domínio do partido depois da morte de Stálin Ninguém exceto o Exército Vermelho poderia ter frustrado a sua pretensão de poder o que poderia ter levado a uma sangrenta guerra civil cujo desfecho seria completamente incerto O fato é que Béria abandonou voluntariamente todos os seus cargos poucos dias depois da morte de Stálin embora devesse saber que pagaria com a vida como pagou a ousadia de antepor por alguns dias o poder da polícia ao poder do partido50 Essa falta de poder absoluto não impede ao chefe de polícia organizar a máquina sob seu comando segundo os princípios do poder autoritário Assim é sintomático ver como Himmler depois de nomeado passou a reorganizar a polícia alemã introduzindo a multiplicação de órgãos na estrutura do serviço secreto até então centralizada aparentemente fez aquilo que os mestres do jogo do poder anteriores aos regimes totalitários teriam chamado de descentralização tendente à diminuição do poder Himmler acrescentou à Gestapo primeiro o Serviço de Segurança originalmente uma divisão da SS criada como corpo policial interpartidário Embora as sedes da Gestapo e do Serviço de Segurança viessem a ser centralizadas em Berlim as suas ramificações regionais conservaram identidades separadas e cada uma reportavase diretamente ao gabinete do próprio Himmler em Berlim51 No decorrer da guerra Himmler acrescentou mais dois serviços de espionagem um consistia nos chamados inspetores sob a jurisdição da SS que deviam controlar e coordenar com a polícia o Serviço de Segurança o outro era uma agência de espionagem especificamente militar que agia independentemente das forças militares do Reich e veio a absorver a própria espionagem militar do Exército52 A completa ausência de revoluções palacianas bemsucedidas ou não é uma das mais peculiares características das ditaduras totalitárias Com uma exceção apenas nenhum nazista participou da conspiração militar contra Hitler em julho de 1944 Superficialmente o princípio do Líder parece um convite a mudanças sangrentas de poder pessoal sem alteração do regime Esse é apenas um dos numerosos indícios de que a forma totalitária de governo muito pouco tem a ver com o desejo de poder ou mesmo com o desejo de uma máquina do Ocidente É interessante que Hitler nunca chegasse a ser informado desses preparativos aparentemente ninguém ousou dizerlhe que um dos seus mais importantes objetivos de guerra o extermínio dos judeus tinha sido parcialmente abandonado Ver Léon Poliakov Bréviaire de Ia haine 1951 p 232 50 Quanto aos acontecimentos que se seguiram à morte de Stálin ver Harrison E Salisbury American in Rússia Nova York 1955 51 Ver a excelente análise da estrutura da policia nazista em Nazi conspiracy II 250 ss esp p 256 52 Ibid p 252 456 geradora de poder com o jogo do poder pelo amor ao poder que caracterizou os últimos estágios do domínio imperialista É contudo uma das indicações mais importantes de que o governo totalitário não obstante todas as aparências não é o governo de uma clique ou de uma gangue53 As ditaduras de Hitler e de Stálin mostram claramente o fato de que o isolamento deJndMduõs àtomizados não apenas constitui a base para o domínio totalitário mas é levado a efeito de modo a atingir o próprio topo da estrutura Stálin fuzilou quase todos os que podiam dizer que pertenciam à clique governante e trocou e retrocou os membros do Politburo sempre que uma clique estava a ponto de consolidarse Hitler destruiu esses círculos na Alemanha nazista com métodos menos drásticos o único expurgo sangrento foi dirigido contra o círculo de Rõhm que era firmemente unido pela homossexualidade dos seus principais membros evitou a formação de eliqveí através de constantes transferências de poder e dèf autoridade além de freqüentes mudanças dos elementos íntimos que privavãnr do seu círculo imediato de modo que toda a antiga solidariedade entre os que haviam chegado com ele ao poder desapareceu rapidamente Além disso parece óbvio que a monstruosa deslealdade descrita em termos quase idênticos como o principal traço do caráter de Hitler e de Stálin não lhes permitiria chefiar um grupo tão duradouro e coeso como uma clique Seja como for o fato é que não existe qualquer interrelação entre os que exercem as funções de comando Nem a igualdade áestatus nem o relacionamento entre chefes e subordinados nem mesmo a duvidosa lealdade dos gângsteres conseguem integrálos numa hierarquia política Na União Soviética todos sabem que tanto um gerente geral de uma grande empresa estatal quanto o ministro das Relações Exteriores podem ser rebaixados a qualquer dia para a mais humilde condição social e política e um completo desconhecido pode tomarlhes o lugar Por outro lado a cumplicidade dos gângsteres que de fato foi importante nos estágios iniciais da ditadura nazista perde toda a força de coesão pois o totalitarismo usa o poder exatamente para disseminar essa cumplicidade entre toda a população até que o povo sob o seu domínio esteja totalmente unido por uma só culpa54 A falta de um grupo governante torna a sucessão do ditador totalitário especialmente desconcertante e incômoda É verdade que todos os usurpadores tiveram esse problema e é bem típico dos ditadores totalitários que nenhum jamais tenha experimentado o antigo método de fundar uma dinastia e transmitir 53 Franz Neumann op cit pp 521 ss duvida se se pode chamar a Alemanha de Estado Parece mais uma gangue em que os lideres são perpetuamente compelidos a concordar com seus chefes mesmo depois dos desacordos As obras de Konrad Heiden sobre a Alemanha nazista exemplificam a teoria de que o pais era governado por uma clique No tocante à formação de cliques em torno do Hitler TheBormann letters publicadas por TrevorRoper são muito elucidativas No julgamento dos médicos The United States vs Karl Brandt et ai audiência de 13 de maio de 1947 Victor Brack testemunhou que já em 1933 Bormann certamente por ordem de Hitler havia começado a organizar um grupo de pessoas que estariam acima do Estado e do partido 54 Comparese a contribuição da autora à discussão do problema da culpabilidade alemã Organized guilt emJewish Frontier janeiro de 1945 457 o poder aos filhos Ao lado do método de Hitler de fazer tantas nomeações que nenhuma era válida há o método de Stálin que fez da sucessão uma das honrarias mais perigosas da União Soviética Num regime totalitário conhecer o labirinto de correias transmissoras que põem o sistema a funcionar eqüivale a ter o poder supremo e todo sucessor nomeado que realmente descobre o que está acontecendo é automaticamente removido dentro de certo tempo Uma nomeação válida e relativamente permanente implicaria a existência de um círculo cujos membros compartilhariam o monopólio do Líder no tocante ao saber do que acontece coisa que o Líder tem de evitar por todos os meios Hitler certa vez explicou isso aos comandantes supremos da Wehrmacht que em meio ao tumulto da guerra remoíam exatamente esse problema Como fator máximo devo com toda a modéstia declararme insubstituível O destino do Reich depende exclusivamente de mim55 Não há ironia na palavra modéstia o líder totalitário em agudo contraste com todos os antigos usurpadores déspotas e tiranos parece acreditar que a questão da sua sucessão não é tão importante assim que a tarefa não exige dons ou treinamentos especiais que o país eventualmente obedecerá a quem quer que seja nomeado por ocasião da sua morte e que nenhum rival sedento de poder contestará a legitimidade do substituto56 Como técnicas de governo os expedientes do totalitarismo parecem simples e engenhosamente eficazes Asseguram não apenas um absoluto monopólio do poder mas a certeza incomparável de que todas as ordens serão sempre obedecidas a multiplicidade das correias que acionam o sistema e a confusão da hierarquia asseguram a completa independência do ditador em relação a todos os subordinados e possibilitam as súbitas e surpreendentes mudanças de política pelas quais o totalitarismo é famoso A estrutura política do país mantémse à prova de choques exatamente por ser amorfa As razões pelas quais tão extraordinária eficiência nunca havia sido experimentada antes são tão simples como o próprio expediente A multiplicação de cargos destrói todo o senso de responsabilidade e de competência não apenas 55 Num discurso de 23 de novembro de 1939 citado em Trial of major war criminais vol 26 p 332 Este pronunciamento representava mais que uma aberração histérica provocada pelo acaso como se depreende do discurso de Himmler cuja transcrição estenográfica se encontra nos arquivos da Biblioteca Hoover arquivo Himmler pasta 332 na conferência dos prefeitos em Posen em março de 1944 Diz Himmler Que valores podemos colocar na balança da história O valor do nosso próprio povo O segundo valor e eu quase diria ainda maior é a singular pessoa do nosso Führer Adolf Hitler que pela primeira vez em 2 mil anos foi enviado à raça germânica como um guia supremo 56 Ver as declarações de Hitler sobre essa questão em Hitlers Tischgespfáche pp 253 e 222 O novo Führer teria de ser eleito por um senado o princípio orientador das eleições do Führer seria a cessação de qualquer discussão entre as personalidades que participassem da eleição Dentro de três horas a Wehrmacht o partido e todos os servidores públicos teriam de prestar novo juramento Ele não tinha ilusões quanto ao fato de que nessa eleição do supremo chefe do Estado nem sempre poderia surgir uma personalidade marcante de lider para comandar o Reich Mas isso não acarretava perigos contanto que a maquinaria geral funcionasse devidamente 458 representa um aumento tremendamente oneroso e improdutivo de administração mas é realmente um estorvo à produtividade pois o trabalho genuíno é constantemente retardado por ordens contraditórias até que o comando do Líder venha a decidir a questão O fanatismo dos altos escalões da elite absolutamente essencial para o funcionamento do movimento liquida sistematicamente todo real interesse em tarefas específicas e produz uma mentalidade que vê em toda e qualquer ação um meio de atingir algo completamente diferente57 E essa mentalidade não se limita à elite mas gradualmente toma conta de toda a população cuja vida ou morte depende em seus menores detalhes de decisões políticas isto é de motivos e causas ulteriores que nada têm a ver com o seu desempenho As constantes remoções demoções e promoções impossibilitam odesenvolvimento do trabalho de equipe e impedem o acúmulo da experiência Um exemplo do ponto de vista econômico a escravidão é um luxo ao qual a Rússia não se poderia dar numa época de grave escassez de técnicos os campos de concentração estavam abarrotados de engenheiros altamente qualificados que competem pelo direito de trabalhar como encanadores consertadores de relógios de rede elétrica e de telefones58 Por outro lado do ponto dejdstpuiamente utilitário a Rússia não deveria ter empreendido os expurgos na década de 30 eles interromperam uma recuperação econômica longamente esperada e por causa da destruição física do estadomaior do Exército Vermelho quase levaram o país à derrota na guerra finosoviética Na Alemanha as condições diferiam em intensidade No começo os nazistas demonstraram certa tendência de conservar a mãodeobra técnica e administrativa permitir a lucratividade nos negócios e exercer domínio econômico sem excesso de interferência Quando a guerra eclodiu a Alemanha ainda não estava completamente totalitarizada e se aceitarmos o preparo bélico como motivo racional temos de reconhecer que até por volta de 1942 a sua economia pôde funcionar mais ou menos racionalmente Em sLa preparo bélico não é antiutilitário a despeito do seu custo proibitivo59 pois realmente pode ser muito mais barato apoderarse da riqueza e dos recursos de outras nações através da conquista do que comprálos de países estrangeiros ou produzilos em casa60 s kiseconômicasdo investimento e da produção da rentabilidade do lucro e da depreciação perdem sua validade quando se pretende reabastecer 57 Um dos princípios mestres da SS formulado pelo próprio Himmler diz Nenhuma tarefa é executada em benefício de si mesma Ver Gunter dAlquen Die SS Geschichte Aufgabe und Organisation der Schutzstaffeln der NSDAP A SS História função e organização dos Esquadrões de Proteção do NSDAP 1939 Schriften der Hochschule für Politik 58 Ver David J Dallin e Boris I Nicolaevsky Forced labor in Rússia 1947 Durante a guerraquando a mobilização havia criado agudo problema de mãodeobra a taxa de mortalidade nos campos de trabalho atingiu cerca de 40 De modo geral calculase que a produção de um trabalhador nos campos é menor em 50 da de um trabalhador livre 59 Thomas Reveille The spoil ofEurope 1941 calcula que somente durante o primeiro ano da guerra a Alemanha pôde cobrir todas as suas despesas com a preparação do conflito entre 1933 e1939 60 William Ebenstein The Nazistate p 257 459 a ecornnajionaLatrayés da pilhagem de outros países a verdade é que o famoso slogan nazista de canhões ou manteiga realmente significava manteiga por meio de canhões e o povo alemão simpatizante do nazismo sabia disso muito bem61 Somente em 1942 é que as normas do domínio totalitário passaram a prevalecer sobre tudo mesmo sobre a economia O processo de radicalização totalitária começou imediatamente após a deflagração da guerra podese até conjeturar que Hitler provocou a guerra entre outras razões por que ela lhe permitia acelerar esse processo de uma forma que teria sido inconcebível em tempos de paz62 O mais curioso porém é que essa radicalização não foi absolutamente prejudicada por uma derrota tão fragorosa como a de Stalingrado e que o risco de perder inteiramente a guerra foi apenas mais um motivo para pôr de lado quaisquer considerações utilitárias e procurar atingir por meio da impiedosa organização total os objetivos da ideologia racial totalitária nem que fosse por pouco tempo63 Depois de Stalingrado as formações de elite antes tão rigidamente separadas do povo foram amplamente expandidas a proibição de militares pertencerem ao partido foi suspensa e o comando militar foi subordinado aos comandantes tia SS O monopólio do crime zelosamente guardado pela SS foi abandonado e agora qualquer soldado podia ser incumbido de assassínios em massa64 Nem considerações 61 Ibid p 270 62 Em apoio a essa conjetura há o fato de que o decreto para assassinar todos os doentes incuráveis foi emitido no dia em que a guerra foi declarada As declarações de Hitler durante a guerra citadas por Goebbels The Goebbels diaries editados por Louis P Lochner 1948 são claras nesse sentido A guerra possibilitou resolvermos uma porção de problemas que nunca teriam sido resolvidos em tempos normais e qualquer que seja o resultado do conflito os judeus certamente levarão a pior p 314 63 A Wehrmacht tentou muitas vezes explicar aos vários órgãos do partido os perigos de conduzir uma guerra na qual as ordens eram dadas com o mais completo descaso às necessidades militares civis e econômicas ver Poliakov op cit p 321 Mas até mesmo muitos dos altos funcionários nazistas tinham dificuldade em compreender esse desprezo por todos os fatores objetivos econômicos e militares da situação Diziaselhes repetidamente que basicamente devem esquecer as considerações econômicas na solução do problema judaico Nazi conspiracy VI 402 mas ainda assim eles se queixavam de que importantes planos de construção não teriam sido interrompidos na Polônia se os judeus que nele trabalhavam não houvessem sido deportados Agora ordenase que os judeus sejam removidos dos projetos de armamentos Espero que essa ordem seja logo cancelada porque senão a situação será pior Esta esperança de Hans Frank governadorgeral da Polônia foi tão frustrada quanto as suas expectativas posteriores de uma política militarmente mais sensata em relação aos poloneses e ucranianos Suas queixas são interessantes ver o seu diário em Nazi conspiracy IV 902 ss porque o que o assustava era exclusivamente o aspecto antiutilitário da política nazista durante a guerra Uma vez quea guerra tenha sido ganha pouco se me dá se se fizer picadinho dos poloneses e ucranianos e de todos os mais aqui 64 Originalmente somente as unidades especiais da SS as formações da Caveira eram empregadas nos campos de concentração Mais tarde vieram reforços das divisões da WaffenSS A partir de 1944 empregaramse também unidades de Forças Armadas regulares A maneira como a presença ativa da Wehrmacht se fazia sentir nos campos de concentração foi descrita no diário do campo de concentração de Odd Nansen Day after day Londres 1949 Infelizmente esse diário mostra que as tropas do Exército regular eram pelo menos tão brutais quanto a SS 460 econômicas nem militares em políticas podiam mais interferir com o oneroso e incômodo programa de extermínio e deportação em massa Quem estuda esses últimos anos de governo nazista e a sua versão de um plano qüinqüenal que não foi realizado por falta de tempo mas que visava ao extermínio do povo polonês e ucraniano de 170 milhões de russos como um dos planos menciona da intelligentsia da Europa ocidental como a da Holanda e do povo da Alsácia e Lorena bem como de todos os alemães que não se enquadrassem na projetada lei de saúde pública do Reich ou numa futura lei de estrangeiros em comunidade não pode deixar de perceber a semelhança com o plano qüinqüenal bolchevista de 1929 que foi o primeiro ano de clara ditadura totalitária na Rússia No primeiro caso os vulgares slogans da eugenia e no segundo os altissonantes lemas econômicos foram o prelúdio de um exemplo de prodigiosa loucura que virava de cabeça para baixo todas as regras da lógica e os princípios da economia65 Ê claro que os ditadores totalitários não enveredam conscientemente jjelo caminho da loucura O caso é que nosso espanto em face da natureza antiutilitária da estrutura estatal do totalitarismo se deve à falsa noção de que afinal estamos lidando com um Estado normal uma burocracia uma tirania uma ditadura e ao fato de não levarmos em conta a enfática afirmação dos governos totalitários de que considerando país nó qual galgaram o poder apenas como sede temporária do movimento internacional a caminho daconquista do mundo de que para eles as vitórias e as derrotas são computadas em termos de sécutôs ou milênios e de que os interesses globais sempre terão prioridade sobre os interesses locais do seu próprio território66 A famosa frase o direito é aquilo que é bom para o povo alemão destinavase apenas à propaganda de massa o que se dizia aos nazistas era que o direito é aquilo que é bom para o movimento67 e os dois interesses absolutamente não coincidiam Os nazistas não achavam que os alemães fossem uma raça superior à qual pertenciam mas sim que deviam ser comandados como todas as outras nações 65 Deutscher op cit p 326 Tratase de uma citação de peso pois é da autoria do mais benévolo dos biógrafos nãocomunistas de Stálin 66 Os nazistas gostavam especialmente de pensar em termos de milênios Os pronunciamentos de Himmler de que os homens da SS interessavamse unicamente por questões ideológicas que seriam importantes em termos de décadas e de séculos e que serviam a uma causa que só ocorria uma vez a cada 2 mil anos são repetidas com ligeiras variações em todo o material de doutrinação emitido pelo SSHauptamtSchulungsamt Wesen und Aufgabe der SS und der Polizei p 160 Quanto à versão bolchevista a melhor referência é o programa da Internacional Comunista formulado por Stálin já em 1928 no Sexto Congresso em Moscou Particularmente interessante é a avaliação da União Soviética como a base do movimento mundial o centro da revolução internacional o mais importante fator da história do mundo Na URSS o proletariado mundial adquire um país pela primeira vez citado por W H Chamberlain Blueprint for world conquest 1946 que reproduz verbatim os programas da Terceira Internacional 67 Essa mudança do lema oficial pode ser encontrada no Organisationsbuch der NSDAP p7 461 por uma raça superior que somente agora estava nascendo68 A aurora dessa nova raça não eram os alemães mas a SS69 O império mundial germânico como disse Himmler ou o império mundial ariano como teria preferido Hitler só viria dali a séculos70 Para o movimento era mais importante demonstrar que era possível fabricar uma raça pela aniquilação de outras raças do que vencer uma guerra de objetivos limitados O jjtíe ao observador de fora parece um exemplo de prodigiosa loucura é apenas a conseqüência do primado absoluto do movimento não apenas em relação ao Estado mas também no que tange à nação ao povo e à posição de poder dos próprios lideres O motivo pelo qual os engenhosos expedientes do governo totalitário com a sua absoluta e inaudita concentração do poder nas mãos de um só homem nunca haviam sido experimentados antes é que nenhum tirano comum foi jamais suficientemente louco para desprezar todos os interesses limitados e locais econômicos nacionais humanos militares em favor da realidade puramente fictícia de um futuro distante e indefinido Uma vez que o totalitarismo no poder permanece fiel aos dogmas originais do movimento as notáveis semelhanças entre os expedientes organizacionais do movimento e o chamado Estado totalitário não devem causar surpresa A divisão entre membros do partido e simpatizantes agrupados em organizações de vanguarda longe de desaparecer leva à coordenação de toda população organizada agora como simpatizantes Controlase o grande aumento de simpatizantes limitandose a força partidária a uma classe privilegiada de alguns milhões e criandose um superpartido de várias centenas de milhares que são as formações de elite A multiplicação de cargos a duplicação de funções e a adaptação do relacionamento do simpatizante a essas novas condições significam simplesmente a conservação da estrutura peculiar do movimento no qual cada camada é a vanguarda da próxima formação mais militante A má 68 Ver Heiden op cit p 722 Hitler declarou num discurso de 23 de novembro de 1937 perante os futuros lideres políticos na Ordensburg Sonthofen Não tribos ridicularmente pequenas pequeninos países Estados ou dinastias mas somente raças podem funcionar como conquistadores do mundo Mas uma raça pelo menos no sentido consciente é algo que ainda temos de nos tornar ver Hitlers Tischgespràche p 445 Em completa harmonia com este fraseado que de modo algum era acidental está p decreto de 9 de agosto de 1941 no qual Hitler proíbe o uso da expressão raça alemã porque ela tenderia a sacrificar a idéia racial em si a favor de um simples princípio de nacionalidade e a destruir importantes precondiçoes conceituais de toda a nossa política racial e popular Verfügungen Anordnungen Bekanntgaben É óbvio que o conceito de uma raça alemã teria constituído um obstáculo à progressiva seleção e exterminação de grupos indesejáveis da população alemã que naqueles mesmos anos estava sendo planejada para o futuro 69 Ao fundar uma SS Germânica em vários países Himmler declarou Não esperamos que vocês se tornem alemães por oportunismo Mas esperamos que subordinem o seu ideal nacional ao ideal maior racial e histórico do Reich Alemão Heiden op cit A futura tarefa dessa SS seria formar através da mais copiosa reprodução um superestrato racial que em vinte ou trinta anos apresentaria a toda a Europa a sua nova classe dirigente discurso de Himmler na reunião dos generais da SS em Posen em 1943 em Nazi conspiracy IV 558 ss 70 Himmler ibid p 572 462 quina estatal vira uma organização de vanguarda de burocratas simpatizantes cuja função nos negócios nacionais é propagar confiança entre as massas de cidadãos meramente coordenados e cujas relações exteriores consistem em burlar o mundo exterior nãototalitário O Líder na dupla capacidade de chefe do Estado e líder do movimento continua a concentrar em si mesmo um máximo de falta de escrúpulos militante e uma aparência de normalidade capaz de inspirar confiança Uma das importantes diferenças entre movimento e Estado totalitários é que o ditador totalitário pode e necessita praticar a arte totalitária de mentir com maior consistência e em maior escala que o líder do movimento Isso é em parte conseqüência automática da ampliação dos escalões de simpatizantes e em parte resultado do fato de que uma declaração desagradável vinda de um estadista não é tão fácil de revogar quanto a de um demagógico líder partidário Para esse fim Hitler preferiu apelar sem maiores rodeios para o velho nacionalismo que ele mesmo denunciara tantas vezes antes da subida ao poder assumindo a pose de nacionalista violento afirmando que o nacionalsocialismo não era produto de exportação aplacava ao mesmo tempo alemães e nãoalemães e insinuava que as ambições nazistas estariam satisfeitas quando fossem cumpridas as tradicionais exigências da política externa alemã nacionalista a volta dos territórios cedidos no tratado de Versalhes o Anschluss da Áustria e a anexação das regiões da Boêmia de língua alemã Stálin também levou em conta a opinião pública russa e o mundo nãorusso quando inventou a sua teoria de socialismo num só país e culpou Trótski pela idéia da revolução mundial71 Mentir ao mundo inteiro de modo sistemático e seguro só é possível sob um regime totalitário no qual a qualidade fictícia da realidade de cada dia quase dispensa a propaganda Na fase que antecede o poder os movimentos não se podem dar ao luxo de esconder a esse ponto os seus verdadeiros objetivos afinal ao que eles visam é inspirar organizações de massa Mas dada a possibilidade de exterminar os judeus como se fossem insetos isto é com gás venenoso já não há necessidade de propagar que os judeus sejam insetos72 dado o poder de ensinar à nação inteira a história da Revolução Russa sem mencionar o nome de Trótski já não há mais necessidade de fazer propaganda contra Trótski Contudo o emprego dos métodos de realizar os objetivos ideológicos só pode ser esperado daqueles que são absolutamente firmes quanto à ideologia tenham eles adquirido essa firmeza nas escolas do Comintern ou 74 Deutscher op cit descreve a notável sensibilidade de Stálin para todas aquelas correntes psicológicas ocultas das quais se arrogava em portavoz p 292 O próprio nome da teoria de Trótski revolução permanente parecia ominosa advertência a uma geração cansada Stálin apelou diretamente ao horror ao risco e à incerteza que dominava muitos bolchevistas p 291 72 Assim Hitler pôde darse ao luxo de usar o chavão judeu decente quando havia começado a exterminálos ou seja em dezembro de 1941 Hitlers Tischgespràche p 346 463 nos centros especiais de doutrinação nazista mesmo que esses objetivos continuem a ser disseminados pela propaganda É então que se verifica invariavelmente que os meros simpatizantes nunca sabem o que está acontecendo73 Isso nos leva ao paradoxo de que a sociedade secreta à luz do dia nunca é tão conspirativa em sua natureza e em seus métodos como depois de ter sido aceita como membro da comunidade das nações em plenogózo dos seus direitos É apenas lógico que Hitler antes da tomada do poder resistisse a todas as tentativas de organizar o partido e até mesmo as organizações de elite numa base conspirativa contudo após 1933 vemolo bastante desejoso de ajudar a transformar a SS numa espécie de sociedade secreta74 Do mesmo modo os partidos comunistas dirigidos por Moscou preferem o clima da conspiração mesmo onde se lhes permite existir em completa legalidade75 Quanto mais visível o poder do totalitarismo mais secretos são os seus verdadeiros objetivos Para xnie se conhecessem os objetivos finais do governo de Hitler era muito mais sensato confiar nos seus discursos de propaganda e no Mein Kampf do que na oratória do chanceler do Terceiro Reich da mesma forma como teria sido mais sensato desconfiar das palavras de Stálin acerca ido socialismo num só país inventadas com a finalidade passageira de tomar o poder após a morte de Lenin e levar mais a sério a sua constante hostilidade contra os países democráticos Os ditadores totalitários mostraram conhecer muito bem o perigo que acarretava a sua afetação de normalidade isto é o perigo de uma política verdadeiramente nacionalista ou da verdadeira instalação do socialismo num só país Procuraram evitar esse risco através de uma discrepância permanente e constante entre as palavras tranqüilizadoras e a realidade do domínio desenvolvendo conscientemente um método de fazerem sempre o oposto do que di 73 Ao falar em novembro de 1937 a vários membros do EstadoMaior Geral Blomberg Fritsch Raeder e altos funcionários civis Neurath Gõring Hitler permitiuse declarar abertamente que necessitava de espaços vazios e rejeitava a idéia de conquistar povos estrangeiros Evidentemente nenhum dos seus ouvintes compreendeu que isso resultaria automaticamente numa política de extermínio desses povos 74 Isso começou com uma ordem em julho de 1934 pela qual a SS era promovida à posição de organização independente dentro do partido nazista e foi completado com um decreto altamente confidencial de agosto de 1938 que declarava que as formações especiais da SS as Unidades da Caveira e as Tropas de Choque Verfügungstruppen não faziam parte nem do Exército nem da polícia os Esquadrões tinham de executar tarefas de natureza policial e as Tropas de Choque eram uma unidade armada de prontidão exclusivamente à minha disposição Nazi cons piracy III 459 Dois decretos subseqüentes de outubro de 1939 e abril de 1940 criavam uma jurisdição especial em assuntos gerais para todos os membros da SS ibid II 184 Daí em diante todos os panfletos publicados pelo órgão de doutrinação da SS trazem advertências como exclusivamente para uso da polícia publicação proibida exclusivamente para os lideres e encarregados de educação ideológica Valeria a pena compilar uma bibliografia da volumosa literatura secreta da era nazista que inclui muitas medidas legislativas O interessante é que não há um único folheto da SA entre esse tipo de literatura o que constitui a melhor prova de que a SA deixara de ser uma formação de elite a partir de 1934 75 Comparese Franz Borkenau Die neue Komintern em Der Monat Berlim 1949 vol 4 464 zem76 Stálin levou essa arte do equilíbrio que exige mais habilidade do que a rotina comum da diplomacia ao ponto em que toda moderação na política externa ou na linha política do Comintern era quase invariavelmente seguida de expurgos radicais no partido russo Por certo não foi mera coincidência o fato de que a política da