·
Relações Internacionais ·
Economia Política
Send your question to AI and receive an answer instantly
Recommended for you
68
Desenvolvimento Economico America Latina e Issue Advocacy 501c4 - Artigo e Guia
Economia Política
UFABC
8
El Capital Financiero de Hilferding Legado y Lecciones para el Análisis Contemporáneo
Economia Política
UFABC
10
Multipolaridade e Declínio do Ocidente: Análise Geopolítica
Economia Política
UFABC
624
Raul Prebisch 1901-1986 - Biografia e Tempos de um Economista
Economia Política
UFABC
82
Analise dos Sistemas Mundo - Introducao ao Pensamento de Immanuel Wallerstein 2ed
Economia Política
UFABC
82
El Imperialismo Fase Superior del Capitalismo - Lenin - Libro Completo
Economia Política
UFABC
1
A Mundializacao do Capital - Resumo
Economia Política
UFABC
1
O Capitalismo Historico - Immanuel Wallerstein - Analise e Download
Economia Política
UFABC
20
A Utopia Keynesiana: Análise dos Princípios Políticos e Econômicos de Keynes
Economia Política
UFABC
354
E H Carr Vinte Anos de Crise 1919-1939 - Analise Completa do Livro
Economia Política
UFABC
Preview text
OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI N5 Maio2024 O OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI é um think tank independente que acompanha analisa e faz prospecções de acontecimentos e cenários internacionais Este Boletim contém diagnósticos curtos e notas executivas que se propõem contribuir para a tomada de decisões de políticos gestores técnicos e acadêmicos vinculados à área de política externa e de políticas públicas frente aos acontecimentos que mais se destacaram em cada conjuntura analisada Seus colaboradores compartilham a convicção de que o Sistema Interestatal Capitalista está atravessando um período de mutação profunda Essas mudanças estão provocando transformações nos campos tecnológico econômico social e cultural com repercussões no mundo do trabalho da convivência social e das relações entre os Estados as grandes corporações as religiões e as próprias civilizações Isenção de responsabilidade O conteúdo dos artigos é de responsabilidade exclusiva dos autores dos mesmos não refletindo necessariamente a opinião institucional do Observatório Internacional do Século XXI nem de seus editores ou de qualquer outro autor O Observatório Internacional do Século XXI é uma publicação do Grupo de Pesquisa Poder Global e Geopolítica do Capitalismo do CNPQLABEPOGNUBEAUFRJ Todos os direitos reservados A reprodução dos artigos deve ser feita mediante a indicação da fonte e colocação do link deste Boletim httpsnubeaufrjbrindexphpobser vatoriointernacional OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI N5 Maio2024 COMITÊ EDITORIAL José Luís Fiori Maria Claudia Vater Andrés Ferrari Haines COLABORADORES DESTE NÚMERO Andrés Ferrari Haines Daniel Barreiros Elias Jabbour Flavio Aguiar Georges Flexor José Luís Fiori Karina Kato Katalina Barreiro Santana Mauricio Metri Nelson Delgado Wagner Sousa Foto de capa httpsterramagnacombrblogerosaodosolo OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 6 SUMÁRIO A CRISE AGUDA E O DECLÍNIO CRÔNICO DO OCIDENTE Por José Luís Fiori 7 GUERRA HEGEMÔNICA E FUTURO DO SISTEMA INTERNACIONAL Por Daniel Barreiros 11 A CRISE ANGLOAMERICANA Por Andrés Ferrari Haines 15 PARA ENTENDER O DECLÍNIO DA FRANÇA Por Wagner Sousa 21 FRANÇA E ALEMANHA DANÇA E CONTRADANÇA Por Flavio Aguiar 24 A ASCENSÃO DA EXTREMADIREITA EUROPEIA Por Wagner Sousa 27 O INSUCESSO DAS SANÇÕES FINANCEIRAS DOS EUA E DA UE Por Mauricio Metri 6 O IRÃ AMEDRONTA ISRAEL E GOLPEIA O OCIDENTE Por José Luís Fiori 10 FILIPINAS A MAIS NOVA ZONA DE ATRITO ENTRE EUA E CHINA Por Wagner Sousa 14 A VIAGEM DE XI JINPING E AS FRATURAS NO PROJETO EUROPEU Por Daniel Barreiros 17 A CHINA E A SEGUNDA INDEPENDÊNCIA AFRICANA 2 Por Elias Jabbour 20 DESAFIOS ALIMENTARES NA ÁFRICA SUBSAARIANA ASS Por Georges Flexor Karina Kato Nelson Delgado 23 A MULTIPOLARIDADE UMA DISPUTA VIOLENTA E INDEFINIDA Por José Luís Fiori 26 OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 7 A CRISE AGUDA E O DECLÍNIO CRÔNICO DO OCIDENTE Por José Luís Fiori m outubro de 2023 ao voltar de uma viagem relâmpago a Israel para dar apoio ao primeiroministro Benjamin Netanyahu o presidente norteamericano Joe Biden afirmou num discurso feito no Salão Oval da Casa Branca que o mundo está vivendo uma virada histórica porque a ordem mundial do pósIIGM perdeu fôlego e é necessário construir uma nova ordem1 Quase no mesmo momento na comemoração do décimo aniversário da Nova Rota da Seda realizada em Pequim nos dias 17 e 18 de outubro de 2023 os presidentes Xi Jinping da China e Vladimir Putin da Rússia defenderam em conjunto a necessidade de uma nova ordem mundial que respeite a diversidade das civilizações2 Um pouco antes na véspera da 18ª Cúpula do G20 realizada em Nova Delhi em setembro de 2023 o primeiroministro indiano Narendra Modi publicou um artigo em vários jornais do mundo propondo uma nova ordem mundial póspandêmica3 Por fim de forma ainda mais categórica Joseph Borrel Chefe da Política Externa da União Europeia declarou em fevereiro de 2024 que a era do domínio global do Ocidente chegou ao fim4 Uma manifestação e um reconhecimento categórico dos líderes das cinco principais potências do mundo No entanto por trás desse aparente consenso escondemse grandes divergências conceituais e políticas Para começar eles não estão falando necessariamente da mesma coisa nem do mesmo período histórico porque existiram pelo menos duas grandes ordens ou ordenações mundiais que se sucederam a contar do fim da Segunda Guerra Mundial A primeira vigorou entre 1945 e 1991 e foi apoiada pelas duas potências que saíram vitoriosas da IIGM EUA e URSS Foi no entanto arquitetada de fato e liderada pelos EUA graças à sua supremacia atômica conquistada em Hiroshima e Nagasaki e graças à sua supremacia econômica consagrada pelos Acordos de 1 Reuters UOL Noticias 23102023 httpsuolcombr 2 Ministry Foreign Affairs of the Peoples Republic of China 18102023 fmprcgovbr 3 A nova ordem póspandemia httpswwwestadaocombr 07092023 4 Era do domínio global do ocidente chegou ao fim 26022024 sputniknewsbrcombr E OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 8 Bretton Woods que fizeram do dólar americano a moeda de referência da economia capitalista mundial Fazem parte desta primeira ordem mundial quase todas as instituições multilaterais surgidas a partir da criação das Nações Unidas em outubro de 1945 ao lado do Fundo Monetário Internacional do Banco Mundial da Organização Mundial do Comércio da Organização Mundial da Saúde para citar as mais importantes A crise dessa ordem mundial entretanto começou já na década de 70 do século passado quando os EUA abandonaram os Acordos de Bretton Woods e se descomprometeram unilateralmente com relação à paridade entre o dólar e o ouro que havia sido definida por eles mesmos em 1944 O abandono do padrão dólar veio junto com a primeira grande crise econômica do mundo capitalista do pósIIGM que atravessou as décadas de 70 e 80 e foi marcada por sucessivos choques do preço do petróleo e aumentos da taxa de juros norteamericanas Houve ainda a derrota dos EUA na Guerra do Vietnã em 1973 e foi por isto que naquele momento muitos analistas internacionais falaram pela primeira vez de uma crise terminal da hegemonia norte americana Mas logo em seguida como resposta a essa crise os EUA lançaram uma ofensiva militar contra a URSS que veio acompanhada pela grande revolução conservadora dos anos 80 que se desfez dos compromissos keynesianos e desenvolvimentistas do pósIIGM e abriu as portas para o avanço de um novo projeto econômico global liderado pelas potências anglosaxônicas o neoliberalismo que avançou como um tufão ajudando a derrubar o Muro de Berlim e acabando com a bipolaridade estratégica da Guerra Fria E na década seguinte os EUA se aproveitaram de sua nova posição de poder e assestaram um último e definitivo golpe na ordem multilateral que eles haviam criado no momento em que atacaram a Iugoslávia em 1999 sem autorização prévia do Conselho de Segurança das Nações Unidas A mesma coisa que voltariam a fazer em 2003 quando invadiram o Iraque sem contar com o aval do Conselho de Segurança e desta vez com a oposição da maioria absoluta da Assembleia Geral da ONU E foi assim que se encerrou de forma definitiva e melancólica a primeira ordem mundial hegemônica do pósIIGM e foi nesse momento e não mais tarde que o Conselho de Segurança da ONU perdeu toda e qualquer eficácia e legitimidade por obra de seus próprios criadores Nascia então uma nova ordem mundial sustentada agora pelo poder unipolar dos EUA conquistado através de suas vitórias na Guerra Fria em 198991 e na Guerra do Golfo em 199192 Nessa nova ordem unipolar os EUA se reservaram desde o início o OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 9 direito unilateral de fazer guerras humanitárias e de declarar e atacar o terrorismo em qualquer lugar do mundo segundo seu exclusivo arbítrio e já sem nenhuma preocupação com as Nações Unidas e seu Conselho de Segurança que que foram sucateados literalmente em 1999 Este novo poder global unipolar dos EUA potencializou ainda mais o projeto econômico neoliberal de abertura e desregulação dos mercados e globalização das finanças mundiais que passaram a ser geridas em última instância pelo Banco Central dos EUA e seu sistema SWIFT de intermediação financeira e pagamentos internacionais Esta segunda ordem mundial unipolar e neoliberal do pósGuerra Fria começa a perder fôlego a partir da grande crise financeira de 2008 que abalou a economia americana e atingiu em cheio a economia europeia Foi ali que começou o chamado processo da desglobalização da economia mundial que viria a se acelerar com a pandemia de covid19 com a guerra econômica dos EUA contra a China e sobretudo com o início da Guerra da Ucrânia em 2022 E mais ainda depois do fracasso da aposta ocidental numa verdadeira guerra de sanções econômicas contra a Rússia que não alcançou seu objetivo e ainda por cima produziu um efeito bumerangue sobre a economia europeia que entrou num profundo e prolongado processo de estagnação econômica Muito antes de tudo isto entretanto as guerras sem fim dos EUA que começaram no final do século XX desvelaram aos poucos uma dimensão oculta dessa nova ordem mundial escondida por trás da retórica da globalização a construção de uma infraestrutura militar global com mais de 700 bases militares distribuídas ao redor de todo o mundo e controlada diretamente pelos EUA mesmo no caso de organizações regionais como a OTAN Ou seja aos poucos foi ficando mais claro que a condição sine qua non do projeto da globalização econômica sem limites nem fronteiras era a instalação de uma nova espécie de império militar global um segredo que foi guardado a sete chaves pela retórica missionária do neoliberalismo defendido por EUA Inglaterra e seus sócios do G7 E é precisamente esse projeto militar global dos EUA e da OTAN que está sendo desafiado pela ascensão militar da China pela resistência do Irã e pelo limite que lhe foi imposto pela Rússia primeiro na Geórgia em 2008 e depois na Ucrânia em 2022 E é essa ordem mundial imperial cosmopolita que está perdendo fôlego e já entrou em acelerado processo de desintegração Assim mesmo quando Joseph Borrel declara que a era do domínio Ocidental acabou ele está se referindo a uma outra crise muito mais complexa profunda e prolongada a crise do poder e da hegemonia ocidental no sistema internacional que os europeus OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 10 conquistaram e dominaram de forma quase absoluta nos últimos 300 anos Para se ter uma ideia aproximada do tamanho e do impacto dessa crise basta lembrar que no início do século XX logo depois da I GM o Império Britânico tinha uma extensão de 355 milhões de km2 e ocupava 2384 da superfície terrestre Junto com os impérios coloniais de França Bélgica Portugal e Holanda o Ocidente europeu chegou a dominar cerca de 40 do território e da população mundiais Hoje entretanto a Inglaterra está ameaçada de perder seu domínio sobre a Escócia e a Irlanda por onde começou de fato o Império Britânico A França está sendo expulsa da África e já não é mais do que um simulacro da potência imperial que foi no passado e o mesmo deve ser dito dos demais Estados europeus que sobrevivem escondidos atrás da proteção atômica da OTAN Sendo que nas últimas duas décadas os próprios Estados Unidos vêm sofrendo sucessivas derrotas militares e fracassos políticos no Iraque na Síria no Afeganistão na Ucrânia para não falar de sua própria guerra civileleitoral interna Ao mesmo tempo assistem paralisados ao desgaste progressivo de sua credibilidade moral graças ao apoio militar e financeiro que deram ao massacre do povo palestino da Faixa de Gaza Como consequência desses sucessivos reveses o velho Ocidente que era considerado sinônimo da comunidade internacional até bem pouco tempo atrás vem perdendo força e legitimidade e hoje não tem mais capacidade de impor seus critérios seu arbítrio e poder sobre o resto do mundo Mesmo assim não há o menor sinal de que este Ocidente reduzido esteja disposto a abrir mão do poder que acumulou nos últimos séculos Além disso a História ensina que as grandes potências e os impérios não costumam ceder seu poder sem resistir sem guerrear OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 11 GUERRA HEGEMÔNICA E FUTURO DO SISTEMA INTERNACIONAL Por Daniel Barreiros epois de vinte e seis meses de guerra e diante da mais completa falência da diplomacia até o momento a Europa oriental segue conflagrada pelo embate entre as forças armadas da Rússia e da Ucrânia A despeito dos mais severos protestos alguns dos quais bastante inequívocos os países membros da OTAN seguem firmes em seu intuito de armar Kiev até que se faça terra arrasada Em tempo o rearmamento europeu e particularmente alemão segue a intenso galope o que sugere firmemente que o coração da civilização está prestes a renderse ao barbarismo caso isso se faça necessário para que juntem os cacos de prestígio que ainda lhes restam Em Gaza a despeito da mais direta condenação a Tel Aviv partindo inclusive de seus aliados históricos como o governo norteamericano o massacre de civis segue Um ataque à embaixada do Irã em Damasco realizado pela força aérea israelense resultou em um contraataque de mísseis vindos do território iraniano contra Israel Condenações morais e apelações ao direito internacional abundaram em todos esses casos São tempos de ouvidos moucos contudo Uma leva de golpes militares acelera a circulação de poder entre elites internacionais que mantêm a África ocidental sob sua influência saem os franceses entram os russos norteamericanos perigam e chineses como virou praxe avançam mais algumas casas Os golpes foram condenados com base em cláusulas democráticas presentes em acordos de integração regionais e no Níger a ameaça de uma invasão para restauração da ordem por parte dos membros da CEDEAO alinhados a Washington e Paris só foi contida por uma coalizão com Burkina Faso e Mali notoriamente alinhados a Moscou E no Extremo Oriente ronda o espectro do conflito entre Pequim e Taipé O acordo AUKUS coloca a Austrália como ponta de lança das potências ocidentais na contenção aos avanços geopolíticos chineses Tóquio e Seul preparamse aceleradamente para uma guerra que se anuncia a contagotas A vitória de Biden na eleição de 2022 mostrou parte expressiva da elite política e D OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 12 militar norteamericana em uma corrida contra o tempo para reverter os danos causados pelo retrenchment promovido por Donald Trump entre 2017 e 2021 O retorno do trumpismo pode reverter mais uma vez essa trajetória instigando potências revisionistas a ocuparem mais espaços vazios Estaríamos às vésperas de uma guerra hegemônica Com o tabuleiro geopolítico global sendo chacoalhado por grandes e médias potências com a dificuldade de Washington de promover ações que preservem seu nível relativo de poder militar e econômico em comparação com seus principais desafiantes e com o nítido colapso da hegemonia éticomoral de sucessivos governos norteamericanos na esfera internacional estaria aberto o pregão para uma sucessão hegemônica nos próximos cinquenta anos O conceito de guerra hegemônica foi sugerido originalmente por Gilpin ainda que seu mecanismo mais elementar remonte ao gênio de Tucídides no século V antes da Era Comum Em resumo entendese que uma guerra hegemônica é uma confrontação de vastas dimensões entre as principais potências de um determinado sistema internacional organizadas em dois blocos provocada pela crescente percepção do crescimento diferencial em termos de poder militar influência riqueza material e tecnologia de uma ou mais potências revisionistas quando comparadas à potência hegemônica Rejeitando o pressuposto de que o sistema internacional é anárquico a noção de guerra hegemônica assume que em momentos de relativa estabilidade o sistema é organizado em uma pirâmide hierárquica de poder encimada pela potência hegemônica Mudanças em termos econômicos e tecnológicos podem aos poucos enfraquecer as bases que organizam a hierarquia internacional tornando desse modo a posição do hegemon contestável Em suma em determinadas condições estruturais o hegemon se depara com custos crescentes para preservação de sua hegemonia enquanto os demais agentes do sistema atestam que o custo do alargamento de seus graus de liberdade se reduz Isso produziria algo como uma situação revolucionária na qual eventos localizados e teoricamente com repercussões restritas se tornam gatilhos para deflagrar um radical processo de revisão das estruturas hierárquicas do sistema através de uma guerra ou série de guerras de proporções sistêmicas envolvendo agentes em vários níveis da pirâmide de poder em transformação A possibilidade crescente de uma guerra hegemônica seria evidenciada por sintomas bem discerníveis Primeiramente indicadores de poder e riqueza de determinadas potências dispostas OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 13 a rever as regras do sistema crescem a taxas aceleradas se comparados à potência hegemônica A percepção da perda relativa de poder e não absoluta torna as elites políticas econômicas e militares no controle da potência hegemônica propensas a reações extremadas e menos cautelosas tendo em vista a restauração do status quo ante As dificuldades de alinhamento incondicional de potências médias e pequenas ao hegemon faz crescer ainda mais a angústia entre os agentes decisórios e formuladores de política da potência hegemônica a respeito da possibilidade de preservação de seu status sistêmico no médio prazo A crescente percepção de que potências revisionistas avançam rapidamente em seu processo de catchingup com demonstrações de maestria em tecnologias disruptivas e sensíveis funciona como um atrator tornando menos prováveis reações de acomodação em relação aos desafiantes As consequências de processos dessa natureza como a Guerra dos Trinta Anos 16191648 e a Primeira Grande Guerra 19141918 são uma profunda redefinição institucional em termos éticos políticos e econômicos do funcionamento da hierarquia internacional de poderes bem como a emergência de uma nova potência hegemônica Ainda que o futuro possa reservar destinos distintos em termos históricos a principal potência vitoriosa tende a ativamente transformar as instituições domésticas das potências derrotadas de modo a moldálas à sua imagem e semelhança Muito se tem dito a respeito da impossibilidade de guerras hegemônicas na era nuclear mas não temos provas de que os estadistas tenham modificado substancialmente seus objetivos e métodos exceto por uma maior parcimônia em usar a força contra potências nucleares Mas diante de uma percepção de perda de hegemonia incontornável não temos garantias de que potências não recorrerão à violência mesmo que eventualmente não recorram aos seus arsenais nucleares Se em qualquer caso os estadistas de uma potência hegemônica entenderem que precisam frear o avanço de seus competidores através da violência antes que sua vantagem econômica e militar em relação aos adversários seja criticamente diminuída eles provavelmente o farão O desafio tecnológico e econômico chinês o reinício da competição estratégica em espaço orbital e extraorbital a disputa em torno de tecnologias disruptivas inteligência artificial ciborguização armas letais autônomas computação quântica biotecnologia os riscos em termos de poder e riqueza representados pelo envelhecimento demográfico diferencial no globo entre outros formam um quadro estrutural que chama a atenção como ambiente propício para a deflagração de uma guerra hegemônica Não faltam indícios de que nos marcos desse quadro OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 14 estrutural uma conjuntura de turbulência está em curso atualmente Se ela resultará numa confrontação pela hegemonia sobre o sistema só o tempo dirá Mas que uma advertência seja feita se a experiência histórica pode servir de referência guerras hegemônicas podem exaurir mortalmente ambas as coalizões em confronto e isso ainda se torna mais provável caso um futuro confronto venha a envolver uma troca nuclear de amplas proporções No caso de uma vitória pírrica de uma coalizão em uma guerra hegemônica os graus de liberdade de agentes não envolvidos diretamente na disputa podem se expandir assimetricamente A vitória de Atenas sobre Esparta na Guerra do Peloponeso não confirmou a hegemonia ateniense antes deixou terra arrasada garantindo aos macedônios uma terceira parte não envolvida todo o espólio Para determinadas potências médias e pequenas a equidistância pode ser uma estratégia com máximo retorno OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 15 A CRISE ANGLOAMERICANA Por Andrés Ferrari Haines Quando movimentos de direita e retoricamente populistas como o Brexit e líderes como Trump venceram as eleições em 2016 triunfaram nos dois países que tinham sido fundamentais para o longo esforço para criar e sustentar uma ordem internacional liberal om esta frase James Cronin professor do Boston College conclui seu novo livro sobre a queda da chamada ordem liberal internacional 1 Apontando para o iliberalismo que emergiu no Reino Unido e nos Estados Unidos nações que considera como eixos essenciais dos valores liberais e democráticos globais Cronin destaca a natureza interna da decomposição da ordem liberal além das ameaças bem conhecidas de autocracias estrangeiras E o que chama a atenção nesse sentido é que as causas apontadas por Cronin persistem atualmente Enquanto o Partido Republicano liderado por Donald Trump é apresentado como favorito nas eleições deste ano nos Estados Unidos David Cameron que lançou o complicado processo do Brexit é o atual chanceler britânico de um governo que parece estar a dar os últimos suspiros da recente era conservadora Por um lado tanto o regresso ao poder do Partido Trabalhista como de Trump podem ser vistos como mudanças significativas por outro lado uma parte considerável da sociedade em ambos os países afirma não ter esperança em qualquer resultado eleitoral Após a vitória do modelo liberal com o colapso da União Soviética as políticas económicas aplicadas pelos governos de ambos os partidos deixaram a maioria da sociedade em dificuldades e com poucas perspectivas de melhoria Externamente grande parte do mundo nãoocidental mostra sinais de se afastar dos países anglosaxónicos independentemente de quem seja o seu líder político 1 Fragile Victory The Making and Unmaking of Liberal Order New Haven Yale University Press 2023 c OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 16 1 A frente doméstica No Reino Unido a pobreza afeta uma grande parte da população sendo que 56 das pessoas que a vivenciam pertencem a uma família com emprego Em particular chamou a atenção o fato de o país ter registado o maior nível de pobreza relativa infantil entre as economias avançadas no período de 2014 e 2021 afetando cerca de 43 milhões de crianças Este contexto gerou também um aumento anual de 158 entre outubro e dezembro de 2023 na taxa dos semabrigo Outro efeito é que a Associação das Lojas de Conveniência afirmou que em 2023 os furtos quintuplicaram em relação ao ano anterior principalmente carne álcool e doces Este quadro estrutural da pobreza britânica explica certamente o motivo pelo qual uma sondagem recente do YouGov concluiu que para as próximas eleições o Partido Trabalhista tem uma vantagem de 30 pontos sobre os Conservadores que de acordo com outra sondagem teriam um novo mínimo histórico de votos No entanto a mudança de governo não é razão para pensar que o Reino Unido abandonaria a política de austeridade dos conservadores vigente desde 2010 De acordo com declarações do gabinete sombra do Partido Trabalhista um novo bloqueio fiscal será imposto por lei sujeitando todas as alterações fiscais a uma previsão do Gabinete de Responsabilidade Orçamental uma das principais instituições de austeridade criadas por Cameron em 2010 O Secretário de Saúde Sombra Wes Streeting delineou planos para reformar ainda mais o NHS através de mais privatizações e mercantilização O quadro é semelhante nos Estados Unidos Em abril um inquérito mostrou que quase metade da população acredita que a economia está indo na direção errada o dobro dos que pensam o contrário enquanto cerca de 42 por cento dizem que a sua situação financeira piorou no ano passado e 47 por cento dizem que a sua situação financeira piorou no ano passado De acordo com um relatório da Universidade de Harvard aproximadamente 650000 americanos viveram semabrigo em algum momento do ano passado um aumento de quase 50 desde 2015 Uma pesquisa da Pew Charitable Trusts descobriu que 90 dos americanos acreditam que o país está a passar por uma crise de saúde mental As tensões também se revelam no número recorde de suicídios e no fato de cada vez mais americanos