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Relações Internacionais ·

Economia Política

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EHCARR VINTE ANOS DE CRISE 1919 1939 COLEÇÃO CLÁSSICOS IPRI Comitê Editorial Celso Lafer Marcelo de Paiva Abreu Gelson Fonseca Júnior Carlos Henrique Cardim A reflexão sobre a temática das relações intemacionais está presente desde os pensadores da antigüidade grega como é o caso de Tuádides Igualmente obras como a Utopia de Thomas More e os escritos de Maquiavd Hobbes e Montesquieu requerem para sua melhor compreensão uma leitura sob a ótica mais ampla das relações entre estados e povos No mundo moderno como é sabido a disciplina Relações Internacionais surgiu após a Primeira Guerra Mun dial e desde então experimentou notável desenvolvimento transformandose em matéria indispensável para o entendimento do cenário atual Assim sendo as relações internacionais constituem área essencial do conhecimento que é ao mesmo tempo antiga moderna e contemporânea N o Brasil apesar do crescente interesse nos meios acadêmico político empresa rial sindical e jornalístico pelos assuntos de relações exteriores e política interna cional constatase enorme carência bibliográfica nessa matéria Nesse sentido o IPRl a Editora Universidade de Brasília e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo estabeleceram parceria para viabilizar a edição sistemática sob a forma de coleção de obras básicas para o estudo das relações internacionais ournas das obras incluídas na coleção nunca foram traduzidas para o português como O Direito daPaz eda Guerra de Hugo Grotius enquanto outros títulos apesar de não serem inéditos em língua portuguesa encontramse esgotados sendo de dificilacesso Desse modo a coleção CIAsSICOS IPFJ tem por objetao facilitar ao público interessado o acesso a obras consideradas fundamentais para o estudo das relações internacionais em seus aspectos histórico conceitual e teórico Cada um dos livros da coleção contará com apresentação feita por um especialis ta que situará a obra em seu tempo discutindo também sua importância dentro do panorama geral da reflexão sobre as relações entre povos e nações Os CrAs SICOS IPRl destinamse especialmente ao meio universitário brasileiro que tem registrado nos últimos anos um expressivo aumento no número de cursos de graduação e pósgraduação na área de relações internacionais Coleção CLÁSSICOS IPRI TudDIDES História da Guma do Peloponeso Prefácio Hélio Jaguaribe EHCARR Vinte Anos de Crise 19191939 Uma Introdu ção ao Estudo das Relações Internacionais Prefácio Eiíti Sato JM KEYNES s Consequéncias Econômicas da Paz Prefácio Marcelo de Paiva Abreu RAYMOTIARON Paz e Guerra entre as Nações Prefácio Antonio Paim MAQUIAVEL Escritos Selecionados Prefácio e organizaçãoosé Augusto Guilhon Albuquerque HUGO GROTIUS O Direito da Guerrae da Paz Prefácio Celso Lafer Arsxis DE TOCQUEVIllE Escritos Selecionados Organização e prefácio Ricardo Velez Rodrgues HANSMORGENTHAU Política entre as Nações Prefácio Ronaldo M Sardenberg IlL1ANUEL KANT Escrtos Políticos Prefácio Raimundo Faoro SAIUEL PUFENDORF Do Direito Natural e das Gentes Prefácio Tércio Sampaio Ferraz Júnior CRLVON CLUSEWITZ Da Guerra Prefácio Domício Proença G W F HEGEL Textos Selecionados Organização e prefácio Franklin Trein JEANJACQUES ROUSSEAU Textos Selecionados Organização e prefácio Gelson FonsecaJr NORMAN ANGElL Grande IINsão Prefácio Carlos Henrique Cardim THOMASMoRE Utopia Prefácio João A1mino Conselhos Diplomáticos Vários autores Organização e prefácio Luiz Felipe de Seixas Corrêa EMERICH DE VATIEL O Direito das Gentes Tradução e prefácio Vicente Marotta Rangel THOl1AS HOBBES Textos Selecionados Organização e prefácio Renato Janine Ribeiro ABBÉ DE SAINT PIERRE Projeto para uma Paz Perpétua para a Europa SAlNTSIMON Reorganização da Sociedade Européia Organização e prefácio Ricardo Seitenfuss HEDLEYBUIL 54 Sociedade Anárquica Prefácio Willians Gonçalves FRANCISCO DE VITORIA De Indis et De jure Beli Prefácio Fernando Augusto Albuquerque Mourão MINIsTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES Ministro de Estado Professor CELSO LAFER Secretário Geral Embaixador LUIZ FEUPE DE SEIXAS CORRÊA FUNDAÇÃO ALExANDRE DE GusMÃo FUNAG Presidente em exercício Conselheira MARlA LUCI G V DE SEIXAS CORRÊA CENTRO DE HISTÓRIA E DOCUMENTAÇÃO DIPLOMÁTICA CHDD Diretor Embaixador ÁLVARO DA COSTA FRAlJCO INSTITUTO DE PEsQUISA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS IPRI Diretor Conselheiro CARLOS HENRIQUE CARDL1 UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Reitor Professor LAURO MORHY Diretor da Editora Universidade de Brasília ALEXANDRE LIMA Conselho Editorial Elisabeth Cancelli Presidente Alexandre Lima Estevão Chaves de Rezende Martins Henryk Siewierski José Maria G de Almeida Júnior Moema Malheiros Pontes Reinhardt Adolfo Fuck Sérgio Paulo Rouanet e Sylvia Ficher IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO Diretor Presidente SÉRGIO KOBAYASHI Diretor VicePresidente LUIZ CARLOS FRIGÉRIO Diretor Industrial CARLOS NICOLAEWSKY Diretor Financeiro eAdministrativo RJCHARD VAINBERG Coordenador Editorial CARLOS TAUFIK HADDAD s S I tfC o u I P R I E H CA R R VINTE ANOS DE CRISE 1919 1939 Uma introdução ao estudo das relações internacionais Prefácio Eüti Sato Editora Universidade de Brasüia Edições Imprensa Oficial de São Paulo Instituto de Pesquisa de Relações Internadonais Copyright 1939 1946byEdward HallettCarr Copyright 1981 by Editora Universidade de Brasília pela tradução Título original The Twenty Years Crisis 19191939 An 1ntroduction to the Study of lntemational Relations Publicado originalmente em 1939pela Macmillam Co Ltd London and St Martins Press Inc New York Direitos desta edição Editora Universidade de Brasília SCS Q 02 bloco C n78 2andar 70300500BrasíliaDF A presente edição foi feita em forma cooperativa da Editora Universidade de Brasília com o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais IPRIlFUNAG e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Todos os direitos reservados conforme a lei Nenhuma parte desta publicação poderá ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem autorização por escrito da Editora Universidade de Brasília Equipe técnica EUTI SATO planejamento editorial EUGÊNIA DÉCARLI DE ALMEIDA Edição gráfi ca RAINALDO AMANCIO ESILVA programação visual Impressão e acabamento QUICK PR1NT LIDA CARREdwardHallett 18921982 C311t VinteAnos de Crise 19191939Uma Introdução ao Estudo das Relações Internacionais Trad Luiz Alberto Figueiredo Machado Brasnia Editora Universidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais Imprensa Oficial do Estado de São Paulo z edição setembro 2001 xxviii305p23em ClássicosIPRI 1 Título original The Twenty Years Crisis 19191939 An Introduction to the Study of International Relations ISBN8523006354 1 Política Internacional 2 Relações Internacionais I Título D Série CDU327 Aos construtores da Paz Vindoura Os filósofos elaboram leis imaginárias para comunidades imaginárias e seus discursos são como estrelas que dão pouca luz por estarem muito altas FRANCIS BACON On theAdvancementof Learning Os caminhos para o poder humano e para o conhecimento humano correm lado a lado e são quase os mesmos não obstante por conta do inveterado e pernicioso hábito de insistir nas abstrações é mais seguro começar e desenvol ver as ciências dos fundamentos que têm rela ção com a prática e deixar a parte ativa ser como o selo que se imprime e determina a contrapartida contemplativa Idem Novum Organum SUMARIO PREFÁCIO À NOVA EDIÇÃO BRASILEIRA Xlll PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO XXXV11 PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO xti P ARTE I A CIÊNCIA DA POLÍTICA lNrERNACIONAL Capo 1 O começo de uma ciência 3 PARTE TI A CRISE INTERNACIONAL Capo 11 Utopia e realidade 17 Capo IHO pano de fundo utópico 33 Capo IV A harmonia de interesses 57 Capo V A crítica realista 85 Capo VI As limitações do realismo 117 PARTE IH POLÍTICA PODER E MORAL Capo VII A natureza da política 127 PARTE IT DIREITO E MUDANÇA Capo VIII O poder na política internacional 135 Capo IX A moral na política internacional 189 Capo X Os fundamentos do Direito 221 Capo XI A inviolabilidade dos tratados 235 Capo XII A solução judiciária dos litígios internacionais 249 Capo XIII Mudança pacífica 267 CONGUSÃO Capo XIV As perspectivas de uma nova ordem internacional 287 ÍNDICE REMISSIVO 307 PREFÁCIO À NOVA EDIÇÃO BRASILEIRA NESTA breve apresentação não cabe tentar explicar a obra de E H Carr ou discutir suas principais teses Essas são tarefas que o leitor poderá realizar e desfrutar por si mesmo Procurarseá apenas situar no tempo o trabalho desenvolvido por E H Carr e analisar seu significado para a reflexão sobre o estudo das re lações internacionais na modernidade VINTE ANOS DE CRISE A OBRA E SEU TEMPO Um certo paralelismo poderia ser identificado entre o que o En saio sobre a População escrito em 1798 por Malthus teria repre sentado para a Economia e os Vinte Anos de Crise de E H Carr para os estudos sobre Relações Internacionais Ainda nos anos de consolidação da moderna ciência da economia Malthus cha mou a atenção para a noção de que havia limites para o cresci mento econômico e essa conclusão resultava não de uma nova teoria mas da aplicação de conceitos e categorias presentes em Adam Smith As conhecidas conclusões do Ensaio a respeito da evolução desequilibrada do crescimento das populações e dos meios para alimentar esse crescimento derivavam de uma inevi tável interpretação da noção do princípio dos rendimentos de crescentes e fizeram os economistas de seu tempo vislumbra 1 Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília XlV EIITI SATO rem uma perspectiva muito menos otimista do que as de Adam Smith e Condorcet Essa interpretação oferecida por Malthus teria influenciado seu contemporâneo David Ricardo levandoo a chamar a economia de ciência funesta De modo semelhante Vinte Anos de Crise mais do que uma interpretação do cenário internacional do entreguerras fundamentada nos pressupostos do realismo constituiuse numa obra que eviden cia como a sucessão de eventos decisões e crenças evoluem para um conflito inevitável entre as grandes potências É impossível a sua leitura sem o sentimento angustiante parecido com aquele de que somos tomados quando assistimos no teatro a uma tragé dia grega clássica o destino vai inexoravelmente urdindo sua trama até o desfecho trágico Os indivíduos fossem eles heróis ou reis nada podiam fazer para evitar que o destino traçado pelos deuses se cumprisse Laio tentando evitar que o terrível destino previsto para seu filho se cumprisse entrega Édipo re cémnascido a um servo para que seja sacrificado longe de seus olhos sem saber que com isso estava justamente preparando as condições para que a sorte traçada pelos deuses se cumprisse Os fenômenos internacionais obviamente estão conectados com as políticas nacionais mas no entreguerras tor navase claro como mostra Vinte Anos de Crise que o potencial de conflito e de cooperação presente no meio internacional emer gia de um complexo jogo de forças que transcendia a compreen são dos homens mesmo da grande maioria das lideranças e es tadistas mais bem informados Um jogo de forças onde políticas nacionais individualmente tomadas pouco podiam fazer para mudar o curso dos acontecimentos Na verdade os pontos de vista enunciados por E H Carr não constituíam em sua essência novidades O realismo como percepção dos fenômenos políticos é uma matriz muito antiga Traços dessa matriz podem ser encontrados nos escritos da an tigüidade e também em pensadores que viveram há séculos nos impérios do Oriente Por outro lado na tradição ocidental mais xv Prefácio à nova edição brasileira recente Hobbes Maquiavel e Rousseau já haviam produzido densas reflexões sobre as dificuldades de harmonizar perspecti vas freqüentemente conflitantes derivadas da tendência própria da natureza humana de confundir o mundo perfeito que se dese ja com o mundo imperfeito em que se vive As atitudes diante das dificuldades de compreender e harmonizar poder e virtude entre arranjos desejados e as limitações impostas pela realidade normalmente envolvem muito mais do que a fria análise racio nal Essas questões inevitavelmente afetam as crenças o qua dro de valores e as expectativas mais profundas tomadas indivi dual e coletivamente Essa é a razão porque de tempos em tempos surgem pensadores que a despeito da reprovação de seus con temporâneos e a despeito até mesmo de suas próprias crenças e preferências mostram aspectos indesejados de uma realidade Geralmente a atitude da sociedade diante de obras desse tipo é semelhante à da mulher que olha o espelho e não gosta do que vê e por essa razão o evita e alimenta verdadeira antipatia por esse objeto que incomodamente teima em mostrar rugas e ou tras imperfeições indesejadas Vinte Anos de Crise não é uma obra teórica mas sim um esforço de interpretação de uma realidade conturbada e perturbadora que era o mundo dos anos do entreguerras As categorias teóricas são instrumentos que ajudam a entender essa realidade organizando e dispondo os fatos e as possibilidades Essa é na verdade uma característica comum às obras que per manecem O objetivo primário da obra era o de oferecer uma possível explicação para a condição de instabilidade e insegu rança da política internacional e também uma crítica às percep ções correntes manifestas em atitudes e ações políticas que su cessivamente se revelavam inadequadas por não reconhecerem as dimensões mais incômodas da realidade econômica política e social Para efeito do melhor entendimento da obra o primeiro aspecto a ser lembrado são alguns dados biográficos básicos que xvi EnTI SATO nos ajudam a situar o autor no contexto de seu tempo Edward Hallett Carr nasceu em 1892 e foi educado na Universidade de Cambridge onde se graduou com distinção em estudos clássicos A eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914 interrompeu seus estudos e serviu de motivação para ingressar na carreira diplomática levandoo a integrar a delegação britânica na Con ferência de Paz de Versailles 1919 Voltou para a academia em 1936 como professor da cátedra Woodrow Wilson de Política Internacional da University College of Wales em Aberystwyth A obra Vinte Anos de Crise 19191939 data desse período tendo sido publicada em setembro de 1939 logo após a invasão da Polônia por Hitler e a declaração de guerra à Alemanha feita pela Inglaterra Ao tempo da Segunda Guerra Mundial tornou se editor adjunto do The Times permanecendo em Londres até 1953 Em seguida voltou à vida acadêmica desta feita para a Universidade de Cambridge onde passou a dedicarse ao estudo da história da Rússia Soviética Esses estudos resultaram na publicação de 14 volumes que tratam exaustivamente do tema e apesar da dimensão verdadeiramente hercúlea dessa obra a grande notoriedade de E H Carr sempre ficou associada ao Vinte Anos de Crise Fato semelhante havia ocorrido com Maquiavel em relação ao Príncipe e com Malthus e o seu Ensaio sobre a Popu lação ambos escreveram obras muito mais alentadas mas foram essas obras sem nenhuma preocupação de pesquisa e erudição no sentido acadêmico escritas num impulso derivado de um forte estímulo oriundo da observação de seu meio que lhes valeu a notoriedade E H Carr faleceu em 1982 aos 90 anos de idade Afirmações a respeito das dificuldades de compreensão das épocas em que ocorrem mudanças significativas deixaram de ser feitas pelos analistas tanto em razão de seu conteúdo bastante óbvio quanto principalmente porque há muito que as institui ções em todas as especialidades vêm registrando sucessivas dé cadas de grandes transformações Declarações de pensadores que pomposamente declaram o fim de uma era ou o início de xvii Prefácio à nova edição brasileira um novo tempo deixaram de atrair a atenção até mesmo do público em geral por terem se tornado demasiadamente triviais Nesse sentido parece uma maneira pouco atraente ancorar es tas considerações sobre Vinte Anos de Crise nas relações entre seu conteúdo e as grandes mudanças vividas pelo mundo ao tem po em que foi produzido Neste caso contudo essa relação re velase uma dimensão absolutamente essencial para a exata com preensão do sentido e do alcance da obra E H Carr nasceu e foi educado em plena época Vitoriana Podese afirmar como os historiadores fartamente já o fizeram que no quarto de século que antecedeu a Primeira Guerra Mun dial os fundamentos do poder econômico e político da Grã Bretanha já se encontravam em franca decadência entretanto inegavelmente a era Vitoriana foi o período de maior esplen dor do prestígio britânico no mundo A Rainha Vitória foi coro ada em 1837 e reinou até 1901 Na economia ao longo desse período o padrão ouro estendeu a importância da libra esterlina para todos os continentes e em Londres era possível comprar desde seda da China e especiarias da Índia até paubrasil algo dão e trigo vindos das Américas Londres tornarase também o centro das finanças mundiais fornecendo fundos para ferrovi as mineração e toda sorte de atividades de produção e comér cio desenvolvidas em praticamente todas as regiões do mundo Na política a esquadra inglesa e o House of Parliament eram si nônimos de ordem e poder sendo respeitados e admirados mes mo por aqueles que não nutriam a menor simpatia pela Grã Bretanha Nas letras nomes como os de Dickens IZipling ou das irmãs Bronte haviam se tornado universais com suas obras sendo traduzidas e publicadas em todos os centros cultos do mundo Nas artes nas ciências e nas práticas econômicas e po líticas as instituições britânicas eram copiadas ou estendidas a outras partes do mundo pelo sistema colonial pela imprensa e pela intensificação das relações econômicas com os mais lon gínquos e exóticos países e culturas O padrão ouro assentado xviii EIITI SATO sobre a libra esterlina era apenas o símbolo mais visível desse prestígio Em síntese a era Vitoriana viu a GrãBretanha tor narse sinônimo de poderio estabilidade e segurança Foi esse o mundo em que E H Carr nasceu viveu sua juventude e viu declinar rapidamente na sua maturidade Para a grande maioria dos ingleses incluindose aí os esta distas a imprensa e mesmo os estudiosos esse processo não era apenas doloroso era incompreensível A idéia de que a velha Inglaterra pudesse deixar de ser o centro do mundo provavel mente poderia até ser expressada mas dificilmente aceita A astronomia pode mostrar que é perfeitamente possível ocorrer o desaparecimento do Sol mas admitir a sua ocorrência e imagi nar uma nova realidade decorrente desse fato é algo radicalmen te diferente Dessa forma afigurase equivocado o entendimento de que a Primeira Guerra Mundial tenha se constituído no evento que marcou o fim do século XIX A obra de E H Carr apesar de não mencionar claramente essa questão evidencia de forma como nenhuma outra análise o havia feito que de fato a ordem do século XIX somente vai ter seu fim com a Segunda Guerra Mun dial A Primeira Guerra Mundial foi tão somente a crise que marcou o início da agonia do século XIX uma agonia que have ria de se estender por vinte anos A real crise do mundo moder no é o colapso final e irrevogável das condições que tornaram possível a ordem do século dezenove A antiga ordem não pode ser restaurada e uma drástica mudança de perspectiva é inevi tável argumenta E H Carr Com efeito terminada a guerra o grande projeto das grandes potências passou a ser a volta à or dem do século XIX e não a busca de novos arranjos Em 1919 a grande novidade era sem dúvida a Liga das Nações mas como mostra E H Carr além da ausência formal dos Estados Uni dos a política internacional continuou sendo conduzida basica 2 E H Carr Vinte Anos de Crise pág 332 XIX Prefácio à nova edição brasileira mente dentro dos padrões do século XIX tanto no âmbito da própria Liga quanto nas iniciativas tomadas à margem dos ór gãos da entidade recémcriada Cada potência tinha seus própri os objetivos e cabia a elas individualmente empregar os meios de que dispusessem para implementálos De um ponto de vista mais geral a recuperação econômica foi conduzida a partir do pressuposto de que a volta à ordem do préguerra seria suficiente e esse fato é bastante revelador de um aspecto central percebido por E H Carr para a imensa maioria das pessoas fossem elas lideranças destacadas ou estu diosos continuava difícil compreender que a Primeira Guerra Mundial havia sido não apenas um evento dramático localizado no tempo mas que era também parte do processo de agonia da ordem econômica e política do século XIX Era preciso ainda que com tristeza reconhecer que aquele mundo aparentemente ordenado e seguro estava definitivamente condenado apenas a ser uma doce lembrança de uma belle époque Nesse quadro os esforços de reconstrução foram entendidos tanto como investi mentos para recompor a infraestrutura econômica física destruída ou danificada pela guerra quanto como a retomada das práticas e instituições do préguerra O retorno ao padrão ouro tornouse o principal símbolo dessa volta à ordem do século XIX o VERDADEIRO FIM DO SÉCULO XIX Após a Conferência de Paz de Versail1es o esforço de restaura ção da ordem econômica que havia vigorado nos anos que pre cederam a Primeira Guerra Mundial revela muitos aspectos im portantes que explicam inclusive a grande crise da década de 30 Na percepção da grande maioria das lideranças políticas e econômicas a ordem liberal na forma praticada no século XIX havia produzido estabilidade e crescimento econômico e em conseqüência não viam motivos para que outras fórmulas fos sem procuradas xx EnTI SATO Na década de 20 a tentativa de se restaurar o padrão ouro significava não apenas uma questão de se estabelecer uma or dem monetária e assim retomar o comércio e os investimentos internacionais Para a imensa maioria significava pura e sim plesmente que uma vez terminada a guerra agora era a hora de se voltar à vida normal Aldcroft relata que o desejo pela estabilidade se identificava com a desvairada tentativa de se restaurar o Padrão Ouro tão grande era a fé na virtude dos anos dourados do passado recente que estadistas e administradores estavam dispostos a devotar a maior parte de suas energias du rante os anos 20 para a restauração do sistemat No entanto muitas modificações importantes haviam ocorrido ou estavam em curso criando um ambiente econômico completamente di ferente para o qual a antiga ordem haveria de se revelar inade quada Uma dessas inadequações fundamentais referiase ao fato de que a guerra havia acentuado o declínio relativo da Grã Bretanha e aumentado a supremacia americana Os Estados Unidos haviam se tornado o maior produtor de bens industriais e o maior exportador de capitais além de conti nuar sendo também o maior produtor de bens primários Esse fato trouxe várias conseqüências importantes Em termos finan ceiros o peso dessa enorme economia desenvolvendo uma políti ca autônoma bem ao gosto de sua tradição de isolacionismo que se manifestara no plano político pela não participação na Liga das Nações era por si só um fator de desestabilização ou na ex pressão de Cleveland fazia dos Estados Unidos um touro se mo vendo na loja de porcelanas do sistema monetário do mundo Outro efeito da ascensão dos Estados Unidos foi a forma ção de dois blocos econômicos distintos na economia mundial a área da libra e a área do dólar Havia ainda uma terceira área bem menos expressiva formada na Europa sob a liderança da França A área do dólar já compreendia a maior parte do hemis 3 D H Aldcroft From Versailles to Wall Street p3 4 HvBCleveland Tbe lnternatianal Monetary System in tbe lntenuar Period p43 XXI Prefácio à nova edição brasileira fério ocidental cujas relações comerciais e financeiras dependi am basicamente dos Estados Unidos 5 Políticas nacionalistas nesses países líderes se transmitiam às diferentes economias li gadas a cada área monetária N esse ambiente autores como Cleveland argumentam que as políticas monetárias desenvolvidas nos anos 20 e princípios da década de 30 constituíram fator da maior importância no desencadeamento da Grande Depressão O argumento de Cleveland parte da idéia de que enquanto ou porque cada país líder estava tentando restaurar o padrão ouro por diferentes ra zões cada um especialmente nos fins dos anos 20 estava de senvolvendo algum tipo de aperto na política monetária e acu mulando ouro Por exemplo a Inglaterra estava tentando restabelecer a posição desfrutada antes de 1914 e ao mesmo tempo procurava compatibilizar essa política com o crescente desemprego que assolava importantes setores industriais expor tadores A França tentava manter o poder de compra do franco francês e não se sentia nada à vontade para estabelecer parida des fixas em relação à libra ou ao dólar No final da década de 20 a porcentagem de cobertura em ouro das emissões do Banco da França subiram de 3800 em dezembro de 1928 para 47 no ano seguinte e continuou a subir até dezembro de 1932 quando atingiu a proporção de 77007 A Alemanha por sua vez depois da reforma monetária de 1924 obrigavase a manter um nível de reservas em ouro da ordem de 40 das emissões do Reichbank Os Estados Unidos principalmente a partir de 1928 preocupa dos com a especulação em seu mercado de ações desenvolviam uma política sistemática de restrição ao crédito e esterilização do ouro O resultado obviamente não poderia ser outro a não ser a instabilidade e a política monetária predatória 5 A formação desses blocos é analisada principalmente do ponto de vista das mudanças na distribuição do poder por BMRowland em Preparing lhe Amencan Ascendancy lhe Transfer oi Economic Pauerfrom Bntain lo lhe United Slales 6 HvBCleveland The lnternational Monetary Syslem in lhe lntenuar Period op cito 7 LKooker Frencb Financiai Diplomacy lhe lntertuar réars pl06 xxii EnTI SATO Nesse quadro a cooperação econômica internacional conduzida essencialmente de modo informal sem nenhum me canismo que articulasse as economias de modo institucionalizado constituía um aspecto central da incapacidade do padrão ouro para proporcionar estabilidade à nova economia internacional fruto do próprio sucesso da ordem liberal do século XIX Como E H Carr destaca com muita propriedade em sua análise o entendimento de que não havia necessidade de qualquer instru mento para conter as inevitáveis pressões sobre as moedas e so bre os fluxos financeiros e comerciais decorrentes das variações dos ciclos econômicos vinha da fé liberal que acompanhou a expansão econômica ao longo do século XIX Com efeito as virtudes do Iaissezfaire tinham sua perfei ta expressão no padrão ouro onde até mesmo uma espécie de versão monetária da mão invisível aparecia na forma do ajuste automático A Comissão Cunliffe estabelecida pelo Governo Britânico para estudar as questões cambiais e monetárias que haveriam de surgir depois da guerra entre outras conclusões justificava sua recomendação no sentido da volta ao padrão ouro argumentando que o padrão ouro trazia implícito em seu funci onamento um mecanismo de ajustamento chamado de pncespecie flow mechanism Descrevendo esse mecanismo o Relatório Cunliffe dizia que no padrão ouro as economias ajustamse automaticamente que déficits e superávits no balanço de paga mentos produziam respectivamente a diminuição ou o aumen to de ouro monetário que em conseqüência levariam à redução ou à elevação na quantidade de moeda circulante produzindo variações equivalentes na demanda interna e nas importações Uma vez que se acreditava na existência dessa virtude ine rente ao padrão ouro tornavase desnecessária qualquer insti tuição que formalmente zelasse pela administração do sistema monetário internacional e aos países portanto bastaria tomar as medidas necessárias à sua rápida incorporação ao sistema 8 Ver A I Bloomfie1d ShorleN11 CapitalMovementf undertbPre1914 GoldSandard 1963 xxiii Prefácio à nova edição brasileira rnonetano internacional que renascia Desse modo desde que integrados ao padrão ouro as economias automaticamente se ajustariam ao comportamento do mercado que poderia eventu almente apresentar oscilações ou dificuldades no curto prazo decorrentes das variações nos ciclos econômicos mas manten do sempre a tendência de crescimento no longo prazo A crença nessas virtudes inerentes ao padrão ouro decorria das boas lembranças deixadas pela experiência vivida ao longo do período em que vigorou como elemento central da ordem econômica internacional O padrão ouro cujo funcionamento havia sido interrompido com a eclosão da Primeira Guerra Mun dial passara a ser oficialmente adotado a partir da década de 1870 e no início do novo século as principais economias já haviam se incorporado a esse padrão monetário internacional Na avaliação geral o período compreendido entre 1870 e 1914 havia sido marcado pela estabilidade e pelo crescimento Assim acreditavase que em razão do padrão ouro ao longo de quase meio século a economia internacional havia se comportado sa tisfatoriamente com os ciclos econômicos se sucedendo sem que períodos de recessão se transformassem em crises Mesmo a longa recessão do final do século caracterizada por muitos como Gran de Depressão não teve nem de longe o mesmo significado da crise da década de 19309 Apesar do entusiasmo que cercou o esforço de restauração do padrão ouro a maioria dos estudos feitos posteriormente sobre o período aponta para o fato de que a economia internaci onal do século XIX havia funcionado relativamente bem basi camente porque os espaços econômicos ainda não haviam sido todos ocupados isto é nem os mercados haviam se esgotado e nem os mecanismos institucionais haviam sido totalmente ex plorados A liquidez internacional e a capacidade de garantir a conversibilidade da libra a principal moeda do sistema do pa 9 S B Saul discute essa recessão do final do século XIX argumentando nesse mesmo sentido The Mith oi tbe Great Depression 18731896 Macmillan 1969 XXIV EnTI SATO drão ouro anterior a 1914 por exemplo eram sustentadas tanto pela ação cooperativa informal de outros governos quanto pe los recursos gerados no âmbito do sistema imperial britânico que de várias maneiras transferia para o Banco da Inglaterra os sal dos necessários à manutenção da estabilidade do sistema M de Cecco analisa como apesar das fraquezas e vulnerabilidades da principal economia do sistema o padrão ouro e a economia in ternacional se mantinham estáveis até 1914 10 Alguns indicadores ilustram como o declínio relativo do po derio britânico ocorria de maneira inexorável do ponto de vista estrutural sendo apenas mascarado por um equilíbrio macroeco nômico que era apesar de difícil de ser mantido no longo prazo bastante estável no curto prazo desde que não houvesse uma crise de proporções significativas Paul Kennedy mostra que a indústria britânica que em 1880 representava 22900 da produ ção industrial do mundo em 1913 havia declinado para 136 enquanto a Alemanha no mesmo período havia passado de 85 para 148 ultrapassando portanto a Inglaterra Os Estados Unidos no entanto constituíam o caso mais dramático Depois da Guerra Civil evoluíram rapidamente a ponto de se tornarem a maior economia do mundo já na virada do século Em termos de participação na produção industrial do mundo entre 1880 e 1913 os Estados Unidos passaram de 14700 para nada menos do que 320 Esses dados são bastante ilustrativos do fato de que ao mesmo tempo em que ocorria a disseminação formal do padrão ouro pelas principais economias a GrãBretanha já vi nha apresentando sinais de que estruturalmente sua posição internacional tendia a ser cada vez mais problemática Grandes e continuados déficits caracterizavam sua balança comercial apesar da substancial ajuda proporcionada pelo sis tema imperial onde se destacava a Índia que compensava gran 10 M de Cecco Tbe International Cold Standard Money and Empire Frances Pinter Londres 1984 11 P Kennedy Tbe Riu and Fali of tbe Great Powers p 259 xxv Prefácio à nova edição brasileira de parte desses déficits Do ponto de vista do equilíbrio das con tas nacionais como um todo essa visível perda de competitivi dade da economia britânica era no entanto mais do que com pensada pela venda serviços A frota mercante e o prestígio de sua marinha de guerra continuavam a proporcionar enorme van tagem na venda de frete e de seguros e além disso nas finanças internacionais às vésperas da Primeira Guerra Mundial a Grã Bretanha respondia por 44 de todos os investimentos interna cionais que perfaziam um valor total próximo de L 9350 mi lhões Essa enorme massa de fundos investidos no exterior tornavam a conta de juros e dividendos o principal item de re ceita de divisas da economia britânica Desse modo em grande medida a posição declinante da GrãBretanha onde a perda de competitividade de sua indústria era um fato facilmente consta tado não aparecia de maneira clara para analistas e governantes que olhavam com muito mais atenção as contas externas em seu conjunto Na verdade ainda em 1914 o balanço de pagamentos apresentavase superavitária em mais de L 200 milhões apesar de um déficit comercial da ordem de L 62 milhões Nesse qua dro a Grande Guerra teve um papel importante ao submeter esse frágil equilíbrio da economia britânica ao duro teste de uma crise que expunha de modo dramático as incongruências entre instituições e práticas consolidadas e a nova realidade que emer gia de transformações estruturais em curso Com efeito além de consumir parcela substancial de recur sos a guerra reduziu drasticamente os fluxos de comércio e dos serviços associados a esses fluxos Ao prejudicar diretamente os transportes marítimos o mercado de seguros e as finanças inter nacionais a guerra produziu um efeito verdadeiramente devas tador sobre a posição internacional da economia britânica uma vez que as dificuldades derivadas da perda de competitividade industrial não mais poderiam ser compensadas pelas receitas ob tidas com a venda de serviços associados ao comércio e com os juros e dividendos resultantes dos fundos investidos no exteri xxvi EIITI SATO or que foram em sua maior parte repatriados como parte do esforço de guerra Ao final da guerra contudo era muito mais fácil e agradável pensar que as dificuldades econômicas deriva vam dos inevitáveis problemas da destruição e da drenagem dos recursos ocasionados pelo conflito do que de mudanças estru turais que haviam se iniciado décadas antes A lembrança deixa da pelo quarto de século que precedeu a guerra era a de uma época de marcada pela estabilidade e pelo otimismo e por essa razão era chamada de belle époque Esses fatos são importantes porque explicam uma dimen são importante da originalidade e da capacidade com que Carr conseguiu apreender uma realidade incômoda que atingia não apenas a sua Inglaterra mas a própria ordem mundial A con clusão que se tira de leituras como essa é que a Primeira Guerra Mundial foi na verdade a gota dágua que fez entornar o recipi ente já cheio de problemas até a borda Uma nova ordem inter nacional contudo somente iria ser estruturada após a Segunda Guerra Mundial Há portanto muitas razões para entender que o entreguer ras marcou efetivamente o fim do século XIX muito embora seja comum entre historiadores apontar a Primeira Guerra Mun dial como o evento que teria marcado o fim do século A fracas sada tentativa feita pela Inglaterra e pelas principais nações no sentido de voltar ao padrão ouro e a tudo aquilo que esse siste ma monetário simbolizava mostra que de fato foi no entre guerras que ruíram definitivamente as esperanças nos elemen tos que sustentavam a ordem econômica e política do século XIX Uma ordem que incluía a liderança da Inglaterra a confi ança na libra esterlina e a própria fé irrestrita no liberalismo e é E H Carr quem proporciona uma boa síntese desse quadro a sobrevivência da crença na harmonia dos interesses foi tornada possível graças a uma expansão sem paralelo da produção da população e da prosperidade que marcou os cem anos que se seguiram à publicação de A Riqueza das Nações e à invenção da Prefácio à nova edição brasileira xxvü máquina à vapor O pressuposto tácito dos mercados em infi nita expansão era o fundamento sobre o qual se assentava a su posta harmonia de interesses O fato é que no entreguerras nenhum dos fundamentos que compunham a ordem econômica internacional se revelavam compatíveis com as novas realidades emergentes No comércio o regime liberal à moda do século XIX estimulava desequilíbrios de oferta e demanda que se acentuavam Nas finanças o livre fluxo de capitais ao invés de se constituir em estímulo aos in vestimentos tornavase cada vez mais um fator de volatilidade O sistema monetário por sua vez revelavase cada vez menos estável em função da precariedade das reservas que sustenta vam a libra esterlina Do ponto de vista da economia política a perda da posição relativa da GrãBretanha se acentuara depois da guerra que tornara ainda mais precários os padrões de competitividade da indústria britânica e afetara de modo subs tancial sua marinha mercante e seus investimentos no exterior Finalmente a estratégia de crescimento assentada sobre os prin cípios do laissezfaire e da Lei de Say revelavase incapaz de con viver com a saturação dos mercados Outro argumento bastante revelador de que os padrões que caracterizaram o século XIX somente foram abandonados após os Vinte Anos de Crise é apresentado por Keynes no seu livro Tbe Economic Consequences oitbe Peace 13 Keynes que também inte grou a delegação britânica na Conferência de Paz de Versailles havia percebido a gravidade do distanciamento entre a realida de e a atitude corrente das lideranças Tbe Economic Consequences of tbe Peace escrito logo após a Conferência mostra as diferen tes posturas dos lideres que efetivamente determinaram os ter mos das cláusulas da paz de Versailles Wilson Clemenceau e Lloyd George Na avaliação de Keynes em momento algum por 12EHCarr VinleAnorde Crise 19191939 1939 1981 p912 13 J M Keynes Tbe Eeonomi ConJequencer oi lhe Peace Royal Economic Society 1919 1971 London Esta obra também integrará a coleção de Clássicos IPRI de Relações Internacionais xxviii EnTI SATO diferentes razões nenhuma dessas lideranças levou em conta que as características da ordem econômica que havia se forma do ao longo das décadas que precederam a grande guerra pu nham a Alemanha numa posição bastante central no funciona mento dessa ordem Keynes argumenta que independentemente de considerações morais e políticas os caminhos da recupera ção do dinamismo da economia européia estavam visceralmente associados à recuperação da economia alemã e que portanto os termos estabelecidos pelo Tratado de Paz literalmente signifi cavam um tiro no próprio pé disparado pelas potências ven cedoras Os motivos que levaram a essa situação eram variados mas as sanções contidas no Tratado não deixavam dúvidas Mistura vam vários sentimentos entre eles o desejo de punir a Alema nha como causadora da guerra e o receio de que seu reerguimento pudesse ameaçar novamente a ordem européia especialmente a França A análise feita por Keynes na primeira parte do livro mostra com grande perspicácia como essas questões se manti nham presentes na atitude de Clemenceau e porque Wilson e Lloyd George por diferentes razões ou não enxergavam ou sim plesmente preferiam não tratar essas questões por acreditarem que suas prioridades deveriam ser postas em outras ações Clemenceau e Lloyd George eram homens do século XIX for mados dentro dos valores e crenças de sua época e não poderi am produzir uma proposta de ordem internacional diferente da quela que conheciam Wilson por sua vez sem dúvida um visionário político capaz de preparar uma proposta para a nova ordem mas pouco familiarizado com o jogo político ao mesmo tempo sutil e cruel dentro do qual homens como Clemenceau e Lloyd George haviam sido formados Era com homens como esses que Wilson deveria se defrontar em Versailles Keynes re lata que Wilson desembarcara em Paris cercado por uma aura de grande líder mundial um misto de herói e de profeta e teria retornado a seu país após a Conferência apenas como um ho XXIX Prefácio à nova edição brasileira mem bem intencionado talvez um pastor presbiteriano A his tória mostra que obra de Keynes permaneceu na penumbra sen do considerada por seus contemporâneos mais influentes ape nas como uma crítica incômoda PORQUE VINTE ANos DE CRISE É UM CIASSICO NOESTIJDO DAS RELAÇÕES IN7ERNAGONAIS Finalmente uma outra ordem de reflexões suscitadas pela obra referese a uma questão conceitual O que é um clássico Por que Vinte Anos de Crise é um clássico Uma obra datada pode ser um clássico Essas são perguntas com que nos deparamos quando consideramos a sua inclusão numa série que procura reu nir obras clássicas no estudo das relações internacionais Originalmente o termo clássico se referia aos autores grecoromanos Em suas memórias Arnold Toynbee conta que em sua juventude os estudos clássicos tomaram considerável parte de sua formação acadêmica Não apenas teve de conhe cer todos os principais autores gregos e latinos como também teve de aprender o grego e o latim a ponto de se tornar fluente nessas línguas vindas da antigüidade Mesmo que não assumisse os mesmos níveis de sofisticação da experiência acadêmica de Toynbee constituía parte obrigatória da formação de literatos e de estudiosos das humanidades o conhecimento dos clássicos que assim eram tomados como ponto de partida para seus es tudos Progressivamente o emprego do termo foi assumindo um sentido mais amplo e mais usual com as obras e os autores pas sando a ser considerados clássicos quando a exemplo dos auto res grecoromanos reunissem qualidades modelares servindo de referência para todos quantos estudam ou trabalham num particular campo de estudo ou da atividade humana criadora 14 A Toynbee Expméncias Editora Vozes Petrópolis 1970 xxx EIITI SATO Assim conhecer os clássicos continua sendo importante por que por intermédio deles é possível ter contato com as origens e com os modelos que serviram de inspiração ao que de melhor se produziu no campo das artes e das humanidades Nesse senti do Vinte Anos de Crise possui com sobras os requisitos para ser considerado um clássico no estudo das relações internacionais O fato de ser uma obra datada isto é o fato de tratar de um período específico não compromete a sua importância e a sua atualidade Ao contrário neste caso constitui parte da con tribuição de E H Carr por que marca uma inflexão fundamen tal no estudo das relações internacionais um vedadeiro renascimento desse campo de estudo Além disso Vinte Anos de Crise é um clássico em razão de seu conteúdo universal A forma com que emprega os conceitos e categorias analíticas que o novo campo de estudos passava a oferecer ajudaram a tornar mais clara não apenas a compreensão dos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial mas também serviram para mostrar de maneira objetiva a natureza distinta dos fenômenos interna cionais As forças que se moviam no substrato do jogo de forças vigentes no entreguerras e que determinavam o potencial de conflito do meio internacional eram peculiares àquela época mas na essência revelavamse atemporais sendo possível encontrá las em ação tanto em épocas passadas quanto nos dias de hoje O debate sobre o papel do poder das idéias e das instituições na determinação dos fenômenos internacionais continua atual e continua influenciando a formulação de políticas em nossos dias Nenhum economista pode deixar de incluir na sua forma ção o estudo da Riqueza das Nações apenas por que foi produzida no século XVIII Obviamente as escolas de economia continu am ensinando o pensamento de Adam Smith não porque se pre tenda que suas formulações em sua forma original sejam ade quadas à solução das crises econômicas e à obtenção de riqueza e bem estar neste mundo globalizado Adam Smith Ricardo Marx ou Stuart Mill continuam sendo importantes porque fazem parte essencial da trajetória intelectual que levou à estruturação xxxi Prefácio à nova edição brasileira do estudo da economia em bases epistemologicamente organi zadas Da mesma forma que Smith e Ricardo são leituras bási cas no campo da economia desde que a disciplina relações in ternacionais se estabeleceu como área distinta de estudos no entreguerras Vinte Anos de Crise tem sido uma das obras mais lidas e citadas pelos especialistas Provavelmente mais impor tante a sua leitura tem servido para estimular a curiosidade e despertar o interesse pelo estudo das questões internacionais em bases sistemáticas Uma pergunta essencial suscitada pela obra de E H Carr tem suas raízes na filosofia política por que as relações interna cionais permaneceram relativamente à margem das atenções dos pensadores ao longo de um século Isto é por que depois de Kant o tema da paz perpétua escrito em fins do século XVIII deixou de despertar interesse Para onde teria migrado a refle xão sobre a ordem política internacional Em larga medida Vinte Anos de Crise fornece uma pista bastante interessante a respeito dessas considerações mais amplas sobre o estudo das relações internacionais Aparentemente ao longo de todo o século XIX o liberalis mo se expandiu juntamente com a expansão dos recursos tecnoló gicos permitindo que de muitas maneiras as necessidades ex pectativas e problemas na Europa fossem atenuados ou mesmo eliminados pela incorporação sistemática de novos mercados e novas terras Esse ambiente permitiu afastar por um século a temática do conflito e do emprego do poder como árbitro das questões surgidas entre estados soberanos Pressões demográficas na Europa puderam ser atenuadas pela emigração em larga esca la para as novas terras especialmente da América e da Oceania A crescente demanda por alimentos e matérias primas para a indústria puderam ser atendidas satisfatoriamente pela incorpo ração de novas áreas de plantio e de exploração de recursos na turais A disputa por mercados pôde ser em larga medida evita da ao longo do século XIX por meio da contínua expansão das xxxii EIITI SATO rotas comerciais do desenvolvimento de novos produtos e do florescente mercado financeiro O surgimento das relações internacionais como campo de estudo distinto dentro dos atuais padrões está visceralmente associado ao esgotamento das possibilidades oferecidas pela ordem liberal do século XIX A ênfase dada pela obra de E H Carr à busca de explicações para as incongruências entre a rea lidade e as iniciativas tomadas pelos estadistas para dar estabi lidade às relações internacionais evidenciam de modo marcante esse fato Vinte Anos de Crise apresenta a mesma ordem de preo cupação de Maquiavel Hobbes e Rousseau uma vez que no meio internacional a ordem liberal se esgotava e em seu lugar res surgia o mundo da política de poder que havia marcado as rela ções internacionais desde a formação dos estados nacionais até o século XVIII Assim de certa forma o estabelecimento das primeiras cadeiras nas universidades britânicas e americanas voltadas para o estudo das relações internacionais no entreguer ras pode ser considerado em grande medida uma retomada do debate sobre o tema das relações entre soberanias que de certa forma havia sido deixado à parte desde Kant A procura de explicações mais plausíveis aos muitos por quês suscitados pela Primeira Guerra Mundial teve a mesma motivação que um dia havia levado Abbé de SaintPierre Rousseau e Kant a refletirem sobre a paz perpétua A enormi dade da tragédia humana e material daquele conflito fez com que estadistas e pensadores da época elegessem como objetivo prioritário evitar sua repetição e para isso a primeira missão seria a de se identificar suas causas Uma vez que as causas fossem conhecidas um grande passo teria sido dado para que não houvesse um novo conflito de proporções mundiais Nesse esforço as respostas oferecidas pelas disciplinas correntes re velavamse inadequadas Nem a Ciência Política que voltara suas atenções para as transformações sociais e as formas de or ganização do estado e nem a Economia que punha seu foco de atenções sobre as leis de mercado ofereciam referenciais para a Prefácio à nova edição brasileira xxxiü reflexão sobre essa nova realidade Seria riecessano encontrar elementos que ajudassem a compreender um mundo constituído por unidades políticas atuando de forma autônoma capazes de desenvolverem políticas conflitantes onde a sanção final depen deria somente do poder de cada unidade Não é portanto aci dental que a definição das relações internacionais como campo de estudo no entreguerras tenha buscado suas raízes nas obser vações dos filósofos que entre os séculos XVI e XVIII se de bruçaram sobre os fenômenos políticos decorrentes da substi tuição da universalidade do direito divino que fundamentava a origem do poder e sua legitimidade pelo meio internacional anár quico formado pelos estados nacionais soberanos Com efeito na esfera política o colapso da ordem medie val havia produzido a formação dos estados definidos por uma base territorial e por um governo soberano e o desdobramento dessa realidade foi a generalização do conflito entre estados so beranos que seguiam orientações religiosas concorrentes Os Tratados de Westphalia apenas marcaram o fim da ordem políti ca medieval onde a autoridade de Roma era exercida de forma universal mas não puseram em seu lugar nenhuma outra autori dade que pudesse arbitrar disputas entre os estados nacionais Esses tratados em sua essência apenas reconheciam a impossi bilidade de que o poder da Igreja Católica continuasse a ser exer cido sobre todos os reinos cristãos europeus deixando a cada estado a prerrogativa de escolher sua fé religiosa assim como o princípio legitimador da ordem política A nova realidade assentada sobre o estado nacional como unidade política básica produzia um ambiente cujo potencial de conflito era substancialmente aumentado pela inexistência de um poder capaz de proporcionar substância e efetividade a uma estrutura jurídica que ordenasse as relações entre esses es tados Maquiavel Hobbes e mais tarde Clausewitz compreen deram com profundidade os desdobramentos políticos e morais inevitáveis dessa realidade emergente um meio internacional anárquico formado pela justaposição de estados soberanos XXXIV EIITI SATO Como argumenta Rappoport no prefácio que escreveu para a edição brasileira do Da Guerra o entendimento de que a guerra era a continuação da política por outros meios não era uma afirmação de uma mente belicosa era apenas o resultado da observação dos fatos de uma realidade onde a guerra era mais do que uma possibilidade era um evento do cotidianoP Numa outra vertente Grotius procurou encontrar uma base jurídica para a organização da nova ordem em grande medida buscando conciliar princípios religiosos herdados da ordem medieval com os fundamentos do direito natural No século seguinte outros pensadores como Abbé de SaintPierre e Kant procuraram na filosofia política os fundamentos para a construção da paz per pétua que na essência usandose uma expressão de nossos dias deveria se constituir num mecanismo de solução pacífica de con trovérsias entre estados nacionais soberanos Nesse ambiente portanto era natural que o debate sobre a legitimidade e o papel do poder nas relações entre unidades po líticas ocupasse o centro das atenções Os grandes avanços téc nicos trazidos pela revolução industrial possibilitaram a disse minação da visão liberal que se estendeu por todo o século XIX As fronteiras eram empurradas pela expansão colonial e pela incorporação de excolônias ao sistema econômico europeu Essa contínua expansão que permitia que os excedentes da popula ção emigrassem para as novas terras e que matérias primas e produção pudessem ser compradas e vendidas em larga escala e de modo crescente deu sentido e fomentou a crença na harmo nia de interesses por que deveria haver disputas conflitos ar mados se os mercados estavam sempre em expansão Novas rotas comerciais e novos mercados sempre poderiam acomodar novos concorrentes assim como os interesses de uma crescente classe de comerciantes industriais e financistas Assim Vinte Anos de Crise mostra com riqueza de argumentos que a crise que se abateu sobre o mundo no início do século XX foi mais do que 15 C v Clausewitz Da Guerra Editora Universidade de Brasília 1982 Prefácio à nova edição brasileira xxxv uma simples crise de políticas equivocadas Foi uma crise que marcou a volta ao mundo de Grotius e Hobbes sob outras bases mas igualmente crítico e muito mais dramático A que crise se refere E H Carr Os Vinte Anos de Crise referemse à crise da ordem política e econômica do século XIX Certamente o assassinato de Francisco Ferdinando da Áustria revelavase insuficiente até mesmo para explicar o início do con flito e tampouco a corrida armamentista podia ser considerada suficiente para explicar o envolvimento de tantas nações na guer ra A Alemanha foi considerada culpada e pensouse que uma punição exemplar do Kaiser e a exigência de pagamento de re parações pesadas poderiam ser um alerta a todas as nações aven tureiras que pretendessem desenvolver políticas expansionistas Rapidamente no entanto também se percebeu que as severas punições aplicadas à Alemanha não seriam suficientes para tra zer a paz e a estabilidade ao meio internacional Além disso as negociações que resultaram nos termos do Tratado de Versailles se afiguraram muito mais uma continuação das práticas políti cas das grandes potências européias desenvolvidas desde a Guerra Franco Prussiana de 1871 Todo o otimismo que cercou a iniciativa de Wilson pela criação da Liga das Nações foi gradativamente substituído por dúvidas e apreensões que se estenderam pela década de 30 até desaguarem na Segunda Guerra Mundial Esse é o ambiente analisado por E H Carr mas como se apresenta o mundo de hoje O longo período de crescimento vivido pelos principais países depois da Segunda Guerra Mundi al que culminou com o colapso do bloco socialista tem alimen tado sentimentos alternados de otimismo e pessimismo Talvez fosse oportuno refletir sobre uma das lições contidas no Vinte Anos de Crise é preciso equilibrar o idealismo com uma boa dose de realismo Brasília agosto de 2001 MARINE FLUORESCENT DYE APPLIED TO FISH PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO ESTE livro originalmente produzido em 1937 foi mandado im primir em meados de julho de 1939 e atingiu a fase de provas quando a guerra eclodiu em 3 de setembro de 1939 Introduzir no texto umas poucas modificações verbais rapidamente feitas à luz dos acontecimentos serviria de muito pouco desta for ma preferi deixálo exatamente como foi escrito na época em que a guerra já projetava sua sombra sobre o mundo mas quan do nem toda esperança de evitála estava perdida Portanto onde ocorrem expressões como a Guerra préGuerra ou pós Guerra o leitor entenderá que me refiro à guerra de 191418 Quando as paixões da guerra se levantam tornase quase inevitável e fácil atribuir a catástrofe às ambições e à arrogância de um punhado de homens sem se buscar outra explicação No entanto mesmo quando a guerra já devasta pode haver mais importância prática numa tentativa de analisar as causas subjacentes e significativas do desastre do que as razões imedi atas e pessoais Quando e se a paz voltar ao mundo as lições do colapso que envolveu a Europa numa segunda grande guerra a vinte anos e dois meses do Tratado de Versail1es deverão ser cuidadosamente ponderadas Um acordo que tendo destruído os governantes nacionalsocialistas da Alemanha deixar intactas as condições que tornaram o fenômeno do NacionalSocialismo possível arriscarseá a ter uma vida tão curta e trágica quanto o acordo de 1919 Nenhum período da história recompensará melhor seu estudo por parte dos futuros artífices da paz do que os vinte anos de crise que preenchem o intervalo entre as duas xxxviü E H CARR Grandes Guerras A próxima conferência de paz se não quiser repetir o fiasco da última terá de se preocupar com assuntos mais fundamentais do que o traçado de fronteiras Nesta cren ça aventureime a dedicar este livro aos construtores da próxi ma paz As fontes publicadas de que me vali e em que me inspirei são inúmeras Sintome particularmente em dívida com dois li vros que embora não tratem especificamente de relações inter nacionais parecemme ter lançado luz sobre os problemas fun damentais da política Ideology and Utopia de Karl Mannheim e Moral Man and Immoral Society de Reinhold Niebuhr O livro de Peter Drucker The End 0 Economic Man que não chegou às minhas mãos até que meu original estivesse virtualmente com pleto contém algumas suposições brilhantes e um diagnóstico estimulante e sugestivo sobre a atual crise da história mundial Várias excelentes obras históricas e descritivas sobre muitos aspectos das relações internacionais apareceram nos últimos vintes anos e meu débito com algumas delas está registrado em notas de rodapé que devem ser consideradas como uma biblio grafia Mas nenhuma dessas obras conhecidas por mim tentou analisar as causas mais profundas da crise internacional contem porânea Minhas obrigações para com indivíduos são ainda mais ex tensas Em particular desejo registrar minha profunda gratidão a três amigos que encontraram tempo para ler a totalidade de meu original e cujos comentários foram tão estimulantes quan do concordaram como quando discordaram de meus pontos de vista Além disso suas contribuições são responsáveis por gran de parte do valor que este livro possa ter Charles Manning pro fessor de Relações Internacionais na London School of Economics and Polítical Science Dennis Routh FelIow do AlI Souls ColIege de Oxford e recentemente docente de Política Internacional no University ColIege of Wales em Aberystwyth e um terceiro cuja posição oficial impede que eu tenha o prazer Prefácio à primeira edição XXXIX de citálo aqui Durante os últimos três anos fui membro de um Grupo de Estudos do Royal Institute of International Affairs engajado numa pesquisa sobre o problema do nacionalismo cujos resultados estão para ser publicados As linhas de investigação seguidas por este Grupo tocaram ou cruzaram algumas vezes as que estudei nestas páginas e meus colegas deste Grupo as sim como outros que contribuíram com este trabalho sem que rer proporcionaram no curso de nossas longas discussões mui tos aportes valiosos ao presente livro A estes e a muitos outros que de uma forma ou de outra consciente ou inconscientemen te deram ajuda e encorajamento no preparo deste volume ofe reço meus sinceros agradecimentos E H Carr 30 de setembro de 1939 1 Nationalism A SllIdy by a Grollp of MU1Jbtrs oftbe Royallnstitlltt oflntemational Affairs Oxford University Press The pink to red marine fluorescent dyes applied to fish tongues follo a similar trend as the intensity of UV reflection emitted from the tongue tips of several redthroated diver Gavia stellata individuals PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO A NECESSIDADE de uma segunda edição de Vinte Anos de Crise co locou o autor ante uma decisão difícil Um trabalho sobre polí tica internacional completado no verão de 1939 embora hou vesse rigorosamente evitado profecias traz necessariamente marcas de seu tempo na substância na fraseologia no seu uso de tempos verbais e acima de tudo em expressões como a Guerra pósGuerra e assim por diante que não mais se po dem relacionar sem um grande esforço da parte do leitor à guer ra de 191418 Quando contudo comecei a tarefa de revisão tornouse imediatamente claro que se eu procurasse reescre ver cada passagem que houvesse sido de alguma forma afetada pela marcha dos acontecimentos estaria apresentando não uma segunda edição de um velho livro mas sim um livro essencial mente novo e isto teria sido uma tentativa infrutífera e pouco imaginativa de forçar vinho novo em velhas garrafas Vinte Anos de Crise permanece um estudo do período entre as duas guerras escrito quando este período já chegava a seu fim e deve ser considerado em seus méritos como tal O que fiz portanto foi reconstruir frases que seriam confusas ou difíceis para os leito res já distantes no tempo do contexto original modificar uns poucos períodos que levavam ao malentendido e remover duas ou três passagens relativas a controvérsias da época que agora se encontram eclipsadas ou postas numa perspectiva diferente pelo lapso do tempo Por outro lado não alterei nada de substância e tampouco procurei modificar expressões de opinião meramente pelo moti xlii E H CARR vo de atualmente não mais endossálas sem reservas É possí vel então que possa ter o direito de indicar aqui os dois as pectos principais em que estou consciente de terme afastado até certo ponto da visão refletida nessas páginas Em primeiro lugar Vinte Anos de Crise foi escrito com o propósito deliberado de contraatacar o defeito flagrante e pe rigoso de todo pensamento tanto acadêmico quanto popular sobre política internacional nos países de língua inglesa de 1919 a 1939 o quase total esquecimento do fator poder Hoje este defeito embora por vezes ainda ocorra na discussão de itens de futuros acordos tem sido consideravelmente superado e algu mas passagens de Vinte Anos de Crise colocam este argumento de maneira bastante radical que não mais parece ser necessária ou apropriada hoje em dia como o era em 1939 Em segundo lugar o corpo principal do livro aceita de ma neira muito fácil e complacente o existente Estadonação pe queno ou grande como a unidade básica da sociedade interna cional embora o capítulo final apresente algumas reflexões a que os eventos subseqüentes se somaram acerca do tamanho das unidades políticas e econômicas do futuro Atualmente a conclusão de que o pequeno Estadonação é obsoleto ou obsolescente e que nenhuma organização internacional que fun cione pode basearse na multiplicidade de Estadosnações pa rece imporse a qualquer observador isento Minhas atuais opi niões sobre este ponto foram expostas num pequeno livro recentemente publicado sob o título Nationalism and Ater e posso por isso com a consciência limpa adotar a única linha de ação praticável e deixar a presente obra tal como foi feita em 1939 E H Carr 15 de novembro de 1945 PARTE I A CIÊNCIA DA POLÍTICA INTERNACIONAL Pigments caused by accumulated carotenoids occur in a wide variety of species and tissues and often contribute to bright red orange and yellow colors Because all carotenoids must be obtained through diet and because carotenoid pigmentation can enhance mating success and reduce oxidative damage carotenoid pigments are often important indicators of individual quality This dyebased alteration facilitates visualization and accurate quantification of the deposition pattern of carotenoid in tissues and permits studies of the pigments physiological role CAPÍTULO I o COMEÇO DE UMA CIÊNCIA A CIÊNCIA da política internacional está em sua infância Até 1914 a condução das relações internacionais era preocupação das pes soas profissionalmente engajadas nela Nos países democráti cos a política internacional sempre foi vista como fora do cam po de ação dos partidos políticos e os órgãos parlamentares não se sentiam competentes para exercitarem um controle cuidado so sobre as misteriosas operações das chancelarias Na Grã Bretanha a opinião pública prontamente levantavase se ocor resse uma guerra em qualquer região tradicionalmente vista como dentro da esfera do interesse britânico ou se a esquadra inglesa momentaneamente deixasse de possuir aquela margem de supe rioridade sobre possíveis rivais que fosse então considerada essencial Na Europa continental o alistamento militar e o medo crônico de invasão estrangeira haviam criado uma conscientização popular dos problemas internacionais mais am pla e contínua Mas esta conscientização encontrou expressão principalmente no movimento operário que de tempos em tem pos publicava resoluções um tanto acadêmicas contra a guerra A Constituição dos Estados Unidos da América continha a rara prescrição de que tratados deveriam ser concluídos pelo Presi dente com o conselho e consentimento do Senado Entretan to as relações exteriores dos Estados Unidos pareciam muito paroquiais para conferirem algum significado maior a esta exce ção Os aspectos mais pitorescos da diplomacia possuíam certo valor como notícia Mas em lugar algum sej a em universidades ou em círculos intelectuais mais amplos havia qualquer estudo 4 E H CARR organizado das questões internacionais correntes A guerra ain da era vista principalmente como negócio de soldados e o corolário disto era que a política internacional era um negócio de diplomatas Não havia um desejo geral de retirar a condução dos assuntos internacionais das mãos dos profissionais nem mesmo de prestar atenção séria e sistemática ao que eles esta vam fazendo A guerra de 191418 pôs um fim na opinião de que a guerra é um assunto que afeta unicamente soldados profissionais e fa zendo isto dissipou a impressão correspondente de que a políti ca internacional podia ser deixada com segurança nas mãos dos diplomatas profissionais A campanha pela popularização da po lítica internacional começou nos países de língua inglesa sob a forma de uma agitação contra tratados secretos que foram ata cados sem provas suficientes como uma das causas da guerra A culpa pelos tratados secretos deveria ter sido imputada não à imoralidade dos governos mas à indiferença dos povos Todos sabiam que tais tratados eram celebrados Mas antes da guerra de 1914 poucas pessoas sentiam alguma curiosidade acerca de les ou os achava condenáveis 1 A agitação contra eles foi con tudo um fato de imensa importância Foi o primeiro sintoma da demanda pela popularização da política internacional e anun ciou o nascimento de uma nova ciência OBJETIVO E ANALISE EM CIÊNCIA POLÍTICA A ciência da política internacional portanto surgiu em resposta a uma demanda popular Foi criada para servir a um objetivo e neste ponto seguiu o padrão de outras ciências À primeira vis I Um recente historiador da Aliança FrancoRussa tendo registrado o protesto de uns poucos radicais franceses contra o segredo que envolvia a transação continua Parlamento e opinião pública toleraram este completo silêncio e contentaramse em permanecer em absoluta ignorância acerca das determinações e alcance do acordo Michon L Alliana FrantoRusse pág 75 Em 1898 na Câmara dos Deputados Hanotaux foi aplaudido por declarar ser a revelação dos seus termos absolutamente impossível ibidem pág 82 o Começo de uma ciência 5 ta este padrão pode parecer ilógico Nosso primeiro trabalho é coletar classificar e analisar os fatos e deles tirar nossas inferências e estaremos desse modo prontos a investigar o objetivo a que nossos fatos e deduções podem ser relacionados Os processos da mente humana contudo não parecem desen volverse nesta ordem lógica A mente humana trabalha por as sim dizer na ordem inversa O objetivo que seguiria logicamente a análise é necessário para darlhe o impulso e direção iniciais Se a sociedade tem uma necessidade técnica escreveu Engels isto serve como impulso maior ao progresso da ciência do que dez universidadcstê O mais antigo livro didático de geometria existente ensina um conjunto de regras práticas destinadas a resolver problemas concretos regra para medir um pomar circu lar regra para projetar um campo cômputo da ração consumida por gansos e gado3 A razão diz Kant deve pesquisar a nature za não como um aluno que presta atenção a tudo o que seu mestre decidir contarlhe mas como um juiz que obriga a teste munha a responderlhe todas as perguntas que ele mesmo ache apropriadas a seu fim Não podemos estudar nem mesmo es trelas rochas ou átomos escreve um sociólogo moderno sem estarmos de alguma forma condicionados pelos interesses hu manos diretos seja em nossas formas de sistematização na proe minência dada a uma ou outra parte do nosso assunto ou na forma das perguntas que fazemos e tentamos responder É o objetivo de dar saúde que cria a ciência médica e o objetivo de construir pontes que cria a ciência da engenharia O desejo de curar as doenças do corpo político deu impulso e inspiração à ciência política Objetivo estejamos cônscios disto ou não é uma condição para opensamento e pensar pelo prazer de pensar é tão anormal quanto a acumulação de dinheiro feita pelo usu 2 Apud Sydney Hook Towards lhe Understanding of Karl Marx pág 279 3 J Rudf From lhe Physical lo lhe Social Sciences trad ingl pág 27 4 Kant Cnlique of Pure Reason ed Everyman pág 1 L 5 Maclver Community pág 56 6 E H CARR rario pelo prazer que isto lhe dá O desejo é o pai do pensa mento é uma descrição perfeitamente exata da origem do pen samento humano normal Se isto é válido para as ciências físicas é válido para a ciên cia política num sentido muito mais íntimo Nas ciências físi cas a distinção entre a investigação dos fatos e o objetivo a que esses fatos se ligam não só é teoricamente válida mas também constantemente observada na prática O pesquisador de labora tório dedicado a investigar as causas do câncer pode ter sido originalmente inspirado pelo propósito de erradicar a doença Mas este propósito é em seu sentido mais estrito irrelevante e separável da pesquisa Suas conclusões podem limitarse a um relatório verídico dos fatos Ele não pode tornar os