Frente Popular no Ocidente e a redação da Constituição soviética comparativamente liberal precederam os julgamentos de Moscou As literaturas nazista e bolchevista provam repetidamente que os got vernos totalitários visam a conquistar o globo e trazer todos os países para debaixo do seu jugo Contudo não chegam a ser decisivos esses programas ideológicos herdados dos movimentos prétotalitários dos partidos antisemitas supranacionais e dos sonhos pangermânicos de império no caso dos nazistas e do conceito internacional do socialismo revolucionário no caso dos bolchevistas Decisivo é que os regimes totalitários realmente conduzem a sua política estrangeira na constante pressuposição de que eventualmente conseguirão atingir o seu objetivo final e nunca o perdem de vista por mais remoto que ele pareça ou por mais que se choque com as necessidades do momento Assim não consideram país algum como permanentemente estrangeiro mas ao contrário todo país é potencialmente uma parte do seu território A subida ao poder o fato de que o mundo fictício do movimento se tornou realidade tangível num determinado país cria com os outros países um relacionamento semelhante à situação do partido totalitário sob um governo nãototalitário a realidade tangível da ficção com o apoio de um poder estatal internacionalmente reconhecido pode ser exportada da mesma forma como o desprezo pelo parlamento pôde ser importado por um parlamento nãototalitário Neste particular a solução da questão judaica de antes da guerra era o principal produto de exportação da Alemanha nazista a expulsão dos judeus carreou para outros países uma importante parcela do nazismo forçando os judeus a deixarem o Reich sem passaportes e sem dinheiro os nazistas tornaram real a lenda do Judeu Errante e forçando os judeus à hostilidade contra os países entre os quais eles realizaram a imagem do judeu estrangeiro criaram o pretexto para que se interessassem apaixonadamente pela política nacional de todos os países77 A seriedade com que os nazistas encaravam a ficção conspiratória segundo a qual seriam os futuros senhores do mundo veio à luz em 1940 quando a despeito da necessidade e apesar da possibilidade demasiado real de converterem à sua causa os povos ocupados da Europa começaram a sua política de despovoamento dos territórios do Leste sem atentar para a perda de mãodeobra e as sérias conseqüências militares e introduziram leis que com força retroativa exportaram parte do código penal do Terceiro Reich para os países i 76 Os exemplos são demasiado óbvios e numerosos para serem citados Essa tática porém não deve ser confundida com a enorme deslealdade e inveracidade que todos os biógrafos de Hitler e de Stálin apontam como o principal traço do caráter de cada um deles 77 Vera Circular do Ministério das Relações Exteriores para todas as autoridades alemãs no exterior em janeiro de 1939 em Nazi conspiracy VI 87 ss 465 ocidentais ocupados78 Não havia maneira mais eficaz de propagar a pretensão de domínio mundial dos nazistas do que punir como alta traição qualquer pronunciamento ou ato contra o Terceiro Reich não importa quando onde ou por quem fosse feito A lei nazista tratava o mundo inteiro como se estivesse potencialmente sob a sua jurisdição de sorte que o exército de ocupação já não era um instrumento de conquista que levasse consigo a nova lei do conquistador mas um órgão executivo que fazia cumprir uma lei que tacitamente já existia para todos O pressuposto de que a lei nazista estava em vigor além das fronteiras da Alemanha e a punição de cidadão de outros países eram mais do que simples expedientes de opressão Os regimes totalitários não receiam as implicações lógicas da conquista mundial mesmo que estas lhes sejam contrárias e em detrimento dos interesses do seu próprio povo Logicamente é indiscutível que um plano de conquista mundial acarreta a abolição das diferenças entre a nação conquistadora e os territórios ocupados bem como da diferença entre a política externa e interna nas quais se baseiam todas as instituições nãototalitárias existentes e todo o intercâmbio internacional Se o conquistador totalitário age em toda parte como se estivesse em casa deve pelo mesmo motivo tratar a sua própria população como conquistador estrangeiro79 E a pura verdade é que o movimento totalitário toma o poder no mesmo sentido em que um conquistador estrangeiro ocupa um país que passa a governar em benefício de terceiros Os nazistas agiram como conquistadores estrangeiros na Alemanha quando contra todos os interesses nacionais tentaram e quase conseguiram transformar a sua derrota numa catástrofe final para todo o povo alemão e também quando em caso de vitória pretendiam estender a sua política de extermínio aos escalões de alemães racialmente inadequados80 Atitude semelhante parece ter inspirado a política externa soviética após a guerra O custo da sua agressividade foi proibitivo para o próprio povo sovié 78 Em 1940 o governo nazista decretou que todos os crimes desde alta traição contra o Reich até pronunciamentos maliciosos e agitadores contra pessoas de importância do Estado ou do Partido Nazista seriam punidos com força retroativa em todos os territórios ocupados independentemente de haverem sido cometidos por alemães ou por nativos desses países Ver Giles op cit Quanto às desastrosas conseqüências da Siedlungspolitik política de transferência populacional nazista na Polônia e na Ucrânia ver Trial op cit vols XXVI e XIX 79 A idéia é de Kravchencko op cit p 303 que ao descrever as condições que prevaleciam na Rússia apôs o superexpurgo de 19368 observa Se um conquistador estrangeiro houvesse se apossado da máquina da vida soviética a mudança não poderia ter sido mais completa nem mais cruel 80 Hitler planejou durante a guerra a criação de uma Lei de Saúde Nacional Depois de um exame de raios X de toda a nação oFuehrer receberia uma lista de pessoas doentes particularmente de portadores de moléstias do pulmão e do coração Segundo essa nova lei de saúde do Reich essas famílias já não podiam permanecer misturadas ao públicos nem gerar crianças O que será feito delas é objeto de futuras ordens do Fuehrer Não é preciso ter muita imaginação para adivinhar o que teriam sido essas ordens futuras O número de pessoas que já não poderiam permanecer misturadas ao público teria constituído uma considerável proporção do povo alemão Naziconspiracy VI 175 466 tico e foi rejeitado até o elevado empréstimo dos Estados Unidos que teria permitido à Rússia reconstruir as áreas devastadas e industrializar o país de modo racional e produtivo A instalação de governos do Comintern em quase todos os países balcânicos e a ocupação de extensos territórios do Leste não trouxeram qualquer benefício tangível mas ao contrário abalaram ainda mais os recursos da Rússia Mas essa política certamente serviu aos interesses do movimento bolchevista que se espalhou por quase metade do mundo habitado Como um conquistador estrangeiro o ditador totalitário vê as riquezas naturais e industriais de cada país inclusive o seu como fonte de pilhagem e como meio de preparar o próximo passo da expansão Uma vez que a economia de sistemática espoliação é levada a cabo para o bem do movimento e não do país nenhum povo e nenhum território como beneficiário em potencial pode constituir ponto de saturação para o processo O ditador totalitário é como um conquistador estrangeiro que não vem de parte alguma a sua pilhagem provavelmente não beneficiará a ninguém A distribuição dos despojos não se destina a fortalecer a economia do seu país mas é apenas uma manobra tática temporária Para fins econômicos os regimes totalitários sentemse tão à vontade em seus países como os gafanhotos O fato de que o ditador totalitário governa o seu país como um conquistador estrangeiro torna as coisas ainda piores pois acrescenta à crueldade uma eficácia que as tiranias certamente não alcançam nos territórios ocupados A guerra de Stálin contra a Ucrânia no início da década de 30 foi duas vezes mais eficaz que a invasão e a ocupação alemã terrivelmente sangrentas81 Esse é o motivo pelo qual o totalitarismo prefere o governo de quislings ao governo direto a despeito dos riscos óbvios de tais regimes O problema com os regimes totalitários nlai que eles joguem a política do poder de um modo especialmente cruel mas que atrás de suas políticasescondese um conceito de poder inteiramente novo e sem precedentes assim como atrás de sua Realpolitik jaz um conceito de realidade inteiramente novo e sem precedentes Supremo desprezo pelas conseqüências imediatas e não a falta 4e escrúpulos desarraigamento e desprezo pelos interesses nacionais e não o nacionalismo desdém em relação aos motivos utilitários e não a promoção egoísta do seu próprio interesse idealismo ou seja a fé inabalável num mundo ideológico fictício e não o desejo de poder tudo isso introduziu na política 81 O total de russos mortos durante os quatro anos de guerra é calculado entre 12 e 21 milhões Num só ano Stálin exterminou cerca de 8 milhões de pessoas somente na Ucrânia Ver Communism in action U S Government Washington 1946 House Document n 754 pp 1401 Em contraste com o regime nazista que mantinha uma conta bastante precisa do número de suas vítimas não existe um cálculo digno de confiança dos milhões de pessoas que foram mortas no sistema soviético Não obstante a seguinte estimativa citada por Souvarine op cit p 69 tem certo valor uma vez que provém de Walter Krivitsky que tinha acesso à informação dos arquivos da GPU Segundo ele o censo de 1937 na União Soviética que estatísticos russos haviam esperado que atingisse 171 milhões de pessoas mostrou que existiam somente 145 milhões Isso indicaria uma perda populacional de 26 milhões algarismo que não inclui as perdas citadas acima 467 internacional um fator novo e mais perturbador do que teria resultado da mera agressão O poder como concebido pelo totalitarismo reside exclusivamente na força produzida pela organização Do mesmo modo como Stálin via cada instituição qualquer que fosse a sua função verdadeira apenas como a correia de transmissão que liga o partido ao povo82 e acreditava honestamente que os tesouros mais preciosos da União Soviética não eram as riquezas do solo nem a capacidade produtiva da sua enorme população mas os quadros do partido83 ou seja a polícia também Hitler já em 1929 via a grandeza do movimento no fato de que 60 mil homens pareciam quase uma só unidade que realmente esses membros são uniformes não apenas nas idéias mas até a expressão facial é quase a mesma Vejam esses olhos sorridentes esse entusiasmo fanático e ficarão sabendo como 100 mil homens num movimento podem tornarse um só84 Para o homem ocidental o poder tem certa conexão com as posses a riqueza os tesouros e os bens terrenos para o homem totalitário essa conexão desaparece numa espécie de mecanismo desmaterializado cujo movimento gera poder como a fricção gera eletricidade A divisão totalitária entre as naçõesquetêm e asquenãotêm é mais do que um artifício demagógico os que a fazem estão realmente convencidos de que a força das posses materiais é desprezível e apenas estorva o caminho da evolução do poder organizacional Para Stálin o constante crescimento e desenvolvimento dos escalões policiais era incomparavelmente mais importante que o petróleo de Baku o carvão e os minérios dos Urais os celeiros da Ucrânia ou os tesouros potenciais da Sibéria enfim o desenvolvimento de todo o arsenal de poder da Rússia A mesma mentalidade fez com que Hitler sacrificasse toda a Alemanha aos quadros da SS para ele a guerra não estava perdida quando cidades alemãs tombaram em ruínas e a capacidade industrial havia sido destruída mas somente quando soube que já não podia confiar nas tropas da SS85 Para um homem que acreditava na onipotência da organização contra todos os fatores meramente materiais militares ou econômicos e que além disso calculava o futuro triunfo de sua obra em termos de séculos a derrota não era a catástrofe militar nem a ameaça de fome para a população mas apenas a destruição das organizações de elite que deveriam levar a conspiração de domínio mundial ao seu fim último 82 Deutscher op cit p 256 83 B Souvarine op cit p 605 cita as seguintes palavras de Stálin proferidas no auge do terror em 1937 Ê preciso compreender que de todos os recursos existentes no mundo os melhores e mais preciosos são os quadros do partido Todos os relatórios demonstram que na União Soviética a policia secreta é considerada como a verdadeira formação de elite do partido Típico dessa natureza da polícia é o fato de que desde o começo da década de 20 os agentes da NKVD não eram recrutados como voluntários mas eram tirados dos escalões do partido Além disso a NKVD não podia ser escolhida como carreira ver Beck e Godin op cit p 160 84 Citado por Heiden op cit p 311 85 Segundo relatos da última reunião Hitler decidiu cometer suicídio depois de saber que já não podia confiar nas tropas da SS Ver H R TrevorRoper TheJast days of Hitler 1947 pp 116 ss 468 A ausência de estrutura no Estado totalitário o seu desprezo pelos interesses materiais a sua independência da motivação do lucro e as suas atitudes nãoutilitárias em geral contribuíram mais que qualquer outro elemento para tornar quase imprevisível a política contemporânea O mundo nãototalitário é incapaz de compreender uma mentalidade que funciona independentemente de toda ação calculável em termos de homens e de bens materiais e que é completamente indiferente ao interesse nacional e ao bemestar do povoe isso o coloca num curioso dilema de julgamento Aqueles que compreendem corretamente a terrível eficiência da organização e da polícia totalitárias tendem a subestimar a força material dos países totalitários enquanto aqueles que compreendem a esbanjadora incompetência da economia totalitária tendem a subestimar o potencial de poder que pode ser criado à revelia de todos os fatores materiais 2 A POLÍCIA SECRETA Até hoje conhecemos apenasduas formas autênticas de domínio totalitário a ditadura do nacionalsocialismo a partir de 1938 e a ditadura bolchevista a partir de 1930 Essas formas de domínio diferem basicamente de outros tipos de governo ditatorial despótico ou tirânico e embora tenham emanado com certa continuidade de ditaduras partidárias suas características essencialmente totalitárias são novas e não podem resultar de sistemas unipartidários O objetivo dos sistemas unipartidários não é apenas apoderarse da administração do governo mas sim através do preenchimento de todos os postos com membros do partido atingir uma completa amálgama de Estado e partido de sorte que após a tomada do poder o partido se torna uma espécie de organização de propaganda do governo O sistema é total somente no sentido negativo isto é o partido governante não tolera outros partidos nem oposição nem admite i liberdade de opinião política Uma vez no poder a ditadura partidária deixa intacta a antiga relação de poder entre o Estado e o partido o governo e o Exército têm o mesmo poder de antes e a revolução consiste apenas no fato de que todas as posições governamentais são agora ocupadas por membros do partido Em todos esses casos o poder do partido reside num monopólio garantido pelo Estado e o partido já não possui um centro de poder próprio De natureza consideravelmente mais radical é a revolução iniciada pelos movimentos totalitários após a tomada do poder Desde o começo procuram conscientemente manter todas as diferenças essenciais entre o Estado e ojnoyimenfó e evitar que as instituições revolucionárias do movimento sejam absorvidas pelo governo86 O problema de apoderarse da máquina estatal sem se 86 Hitler freqüentemente fazia comentários sobre a relação entre o Estado e o Partido e sempre acentuava que não o Estado mas a raça ou a comunidade popular unida era a mais importante cf o discurso citado acima publicado como anexo a Tischgespràche Em seu discurso no Parteitag de 1935 em Nuremberg ele exprimiu essa teoria do modo mais sucinto Não é o 469 fundir a ela é resolvido permitindose que ascendam na hierarquia do Estado somente aqueles membros do partido cuja importância seja secundária para o movimentoXdo o poder verdadeiro é investido nas instituições do movimento fora da estrutura do Estado e do Exército Todas as decisões são tomadas dens tiro do movimento que permanece como o centro de ação do país Os serviços públicos oficiais muitas vezes nem são informados do que está acontecendo e aqueles membros do partido que têm a ambição de subir ao nível de ministros pagam sempre por esse desejo burguês com a perda da influência sobre o movimento e até da confiança dos líderes O totalitarismo no poderusaoEstado cmo facjiadaxtexnpara representar o país perante o mundo nãototalitário Como tal o Estado totalitário éo herdeiro lógico do movimento totalitário do qual deriva a sua estrutura organizacional Os governantes totalitários tratam os governos nãototalitários da mesma foraraomo tratavam os partidos parlamentares ou as facções intrapartidárias antes de terem tomado o poder e num cenário maior porque internacional têm de encarar mais uma vez o duplo problema de proteger o mundo fictício do movimento ou do país totalitário contra o impacto da realidade e de manter a aparência de normalidade e de bom sehso perante o mundo normal de fora Acima do Estado e por trás das fachadas do poder ostensivo num labirinto de cargos multiplicados por baixo de todas as transferências de autoridade e em meio a um caso dê ineficiência está o núcleo do poder do país os supereficientes e supercompetentes serviços da polícia secreta862 A importância da polícia como único órgão do poder e o desprezo em relação ao poder do Exército que caracterizam os regimes totalitários podem ainda ser parcialmente explicados pela aspiração totalitária de domínio mundial e pela consciente abolição da diferença entre um país estrangeiro e o país de origem entre assuntos externos e assuntos domésticos As forças militares treinadas para lutar contra um agressor estrangeiro sempre constituíram instrumento duvidoso para fins de guerra civil mesmo em condições totalitárias sentem dificuldades em olhar o próprio povo com os olhos do conquistador estrangeiro87 Mais importante a esse respeito porém é que os seus valores se tornam duvidosos mesmo em tempo de guerra Como o governante totalitário conduz a polícia no pressuposto de que haverá um governo mundial trata as vítimas da Estados que nos comanda mas nós que comandamos o Estado Na prática é axiomáticos que tais poderes de comando somente serão possíveis se as instituições do partido permanecerem independentes das do Estado 86a Otto Gauweiler Rechtseinrichtungen und Rechtsaufgaben der Bewegung 1939 observa expressamente que a posição especial de Himmler como ReichsfuehrerSS e chefe da policia alemã repousava no fato de que a administração da polícia havia produzido uma genuína unidade do partido e Estado que não havia nem sido tentada em outros setores do governo 87 Durante as revoltas camponesas dos anos 20 na Rússia Voroshilov recusou o apoio do Exército Vermelho o que levou à introdução de divisões especiais da GPU para tarefas punitivas Ver Ciliga op cit p 95 470 sua agressão como se fossem rebeldes culpados de alta traição e conseqüentemente prefere dominar os territórios ocupados por meio da polícia e não de forças militares lesmQ antes de galgar o poder o movimento dispõe de polícia secreta de serviço de espionagem com ramificações em váriosjjajses Mais tarde os seus agentes recebem mais dinheiro e autoridade que o serviço de espionagem militar convencional e tornamse muitas vezes chefes secretos de embaixadas e de consulados no exterior88 São encarregados principalmente de formar quintacolunas dirigir as ramificações do movimento influenciar a política doméstica dos respectivos países e preparálos de modo geral para o dia em que o governante totalitário após a derrubada do governo ou uma vitória militar possa abertamente sentirse em casa Em outras palavras as ramificações internacionais da polícia secreta transformam a política ostensivamente externa do Estado totalitário no assunto potencialmente doméstico do movimento totalitário Contudo essas funções que a polícia secreta exerce para preparar a utopia totalitária do futuro domínio global são secundárias em relação àquelas exigidas para pôr em prática no presente a ficção totalitária em determinado país O papel dominante da polícia secreta na política doméstica dos países totalitários muito contribuiu para que fosse errônea a concepção comum do totalitarismo Todos os despotismos dependem grandemente de serviços secretos e sentemse muito mais ameaçados por seu próprio povo do que por qualquer povo estrangeiro Contudo essa analogia entre o totalitarismo e o despotismo só se verifica nos primeiros estágios do governo totalitário quando ainda existe oposição política Nesse ponto como em outros o totalitarismo explora e apoia conscientemente as noções erradas nãototalitárias por mais desfavoráveis que sejam Himmler no famoso discurso perante o estadomaior do Reichswehr em 1937 assumiu o papel de um tirano comum quando explicou a constante expansão das forças policiais pela suposição de que a Alemanha seria um campo de batalha interno em caso de guerra89 Do mesmo modo e quase ao mesmo tempo Stálin convenceu a velha guarda bolchevista de cujas confissões precisaria de uma ameaça de guerra contra a União Soviética e conseqüentemente de uma emergência na qual o país devia permanecer unido mesmo sob um despotismo O aspecto mais surpreendente dessas declarações é que ambas foram feitas depois que toda oposição política havia sido extinta e que os serviços secretos estavam sendo ampliados quando na verdade não havia mais oponentes a vigiar Quando veio a guerra Himmler nem precisou nem usou das tropas da SS na própria Alemanha a não ser para o funcionamento dos campos de concentração e o policiamento dos trabalhadores estrangeiros 88 Em 1935 os agentes da Gestapo no exterior receberam 20 milhões de marcos enquanto o serviço de espionagem regular do Reichswehr tinha de contentarse com um orçamento de 8 milhões Ver Pierre Dehillotte Gestapo Paris 1940 p 11 89 Ver Nazi conspiracy IV 616 ss 471 escravizados o grosso da SS armada serviu na frente oriental onde foi empregada em tarefas especiais geralmente homicídios em massa e para a execução de normas que freqüentemente colidiam com a hierarquia militar e a hierarquia nazista civil Tal como a polícia secreta da União Soviética as formações da SS geralmente chegavam depois que as forças militares haviam pacificado o território conquistado e eliminado a oposição política aberta Nos primeiros estágios do regime totalitário porém a polícia secreta e as formações de elite do partido ainda desempenham um papel semelhante àquele que as caracteriza em outras formas de ditadura e nos antigos regimes de terror e a excessiva crueldade dos seus métodos não tem paralelos na história dos países ocidentais modernos O primeiro estágio de desencavar os inimigos secretos e caçar os antigos oponentes geralmente coincide com a arregimentação de toda a população em organizações de vanguarda e a reeducação dos velhos membros do partido para serviços voluntários de espionagem de sorte que os escalões especialmente treinados da polícia não precisam preocuparse com as duvidosas simpatias dos simpatizantes arregimentados É durante esse estágio que um vizinho gradualmente se torna mais perigoso para os que nutrem pensamentos perigosos que os agentes policiais oficialmente nomeados O fim do primeiccuesiágioadvém com a liquidação da resistência aberta e secreta sob qualquer forma organizada isso ocorreu por volta de 1935 na Alemanha e em aproximadamente 1930 na União Soviética Só depois do completo extermínio dos reais inimigos e após o início da caça aos inimigos objetivos é que o terror se torna o verdadeiro conteúdo dos regimes totalitários A pretexto de instalar o socialismo num país ou de usar certo território como campo de prova para uma experiência revolucionária ou de realizar a Volksgemeinschaft a segunda pretensão do totalitarismo a do domínio total é posta em prática E embora teoricamente o domínio total seja possível apenas nas condições de domínio mundial os regimes totalitários já demonstraram que essa parte da utopia totalitária pode ser realizada quase com perfeição porque temporariamente independe de derrota ou vitória Assim Hitler podia exultar mesmo em meio a reveses militares com o extermínio dos judeus e a criação das fábricas da morte em massa qualquer que fosse o resultado final nunca teria sido possível sem a guerra queimar as pontes e realizar alguns dos objetivos do movimento totalitário90 As formações de elite do movimento nazista e os quadros partidários do movimento bolchevista são úteis para fins de domínio total e não para a segurança do regime no poder Da mesma forma como a pretensão totalitária de domínio mundial apenas aparentemente eqüivale à expansão imperialista também a pretensão de domínio total apenas parece familiar a quem estuda o despotismo Se as diferenças principais entre o totalitarismo e a expansão imperialista estão no fato de que o primeiro não distingue entre o país de origem e 90 Ver nota 62 472 um país estrangeiro então a principal diferença entre a polícia secreta despótiça e a totalitária é que a última não se dedica à caça de pensamentos secretos nem emprega o velho método da provocação peculiar dos serviços secretos91 Uma vez que a polícia secreta totalitária inicia a sua carreira após a pacificação do país qualquer observador de fora julgaa inteiramente desnecessária ou então pelo contrário supõe erradamente que de fato exista alguma resistência secreta92 A superfluidade dos serviços secretos não é novidade sempre foram atormentados pela necessidade de demonstrar a sua utilidade e de conservarse no emprego depois de cumprida a tarefa original Os métodos que usam para esse fim dificultam o estudo da história das revoluções Parece por exemplo que não houve um único ato contra o governo de Luís Napoleão que não tivesse sido inspirado pela própria polícia93 Do mesmo modo o papel dos agentes secretos infiltrados em todos os partidos revolucionários da Rússia czarista sugere fortemente que sem a inspiração dos seus atos provocadores a marcha do movimento revolucionário russo teria tido muito menos sucesso94 Esse papel duvidoso da provocação pode ter sido um dos motivos pelos quais os governantes totalitários o abandonaram Além disso a provocação só é claramente necessária quando se admite que a suspeita não é suficiente para que alguém seja preso e punido Naturalmente nenhum dos líderes totalitários jamais sonhou com uma situação em que tivesse de recorrer à provocação para apanhar alguém que considerasse inimigo Mais importante que essas considerações técnicas é o fato de que o totalitarismo define os seus inimigos ideologicamente antes de tomar o poder de sorte que não há necessidade de infpr 91 Maurice Laporte Histoire de 1Okhrana Paris 1935 diz com justiça que o método de provocação é a pedra fundamental da polícia secreta p 19 Na Rússia soviética a provocação longe de ser a arma secreta da polícia secreta tem sido usada como o método público e largamente divulgado pelo qual o regime sonda a opinião pública A relutância da população em tirar proveito desses convites periódicos à critica ou em reagir a interlúdios liberais no regime do terror mostra que esses gestos são compreendidos como provocação em massa Realmente a provocação tornouse a versão totalitária das pesquisas de opinião pública 92 Nesse ponto é interessante notar as tentativas feitas pelos funcionários civis nazistas para reduzir a competência e o pessoal da Gestapo argumentando que a nazificação do país já havia sido conseguida de sorte que Himmler que ao contrário desejava expandir os serviços secretos àquela altura cerca de 1934 teve de exagerar o perigo proveniente dos inimigos internos VetNaziconspiracy II 259 V 205 III 547 93 Ver GallierBoissière Mysteries ofthe French secretpolice 1938 p 234 94 Afinal parece que não foi por acaso que a fundação da Okhrana em 1880 trouxe um período de atividade revolucionária sem precedentes na Rússia Para demonstrar sua utilidade a Okhrana tinha às vezes de organizar assassinatos e os seus agentes a despeito de si próprios serviam às idéias daqueles a quem denunciavam Que um panfleto antigovernamental ou a execução de um ministro fossem obras da polícia ou de um Azev o resultado era o mesmo M Laporte op cit p 25 Além disso as execuções mais importantes parecem realmente ter sido obra da polícia Stolypin e Von Plelwe O fato de que em tempos de calma os agentes policiais tinham de reavivar as energias e estimular o zelo dos revolucionários foi decisivo para a tradição revolucionária ibid p 71 Ver também Bertram D Wolfe Three who made a revolution Lenin Trotski Stálin 1948 que chama esse fenômeno de socialismo policial 473 mações policiais para que se estabeleçam categorias de suspeitos Assim os judeus da Alemanha nazista ou os descendentes das antigas classes governantes da União Soviética não estavam realmente sob suspeita de ação hostil alguma tinham sido declarados inimigos objetivos do regime em decorrência da sua ideologia e isso bastava para serem eliminados A principal diferença entre a polícia secreta despótica e a totalitária reside na distinção entre inimigo suspeito e inimigo objetivo Este último é definido pela política do governo e não por demonstrar o desejo de derrubarosistèma95 Nunca é um indivíduo cujos pensamentos perigosos tenham de ser provocados ou cujo passado justifique suspeita mas é um portador de tendências como o portador de uma doença96 Na prática o governante totalitário age como alguém que persistentemente insulta outra pessoa até que todo o mundo saiba que ela é sua inimiga a fim de que possa com certa plausibilidade matála em autodefesa É sem dúvida um método meio grosseiro mas funciona como o sabe quem quer que tenha visto como certos carreiristas bem sucedidos eliminam os concorrentes A introdução da noção de inimigo objetivo é muito mais decisiva para o funcionamento dos regimes totalitários que a definição ideológica das respectivas categorias Se fosse apenas uma questão de odiar os judeus ou os burgueses os regimes totalitários poderiam após cometerem um crime gigantesco como que retornar às