acreditarem que uma nova guerra civil é possível Biden por sua vez comemora o sucesso da sua gestão econômica muitos analistas consideram que o país dá sinais de estagflação dada a combinação de um crescimento anual de 16 OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 17 com uma inflação persistentemente elevada 35 em março No entanto com base na atual medida de inflação da Reserva Federal um dólar compra 20 menos hoje do que em 2020 mas utilizando o método empregado no início da década de 1980 a inflação atual seria quase o triplo do que é atualmente reportado A economia tem falhado consistentemente em assegurar crescimento embora Biden tenha incluído políticas de gastos elevados na sua agenda através de grandes pacotes fiscais como o Plano de Resgate Americano US 19 trilhões a Lei Bipartidária de Infraestruturas US 12 trilhões e a Lei de Redução da Inflação US 750 bilhões entre 2021 e 2022 A possível chegada de Donald Trump não parece alterar este quadro econômico para além do fato de o seu projeto de expulsar os imigrantes ilegais ser bem recebido por uma parte considerável da população americana Trump prometeu mais uma vez grandes cortes de impostos à alguns dos doadores mais ricos do país tal como fez com a sua reforma fiscal de 2017 quando reduziu tributos para eles e também para as grandes empresas Várias destas disposições expirarão em 2025 pelo que Trump propõe a sua continuidade Outro impacto econômico a considerar deste corte é o que o Centro de Orçamento e Prioridades Políticas acaba de salientar ou seja o fato de que estes cortes de impostos de Trump bem como os de Bush anteriormente corroeram seriamente a base de recursos do nosso país Os esforços econômicos colaboraram para uma explosão da dívida nacional que atualmente ascende a quase 346 trilhões de dólares Esta tendência que já tinha acelerado com medidas para enfrentar a crise de 2008 tornouse ainda mais intensa sob Biden a dívida nacional aumentou cerca de 68 trilhões de dólares desde que ele assumiu o cargo em janeiro de 2021 Os pagamentos da dívida em 2024 atingirão 870 bilhões de dólares mais do que o orçamento do Pentágono um aumento de 32 por cento em relação a 2023 Durante a próxima década o plano orçamentário do presidente as receitas federais excederiam os 70 trilhões de dólares mas Biden propõe gastar 866 trilhões de dólares De acordo com o Comitê de Orçamento do Congresso os déficits orçamentais anuais estão numa trajectória ascendente explosiva Assim o déficit de 16 trilhão de dólares projetado para 2024 seria de 26 trilhões de dólares 2034 44 trilhões de dólares 2044 e 73 trilhões de dólares em 2054 ano em que a dívida do governo federal totalizaria 114 trilhões de dólares aproximadamente 4 do PIB atual dos EUA O Senado aprovou OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 18 por unanimidade uma resolução qualificando a dívida de uma ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos e esperando que os futuros déficits orçamentários sejam insustentáveis irresponsáveis e perigosos Na mesma linha o Comitê para um Orçamento Federal Responsável uma organização sem fins lucrativos que defende déficits mais baixos afirma que o nível de endividamento no âmbito do orçamento do presidente seria sem precedentes fora de uma guerra ou de uma emergência nacional Mas embora não afirme diretamente que o seja Biden apoia abertamente a Ucrânia no seu confronto com a Rússia Em ajuda deu mais de US 42 bilhões à Ucrânia e está tentando conceder mais US 55 bilhões o que não conseguiu devido à oposição parlamentar dos republicanos Além disso Biden passou a apoiar Israel nos seus ataques a Gaza com recursos que se somam para gerar o maior orçamento militar do mundo que excede o dos próximos nove países que também mantêm entre outras coisas cerca de 300 bases militares e vários conflitos menores que já se arrastam há muito tempo como o Iémen e a Somália Outro aspecto em comum entre Biden e Trump é que apesar das suas promessas eleitorais nenhum deles conseguiu acabar com as guerras intermináveis nos Estados Unidos 2 O quadro geral A nível global a decomposição da ordem liberal internacional significa a perda de aceitação por grande parte dos países dos pilares que Roosevelt e Churchill estabeleceram na Carta do Atlântico em 1941 o que mais tarde se refletiria na criação das Nações Unidas Este entendimento entre os líderes anglosaxônicos baseavase na relação especial que ambas as nações afirmavam possuir devido às linhagens políticas culturais e linguísticas que as colocavam no topo da ordem liberal e democrática Essa visão reforçou a identificação britânica com a liderança americana fundamentalmente após a era Thatcher e continuada pelo Novo Trabalhismo de Tony Blair que o levou a apoiar de forma confiável as guerras de Bush contra o terrorismo O processo do Brexit teve entre as suas promessas mais importantes não cumpridas uma relação comercial especial com os Estados Unidos Essa seria uma das cartas de Boris Johnson para obter apoio social para finalmente encerrar a saída do Reino Unido da Comunidade Europeia OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 19 Sendo primeiroministro quando começou o conflito na Ucrânia Johnson comportouse de acordo com a lógica da relação especial apoiando irrefutavelmente as posições de Biden Johnson ganhou destaque pela sua oposição ativa a qualquer possibilidade de uma solução pacífica entre a Ucrânia e a Rússia O jornal ucraniano Ukrainska Pravda em maio de 2022 nomeouo como sabotador das negociações diplomáticas entre Kiev e Moscou no início daquele ano quando inesperadamente apareceu argumentando que o Ocidente não queria acordos mas sim pressionar Putin até à sua queda Recentemente Johnson expressou que uma derrota ucraniana contra a Rússia significaria o fim do domínio ocidental sobre o mundo será uma catástrofe para o Ocidente será o fim da hegemonia ocidental sustentou uma humilhação total para o Ocidente a primeira vez nos 75 anos de existência da OTAN que esta aliança até agora bem sucedida foi completamente derrotada e em solo europeu Será um ponto de viragem na história o momento em que o Ocidente finalmente perderá a sua hegemonia do pósguerra queixouse Atualmente o primeiroministro do Brexit e da austeridade David Cameron agora como chanceler de Rishi Sunak exministro da Economia de Boris Johnson atravessou o Atlântico para encorajar os Estados Unidos a continuarem a apoiar a Ucrânia afirmando que se a Rússia não for derrotada irá sentirse encorajado a invadir outros países Repetindo a lógica que o próprio Biden utilizou argumentou que o apoio ocidental à Ucrânia é um custo extremamente bom uma vez que enfraqueceu a Rússia criou empregos no país e fortaleceu a OTAN sem a perda de uma única vida americana O que é surpreendente na agressividade britânica em relação a Rússia é que em termos militares ela é ofuscada em todos os aspectos possíveis especialmente agora que as suas contribuições para a Ucrânia não lhe deixaram mais nada Nem mesmo projéteis Segundo o tenentegeneral Sir Rob Magowan o Reino Unido não poderia suportar uma guerra convencional com a Rússia por mais de alguns meses Em Unherd Nina L Khrushcheva professora russoamericana na The New School em Nova Iorque argumentou que Putin não demonstrou nenhum desejo de declarar guerra à OTAN Mas ao alimentar receios de que este seja o caso a OTAN corre o risco de criar uma espécie de profecia autorealizável Até eu um crítico constante de Putin acho isso completamente provocativo e bobo Embora os republicanos não pareçam querer atribuir mais recursos à Ucrânia as suas posições globais coincidem com as de OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 20 Cameron Uma dúzia de senadores republicanos enviaram uma carta ao promotor Karim Khan do Tribunal Penal Internacional ameaçandoo de que se ele investigar Israel nós o atacaremos com ações severas contra você e sua instituição porque elas seriam não apenas uma ameaça para à soberania de Israel mas também à soberania dos Estados Unidos De forma semelhante a equipe econômica de Trump está a desenvolver sanções contra países que deixem de usar o dólar como moeda internacional Embora os líderes anglosaxões preservem as suas tradições de acordo com uma sondagem Gallup a aprovação dos Estados Unidos em África caiu e é agora superada pela China enquanto a da Rússia aumentou consideravelmente Da mesma forma no inquérito Índice de Percepção da Democracia 2024 realizado pela empresa alemã Latana em 53 países a maioria na Ásia Médio Oriente e Norte de África tem uma visão tão positiva da Rússia e da China como dos Estados Unidos Os resultados também revelaram que o apoio aos Estados Unidos entre os europeus diminuiu com queda particularmente acentuada na Alemanha Áustria Irlanda Bélgica e Suíça Frederick DeVeaux investigador sênior da Latana destacou que esta é a primeira vez desde o início da administração Biden que muitos países da Europa Ocidental voltaram a ter percepções claramente negativas dos Estados Unidos Quase 80 anos desde que Churchill cunhou o termo relação especial o jornalista inglês Thomas Fazi afirma que a noção de que o Reino Unido goza de uma posição subimperial privilegiada entre os aliados ocidentais da América continua a informar a auto identidade do país como uma das grandes potências mundiais Por sua parte Francis Fukuyama cujo livro de 1992 do fim da história marcou a consolidação da ordem liberal internacional numa recente entrevista para Internationale Politik Quarterly afirma que tanto Trump quanto Biden possuem problemas mentais concluindo É um pouco triste que a política americana dependa de qual candidato se deteriora mais rapidamente Mas é onde estamos agora OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 21 PARA ENTENDER O DECLÍNIO DA FRANÇA Por Wagner Sousa Segunda Guerra Mundial foi podese dizer o estertor da primazia europeia nos assuntos mundiais Os Estados Unidos já eram a maior economia do mundo desde o fim do século XIX mas embora crescentemente influentes não tinham até então capacidade para se firmar como poder hegemônico global A destruição da Europa e de outra grande potência militarista e expansiva da época o Japão dá aos EUA a oportunidade de afirmar a sua hegemonia mundial em contraposição à União Soviética país que tinha em seu cerne outra velha potência imperial a Rússia No pósguerra os impérios coloniais europeus por todo o mundo ruíram em sua maior parte e a maioria das colônias se transformou em países independentes Os movimentos independentistas ganharam força no Terceiro Mundo com a luta legítima de seus povos pela autodeterminação e também tiveram apoio da nova potência hegemônica os EUA que tinham interesse em limitar a influência europeia no mundo como parte do processo da afirmação de sua própria influência A Europa Ocidental no período da guerra fria com a criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte OTAN aliança militar liderada e em sua maior parte mantida pelos EUA inicia a sua integração com a Comunidade Europeia para o Carvão e o Aço CECA em 1951 sob tutela geoestratégica norteamericana o que segue sendo a realidade até os dias atuais A França neste cenário dá início a um processo de pacificação com a então Alemanha Ocidental que se materializaria no processo europeu de integração que com o decorrer dos anos ganharia complexidade Para a Alemanha sob a liderança do conservador Konrad Adenauer era a maneira de se integrar ao Ocidente e ter alguma margem de manobra para agir na política externa E para a França após o trauma de duas guerras mundiais a oportunidade para a paz regional e exercício de liderança política no que passou a ter destaque o seu poderio nuclear ausente na Alemanha A França detém até hoje a vantagem da influência em sua antiga zona A OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 22 colonial em especial na África e do fato do francês ser uma língua falada em escala global A descolonização no pósguerra a crescente integração da França na Europa e o progressivo aumento da influência alemã a adoção de políticas econômicas neoliberais e já no século XXI a afirmação de novas potências na cena global com destaque para China e Índia e retorno de uma velha potência a Rússia são os fatores que em síntese podem explicar o declínio relativo do poder francês tanto em nível regional quanto global No que diz respeito à descolonização a independência portanto da maior parte das áreas diretamente subordinadas à Paris em especial na África mas também na Ásia assim como para outros poderes europeus como o Reino Unido representou perda de poder e prestígio Porém isto não significa que os franceses e outros europeus não tenham mantido a despeito desta importante mudança bastante influência em especial na África Com isso têm conseguido manter relações privilegiadas Todavia tem havido questionamentos a este neocolonialismo francês como no caso do Níger excolônia da qual a França importa urânio a preços baixos A percepção destas relações injustas e ação na região de outras potências como Rússia e China tem levado a França a perder espaço político no continente A integração europeia é o grande feito político francês do século XX Em um continente até então envolto em guerras contínuas há pelo menos um milênio a iniciativa inicial já mencionada da Comunidade Europeia para o Carvão e o Aço CECA assinada por França Alemanha Ocidental Bélgica Holanda Luxemburgo e Itália e que evoluiu para a decisão da criação da União Europeia e da moeda comum o euro em 1992 com o Tratado de Maastricht garantiu relações pacíficas e crescente cooperação e articulação política Contudo mesmo no cenário regional também se vê a perda de peso relativo da França A esfera monetária europeia é um exemplo O processo de coordenação cambial que levou ao euro já nos anos 1990 teve o marco alemão como moeda referência em todo o período Tornouse referência inclusive do próprio euro uma espécie de moeda alemã europeizada Os Estados Nacionais europeus perderam margem de manobra com a subordinação à rígida política antiinflacionista do Bundesbank que foi copiada pelo Banco Central Europeu Após um início de políticas nacionalistas e estatizantes o governo francês do socialista François Miterrand capitulou em 1984 com a adoção da política do franco forte e a proposta de OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 23 aprofundar a integração europeia O Ato Único Europeu em 1986 pactuou as medidas liberalizantes de preparação para o Mercado Único que se constituiu em 1992 A reunificação alemã em 1990 tem como contrapartida exigida pela França a criação da moeda europeia o euro A França ganha assento no Banco Central Europeu mas se compromete com política monetária de rígido controle inflacionário e austeridade fiscal Não há até os dias atuais políticas europeias fiscais na escala suficiente para compensar uma moeda europeia que serve melhor às economias mais desenvolvidas do norte da Europa A integração europeia como mola propulsora de políticas neoliberais favoreceu amplamente a indústria alemã em detrimento dos europeus do sul menos desenvolvidos e também prejudicou a economia da França A partir da adoção do euro se consolidou a hegemonia econômica alemã na Europa Entre os anos 1990 no pósguerra fria e a década de 2010 o mundo teve o momento unipolar dos EUA Mas o cenário mudou consideravelmente A guerra entre Rússia e Ucrânia deu um novo sentido existencial à OTAN e reafirmou a liderança norte americana no continente A Europa se volta aos preparativos para a guerra e a Alemanha se coloca no nível regional como o país com capacidade de liderar este esforço de rearmamento A China passou a ser percebida pelos europeus não mais como mercado e investidor mas como concorrente nas áreas de maior conteúdo tecnológico e comprador indesejado de empresas europeias importantes e estratégicas além de ameaça política pelo seu sistema de governo autoritário E nesta conjuntura a França se vê internamente com grande insatisfação social pelo empobrecimento de grande parte da população pelo fracasso das políticas relativas aos imigrantes e seus descendentes falta de perspectivas aos jovens e crescimento da xenofobia e da extrema direita O país tem menos influência nos assuntos globais e também europeus A solução futura para a crise pode ser um governo de extrema direita ultranacionalista que eventualmente pode inclusive provocar uma ruptura na União Europeia É a dinâmica do declínio relativo da França que deve seguir e provavelmente se aprofundar a despeito das bravatas do presidente Emmanuel Macron sobre o envio de soldados da OTAN para defender a Ucrânia e das escolhas políticas que sua população fizer no futuro OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 24 FRANÇA E ALEMANHA DANÇA E CONTRADANÇA Por Flavio Aguiar O rei mandou me chamá O rei mandou me chamá Pra casá com sua fia Só de dote ele me dava Oropa França e Bahia Me alembrei do meu ranchinho Da minha roça do meu feijão O rei mandou me chamá O rei mandou me chamá Ah meu rei eu disse não Congo brasileiro epois de hostilidades mútuas e seculares e de muitas guerras França e Alemanha selaram a paz em 22 de janeiro de 1963 através da assinatura de um Tratado de Amizade também conhecido como Tratado do Palácio dos Campos Elísios Charles de Gaulle e Konrad Adenauer o assinaram quase 18 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial A reconciliação foi corroborada pelo gesto do presidente francês François Mitterand e o primeiroministro alemão Helmut Kohl homenageando de mãos dadas em 22 de setembro de 1984 os soldados dos dois países que caíram na batalha de Verdun durante a Primeira Guerra Mundial Esta reconciliação foi fundamental para estabelecer as bases da criação da União Europeia em 7 de fevereiro de 1992 através do Tratado de Maastricht que entrou em vigor a partir de 1 de novembro do ano seguinte A reconciliação entre França e Alemanha tornouse a Pedra Fundamental o Fulcro e a Alavanca ia dizer Eixo mas achei que a palavra seria inadequada em tal contexto da União condição reforçada 23 anos depois quando o Reino Unido retirouse dela após um plebiscito desastrado promovido pelo então primeiro ministro londrino David Cameron Aquela condição de Base Sólida ia dizer Muro de Arrimo mas achei que Muro também não era uma palavra adequada aqui da União teve momentos virtuosos por exemplo no convívio D OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 25 bastante harmonioso entre a chanceler Angela Merkel e o presidente Nicolas Sarkozy Nem mesmo a eleição na França do socialista François Hollande que de socialista não tinha muito além do nome de seu partido perturbou a aparência de tal harmonia Aparência Sim porque sob a superfície do convívio virtuoso medravam algumas sementes da dissensão apontando a discórdia Por exemplo a matriz energética de ambos os países era muito diferente A França apoiouse decididamente na energia nuclear enquanto a Alemanha foise afastando cada vez mais dela e passou a depender mais e mais do gás russo Outras diferenças estratégicas foram aflorando pouco a pouco sobretudo no campo do grau de entusiasmo com a adoção da moeda comum o euro maior na Alemanha do que na França e também em questões de segurança continental E o terreno para o afloramento de tais diferenças se tornou mais favorável depois da eleição do impulsivo Emmanuel Macron na França e do hesitante Olaf Scholz na Alemanha Macron é descrito como um político impulsivo ruidoso disposto a aceitar riscos e a admitir erros e correções de rumo Já Scholz tem um perfil bem mais marcado por uma sobriedade eclesiástica por cautela e lentidão apesar dos arrancos impulsivos de sua Ministra de Relações Exteriores a Verde e algo boquirrota Annalena Baerbock A guerra na Ucrânia e suas consequências foi a cunha que ampliou o campo das tensões e das desavenças mesmo que disfarçadas pelos sorrisos e apertos de mão das fotos oficiais Pressionado pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido através da OTAN a enviar para a Ucrânia os tanques alemães Leopard 2 Scholz a princípio hesitou Disto se aproveitou Macron para prometer sem consultar seu vizinho do outro lado do Reno blindados franceses para Kiev Afinal com o aumento das pressões externas e das internas sobretudo através do Partido Verde transformado em VerdeOliva Scholz cedeu Mas a fissura estava aberta Outra fissura se abriu quando Scholz anunciou também sem consultar nem avisar antes seu colega parisiense a criação de um fundo de 200 bilhões de euros para subsidiar os custos energéticos catapultados pela queda brusca no fornecimento do gás russo A medida foi recebida com reservas em Paris e em outros países nas vizinhanças temendo um efeitocascata que desestabilize mais ainda os já oscilantes custos industriais e conexos das importações e exportações da e para a Alemanha Outras fissuras foram se abrindo Macron fala de um lado no envio de tropas para o campo de batalha na Ucrânia e de outro OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 26 em manter um diálogo com a Rússia Scholz manifesta desconfiança quanto ao envio de tropas mas a Alemanha vem endurecendo o tom com Moscou acusando hackers russos por perturbações no espaço estratégico da cibernética germânica Berlim vem advogando o estabelecimento de um escudo de segurança europeu contra a Rússia valendose de insumos norte americanos o que desagrada a indústria militar francesa que por sua vez na corrida armamentista que se instalou na Europa não se mostra muito disposta a compartilhar segredos com seus vizinhos O anúncio da presidenta da Comissão Europeia Úrsula von der Leyen de que fundos russos congelados venham a financiar armas e outras benesses para a Ucrânia vai aumentar a temperatura deste caldo cultural bélico já perto de ebulição na Europa Sem falar que este verdadeiro confisco já seria por si só um bom motivo para uma guerra de efeitos péssimos no mundo inteiro Estas fissuras vem corroendo por dentro a estabilidade da União aliadas aos ataques contra ela por parte de partidos de extremadireita na Alemanha na Holanda na própria França Espanha Itália Portugal e outros países e à instabilidade econômica e social provocada pelos planos de austeridade que ainda vigoram em todo o continente Quando nasceu a União Europeia parecia um timoneiro a governar uma embarcação para um mundo de paz como se dele fosse a rainha depois de guerras que destruíram o continente e boa parte do mundo Hoje combalida ela talvez ainda governe alguma coisa deste barco solto em meio à tempestade Mas não reina mais OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 27 A ASCENSÃO DA EXTREMADIREITA EUROPEIA Por Wagner Sousa uito se tem discutido nos meios políticos acadêmicos e na mídia acerca do declínio ocidental frente ao desafio direto colocado por Estados Nacionais de outra matriz civilizatória como o caso mais evidente da China e também da Índia e da resistência iraniana e russa aos desígnios de Washington apoiados pelos seus aliados europeus sob sua tutela estratégica na OTAN e outros acordos militares E nesta discussão tem destaque evidentemente a extraordinária expansão da economia da China nos últimos 45 anos o que foi acompanhado pelo seu expressivo fortalecimento militar crescente domínio de tecnologias de ponta e cada vez assertividade política e diplomática envolvendo variados temas mundiais de seu interesse direto ou não A Índia país mais populoso do mundo parceiro e ao mesmo tempo rival estratégico da China vem exibindo recentemente taxas de crescimento mais elevadas do que as do seu vizinho domínio tecnológico crescente em áreas como software e tecnologia espacial e também crescente poderio bélico partes do projeto de grande potência do nacionalismo hindu de Narendra Modi E por fim Irã e Rússia vem resistindo às pressões no caso iraniano em relação ao seu programa nuclear e sua projeção como potência regional no Oriente Médio e no caso russo pela disputa na Ucrânia com a OTAN pela hegemonia em área parte da exURSS e também da Rússia imperial O maior país do mundo em território apesar de sua característica de federação com diferentes nacionalidades compartilha com a Europa parte significativa de sua identidade e origem étnica Portanto a partir deste século o que se tem visto é a ascensão destes e outros atores estatais que tem questionado a hegemonia ocidental e seus 300 anos de dominância no mundo E se pode dizer que a partir da guerra russoucraniana na qual o Ocidente coletivo representado pelos EUA a União Europeia e aliados Japão Coreia do Sul Austrália e Nova Zelândia vem apoiando a Ucrânia contra a Rússia esta vem tendo o apoio econômico direto da China e da Índia que mantiveram e reforçaram as compras de petróleo e gás e indireto de vários outros países como por exemplo membros da exURSS que tem ajudado a Rússia a driblar as sanções do Ocidente para a compra de bens essenciais como semicondutores no caso os comprando de países ocidentais ou M OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 28 aliados Taiwan Coreia do Sul e vendendo aos russos por transações clandestinas Mas também há que se destacar que toda a América Latina possivelmente com exceção apenas da Argentina do ultraliberal Milei toda a África e praticamente toda a Ásia com as exceções já citadas não seguiram a diretriz ocidental de enfrentamento militar eou sanções econômicas aos russos Há uma evidente insatisfação e disposição de questionamento da hegemonia ocidental na maior parte do mundo E neste cenário a Europa tem visto a extremadireita assumir ou participar da coalizão de governo em vários países Comandam o governo na Itália terceira economia da UE e na Hungria e participam de coalizões em outros países Uma questão importante é que embora tenham sido normalmente simpáticos ao conservadorismo do russo Vladimir Putin a guerra da Ucrânia os enquadrou no bloco ocidental e na posição geopolítica contrária à Rússia com a exceção da Hungria