fatos dife rentes do que são pois os fatos existem independentemente do que se pense deles Nas ciências políticas que lidam com o com portamento humano não existem tais fatos O pesquisador ins pirase no desejo de curar algum mal do corpo político Entre as causas do problema ele diagnostica o fato de que seres huma nos normalmente reagem a certas condições de certa maneira Mas este não é um fato comparável ao fato de que o corpo hu mano reage de certa forma a certas drogas É um fato que pode ser mudado pelo desejo de mudálo e este desejo já presente na mente do pesquisador pode ser estendido como resultado de sua investigação a um suficiente número de seres humanos que o tornem efetivo O objetivo não é como nas ciências físicas irrelevante à investigação e separável dela é ele próprio um dos fatos Em teoria podese sem dúvida continuar a estabele cer distinção entre o papel do pesquisador que estabelece os fatos e o papel do prático que se ocupa em traçar o curso certo da ação Na prática um papel interpenetrase imperceptivelmente com o outro Objetivo e análise tornamse partes integrantes de um único processo Alguns exemplos poderão ilustrar este ponto Marx quan do escreveu O Capital inspirouse no objetivo de destruir o sis 7 o Começo de uma ciência tema capitalista da mesma forma que o investigador das causas do câncer se inspira no objetivo de erradicar o câncer Mas os fatos sobre o capitalismo não são como os fatos sobre o câncer independentes da atitude do povo com relação a eles A análise de Marx buscou alterar e de fato alterou esta atitude No pro cesso de analisar os fatos Marx alterouos Tentar distinguir entre Marx o cientista e Marx o propagandista é um preciosismo inútil Os especialistas em finanças que no verão de 1932 acon selharam o governo britânico de que era possível converter o Empréstimo de Guerra de 5 a uma taxa de 35 sem dúvida basearam seu conselho na análise de certos fatos mas o fato de terem dado este conselho foi um dos fatos que levados ao co nhecimento do mundo financeiro tornaram a operação bem su cedida Análise e objetivo estavam inextricavelmente mescla dos Entretanto tampouco é somente o pensamento do profissional ou do estudante qualificado de política que cons titui um fato político Qualquer um que leia colunas políticas de um jornal ou que participe de reuniões políticas ou discuta po lítica com seu vizinho é de certa forma um estudante de políti ca e a opinião que venha a formar tornase especialmente mas não exclusivamente nos países democráticos um fator no cur so dos eventos políticos Logo um revisor literário poderia con cebivelmente criticar este livro em termos não de que seja fal so mas de que seja inoportuno e esta crítica justificada ou não seria compreensível enquanto que a mesma crítica a um livro sobre as causas do câncer seria sem sentido Todo julgamento político ajuda a modificar os fatos a que se refere O pensamen to político é ele mesmo uma forma de ação política A ciência política não é apenas a ciência do que é mas do que deveria ser o PAPEL DA UTOPIA Se portanto o objetivo precede e condiciona o pensamento não é surpresa descobrir que quando a mente humana começa a exer 8 E H CARR citarse em algum campo novo ocorre um estágio inicial em que o elemento do desejo ou objetivo é extremamente forte e a in clinação para a análise de fatos ou de meios é fraca ou inexistente Hobhose aponta como característica dos povos mais primiti vos que a prova da verdade de uma idéia não esteja ainda se parada da qualidade que a torna agradável O mesmo parece ria extremamente verdadeiro acerca do estágio primitivo ou utópico das ciências políticas Durante esse estágio os pes quisadores prestarão pouca atenção aos fatos existentes ou à análise de causa e efeito mas devotarseão integralmente à ela boração de projetos visionários para a consecução dos fins que têm em vista projetos cuja simplicidade e perfeição lhes ga rantem uma atração fácil e universal É somente quando esses projetos se desmoronam e desejo e objetivo mostramse inca pazes de por si sós atingirem o fim desejado que os pesquisa dores relutantemente pedirão auxílio à análise e o estudo emer gindo de seu período infantil e utópico estabelecerá seu direito de ser visto como ciência Podese dizer que a sociologia res salta o Professor Ginsberg surgiu como forma de ação contra largas generalizações não apoiadas em pesquisa indutiva deta lhada Não seria fantasioso encontrar uma ilustração desta regra mesmo no domínio da ciência física Durante a Idade Média o ouro era reconhecido como meio de troca Entretanto as rela ções econômicas não estavam suficientemente desenvolvidas a ponto de requererem mais do que uma quantidade limitada de tal meio Quando as novas condições econômicas dos séculos quatorze e quinze introduziram um sistema de transações mo netárias largamente difundido e a oferta de ouro tornouse ina dequada para esse fim os sábios da época começaram a experi mentar a possibilidade de transmutar metais comuns em ouro G L T Hobhose Devefopment and Purpose pág 100 7 M Ginsberg Socigy pág 25 9 o Começo de uma ciência o pensamento do alquimista desenvolveuse puramente visan do um objetivo Ele não parou para pensar se as propriedades do chumbo eram tais que permitissem sua transformação em ouro Presumiu que o fim era absoluto ou seja que o ouro teria de ser produzido e que meios e materiais teriam de se adaptar de algum modo a isto Foi somente quando esse projeto visio nário falhou que os pesquisadores foram obrigados a aplicar seu pensamento ao exame dos fatos isto é à natureza da matéria e embora o objetivo inicial de conseguir ouro de chumbo esteja tão distante quanto sempre esteve de sua realização a ciência física moderna tem evoluído a partir desta inspiração primitiva Outros exemplos podem ser tirados de campos ligados mais de perto ao nosso assunto Foi nos séculos quinto e quarto aC que surgiram as pri meiras tentativas sérias registradas de se criar uma ciência da política Essas tentativas foram feitas independentemente na China e na Grécia Mas nem Confúcio nem Platão embora esti vessem evidentemente profundamente influenciados pelas ins tituições políticas sob as quais viveram tentaram realmente analisar a natureza dessas instituições ou procuraram sublinhar as causas dos males que deploravam Como os alquimistas con tentaramse em advogar soluções altamente imaginativas cuja relação com os fatos existentes era de negação absoluta A nova ordem política que propunham era tão diferente de qualquer coisa a seu redor quanto ouro de chumbo Foi o produto não da aná lise mas da aspiração No século dezoito o comércio na Europa ocidental tornou se tão importante que as restrições a ele impostas pela autori dade governamental e justificadas pela teoria mercantilista 8 Platão O PIo tino Morus e Carnpanella construíram suas sociedades irreais com os mate riais que tinham sido omitidos na criação das comunidades reais devido aos defeitos nos quais eles se inspiraram A República A Utopia e A Cidade do Sol foram protestos contra um estado de coisas que a experiência de seus autores ensinouos a condenar CActon History of Freedom P 270 10 E H CARR constituíramse em obstáculos O protesto contra essas restri ções assumiu a forma de uma visão desejada de um comércio universal livre e partindo dessa visão os fisiocratas na França e Adam Smith na GrãBretanha criaram a ciência da economia política A nova ciência baseouse primeiramente na negação da realidade existente e em certas generalizações artificiais e não verificadas sobre o comportamento de um hipotético ho mem econômico Na prática alcançou alguns resultados alta mente significativos e úteis Mas a teoria econômica manteve durante muito tempo seu caráter utópico e até hoje alguns eco nomistas clássicos insistem em encarar o comércio universal livre uma situação imaginária que jamais existiu como postulado normal da ciência econômica e toda a realidade como um desvio desse protótipo utópico Nos primeiros anos do século dezenove a revolução indus trial criou um novo problema social para o pensamento humano na Europa ocidental Os pioneiros que primeiro lançaramse ao ataque do problema foram os homens a quem a posteridade atri buiu o nome de socialistas utópicos SaintSimon e Fourier na França Robert Owen na Inglaterra Esses homens não tentaram analisar a natureza dos interesses de classe ou das consciên cias de classe ou mesmo dos conflitos de classes que estes cau saram Simplesmente elaboraram suposições não verificadas so 9 A economia política liberal foi um dos melhores exemplos de utopias que se podem citar Imaginouse uma sociedade onde tudo seria reduzido a tipos comerciais sob a lei da mais livre concorrência hoje se reconhece que esta sociedade ideal seria tão dificilmente reali zável quanto a de Platão Sorel Réflexions sur la Violence pág 47 Compare com a conhecida defesa do Professor Robbins da economia do laissezfaire A idéia da coordena ção da atividade humana através de um sistema de regras impessoais dentro do qual quaisquer relações espontâneas conduziriam ao benefício mútuo é uma concepção pelo menos tão sutil tão ambiciosa quanto a concepção de prescreverse cada ação ou cada tipo de ação por uma autoridade planejadora central e isto provavelmente também não se encontra em harmonia com o que requer uma sociedade espiritualmente sã Economic Planning and lnternational Order pág 229 Seria igualmente verdadeiro e provavelmente igualmente útil dizer que a constituição da República de Platão é pelo menos tão sutil ambiciosa e dentro dos requerimentos espirituais quanto a de qualquer Estado que já tenha existido 11 o Começo de uma ciência bre o comportamento humano e sob influência delas criaram esquemas visionários de comunidades ideais nas quais homens de todas as classes iriam viver juntos em amizade dividindo os frutos de seu trabalho na proporção de suas necessidades Para todos eles como Engels acentuou Socialismo é a expressão da verdade razão e justiça absolutas e basta ser descoberto para conquistar todo o mundo em virtude de seu próprio poder Os socialistas utópicos desenvolveram um trabalho valioso ao tornarem os homens conscientes do problema e da necessidade de enfrentálo Mas a solução proposta por eles não tem cone xão lógica com as condições que criaram o problema Uma vez mais foi o produto não da análise mas da aspiração Esquemas elaborados com este espírito evidentemente não funcionarão Da mesma forma que ninguém jamais conseguiu fabricar ouro num laboratório ninguém jamais conseguiu viver numa república de Platão ou num mundo de mercado universal livre ou numa comunidade cooperativa de Fourier Mas é con tudo perfeitamente correto venerar Confúcio e Platão como fun dadores da ciência política Adam Smith como fundador da eco nomia política e Fourier e Owen como fundadores do socialismo O estágio inicial de aspiração tendo em vista um fim é um fundamento essencial do pensamento humano O de sejo é o pai do pensamento A teleologia precede a análise O aspecto teleológico da ciência da política internacional tem estado evidente desde o princípio Surgiu de uma grande e desastrosa guerra e o objetivo mestre que inspirou os pioneiros da nova ciência foi o de evitar a recidiva desta doença do corpo político internacional O desejo passional de evitar a guerra de terminou todo o curso e direção iniciais do estudo Como outras ciências na infância a ciência da política internacional tem sido marcadamente e francamente utópica Ela se encontra no está gio inicial no qual o desejo prevalece sobre o pensamento a 10 Engels Utopias and Sdentiftc Sodalism trad ingl pág 26 12 E H CARR generalização sobre a observação e poucas tentativas são efetuadas de uma análise crítica dos fatos existentes e dos mei os disponíveis Neste estágio a atenção está concentrada quase que exclusivamente no fim a ser alcançado O fim tem parecido tão importante que a análise crítica dos meios propostos tem sido freqüentemente classificada de destrutiva e inútil Quan do o Presidente Wilson a caminho da Conferência de Paz foi perguntado por alguns assessores se pensava que seu plano da Liga das N ações funcionaria respondeu rapidamente Se não funcionar teremos de fazêlo funcionar O advogado de um plano para uma força de polícia internacional ou para a segu rança coletiva ou de algum outro projeto para uma ordem in ternacional geralmente responde à crítica não com um argu mento destinado a mostrar como e por que ele pensa que seu plano funcionaria mas sim ou com uma declaração de que ele tem de ser posto a funcionar porque as conseqüências de sua ausência de funcionamento seriam desastrosas ou com a deman da por alguma panacéia alternativa 12 Este deve ter sido o espí rito da resposta que o alquimista ou o socialista utópico devem ter dado ao cético que questionou a hipótese de que o ouro pu desse surgir do chumbo ou que o homem pudesse viver em co munidadesmodelo O pensamento não tem recebido seu devido valor Muito do que foi dito e escrito sobre política internacio nal entre 1919 e 1939 merece a crítica aplicada em outro con texto pelo economista Marshall que compara a nervosa irresponsabilidade que concebe esquemas utópicos ligeiros com a facilidade corajosa do jogador fraco que resolverá rapida mente o mais difícil problema de xadrez produzindose os movi lt R S Baker Wooárow Wilson aná WorláSettle11lenl pág 93 12 Há uma velha e conhecida história sobre o homem que durante o terremoto de Lisboa de 1775 andava de um lado a outro vendendo pílulas antiterremoto mas um incidente é esquecido quando alguém apontou para o fato de que as pílulas provavelmente seriam inúteis o vendedor replicou mas o que você usaria em seu lugar L B Narnier In lhe Margin oi History pág 20 13 o Começo de uma ciência mentos das peças negras assim como os das peças brancas13 Como atenuante dessa falha intelectual podese dizer que du rante os primeiros anos desta fase as peças negras da política internacional estavam nas mãos de jogadores tão fracos que as dificuldades reais do jogo não estavam muito patentes mesmo para a inteligência mais aguda O curso dos acontecimentos a partir de 1931 revelou claramente a inadequação da aspiração pura como base de uma ciência da política internacional e tor nou possível pela primeira vez desencadear um sério raciocí nio crítico e analítico sobre os problemas internacionais o IMPACTO DO REALISMO Nenhuma ciência merece tal nome até que tenha adquirido hu mildade suficiente para não se considerar onipotente e para dis tinguir a análise do que é da aspiração do que deveria ser Por que nas ciências políticas esta distinção jamais pode ser absoluta algumas pessoas pretendem retirar delas o direito ao título de ciências Tanto nas ciências físicas quanto nas ciências políti cas logo se atinge um ponto onde o estágio inicial do desejo deve ceder lugar a um estágio de análise dura e impiedosa A diferença reside no fato de que as ciências políticas nunca po dem emanciparse totalmente da utopia e que o cientista políti co é mais suscetível de permanecer num estágio inicial mais longo que o cientista físico durante a fase utópica de desenvolvimen to Isto é perfeitamente natural Pois enquanto a transmutação de chumbo em ouro não ficaria mais próxima se todo o mundo apaixonadamente a desejasse é inegável que se todos realmente desejassem um Estado mundial ou segurança coletiva e ten do uma interpretação idêntica destes termos esses objetivos seriam facilmente alcançados e o estudante da política interna cional pode ser perdoado se começa a supor que sua tarefa con 13 Economic asrnal 1907 XVII pág 9 14 E H CARR siste em fazer com que todos desejem isto Ele leva algum tem po até perceber que nenhum processo pode ser desenvolvido por este caminho e que nenhuma utopia política alcançará mes mo o mais limitado sucesso a menos que se origine da realidade política Tendo feito esta descoberta ele dedicarseá àquela in cansável análise da realidade que é o traço primordial da ciên cia e um dos fatos cujas causas terá de analisar é o de que pou cas pessoas realmente desejam um Estado mundial ou segurança coletiva e as que pensam que desejam conceituam estas coisas de forma diferente e incompatível Ele terá por fim alcançado um estágio em que o objetivo por si só revelase estéril e a análise da realidade impõese a ele como um ingredi ente essencial de seu estudo O impacto do raciocínio sobre o desejo que no desenvol vimento de uma ciência seguese ao colapso de seus primeiros projetos visionários e marca o fim de seu período especifica mente utópico é normalmente chamado de realismo Represen tando uma reação contra os sonhos volitivos do estágio inicial o realismo está sujeito a assumir um aspecto crítico e de certo modo cínico No campo do pensamento coloca sua ênfase na aceitação dos fatos e na análise de suas causas e conseqüên cias Tende a depreciar o papel do objetivo e a sustentar explí cita ou implicitamente que a função do pensamento é estudar a seqüência dos eventos que ele não tem o poder de influenciar ou alterar No campo da ação o realismo tende a enfatizar o poder irresistível das forças existentes e o caráter inevitável das tendências existentes e a insistir em que a mais alta sabedoria reside em aceitar essas forças e tendências e adaptarse a elas Tal atitude embora defendida em nome do pensamento objeti vo pode facilmente ser levada a um extremo em que resulte a esterilização do pensamento e a negação da ação Mas há um estágio em que o realismo é o corretivo necessário da exuberân cia da utopia assim como em outros períodos a utopia foi invocada para contraatacar a esterilidade do realismo O pen 15 o Começo de uma ciência sarnento imaturo é predominantemente utópico e busca um ob jetivo O pensamento que rejeita o objetivo como um todo é o pensamento da velhice O pensamento maduro combina objeti vo com observação e análise Utopia e realidade são portanto as duas facetas da ciência política Pensamento político e vida política sensatos serão encontrados onde ambos tiverem seu lu gar PARTE II A CRISE INTERNACIONAL CAPÍTULO 11 UTOPIA E REALIDADE A ANTÍTESE utopiarealidade uma balança que sempre se apro xima e se afasta do equilíbrio jamais atingindoo completamen te é uma antítese fundamental que se revela em muitas formas de pensamento Os dois métodos de abordagem a tendência a ignorar o que foi e o que é e a tendência a deduzir o que deveria ser partindo do que foi e do que é determinam atitudes opos tas com relação a todo problema político HÉ uma eterna dispu ta como argumenta SoreI entre os que imaginam o mundo de modo a adaptálo à sua política e os que elaboram sua política de modo a adaptála às realidades do mundol Parece útil e su gestivo elaborar esta antítese antes de proceder a um exame da crise atual da política internacional UVRE ARBtrRIo E DETERMINISMO A antítese de utopia e realidade pode em alguns aspectos ser identificada com a antítese livre arbítrio e determinismo O utó pico é necessariamente voluntarista acredita na possibilidade de mais ou menos radicalmente rejeitar a realidade e substi tuíla por sua utopia por meio de um ato de vontade Já o realis ta analisa um curso de desenvolvimento predeterminado que ele é impotente para modificar Para o realista a filosofia nas famosas palavras de Hegel no prefácio de sua Filosofia do Direi to sempre chega tarde demais para mudar o mundo Por inter médio da filosofia a antiga ordem não pode ser rejuvenescida somente conhecida O utópico fixando seus olhos no futuro I A Sorel LEnrope et Ia Rivolnlion Française pág 474 18 E H CARR pensa em termos de criatividade espontânea o realista enraiza do no passado pensa em termos de causalidade Toda ação hu mana sadia e portanto todo pensamento sadio deve estabele cer um equilíbrio entre utopia e realidade entre livre arbítrio e determinismo O realista completo aceitando incondicionalmen te a seqüência dos acontecimentos se priva da possibilidade de modificar a realidade O utópico completo rejeitando a seqüên cia causal se priva da possibilidade de entender a realidade que está tentando transformar ou os processos pelos quais ela po deria ser transformada O vício característico do utópico é a ingenuidade o do realista a esterilidadeê TEORIA E PRATICA A antítese de utopia e realidade também coincide com a antíte se teoriaprática O utópico torna a teoria política uma norma a que a prática política tem de ajustarse O realista vê a teoria política como um tipo de codificação da prática política O re lacionamento entre teoria e prática foi reconhecido nos últimos anos como um dos problemas centrais do pensamento político Tanto o utópico quanto o realista distorcem esta relação O utó pico sustentando reconhecer a interdependência entre o objeti vo e o fato trata o objetivo como se fora o único fato relevante e constantemente apresenta como imperativas proposições que são meramente optativas A Declaração de Independência Ame ricana afirma que todos os homens são criados iguais Litvinov diz que a paz é indivisível e Sir N orman Angell que a divi são biológica da humanidade em Estados rivais independentes 2 O psicólogo pode interessarse em traçar aqui uma analogia seria perigoso ir além com a classificação de Jung dos tipos psicológicos em introvertidos e extrovertidos Oung Psyhologkal Typer ou com os pares de opostos de William James RacionalistaEmpirista IntelectualistaSensacionalista IdealistaMaterialista OtimistaPessimista ReligiosoNão religioso MonísticoPluralístico DogmáticoCético LivrevoluntaristaFatalista rw James Pragmatirm 3 League of Nations Sixteenth Assembly pág 72 Utopia e realidade 19 é urna inépcia científica Entretanto tratase de questão de observação corriqueira o fato de que nem todos os homens nas cem iguais mesmo nos Estados Unidos e que a União Soviética pode permanecer em paz enquanto seus vizinhos estão em guer ra e provavelmente teríamos um baixo conceito de um zoólogo que descrevesse um tigre comedor de gente corno urna inépcia científica Essas proposições são itens de um programa políti co disfarçados de declarações de fato e o utópico habita o mundo de sonhos desses fatos distante do mundo da realida de onde fatos bastante opostos podem ser observados O realis ta não tem dificuldade de perceber que estas proposições utópi cas não são fatos porém aspirações e pertencem ao caráter optativo não ao imperativo e continua por mostrar que consi deradas como aspirações não são proposições a priori mas es tão enraizadas no mundo da realidade de uma forma que o utó pico não consegue entender Portanto para o realista a igualdade do homem é a ideologia dos nãoprivilegiados que procuram ele varse até o nível dos privilegiados a indivisibilidade da paz a ideologia dos Estados que estando particularmente expostos a ataques ficam desejosos de estabelecerem o princípio de que um ataque a eles é um assunto que deva preocupar outros Esta dos mais afortunadamente situado a inépcia dos Estados sobe ranos a ideologia das potências hegemônicas que vêem na so berania de outros Estados urna barreira ao gozo de sua própria posição de predomínio A exposição dos fundamentos ocultos da teoria utópica constituise numa preliminar necessária a qual quer ciência política séria Mas o realista ao negar qualquer qualidade a priori das teorias políticas e ao provar que elas têm 4 N orman Angell Tbe Great lllusion pág 138 5 Da mesma forma a teoria de Marx da maisvalia tem nas palavras de um crítico simpati zante mais o significado de um slogan político e social do que o de uma verdade econô mica M Beer The Lifi and Teaching of KarlMarx pág 129 6 Tendo descoberto que outros Estados eram provavelmente mais expostos a ataques que eles próprios as autoridades soviéticas em maio de 1939 demitiram Litvinov e pararam de falar na indivisibilidade da paz 20 E H CARR suas raízes na pratIca cai facilmente num determinismo que sustenta que a teoria sendo nada mais do que a racionalização de um propósito condicionado e prédeterminado é uma excrescência pura e impotente para alterar o curso dos aconteci mentos Portanto enquanto o utópico trata o objetivo como o único fato básico o realista corre o risco de tratar o objetivo meramente como o produto mecânico de outros fatos Se reco nhecermos que esta mecanização da vontade humana e da as piração humana é indefensável e intolerável então temos de reconhecer que a teoria por desenvolverse da prática e na prá tica tem seu próprio papel transformador no processo O pro cesso político não consiste como crêem os realistas puramente na sucessão de fenômenos governados pelas leis mecânicas da causalidade tampouco consiste como crêem os utópicos pura mente na aplicação na prática de certas verdades teóricas evo luídas de uma consciência interior por povos sábios e previden tes A ciência política tem de ser baseada no reconhecimento da interdependência da teoria e da prática que só pode ser atingi da através da combinação de utopia e realidade o IlJTELECIVAL E O BUROCRATA Uma expressão concreta da antítese entre teoria e pratica na política é a oposição entre o intelectual e o burocrata o primeiro treinado a pensar principalmente por linhas apriorís ticas e o último a pensar ernpiricamente É da natureza das coisas que o intelectual deva encontrarse do lado que procura adequar a prática à teoria pois os intelectuais são particular mente relutantes em reconhecerem seu raciocínio como condi cionado por forças externas a eles próprios e gostam de pensar 7 O termo burocrata pode ser usado neste caso para incluir os membros das forças armadas que estão engajados na condução da política É provavelmente desnecessário adicionar que nem todo possuidor de um intelecto é um intelectual assim como nem todo ocupante de uma mesa num departamento governamental é um burocrata Há contudo modos de pensar que são em termos gerais característicos do burocrata e do intelectual Utopia e realidade 21 em si mesmos como líderes cujas teorias proporcionam a força motriz para os chamados homens de ação Além disso todo ponto de vista intelectual dos últimos duzentos anos tem sido forte mente colorido pelas ciências exatas e naturais A maioria dos intelectuais vem defendendo ser o estabelecimento de um prin cípio geral e o teste do particular à luz desse princípio o funda mento necessário e o ponto de partida de toda ciência Podese dizer a esse respeito que a utopia com sua insistência em prin cípios gerais representa a abordagem intelectual característica da política Woodrow Wilson o mais perfeito exemplo moderno de intelectual na política foi insuperável na exposição do fun damental Seu método político era basear sua atuação em princípios amplos e simples evitando o comprometimento com medidas especificas Alguns princípios supostamente gerais como autodeterminação nacional comércio livre ou segu rança coletiva que serão facilmente reconhecidos pelo realista como expressões concretas de condições e interesses particula res são tomados corno padrão absoluto e julgamse as políti cas boas ou más pela extensão em que divergem desses princípi os ou adaptamse a eles Nos tempos modernos os intelectuais têm sido os líderes de todo movimento utópico e os serviços prestados pela utopia ao progresso político devem ser credita dos em boa parte a eles Mas a fraqueza característica da uto pia é também a fraqueza característica dos intelectuais políti cos não entender a realidade existente e o modo pelo qual os padrões se relacionam com ela Eles podiam atribuir a suas as pirações políticas escreveu Meinecke sobre o papel dos inte lectuais na política alemã um espírito de pureza e independên cia de idealismo filosófico e de elevação acima do concreto jogo de interesses mas através de seu sentimento imperfeito pelos interesses reais da vida efetiva do Estado rapidamente desce ram do sublime para o extnvagante e o excêntrico 8 R S Baker Woodrow Wilson Life and Letters IH pág 90 9 Meinecke S taat tmd Personlicbkeit pág 136 22 E H CARR Freqüentemente afirmase que os intelectuais são menos ciosos de seu pensamento do que os grupos cuja coerência de pende de um interesse econômico comum e que ocupam por tanto um ponto privilegiado audessus de la mélée Já em 1905 Lenin atacava a opinião antiquada de que a intelligentsia seria capaz de permanecer fora de classes Mais recentemente esta visão foi ressuscitada por Mannheim que afirmou que a intelligentsia sendo relativamente sem classe e socialmente desvinculada inclui em si todos aqueles interesses com os quais a vida social é permeada e pode desta forma atingir um elevado grau de imparcialidade e objetividade Num certo sen tido limitado isto é verdade Mas qualquer vantagem derivada disso pareceria anulada por uma correspondente inabilidade isto é pelo distanciamento das massas cuja atitude é um fator determinante na vida política Mesmo onde a ilusão de sua lide rança era mais forte os intelectuais modernos freqüentemente encontraramse na posição de oficiais cujas tropas estivessem prontas a seguilos em tempo de paz mas que desertariam ante qualquer problema mais sério Na Alemanha e em muitos paí ses europeus menores as constituições democráticas de 1919 foram fruto do trabalho de intelectuais devotados e atingiram um alto grau de perfeição teórica Mas quando ocorreu uma cri se esfacelaramse quase em toda parte por não terem consegui do conquistar o apoio da massa da população Nos Estados Uni dos os intelectuais tiveram um papel preponderante na proposta de criação da Liga das Nações e a maioria deles permaneceu como seus defensores ardorosos Entretanto a massa do povo americano que parecia seguir a liderança deles rejeitoua quan do o momento crítico chegou Na GrãBretanha os intelectuais asseguraram através de uma propaganda enérgica e devotada enorme apoio dos jornais à Liga das N ações Mas quando a Liga surgiu requerendo uma ação que poderia ter acarretado conse la Lenin Workr 2a edição russa VII pág 72 11 Mannheim Ideology and Utopia págs 13 740 23 Utopia e realidade quencias praticas para a massa do povo governos suceSSIVOS preferiram a inação e os protestos dos intelectuais não causa ram reação perceptível no país A abordagem burocrática da política é por outro lado fun damentalmente empírica O burocrata sustenta o manuseio de cada problema segundo o mérito para evitar a formulação de princípios e para guiarse no rumo certo por algum processo in tuitivo nascido de uma longa experiência e não do raciocínio consciente Não existem casos gerais dizia um funcionário francês no papel de delegado da França numa assembléia da Liga das Nações só existem casos específicost Com sua aver são pela teoria o burocrata lembra o homem de ação Nos engajamos somente naquilo que vemos é um moto atribuído a mais de um general famoso A excelência do serviço público bri tânico é parcialmente devida à facilidade com que a mentalida de burocrática se acomoda à tradição empírica da política britâ nica O perfeito servidor público civil ajustase bem à popular definição do político inglês como o homem que recua horrori zado ante constituições escritas e convenções solenes e deixa se guiar pelo precedente pelo instinto pelo faro da coisa certa Este empirismo é ele mesmo sem dúvida condicionado por um ponto de vista particular e reflete o hábito conservador da vida política inglesa O burocrata provavelmente mais explicitamente do que qualquer outra classe da comunidade está relacionado de perto com a ordem existente a manutenção da tradição e a aceitação do precedente como critério seguro de ação A par tir daí a burocracia facilmente degenera no formalismo rígido e vazio do mandarim e proclama possuir um conhecimento esotérico dos procedimentos apropriados que não é acessível mesmo à mais brilhante inteligência de fora Expérience vaut mieux que science é a máxima burocrática típica Conquistas no aprendizado e na ciência escreveu Bryce expressando uma 12 Leagm of Nations Fifteenth AssembIJ Sixth Cornmittee pág 62 24 E H CARR opinião largamente difundida são de pouca valia para tornar o homem sábio em políticaI Quando o burocrata quer condenar uma proposta classificada de acadêmica Prática e não teo ria treinamento burocrático e não brilhantismo intelectual Essa é a escola da sabedoria política O burocrata tende a tornar a política um fim em si mesma Vale a pena ressaltar que tanto Maquiavel quanto Francis Bacon eram burocratas Esta antítese fundamental entre os modos de pensar inte lectual e burocrático sempre latente em toda parte apareceu na última metade de século num lugar onde dificilmente terseia procurado por ela no movimento operário Escrevendo na dé cada de 1870 Engels congratulou os trabalhadores alemães pelo fato de que eles pertenciam à nação mais teórica do mundo e retiveram este sentido teórico que foi quase completamente per dido pelas classes ditas educadas da Alemanha Ele comparou este estado feliz com a indiferença a toda teoria que é uma das razões do lento progresso do movimento operário inglês Qua renta anos após um outro escritor alemão confirmou esta ob servação A análise teórica da doutrina de Marx tornouse uma das preocupações principais dos mais importantes socialdemo cratas alemães e muitos observadores crêem que esse desenvol vimento intelectual de um só lado foi um fator importante para o colapso final do partido O movimento operário britânico até os últimos anos evitou inteiramente a teoria Atualmente a har monia imperfeita entre as alas intelectuais e sindicais é uma fonte notória de problemas para o Partido Trabalhista Os sindicalis tas tendem a encarar o intelectual como um teórico utópico desprovido de experiência dos problemas práticos do movimen to O intelectual condena o líder sindical como um burocrata Os constantes conflitos entre facções dentro do Partido 13 Bryce Modem Democrades I pág 89 14 Apud Lenin Worb 2a edição russa IV pág 381 15 Nós possuímos o movimento operário mais teórico do mundo F Naurnann Central Europe nado ingl pág 121 Utopia e realidade 25 Bolchevista na Rússia Soviética foram em parte de alguma for ma explicados como conflitos entre a intelligentsia do Partido representada por Bukarin Kamenev Radek e Trotsky e a má quina do Partido representada por Lenin Sverdlov até sua morte em 1919 e Stalin16 A oposição entre o intelectual e o burocrata foi particular mente proeminente na GrãBretanha durante os vinte anos en tre as guerras no campo das relações exteriores Durante a Pri meira Grande Guerra a União pelo Controle Democrático Union ofDemocratic Controty uma organização de intelectuais utópi cos moveu grandes esforços para popularizar a idéia de que a guerra decorria em grande parte do controle das relações exte riores em todos os países por diplomatas profissionais Woodrow Wilson acreditava que a paz estaria assegurada se os problemas internacionais fossem resolvidos não por diplomatas ou políti cos preocupados em servir a seus próprios interesses mas por cientistas desapaixonados geógrafos etnógrafos economistas que estudaram as questões envolvidas Burocratas e especi almente diplomatas foram durante muito tempo vistos com sus peitas nos círculos da Liga das Nações e considerouse que a Liga contribuiria enormemente à solução dos problemas inter nacionais retirandoos das mãos reacionárias dos ministérios de relações exteriores Wilson apresentando o projeto de Pacto à sessão plenária da Conferência de Paz falou da impressão de que se o corpo deliberativo da Liga das Nações devesse ser me 16 Esta interpretação que aparece em Lenin de Mirsky págs 111 11718 publicado em 1931 recebeu posterior confirmação dos acontecimentos subseqüentes A dissensão remontava aos primeiros tempos do partido Em 1904 Lenin atacava os intelectuais do partido por negligen ciarem a disciplina e a organização e os intelectuais atacavam Lenin por seus métodos burocrá ticos Lenin Works 2a ed russa VI págs 3091 1 16 A Union ofDemocratic Control ODC foi constituída na Inglaterra logo após o início da Primeira Guerra Mundial por um grupo de pessoas que se opunham à entrada do país na guerra Num sentido mais geral a UDC defendia a idéia de que a política externa deveria ser objeto de controle democrático e que uma instância internacional deveria ser criada para garantir urna paz duradoura e que essa deveria ser a verdadeira guerra para acabar com todas as guerras Nota do editor 17 R S Baker Woodrow Wilson and World Sefllemcnl I pág 112 26 E H CARR ramente um corpo de funcionários representando os diversos go vernos os povos do mundo não poderiam ficar certos de que alguns dos erros que funcionários dedicados admitiram terem cometidos não mais se repetiriam Mais tarde na Câmara dos Comuns Lord Cecil foi mais severo Temo que tenha chegado à conclusão na Conferência de Paz por experiência própria de que os prussianos não estavam confinados exclusivamente na Alemanha Há também a tendência e a tradição amplas das clas ses oficiais Não se pode evitar a conclusão de que existe uma tendência entre eles de pensar que tudo o que existe está cer to19 Na Segunda Assembléia Lord Cecil invocou o apoio da opinião pública que a Liga deveria representar contra as clas ses oficiaisP e tais apelos foram freqüentemente ouvidos du rante os dez anos seguintes O burocrata por seu lado igual mente desconfiava do zelo missionário de intelectuais entusiastas pela segurança coletiva a ordem mundial e o desarmamento geral esquemas que lhe pareciam frutos da teoria pura divorci ada da experiência prática A questão do desarmamento ilus trou bem esta divergência de pontos de vista Para o intelectual o princípio geral era simples e claro as alegadas dificuldades em aplicálo eram devidas à obstrução por parte dos especia listas Para o especialista o princípio geral era sem sentido e utópico se os armamentos poderiam ser reduzidos e se assim fosse era uma questão prática a ser decidida em cada caso segundo seus méritos 16 History of tbe Peace Conference ed H Ternperley IIl pág 62 19 House ofCommons july 21 1919 Offtcia Report col 993 20 Leagm of Nations Second Assemby Tbird Committee pág 281 21 Não se pode tolerar disse o socialista belga De Brouckêre que o povo seja roubado de suas esperanças de paz por especialistas que estão se perdendo na teia de tecnicalidades que com um pouco de boa vontade pode ser desfeita em poucas horas Peace and Disarmament Committee oftbe 1170men Í lnternational Organisations Circular of May 15 1932 Mais ou menos na mesma época Lord Cecil diria sobre o mesmo assunto Se a questão fosse deixada nas mãos dos especialistas nada teria sido resolvido Eles eram estou certo cavalheiros aptos conscienciosos e altamente instruídos mas olhe o treinamento deles Manchester Guardian 18 de maio de 1932 Utopia e realidade 27 ESQUERDA E DIREITA A antítese de utopia e realidade e da teoria e prática reproduz se mais tarde na antítese entre radical e conservador entre es querda e direita muito embora seja imprudente presumir que os partidos que carregam estes rótulos representem estas tendênci as sublinhadas O radical é necessariamente utópico e o conser vador realista O intelectual o homem da teoria gravitará para a esquerda tão naturalmente quanto o burocrata o homem da prática gravitará para a direita Até hoje a direita é fraca em termos de teoria e sofre por sua inacessibilidade a idéias A fraqueza característica da esquerda é o fracasso em traduzir sua teoria na prática um fracasso pelo qual culpará os burocratas mas que é inerente ao seu caráter utópico A esquerda tem ra zão Vernunft a Direita tem sabedoria Verstand escreveu o filósofo nazista Moeller van den Bruck22 Desde os tempos de Burke os conservadores ingleses sempre negaram fortemente a possibilidade de deduzir prática política de teoria política por um processo lógico Seguir somente o silogismo é o caminho mais curto para um poço sem fundo diz Lord Baldwinê uma frase que pode sugerir que ele pratica tanto quanto prega a abs tenção de modos de pensar rigorosamente lógicos Churchill re cusase a crer que a extravagante lógica na doutrina atraia o eleitor britânico Uma definição particularmente clara das di ferentes atitudes com relação à política externa surge de um discurso feito na Câmara dos Comuns por Neville Chamberlain em resposta a um crítico trabalhista O que o honorável Membro entende por política externa Podese estabelecer proposições gerais e sensatas Podese dizer que a política externa visa a manter a paz podese dizer que deva proteger os inre 22 Moeller van den Bruck Das Dritte Reich 3a ed pág 257 23 Baldwin On England pág 153 24 Winston Churchill Sep bySep pág 147 28 E H CARR resses britânicos que deva usar sua influência como o faz na defesa do certo contra o errado Podese estabelecer todos estes princípios mas isto não é uma política Evidentemente se quisermos ter uma política devese pegar a situação particular e considerar qual ação ou omissão é cabível para esta situação particular Isto é o que eu próprio entendo por política e é bastante claro que como as condições e situ ações nas relações internacionais continuamente mudam dia a dia sua política não pode ser estabelecida de uma vez para sempre se quiser mos que seja aplicável a cada situação que surja25 A superioridade intelectual da esquerda é posta freqüentemente em dúvida A esquerda sozinha cria princípios de ação política e desenvolve ideais para o estadista buscar atin gir Mas é desprovida de experiência prática que surge do conta to próximo com a realidade Na GrãBretanha após 1919 foi um sério mal que a esquerda tendo alcançado o poder em perí odos muito curtos tivesse pouca experiência das realidades ad ministrativas e se tornasse cada vez mais um partido de teoria pura enquanto a direita tendo passado tão pouco tempo na oposição teve pouca tentação de avaliar as perfeições da teoria diante das imperfeições da prática Na Rússia Soviética o gru po no poder está cada vez mais descartando a teoria em favor da prática perdendo a memória de sua origem revolucionária A história mostra em toda parte que quando partidos ou políticos de esquerda travam contato com a realidade através de cargos políticos tendem a abandonar sua utopia doutrinária e a mo veremse para a direita normalmente mantendo seus rótulos de esquerda e desta forma aumentando a confusão da terminolo gia política ÉTICA E POLÍTICA Mais fundamental do que tudo a antítese entre utopia e realida de é baseada numa diferente concepção da relação entre políti 25 House of Commons October 211937 reimpresso em N Chamberiain TheStrugglefor Peace pág 33 29 Utopia e realidade ca e ética A antítese entre o mundo dos valores e o mundo da natureza já implícita na dicotomia objetivofato está profun damente arraigada na consciência humana e no pensamento po lítico O utópico estabelece um padrão ético que proclama ser independente da política e procura fazer com que a política adaptese a ele O realista não pode aceitar logicamente nenhum valor padrão exceto o dos fatos Em seu modo de ver o padrão absoluto do utópico é condicionado e ditado pela ordem social sendo portanto político Moralidade só pode ser relativa não universal A ética tem de ser interpretada em termos de políti ca e a procura de uma norma ética fora da política está fadada à frustração A identificação da realidade suprema com o bem supremo que a Cristandade conseguiu por intermédio de um vi goroso golpe de dogmatismo o realista alcança através da pre sunção de que não existe outro bem que não a aceitação e a compreensão da realidade Essas implicações da oposição entre utopia e realidade irão emergir claramente de um estudo mais detalhado sobre a crise atual da política internacional PERFECT FINISH POWDER 100g 100g 100g 900 YES CAPÍTULO 111 o PANO DE FUNDO UTÓPICO Os FUNDAMENTOS DA UTOPIA A MODERNA escola do pensamento político utópico remonta à destruição do sistema medieval que pressupunha uma ética uni versal e um sistema político universal baseado na autoridade divina Os realistas do Renascimento moveram o primeiro ata que sério e violento contra a primazia da ética defendendo um ponto de vista político que tornava a ética um instrumento da política a autoridade do Estado substituindo assim a autori dade da Igreja como árbitro da moralidade A resposta da escola utópica a este desafio não foi fácil Era necessário um padrão ético que fosse independente de qualquer autoridade externa eclesiástica ou civil e a solução foi encontrada na doutrina de uma lei da natureza secular cuja fonte última era a razão in dividual humana A lei natural como foi proposta primeiramen te pelos gregos havia sido uma intuição do coração humano sobre o que seria moralmente correto É eterna diz Antígona de Sófocles e ninguém sabe de onde vem Os estóicos e os escolásticos medievais identificaram a lei natural com a razão e nos séculos dezessete e dezoito reviveuse esta identificação sob uma forma nova e particular Na ciência as leis da natureza eram deduzidas por um processo de raciocínio partindo dos fa tos observados sobre a natureza da matéria Por uma analogia simples os princípios neutonianos aplicavamse agora aos pro blemas éticos A lei moral da natureza podia ser cientificamente estabelecida e a dedução racional a partir de supostos fatos da 34 E H CARR natureza humana tomou o lugar da revelação ou da intuição como fonte da moral A razão poderia determinar quais seriam as leis morais universalmente válidas e presumiuse que uma vez determinadas essas leis os seres humanos se adaptariam a elas assim como a matéria adaptavase às leis físicas da nature za O Iluminismo era a estrada real para a felicidade Por volta do século dezoito as linhas principais do moder no pensamento utópico foram firmemente estabelecidas Foi essencialmente individualista ao fazer da mente humana a corte final de apelação em questões morais Na França associouse com uma tradição secular na Inglaterra com uma tradição evan gélica Foi essencialmente racionalista ao identificar a consciên cia humana com a voz da raz âo Mas ainda iria sofrer importan tes modificações e foi Jeremy Bentham que quando a revolução industrial transferiu a liderança do pensamento da França para a Inglaterra deu ao pensamento utópico do século dezenove sua forma característica Partindo do postulado de que a caracterís tica fundamental da natureza humana era a busca do prazer e a rejeição da dor Bentham deduziu deste postulado uma ética ra cional que definia o bem através da famosa fórmula a maior felicidade para o maior número Como se tem dito freqüente mente a maior felicidade para o maior número desempenhou o papel do mesmo modo que a lei natural havia desempenha do para a geração anterior de um padrão ético absoluto Bentham acreditava firmemente nesse padrão absoluto e rejei tava corno anárquica a visão de que existem tantos padrões de certo e errado quantos forem os homens Com efeito a maior felicidade para o maior número foi a definição do século dezenove do conteúdo da lei natural I Embora seja esta a forma de utopia que predominou nos últimos três séculos e que ainda prevalece embora provavelmente com sua força diminuída nos países de língua inglesa seria perigoso afirmar que individualismo e racionalismo são atributos necessários do pen samento utópico O fascismo contém elementos utópicos de tipo antiindividualista e irracional Estas qualidades já estavam latentes nos aspectos utópicos do leninismo e provavelmente até do marxismo 2 Bentharn Works ed Bowring I pág 31 35 o pano de fundo utópico A importância da contribuição de Bentham é dupla Em primeiro lugar ao identificar o bem com a felicidade proporcio nou uma confirmação plausível para a presunção científica de que o homem adaptarseia infalivelmente à lei moral da natu reza tão logo seu conteúdo fosse racionalmente determinado Em segundo lugar ao preservar os aspectos racionalista e indi vidualista da doutrina conseguiu colocála sobre uma base mais ampla A doutrina da razão em sua roupagem do século dezoito era eminentemente intelectual e aristocrática Seu corolário político era um despotismo esclarecido de filósofos os únicos que poderiam possuir o poder de raciocínio necessá rio para descobrir o bem Mas agora que a felicidade era o crité rio a única necessidade era que o indivíduo pudesse identificar onde residia sua felicidade Não só era o bem determinável como era sustentado no século dezoito por um processo racional como ainda este processo não era uma questão de especulação filosó fica hermética mas de simples bom senso Bentham foi o pri meiro pensador a elaborar a doutrina da salvação pela opinião pública Os membros da comunidade podem em sua capacida de agregada serem considerados como se constituíssem uma forma de judicatura ou tribunal chameo Tribunal da Opinião Pública Foi James Mill aluno de Bentham quem criou o mais completo argumento já elaborado em defesa da infalibilidade da opinião pública Todo homem possuidor de razão está acostumado a pesar os indíci os e a guiarse por sua preponderância Quando várias conclusões com suas provas são apresentadas com igual carinho e engenho há uma certeza moral de que embora existam exceções a maioria das pessoas julgará de forma correta e que a prova de maior força qual quer que ela seja causará a impressão mais forte 3 Bentharn Works ed Bowring VIII pág 561 James Mill Tb Liberry oI lhe Press págs 223 36 E H CARR Este não é o único argumento com que se pode defender a democracia como instituição política Mas ele foi de fato im plícita ou explicitamente aceito pela maioria dos liberais do sé culo dezenove A crença de que a opinião pública julgará corre tamente qualquer questão racionalmente apresentada combinada com a presunção de que ela agirá de acordo com esse julgamen to correto é um fundamento essencial do credo liberal Na Grã Bretanha o final do século dezoito e o século dezenove foram preponderantemente a era da pregação popular e da oratória política Pela voz da razão os homens podiam ser persuadidos a salvarem suas almas imortais e a percorrerem o caminho da ilus tração e do progresso políticos O otimismo do século dezenove baseouse na tripla convicção de que a busca do bem era ques tão de raciocínio correto de que a difusão do conhecimento logo tornaria possível a qualquer um pensar corretamente sobre este importante assunto e de que qualquer um que pensasse correta mente iria necessariamente agir corretamente A aplicação desses princípios às questões internacionais seguiu no principal o mesmo padrão Abbé de SaintPierre que propôs um dos primeiros projetos para uma liga de nações con fiava tanto na razoabilidade de seus projetos que sempre acre ditou que se fossem considerados de forma correta as grandes potências não poderiam deixar de adotálos Tanto Rousseau quanto Kant arguíram que já que as guerras eram feitas pelos príncipes em interesse próprio e não de seu povo não haveria guerras sob um governo de forma republicana Neste sentido anteciparam o ponto de vista de que a opinião pública uma vez tornandose efetiva será suficiente para prevenir a guerra No século dezenove esta opinião teve aprovação ampla na Europa ocidental e assumiu a coloração especificamente racionalista própria da doutrina de que a manutenção das crenças morais corretas e a realização de ações corretas podem ser assegura 5 J s Bury The Idea oj Progress pág 131 o pano de fundo utópico 37 das pelo processo do raciocínio Jamais houve uma época que proclamou tão sem reservas a supremacia do intelecto É a evo lução intelectual assegurou Comte que determina essencial mente o curso principal dos fenômenos sociais Buckle cuja famosa História da Civilização foi publicada entre 1857 e 1861 abertamente declarou que a aversão à guerra é um gosto sofis ticado peculiar aos intelectuais Ele escolheu um forte exem plo baseado na presunção natural para um pensador britânico da belicosidade inerente do mais recente inimigo da Grã Bretanha A Rússia é um país guerreiro escreveu não porque seus habitantes sejam imorais mas porque não são intelectualizados O erro está na cabeça não no coração A opinião de que a difusão da educação levaria à paz internacio nal foi compartilhada por muitos dos contemporâneos e suces sores de Buckle Seu último expoente sério foi Sir Norman Angell que tentou com Tbe Great Illusion e outros livros con vencer o mundo de que a guerra jamais trouxe lucro a ninguém Se fosse possível estabelecer este ponto através de argumentos irrefutáveis pensou Sir Norman então a guerra não ocorreria A guerra é produto de uma falha de entendimento Uma vez que a cabeça fosse purgada da ilusão de que a guerra compensa va o coração poderia tratar de si mesmo O mundo das Cruza das e da queima dos hereges dizia o manifesto de lançamento de um jornal mensal chamado War and Peace que começou a aparecer em outubro de 1913 não foi um mundo de inten ções incorretas mas de pensamento incorreto Saímos desse estado ao corrigirmos a falha de entendimento sairemos do mundo de guerra política ou paz armada da mesma forma A razão poderia demonstrar o absurdo da anarquia internacional e com um conhecimento ampliado um número suficiente de pes 6 Comte Cours de Pbilosopbie Positiue Lecture LXI 7 Buckle History of Civilisolion Cedo World Classics I págs 1512 S Apud Angell Foundations oflnternational Polity pág 224 Indícios sugerem que esta passa gem foi escrita pelo próprio Sir Norman Angell 38 E H CARR soas seriam racionalmente convencidas deste absurdo e poriam um fim nele BENIHAMISMO TRANSPLANTADO Antes do fim do século dezenove várias das presunções do racionalismo de Bentham deram origem a dúvidas sérias A crença na suficiência da razão para a promoção da conduta correta foi contestada pelos psicólogos A identificação da virtude com o esclarecido interesse próprio começou a chocar os filósofos A crença na infalibilidade da opinião pública tinha sido atraente segundo a hipótese dos primeiros utilitaristas de que a opinião pública era a opinião de homens educados e esclarecidos Tor nouse menos atraente principalmente para os que se conside ravam educados e esclarecidos agora que a opinião pública era a opinião das massas e em 1859 em seu ensaio On Liberty J S Mill mostrouse preocupado com os perigos da tirania da maio ria Após 1900 teria sido difícil encontrar na GrãBretanha ou em qualquer outro país europeu algum pensador político sé rio que aceitasse as hipóteses de Bentham sem restrições Con tudo por uma dessas ironias da história essas teorias semiaban donadas do século dezenove reapareceram na segunda e terceira décadas do século vinte no campo específico da política inter nacional e lá tornaramse as pedras basilares de um novo edifí cio utópico A explicação pode ser em parte residir no fato de que após 1914 as mentes dos homens naturalmente tateavam à procura de uma nova utopia e voltaram para esses fundamentos aparentemente sólidos da paz e segurança do século dezenove Mas um fator mais decisivo foi a influência dos Estados Uni dos ainda no auge da prosperidade vitoriana e da crença vitoriana no confortável credo das teorias de Bentham Assim como Bentham um século antes tomou a doutrina da razão do século dezoito e adaptoua às necessidades da nova era da mesma for ma agora Woodrow Wilson o apaixonado admirador de Bright 39 o pano de fundo utópico e Gladstone transplantava a fé na racionalidade do século dezenove ao solo quase virgem da política internacional e le vandoa com ele para a Europa deulhe um novo alento de vida Quase todas as teorias populares sobre política internacional en tre as duas grandes guerras foram reflexos vistos num espelho americano do pensamento liberal do século dezenove Num limitado número de países a democracia liberal do século dezenove teve um brilhante sucesso Foi um sucesso por que seus pressupostos coincidiram com o estágio de desenvol vimento alcançado por esses países Fora da massa de especula ções da época os principais espíritos de então absorveram precisamente a parte da teoria que correspondia a suas necessi dades consciente ou inconscientemente adaptando a prática à teoria e a teoria à prática Utilitarismo e laissezJaire serviram e a sua vez dirigiram o curso da expansão industrial e comercial Entretanto a opinião de que a democracia liberal do século dezenove era baseada não num equilíbrio de forças peculiar ao desenvolvimento econômico do período e aos países envolvi dos mas em certos princípios racionais a priori que bastariam ser aplicados em outros contextos para produzirem resultados similares foi essencialmente utópica e foi esta opinião que do minou o mundo após a primeira guerra mundial Quando as teo rias da democracia liberal foram transplantadas por um proces so puramente intelectual a um período e a países cujo estágio de desenvolvimento e cujas necessidades práticas eram tremen damente diferentes dos da Europa ocidental no século dezenove esterilidade e desilusão foram a seqüela inevitável A razão pode criar a utopia mas não pode tornála real As democracias libe rais espalhadas pelo mundo devido ao acordo de paz de 1919 foram o produto da teoria abstrata não lançaram raízes no solo e rapidamente murcharam 40 E H CARR RAaONAUSMO E A LIGA DAS NAÇÕES A mais importante dentre todas as instituições afetadas por esse intelectualismo míope da política internacional foi a Liga das N ações que foi uma tentativa de aplicar os princípios do libe ralismo de Locke para a construção de uma estrutura institucional para a ordem internacional O Pacto obser vou o general Smuts simplesmente trouxe para os proble mas mundiais aquela visão de uma sociedade liberal democráti ca que é uma das grandes conquistas do avanço humano Entretanto esse transplante da racionalidade democrático da esfera nacional para a internacional estava cheio de dificulda des imprevistas O empirista lida com o caso concreto segundo o mérito individual de cada caso O racionalista liga o caso con creto a um princípio geral abstrato Toda ordem social implica uma larga dose de padronização e portanto de abstração não pode haver uma regra diferente para cada membro da comuni dade Tal padronização é comparativamente mais fácil numa comunidade de muitos milhões de indivíduos anônimos que se adaptam mais ou menos de perto a padrões conhecidos Apresenta contudo complicações infinitas quando aplica da a sessenta Estados conhecidos que diferem largamente em tamanho em poder e em desenvolvimento político econômico e cultural A Liga das Nações sendo a primeira tentativa em larga escala de padronizar os problemas políticos internacionais sobre uma base racional foi particularmente sujeita a esses embaraços Os fundadores da Liga alguns deles homens de larga expe riência e conhecimento políticos reconheceram com efeito os perigos da perfeição abstrata A aceitação dos fatos políticos atuais ressaltou o Comentário oficial britânico ao Pacto publi 9 R H S Crossman in J P Mayer Political ThoZlght pág 202 10 Transmissão de véspera de Ano Novo da Rádio Nations Genebra Tbe Times 1 de janeiro de 1938 o pano de fundo utópico 41 cado em 1919 foi um dos princípios sobre os quais a Comissão trabalhou e esta tentativa de levar em conta as realidades políticas distinguiu o Pacto não só dos anteriores projetos de organização mundial mas também de projetos puramente utó picos como a da Força Policial Internacional o Pacto Briand Kellogg e os Estados Unidos da Europa O Pacto tinha a virtu de de apresentar várias imperfeições teóricas Afirmando que trataria todos os membros como iguais garantiu às grandes po tências permanente maioria no Conselho da Liga12 Não preten deu proibir a guerra de todo mas somente limitar as ocasiões em que legitimamente fosse possível recorrer a ela A obriga ção imposta aos membros da Liga de aplicar sanções a quem rompesse o Pacto não deixava de ser vaga e isto foi discreta mente ampliado por um conjunto de resoluções interpretativas passadas pela Assembléia em 1921 A rigidez da garantia territorial dada pelo Artigo 10 do Pacto foi atenuada numa re solução que teve o voto favorável quase unânime da Assem bléia em 1923 Parecia então que a Liga poderia alcançar um meiotermo entre utopia e realidade e tornarse um instrumen to eficaz da política internacional Infelizmente os políticos europeus mais influentes negli genciaram a Liga durante seus anos críticos de formação O racionalismo abstrato ganhou a primeira mão e de 1922 em di 11 The Couenant oj tbe Leagtle oj Nations and a Commentary Thereon Cmd 151 1919 pág 12 A grande força do Pacto disse o governo britânico alguns anos mais tarde repousa na medida do poder discricionário que concede ao Conselho e à Assembléia para lidarem com futuras contingências que podem não ter paralelo na história e que portanto não podem prever todas com antecedência League of Nations Official ournal maio de 1928 pág 703 12 A ausência dos Estados Unidos perturbou este equilíbrio deixando quatro potências maiores em confronto com quatro menores Subseqüentes aumentos de membros que tiveram lugar em freqüentes intervalos desde 1923 deram preponderância permanente aos países menores O Conselho ao tornarse mais representativo perdeu muito de sua eficácia como instrumento político A realidade foi sacrificada em favor de um princípio abstrato Convém lembrar que o prudente delegado suíço previu esse resultado quando levantouse a questão do primeiro aumento de número em 1922 League of Nations Third Assemby First Committee págs 378 42 E H CARR ante em Genebra essa corrente levou a Liga decididamente na direção da utopiaP Começouse a crer nas palavras de um crí tico acerbo que possa existir em Genebra ou em ministérios de relações exteriores um tipo de arquivo de acontecimentos cuidadosamente classificado ou melhor ainda de situações e que quando um evento ocorre ou uma situação se apresenta um membro do Conselho ou um Ministro de Relações Exterio res pode facilmente reconhecer o acontecimento ou a situação e procurar no índice para encontrar as pastas onde a ação apro priada está descrita Houve esforços determinados para aper feiçoar o mecanismo para padronizar o processo para preen cher os lapsos do Pacto através de um veto absoluto contra todas as guerras e para tornar a aplicação de sanções automá tica O Projeto de Tratado de Assistência Mútua o Protocolo de Genebra o Ato Geral o plano de incorporar o Pacto Briand Kellogg à Carta da Liga e A definição de agressor foram to dos marcos do perigoso caminho da racionalização O fato de que os pratos utópicos preparados durante esses anos em Gene bra eram intragáveis para a maioria dos governos interessados constitui um sintoma do divórcio crescente entre teoria e prá tica Mesmo o vocabulário corrente na Liga traía o crescente desejo de evitar o concreto em favor das generalizações abstra tas Quando se entendeu necessário fazer com que o Projeto de Tratado de Assistência Mútua pudesse ser posto em vigor na Europa sem se aguardar o resto do mundo inseriuse nele a cláusula de que poderia entrar em vigor por continentes uma limitação com implicações absurdas para todo continente que não a Europa Entrou em uso uma fraseologia convencional que 13 Por uma curiosa ironia esse desenvolvimento foi fortemente encorajado por um grupo de intelectuais americanos e alguns entusiastas europeus imaginaram que seguindo este cur so apaziguariam a opinião pública americana O abismo entre a teoria dos intelectuais e a prática do governo que desenvolveuse na GrãBretanha a partir de 1932 começou nos Estados Unidos em 1919 I J FischerWilliams Some Apeeis oi lhe Cotenan oi lhe League oi Nations pág 238 43 o pano de fundo utópico serviu como moeda corrente para os delegados em Genebra e para os entusiastas da Liga em toda parte e que após constante repetição logo perdeu todo contato com a realidade Não con sigo lembrarme de época alguma disse Churchill em 1932 em que a distância entre o tipo de palavras usadas pelos estadistas e o que realmente acontece em muitos países fosse tão grande quanto o é agora15 O Pacto FrancoSoviético que era uma ali ança defensiva contra a Alemanha foi concebido para parecer um instrumento de aplicação geral e foi descrito como um bri lhante exemplo do principio de segurança coletiva Um mem bro da Câmara dos Comuns perguntado no debate sobre san ções em junho de 1936 se ele se arriscaria a uma guerra com a Itália respondeu que estava preparado a enfrentar todas as con seqüências naturalmente decorrentes da aplicação do Pacto con tra uma nação agressora16 Essas contorsões lingüísticas enco rajaram a falha freqüente de não se distinguir entre o mundo da razão abstrata e o mundo da realidade política Os metafísicos como os selvagens ressalta Bertrand Russell imaginam uma conexão mágica entre palavras e coisas Os metafísicos de Genebra acharam difícil de acreditar que uma acumulação de textos engenhosos proibindo a guerra não fosse de fato uma barreira contra a própria guerra Nosso propósito disse Benes ao apresentar o Protocolo de Genebra à Assembléia de 1924 foi o de tornar a guerra impossível matála aniquilála Para tanto tivemos de criar um sistema O Protocolo era o siste ma Tal presunção só poderia provocar a justa punição Uma vez que se começou a acreditar nos círculos da Liga que a sal vação podia ser encontrada num perfeito fichário e que o fluxo desordenado da política internacional podia ser canalizado num conjunto de fórmulas abstratas de lógica inexpugnável inspira 15 Winston Churchill Arms and lhe Covenant pág 43 16 Apud Toynbee SlIrvey oI lnternational Affairs 1935 II pág 448 17 B Russell in Atlantic MonthJ fevereiro de 1937 pág 155 18 League of Nations Fifth AssembJ pág 497 44 E H CARR das nas doutrinas da democracia liberal do século dezenove o fim da Liga como instrumento político efetivo estava à vista A APoreosE DA OpINIAo PÚBUCA Tampouco teve melhor sorte a tentativa de transplantar para a esfera internacional a fé democrática liberal na opinião pública E aqui houve uma dupla falácia A crença do século dezenove na opinião pública compreendia dois pontos primeiro e nas de mocracias isto era com algumas reservas verdade que a opi nião pública está fadada a longo prazo a prevalecer e segundo esta era a visão de Bentham que a opinião pública está sem pre certa Ambas as crenças não sempre claramente distinguíveis uma da outra foram reproduzidas sem espírito crítico no cam po da política internacional As primeiras tentativas de invocar a opinião pública como força na esfera internacional realizaramse nos Estados Unidos Em 1909 o Presidente Taft desenvolveu um plano para a cele bração de tratados entre os Estados Unidos e outras grandes potências visando à arbitragem compulsória de disputas inter nacionais Mas como perguntavase a decisão da corte arbitral poderia ser imposta Taft manipulou a pergunta com total des preocupação Ele jamais havia observado que numa democra cia como os Estados Unidos o cumprimento de decisões judici ais poderia suscitar alguma dificuldade em particular e confessouse muito pouco preocupado com este aspecto da questão Depois de termos casos decididos pela corte e os jul gamentos contendo uma solene declaração de uma corte então estabelecida poucas nações não se sentiriam intimidadas de enfrentar a condenação da opinião pública internacional e deso bedecer o julgamento A opinião pública tal como existente nos países democráticos está destinada a prevalecer e a opi 19 W Taft Tbe United Slalt and Peace pág 150 45 o pano de fundo utópico nião pública como afirmavam os seguidores de Bentham esta rá sempre do lado certo O Senado dos Estados Unidos rejeitou a proposta do Presidente Taft de modo que não ocorreu a opor tunidade de submeter a um teste a opinião pública internacio nal Quatro anos mais tarde Bryan o primeiro Secretário de Estado do Presidente Wilson surgiu com um novo conjunto de tratados Nos tratados de Bryan a arbitragem foi descartada em favor da conciliação Sua colocação mais original e significativa era a determinação de que as partes signatárias não usariam o recurso da guerra até que doze meses houvessem decorrido do início da disputa Com o sangue quente como os tratados de Bryan pareciam admitir os homens podiam não ouvir a voz da razão Entretanto uma vez que o lapso de tempo esfriasse suas paixões a razão sob o manto da opinião pública internacional reassumiria sua força coatora Muitos desses tratados foram com efeito assinados entre os Estados Unidos e outras potências alguns deles por curiosa ironia nos primeiros dias da primeira guerra mundial A soma e a substância desses tratados dizia Wilson em outubro de 1914 é que sempre que algum problema surgir a luz vermelha se acenderá por um ano antes que algo seja feito e minha previsão é de que após a luz brilhar por um ano não será necessário fazer nada após sabermos o que estava acontecendo então saberemos quem estava certo e quem esta va errado A crença no poder de coerção da razão expressa através da voz do povo era particularmente inerente a Wilson Quando entrou na política em 1910 como candidato a Governador em N ew Jersey sua campanha baseouse num apelo ao povo con tra os líderes políticos e demonstrava uma fé quase mística de que o povo o seguiria se ele conseguisse falar a um número sufi ciente de pessoas O resultado de sua campanha confirmava para ele a sua crença no poder da voz da razão que saía de seus 20 The Pllblic Papers oi Woodrow Wilson The New Democrary ed R S Baker 1 pág 206 46 E H CARR lábios Ele haveria