regras normais de vida e de governo Mas sabemos que acontece exatamente o oposto A categoria dos inimigos objetivos sobrevive aos primeiros inimigos do movimento ideologicamente determinados e novos inimigos objetivos são encontrados segundo as circunstâncias os nazistas prevendo o fim do extermínio dos judeus já haviam tomado as providências preliminares necessárias para a liquidação do povo polonês enquanto Hitler chegou a planejar a dizimação de certas categorias de alemães97 os bolchevistas tendo 95 Hans Frank que mais tarde tornouse governadorgeral da Polônia fez uma típica diferenciação entre a pessoa que é perigosa para o Estado e a que é hostil ao Estado A primeira categoria implica uma qualidade objetiva independente da vontade e da conduta a policia política dos nazistas se interessa não apenas por atos hostis ao Estado mas por todas as tentativas qualquer que seja o seu objetivo cujos efeitos possam acarretar perigo para o Estado Ver Deutsches Verwaltungsrecht Direito administrativo alemão pp 42030 Tradução citada emNazy conspiracy IV 881 ss Nas palavras de Maunz op cit p 44 Através da eliminação da pessoa perigosa a medida de segurança pretende evitar um estado de perigo à comunidade nacional independentemente de qualquer ofensa cometida pela pessoa É uma questão de evitar um perigo objetivo 96 R Hoehn jurista nazista e membro da SS disse num obituário de Reinhard Heydrich que antes de governar a Boêmia ocupada havia sido um dos mais íntimos colaboradores de Himmler que considerava os seus oponentes não como indivíduos mas como portadores de tendências que traziam perigo para o Estado e portanto como tais estavam além do âmbito da comunidade nacional Em Deutsche AllgemeineZeitung de 6 de junho de 1942 citado por E KohnBramstedt Dictatorship andpoliticalpolice Londres 1945 97 Já em 1941 durante uma reunião de dirigentes no quartelgeneral de Hitler apresentouse uma proposta de impor à população polonesa os mesmos regulamentos com os quais os judeus haviam sido preparados para os campos de extermínio mudança de nomes se estes fossem 474 começado com os descendentes das antigas classes governamentais dirigiram todo o seu terror contra os kulaks no começo da década de 30 que por sua vez foram seguidos pelos russos de origem polonesa entre 1936 e 1938 os tártaros e os alemães do Volga durante a Segunda Guerra os antigos prisioneiros de guerra e unidades das forças de ocupação do Exército Vermelho depois da guerra e finalmente a população judaica tachada de cosmopolita depois do estabelecimento de um Estado judaico A escolha dessas categorias nunca é inteiramente arbitrária uma vez que são divulgadas e usadas para fins de propaganda do movimento no exterior devem parecer plausíveis como possíveis inimigos a escolha de uma determinada categoria pode até ser motivada por certas necessidades de propaganda do movimento em geral como por exemplo o repentino surgimento do antisemitismo governamental na União Soviética inteiramente sem precedentes cuja finalidade pode ter sido a de angariar simpatias para a União Soviética nos países satélites europeus Os julgamentos ostensivos que exigem confissões subjetivas de culpa por parte de inimigos objetivamente identificados têm a mesma finalidade podem ser melhor encenados com aqueles que receberam doutrinação totalitária pois esta lhes permite compreender subjetivamente a sua própria nocividade objetiva e confessar pelo bem da causa98 O conceito de oponente objetivo cuja identidade muda de acordo com as circunstancias do momento de sorte que assim que uma categoria é liquidada pode declararse guerra à outra corresponde exatamente à situação de fato reiterada muitas vezes pelos governantes totalitários isto é que o seu regime não é um governo no sentido tradicional mas um movimento cuja marcha constantemente esbarra contra novos obstáculos que têm de ser eliminados Se é que se pode falar de algum raciocínio legal dentro do sistema totalitário o oponente objetivo é a sua idéia central Intimamente ligada a essa transformação do suspeito em inimigo objetivo é a nova posição da polícia secreta no Estado totalitário Os serviços secretos já foram chamados corretamente de um Estado dentro do Estado e isto não se aplica apenas aos despotismos mas também aos governos constitucionais ou semiconstitucionais A simples posse de informes secretos sempre lhes deu nítida superioridade sobre todas as outras agências do serviço público e consti de origem alemã como os judeus foram obrigados a apor a seus prenomes obrigatoriamente Israel ou Sara sentenças de morte pelas relações sexuais entre alemães e poloneses Rassenschande obrigação de usar um sinal com a letra P na Alemanha semelhante à estrela amarela com a letra J dos judeus Ver Nazi conspiracy VIII 237 ss e o diário de Hans Frank em Trial op cit XXI 683 Quanto aos planos de Hitler com referência ao povo alemão ver a nota 80 98 Beck e Godin op cit p 87 falam das características objetivas que mais facilmente levavam à prisão na Rússia entre elas está o fato de pertencer à NKVD p 153 Era mais fácil aos exmembros da polícia secreta compreenderem subjetivamente a necessidade objetiva da prisão e da confissão Nas palavras de um exagente da NKVD Os meus superiores conhecemme a mim e ao meu trabalho bastante bem e se o partido e a NKVD exigem agora que eu confesse essas coisas devem ter boas razões para isso Meu dever como um leal cidadão soviético é não lhes negar a confissão exigida de mim ibid p 231 475 tuiu franca ameaça aos membros do governo A polícia totalitária ao contrário é totalmente sujeita ao desejo do Líder que é o único a decidir quem será o próximo inimigo em potencial e como o fez Stálin pode dizer até quais os escalões da própria polícia secreta devem ser liquidados Como a provocação não é mais permitida a polícia perde o único meio ao seu dispor de perpetuarse independentemente do governo e depende inteiramente das autoridades superiores para a manutenção do seu cargo Como o Exército num Estado nãototalitário a polícia nos países totalitários apenas executa as normas políticas e já não tem nenhuma das prerrogativas que tinha nas burocracias despóticas100 OiieverdfHJolícia totalitária não é descobrir crimes mas estar disponível quando o governo decide aprisionar ou liquidar certa categoria da população Sua principal distinção política é que somente ela confidencia com a mais alta autoridade e sabe que linha política será adotada Isso não se aplica somente a questões de alta política como a liquidação de toda uma classe ou todo um grupo étnico só os oficiais da GPU conheciam o verdadeiro objetivo do governo soviético no início da década de 30 como só as formações da SS sabiam que os judeus iriam ser exterminados no início da década de 40 o que caracteriza a vida diária nas condições do regime totalitário é que somente os agentes da NKVD numa indústria são informados do que pretende Moscou quando por exemplo ordena que se intensifique a produção de canos se realmente deseja mais canos ou a ruína do diretor da fábrica ou a liquidação de toda a gerência ou a eliminação da fábrica ou finalmente a repetição dessa ordem em todo o país para que um novo expurgo possa começar Um dos motivos da duplicação dos serviços secretos cujos agentes se desconhecem entre si é que o domínio total precisa da mais ampla flexibilidade para usar o nosso exemplo ao pedir canos Moscou pode ainda não saber se deseja canos coisa que sempre é necessária ou se visa a um expurgo A multiplicação dos serviços secretos possibilita mudanças de última hora de sorte que um setor governamental pode estar planejando condecorar o diretor da fábrica com a Ordem de Lenin enquanto outro toma providências para a sua prisão A eficiência da polícia reside no fato de que essas tarefas contraditórias podem ser planejadas simultaneamente No regime totalitário como em outros regimes a polícia secreta tem o monopólio de certas informações vitais Mas há uma importante diferença quanto ao tipo de conhecimento que só a polícia pode ter já não lhe interessa saber o que se passa na cabeça das futuras vítimas mas é a depositária dos maiores segredos do Estado Isso significa automaticamente uma grande me 99 Bem conhecido é o caso da França onde os ministros viviam em constante pavor dos dossiers secretos da polícia Quanto à situação na Rússia czarista ver Laporte op cit pp 223 Chegará o dia em que a Okhrana exercerá um poder muito superior ao das autoridades mais regulares A Okhrana só deixará o czar saber aquilo que ela quiser 100 Em contraste com a Okhrana que havia sido um Estado dentro do Estado a GPU é um departamento do governo soviético e as suas atividades são muito menos independentes RogerN Baldwin Politicalpolice na Encyclopedia of social sciences 476 lhoria de posição e prestígio embora seja acompanhado da perda do verdadeiro poder Os serviços secretos já não sabem de coisa alguma que o Líder não saiba melhor que eles Em termos de poder a polícia desceu à categoria do carrasco Do ponto de vista legal a substituição totalitária da ofensa presumível pelo crime possível é ainda mais interessante que a transformação do inimigo suspeito em inimigo objetivo O crime possível não é mais subjetivo do que o inimigo objetivo Enquanto o suspeito é preso porque se presume que ele é capaz de cometer um crime que mais ou menos se ajusta à sua personalidade ou ao que se suspeita corresponder à sua personalidade101 a versão totalitária do crime possível baseiase na previsão lógica de fatos objetivos Os Julgamentos de Moscou da velha guarda bolchevista e dos chefes do Exército Vermelho foram exemplos clássicos de punição de crimes possíveis Das acusações fantásticas e falsificadas depreendese o seguinte cálculo lógico os acontecimentos na União Soviética podiam levar a uma crise uma crise podia levar à derrubada da ditadura de Stálin o que poderia enfraquecer o poderio militar do país e possivelmente gerar uma situação em que o novo governo poderia ter de assinar uma trégua ou até uma aliança com Hitler102 Conseqüentemente Stálin passou a denunciar um complô para derrubar o governo e uma conspiração em que Hitler estava envolvido Contra essas possibilidades objetivas embora inteiramente improváveis só existiam fatores subjetivos como a fidelidade dos acusados sua fadiga sua incapacidade de compreender o que estava acontecendo sua firme convicção de que sem Stálin tudo estaria perdido seu sincero ódio ao fascismo isto é um número de detalhes reais que naturalmente não tinham a consistência do crime fictício lógico e possível O pressuposto central do totalitarismo de que tudo é possível leva assim através da constante eliminação de restrições reais à conseqüência absurda e terrível de que todo 101 Típica do conceito de suspeito é a seguinte história contada por C Pobiedonostzev em Lautocratie russe mémoires politiques correspondance officielle et documents inédits 18811894 Paris 1927 Pediram ao general Cherevin da Okhrana que interviesse a favor de uma senhora que estava para perder um processo no qual a outra parte havia contratado um advogado judeu Disse o general Na mesma noite mandei prender o maldito judeu e metio na prisão como pessoa politicamente suspeita Afinal não posso tratar da mesma forma os meus amigos e um judeu sujo que pode ser inocente hoje mas que foi culpado ontem ou pode vir a ser culpado amanhã 102 As acusações dos julgamentos de Moscou baseavamse numa previsão grotescamente brutalizada e distorcida de possíveis acontecimentos O raciocínio de Stálin provavelmente se processou como segue querem derrubarme numa crise acusálosei de teremno tentado Uma mudança de governo pode enfraquecer a capacidade bélica da Rússia e se eles forem bemsucedidos podem ser obrigados a assinar a trégua com Hitler e talvez até concordem em ceder algum território Acusá losei de já haverem feito uma traiçoeira aliança com a Alemanha e de terem concordado em ceder território soviético Esta é a brilhante explicação de Isaac Deutscher sobre os julgamentos de Moscou op cit p 377 Um bom exemplo da versão nazista do crime possível pode ser encontrado em Hans Frank op cit É impossível fazer um rol completo dos atos perigosos para o Estado porque nunca se pode prever aquilo que virá a constituir um risco para a liderança e para o povo em alguma data futura Tradução citada em Nazi conspiracy IV 881 477 crime que o governante possa conceber como viável deve ser punido tenha sido cometido ou não O crime possível como o inimigo objetivo está naturalmente fora da alçada da polícia que não pode descobrilo nem inventálo nem provocálo Mais uma vez os serviços secretos dependem inteiramente das autoridades políticas Sua independência como um Estado dentro do Estado já não existe Apenas num ponto a polícia secreta totalitária ainda lembra os serviços secretos dos países não totalitários A polícia secreta tradicionalmente tirava proveito das vítimas suplementando o orçamento oficial autorizado pelo Estado por meio de certas fontes não ortodoxas associando se simplesmente a atividades que deveria combater como o jogo e a prostituição103 Esses métodos ilegais de autofinanciamento que iam desde a cordial aceitação de subornos até a franca chantagem muito contribuíram para que os serviços secretos se libertassem das autoridades públicas fortalecendo a sua posição como um Estado dentro do Estado É curioso verificar que o financiamento das autoridades policiais com a renda proveniente de suas vítimas sobreviveu a todas as outras mudanças Na Rússia soviética a NKVD depende quase exclusivamente da exploração do trabalho escravo que na Verdade parece não produzir outro lucro nem servir economicamente para outra coisa senão para financiar o enorme aparelho secreto104 No início Himmler financiou suas tropas SS constituídas ainda de quadros de oficiais da polícia secreta nazista com o confisco de propriedades judaicas depois fez um acordo com Darré o ministro da Agricultura segundo o qual reverteriam a Himmler os lucros de Darré várias centenas de milhões de marcos ganhos anualmente com a compra de produtos agrícolas a baixo preço no exterior e sua venda a preços prefixados na Alemanha105 Após o início da guerra essa fonte de renda regular naturalmente acabou Albert Speer o sucessor de Todt e o maior empregador de mãodeobra na Alemanha após 1942 propôs a Himmler um arranjo semelhante em 1942 se Himmler concordasse em lhe entregar os trabalhadores escravos importados até então colocados sob a jurisdição da SS a organização de Speer daria à SS certa porcentagem dos lucros106 A essas fontes de renda mais ou menos regulares Him 103 Os métodos criminosos da polícia secreta são conhecidos na França de Fouchet Na Áustria por exemplo a temida policia política sob o reino de Maria Teresa foi organizada por Kaunitz com os elementos dos chamados comissários da castidade que viviam de chantagem Ver Moritz Bermann Maria Theresia und Kaiser Joseph II ViennaLeipzig 1881 Devo esta referência a Robert Pick 104 Não há dúvida de que a enorme organização policial é paga com os lucros do trabalho escravo o que é surpreendente é que o orçamento da polícia não parece ser inteiramente coberto dessa forma Kravchenko op cit menciona impostos especiais cobrados pela NKVD dos cidadãos condenados que conseguem sobreviver e que trabalham em liberdade 105 VerFritzThyssenpaííiíer 1941 106 Ver Nazi conspiracy I 9167 A atividade econômica da SS era centralizada num escritório para assuntos econômicos e administrativos Para o Tesouro e para o Imposto de Renda a SS declarava seus haveres financeiros como propriedade do partido reservada para fins especiais carta de 5 de maio de 1943 citada por M Wolfson Uebersicht der Gliederung verbrecherischer 478 mler acrescentava os velhos métodos de chantagem dos serviços secretos em tempos de crise financeira em cada comunidade as unidades da SS fundavam grupos de Amigos da SS que tinham de prover voluntariamente os fundos para as necessidades dos homens da SS local107 É digno de nota o fato de que em suas várias operações financeiras a polícia secreta nazista não explorava os prisioneiros Exceto nos últimos anos de guerra quando o uso do material humano nos campos de concentração já não era determinado apenas por Himmler o trabalho nos campos não tinha outra finalidade racional a não ser a de aumentar as provações e a tortura dos infelizes prisioneiros108 Contudo essas irregularidades financeiras são os únicos e não muito importantes vestígios da tradição da polícia secreta e foram possíveis devido ao desprezo geral dos regimes totalitários pelos assuntos econômicos e financeiros Assim certos métodos que seriam ilegais em condições normais e caracterizariam a diferença entre a polícia secreta e outros departamentos mais respeitáveis da administração não significam que estejamos lidando com um departamento independente fora do controle de outras autoridades vivendo numa atmosfera de irregularidade irrespeitabilidade e insegurança Pelo contrário a posição da polícia secreta estabilizase completamente no regime totalitário e os seus serviços são inteiramente integrados na administração A organização não só não está fora do âmbito da lei mas ela é a própria encarnação da lei e a sua respeitabilidade está acima de qualquer suspeita Já não organiza homicídios por conta própria já não provoca ofensas contra o Estado e a sociedade e age severamente contra toda forma de suborno chantagem ou lucros financeiros irregulares A lição de moral aliada a ameaças bem claras que Himmler se permitiu transmitir aos seus homens em plena guerra Tínhamos o direito moral de exterminar esse povo judeu que nos queria liquidar mas não temos o direito de enriquecer seja de que modo for com um casaco de peles um relógio um único marco ou um cigarro109 soa como algo que procuraríamos em vão nos anais da polícia secreta Se ela ainda se preocupa com pensamentos perigosos os suspeitos não sabem quais são esses pensamentos a arregimentação de toda a vida intelectual e artística exige uma constante recriação e revisão de critérios naturalmente acompanhada de repe NaziOrganisationen Panorama da estrutura das organizações criminais nazistas Omgus dezembro de 1947 107 Ver KohnBramstedt op cit p 112 A chantagem fica bem caracterizada se considerarmos que esse tipo de coleta de dinheiro era sempre organizado pelas unidades SS nas próprias localidades onde operavam Ver Der Weg der SS publicado pelo SSHauptamtSchulungsamt sem data p 14 108 Ibid p 124 Faziamse certas exceções no tocante às necessidades de manutenção dos campos e às necessidades pessoas da SS Ver Wolfson op cit carta de 19 de setembro de 1941 de Oswald Pohl chefe do WVH Wirtschafts und WerwaltungsHauptamt ao Reichskommissar parece controle de preços Parece que todas essas atividades econômicas surgiram nos campos de concentração apenas durante a guerra e devido à aguda escassez de mãodeobra 109 Discurso de Himmler de outubro de 1943 em Posen International military triais Nuremberg 19456 vol 29 p 146 479 tidas eliminações de intelectuais cujos pensamentos perigosos muitas vezes não passam de idéias que ainda ontem eram perfeitamente ortodoxas Portanto enquanto a sua função policial na acepção comum do termo se tornou supérflua a função econômica da polícia secreta que às vezes se julga haver substituído a primeira é ainda mais dúbia A NKVD reúne periodicamente uma porcentagem dapopulação soviética e despachaa para campos que são conhecidos pela denominação errônea e lisonjeira de campos de trabalho forçadono cuja produção é infinitamente menor que a do trabalho comum na Rússia e mal chega a cobrir as despesas com o aparato policial Nem dúbia nem supérflua é a função política da polícia secreta o mais bem organizado e mais eficiente dos departamentos do governo111 no sistema de poder do regime totalitário É ela o verdadeiro ramo executivo do governo através do qual todas as ordens são transmitidas Através da rede de agentes secretos o governante totalitário cria uma correia transmissora diretamente executiva que em contraposição com a estrutura de camadas superpostas da hierarquia ostensiva é completamente separada e isolada de todas as outras instituições112 Nesse sentida os agentes da polícia secreta são a classe francamente governante nos países totalitários e as suas normas e escala de valores permeiam toda a textura da sociedade totalitária Assim não é muito surpreendente o fato de que certas qualidades peculiares da polícia secreta correspondem às qualidades gerais da sociedade totali 110 Bek Bulat pseudônimo literário de um exprofessor soviético teve a oportunidade de estudar documentos da NKVD nortecaucasiana Os documentos deixavam claro que em junho de 1937 quando o grande expurgo estava no auge o governo ordenou que as NKVD locais prendessem uma certa porcentagem da população A porcentagem variava de uma província para outra atingindo 5 nas áreas menos leais A média para toda a União Soviética era de cerca de 3 Relatado por David J Dallin em The New Leader 8 de janeiro de 1949 Beck e Godin op cit p 239 chegam a uma suposição ligeiramente diferente e bem plausível segundo a qual as prisões eram planejadas como segue a NKVD possuía arquivos sobre quase toda a população e cada pessoa era classificada numa certa categoria Assim em cada cidade existiam estatísticas mostrando quantos exbrancos membros de partidos de oposição etc moravam lá Todas as informações incriminadoras coletadas e depreendidas das confissões dos prisioneiros eram também incorporadas ao arquivo e a ficha de cada pessoa indicava o seu grau de periculosidade em potencial que dependia da quantidade de informações suspeitas ou acusações contidas em seu dossiê As autoridades recebiam regularmente essas estatísticas de modo que era possível providenciar um expurgo a qualquer momento sabendose exatamente o número de pessoas de cada categoria 111 Baldwin op cit 112 Os esquadrões da polícia secreta russa estavam à disposição pessoal de Stálin da mesma forma como as Tropas de Choque da SS estavam à disposição especial de Hitler Ambas as organizações mesmo quando convocadas para servir com as forças militares em tempo de guerra permaneciam sob essa jurisdição especial As leis de casamento especial serviram para separar a SS do resto da população e foram os primeiros e mais fundamentais regulamentos que Himmler introduziu quando assumiu a tarefa de reorganizar a SS Mesmo antes das leis de casamento de Himmler em 1927 a SS tinha instruções por decreto oficial de nunca participar de discussões nas reuniões dos membros do partido Der Weg der SS op cit Era idêntico o comportamento dos membros da NKVD que deliberadamente se mantinham sempre à parte e acima de tudo não se associavam com outros setores da aristocracia do partido Beck e Godin op cit p 163 480 tária sem serem idiossincrasias peculiares da polícia secreta totalitária Nas condições do regime totalitário a categoria dos suspeitos compreende toda a população todo pensamento que se desvia da linha oficialmente prescrita e permanentemente mutável já é suspeito não importa o campo de atividade humana em que ocorra Simplesmente em virtude da sua capacidade de pensar os seres humanos são suspeitos por definição e essa suspeita não pode ser evitada pela conduta exemplar pois a capacidade humana de pensar é também a capacidade de mudar de idéia Além disso como é impossível conhecer fora de qualquer dúvida a mente de uma pessoa e a tortura nesse contexto é apenas a tentativa desesperada e fútil de tentarse o que não se pode conseguir a suspeita já não pode ser afastada quando não existe nem a comunhão de valores nem a previsibilidade do interesse pessoal como realidades sociais em contraste com as realidades meramente psicológicas A suspeita mútua portanto impregna todas as relações sociais nos países totalitários e cria uma atmosfera geral mesmo fora do campo de ação especial da polícia secreta Nos regimes totalitários a provocação que antes era apenas a especialidade do agente secreto tornase um método de lidar com os vizinhos que é forçosamente seguido por todos quer queiram quer não Todo mundo de certa forma é o agent provocateur de todo mundo pois é claro que cada um se arrogará em agent provocateur se jamais uma troca comum e amistosa de pensamentos perigosos ou daquilo que nesse meio tempo viesse a se tornar pensamento perigoso chegar ao conhecimento das autoridades A colaboração da população na denúncia de oponentes políticos e no serviço voluntário da delação certamente não é algo sem precedentes mas nos países totalitários é tão bem organizada que torna quase supérfluo o trabalho de especialistas Num sistema de espionagem ubíqua onde todos podem ser agentes policiais e onde cada indivíduo se sente sob constante vigilância e além disso em circunstâncias nas quais as carreiras pessoais são extremamente inseguras e onde as mais espetaculares ascensões e quedas são ocorrências de todos os dias cada palavra se torna equívoca e sujeita a interpretações retrospectivas O exemplo mais gritante de como os métodos e critérios da polícia secreta impregnam a sociedade totalitária é a questão da carreira pessoal O agente duplo dos regimes nãototalitários servia à causa que de fato combatia quase tanto quanto as autoridades e às vezes mais do que elas Nutria muitas vezes uma espécie de dupla ambição subir nos escalões dos partidos revolucionários tanto quanto nos escalões dos serviços secretos Para conquistar a promoção em ambos os campos bastava que adotasse certos expedientes que numa sociedade normal só existem nos sonhos secretos do pequeno funcionário que depende da antigüidade para ser promovido através das suas conexões com a políciapodia sem dúvida eliminar do partido os rivais e os superiores e por meio de suas conexões com os revolucionários tinha pelo menos uma chance de se descartar do seu chefe na polícia113 Se considerarmos as condições da atual 113 Bem típica é a esplêndida carreira do agente policial Malinovsky que terminou como deputado dos bolchevistas no parlamento Ver Bertram D Wolfe op cit capítulo xxxi 481 sociedade russa veremos que a semelhança com esses métodos é surpreendente Não apenas quase todos os oficiais superiores devem a sua posição a expurgos que removeram os seus predecessores mas a promoção em todos os campos é acelerada dessa forma Periodicamente um expurgo de dimensões nacionais abre o caminho para a nova geração recémformada e com fome de empregos O próprio governo criou as condições para o progresso que o agente policial do passado teve de inventar sozinho Esse rodízio regular e violento de toda a gigantesca máquina administrativa embora evite que a competência se desenvolva tem muitas vantagens assegura a relativa juventude dos oficiais e impede uma estabilização de condições que pelo menos em tempos de pazi é cheia de perigos para o governo totalitário Eliminando a antigüidade e o mérito o governo impede que nasçam as lealdades que geralmente ligam os membros mais jovens da equipe aos mais antigos de cuja opinião e boa vontade depende o seu progresso elimina de uma vez por todas os perigos do desemprego e assegura a todos uma ocupação compatível com a sua educação Assim em 1939 depois de terminado o gigantesco expurgo na União Soviétiíá Stálin podia observar com grande satisfação que o Partido pôde promover para posições de comando nos negócios do Estado ou do Partido mais de 500 mil jovens bolchevistas114 A humilhação implícita no fato de dever o emprego à injusta eliminação do predecessor tem o mesmo efeito desmoralizante que a eliminação dos judeus teve nas profissões alemãs cada pessoa que tenha uma ocupaçãose torna cúmplice consciente dos crimes do governo e seu beneficiário voluntário ou não com o resultado de que quanto mais sensível for o indivíduo mais ardentemente defenderá o regime Em outras palavras esse sistema é o resultado lógico do princípio do Líder em suas mais amplas implicações e a melhor garantia de lealdade pois torna cada geração dependente para viver daquela linha política do Líder que tenha originado o expurgo criador de empregos Além disso promove a identidade dos interesses públicos e privados da qual os defensores da União Soviética tanto se orgulhavam ou na versão nazista a abolição da esfera da vida privada pois todo indivíduo de alguma importância deve toda a sua existência ao interesse político do regime e quando essa identidade factual se rompe e o próximo expurgo o elimina do cargo o regime cuida para que ele desapareça do mundo dos vivos De modo não muito diferente o agente duplo identificavase com a causa da revolução sem a qual perderia o emprego e não apenas com a polícia secreta também no seu caso uma ascensão espetacular só poderia terminar em morte anônima pois era muito difícil que o duplo jogo durasse para sempre O governo totalitário ao estabelecer para todas as carreiras aquelas condições de promoção que antes só haviam prevalecido entre párias sociais conseguiu levar a cabo uma das mudanças de maior alcance na psicologia social A psicologia do agente duplo que estava disposto a pagar o preço de uma vida curta pela nobre existência de alguns anos no topo tornouse em questões pessoais 114 Citado por Avtorkhanov op cit 482 a base do pensamento de toda a geração que se seguiu à revolução na Rússia e em grau menor porém ainda mais perigoso na Alemanha É nessa sociedade impregnada pelas norniaiÊjyivendo pelos métodos que antes eram o monopólio da polícia secreta que funciona a polícia secreta totaJitária Somente nos estágios iniciais quando a luta pelo poder ainda está sendo travada as suas vítimas são pessoas suspeitas de oposição Depois disso ela mergulha em sua carreira totalitária com a perseguição dos inimigos objetivos que podem ser os judeus ou os poloneses como no caso dos nazistas ou os chamados contrarevolucionários uma acusação que na Rússia soviética se faz antes que surja qualquer pergunta quanto à conduta do acusado ou pessoas que em algum momento da vida tiveram uma loja ou casa ou que tinham pais ou avós que tinham essas coisas115 ou que pertenceram a uma das forças de ocupação do Exército Vermelho ou eram de origem polonesa Somente nesse último estágio inteiramente totalitário os conceitos de inimigo objetivo e do crime logicamente possível são abandonados agora as vítimas são escolhidas inteiramente ao acaso e sem mesmo terem sido acusadas são declaradas indignas de viver Essa nova categoria de indesejáveis