do primeiroministro Viktor Orbán E no que se refere à União Europeia em parte por razões eleitorais parte substancial dos votantes é próEuropa e em parte por pragmatismo governamental os países dependem da UE para várias questões inclusive recebem fundos de suas instituições o que é relevante especialmente nos países menos desenvolvidos do bloco no sul e leste do continente diferentemente do discurso anti UE das campanhas eleitorais tem havido uma normalização destes partidos em relação ao projeto europeu e também das instituições europeias e suas elites em relação a estes partidos A extremadireita europeia tem procurado se articular em nível regional e neste ano está concentrada nas eleições para o parlamento europeu pleito em se espera que sua participação no legislativo da Europa aumente A extremadireita tem crescido também nos dois países fundadores do bloco a Alemanha e a França No caso francês seu número de eleitores tem crescido nas últimas décadas a Reunião Nacional liderada por Marine Le Pen esteve no segundo turno das duas últimas eleições presidenciais contra o atual presidente de centrodireita Emmanuel Macron Na Alemanha se firmou como terceira força no parlamento nacional o partido de ultradireita integrado inclusive por simpatizantes do nazismo Alternativa para a Alemanha AfD na sigla em alemão Como é comum na plataforma destes partidos uma forte inclinação a propostas anti imigração questionamentos à integração europeia à moeda comum e à política externa destes países e do bloco No caso do Alternativa para a Alemanha esta agremiação defende ser do interesse nacional alemão da sua indústria exportadora por exemplo boas relações com a China Berlim tem seguido os EUA e OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 29 buscado rever a sua aproximação com o gigante asiático A política externa não deve estar pautada por valores e sim pelos interesses Nesta visão seguir a política dos EUA é contrário aos interesses da Alemanha Claro que uma vez eventualmente no poder constrangimentos e pressões e também concessões vindas no caso dos EUA podem produzir uma convergência As políticas neoliberais com o efeito de concentração de renda e precarização do trabalho fragilizaram os partidos moderados de direita e esquerda que se alternaram no poder na Europa do pós guerra até o fim da década de 1990 A partir da década de 2000 vê se um persistente crescimento das siglas de tendência fascista A guerra entre Rússia e Ucrânia marca um ponto de inflexão Os laços políticos e econômicos entre russos e europeus em especial alemães foram cortados como resultado da guerra e a Alemanha com o apoio dos EUA lidera um processo de forte investimento bélico na União Europeia o que inclusive deverá ser o caminho para a recuperação econômica tendo em vista que a perda do gás barato da Rússia foi um pesado golpe para a economia europeia em especial para a indústria exportadora alemã O Ocidente coletivo se arma frente à Rússia e no IndoPacífico busca conter a China Não há como adiantar como a extrema direita eventualmente no poder nos dois principais países da região França e Alemanha vai se encaixar neste arranjo Tendo em consideração o acerto dos EUA com o governo anterior de extrema direita da Polônia em apoio à sua forte militarização para ser a linha de frente contra a Rússia e da própria acomodação da União Europeia com governos de extremadireita da região é possível imaginar que uma recuperação econômica lastreada no aumento do gasto bélico possa consolidar a normalização em curso dos governos de extremadireita no bloco e a adaptação destes às instituições europeias A questão é como se dará esse processo e seus reflexos sociais e políticos A estrutura do poder global norteamericano vai atuar para manter esta coesão muito importante para os seus objetivos geopolíticos porém a fratura social europeia é grande e o futuro da integração seguirá incerto OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 6 O INSUCESSO DAS SANÇÕES FINANCEIRAS DOS EUA E DA UE Por Mauricio Metri m 24 de março de 2024 alguns jornais noticiaram os 25 anos do UTurn do avião em pleno voo sobre o Atlântico com o então ministro das relações exteriores da Rússia Yevgeny Primakov em razão do início dos bombardeios da OTAN sobre a Sérvia sem aprovação do Conselho de Segurança da ONU1 Em meio à investida contra Belgrado as forças da OTAN atingiram deliberadamente a embaixada da China2 A data não foi esquecida por Pequim e no dia 7 de maio de 2024 o presidente Xi Jinping esteve na capital da Sérvia para prestar sua homenagem aos mortos e passar um recado ao Ocidente3 Tais fatos marcaram o começo da reconstrução da Rússia a aceleração do processo de ascensão chinesa e o aprofundamento das parcerias sinorussas4 Nesse período a Rússia partindo de uma posição de atraso militar em relação aos EUA e fragilidade econômicofinanceira conseguiu não só estabelecer uma vantagem estratégica no campo das armas em 2018 ao desenvolver armamentos hipersônicos como também reconstruir sua economia nacional a ponto de contornar um conjunto de unprecedented economic sanctions5 a que foi submetida A despeito dos pacotes de sanções sua economia expandiu em 2023 de modo mais expressivo do que a dos próprios países do Atlântico Norte e para este ano o FMI corrigiu suas previsões para a Rússia dobrando suas estimativas6 Essa política de sanções financeiras é uma das faces do poder monetário do dólar no sistema internacional sobretudo depois da Doutrina Bush filho de 20027 No entanto a efetividade das 1 Ver httpssputnikglobecom20240324uturnoveratlantichowrussianpmprimakovshowed moscowwontbeussatellite1117506919html 2 Ver httpswwwtheguardiancomworld1999oct17balkans 3 Ver httpssputnikglobecom20240508chinaserbiaformpartnershipafterdepravedciaattackin belgrade1118343031html 4 Ver Metri M História e Diplomacia Monetária Ed Dialética São Paulo 2023 cap 15 5 Ver httpswwwftcomcontent9518bcd8547e4a41b518265ad0451c9b 6 Ver httpswwwftcomcontent21a5be9cafaa495fb7afcf937093144d 7 Ver Nascimento Maria A W V do A Doutrina Bush e a Institucionalização do Poder Coercitivo do Dólar Dissertação de Mestrado PEPI IEUFRJ 2024 E OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 7 sanções econômicas de Washington em termos dos objetivos de sua política externa tem sido muito baixa para não dizer nula Por exemplo o Irã a despeito do severo conjunto de sanções inaugurados em 2007 tem conseguido não somente resistir como também desenvolver uma efetiva capacidade militar ofensiva que lhe permitiu empreender uma mudança na correlação de forças no Sudoeste Asiático Há um mês em 12 de abril de 2024 Teerã abandonou sua política de paciência estratégica e revelou ao mundo por meio do ataque de mísseis a Israel sua capacidade de perfurar sistema de defesa antiaérea israelense1 No geral os principais alvos das sanções dos EUA Rússia Irã Coréia do Norte Venezuela e Cuba seguem resistindo e não é difícil perceber que uma das razões para isso é a ascensão da China à condição de maior economia do mundo ultrapassando a dos EUA Em 2023 sua participação no PIB mundial baseado na paridade de poder de compra chegou a 1873 enquanto a dos EUA ficou com 15562 Por seu dinamismo tamanho e sofisticação a economia chinesa tornou possível o contorno bypass dos sistemas de pagamentos controlados por Washington Para se ter uma idéia após o início da intervenção militar russa na Ucrânia quando foi imposto um sem precedente pacote de sanções o comércio sino russo cresceu 64 alcançando o recorde de US 240 bilhões em 2023 Não por outra razão em 8 de abril de 2024 a secretária do Tesouro dos EUA Janet Yellen em visita a Pequim ameaçou as companhias chinesas ao afirmar que There will be significant consequences for companies that provide material support to Russia Those who do not comply will face consequences3 A resposta chinesa veio alguns dias depois quando da visita do ministro das relações exteriores da Rússia Sergey Lavrov a Pequim Ambos os países se comprometeram a manter a estabilidade da cadeia de abastecimento industrial inclusive com o apoio material chinês à guerra da Rússia contra a Ucrânia e à base industrial de defesa russa Segundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros da China Moscou e Pequim reinforced calls for their two countries to work more closely together against hegemonism4 1 Ver httpswwwbrasildefatocombr20240419oiraobrigouisraelagastarmilvezesmaisdo queocustodoataqueparaorepelirdizmohammadmarandi 2 Ver httpswwwimforgexternaldatamapperPPPSHWEOOEMDCADVECWEOWORLD 3 Ver httpspravda24czhlavnizpravyusajsoupripravenysankcionovatcinskebankyaspolecnosti kterepomohouruskevalecnemasineriitomaskosina 4 Ver httpswwwftcomcontent272e71e6a355409996403c7694316722 OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 8 Algumas semanas depois foi a vez do secretário de Estado dos EUA Antony Bliken reiterar as ameaças de Washington em pleno solo chinês Em seu pronunciamento durante visita oficial à China afirmou que The United States is ready to take new measures and impose sanctions against China and against the background of the situation in Ukraine If China does not take measures to solve this problem the US will do it1 Essas persistentes ameaças de Washington são reveladoras de um consenso já estabelecido no Atlântico Norte de que o poder do dólar enquanto instrumento de sanção econômica está se erodindo e que a China se constitui numa das principais razões para isso Falase abertamente sobre o tema Em 29 de abril de 2024 a presidenta do Comitê do Tesouro da Câmara dos Comuns do Reino Unido Harriet Baldwin afirmou que There is a general consensus that sanctions are not working in terms of their stated intent causing real trouble for the Russian economy2 Alguns dias depois na mesma linha o ministro da defesa da Itália expressou que economic sanctions against Russia had failed and called on the West to try harder to negotiate a diplomatic solution with President Vladimir Putin to end the war in Ukraine the West had wrongly believed its sanctions could stop Russias aggression but it had overestimated its economic influence in the world3 Há poucos dias em 6 de maio de 2024 após encontro com o presidente chinês Xi Jinping na capital francesa a presidenta da Comissão Européia Ursula von der Leyen voltou ao tema Afirmou que We have also discussed Chinas commitment not to provide any lethal equipment to Russia More effort is needed to curtail delivery of dualuse goods to Russia that find their way to the battlefield And given the existential nature of the threats stemming from this war for both Ukraine and Europe this does affect the EUChina relations4 Portanto nas estruturas de poder do Atlântico Norte já se consolidou a percepção de que há uma espécie de aviltamento do poder do dólar enquanto instrumento de violência via sanção financeira embora haja um outro entendimento também estabelecido em Washington com relação ao principal privilégio de se comandar a moeda de referência global o de alavancar o grau de endividamento e gasto de seu estado impondo ao mundo o ônus do 1 Ver httpssputnikglobecom20240426blinkenpromisestoensuretransatlanticsecurityto counterchinesesupportforrussia1118125099html 2 Ver httpswwwftcomcontenta9a583b99b04430ea9ed628ea2f5d492 3 Ver httpswwwreuterscomworldeuropeitalycallsukrainetrucepeacetalkswithputin newspaper20240506 4 Ver httpseceuropaeucommissionpresscornerdetailenstatement242464 OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 9 financiamento de suas guerras globais Este ao contrário das sanções segue funcionando a plenos pulmões como no caso do pacote de US 95 bilhões de ajuda para Ucrânia Israel e Indo Pacífico recém aprovado na Câmara dos Deputados dos EUA1 1 Tema este discutido em outra oportunidade Ver httpsstrategicculturesunews20240320silver bulletagainstbarbarianinvasionsofwestdedollarizationofinternationalsystem OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 10 O IRÃ AMEDRONTA ISRAEL E GOLPEIA O OCIDENTE Por José Luís Fiori a noite de 13 para 14 de abril de 2024 o mundo assistiu a algo surpreendente e inusitado o bombardeio aéreo iraniano do território de Israel como resposta ao ataque israelita ao consulado iraniano de Damasco na Síria que matou sete oficiais da Guarda Revolucionária do Irã O Irã utilizou 200 UAVs 150 mísseis de cruzeiro 110 mísseis balísticos superfíciesuperfície Shahab 3 Sajil2 e Kheibar e mais 7 mísseis hipersônicos Fattah2 Foi o maior ataque de drones da história lançado a partir de vários pontos do Oriente Médio incluindo a Síria o Iraque o Líbano e a parte do Yemen controlada pelos Houtis Israel declarou ter abatido 99 dos mísseis e UAVs que foram lançados mas não houve nenhuma comprovação e muitos especialistas militares duvidam dessa informação Assim mesmo Israel contou com o apoio da Força Aérea do Reino Unido dos Estados Unidos e da Jordânia para interceptar os projéteis e com a assistência da inteligência americana na localização e antecipação dos alvos No balanço final entretanto há consenso de que foi uma vitória estratégica e simbólica do Irã sobretudo quando se tem em conta que o Irã anunciou aos governos dos EUA e da Turquia pelo menos sobre seu ataque e utilizou na maioria dos casos drones muito lentos e ultrapassados tecnologicamente Apesar disto seus drones e foguetes chegaram até Israel e atingiram vários objetivos militares sem ter matado nenhum civil aparentemente nem ter destruído ou visado nenhum equipamento civil de Israel Afora isto o Irã obrigou Israel a gastar mais de 1 bilhão de dólares em poucas horas ao utilizar seu famoso sistema de defesa antiaérea Iron Dome permitindo que os persas o localizassem e o mapeassem para eventualidade de futuros ataques Mapearam simultaneamente as bases utilizadas por norteamericanos britânicos e jordanianos o que talvez explique a reação temerosa e a fragilidade da resposta que foi dada uma semana depois pelos israelenses De outra perspectiva o ataque persa atingiu em cheio a crença na invencibilidade militar israelense e ao mesmo tempo N OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 11 enviou uma mensagem ao resto do Oriente Médio revelando uma capacidade de dissuasão iraniana que era desconhecida até então com relação a Israel mas também com relação aos seus demais concorrentes geopolíticos dentro do Oriente Médio como é o caso de Turquia Emirados Árabes Jordânia e em especial Arábia Saudita que já refez rapidamente seus cálculos estratégicos e retomou suas negociações em torno de um acordo de defesa com os Estados Unidos envolvendo provavelmente o reconhecimento de Israel Além disso os iranianos demonstraram possuir capacidade balística de atacar e destruir as bases militares que os Estados Unidos mantêm na região podendo inclusive atingir o continente europeu Ou seja resumindo o panorama militar do Oriente Médio mudou radicalmente depois da noite de 13 para 14 de abril de 2024 e todos os cálculos estratégicos dos principais atores desse tabuleiro geopolítico terão que ser refeitos porque se trata de uma mudança radical e irreversível Para compreender a dimensão desse impacto entretanto é preciso recuar no tempo e relembrar a relação da Inglaterra e dos Estados Unidos com a invenção criação e sustentação militar e financeira deste microestado que possui um território que é metade do estado do Rio de Janeiro e uma população que é bem menor do que a do Grande Rio Com um território sem nenhuma relevância geoeconômica mas que Inglaterra e Estados Unidos transformaram numa espécie de anão atômico com a pretensão de ser um povo escolhido mas que é na prática apenas um bibelô geopolítico angloamericano na sua luta pelo poder global Aqui contudo é necessário fazer um pequeno flashback histórico A proposta inicial de criação do Estado judeu é atribuída normalmente ao jornalista austrohúngaro Theodor Herzl e ao seu livro O Estado Judeu publicado em Viena em 1897 O mais provável no entanto é que sua proposta tivesse caído no mesmo vazio de várias outras desilusões nacionalistas do século XIX se não tivesse se transformado numa válvula de escape dos europeus com relação aos judeus no momento em que Arthur Balfour o ministro de Relações Exteriores britânico declarou em 1917 que o governo de Sua Majestade encarava favoravelmente o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o Povo Judeu Uma declaração que se transformou num projeto concreto em 1922 quando a Liga das Nações concedeu à Inglaterra um Mandato Internacional sobre o território da Palestina que era então habitada por uma maioria árabe e muçulmana com a participação de apenas 11 de judeus porcentagem que foi aumentando com o estímulo dos britânicos OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 12 Foram os ingleses portanto que induziram a primeira grande onda migratória de judeus europeus na direção da Palestina entre 1922 e 1935 Como está acontecendo agora novamente depois da decisão do Parlamento inglês de despachar para Ruanda na África os novos judeus ou refugiados árabes e africanos que aportaram na Inglaterra sobretudo depois do ataque angloamericano ao Iraque em 2003 E foi esta imigração induzida dos judeus europeus que provocou a primeira grande revolta palestina massacrada pelos ingleses entre 1936 e 1939 Foi ali que começou a resistência palestina que se mantém até hoje mas que adquiriu outra intensidade depois que os ingleses decidiram se desfazer do seu Mandato Internacional em 1947 começando a articular o apoio ao seu projeto de criação de um Estado Judeu através de uma decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas Decisão que foi tomada no dia 29 de novembro de 1947 sob forte pressão dos Estados Unidos e assim mesmo por apenas 33 votos a favor 13 contra e 10 abstenções A ONU havia sido recémcriada e seria muito difícil que pudesse tomar uma decisão desta importância e gravidade se não fosse pela intervenção quase imperativa das duas grandes potências recémvitoriosas na Segunda Guerra Mundial Inglaterra e Estados Unidos estes no caso empoderados pelo sucesso de seu ataque nuclear contra as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki Assim nasceu o Estado de Israel no dia 14 de maio de 1948 e sem o apoio de Estados Unidos e Inglaterra ele recémcriado não teria conseguido vencer sua primeira guerra contra os Estados árabes do Egito Síria Líbano e Jordânia já no ano de 1948 A guerra durou um ano e terminou com a vitória de Israel e a anexação israelita dos territórios da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental além da entrega da Faixa de Gaza aos árabes onde haviam então se refugiaram cerca de 700 mil palestinos expulsos de suas terras pela Resolução da ONU n 181 Depois disto ainda houve a Guerra dos Seis Dias em 1967 e a Guerra do Yom Kippur em 1973 vencidas por Israel sempre e de novo com o apoio decisivo e incondicional financeiro e militar de Estados Unidos e Inglaterra E foi por decisão dessas duas potências que a França repassou a Israel seu segredo atômico aparentemente logo após a Guerra dos Seis Dias Esta história nos ajuda a entender melhor a relação umbilical que se estabeleceu através do tempo entre os israelenses e seus criadores e tutores angloamericanos O apoio incondicional dos EUA e da Inglaterra foi o grande responsável pela invencibilidade militar de Israel desde sua primeira vitória contra os árabes em 1948 E é esta relação carnal entre os três países que explica a OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 13 forma violenta e incondicional com que os Estados Unidos e a Inglaterra reagiram frente ao Hamas em 7 de outubro de 2023 apoiando inclusive o massacre do povo palestino da Faixa de Gaza até o momento em que a selvageria israelense começou a ameaçar a tentativa de reeleição de Joe Biden Uma reação raivosa que se repetiu frente ao ataque iraniano da noite de 13 para 14 de abril porque neste caso a demonstração de fragilidade de Israel representou também uma grande derrota para as duas potências que tutelam o Estado Judeu e que são na realidade o núcleo durodo império militar do Ocidente OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 14 FILIPINAS A MAIS NOVA ZONA DE ATRITO ENTRE EUA E CHINA Por Wagner Sousa 1Hegemonia estratégia global e conflitos regionais região oceânica do Mar do Sul da China provavelmente é a mais problemática do mundo em termos de definição das fronteiras marítimas China Vietnã Taiwan Filipinas Malásia Singapura e Brunei estão diretamente envolvidos em uma disputa na qual as reivindicações relativas ao mar territorial ou a zona de exploração de econômica de cada país se superpõem Como aparece no mapa abaixo A região é crucial para os interesses da China por onde passa a maior parte de seu comércio exterior Vinte por cento do comércio mundial passa por ali É um espaço relevante também para a atividade pesqueira e se especula que há depósitos de petróleo e gás É vista como essencial para os chineses também para a sua defesa O país tem construído ilhas artificiais para assegurar a presença de sua marinha Essa assertividade chinesa na defesa de seus interesses têm despertado a oposição de outros países da A OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 15 região com suas também entendidas como legítimas reivindicações territoriais marítimas E oposição também dos Estados Unidos nação hegemônica nos oceanos do planeta Esta região é no que diz respeito à economia altamente integrada E é uma integração com destaque para o setor industrial com os países da região fornecendo componentes para a indústria chinesa Isto torna a questão mais complexa aos países da região em relação à China e este pêndulo entre afirmação da soberania marítima e acomodação com o gigante asiático É a tensão entre relações econômicas e políticas importantes com o país mais relevante em termos regionais e a necessidade de resguardar o que é entendido como interesse nacional legítimo tanto econômico como de segurança E têmse aqui o papel dos Estados Unidos A ideia de liberdade de navegação nas chamadas águas internacionais tem sido a principal justificativa norteamericana para se contrapor construindo alianças com os países da região às intenções de jurisdição marítima da China Para tanto os EUA têm firmado acordos com os países deste entorno e feito exercícios com a participação das suas marinhas Os encontros entre as marinhas da China dos EUA e dos países da região não redundaram até então felizmente em qualquer incidente mais sério mas os riscos aumentam à medida que essas ocorrências vêm se tornando mais frequentes Controlar os oceanos é uma das capacidades da potência hegemônica os Estados Unidos Para tanto administram uma vasta rede global de instalações militares portaaviões satélites e possuem acordos militares em todos os continentes No Indo Pacífico conceito criticado por muitos por unir os Oceanos Pacífico e Índico unicamente para atender ao interesse de predomínio norte americano vem celebrando os mais importantes e incentivando aliados a fazêlo acordos militares nesta região como o Aukus Austrália Reino Unido e EUA o QUAD Estados Unidos Japão Índia e Austrália o acordo trilateral entre EUA Japão e Coréia do Sul o recente acordo entre Austrália e Filipinas e a reaproximação estratégia entre EUA e Filipinas no governo de Ferdinando Marcos Jr Todos visam a contenção da China 2 Filipinas a Ucrânia do Pacífico Após uma maior aproximação com os chineses promovida pelo presidente anterior Rodrigo Duterte o novo mandatário filipino Ferdinando Marcos Jr volta ao tradicional alinhamento das Filipinas com os Estados Unidos EUA e Filipinas realizarão exercícios navais e patrulhas aéreas conjuntas sobre o Mar do Sul OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 16 da China e os norteamericanos terão maior acesso a instalações militares filipinas Esta reaproximação foi precedida por um acirramento nas relações ChinaFilipinas o que é exemplificado pelo site da BBC News Brasil 281023 China e Filipinas vivem atualmente o seu momento de maior tensão dos últimos anos Ambos os países disputam territórios no Mar da China Meridional também conhecido como Mar do Sul da China incluindo o arquipélago Ilhas Spratlye e o Atol de Scarborough Estes territórios ficam a cerca de 200 km a leste das Filipinas que os controla Mas Pequim reivindica as áreas como suas e tem posicionado a sua força naval nas águas ao redor No último domingo 2210 um navio da Guarda Costeira chinesa atingiu intencionalmente um dos barcos filipinos A aliança entre os Estados Unidos e as Filipinas portanto se coloca para as Filipinas assim como outros países da região como essencial para fazer frente à China e conter suas ambições hegemônicas regionais Para os EUA é parte de uma rede de alianças que não se trata exatamente de uma OTAN do Pacífico mas que busca aumentar expressivamente a cooperação entre os norteamericanos e os atores estatais locais como importante elemento de sua estratégia de enfrentamento global da China Nessa estratégia a própria OTAN pode assumir um papel global e se juntar a esse esforço no IndoPacífico A soma destes dois oceanos visa prevenir ou limitar a projeção de poder da China no Leste Asiático no Oriente Médio e na costa oriental da África além do seu poder naval neste grande espaço oceânico O temor de alguns analistas é que em estratégia similar à adotada na confrontação com a Rússia as Filipinas assim como a Ucrânia possam ser o ponto de atrito em forma de guerra por procuração para desgaste militar chinês e busca de seu isolamento e enfraquecimento No caso russo estes objetivos não foram alcançados Embora pareça distante no momento tal cenário a crescente militarização da região promovida pelos EUA e a expansão das forças armadas chinesas com por exemplo o recente lançamento do terceiro portaaviões chinês o primeiro comparável aos gigantes portaaviões nucleares dos EUA enseja o crescente risco de confronto entre duas potências nucleares cenário muito perigoso para a região