de governar pela persuasão da razão agindo a partir de uma toda poderosa opinião pública Se os líderes he sitassem ele só teria de apelar para o povo O povo queria as coisas altas as coisas certas as coisas verdadeirasJ A entrada dos Estados Unidos na guerra não trouxe modifi cação alguma na fé de Wilson na correção do julgamento popu lar Ele voltou ao tema em um dos discursos em que discutiu as futuras condições da paz É uma peculiaridade desta grande guerra que enquanto os estadistas pareciam procurar ansiosamente definições de seus objetivos e por vezes pareciam mudar de opinião e de pontos de vista o pensamento da massa de homens que os estadistas deveriam instruir e liderar tor nouse cada vez mais claro cada vez mais seguro do objetivo de sua luta Os objetivos nacionais foram paulatinamente relegados a segun do plano e o objetivo comum da humanidade esclarecida tomou seu lugar As opiniões dos homens comuns tornaramse em toda parte mais simples e positivas e mais uniformes do que as opiniões dos so fisticados políticos que ainda mantém a impressão de que estão jo gando um jogo de poder e em grandes cartadas Eis por que eu disse que esta é uma guerra do povo não de estadistas Os estadistas devem seguir a esclarecida opinião comum ou afundarão22 A menos que a Conferência se prepare para seguir a opi nião da humanidade dizia Wilson em seu caminho para Paris e para expressar a vontade do povo mais do que a dos líderes da Conferência nos envolveremos em outro conflito mundialt Tais concepções de fato tiveram um importante papel no trabalho da Conferência Quando os delegados italianos mos traramse recalcitrantes quanto a suas pretensões sobre Fiume e a costa do Adriático Wilson permaneceu convencido de que se ele pudesse apelar ao povo contra os líderes se apenas como 21 R S Baker Woodrow lE7ilson Life and Letters m pág 173 22 Tbe Publi Papers of Woodrow Wilson War and Peace ed R S Baker I pág 259 23 lntimate Papers of Colonel House ed C Seyrnour IV pág 291 47 o pano de fundo utópico na eleição de N ew Jersey pudesse falar a um número suficien te a voz da razão iria infalivelmente prevalecer O comunica do ao povo italiano e a retirada da delegação italiana de Paris foram o resultado desta convicção O problema do desarmamento foi tratado com o mesmo espírito Uma vez que as potências inimigas haviam sido desarmadas pela força a voz da razão fa lando através da opinião pública seria suficiente para desarmar os aliados Tanto Wilson quanto Lloyd George achavam que se o exército alemão fosse limitado a França teria que seguir o mesmo caminho e que nestas circunstâncias ela dificilmente poderia manter um exército irnensof E se alguém parasse para perguntar que motivo a França teria para desarmarse a única resposta teria sido a força racional da opinião pública Mais im portante do que tudo toda a concepção da Liga das N ações fora desde o princípio ligada de perto à crença dupla de que a opi nião pública estava destinada a prevalecer e que era a voz da razão Se acordos abertos abertamente acordados podiam ser postos em vigor poderseia confiar no povo comum para fisca lizar se o conteúdo estaria de acordo com os requerimentos da razão que era a moralidade mais alta A nova ordem deveria basearse não em acordos de egoísmo e cessão entre gover nos mas na opinião do povo comum de toda parte do mundo o povo que não tem privilégios e possui padrões simples e não sofisticados sobre certo e erradot Deve ser sustentada pela opinião organizada da humanidadet O delicado problema das sanções materiais foi abordado relutantemente pelo lado americano e quase tão relutantemen te pelo lado inglês Como Taft a opinião anglosaxônica estava muito pouco preocupada com este aspecto da matéria pois o reconhecimento da necessidade de sanções era ele próprio uma negação da doutrina utópica da eficácia da opinião pública raci 24 D Lloyd George Tbe Trutb about tbe Treaties I pág 187 25 Tbe Públic Papers of Wootirow Wilson lar anti Peace ed R S Baker I pág 133 2 Ibidem 1 pág 234 48 E H CARR onal Era impensável que um veredicto unânime da Liga pudes se ser desafiado e mesmo se por algum azar o veredicto não fosse unânime um relatório da maioria seria provavelmente divulgado e isto sugeriu Lord Cecil durante os debates em Paris deverá pesar bastante na opinião pública do mundoW O Comentário oficial britânico sobre o Pacto desenvolveu o mesmo ponto de vista A Liga deve continuar a depender do livre consentimento como últi ma saída de seus estados componentes esta presunção encontrase evidente em quase todos os artigos da Convenção da qual a sanção última e mais efetiva deve ser a opinião pública do mundo civilizado Se as nações do futuro forem em sua totalidade egoístas rapaces e guerreiras nenhum instrumento ou mecanismo as restringirá Só é possível estabelecer uma organização que possa tornar a cooperação pacífica fácil e a partir de então costumeira se se acreditar na influên cia do costume para moldar a opinião pública O problema das sanções foi tratado rapidamente meio apologeticamente e com um comentário final consolador Parte não menos importante da pressão será exercida pela publicida de a ser feita quanto ao processo do acordo Os assuntos obscuros onde têm origem as disputas internacionais serão expostos à luz do dia e a criação de uma opinião pública informada será possívelf Quando a Câmara dos Comuns debateu a ratificação do Tratado de Versailles Lord Cecil foi o principal expositor do Pacto da Liga Na maior parte dos casos disse ele não há tentativa alguma de de pender de um superestado tentativa alguma de depender da força para fazer cumprir uma decisão do Conselho ou da Assembléia da Liga Isto é quase impraticável no estado atual das coisas Nós depen 27 Míller The Drafting of lhe Covenanl lI pág 64 28 Tbe Covenant of lhe Leaglle of Nalions wilh a Commenlary Tbereon Cmd 151 págs 12 16 o pano de fundo utópico 49 demos da opinião pública e se estivermos errados então a coisa toda está errada29 Dirigindose à Conferência Imperial de 1923 sobre o as sunto da Liga Lord Cecil explicou que seu método não é o método do governo coercitivo é o método do consentimento e seu instrumento executivo não é a força mas sim a opinião pú blica E quando a primeira Assembléia da Liga se reuniu Lord Cecil como delegado britânico propôs a mesma filosofia da tri buna É muito verdade que de longe a arma mais poderosa que a Liga tem sob seu comando não é a arma econômica ou militar ou qualquer outra arma de força material De longe a arma mais poderosa com que contamos é a opinião pública Até o mais cético e sofisticado Balfour explicando a au sência de sanções nos acordos de Washington de 1921 declarou que se qualquer nação a partir de agora deliberadamente afas tarse da ação coletiva que adotamos em Washington neste ano da graça será condenada perante o mundo32 e era um dos pres supostos da democracia liberal que tal condenação fosse efeti va Mas o argumento de que a opinião pública seria uma arma todapoderosa tem dois aspectos e em 1932 durante a crise da Manchúria o engenhoso Sir John Simon usouo para demons trar que qualquer outro tipo de ação era supérfluo A verdade é disse ele à Câmara dos Comuns que quando a opinião pú blica a opinião mundial é suficientemente unânime para pro duzir uma firme condenação moral as sanções não são necessá rias Dadas as premissas de Bentham e Wilson esta resposta era irrefutável Se a opinião pública não conseguiu curvar o Ja pão então como disse Lord Cecil em 1919 a coisa toda está errada 29 House of Commons july 21 1919 Official port cols 990 992 30 lmpmal Conference oj 1923 Cmd 1887 pág 44 31 Ltaglle oj Nations First Assembfy pág 395 32 Apud Zimmern Tbe Ltaglle oj Nations and lhe RJie of Law pág 399 33 House of Cornmons March 22 1932 Olficia port col 923 50 E H CARR A punição da utopia na política internacional veio subitamente Em setembro de 1930 o reitor da Universidade de Columbia o professor Nicholas Murray Butler aventurou a previsão razoa velmente segura de que a próxima geração verá um constante e crescente respeito pelos princípios e pontos de vista de Cobden e um esforço mais sério de darlhes efeito prático na política públicaP Em 1O de setembro de 1931 Lord Ceci havia dito à Assembléia da Liga das Nações que dificilmente terá havido um período na história do mundo em que a guerra parecesse tão pouco provável quanto atualmentet Em 18 de setembro de 1931 o Japão começou sua campanha na Manchúria e no mês seguinte o último país importante que continuava a aderir ao princípio de livre comércio tomou as primeiras medidas para a introdução de uma tarifa geral Deste ponto em diante uma rápida sucessão de aconteci mentos forçou todos os pensadores sérios a reconsiderarem pre missas que se tornavam cada vez mais desvinculadas da realida de A crise da Manchúria demonstrou que a condenação da opinião pública internacional invocada por Taft e por tantos outros depois dele era uma coisa em que não se podia confiar N os Estados Unidos chegouse a esta conclusão com extrema relutância Em 1932 um Secretário de Estado americano ainda cautelosamente sustentava que a sanção da opinião pública pode tornarse uma das mais poderosas formas de sanção do mundot Em setembro de 1938 o Presidente Roosevelt ainda baseou sua intervenção na crise da Tchecoslováquia na crença predominante no governo dos Estados Unidos na força moral l4 N M Butler The Palh lo Peace pág XII 35 Leaglle of Nations Twefth Assemby pág 59 36 Stimson ao Conselho de Relações Exteriores em 8 de agosto de 1932 New York Times August 9 1932 51 o pano de fundo utópico da opinião pública Em abril de 1939 Cordell Hull ainda uma vez anunciava a convicção de que uma opinião pública a mais potente de todas as forças mantenedoras da paz desenvolvese com maior vigor através do mundot Contudo em países mais diretamente ameaçados pela crise internacional esta visão consoladora não mais encontraria muitos adeptos e a contínua adesão de estadistas americanos a ela era vista como um indício de ausência de desejo americano de recorrer a armas mais po tentes Em 1932 Winston Churchill já condenava a União da Liga das Nações por sua sofrida e inexaurível ingenuidade de continuar a pregar seu credo ultrapassado Muito tempo antes o grupo de intelectuais que anteriormente havia insistido na relativa falta de importância das armas materiais da Liga co meçou a insistir em voz alta em sanções militares e econômicas como fundamentos necessários da ordem internacional Quan do a Alemanha anexou a Áustria Lord Cecil perguntou indigna do se o Primeiro Ministro sustenta ser o uso da força material impraticável e que a Liga deveria deixar de tentar sanções e confinar seus esforços à força moral A resposta poderia mui to bem ter sido que se Neville Chamberlain realmente susten tasse essa opinião ele devia com certeza têla aprendido dos anteriores pronunciamentos do próprio Lord Cecil Além disso o ceticismo atacou não só a premissa de que a opinião pública certamente prevalecerá mas também a premis sa de que a opinião pública fatalmente estará correta Na Con ferência de Paz observouse que os estadistas eram algumas vezes mais razoáveis e moderados em suas exigências do que a opinião pública que eles deveriam representar Até mesmo o pró prio Wilson usou uma vez sem dúvida com total sinceridade 37 Acreditando como este país o faz na força moral da opinião pública Sumner Welles in State Department Press Releases October 8 1938 pág 237 38 The Times April 18 1939 39 Winston Churchill Arms and lhe Couenant pág 36 40 Daiy Telegraph March 24 1938 52 E H CARR um argumento que contradizia sua tese costumeira de que se pode fazer a razão prevalecer apelando ao povo comum atra vés do mundo Na Comissão da Liga das Nações o delegado japonês levantou a tese da igualdade racial Como o senhor pode tratar quanto ao mérito nesta sala silenciosa perguntou o Pre sidente uma questão que não será tratada quanto a seu mérito quando sair desta sala Mais tarde a história forneceria mui tos exemplos desse fenômeno Tornouse um lugarcomum para estadistas em Genebra e em toda parte explicar que eles pró prios sempre desejaram ser razoáveis mas que a opinião públi ca de seus países era inexorável Embora esse argumento fosse algumas vezes um pretexto ou uma manobra tática havia geral mente um sólido substrato de realidade por trás dele O prestí gio da opinião pública ao mesmo tempo declinou Não ajuda ao conciliador ao árbitro ao policial ou ao juiz escreveu um conhecido defensor da União da Liga das Nações recentemente o fato de ser cercado por uma multidão emitindo exclamações de raiva ou exultação Os homens comuns através do mun do de Woodrow Wilson os portavozes do objetivo comum da humanidade esclarecida de alguma forma transformaram se numa multidão desordenada emitindo ruídos incoerentes e nocivos Parece inegável que em assuntos internacionais a opi nião pública estava quase sempre tão errada quanto impotente Mas quando tantos pressupostos de 1919 estavam se despeda çando os líderes intelectuais da escola utópica apontaram suas armas e na GrãBretanha e nos Estados Unidos e na França em menor grau a distância entre teoria e prática assumia di mensões alarmantes Os estudiosos de gabinete dos assuntos internacionais eram unânimes com relação ao tipo de política que deveria ser seguida tanto no campo político quanto no eco nômico Os governos de muitos países agiram num sentido pre 41 Miller The Drafting oi the Couenant lI pág 70l 42 Lord Allen of Hurtwood The Tiniu May 30 1938 o pano de fundo utópico 53 cisamente contrario a esses conselhos e receberam o endosso da opinião pública por ocasião de pesquisas de opinião o PROBLEMA DO DIAGNÓmCO Em tais desastres a explicação óbvia nunca se faz esperar O hábil historiador da Internacional Comunista notou que na his tória daquela instituição toda falha não falha objetiva mas falha de adaptação da realidade à utopia supõe a existência de um traidor Este princípio tem uma aplicação ampla e toca fontes profundas do caráter humano Estadistas de mais de um país foram execrados por utópicos desapontados como destrui dores da ordem internacional Os poucos membros da escola que tentaram ir além desta simples explicação antropomórfica hesitavam entre dois diagnósticos alternativos se a humanida de em suas relações internacionais claramente deixou de atin gir o bem racional deve ter sido ou muito tola para entender este bem ou muito mesquinha para não tentar alcançálo O Professor Zimmern tende para a hipótese da tolice repetindo quase palavra por palavra o argumento de Buckle e de Sir Norman Angell O obstáculo em nosso caminho não está na esfera moral mas na intelectual Não é porque os homens sejam malintencionados que não podem ser educados dentro de uma consciência social mundial É porque eles sejamos honestos e digamos nós somos seres de tem peramento conservador e inteligência limitada A tentativa de construir uma ordem mundial falhou não por orgulho ambição ou sofreguidão mas por raciocínio con fuso O Professor Toynbee por outro lado vê a causa da cri se na mesquinhez humana Num único volume da publicação 43 F Borkenau Tbe lnternational Communist pág 179 44 Neutrality and Collective Secunty Harris Foundation Lectures Chicago 1936 págs 8 18 54 E H CARR anual Survey oi International Affairs ele acusa a Itália de ego ísmo positivo determinado e agressivo a GrãBretanha e a França de egoísmo negativo vacilante e covarde a Cristan dade ocidental como um todo de um crime sórdido e todos os membros da Liga das Nações exceto a Abissínia de rapinagem ou covardia ao livre arbítrio enquanto a atitu de dos americanos era meramente muito capciosa e perversa Alguns autores combinaram a acusação de tolice com a de mes quinhez Muitos comentários sobre assuntos internacionais tor naramse tediosos e estéreis por girarem incessantemente em torno de uma realidade que se recusava a adaptarse às prescri ções utópicas A simplicidade destas explicações parecia quase ridicula mente desproporcional à intensidade e complexidade da crise internacional A impressão que o homem comum tinha foi mais precisamente registrada em abril de 1938 em algumas palavras de Anthony Eden É extremamente fútil imaginar que estamos envolvidos em uma crise européia que pode desaparecer da mesma forma que surgiu Estamos envolvidos numa crise de humanismo através do mundo todo Estamos vivendo um daqueles grandes períodos da história que são aterradores em suas responsabilidades e em suas conseqüências Forças estupen das estão à solta forças de tufào47 Não é verdade como crê o Professor Toynbee que esteja mos vivendo uma era excepcionalmente mesquinha Não é ver dade como quer o Professor Zimmern que estejamos vivendo uma era excepcionalmente tola É menos verdade ainda como o Professor Lauterpacht sugere de maneira mais otimista que 45 511rvey oilntemational AJlairs 1935 II págs 2 89 96 219 e 480 46 Como disse um escritor recente acerca dos racionalistas franceses do século dezoito sua superficialidade reside num exagero chocante da simplicidade do problema Sabine A History oi Political Theory pág 551 47 Anthony Eden ForeignAffairs pág 275 55 o pano de fundo utópico estejamos experimentando um transitório período de regressão que não deveríamos permitir que influenciasse nosso pensamen t0 48 Tratase de uma evasiva sem sentido pretender que teste munhamos não a falha da Liga das Nações mas somente a fa lha dos que se recusaram a fazêla funcionar O colapso da década de trinta foi contundente demais para ser explicado meramente em termos de ações ou omissões individuais Sua ruína envol veu a falência dos postulados em que estava baseada Os funda mentos das crenças do século dezenove estão eles próprios sob suspeição Pode bem ser verdade não que homens tolamente ou mesquinhamente deixaram de aplicar os princípios corretos mas que os próprios princípios fossem falsos ou inaplicáveis Pode bem não ser verdade que se os homens raciocinarem correta mente sobre política internacional também agirão corretamen te ou que o raciocínio correto sobre interesses próprios ou de uma nação seja o caminho para um paraíso internacional Se os postulados do liberalismo do século dezenove são de fato insus tentáveis não deve causarnos surpresa o fato de que a utopia dos teóricos internacionais causasse tão pouco efeito sobre a realidade Entretanto se eles são insustentáveis hoje em dia também temos de explicar porque encontraram aceitação tão ampla e inspiraram conquistas tão esplêndidas no século dezenove 48 lnternational AJlairs XVII SeptemberOctober 1938 pág 712 paulaschoicecom CAPÍTULO IV A HARMONIA DE INTERESSES A SÍNTESE UTÓPICA NENHUMA sociedade política nacional ou internacional pode existir a menos que o povo se submeta a certas regras de condu ta Saber por que o povo deve submeterse a tais regras consti tui o problema fundamental da filosofia política Esse problema se apresenta tão insistentemente numa democracia quanto sob outras formas de governo tanto na política internacional quanto na esfera nacional Nesse sentido uma fórmula como o maior bem para o maior número não responde a questão por que a minoria cujo bem maior não é por hipótese visado deva sub meterse às regras criadas segundo o interesse da maioria Em termos gerais as respostas para essa questão caem em duas ca tegorias correspondendo à antítese discutida em capítulo ante rior entre os que vêem a política como uma função da ética e os que consideram a ética uma função da política Os que defendem a primazia da ética sobre a política sus tentam ser um dever do indivíduo submeterse pelo bem da co munidade como um todo sacrificando seus próprios interesses em prol do interesse de outros que são mais numerosos ou de alguma forma mais merecedores O bem que consiste no in teresse próprio deve ser subordinado ao bem que consiste em lealdade e sacrifício próprio por um fim maior do que o interes se próprio A obrigação repousa sobre algum tipo de intuição acerca do que está certo e não pode ser demonstrada por argu 58 E H CARR mento racional Por outro lado os que sustentam a primazia da política sobre a ética defenderão que o governante governa porque é mais forte e os súditos se submetem porque são mais fracos Este princípio é tão facilmente aplicável à democracia quanto a qualquer outra forma de governo A maioria governa porque é mais forte a minoria obedece porque é mais fraca A democracia como freqüentemente se diz substitui o corte de cabeças pela contagem de cabeças Mas a substituição é mera mente uma conveniência e o princípio dos dois métodos é o mesmo O realista portanto ao contrário do intuitivo tem uma resposta perfeitamente racional à questão de por que o indiví duo deve submeterse Ele deve submeterse porque caso con trário o mais forte o obrigará e os resultados desta ação com pulsória são muito mais desagradáveis do que os da submissão voluntária A obrigação deriva portanto de um tipo de ética espúria baseada na razoabilidade de reconhecer que poder é direito Ambas as respostas são passíveis de objeção O homem moderno que testemunhou conquistas tão magníficas da razão humana reluta em crer que razão e obrigação algumas vezes estão em conflito Homens de todas as eras por outro lado não conseguiram encontrar satisfação na opinião de que a base raci onal da obrigação seja meramente o direito do mais forte Um dos pontos mais fortes da doutrina utópica dos séculos dezoito e dezenove foi seu aparente sucesso em resolver ambas as obje ções de uma só vez O utópico partindo da primazia da ética crê necessariamente numa obrigação ética e no caráter inde pendente do direito do mais forte Além disso ele também foi capaz de convencerse em bases diferentes das do realista de que o dever do indivíduo submeterse às regras criadas no inte resse da comunidade pode ser justificado em termos da razão e 1 Na verdade Jeremy Bentham chegou a elaborar uma fórmula para calcular o bem que seria produzido por políticas governamentais Esse cálculo contudo jamais chegou a ser efetivamente aplicado Principios da Moral e da Legislação 1789 capo IV Nota do editor 59 A harmonia de interesses que o bem maior para o maior número é um fim racional mesmo para aqueles que não se incluem na maioria O utópico conse gue esta síntese sustentando que o mais elevado interesse do indivíduo e o mais elevado interesse da comunidade naturalmente coincidem Ao visar seu interesse próprio o indivíduo visa o da comunidade e promovendo o interesse da comunidade promo ve o seu próprio interesse Esta é a famosa doutrina da harmo nia de interesses É um corolário necessário do postulado de que leis morais podem ser estabelecidas através de raciocínio correto A admissão de qualquer divergência essencial de inte resses seria fatal para esse postulado e portanto devese expli car qualquer choque aparente de interesses como o resultado de cálculo incorreto Burke tacitamente adotou a doutrina da iden tidade de interesses quando definiu interesse útil como o que é bom para a comunidade e para cada indivíduo da comunida dc Esses conceitos foram passados dos racionalistas do sécu lo dezoito para Bentham e deste para os moralistas vitorianos Os filósofos utilitaristas podiam justificar moral pelo argumen to de que promovendo o bem de outros automaticamente pro movese o próprio bem Honestidade é a melhor política Se povos ou nações comportamse de maneira má tem de ser como Buckle e Sir N orman Angell e o Professor Zimmern pensam porque são incultos imprevidentes e tolos o PARAÍSO DO UISSEZFAIRE Foi a escola do laissezfaire na economia política criada por Adam Smith a principal responsável pela popularização da doutrina da harmonia de interesses O objetivo da escola foi o de promo ver a remoção do controle estatal das questões econômicas e para justificar esta política buscou demonstrar que se podia confiar no indivíduo sem controle externo para promover os interesses da comunidade pelo único motivo de que esses inre I Burke Worés v 407 60 E H CARR resses eram iguais aos seus próprios A prova disto coube à Ri queza das Nações A sociedade se divide entre aqueles que vivem de rendas da terra os que vivem de salário e os que vivem de lucros e os interesses desses três grandes segmentos são es trita e inseparavelmente ligados ao interesse geral da socieda de2 A harmonia é real mesmo se os envolvidos não estiverem conscientes disso O indivíduo nem pretende promover o inte resse público nem sabe o quanto ele o está fazendo Visa ape nas o seu próprio ganho e é levado neste e em muitos outros casos por uma mão invisível a promover um fim que não consta va de seu objetivo A mão invisível que Adam Smith prova velmente consideraria uma metáfora não apresentou dificulda des à piedosa sociedade vitoriana É curioso observar ressalta um pequeno ensaio publicado pela Sociedade para a Propaga ção do Conhecimento Cristão em meados do século dezenove como através dos sábios e benfazejos arranjos da Providência os homens prestam os maiores serviços ao público quando só estão pensando em seus próprios ganhos Mais ou menos na mesma época um clérigo inglês escreveu uma obra intitulada Os Lucros Temporais da Cristandade Explicados A harmonia de interesses deu uma base racional sólida à moralidade Amar o próximo tornouse uma forma esclarecida de amar a si próprio Sabemos agora escreveu Henry Ford recentemente em 1930 que qualquer coisa que seja economicamente certa é também moralmente certa Não pode haver conflito entre boa economia e boa moral A presunção de uma harmonia de interesses geral e funda mental é prima fatie tão paradoxal que requer uma análise cui dadosa Sob a forma que Adam Smith lhe atribuiu ela teve uma aplicação definida para a estrutura econômica do século dezoi 2 Adam Smith The Wealth ofNations livro I capo XI conclusão 3 Ibidem livro IV capo li 4 Apudj J M Keynes A Tract on Monetary form pág 7 5 ApudJ Truslow Adams The Epic ofAmerica pág 400 Não consegui encontrar o original 61 A harmonia de interesses to Pressupõe uma sociedade de pequenos produtores e comer ciantes interessados na maximização da produção e da troca infinitamente móveis e adaptáveis e despreocupados com o pro blema da distribuição de riquezas Preencheramse substancial mente estas condições numa era em que a produção não envol via um alto grau de especialização nem um investimento de capital em equipamento fixo e em que a classe que podia estar mais interessada numa distribuição eqüitativa da renda do que em sua produção máxima era insignificante e sem influência Contudo por uma curiosa coincidência o ano que presenciou a publicação de A Riqueza das Nações também foi o ano em que Watt pôs para funcionar sua máquina a vapor Portanto no exa to momento em que a teoria do laissezfaire recebia sua exposi ção clássica suas premissas estavam para ser minadas por uma invenção que estava destinada a criar indústrias gigantescas imóveis e altamente especializadas e um grande e poderoso pro letariado mais interessado na distribuição do que na produção Uma vez que o capitalismo industrial e o sistema de classes tor naramse a estrutura reconhecida da sociedade a doutrina da harmonia de interesses adquiriu um novo significado e tornou se como logo veremos a ideologia de um grupo dominante in teressado em manter seu predomínio por intermédio da tentati va de identificar seus interesses com os da comunidade como um todo Essa transformação entretanto não teria sido possível e a doutrina não teria sobrevivido se não fosse por uma circuns tância A sobrevivência da crença na harmonia de interesses tornouse possível pela nunca igualada expansão da produção da população e da prosperidade que marcou os cem anos se guintes à publicação de A Riqueza das Nações e à invenção da máquina a vapor A expansão da prosperidade contribuiu para a popularidade da doutrina de três formas diferentes atenuou a 6 Veja o Capítulo 5 62 E H CARR competlçao por mercados entre produtores já que constante mente novos mercados tornavamse acessíveis adiou a questão das classes com sua insistência na importância primordial da distribuição eqüitativa ao estender a membros das classes me nos prósperas alguns beneficies da prosperidade geral e ao cri ar uma sensação de confiança no bemestar presente e futuro encorajou os homens a acreditarem que o mundo estava ordena do segundo um plano tão racional quanto a natural harmonia de interesses Foi o contínuo alargamento do campo da demanda que por meio século fez o capitalismo operar como se fora uma utopia liberal O pressuposto tácito dos mercados em infinita expansão foi o fundamento em que repousou a suposta harmo nia de interesses Como Mannheim aponta o controle de tráfe go é desnecessário enquanto o número de carros não excede a capacidade confortável das ruas Até a chegada desse momen to é fácil acreditarse numa natural harmonia de interesses en tre os usuários da rua O que era verdade sobre os indivíduos presumiuse que fosse igualmente verdade para as nações Assim como os indiví duos visando a seu próprio bem inconscientemente promovem o bem de toda a sociedade as nações servem a humanidade ao servirem a si próprias O comércio universal livre justificavase em termos de que o interesse econômico máximo de cada nação identificavase com o interesse econômico máximo do mundo inteiro Adam Smith que era mais um reformador prático do que um teórico puro realmente admitiu que os governos pudes sem ter de proteger certas indústrias no interesse da defesa na cional Mas tais hipóteses pareciam a ele e a seus seguidores triviais exceções à regra O laissezfaire como J S Mill argu menta deve ser a regra geral qualquer desvio exceto o requerido por um forte motivo é certamente um rnal Outros 7Nationalism A Study by a Group of Members of tbe Royal lnstitute of lnternational Affairs pág229 8 K Mannheim Mensch und Gesellschaft im Zeitalter de Umbaus pág 104 9 J S Mill PrincipIes oi Political Economy n Liv V capo XI 63 A harmonia de interesses pensadores deram à doutrina da harmonia de interesses nacio nais uma aplicação ainda mais ampla O verdadeiro interesse de uma nação observa um escritor do fim do século dezoito nunca esteve em oposição ao interesse geral da humanidade e jamais poderá ocorrer que filantropia e patriotismo imponham deveres inconsistentes a qualquer hornern T H Green o hegeliano inglês que temperou a doutrina de seu mestre com concessões ao liberalismo britânico do século dezenove sus tentava que nenhuma ação de um Estado em seu próprio inte resse que preencha esta idéia poderia estar em conflito com nenhum interesse ou direito verdadeiro da sociedade gerall1 É entretanto interessante notar que o duvidoso epíteto verdadeiro que nas citações do século dezoito está ligado aos interesses das nações foi transferido pelo século dezenove ao interesse da sociedade em geral Mazzini que encarna a filoso fia liberal do nacionalismo do século dezenove acreditava numa certa divisão de trabalho entre as nações Cada nação teria sua tarefa especial própria à qual suas aptidões específicas se adap tariam e o cumprimento dessa tarefa seria sua contribuição ao bemestar da humanidade Se todas as nações agissem segundo este espírito a harmonia internacional prevaleceria A mesma condição de expansibilidade aparentemente infinita que enco rajou a crença na harmonia de interesses econômicos tornou possível a crença na harmonia política de movimentos nacio nais rivais Uma das razões por que os contemporâneos de Mazzini acharam o nacionalismo uma coisa boa foi que havia poucos países reconhecidos e muito espaço para eles Numa época em que alemães tchecos polacos ucranianos húngaros e mais meia dúzia de grupos nacionais não estavam ainda em purrando uns aos outros sobre uma área de poucas centenas de milhas quadradas era comparativamente mais fácil acreditar que 10 Romilly Thollghts on lhe Influence oi lhe Freench Reoolsaion pág 5 11 T H Green Prinaples oi PoliticalObligation 166 64 E H CARR cada nação ao desenvolver seu nacionalismo próprio podia dar sua contribuição especial à harmonia de interesses internacio nal Muitos autores liberais continuaram a crer mesmo depois de 1918 que as nações ao desenvolverem seu nacionalismo próprio promoviam assim a causa do internacionalismo Wilson e muitos outros negociadores dos tratados de paz viram na au todeterminação nacional a chave da paz mundial Mais recente mente estadistas anglosaxões responsáveis têmse contentado ainda de tempos em tempos em ecoar provavelmente sem muita reflexão as antigas fórmulas de Mazzini o DARWINISMO NA POLÍTICA Quando o centenário de A Riqueza das Nações foi celebrado em 1876 já havia sintomas de um colapso iminente Nenhum país exceto a GrãBretanha era comercialmente poderoso o sufici ente para crer na harmonia internacional de interesses econômi cos A aceitação dos princípios do livre mercado fora da Grã Bretanha fora sempre parcial vacilante e de curta duração Os Estados Unidos rejeitaramnos desde o princípio Em torno de 1840 Friedrich List que passou muito tempo estudando o desen volvimento industrial dos Estados Unidos começou a pregar a uma audiência alemã a doutrina de que enquanto o livre comér cio era a política correta para uma nação industrialmente domi nante como a GrãBretanha somente o protecionismo poderia permitir às nações mais fracas romper o estrangulamento britâ nico As indústrias alemãs e americanas construídas por trás de tarifas protetoras logo estavam atacando seriamente o mono pólio industrial britânico mundial As colônias britânicas de além mar fizeram uso de sua autonomia fiscal recémconquistada para se protegerem contra as manufaturas da metrópole A pressão 12 O Sr Eden por exemplo em 1938 advogou uma cooperação entre nações em que cada qual possa desenvolverse e florescer e dar o melhor de sua contribuição especial à diver sidade da vida Anthony Eden Foreign Affairs pág 277 65 A harmonia de interesses da concorrência cresceu de todos os lados O nacionalismo co meçou a assumir um aspecto sinistro e a se degenerar em impe rialismo A filosofia de Hegel que identificou a realidade com um constante conflito de idéias estendeu sua influência Atrás de Hegel veio Marx que materializou o conflito hegeliano numa luta de classes de grupos de interesses econômicos e surgiram partidos da classe operária que firmemente recusavamse a crer na harmonia de interesses entre capital e trabalho Acima de tudo Darwin propôs e popularizou uma doutrina biológica da evolução através de uma perpétua luta pela sobrevivência e a eliminação dos inaptos Foi a doutrina da evolução que por um tempo permitiu à filosofia do laissezJaire entrar em acordo com as novas condi ções e a nova tendência do pensamento A livre concorrência sempre fora adorada como a deidade benevolente do sistema do laissezJaire O economista francês Bastiat numa obra significa tivamente intitulada Les Harmonies Économiques saudou a con corrência como a força humanitária que continuamente ar ranca o progresso das mãos do indivíduo para tornálo herança comum da grande família humanat Sob as forças do cresci mento da última metade do século dezenove percebeuse que a competição na esfera econômica implicava exatamente o que Darwin proclamou como a lei biológica da natureza a sobrevi vência do mais forte às expensas do mais fraco O pequeno pro dutor ou comerciante foi gradualmente sendo expulso do ne gócio por seus competidores de larga escala e esta circunstância era o que o progresso e o bemestar da comunidade como um todo exigiam LaissezJaire significava um campo aberto à explo ração e o botim ao mais forte A doutrina da harmonia de inte resses sofreu uma modificação quase imperceptível O bem da comunidade ou como o povo agora se inclinava a dizer da es pécie ainda era idêntico ao bem de seus membros individuais mas somente o dos indivíduos que eram competidores efetivos 13 Bastiat Les Harmonies É conomiques pág 355 66 E H CARR na luta pela sobrevivência A humanidade continuou sua mar cha de força largando seus fracos pelo caminho O desenvol vimento da espécie como dizia Marx e portanto o mais alto desenvolvimento do indivíduo só pode ser assegurado atra vés do processo histórico no qual indivíduos são sacrificadosr Assim era a doutrina da nova era de competição econômica in tensificada pregada pela escola de Herbert Spencer e comumente aceita na GrãBretanha nas décadas de setenta e oitenta do século passado O último discípulo francês de Adam Smith Yves Guyot provavelmente auxiliado pelo acidente de que a palavra francesa concurrence significa colaboração tanto quanto competição escreveu um trabalho intitulado La Morale de la Concurrence Entre os autores ingleses que aplicaram este princípio evolutivo à política internacional o mais popular foi Bagehot A conquista é o prêmio dado pela natureza aos caracteres nacionais que os costumes nacionais tornaram os mais aptos a vencer na guerra e em muitos aspectos materiais estes caracteres vitoriosos são os melhores caracteres realmente Os caracteres que efetivamente ven cem na guerra são os que devemos desejar que vençamtP Mais ou menos na mesma época um sociólogo russo defi niu política internacional como a arte de conduzir a luta pela existência entre organismos sociaist e em 1900 um destacado professor num livro outrora famoso expôs a doutrina em toda sua impiedosa nudez A estrada do progresso está coberta pelos destroços das nações há em toda parte restos das hecatombes das raças inferiores e das víti 14 Marx Tbeorien überdenMehrwert II 1 pág 309 15 Bagehot Pbysics and Politics 2a ed pág 215 O que significa materiais nesta passa gem Significará meramente relevantes Ou estará o autor consciente da desconfortável antítese entre material e moral 16 J Novicow La Politique lnternationale pág 242 67 A harmonia de interesses mas que não encontraram o caminho correto para a perfeição maior Entretanto esses povos mortos são em realidade as pedras sobre as quais a humanidade subiu à vida mais intelectual e profundamente emocionante de hoje Na Alemanha a mesma opinião foi proposta por Treitschke e H S Chamberlain A doutrina do progresso através da elimi nação das nações inaptas parecia um corolário justo da doutrina do progresso através da eliminação dos indivíduos inaptos e algo desta crença embora nem sempre abertamente admitido estava implícito no imperialismo do final do século dezenove No final do século dezenove como ressalta um historiador americano o problema básico das relações internacionais era o de quem iria destruir as vitimas A harmonia de interesses foi estabe lecida através do sacrifício de africanos e asiáticos inaptos Um ponto foi infelizmente passado por cima Por mais de cem anos a doutrina da harmonia de interesses proporcionou uma base racional para a moral O indivíduo havia sido levado a servir o interesse da comunidade na crença de que este interes se era o seu próprio A situação porém agora mudou No longo prazo o bem da comunidade e o bem do indivíduo permaneci am o mesmo Mas esta harmonia final era precedida por uma luta pela sobrevivência entre os indivíduos na qual não só o bem mas a própria existência do perdedor eram como um todo eliminados da cena A moral nessas condições não oferecia nenhum atrativo racional para possíveis perdedores e todo o sis tema ético foi construído sobre o sacrifício do irmão mais fraco Na prática quase todos os estados se levantaram contra a dou trina clássica e introduziram uma legislação social para prote ger o economicamente fraco contra o economicamente forte A doutrina porém resistiu Na década de setenta do século pas sado Dostoievsky que não tinha nenhum dos preconceitos de 17 Karl Pearson National Life from the Standpoint of 5 aence pág 64 18 W L Langer The Diplomary of Imperialism II pág 797 68 E H CARR um inglês ou de um economista fez Ivan Karamazov declarar que o preço da admissão à eterna harmonia era alto demais se incluísse o sofrimento de inocentes Em torno da mesma épo ca Winwood Reade causou uma sensação desconfortável na GrãBretanha com um livro chamado Tbe Marryrdom ofMan que atraiu a atenção da imensa fila de sofredores e abandonados arrastados pela teoria da evolução Nos anos noventa Huxley confessou em nome da ciência a existência de uma discrepân cia entre o processo cósmico e o processo érico e Balfour abordando o problema sob o ângulo da filosofia concluiu que a completa harmonia entre egoísmo e altruísmo entre a busca da mais aIta felicidade para si próprio e da mais alta felicidade para uma outra pessoa jamais pode ser garantida por um credo que se recusa a admitir que os atos realizados e o caráter for mado nesta vida possam fluir para outra e lá permitir uma re conciliação e um ajustamento entre os princípios conflitantes o que nem sempre é possível aqui20 Escutavase cada vez menos sobre as propriedades benéficas da livre concorrência Antes de 1914 embora a política de comércio livre internacional ainda fosse apoiada pelo eleitorado e pelos economistas britânicos o postulado ético que outrora formara a base da filosofia do laissez faire não mais atraía pelo menos em sua forma crua nenhum pensador sério Biológica ou economicamente só seria possível manter a doutrina da harmonia de interesses se fosse deixado de lado o interesse do fraco que devia ser encostado na parede ou se se apelasse para o próximo mundo para reajustar o equilíbrio deste mundo A HARMONIA INIERNAcoNAL Temse dado atenção à forma curiosa pela qual doutrinas já obsoletas ou obsolescentes antes da guerra de 1914 foram re 19 Huxley R01JJanes Lecture 1893 apud Eiolution and Etbics pág 8I zo Balfour Foundations of Belief pág 27 69 A harmonia de interesses introduzidas no período do pósguerra principalmente por ins piração americana no campo específico das relações internaci onais Isto foi claramente verdade com relação à doutrina do laissezfaire da harmonia de interesses Nos Estados Unidos a história do laissezfaire apresenta características especiais Du rante o século dezenove e mesmo até o vinte os Estados Uni dos embora utilizassem proteção tarifária contra a concorrên cia européia desfrutaram da vantagem de um mercado interno em expansão de potencialidades aparentemente ilimitadas Na GrãBretanha que continuou até 1914 a dominar o comércio mundial mas que estava cada vez mais consciente das pressões e tensões internas J S Mill e outros economistas posteriores se apegaram firmemente ao livre comércio internacional mas ad mitiam cada vez mais exceções à ortodoxia do laissezfaire no plano interno Nos Estados Unidos Carey e seus sucessores jus tificaram as tarifas protecionistas mas em todos os outros as pectos mantiveram os imutáveis princípios do laissevfaire Na Europa após 1919 a economia planejada que repousa no pres suposto de que não existe nenhuma harmonia natural de inte resses e que os interesses devem ser harmonizados artificial mente pela ação estatal tornouse a prática e mesmo a teoria de quase todo estado Nos Estados Unidos a persistência de um mercado interno em expansão adiou esse desenvolvimento até a crise iniciada em 1929 A natural harmonia de interesses permaneceu como parte integrante da visão americana da vida e neste e em outros aspectos as teorias sobre política internacio nal correntes foram profundamente imbuídas da tradição ameri cana Além disso houve uma razão especial para a pronta acei tação da doutrina no campo internacional Em assuntos internos é claramente função do estado criar harmonia se não existe har monia natural Em política internacional não há nenhum poder organizado encarregado da tarefa de criar a harmonia e a tenta ção de presumir uma harmonia natural tornase portanto parti cularmente forte Mas isto não é desculpa para o fato de evitar a 70 E H CARR questão Fazer da harmonização de interesses o objetivo da ação política não é o mesmo que postular que a natural harmonia de interesses existe Foi este último postulado que causou tanta confusão no pensamento internacional o INTERESSE COMUM NA PAZ Politicamente a doutrina da identidade de interesses em geral tomou a forma de um pressuposto de que as nações possuem um interesse idêntico na paz e que toda nação que deseje per turbar a paz é portanto irracional e imoral Esta visão carrega marcas inconfundíveis de sua origem anglosaxônica Depois de 1918 foi fácil convencer a parte da humanidade que vive em países de língua inglesa que a guerra não beneficia ninguém O argumento não pareceu convencer particularmente aos alemães que se beneficiaram bastante das guerras de 1866 e 1870 e que atribuíam seus mais recentes sofrimentos não à guerra de 1914 mas ao fato de a terem perdido Não parecia convencer os itali anos que não culparam a guerra e sim a traição dos aliados que os enganaram no acordo de paz Não convencia também os polacos e tchecoeslovacos que longe de deplorarem a guerra devem sua existência nacional a ela e nem os franceses que não poderiam queixarse sem reservas de uma guerra que restaurou a AlsáciaLorena à França Não convencia também povos de outras nacionalidades que se lembravam de guerras vantajosas conduzidas pela GrãBretanha e pelos Estados Unidos no pas sado Mas esses povos felizmente tinham pouca influência na formação das atuais teorias das relações internacionais que ema naram quase exclusivamente dos países de fala inglesa Autores 21 A confusão entre os dois foi admiravelmente ilustrada por uma intervenção do Sr Attlee na Câmara dos Comuns Foi precisamente o objetivo do estabelecimento da Liga das Nações que a preservação da paz fosse um interesse comum do mundo House ofCommons December21 1937 Oiftcial Report col 1811 O Sr Attlee deixou de distinguir entre a proposta de que uma natural comunhão de interesses existisse e a de que a Liga das Nações foi criada para estabelecêla A harmonia de interesses 71 britânicos e americanos continuaram a presumir que a inutilida de da guerra havia sido irrefutavelmente demonstrada pela ex periência de 191418 e que a captação intelectual deste fato representava tudo o que era necessário para induzir as nações a manterem a paz no futuro e eles ficaram sinceramente tão sur presos quanto desapontados pelo fato de outros países não com partilharem dessa opinião A confusão piorou devido à presteza de outros países em imitarem o mundo anglosaxão repetindo seus slogans Nos quin ze anos após a Primeira Guerra Mundial todas as grandes po tências exceto talvez a Itália repetidamente bajularam a dou trina ao declararem a paz como um dos objetivos principais de suas políticas Mas como Lenin observara há muito tempo a paz por si só é um fim sem sentido Absolutamente todos são a favor da paz em geral escreveu em 1915 inclusive Kitchener offre Hindenburg e Nicolau o Sanguinário pois todos eles de sejam acabar com a guerra23 O interesse comum na paz masca ra o fato de que algumas nações desejam manter o status quo sem terem de lutar por ele e outras mudar o status quo seln precisa rem lutar para isso A declaração de que é do interesse do mun 22 A paz tem de prevalecer tem de vir antes de tudo Briand League of Nations Ninth Assemby pág 83 A manutenção da paz é o primeiro objetivo da política externa britâ nica Eden League of Nations Sixteenth Assembfy pág 106 A paz é nosso tesouro mais querido Hitler num discurso ao Reichstag alemão em 30 de janeiro de 1937 reportado no The Times February I 1937 O objetivo principal da política internacional da União Soviética é a preservação da paz Chichern in The Soviet Union and Peace 1929 pág 249 O objetivo do Japão a despeito da propaganda em contrário é a paz Matsuoka League ofnations Special Assemby 193233 III pág 73 A escassez dos pronunciamentos italianos em favor da paz era provavelmente explicada pela baixa reputação das tropas italianas como guerreiras Mussolini temia que qualquer expressão enfática de preferência pela paz fosse tomada como uma admissão de que a Itália não tinha estômago para guerra 23 Lenin Collected Works trad ingl XVIII pág 264 Compare com o dito de Spenser Wilkinson Não é a paz mas a preponderância que é em cada caso O objetivo real Não se pode repetir freqüentemente que a paz nunca é o objetivo da política não se pode definir a paz exceto fazendo referência à guerra que é um meio jamais um fim Government and the War pág 121 2 Quando um santo se queixa de que as pessoas desconhecem as coisas pertencentes à sua paz o que ele realmente quer dizer é que elas não se preocupam suficientemente com as coisas relativas à paz dele The NoteBooks of Samuel Butier ed FestingJones págs 211 12 Isto parece ser verdade quanto aos santos modernos as potências satisfeitas 72 E H CARR do como um todo que o status quo deva ser mantido ou que deva ser mudado seria contrária aos fatos A declaração de que é do interesse do mundo como um todo que a conclusão seja finalmente alcançada de manutenção ou mudança deva ser alcançada por meios pacíficos mereceria aprovação geral mas parece um lugarcomum sem nenhum sentido O pressuposto utópico de que existe um mundo interessado na paz que é identificável ao interesse individual de cada nação ajudou os políticos e escritores políticos de toda parte a fugirem do fato intragável da existência de divergências fundamentais de inte resses entre as nações desejosas de manterem o status quo e as nações desejosas de mudálo Uma peculiar combinação de lu garcomum e falsidade tornouse então endêmica nos pronun ciamentos de estadistas acerca de problemas internacionais Em toda área do Danúbio disse um PrimeiroMinistro da Tchecoslováquia ninguém realmente deseja conflitos e inve jas Os diversos países desejam manter sua independência no entanto estão prontos para quaisquer medidas cooperativas Es tou me referindo especialmente à Pequena Entente Hungria e Bulgária Literalmente as palavras podem passar como verda de Entretanto os conflitos e invejas que ninguém desejava eram um aspecto notório da política do Danúbio após 1919 e a coo peração para a qual estavam prontos não era possível de ser obtida O fato da existência de interesses divergentes foi disfar çado e falsificado pelo lugarcomum de um desejo geral de evi tar o conflito 25 Por vezes sustentase não meramente que todas as nações têm um interesse igual em preferirem a paz à guerra o que é em certo sentido verdade mas que a guerra jamais pode em nenhuma circunstância trazer ao vitorioso vantagens comparáveis ao seu custo A última opinião não parece ser verdade quanto ao passado embora seja possível argüir como faz Bertrand Russell em Which ll7ry Pence que é verdade quanto à guerra moderna Se for aceita esta opinião leva é claro ao pacifismo absoluto pois não há razão para supor que seja mais verdadeira para guerras defensivas do que para ofensivas supondo que seja válida a distinção entre elas 26 Dnijy Telegraph August 26 1938 73 A harmonia de interesses A HARMONIA ECONÔMICA INTERNAOONAL Nas relações econômicas estabeleceuse o pressuposto da har monia geral de interesses com uma segurança ainda maior pois aqui temos um reflexo direto da doutrina cardeal do laissezfaire na economia e é aqui que podemos ver mais claramente o dile ma que resultou da doutrina Quando o liberal do século dezenove falou sobre o maior bem para o maior número tacita mente presumiu que o bem da minoria devesse ser sacrificado em prol do da maioria Este princípio se aplicou igualmente às relações econômicas internacionais Se a Rússia ou a Itália por exemplo não fossem fortes o suficiente para construírem indús trias sem a proteção de tarifas então o liberal do laissezfaire teria argumentado elas deveriam contentarse em importar pro dutos manufaturados alemães e britânicos e suprirem os merca dos alemães e britânicos de trigo e laranjas Se alguém objetasse que es ta política condenaria Rússia e I tália a permanecerem potências de segunda classe econômica e militarmente depen dentes de seus vizinhos o liberal do laissezfaire teria respondi do que este era o desígnio da providência e que isto era o que a harmonia geral de interesses exigia O moderno internacionalista utópico não desfruta de nenhuma das vantagens nem possui a dureza do liberal do século dezenove O sucesso material dos países mais fracos em construírem industrias protegidas assim como o novo espírito do internacionalismo impediu que ele argüísse que a harmonia de interesses depende do sacrifício das nações economicamente inaptas Entretanto o abandono desta premissa destrói toda a base da doutrina que ele herdou e ele foi levado a crer que podese atingir o bem comum sem qualquer sacrifício do bem de nenhum membro individual da comunida de Todo conflito internacional é portanto desnecessário e ilu sório Basta descobrir o bem comum que é ao mesmo tempo o maior bem para todos os conflitan tes e somente a loucura dos estadistas se interpõe à sua descoberta O utópico seguro de sua percepção deste bem comum arrogouse o monopólio da 74 E H CARR sabedoria Todos os estadistas do mundo eram culpados de in crível cegueira quanto ao interesse daqueles que deveriam re presentar Tal era o quadro do cenário internacional apresenta do com toda a seriedade por autores britânicos e americanos inclusive muitos economistas É por esta razão que encontramos na época moderna uma extraordinária divergência entre as teorias dos especialistas eco nômicos e a prática dos responsáveis pelas políticas econômi cas de seus respectivos países A análise mostrará que esta di vergência deriva de um fato simples O especialista econômico dominado na maioria das vezes pela doutrina do laissetrfaire considera o interesse econômico hipotético do mundo como um todo e se contenta em presumir que é idêntico ao interesse de cada país individualmente O político visa ao interesse concre to de seu pais e presume se é que presume algo que o interes se do mundo como um todo é idêntico ao seu Quase todo pro nunciamento de todas as conferências econômicas internacionais reunidas entre as duas guerras mundiais foram viciados pelo pressuposto de que havia alguma solução ou plano que atra vés de um judicioso equilíbrio de interesses seria igualmente favorável a todos e não prejudicial a ninguém Qualquer política estritamente nacionalista declarava a Conferência da Liga de Especialistas Econômicos em 1927 é prejudicial não ape nas às nações que a praticam mas também às outras e portanto vai contra seu próprio fim Portanto se se desejar que o novo estado de espírito revelado pela Conferência leve rapidamente a resultados prá ticos qualquer programa de execução tem de incluir como um fator essencial o princípio da ação paralela e harmônica das diferentes na ções Cada país saberá então que as concessões que se pedem que faça serão contrabalançadas por sacrifícios correspondentes por parte dos outros países Cada país estará apto a aceitar as medidas propos tas não meramente levando em conta sua posição individual mas tam bém porque está interessado no sucesso do plano geral estabelecido pela Conferência 27 LeagJle 0 Nations C E L 44 pág 21 A harmonia de interesses 75 A seqüela da Conferência foi o completo descaso quanto a todas as recomendações unanimemente feitas por ela e se não nos contentarmos em aceitar a explicação simplista de que os principais estadistas do mundo são criminosos ou loucos pode mos começar a suspeitar da validade de seu pressuposto inicial Parece também leviano supor que o nacionalismo econômico seja necessariamente prejudicial aos estados que o pratiquem No século dezenove a Alemanha e os Estados Unidos ao visarem a uma política estritamente nacionalistas colocaramse em posição de desafiarem o virtual monopólio britânico no comér cio mundial Nenhuma conferência de especialistas econômicos reunida em 1880 poderia ter desenvolvido um plano geral para ação paralela e harmônica que pudesse coordenar as rivali dades econômicas da época de uma forma igualmente vantajosa para GrãBretanha Alemanha e Estados Unidos Foi não menos presunçoso supor que uma conferência reunida em 1927 pudes se coordenar as rivalidades econômicas do período posterior através de um plano benéfico aos interesses de todos Mesmo a crise econômica de 193033 não conseguiu acordar os econo mistas para a natureza do problema que tinham de enfrentar Os especialistas que prepararam o Projeto Anotado de Agenda para a Conferência Econômica Mundial de 1933 condenaram a adoção universal de ideais de autosuficiência nacional que ine gavelmente cortam de um lado ao outro as linhas do desenvol vimento econôrnicot Eles aparentemente não pararam para refletir que as chamadas linhas do desenvolvimento econômi co que podem ser benéficas a alguns países e mesmo ao mun do como um todo poderiam ser inevitavelmente prejudiciais a outros países que estivessem utilizando as armas do nacionalis mo econômico em legítima defesa O relatório Van Zeeland de janeiro de 1938 começava por perguntar e responder afirmati vamente se os métodos que tomados como um todo formam o sistema de comércio internacional são fundamentalmente 28 Leogue of Nations C 48 M 18 1933 II pág 6 76 E H CARR preferíveis às tendências de autosuficiência Entretanto toda potência em algum período de sua história e como regra por períodos prolongados fez uso das tendências de autosufi ciência É difícil crer que exista algum sentido absoluto no qual as tendências de autosuficiência sejam sempre prejudiciais àqueles que as buscam Mesmo se fosse justificado como o me nos ruim dentre dois males a premissa inicial do relatório de Van Zeeland não seria válida Mas o pior ainda estava por vir Devemos dispor as coisas de tal forma continuava Van Zeeland que o novo sistema ofereça a todos os participantes vantagens maiores do que as da posição em que se encoritramP Isto é utopia econômica em sua forma mais tola possível O re latório como os relatórios de 1927 e 1933 presumia a existên cia de um princípio fundamental de política econômica cuja aplicação seria igualmente benéfica a todos os Estados e preju dicial a nenhum deles e por esta razão permaneceu como seus predecessores letra morta A teoria econômica como oponente da prática econômica foi tão poderosamente dominada nos anos entre as duas guer ras mundiais pela suposta harmonia de interesses que é difícil encontrar nas inúmeras discussões internacionais do período alguma exposição clara do problema real que afligia os estadis tas do mundo Provavelmente a mais franca declaração foi uma do Ministro das Relações Exteriores iugoslavo na sessão da Comissão para a União Européia em janeiro de 1931 Arthur Henderson em nome da GrãBretanha seguindo o delegado holandês Dr Colijn pedira por redução geral de tarifas que deverá por sua natureza trazer benefícios a todos ao permitir a expansão da produção e o intercâmbio mundial de riquezas através dos quais poderseá aumentar a prosperidade comum de todos30 Marinkovitch que falou em seguida concluiu a 2 Report on the Possibiliry ofObtaining a General Redllction ofthe Obstacles to lntemational Trade Cmd 5648 30 Leaglle ofNations C 144 M 45 1931 VII pág 30 77 A harmonia de interesses respeito do fracasso em levar a cabo as recomendações da Con ferência de 1927 que houve razões extremamente importantes pelas quais os governos não puderam aplicar essas resoluções E continuou O fato é que além das considerações econômicas existem também considerações políticas e sociais A velha escola de economistas das coisas se ajeitarão por si mesmas argumentou que se nada fosse fei to e se os acontecimentos pudessem seguir seu curso natural de um ponto de vista econômico o equilíbrio econômico surgiria por si só Isto provavelmente é verdade não pretendo discutir este ponto Mas como esse equilíbrio surgiria Às custas do mais fraco Agora como os senhores não desconhecem por mais de setenta anos tem havido uma reação crescente e poderosa contra esta teoria econômica Todos os partidos socialistas da Europa e do mundo são a expressão da opo sição a este modo de encarar os problemas econômicos Disseramnos que precisamos diminuir as barreiras alfandegárias e mesmo aboliIas No que concerne aos Estados agrícolas da Europa se puderem manter as promessas feitas em 1927 admitindose que as declarações de 1927 continham promessas e se puderem levar a cabo essa política talvez possamos nos manter imunes à concorrência de alémmar em termos de produtos agrícolas Mas ao mesmo tem po teríamos de criar na Polônia Romênia e Iugoslávia as mesmas con dições existentes no Canadá e na Argentina onde vastos territórios são habitados por uma população escassa e onde se empregam má quinas e outras aparelhagens Não podemos sacrificar nossos povos atirando neles mas eles seriam mortos pela fome o que daria no mesmo Estou certo de que a chave a que o Sr Colijn se referiu não existe A vida econômica e social é complicada demais para permitir uma solu ção através de uma única fórmula ela exige soluções complicadas Deveremos levar em conta as muitas variedades de condições geográ ficas políticas sociais e outras que existam 31 Leaglle oI Nations C 144 M 451931 VII pág 31 78 E H CARR Marinkovitch continuou combatendo a teoria da harmonia de interesses a longo prazo No ano passado quando estava nas montanhas da Iugoslávia ouvi que os habitantes de um pequeno vilarejo das montanhas não tendo milho ou trigo para sobreviverem estavam simplesmente derrubando um bosque que pertencia a eles e que estavam vivendo com o que ganhavam vendendo a madeira Eu fui ao vilarejo reuni alguns dos principais habitantes e tentei argumentar com eles da mesma forma que os grandes países industriais argumentam conosco Disse a eles Vocês têm muito bom senso Vocês percebem que sua floresta está se tornando cada vez menor O que farão quando tiverem derrubado a última árvore Eles responderam Excelência este é um ponto que nos preocupa mas por outro lado o que faríamos agora se parásse mos de cortar nossas árvores Posso garantirlhes que os países agrícolas estão exatamente na mesma situação Os senhores os ameaçam com futuros de sastres mas eles já se encontram vivendo a agonia do desas tre32 Mais um exemplo de franqueza incomum pode ser registra do Falando em setembro de 1937 através de uma das cadeias de radiodifusão dos Estados Unidos o presidente da República da Colômbia disse Em nenhum campo da atividade humana estão os beneficies da crise tão claros quanto nas relações entre as nações especialmente das na ções americanas Se é verdade que as relações econômicas tornaramse exigentes e por vezes cruéis também é verdade que elas felizmente tornaramse mais democráticas A crise libertou muitos países que até então tinham estado subordina dos ao duplo imperialismo mental e financeiro das nações que contro lavam as políticas e os mercados internacionais Muitas nações apren deram a confiar menos na cordialidade internacional e a buscar uma 32 Ibidem pág 32 79 A harmonia de interesses vida autônoma cheia de obstáculos iniciais mas que entretanto cria ram fortes atrativos dentro de um curto período Quando os sistemas arbitrários que prevalecem hoje em dia começa rem a ser relaxados haverá um comércio internacional menos contro lado e haverá também um maior número de nações economicamente fortes A cooperação econômica de hoje é uma coisa muito diferente e mais nobre do que a antiga cooperação baseada na conveniência dos países industriais e dos banqueiros que tutelavam o mundo A certeza adqui rida por muitas pequenas nações de que podem subsistir e prosperar sem subordinarem sua conduta e suas atividades a interesses estrangei ros começou a introduzir uma maior franqueza e igualdade nas rela ções entre as nações modernas É verdade que a crise destroçou muitos princípios elevados e nobres de nossa civilização mas também é verdade que com este retorno a um tipo de luta primitiva pela sobrevivência povos se libertaram de muitas ficções e hipocrisias que haviam aceitado na crença de que esta riam garantindo seu bemestar o fundamento da liberdade econômica internacional repousa no re conhecimento de que quando as nações fortes se colocam na defensi va elas agem exatamente como as fracas e que todas têm um igual direito de se defenderem com seus próprios recursosP As declarações feitas em nome da República da Colômbia foram talvez exageradas Mas tanto a declaração iugoslava quan to a colombiana foram desafios poderosos à doutrina da har monia de interesses É falacioso supor que porque a Grã Bretanha e os Estados Unidos tenham interesse em remover as barreiras comerciais isto também seja do interesse da Iugoslá via e da Colômbia O comércio internacional pode tornarse me nos dinâmico Os interesses econômicos da Europa ou do mun 33 Discurso difundido pelo Columbia Broadcasting System EUA em 19 de setembro de 1937 e publicado em Talks outubro de 1937 80 E H CARR do em geral podem sofrer perdas Mas Iugoslávia e Colômbia estarão numa situação melhor do que estariam sob um regime de prosperidade européia ou mundial que os reduzissem à po a sição de satélites O Dr Schacht33 falaria um pouco mais tar de sobre os fanáticos adeptos da política das nações em posi ção mais vantajosa no exterior que pela abundância de suas riquezas não conseguem entender que uma nação pobre tenha apesar de tudo a coragem de viver sob suas próprias leis ao invés de sofrer sob as prescrições do que deva fazer O laisscz faire tanto nas relações comerciais internacionais quanto nas entre capital e trabalho é o paraíso do economicamente forte O controle estatal seja sob a forma de legislação protetora ou de tarifas protecionistas é a arma de legítima defesa invocada pelo economicamente fraco O choque de interesses é real e ine vitável e a natureza do problema é totalmente distorcida por uma tentativa de esconder isto A HARMONL4 QUEBRADA Devemos portanto rejeitar como inadequada e errônea a tenta tiva de basear a moral internacional numa pretensa harmonia de interesses que identifica o interesse da totalidade da comuni dade das nações com o interesse de cada membro individual dela No século dezenove esta tentativa encontrou amplo su cesso graças à economia em contínua expansão em que foi fei ta O período foi de progressiva prosperidade pontuado apenas por reveses menores A estrutura econômica internacional apre sentava considerável semelhança com a estrutura da economia interna dos Estados Unidos Qualquer pressão podia ser pron tamente aliviada pela expansão para territórios até então deso cupados ou inexplorados e havia uma oferta abundante de mão 33 Hjalrnar Schacht foi ministro das finanças de Hitler nota do editor 34 Discurso ao Conselho Econômico da Academia Alemã em 29 de novembro de 1938 81 A harmonia de interesses deobra barata de países atrasados que não haviam ainda atin gido o nível de organização econômica e política da Europa Indivíduos empreendedores podiam resolver os problemas eco nômicos individuais pela migração e as nações empreendedoras pela colonização Mercados em expansão produziam uma popu lação em expansão e a população por sua vez reagia sobre os mercados Os que foram deixados para trás na corrida podiam de modo até compreensível serem vistos como inaptos Uma harmonia de interesses entre os aptos baseada na empresa indi vidual e na livre concorrência se aproximava suficientemente da realidade para formar uma sólida base para a teoria da época Com alguma dificuldade a ilusão se manteve viva até 1914 Mes mo a prosperidade britânica embora seus fundamentos estives sem ameaçados pela concorrência alemã e americana continua va a se sustentar O ano de 1913 foi um ano recorde para o comércio britânico Podese colocar a transição entre a aparente harmonia e o visível choque de interesses em torno da virada do século Bas tante apropriadamente essa transição encontrou sua primeira expressão nas políticas coloniais Do ponto de vista britânico associouse primeiramente aos acontecimentos na África do Sul Churchill data o começo desses tempos violentos a partir do Jameson Raid35 36 No norte da África e no Extremo Oriente houve uma correria das potências européias para assegurar os poucos locais interessantes que permaneciam vagos O ponto de tensão principal a emigração de europeus para a América assumiu dimensões nunca vistas Na própria Europa o anti semitismo um sintoma sernpre reincidente de inquietação eco 35 Winston Churchill World Crisis pág 26 36 Jameson Raid foi um episódio ligado à guerra dos Boers Em dezembro de 1895 L Storr Jarneson administrador da Companhia Britânica da Africa do Sul marchou com uma força de 470 homens para derrubar o governo de Paul Krüger no Transvaal O plano falhou e a força foi capturada Como conseqüência Cecil Rhodes renunciou na Colônia do Cabo e Joseph Chamberlain Secretário de Colônias foi exonerado De 19048Jameson governou a Colônia do Cabo N do Trad 82 E H CARR nômica reapareceu após um longo intervalo na Rússia Ale manha e França Na GrãBretanha a agitação contra a irrestrita imigração estrangeira começou na década de 1890 e a primeira lei controlando a imigração foi aprovada em 1905 A Primeira Guerra Mundial que se originou dessa tensão crescente agravoua dez vezes mais ao intensificar suas causas fundamentais Nos países beligerantes e neutros da Europa Ásia e América a produção industrial e agrícola foi em toda parte artificialmente estimulada Após a guerra todos os países pas saram a lutar para manter sua produção em expansão e uma cres cente e inflamada consciência nacional para justificar a luta era invocada Uma das razões para o caráter