pode consistir como no caso dos nazistas em doentes mentais ou portadores de moléstias do pulmão ou do coração ou na União Soviética naqueles que simplesmente foram incluídos naquela porcentagem variável de uma província para outra cuja deportação foi decretada Essa consistente arbitrariedade nega a liberdade humana de modo muito mais eficaz que qualquer tirania jamais foi capaz de negar Numa tirania era preciso ser pelo menos um inimigo do regime para ser punido por ele A liberdade de opinião ainda existia para aqueles que tinham a coragem de arriscar o pescoço Teoricamente ainda se pode fazer oposição também nos regimes totalitários mas essa liberdade é quase anulada quando a prática de um ato voluntário apenas acarreta uma punição que todos de uma forma ou de outra têm de sofrer No totalitarismo a liberdade não apenas se reduz à sua última e aparentemente indestrutível garantia que é a possibilidade do suicídio mas perde toda a importância porque as conseqüências do seu exercício são compartilhadas por pessoas completamente inocentes Se Hitler tivesse tido tempo para pôr em prática o seu sonhado Projeto de Lei Geral da Saúde Alemã o homem que padecia de uma doença do pulmão teria sofrido o mesmo destino que nos primeiros anos do regime nazista um comunista ou nos últimos anos um judeu Do mesmo modo o oponente do regime na Rússia que sofre o mesmo destino de milhões de pessoas escolhidas para os campos de concentração a fim de completarem alguma cota apenas alivia a polícia do ônus da escolha arbitrária O inocente e o culpado são igualmente indesejáveis A mudança do conceito de crime e de criminosos determina os métodos da polícia secreta totalitária Os criminosos são punidos os indesejáveis desapa 115 The dark side ofthe moon Nova York 1947 483 recém da face da Terra o único vestígio que resta deles é a memória daqueles que os conheceram e amaram e uma das tarefas mais difíceis da polícia secreta é fazer com que até esses vestígios desapareçam juntamente com o condenado A Okhrana predecessora czarista da GPU inventou ao que consta um sistema de arquivo no qual cada suspeito era registrado numa grande ficha no centro da qual o seu nome era rodeado por um círculo vermelho os seus amigos políticos eram designados por círculos vermelhos menores e os conhecidos nãopolíticos por círculos verdes círculos marrons indicavam pessoas que mantinham contato com os amigos do suspeito mas que este não conhecia pessoalmente os relacionamentos entre os amigos do suspeito políticos e nãopolíticos e os amigos dos seus amigos eram indicados por linhas ligando os respectivos círculos116 É claro que esse método só é limitado pelo tamanho das fichas e teoricamente uma única e gigantesca folha poderia mostrar as relações diretas e indiretas de toda a população É este o objetivo utópico da polícia secreta totalitária Abandonou o jintigo e tradicional sonho da polícia que o detector de mentiras ainda supostamente realiza e já não busca saber quem é quem ou quem pensa o quê O detector de mentiras é talvez o exemplo mais ilustrativo do fascínio que esse sonho aparentemente exerce sobre a mentalidade do policial pois obviamente o complicado aparelho de medição não pode determinar outra coisa senão a frieza ou o temperamento nervoso de suas vítimas Na verdade o raciocínio simplório que existe por trás do uso desse mecanismo só pode ser explicado pelo desejo irracional de que afinal de contas seja possível a leitura da mente Esse velho sonho já era suficientemente terrível quando desde os tempos mais remotos levava à tortura O sonho moderno da polícia totalitária com as suas técnicas recentes é incomparavelmente mais terrível Agora a polícia sonha que basta olhar um mapa gigantesco na parede do escritório para que possa a qualquer momento determinar quem tem relações com quem e em que grau de intimidade e teoricamente esse sonho não é irrealizável embora a sua execução técnica deva ser algo difícil Se esse mapa realmente existisse nem mesmo a lembrança impediria a pretensão totalitária de domínio do mundo permitiria a obliteração de pessoas sem que ficassem quaisquer vestígios como se elas jamais houvessem existido Se devemos crer nos relatos de agentes da NKVD que foram presos a polícia secreta russa já chegou perigosamente perto desse ideal do governo totalitário A polícia possui dossiês secretos de cada habitante do vasto país indicando cuidadosamente as numerosas relações que existem entre as pessoas desde os conhecidos fortuitos até parentes e amizade genuínas pois é apenas para descobrir essas relações que se interrogam tão rigorosamente os acusados cujos crimes já foram determinados objetivamente antes mesmo de serem presos Finalmente quanto à faculdade da memória tão perigosa para o regime totalitário certos observadores estrangeiros acham que se é verdade que 116 Ver Laporte op cit p 39 484 os elefantes nunca esquecem os russos parecem opostos aos elefantes A psicologia da Rússia soviética torna possível a amnésia total117 Verificase a importância desse completo desaparecimento das vítimas para o mecanismo do domínio total naqueles casos em que por um motivo ou outro o regime se defrontou com a memória dos sobreviventes Durante a guerra um comandante da SS cometeu o terrível erro de informar a uma mulher francesa que o seu marido havia morrido num campo de concentração alemão esse lapso provocou uma pequena avalanche de ordens e instruções para todos os comandantes dos campos advertindoos de que em hipótese alguma deviam dar informações ao mundo exterior118 Pelo mesmo motivo os oficiais da polícia soviética afeitos a esse sistema desde crianças podiam apenas olhar com espanto aqueles que na Polônia buscavam desesperadamente saber o que havia acontecido aos seus amigos e parentes detidos119 Nos países totalitários todos os locais de detenção administrados pela polícia constituem verdadeiros poços de esquecimento onde as pessoas caem por acidente sem deixar atrás de si os vestígios tão naturais de uma existência anterior como um cadáver ou uma sepultura Comparado a essa novíssima invenção de se fazer desaparecer até o rosto das pessoas o antiquado método do homicídio seja político ou criminoso é realmente ineficaz O assassino deixa atrás de si um cadáver e embora tente apagar os traços da sua própria identidade não pode apagar da memória dos que ficaram vivos a identidade da vítima A operação da polícia secreta ao contrário faz com que a vítima simplesmente jamais tenha existido A conexão entre a polícia secreta e as sociedades secretas é óbvia A criação da primeira sempre necessitou e decorreu do argumento de que a existência destas últimas constituía perigo A polícia secreta totalitária é a primeira na história que não precisa usar desses antigos pretextos de que todos os tiranos lançavam mão O anonimato das vítimas que não podem ser chamadas de inimigas do regime e cuja identidade é desconhecida dos perseguidores até que a decisão arbitrária do governo as elimina do mundo dos vivos e apaga a sua memória do mundo dos mortos é algo além de todo sigilo além do silêncio mais profundo além da maior mestria da dupla vida que a disciplina das sociedades conspirativas costumava impor aos seus membros Os movimentos totalitários que durante a subida ao poder imitam certas características organizacionais das sociedades secretas e no entanto se instalam à luz do dia criam uma verdadeira sociedade secreta somente depois de chegarem ao governo A sociedade secreta dos regimes totalitários é a polícia secreta o único segredo religiosamente guardado num país totalitário o único conhecimento esotérico que existe diz respeito às operações da polícia e às con 117 BeckeGodin op cit pp 234 e 127 118 Ver Nazi conspiracy VII 84 ss 119 The dark side ofthe moon 485 dições dos campos de concentração120 Naturalmente a população como um todo e em especial os membros do Partido conhecem os fatos gerais que existem campos de concentração que certas pessoas desaparecem que inocentes são presos ao mesmo tempo todos num país totalitário sabem que o maior dos crimes é falar a respeito desses segredos Como o conhecimento do homem depende da afirmação e da compreensão dos seus semelhantes essa informação geralmente sabida individualmente guardada e nunca comunicada perde toda a realidade e assume a natureza de simples pesadelo Só aqueles que estão de posse do conhecimento estritamente esotérico quanto às novas categorias possíveis de pessoas indesejáveis e dos métodos operacionais dos altos escalões podem comunicarse uns com os outros sobre o que realmente constitui a realidade de todos Só eles estão numa posição de acreditar no que sabem ser verdadeiro Este é o seu segredo e para guardálo instalamse como sociedade secreta E permanecem como membros mesmo quando a organização secreta os prende os obriga a fazer confissões e finalmente os liquida Enquanto guardam o segredo pertencem à elite e geralmente não o revelam mesmo quando eles próprios vão para a cadeia ou para os campos de concentração121 Já observamos que um dos muitos paradoxos que ofendem o bom senso do mundo nãototalitário é o uso aparentemente irracional que o totalitarismo faz dos métodos conspiratórios Os movimentos totalitários aparentemente perseguidos pela polícia raramente usam os métodos da conspiração para a derrubada do governo em sua luta pelo poder enquanto o totalitarismo no poder depois de reconhecido por todos os governos e depois de ter aparentemente superado o estágio revolucionário cria uma verdadeira polícia secreta como núcleo do poder e do governo Parece que enxerga no reconhecimento oficial um perigo maior para o conteúdo conspiratório do movimento revolucionário um perigo de desintegração interna que as hesitantes medidas policiais dos regimes nãototalitários A verdade é que os líderes totalitários emboraetejam convencidos de que devem seguir consistentemente a ficção e as normas do mundo fictício estabelecidas durante a luta pelo poder só aos poucos descobrem toda a implicação desse mundo irreal e de suas normas A fé na onipotência humana e a convicção de que tudo pode ser feito através da organização levaos a experiências com que a imaginação humana pode ter sonhado mas que a atividade humana nunca realizou Suas abomináveis descobertas no reino do possível são inspiradas por um cientificismo ideológico que já vimos ser menos controlado pela razão e menos disposto a reconhecer os fatos que as mais loucas fantasias da especulação précientífica e préfilosófica Criam a sociedade secreta que agora já não opera à luz do dia a sociedade da polícia secreta ou o soldado político 120 Pouco havia na SS que não fosse secreto O segredomor era o que sucedia nos campos de concentração Nem mesmo os membros da Gestapo podiam entrar nos campos sem uma permissão especial EugenKogon Der SSStaat O Estado SS Munique 1946 p 297 121 Beck e Godin op cit p 169 contam como os elementos da NKVD que eram presos cuidavam em não revelar algum segredo da NKVD 486 ou o guerreiro ideologicamente treinado para que possam realizar a pesquisa experimental do possível Por outro lado a conspiração totalitária contra o mundo nãototalitário a pretensão do domínio mundial permanece tão aberta e franca nas condições do governo totalitário como nos movimentos totalitários É praticamente inculcada à mente da população coordenada de simpatizantes sob forma de suposta conspiração de todo o mundo contra o seu país Propagase a dicotomia totalitária fazendose um dever de todo cidadão no exterior reportarse ao seu país como se fosse agente secreto e levandoo a tratar cada estrangeiro como se fosse um espião a soldo do seu governo122 É para a realização prática dessa dicotomia e não por causa de segredos específicos militares ou de outra natureza que as cortinas de ferro separam do resto do mundo os habitantes do país totalitário O verdadeiro segredo os campos de concentração esses laboratórios onde se experimenta o domínio total os regimes totalitários ocultam dos olhos do seu próprio povo e de todos os outros povos Durante um tempo considerável a normalidade do mundo normal é a mais eficaz proteção contra a denúncia dos crimes em massa dos regimes totalitários Os homens normais não sabem que tudo é possível123 e diante do monstruoso recusamse a crer em seus próprios olhos e ouvidos tal como os homens da massa não confiaram nos seus quando se depararam com uma realidade normal onde já não havia lugar para eles124 O motivo pelo qual os regimes totalitários podem ir tão longe na realização de um mundo invertido e fictício é que o mundo exterior nãototalitário também só acredita naquilo que quer e foge à realidade ante a verdadeira loucura tanto quantojtójaassasdiarite do mundo normal A repugnância dò bom senso diante da fé no monstruoso é constantemente fortalecida pelo próprio governante totalitário que não permite que nenhuma estatística digna de fé nenhum fato ou algarismo passível de controle venha a ser publicado de sorte que só existem informes subjetivos incontroláveis e inafiançáveis acerca dos países dos mortosvivos Devido a essa política só parcialmente se conhecem os resultados da experiência totalitária Embora haja um número suficiente de relatos dos campos de concentração para que se avalie a possibilidade do domínio total e se vislumbre o abismo do possível não sabemos até onde um regime totalitário pode transformar o caráter Menos ainda sabemos quantas pessoas normais ao 122 O seguinte diálogo narrado em The dark side ofthe moon é bem típico Se alguém admitia haver estado fora da Polônia a pergunta seguinte era sempre E para quem você estava espionando Um homem perguntou Mas os senhores também recebem visitantes estrangeiros Acham que todos são espiões A resposta foi E o que você pensa Que somos tão ingênuos que rtâo sabemos disso perfeitamente 123 David Rousset Theotherkingdom Nova York 1947 124 Os nazistas sabiam muito bem que uma parede de incredulidade protegia o que faziam Um relatório secreto dirigido a Rosenberg sobre o massacre de 5 mil judeus em 1943 diz explicitamente Imagine se estes fatos chegassem ao conhecimento do inimigo e eles tentassem explorálos Provavelmente a propaganda não teria efeito pois as pessoas que a ouvissem ou lessem simplesmente não estariam dispostas a acreditar nela Nazi conspiracy I 1001 487 nosso redor estariam dispostas a aceitar o modo totalitário de vida isto é pagar o preço de uma vida consideravelmente mais curta pela realização segura de todos os seus sonhos profissionais É fácil compreender o quanto a propaganda totalitária e até mesmo certas instituições totalitárias correspondem aos sonhos das novas massas desarraigadas mas é quase impossível saber qual o número daqueles que se continuarem expostos por mais tempo a uma constante ameaça de desemprego aceitarão de bom grado uma política populacional de eliminação regular do excesso de pessoas e quantos compreendendo perfeitamente a sua crescente incapacidade de suportar a carga da vida moderna se conformarão de boa vontade a um sistema que juntamente com a espontaneidade elimina a responsabilidade Em outras palavras embora conheçamos a operação e a função específica da polícia secreta totalitária não sabemos quão bem ou até onde o segredo dessa sociedade secreta corresponde aos desejos e cumplicidades secretos das massas do nosso tempo 3 O DOMÍNIO TOTAL Os campos de concentração e de extermínio dos regimes totalitários servem como laboratórios onde se demonstra a crença fundamental do totalitarismo de que tudo é possível Comparadas a esta todas as outras experiências têm importância secundaria inclusive as médicas cujos horrores estão registrados em detalhe nos julgamentos contra os médicos do Terceiro Reich embora seja característico que esses laboratórios fossem usados para experimentos de todo tipo O domínio total que procura sistematizar a infinita pluralidade e diferenciação dos seres humanos como se toda a humanidade fosse apenas um indivíduo só é possível quando toda e qualquer pessoa seja reduzida à mesma identidade de reações O problema é fabricar algo que não existe isto é um tipo de espécie humana que se assemelhe a outras espécies animais e cuja única liberdade consista em preservar a espécie125 O domínio totalitário procura atingir esse objetivo através da doutrinação ideológica das formações de elite e do terror absoluto nos campos e as atrocidades para as quais as formações de elite são impiedosamente usadas constituem a aplicação prática da doutrina ideológica o campo de testes em que a última deve colocarse à prova enquanto o terrível espetáculo dos campos deve fornecer a verificação teórica da ideologia Os campos destinamse não apenas a exterminar pessoas e degradar seres humanos mas também servem à chocante experiência da eliminação em con 125 Em Tischgesprache Hitler menciona várias vezes estar lutando por uma situação em que cada indivíduo saiba que vive e morre para a preservação da espécie p 349 Ver também p 347 Uma mosca põe milhões de ovos dos quais todos morrem Mas a mosca fica 488 dições cientificamente controladas da própria espontaneidade como expressão da conduta humana e da transformação da personalidade humana numa simples coisa em algo que nem mesmo os animais são pois o cão de Pavlov que como sabemos era treinado para comer quando tocava um sino mesmo que não tivesse fome era um animal degenerado Em circunstâncias normais isso nunca pode ser conseguido porque a espontaneidade jamais pode ser inteiramente eliminada uma vez que se relaciona não apenas com a liberdade humana mas com a própria vida no sentido da simples manutenção da existência É somente nos campos de concentração que essa experiência épossívelerportanto os campos são não apenas Ia société laplus totalitaire encore réalisé David Rousset mas também o modelo social perfeito para o domínio totatem geral Da mesma forma como a estabilidade do regime totalitário depende do isolamento do mundo fictício criado pelo movimento em relação ao mundo exterior também a experiência do domínio total nos campos de concentração depende de seu fechamento ao mundo de todos os homens ao mundo dos vivos em geral até mesmo ao mundo do próprio país que vive sob o domínio totalitário Esse isolamento explica a peculiar irrealidade e à incredibilidade que caracterizam todos os relatos provenientes dos campos de concentração e constitui uma das principais dificuldades para a verdadeira compreensão do domínio totalitário pois por mais incrível que pareça os campos são a verdadeira instituição central do poder organizacional totalitário Existem numerosos relatos de sobreviventes126 Quanto mais autênticos menos procuram transmitir coisas que escapam à compreensão humana e à experiência humana ou seja sofrimentos que transformam homens em animais que não se queixam127 Nenhum desses relatórios inspira arroubos de indignação e de simpatia capazes de mobilizar os homens em nome da justiça Pelo contrário qualquer pessoa que fale ou escreva sobre campos de concentração é tida como suspeita e se o autor do relato voltou resolutamente ao mundo dos vivos ele mesmo é vítima de dúvidas quanto à sua própria veracidade como se pudesse haver confundido um pesadelo com a realidade128 126 Os melhores relatos sobre os campos de concentração nazistas são os de David Rousset Lesjours de notre mort Paris 1947 Eugen Kogon op cit Bruno Bettelheim On Dachau and Buchenwald de maio de 1938 a abril de 1939 em Nazi conspiracy VII 824 ss Quanto aos campos de concentração soviéticos ver a excelente coleção de relatos de sobreviventes poloneses publicados sob o titulo Te dark side ofthe moon e também David J Dallin op cit embora as suas narrativas sejam menos convincentes por partirem de personalidades proeminentes desejosas de redigir manifestos e acusações 127 The dark side ofthe moon a introdução também acentua essa peculiar falta de comunicação Eles registram mas não comunicam 1G8 Ver especialmente Bruno Bettelheim op cit Era como se eu estivesse convencido de que de certa forma aquelas coisas horríveis e degradantes não estavam acontecendo a mim como sujeito mas a mim como objeto Essa sensação foi corroborada peloque me diziam outros prisioneiros Era como se eu visse ocorrerem coisas das quais apenas vagamente participava Isto não pode ser verdadeiro essas coisas simplesmente não acontecem Os prisioneiros tinham de convencer a si mesmos que aquilo era real que estava realmente acontecendo e que não era apenas um pesadelo Nunca o conseguiram completamente 489 JEssa dúvida em relação a si mesmo e à realidade de suas próprias experiências apenas demonstra aquilo que os nazistas sempre souberam que para os que se dispõem a cometer crimes convém organizálos da maneira mais vasta e mais inverossímil Não apenas porque isso torna inadequada e absurda qualquer punição prevista em lei mas porque a própria imensidade dos crimes garante que os assassinos que proclamam a sua inocência com toda sorte de mentiras sejam maií facilmente acreditados do que as vítimas que dizem a verdade Os nazistas nem mesmo acharam necessário guardar essa descoberta Hitlerfez circular milhões de cópias do seu livro em que dizia abertamente que para ser bem sucedida a mentira deve ser enorme o que não impediu que as pessoas acreditassem nele do mesmo modo como as proclamações nazistas repetidas ad nauseam de que os judeus seriam exterminados como insetos isto é com gás venenoso não levaram ninguém a acreditar seriamente nessas enunciações Somos todos tentados a explicar o intrinsecamente inacreditável porjneio de racionalização Em cada um de nós existe um liberal que procura persuadirnos com à voz do bom senso O caminho do domínio totalitário passa por vários estágios intermediários dos quais podemos encontrar muitas analogias e precedentes O terror extraordinariamente sangrento durante a fase inicial do governo totalitário atende realmente ao fim exclusivo de derrotar o oponente e de impossibilitar qualquer oposição futura mas o terror total só é lançado depois de ultrapassada essa fase inicial quando o regime já nada tem a recear da oposição O meio se transforma no fim e a afirmação de que o fim justifica os meios já não se aplica pois o terror não sendo mais o meio de aterrorizar as pessoas perdeu a sua finalidade Tampouco basta dizer que a revolução como no caso da Revolução Francesa passou a devorar os próprios filhos pois o terror continua mesmo quando todos aqueles que eram ou se podiam julgar filhos da revolução de um modo ou de outro as facções russas os centros de poder do partido o Exército a burocracia já foram eliminados há muito tempo Muito do que hoje é peculiar ao governo totalitário é bastante conhecido através dos estudos da história Sempre houve guerras de agressão o massacre de populações hostis após uma vitória campeou à solta mesmo depois que os romanos o abrandassem com oparcere subjectis o extermínio dos povos nativos acompanhou a colonização das Américas da Austrália e da África a escravidão é uma das mais antigas instituições da humanidade e todos os impérios da Antigüidade se basearam no trabalho dos escravos do Estado que erigiam os seus edifícios públicos Nem mesmo os campos de concentração são invenção dos movimentos totalitários Surgiram pela primeira vez durante a Guerra dos Bôeres no começo do século XX e continuaram a ser usados na África do Sul Ver também Rousset op cit p 213 Aqueles que não o viram com os próprios olhos não podem acreditar Você mesmo antes de vir para cá levava a sério o que se dizia a respeito das câmaras de gás Respondi que não Vê Pois todos são igualzinhos a você Todos eles em Paris Londres Nova York até mesmo em Birkenau com aqueles crematórios embaixo do próprio nariz ainda não acreditam cinco minutos antes de serem mandados para o porão dos crematórios ainda não acreditam 490 e na índia para os elementos indesejáveis aqui também encontramos pela primeira vez a expressão custódia protetora que mais tarde foi adotada pelo Terceiro Reich Esses campos correspondem em muitos detalhes aos campos de concentração do começo do regime totalitário eram usados para suspeitos cujas ofensas não se podiam provar e que não podiam ser condenados pelo processo legal comum Tudo isso aponta claramente na direção dos métodos totalitários são elementos que eles empregam desenvolvem e cristalizam à base do princípio niilístico de que tudo é permitido princípio que eles herdaram e aceitaram com naturalidade Mas onde essas novas formas de domínio adquirem a estrutura autenticamente totalitária transcendem esse princípio que ainda se relaciona com os motivos utilitários e o interesse dos governantes e vão atuar numa esfera que até agora nos era completamente desconhecida a esfera ond tudo é possível E tipicamente eiéjJfficisajmejiteiuesfeiajniejQão pode ser limitada nem por motivos utilitários nem pelo interesse pessoal não importa o conteúdo deste último O que contraria o bom senso não é o princípio niilístico de que tudo é permitido já delineado no conceito utilitário de bom senso do século XIX O que o bom senso e as pessoas normais se recusam a crer é que tudo seja possível129 Tentamos compreender certos elementos da experiência atual ou passada que simplesmente ultrapassam os nossos poderes de compreensão Tentamos classificar como criminoso um ato que esta categoria jamais poderia incluir Porque no fundo qual o significado do conceito de homicídio quando nos defrontamos com a produção de cadáveres em massa Tentamos compreender psicologicamente a conduta dos presos dos campos de concentração e dõs homens da SS quando o que é preciso compreender é que a psique humana pode ser destruída mesmo sem a destruição física do homem que na verdade a psique o caráter e a individualidade parecem em certas circunstâncias manifestarse apenas pela rapidez ou lentidão com que se desintegram130 Como resultado final surgem homens inanimados que já não podem ser compreendidos psicologicamente cujo retorno ao mundo psicologicamente humano ou inteligiveíménte humano se assemelha à ressurreição de Lázaro Diante disto qualquer julgamento do bom senso serve apenas para justificar aqueles que acham superficial deterse em horrores131 Se é verdade que os campos de concentração são a instituição que caracteriza mais especificamente o governo totalitário então deterse nos horrores que eles representam é indispensável para compreender o totalitarismo Mas a recordação não pode levar a isto mais do que o pode o relato incomunicativo da testemunha ocular Em ambos há uma tendência de fugir da experiência instintiva ou racionalmente ambos são tão conscientes do abismo que separa o 129 O primeiro a compreender isto foi Rousset em seu Univers concentratinaire 1947 130 Rousset op citp 587 131 Ver Georges Bataille em Critique janeiro de 1948 p 72 491 mundo dos vivos do mundo dos mortosvivos que não conseguem oferecer senão uma série de ocorrências relembradas que parecem tão incríveis para os que as relatam como para os que as ouvem Somente pode darse ao luxo de continuar a pensar em horrores a imaginação amedrontada dos que embora provocados por esses relatos não foram realmente feridos na própria carne daqueles que conseqüentemente estão a salvo do pavor bestial e desesperado que após a experiência do horror verdadeiro e presente paralisa inexoravelmente tudo Tais pensamentos são úteis apenas para a percepção dos contextos políticos e para a mobilização das paixões políticas Pois pensar em horrores não leva a mudanças de personalidade de qualquer espécie como aliás também não o faz a verdadeira experiência do horror A redução do homem a um feixe de reações separao tão radicalmente de tudo o que há nele de personalidade e caráter quanto uma doença mental Mas quando como Lázaro ele se ergue dentre os mortos reencontra inalterados a personalidade e o caráter exatamente como os havia deixado Como o horror não altera o caráter do homem nem pode deixálo melhor ou pior também não pode tornarse a base de uma comunidade política ou de um partido A tentativa de criar uma elite européia baseada no programa de entendimento gerado pela experiência dos campos de concentração sofrida por toda a Europa falhou do mesmo modo como haviam falhado as tentativas feitas depois da Primeira Guerra Mundial de extrair conclusões políticas da experiência internacional da geração interligada pela vivência das trincheiras Em ambos os casos verificouse que a experiência em si nada comunica senão banalidades niilísticas132 As conseqüências políticas como o pacifismo de pósguerra por exemplo resultaram do temor geral da guerra não das experiências da guerra Em vez de produzir um pacifismo destituído de realidade o conhecimento da estrutura das guerras modernas deveria ter levado à compreensão de que o único critério para uma guerra necessária é a luta contra condições em que as pessoas perdem o desejo de viver e a experiência que tivemos com o inferno atroz dos campos totalitários feznos compreender demasiado bem que essas condições são possíveis133 Assim o temor dos campos de concentração e o resultante conhecimento do que é o domínio total podem servir para anular todas as obsoletas divergências políticas da direita e da esquerda e introduzir ao lado e acima delas a maneira politicamente mais importante de julgar os eventos da nossa época ou seja se são úteis ou não ao domínio totalitário Em qualquer caso a imaginação amedrontada tem a grande vantagem de anular as interpretações sofísticodialéticas da política que partem da premissa 132 O livro de Rousset contém muitas dessas intuicões a respeito da natureza humana baseadas principalmente na observação do fato de que depois de certo tempo mal se pode distinguir a mentalidade dos internos da mentalidade dos guardas dos campos 133 A fim de evitar malentendidos convém acrescentar que com a invenção da bomba de hidrogênio dos foguetes teleguiados e das armas eletrônicas a guerra ficou totalmente diferente Contudo está fora do escopo deste livro discutir essa questão 492 de que algo de bom pode advir do mal Enquanto o pior que o homem podia infligir ao homem era o homicídio essa acrobata dialética tinha ao menos uma aparência de justificação Mas como sabemos hoje o homicídio é apenas um mal limitado O assassino que mata um homem um homem que sendo mortal tem que morrer um dia de qualquer modo habita o nosso mundo de vida e morte entre ambos o assassino e a vítima existe de fato um elo que serve de base à dialética mesmo