e para o mundo À medida que o desenvolvimento chinês e sua ascensão no mundo vai colocando cada vez mais em dúvida a primazia norteamericana e do Ocidente uma forte reação vem sendo articulada nos campos econômico comercial tecnológico e militar E para os EUA envolver parceiros em proxy wars pode ser um trágico estágio futuro desta confrontação OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 17 A VIAGEM DE XI JINPING E AS FRATURAS NO PROJETO EUROPEU Por Daniel Barreiros em ficando cada vez mais evidente que emerge um projeto rearmamentista na Europa cujo principal protagonista é o atual governo alemão com apoio norteamericano Muito embora não se possa falar de um projeto formal as evidências apontam para uma tentativa de construção de liderança na UE com base em uma política de desenvolvimento das capacidades industriais de defesa europeias tendo Berlim nitidamente como epicentro Esse ímpeto se beneficia fundamentalmente da visível incapacidade de Kiev de conter a concretização ainda que limitada de objetivos militares por parte das forças armadas russas e da ameaça mais imaginária que real de uma atualização desses objetivos envolvendo territórios sob o manto protetor da OTAN Fica sugerido nas entrelinhas o fomento a um consistente movimento de polarização global por parte dos governos norteamericano e alemão no qual ou se cerra fileiras com Washington ou se está na outra ponta do arcabuz Nesse sentido parte das atenções se volta para a China e para a eventualidade do fornecimento de tecnologias sensíveis às forças armadas russas que lhes garantam alguma vantagem além daquelas de que já dispõem Pequim vem sendo pressionada de forma bem pouco razoável por um posicionamento enfático em condenação à guerra algo que naturalmente é recebido pelas autoridades chinesas com ouvidos de mercador Olaf Scholz visitou a capital chinesa em abril passado e entre manifestações de repúdio à alegada prática de subsídios à indústria chinesa que permitiria aos seus produtos tomarem de assalto os mercados europeus o chanceler alemão enfatizou o perigo à dita ordem internacional baseada em regras representado pela Guerra Russo Ucraniana Instou Pequim a influenciar diretamente Vladimir Putin para o fim das hostilidades e pediu apoio chinês à conferência de paz a ser realizada em junho na Suíça Além de uma promessa lacônica de apoiar a tal conferência para a qual os russos não foram convidados acrescentese Scholz levou para casa sorrisos V OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 18 e saudades de um tempo em que os europeus falavam grosso com seus lacaios e eram atendidos E em cena entram os franceses Que a eurotrip de Xi Jinping em maio deste ano fosse incluir Budapeste e Belgrado era algo um tanto óbvio a Hungria do extremista de direita Viktor Orbán é vista por Pequim como porta de entrada e uma voz em defesa dos interesses chineses na União Europeia e a Sérvia não só mostra um resoluto compromisso com a Rússia de Putin como é feliz receptáculo de polpudos investimentos chineses no ambito da Nova Rota da Seda da qual a Itália aliás se desligou O realmente interessante foi Xi Jinping não começar sua viagem pela Europa com uma visita de cortesia à Berlim dentro do melhor espírito de reciprocidade e de reconhecimento de sua suposta liderança regional Começou por Paris onde um mordido e recalcado Macron lhe aguardava Não abundaram dessa vez sorrisos e cortesias como na visita da delegação francesa a Pequim em abril de 2023 ocasião em que ao lado de Xi Macron culpou os Estados Unidos por fomentarem instabilidade no Extremo Oriente Dessa vez o dignitário francês aguardava a delegação do Império do Meio para dizerlhe sobre o ponto de vista de Paris a respeito do comércio sinoeuropeu e da questão ucraniana Trazia a tiracolo Ursula von der Leyen e com isso subitamente Paris se tornou a capital diplomática da UE por dois dias como num sonho juvenil A impressão não foi menos profunda do que a causada pelo chanceler alemão um mês antes e Xi Jinping entrou e saiu dizendo as mesmas platidudes habituais da diplomacia chinesa quando pretende mandar terceiros às favas sem perder a pose Mas neste artigo não importam tanto os chineses e sim a iniciativa de Paris É bem verdade que a França vive um clima de fim de festa quando o assunto é projeção internacional Os governos militares do Mali de Burkina Faso e do Níger puseram uma caprichada pá de cal na anacrônica ideia de uma Françafrique delírio colonial tardio que se ainda respira é com a ajuda de aparelhos nesse caso o franco CFA Macron muito recentemente fez pose de condottieri a serviço da segurança dos potentados europeus ao sugerir o envio de tropas francesas para a linha de frente na Ucrânia Sua ousadia foi respondida em poucas horas com uma ameaça bemcomportada de resposta nuclear por Moscou e por uma brigada de incêndio teutoamericana que tratou de extinguir as labaredas com notas inequívocas de que não aceitariam o envolvimento de um país da OTAN nas hostilidades Isso implicava dizer entre outras coisas que para os alemães e norteamericanos não cabe ao governo francês decidir ou se pronunciar sobre tal coisa OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 19 O fato então é que parece haver pouco espaço para que Paris fuja ao centro gravitacional de Berlim com sua nítida estratégia de liderança militar e econômica sobre a UE abençoada pelo papa em Washington Não que a história se repita mas são sentidos os mesmos ecos da visita de Charles de Gaulle a Mao TseTung em 1964 com a tentativa de Paris de expandir seu gradiente de liberdade e furar o campo de contenção hegemônico produzido pelos Estados Unidos e pela então Alemanha Ocidental Dada a inequívoca frente teutoamericana a escolha de Xi Jinping por Macron pode também não ter sido despropositada tendo em vista que ela introduz um ligeiro mas não menos importante componente de atrito nas engrenagens diplomáticas intra europeias OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 20 A CHINA E A SEGUNDA INDEPENDÊNCIA AFRICANA 2 Por Elias Jabbour anto a China quanto a África foram literalmente arrastadas pela ordem estabelecida pela Revolução Industrial pela força das armas violência colonial e uma guerra pela liberação do tráfico de drogas Guerras do Ópio 18391842 Podemos dizer ainda que a diferença entre o Terceiro Reich e as potências coloniais que assaltaram a África e a Ásia está na geografia Hitler fez na Europa o que os europeus já faziam em escala industrial em suas colônias Tratase de uma risca de giz no chão para dividir o colonialismo europeu e as formas de relacionamento estabelecidas entre a China e o continente africano principalmente desde 2000 Como já posto um novo despertar anticolonial africano está ocorrendo Mais sob os auspícios de uma crescente presença econômica chinesa na região Narrativas ocidentais de neocolonialismo e debt trap são frequentes e se transformaram em senso comum nas discussões sobre o tema O que não se percebe é que até a disposição das infraestruturas construídas pelos chineses na África não obedece à lógica de corredores de exportação e se assemelham mais a investimentos voltados a unificar mercados internos e inaugurar formas superiores de divisão social do trabalho Os esquemas dos investimentos em infraestruturas chinesas na África cada vez mais obedecem a uma lógica de conexão com a formação de indústrias Não se trata de uma benevolência chinesa algo que não existe no mundo real Tratase de crescentes exigências por parte de seus parceiros africanos a necessidade de relacionar investimentos em infraestruturas com industrialização instalação de zonas econômicas especiais e agregar valor de matériasprimas na própria África Vejamos alguns exemplos O caso da ferrovia Addis AbabaDjibouti Em 2016 o governo chinês orientar suas empresas públicas e não públicas a instalarem plantas industriais e zonas econômicas especiais em torno desta ferrovia Parques industriais foram instalados em Hawassa Dire Dawa Kombolcha e Adama As periferias próximas da referida capital etíope estão repletas de instalações industriais chinesas T OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 21 Acordos semelhantes foram assinados com o Quênia no sentido de transformar o entorno da ferrovia MombasaNairobi em um grande cluster industrial A tendência deste tipo de operação é a de se espraiar Isso por conta de uma moção conjunta dos líderes africanos à China em 2022 no sentido de ampliar as relações econômicas no rumo da industrialização do continente A resposta chinesa veio em 2023 com o lançamento da Iniciativa Para a Industrialização Africana com resultados já claros e demarcatórios em relação ao que colonialismo europeu O caso do Zimbábue um dos países mais sancionados do mundo é paradigmático das relações internacionais de novo tipo que a China tem desenvolvido O país asiático anunciou investimentos da ordem de US 27 bilhões em uma planta industrial de exploração e processamento de lítio Bom lembrar que num gesto de afirmação nacional de independência em 2022 o Zimbábue proibiu a exportação de lítio in natura o que levou o governo chinês a se adaptar a novas regras impostas pela referida nação africana Por fim algumas palavras sobre o mito do debt trap armadilha da dívida A nosso ver existem três problemas com essa narrativa O primeiro problema é que esse mito pressupõe que a China tem amplos poderes para impor de forma unilateral a forma de funcionamento dos projetos envolvendo os projetos da Iniciativa do Cinturão e da Rota com intenção de obrigar os signatários a aceitarem esses empréstimos predatórios Na realidade o financiamento chinês para o desenvolvimento é em grande parte orientado por acordos bilaterais convergindo a uma constatação que relaciona a adaptação chinesa a projetos nacionais autônomos Na verdade os projetos de infraestrutura são determinados pelo país beneficiário não pela China com base em seus próprios interesses econômicos e políticos O segundo problema está na suposição na suposição de que é um princípio político chinês conceder empréstimos predatórios com termos e condições onerosos aos países receptores Na realidade a China costuma conceder empréstimos a taxas de juros mais baixas do que as praticadas por instituições como o FMI e o Banco Mundial E a tendência empiricamente comprovada é a de que de forma repetida a China se dispõe a reestruturar os termos dos empréstimos O fato é que em agosto de 2022 o governo chinês anunciou que estava perdoando 23 empréstimos sem juros em 17 países africanos Antes disso entre 2000 e 2019 a China também havia reestruturado um total de US 15 bilhões em dívidas e perdoado US 34 bilhões em empréstimos concedidos a países africanos OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 22 A terceira questão reside no fato de a China nunca ter confiscado um ativo de um país em razão do não pagamento de suas dívidas Casos propalados como os ocorridos no Sri Lanka Zâmbia e Quênia três países que entraram em default já foram devidamente desmentidos por uma série de artigos e pesquisas notadamente as capitaneadas pela professora Deborah Brautgam Encerramos dizendo que sim as relações entre a China e a África stão longe de serem um mar de rosas onde inexiste a contradição Mas como nos ensina a própria filosofia fina alemã a contradição move o processo No caso as duas partes ao conseguirem saltar de um desequilíbrio a outro em suas relações poderão legar ao mundo o que já dito aqui Relações internacionais de novo tipo OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 23 DESAFIOS ALIMENTARES NA ÁFRICA SUBSAARIANA ASS Por Georges Flexor Karina Kato Nelson Delgado segurança alimentar é um desafio considerável para os países africanos Segundo a FAO no Estado da Segurança Alimentar no Mundo 2023 a subnutrição atingiu 225 na ASS em 2022 acima da média mundial 92 Isso esconde no entanto uma grande heterogeneidade No Oeste e no Sul da África a subnutrição atingiu 146 e 112 respectivamente inferior ao Leste 285 e ao Centro 291 Há também diferenças intrarregionais No Senegal ou no Camarões a subnutrição é inferior a 7 Na Libéria ou na Guiné Bissau ela é superior a 38 A heterogeneidade de situações caracteriza igualmente o Centro e o Leste da África Na República Centro Africana e na Somália quase 50 da população sofre de subnutrição cifra superior à Etiópia 219 ao Quênia 278 ou à Tanzânia 235 A reflexão sobre o estado da insegurança alimentar na ASS e seus desdobramentos na geopolítica alimentar global e na instabilidade política do continente requer que consideremos a diversidade das situações sem no entanto perder de vista de que se trata de uma questão que aflige este continente mais do que qualquer outro Esses desafios se intensificarão nas próximas décadas Tanto os fatores de demanda como os de oferta apontam para uma situação alimentar mais complexa incerta e desafiadora A dinâmica demográfica é a força mais visível e comentada nas reflexões sobre os desafios alimentares africanos e suas consequências geopolíticas A população do continente segundo as Nações Unidas é de quase 15 bilhões de habitantes em 2024 Em 2050 deve aproximar os 25 bilhões e projetase que chegará próximo aos 4 bilhões no fim do século A título de comparação a população mundial hoje é estimada em 812 bilhões e esperase que alcance os 102 bilhões em 2100 Assim sendo o crescimento populacional neste século ocorrerá fundamentalmente por causa da dinâmica demográfica africana A população da ASS que hoje é de 125 bilhões chegará a 34 bilhões no fim do século aumento de 170 A OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 24 Essa dinâmica demográfica será acompanhada de intensa urbanização Atualmente mais de 45 da população do continente é urbana Em 2050 estimase que chegará a 60 com elevação até o fim do século Segundo o Instituto Internacional para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento em 2100 13 das 20 maiores megacidades do mundo estarão na África 11 delas na ASS Lagos na Nigéria será a maior delas com 883 milhões de habitantes seguida por Kinshasa na República Democrática do Congo 835 milhões e por Dar el Salaam na Tanzânia 737 milhões Neste contexto a questão da segurança alimentar na ASS colocase como um dos principais desafios humanos do século XXI Quais são as perspectivas do lado da oferta de alimentos O continente é importador líquido de alimentos A dependência deverá crescer nas próximas décadas requerendo investimentos em infraestruturas logísticas portuárias ferroviárias e rodoviárias para garantir o acesso do continente aos mercados mundiais A dependência alimentar faz com que muitos países africanos sejam afetados pela volatilidade dos preços seja em consequência de secas de conflitos armados como na Ucrânia ou de políticas de restrições às exportações como as adotadas pela Índia o maior exportador mundial de arroz A geopolítica mundial e as mudanças climáticas tornamse cada vez mais fatores chave da segurança alimentar da ASS com a instabilidade política mundial e a volatidade dos mercados globais impactando negativamente as condições de vida de milhares de pessoas e alimentando novas fontes de conflitos e de instabilidades Iniciativas de empresas ONGs organizações internacionais e governos têm visado à ampliação da produtividade da agricultura africana e a sua transformação no novo celeiro do mundo como alardeiam a Aliança para a Revolução Verde na África F Bill e Melinda Gates e F Rockfeller o Programa Compreensivo para o Desenvolvimento Agrícola da União Africana e o Sustenta do Banco Mundial Por exemplo se a produtividade média do milho na ASS é de 21 mil ton por hectares em 2023 na América Latina ela é três vezes maior e na América do Norte cinco A falta de insumos adequados afeta também a produção de alimentos fundamentais para a segurança alimentar como o milhete ou a mandioca Em outras palavras o uso de melhores cultivares e técnicas mais apropriadas poderiam garantir rápidos ganhos de produtividade e a segurança alimentar de centenas de milhões de pessoas As críticas a esses programas ressaltam seu foco nos produtos de exportação sua baixa adaptação aos sistemas de produção locais e às lógicas reprodutivas econômicas e sociais dos camponeses e seus riscos ambientais Salientam que embora OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 25 possam beneficiar um segmento de produtores capitalizados com maiores propriedades e voltados à exportação esses programas são inadequados para o universo dos agricultores africanos Não obstante a constatação de que a agricultura é ainda hoje o setor que mais emprega respondendo por 52 do emprego em 2020 na ASS segundo o Banco Mundial estudos do Observatório do Mundo Rural de Moçambique apontam que historicamente a agricultura camponesa e a produção de alimentos para o mercado interno seguem secundarizadas pelos governos da ASS A aposta dos Estados nos projetos extrativos energéticos minerais e agrícolas por outro lado amplia os conflitos e as disputas por terras com a agricultura Nas últimas décadas com o aumento dos preços das commodities boa parte dos países africanos foram alvo de uma corrida por terras para a produção de commodities agrícolas energéticas e minerais conforme atesta o Land Matrix 2024 A concessão de terras e a priorização dos projetos extrativos têm levado não raro ao aumento de conflitos regionais ao deslocamento de comunidades reassentamentos e à migração de populações A segurança alimentar colocase portanto como um dos principais desafios da ASS no século XXI e suas possibilidades dependerão da combinação de fatores internos da geopolítica mundial e das mudanças climáticas Pesa contra essas possibilidades a omissão dos Estados africanos no apoio à produção de alimentos de modo a promover a transformação da base produtiva e tecnológica da agricultura ampliar a produtividade melhorar o padrão de vida e reforçar a soberania alimentar Para além de infraestruturas e mercados isso requer iniciativas de integração econômica investimentos na melhoria dos sistemas de produção agrícola e no fomento de sistemas de produção de alimentos mais diversificados e adaptados aos contextos locais e a aposta em jovens e mulheres atores centrais na agricultura africana OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 26 A MULTIPOLARIDADE UMA DISPUTA VIOLENTA E INDEFINIDA Por José Luís Fiori muito comum ouvir políticos e analistas internacionais afirmarem que o sistema internacional está transitando de uma ordem mundial unipolar e globalizada para uma nova ordem mundial multipolar e desglobalizada Mas esta equação aparentemente simples esconde uma enorme complexidade porque a palavra transição sugere linearidade direção e conhecimento do lugar de onde se está partindo e do lugar para onde se está indo e hoje não está claro nem o ponto em que se encontra a transformação do sistema mundial nem muito menos o que viria a ser uma nova ordem mundial multipolar Com relação ao ponto de partida dessa transição o que se pode dizer é que estamos assistindo a um processo de implosão fragmentação e decomposição de uma ordem estabelecida e esse processo está se dando de forma desordenada e conflitiva O mundo não está no fim de uma guerra com ganhadores claros pelo contrário está no meio de duas guerras sem perspectiva de acabar envolvendo múltiplos atores em pleno combate e sem nenhuma disposição de negociar a paz Em termos muito amplos podese dizer que de um lado se encontram várias potências regionais em ascensão e de outro o bloco das potências ocidentais que resistem a dar passagem a essas novas potências regionais ou globais e não se dispõem a abrir mão da supremacia mundial que conquistaram e exerceram nos últimos 300 anos pelo menos Esse enfrentamento está se dando de forma cada vez mais direta e violenta sem regras ou grandes preocupações com a ética internacional e sem respeito às regras da economia de mercado através da guerra ou através da manipulação política da moeda das finanças e da concorrência econômica Não estamos vivendo um momento de vitória e submissão nem de negociação e acordo entre países que competem entre si e que se dispõem a negociar uma nova ordenação hierárquica do poder mundial Pelo contrário o mundo está em plena conflagração e nenhum país ou conjunto de países tem hoje capacidade de impor sua vontade sobre o resto do mundo e não existe o menor consenso sobre eventuais caminhos de negociação por mais que os líderes das grandes potências mundiais falem da necessidade de uma nova É OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 27 ordem mundial O que existe de fato é guerra militarização decomposição econômica e crise social e uma perda generalizada das referências éticas construídas pelo Ocidente nos últimos séculos Sobretudo depois que os Estados Unidos e seus aliados europeus caíram prisioneiros da armadilha que eles mesmos montaram na Palestina sendo obrigados a armar e sustentar o Estado de Israel mesmo sabendo do genocídio que está sendo praticado contra o povo palestino na Faixa de Gaza Uma armadilha que vem corroendo a ideia da excepcionalidade moral do Ocidente e erodindo os fundamentos éticos de sua hegemonia cultural dentro do sistema internacional No entanto com relação ao ponto de chegada dessa transição não existe o menor consenso nem a menor ideia do que seja ou do que poderá vir a ser exatamente uma nova ordem mundial multipolar O único que sabemos do ponto de vista puramente formal é que uma ordem multipolar não deverá ser igual à uma ordem bipolar como a que vigorou durante a Guerra Fria entre 1945 e 1991 nem deverá ser igual à ordem unipolar que vigorou depois do fim da União Soviética e da vitória norte americana na Guerra do Golfo em 199192 Mas não dá para ir muito além desta especulação formal sem conhecer o resultado das guerras que estão em curso e sem poder definir quais serão os membros do clube das grandes potências dessa nova ordem multipolar Ninguém duvida de que este clube incluirá pelo menos EUA China Rússia Índia e talvez uma União Europeia modificada militarizada e recentralizada a partir da Alemanha Ainda assim não se sabe se haverá hierarquia e qual será entre esses países Se haverá alguma hegemonia interna ou se todos aceitariam uma configuração horizontal entre poderes considerados equivalentes e equipotentes É bem possível que esta nova ordenação mundial fosse mais democrática do que a ordem unipolar que está sendo destruída mas não há garantia de que não se transforme rapidamente numa ordem oligopólica monopolizada por um grupo de no máximo seis ou sete grandes potências Assim mesmo não é impossível imaginar que pudesse haver também um pacto ou entente entre os Estados Unidos e a China as duas maiores potências do grupo desde que elas conseguissem administrar suas divergências e competição à morte no campo tecnológico Neste caso o mundo poderia estar se aproximando da hipótese clássica de Karl Kautsky sobre a possibilidade de um superimperialismo como aconteceu com os deuses pacificados por Júpiter após serem recluídos no Olimpo De qualquer maneira mesmo no plano puramente hipotético é muito pouco provável que isto pudesse acontecer considerando o grau e a intensidade da competição atual entre as duas superpotências OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 28 Tudo isto são especulações obviamente porque é impossível prever o que acontecerá Mas uma coisa é absolutamente certa é impossível que o mundo transite de forma pacífica e harmoniosa na direção desta multipolaridade Pelo contrário o que se vê pela frente é uma disputa sem fronteiras e sem limites de nenhum tipo entre potências em ascensão e um grupo de outras potências que dominaram o mundo nos últimos três séculos e que não querem abrir mão de seu poder mundial Neste quadro não há a menor possibilidade que ocorra algo do tipo que algumas teorias chamam de transição hegemônica com substituição regular e periódica de uma potência líder por outra que assumiria o comando econômico e militar do mundo em lugar de sua predecessora A China não tem pretensão nem deve assumir um lugar igual ao que é ocupado hoje pelos Estados Unidos dentro do sistema mundial e a Rússia e a Índia não têm esta pretensão nem dispõem dos recursos para exercer a função de polícia militar do mundo Mas com certeza nenhum desses países e vários outros como Irã Turquia Indonésia Brasil e África do Sul não estão dispostos a seguir aceitando o arbítrio das antigas potências ocidentais Balanço feito o certo é que não há o menor espaço e disposição de negociação entre as grandes potências muito pelo contrário Por outro lado não há o menor espaço para uma guerra mundial que não venha a ser atômica e por isso o mais provável é que ela siga sendo transferida ou protelada O mundo está mudando numa velocidade muito grande e a ordem mundial do pósGuerra Fria chegou ao fim Mas o Ocidente deve resistir e tem poder para tanto e seja como for permanecerá dentro do sistema mundial como um dos seus polos mais poderosos do ponto de vista econômico tecnológico e militar Nesta hora olhando para o futuro o que o se consegue ver para além dos conflitos imediatos é um mundo atravessando um período muito longo de turbulência instabilidade e imprevisibilidade com uma sucessão de conflitos e guerras locais E se for isto que se está chamando de transição para a multipolaridade então é melhor apertar os cintos porque a trepidação vai ser intensa e deve se prolongar por muitos anos ou décadas De qualquer maneira durante este tempo de trepidação que pode se prolongar até a segunda metade do século XXI a defesa da multipolaridade será cada vez mais a bandeira dos países e dos povos que se insurgem neste momento contra a o imperium militar global exercido pelo Ocidente durante os últimos 300 anos da história da Humanidade mesmo que não saibam exatamente neste momento o que virá a ser esta ordem multipolar do futuro OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI N5 Maio2024