vingativo sem prece dentes dos tratados de paz particularmente de suas cláusulas econômicas foi o fato de que os homens práticos não mais acre ditavam como faziam cinqüenta ou cem anos antes numa subjacente harmonia de interesses entre vencedores e vencidos O objetivo agora era o de eliminar um concorrente cujo renascimento da prosperidade poderia constituirse numa amea ça Na Europa a luta foi intensificada pela criação de novos Estados e de novas fronteiras econômicas Na Ásia a Índia e a China construíram grandes indústrias para se tornarem inde pendentes das importações provenientes da Europa O Japão tornouse um exportador de têxteis e outras mercadorias bara tas que combatiam com preços menores os manufaturados eu ropeus no mercado mundial Mais importante que tudo não ha via mais espaços abertos em parte alguma aguardando exploração e desenvolvimento baratos e rendosos As amplas ave nidas de migração que haviam aliviado as pressões econômicas do período do préguerra haviam sido fechadas e no lugar do fluxo natural de migração surgiu o problema dos refugiados ex 37 As mesmas condições encorajaram o crescimento do sionismo Este como a Comissão Real para a Palestina de 1937 ressaltava que no seu lado negativo é um credo de escape Cmd 5479 pág 13 83 A harmonia de interesses pulsos pela força O complexo fenômeno conhecido como naci onalismo econômico passou a dominar o mundo O caráter críti co desse choque de interesses tornouse óbvio para todos exceto para os utópicos contumazes que dominavam o pensamento eco nômico nos países de língua inglesa Revelavase a inconsistên cia do belo porém falso lugarcomum do século dezenove de que ninguém se beneficia com o que prejudica o próximo O pressuposto básico do pensamento utópico ruía em pedaços O que se nos defronta na política internacional de hoje é portanto nada menos do que a completa falência da concepção de moral que dominou o pensamento político e econômico du rante um século e meio Internacionalmente não é mais possí vel deduzir a virtude através do raciocínio correto porque não se pode mais seriamente crer que todo estado ao buscar o maior bem para o mundo inteiro esteja visando ao maior bem para seus próprios cidadãos e viceversa A síntese da moral e da razão pelo menos sob a forma crua do liberalismo do século dezenove é insustentável O real significado da atual crise in ternacional é o colapso de toda a estrutura utópica baseada no conceito da harmonia de interesses A geração atual terá de re construir a partir das bases Antes que se possa fazer isto antes que possamos determinar o que pode ser salvo das ruínas deve mos examinar as falhas na estrutura que a levaram ao colapso e faremos isto de forma melhor analisando a crítica realista aos pressupostos da corrente utópica 38 A existência de refugiados é um sintoma do desaparecimento do liberalismo econômico e político Os refugiados são um subproduto do isolacionismo econômico que praticamen te acabou com a migração livre O Hope Simpson Rejugees PreJiminary Report oJ a SU1vey pág 193 NEUTROGENA ULTRA SHEER DRY TOUCH SUNBLOCK BROAD SPECTRUM SPF 70 PRETECTS AGAINST UVAUVB SUN DAMAGE LIGHTWEIGHT OILFREE FORMULA FOR ALL SKIN TYPES WATER RESISTANT 80 MINUTES PO BOX 2000 NEW BRUNSWICK NJ 089032000 USA 18009564623 8 FL OZ 118mL NET WT 4 OZ 113g NEUTROGENA ULTRA SHEER and DRY TOUCH are registered trademarks of Johnson Johnson Distributed by Johnson Johnson CONSUMER INC Skillman NJ 08558 MADE IN USA 2 60503 03612 02 7152249XR08IPS0188 V5b ND5M113 CAPÍTULO V A CRÍTICA REALISTA OsFUNDAMENTOS DO REAUSMO POR RAZÕES expostas em capítulo anterior o realismo entra em cena muito após a utopia e como forma de reação contra ela A tese de que a justiça é o direito do mais forte era com efeito familiar no mundo helênico Mas jamais representou nada além do que protesto de uma minoria sem influência atônita pela dis crepância entre a teoria política e a prática política Durante a supremacia do Império Romano e mais tarde da Igreja Católica o problema dificilmente poderia ser levantado pois o bem polí tico primeiramente do Império depois da Igreja podia ser visto como idêntico ao bem moral Foi somente com a quebra do sis tema medieval que a divergência entre teoria e prática políticas tornouse aguda e desafiadora Maquiavel foi o primeiro impor tante realista político O ponto de partida de Maquiavel é uma revolta contra a utopia do pensamento político da época Sendo minha intenção a de escrever algo que seja útil a quem o ler pareceme mais apropriado procurar a verdade real do que a imaginação pois muitos descreveram repúblicas e prin cipados que de fato jamais foram vistos ou conhecidos porque como se vive está tão distante de como se deveria viver que aquele que renega o que foi feito pelo que deveria ter sido feito cedo defronta sua ruína em lugar de sua preservação Os três princípios essenciais implícitos na doutrina de Maquiavel são as pedras fundamentais da filosofia realista Em primeiro lugar a história é uma seqüência de causa e efeito cujo 86 E H CARR curso se pode analisar e entender através do esforço intelectual porém não como os utópicos acreditam dirigida pela imagi nação Em segundo lugar a teoria não cria como presumem os utópicos a prática mas sim a prática é quem cria a teoria Nas palavras de Maquiavel bons conselhos venham de onde vie rem nascem da sabedoria do príncipe e não a sabedoria do prín cipe dos bons conselhos Em terceiro lugar a política não é como pretendem os utópicos uma função da ética mas sim a ética o é da política Os homens mantémse honestos pela co ação Maquiavel reconheceu a importância da moral mas pen sava que não poderia existir nenhuma moral efetiva onde não houvesse uma autoridade efetiva A moral é produto do poder O extraordinário vigor e a vitalidade do desafio de Maquiavel à ortodoxia podem ser atestados pelo fato de que mais de quatro séculos depois a forma mais eficaz de desacre ditar um adversário político ainda é rotulálo de discípulo de MaquiaveF Bacon foi um dos primeiros a elogiálo por dizer abertamente e sem hipocrisia o que os homens têm o hábito de fazer e não o que deveriam fazer Deste então nenhum pen sador político pôde mais ignorálo Na França Bodin na Ingla terra Hobbes e nos PaísesBaixos Spinoza dedicaramse a bus car um meiotermo entre a nova doutrina e a concepção de lei natural como supremo padrão ético Mas todos os três eram em substância realistas e a era de Newton pela primeira vez 1 Maquiavel Tbe Prince caps 15 e 23 trad ingl Everyrnans Library págs 121 193 2 Dois curiosos exemplos recentes podem ser citados No capítulo sobre a revolução nazista do SlIrvey of lnternational Affairs o Professor Toynbee declara que o Nacional Socialismo é a realização dos ideais formulados por Maquiavel e reitera esta opinião em duas passagens posteriores de considerável extensão no mesmo capitulo SlIrvey of InternationalAffairs 1934 págs 111 1179 1268 No julgamento de Zinoviev Kamenev e outros em agosto de 1936 em Moscou o Promotor Público Vyshinsky citou uma passagem dos escritos de Kamenev em que Maquiavel era elogiado como um mestre do aforismo político e um brilhante dialético e acusou Kamenev de ter adotado as regras de Maquiavel e desenvolvidoas até o mais extremo ponto de inescrupulosidade e imo ralidade The Case oftbe TrotseyiteZinooieoite Centre págs 1389 3 Bacon On tbe Aduancement of Learning VII capo 2 A crítica realista 87 concebeu a possibilidade de uma ciência exata da política A obra de Bodin e Hobbes escreve o Professor Laski foi a de separar ética de política e completar por meios teóricos a di visão que Maquiavel havia realizado em termos práticos An tes que os nomes de justo e injusto possam ser atribuídos dis se Hobbes tem de haver algum poder coercitivo6 Spinoza acreditava que os estadistas práticos haviam contribuído mais para o entendimento da política que os homens da teoria e acima de tudo do que os teólogos pois eles se dedicaram à escola da experiência e nunca ensinaram nada que não se ligas se a nossas necessidades práticas Numa antecipação de Hegel Spinoza declara que todo homem faz o que faz de acordo com as leis de sua natureza e com o mais alto direito da natureza O caminho está então aberto para o determinismo e a ética se torna em última análise o estudo da realidade O moderno realismo difere contudo num importante as pecto daquele dos séculos dezesseis e dezessete Tanto a uto pia quanto o realismo aceitaram e incorporaram às suas filoso fias a crença no progresso do século dezoito com o curioso e um tanto paradoxal resultado de que o realismo tornouse apa rentemente mais progressista do que o ideário utópico A uto pia enxertou sua crença no progresso na sua crença num padrão ético absoluto que assim continuou por hipótese estática O realismo não possuindo tal âncora tornouse cada vez mais di nâmico e relativisado O progresso tornouse parte da mais pro funda essência do processo histórico e a humanidade se movia adiante para um objetivo que permanecia indefinido ou defini do diferentemente por diferentes filósofos A escola histórica 4 O esquema de Hobbes não houve na teoria lugar para nenhuma força ou princípio além das leis do movimento descobertas no começo Houve meramente casos complexos de causação mecânica Sabine History oj Political Thought pág 458 s Introdução de A Defense oj Liberry against Tyrants Vindiciae contra Tyrannos ed Laski pág45 6 Hobbes Leviathan capo Xv 7 Spinoza Tractatus Politiars I págs 23 8 ibidem Introdução 88 E H CARR dos realistas teve seu lar na Alemanha e seu desenvolvimento foi traçado através dos grandes nomes de Hegel e Marx Mas nenhum país da Europa ocidental e nenhum ramo do pensa mento ficaram imunes à sua influência em meados e fins do sé culo dezenove e esse desenvolvimento embora tenha libertado o realismo da coloração pessimista que lhe foi conferida por pen sadores como Maquiavel e Hobbes realçou fortemente seu ca ráter determinista A idéia de causalidade na história é tão velha quanto a pró pria história Entretanto uma vez que prevaleceu a crença de que os assuntos humanos estavam sujeitos à contínua supervi são e ocasional intervenção de uma Providência Divina não era de se esperar que alguma filosofia da história baseada numa relação regular entre causa e efeito pudesse evoluir A substi tuição da Providência Divina pela razão permitiu a Hegel criar pela primeira vez uma filosofia baseada na concepção de um processo histórico racional Hegel embora pressupondo um pro cesso regular e ordenado contentouse em encontrar sua força diretora numa abstração metafísica o Zeitgeist Mas uma vez que a concepção histórica da realidade se estabeleceu foi um pequeno passo substituir o abstrato Zeitgeist por alguma força material concreta A interpretação econômica da história não foi inventada mas desenvolvida e popularizada por Marx Na mesma época Buckle propôs uma interpretação geográfica da história Estava convencido de que os assuntos humanos eram permeados por um princípio glorioso de regularidade imutável e universal e isto foi revivido sob a forma da ciência da Geopolítica cujo inventor descreve a geografia como um im perativo político categórico Spengler acreditava que os acon tecimentos eram determinados por leis semibiológicas que go 9 Palavras que concluem History of Civilizalio de Buckle 10 Kjellen Der Staat als Lebensform pág 81 Compare com a introdução do famoso memo rando de Crowe sobre a política externa britânica O caráter geral da política externa da Inglaterra é determinado pelas imutáveis condições de sua situação geográfica Britisb Doaosents on lhe origin of lhe lf7ar ed Good Temperley IH pág 397 A crítica realista 89 vernavam o crescimento e o declínio das civilizações Pensado res mais ecléticos interpretam a história como o produto de uma variedade de fatores materiais e a política de um grupo ou na ção como o reflexo de todos os fatores materiais que compõem o interesse nacional ou grupal Políticas externas disse o Sr Hughes por ocasião de sua posse como Secretário de Estado americano não se constróem sobre abstraçõesSão o resultado do interesse nacional que surge de alguma exigência imediata ou que sobressai vivamente na perspectiva histórica Tais interpretações da realidade sejam em termos de um Zeitgeist ou de economia ou geografia ou de perspectiva histó rica são em última análise deterministas Marx tendo um pro grama de ação não poderia ser um determinista rígido e consis tente acreditava em tendências que fluem de uma necessidade férrea em direção a uma meta inevitável A política escre veu Lenin tem seu objetivo lógico próprio independente dos ditames deste ou daquele indivíduo ou partido13 Em janeiro de 1918 ele descreveu sua crença nas revoluções socialistas vin douras na Europa como uma predição cientifica Segundo a hipótese científica dos realistas identificase portanto a realidade com o curso total da evolução histórica cujas leis é trabalho do filósofo investigar e revelar Não pode haver realidade alguma fora do processo histórico Conceber a história como evolução e progresso escreve Croce implica aceitála em todos os seus aspectos e portanto negar a valida de de julgamentos sobre ela Condenar o passado em termos éticos não tem sentido pois nas palavras de Hegel a filosofia transfigura o real que pareça injusto no racional O que foi está certo A história não pode ser julgada exceto por padrões 11 l nternational Conciliation No 194 janeiro de 1924 pág 3 12 Marx O Capital prefácio à 1a ed trad ingl Everyrnans Library pág 863 13 Lenin H7orks 2a ed russa X pág 207 1 Ibidem XXII pág 194 15 Croce Storia della Sonografio Italiana 1 pág 26 16 Hegel Philosopbie der Lreltgeschiche ed Lasson pág 55 90 E H CARR históricos É significativo que nossos julgamentos históricos exceto os relativos a um passado de que podemos nos lembrar tão bem quanto o presente sempre pareçam partir do pressu posto de que os fatos não poderiam ter sucedido de outra for ma Contase que Venizelos ao ler na História da Europa de Fisher que a invasão grega da Ásia Menor em 1919 foi um erro riu ironicamente e disse Toda empresa que não alcança suces so é um erro Se a rebelião de Wat Tyler tivesse sido vitorio sa ele seria um herói nacional inglês Se a Guerra de Indepen dência americana houvesse acabado em desastre os Founding Fathers dos Estados Unidos seriam brevemente registrados na história como uma corja de fanáticos turbulentos e inescru pulosos Nada é bemsucedido como o sucesso A história mun dial na famosa frase que Hegel pediu emprestada a Schiller é a corte do mundo A paráfrase popular Poder é Direito só é incorreta se atribuirmos um sentido muito restrito à palavra Poder A história cria direitos e portanto o direito A doutri na da sobrevivência do mais apto prova que o sobrevivente era de fato o mais apto a sobreviver Marx não parece ter sustenta do que a vitória do proletariado fosse justa exceto no sentido de que era historicamente inevitável Lukacs foi um marxista coerente embora provavelmente indiscreto quando baseou o direito do proletariado em sua missão históricat Hitler acre ditava na missão histórica do povo alemão A RELATIVIDADE DO PENSAMENTO A importante contribuição do realismo moderno entretanto foi a de revelar não apenas os aspectos determinísticos do proces so histórico mas o caráter relativo e pragmático do próprio pen samento Nos últimos cinqüenta anos graças principalmente mas não exclusivamente à influência de Marx os princípios da es 17 Conaliation lnternatianale No 56 1937 pág 520 18 Lukacs Guchichte und Klassenbetsusstsein pág 215 A crítica realista 91 cola histórica têm sido aplicados à análise do pensamento e fo ram lançados os fundamentos de uma nova ciência principal mente por pensadores alemães sob o nome de sociologia do conhecimento O realista pôde então demonstrar que as teo rias intelectuais e os padrões éticos dos utópicos longe de se rem a expressão de princípios absolutos e apriorísticos são his toricamente condicionados sendo tanto frutos dos interesses e circunstâncias como armas forjadas para a defesa de interesses As noções éticas como ressaltou Bertrand Russell são freqüentemente uma causa mas quase sempre um efeito um meio de defendermos autoridade legislativa universal de nossas pró prias preferências e não como imaginamos credulamente o cam po real dessas preferênciast Este é de longe o mais formidá vel ataque que a utopia precisa enfrentar pois aqui as próprias bases de sua crença são solapadas pela crítica realista De um modo geral há muito se reconhece a relatividade do pensamento No século dezessete o Bispo Burnet já havia ex posto a opinião relativista de forma tão convincente senão tão penetrante quanto Marx Quanto às últimas Guerras Civis sabese bem quais as noções de governo que estavam em uso naqueles tempos Quando a monarquia devia ser subvertida sabíamos que era necessário justificar o fato e então como era conveniente ao objetivo tornouse indubitavelmente verdade na natureza das coisas que o governo tinha sua origem no povo e que o príncipe era apenas seu representante Mas depois quan do a monarquia retomou seu lugar outra noção de governo entrou em voga Então o governo tinha sua origem inteiramente em Deus e o príncipe só prestava contas a Ele E agora depois de outra revira volta na situação quando o povo tem a liberdade de se pronunciar um novo conjunto de noções foi desenvolvido Agora a obediência passiva é um erro total e ao invés de ser um dever sofrer opressão é um ato glorioso resistir a ela e em lugar de deixar que Deus desagrave as injúrias temos um direito natural de desagravarmos nós mesmosV 19 Proceedings oi tbe Aristotelian Society 191516 pág 302 zo Burnet Essoy upon Gouernment pág 10 92 E H CARR N os tempos atuais o reconhecimento deste fenômeno tor nouse geral A crença e para falar honestamente a crença honesta escreveu Dicey sobre a divergência de opiniões no século dezenove acerca da escravidão era em grande parte o resultado não do argumento nem mesmo do interesse próprio direto mas das circunstâncias As circunstâncias criam a mai oria das opiniões dos homens Marx estreitou este conceito um tanto vago declarando que todo pensamento é condicionado pelo interesse econômico e pelo status social do pensador Esta opinião foi provavelmente injustificadamente restritiva Em particular Marx que negava a existência de interesses nacionais subestimou a potência do nacionalismo como uma força condicionante do pensamento do indivíduo Mas a peculiar restrição que aplicou ao princípio ser viu para popularizálo e fazêlo atingir o alvo A relação entre o pensamento e os interesses e circunstâncias do pensador tem se reconhecido e entendido mais amplamente desde que Marx escreveu suas obras Este princípio tem um campo de aplicação extremamente amplo Tornouse um lugarcomum dizer que as teorias não mol dam o curso dos acontecimentos mas que são inventadas para explicálos O império precede o imperialismoVê A Inglaterra no século dezoito pôs em prática a política do laissezjaire an tes de encontrar uma justificativa ainda que fosse uma justifi cativa aparente na nova doutrinat e o virtual colapso do laissez faire como um corpo de doutrina seguiu e não precedeu o declínio do laissezjaire no mundo real A teoria do socialis mo num único país propagada na União Soviética em 1924 foi manifestamente um produto do fracasso do regime soviético em se estabelecer em outros países 21 Dicey LaUand Opinion ed de 1905 pág 27 22 J A Hobson Free Thought in tbe Social Stiences pág 190 23 Halévy Tbe GroUth of Pbilosopbic Radicalism trad ingl pág 104 24 M Dobb Political Economy and Capitalism pág 188 93 A crítica realista o desenvolvimento da teoria abstrata é todavia freqüen temente influenciado por acontecimentos que não possuem qual quer conexão aparente com ela Na história do pensamento político escreve um pensador social contemporâneo os acontecimentos têm sido não menos poderosos que os argumentos O fracasso e o sucesso das insti tuições as vitórias e as derrotas de países identificados com certos princípios têm repetidamente trazido nova força e reso lução aos adeptos ou oponentes desses princípios em toda par te segundo o caso A filosofia como existe na terra é a pala vra de filósofos que a experiência nos conta sofrem tanto de dor de dente quanto qualquer mortal e são como outros sujei tos à influência de acontecimentos próximos e marcantes e às seduções do modismo intelcctuallP A dramática ascensão ao poder da Alemanha nos anos ses senta e setenta do século passado foi suficientemente impressi onante para fazer dos principais filósofos britânicos da geração seguinte Caird T H Green Bosanquet McTaggart hegelianos ardentes Posteriormente o telegrama do Kaiser para Krüger e o programa naval alemão espalharam a convicção entre os pen sadores britânicos de que Hegel não era tão bom filósofo quan to se havia pensado e desde 1914 nenhum filósofo britânico de reputação ousou velejar sob a bandeira de Hegel Após 1870 Stubbs e Freeman colocaram a antiga história inglesa sobre uma sólida base teutônica enquanto que mesmo na França Fustel de Coulanges manteve uma árdua luta para defender as origens latinas da civilização francesa Durante os últimos trinta anos os historiadores ingleses têmse furtivamente engajado em tor nar as origens teutônicas da Inglaterra o menos aparentes possí vel Não são somente os pensadores profissionais que estão su jeitos a tais influências De forma marcante a opinião popular não é menos dominada por elas A frivolidade e a imoralidade 25 L T Hobhouse The Unity oJ Weslern Ciuilisation ed F S Marvin 3a ed págs 177S 94 E H CARR da vida francesa foram um dogma estabelecido na GrãBretanha do século dezenove que ainda recordava Napoleão Quando eu era jovem escreveu Bertrand Russell os franceses comi am rãs e eram chamados de rãzinhas mas eles aparentemente abandonaram tal prática quando concluímos nossa entente com eles em 1904 de qualquer forma jamais ouvi isto mencionado desde aquela data27 Alguns anos mais tarde o japonês galante de 1905 sofreu uma metamorfose de conversão para o prussiano do Oriente No século dezenove era um lugarcomum da opi nião britânica que os alemães eram eficientes e esclarecidos e os russos atrasados e bárbaros Em torno de 1910 determinou se que os alemães que se transformaram em prussianos eram grosseiros brutais e intolerantes e que os russos possuíam uma alma eslava A moda da literatura russa na GrãBretanha que se disseminou na mesma época foi uma conseqüência direta da reaproximação política com a Rússia A moda do marxismo na GrãBretanha e França que começou numa escala modesta após o sucesso da revolução bolchevique na Rússia rapidamen te tomou impulso particularmente entre os intelectuais após 1934 quando se descobriu que a Rússia Soviética era uma alia da militar em potencial contra a Alemanha É sintomático que a maioria das pessoas quando provocadas negam indignadas que formam suas opiniões deste modo pois como Acton observou há muito tempo poucas descobertas são mais irritantes do que as que expõem a origem das idéias O condicionamento do pensamento é necessariamente um processo subconsciente oAJUJTAMENTO DO PENSAMENTO AO OBJETIVO O pensamento não é relativo meramente às circunstâncias e in teresses do pensador É também pragmático no sentido de que 26 Froggies no original nota do Tradutor 27 Bertrand Russell Which Wry Peace pág 158 28 Acton History oi Freedom pág 62 A crítica realista 95 se dirige à execução de seus objetivos Para o realista como ponderava um autor espirituoso a verdade é não mais do que a percepção da experiência discordante pragmaticamente ajusta da a um objetivo específico e durante certo período de tempo29 O caráter intencional do pensamento foi discutido num capítu lo anterior e assim uns poucos exemplos serão suficientes para ilustrar a importância desse fenômeno na política internacional Teorias produzidas para desacreditar um inimigo ou inimi go em potencial são uma das formas mais comuns de pensa mento intencional Retratar inimigos ou possíveis vítimas como seres inferiores perante Deus tem sido uma técnica familiar de toda forma desde os dias do Velho Testamento As teorias raci ais antigas e modernas pertencem a esta categoria pois o domí nio de um povo ou classe sobre outro é sempre justificado pela crença na inferioridade mental e moral do dominado Em tais teorias aberrações e crimes sexuais são normalmente imputa dos à raça ou grupo desacreditado Depravação sexual é impu tada pelo branco americano ao negro pelo branco sulafricano ao kaffir pelo indiano de origem inglesa ao hindu e pelo ale mão nazista ao judeu A mais popular e mais absurda das acusa ções levantadas contra os bolcheviques nos primórdios da re volução russa foi a de que advogavam a promiscuidade sexual Estórias de atrocidades dentre as quais predominam os crimes de caráter sexual são o produto familiar da guerra Às vésperas da invasão da Abissínia os italianos publicaram um Livro Ver de das atrocidades da Abissínia de caráter oficial O governo italiano como observou corretamente o delegado abissínio em Genebra tendo resolvido conquistar e destruir a Etiópia co meçou por atribuir à Etiópia má reputaçãoP Mas o fenômeno também aparece sob formas menos evi dentes o que por vezes permite que não seja detectado O 29 Carl Becker Yale Review XXVII pág 461 30 League of Nations OJlicial ournal Novernber 1935 pág 1 140 96 E H CARR ponto foi bem colocado por Crowe numa minuta do Ministério do Exterior britânico em março de 1908 O Governo alemão anteriormente prussiano tem sido sempre no tável pelo esforço que desenvolve para criar um sentimento de ódio intenso e sagrado contra um país com o qual se vê na possibilidade de entrar em guerra É indubitável desta forma que o ódio desvairado contra a Inglaterra como um monstro de egoísmo e cobiça personifi cados e a absoluta necessidade de consciência que ora anima a Ale manha foi acalentado e alimentado o diagnóstico é acurado e penetrante Mas é estranho que uma mente tão aguda quanto a de Crowe não tivesse percebido que ele próprio estava realizando ante a limitada audiência de estadistas e funcionários a que tinha acesso precisamente a mesma operação de que acusava o governo alemão Uma leitura atenta de seus memorandos e minutas do período revela uma tentativa hábil porém transparente de criar um sentimento de ódio intenso e sagrado contra o futuro inimigo de seu próprio país É um exemplo curioso de nossa rapidez em detectar o ca ráter condicionado ou intencional do pensamento dos outros presumindo que o nosso é completamente objetivo A contrapartida desta propagação de teorias que visam a lançar o descrédito moral sobre um inimigo é a propagação de teorias que refletem boa reputação moral sobre si mesmo ou sua política Bismarck registra a observação feita a ele por Walewski o Ministro do Exterior francês em 1857 de que o trabalho do diplomata era mascarar o interesse de seu país sob a linguagem da justiça universal Mais recentemente Churchill disse na Câmara dos Comuns que deve haver uma base moral para o rearmamento e a política externa da GrãBretanhat É raro entretanto que estadistas modernos se expressem com esta 31 British Documents on the Origin of lhe War ed Gooch and Temperley VI pág 131 32 House of Commons March 14 1938 OJftciaf Report cols 9599 97 A crítica realista franqueza e na política americana e britânica contemporânea a influência mais poderosa tem sido exercida pelos estadistas mais utópicos que estão sinceramente convencidos de que a política se deduz de princípios éticos e não os princípios éticos da polí tica O realista é contudo obrigado a pôr a descoberto a falsi dade desta convicção O direito dizia Woodrow Wilson ao Congresso dos Estados Unidos em 1917 é mais precioso do que a paz A paz vem antes de tudo declarava Briand dez anos mais tarde na Assembléia da Liga das Nações a paz vem até antes da justiça Considerados como princípios éticos ambos os pronunciamentos contraditórios são sustentáveis e poderiam reunir apoio respeitável Devemos portanto crer que estamos lidando com um choque de padrões éticos e que se as políticas de Wilson e Briand diferiram foi porque eles as deduzi ram partindo de princípios opostos Nenhum estudante sério da política alimentará esta crença Um exame ainda que superfici al mostrará que os princípios foram deduzidos das políticas não as políticas dos princípios Em 1917 Wilson havia se decidido pela política de guerra contra a Alemanha e tratou de vestir esta política com o traje apropriado da defesa da justiça Em 1928 Briand estava temeroso em relação a tentativas feitas em nome da justiça para perturbar um acordo de paz favorável à França e ele não teve mais dificuldade do que Wilson para encontrar a fraseologia moral que se ajustasse à sua política Seria irrelevante discutir esta suposta diferença de princípios no plano ético Os princípios simplesmente refletiram diferentes políticas nacionais moldadas para satisfazerem diferentes condições O duplo processo de desacreditar moralmente a política de um inimigo em potencial e justificar moralmente a sua própria política pode ser abundantemente ilustrado pelas discussões de desarmamento entre as duas guerras A experiência das potênci 33 The Publir Papers of Woodrow Wilson War and Peace ed R S Baker i pág 16 3 League of Nations Nínth Assembfy pág 83 98 E H CARR as anglosaxônicas cujo predomínio naval havia sido ameaçado pelo submarino proporcionou uma ampla oportunidade de de nunciar a imoralidade desta nova arma A civilização exige escreveu o consultor naval da delegação americana à Conferên cia de Paz que o combate naval se coloque num plano mais elevado pela abolição do submarin0 35 Infelizmente o subma rino era visto como uma arma conveniente pelas marinhas de guerra da França Itália e Japão e esta particular exigência da civilização não pôde ser satisfeita Uma distinção de caráter mais amplo foi estabelecida por Lord Cecil num discurso ao Conse lho Geral da União da Liga das Nações em 1922 A pacificação geral do mundo não será materialmente assegurada sim plesmente pelo desarmamento naval Se todas as potências marítimas se desarmarem ou limitarem drasticamente seus armamentos não es tou certo se isto não aumentaria o perigo de guerra em lugar de dimi nuir pois a força naval é principalmente defensiva a ofensiva é em grande parte a força terrestret A inspiração de considerar seus próprios armamentos vi tais como defensivos e benéficos e os das outras nações como ofensivos e prejudiciais provou ser particularmente frutífera Exatamente dez anos depois três comissões da Conferência de Desarmamento gastaram várias semanas no esforço em vão de classificar armamentos como ofensivos e defensivos Os delegados de todas as nações demonstraram extraordinário enge nho em criar argumentos supostamente baseados na teoria ob 35 R sBaker Woodrow Wilson and World S ettlement iii pág 120 Há um paralelo engraçado no século dezenove O corsário escreveu a Rainha Vitória ao tempo da Conferência de Paris de 1856 é um tipo de pirata que desonra nossa civilização Sua abolição através do mundo inteiro seria um grande passo adiante Não nos surpreendemos em ler que o corsário era então como o submarino nos tempos modernos a arma das potências navais mais fracas Sir William Malkin British Year Book of lnternational Las viii págs 6 30 36 Publicado no Panfleto da União da Liga das Nações No 76 pág 8 A própria palavra militarismo transmite a muitos leitores ingleses a mesma conotação da peculiar perversi dade dos exércitos Foi deixado a um historiador americano W L Langer a criação do correspondente navalisrno que significativamente teve pouca aceitação 99 A crítica realista jetiva pura para provar que os armamentos em que se basea vam eram principalmente defensivos enquanto que os dos ri vais em potencial eram essencialmente ofensivos Atitudes se melhantes foram tomadas com relação a armas econômicas Na última parte do século dezenove e em menor escala até 1931 as tarifas protecionistas eram vistas na GrãBretanha como imo rais Após 1931 as tarifas diretas recuperaram sua inocência mas acordos de trocas quotas industriais mas não agrícolas controles de câmbio e outras armas empregadas pelos Estados continentais continuaram eivadas de imoralidade Até 1930 as sucessivas revisões de tarifas dos Estados Unidos foram quase invariavelmente no sentido da majoração e os economistas ame ricanos fiéis adeptos do laissezJaire em outros assuntos quase sempre trataram as tarifas como legítimas e elogiáveis Entre tanto a mudança de posição dos Estados Unidos de potência devedora a credora combinada com a inversão da política eco nômica britânica alterou esse quadro e a redução das barreiras tarifárias passou a ser normalmente identificada pelos porta vozes americanos com a causa da moralidade internacional INTERESSE NACIONAL E BEM UNIVERSAL o realista não deveria contudo deterse em assestar estes pe quenos golpes através de fendas deixadas nas defesas dos utópi cos Sua tarefa é derrubar toda a estrutura de papelão do pensa mento utópico expondo toda a fragilidade do material de que é feito Devese usar a arma da relatividade do pensamento para demolir o conceito utópico de um padrão fixo e absoluto pelo qual as políticas e ações podem ser julgadas Se as teorias forem reveladas como reflexos da prática e os princípios como refle xos das necessidades políticas em conseqüência esta descoberta aplicarseá às teorias e princípios fundamentais do credo utó pico assim como à doutrina da harmonia de interesses que é seu postulado essencial 100 E H CARR Não será difícil demonstrar que o utópico quando prega a doutrina da harmonia de interesses inocente e inconscientemente estará adotando a máxima de Walewski e vestindo seu próprio interesse com o manto do interesse universal a fim de impôlo ao resto do mundo Os homens facilmente crêem que situações agradáveis a si próprios são benéficas aos outros como Dicey observara e as teorias do bem público que à luz da análise provam ser um disfarce elegante para algum interesse particu lar são tão comuns nas questões nacionais quanto nas interna cionais O utópico por mais ávido que esteja de estabelecer um padrão absoluto não defende que seja dever de seu país em conformidade com este padrão colocar o interesse do mundo como um todo antes dos seus próprios Isto seria contrário à sua teoria de que o interesse do todo coincide com o interesse de cada parte Ele argumenta que o que é melhor para o mundo é melhor para seu país e então inverte o argumento para ler que o que é melhor para seu país é melhor para o mundo as duas proposições sendo do ponto de vista utópico idênticas Esse cinismo inconsciente do utópico contemporâneo provou ser uma arma diplomática muito mais eficaz do que o cinismo delibera do e consciente de um Walewski ou de um Bismarck Autores britânicos das últimas décadas têm sido particularmente eloqüen tes defensores da teoria de que a manutenção da supremacia bri tânica é o cumprimento de um dever para com a humanidade Se a GrãBretanha se transformou num depósito de carvão e numa forja de ferreiro ressaltou ingenuamente The Times em 1885 é em beneficio para a humanidade assim como para si própria38 O seguinte trecho é típico de uma dúzia de memórias dos homens públicos do período que poderiam ser selecionada Eu só tenho um grande objetivo neste mundo que é a manutenção da grandeza do Império Mas além dos meus sentimentos de inglês 37 Dicey IAW and Opinion in Engand 2a ed págs 1415 38 Tbe Times August 27 1885 101 A crítica realista Icomum típico em relação a este ponto creio firmemente que fazendo isso trabalho pela causa da cristandade da paz da civilização e da felicidade da raça humana em geral Eu sustento que somos a primeira raça do mundo escre veu Cecil Rhodes e que quanto maior for a parcela do mundo habitarmos melhor será para a raça humanat Em 1891 o jor nalista mais popular e brilhante da época W T Stead fundou a Review of Reviews Cremos em Deus na Inglaterra e na Humanidade dizia o manifesto editorial do primeiro número a raça de língua inglesa é um dos principais agentes escolhidos por Deus para executar os futuros melhoramentos de toda a hu manidade Um professor de Oxford em 1912 estava conven cido de que o segredo da história britânica residia no fato de que ao lutar por sua própria independência ela estava lutando pela independência da Europa e que este serviço então presta do à Europa e à humanidade trouxe consigo a possibilidade de um serviço maior a que chamamos de Império A primeira Guerra Mundial levou esta convicção até um ponto de delírio emocional Uma simples coletânea dos discur sos de estadistas britânicos apontando os serviços que a beli gerância britânica estava rendendo à humanidade encheria mui tas páginas Em 1917 Balfour dizia na Câmara de Comércio de Nova Iorque que desde agosto de 1914 a lu ta tem sido pelos mais altos benefícios espirituais da humanidade sem nenhum pensamento mesquinho ou ambição A Conferência de Paz e seus desdobramentos temporariamente desacreditaram essas pro fissões de fé e lançaram dúvidas sobre a crença na supremacia britânica como um dos bens morais da humanidade Mas o perío do de desilusão e modéstia foi curto Momentos de tensão inter Maurice and Arthur Toe LJJe oi Lord llloseey pág 314 411 Y T Stead The Last llli and Testament oi CeciJ Rhodes pág 58 41 RevielV oj ReZÚllJS January 15 1891 4 Spenser Wilkinson Corernmen and lhe lllar pág 116 43 Citado em Beard Tbe Rise oi Anrerican Civiisalion ii pág 646 102 E H CARR nacional e principalmente momentos em que a possibilidade de guerra aparece no horizonte sempre estimulam a identifica ção do interesse nacional com a moral No auge da crise da Abissínia o Arcebispo de Canterbury aconselhava o público fran cês através de uma entrevista a um jornal parisiense nos se guintes termos Estamos movidos por considerações morais e espirituais Não creio que esteja me afastando do meu dever ao contribuir para o esclareci mento deste malentendido Nenhum interesse egoístico nos move adiante e nenhuma considera ção ou interesse deve mantêlos para trás44 No ano seguinte o Professor Toynbee estava mais uma vez pronto para descobrir que a segurança do Império Britânico era também o supremo interesse de todo o mundot Em 1937 Lord Cecil falou ao Conselho Geral da União da Liga das Nações so bre o nosso dever para com nosso país com nosso Império e com a humanidade como um todo e citava Nem uma nem duas vezes na dura história da ilha O caminho do dever foi o caminho da glória46 Um inglês como Bernard Shaw ressalta em The Man 0 Destiny jamais se esquece de que a nação que deixa seu dever passar para o lado oposto ao do seu interesse está perdida Não surpreende que um crítico americano recentemente descrevesse o inglês como um jesuíta perdido pelo reino teológico mas con quistado pelo político47 ou que um antigo ministro das rela ções exteriores italiano tivesse comentado muito tempo antes Citado em Manchester Ceardian October 18 1935 45 Toynbee 511rvey of international AJlairs 1935 ii pág 46 46 Headway Novernber 1937 47 Carl Becker Yale Review xxvii pág 452 103 A crítica realista destas recentes manifestações sobre este precioso presente con ferido ao povo britânico a possessão de escritores e clérigos aptos a apresentarem em perfeita boa fé as razões morais mais elevadas para a mais concreta ação diplomática com lucro mo ral inevitável para a Inglaterra Em tempos recentes o mesmo fenômeno tornouse endêmico nos Estados Unidos A história de como McKinley rezou por auxílio divino e decidiu anexar as Filipinas é um clás sico da História Americana moderna e essa anexação deu lugar a um levante popular de autoaprovação moral até então mais familiar na política externa da GrãBretanha do que na dos Es tados Unidos Theodore Roosevelt que acreditava mais firme mente do que qualquer presidente americano anterior na doutri na do létat cest moi avançou o processo um passo adiante O seguinte diálogo curioso ocorreu em sua inquirição durante uma ação por injúria movida contra ele em 1915 por um líder do Partido Democrático Pergunta Como o senhor sabia que a justiça real fora feita Roosevelt Porque eu fiz porque estava dando o melhor de mim Pergunta O senhor quer dizer que quando faz algo por isso a justiça real é feita Roosevelt Sim Ouando faço algo o faço de forma a atingir a justiça real Eu quero dizer exatamente isto 49 Woodrow Wilson era menos ingenuamente egoísta porém mais profundamente confiante na identidade da política ameri cana com a justiça universal Depois do bombardeio de Vera Cruz em 1914 ele assegurou ao mundo que os Estados Uni dos atacaram o México para servirem à humanidade Durante a Primeira Guerra Mundial ele aconselhou aos fuzileiros navais 48 Conde Sforza Foreign Affairs October 1927 pág 67 49 Citado em H F Pringle Theodore Rooseueit pág 318 50 PlIblic Papers of Woodrow Wilson Tbe New Democracy ed R S Baker i pág 104 104 E H CARR americanos não somente pensar sempre primeiro na América mas também sempre pensar primeiro na humanidade um es forço tornado menos difícil por sua explicação de que os Esta dos Unidos haviam sido fundados para o beneficio da humani dade Pouco tempo antes da entrada dos Estados Unidos na guerra num discurso ao Senado sobre os propósitos da guerra estabeleceu essa identificação de forma ainda mais categórica Estes são princípios americanos políticas americanas São os princípios da humanidade e devem prevalecert Devese observar que declarações desse teor procedem quase que exclusivamente de estadistas e autores anglosaxões É verdade que quando um proeminente nacionalsocialista de clarou que tudo que beneficie o povo alemão está certo tudo que prejudique o povo alemão está errado ele estava sim plesmente propondo a mesma identificação do interesse nacio nal com o direito universal que já havia sido estabelecida nos países de língua inglesa por Wilson Toynbee Lord Cecil e mui tos outros Mas quando a pretensão é traduzida numa língua es trangeira o comentário parece forçado e a identificação não con vincente mesmo para os povos envolvidos Dáse normalmente duas explicações para esta curiosa discrepância A primeira ex plicação popular nos países de língua inglesa é que a política das nações de língua inglesa é de fato mais virtuosa e desinte ressada do que a dos Estados continentais de modo que Wil son Toynbee e Lord Cecil estão em sentido amplo certos quan do identificam os interesses nacionais britânicos e americanos com o interesse da humanidade A segunda explicação popular nos países continentais é que os povos de língua inglesa são mestres consumados na arte de ocultar seus interesses nacio nais egoístas sob o manto do bem geral e que este tipo de hipo crisia é uma peculiaridade especial e característica da mente do anglosaxão 31 Ibidem págs 31819 32 Ibidem ii pág 414 33 Citado em Toynbee Survey of lnternational Affairs 1936 pág 319 105 A crítica realista Parece desnecessário aceitar quaisquer dessas tentativas heróicas de resolver a charada A solução é simples As teorias da moral social são sempre produto de um grupo dominante que se identifica com a comunidade como um todo e que possui facilidades negadas aos grupos ou indivíduos subordinados para impor sua visão da vida na comunidade As teorias da moral internacional são pela mesma razão e em virtude do mesmo pro cesso o produto das nações ou grupos de nações dominantes N os últimos cem anos e mais particularmente desde 1918 os povos de língua inglesa formaram o grupo dominante no mundo e as atuais teorias da moral internacional foram projetadas para perpetuar sua supremacia e se expressaram no idioma peculiar a eles A França mantendo algo de sua tradição do século de zoito e recuperando uma posição de dominância por um curto período após 1918 teve um papel menor na criação da atual moral internacional principalmente através de sua insistência no papel da lei na ordem moral A Alemanha jamais uma potên cia dominante e reduzida à impotência após 1918 permane ceu por essas razões fora do círculo mágico dos formadores da moral internacional Tanto a visão de que os povos de língua inglesa são os monopolistas da moral internacional quanto a visão de que eles são hipócritas internacionais consumados podem ser reduzidas ao simples fato de que os atuais cânones da virtude internacional foram por um processo natural e inevi tável criados principalmente por eles A CRÍTICA REAUSTA DA HARMONIA DE INTERESSES A doutrina da harmonia de interesses sucumbe sem dificuldade à análise nos termos deste princípio Ela é o pressuposto natu ral de uma classe próspera e privilegiada cujos membros têm voz dominante na comunidade e são portanto propensos a iden tificar os interesses dela com os seus próprios Em virtude dessa identificação qualquer um que ataque os interesses do grupo 106 E H CARR dominante incorrerá na repulsa por atacar o alegado interesse comum de toda a comunidade e lhe será dito que ao fazer esse ataque estará atacando seus próprios interesses mais elevados A doutrina da harmonia de interesses serve então como um artificio moral engenhoso invocado com perfeita sinceridade por grupos privilegiados para justificar e manter sua posição dominante Mas um outro ponto requer menção A supremacia dentro da comunidade do grupo privilegiado pode ser e freqüentemente é tão esmagadora que de fato em certo senti do seus interesses são os da comunidade uma vez que seu bem estar necessariamente traz consigo algumas medidas de bemes tar para outros membros da comunidade e seu colapso poderia levar ao colapso da comunidade como um todo Assim sendo portanto a pretensa harmonia natural de interesses tenha algu ma realidade ela é criada pelo poder dominante do grupo privi legiado e é uma excelente ilustração da máxima de Maquiavel de que a moral é produto do poder Uns poucos exemplos pode rão tornar esta análise da doutrina da harmonia de interesses mais clara No século dezenove o fabricante ou comerciante britâni co tendo descoberto que o laissezjaire promovia sua própria prosperidade convenceuse sinceramente de que também pro movia a prosperidade da GrãBretanha como um todo Esta alegada harmonia de interesses entre ele próprio e a comunida de não era inteiramente fictícia O predomínio do fabricante e do comerciante era tão grande que em certo sentido uma iden tidade entre sua prosperidade e a prosperidade britânica podia ser corretamente defendida A partir daí foi um pequeno passo para argumentar que um trabalhador em greve ao prejudicar a prosperidade do fabricante britânico estava prejudicando a pros peridade britânica como um todo e portanto prejudicando a sua própria de modo que podia ser muito bem denunciado pe los predecessores do Professor Toynbee como imoral e pelos predecessores do Professor Zimmern como estúpido Além dis 107 A crítica realista so em certo sentido este argumento era perfeitamente correto Contudo a doutrina da harmonia de interesses e da solidarieda de entre as classes deve ter parecido uma brincadeira amarga para o trabalhador pobre cujo status inferior e cuja insignifican te parte na prosperidade britânica eram consagrados por ela Presentemente esse trabalhador tornouse forte o suficiente para forçar o abandono do laissesfaire e sua substituição pelo esta do do serviço social que implicitamente nega a natural harmo nia de interesses e começa a criar uma nova harmonia por mei os artificiais A mesma análise pode ser aplicada às relações internacio nais Os estadistas britânicos do século dezenove tendo desco berto que o comércio livre promovia a prosperidade britânica convenceramse sinceramente de que ao fazerem isto promo viam também a prosperidade do mundo como um todo O pre domínio britânico no comércio mundial era nesta época tão esmagador que havia uma certa harmonia inegável entre os in teresses britânicos e os interesses do mundo A prosperidade bri tânica fluía para outros países e um colapso econômico da Grã Bretanha teria significado a ruína em escala mundial Os defensores britânicos do livre comércio poderiam argumentar e de fato o fizeram que os países protecionistas estavam não so mente prejudicando a prosperidade do mundo como um todo mas prejudicando estupidamente a sua própria prosperidade de modo que seu comportamento era tão imoral quanto estúpido Aos olhos britânicos estava irrefutavelmente provado que o comércio internacional era um todo único e florescia ou decli nava junto Contudo esta alegada harmonia internacional de interesses parecia uma brincadeira para as nações pobres cujo status inferior e insignificante parcela que lhes cabia no comér cio internacional eram consagrados por ela A revolta contra isso destruiu aquela ampla supremacia britânica que dera uma base aceitável para a teoria Economicamente a GrãBretanha no século dezenove era suficientemente dominante para fazer o lan 108 E H CARR ce audacioso de impor sua própria concepção de moral econô mica internacional Quando a competição de todos contra todos substituiu a dominação do mercado mundial por uma única po tência as concepções da moral econômica internacional torna ramse necessariamente caóticas Politicamente a alegada comunhão de interesses na manu tenção da paz cujo caráter ambíguo já foi discutido é capitali zada da mesma forma por uma nação ou grupo de nações domi nantes Da mesma forma que a classe governante numa comunidade reza pela paz interna que garante sua segurança e seu predomínio e denuncia a luta de classes que pode ameaçá la a paz internacional tornase objeto de especial interesse das potências dominantes No passado os imperialismos romano e britânico eram exibidos para o mundo sob o disfarce de pax Ro mana e pax Britannica Hoje em dia quando nenhuma potência é suficientemente forte para dominar o mundo e um grupo de na ções se reveste da supremacia slogans como segurança coleti va e resistência à agressão servem ao mesmo propósito de proclamar a identidade de interesses entre o grupo dominante e o mundo como um todo na manutenção da paz Além disso como nos exemplos que acabamos de considerar na medida em que a supremacia do grupo dominante seja suficientemente gran de a identidade de interesses existirá em certo sentido A In glaterra escreveu um professor alemão na década de vinte é a única potência com um programa nacional que embora com pletamente egoísta ao mesmo tempo promete ao mundo algo que ele apaixonadamente deseja ordem progresso e paz eter naS4 Quando Churchill declarou que o sucesso do Império Bri tânico e sua glória estão inseparavelmente entrelaçados com o sucesso do mundov esta declaração tem o mesmo fundamento nos fatos do que a declaração de que a prosperidade dos indus triais britânicos do século dezenove estava inseparavelmente 54 Dibelius England pág 109 55 Winston Churchili Arms and lhe Couenant pág 272 A crítica realista 109 entrelaçada com prosperidade britânica como um todo Além do mais o objetivo das declarações era o mesmo ou seja princi palmente o de estabelecer o princípio de que a defesa do Impé rio Britânico ou da prosperidade do industrial britânico era uma questão de interesse comum de toda a comunidade e que qual quer um que o atacasse era portanto imoral ou estúpido É uma tática familiar o privilegiado lançar descrédito moral sobre o nãoprivilegiado retratandoo como perturbador da paz e esta tática é empregada tanto internacionalmente quanto no seio da comunidade nacional A lei e a ordem internacionais escreve o Professor Toynbee sobre a recente crise faziam parte dos interesses verdadeiros de toda a humanidade ao passo que o desejo de perpetuar a esfera da violência nos assuntos interna cionais era um desejo antisocial que não fazia parte dos inte resses últimos nem mesmo dos cidadãos ou do punhado de Es tados que professavam oficialmente este credo destrutivo e anacrônicot Este foi precisamente o argumento composto de lugarescomuns e de falsidade em partes mais ou menos iguais que esteve presente em toda greve nos primórdios dos movi mentos operários americano e britânico Era comum para os em pregadores apoiados por toda a imprensa capitalista denunciar a atitude antisocial dos líderes sindicais acusálos de ataca rem a lei e a ordem e de introduzirem o reino da violência e declarar que os interesses verdadeiros e últimos dos traba lhadores residiam na cooperação pacífica com os empregado res No campo das relações sociais o caráter insincero deste argumento há muito foi reconhecido Mas justamente assim como a ameaça da luta de classes pelo proletariado é uma reação cé tica natural contra os esforços sentimentais e desonestos das 56 Toynbee Survey of International Affairs 1935 ii pág 46 57 Reze honestamente e o Direito triunfará disse o representante dos proprietários de minas de carvão da Philade1phia numa das primeiras greves organizadas pelo Sindicato dos Mineiros lembrando gue o Senhor Deus Onipotente ainda reina e que seu reino é o da lei e da ordem e não da violência e do crime H F Pringle Theodore Roosevell pág 267 110 E H CARR classes privilegiadas para esconder o conflito de interesses en tre as classes através da constante ênfase no interesse mínimo que têm em comurriP a defesa da guerra pelas potências insa tisfeitas era a reação cética natural contra as banalidades sen timentais e desonestas das potências saciadas sobre o interes se comum na paz Quando Hitler recusouse a acreditar que Deus tenha permitido a algumas nações primeiramente adquiri rem um mundo pela força para em seguida defenderem esta pi lhagem através de teorias moralistasP ele meramente manifes tava em outro contexto a negação marxista de uma comunhão de interesses entre os que têm e os que não têm o desmas caramento marxista do caráter interesseiro da moral burgue sa e a exigência marxista da expropriação dos expropriadores A crise de setembro de 1938 demonstrou de forma gritan te as implicações políticas da assertiva de um interesse comum na paz Quando Briand proclamava que a paz vem antes de tudo ou Eden que não há disputa que não se possa resolver por meios pacíficost o pressuposto subjacente e estes luga rescomuns era o de que na medida em que a paz fosse mantida nenhuma mudança operarseia no status quo que fosse prejudi cial à França ou à GrãBretanha Em 1938 a França e a Grã Bretanha foram apanhadas no laço dos slogans que elas próprias haviam usado no passado para desacreditar as potências insa tisfeitas e a Alemanha tornouse suficientemente dominante como França e GrãBretanha haviam sido até então para usar o desejo da paz em seu próprio proveito Em torno desta época ocorreu uma mudança significativa na atitude dos ditadores da Alemanha e da Itália Hitler retratou veementemente a Alema nha como um sustentáculo da paz ameaçado por democracias belicosas A Liga das Nações declarou em seu discurso ao Reichstag em 28 de abril de 1939 é uma criadora de proble 58 R Niebuhr Moral Man and Immoral Sonet pág 153 59 Discurso no Reicbstag 30 de janeiro de 1939 60 Leaglle of Nations Eighteenth Assembfy pág 63 A crítica realista 111 mas e segurança coletiva significa perigo constante de guer ra Mussolini tomou emprestado a fórmula britânica sobre a possibilidade de resolver todas as disputas internacionais atra vés de meios pacíficos e declarou que não há atualmente na Europa problemas tão grandes e tão prementes que justifiquem uma guerra que um conflito europeu tornarseia naturalmen te universalt Tais declarações eram sintomas de que Alema nha e Itália já anteviam o tempo em que como potências domi nantes adquiririam o interesse na paz recentemente mantido por GrãBretanha e França e estariam aptas a seguirem seu cami nho expondo os países democráticos à execração mundial como inimigos da paz Estes desdobramentos podem ter tornado mais fácil a apreciação da sutil observação de Halévy de que a pro paganda contra a guerra é ela própria uma forma de propagan da de guerra62 A CRÍTICA REAUSTA DO INIERNAOONAUSMO o conceito de internacionalismo é uma forma especial da dou trina da harmonia de interesses Sucumbe ante a mesma análise e existem as mesmas dificuldades em encarálo como um padrão absoluto independente dos interesses e das políticas dos que o promulgam Cosmopolitanismo escreveu Sun Yatsen é a mesma coisa que a teoria chinesa do império mundial há dois mil anos A China outrora desejou ser a soberana do mundo e situarse acima de qualquer outra nação e por isso adotou o cosmopolitanismot No Egito da Décima Oitava Dinastia se gundo Freud o imperialismo se refletiu na religião sob a for ma de universalidade e monoteísmo A doutrina de um único Estado mundial propagada pelo Império Romano e mais tarde 61 The Times May 15 1939 62 Halévy A History of lhe English Peopie in 18951905 trad ingl i Introdução pág xi 63 Sun Yatseri San Min Chu I trad ingl págs 689 64 Sigmund Freud Moses and Monotbeisr pág 36 112 E H CARR pela Igreja Católica foi o símbolo de uma reivindicação de do mínio universal O internacionalismo moderno teve sua gênese na França dos séculos dezessete e dezoito durante os quais a hegemonia francesa na Europa estava em seu auge Este foi o período que produziu Grande Dessin de Sully e Projet de Paix Perpétuelle do Abade SaintPierre ambos eram planos para perpetuar um status quo internacional favorável à monarquia fran cesa que testemunhou o nascimento das doutrinas humanistas e cosmopolitas do Iluminismo e que estabeleceu o francês como a língua universal das pessoas educadas No século seguinte a liderança passou para a GrãBretanha que se tornou o reduto do internacionalismo Nas vésperas da Grande Exposição de 1851 que mais do que qualquer outro fato isolado estabeleceu o título da supremacia mundial da GrãBretanha o Príncipe Consorte falou de forma tocante no grande objetivo final a que a história inteira leva a realização da unificação da huma nidade e Tennyson entoou cânticos ao parlamento do ho mem à federação do mundo A França escolheu o momento de sua maior supremacia no século dezenove para lançar um plano da União Européia e o Japão logo após desenvolveu a ambi ção de se proclamar o líder de uma Ásia unificada Foi um pro duto da crescente predominância internacional dos Estados Unidos a popularidade ampla no fim da década de trinta do livro de um jornalista americano que advogava uma união mun dial de democracias na qual os Estados Unidos desempenhari am o papel predominanter Assim como os apelos por solidariedade nacional em política interna sempre partem de um grupo dominante que pode usar essa solidariedade para fortalecer seu controle da nação como um todo os apelos por solidariedade internacional e união mundial partem das nações dominantes que têm esperança de exercer controle sobre um mundo unificado Os países que lu 65 T Martin Life of lhe Prince Consort iii pág 247 66 Clarence Streit Union Now A crítica realista 113 tam para forçar seu caminho para o grupo dominante natural mente tendem a invocar o nacionalismo contra o internaciona lismo das potências hegemônicas No século dezesseis a Ingla terra opôs seu nacionalismo nascente ao internacionalismo do Papado e do Império No século passado a Alemanha opôs seu nacionalismo nascente ao internacionalismo primeiro da Fran ça depois da GrãBretanha Esta circunstância tornoua imper meável às doutrinas humanistas e universalistas que foram po pulares na França do século dezoito e na Inglaterra do século dezenove e sua hostilidade ao internacionalismo foi posterior mente agravada após 1919 quando GrãBretanha e França em penharamse em criar urna nova ordem internacional como sustentáculo de seu próprio predomínio Por internacional escreveu um correspondente alemão do The Times entendemos um conceito que coloca outras nações em vantagem sobre nossa própria Contudo havia pouca dúvida de que a Alemanha caso viesse a se tornar hegemônica na Europa adotaria slogans internacionalistas e estabeleceria algum tipo de organização in ternacional para sustentar seu poder Um exministro trabalhis ta britânico em certo ponto advogou a supressão do artigo 16 do Pacto da Liga das Nações pelo motivo inesperado de que os Estados totalitários poderiam algum dia capturar a Liga e in vocar aquele artigo para justificar o uso da força por eles mes rnos Parecia mais provável que procurassem desenvolver o Pacto AntiComintern em alguma forma de organização inter nacional O Pacto AntiComintern disse Hitler no Reichstag em 30 de janeiro de 1939 provavelmente tornarseá um dia o ponto de cristalização de um grupo de potências cujo objeti vo último é o de eliminar a ameaça à paz e à cultura do mundo instigada por uma aparição satânica Ou a Europa consegue a solidariedade ressaltou um jornal italiano na mesma época 67 The Times November 5 1938 68 Lord Marley na Câmara dos Lordes em 30 de novembro de 1938 OfficialReport col 258 114 E H CARR ou O eixo a imporá A Europa em sua totalidade disse Goebbels está adotando uma nova ordem e uma nova orienta ção sob a liderança intelectual da Alemanha NacionalSocialis ta e da Itália Fascista Esses não eram sintomas de uma mu dança de opinião mas do fato de que Alemanha e Itália sentiam aproximarse o tempo em que poderiam se tornar suficientemente fortes para esposarem o internacionalismo Ordem internacio nal e solidariedade internacional serão sempre slogans dos que se sentem suficientemente fortes para se imporem sobre outros A revelação das bases reais dos princípios declaradamente abstratos invocados na política internacional é a parte mais comprometedora e mais convincente da condenação realista contra a utopia A natureza da acusação é freqüentemente incompreendida pelos que procuram refutála A acusação não consiste no fato de que os seres humanos não conseguem viver segundo seus princípios Pouco importa que Wilson que pensa va que o direito era mais precioso do que a paz e Briand que pensava que a paz vem antes da justiça e Eden que acreditava na segurança coletiva falhassem eles próprios ou falhassem em induzir seus concidadãos a aplicarem esses princípios consis tentemente O que importa é que esses princípios supostamen te universais e absolutos não eram de forma alguma princí pios e sim reflexos inconscientes da política nacional baseados numa específica interpretação do interesse nacional numa épo ca específica Em certo sentido a paz e a cooperação entre na ções ou classes ou indivíduos é um fim comum e universal independentemente de interesses e políticas conflitantes Em certo sentido existe um interesse comum na manutenção da or dem seja da ordem internacional ou da lei e ordem dentro de uma nação Contudo na medida em que se tenta aplicar esses princípios pretensamente abstratos a uma situação política con 69 Relazioni Intemasionali citado em Tbe Times December 5 1938 70 Võleiscber Beobacbter 10 de abril de 1939 115 A crítica realista ereta eles se revelam como disfarces que deixam transparecer interesses egoístas A falência da visão utópica reside não em seu fracasso em viver segundo seus princípios mas no desmas caramento de sua inabilidade em criar qualquer padrão absoluto e desinteressado para a condução dos problemas internacionais O utópico em face do colapso dos padrões cujo caráter interes seiro ele não compreendeu se refugia na condenação de uma realidade que se recusa a adaptarse àqueles padrões Uma pas sagem escrita pelo historiador alemão Meinecke após a Primei ra Guerra Mundial é o melhor julgamento por antecipação do papel da visão utópica na política internacional do período A profunda falha do tipo de pensamento ocidental do di reito natural foi que quando aplicado à vida real dos Estados permaneceu letra morta não penetrou na consciência dos esta distas não impediu a atual hipertrofia do interesse estatal e portanto levou ou a queixas sem objetivo e suposições doutri nárias ou ainda à falsidade e hipocrisia interiores71 Estas queixas sem objetivo estas suposições doutriná rias esta falsidade e hipocrisia interiores serão familiares aos que tenham estudado o que se escreveu sobre política internacio nal nos países de língua inglesa entre as duas guerras mundiais 71 Meinecke Staatsràson pág 533 CAPÍTULO VI AS LIMITAÇÕES DO REALISMO o DESMASCARAMENTO pela crítica realista da fragilidade do edi fício utópico é a primeira tarefa do pensador político Somente quando a simulação for demolida que poderá haver alguma es perança de erigirse uma estrutura mais sólida em seu lugar Mas não podemos como medida final acomodarmonos no realis mo puro O realismo embora preponderante em termos lógicos não nos dá as fontes de ação que são necessárias até mesmo para o prosseguimento do pensamento Com efeito o próprio realismo se o atacarmos com suas próprias armas freqüente mente se revela na prática como tão condicionado quanto qual quer outra forma de pensamento Na política a crença de que certos fatos sejam inalteráveis ou certas tendências irresistíveis normalmente reflete uma falta de desejo ou de interesse em mudálos ou resistir a eles A impossibilidade de se ser um rea lista consistente e completo é uma das mais corretas e curiosas lições da ciência política O realismo consistente exclui quatro coisas que parecem ser ingredientes essenciais de todo pensa mento político eficaz um objetivo finito um apelo emocional um direito de julgamento moral e um campo de ação A concepção da política como um processo infinito parece a longo prazo incompativel ou incompreensível para a mente humana Todo pensador político que deseja atrair seus contem porâneos é consciente ou inconscientemente levado a estabe lecer um objetivo finito Treitschke afirmava que a coisa terrí vel sobre os ensinamentos de Maquiavel não era a imoralidade dos métodos que recomenda mas sim a falta de conteúdo do 118 E H CARR Estado que existe apenas por existir1 De fato Maquiavel não é tão consistente Seu realismo se desmorona no último capítu lo de O Príncipe que se intitula Uma Exortação para Libertar a Itália dos Bárbaros É um objetivo cuja necessidade não pode ser deduzida de nenhuma premissa realista Marx tendo dissol vido o pensamento e a ação humanos no relativismo da dialética postula o objetivo absoluto de uma sociedade sem classes onde a dialética não mais opera esse acontecimento longínquo para o qual à moda verdadeiramente vitoriana ele acreditava que toda a criação estivesse se movendo O realista pois acaba por negar seu próprio postulado e por presumir uma realidade últi ma fora do processo histórico Engels foi um dos primeiros a levantar esta acusação contra Hegel Declarase ser todo o con teúdo dogmático do sistema hegeliano verdade absoluta em contradição com seu método dialético que dissolve todo dogrnatismo Mas Marx se expõe precisamente à mesma crítica quando leva o processo do materialismo dialético a um fim com a vitória do proletariado Assim a visão utópica penetra a cida dela do realismo e vislumbrar um contínuo mas não infinito processo de avanço no sentido de um objetivo finito revelase uma condição do pensamento político Quanto maior a pressão emocional mais próximo e mais concreto é o objetivo A Pri meira Guerra Mundial tornouse tolerável pela crença de que era a última das guerras A autoridade moral de Woodrow Wil son foi construída sobre a convicção compartilhada por ele pró prio de que ele possuía a chave para a cura justa final e abrangente dos males políticos da humanidade É digno de nota o fato de que quase todas as religiões concordam ao postularem um estado final de completa bemaventurança O objetivo finito assumindo o caráter de uma visão apocalíptica adquire uma atração emocional e irracional que o próprio realismo não pode justificar ou explicar Todos conhe Treitschke Auftiitze iv pág 428 2 Engels Ludwig Foarbacb trad ingl pág 23 I 119 As limitações do realismo cem a famosa previsão de Marx sobre o futuro paraíso sem classes Quando o trabalho deixar de ser simplesmente um meio de vida e se tornar a primeira necessidade da vida quando com o completo de senvolvimento do indivíduo as forças produtivas igualmente se de senvolverem e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em livre abundância somente então será possível transcender completa mente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade escreverá em seu estandarte De cada um segundo sua capacidade a cada um segundo suas necessidadest Sorel proclamou a necessidade de um mito para tornar eficaz a pregação revolucionária A Rússia Soviética explorou com este propósito o mito primeiramente da revolução mundi al e mais recentemente da pátria socialista Há muito o que se dizer em favor da opinião do Professor Laski de que o co munismo progrediu por seu idealismo e não por seu realismo por sua promessa espiritual e não por suas perspectivas materi alistas Um teólogo moderno analisou a situação com uma pers picácia quase cínica Sem as esperanças supraracionais e as paixões da religião nenhuma sociedade terá a coragem para vencer o desespero e tentar o impossí vel pois a visão de uma sociedade justa é uma visão impossível que só pode ser aproximada pelos que não a acharem impossível As mais verdadeiras visões da religião são ilusões que podem ser parcialmente realizadas se se acreditar resolutamente nelas Novamente essa afirmação é quase igual a uma passagem de Mein Kampf na qual Hitler contrasta o planejador com o político 3 Marx e Engels Works Cedo russa xv pág 275 Laski Communism pago 