que esta nem sempre o perceba Mas o assassino que deixa atrás de si um cadáver não afirma nem pretende impor a idéia de que a sua vítima nunca tenha existido se apaga quaisquer vestígios são os da sua própria identidade e não a memória e a dor daqueles que amaram a vítima destrói umajáda masnão destrói o fato da própria existência Os nazistas com a precisão que lhes era peculiar costumavam registrar suas operações nos campos de concentração sob o título na calada da noite Nacht undNebel Muitas vezes não se percebe à primeira vista o radicalismo de medidas destinadas a tratar pessoas como se nunca houvessem existido e a fazêlas desaparecer no sentido literal do termo porque o sistema nazista alemão e o sistema bolchevista russo não são uniformes mas consistem em um conjunto de categorias em que as pessoas são tratadas de modo muito diferente No caso da Alemanha houve diferentes categorias de pessoas no mesmo campo desprovidas de contato entre si freqüentemente o isolamento entre as categorias era mais severo que o isolamento entre o campo e o mundo exterior Assim por motivos raciais os cidadãos escandinavos embora fossem inimigos declarados dos nazistas eram tratados pelos alemães durante a guerra diferentemente dos membros de outros grupos inimigos estes por sua vez dividiamse entre aqueles cujo extermínio era imediato como no caso dos judeus ou era previsto em futuro próximo como no caso dos poloneses russos e ucranianos e aqueles a respeito dos quais ainda não existiam instruções quanto a uma solução final global como no caso dos franceses e dos belgas Na Rússia por outro lado podemos distinguir três sistemas mais ou menos independentes Primeiro há os grupos condenados a autêntico trabalho forçado que vivem em relativa liberdade e cujas sentenças são limitadas Depois há os campos de concentração nos quais o material humano é impiedosamente explorado e o índice de mortalidade é extremamente alto mas que ainda assim são organizados fundamentalmente para fins de trabalho E finalmente existem os campos de aniquilação onde os internos são sistematicamente exterminados pela fome ou pelo abandono O verdadeiro horror dos campos de concentração e de extermínio reside no fato de que os internos mesmo que consigam manterse vivos estão mais isolados do mundo dos vivos do que se tivessem morrido porque o horror compele aô esquecimento No mundo concentracionário matase um homem tão impessoalmente como se mata um mosquito Uma pessoa pode morrer em decorrência de tortura ou de fome sistemática ou porque o campo está superpovoado e há necessidade de liquidar o material humano supérfluo Inversamente pode ocorrer que devido a uma falta de novas remessas humanas surja o perigo de que os campos se esvaziem e seja dada a ordem de reduzir o índice 493 de mortalidade a qualquer preço134 David Rousset deu ao relato do período que passou num campo de concentração alemão o título de Les jours de notre mort e realmente é como se se pudesse tornar permanente o próprio processo de morrer e criar uma situação em que tanto a morte como a vida são retardadas com a mesma eficácia O surgimento de um mal radical antes ignorado põe fim à noção de gradual desenvolvimento e transformação de valores Não há modelos políticos nem históricos nem simplesmente a compreensão de que parece existir na política moderna algo que jamais deveria pertencer à política como costumávamos entendêla a alternativa de tudo ou nada e esse algo é tudo isto é um número absolutamente infinito de formas pelas quais os homens podem viver em comum ou nada pois a vitória dos campos de concentração significaria a mesma inexorável ruína para todos os seres humanos que o uso militar da bomba de hidrogênio traria para toda a raça humana Não há paralelos para comparar com algo a vida nos campos de concentração O seu horror não pode ser inteiramente alcançado pela imaginação justamente por situarse fora da vida e da morte Jamais pode ser inteiramente narrado justamente porque o sobrevivente retorna ao mundo dos vivos o que lhe torna impossível acreditar completamente em suas próprias experiências passadas É como se o que tivesse a contar fosse uma história de outro planeta pois para o mundo dos vivos onde ninguém deve saber se ele está vivo ou morto é como se ele jamais houvesse nascido Assim todo paralelo cria confusão e desvia a atenção do que é essencial O trabalho forçado nas prisões e colônias penais o banimento a escravidão todos parecem por um instante oferecer possibilidade de comparação mas num exame mais cuidadoso não levam a parte alguma O trabalho forçado como punição é limitado no tempo e na intensidade O preso retém os direitos sobre o próprio corpo não é torturado de forma absoluta nem dominado de modo absoluto O banimento apenas transfere o banido de uma parte do mundo para outra também habitada por seres humanos não o exclui inteiramente do mundo dos homens Em toda a história a escravidão foi uma instituição dentro de uma ordem social os escravos não estavam como os internos dos campos de concentração longe dos olhos e portanto da proteção dos seus semelhantes como instrumentos de trabalho tinham um preço 134 Isso aconteceu na Alemanha em fins de 1942 ocasião em que Himmler notificou a todos os comandantes dos campos que reduzissem a taxa de mortalidade a todo custo pois verificarase que dos 136 mil recémdeportados 70 mil já estavam mortos quando chegaram no campo ou morreram logo depois Ver Nazi conspiracy IV anexo II Relatos posteriores provenientes dos campos da União Soviética confirma unanimemente que após 1949 isto é quando Stálin ainda estava vivo a taxa de mortalidade nos campos de concentração que antes havia alcançado até 60 dos presos foi sistematicamente reduzida presumivelmente devido à aguda escassez de mãodeobra na União Soviética Essa melhora de condições não deve ser confundida com a crise do regime surgida após a morte de Stálin e que significativamente repercutiu primeiro nos campos de concentração Cf Wilhelm Starlinger Grezen der Sowjetmacht Limites do poder soviético Würzburg 1955 494 definido e como propriedade um valor definido O interno do campo de concentração não tem preço algum porque sempre pode ser substituído ninguém sabe a quem ele pertence porque nunca é visto Do ponto de vista da sociedade normal ele é absolutamente supérfluo embora em épocas de intensa falta de mãodeobra como na Rússia e na Alemanha durante a guerra fosse usado para o trabalho Como instituição o campo de concentração não foi criado em nomejda produtividade a única função econômica permanente do campo é o financiamento dos seus próprios supervisores assim do ponto de vista econômico os campos de concentração existem principalmente para si mesmos Qualquer trabalho que neles tenha sido realizado poderia ter sido feito muito melhor e mais barato em condições diferentes135 A Rússia especialmente cujos campos de concentração são em geral descritos como campos de trabalho forçado porque a burocracia soviética preferiu honrálos com esse nome revela com mais clareza que o trabalho forçado não é a questão fundamental o trabalho forçado é a condição normal de todos os trabalhadores russos já que eles não têm liberdade de movimento e podem ser arbitrariamente convocados para trabalhar em qualquer lugar a qualquer momento A incredibilidade dos horrores é intimamente ligada à inutilidade econômica Os nazistas levaram essa inutilidade ao ponto da franca antiutilidade quando em meio à guerra e a despeito da escassez de material rolante e de construções edificaram enormes e dispendiosas fábricas de extermínio e transportaram milhões de pessoas de um lado para o outro136 Aos olhos de um mundo estritamente utilitário a evidente contradição entre esses atos e a conveniência militar dava a todo o sistema a aparência de louca irrealidade Essa atmosfera de loucura e irrealidade criada pela aparente ausência de propósitos é a verdadeira cortina de ferro que esconde dos olhos do mundo 135 Ver Kogon op cit p 58 Grande parte do trabalho imposto nos campos de concentração era inútil ou era supérfluo ou era tão mal planejado que tinha de ser feito duas ou três vezes Ver também Bettelheim op cit pp 8312 Os novos prisioneiros eram forçados a realizar tarefas idiotas Sentiamse degradados e preferiam trabalho mais pesado que produzisse alguma coisa de útil Mesmo Dallin que baseou seu livro sobre a tese de que a finalidade dos campos soviéticos é proporcionar mãode obra barata é forçado a admitir a ineficiência do trabalho nos campos op cit p 105 As teorias correntes sobre o sistema de campos russo como uma medida econômica destinada a prover mãodeobra barata seriam claramente refutadas se recentes informes acerca de anistias em massa e da abolição dos campos de concentração provaremse corretos Pois se os campos serviam a um importante objetivo econômico o regime certamente não poderia terse permitido sua rápida liquidação sem graves conseqüências para todo o sistema econômico 136 Além dos milhões de pessoas que os nazistas transportaram para os campos de extermínio constantemente experimentavam novos planos de colonização transportando alemães da Alemanha ou dos territórios ocupados para o Leste para fins de colonização Isso naturalmente constituía sério obstáculo às ações militares e à exploração econômica Quanto às numerosas discussões sobre esses assuntos e ao constante conflito entre a hierarquia civil nazista nos territórios ocupados do Leste e a hierarquia da SS ver especialmente o volume XXIX de Trialofthe major war criminais Nuremberg 1947 495 todas as formas de campos de concentração Vistos de fora os campos e o que neles acontece só podem ser descritos com imagens extraterrenas como se a vida fosse neles separada das finalidades deste mundo Os campos de concentração podem ser classificados em três tipos correspondentes às três concepções ocidentais básicas de uma vida após a morte o Limbo o Purgatório e o Inferno Ao Limbo correspondem aquelas formas relativamente benignas que já foram populares mesmo em países nãototalitários destinadas a afastar da sociedade todo tipo de elementos indesejáveis os refugiados os apátridas os marginais e os desempregados os campos de pessoas deslocadas por exemplo que continuaram a existir mesmo depois da guerra nada mais são do que campos para os que se tornaram supérfluos e importunos O Purgatório é representado pelos campos de trabalho da União Soviética onde o abandono alia se ao trabalho forçado e desordenado O Inferno no sentido mais literal é representado por aquele tipo de campos que os nazistas aperfeiçoaram e onde toda a vida era organizada completa e sistematicamente de modo a causar o maior tormento possível Os três tipos têm uma coisa em comum as massas humanas que eles detêm são tratadas como seja não existissem como se o que sucedesse com elas hão pudesse interessar a ninguém como se já estivessem mortas e algum espírito mau tomado de alguma loucura brincasse de suspendêlas por certo tempo entre a vida e a morte antes de admitilas na paz eterna Mais que o arame farpado é a irrealidade dos detentos que ele confina que provoca uma crueldade tão incrível que termina levando à aceitação do extermínio como solução perfeitamente normal Tudo o que se faz nos campos tem o seu paralelo no mundo das fantasias malignas e perversas O que é difícil entender porém é que esses crimes ocorriam num mundo fantasma materializado num sistema em que afinal existiam todos os dados sensoriais da realidade faltandolhe apenas aquela estrutura de conseqüências e responsabilidade sem a qual a realidade não passa de um conjunto de dados incompreensíveis Como resultado passa a existir um lugar onde os homens podem ser torturados e massacrados sem que nem os atormentadores nem os atormentados e muito menos o observador de fora saibam que o que está acontecendo é algo mais do que um jogo cruel ou um sonho absurdo137 Os filmes documentários divulgados na Alemanha e em outros países depois da guerra demonstraram claramente que essa atmosfera de loucura e irrealidade não se dissipa com a simples reportagem Para o observador sem preconceitos essas visões são quase tão pouco convincentes quanto as fotos de misteriosas substâncias tiradas em sessões espíritas138 O bom senso reagiu aos hor 137 Bettelheim op cit observa que os guardas dos campos adotavam uma atitude semelhante à dos próprios prisioneiros no tocante à atmosfera de irrealidade 138 Tem certa importância compreender que todas as fotografias dos campos de concentração eram enganadoras uma vez que mostravam os campos em seus últimos estágios no momento em que chegavam as tropas aliadas Não existiam campos de extermínio na Alemanha propriamente dita e a essa altura todo o equipamento de extermínio já havia sido desmontado Por 496 rores de Auschwitz com o argumento plausível Que crime essas pessoas devem ter cometido para que se lhes fizessem tais coisas ou na Alemanha e na Áustria em meio à fome e ao ódio geral Que pena que pararam de matar os judeus e em toda parte com o ceticismo com que é recebida a propaganda ineficaz Se a propaganda da verdade não convence o homem comum por ser demasiado monstruosa é positivamente perigosa para aqueles que sabem em sua própria imaginação o que são capazes de fazer e portanto acreditam plenamente na realidade dos filmes De repente tornaselhes claro que aquilo que durante milhares de anos fora relegado pela imaginação do homem a uma esfera além da competência humana pode ser fabricado aqui mesmo na Terra que o Inferno e o Purgatório e até mesmo um arremedo da sua duração perpétua podem ser criados pelos métodos mais modernos da destruição e da terapia Para essas pessoas e em qualquer cidade grande elas são mais numerosas do que desejamos admitir o inferno totalitário prova somente quepoder do homem é maior do que jamais ousaram pensar e que podemos realizar nossas fantasias infernais sem que o céu nos caia sobre a cabeça ou a terra se abra sob os nossos pés Essas analogias repetidas nos relatos do mundo dos agonizantes139 parecem ser mais que uma tentativa desesperada de exprimir o que está além da linguagem humana Talvez nada melhor do que a perda da fé num Julgamento Final distinga tão radicalmente as massas modernas daquelas dos séculos passados os piores elementos perderam o temor os melhores perderam a esperança Incapazes de viver sem temor e sem esperança as massas são atraídas por qualquer esforço que pareça prometer uma imitação humana do Paraíso que desejaram e do Inferno que temeram Do mesmo modo como a versão popularizada da sociedade sem classes de Marx tem uma estranha semelhança com a Era Messiânica também a realidade dos campos de concentração lembra antes de mais nada as pinturas medievais do Inferno Há porém um detalhe que tornava a antiga concepção de Inferno tolerável para o homem e que não pode ser reproduzido o Julgamento Final a idéia de um critério absoluto de justiça aliado à infinita possibilidade da misericórdia Pois no cálculo humano não existe crime nem pecado comensuráveis com os tormentos eternos do Inferno Daí a perplexidade daí a pergunta decor outro lado o que mais provocou a indignação dos aliados e o que constitui o lado mais horroroso dos filmes isto é a visão dos esqueletos humanos não era de modo algum típico dos campos de concentração alemães o extermínio era levado a cabo sistematicamente por meio de gás e não de fome Acondição dos campos foi o resultado da guerra durante os últimos meses Himmler havia ordenado a evacuação de todos os campos de extermínio do Leste europeu onde eles se concentravam principalmente na Polônia e em conseqüência os campos de concentração alemães ficaram superpovoados com a vinda dos sobreviventes deportados sem que houvesse possibilidade de assegurar o suprimento de alimentos 139 Rousset acentua op cit passim que a vida num campo de concentração era simplesmente um prolongado processo de morte 497 rente do bom senso que crimes essas pessoas podem ter cometido para sofrer tão desumanamente Daí também a absoluta inocência das vítimas nenhum homem jamais mereceu tal coisa E daí finalmente a grotesca casualidade da escolha das vítimas dos campos de concentração no reino aperfeiçoado do terror esse castigo pode com igual justiça ou injustiça ser aplicado a qualquer um Comparado ao insano resultado final uma sociedade de campos de concentração o processo pelo qual os homens são preparados para esse fim e os métodos pelos quais os indivíduos se adaptam a essas condições são transparentes e lógicos A desvairada fabricação em massa de cadáveres é precedida pela preparação histórica e politicamente inteligível decadáveresMYQS O incentivo e o que é mais importante o silencioso consentimento a tais condições sem precedentes resultam daqueles eventos que num período de desintegração política súbita e inesperadamente tornaram centenas de milhares de seres humanos apátridas desterrados proscritos e indesejados enquanto o desemprego tornava milhões de outros economicamente supérfluos e socialmente onerosos Por sua vez isso só pôde acontecer porque os Direitos do Homem apenas formulados mas nunca filosoficamente estabelecidos apenas proclamados mas nunca politicamente garantidos perderam em sua forma tradicional toda a validade O primeiro passo essencial no caminho do domínio total é matada pessoa jurídica do homem Por um lado isso foi conseguido quando certas categorias de pessoas foram excluídas da proteção da lei e quando o mundo nãototalitário foi forçado por causa da desnacionalização maciça a aceitálos como os forada lei logo a seguir criaramse campos de concentração fora do sistema penal normal no qual um crime definido acarreta uma pena previsível Assim os criminosos que aliás constituíam um elemento essencial na sociedade dos campos de concentração geralmente só eram ali confinados depois de completarem a sentença a que haviam condenados Em todas as circunstâncias o domínio totalitário cuidava para que as categorias confinadas nos campos judeus portadores de doenças representantes das classes agonizantes perdessem a capacidade de cometer quaisquer atos normais ou criminosos Do ponto de vista da propaganda essa custódia protetora era apresentada como medida policial preventiva140 isto é medida que tira das pessoas a capacidade de agir As exceções a essa regra na Rússia devem ser atribuídas à calamitosa escassez de prisões e a um desejo até agora não realizado de transformar todo o sistema penal num sistema de campos de concentração141 A inclusão de criminosos a que acabamos de aludir é necessária para emprestar credibilidade à alegação propagandística do movimento de que 140 Maunz op cit p 50 insiste em que os criminosos nunca deviam ser mandados para os campos para cumprimento das sentenças regulares 141 A escassez de prisões na Rússia era tal que no ano de 19256 somente 36 das sentenças puderam ser cumpridas Ver Dallin op cit p 158 ss 498 a instituição existe para abrigar elementos fora da sociedade142 Os criminosos não deveriam estar em campos de concentração porque é mais difícil matar a pessoa jurídica de um homem culpado por algum crime do que a de um outro totalmente inocente O fato de constituírem categoria permanente entre os internos é uma concessão do Estado totalitário aos preconceitos da sociedade que assim pode habituarse mais facilmente à existência dos campos Por outro lado para não alterar o sistema de campos é essencial enquanto exista no país um sistema penal que os criminosos somente sejam enviados para lá depois de haverem completado a sentença isto é quando de fato já têm direito à liberdade Em hipótese alguma deve o campo de concentração transformarse em castigo previsível para um crime definido Misturar criminosos às outras categorias de presos tem além disso a vantagem de tornar chocantemente evidente a todos os outros internos o fato de que atingiram o mais baixo nível social E na verdade estes logo perceberão que não lhes faltam motivos para invejar o mais vil ladrão ou assassino mas no início parecia o nível mais baixo um bom começo Ademais tratavase de eficiente meio de camuflagem isso só acontece a criminosos e não está acontecendo nada pior do que os criminosos merecem Os criminosos constituem a aristocracia de todos os campos Na Alemanha durante a guerra foram substituídos na liderança dos campos pelos presos comunistas pois as caóticas condições criadas por uma administração de criminosos não permitiam a realização sequer de uma transformação temporária na época em que o andamento da guerra o exigia Tratavase porém apenas de uma transformação temporária dos campos de concentração em campos de trabalho forçado fenômeno inteiramente atípico e de curta duração143 O que leva os criminosos à liderança não é tanto a sua afinidade com o pessoal da supervisão na União Soviética aparentemente os supervisores não são como a SS uma elite especial treinada para cometer crimes144 quanto o fato de que somente os criminosos são mandados para o campo em virtude de alguma atividade definida Eles pelo menos sabem por que estão num campo de concentração e portanto conservam ainda um resíduo da perso 142 A Gestapo é a SS sempre deram grande importância ao fato de se misturarem as categorias dos internos nos campos Em nenhum campo os internos pertenciam exclusivamente a uma categoria Kogon op cit p 19 Na Rússia sempre se costumou misturar prisioneiros políticos e criminosos Durante os primeiros dez anos de poder soviético os grupos políticos da Esquerda gozavam de certos privilégios contudo o pleno desenvolvimento do caráter totalitário do regime mudou a situação e após a década de 20 os prisioneiros políticos passaram a ser tratados como inferiores aos criminosos comuns mesmo oficialmente Dallin op cit p 177 ss 14S O livro de Rousset peca por seu exagero da influência dos comunistas alemães que dominavam a administração interna de Buchenwald durante a guerra 144 Ver por exemplo o testemunho da sra BuberNeumann exesposa do comunista alemão Heinz Neumann que sobreviveu aos campos de concentração soviéticos e alemães Os russos nunca se mostravam tão sádicos quanto os nazistas Nossos guardas russos eram homens decentes e não sádicos mas satisfaziam fielmente as necessidades daquele desumano sistema Under two dictators 499 nalidade jurídica Para os criminosos políticos isso é apenas subjetivamente verdadeiro seus atos enquanto atos e não meras opiniões ou vagas suspeitas de terceiros ou a participação acidental num grupo politicamente condenado geralmente não são previstos no sistema legal do país nem juridicamente definidos145 à mistura de políticos e criminosos com que os campos de concentração da Rússia e da Alemanha iniciaram a sua carreira foi logo acrescentado um terceiro elemento que em breve iria constituir a maioria dos internos dos campos de concentração Desde então esse grupo mais amplo tem consistido em pessoas que absolutamente nada fizeram que tivesse alguma ligação racional com o fato de terem sido presas nem em sua consciência nem na consciência dos seus atormentadores Na Alemanha a partir de 1938 esse componente era representado por judeus na Rússia por qualquer grupo que por motivos que nada tinham a ver com os seus atos havia incorrido no desagrado das autoridades Esses grupos inocentes em todos os sentidos prestam se melhor a experiências radicais de privação de direitos e destruição da pessoa jurídica e são portanto em qualidade e quantidade a categoria mais essencial da população dos campos princípio que teve a sua aplicação mais ampla nas câmaras de gás que pelo menos por sua enorme capacidade não podiam destinarse a casos individuais mas a grandes números de pessoas A esse respeito o seguinte diálogo espelha a situação do indivíduo Para que servem essas câmaras de gás E para que é que você nasceu146 Esse terceiro grupo dos totalmente inocentes é o que sempre leva a pior nos campos Certos criminosos e políticos são incorporados a essa categoria destituídos da distinção protetora de haverem feito alguma coisa ficam completamente expostos à arbitrariedade O objetivo final parcialmente conseguido na União Soviética e claramente visível nas últimas fases do terror nazista é que toda a população dos campos seja composta dessa categoria de pessoas inocentes Em contraste com o completo acaso com que os internos são escolhidos existem as categorias inexpressivas em si mas úteis do ponto de vista organizacional em que geralmente são divididos por ocasião da chegada Nos campos alemães essas categorias eram os criminosos os políticos os elementos antisociais os infratores religiosos e os judeus cada uma com a sua insígnia diferente Quando os franceses criaram campos de concentração depois da Guerra Civil Espanhola adotaram imediatamente o método totalitário de misturar políticos com criminosos e inocentes no caso os apátridas e a despeito da sua inexperiência mostraramse extraordinariamente inventivos na criação de categorias inexpressivas de internos147 Originalmente destinada a evitar qualquer 145 Bruno Bettelheim Behavior in extreme situations no Journal of Abnormal and social psycology vol XXXVIII n 4 1943 descreve a vaidade dos criminosos e prisioneiros políticos comparada com a atitude dos que não haviam feito nada Estes eram menos capazes de suportar o choque inicial os primeiros a se desintegrar Bettelheim atribui isso à sua origem na classe média 146 Rousset op citp 71 147 Quanto às condições nos campos de concentração franceses ver Arthur Koestler Scum oftheearth 1941 500 solidariedade entre os internos essa técnica demonstrouse particularmente valiosa pois ninguém podia saber se a categoria a que pertencia era melhor ou pior que as outras embora na Alemanha os judeus fossem em toda e qualquer circunstância a categoria mais baixa O aspecto grotesco de tudo isso é que internos se identificavam com as categorias que lhes eram imputadas como se elas fossem o último vestígio autêntico da sua pessoa jurídica Não é de se admirar que em 1933 um comunista saísse dos campos mais comunista do que antes um judeu mais judeu e na França a esposa de um legionário mais convencida do valor da Legião Estrangeira como se as categorias a que pertenciam lhes acenassem com o último vislumbre de tratamento previsível como se representassem uma identidade jurídica derradeira e portanto fundamental A divisão de presos em categorias é apenas uma medida tática organizacional mas a seleção arbitrária das vítimas indica o princípio essencial da instituição dos campos Se esses campos dependessem da existência de adversários políticos não poderiam ter sobrevivido aos primeiros anos dos regimes totalitários Basta consultar o número de internos de Buchenwald depois de 1936 para compreender como os inocentes eram necessários para manter a continuidade dos campos Os campos teriam desaparecido se ao prender gente a Gestapo houvesse levado em conta somente a oposição148 e em fins de 1937 Buchenwald com menos de mil internos estava para desaparecer quando os pogroms de novembro trouxeram um reforço de mais de 20 mil deportados149 Na Alemanha esse componente de inocentes foi proporcionado em vastos números pelos judeus desde 1938 na Rússia eram grupos aleatórios da população que por alguma razão completamente alheia ao que haviam feito tinham caído em desgraça150 Mas se na Alemanha o tipo realmente totalitário de campo de concentração com a sua vasta maioria de internos completamente inocentes não foi estabelecido antes de 1938 na Rússia data de começos da década de 30 pois até 1930 a maioria da população dos campos ainda consistia em criminosos contrarevolucionários e presos políticos que nesse caso eram em geral comunistas membros das facções dissidentes Desde então tem havido tantos inocentes nos campos que é difícil classificálos pessoas que mantinham algum tipo de contato com algum país estrangeiro russos de origem polonesa particularmente entre 1936 e 1938 camponeses cujas aldeias por alguma razão econômica foram liquidadas nacionalidades inteiras deportadas soldados desmobilizados do Exército Vermelho que por acaso pertenciam a regimentos que haviam passado uma temporada longa demais como forças de ocupação ou haviam sido prisioneiros de guerra na Alemanha etc Mas a existência de 148 Kogon op cit p 6 149 Ver Nazi conspiracy IV pp 800 ss 150 Beck e Godin op cit dizem explicitamente que os opositores políticos constituíam apenas uma proporção relativamente pequena da população das prisões russas p 87 e que não havia qualquer relação entre a prisão de uma pessoa e algum crime p 95 501 oposição política é para o sistema de campos de concentração apenas um pretexto a finalidade do sistema não é atingida nem mesmo quando sob o mais monstruoso terror a população se torna mais ou menos voluntariamente coordenada isto é desiste de seus direitos políticos O fim do sistema arbitrário é destruir os direitos civis de toda a população que se vê afinal tão fora da lei em seu próprio país como os apátridas e os refugiados A destruição dos direitos de um homem a morte da sua pessoa jurídica é a condição primordial para que seja inteiramente dominado E isso não se aplica apenas àquelas categorias especiais como os criminosos os oponentes políticos os judeus os homossexuais com os quais se fizeram as primeiras experiências mas a qualquer habitante do Estado totalitário O livre consentimento é um obstáculo ao domínio total como o é a livre oposição151 A prisão arbitrária que escolhe pessoas inocentes destrói a validade do livre consentimento da mesma forma como a tortura em contraposição à morte destrói a possibilidade da oposição Qualquer limitação dessa perseguição arbitrária a certas opiniões de natureza religiosa ou política a certas formas de comportamento social intelectual ou sexual a certos crimes recéminventados tornaria os campos supérfluos porque a longo prazo nenhuma atitude e nenhuma opinião resistem à ameaça de tanto horror e acima de tudo criaria um novo sistema de justiça que com alguma estabilidade produziria inevitavelmente no homem uma nova pessoa jurídica a furtarse ao domínio totalitário Os chamados Volksnutzen necessidades do povo dos nazistas que mudavam constantemente porque o que é útil hoje pode ser nocivo amanhã e a eternamente variável linha partidária da União Soviética que sendo retrospectiva quase diariamente traça a novos grupos de pessoas o caminho para os campos de concentração são a única segurança da existência contínua