Send your question to AI and receive an answer instantly
Recommended for you
68
Desenvolvimento Economico America Latina e Issue Advocacy 501c4 - Artigo e Guia
Economia Política
UFABC
8
El Capital Financiero de Hilferding Legado y Lecciones para el Análisis Contemporáneo
Economia Política
UFABC
10
Multipolaridade e Declínio do Ocidente: Análise Geopolítica
Economia Política
UFABC
624
Raul Prebisch 1901-1986 - Biografia e Tempos de um Economista
Economia Política
UFABC
82
Analise dos Sistemas Mundo - Introducao ao Pensamento de Immanuel Wallerstein 2ed
Economia Política
UFABC
82
El Imperialismo Fase Superior del Capitalismo - Lenin - Libro Completo
Economia Política
UFABC
1
A Mundializacao do Capital - Resumo
Economia Política
UFABC
1
O Capitalismo Historico - Immanuel Wallerstein - Analise e Download
Economia Política
UFABC
20
A Utopia Keynesiana: Análise dos Princípios Políticos e Econômicos de Keynes
Economia Política
UFABC
354
E H Carr Vinte Anos de Crise 1919-1939 - Analise Completa do Livro
Economia Política
UFABC
Preview text
OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI N5 Maio2024 O OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI é um think tank independente que acompanha analisa e faz prospecções de acontecimentos e cenários internacionais Este Boletim contém diagnósticos curtos e notas executivas que se propõem contribuir para a tomada de decisões de políticos gestores técnicos e acadêmicos vinculados à área de política externa e de políticas públicas frente aos acontecimentos que mais se destacaram em cada conjuntura analisada Seus colaboradores compartilham a convicção de que o Sistema Interestatal Capitalista está atravessando um período de mutação profunda Essas mudanças estão provocando transformações nos campos tecnológico econômico social e cultural com repercussões no mundo do trabalho da convivência social e das relações entre os Estados as grandes corporações as religiões e as próprias civilizações Isenção de responsabilidade O conteúdo dos artigos é de responsabilidade exclusiva dos autores dos mesmos não refletindo necessariamente a opinião institucional do Observatório Internacional do Século XXI nem de seus editores ou de qualquer outro autor O Observatório Internacional do Século XXI é uma publicação do Grupo de Pesquisa Poder Global e Geopolítica do Capitalismo do CNPQLABEPOGNUBEAUFRJ Todos os direitos reservados A reprodução dos artigos deve ser feita mediante a indicação da fonte e colocação do link deste Boletim httpsnubeaufrjbrindexphpobser vatoriointernacional OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI N5 Maio2024 COMITÊ EDITORIAL José Luís Fiori Maria Claudia Vater Andrés Ferrari Haines COLABORADORES DESTE NÚMERO Andrés Ferrari Haines Daniel Barreiros Elias Jabbour Flavio Aguiar Georges Flexor José Luís Fiori Karina Kato Katalina Barreiro Santana Mauricio Metri Nelson Delgado Wagner Sousa Foto de capa httpsterramagnacombrblogerosaodosolo OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 6 SUMÁRIO A CRISE AGUDA E O DECLÍNIO CRÔNICO DO OCIDENTE Por José Luís Fiori 7 GUERRA HEGEMÔNICA E FUTURO DO SISTEMA INTERNACIONAL Por Daniel Barreiros 11 A CRISE ANGLOAMERICANA Por Andrés Ferrari Haines 15 PARA ENTENDER O DECLÍNIO DA FRANÇA Por Wagner Sousa 21 FRANÇA E ALEMANHA DANÇA E CONTRADANÇA Por Flavio Aguiar 24 A ASCENSÃO DA EXTREMADIREITA EUROPEIA Por Wagner Sousa 27 O INSUCESSO DAS SANÇÕES FINANCEIRAS DOS EUA E DA UE Por Mauricio Metri 6 O IRÃ AMEDRONTA ISRAEL E GOLPEIA O OCIDENTE Por José Luís Fiori 10 FILIPINAS A MAIS NOVA ZONA DE ATRITO ENTRE EUA E CHINA Por Wagner Sousa 14 A VIAGEM DE XI JINPING E AS FRATURAS NO PROJETO EUROPEU Por Daniel Barreiros 17 A CHINA E A SEGUNDA INDEPENDÊNCIA AFRICANA 2 Por Elias Jabbour 20 DESAFIOS ALIMENTARES NA ÁFRICA SUBSAARIANA ASS Por Georges Flexor Karina Kato Nelson Delgado 23 A MULTIPOLARIDADE UMA DISPUTA VIOLENTA E INDEFINIDA Por José Luís Fiori 26 OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 7 A CRISE AGUDA E O DECLÍNIO CRÔNICO DO OCIDENTE Por José Luís Fiori m outubro de 2023 ao voltar de uma viagem relâmpago a Israel para dar apoio ao primeiroministro Benjamin Netanyahu o presidente norteamericano Joe Biden afirmou num discurso feito no Salão Oval da Casa Branca que o mundo está vivendo uma virada histórica porque a ordem mundial do pósIIGM perdeu fôlego e é necessário construir uma nova ordem1 Quase no mesmo momento na comemoração do décimo aniversário da Nova Rota da Seda realizada em Pequim nos dias 17 e 18 de outubro de 2023 os presidentes Xi Jinping da China e Vladimir Putin da Rússia defenderam em conjunto a necessidade de uma nova ordem mundial que respeite a diversidade das civilizações2 Um pouco antes na véspera da 18ª Cúpula do G20 realizada em Nova Delhi em setembro de 2023 o primeiroministro indiano Narendra Modi publicou um artigo em vários jornais do mundo propondo uma nova ordem mundial póspandêmica3 Por fim de forma ainda mais categórica Joseph Borrel Chefe da Política Externa da União Europeia declarou em fevereiro de 2024 que a era do domínio global do Ocidente chegou ao fim4 Uma manifestação e um reconhecimento categórico dos líderes das cinco principais potências do mundo No entanto por trás desse aparente consenso escondemse grandes divergências conceituais e políticas Para começar eles não estão falando necessariamente da mesma coisa nem do mesmo período histórico porque existiram pelo menos duas grandes ordens ou ordenações mundiais que se sucederam a contar do fim da Segunda Guerra Mundial A primeira vigorou entre 1945 e 1991 e foi apoiada pelas duas potências que saíram vitoriosas da IIGM EUA e URSS Foi no entanto arquitetada de fato e liderada pelos EUA graças à sua supremacia atômica conquistada em Hiroshima e Nagasaki e graças à sua supremacia econômica consagrada pelos Acordos de 1 Reuters UOL Noticias 23102023 httpsuolcombr 2 Ministry Foreign Affairs of the Peoples Republic of China 18102023 fmprcgovbr 3 A nova ordem póspandemia httpswwwestadaocombr 07092023 4 Era do domínio global do ocidente chegou ao fim 26022024 sputniknewsbrcombr E OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 8 Bretton Woods que fizeram do dólar americano a moeda de referência da economia capitalista mundial Fazem parte desta primeira ordem mundial quase todas as instituições multilaterais surgidas a partir da criação das Nações Unidas em outubro de 1945 ao lado do Fundo Monetário Internacional do Banco Mundial da Organização Mundial do Comércio da Organização Mundial da Saúde para citar as mais importantes A crise dessa ordem mundial entretanto começou já na década de 70 do século passado quando os EUA abandonaram os Acordos de Bretton Woods e se descomprometeram unilateralmente com relação à paridade entre o dólar e o ouro que havia sido definida por eles mesmos em 1944 O abandono do padrão dólar veio junto com a primeira grande crise econômica do mundo capitalista do pósIIGM que atravessou as décadas de 70 e 80 e foi marcada por sucessivos choques do preço do petróleo e aumentos da taxa de juros norteamericanas Houve ainda a derrota dos EUA na Guerra do Vietnã em 1973 e foi por isto que naquele momento muitos analistas internacionais falaram pela primeira vez de uma crise terminal da hegemonia norte americana Mas logo em seguida como resposta a essa crise os EUA lançaram uma ofensiva militar contra a URSS que veio acompanhada pela grande revolução conservadora dos anos 80 que se desfez dos compromissos keynesianos e desenvolvimentistas do pósIIGM e abriu as portas para o avanço de um novo projeto econômico global liderado pelas potências anglosaxônicas o neoliberalismo que avançou como um tufão ajudando a derrubar o Muro de Berlim e acabando com a bipolaridade estratégica da Guerra Fria E na década seguinte os EUA se aproveitaram de sua nova posição de poder e assestaram um último e definitivo golpe na ordem multilateral que eles haviam criado no momento em que atacaram a Iugoslávia em 1999 sem autorização prévia do Conselho de Segurança das Nações Unidas A mesma coisa que voltariam a fazer em 2003 quando invadiram o Iraque sem contar com o aval do Conselho de Segurança e desta vez com a oposição da maioria absoluta da Assembleia Geral da ONU E foi assim que se encerrou de forma definitiva e melancólica a primeira ordem mundial hegemônica do pósIIGM e foi nesse momento e não mais tarde que o Conselho de Segurança da ONU perdeu toda e qualquer eficácia e legitimidade por obra de seus próprios criadores Nascia então uma nova ordem mundial sustentada agora pelo poder unipolar dos EUA conquistado através de suas vitórias na Guerra Fria em 198991 e na Guerra do Golfo em 199192 Nessa nova ordem unipolar os EUA se reservaram desde o início o OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 9 direito unilateral de fazer guerras humanitárias e de declarar e atacar o terrorismo em qualquer lugar do mundo segundo seu exclusivo arbítrio e já sem nenhuma preocupação com as Nações Unidas e seu Conselho de Segurança que que foram sucateados literalmente em 1999 Este novo poder global unipolar dos EUA potencializou ainda mais o projeto econômico neoliberal de abertura e desregulação dos mercados e globalização das finanças mundiais que passaram a ser geridas em última instância pelo Banco Central dos EUA e seu sistema SWIFT de intermediação financeira e pagamentos internacionais Esta segunda ordem mundial unipolar e neoliberal do pósGuerra Fria começa a perder fôlego a partir da grande crise financeira de 2008 que abalou a economia americana e atingiu em cheio a economia europeia Foi ali que começou o chamado processo da desglobalização da economia mundial que viria a se acelerar com a pandemia de covid19 com a guerra econômica dos EUA contra a China e sobretudo com o início da Guerra da Ucrânia em 2022 E mais ainda depois do fracasso da aposta ocidental numa verdadeira guerra de sanções econômicas contra a Rússia que não alcançou seu objetivo e ainda por cima produziu um efeito bumerangue sobre a economia europeia que entrou num profundo e prolongado processo de estagnação econômica Muito antes de tudo isto entretanto as guerras sem fim dos EUA que começaram no final do século XX desvelaram aos poucos uma dimensão oculta dessa nova ordem mundial escondida por trás da retórica da globalização a construção de uma infraestrutura militar global com mais de 700 bases militares distribuídas ao redor de todo o mundo e controlada diretamente pelos EUA mesmo no caso de organizações regionais como a OTAN Ou seja aos poucos foi ficando mais claro que a condição sine qua non do projeto da globalização econômica sem limites nem fronteiras era a instalação de uma nova espécie de império militar global um segredo que foi guardado a sete chaves pela retórica missionária do neoliberalismo defendido por EUA Inglaterra e seus sócios do G7 E é precisamente esse projeto militar global dos EUA e da OTAN que está sendo desafiado pela ascensão militar da China pela resistência do Irã e pelo limite que lhe foi imposto pela Rússia primeiro na Geórgia em 2008 e depois na Ucrânia em 2022 E é essa ordem mundial imperial cosmopolita que está perdendo fôlego e já entrou em acelerado processo de desintegração Assim mesmo quando Joseph Borrel declara que a era do domínio Ocidental acabou ele está se referindo a uma outra crise muito mais complexa profunda e prolongada a crise do poder e da hegemonia ocidental no sistema internacional que os europeus OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 10 conquistaram e dominaram de forma quase absoluta nos últimos 300 anos Para se ter uma ideia aproximada do tamanho e do impacto dessa crise basta lembrar que no início do século XX logo depois da I GM o Império Britânico tinha uma extensão de 355 milhões de km2 e ocupava 2384 da superfície terrestre Junto com os impérios coloniais de França Bélgica Portugal e Holanda o Ocidente europeu chegou a dominar cerca de 40 do território e da população mundiais Hoje entretanto a Inglaterra está ameaçada de perder seu domínio sobre a Escócia e a Irlanda por onde começou de fato o Império Britânico A França está sendo expulsa da África e já não é mais do que um simulacro da potência imperial que foi no passado e o mesmo deve ser dito dos demais Estados europeus que sobrevivem escondidos atrás da proteção atômica da OTAN Sendo que nas últimas duas décadas os próprios Estados Unidos vêm sofrendo sucessivas derrotas militares e fracassos políticos no Iraque na Síria no Afeganistão na Ucrânia para não falar de sua própria guerra civileleitoral interna Ao mesmo tempo assistem paralisados ao desgaste progressivo de sua credibilidade moral graças ao apoio militar e financeiro que deram ao massacre do povo palestino da Faixa de Gaza Como consequência desses sucessivos reveses o velho Ocidente que era considerado sinônimo da comunidade internacional até bem pouco tempo atrás vem perdendo força e legitimidade e hoje não tem mais capacidade de impor seus critérios seu arbítrio e poder sobre o resto do mundo Mesmo assim não há o menor sinal de que este Ocidente reduzido esteja disposto a abrir mão do poder que acumulou nos últimos séculos Além disso a História ensina que as grandes potências e os impérios não costumam ceder seu poder sem resistir sem guerrear OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 11 GUERRA HEGEMÔNICA E FUTURO DO SISTEMA INTERNACIONAL Por Daniel Barreiros epois de vinte e seis meses de guerra e diante da mais completa falência da diplomacia até o momento a Europa oriental segue conflagrada pelo embate entre as forças armadas da Rússia e da Ucrânia A despeito dos mais severos protestos alguns dos quais bastante inequívocos os países membros da OTAN seguem firmes em seu intuito de armar Kiev até que se faça terra arrasada Em tempo o rearmamento europeu e particularmente alemão segue a intenso galope o que sugere firmemente que o coração da civilização está prestes a renderse ao barbarismo caso isso se faça necessário para que juntem os cacos de prestígio que ainda lhes restam Em Gaza a despeito da mais direta condenação a Tel Aviv partindo inclusive de seus aliados históricos como o governo norteamericano o massacre de civis segue Um ataque à embaixada do Irã em Damasco realizado pela força aérea israelense resultou em um contraataque de mísseis vindos do território iraniano contra Israel Condenações morais e apelações ao direito internacional abundaram em todos esses casos São tempos de ouvidos moucos contudo Uma leva de golpes militares acelera a circulação de poder entre elites internacionais que mantêm a África ocidental sob sua influência saem os franceses entram os russos norteamericanos perigam e chineses como virou praxe avançam mais algumas casas Os golpes foram condenados com base em cláusulas democráticas presentes em acordos de integração regionais e no Níger a ameaça de uma invasão para restauração da ordem por parte dos membros da CEDEAO alinhados a Washington e Paris só foi contida por uma coalizão com Burkina Faso e Mali notoriamente alinhados a Moscou E no Extremo Oriente ronda o espectro do conflito entre Pequim e Taipé O acordo AUKUS coloca a Austrália como ponta de lança das potências ocidentais na contenção aos avanços geopolíticos chineses Tóquio e Seul preparamse aceleradamente para uma guerra que se anuncia a contagotas A vitória de Biden na eleição de 2022 mostrou parte expressiva da elite política e D OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 12 militar norteamericana em uma corrida contra o tempo para reverter os danos causados pelo retrenchment promovido por Donald Trump entre 2017 e 2021 O retorno do trumpismo pode reverter mais uma vez essa trajetória instigando potências revisionistas a ocuparem mais espaços vazios Estaríamos às vésperas de uma guerra hegemônica Com o tabuleiro geopolítico global sendo chacoalhado por grandes e médias potências com a dificuldade de Washington de promover ações que preservem seu nível relativo de poder militar e econômico em comparação com seus principais desafiantes e com o nítido colapso da hegemonia éticomoral de sucessivos governos norteamericanos na esfera internacional estaria aberto o pregão para uma sucessão hegemônica nos próximos cinquenta anos O conceito de guerra hegemônica foi sugerido originalmente por Gilpin ainda que seu mecanismo mais elementar remonte ao gênio de Tucídides no século V antes da Era Comum Em resumo entendese que uma guerra hegemônica é uma confrontação de vastas dimensões entre as principais potências de um determinado sistema internacional organizadas em dois blocos provocada pela crescente percepção do crescimento diferencial em termos de poder militar influência riqueza material e tecnologia de uma ou mais potências revisionistas quando comparadas à potência hegemônica Rejeitando o pressuposto de que o sistema internacional é anárquico a noção de guerra hegemônica assume que em momentos de relativa estabilidade o sistema é organizado em uma pirâmide hierárquica de poder encimada pela potência hegemônica Mudanças em termos econômicos e tecnológicos podem aos poucos enfraquecer as bases que organizam a hierarquia internacional tornando desse modo a posição do hegemon contestável Em suma em determinadas condições estruturais o hegemon se depara com custos crescentes para preservação de sua hegemonia enquanto os demais agentes do sistema atestam que o custo do alargamento de seus graus de liberdade se reduz Isso produziria algo como uma situação revolucionária na qual eventos localizados e teoricamente com repercussões restritas se tornam gatilhos para deflagrar um radical processo de revisão das estruturas hierárquicas do sistema através de uma guerra ou série de guerras de proporções sistêmicas envolvendo agentes em vários níveis da pirâmide de poder em transformação A possibilidade crescente de uma guerra hegemônica seria evidenciada por sintomas bem discerníveis Primeiramente indicadores de poder e riqueza de determinadas potências dispostas OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 13 a rever as regras do sistema crescem a taxas aceleradas se comparados à potência hegemônica A percepção da perda relativa de poder e não absoluta torna as elites políticas econômicas e militares no controle da potência hegemônica propensas a reações extremadas e menos cautelosas tendo em vista a restauração do status quo ante As dificuldades de alinhamento incondicional de potências médias e pequenas ao hegemon faz crescer ainda mais a angústia entre os agentes decisórios e formuladores de política da potência hegemônica a respeito da possibilidade de preservação de seu status sistêmico no médio prazo A crescente percepção de que potências revisionistas avançam rapidamente em seu processo de catchingup com demonstrações de maestria em tecnologias disruptivas e sensíveis funciona como um atrator tornando menos prováveis reações de acomodação em relação aos desafiantes As consequências de processos dessa natureza como a Guerra dos Trinta Anos 16191648 e a Primeira Grande Guerra 19141918 são uma profunda redefinição institucional em termos éticos políticos e econômicos do funcionamento da hierarquia internacional de poderes bem como a emergência de uma nova potência hegemônica Ainda que o futuro possa reservar destinos distintos em termos históricos a principal potência vitoriosa tende a ativamente transformar as instituições domésticas das potências derrotadas de modo a moldálas à sua imagem e semelhança Muito se tem dito a respeito da impossibilidade de guerras hegemônicas na era nuclear mas não temos provas de que os estadistas tenham modificado substancialmente seus objetivos e métodos exceto por uma maior parcimônia em usar a força contra potências nucleares Mas diante de uma percepção de perda de hegemonia incontornável não temos garantias de que potências não recorrerão à violência mesmo que eventualmente não recorram aos seus arsenais nucleares Se em qualquer caso os estadistas de uma potência hegemônica entenderem que precisam frear o avanço de seus competidores através da violência antes que sua vantagem econômica e militar em relação aos adversários seja criticamente diminuída eles provavelmente o farão O desafio tecnológico e econômico chinês o reinício da competição estratégica em espaço orbital e extraorbital a disputa em torno de tecnologias disruptivas inteligência artificial ciborguização armas letais autônomas computação quântica biotecnologia os riscos em termos de poder e riqueza representados pelo envelhecimento demográfico diferencial no globo entre outros formam um quadro estrutural que chama a atenção como ambiente propício para a deflagração de uma guerra hegemônica Não faltam indícios de que nos marcos desse quadro OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 14 estrutural uma conjuntura de turbulência está em curso atualmente Se ela resultará numa confrontação pela hegemonia sobre o sistema só o tempo dirá Mas que uma advertência seja feita se a experiência histórica pode servir de referência guerras hegemônicas podem exaurir mortalmente ambas as coalizões em confronto e isso ainda se torna mais provável caso um futuro confronto venha a envolver uma troca nuclear de amplas proporções No caso de uma vitória pírrica de uma coalizão em uma guerra hegemônica os graus de liberdade de agentes não envolvidos diretamente na disputa podem se expandir assimetricamente A vitória de Atenas sobre Esparta na Guerra do Peloponeso não confirmou a hegemonia ateniense antes deixou terra arrasada garantindo aos macedônios uma terceira parte não envolvida todo o espólio Para determinadas potências médias e pequenas a equidistância pode ser uma estratégia com máximo retorno OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 15 A CRISE ANGLOAMERICANA Por Andrés Ferrari Haines Quando movimentos de direita e retoricamente populistas como o Brexit e líderes como Trump venceram as eleições em 2016 triunfaram nos dois países que tinham sido fundamentais para o longo esforço para criar e sustentar uma ordem internacional liberal om esta frase James Cronin professor do Boston College conclui seu novo livro sobre a queda da chamada ordem liberal internacional 1 Apontando para o iliberalismo que emergiu no Reino Unido e nos Estados Unidos nações que considera como eixos essenciais dos valores liberais e democráticos globais Cronin destaca a natureza interna da decomposição da ordem liberal além das ameaças bem conhecidas de autocracias estrangeiras E o que chama a atenção nesse sentido é que as causas apontadas por Cronin persistem atualmente Enquanto o Partido Republicano liderado por Donald Trump é apresentado como favorito nas eleições deste ano nos Estados Unidos David Cameron que lançou o complicado processo do Brexit é o atual chanceler britânico de um governo que parece estar a dar os últimos suspiros da recente era conservadora Por um lado tanto o regresso ao poder do Partido Trabalhista como de Trump podem ser vistos como mudanças significativas por outro lado uma parte considerável da sociedade em ambos os países afirma não ter esperança em qualquer resultado eleitoral Após a vitória do modelo liberal com o colapso da União Soviética as políticas económicas aplicadas pelos governos de ambos os partidos deixaram a maioria da sociedade em dificuldades e com poucas perspectivas de melhoria Externamente grande parte do mundo nãoocidental mostra sinais de se afastar dos países anglosaxónicos independentemente de quem seja o seu líder político 1 Fragile Victory The Making and Unmaking of Liberal Order New Haven Yale University Press 2023 c OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 16 1 A frente doméstica No Reino Unido a pobreza afeta uma grande parte da população sendo que 56 das pessoas que a vivenciam pertencem a uma família com emprego Em particular chamou a atenção o fato de o país ter registado o maior nível de pobreza relativa infantil entre as economias avançadas no período de 2014 e 2021 afetando cerca de 43 milhões de crianças Este contexto gerou também um aumento anual de 158 entre outubro e dezembro de 2023 na taxa dos semabrigo Outro efeito é que a Associação das Lojas de Conveniência afirmou que em 2023 os furtos quintuplicaram em relação ao ano anterior principalmente carne álcool e doces Este quadro estrutural da pobreza britânica explica certamente o motivo pelo qual uma sondagem recente do YouGov concluiu que para as próximas eleições o Partido Trabalhista tem uma vantagem de 30 pontos sobre os Conservadores que de acordo com outra sondagem teriam um novo mínimo histórico de votos No entanto a mudança de governo não é razão para pensar que o Reino Unido abandonaria a política de austeridade dos conservadores vigente desde 2010 De acordo com declarações do gabinete sombra do Partido Trabalhista um novo bloqueio fiscal será imposto por lei sujeitando todas as alterações fiscais a uma previsão do Gabinete de Responsabilidade Orçamental uma das principais instituições de austeridade criadas por Cameron em 2010 O Secretário de Saúde Sombra Wes Streeting delineou planos para reformar ainda mais o NHS através de mais privatizações e mercantilização O quadro é semelhante nos Estados Unidos Em abril um inquérito mostrou que quase metade da população acredita que a economia está indo na direção errada o dobro dos que pensam o contrário enquanto cerca de 42 por cento dizem que a sua situação financeira piorou no ano passado e 47 por cento dizem que a sua situação financeira piorou no ano passado De acordo com um relatório da Universidade de Harvard aproximadamente 650000 americanos viveram semabrigo em algum momento do ano passado um aumento de quase 50 desde 2015 Uma pesquisa da Pew Charitable Trusts descobriu que 90 dos americanos acreditam que o país está a passar por uma crise de saúde mental As tensões também se revelam no número recorde de suicídios e no fato de cada vez mais americanos acreditarem que uma nova