250 5 R Niebuhr Moral Man and Immoral Sodery pág 81 120 E H CARR Seu isto é do planejador significado repousa quase to talmente no futuro e ele é freqüentemente o que se entende pela palavra weltfremd nãoprático utópico Pois se a arte da política for realmente a arte do possível então o planejador per tence ao grupo dos que se diz que agradam os deuses somente se pedirem e exigirem deles o impossível Credo quia impossihile tornouse uma categoria de pensamento político O realismo consistente como já se notou envolve a acei tação de todo o processo histórico e exclui julgamentos morais sobre ele Como vimos os homens estão geralmente preparados para aceitarem o julgamento da história sobre o passado elogian do o sucesso e condenando o fracasso Este teste é também lar gamente aplicável à política contemporânea Instituições tais como a Liga das Nações ou os regimes soviético e fascista são em grande parte julgadas por sua capacidade em atingir o que afirmam atingir e a legitimidade desse teste é implicitamente admitida pela própria propaganda delas que constantemente procura exagerar seus sucessos e minimizar seus fracassos Con tudo está claro que a humanidade como um todo não está pre parada para aceitar esse teste racional como uma base univer salmente válida de julgamento político A crença de que o que quer que aconteça está sempre certo e deve ser apenas devida mente entendido para ser aprovado deve ser sustentada de modo consistente eliminandose os pensamentos voltados para obje tivos e assim esterilizandoo e finalmente destruindoo Aque les cuja filosofia parece excluir a possibilidade de julgamentos morais nem por isso deixam de fazêlo Frederico o Grande tendo explicado que os tratados devem ser cumpridos pela ra zão de que só se pode trapacear uma vez segue escrevendo que a quebra de tratados é uma política má e velhaca embora não exista nada em sua tese que justifique o epíteto moral Marx Hitler Mein Kalllpj pág 23l lllliMaqiate1 pág 248 As limitações do realismo 121 cuja filosofia parecia demonstrar que os capitalistas só poderi am agir de uma certa maneira gasta muitas páginas algumas entre as mais brilhantes de O Capital para denunciar a cruel dade dos capitalistas por agirem precisamente dessa maneira A necessidade reconhecida por todos os políticos seja em assun tos internos ou internacionais de disfarçar interesses sob as vestes de princípios morais é por si só um sintoma da insufici ência do realismo Toda época reclama o direito de criar seus próprios valores e de fazer julgamento à luz deles e mesmo quando se utiliza armas realistas para dissolver outros valores ainda acredita no caráter absoluto de seus próprios valores Re cusase portanto a aceitar a afirmação do realismo de que a expressão dever ser é uma expressão sem sentido Acima de tudo o realismo consistente falha porque deixa de oferecer qualquer campo para a ação voltada para objetivos e significados Se a seqüência de causa e efeito for suficiente mente rígida para permitir a previsão científica dos aconteci mentos se o nosso pensamento for irrevogavelmente condicio nado por nosso status e nossos interesses então tanto a ação quanto o pensamento se tornam desprovidos de objetivo Se como Schopenhauer sustenta a verdadeira filosofia da história consiste na compreensão de que através do emaranhado de to das essas mudanças incessantes temos diante dos olhos o mes mo ser imutável que segue o mesmo rumo hoje ontem e para sempre então a contemplação passiva é tudo o que resta ao indivíduo Tal conclusão é claramente repugnante à mais pro funda crença do homem sobre si mesmo Que os assuntos huma nos possam ser dirigidos e modificados pela ação e pelo pensa mento humanos é um postulado tão fundamental que sua rejeição parece ser dificilmente compatível com a sua própria existência como ser humano De fato esse postulado também não é rejei tado pelos realistas que deixaram sua marca na história 8 Schopenhauer U7e1t ais U7i1e IInd Vorstellung II ch 38 122 E H CARR Maquiavel quando exortou seus compatriotas a serem bons ita lianos claramente estava pressupondo que eles eram livres para seguirem ou ignorarem seu conselho Marx um burguês por nas cimento e educação se acreditava livre para pensar e agir como um proletário e via como sua missão a de persuadir outros que presumia serem igualmente livres a pensar e agir da mesma forma Lenin que escreveu sobre a iminência da revolução mun dial como uma previsão científica admitiu em outra parte que não existe situação alguma que não possua em absoluto nenhuma saída Em momentos de crise Lenin apelava a seus seguidores em termos que bem poderiam ter sido usados por um crente tão radical no poder da vontade humana como Mussolini ou por qualquer outro líder em qualquer período No momento decisivo e no lugar decisivo você tem de provar ser o mais for te você precisa ser um vencedor Todo realista qualquer que seja sua crença é por fim compelido a crer não somente em que existe algo que o homem deve pensar e fazer mas ainda que existe algo que o homem pode pensar e fazer e que este pensa mento e esta ação não são mecânicos nem desprovidos de sentido Voltamos portanto à conclusão de que qualquer pensamen to político lúcido deve basearse em elementos tanto de utopia quanto de realidade Onde o pensamento utópico tornouse uma impostura vazia e intolerável que serve simplesmente como um disfarce para os interesses dos privilegiados o realista desem penha um serviço indispensável ao desmascarálo Mas o puro realismo não pode oferecer nada além de uma luta nua pelo po der que torna qualquer tipo de sociedade internacional impos sível Tendo demolido a utopia atual com as armas do realismo ainda necessitamos construir uma nova utopia para nós mes mos que um dia haverá de sucumbir diante das mesmas armas 9 Lenin Workr 2a ed russa XXV pág 340 10 Lenin Colleded Workr trad ingl XXI pág 68 123 As limitações do realismo A vontade humana continuará a procurar uma saída para as con seqüências lógicas do realismo na visão de uma ordem interna cional que ao se cristalizar numa forma política concreta tor nase eivada de interesse egoísta e hipocrisia devendo uma vez mais ser atacada com os instrumentos do realismo Aqui portanto está a complexidade o fascínio e a tragédia de toda vida política A política é composta de dois elementos utopia e realidade pertencentes a dois planos diferentes que jamais se encontram Não há barreira maior ao pensamento po lítico claro do que o fracasso em distinguir entre ideais que são utopia e instituições que são realidade O comunista que opu nha o comunismo à democracia pensava normalmente no co munismo como um ideal puro de igualdade e fraternidade e na democracia como uma instituição que existia na GrãBretanha França ou Estados Unidos e que tinha como inerentes a todas as instituições políticas os interesses escusos as desigualdades e a opressão O democrata que fazia a mesma comparação es tava de fato comparando um padrão ideal de democracia exis tente no céu com o comunismo como urna instituição existen te na Rússia Soviética com suas divisões de classes suas caças aos hereges e seus campos de concentração A comparação fei ta em ambos os casos entre um ideal e uma instituição é irrelevante e não faz sentido O ideal uma vez incorporado numa instituição deixa de ser um ideal e tornase a expressão de um interesse egoísta que deve ser destruído em nome de um novo ideal Esta constante interação de forças irreconciliáveis é a subs tância da política Toda situação política contém elementos mutuamente incompatíveis de utopia e realidade de moral e poder Este ponto emergirá com maior clareza da análise da na tureza da política que agora levaremos a efeito PARTE III POLÍTICA PODER E MORAL PARTE IV DIREITO E MUDANÇA CAPÍTULO VII A NATUREZA DA POLÍTICA o HOMEM sempre viveu em grupos O menor tipo de agrupamen to humano a família tem sido claramente necessária para a ma nutenção da espécie Mas tanto quanto se sabe os homens sem pre formaram desde os tempos mais primitivos grupos semipermanentes maiores do que a família simples e uma das funções de tais grupos era a de regular as relações entre seus membros A política lida com o comportamento dos homens em tais grupos permanentes ou semipermanentes organizados To das as tentativas de deduzirse a natureza da sociedade a partir do suposto comportamento do homem em isolamento são pura mente teóricas uma vez que não há razão para se presumir que tal homem tenha existido Aristóteles lançou os fundamentos de todo pensamento fundamentado sobre política quando declarou que o homem era por natureza um animal político O homem em sociedade reage a seus iguais de duas for mas opostas Às vezes demonstra egoísmo ou o desejo de se satisfazer às expensas de outros Em outras ocasiões demons tra sociabilidade ou o desejo de cooperar com os outros de manter relações recíprocas de boa vontade e de amizade com eles ou mesmo de subordinarse a eles Em toda sociedade pode se ver estas duas qualidades em ação Nenhuma sociedade pode existir a menos que uma porção substancial de seus membros demonstre em algum grau um desejo de cooperação e uma boa vontade mútua Mas toda sociedade requer alguma sanção para criar a quantidade de solidariedade imprescindível à sua manu tenção e essa sanção é aplicada por um grupo controlador ou 128 E H CARR indivíduo que age em nome da sociedade O ato de pertencer à maioria das sociedades é voluntário e a única sanção máxima que pode ser aplicada é a expulsão Contudo a peculiaridade da sociedade política que no mundo moderno assume a forma de Estado é a de que o ato de pertencer a ela é compulsório O estado como outras sociedades devese basear em algum senso de interesses e obrigações comuns entre seus membros Mas um grupo governante normalmente exerce coerção para forçar leal dade e obediência e esta coerção inevitavelmente significa que os governantes controlam os governados e os exploram para seus próprios objetivos 1 O caráter dualista da sociedade política é assim fortemente marcante O Professor Laski nos diz que todo Estado é construído sobre as consciências dos homenst Por outro lado a antropologia assim como muito da história recente ensina que a guerra parece ser a principal força na criação do Estado e o próprio Professor Laski em outra passagem afirma que nossa civilização mantémse unida mais por medo do que por boa von tade Não há contradição entre essas opiniões aparentemente opostas Quando Tom Paine em Tbe RighlS of Man tenta con frontar Burke com o dilema de que os governos surgem ou do povo ou sobre o povo a resposta é ambas as coisas Coerção e consciência inimizade e boa vontade autoafirmação e auto subordinação estão presentes em toda sociedade política O es tado é construído a partir desses dois aspectos conflitantes da natureza humana Utopia e realidade o ideal e a instituição moral e poder estão desde o princípio inextricavelmente combina dos nele Na construção dos Estados Unidos como um autor 1 Por toda parte percebo uma certa conspiração dos ricos buscando sua vantagem própria sob o nome e o pretexto da comunidade More Utopia A exploração de uma parte da sociedade por outra é comum a todos os séculos passados Manifesto Comunista 2 A Defense oi Liberry against Tyrants Vindiciae contra Tyranos ed Laski Introdução pág 55 3 Linton The Study oi Man pág 240 Laski A Grammar oi Palitics pág 20 A natureza da política 129 americano atual disse Hamilton representou a força a riqueza e o poder e Jefferson o sonho americano e tanto o poder quanto o sonho eram ingredientes necessários Se isto for correto podemos extrair daí uma conclusão im portante O utópico que sonha ser possível eliminar a autoafir mação da política e basear um sistema político unicamente na moral está tão distante dos fatos quanto o realista que crê que o altruísmo seja uma ilusão e que toda ação política seja basea da no interesse próprio Estes erros deixaram suas marcas na terminologia popular A expressão política de poder é quase sempre usada num sentido pejorativo como se o elemento do poder ou da autoafirmação na política fosse algo anormal ou suscetível de eliminação de uma vida política sadia Inversamen te há uma disposição mesmo entre alguns autores que não são estritamente falando realistas em tratar a política como a ciên cia do poder e de um fim em si mesmo e em excluir dela por definição ações inspiradas pela consciência moral O Professor Catlin descreve o homo politicus como o que procura colocar em conformidade com seus desejos os desejos dos outros de modo a que possa melhor atingir seus fins Tais implicações terminológicas são desorientadoras Não se pode divorciar polí tica de poder Mas o homo politicus que só visa ao poder é um mito tão irreal quanto o homo economicus que só visa ao lucro 3 J Truslow Adams The Epic of America pág 112 A idéia de que o estado tenha um fundamento moral tanto quanto um fundamento de poder no consentimento de seus cidadãos foi proposta por Locke e Rousseau e popularizada pelas revoluções americana e francesa Duas recentes expressões dessa idéia podem ser citadas A declaração de indepen dência da Tchecoslováquia de 18 de outubro de 1918 descreveu a AustriaHungria como um Estado que não possui justificativa para sua existência e que uma vez que se recusa a aceitar a base fundamental da atual organização mundial isto é a autodeterminação é apenas uma construção artificial e imoral Em fevereiro de 1938 Hitler disse a Schuschnigg o então Chanceler austríaco que um regime que não possui qualquer tipo de legalidade e que em realidade se impõe somente pela força tem de cair no longo prazo em conflito crescente com a opinião pública discurso no Reichstag em 17 de março de 1938 Hitler sustentava que os dois pilares do Estado são a força e a popularidade Mein Kompj pág 579 6 Catlin Tbe Science and Metbod of Poliria pág 309 130 E H CARR Devese basear a ação política numa coordenação de moral e poder Esta verdade é de importância tanto pratIca quanto teon ca É tão fatal em política ignorar o poder quanto ignorar a moral O destino da China no século dezenove é um exemplo do que acontece a um pais que se contenta em crer na superiori dade moral de sua civilização e a desprezar os caminhos do poder O Governo Liberal da GrãBretanha quase sofreu um desastre na primavera de 1914 porque procurou adotar uma política com relação à Irlanda baseada na autoridade moral sem o apoio de ou melhor diretamente oposta ao poder mili tar efetivo Na Alemanha a Assembléia de Frankfurt de 1848 é o exemplo clássico da impotência das idéias divorciadas do po der A República de Weimar fracassou porque multas das ações políticas que adotou de fato quase todas exceto sua oposição aos comunistas não contavam com o apoio de poder militar efe tivo ou mesmo ativamente se opunham ao poder O utópico que acredita que a democracia não se baseia na força se recusa a encarar esses fatos incômodos de frente Por outro lado o realista que acredita que se você cuidar do poder a autoridade moral cuidará dela própria está igual mente incidindo em erro A mais recente formulação desta dou trina está incorporada na frase muito citada A função da força é dar às idéias morais o tempo necessário para criarem raízes Internacionalmente este argumento foi utilizado em 1919 por aqueles que sem poderem defender o Tratado de Versailles no plano moral sustentavam que este ato de poder inicial prepara ria o caminho para a subseqüente pacificação moral A experi ência fez muito pouco para confirmar esta crença confortável A mesma falácia está implícita na opinião outrora popular de 7 É significativo o fato de que a palavra Realpolitik tenha sido criada no outrora famoso tratado de von Rochau Grundsãtze der Realpolitik publicado em 1853 que foi grandemente inspirado nas lições de Frankfurt A inspiração que a Realpolitik de Hitler retirou dos ensinamentos da República de Weimar é evidente A natureza da política 131 que o objetivo da política britânica deveria ser o de reestruturar a Liga das Nações tornála capaz de coibir um agressor político por meio de poder armado e depois trabalhar constantemente para a mitigação das queixas justas e reais Uma vez que o inimigo tenha sido esmagado ou o agressor reprimido pela força o depois deixa de ocorrer A ilusão de que se possa dar prioridade ao poder que a moral virá naturalmente é tão peri gosa quanto a ilusão de que se possa dar prioridade à autoridade moral que o poder virá naturalmente depois Antes contudo de procedermos ao exame dos respectivos papéis do poder e da moral na política devemos estudar as opi niões dos que embora longe de serem realistas identificam a política com o poder e acreditam que os conceitos morais de vam ser excluídos de sua esfera Há de acordo com essa opi nião uma contradição essencial entre política e moral e o ho mem moral como tal jamais se relacionaria portanto com a política Esta tese possui muitos atrativos e reaparece em dife rentes períodos da história e em diferentes contextos Assume pelo menos três formas i Sua forma mais simples é a doutrina da nãoresistência O homem reconhece a existência do poder político como um mal mas acha que o uso da força para resistir à força é um mal ainda maior Esta é a base de doutrinas de nãoresistência como as de Jesus ou de Gandhi ou do atual pacifismo Acarreta em resumo um boicote da política ii A segunda forma de antítese entre política e moral é o anarquismo O estado como o principal órgão do poder políti co é a mais flagrante a mais cínica e a mais completa negação da humanidade O anarquista usará a força para derrubar o 8Winston Churchill Arou and lhe Caoenant pág 368 O argumento de que o poder é a força motriz necessária para o remédio das queixas justas está desenvolvido no capítulo 13 9 Bakunin Oevres i pág 150 cf vi pág 17 Se existe um demônio em toda a história humana este é o princípio da autoridade e do comando 132 E H CARR estado Não se considera esta força revolucionária no entanto como poder político mas como a revolta espontânea da consci ência individual ultrajada Não se pretende criar uma nova soci edade política para substituir a velha mas uma sociedade moral da qual o poder e conseqüentemente a política seriam comple tamente eliminados Os princípios do Sermão da Montanha como ressaltou recentemente um teólogo inglês significaria a morte súbita da sociedade civilizada O anarquista pretende destruir a sociedade civilizada em nome do Sermão da Mon tanha iii Uma terceira escola de pensamento parte da mesma pre missa da antítese fundamental entre moral e política mas chega a uma conclusão totalmente diferente A exortação de Jesus de dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus impli ca a coexistência de dois domínios separados o político e o moral Mas o homem moral está na obrigação de ajudar ou pelo menos de não impedir o político no desempenho de suas fun ções nãomorais Deixai cada alma sujeitarse aos poderes mais altos Os poderes que existem foram instituídos por Deus Nós então reconhecemos a política como necessária mas amoral Esta tradição que permaneceu adormecida durante a Idade Média quando a autoridade eclesiástica e a secular eram teoricamente uma só foi revivida por Lutero para realizar seu pacto entre a igreja reformista e o estado Lutero ao sugerir que os princípi os do Evangelho possuíam significado social lançou os campo neses de seu tempo num terror sagrado A divisão de compe tências entre César e Deus está implícita na própria concepção de uma Igreja estabelecida Mas a tradição se manteve mais persistente e mais eficaz na Alemanha luterana do que em qual quer outra parte Não consultamos Jesus escreveu um pastor liberal alemão do século dezenove quando tratamos de coisas que pertencem ao domínio da construção do estado e da econo 111 O Decano da igreja de São Paulo citado num artigo de Tbe Times August 2 1937 11 R Niebuhr Moral Man and ImmoralSociety pág 77 A natureza da política 133 mia política enquanto Bernhardi afirmava que a moral cristã é individual e social e sua natureza não pode ser políticat A mesma atitude está inerente na teologia atual de Karl Barth que insiste em que os males políticos e sociais são o produto neces sário da natureza pecadora do homem e que o esforço humano para erradicálos é portanto fútil e a doutrina de que a moral cristã nada tem a ver com política é vigorosamente sustentada pelo regime nazista Este ponto de vista é basicamente diferen te daquele do realista que torna a moral função da política Entretanto no campo da política ele tende a se tornar indistin to do realismo A te o ria do divórcio entre os campos da política e da moral é superficialmente atraente nem que seja pelo simples fato de evitar o insolúvel problema de encontrar uma justificativa mo ral para o uso da força 14 Mas não se revela plenamente satisfa tória Tanto a nãoresistência quanto a anarquia são conselhos típicos do desespero que parecem encontrar grande aceitação somente quando os homens se sentem sem esperanças de atingi rem algo através da ação política e a tentativa de manter Deus e César em compartimentos estanques é demasiadamente contrá ria ao profundo desejo da mente humana de reduzir sua visão do mundo a algum tipo de ordem moral Não nos satisfazemos a longo prazo em crer que o politicamente bom seja moralmente mau e uma vez que não podemos moralizar a força nem alijála da política nos defrontamos com um dilema que não pode ser completamente resolvido 15 Os planos da utopia e da realidade I Citado em Xl F Bruck Social and Economic History of GerTIJany pág 65 13 Bernhardi Gerrnany and lhe Next War trad ingl pág 29 14 A força no lugar certo como Maxron disse certa vez na Câmara dos Comuns é uma concepção sem sentido porque o lugar certo para mim é exatamente onde eu queira usá la e para ele também e para qualquer outro House of Commons November 7 1933 Oflicial Record cal 130 A força em política é sempre o instrumento de algum tipo de interesse de grupo 15 Acton gostava de dizer que os grandes homens são quase sempre homens maus e cita o dito de Walpole de que jamais um grande país foi salvo por homens bons Hislory of Freedoru pág 219 Rosebery demonstrou maior acuidade quando ressaltou que há uma pergunta que o povo inglês faz sobre grandes homens Ele foi um homem bom Napoleon The Las Phase pág 364 134 E H CARR nunca coincidem O ideal não pode ser institucionalizado nem a instituição idealizada A política escreve Niebuhr será até o fim da história uma área onde a consciência e a força se encontram onde os fatores éticos e coercitivos da vida humana se interpenetrarão e criarão tentativamente seus arranjos difí ceis Os arranjos assim como as soluções de outros proble mas humanos permanecerão difíceis e tentativos Mas constitui parte fundamental de todo arranjo baseado num compromisso que ambos os fatores sejam levados em conta Devemos agora portanto analisar o papel que desempe nham na política internacional estes dois fatores primordiais poder e moral 16 R Niebuhr Moral Man and Imrnoral Sociery pág 4 CAPÍTULO VIII o PODER NA POLÍTICA INTERNACIONAL A POLÍTICA é em certo sentido sempre política de poder N or malrnente não se aplica o termo política a todas as atividades do Estado e sim às questões envolvendo um conflito de poder Uma vez que esse conflito tenha sido resolvido a questão deixa de ser política e se torna matéria da rotina administrativa Da mesma forma nem todas as relações entre estados são políti cas Quando os estados cooperam entre si para manterem servi ços postais ou de transportes ou para prevenirem o alastramento de epidemias ou ainda para suprimirem o tráfico de entorpe centes essas atividades se denominam nãopolíticas ou técni cas Mas logo que surge uma questão que envolve ou parece envolver o poder de um estado com relação a outro o assunto se torna imediatamente político Embora não se possa definir a política exclusivamente em termos de poder é seguro dizerse que o poder é sempre um elemento essencial da política Para se entender um assunto político não basta como bastaria no caso de uma questão legal ou técnica saber do que se trata É necessá rio também saber quem está envolvido Uma questão levantada por um pequeno número de indivíduos não constitui o mesmo fato político do que a mesma questão levantada por um sindica to poderoso e bem organizado Um problema político entre Grã Bretanha e Japão é algo bem diferente do que possa ser o mes mo problema entre GrãBretanha e Nicarágua A política começa onde estão as massas disse Lenin não onde estão os milhares e sim os milhões é aí onde começa a política séria I Lenin Seeced Worb trad ingl vii pág 295 136 E H CARR Houve períodos da história em que seria supérfluo insistir neste fato e em que o dito de Engels de que sem força e mão de ferro nada se consegue na história passaria por um lugar comum Mas no relativamente bem ordenado mundo do libera lismo do século dezenove formas mais sutis de coerção oculta ram dos observadores menos perspicazes as maquinações contínuas embora silenciosas do poder político Nas democra cias de toda forma essa dissimulação ainda é parcialmente efe tiva Após a Primeira Guerra Mundial a tradição liberal foi trazida para a política internacional Autores utópicos dos paí ses de língua inglesa acreditavam seriamente em que o estabe lecimento da Liga das Nações significaria a eliminação da força nas relações internacionais e a substituição dos exércitos e ma rinhas pela discussão A política de poder era vista como uma marca dos velhos tempos ruins e tornouse uma expressão inju riosa O motivo para esta crença ter persistido por mais de dez anos foi o fato de que as grandes potências cujo principal inte resse era a preservação do status quo detinham durante todo o período um virtual monopólio do poder Uma partida de xadrez entre um campeão mundial e um escolar seria tão rápida e facil mente vencida que poderseia entender o espectador leigo que supõe que para se jogar xadrez é necessária pouca habilidade Da mesma forma o ingênuo espectador do jogo da política in ternacional poderia presumir entre 1920 e 1931 que o poder desempenhava um papel pouco importante no jogo O que se passou a denominar volta à política de poder em 1931 foi de 2 Marx e Engels WorkJ ed russa vii pág 212 3 Mesmo Lord Baldwin comprometeuse em 1925 com a perigosa meiaverdade de que a democracia é o governo pela discussão pelo debate On Engjand pág 95 N uma carta recente ao Tbe Times Frederic Harrison ressalta sobre a British Commonwealth que ela não se funda na conquista nem se mantém pela força das armas Não foi adquirida pela força de nossa marinha ou de nosso exército mas pela força do caráter e está firmemente unida por elos de identidade de um interesse de uma língua e de uma história comuns The Times june 30 1938 Também é uma perigosa meiaverdade que abafa a outra e igual mente importante metade afirmar que a Comunidade Britânica se mantém unida pelo imenso poder econômico e militar da GrãBretanha e se dissolveria imediatamente se este poder fosse perdido 137 o poder na política internacional fato o término do monopólio de poder que as potências do status quo desfrutavam O lamento de Stalin de que nos nossos dias não é costume levar em conta o fraco e a observação de Neville Chamberlain de que no mundo como se encontra hoje em dia uma nação desarmada tem pouca chance de se fazer Ouvir foram tributos curiosos mais surpreendente no caso do militan te marxista do que no caso do herdeiro da tradição britânica do século dezenove à ilusão de que outrora teria havido uma épo ca em que os países fracos e desarmados desempenhavam um papel importante na política internacional O pressuposto da eliminação da força na política só pode ria ser o resultado de uma atitude totalmente acrítica em rela ção aos problemas políticos Nos assuntos da Liga das Nações a igualdade formal e a participação de todos no debate não tor naram o fator poder nem um pouco menos decisivo Os próprios fundadores da Liga não alimentavam tal ilusão House pensava originariamente que só as grandes potências deveriam ser ad mitidas na Ligas Nos primeiros projetos britânicos e america nos do Pacto constava que a participação no Conselho da Liga seria limi tada às grandes potências e Lord Cecil notou num des ses projetos que de qualquer forma as potências menores não exerceriam nenhuma influência considerável Esta previsão se realizou Um delegado italiano afirma que durante o longo pe ríodo de sua atuação regular em Genebra ele jamais viu uma disputa de alguma importância ser resolvida de outra forma que não por um acordo entre as grandes potências e que o procedi mento da Liga era um sistema de desvios todos levando a uma ou outra dessas duas hipóteses acordo ou desacordo entre Grã Bretanha Itália França e Alemanha Apesar de nossa igual Relatóno do 160 Congresso do Partido Comimista fumo reeditado em LUnion Soviétique et la Cause de la Paix pág 25 Tbe Times june 26 1939 5 lntimate Papers oj Colonel HOJIJe ed C Seymour iv pág 24 6 Miller The Drafting oj tbe Couenant ii pág 61 Os aumentos subseqüentes do número de membros do Conselho da Liga das Nações já foram mencionados 7 Tbe Foreign Policy oj tbe Potuers 1935 reeditado de Foreign Affairs págs 867 138 E H CARR dade jurídica aqui disse De Valera um pouco mais tarde em matérias como a paz européia os pequenos Estados são impo tentes As decisões sobre a aplicação de sanções contra a Itá lia no inverno de 193536 foram com efeito tomadas somente pela GrãBretanha e a França detentoras da efetiva força eco nômica e militar no Mediterrâneo As potências menores segui ram sua liderança e uma delas foi realmente recompensada pela GrãBretanha e França por isso Entretanto não foi somente em Genebra que os países mais fracos ajustaram seu curso de ação ao dos mais fortes Quando a GrãBretanha abandonou o padrão ouro em setembro de 1931 várias potências menores foram obrigadas a seguir seu exemplo Quando a França abandonou o padrão ouro em setembro de 1936 Suíça e Holanda os últimos países que o adotavam livre mente foram compelidas a fazer o mesmo e muitos outros paí ses menores tiveram de alterar o valor de suas moedas Quando a França era militarmente forte na Europa na década de vinte um certo número de potências menores se agrupou sob sua égide Quando a força militar da Alemanha eclipsou a da França a maioria desses países fizeram declarações de neutralidade ou passaram para o lado da Alemanha A alegada ditadura das gran des potências que por vezes é denunciada por autores utópi cos como se fosse uma política malévola deliberadamente ado tada por certos estados é um fato que constitui algo como uma lei da natureza em política internacional Tornase necessário neste ponto dissipar a atual ilusão de que a política dos estados que estão em termos gerais satisfei tos com o status quo e cuja palavra de ordem é segurança seja de alguma forma menos preocupada com a força do que a política dos estados insatisfeitos e que a expressão popular po lítica de poder se aplique aos atos desses últimos mas não aos dos primeiros Esta ilusão que exerce uma atração quase irresistível sobre os publicistas das potências saciadas é res 8 League of Nations Sixteenth Assemby Parte Il pág 49 139 o poder na política internacional ponsável por multas idéias confusas sobre política internacio nal A busca da segurança pelas potências saciadas tem sido freqüentemente motivo de flagrantes exemplos de política de poder Com o objetivo de se assegurarem contra a vingança de um inimigo derrotado as potências vitoriosas no passado re corriam a medidas como a tomada de reféns a mutilação ou escravização de homens em idade militar ou nos tempos atu ais o desmembramento e ocupação de território ou desarma mento forçado É um grande equívoco representar a luta entre as potências saciadas e as insatisfeitas como uma luta entre a moral de um lado e a força do outro É uma questão na qual qualquer que seja o envolvimento moral a política de força predomina de ambos os lados A história do Tratado de Locarno é um exemplo simples e revelador da ação da política de poder A primeira proposta de um tratado que garantisse a fronteira ocidental alemã foi feita pela Alemanha em dezembro de 1922 e enfaticamente rejeita da por Poincaré Nessa época às vésperas da invasão do Ruhr a Alemanha tinha tudo a temer da França e esta nada a temer de uma Alemanha indefesa e assim o tratado não atraiu a Fran ça Dois anos depois e a situação havia mudado A invasão do Ruhr trouxe pouca vantagem à França e deixoua perplexa quan to ao próximo passo a ser dado A Alemanha poderia tornarse um dia poderosa de novo A Alemanha por outro lado ainda temia a supremacia militar francesa e ansiava por uma garantia Foi o momento psicológico em que o temor da França pela Ale manha estava quase igualmente equilibrado pelo temor da Ale manha pela França e um tratado que não havia sido possível dois anos antes e que não seria possível cinco anos depois foi então bemvindo para ambos Além disso os interesses de po der da GrãBretanha coincidiam com os da Alemanha A Ale manha tinha abandonado as esperanças de conseguir uma revi são das fronteiras ocidentais mas não das outras fronteiras A GrãBretanha estava pronta a garantir as fronteiras alemãs no 140 E H CARR ocidente mas não as outras A Alemanha ansiosa para acelerar a retirada do exército aliado da Renânia não tinha ainda espe ranças de pôr fim às restrições impostas pelas cláusulas de desmilitarização do Tratado de Versail1es e estava portanto preparada para aceitar o novo acordo reafirmando sua aceita ção dessas cláusulas e colocandoas sob uma garantia Tal foi o pano de fundo do famoso Tratado de Locarno Seu sucesso foi estrondoso Por muitos anos desde então fizeram se tentativas de repetilo em outros campos Vários Locarnos sobre o Mediterrâneo e a Europa do Leste foram discutidos no entanto o fracasso em serem materializados desapontou e intri gou as pessoas que acreditavam que todos os problemas inter nacionais em toda parte poderseiam resolver por instrumen tos que seguissem o mesmo padrão O que não conseguiram entender é que o Tratado de Locarno era uma expressão da polí tica de poder num período e local particulares Dez anos após sua celebração o delicado equilíbrio em que se apoiava desapa receu A França temia a Alemanha mais do que nunca Mas a Alemanha não mais temia nada da França O Tratado não pos suía mais nenhum sentido para a Alemanha exceto como uma afirmação das cláusulas de desmili tarização do Tratado de Versail1es que ela agora podia esperar derrubar A única parte do Tratado de Locarno que ainda correspondia à situação da política de poder era a garantia britânica à França e à Bélgica Esta foi repetida pela GrãBretanha depois de o resto do Trata do ter sido denunciado pela Alemanha A história de Locarno é um exemplo clássico de política de poder Ele permanece in compreensível aos que procuram soluções uniformes a priori do problema da segurança e vêem a política de força como um fe nômeno anormal visível apenas em períodos de crise O fracasso em reconhecer que a força é um elemento es sencial da política viciou até agora todas as tentativas de se estabelecer formas de governo do meio internacional e confun diu quase todas as tentativas de se discutir o assunto O poder é 141 o poder na política internacional um instrumento indispensável de governo Internacionalizar o governo em qualquer sentido real significa internacionalizar o poder e o governo internacional é de fato o governo pelo esta do que conta com o poder necessário para o propósito de gover nar Os casos de autoridades internacionais estabelecidas pelo Tratado de Versailles em várias partes da Europa foram de ca ráter temporário e não tiveram portanto de enfrentar os pro blemas das políticas de longo prazo Contudo mesmo esses ca sos ilustram a íntima conexão entre governo e poder A Alta Comissão Interaliada que exerceu na Renânia ocupada as fun ções de governo necessárias à segurança das tropas aliadas fun cionou bem enquanto as políticas britânica e francesa coincidi ram Quando a crise do Ruhr causou uma séria divergência de opinião entre os governos britânico e francês a política france sa foi aplicada nas zonas ocupadas pelas tropas francesas e bel gas e a política britânica nas zonas ocupadas pelas tropas britâ nicas com a política de governo nesses locais sendo determinada pela nacionalidade do poder sobre que repousava a autoridade A Comissão Interaliada designada para conduzir o plebiscito na Silésia Superior seguiu a política francesa de favorecer a Polônia na medida em que as tropas aliadas de que sua autori dade dependia eram fornecidas quase exclusivamente pela Fran ça Essa política só foi corrigida quando tropas inglesas foram enviadas para a área O controle efetivo de todo governo de pende da fonte de seu poder O problema da relação entre governo internacional e poder foi levantado de forma mais aguda pelo sistema de mandatos e pela freqüente proposta de que a administração de alguns ou todos os territórios coloniais fosse internacionalizada Aqui nos defrontamos com uma questão de governo permanente en volvendo a formulação de uma política de longo prazo de tipo diferente daquele elaborado entre aliados sob a pressão de uma guerra ou para o objetivo de implementar um tratado imposto em conjunto Podese ilustrar sua natureza a partir do caso da 142 E H CARR Palestina A política na Palestina era dependente da quantidade de força militar que ali pudesse ser empregada e tinha portan to que ser determinada não pela Comissão de Mandatos que não tinha força à sua disposição mas pelo governo britânico que supria a força pois qualquer que fosse a opinião da Comis são de Mandatos não se poderia pensar que tropas britânicas fossem usadas para levar a efeito uma política com a qual o go verno ou o eleitorado britânicos não concordassem Sob qual quer sistema internacional de governo a política dependeria nos momentos críticos da decisão do Estado que suprisse as forças das quais a autoridade do governo dependesse Se como acon teceria quase inevitavelmente o controle de um território inter nacional fosse dividido geograficamente entre as forças dos di ferentes Estados as diferentes zonas em períodos de divergência internacional seguiriam políticas discordantes e as antigas riva lidades internacionais voltariam a ocorrer numa nova e igual mente perigosa forma Problemas de desenvolvimento econô mico seriam não menos desafiadores A administração internacional de áreas coloniais escreveu Lugard ele próprio um administrador experiente e esclarecido paralisaria toda a iniciativa pela mão morta de uma superburocracia desprovida de sentimento nacional e abafando todo o patriotismo e seria bastante desvantajosa para os países envolvidos Qualquer governo internacional real é impossível na medida em que o poder que é uma condição fundamental do governo está orga nizado nacionalmente O secretariado internacional da Liga das N ações pôde funcionar precisamente porque era um serviço público não era responsável pela política sendo portanto in dependente do poder 9 Em 1926 quando a Comissão de Mandatos discutia a Palestina Rappard pensava que o país mandatário seria gravemente responsabilizado se algum dia se defrontasse com a impossibilidade de evitar um pogrom devido à insuficiência de tropas Sua responsabilida de com efeito seria compartilhada pela Comissão de Mandatos se esta não houvesse alertado para o perigo Permanent MandatesCommission Minllte ofNinth Sessio pág 184 A responsabilidade da Comissão era portanto limitada a alertar 10 Lugard Tbe Dual Mandate in Tropical Africa pág 53 o poder na política internacional 143 Podese dividir o poder político na esfera internacional em três categorias para fins de discussão a poder militar b poder econômico c poder sobre a opinião Descobriremos entretan to que estas três categorias são bastante interdependentes e embora sejam separáveis teoricamente é difícil na prática ima ginar um país que por algum período de tempo possua algum tipo de poder isolado dos outros Em sua essência o poder é um todo indivisível As leis da dinâmica social disse recente mente um crítico são leis que só podem ser estabelecidas em termos de poder e não em termos desta ou daquela forma de poder a o PODER MILITAR A suprema importância do instrumento militar repousa no fato de que a ultima ratio do poder nas relações internacionais é a guerra Todo ato do Estado no aspecto do poder está dirigi do para a guerra não como uma arma desejável mas como uma arma que pode ser necessária como último recurso O aforismo famoso de Clausewitz de que a guerra não é nada mais do que a continuação das relações políticas por outros meios foi re petido com aprovação tanto por Lenin quanto pela Internacio nal Comunistaê e Hitler pensava na mesma coisa quando disse que uma aliança cujo objetivo não inclua a intenção de lutar é sem sentido e inútil Seguindo a mesma orientação Hawtrey define a diplomacia como a guerra em potencial Estas ob servações são meiasverdades Mas o mais importante é reco nhecer que elas são verdades A guerra espreita os bastidores da política internacional assim como a revolução espreita os basti 11 Bertrand Russell Pouer pág 11 Devo a este livro que é uma análise hábil e estimulante do poder como o conceito fundamental na ciência social a classificação tripartite adotada 12 Lenin Collected Works trad ingl xviii pág 97 Teses do Sexto Congresso do Comintern apud Taracouzio Tbe Sooiet Union and lnternational Latu pág 436 13 Hitler Mein KampJ pág 749 14 R G Hawtrey Economic Apeeis of Sovereignry pág 107 144 E H CARR dores da política interna Há poucos países europeus onde em alguma época dos últimos trinta anos uma revolução em poten cial não tenha sido um fator importante na política e a comu nidade internacional possui a esse respeito a mais próxima se melhança com aqueles Estados onde a possibilidade de revolução é mais freqüente e presente nas idéias Sendo a guerra em potencial portanto um fator dominante na política internacional o poderio militar tornase um padrão aceito dos valores políticos Toda grande civilização do passado desfrutou em sua época uma superioridade de poder militar A CidadeEstado grega atingiu seu apogeu quando seus exércitos de hoplitas provaram ser mais do que um adversário à altura das hordas persas No mundo atual as potências a própria palavra é bastante significativa são classificadas de acordo com a qua lidade e a suposta eficiência do equipamento militar incluindo a força humana à sua disposição O reconhecimento da condi ção de grande potência é normalmente o prêmio por lutar com sucesso numa grande guerra A Alemanha após a Guerra Fran coPrussiana os Estados Unidos após a guerra contra a Espanha e o Japão após a Guerra Russojaponesa são exemplos recente e familiares A ligeira dúvida relacionada com o status da Itália como grande potência devese parcialmente ao fato de que ela jamais provou seu valor numa guerra importante Qualquer sin toma de ineficiência ou despreparo militar numa grande potên cia refletese imediatamente em status político O motim naval em Invergordon em setembro de 1931 foi o golpe final no pres tígio britânico e compeliu a GrãBretanha a desvalorizar sua moeda A execução dos principais generais soviéticos sob ale gação de traição em junho de 1937 pareceu revelar tanta fra queza na máquina militar soviética que a influência da Rússia Soviética sofreu uma súbita e severa queda Governantes de to das as grandes potências periodicamente pronunciam discursos 13 Provavelmente é oportuno rememorar o papel assumido na política britânica pela ameaça de o Partido Conservador no sentido de apoiar a ação revolucionária no Ulster 145 o poder na política internacional exaltando a eficiência de seu exército de sua marinha e de sua força aérea e as revistas e paradas militares são organizadas com o fito de impressionar o mundo com a força militar e o conse qüente status político da nação Nas crises internacionais fro tas tropas e esquadrões aéreos se mostram significativamente nos pontos cruciais com o mesmo propósito Estes fatos revelam a moral de que a política externa ja mais pode ou jamais deveria divorciarse da estratégia A polí tica externa de um país se limita não somente por seus objeti vos mas ainda por sua força militar ou mais precisamente pela razão entre sua força militar e a dos outros países O problema mais sério relativo ao controle democrático da política externa é que nenhum governo pode permitirse divulgar informações completas e francas acerca de sua própria força militar ou todo o conhecimento que possui sobre a força militar dos outros pa ises As discussões públicas sobre política externa são portan to conduzidas na ignorância total ou parcial de um dos fatores que devem ser decisivos para determinála Uma regra constitu cional consagrada há muito impede que membros do Parlamento proponham projetos que acarretem despesa pública Poderseia impor a mesma restrição contra os que advogam políticas que acarretem risco de guerra pois somente o governo e seus asses sores podem estabelecer as circunstâncias com conhecimento completo dos fatos relevantes Muitos livros e discursos con temporâneos sobre política internacional lembram os proble mas matemáticos complicados que o estudante é chamado a re solver ignbrando o peso do elefante As soluções propostas são claras e precisas no plano abstrato mas são obtidas não se levando em conta o fator estratégico vital Mesmo um trabalho tão importante e de certa forma tão valioso como Annual Survey oi International Affairs freqüentemente alça vôo para o reino da fantasia quando embarca na crítica de políticas precisamente porque negligencia as limitações militares que sempre estão pre sentes na mente dos que devem resolver problemas de política 146 E H CARR externa na vida real Se todo autor desejoso de escrever sobre política internacional nos últimos vintes anos houvesse feito um curso compulsório de estratégia elementar resmas de dispa rates não teriam sido escritas O poder militar sendo um elemento essencial na vida do Estado tornase não só um instrumento mas um fim em si mes mo Poucas dentre as guerras importantes dos últimos cem anos parecem ter sido travadas com o objetivo deliberado e consci ente de expandir o comércio ou o território Lutamse as guer ras mais sérias para tornar o próprio país militarmente mais for te ou com mais freqüência para evitar que outro país se torne militarmente mais forte de modo que se encontra muita justifi cativa para o epigrama de que a principal causa da guerra é a própria guerra Cada fase das guerras napoleônicas foi elabo rada para preparar o caminho para a fase seguinte a invasão da Rússia foi levada a efeito com o objetivo de tornar Napoleão suficientemente forte para derrotar a GrãBretanha A Guerra da Criméia foi lançada pela GrãBretanha e pela França com o fito de evitar que a Rússia se tornasse suficientemente forte para no futuro atacar suas possessões e interesses no Oriente Próxi mo Uma nota endereçada à Liga das Nações pelo governo so viético em 1924 descreve as origens da Guerra Russojaponesa de 19045 como se segue Quando os barcos torpedeiros japo neses atacaram a frota russa em Porto Artur em 1904 foi clara mente um ato de agressão de um ponto de vista técnico mas politicamente falando foi um ato causado pela política agressi va do governo tsarista contra o Japão que visando a prevenir o perigo deu o primeiro golpe em seu adversário Em 1914 a Áustria enviou um ultimato à Sérvia porque acreditava que os servios estivessem planejando a queda da Monarquia Dual a Rússia temia que a ÁustriaHungria caso derrotasse a Sérvia viesse a se tornar forte o suficiente para ameaçála A Alemanha 16 R C Hawtrey Econami Aspects oi Sovereignty pág 105 17 League oi Nations Offidaljournal May 1924 pág 578 o poder na política internacional 147 temia que se a Rússia derrotasse a ÁustriaHungria tornarseia forte o suficiente para ameaçála A França desde há muito acreditava que a Alemanha se derrotasse a Rússia seria forte o suficiente para ameaçála e por isso concluiu a aliança Franco Russa e a GrãBretanha temia que a Alemanha se derrotasse a França e ocupasse a Bélgica se tornaria forte o suficiente para ameaçála Finalmente os Estados Unidos vieram a temer que a Alemanha se vencesse a guerra se tornasse suficientemente forte para ameaçálos Portanto a guerra nas mentes de todos os prin cipais combatentes tinha um caráter defensivo ou preventivo Eles lutavam com o objetivo de não serem postos numa posição mais desfavorável numa possível guerra futura Mesmo as aqui sições coloniais foram freqüentemente impelidas pelo mesmo motivo A consolidação e a anexação formal dos antigos povoa mentos britânicos na Austrália foram inspiradas pelo medo do pretenso propósito de Napoleão de lá estabelecer colônias fran cesas Razões militares mais do que econômicas levaram à cap tura das colônias alemãs durante a guerra de 1914 e depois impediram sua devolução à Alemanha É provável ser esta a razão porque o exercício do poder sempre parece gerar o apetite por mais poder Não existe como o Dr Niebuhr diz nenhuma possibilidade de se traçar uma li nha precisa entre o desejo de viver e o desejo de poder18 O nacionalismo tendo atingido seu primeiro objetivo sob a forma de unidade e independência nacional se transforma quase auto maticamente em imperialismo A política internacional confir ma amplamente os aforismos de Maquiavel de que os homens nunca se sentem seguros possuidores do que têm até que adqui ram algo mais de outros e de Hobbes de que o homem não pode assegurar o poder e os meios de viver bem aquilo que pos sui sem a aquisição de mais As guerras começadas por rnoti 18 R Niebuhr Moral Man and Immoral Sociery pâg 42 19 Maquiavel Discorsi i capo V 20 Hobbes Leoiatã capo xi 148 E H CARR vos de segurança tornamse rapidamente guerras de agressão e de locupletação O Presidente McKinley convocou os Estados Unidos a intervirem em Cuba contra a Espanha para assegu rar o término completo e final das hostilidades entre o governo da Espanha e o povo de Cuba e o estabelecimento de um go verno estável na ilha Entretanto na época do fim da guerra a tentação de expandirse anexando as Filipinas tornouse irresistível Quase todo país participante da Primeira Guerra Mundial entendia sua participação como uma guerra de auto defesa e essa crença era particularmente forte no lado aliado á durante o curso da guerra todo governo aliado na Europa anun ciava seus objetivos de guerra que incluíam a aquisição de ter ritório das potências inimigas Nas condições atuais guerras de objetivo limitado tornaramse quase tão impossíveis quanto guer ras de engajamento limitado Uma das falácias da teoria da se gurança coletiva é a de que se possa fazer a guerra com o propó si to específico e desinteressado de resistência à agressão Houvesse a Liga das Nações no outono de 1935 sob a lideran ça da GrãBretanha adotado sanções militares contra a Itália teria sido impossível restringir a campanha à expulsão das tro pas italianas da Abissínia As operações teriam muito prova velmente levado à ocupação das colônias italianas da África Oriental pela GrãBretanha e França de Trieste Fiume e Albânia pela Iugoslávia e das ilhas do Dodecaneso pela Grécia ou Tur quia ou ambas e os objetivos de guerra teriam sido anunciados evitando em vários itens capciosos a devolução desses territó rios à Itália As ambições territoriais realmente parecem ser tan to o produto quanto a causa da guerra b o PODER ECONÔMICO A força econômica sempre foi um instrumento do poder político ainda que se considere apenas a sua associação com o 21 Britisb and Foreign Slale Papers ed Hertslet xc pág 811 149 o poder na política in ternacional instrumento militar Só os mais primitivos tipos de campanhas militares foram totalmente independentes do fator econômico O príncipe mais rico ou a cidadeestado mais rica podiam alu gar os serviços do maior e mais eficiente exército de mercenári os e todo governo era por isso compelido a seguir uma política voltada à aquisição de riqueza Todo o progresso da civilização tem sido tão ligado ao desenvolvimento econômico a tal ponto que não nos surpreendemos em descobrir através da história moderna uma associação íntima e crescente entre poder econô mico e poder militar Nos prolongados conflitos que marcaram o fim da Idade Média na Europa Ocidental os mercadores das cidades apoiados sobre o poder econômico organizado derro taram os barões feudais que depositavam sua confiança na bra vura militar individual A ascensão das nações modernas foi em toda parte marcada pela emergência de uma nova classe média economicamente baseada na indústria e no comércio O comércio e as finanças foram os fundamentos da efêmera supre macia política das cidades italianas da Renascença e mais tar de da Holanda As principais guerras internacionais do período desde a Renascença até meados do século dezoito foram guerras comerciais algumas receberam realmente este nome Durante esse período sustentavase universalmente que uma vez que a riqueza era uma fonte de poder político o Estado deveria pro curar ativamente promover a aquisição de riqueza e acreditava se que a maneira correta de tornar um país poderoso era estimu lar a produção interna comprar o menos possível do exterior e acumular riqueza na forma conveniente de metais preciosos Os que defendiam esta linha de ação tornaramse conhecidos mais tarde como mercantilistas O mercantilismo foi um sistema de política econômica baseado no até então inquestionável pressu posto de que a promoção da aquisição de riquezas era parte da função normal do Estado 150 E H CARR A SEPAR4ÇAO ENTRE ECONOMIA E POLinCA A doutrina liberal dos economistas clássicos desfechou um ata que frontal contra este pressuposto As principais implicações do laisserfaire já foram discutidas Sua importância no atual con texto é a de esta doutrina ter revelado um completo divórcio teórico entre economia e política Os economistas clássicos con ceberam uma ordem econômica natural com leis próprias inde pendente da política e funcionando para o maior lucro de todos quando a autoridade política interferisse o mínimo possível em sua operação automática Esta doutrina dominou o pensamento econômico e até certo ponto a prática econômica embora bem mais na GrãBretanha do que em qualquer outra parte do sécu lo dezenove A teoria do estado liberal do século dezenove pres supunha a existência lado a lado de dois sistemas separados O sistema político que era a esfera do governo ocupavase da ma nutenção da lei e da ordem e do provimento de certos serviços essenciais Era considerado primordialmente como um mal ne cessário O sistema econômico que era prerrogativa da empresa privada satisfazia as necessidades materiais e desta forma or ganizava a vida cotidiana da grande massa de cidadãos Na teo ria inglesa atual a doutrina da separação entre política e econo mia foi por vezes levada a conseqüências surpreendentes Será verdade perguntava Sir Norman Angell pouco antes da Pri meira Guerra Mundial que riqueza prosperidade e bemestar dependem do poder político das nações ou essa relação na ver dade não existe E toda a argumentação depende do confi ante pressuposto de que todo leitor inteligente responderá nega tivamente Por volta de 1915 um filósofo inglês identificou uma 22 A distinção entre os dois sistemas está implícita na previsão de SaintSimon de que o regime industrial sucederia o regime militar e a administração substituiria o gover no mais conhecida sob a forma dada por Engels de que a administração das coisas substituiria o governo dos homens citações de Halévy Ere des Tyrannies pág 224 23 Angell The Great I1lusion capo ii o poder na política internacional 151 tendência inelutável no sentido de que já que a riqueza e seu controle e gozo vão para a classe produtora o poder e o prestí gio ficam com a classe profissional e considerou esta separa ção entre poder econômico e poder político não apenas inevitá vel mas também essencial para uma sociedade decentef Mesmo antes de 1900 uma análise mais penetrante poderia ter mostrado que a ilusão do divórcio entre política e economia estava se dissipando rapidamente Ainda está aberta ao debate a questão de saber se o imperialismo do final do século dezenove deve ser visto como um movimento econômico que utilizou ar mas políticas ou como um movimento político que utilizou ar mas econômicas Entretanto não resta qualquer dúvida de que economia e política marcharam de mãos dadas para o mesmo objetivo Não é precisamente a característica dos estadistas britânicos perguntou Hitler auferir vantagens econômicas da força política e transformar cada ganho econômico em poder político25 A Primeira Guerra Mundial ao reunir abertamente economia e política tanto no campo interno quanto na política externa acelerou um desenvolvimento que já estava a caminho Revelouse então que o século dezenove embora parecendo re tirar a economia da esfera política forjou de fato armas eco nômicas de força nunca vista para uso dos interesses da política nacional Um oficial do EstadoMaior alemão ressaltou a Engels na década de 1880 que os fundamentos da guerra estão pri mordialmente na vida econômica geral dos pOVOS26 e este di agnóstico foi amplamente confirmado pelas experiências de 191418 Em nenhuma guerra anterior a vida econômica das na ções beligerantes havia sido tão completa e implacavelmente or ganizada pela autoridade política Na longa aliança entre o bra ço armado e o braço econômico este último foi pela primeira vez um parceiro igual senão superior Inutilizar o sistema eco 24 B Bosanquet Social and lntemational ldeals págs 2345 25 Hitler Mein Kampf pág 158 26 Engels AntiDübring trad ingl pág 195 152 E H CARR nômico de uma potência inimiga tornouse um objetivo de guer ra tanto quanto derrotar seus exércitos e frotas A economia planejada que significa o controle pelo Estado com objetivos políticos da vida econômica da nação foi uma criação da Pri meira Guerra Mundia127 Potencial de guerra tomouse um outro nome para o poder econômico Retornamos portanto após o importante mas anormal interlúdio do liberalismo do século dezenove à posição em que se pode reconhecer claramente a economia como parte da polí tica Podemos então resolver a controvérsia que é em grande parte o produto das idéias e da terminologia do século dezenove sobre a assim chamada interpretação econômica da história Marx estava basicamente certo quando insistia na crescente impor tância do papel das forças econômicas na política e depois de Marx a história jamais pôde ser escrita de novo exatamente como o era antes dele Mas Marx acreditava tão firmemente quanto o liberal do laissesfaire num sistema econômico com leis própri as funcionando independentemente do estado que era seu aces sório e instrumento Ao escrever como se economia e política pertencessem a domínios separados uma subordinada à outra Marx revelavase dominado pelos pressupostos do século dezenove mais ou menos da mesma forma que seus mais recen tes opositores que estão igualmente seguros de que as leis fun damentais da história são leis políticas as leis econômicas são secundáriasf As forças econômicas são de fato forças políti cas Não se pode tratar a economia nem como um acessório menor 27 A economia planejada se desenvolveu não só por atritos internacionais mas também por atritos sociais dentro do estado Pode ser portanto do ponto de vista lógico vista tanto como uma política nacionalista nacionalismo econômico quanto como uma política socialista O segundo aspecto era irrelevante para atual discussão sendo desta forma omitido no texto Segundo Bruck Sodal and Economic History oi Germany pág 157 o termo Planwirtschajt foi inventado na Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial Mas a expressãoder staatlicbe Wirtschaftsplan aparece numa coletânea denominada Grundriss der Sotfalõkonomik i 424 publicada em Tübingen pouco antes da guerra com o sentido geral de política econômica do estado 28 Moeller van der Bruck Germanyr Third Empire pág 50 A idéia é um lugarcomum dos autores fascistas e nazistas 153 o poder na política internacional da história nem como uma ciência independente à luz da qual a história pode ser interpretada Poderseia poupar muita confu são por meio do retorno geral à denominação economia políti ca que foi dado à nova ciência pelo próprio Adam Smith sem abandonála em favor do abstrato economia como ocorreu na própria GrãBretanha até os fins do século dezenove A ciência da economia pressupõe uma dada ordem política e não pode ser proveitosamente estudada isolada da política ALGUMAS FALACIAS DA SEPARAÇAO ENTRE ECONOMIA E POLÍTICA Não teria sido necessário insistir exaustivamente nesse pon to se sua importância fosse puramente histórica ou teórica A ilusão de um distanciamento entre política e economia uma herança tardia do liberalismo do século dezenove deixou de corresponder a qualquer aspecto da realidade atual Mas conti nuou a persistir no pensamento sobre política internacional onde criou muita confusão Dedicouse uma imensa quantidade de discussões à questão sem sentido de saber se nossos problemas políticos têm causas econômicas como a Conferência Econô mica de 1927 SUpÔS30 ou se nossos problemas econômicos têm causas políticas como o relatório Van Zeeland sugeriu Outro enigma igualmente sem sentido que ocupou as atenções era saber se o problema de matériasprimas é político ou econômi co Confusão similar foi causada pela declaração do governo britânico em 1922 de que a taxa de imigração judaica na Pales tina seria determinada pela capacidade econômica do país suplementada em 1931 pelo posterior comunicado de que as considerações relevantes quanto aos limites da capacidade de 29 Na Alemanha economia política foi primeiramente traduzido como Nationalõkonornie que foi experimentalmente substituído no século atual por Sozialõkonomie 30 Eu deliberadamente me furtei de tocar nos aspectos estritamente políticos É contu do impossível ignorar o fato de estarmos trabalhando à sua sombra Report on the Possibility of obtaining a General Reduction of the Obstacles to International Trade Cmd 5648 154 E H CARR absorção são puramente econômicas Foi somente em 1937 que a Comissão Real descobriu que uma vez que os árabes são hos tis à imigração judaica o fator da hostilidade entre os dois po vos assume imediatamente importância econômica Com efei to todo caso de migração e de refugiados foi complicado pela suposição de que havia algum teste objetivo da capacidade de absorção O conflito entre duas interpretações opostas e igual mente defensáveis da promessa no Tratado de N euilly de ga rantir as saídas econômicas da Bulgária para o Mar Egeu foi um outro exemplo da confusão surgida do uso muito irresponsá vel desta palavra enganosa Tentativas de resolver problemas internacionais através da aplicação de princípios econômicos divorciados da política estão fadadas à esterilidade O mais patente fracasso prático causado pela persistência nesta ilusão do século dezenove foi a falência das sanções da Liga em 1936 Uma leitura cuidadosa do texto do Artigo 16 do Pacto isenta seus autores da responsabilidade pelo erro O pará grafo 1 proscreve as armas econômicas e o parágrafo 2 as armas políticas a serem empregadas contra o violador do Pacto O parágrafo 2 é claramente complementar ao parágrafo 1 e presu me por ser óbvio que na eventualidade da aplicação de san ções seriam necessárias forças armadas para proteger os Mem bros da Liga A única diferença entre os dois parágrafos é que enquanto todos os membros teriam de aplicar as armas econô micas seria natural utilizar as forças armadas necessárias dos membros que as possuíssem em força suficiente e em proximi dade geográfica razoável do agressor Analistas posteriores ob cecados pelo pressuposto de que economia e política são coisas l Todas essas passagens foram retiradas do Report of tbe Palestine Royal Commission of 1937 Cmd 5479 págs 298300 2 Esta interpretação é confirmada pelo relatório do Comitê Phillimore em cujas propostas o texto do Artigo 16 se baseou O Comitê considerou as sanções econômicas e financeiras como sendo simplesmente a contribuição ao trabalho de repelir agressão que poderia ser feita eficazmente pelos países que não estivessem em posição de fornecerem ajuda militar real lnlernalional Sanetions Repor by a Crollp oiMembers of lhe Royal institute oiintemational Affairs pág 115 onde os textos importantes foram examinados o poder na política internacional 155 separadas e separáveis desenvolveram a doutrina de que os pa rágrafos 1 e 2 do Artigo 16 não eram complementares mas al ternativos sendo a diferença o fato de que as sanções econô micas eram obrigatórias e as sanções militares opcionais Esta doutrina foi ardentemente sustentada por muitos que entendi am que a Liga poderia concebivelmente valer uns tantos mi lhões de libras em comércio mas não uns tantos milhões de vi das humanas e no famoso Plebiscito da Paz de 1934 na GrãBretanha cerca de dois milhões de votantes iludidos ex pressaram simultaneamente sua aprovação quanto às sanções econômicas e sua desaprovação quanto às militares Uma das muitas conclusões a que cheguei disse Lord Baldwin nessa época é a de que não há sanções que funcionem que não signi fiquem guerra33 Mas a amarga lição de 19356 foi necessária para se levar para casa a verdade de que no que diz respeito a sanções assim como à guerra o único lema é tudo ou nada e que o poder econômico é impotente se a mão armada não esti ver pronta para sustentálo O poder é indivisível e as armas militares e econômicas são meramente diferentes instrumen tos do poder35 Uma forma diferente e igualmente seria sob a qual se en contra esta separação ilusória entre política e economia é a fraseologia popular que distingue entre força e bemestar 33 House of Cornmons May 18 1934 OJftcial Report col 2139 34 Não se sugere evidentemente que a força militar deva ser sempre usada A Grande Esquadra britânica foi pouco acionada na Primeira Guerra Mundial Mas seria muito temerário presumir que o resultado teria sido o mesmo se o governo britânico não estivesse preparado para usála O que paralisou as sanções em 193536 foi o conhecimento geral de que os países da Liga não estavam preparados para utilizar a força militar 35 Vale a pena ressaltar que Stresernann estava totalmente ciente desse ponto da entrada da Alemanha na Liga das Nações Quando o SecretárioGeral perguntou se a Alemanha caso não participasse de sanções militares ainda assim poderia participar de sançôes econômi cas Stresemann respondeu Não podemos tampouco se tomarmos parte num boicote econômico contra um vizinho poderoso uma declaração de guerra contra a Alemanha poderia ser a conseqüência uma vez que a exclusão de um outro país do intercâmbio com uma nação de sessenta milhões de cidadãos seria um ato hostil Slresemanns Diaries and Papers trad ingl ii pág 69 156 E H CARR entre canhões e manteiga Os argumentos do bemestar são econômicos ressalta um autor americano os argumentos da força são políticosv Esta falácia é particularmente difícil de se desnudar porque parece ser extraído de fatos familiares Todo governo moderno e todo parlamento se defronta continuamen te com o dilema de empregar dinheiro em armamentos ou em serviços sociais e isto encoraja a ilusão de que a escolha real mente é feita entre força e bemestar entre armas políticas e manteiga econômica A reflexão mostra contudo que este não é o caso A questão nunca assume a forma você prefere ca nhões ou manteiga Pois todos exceto um punhado de paci fistas nos países anglosaxões que herdaram uma longa tradição de segurança não desafiada concordam que em caso de neces sidade as armas devem vir antes da manteiga A questão real é sempre se já temos armas suficientes que nos permitam conse guir alguma manteiga ou tomando por base que precisamos de x armas podemos aumentar a receita suficientemente para também conseguirmos mais manteiga Mas o mais claro desmascaramento desta falácia vem do punho do Professor Zimmern e o desmascaramento não é menos eficaz por ser in consciente Tendo dividido os Estados existentes segundo a li nha popular entre os que buscam bemestar e os que buscam poder o Professor Zimmern reveladoramente acrescenta que os Estados do bemestar de forma geral gozam uma prepon derância de poder e recursos sobre os Estados do poder le vandonos portanto infalivelmente à conclusão correta de que os Estados do bemestar são Estados que já gozando de pre ponderância de poder não estão primordialmente preocupados em aumentálo e os Estados do poder são Estados que sen do inferiores em poder estão primordialmente preocupados em aumentálo e devotam a maior parte de seus recursos a este fim N esta terminologia popular os Estados do bemestar são os 36 F L Schuman lnternational Politia pág 356 37 Zimrnern Quo Vadimus pág 41 157 o poder na política internacional que possuem poder preponderante e os Estados do poder são os que não possuem Esta classificação não é tão ilógica quanto possa parecer Toda grande potência assume a postura de que o número mínimo de armas necessárias para proporcionar o grau de poder que consideram desejável tem precedência sobre a manteiga e que só pode buscar o bemestar