dos campos e portanto da contínua e total privação dos direitos do homem O pxóximo passo decisivo do preparo de cadáveres vivos é matar a pessoa moral do homem Isso se consegue principalmente tornando impossível pela primeira vez na história o surgimento da condição de mártir Quantos aqui ainda acreditam que um protesto tenha mesmo algum valor histórico Este ceticismo é a verdadeira obraprima da SS Sua grande realização Corromperam toda a solidariedade humana A noite caiu sobre o futuro Quando não há testemunhas não pode haver testemunho Dizer quando a morte já não pode ser adiada é uma tentativa de dar à morte um significado de agir mesmo depois da morte Para ser bemsucedido um gesto deve ter significação social Somos 151 Bruno Bettelheim On Dachau and Buchenwald ao discutir o fato de que a maioria dos prisioneiros terminava por aceitar os valores da Gestapo acentua que isso não era o resultado da propaganda A Gestapo insistia em que de qualquer modo impediria que eles expressassem os seus sentimentos pp 8345 Himmler proibiu explicitamente qualquer tipo de propaganda nos campos A instrução consiste em disciplina não em qualquer tipo de doutrinação ideológica Sobre a organização e obrigação da SS e da polícia em Nationalpolitischer Lehrgang der Wehrmacht 1937 Citado em Nazi canspiracy IV 616 ss 502 aqui centenas de milhares todos na mais absoluta solidão É por isso que somos submissos aconteça o que acontecer152 Os campos e a matança de adversários políticos são apenas facetas do esquecimento sistemático em que se mergulham não apenas os veículos da opinião pública como a palavra escrita e falada mas até as famílias e os amigos das vítimas Ajior e a recordação são proibidas Na União Soviética uma esposa pede divórcio assim que o marido é preso para salvar a vida dos filhos se ele por acaso retorna ela o expulsa de casa indignada153 Mesmo envseus períodos mais negros mundo ocidental deu sempre ao inimigo morto o direito de ser lembrado num reconhecimento evidente de que todos somos homensB apenas homens Até mesmo Aquiles providenciou os funerais de Heitor os governos mais despóticos honraram o inimigo morto os romanos permitiam que os cristãos escrevessem martirológios a Igreja manteve os seus hereges vivos na memória dos homens e por isso somente por isso tudo não foi em vão e jamais poderia ter sido em vão Os campos de concentração tornando anônima a própria morte e tornando impossível saber se um prisioneiro está vivo ou morto roubaram da morte o significado de desfecho de uma vida realizada Em certo sentido roubaram a própria morte do indivíduo provando que doravante nada nem a morte lhe pertencia e que ele não pertencia a ninguém A morte apenas selava o fato de que ele jamais havia existido A consciência do homem que lhe diz que é melhor morrer como vítima do que viver como burocrata do homicídio poderia ainda terse oposto a esse ataque contra a pessoa moral O mais terrível triunfo do terror totalitário foi evitar que a pessoa moral pudesse refugiarse no individualismo e tornar as decisões da consciência questionáveis e equívocas Ante a alternativa de trair e assim matar os seus amigos de mandar para a morte a esposa e os filhos pelos quais é em todos os sentidos responsável quando até mesmo o suicídio significaria a matança imediata da sua família como deve um homem decidir A alternativa já não é entre o bem e o mal mas entre matar e matar Quem poderia resolver o dilema moral daquela mãe grega a quem os nazistas permitiram escolher um dos seus três filhos para ser morto154 Pela criação jeçoadjyftBs errugire a consciência deixa de ser adequada e fazer cTbem se torna inteiramente impossível a cumplicidade conscientemente organizada de todos os homens nos crimes dos regimes totalitários é estendida às vítimas e assim tornase realmente total Os homens da SS implicavam os internos dos campos de concentração criminosos políticos judeus em seus crimes tornandoos responsáveis por grande parte da administração e confrontandoos assim com o desesperado dilema de mandarem os seus amigos pata a morte ou ajudarem a matar outros homens que lhes eram estranhos 152 Rousset op cit p 464 153 Ver o relato de Sergei Malakhov em Dallin op cit pp 20 ss 154 Ver AlbertCamusem7Wiceajear 1947 503 forçandoos num caso e no outro a agirem como assassinos155 Não apenas o ódio era desviado dos que tinham culpa os capos presos colaboracionistas eram mais odiados que os homens da SS mas também desaparecia a linha divisória entre o perseguidor e o perseguido entre o assassino e a vítima156 Morta a pessoa moral a única coisa que ainda impede que os homens se transformem em mortosvivos é a diferença individual a identidade única do indivíduo Sob certa forma estéril essa individualidade pode ser conservada por um estoicismo persistente e sabemos que muitos homens em regimes totalitários se refugiaram e ainda se refugiam diariamente nesse absoluto isolamento de uma personalidade sem direitos e sem consciência Sem dúvida essa parte da pessoa humana precisamente por depender tão essencialmente da natureza e de forças que não podem ser controladas pela vontade alheia é a mais difícil de destruir e quando destruída é a mais fácil de restaurar157 As maneiras de lidar com essa singularidade da pessoa humana são muitas e não tentaremos arrolálas Começam com as monstruosas condições dos transportes a caminho do campo onde centenas de seres humanos amontoamse num vagão de gado completamente nus colados uns aos outros e são transportados de uma estação para outra de desvio a desvio dia após dia continuam quando chegam ao campo o choque bem organizado das primeiras horas a raspagem dos cabelos as grotescas roupas do campo e terminam nas torturas inteiramente inimagináveis dosadas de modo a não matar o corpo ou pelo menos não matálo rapidamente O objetivo desses métodos em qualquer caso éLmanipular o corpo humano com as suas infinitas possibilidades de dor de forma a fazêlo destruir a pessoa humana tão inexoravelmente como certas doenças mentais de origem orgânica É aqui que a completa sandice de todo o processo se torna mais evidente É verdade que a tortura é parte essencial de toda polícia totalitária e do seu aparelho judiciário é usada diariamente para fazer com que as pessoas falem Esse tipo de tortura de objetivo definido e racional tem certos limites ou o prisioneiro fala dentro de certo tempo ou matamno A essa tortura racionalmente aplicada ajuntouse outro tipo irracional e sádico nos primeiros campos de concentração nazistas e nos porões da Gestapo Administrada geralmente pela SA não tinha quaisquer objetivos nem sistema mas dependia da iniciativa de elementos geralmente anormais A mortalidade era tão alta que somente uns poucos internos dos campos de concentração de 1933 sobreviveram a esses pri 155 Grande parte do livro de Rousset op cit ocupase das discussões desse dilema pelos prisioneiros 156 Bettelheim op cit descreve o processo pelo qual os guardas bem como os prisioneiros ficavam condicionados pela vida do campo e receavam voltar para o mundo exterior Rousset portanto tem razão quando insiste em que a verdade é que tanto a vítima como o carrasco são ignóbeis a lição dos campos é a irmandade da abjecão p 588 157 Bettelheim op cit descreve como a principal preocupação dos novos prisioneiros parecia ser a de se conservarem intactos como personalidade enquanto o problema dos prisioneiros antigos era como viver da melhor maneira possível dentro do campo 504 meiros anos Esse tipo de tortura parecia ser menos uma instituição política calculada que uma concessão do regime aos seus partidários criminosos e anormais dessa forma recompensados pelos serviços prestados Atrás da cega bestialidade da SA havia muitas vezes um profundo ódio e ressentimento contra os que eram social intelectual ou fisicamente melhores que eles e que estavam agora à sua mercê como numa realização dos seus mais loucos sonhos Esse ressentimento que nunca chegou a desaparecer inteiramente dos campos parecenos o derradeiro vestígio de um sentimento humanamente compreensível158 O verdadeiro horror porém começou quando a SS tomou a seu cargo a administração dos campos A antiga bestialidade espontânea cedeu lugar à destruição absolutamente fria e sistemática de corpos humanos calculada para aniquilar a dignidade humana Os campos já não eram parques de diversões de animais sob forma humana isto é de homens que realmente deveriam estar no hospício ou na prisão agora eram campos de treinamento onde homens perfeitamente normais eram treinados para tornaremse perfeitos membros da SS159 158 Rousset op cit p 390 conta como um homem da SS disse a um professor Antigamente você era professor Agora não é mais professor de coisa alguma Já não é nenhum mandachuva Agora você é um nanico o mandachuva agora sou eu 159 Kogon op cit p 6 menciona a possibilidade de que os campos seriam mantidos como áreas de experimentação e de treinamento para a SS Faz também um bom relato da diferença entre os antigos campos administrados pela SA e os posteriores sob a chefia da SS Nenhum desses primeiros campos tinha mais que mil internos Neles as condições de vida estavam além de qualquer descrição As narrativas dos poucos antigos prisioneiros que sobreviveram a esses anos concordam quanto ao fato de que não existia nenhuma forma de perversão sádica que não fosse praticada pelos homens da SA Mas eram atos de bestialidade individual ainda não inteiramente organizados num sistema frio que compreendia multidões de homens Quem conseguiu isto foi a SSp7 O novo sistema mecanizado procurava atenuar o sentimento de responsabilidade na medida do humanamente possível Quando por exemplo veio a ordem de matar a cada dia varias centenas de prisioneiros russos a matança era feita atirandose através de um furo para que não se visse a vítima Ver Ernst Feder Essai sur Ia psychologie de Ia terreur em Synthèses Bruxelas 1946 Por outro lado homens normais eram levados artificialmente à perversão Rousset conta que um guarda da SS lhe disse Geralmente eu continuo a bater até ejacular Tenho uma esposa e três filhos em Breslau Antes eu era perfeitamente normal Foi isto o que eles fizeram de mim Agora quando tenho minha folga não vou para casa Não ouso olhar de frente para a minha mulher p 273 Os documentos da era nazista contêm numerosos testemunhos quanto à normalidade média dos que eram encarregados de levar a cabo o programa de extermínio de Hitler Uma boa coleção se encontra em The weapon of antisemitism de Léon Poliakov publicado pela UNESCO em The Third Reich Londres 1955 A maioria dos homens que compunham as unidades usadas para esses fins não eram voluntários eram policiais comuns convocados para essas tarefas especiais Mas até mesmq os experimentados homens da SS consideravam esse serviço pior do que a luta no front Relatando uma execução em massa levada a efeito por membros da SS uma testemunha ocular louvalhes o idealismo que era tão grande que eles puderam exterminar a todos sem precisar recorrer à bebida O desejo de eliminar todos os motivos e paixões pessoais durante os extermínios e portanto de reduzir a crueldade a um mínimo é revelado pelo fato de que um grupo de médicos e engenheiros encarregados das instalações de gás estava sempre fazendo melhoramentos que vi 505 O ato de matar a individualidade do homem de destruir a sua singularidade fruto da natureza da vontade e do destino a qual tornouse uma premissa tão autoevidente para todas as relações humanas que até mesmo gêmeos idênticos inspiram certa inquietude cria um horror que de longe ultrapassa a ofensa da pessoa políticojurídica e o desespero da pessoa moral É esse horror que dá azo às generalizações niilistas que afirmam com certa plausibilidade que todos os homens são essencialmente animais 16 A experiência dos campos de concentração demonstra realmente que os seres humanos podem transformar se em espécimes do animal humano e que a natureza do homem só é humana na medida em que dá ao homem a possibilidade de tornarse algo eminentemente nãonatural isto é um homem Depois da morte da pessoa moral e da aniquilação da pessoa jurídica a destruição da individualidade é quase sempre bemsucedida É possível que se descubram leis da psicologia de massa que expliquem por que milhões de seres humanos se deixaram levar sem resistência às câmaras de gás embora essas leis nada venham a explicar senão a destruição da individualidade Mais importante é o fato de que os que eram condenados individualmente quase nunca tentavam levar consigo um dos seus carrascos de que raramente havia uma revolta séria e de que mesmo no momento da libertação houve poucos massacres espontâneos de homens da SS Porque destruir a individualidade é destruir a espontaneidade a capacidade do homem de iniciar algo novo com os seus próprios recursos algo que não possa ser explicado à base de reação ao ambiente e aos fatosi61 Morta a individualidade nada resta senão horríveis marionetes com rostos de homem todas com o mesmo comportamento do cão de Pavlov todas reagindo com perfeita previsibilidade mesmo quando marcham para a morte Esse é o verdadeiro triunfo dcTsistema O triunfo da SS exige que a vítima torturada se deixe levar à forca sem protestos que renuncie e se entregue ao ponto de deixar de afirmar a sua identidade Não é gratuitamente nem por mero sadismo que os homens da SS desejam a sua submissão Sabem que o sistema que consegue destruir a vítima antes que ela suba ao patíbulo é sem dúvida o melhor para manter um povo inteiro na escravidão na submissão Nada é mais terrível que essas procissões de seres humanos que vão savam não só a aumentar a capacidade produtiva das fábricas de cadáveres mas também a acelerar e atenuar a agonia da morte 160 Isso está bem claro no livro de Rousset As condições sociais da vida nos campos transformaram as grandes massas de internos tanto alemães como deportados independentemente de sua antiga educação ou posição social numa turba degenerada inteiramente submissa aos reflexos primitivos do instinto animal p 183 161 Nesse contexto há também a surpreendente raridade dos suicídios nos campos Os suicídios ocorriam com muito maior freqüência entre a prisão e a deportação do que no próprio campo fato que naturalmente se explica pelos cuidados e providências tomados para evitálos uma vez que o suicídio é um ato espontâneo Segundo estatísticas de Buchenwald Nazi conspiracy IV 800 ss menos de 05 das mortes eram atribuídas ao suicídio muitas vezes havia apenas dois suicídios por ano embora o número total de mortes atingisse 3 516 no mesmo ano Os relatórios dos campos russos mencionam o mesmo fenômeno Cf por exemplo Starlinger op cit p 57 506 para a morte como fantoches Quem vê isso diz consigo mesmo Para que tenham ficado subjugados desse modo que poder deve estar oculto nas mãos dos dirigentes e vira as costas cheio de impotente amargura mas derrotado162 Se levarmos a sério as aspirações totalitárias e não nos deixarmos iludir pela sensata afirmação de que são utópicas e irrealizáveis veremos que a sociedade dos que estão prestes a morrer criada nos campos é a única forma de sociedade em que é possível dominar o homem completamente Quem aspira ao domínio total deve liquidar no homem toda a espontaneidade produto da existência da individualidade e perseguila em suas formas mais peculiares por mais apolíticas e inocentes que sejam O cão de Pavlov o espécime humano reduzido às reações mais elementares o feixe de reações que sempre pode ser liquidado e substituído por outros feixes de reações de comportamento exatamente igual é o cidadão modelo do Estado totalitário e esse cidadão não pode ser produzido de maneira perfeita a não ser nos campos de concentração É apenas aparente a inutilidade dos campos sua antiutilidade cinicamente confessada Na verdade nenhuma outra de suas instituições é mais essencial para preservar o poder do regime Sem os campos de concentração sem o medo indefinido que inspiram e sem o treinamento muito definido que oferecem em matéria de domínio totalitário que em nenhuma outra parte pode ser inteiramente testado em todas as suas mais radicais possibilidades o Estado totalitário não pode inspirar o fanatismo das suas tropas nem manter um povo inteiro em completa apatia Dominador e dominados voltariam logo facilmente à velha rotina burguesa após alguns primeiros excessos sucumbiriam à vida de cada dia e às leis humanas enfim marchariam na direção que todos os observadores aconselhados pelo bom senso previram tantas vezes O engano trágico dessas profecias provenientes de um mundo que ainda vivia em segurança foi supor a existência de uma natureza humana que era imutável através dos tempos identificar essa natureza humana com a história e assim declarar que a idéia de domínio total era não apenas desumana como irrealista De lá para cá aprendemos que o poder do homem é tão grande que ele realmente pode vir a ser o que o homem desejar É da própria natureza dos regimes totalitários exigir o poder ilimitado Esse poder só é conseguido se literalmente todos os homens sem exceção forem totalmente dominados em todos os aspectos da vida No reino das relações exteriores novos territórios devem ser constantemente subjugados enquanto no país de origem grupos humanos sempre novos devem ser dominados em campos de concentração cada vez maiores ou quando necessário liquidados para ceder lugar a outros O problema da oposição não tem importância nem em assuntos domésticos nem em assuntos externos Qualquer neutralidade e mesmo qualquer amizade oferecida espontaneamente é tão perigosa quanto a franca hostilidade exatamente porque a espontaneidade em si com a sua imprevisibilidade é o maior de todos os obstáculos para o domínio total do homem Os 162 Rousset op cit p 525 507 comunistas dos países nãocomunistas que fugiram ou foram chamados para Moscou tiveram a amarga experiência de aprender que constituíam uma ameaça à União Soviética Nesse sentido os comunistas convictos são tão ridículos e perigosos para o regime da Rússia como por exemplo os nazistas convictos da facção de Rohm o foram para os nazistas O que torna a convicção e a opinião de qualquer espécie tão ridículas e perigosas nas condições totalitárias é que os regimes totalitários orgulhamse de não precisarem delas como dispensam qualquer tipo de auxílio humano Os homens na medida em que são mais que simples reações animais e realização de funções são inteiramente supérfluos para os regimes totalitários O totalitarismo não procura o domínio despótico dos homens mas sim um sistema em que os homens sejam supérfluos O poder total só pode ser conseguido e conservado num mundo de reflexos condicionados de marionetes sem o mais leve traço de espontaneidade Exatamente porque os recursos do homem são tão grandes só se pode dominálo inteiramente quando ele se torna um exemplar da espécie animal humana Portanto o caráter pode ser uma ameaça e até mesmo as normas legais mais injustas podem ser um obstáculo mas a individualidade ou qualquer outra coisa que distinga um homem do outro é intolerável Enquanto todos os homens não séiornam igualmente supérfluos e isso só se consegue nos campos de concentração o ideal do domínio totalitário não é atingido Os Estados totalitários procuram constantemente embora nunca com pleno sucesso demonstrar a superfluidade do homem pela arbitrária escolha de vários grupos para os campos de concentração pelos constantes expurgos do aparelho do governo pelas liquidações em massa O bom senso grita desesperadamente mas em vão que as massas são submissas e que todo esse gigantesco aparelho de terror é portanto supérfluo se fossem capazes de dizer a verdade os governantes totalitários responderiam o aparelho parece supérfluo unicamente porque serve para tornar os homens supérfluos A tentativa totalitária de tornar supérfluos os homens reflete a sensação de superfluidade das massas modernas numa terra superpovoada O mundo dos agonizantes no qual os homens aprendem que são supérfluos através de um modo de vida em que o castigo nada tem a ver com o crime em que a exploração é praticada sem lucro e em que o trabalho é realizado sem proveito é um lugar onde a insensatez é diariamente renovada No entanto na estrutura da ideologia totalitária nada poderia ser mais sensato e lógico Se os presos são insetos daninhos é lógico que sejam exterminados por meio de gás venenoso se são degenerados não se deve permitir que contaminem a população se têm almas escravas Himmler ninguém deve perder tempo tentando reeducálos Vistos através do prisma da ideologia os campos parecem até ser lógicos demais Enquanto os regimes totalitários vão assim resoluta e cinicamente esvaziando o mundo da única coisa que faz sentido para a expectativa utilitária do 508 bom senso impõemlhe ao mesmo tempo uma espécie de supersentido que na verdade as ideologias sempre insinuaram quando pretenderam haver encontrado a chave da história ou a solução para os enigmas do universo Acima da insensatez da sociedade totalitária entronase o ridículo supersentido Ha sua superstição ideológica As ideologias somente são opiniões inócuas arbitrárias e destituídas de crítica enquanto não se as leva a sério Uma vez que se lhes toma literalmente a pretensão de validade total tornamse núcleos de sistemas de lógica nos quais como nos sistemas dos paranóicos tudo se segue compreensiva e até mesmo compulsoriamente uma vez que se aceita a primeira premissa A insanidade desses sistemas reside não apenas na primeira premissa mas na própria lógica em que se baseiam A curiosa lógica de todos os ismos sua simplória confiança no valor salvador da devoção obstinada que não atende a fatores específicos e variados já contém os primeiros germes do desprezo à realidades e aos fatos próprios do totalitarismo O bom senso treinado no pensamento utilitário é impotente contra esse supersentido ideológico pois os regimes totalitários criam um mundo demente que funciona O desprezo ideológico pelos fatos ainda continha o orgulhoso pressuposto do domínio do homem sobre o mundo é afinal o desprezo àjealidade que torna possível mudar o mundo construir o artifício humano O que amrta o elemento de orgulho no desprezo totalitário pela realidade e assim o distingue radicalmente das teorias e atitudes revolucionárias é o supersentido que dá a esse desprezo a sua irrefutabilidade a sua lógica e consistência A afirmação bolchevista de que o sistema soviético é superior a todos os outros tornase expediente realmente totalitário pelo fato de que o governante totalitário tira dessa afirmação a conclusão logicamente impecável de que sem esse sistema os homens jamais poderiam ter construído uma coisa maravilhosa como digamos um metrô daí novamente tira a conclusão lógica de que qualquer pessoa que saiba que existe um metrô em Paris é suspeita porque pode fazer com que as outras duvidem de que as coisas só podem ser feitas à maneira bolchevista Isso leva à conclusão final de que para que um bolchevista se conserve leal tem de destruir o metrô de Paris Nada importa a não ser a coerência Com essas novas estruturas constituídas à força do supersentido e impulsionadas pelo motor da lógica chegamos realmente ao fim da era burguesa dos lucros e do poder assim como ao fim do imperialismo e da expansão A agressividade do totalitarismo não advém do desejo do poder e se tenta expandirse febrilmente não é por amor à expansão e ao lucro mas apenas por motivos ideológicos para tornar o mundo coerente para provar que o seu supersentido estava certo É principalmenteem benefício desse supersentido em benefício da completa coerência que se torna necessário ao totalitarismo destruir todos os vestígios do que comumente chamamos de dignidade humana Pois o respeito à dignidade humana implica o reconhecimento de todos os homens ou de todas as nações como entidades como construtores de mundos ou coautores de um mundo comum Nenhuma ideologia que vise à explicação de todos os eventos históricos do passado e o planejamento de todos os eventos futuros pode sugor A 509 tar a imprevisibilidade que advém do fato de que os homens são criativos de que podem produzir algo novo que ninguém jamais previu O que as ideologias totalitárias visam portanto não é a transformação do mundo exterior ou a transmutação revolucionária da sociedade mas a transformação da própria natureza humana Os campos de concentração constituem os laboratórios onde mudanças na natureza humana são testadas e portanto a infâmia não atinge apenas os presos e aqueles que os administram segundo critérios estritamente científicos atinge a todos os homens A questão não está no sofrimento do qual sempre houve demasiado na terra nem no numero de vítimas O que está em jogo é a natureza humana em si e embora pareça que essas experiências não conseguem mudar o homem mas apenas destruílo criando uma sociedade na qual a banalidade niilística do homo homini lúpus é consistentemente realizada é preciso não esquecer as necessárias limitações de uma experiência que exige controle global para mostrar resultados conclusivos Até agora a crença totalitária de que tudo é possível parece ter provado apenas que tudo pode ser destruído Não obstante em seu afã de provar que tudo é possível os regimes totalitários descobriram sem o saber que existem crimes que os homens não podem punir nem perdoar Ao tornarse possível o impossível passou a ser o mal absoluto impunível e imperdoável que já não podia ser compreendido nem explicado pelos motivos malignos do egoísmo da ganância da cobiça do ressentimento do desejo do poder e da covardia e que portanto a ira não podia vingar o amor não podia suportar a amizade não podia perdoar Do mesmo modo como as vítimas nas fábricas da morte ou nos poços do esquecimento já não são humanas aos olhos de seus carrascos também essa novíssima espécie de criminosos situase além dos limites da própria solidariedade do pecado humano É inerente a toda a nossa tradição filosófica que não possamos conceber um mal radical e isso se aplica tanto à teologia cristã que concedeu ao próprio Diabo uma origem celestial como a Kant o único filósofo que pela denominação que lhe deu ao menos deve ter suspeitado de que esse mal existia embora logo o racionalizasse no conceito de um rancor pervertido que podia ser explicado por motivos compreensíveis Assim não temos onde buscar apoio quanto na de todos os outros e os assassinos totalitários são os mais perigosos porque não se importam se estão vivos ou morots se jamais viveram ou se uma coisa parece discernível podemos dizer que esse mal radical surgiu em relação a um sistema no qual todos os homens se tornaram igualmente supérfluos Os que manipulam esse sistema acreditam na própria superfluidade tanto quanto na de todos os outros e os assassinos totalitários são os mais perigosos porque não se importavam se estão vivos ou mortos se jamais viveram ou se nunca nasceram O perigo das fábricas de cadáveres e dos poços do esquecimento é que hoje com o aumento universal das populações e dos desterrados grandes massas de pessoas constantemente se tornam supérfluas se continuamos a pensar em nosso mundo em termos utilitários Os acontecimentos políticos sociais e econômicos de toda parte conspiram silenciosamente com os instrumentos totalitários inventados para tornar os homens supérfluos O bom 510 senso utilitário das massas que na maioria dos países estão demasiado desesperadas para ter muito medo da morte compreende muito bem a tentação a que isso pode levar Os nazistas e bolchevistas podem estar certos de que as suas fábricas de extermínio que demonstram a solução mais rápida do problema do excesso de população das massas economicamente supérfluas e socialmente sem raízes são ao mesmo tempo uma atração e uma advertência As soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários sob a forma de forte tentação que surgirá sempre que pareça impossível aliviar a miséria política social ou econômica de um modo digno do homem 511 4 IDEOLOGIA E TERROR UMA NOVA FORMA DE GOVERNO Nos capítulos precedentes reiteramos o fato de que os métodos do domínio total não são apenas mais drásticos mas que o totalitarismo difere essencialmente de outras formas de opressão política que conhecemos como o despotismo a tirania e a ditadura Sempre que galgou o poder o totalitarismo criou instituições políticas inteiramente novas e destruiu todas as tradições sociais legais e políticas do país Independentemente da tradição especificamente nacional ou da fonte espiritual particular da sua ideologia o governo totalitário sempre4Fansformou as classes em massas substituiu o sistema partidário não por ditaduras unipartidárias mas por um movimento de massa transferiu o centro do poder do Exército para a polícia e estabeleceu uma política exterior que visava abertamente ao domínio mundial Os governos totalitários do nosso tempo evoluíram a partir de sistemas unipartidários sempre que estes se tornavam realmente totalitários passavam a operar segundo um sistema de valores tão radicalmente diferente de todos os outros que nenhuma das nossas tradicionais categorias utilitárias legais morais lógicas ou de bom senso podia mais nos ajudar a aceitar julgar ou prever o seu curso de ação Se é verdade que podemos encontrar os elementos do totalitarismo se repassarmos a história e analisarmos as implicações políticas daquilo que geralmente chamamos de crise do nosso século chegaremos à conclusão inelutável de que essa crise não é nenhuma ameaça de fora nenhuma conseqüência de alguma política exterior agressiva da Alemanha ou da Rússia e que não desaparecerá com a morte de Stálin como não desapareceu com a queda da Alemanha nazista Pode ser até que os verdadeiros transes do nosso tempo somente venham a assumir a sua forma autêntica embora não necessariamente a mais cruel quando o totalitarismo pertencer ao passado Com relação a estas reflexões podemos indagar se o governo totalitário nascido dessa crise e ao mesmo tempo o seu mais claro sintoma o único inequívoco é apenas um arranjo improvisado que adota os métodos de intimidação os meios de organização e os instrumentos de violência do conhecido arsenal político da tirania do despotismo e das ditaduras e deve a sua existência 512 apenas ao fracasso deplorável mas talvez acidental das tradicionais forças políticas liberais ou conservadoras nacionais ou socialistas republicanas ou monarquistas autoritárias ou democratas Ou se pelo contrário existe