guerra civil é possível Biden por sua vez comemora o sucesso da sua gestão econômica muitos analistas consideram que o país dá sinais de estagflação dada a combinação de um crescimento anual de 16 OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 17 com uma inflação persistentemente elevada 35 em março No entanto com base na atual medida de inflação da Reserva Federal um dólar compra 20 menos hoje do que em 2020 mas utilizando o método empregado no início da década de 1980 a inflação atual seria quase o triplo do que é atualmente reportado A economia tem falhado consistentemente em assegurar crescimento embora Biden tenha incluído políticas de gastos elevados na sua agenda através de grandes pacotes fiscais como o Plano de Resgate Americano US 19 trilhões a Lei Bipartidária de Infraestruturas US 12 trilhões e a Lei de Redução da Inflação US 750 bilhões entre 2021 e 2022 A possível chegada de Donald Trump não parece alterar este quadro econômico para além do fato de o seu projeto de expulsar os imigrantes ilegais ser bem recebido por uma parte considerável da população americana Trump prometeu mais uma vez grandes cortes de impostos à alguns dos doadores mais ricos do país tal como fez com a sua reforma fiscal de 2017 quando reduziu tributos para eles e também para as grandes empresas Várias destas disposições expirarão em 2025 pelo que Trump propõe a sua continuidade Outro impacto econômico a considerar deste corte é o que o Centro de Orçamento e Prioridades Políticas acaba de salientar ou seja o fato de que estes cortes de impostos de Trump bem como os de Bush anteriormente corroeram seriamente a base de recursos do nosso país Os esforços econômicos colaboraram para uma explosão da dívida nacional que atualmente ascende a quase 346 trilhões de dólares Esta tendência que já tinha acelerado com medidas para enfrentar a crise de 2008 tornouse ainda mais intensa sob Biden a dívida nacional aumentou cerca de 68 trilhões de dólares desde que ele assumiu o cargo em janeiro de 2021 Os pagamentos da dívida em 2024 atingirão 870 bilhões de dólares mais do que o orçamento do Pentágono um aumento de 32 por cento em relação a 2023 Durante a próxima década o plano orçamentário do presidente as receitas federais excederiam os 70 trilhões de dólares mas Biden propõe gastar 866 trilhões de dólares De acordo com o Comitê de Orçamento do Congresso os déficits orçamentais anuais estão numa trajectória ascendente explosiva Assim o déficit de 16 trilhão de dólares projetado para 2024 seria de 26 trilhões de dólares 2034 44 trilhões de dólares 2044 e 73 trilhões de dólares em 2054 ano em que a dívida do governo federal totalizaria 114 trilhões de dólares aproximadamente 4 do PIB atual dos EUA O Senado aprovou OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 18 por unanimidade uma resolução qualificando a dívida de uma ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos e esperando que os futuros déficits orçamentários sejam insustentáveis irresponsáveis e perigosos Na mesma linha o Comitê para um Orçamento Federal Responsável uma organização sem fins lucrativos que defende déficits mais baixos afirma que o nível de endividamento no âmbito do orçamento do presidente seria sem precedentes fora de uma guerra ou de uma emergência nacional Mas embora não afirme diretamente que o seja Biden apoia abertamente a Ucrânia no seu confronto com a Rússia Em ajuda deu mais de US 42 bilhões à Ucrânia e está tentando conceder mais US 55 bilhões o que não conseguiu devido à oposição parlamentar dos republicanos Além disso Biden passou a apoiar Israel nos seus ataques a Gaza com recursos que se somam para gerar o maior orçamento militar do mundo que excede o dos próximos nove países que também mantêm entre outras coisas cerca de 300 bases militares e vários conflitos menores que já se arrastam há muito tempo como o Iémen e a Somália Outro aspecto em comum entre Biden e Trump é que apesar das suas promessas eleitorais nenhum deles conseguiu acabar com as guerras intermináveis nos Estados Unidos 2 O quadro geral A nível global a decomposição da ordem liberal internacional significa a perda de aceitação por grande parte dos países dos pilares que Roosevelt e Churchill estabeleceram na Carta do Atlântico em 1941 o que mais tarde se refletiria na criação das Nações Unidas Este entendimento entre os líderes anglosaxônicos baseavase na relação especial que ambas as nações afirmavam possuir devido às linhagens políticas culturais e linguísticas que as colocavam no topo da ordem liberal e democrática Essa visão reforçou a identificação britânica com a liderança americana fundamentalmente após a era Thatcher e continuada pelo Novo Trabalhismo de Tony Blair que o levou a apoiar de forma confiável as guerras de Bush contra o terrorismo O processo do Brexit teve entre as suas promessas mais importantes não cumpridas uma relação comercial especial com os Estados Unidos Essa seria uma das cartas de Boris Johnson para obter apoio social para finalmente encerrar a saída do Reino Unido da Comunidade Europeia OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 19 Sendo primeiroministro quando começou o conflito na Ucrânia Johnson comportouse de acordo com a lógica da relação especial apoiando irrefutavelmente as posições de Biden Johnson ganhou destaque pela sua oposição ativa a qualquer possibilidade de uma solução pacífica entre a Ucrânia e a Rússia O jornal ucraniano Ukrainska Pravda em maio de 2022 nomeouo como sabotador das negociações diplomáticas entre Kiev e Moscou no início daquele ano quando inesperadamente apareceu argumentando que o Ocidente não queria acordos mas sim pressionar Putin até à sua queda Recentemente Johnson expressou que uma derrota ucraniana contra a Rússia significaria o fim do domínio ocidental sobre o mundo será uma catástrofe para o Ocidente será o fim da hegemonia ocidental sustentou uma humilhação total para o Ocidente a primeira vez nos 75 anos de existência da OTAN que esta aliança até agora bem sucedida foi completamente derrotada e em solo europeu Será um ponto de viragem na história o momento em que o Ocidente finalmente perderá a sua hegemonia do pósguerra queixouse Atualmente o primeiroministro do Brexit e da austeridade David Cameron agora como chanceler de Rishi Sunak exministro da Economia de Boris Johnson atravessou o Atlântico para encorajar os Estados Unidos a continuarem a apoiar a Ucrânia afirmando que se a Rússia não for derrotada irá sentirse encorajado a invadir outros países Repetindo a lógica que o próprio Biden utilizou argumentou que o apoio ocidental à Ucrânia é um custo extremamente bom uma vez que enfraqueceu a Rússia criou empregos no país e fortaleceu a OTAN sem a perda de uma única vida americana O que é surpreendente na agressividade britânica em relação a Rússia é que em termos militares ela é ofuscada em todos os aspectos possíveis especialmente agora que as suas contribuições para a Ucrânia não lhe deixaram mais nada Nem mesmo projéteis Segundo o tenentegeneral Sir Rob Magowan o Reino Unido não poderia suportar uma guerra convencional com a Rússia por mais de alguns meses Em Unherd Nina L Khrushcheva professora russoamericana na The New School em Nova Iorque argumentou que Putin não demonstrou nenhum desejo de declarar guerra à OTAN Mas ao alimentar receios de que este seja o caso a OTAN corre o risco de criar uma espécie de profecia autorealizável Até eu um crítico constante de Putin acho isso completamente provocativo e bobo Embora os republicanos não pareçam querer atribuir mais recursos à Ucrânia as suas posições globais coincidem com as de OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 20 Cameron Uma dúzia de senadores republicanos enviaram uma carta ao promotor Karim Khan do Tribunal Penal Internacional ameaçandoo de que se ele investigar Israel nós o atacaremos com ações severas contra você e sua instituição porque elas seriam não apenas uma ameaça para à soberania de Israel mas também à soberania dos Estados Unidos De forma semelhante a equipe econômica de Trump está a desenvolver sanções contra países que deixem de usar o dólar como moeda internacional Embora os líderes anglosaxões preservem as suas tradições de acordo com uma sondagem Gallup a aprovação dos Estados Unidos em África caiu e é agora superada pela China enquanto a da Rússia aumentou consideravelmente Da mesma forma no inquérito Índice de Percepção da Democracia 2024 realizado pela empresa alemã Latana em 53 países a maioria na Ásia Médio Oriente e Norte de África tem uma visão tão positiva da Rússia e da China como dos Estados Unidos Os resultados também revelaram que o apoio aos Estados Unidos entre os europeus diminuiu com queda particularmente acentuada na Alemanha Áustria Irlanda Bélgica e Suíça Frederick DeVeaux investigador sênior da Latana destacou que esta é a primeira vez desde o início da administração Biden que muitos países da Europa Ocidental voltaram a ter percepções claramente negativas dos Estados Unidos Quase 80 anos desde que Churchill cunhou o termo relação especial o jornalista inglês Thomas Fazi afirma que a noção de que o Reino Unido goza de uma posição subimperial privilegiada entre os aliados ocidentais da América continua a informar a auto identidade do país como uma das grandes potências mundiais Por sua parte Francis Fukuyama cujo livro de 1992 do fim da história marcou a consolidação da ordem liberal internacional numa recente entrevista para Internationale Politik Quarterly afirma que tanto Trump quanto Biden possuem problemas mentais concluindo É um pouco triste que a política americana dependa de qual candidato se deteriora mais rapidamente Mas é onde estamos agora OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 21 PARA ENTENDER O DECLÍNIO DA FRANÇA Por Wagner Sousa Segunda Guerra Mundial foi podese dizer o estertor da primazia europeia nos assuntos mundiais Os Estados Unidos já eram a maior economia do mundo desde o fim do século XIX mas embora crescentemente influentes não tinham até então capacidade para se firmar como poder hegemônico global A destruição da Europa e de outra grande potência militarista e expansiva da época o Japão dá aos EUA a oportunidade de afirmar a sua hegemonia mundial em contraposição à União Soviética país que tinha em seu cerne outra velha potência imperial a Rússia No pósguerra os impérios coloniais europeus por todo o mundo ruíram em sua maior parte e a maioria das colônias se transformou em países independentes Os movimentos independentistas ganharam força no Terceiro Mundo com a luta legítima de seus povos pela autodeterminação e também tiveram apoio da nova potência hegemônica os EUA que tinham interesse em limitar a influência europeia no mundo como parte do processo da afirmação de sua própria influência A Europa Ocidental no período da guerra fria com a criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte OTAN aliança militar liderada e em sua maior parte mantida pelos EUA inicia a sua integração com a Comunidade Europeia para o Carvão e o Aço CECA em 1951 sob tutela geoestratégica norteamericana o que segue sendo a realidade até os dias atuais A França neste cenário dá início a um processo de pacificação com a então Alemanha Ocidental que se materializaria no processo europeu de integração que com o decorrer dos anos ganharia complexidade Para a Alemanha sob a liderança do conservador Konrad Adenauer era a maneira de se integrar ao Ocidente e ter alguma margem de manobra para agir na política externa E para a França após o trauma de duas guerras mundiais a oportunidade para a paz regional e exercício de liderança política no que passou a ter destaque o seu poderio nuclear ausente na Alemanha A França detém até hoje a vantagem da influência em sua antiga zona A OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 22 colonial em especial na África e do fato do francês ser uma língua falada em escala global A descolonização no pósguerra a crescente integração da França na Europa e o progressivo aumento da influência alemã a adoção de políticas econômicas neoliberais e já no século XXI a afirmação de novas potências na cena global com destaque para China e Índia e retorno de uma velha potência a Rússia são os fatores que em síntese podem explicar o declínio relativo do poder francês tanto em nível regional quanto global No que diz respeito à descolonização a independência portanto da maior parte das áreas diretamente subordinadas à Paris em especial na África mas também na Ásia assim como para outros poderes europeus como o Reino Unido representou perda de poder e prestígio Porém isto não significa que os franceses e outros europeus não tenham mantido a despeito desta importante mudança bastante influência em especial na África Com isso têm conseguido manter relações privilegiadas Todavia tem havido questionamentos a este neocolonialismo francês como no caso do Níger excolônia da qual a França importa urânio a preços baixos A percepção destas relações injustas e ação na região de outras potências como Rússia e China tem levado a França a perder espaço político no continente A integração europeia é o grande feito político francês do século XX Em um continente até então envolto em guerras contínuas há pelo menos um milênio a iniciativa inicial já mencionada da Comunidade Europeia para o Carvão e o Aço CECA assinada por França Alemanha Ocidental Bélgica Holanda Luxemburgo e Itália e que evoluiu para a decisão da criação da União Europeia e da moeda comum o euro em 1992 com o Tratado de Maastricht garantiu relações pacíficas e crescente cooperação e articulação política Contudo mesmo no cenário regional também se vê a perda de peso relativo da França A esfera monetária europeia é um exemplo O processo de coordenação cambial que levou ao euro já nos anos 1990 teve o marco alemão como moeda referência em todo o período Tornouse referência inclusive do próprio euro uma espécie de moeda alemã europeizada Os Estados Nacionais europeus perderam margem de manobra com a subordinação à rígida política antiinflacionista do Bundesbank que foi copiada pelo Banco Central Europeu Após um início de políticas nacionalistas e estatizantes o governo francês do socialista François Miterrand capitulou em 1984 com a adoção da política do franco forte e a proposta de OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 23 aprofundar a integração europeia O Ato Único Europeu em 1986 pactuou as medidas liberalizantes de preparação para o Mercado Único que se constituiu em 1992 A reunificação alemã em 1990 tem como contrapartida exigida pela França a criação da moeda europeia o euro A França ganha assento no Banco Central Europeu mas se compromete com política monetária de rígido controle inflacionário e austeridade fiscal Não há até os dias atuais políticas europeias fiscais na escala suficiente para compensar uma moeda europeia que serve melhor às economias mais desenvolvidas do norte da Europa A integração europeia como mola propulsora de políticas neoliberais favoreceu amplamente a indústria alemã em detrimento dos europeus do sul menos desenvolvidos e também prejudicou a economia da França A partir da adoção do euro se consolidou a hegemonia econômica alemã na Europa Entre os anos 1990 no pósguerra fria e a década de 2010 o mundo teve o momento unipolar dos EUA Mas o cenário mudou consideravelmente A guerra entre Rússia e Ucrânia deu um novo sentido existencial à OTAN e reafirmou a liderança norte americana no continente A Europa se volta aos preparativos para a guerra e a Alemanha se coloca no nível regional como o país com capacidade de liderar este esforço de rearmamento A China passou a ser percebida pelos europeus não mais como mercado e investidor mas como concorrente nas áreas de maior conteúdo tecnológico e comprador indesejado de empresas europeias importantes e estratégicas além de ameaça política pelo seu sistema de governo autoritário E nesta conjuntura a França se vê internamente com grande insatisfação social pelo empobrecimento de grande parte da população pelo fracasso das políticas relativas aos imigrantes e seus descendentes falta de perspectivas aos jovens e crescimento da xenofobia e da extrema direita O país tem menos influência nos assuntos globais e também europeus A solução futura para a crise pode ser um governo de extrema direita ultranacionalista que eventualmente pode inclusive provocar uma ruptura na União Europeia É a dinâmica do declínio relativo da França que deve seguir e provavelmente se aprofundar a despeito das bravatas do presidente Emmanuel Macron sobre o envio de soldados da OTAN para defender a Ucrânia e das escolhas políticas que sua população fizer no futuro OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 24 FRANÇA E ALEMANHA DANÇA E CONTRADANÇA Por Flavio Aguiar O rei mandou me chamá O rei mandou me chamá Pra casá com sua fia Só de dote ele me dava Oropa França e Bahia Me alembrei do meu ranchinho Da minha roça do meu feijão O rei mandou me chamá O rei mandou me chamá Ah meu rei eu disse não Congo brasileiro epois de hostilidades mútuas e seculares e de muitas guerras França e Alemanha selaram a paz em 22 de janeiro de 1963 através da assinatura de um Tratado de Amizade também conhecido como Tratado do Palácio dos Campos Elísios Charles de Gaulle e Konrad Adenauer o assinaram quase 18 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial A reconciliação foi corroborada pelo gesto do presidente francês François Mitterand e o primeiroministro alemão Helmut Kohl homenageando de mãos dadas em 22 de setembro de 1984 os soldados dos dois países que caíram na batalha de Verdun durante a Primeira Guerra Mundial Esta reconciliação foi fundamental para estabelecer as bases da criação da União Europeia em 7 de fevereiro de 1992 através do Tratado de Maastricht que entrou em vigor a partir de 1 de novembro do ano seguinte A reconciliação entre França e Alemanha tornouse a Pedra Fundamental o Fulcro e a Alavanca ia dizer Eixo mas achei que a palavra seria inadequada em tal contexto da União condição reforçada 23 anos depois quando o Reino Unido retirouse dela após um plebiscito desastrado promovido pelo então primeiro ministro londrino David Cameron Aquela condição de Base Sólida ia dizer Muro de Arrimo mas achei que Muro também não era uma palavra adequada aqui da União teve momentos virtuosos por exemplo no convívio D OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 25 bastante harmonioso entre a chanceler Angela Merkel e o presidente Nicolas Sarkozy Nem mesmo a eleição na França do socialista François Hollande que de socialista não tinha muito além do nome de seu partido perturbou a aparência de tal harmonia Aparência Sim porque sob a superfície do convívio virtuoso medravam algumas sementes da dissensão apontando a discórdia Por exemplo a matriz energética de ambos os países era muito diferente A França apoiouse decididamente na energia nuclear enquanto a Alemanha foise afastando cada vez mais dela e passou a depender mais e mais do gás russo Outras diferenças estratégicas foram aflorando pouco a pouco sobretudo no campo do grau de entusiasmo com a adoção da moeda comum o euro maior na Alemanha do que na França e também em questões de segurança continental E o terreno para o afloramento de tais diferenças se tornou mais favorável depois da eleição do impulsivo Emmanuel Macron na França e do hesitante Olaf Scholz na Alemanha Macron é descrito como um político impulsivo ruidoso disposto a aceitar riscos e a admitir erros e correções de rumo Já Scholz tem um perfil bem mais marcado por uma sobriedade eclesiástica por cautela e lentidão apesar dos arrancos impulsivos de sua Ministra de Relações Exteriores a Verde e algo boquirrota Annalena Baerbock A guerra na Ucrânia e suas consequências foi a cunha que ampliou o campo das tensões e das desavenças mesmo que disfarçadas pelos sorrisos e apertos de mão das fotos oficiais Pressionado pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido através da OTAN a enviar para a Ucrânia os tanques alemães Leopard 2 Scholz a princípio hesitou Disto se aproveitou Macron para prometer sem consultar seu vizinho do outro lado do Reno blindados franceses para Kiev Afinal com o aumento das pressões externas e das internas sobretudo através do Partido Verde transformado em VerdeOliva Scholz cedeu Mas a fissura estava aberta Outra fissura se abriu quando Scholz anunciou também sem consultar nem avisar antes seu colega parisiense a criação de um fundo de 200 bilhões de euros para subsidiar os custos energéticos catapultados pela queda brusca no fornecimento do gás russo A medida foi recebida com reservas em Paris e em outros países nas vizinhanças temendo um efeitocascata que desestabilize mais ainda os já oscilantes custos industriais e conexos das importações e exportações da e para a Alemanha Outras fissuras foram se abrindo Macron fala de um lado no envio de tropas para o campo de batalha na Ucrânia e de outro OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 26 em manter um diálogo com a Rússia Scholz manifesta desconfiança quanto ao envio de tropas mas a Alemanha vem endurecendo o tom com Moscou acusando hackers russos por perturbações no espaço estratégico da cibernética germânica Berlim vem advogando o estabelecimento de um escudo de segurança europeu contra a Rússia valendose de insumos norte americanos o que desagrada a indústria militar francesa que por sua vez na corrida armamentista que se instalou na Europa não se mostra muito disposta a compartilhar segredos com seus vizinhos O anúncio da presidenta da Comissão Europeia Úrsula von der Leyen de que fundos russos congelados venham a financiar armas e outras benesses para a Ucrânia vai aumentar a temperatura deste caldo cultural bélico já perto de ebulição na Europa Sem falar que este verdadeiro confisco já seria por si só um bom motivo para uma guerra de efeitos péssimos no mundo inteiro Estas fissuras vem corroendo por dentro a estabilidade da União aliadas aos ataques contra ela por parte de partidos de extremadireita na Alemanha na Holanda na própria França Espanha Itália Portugal e outros países e à instabilidade econômica e social provocada pelos planos de austeridade que ainda vigoram em todo o continente Quando nasceu a União Europeia parecia um timoneiro a governar uma embarcação para um mundo de paz como se dele fosse a rainha depois de guerras que destruíram o continente e boa parte do mundo Hoje combalida ela talvez ainda governe alguma coisa deste barco solto em meio à tempestade Mas não reina mais OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 27 A ASCENSÃO DA EXTREMADIREITA EUROPEIA Por Wagner Sousa uito se tem discutido nos meios políticos acadêmicos e na mídia acerca do declínio ocidental frente ao desafio direto colocado por Estados Nacionais de outra matriz civilizatória como o caso mais evidente da China e também da Índia e da resistência iraniana e russa aos desígnios de Washington apoiados pelos seus aliados europeus sob sua tutela estratégica na OTAN e outros acordos militares E nesta discussão tem destaque evidentemente a extraordinária expansão da economia da China nos últimos 45 anos o que foi acompanhado pelo seu expressivo fortalecimento militar crescente domínio de tecnologias de ponta e cada vez assertividade política e diplomática envolvendo variados temas mundiais de seu interesse direto ou não A Índia país mais populoso do mundo parceiro e ao mesmo tempo rival estratégico da China vem exibindo recentemente taxas de crescimento mais elevadas do que as do seu vizinho domínio tecnológico crescente em áreas como software e tecnologia espacial e também crescente poderio bélico partes do projeto de grande potência do nacionalismo hindu de Narendra Modi E por fim Irã e Rússia vem resistindo às pressões no caso iraniano em relação ao seu programa nuclear e sua projeção como potência regional no Oriente Médio e no caso russo pela disputa na Ucrânia com a OTAN pela hegemonia em área parte da exURSS e também da Rússia imperial O maior país do mundo em território apesar de sua característica de federação com diferentes nacionalidades compartilha com a Europa parte significativa de sua identidade e origem étnica Portanto a partir deste século o que se tem visto é a ascensão destes e outros atores estatais que tem questionado a hegemonia ocidental e seus 300 anos de dominância no mundo E se pode dizer que a partir da guerra russoucraniana na qual o Ocidente coletivo representado pelos EUA a União Europeia e aliados Japão Coreia do Sul Austrália e Nova Zelândia vem apoiando a Ucrânia contra a Rússia esta vem tendo o apoio econômico direto da China e da Índia que mantiveram e reforçaram as compras de petróleo e gás e indireto de vários outros países como por exemplo membros da exURSS que tem ajudado a Rússia a driblar as sanções do Ocidente para a compra de bens essenciais como semicondutores no caso os comprando de países ocidentais ou M OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 28 aliados Taiwan Coreia do Sul e vendendo aos russos por transações clandestinas Mas também há que se destacar que toda a América Latina possivelmente com exceção apenas da Argentina do ultraliberal Milei toda a África e praticamente toda a Ásia com as exceções já citadas não seguiram a diretriz ocidental de enfrentamento militar eou sanções econômicas aos russos Há uma evidente insatisfação e disposição de questionamento da hegemonia ocidental na maior parte do mundo E neste cenário a Europa tem visto a extremadireita assumir ou participar da coalizão de governo em vários países Comandam o governo na Itália terceira economia da UE e na Hungria e participam de coalizões em outros países Uma questão importante é que embora tenham sido normalmente simpáticos ao conservadorismo do russo Vladimir Putin a guerra da Ucrânia os enquadrou no bloco ocidental e na posição geopolítica contrária à Rússia com a exceção da Hungria do primeiroministro Viktor