quando este mí nimo tiver sido atingido Por muitos anos antes de 1933 a Grã Bretanha estando satisfeita com seu poder era um Estado do bemestar Após 1935 achando seu poder contestada e inade quado tornouse um Estado do poder e mesmo a oposição deixou de pressionar com insistência pelos pedidos anteriores de serviços sociais O contraste não é entre força e bem estar e ainda menos entre política e economia mas entre diferentes graus de poder Na busca do poder instrumentos mi litares e econômicos serão ambos utilizados AUTARQUIA Havendo assim estabelecido que a economia deve ser adequa damente vista como um aspecto da política podemos dividir em duas grandes categorias os métodos pelos quais o poder eco nômico é colocado a serviço da política nacional O primeiro conterá as medidas cujo objetivo se define pela conveniente palavra autarquia o segundo medidas econômicas diretamente voltadas para o fortalecimento da influência nacional sobre ou tros países Autarquia ou autosuficiência era um dos objetivos da política mercantilista e os estados com efeito a buscaram des de as épocas mais remotas Mas o problema da autarquia é en tretan to caracteristicamente moderno Na Idade Média a autarquia era uma condição natural e necessária da vida econô mica pois o transporte de longa distância de quaisquer bens que não os de pequeno volume e grande valor não era compensador A partir do fim da Idade Média o transporte tornouse gradual 158 E H CARR mente mais seguro mais barato e mais rápido Os países se tor naram menos autosuficientes e a elevação no nível de vida foi baseada em parte no intercâmbio internacional de produtos especializados Mas foi mente nos últimos cem anos que o ad vento do vapor tornou o transporte por terra e mar tão rápido e barato que o custo do transporte da maior parte dos bens é hoje insignificante em relação ao custo de produção e é irrelevante em muitos casos se o artigo é produzido a 500 ou a 5000 mi lhas do ponto onde será usado ou consumido Métodos de pro dução em massa pelos quais os bens se tornam mais baratos na medida em que uma maior quantidade é produzida no mesmo local posteriormente promoveram a concentração da produção Não apenas são nossas necessidades atuais mais altamente especializadas do que nunca mas também vivemos num mundo onde pela primeira vez na história pode ser possível e mesmo até desejável do ponto de vista do custo plantar todo o trigo a ser consumido pela raça humana no Canadá produzir toda a lã na Austrália fabricar todos os automóveis em Detroit e todo tecido de algodão na Inglaterra ou Japão Internacionalmente as conseqüências do laissevfaire absoluto são tão fantásticas e inaceitáveis quanto as conseqüências de um laissezfaire absolu to dentro do estado Nas condições atuais a promoção artificial de algum grau de autarquia é uma condição necessária para a existência social ordenada A autarquia não é contudo apenas uma necessidade soci al mas ainda um instrumento de poder político É primeira mente uma forma de estar preparado para a guerra No período mercantilista era normalmente estabelecido tanto na Grã Bretanha quanto em outras partes que a força militar de um estado dependia da produção de bens manufaturados Adam Smith formulou suas famosas exceções à doutrina do laissezfaire quando aprovou o Ato de Navegação britânico e as subvenções ao pano para vela de navios e à pólvora Mas o princípio da autarquia recebeu sua definição clássica da pena de Alexander o poder na política internacional 159 Hamilton que em 1791 sendo então o Secretário do Tesouro dos Estados Unidos fez um relatório à Câmara dos Represen tantes que enuncia em palavras que poderiam ter sido escritas hoje toda a moderna doutrina da autarquia Hamilton havia sido instruído a dar parecer sobre os meios de promover tais manu faturas para tornar os Estados Unidos independentes de nações estrangeiras para o suprimento de material militar e outros bens essenciais Vale a pena citar uma pequena passagem do relató no Não só a riqueza mas a independência e segurança de um país pare cem estar materialmente ligadas à prosperidade das manufaturas Toda nação com uma visão desses grandes objetivos deve empenharse para possuir dentro dela todos os elementos indispensáveis ao suprimento nacional Os extremos embaraços dos Estados Unidos durante a úl tima guerra por incapacidade de se suprir ainda são matéria de viva lembrança podese esperar uma guerra futura para demonstrar os danos e perigos de uma situação à qual esta posição ainda é aplicável num grau muito elevado a menos que essa situação seja alterada por ação pronta e vigorosa Hamilton continuou examinando por partes todos os mé todos pelos quais se pode atingir o resultado desejado impos tos proibições subvenções e incentivos 38 Na Alemanha exa tamente cinqüenta anos mais tarde List argumentava que do desenvolvimento do sistema protecionista alemão dependem a existência a independência e o futuro da nacionalidade germânica39 e na última metade do século dezenove as suces sivas vitórias prussianas demonstraram a íntima conexão entre um sistema industrial altamente desenvolvido e o poder militar Durante esse período a GrãBretanha em virtude de sua supremacia industrial usufruiu virtualmente de completa autarquia em relação aos produtos industriais embora não das 38 Works of Alexander Hamilton IV págs 66 e seguintes 39 List Tbe National System oi Politica Economy pág 425 160 E H CARR matériasprimas necessárias para produzilos Na oferta de ali mentos deixou de ser autosuficiente em torno de 1830 Mas esta falha foi em boa parte remediada por seu poderio naval cuja manutenção tornouse uma de suas maiores preocupações Uma Comissão Real sobre o Suprimento de Alimentos e Matéri asPrimas em Tempo de Guerra reunida em 1905 discutiu mas rejeitou planos para o armazenamento preventivo na Grã Bretanha de suprimentos de reserva e nem mesmo discutiu qual quer plano para encorajar a produção interna Depositouse to tal confiança na capacidade da marinha proteger os canais costumeiros de comércio e desta forma compensar a ausência de suprimentos suficientes no plano interno A atual opinião de que os governantes do século dezenove não estavam atentos para o fato de ser a autarquia ou algum substitutivo adequado politicamente desejável não é confirmada pelos fatos O efeito da Primeira Guerra Mundial nos conceitos da eco nomia como um todo já foi discutido O impulso que ela deu à busca da autarquia foi imediato e poderoso O bloqueio e o des vio de grande parte da frota mundial para o transporte de tropas e munições forçaram medidas mais ou menos rigorosas de autarquia tanto entre os beligerantes quanto entre os neutros Por quatro anos as potências centrais foram compelidas a de penderem exclusivamente de seus próprios recursos e a realiza rem contra a vontade o ideal de Fichte em Tbe Closed Commercial State Mesmo para as potências aliadas o advento do submarino tornou a confiança nas importações de ultramar como alterna tiva à autarquia mais precária do que se havia suposto até en tão Os governos aliados em nenhuma hipótese consideraram a autarquia como um expediente lamentável e temporário Em ju nho de 1916 eles se reuniram em Paris para discutir a política econômica do pósguerra e decidiram tomar as medidas neces sárias com urgência para se tornarem independentes dos países inimigos no que concerne a matériasprimas e artigos manufa 40 5uppy oi Food and Raw MateriaIs in Time oi War Crnd 2644 o poder na política internacional 161 turados essenciais a suas atividades econômicas normais No ano seguinte uma Comissão Real britânica estabeleceu uma lis ta de artigos a respeito dos quais se estabeleceu que a possibi lidade de pressão econômica de países estrangeiros que contro lam o suprimento de matériasprimas requer medidas especiais de defesa e que a ação governamental é muito necessária para promover a independência econômica Essa política foi posta em funcionamento pelo Ato de Salvaguarda das Indústrias de 1921 Quando os suprimentos internos não eram possíveis o controle e a abertura de rotas de suprimentos ultramarinos tor navase um objetivo primordial O desejo de controlar supri mentos adequados de petróleo fomentou uma política britânica ativa em mais de um país produtor de petróleo Internacionalmente nas vitórias obtidas nas guerras o im portante papel desempenhado pelos bloqueios tornou inevitá vel a proeminência de sanções econômicas na constituição da Liga das Nações Estava claro que o bloqueio deveria ser apli cado mais vigorosamente do que nunca numa nova guerra e a autarquia se desenvolveu como um armamento defensivo natu ral contra o instrumento do bloqueio O uso real desta arma contra a Itália em 1935 reforçou este princípio 18 de novem bro de 1935 marca o ponto de partida de um novo capítulo da história italiana disse Mussolini à Assembléia Corporativa N aciorial em 23 de março de 1936 A nova fase da história italiana será determinada por este postulado assegurar dentro do mais breve tempo possível a maior taxa possível de inde pendência econômica Havia de fato pouca novidade nesta doutrina que era simplesmente uma paráfrase do que Hamilton List e a Comissão Real Britânica de 1917 haviam dito Mas o aumento da tensão internacional conferiu ao problema uma re levância crítica Um conhecido publicista americano pediu a compra conjunta por Estados Unidos e GrãBretanha de me tais de importância estratégica com o objetivo de retirar a I As resoluções estão em History oj the Peace Conferenee ed Temperley V págs 3689 162 E H CARR grande quantidade desses importantes metais dos mercados onde as potências ditatoriais e carentes têm de comprálosv Ne nhuma medida acrescentava uma autor britânico seria mais eficaz para debilitar o rearmamento alemão do que uma decisão britânica de adquirir toda a produção existente de minério sue CO43 Estes conselhos praticamente não eram necessários para convencer os governos do valor militar da autarquia O desen volvimento de materiais sintéticos pela Alemanha e a acumula ção de estoques de produtos alimentícios e de matériasprimas essenciais pela GrãBretanha foram dois dos sintomas mais sig nificativos A autarquia como outros elementos do poder é cara Pode custar a um pais tão caro tornarse autosuficiente em al gum bem importante quanto construir um navio de guerra O gasto pode revelarse demasiado e a aquisição não valer o cus to Mas negar que a autarquia é um elemento do poder e como tal desejável é confundir a questão o PODER ECON6MICO COMO INSTRUMENTO DA POLÍTICA O segundo emprego da arma econômica como um instru mento da política nacional ou seja sua utilização para adquirir poder e influência no exterior tem sido tão amplamente reco nhecido e abertamente discutido que apenas um breve sumário se afigura suficiente Essa questão assume duas formas princi pais a a exportação de capital e b o controle de mercados estrangeiros a A exportação de capital tem sido nos tempos recentes uma prática normal dos estados poderosos A supremacia políti ca da GrãBretanha durante o século dezenove estava associa da intimamente à posição de Londres como centro financeiro do 42 W Y Elliot em Politicol Quorterfy abriljunho 1938 pág 181 43 G D H Cole em PoliticolQuorterfy janmarço 1939 pág 65 o poder na política internacional 163 mundo Apenas na Europa onde a GrãBretanha não aspirava à influência política os investimentos britânicos eram pouco sig nificativos somando apenas cinco por cento de todo o capital britânico investido no exterior A ascensão dos Estados Unidos em termos de poder político neste século deveuse em grande parte à sua presença no mercado como fornecedor de capitais em larga escala primeiramente para a América Latina e desde 1914 para a Europa A realização de objetivos políticos através do investimento governamental direto ocorria em casos como o da compra pelo governo britânico de ações da Companhia do Canal de Suez e da Companhia de Petróleo AngloIraniana ou a construção da Ferrovia Oriental Chinesa com capital do gover no russo Mais freqüentemente os governos usam seu poder para estimular investimentos de bancos e de pessoas físicas segundo os interesses da política nacional Assim a aliança francorussa foi cimentada por cerca de 400 milhões de libras de capital fran cês emprestado por investidores franceses ao governo russo N a Alemanha o banco de capital acionário não era simples mente uma organização de crédito mas um instrumento políti coeconômico era um instrumento da política de poder da Ale manha Toda a política do imperialismo do século dezenove estava baseada no desenvolvimento das partes atrasadas do mundo por meio do investimento de capital europeu Interesses políticos foram promovidos por investidores privados que goza vam como as companhias privilegiadas do século dezenove de amparo governamental ou mais comumente de apoio diplomá tico Marx descreveu esta política como a substituição dos métodos feudais de guerrear pelo processo mercantil de ca nhões por capital e criouse uma nova e expressiva frase para 44 WF Bruck Sona and Economic Histary oi Germany pág 80 4 Todo o assunto é minuciosamente investigado e inúmeros são citados em War and lhe Priuate lnuestor de Eugene Staley A principal conclusão de Staley é a de que a política oficial raramente foi influenciada em grau significativo pelo investimento privado mas que este foi sempre oficialmente dirigido e encorajado como um instrumento da política 46 Marx Gesammelte Schnften i pág 84 164 E H CARR descrever a diplomacia do dólar dos Estados Unidos A di plomacia da atual administração disse Taft em 1912 busca estar de acordo com as idéias modernas sobre intercâmbio co mercial Esta política tem sido caracterizada como a substitui ção de balas por dólares Ela apela igualmente aos sentimentos humanitários idealísticos aos ditames da política e da estraté gia sensatas e aos objetivos comerciais legítimos O aparecimento freqüente da esquadra americana em águas da América Latina como as da esquadra inglesa em outras par tes mostrou além disso que se os dólares eram um substituto humanitário para as balas eles poderiam e seriam apoiados pe las balas em caso de necessidade política A diminuição do uso após 1919 de investimentos de capi tal no exterior como instrumento da política se explica pelo rápido decréscimo na acumulação de excedentes de capital atra vés do mundo e pela insolvência de muitos devedores em po tencial Mas muitos exemplos familiares ainda podem ser cita dos A França fortaleceu sua influência sobre a Polônia e a Pequena Entente por meio de empréstimos e créditos abundan tes públicos e privados a estes países Vários governos conce deram ou garantiram empréstimos à Áustria com o propósito político de manter a independência daquele país e em 1931 a pressão financeira francesa obrigou a Áustria a abandonar o pro jeto de uma união alfandegária com a Alemanha O rápido declínio da influência francesa na Europa Central após 1931 estava intimamente ligado ao fato de que a França desde a cri se não pôde continuar sua política de assistência financeira àqueles países Quando em dezembro de 1938 anunciouse que o grupo francês SchneiderCreusot havia vendido suas ações da indústria Skoda a um grupo tcheco representando o governo tchecoslovaco um correspondente do The Times comentou que esta transação é outra indicação da retirada francesa da Euro 47 Annual Presidential Message lo Congress December 3 1912 o poder na política internacional 165 pa Central e põe um fim ao capítulo da expansão política fran cesa Após 1932 quando estabeleceuse um embargo nãoofi cial aos empréstimos externos do mercado britânico pôdese li citamente dizer que os empréstimos externos da GrãBretanha estavam sujeitos à supervisão política Os anos de 1938 e 1939 testemunharam a concessão à Turquia pela GrãBretanha e Ale manha e à China pelos Estados Unidos e GrãBretanha de cré ditos comerciais cujo objetivo político dificilmente poderia ser disfarçado b A luta pelo controle dos mercados estrangeiros proporci ona um exemplo adicional da interação entre política e econo mia pois normalmente é impossível saber se o poder político é usado para a aquisição de mercados por seu valor econômico ou se mercados são buscados para estabelecer e fortalecer o poder político A luta por mercados foi o aspecto mais caracte rístico da guerra econômica do período entre as duas guerras mundiais Seria errôneo atribuir exclusivamente a rivalidades políticas a intensa pressão para exportar que se manifestou por toda parte Na estrutura industrial de hoje a escala de produ ção mais econômica de muitos bens excede a capacidade de con sumo da maioria dos mercados nacionais e vender caro num mercado interno protegido e barato num mercado externo livre que é a essência do dumping pode perfeitamente ser a polí tica correta do ponto de vista puramente comercial Entretanto o uso do dumping como instrumento político é incontestável e os países poderosos encontraram seus mercados naturais em áreas onde residem seus interesses políticos e onde sua influên cia política pode mais facilmente afirmarse A principal razão para a Europa Central e a Europa do Sudeste serem os merca dos naturais alemães era seu fácil acesso devido ao poder mi litar alemão O rearmamento alemão e a penetração econômica 48 The Times December 29 1938 166 E H CARR alemã nessas áreas aconteceram simultaneamente Este não era contudo um fenômeno novo Podese encontrar um exemplo admirável de entrelaçamento do poder político e econômico na posição britânica no Egito A penetração econômica britânica no Egito nas duas últimas décadas do século dezenove resul tou da ocupação militar britânica que visava a proteger os inte resses britânicos no Canal de Suez que haviam sido adquiridos para resguardar as rotas comerciais e as linhas estratégicas de comunicação britânicas Os métodos empregados para encorajar exportações e cap turar mercados externos são familiares demais para serem dis cutidos O mais simples de todos é a concessão de créditos ou empréstimos para financiar as exportações Antes de 1914 a Grã Bretanha estava tão pouco preocupada com o problema de mer cados que os empréstimos obtidos em Londres pelos credores estrangeiros eram livres de quaisquer condições no que tange aos para os quais seriam empregados Empréstimos externos obtidos em qualquer outra parte traziam a condição de que o total ou parte da soma deveria ser gasta pelo devedor no país credor A partir de 1919 esta condição tem sido quase univer salmente aplicada Na GrãBretanha duas instituições governa mentais o Fundo de Desenvolvimento Colonial e o Departa mento de Garantia aos Créditos para a Exportação se engajaram no financiamento das exportações britânicas o primeiro para o Império o segundo para os países estrangeiros Antes de 1939 as operações do Departamento de Garantia aos Créditos para a Exportação eram oficialmente descritas como possuindo um caráter puramente comercial Contudo por uma lei aprovada em 1939 o limite de garantias dadas pelo Departamento aumentou e destinouse uma soma de dez milhões de libras para garantir as transações relacionadas com o que pareça à junta de Co 9 Exemplos de França e Áustria são citados por CK Hobson Tbe Export of Capital 1914 pág 16 Rússia e Bélgica também eram dos principais países que normalmente impunham esta condição o poder na política internacional 167 mércio desejável que se dê garantia segundo o interesse nacio nalso Ao apresentar esta medida à Câmara dos Comuns o Pre sidente da junta de Comércio negou a alegação de que a Grã Bretanha tivesse declarado uma guerra comercial contra a Alemanha mas descreveu a medida como um rearmamento econômico e acrescentou que o rearmamento econômico que estamos tentando agora é exatamente igual ao nosso outro rearmamentoSI Em julho de 1939 a quantia de dez milhões de libras foi aumentada para sessenta milhões Incentivos fiscais para exportação e manipulações de câmbio são simplesmente formas indiretas de créditos para a exportação O método atual mais característico de aquisição de merca dos e do poder político que vem com eles é contudo o acordo de comércio reciproco que é um retorno ao sistema de escambo ligeiramente disfarçado Assim as compras britânicas de carne e cereais na Argentina e de toucinho e manteiga na Dinamarca e nos Estados Bálticos asseguraram mercados nestes países para o carvão e as manufaturas inglesas Os Acordos de Ottawa foram uma variação ligeiramente mais complicada do mesmo tema N os países balcânicos e da Europa Central a Alemanha ao comprar produtos locais principalmente cereais e tabaco para os quais não se podia achar outra via de saída lucrativa assegurou não apenas um mercado para os produtos alemães mas uma esfera de influência política Um dos sintomas do ca ráter artificial da influência política francesa nesta região foi seu fracasso em assegurar qualquer participação subs tancial em seu comércio O poder de compra tomouse uma vantagem interna cional e o fato de que o preço não era mais o fator dominante a Alemanha realizou a maior parte de suas compras no sudeste europeu a taxas abaixo dos preços mundiais colocou o compra dor e não o produtor em posição de ditar o ritmo Colocouse 50 Pode ser significativo o fato de que um funcionário do Ministério das Relações Exteri ores em 1938 foi transferido para a equipe do Departamento de Garantia aos Créditos para a Exportação 51 House of Commons Dec 15 1938 OificialReport cal 2319 168 E H CARR assim um novo poder nas mãos dos países de grande população e alto padrão de vida Mas é uma vantagem limitada que se uti lizada em excesso tende a destruir a si mesma o PODER ECONÓM1CO E A MORAL INfERNAGONAL Uma reflexão final pode concluir este esquema sumário sobre o uso da arma econômica como um instrumento do poder políti co A substituição da arma militar pela arma econômica que Marx chamou de substituição de canhões por capital é um sin toma não tanto de moral superior como de força superior Esse fato pode ser constatado a partir de alguns exemplos A Grã Bretanha ofendida pelo julgamento dos engenheiros da Metro Vickers em Moscou poderia obter satisfação impondo um em bargo às importações soviéticas A Itália atingida pelo assassinato de um oficial italiano na Grécia não poderia utilizarse deste expediente econômico pois um embargo italiano às importações gregas teria sido insignificante ela só poderia obter satisfação por meio do método militar brutal de bombardear Corfu Em 1931 a GrãBretanha estabeleceu o que veio a ser conhecido como bloco da libra ou zona da libra por métodos nãopolíti cos e aparentemente amplamente eficaz A Alemanha visando a estabelecer um equivalente bloco do marco no centro e su deste da Europa recorreu a métodos abertamente políticos que incluíram a ameaça e mesmo o uso da força A força econômico financeira britânica permitia que este pais não interviesse na guerra civil espanhola O governo britânico confiou nas balas esterlinas para evitar o permanente predomínio da Alemanha e da Itália na Espanha independentemente do desenrolar da guer ra No que concerne ao Extremo Oriente o PrimeiroMinistro na mesma época ressaltava que quando a guerra acabar e co meçar a reconstrução da China esta reconstrução possivelmen te não poderá ocorrer sem algum auxílio nosso52 A crescente S2 House of Commons November 1 1938 reproduzido em Tbe Strugglefor Peace de N Chamberlain páe 340 169 o poder na política internacional força dos Estados Unidos no comércio e nas finanças internaci onais foi de alguma forma uma das razões que permitiram ao governo dos Estados Unidos abandonar sua prática tradicional de desembarcar fuzileiros navais nos territórios de repúblicas latinoamericanas recalcitrantes e adotar a política de boa vi zinhança Esse ponto contudo tem uma aplicação mais ampla em todos os problemas de agressão e de anexação territorial Um dos documentos mais reveladores deste aspecto do poder é um despacho do Encarregado de Negócios da Rússia em Pequim ao seu governo em 1910 Se fôssemos suficientemente poderosos economicamente escreveu este diplomata de modo muito franco teria sido mais simples dirigir todos os nossos esforços à celebração de um tratado econômico Se contudo como eu receio ser o caso ao fazer isto estivermos traba lhando em favor de interesses estrangeiros e se formos incapazes de garantir qualquer lucro do arranjo que conseguirmos da mesma for ma que não fomos capazes por exemplo de aproveitar as extraordi nárias vantagens do tratado de comércio de 1881 então não há ne nhuma razão em minha opinião para nos afastarmos das bases da política que seguimos até agora a de aquisição territorial 53 Um escritor britânico recentemente fez uma observação semelhante sobre o Extremo Oriente Livre comércio como defendido pela GrãBretanha no século dezenove era a causa do mais forte na concorrência comercial A es fera de influência com seus direitos especiais era o objetivo dos es tados que procuravam compensar sua fraqueza em tal concorrência pela aplicação direta do poder políticoP A supremacia naval e econômica inconteste da Grã Bretanha no século dezenove permitiulhe estabelecer uma 53 B de Siebert Entente Diplomacy oi tbe World War pág 20 54 G F Hudson The Far East in World Politics pág 54 170 E H CARR posição de comando na China com um mínimo de força militar e de discriminação econômica Uma potência relativamente fra ca como a Rússia só poderia esperar alcançar um resultado se melhante por meio de agressão nua e anexação O Japão mais tarde aprendeu a mesma lição Em seu conhecido memorando de janeiro de 1907 Crowe argumentava que a GrãBretanha era a protetora natural das comunidades mais fracas e que através de sua política de livre comércio num mercado aberto ela sem dúvida fortalece seu controle sobre a amizade inte resseira de outras nações55 Poderseia desenvolver a argumen tação acrescentando que a GrãBretanha em virtude de sua for ça econômica inerente e da política de livre comércio tornada possível por essa força era capaz de exercer em muitos países uma quantidade de influência e controle indiretos que nenhuma outra potência teria conseguido sem interferência na indepen dência política dos países envolvidos e que esta vantagem tor nou tão natural para a GrãBretanha quanto difícil para outros se erguerem como defensores da independência política das pe quenas nações No Egito a GrãBretanha conciliou seu predo mínio econômico e militar com a independência formal do pais enquanto uma potência mais fraca teria sido obrigada a recorrer à anexação para obter efeito semelhante A GrãBretanha foi capaz de abandonar sua autoridade formal sobre o Iraque e lá manter seus interesses enquanto a França não conseguia o mes mo resultado na Siria A arma econômica é por excelência a rma dos países fortes É significativo que uma proposta do go verno soviético em 1931 de um pacto de nãoagressão econô mica tenha sido recebida com a maior hostilidade pelos três países mais poderosos da época GrãBretanha França e Esta dos Unidos Entretanto talvez seja difícil descartar como infundada a opinião comum de que o emprego da arma econômica é menos 55 Britisb Documents on lhe Origins oflhe War ed Gooch Temperley iii pág 403 171 o poder na política internacional imoral do que a utilização da arma militar Isto pode não ser sempre verdade O bloqueio em tempo de guerra pode causar tanto sofrimento quanto uma série de ataques aéreos Mas em termos gerais em certo sentido os dólares são mais humanitári os do que as balas mesmo quando o objetivo é o mesmo É menos imoral estabelecer um embargo contra as importações soviéticas do que bombardear os gregos Não se pode duvidar razoavelmente que uma forma de controle econômico como a dos Estados Unidos na América Central que preserve uma re lativa independência política seja mais aceitável para as nações subordinadas e deste modo menos imoral do que o controle direto como o estabelecido pela Alemanha em 1939 na Boê mia e Morávia Essa distinção não seria anulada mesmo ao se demonstrar que os Estados Unidos se fossem economicamente tão fracos quanto a Alemanha poderiam ter adotado a mesma conduta É verdade que o pobre tem mais razões para roubar do que o rico e que isto afeta o nosso julgamento moral dos casos individuais de roubo Mas geralmente se reconhece o roubo como sendo intrinsecamente imoral Este é simplesmente um exem plo da maneira pela qual a própria moral se envolve em ques tões de poder A questão moral requererá posterior consideração Por en quanto a lição mais importante que se retira neste campo é o caráter ilusório da distinção popular entre poder econômico e poder militar O poder que é um elemento de toda a ação polí tica é uno e indivisível Utiliza armas econômicas e militares para os mesmos fins Aquele que é forte tenderá a preferir a arma menor e mais civilizada porque esta geralmente será sufici ente para a realização de seus propósitos e enquanto ela for su ficiente ele não será tentado a recorrer à arma militar mais des truidora Mas o poder econômico não pode ser isolado do poder militar nem o militar do econômico Ambos são partes integran tes do poder político e a longo prazo um não pode sobreviver sem o outro 172 E H CARR c O PODER SOBRE A OPINIÃo o poder sobre a opinião é a terceira forma de poder Os refrões que cantam Temos os navios temos os homens temos o dinheiro também diagnosticaram acuradamente os três ele mentos essenciais do poder político armamentos homens e poder econômico Mas não se estima o potencial humano pela mera contagem de cabeças O Sultão do Egito ou o Imperador romano como ressaltou Hume poderiam tratar seus súditos indefesos como animais selvagens contra os sentimentos e inclinações destes Mas teriam pelo menos de tratar seus mamelucos ou guardas pretorianos como homens segundo suas opiniõest O poder sobre a opinião é portanto não menos essencial aos objetivos políticos do que o poder econômico ou militar e tem estado sempre associado a eles A arte da persuasão sempre se consti tuiu numa parte necessária da bagagem de um líder político A retórica tem um registro longo e honrado nos anais dos estadis tas Mas a opinião popular que considera a propaganda como uma arma substancialmente moderna é apesar de tudo funda mentalmente correta A PROPAGANDA NO MUNDO MODERNO A razão mais óbvia do crescimento da proeminência do poder sobre a opinião em épocas recentes é o alargamento das bases da política que aumentou bastante o número daqueles cuja opi nião é politicamente importante Até épocas relativamente re centes o número de pessoas cuja opinião valia a pena influenci ar era pequeno Estas pessoas eram unidas por estreitos laços de interesses e de um modo geral altamente educadas e os meios de persuasão eram correspondentemente limitados A explica 56 Tbe Pbilasopbical WorkJ oj David Hume iv pág 31 o poder na política internacional 173 ção científica segundo Hitler é para a intelligentsia A moderna arma da propaganda é para as massas O Cristianismo parece ter sido o primeiro grande movimento na história com uma atra ção das massas Muito apropriadamente foi a Igreja Católica que primeiro compreendeu e desenvolveu as potencialidades do poder sobre grandes massas de opinião A Igreja Católica na Idade Média foi e dentro dos limites de seu poder permaneceu uma instituição para difundir certas opiniões e extirpar outras con trárias àquelas criou a primeira censura e a primeira organiza ção de propaganda Há certa dose de razão na observação de um historiador recente de que a igreja medieval teria sido o pri meiro estado totalitário da história A Reforma foi um movi mento que simultaneamente despiu a Igreja em várias partes da Europa de seu poder sobre a opinião de sua riqueza e da autoridade que o poder militar do império lhe havia conferido O problema do poder sobre a opinião em sua moderna for ma de massa foi criado por desenvolvimento na técnica econô mica e militar pela substituição do artesanato individual por indústrias de produção em massa e da força profissional volun tária pelo exército de cidadãos convocados A política contem porânea é dependente da opinião de grandes massas de pessoas mais ou menos politicamente conscientes dentre as quais as que mais se manifestam as mais influentes e as mais acessíveis à propaganda são as que vivem nas grandes cidades ou em torno delas Nenhum governo atual ignora esse problema Na aparên cia a atitude adotada com relação a ele pelas democracias e pelos Estados totalitários é diametralmente oposta As demo cracias sustentam que seguem a opinião das massas os Estados totalitários estabelecem um padrão e forçam adaptação de to dos a ele Na prática o contraste não é tão bem definido Os Estados totalitários ao estabelecerem sua política alegam ex pressar o desejo das massas e essa alegação não é totalmente 57 Hitler Mein KBmpf pág 196 58 G G Coulton Mediaeval Panorama pág 458 et all 174 E H CARR infundada As democracias ou os grupos que as controlam por sua vez não são totalmente inocentes nas artes de moldar e di rigir a opinião das massas Os propagandistas totalitários sejam marxistas ou fascistas insistem continuamente no caráter ilusó rio da liberdade de opinião nos países democráticos Permanece um sólido substrato de diferença entre a atitude das democraci as e dos estados totalitários no que diz respeito à opinião das massas que pode ser um fator decisivo em tempos de crise Ambos todavia concordam em reconhecer sua importância fun damental As mesmas condições econômicas e sociais que tornaram a opinião das massas extremamente importante na política tam bém criaram instrumentos de eficiência e alcance nunca vistos para moldála e dirigila O mais antigo desses instrumentos e ainda provavelmente o mais poderoso é a educação popular universal O estado que oferece a educação necessariamente determina seu conteúdo Nenhum estado permitirá que seus fu turos cidadãos absorvam em suas escolas ensinamentos sub ver iivos aos princípios em que se baseia Nas democracias en sinase à criança a amar as liberdades democráticas nos estados totalitários a admirar a força e a disciplina do totalitarismo Em ambos os casos ela é ensinada a respeitar as tradições crenças e instituições de seu próprio país e a achálas melhores do que as de qualquer outro Não se pode entretanto exagerar a influ ência des ta moldagem inconsciente precoce A afirmação de Marx de que o proletário não tem pátria deixou de ser verda de desde que o trabalhador passou a freqüentar as escolas da rede oficial Mas quando falamos de propaganda hoje em dia pensamos principalmente naqueles outros instrumentos cujo uso a educa ção popular tornou possível o rádio o cinema e a imprensa po pular O rádio o cinema e a imprensa compartilham no mais alto grau do atributo característico da indústria moderna ou seja de que a produção em massa o quasemonopólio e a padroni 175 o poder na política internacional zação são uma condição para o trabalho econômico e eficiente Sua gerência tornouse acompanhando a seqüência natural do desenvolvimento concentrada em um número de mãos cada vez menor e essa concentração facilita e toma inevitável o controle da opinião de forma centralizada A produção massificada da opinião é o corolário da produção em massa dos bens Assim como a concepção de liberdade política do século dezenove to mouse ilusória para grandes massas da população devido ao crescimento e à concentração do poder econômico a concepção de liberdade de pensamento do século dezenove está sendo da mesma forma fundamentalmente modificada pelo desenvolvi mento desses novos instrumentos novos extremamente podero sos de poder sobre a opinião O preconceito que a palavra pro paganda ainda provoca em muitas mentes atualmente é muito próximo do preconceito contra o controle estatal da indústria e do comércio Segundo o antigo conceito liberal deverseia dei xar a opinião assim como a indústria e o comércio seguir seu curso natural sem uma regulamentação artificial Esta concep ção desmoronou diante do duro fato de que nas condições atu ais a opinião como o comércio não pode estar isenta de con troles artificiais A questão não é mais se os homens devam ser politicamente livres para expressar suas opiniões mas se a li berdade de opinião pos sui para grandes massas do povo algum sentido que não a sujeição à influência de inúmeras formas de propaganda dirigidas por interesses escusos de um tipo ou de outro Nos países totalitários o rádio a imprensa e o cinema são indústrias estatais absolutamente controladas pelos gover nos Nos países democráticos as condições variam mas em toda parte há uma visível tendência na direção do controle centrali zado São criadas corporações imensas que são poderosas de mais e vitais demais para a comunidade para permanecerem to 59 Eu gostaria disse o Secretário do Interior na Câmara dos Comuns em 28 de julho de 1939 que não houvesse necessidade de nenhuma publicidade governamental em parte alguma do mundo Ainda pretendo viver o bastante para ver o fim desse condenável resquício dos anos de guerra Oificial Report col 1834 176 E H CARR talmente independentes da máquina do governo e que acham conveniente aceitar a colaboração voluntária com o estado como uma alternativa a serem formalmente controladas por ele A na cionalização da opinião processouse em toda parte pari pass com a nacionalização da indústria A PROPAGANDA COMOINSTRUMENTO DA POLiTlCA o emprego organizado do poder sobre a opinião pública como um instrumento normal da política externa é um fato moderno Antes de 1914 ocorreram casos de utilização da propaganda pelos governos nas relações internacionais Bismarck e outros estadistas utilizaram livremente a imprensa embora mais com o objetivo de fazer pronunciamentos aos governos estrangeiros do que como um meio de influenciar a opinião pública em geral A cooperação entre o missionário e o comerciante e o apoio dado a ambos pela força militar foi um exemplo familiar do século dezenove de associação entre a propaganda e o poder econômi co e militar no interesse da expansão nacional Mas o campo da propaganda era limitado e as únicas pessoas que a exploravam intensivamente eram os revolucionários Qualquer recurso sis temático à propaganda por parte dos governos teria sido visto como indigno e bastante desabonador Não levou muito tempo para que os beligerantes de 1914 18 se conscientizassem de que a guerra psicológica deve acom panhar a guerra econômica e a guerra militar60 Era uma condi ção para o sucesso nas frentes militar e econômica que o moral próprio fosse mantido e que o moral do outro lado fosse solapa do e destruído A propaganda foi o instrumento pelo qual se buscou ambos esses fins Lançaramse panfletos sobre as linhas inimigas incitando suas tropas ao motim e este procedimento como a maioria das novas armas de guerra foi inicialmente de 60 H D Lasswell no prefácio de Allied Propaganda and lhe Collapse oi lhe German Empire de G G Bruntz Este livro é o estudo disponível mais completo sobre o assunto 177 o poder na política internacional nunciado como contrário ao direito internacional Além disso as novas condições da guerra anularam neste e em tantos ou tros aspectos a distinção entre civil e combatente e o moral da população civil se tornou pela primeira vez um objetivo mili tar O bombardeamento de longa distância escreveu o Chefe do Esta doMaior britânico em janeiro de 1918 só produziria seu efeito moral máximo se as investidas se repetirem constantemente em curtos inter valos de forma a criar em cada área bombardeada uma angústia ininterrupta São esses ataques freqüentes em oposição aos isolados e espasmódicos que interrompem a produção industrial e minam a con fiança pública62 Os chefes militares de outros países beligerantes estavam sem dúvida considerando o mesmo problema em termos seme lhantes A desmoralização da população civil era o objetivo pri meiro não apenas dos muitos ataques aéreos mas ainda do bombardeamento de Paris à longa distância pelo Grande Bertha alemão O trabalho da bomba e do obus foi reforçado especialmente durante os últimos meses da guerra por uma in tensa produção de propaganda impressa Durante a Primeira Guerra Mundial a interdependência íntima entre as três formas de poder foi constantemente demonstrada O sucesso da propa ganda de ambas as partes tanto internamente quanto nos países neutros e inimigos variou de acordo com os resultados cambi antes da luta econômica e militar Quando finalmente o blo queio e as vitórias aliadas nos campos de batalha estrangularam os recursos alemães a propaganda aliada tornouse tremenda mente eficaz e desempenhou um papel considerável no colapso 61 Em 1917 dois aviadores britânicos capturados pelos alemães foram condenados a dez anos de trabalhos forçados por lançarem tais panfletos em contravenção às leis de guerra As sentenças foram abrandadas quando os britânicos ameaçaram represálias A prática foi explicitamente sancionada pelos regulamentos da Haia sobre a conduta da guerra aérea Bruntz op cit págs 1424 62 Tbe War in lheAir BntÍsh OfftcialHistory oilhe War de H A Jones vi apêndice VI pág 26 178 E H CARR final A vitória de 1918 foi atingida por meio de uma hábil com binação do poder militar do poder econômico e do poder sobre a opinião Em que pese o reconhecimento geral da importância da pro paganda nas últimas fases da guerra ela ainda era vista por qua se todos como uma arma apropriada especificamente para um período de hostilidades Da mesma forma que lanço obuses nas trincheiras inimigas ou gás venenoso no inimigo escreveu o General alemão que foi o principal responsável pelo envio de Lenin e seus seguidores num trem selado para a Rússia eu como um inimigo tenho o direito de usar a propaganda contra ele63 A abolição dos ministérios e departamentos de propagan da ao fim da guerra foi uma medida automática de desmobi lização Mesmo ao longo dos vinte anos que s seguiram ao armistício no que era ainda formalmente um período de paz muitos governos utilizaram a propaganda com uma intensidade maior do que no período de guerra e novas agências oficiais e semioficiais brotavam em todo país para influenciar a opinião pública interna e externa Este novo processo tornouse possí vel e inevitável devido à popularização da política internacio nal e à crescente eficiência dos métodos de propaganda Uma vez que ambos os processos devem continuar sua permanência parece assegurada A iniciativa de introduzir a propaganda como um instru mento normal das relações internacionais deve ser creditada ao governo soviético As causas disto foram parcialmente aciden tais Os bolcheviques quando assumiram o poder na Rússia encontravamse desesperadamente fracos no que tange às armas militares e econômicas normais do conflito internacional O prin cipal elemento de força à sua disposição era sua influência so bre a opinião pública de outros países e era portanto natural e necessário que explorassem esta arma ao máximo Nas primei 63 Hoffmann War Diaries trad ingl ii pág 176 179 o poder na política internacional ras épocas eles seriamente acreditavam em sua habilidade para dissolver os exércitos alemães através de panfletos de propa ganda e da confraternização entre as linhas Mais tarde conta ram com a propaganda nos países aliados para paralisar a inter venção aliada contra eles na guerra civil Se a propaganda não houvesse sido suplementada pela criação de um Exército Ver melho eficaz ela poderia isoladamente ter sido ineficiente Mas a importância do papel que desempenhou é suficientemente de monstrada pelo temor à propaganda bolchevique sentido duran te muitos anos depois e que ainda não está extinto em muitos países europeus e asiáticos A Rússia Soviética foi o primeiro estado moderno a estabelecer sob a forma da Internacional Comunista uma organização internacional permanente de pro paganda em larga escala Houve contudo uma causa mais profunda para que o con trole sobre a opinião tivesse atingido um lugar de destaque na política da Rússia Soviética Desde o fim da Idade Média ne nhuma organização política havia pretendido ser o depositário da verdade universal ou a missionária de um evangelho univer sal A Rússia Soviética foi a primeira unidade nacional a pregar uma doutrina internacional e a manter uma organização eficaz de propaganda mundial Esta inovação parecia ser tão revoluci onária que a Internacional Comunista alegava no princípio ser totalmente desvinculada do poder do governo soviético Mas esta separação que pode ter sido real quanto a detalhes administra tivos jamais se estendeu às questões principais da política e depois que o Estado Soviético se consolidou sob Stalin a sepa ração tornouse não mais do que uma mera ficção Este proces so não teve um significado apenas local e nos dá a pista de todo o problema do lugar ocupado por aquilo que é atualmente cha mado de ideologia na política internacional Com efeito se é verdade que o poder sobre a opinião não pode ser dissociado das outras formas de poder então aparentemente o poder não pode ser internacionalizado uma vez que não pode existir em 180 E H CARR política algo como uma oplnlao internacional e a propaganda internacional é uma contradição tanto quanto seria um exército internacional Essa visão tão paradoxal quanto possa parecer pode ser apoiada por argumentos muito coerentes e tanto ela quanto suas implicações demandam um exame cuidadoso PROPAGANDA NAOONAL OU INTERNAOONAL Muitas idéias políticas que influenciaram fortemente a humani dade basearamse em princípios manifestamente universais e portanto tiveram um caráter internacional pelo menos em teo ria Os ideais da Revolução Francesa do livre comércio do co munismo em sua forma original de 1848 ou na sua reencarnação de 1917 do Sionismo o ideal da Liga das Nações todos são à primeira vista como eram em intenção exemplos da opinião internacional divorciada do poder e alimentados pela propagan da internacional Contudo a reflexão estabelecerá limites a esta primeira impressão O quanto qualquer dessas idéias foi politi camente eficaz até assumir uma coloração nacional e ser apoia da por um poder nacional A resposta não é fácil Albert Sorel tem uma passagem conhecida sobre o curso assumido pelo en tusiasmo dos revolucionários franceses Eles confundem a propagação das novas doutrinas com a extensão do poder francês a emancipação da humanidade com a grandeza da República o reino da razão com o da França a libertação dos povos com a conquista dos estados a revolução européia com o domínio da Revolução Francesa sobre a Europau 64 o poder militar de Napoleão foi notoriamente o fator mais potente na propagação através da Europa das idéias de 1789 A influência política da idéia do livre comércio data de sua ado ção pela GrãBretanha como base da política britânica Os re 64 A Sorel L Europe el la Révolution Française págs 5412 181 o poder na política internacional volucionários de 1848 fracassaram em toda parte em alcançar o poder político e os ideais de 1848 permaneceram estéreis Nem a Primeira nem a Segunda Internacional conseguiram qualquer autoridade real Como 1914 havia demonstrado havia movimen tos operários nacionais mas não havia nenhum movimento ope rário internacional A Terceira ou Internacional Comunista exerceu pouca influência até que o poder do estado russo pas sou a apoiála e Stalin deturpou e disseminou as idéias de 1917 da mesma forma que Napoleão deturpou e disseminou as idéias de 1789 O trotskismo não estando apoiado no poder de estado algum permanece sem influência O sionismo politicamente impotente na medida em que contou somente com a propaganda internacional é eficaz enquanto apoiado politicamente pelas grandes potências A propaganda é ineficaz como força políti ca até que adquira um lar nacional e se una ao poder econômi co e militar a destino da Liga das Nações e da propaganda em seu fa vor é provavelmente o melhor exemplo atual dessa tendência Como foi mostrado homens como Woodrow Wilson e Lord Cecil conceberam a Liga das Nações como uma expressão da opinião organizada da humanidade controlando o poder econômico e militar dos governos A opinião pública internacional era o su premo instrumento do poder de longe a mais forte arma que temos e esta opinião deveria ser criada pela propaganda inter nacional que não se preocupava com fronteiras Através dos anos vinte esta falácia do poder da opinião internacional foi sendo gradualmente exposta Que tenha sobrevivido deveuse ao persistente uso pelos entusiastas da Liga de slogans como paz e desarmamento capazes de suscitar simpatia universal pre cisamente por significarem coisas diferentes e realmente con traditórias para diferentes pessoas Todo pais desejava atingir os objetivos de sua política sem guerra e assim defendia a paz Todo país desejava o desarmamento dos outros países ou o de 65 Veja o Capítulo 3 182 E H CARR sarmamento de armas que não considerasse vitais aos seus inte resses Após o colapso da Conferência de Desarmamento tor nouse claro para todos que a Liga das Nações só podia ser efi caz na medida em que fosse um instrumento da política nacional de seus membros mais poderosos A opinião em favor da Liga deixou igualmente de ser internacional e se confinou aos paí ses em que se sentia que a Liga servia aos objetivos da política nacional Na GrãBretanha a Liga das Nações tomouse pela primeira vez popular para o que se pode chamar de ala naciona lista do Partido Conservador A falácia da crença na eficácia de uma opinião pública in ternacional divorciada do poder nacional pode ainda ser ilustra da por fatos em outras partes do mundo O grupo de movimen tos convenientemente classificados sob o título de fascismo baseouse em certos princípios aparentemente universais tais como a rejeição da democracia e da luta de classes a insistência na liderança e assim por diante Nos seus primeiros tempos o fascismo era oficialmente descrito como não um artigo para exportação e assim foi tratado por muitos anos pelos países que a ele aderiram Num período posterior esta limitação foi explicitamente repelida e o fascismo tornouse o tema de uma vigorosa propaganda internacional em muitas partes do mundo Seria entretanto um diagnóstico superficial pretender que uma vez que a Liga das Nações e a Internacional Comunista começa ram como instrumentos da opinião internacional e acabaram como instrumentos da política nacional o fascismo teria come çado como um instrumento da política nacional e terminado como um instrumento da opinião internacional Em ambos os casos a fase internacional foi uma ilusão o que não quer dizer que muitas pessoas não acreditem sinceramente nela A propa ganda internacional do fascismo foi um instrumento da política nacional de certos estados e cresceu com o crescimento do po der econômico e militar desses estados Mas a reductio ad absurdum 66 Mussolini 5critti e Discorsi vi 151 viil 230 o poder na política internacional 183 da propaganda ideológica internacional como um disfarce da política nacional veio com a adoção de slogans negativos que visavam a unir numa aliança política os que não partilhavam de nenhuma ideologia positiva em comum Assim o Pacto Anti Comintern não evitou que a Alemanha chegasse a um acordo com a principal potência comunista quando as necessidades da política nacional assim o pediram e o antifascismo das na ções democráticas não as furtou de buscarem aliança com paí ses cujas formas de governo não podiam ser distintas do fascis mo Esses slogans não têm sentido ou substância se desvinculados da política nacional dos países que os utilizam O poder sobre a opinião não pode ser dissociado do poder eco nômico e militar ACORDOS INTERNAOONAIS SOBRE PROPAGANDA A propaganda é hoje em dia tão amplamente reconhecida como uma arma política nacional a tal ponto que cláusulas quanto a seu uso são bastante comuns em acordos internacionais Essas cláusulas foram muito apropriadamente introduzidas primeira mente em acordos feitos com o governo soviético com o objeti vo de limitar as atividades da Internacional Comunista Entre tanto podese pensar ter sido este um caso excepcional Além do caso da Rússia Soviética o primeiro acordo registrado para evitar a propaganda hostil parece ter sido um concluído entre as companhias de radiodifusão alemã e polonesa que se encarre gavam de assegurar que a matéria difundida não ofendesse de forma alguma os sentimentos nacionais dos ouvintes nacionais da outra parte corrrratantet A propaganda foi pela primeira vez elevada à dignidade de questão universal quando o gover no polonês fez propostas na Conferência de Paz para uma con venção sobre desarmamento moral Limitar a arma da propa 67 Leagllt of Nations C 602 M 2401931 ix pág 4 184 E H CARR ganda por meio de um convenção geral provou ser uma tarefa tão sem esperanças quanto a de limitar as armas rnilitares Mas acordos bilaterais para a eliminação de propaganda hostil foram concluídos entre Alemanha e Polônia em 1934 e entre Alema nha e Áustria em 1936 69 No Acordo AngloItaliano de 16 de abril de 1938 os dois países registraram seu acordo de que qualquer tentativa de alguma parte de empregar os meios de publicidade e propaganda à sua disposição para prejudicar os interesses da outra parte seria incompatível com as boas rela ções que este acordo tem por objetivo estabelecer Tais acordos criaram uma dificuldade óbvia para as demo cracias que defendem a nãolimitação da liberdade de expres são e da publicação de opiniões sobre questões internacionais e não podem assim garantir formalmente evitar a propaganda em seu território contra qualquer pais Esse embaraço se refle tiu na fraseologia contorcida do Acordo AngloItaliano O fato é contudo que na esfera da opinião assim como na esfera eco nômica os princípios do laissezJaire do século dezenove não se mantêm mesmo para as democracias Assim como os governos democráticos foram compelidos a controlar e organizar a vida econômica em seus territórios para competirem com os Esta dos totalitários eles se vêem em desvantagem ao lidar com es ses Estados se não estiverem em condições de controlar e orga nizar a opinião pública O reconhecimento desse fato se espalhou rapidamente mesmo na GrãBretanha Em questões afetas às relações internacionais exerceuse uma influência discreta che gando em épocas de crise à censura direta mas não oficial G8 Foi assinada em Genebra pela maioria dos membros remanescentes da Liga em setembro de 1936 uma convenção internacional pela qual as partes garantiam evitar a radiodifusão de seus territórios de incitamentos de guerra ou genericamente de propaganda hostil contra as outras partes contratantes League 0Nations C 399 1 M 252 1 1936 xii G9 Em ambos os casos o acordo sobre propaganda não figura num texto oficialmente publicado mas sua existência foi revelada em comunicados O comunicado do Ministério das Relações Exteriores austríaco sobre o Acordo GermanoAustríaco de 11 de julho de 1936 anunciou que ambos os países devem evitar todo uso agressivo de radiodifusão filmes serviços noticiosos e teatro Documenls on lnternational Affairs 1936 pág 324 o poder na política internacional 185 mesmo antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial sobre ra diodifusão cinema e imprensa Embora o uso dessa influência fosse freqüentemente criticado em casos particulares tornouse claro que qualquer governo no poder aplicaria em circunstânci as semelhantes algumas daquelas medidas restritivas 70 Simul taneamente houve um rápido crescimento da propaganda que visava a familiarizar a opinião pública com o ponto de vista bri tânico Desde 1935 um organismo chamado British Council passou a exercer a função de tornar a vida e o pensamento do povo britânico mais amplamente conhecidos no exterior Em 1938 a BBC iniciou a difusão regular de boletins noticiosos em várias línguas estrangeiras Em junho de 1939 o Primeiro Mi nistro anunciou a criação de um novo Departamento de Publici dade Exterior do Ministério das Relações Exteriores que serviu como núcleo para o Ministério da informação estabelecido ime diatamente com o início da guerra VERDADE E MORAL NA PROPAGANDA Até aqui discutimos o poder sobre a opinião precisamente nos mesmos termos do que o poder militar e econômico e a conexão íntima entre estas diferentes formas de poder é tão vital e tem sido tão esquecida em discussões teóricas que esta parece ser a abordagem mais proveitosa do problema por enquanto Algu mas pessoas podem com efeito argüir ser esta a única aborda gem correta Pois em primeiro lugar a opinião é condicionada pelo status e pelo interesse em segundo lugar como vimos num capitulo anterior uma classe ou nação dominante ou um grupo de nações proeminente não apenas desenvolve opiniões favo 70 Um debate revelador sobre a imprensa iniciado pela oposição Liberal teve lugar na Câmara dos Comuns em 7 de dezembro de 1938 Enquanto os oradores do bloco Liberal defendiam a liberdade de imprensa com argumentos comuns ao século dezenove o pona voz da oposição Trabalhista declarou que a liberdade de imprensa já era ilusória e pediu que todo jornal do pai s fosse responsável por cada item das notícias que divulgasse e responsável perante esta Casa ou perante alguma autoridade pública Official Report col 1293 186 E H CARR ráveis à manutenção de sua posição privilegiada mas pode em virtude de sua superioridade econômica e militar facilmente impor estas opiniões a outros A vitória dos países democráti cos em 1918 criou uma opinião quase universal de que a de mocracia era a melhor forma de governo Nos anos trinta pode se dizer que a opinião de muitas partes do mundo quanto aos méritos do fascismo como forma de governo sem exagero va riou pari passu com o poder econômico e militar da Alemanha e da Itália em relação às outras grandes potências Estas percep ções podiam ser apoiadas por inúmeros exemplos Se forem ab solutamente verdadeiras então o poder sobre a opinião seria de fato indistinto em caráter do poder econômico e militar e não haveria nada no qual com poder e aptidão técnica suficien tes não se pudesse fazer os homens acreditarem Algumas ve zes já se sugeriu que este é o caso Por meio de uma propagan da astuta e persistente dizia Hitler mesmo o céu pode ser representado a um povo como o inferno e a vida mais infeliz como o paraíso e alegase que especialistas americanos em publicidade sustentam que somente o custo limita a condução da opinião pública para qualquer direção em qualquer assun to72 Todavia com certeza esses são exageros perdoáveis dos peritos na prática da propaganda Como veremos nem mesmo Hitler realmente acreditava no poder ilimitado da propaganda para fabricar a opinião Aqui como em outros casos a posição realista extremada tornase insustentável Quando colocamos o poder sobre a opinião lado a lado com o poder econômico e mi litar devemos não obstante lembrarnos de que não mais estamos lidando com fatores puramente materiais mas sim com os pensamentos e sentimentos de seres humanos O poder absoluto sobre a opinião é limitado de duas ma neiras Em primeiro lugar é limitado pela necessidade de algum grau de relacionamento com o fato Existem fatos objetivos que 71 Hitler Mein Kampf pág 302 72 J Truslow Adams The Epic oi America pág 360 o poder na política internacional 187 não são totalmente irrelevantes para a formação da opinião A boa publicidade pode persuadir o público que um creme facial feito com substâncias de menor qualidade é melhor Mas nem mesmo o melhor anunciante pode vender um creme facial feito com ácido sulfúrico Hitler condenou a futilidade da propagan da alemã na Primeira Guerra Mundial que pintava o inimigo como ridículo e desprezível Es ta propaganda não obteve su cesso simplesmente porque como os soldados alemães desco briram nas trincheiras era totalmente inverídica O perigo de que a verdade aparecerá especialmente numa era de propa ganda competitiva é uma limitação séria ao exercício do poder sobre a opinião A educação que é um dos mais fortes instru mentos desse poder tende ao mesmo tempo a criar um espírito de indagação independente que um dos mais poderosos antído tos contra o manejo desse poder Na medida em que deturpa e interpreta os fatos com vistas a um objetivo específico a propa ganda sempre contém em si mesma este elemento potencial de autodestruição Em segundo lugar o poder sobre a opinião é limitado e provavelmente de maneira até mais eficaz pelo pensamento utópico inerente à natureza humana A propaganda associada ao poder econômico e militar sempre tende a um ponto onde passa a desafiar o seu próprio objetivo ao incitar a mente à re volta contra esse poder É um fato básico sobre a natureza hu mana o de que os seres humanos no longo prazo rejeitam a doutrina de que a força faz o direito A opressão por vezes tem o efeito de fortalecer a vontade e aguçar a inteligência de suas vitimas de modo que não é nem universal nem absolutamente verdadeiro que um grupo privilegiado possa controlar a opinião em detrimento dos nãoprivilegiados Como o próprio Hitler es creveu toda perseguição desprovida de uma base espiritual precisa contar com um sentimento de oposição contra a tenta tiva de esmagar uma idéia pela força bruta73 E este fato vital 73 Hitler Mein Kampf pág 187 188 E H CARR nos dá uma outra pista da verdade de que a política não pode ser definida apenas em termos de poder O poder sobre a opi nião que é parte necessária de todo poder jamais é absoluto A política internacional é sempre política de poder pois é impossí vel eliminar o poder da política Mas isto é apenas parte da his tória O fato de que a propaganda nacional em toda parte se disfarça tão astutamente em ideologias de caráter aparentemen te internacional prova a existência de um estoque internacional de idéias comuns por mais limitado ou fraco que seja ao qual se pode apelar e de uma crença em que estas idéias comuns se colocam de algum modo numa escala de valores acima dos interesses nacionais Esse estoque de idéias comuns é o que en tendemos por moral internacional CAPÍTULO IX A MORAL NA POLÍTICA INTERNACIONAL o LUGAR da moral na política internacional é o problema mais obscuro e difícil de todo o campo dos estudos internacionais Podemse sugerir duas razões para esta obscuridade uma geral e outra particular Em primeiro lugar a maioria das discussões sobre moral são toldadas pelo fato de que o termo é geralmente usado para se referir a no mínimo três coisas diferentes I O código moral do filósofo que é o tipo de moral mais raramente praticada porém mais freqüentemente discutida lI O código moral do homem comum que é por vezes pra ticado mas raramente discutido pois o homem comum dificil mente examina os pressupostos morais que informam suas ações e julgamentos e se o faz está particularmente sujeito à auto dissimulação IlI O comportamento moral do homem comum que se co locará em relação bastante estreita com lI mas que dificilmen te terá alguma relação com I Podese observar que o relacionamento entre lI e lII é re cíproco Não somente o comportamento do homem comum é influenciado por seu código moral mas também seu código mo ral é influenciado pela forma pela qual os homens comuns se comportam inclusive ele próprio Isto é particularmente verda de no que tange à visão da moral política do homem comum que tende mais do que a moral pessoal a ser uma codificação 190 E H CARR da pratIca existente e na qual a expectativa de reciprocidade desempenha um papel importante O monopólio dos estudos internacionais pela escola utópi ca entre as duas guerras resultou numa concentração de inte resse nas discussões sobre o que a moral internacional deveria idealmente ser Houve pouca discussão acerca do comportamen to moral dos estados exceto para condenálos rápida e violen tamente à luz dessa moralidade ideal Não houve discussão alguma dos pressupostos do homem comum sobre a moral internacional Isto foi particularmente la mentável num período em que a popularização da política pela primeira vez tornava os pressupostos do homem comum maté ria de importância primordial e poderseia descrever o abismo cada vez maior entre a utopia internacional e a realidade inter nacional em termos dessa divergência entre a teoria do filósofo e a prática baseada nos pressupostos não expressos e freqüen temente inconscientes do homem comum Além disso a utopia acabou seguindo seu destino usual ao se tornar apesar dela pró pria o instrumento de interesses estabelecidos A moral inter nacional como exposta por muitos autores anglosaxões con temporâneos tornouse pouco mais do que uma arma conveniente para assestar golpes contra os que atacavam o status quo Aqui como em toda parte o estudante da política internacional não pode despojarse totalmente do sentido utópico Mas ele deve ser aconselhado a manter seus pés no chão e a manter rigorosa vigilância sobre as relações entre suas ambições para o futuro e as realidades do presente Isto é igualmente muito difícil O an tropólogo que investiga os códigos morais e o comportamento de uma tribo de canibais provavelmente parte do pressuposto de que o canibalismo é indesejável e está consciente do desejo de que deva ser abolido Mas ele pode muito bem ser cético acer ca do valor de denúncias contra o canibalismo e em todo caso não interpretará mal tais denúncias para um estudo científico do assunto A mesma clareza de pensamento não distinguiu sem A moral na política internacional 191 pre os estudantes da moral internacional que geralmente têm preferido o papel do missionário do que o do cientista O segundo ponto de obscuridade é peculiar ao campo in ternacional Por mais estranho que possa parecer os autores sobre a moral internacional não concordam entre si e nem sem pre está claro em suas mentes se a moral que desejam discutir é a moral dos estados ou a dos indivíduos Este ponto é tão vital à discussão inteira que deve ser esclarecido logo no início de nosso estudo A NATTJREZA DA MORAL INTERNAGONAL O período de governo pessoal absoluto no qual o estado mo derno começou a tomar forma não foi muito afetado pela dis tinção entre moral pessoal e moral estatal Podese presumir a responsabilidade do príncipe por atos do estado sem se distorcer os fatos Charles I pode ter sido um bom pai e um mau rei Mas em ambas as funções seus atos podiam ser considerados como os de um indivíduo Quando contudo a crescente complicação da máquina estatal e o desenvolvimento do governo constitucio nal tornaram a responsabilidade pessoal do monarca uma evi dente falsificação de identidade a personalidade que parecia ser uma condição necessária da responsabilidade moral foi transferida do monarca para o estado O Leviatã como dizia Hobbes é um Homem Artificial Este foi um importante pas so à frente Foi a personificação do estado que tornou possível a criação do direito internacional com base no direito natural Só I Os governos aliados no Tratado de Versailles tentaram reviver este conceito histórico tornando o exKaiser Guilherme lI pessoalmente responsável por atos do Estado mas a tentativa foi quase universalmente condenada quando os ânimos começaram a serenar As ditaduras modernas entretanto ajudaram a colocar esta concepção novamente na moda Assim o Professor Toynbee classificou a invasão da Abissínia de um pecado pessoal deliberado do Signor Mussolini Slrvey o lnternational Ajjairs 1935 ii pág 3 embora de provavelmente tivesse achado inadequado descrever o Plano HoareLaval como o pecado pessoal de Sir S Hoare ou de Laval 192 E H CARR se podia presumir que os Estados tivessem deveres entre si em virtude da ficção que os considerava como pessoas Mas a per sonificação do estado foi uma forma conveniente de conceder lhe não simplesmente deveres mas direitos e com o crescimen to do poder estatal nos séculos dezenove e vinte os direitos dos estados tornaramse mais evidentes do que seus deveres Assim a personificação do estado que começou como um artifício li beral e progressista acabou por se associar com a atribuição de direitos ilimitados do estado sobre o indivíduo e é hoje nor malmente denunciada como reacionária e autoritária Os pensa dores utópicos modernos rejeitamna com fervor e conseqüen temente são levados a negar que se possa atribuir moral ao estado A moral internacional segundo este ponto de vista deve ser a moral dos indivíduos A controvérsia acerca da atribuição de personalidade ao estado não é apenas enganosa mas é também sem sentido Ne gar personalidade ao estado é tão absurdo quanto defender o oposto A personalidade do estado não é um fato cuja veracida de ou falsidade sejam matéria de discussão Ela é o que os juris tas internacionais chamam de a natureza postulada do esta d0 3 É uma ficção ou hipótese necessária uma ferramenta indispensável criada pela mente humana para lidar com a estru tura de uma sociedade desenvolvida Teoricamente é possível imaginar uma ordem política primitiva na qual os indivíduos são indivíduos e nada mais assim como é possível imaginar uma ordem econômica em que todos os produtores e comerciantes são indivíduos Mas assim como o desenvolvimento econômico Z Duguit por exemplo a chama de antropomorfismo sem sentido nem valor Trailé de Droit Constitutionnel 1 capo V 3 Hall Internationa Law 8th ed pág 50 Pearce Higgins International Law and Relations pág38 4 Isto não significa evidentemente que o estado seja uma forma necessária de organização política mas apenas que na medida em que o estado é