algo que se possa chamar de natureza do governo totalitário se ele tem essência própria e pode ser comparado com outras formas de governo conhecidas do pensamento ocidental e reconhecidas desde os tempos da filosofia antiga e definido como elas podem ser definidas Se a segunda suposição for verdadeira então as formas inteiramente novas e inauditas da organização e do modo de agir do totalitarismo devem ter fundamento numa das poucas experiências básicas que os homens podem realizar quando vivem juntos e se interessam por assuntos públicos Se existe uma experiência básica que encontre expressão no domínio totalitário então dada a novidade da forma totalitária de governo deve ser uma experiência que por algum motivo nunca antes havia servido como basejara uma estrutura política e cujo ânimo geral embora conhecido sob outras formas nunca antes permeou e dirigiu o tratamento das coisas públicas Em função da história das idéias isso parece extremamente improvável Pois as formas de governo sob as quais os homens vivem são muito poucas foram descobertas cedo classificadas pelos gregos e demonstraram rara longevidade Se aplicarmos esses dados cuja idéia fundamental a despeito de muitas variações não mudou nos dois milênios e meio que vão de Platão a Kant somos imediatamente tentados a interpretar o totalitarismo como forma moderna de tirania ou seja um governo sem leis no qual o poder é exercido por um só homem De um lado o poder arbitrário sem o freio das leis exercido no interesse do governante e contra os interesses dos governados e de outro o medo conjaprifleípicLda ação ou seja o medo que o povo tem pelo governante e o medo do governante pelo povo eis as marcas registradas da tirania no decorj rer de toda a nossa tradição Em vez de dizer que o governo totalitário não tem precedentes poderíamos dizer que ele destruiu a própria alternativa sobre a qual se baseiam na filosofia política todas as definições da essência dos governos isto é a alternativa entre o governo legal e o ilegal entre o poder arbitrário e o poder legítimo Nunca se pôs em dúvida que o governo legal e o poder legítimo de um lado e a ilegalidade e o poder arbitrário de outro são aparentados e inseparáveis No entanto o totalitarismo nos coloca diante de uma espécie totalmente diferente do governo É verdade que desafia todasas leis positivas mesmo ao ponto de desafiar aquelas que ele próprio estabeleceu como no caso da Constituição Soviética de 1936 para citar apenas o exemplo mais notório ou que não se deu ao trabalho de abolir como no caso da Constituição de Weimar que o governo nazista nunca revogou Mas não opera sem a orientação de uma lei nem é arbitrário pois afirma obedecer rigorosa e inequivocamente àquelas leis da Natureza ou da História que sempre acreditamos serem a origem de todas as leis A afirmação monstruosa e no entanto aparentemente irrespondível do governo totalitário é que longe de ser ilegal recorre à fonte de autoridade da qual as leis positivas recebem a sua legitimidade final que longe de ser arbi V 513 trário é mais obediente a essas forças sobrehumanas que qualquer governo jamais o foi e que longe de exercer o seu poder no interesse de um só homem está perfeitamente disposto a sacrificar os interesses vitais e imediatos de todos à execução do que supõe ser a lei da História ou a lei da Natureza O seu desafio às leis positivas pretende ser uma forma superior de legitimidade que por inspirarse nas próprias fontes pode dispensar legalidades menores A legalidade totalitária pretende haver encontrado um meio de estabelecer a lei da justiça na terra algo que a legalidade da lei positiva certamente nunca pôde conseguir A discrepância entre a legalidade e a justiça nunca pôde ser corrigida porque os critérios de certo e errado nos quais a lei positiva converte a sua fonte de autoridade a lei natural que governa todo o universo ou a lei divina revelada na história humana ou os costumes e tradições que representam a lei comum para os sentimentos de todos os homens são necessariamente gerais e devem ser válidos para um número sem conta e imprevisível de casos de sorte que cada caso individual concreto com o seu conjunto de circunstâncias irrepetíveis lhes escapa de certa forma A legitimidade totalitária desafiando a legalidade e pretendendo estabelecer diretamente o reino da justiça na terra executa a lei da História ou da Natureza sem convertêla em critérios de certo e errado que norteiem a conduta individual Aplica a lei diretamente à humanidade sem atender à conduta dos homens Espera que a lei da Natureza ou a lei da História devidamente executada engendre a humanidade como produto final essa esperança que está por trás da pretensão de governo global é acalentada por todos os governos totalitários A política totalitária afirma transformar a espécie humana em portadora ativa e inquebrantável de uma lei à qual os seres humanos somente passiva e relutantemente se submeteriam Se é verdade que os monstruosos crimes dos regimes totalitários destruíram o elo de ligação entre os países totalitários e o mundo civilizado também é verdade que esses crimes não foram conseqüência de simples agressividade crueldade guerra e traição mas do rompimento consciente com aquele consensus iuris que segundo Cícero constitui um povo e que como lei internacional tem constituído o mundo civilizado nos tempos modernos na medida em que semantém como pedra fundamental das relações internacionais mesmo em tempos de guerra Tanto o julgamento moral como a punição legal pressupõem esse consentimento básico o criminoso só pode ser julgado com justiça porque faz parte do consensus iuris e mesmo a lei revelada de Deus só pode funcionar entre os homens quando eles a ouvem e aceitam A esta altura tornase clara a diferença fundamental entre o conceito totalitário de lei e de todos os outros conceitos A política totalitária não substitui um conjunto de leis por outro não estabelece o seu próprio consensus iuris não cria através de uma revolução uma nova forma de legalidade O seu desafio a todas as leis positivas inclusive às que ela mesma formula implica a crença de que pode dispensar qualquer consensus iuris e ainda assim não resvalar para o estado tirânico da ilegalidade da arbitrariedade e do medo Pode dispensar o consensus iuris porque promete libertar o cumprimento da lei de 514 todatcroudeseJQ humano e promete a justiça na terra porque afirma tornar a humanidade a encarnação da lei Essa identificação do homem com a lei que parece fazer desaparecer a discrepância entre a legalidade e a justiça que tanto atormentou o pensamento legal desde os tempos antigos nada tem em comum com o lumen naturale ou com a voz da consciência por meio dos quais a Natureza ou a Divindade como fonte de autoridade para o ius naturale ou para os históricos mandamentos de Deus supostamente revela a sua autoridade no próprio homem Esta nunca fez do homem uma encarnação viva da lei mas pelo contrário permaneceu separada dele com a autoridade que exige consentimento e obediência A Natureza ou a Divindade como fonte de autoridade para as leis positivas eram tidas como permanentes e eternas as leis positivas eram inconstantes e mudavam segundo as circunstâncias mas possuíam uma permanência relativa em comparação com as ações dos homens que mudavam muito mais depressa e derivavam essa permanência da presença eterna da sua fonte de autoridade As leis positivas portanto destinamse primariamente a funcionar como elementos estabilizadores para os movimentos do homem que são eternamente mutáveis Na interpretação do totalitarismo todas as leis se tornam leis de movimento Embora os nazistas falassem da lei da natureza e os bolchevistas falem da lei da história natureza e história deixam de ser a força estábilizadora da autoridade para ás ações dos homens mortais elas próprias tornamse movimentos Sob a crença nazista em leis raciais como expressão da lei da natureza está a idéia de Darwin do homem como produto de uma evolução natural que não termina necessariamente na espécie atual de seres humanos da mesma forma como sob a crença bolchevista numa luta de classes como expressão da lei da história está a noção de Marx da sociedade como produto de um gigantesco movimento histórico que se dirige segundo a sua própria lei de dinâmica para o fim dos tempos históricos quando então se extinguira a si mesmo A diferença entre a atitude histórica de Marx e a atitude naturalista de Darwin já foi apontada muitas vezes quase sempre com justiça a favor de Marx Isso nos leva a esquecer o profundo e positivo interesse de Marx pelas teorias de Darwin para Engels o maior cumprimento à obra erudita de Marx era chamálo de Darwin da história1 Se considerarmos não a obra propriamente dita mas as filosofias básicas de ambos verificaremos que afinal o movimento da história e o movimento da natureza são um só O fato de Darwin haver introduzido o conceito de evolução na natureza sua insistência em que pelo menos no terreno da biologia o movimento natural não é circular mas unilinear numa direção que progride infinitamente significa de fato que a natureza está por assim dizer sendo assimilada à história que a vida natural 1 Na oração fúnebre a Marx Engels disse Tal como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da vida orgânica Marx descobriu a lei do desenvolvimento da história humana Comentário semelhante encontrase na introdução que Engels escreveu para a edição de 1890 do Manifesto comunista e na introdução a Ursprung der Familie ele menciona outra vez lado a lado a teoria da evolução de Darwin e a teoria de Marx da maisvalia 515 deve ser vista como histórica A lei natural da sobrevivência dos mais aptos é lei tão histórica e pôde ser usada como tal pelo racismo quanto a lei de Marx da sobrevivência da classe mais progressista Por outro lado a luta de classes de Marx como força motriz da história é apenas a expressão externa do desenvolvimento de forças produtivas que por sua vez emanam da energiatrabalho dos homens O trabalho segundo Marx não é uma força histórica mas naturalbiológica produzida pelo metabolismo do homem com a natureza através do qual ele conserva a sua vida individual e reproduz a espécie2 Engels viu com muita clareza a afinidade entre as convicções básicas dos dois homens porque compreendia o papel decisivo que o conceito de evolução desempenhava nas duas teorias A tremenda mudança intelectual que ocorreu em meados do século XIX consistiu na recusa de encarar qualquer coisa como é e na tentativa de interpretar tudo como simples estágio de algum desenvolvimento ulterior Que a força motriz dessa evolução fosse chamada de natureza ou de história tinha importância relativamente secundária Nessas ideologias o próprio termo lei mudou de sentido deixa de expressar a estrutura de estabilidade dentro da qual podem ocorrer os atos e os movimentos humanos para ser a expressão do próprio movimento A política totalitária que passou a adotar a receita das ideologias desmascarou a verdadeira natureza desses movimentos na medida em que demonstrou claramente que o processo não podia ter fim Se é lei da natureza eliminar tudo o que é nocivo e indigno de viver a própria natureza seria eliminada quando não se pudessem encontrar novas categorias nocivas e indignas de viver se é lei da história que numa luta de classes certas classes fenecem a própria história humana chegaria ao fim se não se formassem novas classes que por sua vez pudessem fenecer nas mãos dos governantes totalitários Em outras palavras a lei de matar pela qual os movimentos totalitários tomam e exercem o poder permaneceria como lei do movimento mesmo que conseguissem submeter toda a humanidade ao seu domínio Por governo legal compreendemos um corpo político no qual há necessidade de leis positivas para converter e realizar o imutável ius naturale ou a eterna lei de Deus em critérios de certo e errado Somente nesses critérios no corpo das leis positivas de cada país o ius naturale ou os Mandamentos de Deus atingem realidade política No corpo político do governo totalitário o lugar das leis positivas é tomado pelo terror total que se destina a converter em realidade a lei do movimento da história ou da natureza Do mesmo modo como as leis positivas embora definam transgressões são independentes destas a ausência de crimes numa sociedade não torna as leis supérfluas mas pelo contrário significa o mais perfeito domínio da lei também o terror nõõvèrhò totalitário deixa de ser um meio para suprimir a oposição embora ainda seja 2 Quanto ao conceito de Marx do trabalho como necessidade eterna imposta pela natureza sem a qual não pode haver metabolismo entre o homem e a natureza e portanto não pode haver vida ver O capital vol I parte I capítulos 1 e 5 O trecho citado é do capítulo 1 seção 2 576 usado para tais fins O terror tornase total quando independe de toda oposição reina supremo quando ninguém mais lhe barra o caminho SejijÊalidadÊéa essência do governo nãotirânico e a ilegalidade é a essência da tirania então o terror é a essência do domínio totalitário O terror é a realização da lei do movimento O seu principal objetivo é tornar possível à força da natureza ou da história propagarse livremente por toda a humanidade sem o estorvo de qualquer ação humana espontânea Como tal o terror procura estabilizar os homens a fim de liberar as forças da natureza ou da história Esse movimento seleciona os inimigos da humanidade contra os quais se desencadeia o terror e não pode permitir que qualquer ação livre de oposição ou de simpatia interfira com a eliminação do inimigo objetivo da História ou da Natureza da classe ou da raça Culpa e inocência viram conceitos vazios culpado é quem estorva o caminho do processo natural ou histórico que já emitiu julgamento quanto às raças inferiores quanto a quem é indigno de viver quanto a classes agonizantes e povos decadentes O terror manda cumprir esses julgamentos mas no seu tribunal todos os interessados são subjetivamente inocentes os assassinados porque nada fizeram contra o regime e os assassinosjprque realmente não assassinaram mas executaram uma sentença de morte pronunciada por um tribunal superior Os próprios governantes não afirmam serem justos ou sábios mas apenas executores de leisjiis tóricas ou naturais não aplicam leis mas executam um movimento segundo a sua lei inerente O terror é a legalidade quando a lei é a lei do movimento de alguma força sobrehumana seja a Natureza ou a História O terror como execução da lei de um movimento cujo fim ulterior não é o bemestar dos homens nem o interesse de um homem mas a fabricação da humanidadeelimina os indivíduos pelo bem da espécie sacrifica as partes em benefício do todo A força sobrehumana da Natureza ou da História tem o seu próprio começo e o seu próprio fim de sorte que só pode ser retardada pelo novo começo e pelo fim individual que é na verdade a vida de cada homem No governo constitucional as leis positivas destinamse a erigir fronteiras e a estabelecer canais de comunicação entre os homens cuja comunidade é continuamente posta em perigo pelos novos homens que nela nascem A cada nascimento um novo começo surge para o mundo um novo mundo em potencial passa a existir A estabilidade das leis corresponde ao constante movimento de todas as coisas humanas um movimento que jamais pode cessar enquanto os homens nasçam e morram As leis circunscrevem cada novo começo e ao mesmo tempo asseguram a sua liberdade de movimento a potencialidade de algo inteiramente novo e imprevisível os limites das leis positivas são para a existência política do homem o que a memória é para a sua existência histórica garantem a preexistência de um mundo comum a realidade de certa continuidade que transcende a duração individual de cada geração absorve todas as novas origens e delas se alimenta Confundir o terror total com um sintoma de governo tirânico é tão fácil porque o governo totalitário em seus estágios iniciais tem de conduzirse como 517 uma tirania e põe abaixo as fronteiras da lei feita pelos homens Mas o terror total não deixa atrás de si nenhuma ilegalidade arbitrária e a sua fúria não visa ao benefício do poder despótico de um homem contra todos e muito menos a uma guerra de todos contra todos Em lugar das fronteiras e dos canais de comunicação entre os homens individuais constrói um cinturão de ferro que os cinge de tal forma que é como se a sua pluralidade se dissolvesse em UmSóHomem de dimensões gigantescas Abolir as cercas da lei entre os homens como o faz a tirania significa tirar dos homens os seus direitos e destruir a liberdade como realidade política viva pois o espaço entre os homens delimitado pelas leis é o espaço vital da liberdade O terror total usa esse velho instrumento da tirania mas ao mesmo tempo destrói também o deserto sem cercas e sem lei deserto da suspeita e do medo que a tirania deixa atrás de si Esse deserto da tirania certamente já não é o espaço vital da liberdade mas ainda deixa margem aos movimentos medrosos e cheios de suspeita dos seus habitantes Pressionando os homens uns contra os outros o terror total destrói o espaço entre eles comparado às condições que prevalecem dentro do cinturão de ferro até mesmo o deserto da tirania por ainda constituir algum tipo de espaço parece uma garantia de liberdade O governo totalitário não restringe simplesmente os direitos nem simplesmente suprime as liberdades essenciais tampouco pelo menos ao que saibamos consegue erradicar do coração dos homens o amor à liberdade que é simplesmente a capacidade de moverse a qual não pode existir sem espaço O terror total a essência do regime totalitário não existe a favor nem contra os homens Sua suposta função é proporcionar às forças da natureza ou da história um meio de acelerar o seu movimento Esse movimento transcorrendo segundo a sua própria lei não pode ser tolhido a longo prazo no fim a sua força se mostrará sempre mais poderosa que as mais poderosas forças engendradas pela ação e pela vontade do homem Mas pode ser retardado e é retardado quase inevitavelmente pela liberdade do homem nem mesmo os governantes totalitários podem negar essa liberdade por mais irrelevante e arbitrária que lhes pareça porque ela eqüivale ao fato de que os homens nascem e que portanto cada um deles é um novo começo e em certo sentido o início de um mundo novo Do ponto de vista totalitário o fato de que os homens nascem e morrem não pode ser senão um modo aborrecido de interferir com forças superiores O terror portanto como servo obediente do movimento natural ou histórico tem de eliminar do processo não apenas a liberdade em todo sentido específico mas a própria fonte de liberdade que está no nascimento do homem e na sua capacidade de começar de novo No cinturão de ferro do terror que destrói a pluralidade dos homens e faz de todos aquele Um que invariavelmente agirá como se ele próprio fosse parte da corrente da história ou da natureza encontrouse um meio não apenas de libertar as forças históricas ou naturais mas de imprimirlhes uma velocidade que elas por si mesmas jamais atingiriam Na prática isso significa que o terror executa sem mais delongas as sentenças de morte que a Natureza supostamente pronunciou contra aquelas raças ou aqueles indivíduos que são indignos de viver ou que a História de 518 cretou contra as classes agonizantes sem esperar pelos processos mais lerdos e menos eficazes da própria história ou natureza Nesse conceito onde o movimento se torna a essência do próprio regime um problema muito antigo do pensamento político parece encontrar solução semelhante à que já vimos para a discrepância entre a legalidade e a justiça Se a essência do governo é definida como a legalidade e se fica compreendido que as leis são as forças estabilizadoras dos negócios públicos dos homens como realmente sempre o foram desde que Platão invocou em sus Leis a Zeus o deus dos limites surge então o problema do movimento do corpo político e dos atos dos seus cidadãos A legalidade impõe limites aos atos mas não os inspira a grandeza mas também a perplexidade das leis nas sociedades livres está em que apenas dizem o que não se deve fazer mas nunca o que se deve fazer Õ necessário movimento de um corpo político não se encontra em sua essência porque essa essência novamente desde Platão sempre foi definida com vistas à sua permanência A continuidade sempre pareceu um dos modos mais seguros de medir a virtude de um governo Para Montesquieu a suprema prova da imperfeição da tirania era ainda o fato de que somente as tiranias tendiam a se destruir por dentro a engendrar o seu declínio enquanto eram circunstâncias externas que destruíam todos os outros governos Portanto o que sempre faltou à definição de governo é o que Montesquieu chamou de um princípio de ação que sendo diferente para cada forma de governo inspiraria governantes e cidadãos em sua atividade pública e serviria como critério além da avaliação meramente negativa da legalidade para julgar todos os atos no terreno das coisas públicas Esses princípios orientadores e critérios da ação segundo Montesquieu são numa monarquia a honra numa república a virtude e numa tirania o medo Num perfeito governo totalitária jQQde todos os homens tornaramse UmSóHomem onde toda ação visa à aceleração do movimento da natureza ou da história onde cada ato é a execução de uma sentença de morte que a Natureza ou a História já pronunciou isto é em condições nas quais se pode ter plena certeza de que o terror manterá o movimento em constante atividade um princípio de ação separado da sua essência seria absolutamente desnecessário Não obstante enquanto o governo totalitário não conquista toda a terra e com o cinturão de ferro do terror não transforma cada homem em parte de uma humanidade única o terror em sua dupla função de essência de governo e princípio não de ação mas de movimento não pode ser completamente realizado Do mesmo modo como a legalidade no governo constitucional é insufjciente para inspirar e guiar as ações dos homens também o terror no governo totalitário não é suficiente para inspirar e guiar o comportamento humano Embora nas condições atuais o domínio totalitário ainda compartilhe com outras formas de governo a necessidade de um guia para a conduta dos seus cidadãos na esfera pública não precisa e nem poderia a rigor usar um princípio de ação pois este só fará eliminar no homem precisamente a capacidade de agir Nas condições do terror total nem mesmo o medo pode aconselhar a conduta do cidadão porque o terror escolhe as suas vítimas indepen 519 dentemente de ações ou pensamentos individuais unicamente segundo a necessidade objetiva do processo natural ou histórico Nas condições totalitárias o medo é provavelmente mais difundido do que nunca mas o medo perde a sua utilidade prática quando as ações que inspira já não ajudam a evitar o perigo que se teme O mesmo se pode dizer da simpatia ou do apoio ao regime pois o terror total não apenas seleciona as suas vítimas segundo critérios objetivos escolhe os seus carrascos com o mais completo descaso pelas convicções e simpatias do candidato A consistente eliminação da convicção como um motivo para a ação tornouse um fato desde os grandes expurgos da Rússia soviética e dos países satélites O objetivo da educação totalitária nunca foi insuflar convicções mas destruir a capacidadedejidjmirilas A introdução de critérios puramente objetivos no sistema de seleção das tropas da SS foi a grande invenção organizacional de Himmler selecionava os candidatos através de fotografias segundo critérios puramente raciais A própria natureza decidia não apenas quem seria eliminado mas também quem seria treinado como carrasco Nenhum princípio orientador da conduta que seja ele próprio extraído da esfera da ação humana como a virtude a honra ou o medo é necessário ou pode servir para acionar um corpo político que já não emprega o terror como forma de intimidação mas cuja essência é o próprio terror Em seu lugar o totalitarismointroduziu um princípio inteiramente novo no terreno das coisas públicas que dispensa inteiramente o desejo humano de agir e atende à desesperada necessidade de alguma intuição da lei do movimento segundo a qual o terror funciona e da qual portanto dependem todos os destinos pessoais Os habitantes de um país totalitário são arremessados e engolfados num processo da natureza ou da história para que se acelere o seu movimento como tal só podem ser carrascos ou vítimas da sua lei inseparável O processo pode decidir que aqueles que hoje eliminam raças e indivíduos ou membros das classes agonizantes e dos povos decadentes serão amanhã os que devam ser imolados Aquilo de que o sistema totalitário precisa para guiar a conduta dos seus súditos é um preparo para que cada um se ajuste igualmente bem ao papel de carrasco e ao papel de vítima Essa preparação bilateral que substitui o princípio de ação é a ideologia As ideologias os ismos que podem explicar a contento dos seus aderentes toda e qualquer ocorrência a partir de uma única premissa são fenômeno muito recente e durante várias décadas tiveram papel insignificante na vida política Somente agora com a vantagem que nos dá o seu estudo retrospectivo podemos descobrir os elementos que as tornaram tão perturbadoramente úteis para o governo totalitário As grandes potencialidades das ideologias não foram descobertas antes de Hitler e de Stálin As ideologias são notórias por seu caráter científico combinam a atitude científica com resultados de importância filosófica e pretendem ser uma filosofia científica A palavra ideologia parece sugerir que uma idéia pode tornarse o objeto do estudo de uma ciência como os animais são o objeto de estudo na zoologia e que o sufixo logia da palavra ideologia como em zoolo 520 gia indica nada menos que os logoi os discursos científicos que se fazem a respeito da idéia Se isso fosse verdadeiro a ideologia seria realmente uma pseudociência e uma pseudofilosofia violando ao mesmo tempo os limites da ciência e os da filosofia O deísmo por exemplo passaria a ser a ideologia que trata da idéia de Deus da qual se ocupa a filosofia à maneira científica da teologia para a qual Deus é uma realidade revelada Uma teologia que não se baseasse na revelação como realidade admitida mas tratasse Deus como idéia seria tão louca como uma zoologia que já não estivesse segura da existência física e tangível dos animais Contudo sabemos que isso é apenas parte da verdade O deísmo embora negue a revelação divina não faz meras afirmações científicas a respeito de um Deus que é apenas uma idéia mas usa a idéia de Deus para explicar os destinos do mundo As idéias dos ismos a raça no racismo Deus no deísmo etc nunca constituem o objeto das ideologias e o sufixo logia nunca indica simplesmente um conjunto de postulados científicos Uma ideologia é bem literalmente o que o seu nome indica é a lógica de uma idéia O seu objeto de estudo é a história à quaj a idéia é aplicada o resultado dessa aplicação não é um conjunto de postulados acerca de algo que é mas a revelação de um processo que está em constante mudança A ideo logia trata o curso 4oacontecimentos como se seguisseajnesma lei adotada na exposição lógica da sua idéia As ideologias pretendem conhecer os mistérios de todo o processo histórico os segredos do passado as complexidades do presente as incertezas do futuro em virtude da lógica inerente de suas respectivas idéias AsJdeolQgiasjiunca estão interessadas no milagre do ser São históricas interessadas no viraser e no morrer na ascensão e queda das culturas mesmo que busquem explicar a história através de alguma lei da natureza A palavra raça no racismo não significa qualquer curiosidade genuína acerca das raças humanas como campo de exploração científica mas é a idéia através da qual o movimento da história é explicado como um único processo coerente A idéia de uma ideologia não é a essência eterna de Platão vislumbrada pelos olhos da mente nem o princípio regulador da razão de Kant mas passa a ser instrumento de explicação Para uma ideologia a história não é vista à luz de uma idéia o que significaria ver a história sob forma de alguma eternidade ideal que por si está além do movimento histórico mas como algo que pode ser calculado por ela O que torna a idéia capaz dessa nova função é a sua própria lógica que é um movimento decorrente da própria idéia e dispensa qualquer fator externo para colocála em atividade O racismo é a crença de que existe um movimento inerente da própria idéia de raça tal como oüIêTsmo é a crença de que existe um movimento inerente da própria noção de Deus O movimento da história e o processo lógico da noção de história suposta mente correspondem um ao outro de sorte que o que quer que aconteça acontece segundo a lógica de uma idéia Mas o único movimento possível no terrenodalógica é o processo de dedução a partir de uma premissa Nas mãos de uma ideologia a lógica dialética com o seu processo de ir da tese através da 521 antítese para a síntese que por sua vez se torna a tese do próximo movimento dialético não difere em princípio a primeira tese passa a ser a premissa e a sua vantagem para a explicação ideológica é que esse expediente dialético pode fazer desaparecer as contradições factuais explicandoas como estágios de um só movimento coerente e idêntico Assim que se aplica a uma idéia a lógica como movimento de pensamento e não como o necessário controle do ato de pensar essa idéia se transforma em premissa As explicações ideológicas do mundo realizaram essa operação muito antes que ela se tornasse tão eminentemente útil para o raciocínio totalitário A coerção puramente negativa da lógica a proibição das contradições passou a ser produtiva de modo que se podia criar toda uma linha de pensamento e forçála sobre a mente pelo fato de se tirarem conclusões através da mera argumentação Esse processo argumentativo não podia ser interrompido nem por uma nova idéia que teria sido outra premissa com um diferente conjunto de conseqüências nem por uma nova experiência As ideologias pressupõem sempre que uma idéia é suficiente para explicar tudo no desenvolvimento da premissa e que nenhuma experiência ensina coisa alguma porque tudo está compreendido nesse coerente processo de dedução lógica O perigo de trocar a necessária insegurança do pensamento filosófico pela explicação total da ideologia e por sua Weltanschauung não é tanto o risco de ser iludido por