Orbán E no que se refere à União Europeia em parte por razões eleitorais parte substancial dos votantes é próEuropa e em parte por pragmatismo governamental os países dependem da UE para várias questões inclusive recebem fundos de suas instituições o que é relevante especialmente nos países menos desenvolvidos do bloco no sul e leste do continente diferentemente do discurso anti UE das campanhas eleitorais tem havido uma normalização destes partidos em relação ao projeto europeu e também das instituições europeias e suas elites em relação a estes partidos A extremadireita europeia tem procurado se articular em nível regional e neste ano está concentrada nas eleições para o parlamento europeu pleito em se espera que sua participação no legislativo da Europa aumente A extremadireita tem crescido também nos dois países fundadores do bloco a Alemanha e a França No caso francês seu número de eleitores tem crescido nas últimas décadas a Reunião Nacional liderada por Marine Le Pen esteve no segundo turno das duas últimas eleições presidenciais contra o atual presidente de centrodireita Emmanuel Macron Na Alemanha se firmou como terceira força no parlamento nacional o partido de ultradireita integrado inclusive por simpatizantes do nazismo Alternativa para a Alemanha AfD na sigla em alemão Como é comum na plataforma destes partidos uma forte inclinação a propostas anti imigração questionamentos à integração europeia à moeda comum e à política externa destes países e do bloco No caso do Alternativa para a Alemanha esta agremiação defende ser do interesse nacional alemão da sua indústria exportadora por exemplo boas relações com a China Berlim tem seguido os EUA e OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 29 buscado rever a sua aproximação com o gigante asiático A política externa não deve estar pautada por valores e sim pelos interesses Nesta visão seguir a política dos EUA é contrário aos interesses da Alemanha Claro que uma vez eventualmente no poder constrangimentos e pressões e também concessões vindas no caso dos EUA podem produzir uma convergência As políticas neoliberais com o efeito de concentração de renda e precarização do trabalho fragilizaram os partidos moderados de direita e esquerda que se alternaram no poder na Europa do pós guerra até o fim da década de 1990 A partir da década de 2000 vê se um persistente crescimento das siglas de tendência fascista A guerra entre Rússia e Ucrânia marca um ponto de inflexão Os laços políticos e econômicos entre russos e europeus em especial alemães foram cortados como resultado da guerra e a Alemanha com o apoio dos EUA lidera um processo de forte investimento bélico na União Europeia o que inclusive deverá ser o caminho para a recuperação econômica tendo em vista que a perda do gás barato da Rússia foi um pesado golpe para a economia europeia em especial para a indústria exportadora alemã O Ocidente coletivo se arma frente à Rússia e no IndoPacífico busca conter a China Não há como adiantar como a extrema direita eventualmente no poder nos dois principais países da região França e Alemanha vai se encaixar neste arranjo Tendo em consideração o acerto dos EUA com o governo anterior de extrema direita da Polônia em apoio à sua forte militarização para ser a linha de frente contra a Rússia e da própria acomodação da União Europeia com governos de extremadireita da região é possível imaginar que uma recuperação econômica lastreada no aumento do gasto bélico possa consolidar a normalização em curso dos governos de extremadireita no bloco e a adaptação destes às instituições europeias A questão é como se dará esse processo e seus reflexos sociais e políticos A estrutura do poder global norteamericano vai atuar para manter esta coesão muito importante para os seus objetivos geopolíticos porém a fratura social europeia é grande e o futuro da integração seguirá incerto OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 6 O INSUCESSO DAS SANÇÕES FINANCEIRAS DOS EUA E DA UE Por Mauricio Metri m 24 de março de 2024 alguns jornais noticiaram os 25 anos do UTurn do avião em pleno voo sobre o Atlântico com o então ministro das relações exteriores da Rússia Yevgeny Primakov em razão do início dos bombardeios da OTAN sobre a Sérvia sem aprovação do Conselho de Segurança da ONU1 Em meio à investida contra Belgrado as forças da OTAN atingiram deliberadamente a embaixada da China2 A data não foi esquecida por Pequim e no dia 7 de maio de 2024 o presidente Xi Jinping esteve na capital da Sérvia para prestar sua homenagem aos mortos e passar um recado ao Ocidente3 Tais fatos marcaram o começo da reconstrução da Rússia a aceleração do processo de ascensão chinesa e o aprofundamento das parcerias sinorussas4 Nesse período a Rússia partindo de uma posição de atraso militar em relação aos EUA e fragilidade econômicofinanceira conseguiu não só estabelecer uma vantagem estratégica no campo das armas em 2018 ao desenvolver armamentos hipersônicos como também reconstruir sua economia nacional a ponto de contornar um conjunto de unprecedented economic sanctions5 a que foi submetida A despeito dos pacotes de sanções sua economia expandiu em 2023 de modo mais expressivo do que a dos próprios países do Atlântico Norte e para este ano o FMI corrigiu suas previsões para a Rússia dobrando suas estimativas6 Essa política de sanções financeiras é uma das faces do poder monetário do dólar no sistema internacional sobretudo depois da Doutrina Bush filho de 20027 No entanto a efetividade das 1 Ver httpssputnikglobecom20240324uturnoveratlantichowrussianpmprimakovshowed moscowwontbeussatellite1117506919html 2 Ver httpswwwtheguardiancomworld1999oct17balkans 3 Ver httpssputnikglobecom20240508chinaserbiaformpartnershipafterdepravedciaattackin belgrade1118343031html 4 Ver Metri M História e Diplomacia Monetária Ed Dialética São Paulo 2023 cap 15 5 Ver httpswwwftcomcontent9518bcd8547e4a41b518265ad0451c9b 6 Ver httpswwwftcomcontent21a5be9cafaa495fb7afcf937093144d 7 Ver Nascimento Maria A W V do A Doutrina Bush e a Institucionalização do Poder Coercitivo do Dólar Dissertação de Mestrado PEPI IEUFRJ 2024 E OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 7 sanções econômicas de Washington em termos dos objetivos de sua política externa tem sido muito baixa para não dizer nula Por exemplo o Irã a despeito do severo conjunto de sanções inaugurados em 2007 tem conseguido não somente resistir como também desenvolver uma efetiva capacidade militar ofensiva que lhe permitiu empreender uma mudança na correlação de forças no Sudoeste Asiático Há um mês em 12 de abril de 2024 Teerã abandonou sua política de paciência estratégica e revelou ao mundo por meio do ataque de mísseis a Israel sua capacidade de perfurar sistema de defesa antiaérea israelense1 No geral os principais alvos das sanções dos EUA Rússia Irã Coréia do Norte Venezuela e Cuba seguem resistindo e não é difícil perceber que uma das razões para isso é a ascensão da China à condição de maior economia do mundo ultrapassando a dos EUA Em 2023 sua participação no PIB mundial baseado na paridade de poder de compra chegou a 1873 enquanto a dos EUA ficou com 15562 Por seu dinamismo tamanho e sofisticação a economia chinesa tornou possível o contorno bypass dos sistemas de pagamentos controlados por Washington Para se ter uma idéia após o início da intervenção militar russa na Ucrânia quando foi imposto um sem precedente pacote de sanções o comércio sino russo cresceu 64 alcançando o recorde de US 240 bilhões em 2023 Não por outra razão em 8 de abril de 2024 a secretária do Tesouro dos EUA Janet Yellen em visita a Pequim ameaçou as companhias chinesas ao afirmar que There will be significant consequences for companies that provide material support to Russia Those who do not comply will face consequences3 A resposta chinesa veio alguns dias depois quando da visita do ministro das relações exteriores da Rússia Sergey Lavrov a Pequim Ambos os países se comprometeram a manter a estabilidade da cadeia de abastecimento industrial inclusive com o apoio material chinês à guerra da Rússia contra a Ucrânia e à base industrial de defesa russa Segundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros da China Moscou e Pequim reinforced calls for their two countries to work more closely together against hegemonism4 1 Ver httpswwwbrasildefatocombr20240419oiraobrigouisraelagastarmilvezesmaisdo queocustodoataqueparaorepelirdizmohammadmarandi 2 Ver httpswwwimforgexternaldatamapperPPPSHWEOOEMDCADVECWEOWORLD 3 Ver httpspravda24czhlavnizpravyusajsoupripravenysankcionovatcinskebankyaspolecnosti kterepomohouruskevalecnemasineriitomaskosina 4 Ver httpswwwftcomcontent272e71e6a355409996403c7694316722 OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 8 Algumas semanas depois foi a vez do secretário de Estado dos EUA Antony Bliken reiterar as ameaças de Washington em pleno solo chinês Em seu pronunciamento durante visita oficial à China afirmou que The United States is ready to take new measures and impose sanctions against China and against the background of the situation in Ukraine If China does not take measures to solve this problem the US will do it1 Essas persistentes ameaças de Washington são reveladoras de um consenso já estabelecido no Atlântico Norte de que o poder do dólar enquanto instrumento de sanção econômica está se erodindo e que a China se constitui numa das principais razões para isso Falase abertamente sobre o tema Em 29 de abril de 2024 a presidenta do Comitê do Tesouro da Câmara dos Comuns do Reino Unido Harriet Baldwin afirmou que There is a general consensus that sanctions are not working in terms of their stated intent causing real trouble for the Russian economy2 Alguns dias depois na mesma linha o ministro da defesa da Itália expressou que economic sanctions against Russia had failed and called on the West to try harder to negotiate a diplomatic solution with President Vladimir Putin to end the war in Ukraine the West had wrongly believed its sanctions could stop Russias aggression but it had overestimated its economic influence in the world3 Há poucos dias em 6 de maio de 2024 após encontro com o presidente chinês Xi Jinping na capital francesa a presidenta da Comissão Européia Ursula von der Leyen voltou ao tema Afirmou que We have also discussed Chinas commitment not to provide any lethal equipment to Russia More effort is needed to curtail delivery of dualuse goods to Russia that find their way to the battlefield And given the existential nature of the threats stemming from this war for both Ukraine and Europe this does affect the EUChina relations4 Portanto nas estruturas de poder do Atlântico Norte já se consolidou a percepção de que há uma espécie de aviltamento do poder do dólar enquanto instrumento de violência via sanção financeira embora haja um outro entendimento também estabelecido em Washington com relação ao principal privilégio de se comandar a moeda de referência global o de alavancar o grau de endividamento e gasto de seu estado impondo ao mundo o ônus do 1 Ver httpssputnikglobecom20240426blinkenpromisestoensuretransatlanticsecurityto counterchinesesupportforrussia1118125099html 2 Ver httpswwwftcomcontenta9a583b99b04430ea9ed628ea2f5d492 3 Ver httpswwwreuterscomworldeuropeitalycallsukrainetrucepeacetalkswithputin newspaper20240506 4 Ver httpseceuropaeucommissionpresscornerdetailenstatement242464 OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 9 financiamento de suas guerras globais Este ao contrário das sanções segue funcionando a plenos pulmões como no caso do pacote de US 95 bilhões de ajuda para Ucrânia Israel e Indo Pacífico recém aprovado na Câmara dos Deputados dos EUA1 1 Tema este discutido em outra oportunidade Ver httpsstrategicculturesunews20240320silver bulletagainstbarbarianinvasionsofwestdedollarizationofinternationalsystem OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 10 O IRÃ AMEDRONTA ISRAEL E GOLPEIA O OCIDENTE Por José Luís Fiori a noite de 13 para 14 de abril de 2024 o mundo assistiu a algo surpreendente e inusitado o bombardeio aéreo iraniano do território de Israel como resposta ao ataque israelita ao consulado iraniano de Damasco na Síria que matou sete oficiais da Guarda Revolucionária do Irã O Irã utilizou 200 UAVs 150 mísseis de cruzeiro 110 mísseis balísticos superfíciesuperfície Shahab 3 Sajil2 e Kheibar e mais 7 mísseis hipersônicos Fattah2 Foi o maior ataque de drones da história lançado a partir de vários pontos do Oriente Médio incluindo a Síria o Iraque o Líbano e a parte do Yemen controlada pelos Houtis Israel declarou ter abatido 99 dos mísseis e UAVs que foram lançados mas não houve nenhuma comprovação e muitos especialistas militares duvidam dessa informação Assim mesmo Israel contou com o apoio da Força Aérea do Reino Unido dos Estados Unidos e da Jordânia para interceptar os projéteis e com a assistência da inteligência americana na localização e antecipação dos alvos No balanço final entretanto há consenso de que foi uma vitória estratégica e simbólica do Irã sobretudo quando se tem em conta que o Irã anunciou aos governos dos EUA e da Turquia pelo menos sobre seu ataque e utilizou na maioria dos casos drones muito lentos e ultrapassados tecnologicamente Apesar disto seus drones e foguetes chegaram até Israel e atingiram vários objetivos militares sem ter matado nenhum civil aparentemente nem ter destruído ou visado nenhum equipamento civil de Israel Afora isto o Irã obrigou Israel a gastar mais de 1 bilhão de dólares em poucas horas ao utilizar seu famoso sistema de defesa antiaérea Iron Dome permitindo que os persas o localizassem e o mapeassem para eventualidade de futuros ataques Mapearam simultaneamente as bases utilizadas por norteamericanos britânicos e jordanianos o que talvez explique a reação temerosa e a fragilidade da resposta que foi dada uma semana depois pelos israelenses De outra perspectiva o ataque persa atingiu em cheio a crença na invencibilidade militar israelense e ao mesmo tempo N OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 11 enviou uma mensagem ao resto do Oriente Médio revelando uma capacidade de dissuasão iraniana que era desconhecida até então com relação a Israel mas também com relação aos seus demais concorrentes geopolíticos dentro do Oriente Médio como é o caso de Turquia Emirados Árabes Jordânia e em especial Arábia Saudita que já refez rapidamente seus cálculos estratégicos e retomou suas negociações em torno de um acordo de defesa com os Estados Unidos envolvendo provavelmente o reconhecimento de Israel Além disso os iranianos demonstraram possuir capacidade balística de atacar e destruir as bases militares que os Estados Unidos mantêm na região podendo inclusive atingir o continente europeu Ou seja resumindo o panorama militar do Oriente Médio mudou radicalmente depois da noite de 13 para 14 de abril de 2024 e todos os cálculos estratégicos dos principais atores desse tabuleiro geopolítico terão que ser refeitos porque se trata de uma mudança radical e irreversível Para compreender a dimensão desse impacto entretanto é preciso recuar no tempo e relembrar a relação da Inglaterra e dos Estados Unidos com a invenção criação e sustentação militar e financeira deste microestado que possui um território que é metade do estado do Rio de Janeiro e uma população que é bem menor do que a do Grande Rio Com um território sem nenhuma relevância geoeconômica mas que Inglaterra e Estados Unidos transformaram numa espécie de anão atômico com a pretensão de ser um povo escolhido mas que é na prática apenas um bibelô geopolítico angloamericano na sua luta pelo poder global Aqui contudo é necessário fazer um pequeno flashback histórico A proposta inicial de criação do Estado judeu é atribuída normalmente ao jornalista austrohúngaro Theodor Herzl e ao seu livro O Estado Judeu publicado em Viena em 1897 O mais provável no entanto é que sua proposta tivesse caído no mesmo vazio de várias outras desilusões nacionalistas do século XIX se não tivesse se transformado numa válvula de escape dos europeus com relação aos judeus no momento em que Arthur Balfour o ministro de Relações Exteriores britânico declarou em 1917 que o governo de Sua Majestade encarava favoravelmente o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o Povo Judeu Uma declaração que se transformou num projeto concreto em 1922 quando a Liga das Nações concedeu à Inglaterra um Mandato Internacional sobre o território da Palestina que era então habitada por uma maioria árabe e muçulmana com a participação de apenas 11 de judeus porcentagem que foi aumentando com o estímulo dos britânicos OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 12 Foram os ingleses portanto que induziram a primeira grande onda migratória de judeus europeus na direção da Palestina entre 1922 e 1935 Como está acontecendo agora novamente depois da decisão do Parlamento inglês de despachar para Ruanda na África os novos judeus ou refugiados árabes e africanos que aportaram na Inglaterra sobretudo depois do ataque angloamericano ao Iraque em 2003 E foi esta imigração induzida dos judeus europeus que provocou a primeira grande revolta palestina massacrada pelos ingleses entre 1936 e 1939 Foi ali que começou a resistência palestina que se mantém até hoje mas que adquiriu outra intensidade depois que os ingleses decidiram se desfazer do seu Mandato Internacional em 1947 começando a articular o apoio ao seu projeto de criação de um Estado Judeu através de uma decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas Decisão que foi tomada no dia 29 de novembro de 1947 sob forte pressão dos Estados Unidos e assim mesmo por apenas 33 votos a favor 13 contra e 10 abstenções A ONU havia sido recémcriada e seria muito difícil que pudesse tomar uma decisão desta importância e gravidade se não fosse pela intervenção quase imperativa das duas grandes potências recémvitoriosas na Segunda Guerra Mundial Inglaterra e Estados Unidos estes no caso empoderados pelo sucesso de seu ataque nuclear contra as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki Assim nasceu o Estado de Israel no dia 14 de maio de 1948 e sem o apoio de Estados Unidos e Inglaterra ele recémcriado não teria conseguido vencer sua primeira guerra contra os Estados árabes do Egito Síria Líbano e Jordânia já no ano de 1948 A guerra durou um ano e terminou com a vitória de Israel e a anexação israelita dos territórios da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental além da entrega da Faixa de Gaza aos árabes onde haviam então se refugiaram cerca de 700 mil palestinos expulsos de suas terras pela Resolução da ONU n 181 Depois disto ainda houve a Guerra dos Seis Dias em 1967 e a Guerra do Yom Kippur em 1973 vencidas por Israel sempre e de novo com o apoio decisivo e incondicional financeiro e militar de Estados Unidos e Inglaterra E foi por decisão dessas duas potências que a França repassou a Israel seu segredo atômico aparentemente logo após a Guerra dos Seis Dias Esta história nos ajuda a entender melhor a relação umbilical que se estabeleceu através do tempo entre os israelenses e seus criadores e tutores angloamericanos O apoio incondicional dos EUA e da Inglaterra foi o grande responsável pela invencibilidade militar de Israel desde sua primeira vitória contra os árabes em 1948 E é esta relação carnal entre os três países que explica a OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 13 forma violenta e incondicional com que os Estados Unidos e a Inglaterra reagiram frente ao Hamas em 7 de outubro de 2023 apoiando inclusive o massacre do povo palestino da Faixa de Gaza até o momento em que a selvageria israelense começou a ameaçar a tentativa de reeleição de Joe Biden Uma reação raivosa que se repetiu frente ao ataque iraniano da noite de 13 para 14 de abril porque neste caso a demonstração de fragilidade de Israel representou também uma grande derrota para as duas potências que tutelam o Estado Judeu e que são na realidade o núcleo durodo império militar do Ocidente OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 14 FILIPINAS A MAIS NOVA ZONA DE ATRITO ENTRE EUA E CHINA Por Wagner Sousa 1Hegemonia estratégia global e conflitos regionais região oceânica do Mar do Sul da China provavelmente é a mais problemática do mundo em termos de definição das fronteiras marítimas China Vietnã Taiwan Filipinas Malásia Singapura e Brunei estão diretamente envolvidos em uma disputa na qual as reivindicações relativas ao mar territorial ou a zona de exploração de econômica de cada país se superpõem Como aparece no mapa abaixo A região é crucial para os interesses da China por onde passa a maior parte de seu comércio exterior Vinte por cento do comércio mundial passa por ali É um espaço relevante também para a atividade pesqueira e se especula que há depósitos de petróleo e gás É vista como essencial para os chineses também para a sua defesa O país tem construído ilhas artificiais para assegurar a presença de sua marinha Essa assertividade chinesa na defesa de seus interesses têm despertado a oposição de outros países da A OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 15 região com suas também entendidas como legítimas reivindicações territoriais marítimas E oposição também dos Estados Unidos nação hegemônica nos oceanos do planeta Esta região é no que diz respeito à economia altamente integrada E é uma integração com destaque para o setor industrial com os países da região fornecendo componentes para a indústria chinesa Isto torna a questão mais complexa aos países da região em relação à China e este pêndulo entre afirmação da soberania marítima e acomodação com o gigante asiático É a tensão entre relações econômicas e políticas importantes com o país mais relevante em termos regionais e a necessidade de resguardar o que é entendido como interesse nacional legítimo tanto econômico como de segurança E têmse aqui o papel dos Estados Unidos A ideia de liberdade de navegação nas chamadas águas internacionais tem sido a principal justificativa norteamericana para se contrapor construindo alianças com os países da região às intenções de jurisdição marítima da China Para tanto os EUA têm firmado acordos com os países deste entorno e feito exercícios com a participação das suas marinhas Os encontros entre as marinhas da China dos EUA e dos países da região não redundaram até então felizmente em qualquer incidente mais sério mas os riscos aumentam à medida que essas ocorrências vêm se tornando mais frequentes Controlar os oceanos é uma das capacidades da potência hegemônica os Estados Unidos Para tanto administram uma vasta rede global de instalações militares portaaviões satélites e possuem acordos militares em todos os continentes No Indo Pacífico conceito criticado por muitos por unir os Oceanos Pacífico e Índico unicamente para atender ao interesse de predomínio norte americano vem celebrando os mais importantes e incentivando aliados a fazêlo acordos militares nesta região como o Aukus Austrália Reino Unido e EUA o QUAD Estados Unidos Japão Índia e Austrália o acordo trilateral entre EUA Japão e Coréia do Sul o recente acordo entre Austrália e Filipinas e a reaproximação estratégia entre EUA e Filipinas no governo de Ferdinando Marcos Jr Todos visam a contenção da China 2 Filipinas a Ucrânia do Pacífico Após uma maior aproximação com os chineses promovida pelo presidente anterior Rodrigo Duterte o novo mandatário filipino Ferdinando Marcos Jr volta ao tradicional alinhamento das Filipinas com os Estados Unidos EUA e Filipinas realizarão exercícios navais e patrulhas aéreas conjuntas sobre o Mar do Sul OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 16 da China e os norteamericanos terão maior acesso a instalações militares filipinas Esta reaproximação foi precedida por um acirramento nas relações ChinaFilipinas o que é exemplificado pelo site da BBC News Brasil 281023 China e Filipinas vivem atualmente o seu momento de maior tensão dos últimos anos Ambos os países disputam territórios no Mar da China Meridional também conhecido como Mar do Sul da China incluindo o arquipélago Ilhas Spratlye e o Atol de Scarborough Estes territórios ficam a cerca de 200 km a leste das Filipinas que os controla Mas Pequim reivindica as áreas como suas e tem posicionado a sua força naval nas águas ao redor No último domingo 2210 um navio da Guarda Costeira chinesa atingiu intencionalmente um dos barcos filipinos A aliança entre os Estados Unidos e as Filipinas portanto se coloca para as Filipinas assim como outros países da região como essencial para fazer frente à China e conter suas ambições hegemônicas regionais Para os EUA é parte de uma rede de alianças que não se trata exatamente de uma OTAN do Pacífico mas que busca aumentar expressivamente a cooperação entre os norteamericanos e os atores estatais locais como importante elemento de sua estratégia de enfrentamento global da China Nessa estratégia a própria OTAN pode assumir um papel global e se juntar a esse esforço no IndoPacífico A soma destes dois oceanos visa prevenir ou limitar a projeção de poder da China no Leste Asiático no Oriente Médio e na costa oriental da África além do seu poder naval neste grande espaço oceânico O temor de alguns analistas é que em estratégia similar à adotada na confrontação com a Rússia as Filipinas assim como a Ucrânia possam ser o ponto de atrito em forma de guerra por procuração para desgaste militar chinês e busca de seu isolamento e enfraquecimento No caso russo estes objetivos não foram alcançados Embora pareça distante no momento tal cenário a crescente militarização da região promovida pelos EUA e a expansão das forças armadas chinesas com por exemplo o recente lançamento do terceiro portaaviões chinês o primeiro comparável aos gigantes portaaviões nucleares dos EUA enseja o crescente risco de confronto entre duas potências nucleares cenário muito perigoso para a região e para o mundo À medida