a forma aceita sua personificação é uma ficção necessária O mesmo se aplicaria a qualquer outra forma por exemplo a classe social A personificação do proletariado desenvolveuse muito na Rússia Soviética por exemplo a ficção de que ele possui os meios de produção 193 A moral na política internacional exigiu o recurso à ficção da responsabilidade coletiva como na sociedade por ações o desenvolvimento político também ne cessitou a ficção da responsabilidade coletiva do estado Não obstante os direitos e obrigações dessas entidades fictícias não são vistos como unicamente legais Um banco é elogiado por sua generosidade para com seus empregados uma companhia de armamentos é atacada por conduta impatriótica e as estra das de ferro têm obrigações para com o público e exigem ho nestidade Todas são questões que implicam a relevância não apenas dos códigos legais mas igualmente dos padrões morais A ficção da pessoagrupo tendo direitos e obrigações morais e sendo conseqüentemente capaz de comportamento moral é um instrumento indispensável da sociedade moderna e a mais in dispensável dentre essas pessoasgrupos é o estado Particular mente não parece ser possível discutir política internacional em outros termos Relações entre ingleses e italianos não é um sinônimo de relações entre a GrãBretanha e a Itália Um pa radoxo curioso e significativo é o fato de que os autores utópi cos sobre assuntos internacionais que denunciam com maior vigor a personificação do estado como absurda e sinistra apesar disto conferem elogios e críticas morais geralmente estas últi mas a essas entidades imaginárias GrãBretanha França ou Itália cuja existência eles negam A continuidade é um outro elemento da sociedade que tor na indispensável a ficção da pessoagrupo Os críticos mais se veros da personificação do estado não terão nenhum escrúpulo em celebrar o 1500 aniversário do The Times ou a 38a vitória de Cambridge na regata e também confiantemente esperarão que o London County Council pague após cinqüenta anos o di nheiro que ele toma emprestado e gasta atualmente A perso nificação é a categoria de pensamento que expressa a continui dade das instituições e de todas as instituições o estado é aquela cuja continuidade é mais importante que seja expressa A ques tão de saber se o Tratado de Garantia da Bélgica impôs uma 194 E H CARR obrigação à GrãBretanha no sentido de auxiliar a Bélgica em 1914 suscitou problemas legais e morais Mas só se pode discu tir esta questão inteligivelmente presumindo que a obrigação não recaía pessoalmente sobre Palmerston que assinou o Tratado em 1839 nem pessoalmente sobre Asquith e Grey que tiveram de decidir o problema em 1914 nem sobre todos os ingleses vivos em 1839 nem sobre todos os ingleses vivos em 1914 mas sim sobre esta pessoagrupo fictícia chamada GrãBretanha que se considerava capaz de comportamento moral ou imoral ao honrar ou desonrar uma obrigação Em resumo a moral inter nacional é a moral dos estados A hipótese do estado personali dade e do estado responsabilidade não é nem verdadeira nem falsa porque não se propõe a ser um fato mas uma categoria de pensamento necessária ao exame correto das relações internaci onais É verdade que outra questão moral também surgiu em 1914 a obrigação dos ingleses individualmente Mas era uma obrigação para com a GrãBretanha proveniente da obriga ção da GrãBretanha para com a Bélgica As duas obriga ções eram distintas e a confusão de raciocínio é custo inevitá vel para o fracasso em distinguilas Muito curiosamente esta distinção parece trazer maior di ficuldade ao filósofo do que ao homem comum que prontamen te distingue a obrigação do indivíduo para com o Estado da obrigação do Estado para com outro Estado Em 1935 a Opo sição denunciou na Câmara dos Comuns o plano HoareLaval como um crime terrível Mas não denunciou Sir Hoare como criminoso nem o considerou como tal a Oposição considerou 5 Um exemplo marcante de pensamento confuso sobre este assunto ocorreu numa recente carta ao The Times Ao comentar a alegada obrigação britânica com relação à França em 1914 um renomado professor de História escreveu que Grey pode ter achado que sua honra pessoal estava envolvida no auxilio à França mas certamente não pensou que a do Gabinete estava The Times February 28 1939 A promessa se houve de ajudar a França há de ter sido dada por Grey não em seu nome mas em nome da GrãBretanha A menos que ele acreditasse que todo o Gabinete tinha a mesma obrigação que ele próprio de velar para que a promessa da GrãBretanha fosse honrada não deveria ter feito nenhuma pro messa em hipótese alguma 195 A moral na política internacional o culpado apenas de um erro de julgamento Em 1938 alguns ingleses se sentiram envergonhados pelo Acordo de Munique Eles não estavam envergonhados de si mesmos pois teriam fei to o que pudessem para evitálo Eles não estavam envergo nhados de Chamberlain pois a maioria deles admitia que ele havia agido honestamente embora erradamente e ninguém se sente envergonhado de alguém que cometa um engano hones to Eles estavam envergonhados da GrãBretanha cuja re putação em sua opinião havia caído em virtude de um ato co varde e indigno Em ambos os casos o mesmo ato que pela visão dos críticos representou um fracasso intelectual da parte do indivíduo representou também um fracasso moral da parte da GrãBretanha Tornouse comum o dito de que o emprésti mo britânico de 10 milhões de libras à Tchecoslováquia foi um pagamento para aplacar a consciência uma moeda consciên cia A essência de uma moeda consciência é que ela é paga por um delinqüente moral e o delinqüente moral que pagou os 10 milhões de libras não foi Chamberlain nem os ingleses que aplaudiram o acordo de Munique mas sim a GrãBretanha Não se pode identificar a obrigação do estado com a obrigação de qualquer indivíduo ou indivíduos e as obrigações dos esta dos é que são o sujeito da moral internacional Normalmente duas objeções são levantadas contra este ponto de vista A primeira é que a personificação do Estado encoraja a exaltação deste em detrimento do indivíduo Esta objeção embora explique o desfavor em que a personificação do Estado caiu entre os pensadores liberais é trivial A personi ficação do Estado é uma ferramenta e depreciála em virtude do uso que algumas vezes é feito dela não é mais inteligente do que condenar uma ferramenta por ter matado um homem A fer ramenta pode igualmente ser posta a serviço do liberalismo me diante ênfase do dever do estado para com o indivíduo e os ou tros estados Nem a democracia pode como um todo prescindir da personificação como um meio de enfatizar o dever do indivÍ 196 E H CARR duo Mesmo o mais sofisticado dentre nós provavelmente recu sarseia a pagar impostos a um grupo de concidadãos embora os paguemos com relativa naturalidade a um estado personifica do O mesmo se aplica com maior força a sacrifícios mais gra ves Jamais se conseguiria que jovens se sacrificassem por um país tão infeliz como a Irlanda disse Parnell se não a imagi nassem como uma mulher Quem morre se a Inglaterra vi ver Não é adequadamente parafraseado por Quem morre se outros ingleses vivem Além disso é difícil imaginar como se podem conduzir ordenadamente as relações internacionais a menos que ingleses franceses e alemães creiam por mais absur da que seja esta crença que GrãBretanha França e Ale manha têm deveres morais entre si e uma reputação a ser mantida cumprindo esses deveres Parece que o espírito das re lações internacionais tendem a melhorar quando se estimula esta crença ao invés de depreciála De qualquer forma está claro que a sociedade humana terá de sofrer uma transformação subs tancial antes de descobrir alguma outra ficção igualmente con veniente para substituir a personificação da unidade política A segunda objeção é mais séria Se a moral internacional é a moral de entidades fictícias não seria ela própria fictícia e irreal Podemos de início aceitar a opinião de que um compor tamento moral só pode provir de indivíduos Negar que rela ções entre GrãBretanha e Itália signifique o mesmo que rela ções entre ingleses e italianos não é negar que as relações entre GrãBretanha e I tália dependem das ações de ingleses e italia nos O comportamento moral do estado é uma hipótese mas não devemos considerar irreal uma hipótese que é aceita em cer tos contextos como um guia do comportamento individual e que de fato influencia este comportamento Uma vez que os governantes e outros que influenciam a condução dos assuntos internacionais concordam em pensar que o estado tem obriga ções e permitem que esta opinião guie suas ações a hipótese 6 Citado em Democraty and War ed G E C Catlin pág 128 197 A moral na política internacional permanece eficaz Os atos a que a moral internacional está liga da são praticados por indivíduos não em seu próprio nome mas em nome desses grupos fictícios de pessoas GrãBretanha e Itália e a moral em questão é a atribuída a estas pessoas Qualquer exame útil da moral internacional deve partir do reco nhecimento deste fato TEORIAS SOBRE A MORAL INTERNACIONAL Antes de considerarmos os pressupostos morais que informam o pensamento atual sobre os assuntos internacionais devemos levar em conta as teorias atuais sobre a moral internacional Pois embora sejam os pressupostos do homem comum e não os do filósofo que determinam o código moral aceito e o comporta mento moral do governo as teorias dos filósofos também exer cem influência no pensamento e com menor freqüência na ação do homem comum e não podem ser deixadas fora do qua dro As teorias da moral internacional tendem a cair em duas categorias As realistas e como vimos também algumas que não são realistas sustentam que as relações entre Estados são governadas apenas pelo poder e que a moral não influi nelas A teoria oposta defendida por muitos autores utópicos é a de que o mesmo código de moral é aplicável tanto aos indivíduos quan to aos Estados A opinião realista de que nenhum padrão ético é aplicável às relações entre os estados tem sua origem em Maquiavel pas sando por Spinoza e Hobbes até Hegel em quem encontrou sua expressão mais completa e consumada Para Hegel os estados são entidades completas e moralmente autosuficientes e as re lações entre eles expressam apenas o acordo ou o conflito entre vontades independentes não unidas por nenhuma obrigação mútua A opinião oposta de que o mesmo padrão é aplicável aos indivíduos e aos Estados estava implícita na concepção original da personificação do Estado e encontrou freqüente ex 198 E H CARR pressão não apenas nos escritos dos filósofos mas nas declara ções de governantes de tendências utópicas A lei moral não foi escrita apenas para os homens em seu caráter individual disse Bright num discurso sobre política externa em 1858 tam bém foi escrita para as nações Estamos no começo de uma era disse Woodrow Wilson em sua mensagem ao Congresso sobre a declaração de guerra em 1917 em que requererseá que os mesmos padrões de conduta e de responsabilidade por erros sejam observados entre as nações e seus governantes as sim como o são entre os cidadãos dos estados civilizados Quando em julho de 1918 o fiel House tentou um primeiro projeto de uma Liga das Nações o Artigo 1 dizia Os mesmos padrões de honra e ética deverão prevalecer internacionalmen te e nos negócios das nações assim como em outros assuntos O acordo ou promessa de uma potência deve ser inviolável Nenhum pronunciamento nesse sentido foi incluído no Pac to da Liga Mas o Dr Benes numa das primeiras Assembléias ressaltou que a Liga era HZpSO facto uma tentativa de introduzir nas relações internacionais os princípios e métodos emprega dos nas relações mútuas dos indivíduos particularest Em seu famoso discurso em Chicago em 5 de outubro de 1937 o Presi dente Roosevelt declarou que a moral nacional é tão vital quanto a moral privada Mas ele não as identificou especificamente N em a visão realista de que nenhuma obrigação moral pren de os Estados nem a visão utópica de que os estados estão su jeitos às mesmas obrigações morais dos indivíduos correspon dem aos pressupostos do homem comum acerca da moral internacional Nossa tarefa é a de examinar agora esses pressu postos 7 ohn Bright Speccbes on Quution of Public Policy pág 479 8 Public Papers of Woodrow Wilson War and Peace pág 479 9 Intimate Papers of Colanel House ed C Seymour iv pág 28 la uague of Nations Fourtb Assembfy i pág 144 11 International Conciliation No 334 pág 713 199 A moral na política internacional PRESSUPOSTOS COMUNS SOBRE A MORAL INTERNAOONAL É digno de nota o fato de que a tentativa de negar a relevância dos padrões éticos para as relações internacionais tem sido feita quase exclusivamente pelo filósofo e não pelo governante ou pelo homem das ruas Algum reconhecimento de uma obrigação para com nossos semelhantes parece implícito em nosso concei to de civilização e a idéia de certos deveres que obrigam auto maticamente o homem civilizado deu origem à idéia semelhante embora não necessariamente idêntica de deveres que obrigam as nações civilizadas Um estado que não aja segundo certos padrões de comportamento para com seus próprios cidadãos e mais particularmente para com os estrangeiros será taxado de incivilizado Mesmo Hitler num de seus discursos se negou a concluir um pacto com a Lituânia porque não podemos cele brar tratados políticos com um estado que não observa as mais primárias leis da sociedade humana e ele freqüentemente alegava a imoralidade do bolchevismo como uma razão para ex cluir a Rússia Soviética da família das nações Todos concor dam que existe um código moral que liga os estados entre si Um dos mais importantes e mais claramente reconhecidos itens deste código é a obrigação de não infligir morte ou sofrimento desnecessários a outros seres humanos ou seja morte ou so frimento nãonecessários à realização de algum objetivo mais alto que certo ou errado justifique uma derrogação da obriga ção geral Este é o fundamento da maioria das regras de guerra o mais antigo e mais desenvolvido capítulo do direito internaci onal e essas regras são geralmente observadas na medida em que não impeçam a condução eficaz das operações militares Um 12 Discurso no Reicbstag 21 de maio de 1935 13 As regras de guerra desde 1914 têm sido expostas a um teste severo A distinção entre combatente e nãocombatente diminui cada vez mais Um ataque deliberado contra os chamados nãocombatentes pode de fato realizar importantes objetivos militares e o conceito do sofrimento desnecessário que o beligerante não tem o direito de infligir por não ser essencial ao seu objetivo militar tornase cada vez mais restrito e difícil de se sustentar Em resumo as atuais condições da guerra estão solapando num ponto importan te um sentido de obrigação universal anteriormente existente e eficaz 200 E H CARR motivo humanitário semelhante inspirou as convenções para a proteção de raças atrasadas ou de minorias nacionais e para o amparo a refugiados As obrigações até aqui mencionadas têm sido obrigações do estado para com os indivíduos Mas a obrigação de estado para estado também é claramente reconhecida O número de si nônimos atuais para o que anteriormente se denominava a co munidade das nações mostra a persistência da crença de que os Estados são membros de uma comunhão e como tal tenham obrigações Presumese que um novo estado ao se tornar um membro da comunidade internacional em virtude de seu reco nhecimento por outras potências se considere automaticamen te obrigado sem qualquer estipulação expressa a aceitar as re gras do direito internacional e os cânones da moral internacional Como vimos o conceito de internacionalismo foi tão livremen te empregado entre as duas guerras com o propósito de justifi car a ascendência das potências saciadas que caiu em algum descrédito entre os Estados insatisfeitos Mas esta reação natu ral não foi tanto uma negação da existência de uma comunidade internacional quanto um protesto contra a exclusão da possibi lidade de gozar de seus privilégios O resultado do Tratado de Versail1es escreveu Goebbels foi o de excluir a Alemanha da comunidade dos países politicamente poderosos e a função do N acional Socialismo era unir o povo e uma vez mais recolocá lo em seu devido lugar na comunidade das naçôes Durante a visita de Hitler a Roma em maio de 1938 Mussolini declarou que o objetivo comum de Itália e Alemanha era buscar entre si e com os outros um regime de comunhão internacional que pos sa restaurar para sempre garantias mais eficazes de justiça se 14 Meia dúzia de sinônimos utilizados indiscriminadamente foram colhidos de documen tos recentes por G Schwarzenberger American ournal ofIntematlonal Law xxxiii pág 59 Não há razão para se suspeitar de sarcasmo na referência num Edito Imperial japonês de 1933 à fraternidade das nações 15 Võlkischer Beobachter 10 de abril de 1939 A moral na política internacional 201 gurança e paz Estas potências constantemente apelavam para a injustiça das condições impostas a elas no passado e para a justiça das exigências que agora faziam e muitas pessoas nestes dois países estavam sem sombra de dúvida sincera a apaixona damente preocupadas em justificar sua política à luz dos pa drões universais da moral internacional Particularmente a teoria de que uma vez que os estados não têm obrigações morais entre si os tratados não possuem força obrigatória não é sustentada mesmo pelos governantes que demonstram pouca inclinação para a cooperação internacional Todo estado celebra tratados na expectativa de que serão obser vados e os estados que violam tratados ou negam que o fizeram ou defendem a violação com argumentos que visam a demons trar que essa violação era legal ou moralmente justificável O governo soviético nos primeiros anos de sua existência aberta mente violou não apenas os tratados assinados pelos governos russos anteriores mas ainda o que ele próprio havia assinado em BrestLitovsk e defendeu uma filosofia que parecia negar a obrigação e a moral internacionais Mas ele simultaneamente celebrou e procurou celebrar outros tratados com a intenção manifesta de observálos esperando que os outros os observas sem O governo alemão acompanhou sua violação ao Tratado de Locarno em 1936 com uma oferta de concluir um novo tra tado Em nenhum dos casos é necessário duvidar da sinceridade dos governos envolvidos A violação de tratados mesmo quan do freqüentemente praticada é tida como algo excepcional que requer uma justificativa especial O sentimento geral de obriga ção permanece A opinião de que o mesmo padrão ético é aplicável tanto ao comportamento dos estados quanto ao dos indivíduos está tão distante da crença corrente como a opinião de que nenhum padrão se aplica aos estados O fato é que a maioria das pesso 16 The Times May 9 1938 202 E H CARR as embora creiam que os Estados devam agir moralmente não esperam deles o mesmo tipo de moral que esperam delas própri as e entre si Muitos pensadores utópicos ficaram tão intrigados com esse fenômeno que se recusaram a reconhecêlo Outros sinceramen te confessaram sua perplexidade A moral dos homens se para lisa quando se trata de conduta internacional observa o Pro fessor Dewey e o Professor Zimmern detecta um preconceito enraizado contra a lei e a ordem no domínio intemacionalU A discrepância é menos surpreendente do que parece à primeira vista Os sofistas estavam há muito tempo familiarizados com o problema da incompatibilidade entre a moral pessoal profissio nal e comercial A moral internacional é uma outra categoria com padrões que são em parte peculiares somente a ela pró pria Alguns dos problemas da moral do estado são comuns ao campo da moral dos agrupamentos de pessoas Outros são pe culiares ao estado em virtude de sua posição de detentor supre mo do poder político A analogia entre o estado e outros agru pamentos de pessoas é portanto útil mas não decisiva DIFERENÇAS ENTRE A MORAL DO INDIVÍDUO E DO ESTADO Podemos agora cuidar das principais razões por que não se espera normalmente que os Estados observem os mesmos pa drões de moral dos indivíduos I Existe a dificuldade inicial de atribuir ao estado ou a qualquer outra pessoagrupo amor ódio inveja e outras emo ções íntimas que desempenham um papel muito importante na moral individual Parece bastante inadequado dizer como es creveu um autor do século dezoito que uma nação deve amar as outras nações como a si mesma Por essa razão freqüente 17 Foreign Affairs March 15 1923 pág 95 18 Zimmern Totuards a National Poliry pág 137 19 Christian Wolff citado em H Kraus Staatsethos pág 187 203 A moral na política internacional mente se diz que a moral do estado deve confinarse ao tipo formal de moral que pode ser codificado numa série de regras e que se aproxima do Direito e que não pode incluir qualidades pessoais essenciais tais como altruísmo generosidade e com paixão cujas obrigações nunca se podem rigidamente definir e precisar O estado assim como uma corporação pública pode se dizer como ocorre com freqüência ser justo mas não gene roso Isto não parece ser totalmente verdade Como já notamos presumese que as pessoasgrupos tenham direitos e obrigações legais assim como morais Quando um banco ou uma compa nhia pública faz uma doação a um Fundo Municipal para assis tência às vítimas de algum grande desastre o ato de generosida de deve ser atribuído não aos diretores cujos bolsos não são afetados nem aos acionistas que não são consultados nem in formados mas ao próprio banco ou companhia Quando o Tesouro realiza uma doação por compaixão em alguns casos de penúria o ato de compaixão é efetuado não pelo funcionário que toma a decisão nem pelo Ministro do Tesouro por si só mas pelo estado Algumas pessoas esperavam que os Estados Unidos perdoassem os débitos dos estados europeus após a Primeira Guerra Mundial e criticaram sua recusa em fazêlo em bases morais Em outras palavras por paradoxal que possa pa recer nós esperamos em certas circunstâncias que os estados e outras pessoasgrupos não apenas cumpram suas obrigações for mais mas que se comportem generosa e compassivamente E é precisamente esta expectativa que cria o comportamento moral em nome de uma entidade fictícia como um banco ou um esta do Bancos subscrevem fundos de caridade e estados fazem do ações benemerentes porque a opinião pública espera isto deles O impulso moral tem sua origem no indivíduo Mas o ato moral é o ato da pessoagrupo Não obstante embora muitas pessoas aceitem a hipótese de que as pessoasgrupos ou pessoas coletivas têm sob cer tas condições tanto um dever moral de agir altruisticamente 204 E H CARR quanto de agir com justiça o dever da pessoa coletiva parece por consenso ser mais limitado pelo interesse próprio do que o dever do indivíduo Em teoria o indivíduo que sacrifica seus interesses ou mesmo sua vida pelo bem de outros é moralmen te elogiável embora este dever pudesse ser limitado pela obri gação para com a família ou dependentes Não se espera nor malmente que a pessoa coletiva se entregue ao altruísmo às custas de algum sacrifício de seus interesses Um banco ou com panhia pública que deixasse de pagar dividendos em virtude de contribuições generosas a instituições de caridade seria mais digno de censura do que de elogio Em sua campanha presiden cial de 1932 Franklin Roosevelt referiuse zombeteiramente à reputação de Hoover por atividades humanitárias na Europa e convidouo a voltar seus olhos dos que chama de países atrasa dos e estropiados para os grandes e aflitos mercados de Kansas Nebraska Iowa Wisconsin e outros Estados agrícolas A obri gação moral normalmente aceita de um estado não é diminuir o padrão de vida de seus cidadãos em virtude de uma abertura de suas fronteiras a um número ilimitado de refugiados estrangei ros embora possa ser sua obrigação aceitar um número tão grande quanto for compatível com os interesses de seu próprio povo Os defensores britânicos da Liga das Nações que exortaram a GrãBretanha a render assistência às vítimas de agressão não sustentavam que ela devesse fazer isto mesmo em detrimento de seus interesses vitais Argumentaram que ela deveria dar a assistência que pudesse razoavelmente suportar assim como um banco pode razoavelmente suportar a doação de 500 guinéus às vitimas de um terremoto O padrão aceito da moral internaci onal em relação às virtudes altruísticas parece ser o de que um 20 Discurso na Metropolitan Opera House New York transcrito no New York Times November 4 1932 21 A União da Liga das Nações advoga sanções apenas nos casos em que o número e recursos dos governos cooperando em nome da Liga torne razoavelmente certo que o provável agressor abandonará seu intento de forma que não haja risco de guerra Headway December 1937 pág 232 205 A moral na política internacional estado deva fazer uso delas na medida em que não sejam seria mente incompatíveis com seus interesses mais importantes O resultado é que grupos seguros e ricos podem melhor se permi tir um comportamento altruístico do que grupos que estão con tinuamente preocupados com o problema de sua própria segu rança e solvência e esta circunstância fornece a base para a presunção normalmente feita por ingleses e americanos de que a política de seus países é mais esclarecida moralmente do que a dos outros 11 Não é contudo apenas verdade que o homem comum não exige da pessoa coletiva certos tipos de comportamento moral que são exigidos do indivíduo ele espera da pessoa coletiva certos tipos de comportamento que consideraria definitivamen te imorais para o indivíduo O grupo não somente está isento de algumas obrigações morais do indivíduo mas ainda está defini tivamente associado à belicosidade e à autoafirmação que se transformam em virtudes positivas para a pessoagrupo O indi víduo procura a força mediante a união com outros no grupo e sua devoção à sua comunidade significa sempre a expressão tanto de egoísmo transferido quanto de altruisrnoPê Se ele é forte convence o grupo a buscar objetivos que são os seus Se é fraco encontra na capacidade de autoafirmação do grupo uma compensação para sua própria falta de poder para se impor Se nós não podemos vencer por nós próprios queremos que o nosso lado vença A lealdade ao grupo se torna uma virtu de cardeal do indivíduo e pode requerer que ele admita um com portamento por parte da pessoa coletiva que condenaria nele próprio Tornase um dever moral promover o bemestar e mais tarde os interesses do grupo como um todo e este dever tende a eclipsar o dever para com uma comunidade mais ampla Atos que seriam imorais no indivíduo podem tornarse virtudes quando praticados em nome da pessoa coletiva Se fizéssemos em nos Z2 R Niebuhr Moral Man and lmmoral Sede pág 40 206 E H CARR so proveito o que estamos fazendo pela Itália dizia Cavour a DAzeglio seríamos grandes velhacost Honestamente o mesmo poderia ser dito por muitos diretores de companhias pú blicas e promotores de boas causas Há uma crescente tendên cia entre os homens atuais escreve o DI Niebuhr de se con siderarem éticos porque delegaram seus vícios a grupos cada vez maiores Da mesma forma delegamos nossas animosidades É mais fácil para a Inglaterra odiar a Alemanha do que para indivíduos ingleses odiarem indivíduos alemães É mais fácil ser antisemita do que odiar indivíduos judeus Condenamos tais emoções em nós mesmos como indivíduos mas as aceitamos sem escrúpulos na qualidade de membros de um grupo IH Essas considerações se aplicam em certo sentido a to das as pessoas coletivas embora se apliquem com maior força ao estado Existem contudo outros aspectos em que normal mente não exigimos do estado nem mesmo um padrão de com portamento moral igual ao que exigimos de outros entes coleti vos O estado provoca um tipo de atração emocional totalmente diferente daquela exercida por qualquer outra pessoa coletiva Ele cobre um campo de atividades humanas muito maior e exi ge do indivíduo lealdade muito mais intensa e sacrifícios muito mais graves O bem do estado é mais usualmente visto como um fim moral em si mesmo Se nos pedem que morramos por nosso país devem pelo menos nos deixar pensar que o bem do nosso país é a coisa mais importante do mundo O estado assim pas sa a ser visto como possuindo um direito à autopreservação que supera a obrigação moral Na Cambridge History 01 British Foreign Policy publicada após a guerra o Professor Holland Rose justifica o desonroso episódio da captura da esquadra holan desa em Copenhagen em 1807 pela crença de Canning de que a própria existência da GrãBretanha estava em jogo Os que 23 Citado em EL Woodward Tbree Studies in European Conseruatism pág 297 24 R Niebuhr Atiantic MonthlJ 1927 pág 639 25 Cambridge History of Britisb Foreign Policy i págs 3634 207 A moral na política internacional têm uma oplnlao diferente normalmente argumentam que Canning estava enganado e não que ele teria agido de outra for ma se sua crença fosse corrigida Outras diferenças entre os padrões de moral normalmente esperados do estado e dos outros entes coletivos resultam do fato de que o estado é o repositório do poder político e não há autoridade acima do estado capaz de lhe impor um comporta mento do mesmo modo que o estado impõe um mínimo de com portamento moral sobre outras pessoasgrupo Um corolário disto é o fato de termos de conceder ao esta do o direito de agir em sua própria causa para reparar danos e ofensas Outro corolário é a dificuldade de assegurar a obser vância por todos de um padrão comum uma vez que enquanto algumas obrigações morais são sempre consideradas absolutas há uma forte tendência no sentido de tornar a imperatividade das obrigações morais dependente de uma expectativa razoável do cumprimento do mesmo dever por outros As convenções desempenham um papel importante em toda moral e a essência de uma convenção é o fato de que ela obriga na medida em que outras pessoas realmente adotem essa convenção O Banco Barclays ou a Química Imperial Limitada incorreria em censu ra moral se empregasse agentes secretos para roubarem docu mentos confidenciais dos cofres das instituições rivais uma vez que tais métodos não são habitualmente utilizados por compa nhias contra outras Mas nenhum estigma se liga à Grã Bretanha ou à Alemanha por agirem dessa forma pois acredi tase que estas práticas sejam comuns a todas as grandes potências e um estado que não recorra a esses expedientes po derá encontrarse em desvantagem Spinoza argumentava que não se podem acusar os estados por faltarem com a palavra pois todos sabem que outros estados fariam o mesmo se isto servisse aos seus interesses Uma razão para não se esperar um padrão mais alto de moral dos estados é porque estes de fato deixam 26 Spinoza Tractatss Politicus iii 14 208 E H CARR com freqüência de se comportar moralmente e porque não há meios de compelilos a se comportarem dessa forma IV Isto nos leva à dificuldade mais fundamental que se nos defronta em nossa análise das obrigações morais atualmente atri buídas ao estado Aceitase normalmente que a moral de uma pessoa coletiva só pode ser a moral social um estado ou uma companhia limitada não pode ser um santo ou um místico e a moral social implica dever para com outros membros da comu nidade seja esta uma família uma igreja um clube uma nação ou a própria humanidade Nenhum indivíduo pode criar uma consciência para si mesmo escreve T H Green ele sempre precisa de uma sociedade para criála por ele27 Em que sentido podemos encontrar uma base para a moral internacional pressu pondo uma sociedade de estados EXISTE UMA COMUNIDADE INTERNACIONAL Os que negam a possibilidade de uma moral internacional natu ralmente contestam a existência de uma comunidade internaci onal Bosanquet o hegeliano inglês que se pode considerar um representante típico desta opinião argumenta que o estado nação é a organização mais ampla que possui a experiência co mum necessária para criar uma vida em comumf e rejeita enfa ticamente a suposição de que a humanidade seja um ente associado real um objeto de devoção e um guia do dever mo ral29 Parece que a resposta a isso poderia ser a de que um ente produto de uma associação jamais pode ser real exceto como uma hipótese de trabalho e que a questão de saber se um ente coletivo dado é um objeto de devoção ou um guia do dever mo ral é uma questão de fato que deve ser respondida pela observa 27 TH Green Prolegomeno to Etbics pág 35l 28 B Bosanquet The Pbilosopbical Theory of tbe State pág 320 29 B Bosanquet Soeis and lnternational Ideais pág 292 209 A moral na política internacional ção e não pela teoria e pode ter diferentes respostas em dife rentes tempos e lugares Já foi mostrado que existe uma suposi ção difundida da existência de uma comunidade mundial da qual os estados são unidades e que o conceito das obrigações morais dos estados está intimamente ligado a essa suposição Existe uma comunidade mundial pelo fato e por nenhum outro de que as pessoas falam e dentro de certos limites se comportam como se houvesse uma comunidade mundial Existe uma comu nidade mundial porque como Salvador de Madariaga argumen ta nós introduzimos esta verdade em nosso acervo de pensa mento espiritual sem discussão prévia Por outro lado seria uma ilusão perigosa supor que esta comunidade mundial hipotética possui a unidade e a coerência de comunidades do tamanho ou menores do que o estado Se exa minarmos as formas pelas quais a comunidade mundial não pos sui um padrão suficiente de coerência teremos a pista das ra zões das imperfeições da moral internacional Esta insuficiência se manifesta principalmente de duas maneiras 1 o princípio da igualdade entre os membros de uma comunidade não é aplicado e realmente não é nada fácil de ser aplicado no caso da comu nidade mundial 11 o principio de que o bem do todo tem prece dência sobre o bem da parte que é um postulado de qualquer comunidade totalmente integrada não é geralmente aceito o PRINCÍPIO DA IGUALDADE I O princípio da igualdade dentro de uma comunidade é difícil de se definir A igualdade não é jamais absoluta e pode às vezes ser definida como uma ausência de discriminação por motivos entendidos como irrelevantes Na GrãBretanha as ra zões pelas quais alguns têm rendas mais altas ou pagam mais impostos que outros são correta ou erradamente consideradas relevantes mesmo por aqueles que estão nas categorias menos 30 S de Madariaga Tbe Words Design pág 3 210 E H CARR favorecidas e o princípio da igualdade não é portanto infringi do Mas o princípio seria infringido e a comunhão quebrada se as pessoas com olhos azuis fossem menos favoravelmente trata das do que as com olhos castanhos ou as pessoas de Surrey do que as de Hampshire Em muitos países as minorias são discri minadas por motivos que consideram irrelevantes e elas dei xam de se sentirem e de serem vistas como membros da comu nidade N a comunidade internacional tal discriminação é endêmica Originase em primeiro lugar da atitude dos indivíduos Conta se que Gladstone certa vez teria exortado uma audiência de concidadãos seus a se lembrarem de que a santidade da vida nos vilarejos das montanhas afegãs entre as neves do inverno é não menos inviolável aos olhos do TodoPoderoso do que as de vocês Podese dizer seguramente que os olhos do TodoPo deroso não são quanto a isso os da grande maioria dos ingle ses O senso de interesse e obrigação comuns da maioria dos homens é mais aguçado com relação à família e aos amigos do que aos seus demais concidadãos e mais aguçado com relação aos seus concidadãos do que a pessoas de outros lugares A fa mília e os amigos formam um grupo de presença cara a cara e o senso de obrigação moral tende a ser forte Os membros de uma nação moderna são levados devido a uma educação mais ou menos uniforme à imprensa nacional popular ao rádio às facilidades de viagem e ao uso hábil de símbolos a adquirirem 31 Somente em tempos recentes é que o fato de todos os habitantes de um território serem membros da comunidade começou a ser considerado um pressuposto Como os judeus na Alemanha nazista os habitantes negros da África do Sul não são vistos hoje como membros da comunidade Nos Estados Unidos muitos sulistas brancos hesitariam em admitir que os negros sejam membros da comunidade da mesma forma que eles 32 Citado pelo Delegado do Haiti em League oi Nations Fifteenth AssembIJ 6th Committee pág43 33 As atitudes morais sempre se desenvolvem mais sensivelmente em relacionamentos de pessoa a pessoa Esta é uma razão por que lealdades mais genéricas naturalmente mais abstratas do que as imediatas perdem um pouco de seu poder sobre o coração humano e por que uma sociedade astuta tenta restaurar este poder tornando uma pessoa o símbolo da comunidade R Niebuhr Moral Man and Immoral Socie págs 523 A moral na política internacional 211 algo do caráter de um grupo caraacara O inglês comum traz em sua mente um quadro genérico do comportamento da vida diária dos pensamentos e interesses dos demais ingleses embo ra não faça nenhum quadro deste tipo acerca do grego ou do lituano Além disso a clareza da imagem de seu quadro acerca de estrangeiros normalmente variará em relação à proximida de geográfica racial e lingüística de modo que o inglês comum tenderá a achar que possui algo embora pouco em comum com o alemão ou o australiano e absolutamente nada em comum com o chinês ou o turc034 Dizse que um correspondente de um jor nal americano na Europa teria estabelecido a regra de que vale ria a pena reportar um acidente se este envolvesse a morte de um americano cinco ingleses ou dez europeus Aplicamos cons ciente ou inconscientemente um pouco deste padrão de valores relativos Se a China não estivesse tão longe disse N eville Chamberlain na Câmara dos Comuns por ocasião do bombar deio japonês a cidades chinesas CCe se essas cenas que estão ocorrendo não estivessem tão distantes da nossa consciência diária os sentimentos de piedade horror e indignação que se levantariam após a total observação desses acontecimentos poderiam lançar nosso povo por caminhos que até então jamais imaginara35 O mesmo motivo reapareceu em sua fala nacional durante a crise tcheca em 27 de setembro de 1938 Quão terrí vel fantástico e incrível é o fato de estarmos cavando trinchei ras e testando máscaras contra gases por causa de uma querela num país distante entre povos dos quais nada conhecernost Estas palavras foram criticadas em muitas partes Mas há pouca 34 Naturalmente as variações de sentimento também são influenciadas pelos preconceitos políticos da época 35 Câmara dos comuns 21 de junho de 1938 Official Reporl col 936 Um correspondente do Tbe Times comentando sobre as incongruências da compaixão na esfera internacio nal questiona se a consciência mundial encara 100 chineses mortos ou arruinados como equivalentes a um judeu perseguido ou se é simplesmente o fato de que os judeus estão à mão enquanto os chineses estão muito longe e são amarelos The Times Novernber 25 1938 36 N Charnberlain Tbe Struggle for Peace pág 275 212 E H CARR dúvida de que representam a reação inicial do inglês comum Nossa atitude normal quanto a estrangeiros é uma completa negação daquela ausência de discriminação por motivos irrelevantes que reconhecemos como o princípio da igualdade Esta atitude do indivíduo se reflete na atitude dos estados entre si e a dificuldade se intensifica devido à estrutura da co munidade internacional Mesmo se a igualdade entre indivíduos de diferentes países fosse reconhecida ainda assim as desigual dades entre os estados seriam flagrantes As desigualdades exis tentes entre um punhado de estados conhecidos não sujeitos a controle externo são infinitamente mais evidentes mais perma nentes e mais difíceis de se esquecer do que as desigualdades entre uma massa anônima de cidadãos sujeitos pelo menos no minalmente à mesma lei A importância atribuída à idéia da igual dade em política internacional é revelada pelo número e pela insistência das demandas baseadas nessa idéia O tratamento de nação mais favorecida a Porta Aberta a liberdade dos mares o pedido japonês pelo reconhecimento da igualdade ra cial no Pacto da Liga das Nações o antigo desejo alemão de um lugar ao sol a mais recente exigência alemã de Gleichherechtigung ou igualdade de status foram todos pedidos de aplicação do princípio da igualdade Os elogios à igualdade foram repetidamente ouvidos nas Assembléias e Comitês da Liga das Nações principalmente senão exclusivamente pelos de legados dos países rneriores Contudo o termo é usado com pouca consistência Algumas vezes significa meramente igual dade formal dos estados perante a lei Em outros contextos sig nifica igualdade de direitos ou igualdade de oportunidades ou 37 Entre as grandes potências apenas a França muito dependente de sua posição em defesa das potências menores advogou consistentemente o princípio da igualdade Não há e confiamos em que jamais haja disse Blum numa ocasião Leaglle of Nations Sixteentb Assembfy Part lI pág 28 uma ordem de precedência entre as potências que formam a comunidade internacional Se fosse estabelecida uma hierarquia entre os estados dentro da Liga das Nações então a Liga seria arruinada moral e materialmente uma declaração memorável tendose em conta a constituição hierárquica do Conselho da Liga 213 A moral na política internacional igualdade de posses Às vezes parece significar igualdade entre as grandes potências Quando Hitler argumentou que de acor do com todo o senso comum a lógica e os princípios gerais da mais alta justiça humana todos os povos deveriam comparti lhar igualmente os bens do mundoP muito dificilmente ele queria dar a entender que a Lituânia deveria gozar tanto dos bens do mundo quanto a Alemanha Mesmo que presumamos que igualdade de direitos ou privilégios signifique igualdade pro porcional e não absoluta teremos avançado pouco uma vez que não existe nenhum critério aceito para se determinar as pro porções Ainda assim isto nos adiantaria pouco muito O pro blema não é o fato de que os direitos e privilégios da Guatemala sejam apenas proporcionalmente e não absolutamente iguais aos dos Estados Unidos mas que tais direitos e privilégios da Guatemala só sejam gozados devido à boa vontade dos Estados Unidos A constante intromissão ou intromissão em potencial das potências torna quase sem sentido qualquer concepção de igualdade entre os membros da comunidade internacional o BEM DO TODO E O BEM DA PARTE lI A outra falha capital da comunidade internacional é a incapacidade de conseguir a aceitação geral do postulado de que o bem do todo tem precedência sobre o bem da parte A Grã Bretanha possui uma consciência nacional comum porque o ho mem de Surrey normalmente agirá segundo o pressuposto de que o bem da GrãBretanha é mais importante do que o bem de Surrey Um dos principais obstáculos ao crescimento de uma consciên cia nacional alemã comum foi a dificuldade em se persuadir os prussianos saxões e bávaros a considerarem o bem da Alema nha mais importante do que o bem da Prússia Saxônia e Bavária Hoje em dia está claro que apesar de aspirações piedosas as pessoas ainda hesitam em agir segundo a crença de que o bem 38 Discurso no Reichstag em 28 de abril de 1939 214 E H CARR do mundo como um todo seja maior do que o bem de seus pró prios países A lealdade para com uma comunidade mundial ain da não é suficientemente poderosa para criar uma moral inter nacional que supere os interesses nacionais vitais Além disso a concepção de uma comunidade implica o reconhecimento de seu bem como algo que seus membros devam promover e o concei to de moral implica o reconhecimento de princípios universais com caráter obrigatório Se nos recusamos a reconhecer os de sejos mais importantes do todo poderemos dizer que existe uma comunidade mundial ou algum tipo de moral internacional Este é o dilema fundamental da moral internacional Por um lado encontramos a aceitação quase universal de uma moral internacional que envolve um sentimento de obrigação para com a comunidade internacional ou a humanidade como um todo Por outro lado encontramos uma relutância quase igualmente universal em admitir que nesta comunidade internacional o bem da parte ou seja nosso próprio país possa ser menos importan te que o bem do todo Esse dilema se resolve na prática de dois modos diferentes O primeiro é o método que Hitler to mou emprestado da Escola Darwiniana de identificar o bem do todo com o bem do mais apto Os mais aptos são e isto é um pressuposto os portadores da mais alta ética39 e basta provar pelas ações que um país é o mais apto para estabelecer a iden tidade de seu bem com o bem do todo O outro método é o da doutrina neoliberal da harmonia de interesses da qual Lord Cecil Woodrow Wilson e o Professor Toynbee foram citados como representantes Esta doutrina como qualquer doutrina que conceba a existência de uma natural harmonia de interesses identifica o bem do todo com a segurança dos que a fruem Quando Woodrow Wilson declarou que os princípios america nos eram os princípios da humanidade ou o Professor Toynbee que a segurança do Império Britânico era o interesse supremo 39 Hitler Mein Kampj pág 421 A moral na política internacional 215 do mundo inteiro estavam com efeito fazendo a mesma afir mação de Hitler de que seus concidadãos eram os portadores da mais alta ética e produzse o mesmo resultado ao se identi ficar o bem de toda a comunidade internacional com o bem da parte dela em que estejamos particularmente interessados Am bos os métodos são igualmente fatais para a concepção efetiva de qualquer moralidade internacional Não há escapatória para o dilema fundamental de que toda comunidade e todo código de moral postula algum reconheci mento de que o bem da parte deve ser sacrificado ao bem do todo Quanto mais explicitamente encararmos esta questão na comunidade internacional mais perto estaremos de uma solu ção de nosso problema A analogia com a comunidade nacional embora imperfeita é uma vez mais útil O liberalismo moderno escreveu Hobhouse pouco antes de 1914 postula não que haja uma harmonia realmente existente que só requer prudência e bom senso para ser posta em prática mas apenas que existe uma harmonia ética possível que os homens podem alcançar e que neste feito reside o ideal social O termo ética deixa transparecer a falha do argumento A harmonia que apenas re quer prudência e bom senso para ser posta em prática do sécu lo dezenove era uma harmonia de interesses A harmonia éti ca só se alcança através do sacrifício de interesses e é necessária precisamente por não existir nenhuma harmonia natural de inte resses Na comunidade nacional constantemente e com sucesso são feitos apelos ao autosacrifício mesmo quando o sacrifício demandado é o da vida Contudo mesmo na comunidade nacio nal seria errôneo supor que a assim chamada harmonia se es tabeleça unicamente através do autosacrifício voluntário O sacrifício requerido é freqüentemente imposto e a harmonia se baseia na consideração realista de que é do interesse do indivíduo sacrificar voluntariamente o que caso contrário lhe 40 Vide o Capítulo 5 41 LT Hobhouse Liberalio pág 129 216 E H CARR seria arrancado pela força A harmonia no plano nacional é atingida através desta combinação de moral e poder No plano internacional o papel do poder é maior e o da moral menor Quando se exige o autosacrifício de um indiví duo este sacrifício pode ou não ser voluntário Quando se de manda autosacrifício de um Estado são maiores as chances de que este alegado autosacrifício se revele na verdade como uma submissão forçada a uma potência maior Porém mesmo nas re lações internacionais o autosacrifício não é de todo impossí vel Muitas concessões feitas pela GrãBretanha às colônias não se podem explicar em termos do interesse britânico ou da sub missão ao mais forte As concessões feitas pela GrãBretanha à Alemanha por mais ineficazes que tenham sido foram ditadas não totalmente pelos interesses britânicos ou pelo medo do po derio alemão mas sim por uma crença em algum conceito de moral internacional que independia dos interesses britânicos Qualquer ordem moral internacional deve repousar sobre algu ma hegemonia de poder Mas esta hegemonia como a suprema cia de uma classe dominante num estado é por si própria um desafio aos que dela não compartilham e para sobreviver há de conter um elemento de reciprocidade de autosacrificio da par te dos que possuem o que a tomará tolerável aos outros mem bros da comunidade mundial É através desse processo de dar e receber da disposição de não insistir em todas as prerrogativas do poder que a moral encontra seu mais seguro ponto de apoio na política internacional e muito provavelmente também na política nacional É sem dúvida sem sentido começar esperan do sacrifícios de vulto O padrão do que razoavelmente pode mos obter não deve ser colocado muito alto Mas o rumo mais prejudicial ao estabelecimento de uma moralidade internacional é com certeza o de pretender que o povo alemão é o portador da mais elevada ética ou que os princípios americanos são os princípios para toda a humanidade ou que a segurança da Grã Bretanha se constitui no bem supremo do mundo de tal forma A moral na política internacional 217 que qualquer sacrifício requerido de qualquer nação seja de fato necessário Quando o Professor Zimmern exorta o homem comum a ampliar sua visão de modo a ter em mente que os problemas públicos do século vinte são problemas mundiaisr o sentido mais concreto contido nesta afirmação é o de que o reconheci mento do princípio do autosacrifício que se supõe normalmen te que se esgote perto da fronteira nacional deva ser estendida para além dela Não é certo que o homem comum permaneça surdo a este apelo Se o Ministro do Tesouro fosse tentar justifi car um aumento no imposto de renda sob o argumento de que estaremos melhor com essa perda de renda certamente devería mos demitilo como maluco e este é o tipo de argumento que é utilizado quase invariavelmente para justificar qualquer ação internacional que acarrete um aparente sacrifício de interesses Um apelo direto à necessidade de autosacrifício pelo bem co mum pode ser por vezes mais eficaz Mas é necessário esclarecer um outro ponto em que muitas ilusões são freqüentes No seio da comunidade nacional presu mimos que neste processo de autosacrifício e de dar e receber o dar deve partir principalmente dos mais privilegiados pela or dem existente Na comunidade internacional os autores e esta distas das potências satisfeitas normalmente presumem que o processo de dar e receber opera somente dentro da ordem exis tente e que todos devem sacrificarse para manter esta ordem A paz internacional disse Eden certa vez tem de ser baseada numa ordem internacional com as nações unidas para preservá las e para esta paz internacional toda nação contribui por que reconhece que ali reside seu próprio interesse duradouroT A falácia latente neste e em muitos outros pronunciamentos é fatal para qualquer concepção funcional de moral internacional O processo de dar e receber deve aplicarse aos desafios postos 42 Zimrnern Tbe Prospeas o Civilisation pág 26 43 Anthony Eden Foreign Affair pág 197 218 E H CARR à ordem existente Os que se aproveitam mais desta ordem só podem a longo prazo esperar mantêla por meio de concessões suficientes para tornála tolerável aos que dela se aproveitam menos e a responsabilidade de velar para que estas mudanças se operem na medida do possível de forma ordenada cabe tanto aos defensores quanto aos que desafiam a ordem existente Isto nos leva ao exame do direito e da mudança na política interna cional CAPÍTULO X OS FUNDAMENTOS DO DIREITO NENHUM tópico tem estado sujeito a tanta confusão no pensa mento contemporâneo sobre os problemas internacionais do que o relacionamento entre a política e o direito Existe entre as muitas pessoas interessadas nas questões internacionais uma forte inclinação para tratar o direito como algo independente da política e eticamente superior a ela Contrastase a força moral do direito com os métodos implicitamente imorais da política Somos conclamados a estabelecer o reino do direito a manter a ordem e o direito internacional ou a defender o direito in ternacional e presumese que ao agirmos dessa forma trans feriremos nossas diferenças da turbulenta atmosfera política da defesa do interesse próprio para o mais puro o mais sereno ar da justiça imparcial Antes de admitirmos esses conceitos po pulares devemos examinar com muito cuidado a natureza e fun ção do direito na comunidade internacional e suas relações com a política internacional A NATUREZA DO DIREITO INTERNACIONAL o direito internacional difere do direito nacional dos estados modernos por ser o direito de uma comunidade nãodesenvolvi da e não totalmente integrada Não possui três instituições que são partes essenciais de qualquer sistema desenvolvido de direi to nacional um âmbito judiciário um executivo e um legislativo I O direito internacional não reconhece a competência de nenhuma corte para exarar sobre matérias de direito ou de fato 222 E H CARR decisões tidas como obrigatórias pela comunidade como um todo Desde há muito é habito de alguns estados celebrarem acordos especiais para submeterem disputas particulares a uma corte in ternacional para a solução judicial A Corte Permanente de Jus tiça Internacional estabelecida pelo Pacto da Liga representa uma tentativa de estender e generalizar este hábito Mas a insti tuição da Corte não modificou o direito internacional simples mente criou certas obrigações especiais para os estados que a aceitaram 11 O direito internacional não possui agentes competentes para forçarem a observância da lei Em certos casos ele de fato reconhece o direito de uma parte ofendida onde haja ocorrido uma violação do direito adotar represálias contra o transgressor Mas este é o reconhecimento de um direito de defesa e não o estabelecimento de uma penalidade por um agente da lei As medidas contempladas no Artigo 16 do Pacto da Liga na medi da em que sejam vistas como punitivas e não meramente pre ventivas fazem parte desta categoria 111 Das duas principais fontes do direito o costume e a legis lação o direito internacional só reconhece a primeira lembran do neste aspecto o direito de todas as comunidades primitivas Determinar os estágios pelos quais um certo tipo de ação ou comportamento passa a ser de costumeiro a obrigatório para todos os membros da comunidade é tarefa mais do psicólogo social do que do jurista Mas foi por processo semelhante que o direito internacional passou a existir Nas comunidades avança das a outra fonte do direito a legislação direta é mais abun dante e nenhum estado moderno poderia possivelmente dispensála Esta falta de legislação internacional parece tão séria que na opinião de muitos especialistas os estados em certas ocasiões se constituem em corpos legislativos e muitos acordos multilaterais entre estados são de fato tratados que geram leis 223 Os fundamentos do Direito traitéIois I Esta opinião está sujeita a graves objeções Um tra tado qualquer que seja seu escopo ou conteúdo não possui a característica essencial da lei não é automática e incondicio nalmente aplicável a todos os membros da comunidade quer concordem com ele ou não De tempos em tempos tentativas foram feitas com intuito de incorporar o direito internacional costumeiro em tratados multilaterais entre estados Todavia o valor dessas tentativas tem sido amplamente anulado pelo fato de que nenhum tratado pode incluir compulsoriamente um esta do que não o aceitou As Convenções da Haia de 1907 sobre a regulamentação da guerra são por vezes citadas como exemplo de legislação internacional No entanto essas convenções não somente não possuem jurisdição sobre os estados que não as assinaram como tampouco obrigam as partes contratantes em relação aos estados que não fazem parte das convenções O Pacto BriandKellogg não é como por vezes se diz levianamente um ato legislativo proibindo a guerra É sim um acordo entre um grande número de estados para renunciar à guerra como um instrumento da política nacional em suas relações entre si Os acordos internacionais são contratos concluídos por estados em sua condição de sujeitos do direito internacional e não leis cri adas por estados na condição de legisladores internacionais A legislação internacional ainda não existe Estas limitações do direito internacional por mais sérias que sejam não o impedem contudo de ser considerado como direito do qual possui todas as características essenciais Parti cularmente a relação entre o direito e a política será a mesma tanto na esfera internacional quanto na esfera nacional Foi observado que a questão fundamental em filosofia po lítica é a de saber por que o homem permite ser governado A questão correspondente que se liga às raízes da ciência do di reito é a de saber por que os homens obedecem à lei Por que a jurisdição da lei é aceita I A Fundação Carnegie por exemplo deu o título de Legislação Internacional a uma cole ção publicada sob seus auspícios de instrumentos multipartites de interesse geral 224 E H CARR Não se pode obter a resposta do próprio direito assim corno não se pode obter a comprovação do postulado de Euclides do próprio Euclides O direito age no pressuposto de que a questão esteja suficientemente esclarecida Mas é urna questão que não pode ser apresentada apenas pelos que procuram justificar o rei no do direito Aplicase tanto ao direito internacional quanto ao nacional No direito internacional freqüentemente assume a forma de saber se ou por que razão os tratados são estabeleci dos A resposta legal a esta questão é a de que os tratados geram obrigações no direito internacional o que inclui a regra sujeita a algumas exceções que serão discutidas dentro em pouco de que os tratados devem ser cumpridos Mas provavelmente o que se deseja efetivamente perguntar é por que o direito inter nacional e com ele a regra de que os tratados devem ser manti dos sua jurisdição aceita e as obrigações cumpridas Estas não são perguntas que o direito internacional possa responder É o propósito deste capítulo inquirir em que campo se deve procu rar a resposta e corno devem ser essas respostas Ao abordarmos o problema da autoridade suprema do di reito encontraremos a mesma divergência fundamental que res saltamos no campo da política entre os utópicos que pensam em termos de ética e os realistas que pensam em termos de poder Entre os estudiosos do direito os utópicos são normal mente conhecidos corno jusnaturalistas que encontram a autoridade do direito no direito natural e os realistas corno positivistas que encontram a autoridade do direito na vonta de dos estados A terminologia tende a se tornar imprecisa e cambiante Alguns utópicos alegam rejeitar o direito natural e adotam alguns outros padrões corno razão utilidade direito objetivo supremo sentido de justiça ou urna norma fun damental Por outro lado alguns positivistas corno Spinoza alegam aceitar o direito natural mas o esvaziam de seu signifi 2 Duguit Traité de Droit Canstitutionnei i pág 16 Krabbe Tbe Modem Idea of lhe Slale trad ingl pág 110 225 Os fundamentos do Direito cada por identificálo com o direito do mais forte Outros positivistas arvoram o pavilhão de escola histórica do direito ou da interpretação econômica do direito Mas a divergência fundamental permanece entre os que vêem o direito primaria mente como um ramo da ética e os que o vêem primariamente como um veiculo do poder A VISAO DO DIREITO NAWRAL A visão naturalista do direito como a visão utópica da política tem uma história mais longa atrás de si do que a visão positivista ou realista Nas comunidades primitivas o direito está ligado à religião e até um estágio posterior do desenvolvimento humano sempre aparece como emanando de um deus ou de um legisla dor divinamente nomeado A civilização secular dos gregos se parou o direito da religião mas não da moral Os pensadores gregos encontraram na concepção de direito natural um direito nãoescrito mais elevado do qual a lei humana derivava sua validade e pelo qual ela podia ser testada A aceitação do cris tianismo pelo Império Romano restaurou a autoridade divina O direito natural foi por algum tempo identificado com o direito divino e somente na Renascença retomou seu papel indepen dente como um padrão ético nãoteológico Como vimos os séculos dezessete e dezoito reviverarn sob uma nova forma a identificação do direito natural com a razão O Direito em geral diz Montesquieu é a razão humana na medida em que governa todos os povos da terra Foi sob esses auspícios que o direito internacional moderno foi criado por Grotius e seus sucessores para atender às necessidades dos no vos estadosnações surgidos das ruínas do mundo medieval O direito internacional teve portanto origem marcadamente utó pica Isto era necessário e inevitável As novas convenções que vieram para regular mais ou menos eficazmente as relações entre 4 Montesquieu Espri desLois Livro 1 capo iii 226 E H CARR os estados surgiram sem dúvida de necessidades práticas Mas não teriam conseguido uma aceitação tão ampla se não fossem tidas como obrigatórias em virtude do direito natural e da razão universal Mas aqui percebemos a reincidência de um paradoxo que também aparece no domínio da política Onde a prática é menos ética a teoria se toma mais utópica Devido ao estágio de desenvolvimento mais primitivo da comunidade internacio nal a moral desempenha um papel menos efetivo na prática do direito internacional do que na esfera do direito nacional Nas teorias do direito internacional a utopia tende a predominar sobre a realidade numa escala sem paralelo com outros ramos da jurisprudência Além disso esta tendência é maior em perío dos em que a anarquia prevalece na prática das nações Durante o século dezenove uma fase comparativamente ordeira nos as suntos internacionais a ciência do direito internacional assu miu urna feição realista Desde 1919 o direito natural retomou sua influência e as teorias do direito internacional se tornaram marcadamente mais utópicas do que em qualquer período ante rior A visão moderna do direito natural difere contudo num aspecto importante da visão que prevaleceu até o final do sé culo dezoito Antes dessa época sempre se concebeu o direito natural corno algo essencialmente estático um padrão fixo e eterno que deveria na natureza das coisas ser o mesmo ontem hoje e para sempre A tendência histórica do pensamento do século dezenove que primeiramente ameaçou eclipsar o direito natural corno um todo acabou por imprimirlhe um novo rumo e no fim do século surgiu a nova concepção do direito natural de conteúdo variável O direito natural segundo esta inter pretação não mais significa algo eterno fixo e invariável mas sim o sentimento inato dos homens em qualquer tempo ou lu gar sobre o que deveria ser o direito justo Esta definição 5 A frase pertence a Stamrnler cuja obra Lebre uondem Recbte 19027 foi traduzida para o inglês sob o título de Tbe Theory ofJusice 227 Os fundamentos do Direito revisada do direito natural nos ajuda um pouco Ela põe fim ao velho enigma de que em certo tempo a escravidão foi aprovada pelo direito natural e em outro proibida ou de que a proprieda de privada seja em alguns lugares tida como um direito natu ral e em outros como uma violação do direito natural Deve mos então considerar o direito como obrigatório por ser uma emanação não de algum princípio ético eterno mas de princípi os éticos de um tempo e comunidade determinados Isto é de toda forma uma parte da verdade O caráter ético do impulso que se encontra na origem de muitas regras do direito nacional e internacional incluindose a regra do direito internacional de que os tratados devem ser mantidos não será negado por ne nhuma pessoa razoável A existência em muitos idiomas euro peus de um semnúmero de palavras que cruzam as fronteiras entre o direito e a ética deixa transparecer a inconsistência da convicção generalizada a respeito da íntima relação entre direi to e ética Não obstante essa explicação do porque o direito é tido como obrigatório se mostrará a partir de um melhor exame ina dequada e em certo grau equivocada O cerne da questão so bre o direito natural não é o fato de que as pessoas diferem dependendo do tempo e do lugar sobre que regras particulares que prescrevem essa questão poderia ser resolvida pela teoria variável do direito natural mas sim que o direito natural ou razão ou direito objetivo ou qualquer outro de seus termos substitutos pode ser tão facilmente invocado para incitar à de sobediência à lei quanto para justificar a obediência a ela O direito natural possui sempre dois aspectos e dois usos Pode ser invocado pelos conservadores para justificar a ordem existente como ocorre quando se alega que os direitos dos governantes ou os direitos de propriedade derivam do direito natural Pode igualmente ser invocado por revolucionários para justificar a rebelião contra a ordem existente Há no direito natural um ele mento anárquico que se constitui na antítese direta do direito 228 E H CARR As teorias do direito que buscam a autoridade suprema do direi to em seu conteúdo ético podem explicar apenas por que leis boas ou tidas como boas num lugar e período determinados são consideradas obrigatórias Porém existe um consenso razoa velmente generalizado no sentido de considerar obrigatórias mesmo as leis reconhecidamente ruins e podese perfeitamen te duvidar da sobrevivência de uma comunidade em que tal opinião não prevaleça Normalmente admitese que pode ha ver um direito ou dever de desobedecer a uma lei ruim Mas em tais casos reconhecese a existência de um conflito entre dois deveres e aceitase que somente circunstâncias bastante excep cionais justificam uma decisão em favor do dever de desobede cer Nenhuma teoria do direito parece adequada quando explica a obrigatoriedade da lei sob o argumento de que está de acordo com o direito natural ou porque é boa A visão realista ou positivista do direito foi exposta clara e ex plicitamente pela primeira vez por Hobbes que definiu o di reito como um comando imperativo Jus est quod iussum est O direito está portanto totalmente divorciado da ética Pode ser opressivo ou mesmo imoral É tido por obrigatório porque existe uma autoridade que força sua obediência É uma expressão da vontade do estado e é utilizado pelos que controlam o estado como um instrumento de coerção contra os que se opõem a seu poder O direito seria portanto a arma do mais forte Esse pen sador contraditório que foi Rousseau em certas partes trata o direito como a antítese do despotismo mas registrou sua opi nião em termos enfáticos O espírito das leis de todos os paí ses é sempre o de favorecer o forte contra o fraco o que possui contra o que não possui Esta desvantagem é inevitável e não comporta exceções 6 Rousseau ÉmiJe Livro IV Os fundamentos do Direito 229 Segundo Marx todo direito é um direito de desigualda de A principal contribuição do marxismo ao problema é a insistência na relatividade do direito O direito não refletiria um padrão ético fixo mas sim a política e os interesses do grupo dominante num estado e num período determinados O direito como Lenin afirma é a formulação o registro das relações de poder e uma expressão da vontade da classe dominante A visão realista da base fundamental do direito é bem resumida pelo Professor Laski As regras legais sempre tentam atingir um objetivo considerado desejável por algum grupo de homens e é apenas através da constante formulação de qual seja este fim é que podemos obter uma jurisprudência realista A resposta realista à questão de por que a lei é tida como obrigatória contém como no caso da resposta naturalista uma parte da verdade Algumas pessoas de fato obedecem a certas leis porque uma infração poderia leválas a um contato pouco desejável com a policia e os tribunais Mas nenhuma comunida de poderia sobreviver se a maioria de seus membros respeitasse a lei apenas em virtude de um temor constante à punição Como afirma Lauds nenhuma lei pode obrigar se não houver uma conscientização e há evidências abundantes acerca da dificul dade de se forçar o cumprimento de leis que ofendem seriamen te a consciência da comunidade ou de qualquer parte conside rável dela O direito é tido como obrigatório porque representa o sentimento de justiça da comunidade é um instrumento do bem comum O direito é tido como obrigatório porque é impos to pelo braço forte da autoridade pode ser mas freqüentemente é opressivo Ambas as respostas são verdadeiras e ambas são apenas meiasverdades 7 Marx e Engels Works ed russa xv pág 272 8 Lenin Works 2a ed russa xv pág 330 xii pág 288 9 Representative Opinions of Mr Justice Holmes ed Laski Introdução 10 Laud Sermon IV Works I pág 112 230 E H CARR o DIREITO COMO UMA FUNÇAo DA SOOEDADE POLÍIICA Se desejarmos então reconciliar estas meiasverdades contra ditórias e inadequadas e encontrar uma resposta única à ques tão de por que a lei é respeitada devemos buscála no relacio namento do direito com a política O direito é tido como obrigatório porque caso contrário a sociedade política não po deria existir e não haveria nenhum direito O direito não é uma abstração Ele só pode existir dentro de um quadro social Onde existe o direito tem de haver uma sociedade dentro da qual ele seja operativo Não precisamos nos alongar no exa me da antiga controvérsia de se como os positivistas susten tam o estado cria