alguma suposição geralmente vulgar e sempre destituída de crítica quanto o de trocar a liberdade inerente da capacidade humana de pensar pela camisa deforça da lógica que pode subjugar o homem quase tão violentamente quanto uma força externa As Weltanschauungen e ideologias do século XIX não constituem por si mesmas o totalitarismo Embora o racismo e o comunismo tenham se tornado as ideologias decisivas do século XX não eram em princípio mais totalitárias do que as outras isso aconteceu porque os elementos da experiência nos quais originalmente se baseavam a luta entre as raças pelo domínio do mundo e a luta entre as classes pelo poder político nos respectivos países vieram a ser politicamente mais importantes que os das outras ideologias Nesse sentido a vitória ideológica do racismo e do comunismo sobre todos os outros ismos já estava definida antes que os movimentos totalitários se apoderassem precisamente dessas ideologias Por outro lado todas as ideologias contêm elementos totalitários mas estes só se manifestam inteiramente através de movimentos totalitários o que nos dá a falsa impressão de que somente o racismo e o comunismo são de caráter totalitário Mas no fundo é a verdadeira natureza de todas as ideologias que se revelou no papel que a ideologia desempenhou no mecanismo do domínio totalitário Vistas desse ângulo surgem três elementos especificamente totalitários peculiares de todo pensamento ideológico Em primeiro lugar na pretensão de explicação total as ideologias têm a tendência de analisar não o que é mas o que vem a ser o que nasce e passa Em 522 todos os casos elas estão preocupadas unicamente com o elemento de movimento isto é a história no sentido corrente da palavra As ideologias sempre se orientam na direção da história mesmo quando como no caso do racismo parecem partir da premissa da natureza nesse caso a natureza serve apenas para explicar as questões históricas e reduzilas a elementos da natureza A pretensão de explicação total promete esclarecer todos os acontecimentos históricos a explanação total do passado o conhecimento total do presente e a previsão segura do futuro Em segundo lugar o pensamento ideológico nessa capacidade libertase de toda experiência da qual não possa aprender nada de novo mesmo que se trate de algo que acaba de acontecer Assim o pensamento ideológico emancipase da realidade que percebemos com os nossos cinco sentidose insiste numa realidade mais verdadeira que se esconde por trás de todas as coisas perceptíveis que as domina a partir desse esconderijo e exige um sexto sentido para que possamos percebêla O sexto sentido é fornecido exatamente pela ideologia por aquela doutrinação ideológica particular que é ensinada nas instituições educacionais estabelecidas exclusivamente para esse fim para treinar os soldados políticos nas Ordensburgen do nazismo ou nas escolas do Comintern e do Cominform A propaganda do movimentototalitário serve também para libertar o pensamento da experiência e da realidade procura sempre injetar um significado secreto em cada evento público tangível e farejar intenções secretas atrás de cada ato político público Quando chegam ao poder os movimentos passam a alterar a realidade segundo as suas afirmações ideológicas O conceito de inimizade é substituído pelo conceito de conspiração e isso produz uma mentalidade na qual já não se experimenta e se compreende a realidade em seus próprios termos a verdadeira inimizade ou a verdadeira amizade mas automaticamente se presume que ela significa outra coisa Em terceiro lugar como as ideologias não têm o poder de transformar a realidade conseguem libertar o pensamento da experiência ponnéío de certos métodos de demonstração O pensamento ideológico arruma os fatos sob a forma de um processo absolutamente lógico que se inicia a partir de uma premissa aceita axiomaticamente tudo mais sendo deduzido dela isto é age com uma coerência que não existe em parte alguma no terreno da realidade A dedução pode ser lógica ou dialética num caso ou no outro acarreta um processo de argumentação que por pensar em termos de processos supostamente pode compreender o movimento dos processos sobrehumanos naturais ou históricos Atingese a compreensão pelo fato de a mente imitar lógica ou dialeticamente as leis dos movimentos cientificamente demonstrados aos quais ela se integra pelo processo de imitação A argumentação ideológica sempre uma espécie de dedução lógica corresponde aos dois elementos das ideologias que mencionamos acima o elemento do movimento e o elemento da emancipação da realidade e da experiência primeiro porque o movimento do pensamento não emana da experiência mas gerase a si próprio e depois porque transforma em premissa axiomática o único ponto que é tomado e aceito da realidade verificada deixando daí em diante o subseqüente processo de argumentação inteiramente a salvo dequalquer experiência ulterior Uma vez que tenha esta 523 belecido a sua premissa o seu ponto de partida a experiência já não interfere com o pensamento ideológico nem este pode aprender com a realidade O expediente que ambos os governantes totalitários usaram para transformar suas respectivas ideologias em armas com as quais cada um dos seus governados podia obrigarse a entrar em harmonia com o movimento do terror era enganadoramente simples e imperceptível levavamnas mortalmente a sério e orgulhavamse um do seu supremo dom de raciocínio frio como o gelo Hitler e o outro da impiedade da sua dialética e passaram a levar as implicações ideológicas aos extremos da coerência lógica que para o observador pareciam despropositadamente primitivos e absurdos a classe agonizante consistia em pessoas condenadas à morte as raças indignas de viver eram pessoas que iam ser exterminadas Quem concordasse com a existência de classes agonizantes e não chegasse à conseqüência de matar os seus membros ou com o fato de que o direito de viver tinha algo a ver com a raça e não deduzisse que era necessário matar as raças incapazes evidentemente era ou estúpido ou covarde Essa lógica persuasiva como guia da ação impregna toda a estrutura dos movimentos e governos totalitários Devese exclusivamente a Hitler e a Stálin que embora não acrescentassem um único pensamento novo às idéias e aos slogans de propaganda dos seus movimentos só por isso merecem ser considerados ideólogos da maior importância Esses novos ideólogos totalitários distinguiamse dos seus predecessores por já não serem atraídos basicamente pela idéia da ideologia a luta de classes e a exploração dos trabalhadores ou a luta de raças e a proteção dos povos germânicos mas sim pelo processo lógico que dela pode ser deduzido Segundo Stálin nem a idéia nem a oratória mas a força irresistível da lógica subjugava completamente o público de Lênin Verificouse que a força que Marx julgava surgir quando a idéia se apossava das massas residia não na própria idéia mas no seu processo lógico que como um poderoso tentáculo nos aperta por todos os lados como num torno e de cujo controle não temos a força de sair ou nos entregamos ou nos resignamos à mais completa derrota3 Essa força somente se manifesta quando está em jogo a realização dos objetivos ideológicos a sociedade sem classes ou a raça dominante No processo da realização a substância original que servia de base às ideologias no tempo em que buscavam atrair as massas a exploração dos trabalhadores ou as aspirações nacionais da Alemanha gradualmente se perde como que devorada pelo próprio processo em perfeita consonância com o raciocínio frio e a irresistívelforçíTda lógica os trabalhadores perderam sob o domínio bolchevista até mesmo aqueles direitos que haviam tido sob a opressão czarista e o povo alemão sofreu um tipo de guerra que não tinha a mais leve ligação com as necessidades mínimas de sobrevivência da nação alemã È da natureza das políticas ideológicas e não simples traição cometida em benefício do egoísmo ou 3 Discurso de Stálin de 28 de janeiro de 1924 citado em Lênin Selected works vol I p 33 Moscou 1947 É interessante notar que a lógica de Stálin foi uma das poucas qualidades que Krushchev louvou no seu devastador discurso perante o Vigésimo Congresso do Partido 524 do desejo do poder que o verdadeiro conteúdo da ideologia a classe trabalhadora ou os povos germânicos que originalmente havia dado azo à idéia a luta de classes como lei da história ou a luta de raças como lei da natureza seja devorado pela lógica com que a idéia é posta em prática O preparo das vítimas e dos carrascos que o totalitarismo requer em lugar do princípio de ação de Montesquieu não é a ideologia em si o racismo ou o materialismo dialético mas a sua lógica inerente Nesse ponto o argumento mais persuasivo argumento muito do gosto de Hitler e de Stálin é não se pode dizer A sem dizer B e C e assim por diante até o fim do mortífero alfabeto Parece ser esta a origem da força coerciva da lógica emana do nosso pavor à contradição Quando o expurgo bolchevista faz com que as vítimas confessem delitos que nunca cometeram confia principalmente nesse medo básico e argumenta da seguinte forma todos concordamos com a premissa de que a história é uma luta de classes e com o papel do Partido nessa luta Sabemos portanto que do ponto de vista histórico o Partido sempre tem razão nas palavras de Trótski só podemos ter razão com o Partido e através dele pois a história não nos concede outro meio de termos razão Neste momento histórico que obedece à lei da história certos crimes certamente serão cometidos e o Partido conhecendo a lei da história deve puni los Para esses crimes o Partido necessita de criminosos pode suceder que o Partido conhecendo os crimes não conheça inteiramente os criminosos porém mais importante que ter certeza quanto aos criminosos é punir os crimes porque sem essa punição a História não poderia progredir e até mesmo o seu curso poderia ser tolhido Tu portanto ou cometeste os crimes ou foste convocado pelo Partido para desempenhar o papel de criminoso de qualquer forma és objetivamente um inimigo do Partido Se não confessares deixarás de ajudar a História através do Partido e te tornarás um verdadeiro inimigo A força coerciva do argumento é se te recusas te contradizes e com essa contradição toda a tua vida perde o sentido pois o A que pronunciaste domina toda a tuda vida através das conseqüências do B e do C que se lhe seguem logicamente Para a limitada mobilização das pessoas que nem ele pode dispensar o governante totalitário conta com a compulsão que nos impele para a frente essa compulsão interna é a tirania da lógica contra a qual nada se pode erguer senão a grande capacidade humana de começar algo novo A tirania da lógica começa com a submissão da mente à lógica como processo sem fim no qual o homem se baseia para elaborar os seus pensamentos Através dessa submissão ele renuncia à sua liberdade interior tal como renuncia à liberdade de movimento quando se curva a uma tirania externa A liberdade como capacidade interior do homem eqüivale à capacidade de começar do mesmo modo que a liberdade como realidade política eqüivale a um espaço que permita o movimento entre os homens Contra o começo nenhuma lógica nenhuma dedução cnvtHcênfe pode ter qualquer poder porque o processo da dedução pressupõe o começo sob forma de premissa Tal como o terror é necessário para que o nascimento de cada novo ser humano não dê origem a um novo começo que imponha ao mun do a suapveartambem a força autocoerciva da lógica é mobilizada parajque 525 J ninguém jamais comece a pensar e o pensamento como a mais livre e a mais pura das atividades humanas é exatamente o oposto do processo compulsório de dedução O governo totalitário só se sente seguro na medida em que pode mobilizar a própria força de vontade do homem para forçálo a mergulhar naquele gigantesco movimento da História ou da Natureza que supostamente usa a humanidade como material e ignora nascimento ou morte Por um lado a compulsão do terror total que com o seu cinturão de ferro comprime as massas de homens isolados umas contra as outras e lhes dá apoio num mundo que para elas se tornou um deserto e por outro a força autocoerciva da dedução lógica que prepara cada indivíduo em seu isola1 mento solitário contra todos os outros correspondem uma à outrae precisam uma da outra para acionar o movimento dominado pelo terror e conserválo em atividade Do mesmo modo como o terror mesmo em sua forma prétptal e meramente tirânica arruina todas as relações entre os homens também a auto compulsão do pensamento ideológico destrói toda relação com a realidade O preparo triunfa quando as pessoas perdem o contato com os seus semelhantes e com a realidade que as rodeia pois juntamente com esses contatos os homens perdem a capacidade de sentir e de pensar O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto mas aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção isto é a realidade da experiência e a diferença entre o verdadeiro e o falso isto é os critérios do pensamento À questão que levantamos no início destas considerações e à qual agora retornaremos diz respeito ao tipo de experiência básica na vida humana em comum que inspira uma forma de governo cuja essência é o terror e cujo princípio de ação é a lógica do pensamento ideológico Obviamente nunca antes se havia usado tal mistura nas várias formas de domínio político Não obstante a experiência básica em que ela se fundamenta deve ser humana e conhecida dos homens uma vez que esse corpo político absolutamente original foi planejado por homens e de alguma forma está respondendo a necessidades humanas Já se observou muitas vezes que o terror só pode reinar absolutamente sobre homens que se isolam uns contra os outros e que portanto uma das preocupações fundamentais de todo governo tirânico é provocar esse isolamento O isolamento pode ser o começo do terror certamente é o seu solo mais fértil e sempre decorre dele Esse isolamento é por assim dizer prétotalitário sua característica é a impotência na medida em que a força sempre surge quando os homens trabalham em conjunto agindo em concerto Burke os homens isolados são impotentes por definição O isolamento e a impotência isto é a incapacidade básica de agir sempre foram típicos das tiranias Os contatos políticos entre os homens são cortados no governo tirânico e as capacidades humanas de ação e poder são frustradas Mas nem todos os contatos entre os homens são interrompidos e nem todas as capacidades humanas são destruídas Toda a esfera da vida privada 526 juntamente com a capacidade de sentir de inventar e de pensar permanece intacta Sabemos que o cinturão de ferro do terror total elimina o espaço parir essa vida privada e que a autocoerção da lógica totalitária destrói a capacidade humana de sentir e pensar tão seguramente como destrói a capacidade de agir O que chamamos de isolamento na esfera política é chamado de solidão naesferados contatos sociais Isolamento e solidão não são a mesma coisa Posso estar isolado isto é numa situação em que não posso agir porque não há ninguém para agir comigo sem que esteja solitário e posso estar solitário isto é numa situação em que como pessoa me sinto completamente abandonado por toda companhia humana sem estar isolado O isolamento é aquele impasse no qual os homens se vêem quando a esfera política de suas vidas onde agem em conjunto na realização de um interesse comum é destruída E no entanto o isolamento embora destrua o poder e a capacidade de agir não apenas deixa intactas todas as chamadas atividades produtivas do homem mas lhes é necessário O homem como homo faber tende a isolarse com o seu trabalho isto é a deixar temporariamente o terreno da política A fabricação poiesis o ato de fazer coisas que se distingue por um lado da ação praxis e por outro do mero trabalho sempre é levada a efeito quando o homem de certa forma se isola dos interesses comuns não importa que o seu resultado seja um objeto de artesanato ou de arte No isolamento o homem permanece em contato com o mundo como obra humana somente quando se destrói a forma mais elementar de criatividade humana que é a capacidade de acrescentar algo de si mesmo ao mundo ao redor o isolamento se torna inteiramente insuportável Isso pode acontecer num mundo cujos principais valores sãQdjtados pelo trabalho isto é onde todas as atividades humanas se resumem em trabalhar Nessas condições a única coisa que sobrevive é o mero esforço do trabalho que é o esforço de se manter vivo e desaparece a relação com o mundo como criação do homem O homem isolado que perdeu o seu lugar no terreno político da ação é também abandonado pelo mundo das coisas quando já não é reconhecido como homo faber mas tratado como animal laborans cujo necessário metabolismo com a natureza não é do interesse de ninguém É aí que o isolamento se torna solidão A tirania baseada no isolamento geralmente deixa intactas as capacidades produtivas do homem mas uma tirania que governasse trabalhadores como por exemplo o domínio sobre os escravos na Antigüidade seria automaticamente um domínio de homens solitários não apenas isolados e tenderia a ser totalitária Enquanto o isolamento se refere apenas ao terreno político da vida a solidão se refere à vida humana como um todo O governo totalitário como todas as tiranias certamente não poderia existir sem destruir a esfera da vida pública isto é sem destruir através do isolamento dos homens as suas capacidades políticas Mas o domínio totalitário como forma de governo é novo no sentido de que não se contenta com esse isolamento e destrói também a vida privada Baseiase na solidão na experiência de não se pertencer ao mundo que é uma das mais radicais e desesperadas experiências que o homem pode ter 527 A solidão o fundamento para o terror a essência do governo totalitário e para a ideologia ou a lógica a preparação de seus carrascos e vitimar fem íntima ligação com o desarraigamento e a superfluidade que atormentavam as massas modernas desde o começo da Revolução Industrial e se tornaram cruciais com o surgimento do imperialismo no fim do século passado e o colapso das instituições políticas e tradições sociais do nosso tempo Não ter raízes significa não ter no mundo um lugar reconhecido e garantido pelos outros ser super fmxrsignifica não pertencer ao mundo de forma alguma O desarraigamento pode ser a condição preliminar da superfluidade tal como o isolamento pode mas não deve ser a condição preliminar da solidão Se a tomarmos em sua essência sem atentar para as suas recentes causas históricas e o seu novo papel na política a solidão é ao mesmo tempo contrária às necessidades básicas da condição humana e uma das experiências fundamentais de toda vida humana Até mesmo a experiência do mundo que nos é dado material e sensorialmente depende do nosso contato com os outros homens do nosso senso comum que regula e controla todos os outros sentidos sem o qual cada um de nós permaneceria enclausurado em sua própria particularidade de dados sensoriais que em si mesmos são traiçoeiros e indignos de fé Somente por termos um senso comum isto é somente porque a terra é habitada não por um homem mas por homens no plural podemos confiar em nossa experiência sensorial imediata No entanto basta que nos lembremos que um dia teremos de deixar este mundo comum que continuará como antes e para cuja continuidade somos supérfluos para que nos demos conta da solidão e da experiência de sermos abandonados por tudo e por todos Solidão não é estar só Quem está desacompanhado está só enquanto a solidão se manifesta mais nitidamente na companhia de outras pessoas À parte algumas observações ocasionais geralmente de espírito paradoxal como a afirmação de Catão relatada por Cícero De re publica I 17 numquam mi nus solum esse quam cum solus esset nunca ele esteve menos só do que quando estava sozinho ou antes nunca ele esteve menos solitário do que quando estava a sós parece que foi Epicteto o filósofo escravoforro de origem grega o primeiro a distinguir entre solidão e ausência de companhia De certa forma a sua descoberta foi acidental uma vez que o seu principal interesse não era uma coisa nem outra mas o ser só monos no sentido de ser absolutamente independente Na opinião de Epicteto Dissertationes livro 3 capítulo 12 o homem solitário éremos vêse rodeado por outros com os quais não pode estabelecer contato e a cuja hostilidade está exposto O homem só ao contrário está desacompanhado e portanto pode estar em companhia de si mesmo já que os homens têm a capacidade de falar consigo mesmos Em outras palavras quando estou só estou comigo mesmo em companhia do meu próprio eu e sou portanto doisemum enquanto na sqlidãoJsou realmente apenas um abandonado por todos os outros A rigor todo ato de pensar é feito quando se está a sós e constitui um diálogo entre eu e eu mesmo mas esse diálogo dos doisemum não perde o contato com o mundo dos meus semelhantes pois que eles são representados no meu eu com o qual estabeleço o 528 diálogo do pensamento O problema de estar a sós é que esses doisemum necessitam dos outros para que voltem a ser um um indivíduo imutável cuja identidade jamais pode ser confundida com a de qualquer outro Para a confirmação da minha identidade dependo inteiramente de outras pessoas e o grande milagre salvador da companhia para os homens solitários é que os integra novamente poupaos do diálogo do pensamento no qual permanecem sempre equívocos e restabelecelhes a identidade que lhes permite falar com a voz única da pessoa impermutável Viver a sós pode levar à solidão isso acontece quando estando a sós o meu próprio eu me abandona Os que vivem sozinhos sempre correm o risco de se tornarem solitários quando já não podem alcançar a graça redentora de uma companhia que os salve da dualidade do equívoco e da dúvida Historicamente parece que somente no século XIX esse risco se tornou suficientemente grande para ser notado e registrado Foi claramente percebido quando os filósofos os únicos para os quais estar a sós é um meio de vida e uma condição para o trabalho já não se contentavam com o fato de que a filosofia é apenas para uns poucos e puseramse a insistir em que ninguém os compreendia A esse respeito é típica a frase de Hegel em seu leito de morte que não poderia aplicarse a nenhum outro grande filósofo antes dele Ninguém me compreendeu a não ser um homem e assim mesmo me compreendeu mal Inversamente existe sempre a possibilidade de que um homem solitário se encontre a si próprio e inicie o diálogo pensado dos que estão a sós Ê o que parece ter ocorrido com Nietzsche em Sils Maria quando concebeu Zarathustra Em dois poemas Sils Maria e Aus Hohen Bergen ele nos descreve a expectacão vazia e a ansiosa espera do homem solitário até que de repente um Mittag wars da wurde Eins zu ZweiNunfeiern wir vereinten Siegs gewiss das Fest der FesteFreundZarathustra kam der Gast der Gaste Ao meiodia o Um tornouse Dois Certos de que venceremos unidos celebramos a festa das festas chegou o amigo Zaratustra o convidado dos convidados O que torna a solidão tão insuportável é a perda do próprio eu que pode realizarse quando está a sós mas cuja identidade só é confirmada pela companhia confiante e fidedigna dos meus iguais Nessa situação o homem perde a confiança em si mesmo como parceiro dos próprios pensamentos e perde aquela confiança elementar no mundo que é necessária para que se possam ter quaisquer experiências O eu e o mundo a capacidade de pensar e de sentir perdemse ao mesmo tempo A única capacidade do espírito humano que não precisa do eu nem dos outros nem do mundo para funcionar sem medo de errar e que independe tanto da experiência como do pensamento é a capacidade do raciocínio lógico cuja premissa é aquilo que é evidente por si mesmo As regras elementares da evidência irrefutável o truísmo de que dois e dois são quatro não podem se perverter mesmo na solidão absoluta É a única verdade segura em que os seres humanos podem apoiarse quando perdem a garantia mútua que é o senso comum de que necessitam para sentir viver e encontrar o seu caminho num mundo comum Mas essa verdade é vazia ou antes não chega a ser verdade 529 uma vez jjuÊJiadarevela Definir a verdade como coerência como o fazem certos lógicos modernos é negar a existência da verdade Na solidão portanto o que é evidente por si mesmo já não é apenas um instrumento do intelecto e passa a ser produtivo a desenvolver as suas próprias linhas de pensamento Os processos do pensamento caracterizados pela lógica exata e evidente por si mesma da qual aparentemente não há como escapar têm algo a ver com a solidão como observou certa vez Lutero cuja experiência dos fenômenos da solidão e da vida a sós provavelmente não foram suplantadas pelas de ninguém e que uma vez ousou dizer que deve existir um Deus porque o homem precisa de um ser em que possa confiar numa frase pouco conhecida acerca das palavras da Bíblia não é bom que os homens estejam a sós O homem solitário diz Lutero sempre deduz uma coisa da outra e sempre pensa o pior de tudo O famoso extremismo dos movimentos totalitários longe de se relacionar com o verdadeiro radicalismo consiste na verdade em pensar o pior nesse processo dedutivo que sempre leva às piores conclusões possíveis O que prepara os homens para o domínio totalitário no mundo nãototalitário é o fato de que a solidão que já foi uma experiência fronteiriça sofrida geralmente em certas condições sociais marginais como a velhice passou a ser em nosso século a experiência diária de massas cada vez maiores O impiedoso processo no qual o totalitarismo engolfa e organiza as massas parece uma fuga suicida dessa realidade O raciocínio frio como o gelo e o poderoso tentáculo da dialética que nos segura como um torno parecem ser o último apoio num mundo onde ninguém merece confiança e onde não se pode contar com coisa alguma Ê a coerção interna cujo conteúdo único é a rigorosa evitação de contradições que parece confirmar a identidade de um homem independentemente de todo relacionamento com os outros Prende o no cinturão de ferro do terror mesmo quando ele está sozinho e o domínio totalitário procura nunca deixálo sozinho a não ser na situação extrema da prisão solitária Destruindo todo o espaço entre os homens e pressionandoos uns contra os outros destróise até mesmo o potencial produtivo do isolamento ensinando e glorificando o raciocínio lógico da solidão onde o homem sabe que estará completamente perdido se deixar fugir a primeira premissa que dá início a todo o processo eliminase até mesmo a vaga possibilidade de que a solidão espiritual se transforme em solidão física e a lógica se transforme em pensamento Quando comparamos esse método com o da tirania parecenos ter sido encontrado um meio de imprimir movimento ao próprio deserto um meio de desencadear uma tempestade de areia que pode cobrir todas as partes do mundo habitado As condições em que hoje vivemos no terreno da política são realmente ameaçadas por essas devastadoras tempestades de areia O perigo não é que possam estabelecer um mundo permanente O domínio totalitário como a tirania traz em si o germe da sua própria destruição Tal como o medo e a impo 4 Ein solcher se einsamer Mensch folgert immer eins aus dem andem und denkt alies zum Argsten Em Erbauliche Schriften Warum die Einsamkeit zu fliehen 530 tência que vem do medo são princípios antipolíticos e levam os homens a uma situação contrária à ação política também a solidão e a dedução do pior por meio da lógica ideológica que advém da solidão representam uma situação antisocial e contêm um princípio que pode destruir toda forma de vida humana em comum Não obstante a solidão organizada é consideravelmente mais perigosa que a impotência organizada de todos os que são dominados pela vontade tirânica e arbitrária de um só homem É o seu perigo que ameaça devastar o mundo que conhecemos um mundo que em toda parte parece ter chegado ao fim antes que um novo começo surgindo desse fim tenha tido tempo de firmarse À parte estas considerações que como predições são de pouca valia e ainda menos consolo permanece o fato de que a crise do nosso tempo e a sua principal experiência deram origem a uma forma inteiramente nova de governo que como potencialidade como risco sempre presente tende infelizmente a ficar conosco de agora em diante como ficaram a despeito de derrotas passageiras outras formas de governo surgidas em diferentes momentos históricos e baseadas em experiências fundamentais monarquias repúblicas tiranias ditaduras e despotismos Mas permanece também a verdade de que todo fim na história constitui necessariamente um novo começo esse começo é a promessa a única mensagem que o fim pode produzir O começo antes de tornarse evento histórico é a suprema capacidade do homem politicamente eqüivale à liberdade do homem Initium ut esset homo creatus est o homem foi criado para que houvesse um começo disse Agostinho5 Cada novo nascimento garante esse começo ele é na verdade cada um de nós 5 De Civitate Dei livro 12 capítulo 20 531 BIBLIOGRAFIA PARTEI O ANTISEMITISMO Alhaiza Adolphe Vérité sociologique gouvernementale et religieuse Succint résumé du Sociétarisme de Fourier compare au socialisme de Marx Paris 1919 Anchel Robert Un Baron Juif au 18e siècle Souvenir et Science vol 1 Arendt Hanna Why the Crémieux Decree was abrogated 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ofKrushchev Washington 1958 SAGeist im Betrieb Vom Ringen um die Durchsetzung des deutschen Sozialismus editado pela Oberste SAFührung Munique 1938 Salisbury Harrison E Moscow journal the end of Stalin Chicago 1961 American in Rússia Nova York 1955 Salvemini Gaetano La terreur fasciste 19221926 Paris 1938 Thefascist dictatorship in Italy 1927 Nova York 1966 560 Schàfer Wolfgang NSDAP Entwicklung und Struktur der Staatspartei des Dritten Reiches HannoverFrankfurt a M 1956 Schapiro L The Communist Party of the Soviet Union 1960 The government and politics of the Soviet Union Nova York 1965 Schellenberg Walter The Schellenberg memoirs Londres 1956 Schemann Ludwig Die Rase in den Geisteswissenschaften Studie zur Geschichte des Rassengedankens 3 vols Munique Berlim 1928 Scheuner Ulrich Die nationale Révolution Eine staatsrechtliche Untersuchung em Archiv des òffentlichen Rechts 193334 Schmitt Carl Politische Romantik Munique 1925 Staat Bewegung Volk 1934 Totaler Feind totaler Krieg totaler 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