que o desenvolvimento chinês e sua ascensão no mundo vai colocando cada vez mais em dúvida a primazia norteamericana e do Ocidente uma forte reação vem sendo articulada nos campos econômico comercial tecnológico e militar E para os EUA envolver parceiros em proxy wars pode ser um trágico estágio futuro desta confrontação OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 17 A VIAGEM DE XI JINPING E AS FRATURAS NO PROJETO EUROPEU Por Daniel Barreiros em ficando cada vez mais evidente que emerge um projeto rearmamentista na Europa cujo principal protagonista é o atual governo alemão com apoio norteamericano Muito embora não se possa falar de um projeto formal as evidências apontam para uma tentativa de construção de liderança na UE com base em uma política de desenvolvimento das capacidades industriais de defesa europeias tendo Berlim nitidamente como epicentro Esse ímpeto se beneficia fundamentalmente da visível incapacidade de Kiev de conter a concretização ainda que limitada de objetivos militares por parte das forças armadas russas e da ameaça mais imaginária que real de uma atualização desses objetivos envolvendo territórios sob o manto protetor da OTAN Fica sugerido nas entrelinhas o fomento a um consistente movimento de polarização global por parte dos governos norteamericano e alemão no qual ou se cerra fileiras com Washington ou se está na outra ponta do arcabuz Nesse sentido parte das atenções se volta para a China e para a eventualidade do fornecimento de tecnologias sensíveis às forças armadas russas que lhes garantam alguma vantagem além daquelas de que já dispõem Pequim vem sendo pressionada de forma bem pouco razoável por um posicionamento enfático em condenação à guerra algo que naturalmente é recebido pelas autoridades chinesas com ouvidos de mercador Olaf Scholz visitou a capital chinesa em abril passado e entre manifestações de repúdio à alegada prática de subsídios à indústria chinesa que permitiria aos seus produtos tomarem de assalto os mercados europeus o chanceler alemão enfatizou o perigo à dita ordem internacional baseada em regras representado pela Guerra Russo Ucraniana Instou Pequim a influenciar diretamente Vladimir Putin para o fim das hostilidades e pediu apoio chinês à conferência de paz a ser realizada em junho na Suíça Além de uma promessa lacônica de apoiar a tal conferência para a qual os russos não foram convidados acrescentese Scholz levou para casa sorrisos V OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 18 e saudades de um tempo em que os europeus falavam grosso com seus lacaios e eram atendidos E em cena entram os franceses Que a eurotrip de Xi Jinping em maio deste ano fosse incluir Budapeste e Belgrado era algo um tanto óbvio a Hungria do extremista de direita Viktor Orbán é vista por Pequim como porta de entrada e uma voz em defesa dos interesses chineses na União Europeia e a Sérvia não só mostra um resoluto compromisso com a Rússia de Putin como é feliz receptáculo de polpudos investimentos chineses no ambito da Nova Rota da Seda da qual a Itália aliás se desligou O realmente interessante foi Xi Jinping não começar sua viagem pela Europa com uma visita de cortesia à Berlim dentro do melhor espírito de reciprocidade e de reconhecimento de sua suposta liderança regional Começou por Paris onde um mordido e recalcado Macron lhe aguardava Não abundaram dessa vez sorrisos e cortesias como na visita da delegação francesa a Pequim em abril de 2023 ocasião em que ao lado de Xi Macron culpou os Estados Unidos por fomentarem instabilidade no Extremo Oriente Dessa vez o dignitário francês aguardava a delegação do Império do Meio para dizerlhe sobre o ponto de vista de Paris a respeito do comércio sinoeuropeu e da questão ucraniana Trazia a tiracolo Ursula von der Leyen e com isso subitamente Paris se tornou a capital diplomática da UE por dois dias como num sonho juvenil A impressão não foi menos profunda do que a causada pelo chanceler alemão um mês antes e Xi Jinping entrou e saiu dizendo as mesmas platidudes habituais da diplomacia chinesa quando pretende mandar terceiros às favas sem perder a pose Mas neste artigo não importam tanto os chineses e sim a iniciativa de Paris É bem verdade que a França vive um clima de fim de festa quando o assunto é projeção internacional Os governos militares do Mali de Burkina Faso e do Níger puseram uma caprichada pá de cal na anacrônica ideia de uma Françafrique delírio colonial tardio que se ainda respira é com a ajuda de aparelhos nesse caso o franco CFA Macron muito recentemente fez pose de condottieri a serviço da segurança dos potentados europeus ao sugerir o envio de tropas francesas para a linha de frente na Ucrânia Sua ousadia foi respondida em poucas horas com uma ameaça bemcomportada de resposta nuclear por Moscou e por uma brigada de incêndio teutoamericana que tratou de extinguir as labaredas com notas inequívocas de que não aceitariam o envolvimento de um país da OTAN nas hostilidades Isso implicava dizer entre outras coisas que para os alemães e norteamericanos não cabe ao governo francês decidir ou se pronunciar sobre tal coisa OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 19 O fato então é que parece haver pouco espaço para que Paris fuja ao centro gravitacional de Berlim com sua nítida estratégia de liderança militar e econômica sobre a UE abençoada pelo papa em Washington Não que a história se repita mas são sentidos os mesmos ecos da visita de Charles de Gaulle a Mao TseTung em 1964 com a tentativa de Paris de expandir seu gradiente de liberdade e furar o campo de contenção hegemônico produzido pelos Estados Unidos e pela então Alemanha Ocidental Dada a inequívoca frente teutoamericana a escolha de Xi Jinping por Macron pode também não ter sido despropositada tendo em vista que ela introduz um ligeiro mas não menos importante componente de atrito nas engrenagens diplomáticas intra europeias OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 20 A CHINA E A SEGUNDA INDEPENDÊNCIA AFRICANA 2 Por Elias Jabbour anto a China quanto a África foram literalmente arrastadas pela ordem estabelecida pela Revolução Industrial pela força das armas violência colonial e uma guerra pela liberação do tráfico de drogas Guerras do Ópio 18391842 Podemos dizer ainda que a diferença entre o Terceiro Reich e as potências coloniais que assaltaram a África e a Ásia está na geografia Hitler fez na Europa o que os europeus já faziam em escala industrial em suas colônias Tratase de uma risca de giz no chão para dividir o colonialismo europeu e as formas de relacionamento estabelecidas entre a China e o continente africano principalmente desde 2000 Como já posto um novo despertar anticolonial africano está ocorrendo Mais sob os auspícios de uma crescente presença econômica chinesa na região Narrativas ocidentais de neocolonialismo e debt trap são frequentes e se transformaram em senso comum nas discussões sobre o tema O que não se percebe é que até a disposição das infraestruturas construídas pelos chineses na África não obedece à lógica de corredores de exportação e se assemelham mais a investimentos voltados a unificar mercados internos e inaugurar formas superiores de divisão social do trabalho Os esquemas dos investimentos em infraestruturas chinesas na África cada vez mais obedecem a uma lógica de conexão com a formação de indústrias Não se trata de uma benevolência chinesa algo que não existe no mundo real Tratase de crescentes exigências por parte de seus parceiros africanos a necessidade de relacionar investimentos em infraestruturas com industrialização instalação de zonas econômicas especiais e agregar valor de matériasprimas na própria África Vejamos alguns exemplos O caso da ferrovia Addis AbabaDjibouti Em 2016 o governo chinês orientar suas empresas públicas e não públicas a instalarem plantas industriais e zonas econômicas especiais em torno desta ferrovia Parques industriais foram instalados em Hawassa Dire Dawa Kombolcha e Adama As periferias próximas da referida capital etíope estão repletas de instalações industriais chinesas T OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 21 Acordos semelhantes foram assinados com o Quênia no sentido de transformar o entorno da ferrovia MombasaNairobi em um grande cluster industrial A tendência deste tipo de operação é a de se espraiar Isso por conta de uma moção conjunta dos líderes africanos à China em 2022 no sentido de ampliar as relações econômicas no rumo da industrialização do continente A resposta chinesa veio em 2023 com o lançamento da Iniciativa Para a Industrialização Africana com resultados já claros e demarcatórios em relação ao que colonialismo europeu O caso do Zimbábue um dos países mais sancionados do mundo é paradigmático das relações internacionais de novo tipo que a China tem desenvolvido O país asiático anunciou investimentos da ordem de US 27 bilhões em uma planta industrial de exploração e processamento de lítio Bom lembrar que num gesto de afirmação nacional de independência em 2022 o Zimbábue proibiu a exportação de lítio in natura o que levou o governo chinês a se adaptar a novas regras impostas pela referida nação africana Por fim algumas palavras sobre o mito do debt trap armadilha da dívida A nosso ver existem três problemas com essa narrativa O primeiro problema é que esse mito pressupõe que a China tem amplos poderes para impor de forma unilateral a forma de funcionamento dos projetos envolvendo os projetos da Iniciativa do Cinturão e da Rota com intenção de obrigar os signatários a aceitarem esses empréstimos predatórios Na realidade o financiamento chinês para o desenvolvimento é em grande parte orientado por acordos bilaterais convergindo a uma constatação que relaciona a adaptação chinesa a projetos nacionais autônomos Na verdade os projetos de infraestrutura são determinados pelo país beneficiário não pela China com base em seus próprios interesses econômicos e políticos O segundo problema está na suposição na suposição de que é um princípio político chinês conceder empréstimos predatórios com termos e condições onerosos aos países receptores Na realidade a China costuma conceder empréstimos a taxas de juros mais baixas do que as praticadas por instituições como o FMI e o Banco Mundial E a tendência empiricamente comprovada é a de que de forma repetida a China se dispõe a reestruturar os termos dos empréstimos O fato é que em agosto de 2022 o governo chinês anunciou que estava perdoando 23 empréstimos sem juros em 17 países africanos Antes disso entre 2000 e 2019 a China também havia reestruturado um total de US 15 bilhões em dívidas e perdoado US 34 bilhões em empréstimos concedidos a países africanos OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 22 A terceira questão reside no fato de a China nunca ter confiscado um ativo de um país em razão do não pagamento de suas dívidas Casos propalados como os ocorridos no Sri Lanka Zâmbia e Quênia três países que entraram em default já foram devidamente desmentidos por uma série de artigos e pesquisas notadamente as capitaneadas pela professora Deborah Brautgam Encerramos dizendo que sim as relações entre a China e a África stão longe de serem um mar de rosas onde inexiste a contradição Mas como nos ensina a própria filosofia fina alemã a contradição move o processo No caso as duas partes ao conseguirem saltar de um desequilíbrio a outro em suas relações poderão legar ao mundo o que já dito aqui Relações internacionais de novo tipo OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 23 DESAFIOS ALIMENTARES NA ÁFRICA SUBSAARIANA ASS Por Georges Flexor Karina Kato Nelson Delgado segurança alimentar é um desafio considerável para os países africanos Segundo a FAO no Estado da Segurança Alimentar no Mundo 2023 a subnutrição atingiu 225 na ASS em 2022 acima da média mundial 92 Isso esconde no entanto uma grande heterogeneidade No Oeste e no Sul da África a subnutrição atingiu 146 e 112 respectivamente inferior ao Leste 285 e ao Centro 291 Há também diferenças intrarregionais No Senegal ou no Camarões a subnutrição é inferior a 7 Na Libéria ou na Guiné Bissau ela é superior a 38 A heterogeneidade de situações caracteriza igualmente o Centro e o Leste da África Na República Centro Africana e na Somália quase 50 da população sofre de subnutrição cifra superior à Etiópia 219 ao Quênia 278 ou à Tanzânia 235 A reflexão sobre o estado da insegurança alimentar na ASS e seus desdobramentos na geopolítica alimentar global e na instabilidade política do continente requer que consideremos a diversidade das situações sem no entanto perder de vista de que se trata de uma questão que aflige este continente mais do que qualquer outro Esses desafios se intensificarão nas próximas décadas Tanto os fatores de demanda como os de oferta apontam para uma situação alimentar mais complexa incerta e desafiadora A dinâmica demográfica é a força mais visível e comentada nas reflexões sobre os desafios alimentares africanos e suas consequências geopolíticas A população do continente segundo as Nações Unidas é de quase 15 bilhões de habitantes em 2024 Em 2050 deve aproximar os 25 bilhões e projetase que chegará próximo aos 4 bilhões no fim do século A título de comparação a população mundial hoje é estimada em 812 bilhões e esperase que alcance os 102 bilhões em 2100 Assim sendo o crescimento populacional neste século ocorrerá fundamentalmente por causa da dinâmica demográfica africana A população da ASS que hoje é de 125 bilhões chegará a 34 bilhões no fim do século aumento de 170 A OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 24 Essa dinâmica demográfica será acompanhada de intensa urbanização Atualmente mais de 45 da população do continente é urbana Em 2050 estimase que chegará a 60 com elevação até o fim do século Segundo o Instituto Internacional para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento em 2100 13 das 20 maiores megacidades do mundo estarão na África 11 delas na ASS Lagos na Nigéria será a maior delas com 883 milhões de habitantes seguida por Kinshasa na República Democrática do Congo 835 milhões e por Dar el Salaam na Tanzânia 737 milhões Neste contexto a questão da segurança alimentar na ASS colocase como um dos principais desafios humanos do século XXI Quais são as perspectivas do lado da oferta de alimentos O continente é importador líquido de alimentos A dependência deverá crescer nas próximas décadas requerendo investimentos em infraestruturas logísticas portuárias ferroviárias e rodoviárias para garantir o acesso do continente aos mercados mundiais A dependência alimentar faz com que muitos países africanos sejam afetados pela volatilidade dos preços seja em consequência de secas de conflitos armados como na Ucrânia ou de políticas de restrições às exportações como as adotadas pela Índia o maior exportador mundial de arroz A geopolítica mundial e as mudanças climáticas tornamse cada vez mais fatores chave da segurança alimentar da ASS com a instabilidade política mundial e a volatidade dos mercados globais impactando negativamente as condições de vida de milhares de pessoas e alimentando novas fontes de conflitos e de instabilidades Iniciativas de empresas ONGs organizações internacionais e governos têm visado à ampliação da produtividade da agricultura africana e a sua transformação no novo celeiro do mundo como alardeiam a Aliança para a Revolução Verde na África F Bill e Melinda Gates e F Rockfeller o Programa Compreensivo para o Desenvolvimento Agrícola da União Africana e o Sustenta do Banco Mundial Por exemplo se a produtividade média do milho na ASS é de 21 mil ton por hectares em 2023 na América Latina ela é três vezes maior e na América do Norte cinco A falta de insumos adequados afeta também a produção de alimentos fundamentais para a segurança alimentar como o milhete ou a mandioca Em outras palavras o uso de melhores cultivares e técnicas mais apropriadas poderiam garantir rápidos ganhos de produtividade e a segurança alimentar de centenas de milhões de pessoas As críticas a esses programas ressaltam seu foco nos produtos de exportação sua baixa adaptação aos sistemas de produção locais e às lógicas reprodutivas econômicas e sociais dos camponeses e seus riscos ambientais Salientam que embora OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 25 possam beneficiar um segmento de produtores capitalizados com maiores propriedades e voltados à exportação esses programas são inadequados para o universo dos agricultores africanos Não obstante a constatação de que a agricultura é ainda hoje o setor que mais emprega respondendo por 52 do emprego em 2020 na ASS segundo o Banco Mundial estudos do Observatório do Mundo Rural de Moçambique apontam que historicamente a agricultura camponesa e a produção de alimentos para o mercado interno seguem secundarizadas pelos governos da ASS A aposta dos Estados nos projetos extrativos energéticos minerais e agrícolas por outro lado amplia os conflitos e as disputas por terras com a agricultura Nas últimas décadas com o aumento dos preços das commodities boa parte dos países africanos foram alvo de uma corrida por terras para a produção de commodities agrícolas energéticas e minerais conforme atesta o Land Matrix 2024 A concessão de terras e a priorização dos projetos extrativos têm levado não raro ao aumento de conflitos regionais ao deslocamento de comunidades reassentamentos e à migração de populações A segurança alimentar colocase portanto como um dos principais desafios da ASS no século XXI e suas possibilidades dependerão da combinação de fatores internos da geopolítica mundial e das mudanças climáticas Pesa contra essas possibilidades a omissão dos Estados africanos no apoio à produção de alimentos de modo a promover a transformação da base produtiva e tecnológica da agricultura ampliar a produtividade melhorar o padrão de vida e reforçar a soberania alimentar Para além de infraestruturas e mercados isso requer iniciativas de integração econômica investimentos na melhoria dos sistemas de produção agrícola e no fomento de sistemas de produção de alimentos mais diversificados e adaptados aos contextos locais e a aposta em jovens e mulheres atores centrais na agricultura africana OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 26 A MULTIPOLARIDADE UMA DISPUTA VIOLENTA E INDEFINIDA Por José Luís Fiori muito comum ouvir políticos e analistas internacionais afirmarem que o sistema internacional está transitando de uma ordem mundial unipolar e globalizada para uma nova ordem mundial multipolar e desglobalizada Mas esta equação aparentemente simples esconde uma enorme complexidade porque a palavra transição sugere linearidade direção e conhecimento do lugar de onde se está partindo e do lugar para onde se está indo e hoje não está claro nem o ponto em que se encontra a transformação do sistema mundial nem muito menos o que viria a ser uma nova ordem mundial multipolar Com relação ao ponto de partida dessa transição o que se pode dizer é que estamos assistindo a um processo de implosão fragmentação e decomposição de uma ordem estabelecida e esse processo está se dando de forma desordenada e conflitiva O mundo não está no fim de uma guerra com ganhadores claros pelo contrário está no meio de duas guerras sem perspectiva de acabar envolvendo múltiplos atores em pleno combate e sem nenhuma disposição de negociar a paz Em termos muito amplos podese dizer que de um lado se encontram várias potências regionais em ascensão e de outro o bloco das potências ocidentais que resistem a dar passagem a essas novas potências regionais ou globais e não se dispõem a abrir mão da supremacia mundial que conquistaram e exerceram nos últimos 300 anos pelo menos Esse enfrentamento está se dando de forma cada vez mais direta e violenta sem regras ou grandes preocupações com a ética internacional e sem respeito às regras da economia de mercado através da guerra ou através da manipulação política da moeda das finanças e da concorrência econômica Não estamos vivendo um momento de vitória e submissão nem de negociação e acordo entre países que competem entre si e que se dispõem a negociar uma nova ordenação hierárquica do poder mundial Pelo contrário o mundo está em plena conflagração e nenhum país ou conjunto de países tem hoje capacidade de impor sua vontade sobre o resto do mundo e não existe o menor consenso sobre eventuais caminhos de negociação por mais que os líderes das grandes potências mundiais falem da necessidade de uma nova É OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 27 ordem mundial O que existe de fato é guerra militarização decomposição econômica e crise social e uma perda generalizada das referências éticas construídas pelo Ocidente nos últimos séculos Sobretudo depois que os Estados Unidos e seus aliados europeus caíram prisioneiros da armadilha que eles mesmos montaram na Palestina sendo obrigados a armar e sustentar o Estado de Israel mesmo sabendo do genocídio que está sendo praticado contra o povo palestino na Faixa de Gaza Uma armadilha que vem corroendo a ideia da excepcionalidade moral do Ocidente e erodindo os fundamentos éticos de sua hegemonia cultural dentro do sistema internacional No entanto com relação ao ponto de chegada dessa transição não existe o menor consenso nem a menor ideia do que seja ou do que poderá vir a ser exatamente uma nova ordem mundial multipolar O único que sabemos do ponto de vista puramente formal é que uma ordem multipolar não deverá ser igual à uma ordem bipolar como a que vigorou durante a Guerra Fria entre 1945 e 1991 nem deverá ser igual à ordem unipolar que vigorou depois do fim da União Soviética e da vitória norte americana na Guerra do Golfo em 199192 Mas não dá para ir muito além desta especulação formal sem conhecer o resultado das guerras que estão em curso e sem poder definir quais serão os membros do clube das grandes potências dessa nova ordem multipolar Ninguém duvida de que este clube incluirá pelo menos EUA China Rússia Índia e talvez uma União Europeia modificada militarizada e recentralizada a partir da Alemanha Ainda assim não se sabe se haverá hierarquia e qual será entre esses países Se haverá alguma hegemonia interna ou se todos aceitariam uma configuração horizontal entre poderes considerados equivalentes e equipotentes É bem possível que esta nova ordenação mundial fosse mais democrática do que a ordem unipolar que está sendo destruída mas não há garantia de que não se transforme rapidamente numa ordem oligopólica monopolizada por um grupo de no máximo seis ou sete grandes potências Assim mesmo não é impossível imaginar que pudesse haver também um pacto ou entente entre os Estados Unidos e a China as duas maiores potências do grupo desde que elas conseguissem administrar suas divergências e competição à morte no campo tecnológico Neste caso o mundo poderia estar se aproximando da hipótese clássica de Karl Kautsky sobre a possibilidade de um superimperialismo como aconteceu com os deuses pacificados por Júpiter após serem recluídos no Olimpo De qualquer maneira mesmo no plano puramente hipotético é muito pouco provável que isto pudesse acontecer considerando o grau e a intensidade da competição atual entre as duas superpotências OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI MAIO2024 28 Tudo isto são especulações obviamente porque é impossível prever o que acontecerá Mas uma coisa é absolutamente certa é impossível que o mundo transite de forma pacífica e harmoniosa na direção desta multipolaridade Pelo contrário o que se vê pela frente é uma disputa sem fronteiras e sem limites de nenhum tipo entre potências em ascensão e um grupo de outras potências que dominaram o mundo nos últimos três séculos e que não querem abrir mão de seu poder mundial Neste quadro não há a menor possibilidade que ocorra algo do tipo que algumas teorias chamam de transição hegemônica com substituição regular e periódica de uma potência líder por outra que assumiria o comando econômico e militar do mundo em lugar de sua predecessora A China não tem pretensão nem deve assumir um lugar igual ao que é ocupado hoje pelos Estados Unidos dentro do sistema mundial e a Rússia e a Índia não têm esta pretensão nem dispõem dos recursos para exercer a função de polícia militar do mundo Mas com certeza nenhum desses países e vários outros como Irã Turquia Indonésia Brasil e África do Sul não estão dispostos a seguir aceitando o arbítrio das antigas potências ocidentais Balanço feito o certo é que não há o menor espaço e disposição de negociação entre as grandes potências muito pelo contrário Por outro lado não há o menor espaço para uma guerra mundial que não venha a ser atômica e por isso o mais provável é que ela siga sendo transferida ou protelada O mundo está mudando numa velocidade muito grande e a ordem mundial do pósGuerra Fria chegou ao fim Mas o Ocidente deve resistir e tem poder para tanto e seja como for permanecerá dentro do sistema mundial como um dos seus polos mais poderosos do ponto de vista econômico tecnológico e militar Nesta hora olhando para o futuro o que o se consegue ver para além dos conflitos imediatos é um mundo atravessando um período muito longo de turbulência instabilidade e imprevisibilidade com uma sucessão de conflitos e guerras locais E se for isto que se está chamando de transição para a multipolaridade então é melhor apertar os cintos porque a trepidação vai ser intensa e deve se prolongar por muitos anos ou décadas De qualquer maneira durante este tempo de trepidação que pode se prolongar até a segunda metade do século XXI a defesa da multipolaridade será cada vez mais a bandeira dos países e dos povos que se insurgem neste momento contra a o imperium militar global exercido pelo Ocidente durante os últimos 300 anos da história da Humanidade mesmo que não saibam exatamente neste momento o que virá a ser esta ordem multipolar do futuro OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI N5 Maio2024