o direito ou como defendem os naturalistas o direito é que cria o estado É suficiente dizer que nenhuma sociedade política pode existir sem o direito e que o direito não pode existir exceto numa sociedade política12 Este ponto foi claramente exposto por um autor alemão contemporâneo Todo direito é sempre a expressão de uma comunidade Toda co munidade legal Rechtsgemeinschaft tem uma visão comum do direi to Recht determinada por seu conteúdo É uma tarefa impossível tentar construir uma comunidade legal sem tal visão comum ou esta belecer uma comunidade legal antes que um consenso mínimo sobre o conteúdo do direito da comunidade seja atingido13 Política e direito estão indissoluvelmente interligados pois as relações de homem a homem em sociedade que são o objeto da política também são o objeto do direito O direito como a política é um ponto de encontro para ética e poder 11 Zimmern lnternational Affairs xvii OanFeb 1938 pág 12 12 Não devemos mais inquirir se o Estado é anterior ao direito ou o direito anterior ao Estado Devemos encarálos como funções inerentes à vida comum que é inseparável da idéia do homem Serão ambos fatos primordiais Ambos terão sido coevos como sementes ou germes ao próprio homem ambos terão surgido como frutos desenvolvidos simulta neamente e um em virtude do outro Gierke Natural La and the Theory of Sodery trad ingl pág 224 13 F Berber Sicherheit und Gerechtigkeit p 145 231 Os fundamentos do Direito O mesmo é verdade sobre o direito internacional que não pode ter existência exceto na medida em que exista uma comu nidade internacional que tendo por base um consenso mínimo o reconheça como obrigatório O direito internacional é uma função da comunidade política das nações Seus defeitos se de vem não a qualquer falha técnica mas ao caráter embrionário da comunidade em que funciona Assim como a moralidade in ternacional é mais fraca do que o sentimento moral nacional o direito internacional é necessariamente mais fraco e pobre em conteúdo do que o direito interno de um estado moderno alta mente organizado O diminuto número de estados que formam a comunidade internacional cria os mesmos problemas especiais tanto no direito quanto na ética A evolução de regras gerais igualmente aplicáveis a todos que é a base do elemento ético do direito tornase extremamente difícil As regras por mais gerais que sejam na forma sempre estarão voltadas para um es tado particular ou para um determinado grupo de estados e por essa razão senão por outras o elemento poder é mais predomi nante e mais óbvio no direito internacional do que no direito doméstico cujos sujeitos são um grande corpo de indivíduos anônimos As mesmas considerações tornam o direito internaci onal mais francamente político do que outros ramos do direito Uma vez portanto que se entenda que o direito é função de uma ordem política determinada cuja existência é suficiente para tornálo obrigatório podemos ver a falácia da personifica ção do direito implícita em expressões populares como o reino do direito ou o governo das leis e não dos homens O homem das ruas tende a personificar a lei como algo que aprove ou não ele reconhece como obrigatório e esta personificação é tão natural para fins diários quanto a personificação do estado É contudo perigosa para o pensamento claro O direito não pode ser autocontido pois a obrigação de obedecer ao direito sempre se situa em algo fora dele Não é nem autocriado e nem auto aplicável Existem homens que governam diz um filósofo 232 E H CARR chinês mas não há leis que governam14 Quando Hegel esta belece a incorporação do mais elevado bem moral ao estado podemos perguntar que estado Ou melhor ainda o estado de quem Quando os autores modernos de política internacional encontram o mais elevado bem moral no império do direito po demos também perguntar que direito Ou o direito de quem O direito não é uma abstração Não pode ser entendido inde pendentemente do fundamento político em que se apóia nem dos interesses políticos a que serve Não teremos dificuldade igualmente em detectar a falácia na ilusão comum de que o direito é mais moral do que a política Uma transação ao se tomar legal não se torna moral Pagar a um trabalhador menos do que um salário que lhe permita viver não é mais moral porque esse salário está estipulado num con trato assinado pelo trabalhador e válido perante a lei As ane xações do território francês pelos alemães em 1871 e do terri tório alemão pelos aliados em 1919 podem ter sido morais ou imorais Mas elas não se tornaram nem um pouco mais morais pelo fato de terem sido registradas em tratados assinados pelas potências perdedoras e válidos perante o direito internacional Não é em si nem um pouco mais moral despojar os judeus de suas propriedades por uma lei para este fim do que simplesmen te enviar tropas de assalto para expulsálos As leis dos Medas e Persas provavelmente não eram claramente morais Se o direito sempre procura atingir um objetivo considerado desejável por algum grupo de homens o caráter ético do direito é obvia mente condicionado por esse objetivo A ação política pode ser 14 Hsuntze citado em Liang Chichao History of Cbinese Political Thought pág 137 Um perfeito exemplo da confusão resultante do tratamento do direito como algo autocontido e autoaplicado pode ser encontrado num dito de Winston Churchill Tem de existir a segurança de que algum augusto tribunal internacional seja estabelecido para sustentar aplicar e ele próprio obedecer o direito Manchester Guardian Decernber 12 1938 Se Churchill houvesse parado para perguntar quem estabeleceria este augusto tribunal quem aplicaria suas decisões quem criaria o direito e quem velaria para que o tribunal o obede cesse as implicações políticas desta proposta aparentemente simples teriam se tornado patentes 233 Os fundamentos do Direito e freqüentemente é invocada para se opor a uma lei imoral ou opressiva A qualidade peculiar do direito que o torna uma ne cessidade em qualquer sociedade política não reside em seu objeto nem em seu conteúdo ético mas sim em sua estabilida de O direito proporciona à sociedade aquele elemento de fixi dez regularidade e continuidade sem o qual nenhuma vida coe ren te é possível É base fundamental da sociedade política organizada que os direitos e deveres dos cidadãos entre si e para com o estado sejam definidos pela lei O direito quando incerto em sua interpretação ou inconstante em sua aplicação deixa de cumprir sua função essencial Estabilidade e continuidade não são contudo os únicos requisitos da vida política A sociedade não pode viver apenas pelas leis e o direito não pode ser a autoridade suprema A are na política é o cenário de uma luta mais ou menos constante entre conservadores que de modo geral desejam manter a situ ação legal existente e radicais que desejam alterála em aspec tos importantes e os conservadores nacionais e internacionais têm o hábito de posarem como defensores do direito e de dene grirem seus oponentes como agressores das leis Nas democraci as essa luta entre conservadores e radicais é conduzida às cla ras de acordo com regras legais Mas essas regras são elas próprias fruto de um acordo político que precedeu à lei Todo sistema jurídico pressupõe uma decisão política inicial explíci ta ou implícita alcançada por voto barganha ou força como a da autoridade encarregada de fazer e desfazer as leis Por trás de todo direito existe esse pano de fundo político necessário A autoridade última do direito deriva da política CONCLUSÃO CAPÍTULO XI A INVIOLABILIDADE DOS TRATADOS UMA das funções da lei necessária à vida civilizada é a de prote ger os direitos que foram criados por contratos privados con cluídos numa forma reconhecida como válida pelo direito O direito internacional defende com algumas reservas os direitos criados por tratados e acordos internacionais Este principio é essencial à existência de qualquer tipo de comunidade interna cional e é como vimos reconhecido em teoria por todos os es tados O fato de que as únicas obrigações escritas dos estados são as contidas nos tratados e que o direito internacional cos tumeiro é por vezes incerto em seu conteúdo conferiu aos tra tados um lugar mais proeminente no direito internacional do que o ocupado pelos contratos no direito nacional Com efeito o conteúdo dos tratados é por vezes erroneamente considerado como parte do próprio direito internacional embora ninguém considere as cláusulas de um contrato entre Smith e Robinson como parte do direito nacional Temse atribuído portanto um relevo indevido à inviolabilidade dos tratados que foi posteri ormente intensificado pela controvérsia acerca dos tratados de paz de 191920 Entre as duas guerras certos autores especial mente os de países interessados na manutenção do acordo de paz tentaram tratar a regra pacta sun seruanda não meramente como uma regra fundamental do direito internacional mas como a pedra basilar da sociedade internacional uma atitude jocosa mente descrita por um autor alemão como pacta suntseruandismo 1 Walz in Deursches RechtJg IV 1934 pág 525 A observação do Professor Lauterpacht de que a regra paca sIn seT7anda constitui o critério mais elevado irredutível e final na 236 E H CARR Essa questão se tornou uma das mais controversas de todo cam po da política internacional e o fracasso em distinguir entre a inviolabilidade dos tratados como uma regra do direito inter nacional e a inviolabilidade dos tratados como um principio da ética internacional freqüentemente causou confusão A VAUDADE LEGAL E MORAL DOS TRATADOS A despeito do reconhecimento universal por todos os países de que os tratados são em principio obrigatórios o direito inter nacional anterior a 1914 era relutante em considerar absoluto o caráter obrigatório dos dispositivos dos tratados Devese levar em conta o fato de que enquanto os estados interessados na manutenção do status quo defendiam com vigor a validade in condicional dos tratados no direito internacional um estado cujos interesses houvessem sido adversamente afetados por um tratado normalmente logo que possível o repudiava impune mente A França em 1848 anunciou que os tratados de 1815 não mais são válidos aos olhos da República FrancesaV A Rússia em 1871 repudiou a Convenção dos Estreitos que estabelecera restrições à passagem de seus vasos de guerra que lhe havia sido imposta por ocasião do fim da Guerra da Criméia Estas foram apenas as mais evidentes dentre várias ocorrências simi lares do século dezenove Para atender a tais condições os ju ristas internacionais desenvolveram a doutrina de que uma cha mada cláusula rebus sie stantibus estaria implícita em todo tratado ou seja que as obrigações de um tratado só teriam eficácia frente ao direito internacional enquanto as condições que prevaleci am à época da conclusão do tratado continuassem Essa doutri na se levada à sua conseqüência lógica pareceria levar à con clusão de que um tratado não possui outra autoridade que não a sociedade internacional The Function ofLaw in the International Community pág 418 é um bom exemplo da atitude criticada 2 Circular de Lamartine de 5 de março de 1848 publicada no MoniteuT daquela data A inviolabilidade dos Tratados 237 relação de poder entre as partes e que quando esta relação se altera o tratado desmorona Essa postura não era rara Todo tratado escreveu Bismarck numa frase famosa tem apenas o significado de uma constatação de uma posição definida nos assuntos europeus A reserva rebus sic stantibus está sempre suben tendidaP O mesmo efeito é produzido pela doutrina ocasio nalmente proposta de que o estado goza do direito incondicio nal de denunciar qualquer tratado a qualquer tempo Esta opinião foi colocada em sua forma mais descomprometida por Theodore Roosevelt A nação tem evidentemente o direito de abrogar um tratado de maneira solene e oficial por motivos que consi dere suficientes exatamente como possui o direito de declarar guerra ou exercer um outro ato de poder por uma causa conside rada suficiente Woodrow Wilson observou numa conversa privada durante a Conferência de Paz que quando era um pro fessor de direito internacional sempre supusera que um estado possuía o poder de denunciar qualquer tratado a que estivesse ligado e a qualquer tempos Em 191 S um famoso jurista inter nacional neutro da escola naturalista escreveu sobre a regra pacta sunt seruanda que ninguém a considera como uma regra de direito válida sem exceção seja dentro ou fora do estado Mesmo a GrãBretanha que como a nação mais poderosa do mundo teria o maior interesse na manutenção da validade dos tratados era manifestamente contrária a aceitar a opinião de que os dispositivos dos tratados fossem incondicionalmente obrigatórios O exemplo mais famoso é o do Tratado de Garan tia Belga de 1839 pelo qual as principais potências européias inclusive a GrãBretanha se obrigavam conjuntamente e indi vidualmente a resistir a qualquer violação da neutralidade da Bélgica por qualquer uma delas Em 1870 Gladstone disse à 3 Bismarck Gedanken und Erinnerungen ii pág 258 4 Citado em H F Pringle Tbeadore Roosevell pág 309 5 Miller Tbe Drafting oj lhe Covenant i pág 293 6 Krabbe The Modem Idea oj lhe Slate trad ingl pág 266 238 E H CARR Câmara dos Comuns numa passagem que foi citada com apro vação por Grey em seu discurso de 3 de agosto de 1914 que ele não estava apto a apoiar a doutrina amplamente sustentada nes ta Casa de que o simples fato da existência da garantia obriga a todas as partes sem levar em conta a posição particular em que uma delas possa se encontrar na ocasião em que o cumprimento da garantia seja necessário Tal interpretação Gladstone achou rígida e impraticável Uma minuta confidencial escrita em 1908 por Lord Hardinge então Subsecretário Permanente de Estado para Assuntos Estrangeiros foi concebida dentro do mesmo espírito O compromisso sem dúvida existe mas se podemos ser chamados a cumprir nossa obrigação e a defender a neutralidade da Bélgica nos opondo à sua violação deve necessariamente depender de nossa polí tica na época e das circunstâncias do momento Supondo que se a França violasse a neutralidade da Bélgica numa guerra contra a Ale manha é duvidoso nas atuais circunstâncias que Inglaterra ou Rússia movam um dedo para manter a neutralidade belga enquanto que se a neutralidade da Bélgica fosse violada pela Alemanha é provável que o inverso ocorresse Grey comentando numa minuta posterior meramente ob servou que esta reflexão ia direto ao ponto Um outro princípio não menos elástico do que a cláusula rebus sic stantibus tem sido por vezes invocado para justificar o nãocumprimento de obrigações internacionais o princípio da necessidade ou dos interesses vitais É uma máxima jurídi ca conhecida a de que não se pode exigir de ninguém o impossí vel e o impossível é às vezes mantido no direito internacional para incluir atos prejudiciais aos interesses vitais significando primordialmente a segurança do estado Alguns autores têm sustentado especificamente que todo estado possui o direito 7 Citado em Grey Speecbes on Foreign Affairs 190414 pág 307 8 Britisb Documents on the Origin of the War ed Gooch and Ternperley viii págs 3778 239 A inviolabilidade dos Tratados legal da autopreservação que supera qualquer obrigação para com outros estados Esta visão assume um peso significativo em tempos de guerra Em sua nota de protesto contra as medi das britânicas de bloqueio em dezembro de 1914 o governo dos Estados Unidos colocoua como o princípio do direito in ternacional pelo qual os beligerantes não deveriam interferir no comércio neutro a menos que tal interferência seja manifesta mente uma necessidade imperativa para a proteção de sua segu rança nacional e então somente na medida em que seja uma necessidade O governo britânico agradecidamente aceitou esta interpretação e esteve a partir daí pronto para justificar suas atividades de bloqueio no plano de uma necessidade imperati va inconteste cujos requisitos ninguém estava tão qualificado a estabelecer quanto ele próprio Em tais emergências o leigo descarta os preciosismos legais e chega aos mesmos resultados por outros métodos Na época do Jameson Raid o The Times publicou um poema do Poeta Liaureado que começava com es tas linhas conciliadoras Deixem que os juristas e os estadistas Se confundam sobre pontos do direito Se sábias forem nossa espada e sela E armas quem se importará 11 Danese o direito eu quero o Canal construído era um ditado popularmente atribuído a Theodore Roosevelt na época da crise do Panamá Em 1939 um portavoz naval japonês comentando a abordagem de navios estrangeiros em águas chi nesas por patrulhas japonesas teria dito Não é uma questão de termos o direito de fazer isto Tratase de algo necessário e 9 A correspondência foi publicada em Cmd 7816 de 1915 10 Poel Laureate poeta oficialmente apontado para servir à Casa Real na GrãBretanha O detentor do titulo pode escrever poemas sobre os grandes acontecimentos nacionais N do T 11 The Times january 11 1896 240 E H CARR que estamos fazendo12 Uma vez que ela isto é a nação este ja em perigo de opressão ou de aniquilação escreveu Hitler a questão da legalidade assume um papel secundârio Realmente quando se oferecem implícita ou explicitamen te explicações para o nãocumprimento de obrigações de trata dos é freqüentemente difícil descobrir pelas palavras emprega das se a justificativa alegada se baseia em termos legais ou morais Adotase a opinião de que em virtude da operação da cláusula rebus sic stantibus ou por outra razão a obrigação não mais existe perante o direito Ou é a obrigação legal mantida ou e se aceita que o Estado poderá violar o direito sob a justifi cativa de que é imoral nãorazoável ou impraticável assim como o cidadão às vezes poderá estar moralmente autorizado a vio lar o direito nacional De um modo geral podese dizer que antes de 1914 a regra pacta sunt seruanda era interpretada elasti camente e o nãocumprimento das obrigações podia ser defen dido como legalmente admissível enquanto que desde 1919 a interpretação da regra tendeu a tornarse mais rígida e o não cumprimento tem sido defendido principalmente em termos de que considerações de razão ou moral permitiram ao estado vio lar sua obrigação estritamente legal O dilema do direito inter nacional é o do dogma eclesiástico Uma interpretação elástica adaptada às diversas necessidades aumenta o número de fiéis Uma interpretação rígida embora teoricamente desejável pro voca secessões na Igreja Não se pode duvidar de que os repúdi os mais freqüentes e abertos às regras do direito internacional desde 1919 foram devidos em parte aos bemintencionados esforços das potências vitoriosas para fortalecer essas regras e interpretálas com maior rigidez e precisão Um exame das numerosas transgressões de obrigações estabelecidas em tratados durante este período fornece resul tados menos definitivos do que se poderia esperar Em muitos 12 Tht Timtf May 26 1939 13 Hitler Mtin Kampj pág 104 A inviolabilidade dos Tratados 241 casos o estado envolvido se defendeu negando que houvesse ocorrido alguma quebra das obrigações do tratado ou alegando que o tratado em primeiro lugar havia sido violado pela outra parte Em dezembro de 1932 a Câmara de Deputados da Fran ça recusouse a cumprir o Acordo de Débito de Guerra com os Estados Unidos nos termos de que as circunstâncias determi nantes haviam mudado desde a conclusão do acordo seis anos antes Tratase da argumentação mais próxima desde 1919 de uma explícita invocação da cláusula rebus sic stantibus 14 O não cumprimento britânico do Acordo de Débito de Guerra Anglo Americano foi justificado em termos de necessidade econômi cas Mas o campo principal da argumentação não era legal mas moral o encargo imposto pelo acordo era exorbitante e In justo The Times adotou a opinião de que o débito não pos suía a mesma validade moral de uma transação comercial co murri Num estágio anterior N eville Chamberlain en tão Ministro do Tesouro explicitamente admitiu que a obrigação era legalmente devida mas apelou para outras obrigações que po deriam ser consideradas maiores do que as da lei Quando nos dizem que os contratos devem ser sagrados e que não podemos de forma alguma violar as obrigações que assumimos não se deve esquecer que temos outras obrigações e responsabilidades obri gações não apenas para com nossos concidadãos mas também para com muitos milhões de seres humanos pelo mundo afora cuja felici dade ou miséria podem depender do quanto se insista no cumprimen to dessas obrigações por um lado e o quanto se cumpra de fato por outro lado 17 Ao repudiar as cláusulas militares do Tratado de Versailles em março de 1935 a Alemanha baseou seu ato na alegada falha 14 Resolução de 14 de dezembro de 1932 em Documents on lntemational AffairI 1932 págs 8082 15 As citações são da Nota britânica de 4 de junho de 1934 16 The Times june 2 1934 17 Discurso na Câmara dos Comuns em 14 de dezembro de 1932 em Documents on International AffairI 1932 pág 128 242 E H CARR das outras partes em implementarem suas próprias obrigações no sentido do desarmamento Um ano mais tarde o repúdio ao Tratado de Locarno foi justificado em termos de que após o ato francês de concluir o Pacto FrancoSoviético o tratado havia deixado de existir na prática18 Estes foram ostensivamente argumentos legais Mas num discurso público pouco após a ocu pação da Renânia Hitler rejeitou a alegação legal em favor da moral Se o resto do mundo se apega à letra dos tratados eu me apego à moral eterna De um modo geral portanto podese dizer que as viola ções de tratados entre as duas guerras foram justificadas não no campo legal das derrogações admitidas pelo direito interna cional à inviolabilidade dos tratados mas sim no terreno ético de que certos tratados embora legalmente obrigatórios eram desprovidos de validade moral Não se negou que as violações de tais tratados eram tecnicamente violações do direito interna cional mas foram toleradas em termos de que os próprios trata dos eram uma ofensa contra a moral internacional É importan te para o estudante da ética e do direito internacional perscrutar o que se acreditava popularmente tornar os tratados moral mente ignominiosos e portanto moralmente inválidos 18 Diplomatic Disaasions Directed Totuards a European Settlement Cmd 5143 pág 78 19 Citado em Toynbee Survey 0lntemationalAffairs 1936 pág 319 Tais alegações não são peculiarmente modernas e têm sido freqüentemente vistas como legítimas Mesmo em 1908 um conceituado historiador inglês lembra as palavras de Pitt que com a simples mudança de substantivos próprios são precisamente apropriadas à atitude de Hitler Seu apoio à exigência britânica de por Deus epela Natureza derrubou as restrições artificiais de tratados injustos sua denúncia à Convenção do Pardo como uma estipulação da ignomínia nacional cristalizaram o sentimento inarticulado da nova Inglaterra Quarlerfy Review Oct 1908 pág 325 Uma passagem posterior no mesmo artigo diz o seguinte Através da alquimia de sua visão intensa e ideais políticos próprios ele impôs na Inglaterra uma concepção de desenvolvimento nacional e de objetivos nacionais baseados num ideal de expansão imperialista para cuja realização a nação deveria sacrificar tudo ou deixar de crer no seu próprio direito e poder de existir ibidem págs 3345 É interessante obser var que o autor claramente considera estas frases laudatórias 243 A inviolabilidade dos Tratados TRATADOS AsSINADOS SOB COAyfo Em primeiro lugar sentiase que havia um vício moral em trata dos assinados sob coação Este sentimento se ligou principal mente ao Tratado de Versail1es assinado pela Alemanha sob a pressão de um ultimaum de cinco dias A propaganda alemã muito trabalhou para popularizar o conceito de ser o Tratado de Versailles um Diktat sem validade moral e a idéia gozou de ampla difusão após a conclusão do Tratado de Locarno quando os estadistas britânicos e franceses impetuosamente rivalizaram com Stresemann na ênfase conferida ao significado moral da aceitação voluntária pela Alemanha de alguns dispositivos acei tos sob coação em Versailles A atitude adotada para com trata dos concluídos sob coação depende da atitude adotada para com a guerra pois todo tratado que põe fim a uma guerra é quase inevitavelmente aceito pelo perdedor sob coação Na medida portanto em que se reconheça qualquer tipo de guerra como moral tratados concluídos sob coação não podem ser incondi cionalmente condenados como imorais As objeções morais mais freqüentemente feitas ao Tratado de Versailles parecem de fato ter sido baseadas não tanto em sua assinatura sob coação como na severidade de seu conteúdo e no fato de que os governos aliados invertendo o processo seguido em todas as conferênci as de paz importantes até então inclusive a de BrestLitovsk recusaramse a manter negociações orais com os plenipotenciá rios das potências derrotadas Este ato de insensatez desacredi tou o tratado mais do que o ultimatum que precedeu sua assina tura TR4TADOS INJUSTOS Em segundo lugar adotavase normalmente a oplnlao de que tratados poderiam ser invalidados moralmente em virtude do caráter de seus conteúdos Não pode com efeito existir nenhu 244 E H CARR ma regra de direito internacional correspondente à regra do di reito nacional que invalida contratos imorais ou contrários à política pública A ausência de uma ordem política internacio nal torna impossível qualquer definição legal de política pública internacional ou do que seja internacionalmente imoralê Mas os que consideram o conteúdo de um determinado tratado in ternacional imoral concederão de um modo geral ao estado pre judicado o direito moral de denunciálo pois o direito internaci onal não proporciona outro meio de reparação Convém observar além disso que existe uma tendência a se conceder o mesmo direito moral de denunciar um tratado que não seja estritamen te falando imoral mas que seja injusto no sentido de que impo nha condições flagrantemente incompatíveis com as relações de poder existentes entre as partes contratantes As cláusulas de desarmamento do Tratado de Versailles foram amplamente tidas como destituídas de validade por não ser razoável impor uma posição de inferioridade permanente a uma grande potência Em geral reprovouse o Tratado de Versailles por este ter tentado perpetuar a fraqueza alemã devido ao seu colapso no fim da guerra Este argumento não é provavelmente estritamente éti co uma vez que se assenta na posição de poder e reconhece um direito moral baseado simplesmente na força Mas tratase de um exemplo da forma curiosa pela qual poder e ética se interpenetram em todos os problemas políticos Um caso em parte similar surgiu em conexão com o Artigo 16 do Pacto da Liga das Nações Quando os Estados Unidos deixaram de ratifi car o Pacto sentiuse que as obrigações impostas por aquele 20 Alguns autores alemães após 1919 tentaram sustentar que os tratados são inválidos no direito internacional se conflitam com o direito natural das nações Esta bibliografia foi revista por Verdross American ournal of International Law xxi oct 1937 págs 571 e seguintes Mas esta opinião encontrou pouco apoio em outras partes Por ocasião de um julgamento da Corte Permanente de Justiça Internacional em 1934 o juiz alemão numa opinião individual expressou o entendimento de que a Corte jamais aplicaria uma con venção cujo conteúdo fosse contrário aos bonnes moeurs Corte Permanente de Justiça Internacional Série AB No 63 pág 150 Mas a Corte como tal jamais pareceu se comprometer com esta proposta 245 A inviolabilidade dos Tratados artigo não mais obrigavam moralmente uma vez que os mem bros da Liga não poderiam razoavelmente se arriscar a toma rem medidas que lhes angariasse a inimizade de um país tão po deroso O teste do que se reconhece normalmente como razoável se aplica à validade moral dos tratados assim como a outros problemas de moral internacional Os TRATADOS COMO INSTRUMENTOS DE PODER A terceira consideração por vezes invocada para negar o cará ter moralmente obrigatório dos tratados internacionais é de tipo mais abrangente Visa a levantar dúvidas sobre o crédito moral não de tratados particulares mas de todos os tratados por se rem por sua natureza instrumentos de poder e desprovidos de valor moral Um autor marxista argumentava que na sociedade capitalista a obrigatoriedade legal dos contratos é apenas um método de usar o poder do estado para proteger e ampliar os interesses da classe dominante Do mesmo modo podese sus tentar com considerável dose de razão que a insistência na va lidade legal dos tratados internacionais seja uma arma usada pelas nações dominantes para manter sua supremacia sobre as nações mais fracas a quem os tratados são impostos Esse argu mento está implícito na visão realista do direito como um ins trumento opressivo do poder dissociado da ética O argumento é auxiliado pela maneira elástica e inconsis tente pela qual a doutrina da inviolabilidade dos tratados tem sido aplicada na prática dos estados Em 193233 os governos francês e britânico insistiam com particular veemência em que as cláusulas de desarmamento do Tratado de Versailles eram le galmente obrigatórias para a Alemanha e só poderiam ser revis tas com o consentimento das potências interessadas Em dezem bro de 1932 a Câmara dos Deputados francesa encontrou razões 21 Renner Die Recbtsinstinae des Priuatsrecbt und ibre 50ziale Funkion pág 55 246 E H CARR para se recusar a pôr em pratlca o acordo de débito de guerra com os Estados Unidos Em junho de 1933 o governo britânico cessou o pagamento das prestações regulares devidas em virtu de de seu acordo de débito de guerra substituindoas por pa gamentos simbólicos sem expressão e um ano mais tarde esses pagamentos simbólicos foram encerrados Contudo em 1935 GrãBretanha e França uma vez mais se uniram numa condena ção solene à Alemanha pelo repúdio unilateral de suas obriga ções à luz das cláusulas de desarmamento do Tratado de Versailles Tais incoerências são tão comuns que o realista en contra pouca dificuldade em reduzilas a uma simples regra O elemento do poder é inerente a todo tratado político O conteú do de tal tratado reflete em certo grau a força relativa das par tes contratantes Os estados mais fortes insistirão na inviola bilidade dos tratados concluídos com os estados mais fracos Os estados mais fracos denunciarão os tratados concluídos com os estados mais fortes logo que a situação de poder se altere e o estado mais fraco se sinta suficientemente forte para rejeitar ou modificar a obrigação Desde 1918 os Estados Unidos não con cluíram tratado algum com um estado mais forte e portanto têm sustentado sem reservas a inviolabilidade dos tratados A GrãBretanha concluiu o acordo de débito de guerra com um país financeiramente mais forte e não cumpriu Ela não con cluiu nenhum outro acordo importante com uma potência mais forte e com esta única exceção sustentou a inviolabilidade dos tratados Os países que celebraram o maior número de tratados com estados mais fortes que eles e subseqüentemente fortale ceram suas posições foram Alemanha Itália e Japão e estes fo ram os países que denunciaram ou violaram o maior número de tratados Mas seria precipitado presumir qualquer distinção mo ral entre estas diferentes atitudes Não há razão para supor que estes países insistiriam menos que GrãBretanha ou Estados Uni dos na inviolabilidade de tratados favoráveis a eles próprios celebrados com Estados mais fracos 247 A inviolabilidade dos Tratados A tese é convincente na medida em que se desenvolve A regra pacta sunt seruanda não é um principio moral e sua aplica ção não pode ser sempre justificada em termos éticos É uma regra do direito internacional e como tal não é apenas necessá ria à existência de uma sociedade internacional como também assim é reconhecida universalmente Mas o direito não pretende resolver todo problema político e quando ele falha a culpa nor malmente cabe aos que procuram empregálo para fins para os quais ele não foi feito Não é uma crítica ao direito descrevêlo como sustentáculo da ordem estabelecida A essência do direito é promover a estabilidade e manter a estrutura existente da so ciedade e é perfeitamente natural que os conservadores de toda parte se autodenominem como o partido da lei e da ordem e denunciem os radicais como perturbadores da paz e inimigos do direito A história de toda sociedade revela uma forte tendên cia por parte dos que desejam alterações importantes da ordem existente a cometerem atos ilegais ou que podem ser denuncia dos como tal pelos conservadores É verdade que em socieda des altamente organizadas onde existe um mecanismo legalmente constituído para provocar mudanças no direito esta tendência à ação ilegal é mitigada Mas nunca é totalmente afastada Os ra dicais sempre estão mais sujeitos a entrar em conflito com a lei do que os conservadores Antes de 1914 o direito internacional não condenava como ilegal o recurso à guerra com o fim de alterar a ordem internaci onal existente e não existia nenhum mecanismo legalmente cons tituído para causar mudanças de outra forma Após 1918 to mouse quase universal a condenação da guerra de agressão e quase todas as nações do mundo assinaram um pacto renunci ando à guerra como instrumento de política Enquanto desta forma o recurso à guerra com o propósito de alterar o status quo hoje normalmente envolve a quebra de uma obrigação de trata do sendo ilegal perante o direito internacional não se consti tuiu nenhum mecanismo internacional eficaz para estabelecer 248 E H CARR mudanças por meios pacíficos O rudimentar sistema do século dezenove ou ausência de sistema era lógico ao reconhecer como legal o único método eficaz de alterar o status quo A rejeição do método tradicional tornado ilegal e o fracasso em criar qual quer alternativa eficaz tornou o direito internacional contempo râneo um sustentáculo da ordem existente numa extensão até então desconhecida no direito internacional ou no direito naci onal de qualquer país civilizado Esta é a causa mais fundamen tal para o recente declínio do respeito pelo direito internacio nal e os que ao deplorarem o fenômeno deixam de reconhecer sua origem se expõem não sem razão à condenação por hipo crisia ou obtusidade De todas as considerações que tornam improvável a obser vância da regra legal da inviolabilidade dos tratados e que apre sentam uma justificativa moral plausível para a denúncia de tra tados esta última é de longe a mais importante O respeito pelo direito internacional e pela inviolabilidade dos tratados não aumentará em virtude dos sermões dos que tendo muito a ga nhar com a manutenção da ordem existente insistem mais fir memente no caráter moralmente obrigatório do direito O res peito pelo direito e pelos tratados só será mantido na medida em que o direito reconheça mecanismos políticos eficazes atra vés dos quais ele se possa modificar e superar Deve haver um reconhecimento claro deste jogo de forças políticas que antece dem todo o direito Somente quando estas forças estão em equi líbrio pode o direito cumprir sua função social sem se tomar uma ferramenta nas mãos dos defensores do status quo Atingir esse equilíbrio não é uma tarefa legal e sim política CAPÍTULO XII A SOLUÇÃO JUDICIÁRIA DOS LITÍGIOS INTERNACIONAIS ALÉM de estabelecer direitos legais o direito proporciona meca nismos para solucionar litígios sobre esses direitos A jurisdição das cortes nacionais é compulsória Qualquer pessoa citada deve comparecer perante a corte ou perderá sua causa à revelia e a decisão da corte é obrigatória para todos os envolvidos O direito internacional embora estabeleça mecanismos para a solução de litígios não estabelece nenhuma jurisdição com pulsória Até o fim do século dezenove o processo judiciário aplicado aos litígios internacionais quase invariavelmente assu mia a forma de um acordo ad hoc para submeter um litígio parti cular a um árbitro ou árbitros cujo método de nomeação era fixado pelo acordo e cujo veredicto era aceito previamente como obrigatório Sob a Convenção da Haia de 1899 foi estabelecida na própria Haia uma Corte Permanente de Arbitragem Esta não era contudo uma corte mas sim um quadro fixo do qual os estados desejosos de recorrer à arbitragem podiam selecionar os árbitros convenientes A Corte Permanente de Justiça Interna cional estabelecida pelo Pacto da Liga das Nações realmente era uma corte estabelecida como tal Mas só exercia jurisdição com o consentimento das partes fosse este consentimento ex presso num acordo ad hoc relacionado ao dissídio particular ou num acordo genérico entre as partes para submeterem à Corte todos os dissídios classificados em determinada categoria Está bem solidificado no direito internacional declarou a própria 250 E H CARR Corte num de seus julgamentos que nenhum estado pode sem seu consentimento ser compelido a submeter seus litígios com outros estados à mediação à arbitragem ou a qualquer outro meio de solução pacífica UTÍGIOS AjUIUVEIS E NAOAjUIzAVEIS N o direito nacional todos os litígios são teoricamente sujeitos à decisão judicial pois se o ponto em questão não estiver cober to por nenhuma regra legal a corte decidirá simplesmente que o queixoso não tem razão É verdade que o queixoso pode não se satisfazer com esta decisão e procurar obter satisfação através da ação política Mas isto apenas significa que ele não deseja uma decisão legal não que a lei não tenha decisão a dar ou que a decisão não seja obrigatória No direito internacional nem todos os litígios estão sujeitos a decisão judicial pois nenhuma corte é competente a menos que as partes envolvidas no litígio concordem em conferirlhe jurisdição e reconhecer sua decisão como obrigatória Há muitos tratados em vigor nos quais as par tes definem os tipos de litígios que concordam em reconhecer como ajuizáveis Em alguns tratados anteriores a 1914 litígios de certas categorias limitadas e específicas eram reconhecidos como ajuizáveis Noutros a definição dos litígios ajuizáveis as sumia uma forma negativa e um tanto elástica as partes do tra tado se comprometiam a submeter à arbitragem qualquer dispu ta entre eles que não afetasse seus interesses vitais independência ou honra nacional A tentativa mais próxima de uma definição de litígios ajuizáveis era contida no Artigo 13 do Pacto da Liga e repetida no Artigo 36 da Corte Permanente que enumerava vários tipos de litígio declarados estarem entre os que são geralmente apropriados para submissão à arbitragem ou solução judiciária Finalmente diversos tratados de arbitra I Permanent Court of Intemational Justice Série 2 No 5 pág 27 251 A solução judiciária dos litígios internacionais mento concluídos após 1919 notadamente os negociados em Locarno reconheciam como ajuizáveis o que era chamado de litígios entre as partes sobre seus direitos respectivos As fórmulas do Pacto do Estatuto e dos tratados de arbitramento de Locarno deram um forte impulso à idéia de que os litígios internacionais poderiam ser classificados por meio de um teste objetivo de ipsofacto ajuizáveis e ipso facto nãoajuizá veis Qualquer classificação deste tipo está apoiado numa ilu são As fórmulas em questão não proporcionam definição obje tiva alguma sobre um litígio ajuizável Elas apenas indicam certos tipos de litígio que as partes desses instrumentos concordam em reconhecer como sujeitas à decisão judiciária A fórmula do Pacto e do Estatuto não é realmente uma definição mas uma enumeração de exemplos que não pretende ser exaustiva ou como a qualificação geralmente demonstra irnperiosasêA fór mula de Locarno é uma tentativa de atribuir um caráter objetivo à distinção entre litígios ajuizáveis e nãoajuizáveis identifican doa com a distinção entre conflitos de cunho legal e conflitos de interesses Esta fórmula tem pouco valor prático Meramente obriga as partes a reconhecerem como ajuizável qualquer litígio que concordem ser uma questão de direito Toda parte pode evi tar o arbitramento pelo simples processo de colocar o problema noutras bases que não a do direito legal Como conseqüência o governo britânico se estivesse ligado a esse tipo de tratado presumivelmente teria simplesmente se recusado a submeter à arbitragem o seu nãopagamento do acordo de débito de guerra com os Estados Unidos nos termos de que o ponto em questão não era o direito legal de os Estados Unidos exigirem o paga 2 Litigios sobre a interpretação de um tratado são a primeira categoria de litígios reconhe cidos pelo Pacto como geralmente apropriados para solução judiciária E digno de nota o fato de que os idealizadores do Pacto que elaboraram este artigo não obstante rejeitaram uma proposta de inserir no Pacto um dispositivo para que as disputas quanto à sua própria interpretação fossem submetidas à Corte Permanente Miller Tbe Drofting oilhe Coienant II págs 349 516 O comportamento em casos concretos é por vezes mais significativo do que o enunciado in 10C1I0 de regras abstratas 252 E H CARR menta e de que o litígio não se referia portanto aos direitos respectivos das partes Como o Professor Lauterpacht demons trou conclusivamente não há critério objetivo acerca da ade quação de um litígio à solução judiciária Não é a natureza de um litígio específico que o torna impróprio para a solução judi ciária mas sim a ausência de interesse de um estado em vêlo resolvido por meio da aplicação do direirot A questão que se nos defronta é dupla Por que os estados desejam submeter à solução judiciária apenas certos tipos de litígio e por que en contram tanta dificuldade em definir em termos claros que tipo de litígios desejam submeter Devese procurar a resposta a esta pergunta na relação ne cessária do direito com a política A solução judiciária de litígi os pressupõe a existência do direito internacional e o reconheci mento deste como obrigatório e o acordo que cria o direito e o considera obrigatório é um fato político A aplicabilidade do procedimento judiciário depende por conseguinte de acordo político explícito ou implícito Nas relações internacionais o acordo político tende a se restringir às esferas que não afetam a segurança e a existência do estado e é primordialmente nessas esferas que a solução judiciária dos litígios é eficaz A maioria das questões internacionais que no passado foram soluciona das por arbitramento ou por algum outro procedimento legal tratavamse ou de reclamações pecuniárias ou de disputas sobre fronteiras nacionais em regiões remotas ou habitadas de forma esparsa A exclusão nos tratados de arbitragem celebrados an tes de 1914 de disputas que afetassem interesses vitais in dependência ou honra nacional significava precisamente a exclusão das matérias sobre as quais o acordo político não po 3 Lauterpacht Tbe Functio oi Law in lhe lnternational Communiry págs369 e outras É uma pena que o Professor Lauterpacht tendo conduzido brilhantemente sua análise até o ponto de reconhecer a ausência de interesse dos Estados como fator limitador da solução judiciária das desavenças internacionais não tenha parado aí De forma verdadeiramente utópica classificou essa ausência de interesse como perversa e não merecedora da aten ção de um jurista internacional A solução judiciária dos litígios internacionais 253 deria ser atingido Nas situações em que o desacordo político ameaçasse a arbitragem era reconhecida como impraticável Ve remos em breve que o que é virtualmente a mesma reserva foi mantido nos subseqüentes acordos para arbitragem ou solução judiciária sob a forma da exclusão desses acordos de questões que pusessem em perigo a inviolabilidade dos tratados ou dos direitos legais existentes A mesma consideração explica por que nenhuma definição de litígios reconhecidos como ajuizáveis pode ser universal ou permanentemente válida pois o acordo político é um fator que varia no espaço e no tempo Antes de 1917 havia um entendi mento político geral no mundo inteiro de que os direitos de propriedade dos indivíduos era válido e que um estrangeiro cuja propriedade fosse por qualquer razão confiscada pelo governo do país em que se situasse poderia pedir compensação à luz do direito internacional Enquanto existisse este entendimento as questões baseadas nele poderiam ser resolvidas por arbitragem com o estabelecimento do regime soviético na Rússia este en tendimento deixou de se aplicar àquele país e quando o governo soviético fez seu primeiro aparecimento internacional importan te na Conferência de Gênova em 1922 cuidadosamente rejei tou com antecedência a idéia de as queixas contra si devessem ser submetidas à arbitragem No julgamento de questões desse tipo dizia o memorandum apresentado à Conferência as dis córdias específicas inevitavelmente terminarão por opor duas formas de propriedade Em tais circunstâncias não pode ha ver um superárbitro imparcial E quando na subseqüente Con ferência da Haia o delegado britânico pateticamente argüiu se seria impossível encontrar um único juiz imparcial no mundo inteiro Litvinov firmemente replicou que era necessário re conhecer o fato de que não havia um mundo mas dois um mun 4 O governo britânico em Iell memorandso de 1928 sobre arbitramento Leagllt o Nations OfficialfOllmal págs 694704 criticou os tratados gerais de arbitramento nos termos de que no caso de cada país as obrigações que possa desejar aceitar para com determinado estado pode não desejar aceitar para com outro 254 E H CARR do sovietico e um nãosoviético Imparcialidade é um con ceito sem sentido onde não haja um termo em comum entre duas visões opostas O procedimento judiciário não pode operar sem postulados políticos aceitos O argumento do delegado britânico citado de que o obstá culo à arbitragem internacional era a dificuldade de encontrar juizes imparciais havia sido ouvido em ocasiões anteriores O grande obstáculo à extensão da arbitragem declarou o delega do americano na Conferência da Haia de 1907 não é a falta de desejo das nações civilizadas de submeterem seus litígios à de cisão de um tribunal arbitral é mais a apreensão de que o tribu nal selecionado não seja imparcial Citase algo semelhante dito por Lord Salisbury Esta opinião se apóia num equívoco O potencial viés pessoal do juiz internacional não é o obstáculo real O preconceito popular contra a submissão de assuntos de importância nacional ao veredicto de um estrangeiro se ba seia primordialmente não na crença de que o juiz estrangeiro seria parcial mas no fato de que existem certos fundamentos de caráter político que não estamos preparados para ver questiona dos por qualquer autoridade estrangeira seja judiciária ou polí tica A abolição da propriedade privada para Rússia Soviética o direito de bloqueio para GrãBretanha a Doutrina Monroe para os Estados Unidos são exemplos familiares de tais fundamentos políticos Esses fundamentos não precisam contudo ser ques tões importantes Palmerston tratou o episódio do Don Pacifi co em 1850 e Mussolini o assassinato de um general italiano na Grécia em 1923 como questões políticas que eles não esta vam dispostos a submeter à soluções judiciárias7 5 Citado em Taracouzio Tbe Soviet Union and lntemational Lau pág 296 6 Proceedings oI The Hague Peace Conference trad ingl Carnegie Endowrnent Conference of 1907 ii pág 316 7 Numa ocasião posterior o professor Gilbert Murray representando a África do Sul na Assembléia da Liga das Nações lamentou que uma questão judicial isto é a compensação para a Itália haja sido trazida perante um organismo político e decidida em termos políti cos League of Nations Fourtb Assemby págs 139 e seguintes um excelente exemplo da falácia tão brilhantemente exposta pelo Professor Lauterpacht de que certas questões são ipso facto judiciárias A solução judiciária dos litígios internacionais 255 Mas existe um outro sentido mais geral pelo qual a ausên cia de pressupostos políticos comuns impede o desenvolvimen to do procedimento judiciário na comunidade internacional O direito nacional embora muito mais total e minuciosamente desenvolvido do que o direito internacional jamais é totalmen te autosuficiente A aplicação do direito ao caso concreto é sempre sujeita ao elemento da discrição do juiz uma vez que o legislador dificilmente poderia prever todas as circunstâncias relevantes de cada caso Há muitas situações escreve o deca no Pound em que o destino da ação judicial é deixado total mente ao sentido individual do juiz acerca do que seja corre to Provavelmente teria sido mais justo dizer que o bom juiz se guiará em tais casos não tanto pelo seu próprio sentido do que seja correto mas pelo sentido geralmente aceito pela co munidade de que é servidor Mas que algum sentido do que seja correto seja individual ou geral é um ingrediente neces sário de muitas decisões judiciais poucos tentarão negar A im portância dos pressupostos políticos que inspiram a Suprema Corte dos Estados Unidos na interpretação da Constituição e a maneira pela qual no curso da história americana estes pressu postos mudaram em resposta às condições sociais cambiantes são bem conhecidas O problema em última análise é o funda mento da relação entre os direitos do indivíduo e as necessida des da comunidade Toda comunidade nacional necessariamen te encontra uma solução funcional para o problema A comunidade internacional no entanto ainda não o fez A con trovérsia acerca da liberdade dos mares mostra que a Grã Bretanha não estaria desejosa de se arriscar a qualquer interpre tação de seus direitos marítimos por uma corte internacional à 8 Roscoe Pound Law and Morais 2a ed pág 62 9 O professor Laski ressaltava há muitos anos que o estrangeiro nos Estados Unidos só pode observar com a maior surpresa o quão habilmente são disputadas possíveis nomea ções para um lugar vago na Corte Suprema Introdução à tradução inglesa de Duguit Law in tbe Modem State xxiii A surpresa diminuiu desde que o caráter político da Cone passou a ser mais bem compreendido 256 E H CARR luz das supostas necessidades da comunidade internacional como um todo e há questões importantes sobre as quais cada grande potência oporia reservas semelhantes A ausência de uma visão aceita do bem geral da comunidade como um todo sobrepondo se ao bem particular de qualquer membro individual dela que já vimos ser o problema crucial da moral internacional também se coloca no caminho do desenvolvimento da solução judiciária em sua aplicação aos litígios internacionais Encontramos por conseguinte no problema do ajuizamento dos litígios internacionais um outro exemplo do fato de que o direito é uma função da sociedade política é dependente para seu desenvolvimento do desenvolvimento daquela sociedade e é condicionado pelos pressupostos políticos que aquela socie dade compartilha em comum Seguese que o fortalecimento do direito internacional e a extensão do número e do caráter dos litígios internacionais reconhecidos como apropriados à solu ção judiciária é um problema político e não legal Não há ne nhum princípio do direito que permita a alguém decidir que uma questão determinada é apropriada para o tratamento por méto dos legais A decisão é política e seu caráter deve ser determi nado pelo desenvolvimento político da comunidade internacio nal ou das relações políticas entre os países envolvidos Do mesmo modo não há nenhum princípio do direito que permita a alguém decidir se uma regra de direito ou uma instituição jurí dica valiosa para a comunidade nacional deva ser introduzida por analogia no direito internacional O único critério válido é saber se o presente estágio de evolução política da comunidade internacional justifica a introdução da regra ou instituição em questão Nas relações internacionais modernas o mecanismo de solução judiciária se desenvolveu muito antes do estabelecimento da ordem política na qual possa funcionar eficazmente Podem se realizar progressos para a extensão da solução judiciária dos litígios internacionais não através do aperfeiçoamento de um mecanismo já bastante perfeito mas sim pelo desenvolvimento 257 A solução judiciária dos litígios internacionais da cooperação política O fato de que os membros da British Commonwealth tenham até aqui se recusado a estabelecer qual quer tipo de procedimento permanente e obrigatório para a so lução judiciária de litígios entre si serve como um alerta para os que se dispõem a atribuir importância indevida ao aperfeiçoa mento do mecanismo judiciário nas relações internacionais É um paradoxo curioso o fato de que ao assinar a Cláusula Opcional do estatuto da Corte Permanente e ao excluir sua operação dos litígios entre os membros da British Commonwealth a GrãBretanha e as Colônias se obrigaram neste aspecto mui to mais para com países estrangeiros do que entre si PROJETOS DE 54RBITRAMENTO GERAL JJ Muitos pensadores do período do entreguerras foram contudo muito além de meros planos para a extensão modesta e gradual do alcance do procedimento judiciário nas relações internacio nais Tornouse uma ambição amplamente acalentada o estabe lecimento por uma simples penada da solução compulsório de todos os litígios internacionais através da arbitragem Esque mas para o arbitramento obrigatório foram discutidos em mui tas ocasiões antes de 1914 mas não conseguiram ser aceitos O Pacto da Liga das N ações embora proporcionando o estabeleci mento da Corte Permanente e encorajando a submissão de lití gios apropriados à arbitragem ou à solução judiciária pouco alen to trouxe aos defensores do arbitramento obrigatório Em todos os litígios deixou a escolha do procedimento à discrição dos estados envolvidos e o procedimento político do inquérito pelo Conselho sempre permaneceu aberto Foi precisamente este aspecto político do Pacto que se tornou alvo de ataques da es cola utópica Cresceu o sentimento de que a forma para se esta belecer um império do direito internacional e evitar guerras futuras era a submissão pelos estados de todas as disputas in ternacionais de qualquer tipo a um tribunal internacional de ar 258 E H CARR bitragem que teria o poder de decidir à sua discrição em termos de direito estrito de eqüidade ou de bom senso Essa era a vaga concepção contida no popular lema arbitragem para tudo Esta exigência de arbitramento geral teria sido satisfeita pelo Protocolo de Genebra e pelo Ato Geral Acreditavase que se o governo britânico não houvesse rejeitado o Protocolo ou se o Ato Geral tivesse sido aceito sem reservas pela principais po tências existiria um procedimento satisfatório para o arbitramen to compulsório de todos os litígios internacionais e uma impor tante causa das guerras estaria removida Mas aqui chegamos a uma extraordinária confusão ou série de confusões de pensamento que por todo este período cercou e obscureceu o problema da solução pacífica de litígios interna cionais Quando o Pacto da Liga por uma emenda inserida após o estabelecimento da Corte Permanente de Justiça Internacio nal colocou a solução judiciária ao lado da arbitragem ar bitragem significava o veredicto de um juiz ou tribunal esco lhido ad hoc e solução judiciária o veredicto de uma corte regularmente constituída e não há razão para supor que se pre tendia qualquer outra distinção entre elas Mas a distorcida ten tativa de descobrir uma distinção objetiva entre litígios ajuizáveis e nãoajuizáveis levou a uma distinção igualmente falaciosa en tre solução judiciária significando a solução de litígios ajuizáveis segundo a letra da lei e arbitragem significando a solução de litígios nãoajuizáveis que não eram cobertos pela letra da lei em termos de eqüidade Esta concepção deixou seus traços no Protocolo de Genebra De acordo com o relató rio da Assembléia sobre este instrumento os árbitros não pre cisam ser necessariamente juristas e se obtiverem um parecer da Corte Permanente sobre qualquer ponto de direito este pa recer não os obriga legalmente Mas a distinção entre solu ção judiciária e arbitragem foi totalmente desenvolvida pri 10 AlIin arbitration no original Nota do Tradutor 11 League of Nations Fifth Arremby First Committe pág 486 A solução judiciária dos litígios internacionais 259 meiramente no Ato Geral Sob este instrumento as questões em que as partes estejam em conflito acerca de seus direitos respectivos deveriam ser submetidas à Corte Permanente para solução judiciária Qualquer outro tipo de litígio internacio nal deveria ser submetido a arbitragem de um tribunal arbitral Na ausência de qualquer estipulação das partes em contrário o tribunal ao pronunciar seu veredicto aplicaria os mesmos dis positivos legais aplicáveis pela Corte Permanente Mas na medida em que não haja tal regra aplicável ao litígio o tribunal decidirá ex aequo et bono Esta referência aos dispositivos legais parece incompreensível Se o litígio residisse em direitos legais não seria submetido ao tribunal arbitral mas à Corte Permanen te Se não se tratasse de direitos legais o litígio não poderia ser resolvido pela aplicação de dispositivos legais A concepção de que haja uma classe de litígios internacionais que surgem por assim dizer do vácuo e que não são afetados por nenhum direi to legal ou dispositivo do direito internacional existentes é puro mito Uma confusão mais séria está contudo oculta Existe uma distinção perfeitamente válida familiar tanto às questões naci onais quanto às internacionais entre litígios legais surgidos de demandas baseadas em direitos legais existentes e litígios políticos surgidos de demandas para a alteração dos direitos legais existentes A diferença reside entretanto não na nature za da disputa mas na questão de saber se o queixoso busca sua reparação por meio do procedimento legal ou do político Nos estados as demandas do primeiro tipo são resolvidas pelos tri bunais as do último tipo pela ação política O indivíduo que não tem sua queixa reparada por um tribunal pode buscar repa ração por meio da legislação Internacionalmente no entanto a distinção é menos clara Nenhuma corte internacional é reco nhecida como competente para solucionar todas as disputas le gais e não há mecanismo reconhecido para solucionar todos o s litígios políticos N es tas circunstâncias os estado s que 260 E H CARR demandam contra outros estados não são obrigados a deixar claro e nem sempre deixam se a demanda se baseia em direitos legais ou se significa uma demanda para alterar esses direitos Mas a distinção embora por vezes obscurecida na prática é bastante real Nacional e internacionalmente os litígios políticos são em termos gerais mais sérios e perigosos do que os legais Revoluções e guerras surgem menos de disputas sobre direitos legais existentes do que do desejo de alterar esses direitos O político sábio e o estudante de política sábio devotarão grande dose de atenção aos litígios políticos Quando portanto afirmouse oficialmente que o Protoco lo de Genebra constituía um sistema para a solução pacífica de todos os litígios que poderiam surgir12 ou que o Ato Geral es tabeleceu um meio completo de solucionar todos os litígios de qualquer caráter13 poderseia ter tirado a conclusão como muitas pessoas o fizeram de que se havia estabelecido a solu ção por arbitramento dos litígios políticos isto é de litígios sur gidos de demandas para alterar os direitos legais existentes Um exame mais acurado contudo não justifica esta conclusão Numa passagem discreta do relatório da Assembléia sobre o Protoco lo era explicado que o procedimento não se aplicava aos litígi os que objetivassem a revisão de tratados e atos internacionais vigentes ou que procurassem comprometer a integridade territorial existente dos estados signatários De fato aduzia o relator a impossibilidade de aplicar a arbitragem compulsória a tais casos era tão óbvia que seria bastante supérfluo tornála tema de um dispositivo especial O Ato Geral é menos ingê nuo Pretende estabelecer a arbitragem compulsória para litígios que não tratem dos direitos respectivos das partes Pretende autorizar o tribunal arbitral a decidir tais litígios ex aequo et bono Mas a autorização se aplica apenas na medida em que não exis 12 League o Nations Fifih Assembfy pág 497 13 Memorandum on tbe General Act Cmd 3803 pág 4 14 League o Nations Fiftb Assembfy pág 194 261 A solução judiciária dos litígios internacionais ta nenhum dispositivo legal aplicável ao litígio e esta qualifi cação tem o mesmo efeito da reserva no relatório do Protocolo de Genebra A essência de um litígio político é o requerimento de que o dispositivo legal relevante embora admissivelmente aplicável não deva ser aplicado Quando surge um litígio a par tir da reclamação de um estado de que suas fronteiras existen tes ou de que as restrições à sua soberania por um tratado em vigor ou de que suas obrigações sob um acordo financeiro são inaceitáveis é inútil submetê lo a um tribunal arbitral cujo pri meiro dever seja o de aplicar o dispositivo legal aplicável ao Iitígio O direito legal existe e é inconteste O litígio surge de uma demanda para alterálo Os litígios políticos não podem ser solucionados dentro da estrutura do direito por tribunais que apliquem regras de direito O Protocolo de Genebra e o Ato Ge ral embora pretendessem estabelecer a solução pacífica de to dos os litígios internacionais de fato deixou intocadas as cate gorias mais importantes e perigosas dos litígios internacionais Nenhum esquema de arbitramento gerar mais abrangente do que o do Protocolo de Genebra e do A to Geral foi oficial mente proposto ou considerado Alguns governos estavam pron tos a aceitar o arbitramento para alguns litígios que não amea çassem a ordem política existente uma limitação pouco menos restritiva do que os interesses vitais a independência e a honra nacional dos antigos tratados de arbitramento Nenhum gover no contudo estava desejoso de dotar uma corte internacional do poder de modificar seus direitos legais Alguns teóricos no entanto estavam mais prontos do que os estadistas práticos para deixarem de lado essa dificuldade e dotarem um chamado tribu nal arbitral da tarefa de não apenas aplicar as regras existentes mas de criar novas Uma organização britânica denominada New Commonwealth Society desenvolveu um plano elaborado para um tribunal arbitral que solucionaria baseado na eqüidade e na consciência litígios políticos inclusive os que dissessem res peito à revisão de tratados assim estabelecendo um método 262 E H CARR indireto de legislação nas questões entre as nações por um tri bunal de eqüidade Tal plano pareceria ser o corolário neces sário da crença do Professor Lauterpacht de que os conflitos de interesses internacionais são devidos às imperfeições da or ganização legal internacional Os conflitos de interesses in ternacionais serão no futuro resolvidos por um tribunal que se tomará o supremo órgão do governo mundial exercendo não apenas a função judiciária de interpretar os direitos dos Esta dos mas também a função legislativa de alterálos Então será realizado o sonho de um outro grande jurista internacional de uma comunidade legal internacional cujo centro de gravidade resida na administração da justiça internacionalt Essas teorias têm um mérito importante Reconhecem a falácia implícita no Protocolo de Genebra e no Ato Geral de que uma ordem legal internacional baseada no reconhecimento interpretação e execução dos direitos existentes seja uma me dida adequada para a solução pacífica dos litígios internacio nais Mas ao evitarem esta falácia caem numa outra ainda mais grave Percebendo que deveriam criar um modo de modificar os direitos existentes forçaram esta função essencialmente políti ca num modelo legal e atribuíram seu exercício a um tribunal Não dispostas a reconhecer a base política de todo sistema le gal dissolvem a política no direito Nesta zona cinzenta quase judiciária o juiz se torna legislador as questões políticas são resolvidas por um tribunal imparcial em termos de eqüidade e bom senso e a distinção entre direito e política desaparece A extrema dificuldade do problema internacional é sem dúvida responsável pela prescrição de um remédio tão heróico Mas o fato de que o problema seja difícil pouco justifica que possamos propor uma solução que ninguém encara como factível ou desejável em nossas comunidades nacionais muito mais or 15 Lord Davies Force págs 73 8I 16 Lauterpacht Tbe Function of Law in tbe intemational Commllnity pág 250 17 Kelsen Tbe Legal Process and lnternational Order pág 250 A solução judiciária dos litígios internacionais 263 ganizadas A arbitragem obrigatória dos litígios internacionais de todos os tipos é segundo o Professor Lauterpacht uma con dição sine qua non para o mecanismo normal da manutenção da paz18 Todavia a arbitragem obrigatória de demandas não ba seadas em direitos legais é raramente aplicada nos estados civi lizados e menos ainda nos que gozam de um longo período de paz interna Não nos ocorre atribuir os conflitos de interes ses em nossa política interna às imperfeições de nossa organi zação legal ou submeter a um tribunal nacional arbitral para decisões imparciais em termos de eqüidade e bom senso dispu tas sobre a necessidade de alistamento militar a abolição da prova de rendimentos o status legal dos sindicatos ou a nacionaliza ção das minas A dificuldade não reside no fato de não poder mos encontrar um grupo de pessoas imparciais profundamente imbuídas dos princípios de eqüidade e bom senso mas no de que imparcialidade eqüidade e bom senso não são as qualida des primordiais ou pelo menos não são as únicas requeridas numa decisão sobre tais assuntos Esses assuntos são políticos e são solucionados pelo processo que permite a ação do poder seja sob a forma de votação majoritária como nas democracias seja pela vontade de um ditador ou partido como nos estados totalitários Nem nas democracias nem nos estados totalitários tais questões são decididas por um tribunal imparcial A lNAPUCABIUDADE DO PROCEDIMENTO UDICIALAOS LITíGIOS POLÍTIcos Por que então é necessário não apenas na teoria pelo bem do pensamento correto mas também na prática pelo bem do bom governo preservar a distinção entre o legal e o político entre questões que desejamos solucionar através do procedimento ju diciário em termos dos direitos legais existentes e questões que 18 Lauterpacht The Function of LAw in lhe lnternational Communiry pág 438 264 E H CARR só podem ser resolvidas pelo processo político porque se tra tam de demandas pela modificação dos direitos legais existen tes A primeira resposta é a de que o procedimento judiciário difere fundamentalmente do político ao excluir o fator poder Quando um litígio é submetido a uma corte o pressuposto é o de que qualquer diferença de poder entre as partes seja irrelevante A lei não reconhece outra desigualdade que não a de situações jurídicas Na política prevalece o pressuposto con trário Aqui o poder é um fator essencial em qualquer disputa A solução de um conflito de interesses entre agricultores e indus triais britânicos dependerá pelo menos em parte de suas res pectivas forças de voto e nos grupos de pressão de que possam dispor junto ao governo A solução de um conflito de interesses entre Estados Unidos e Nicarágua dependerá em grande parte pois a razão entre o poder e os demais fatores é maior na polí tica internacional do que na nacional da força relativa dos dois países Os conflitos de interesses só podem ser tratados por um órgão que leve em conta o fator poder Nada se consegue e a verdadeira função do direito é aviltada e desacreditada se esta função política for atribuída a um tribunal cuja constituição e processo se assemelhem deliberadamente a uma corte de justi ça Como Bernard Shaw observou as funções de juiz e legisla dor são mutuamente excludentes o primeiro deve ignorar todo o interesse o último deve levar em consideração todos os inte resses A segunda resposta é igualmente fundamental Vimos que mesmo o procedimento estritamente judicial de uma corte por vezes traz consigo pressupostos políticos uma vez que a aplica ção da lei ao caso concreto está sempre sujeita a envolver um elemento de discrição judicial e esta discrição se não for pura mente caprichosa deverá retirar inspiração desses pressupos tos Se um tribunal for chamado a decidir não em termos de di 19 G B Shaw John BulI Otber Island Prefácio A solução judiciária dos litígios internacionais 265 reito legal mas no sentido de deixar de lado os direitos legais em favor da eqüidade e do bom senso a necessidade de pressupos tos políticos claramente definidos se torna mais do que óbvia Em tais casos a discrição judicial ao invés de se limitar a pon tos deixados ambíguos pelo direito tem alcance infinito e as decisões do tribunal se não forem meras expressões da opinião individual devemse basear em preceitos bem estabelecidos compartilhados pela comunidade como um todo ou pelos que falam em seu nome A existência de tais preceitos nas comuni dades nacionais por vezes torna possível o uso do arbitramento mesmo em questões políticas e a mesma possibilidade não é de todo excluída na esfera internacional Mas em termos gerais é um obstáculo fundamental ao arbitramento internacional ex aequo et bono o fato de que preceitos comuns de longo alcance rara mente existam na comunidade internacional Submeter a um tri bunal internacional para decisão não em termos de direito mas de eqüidade e bom senso litígios concernentes aos interesses britânicos no Egito ou aos interesses dos Estados Unidos na zona do Canal do Panamá ou ao futuro de Danzig ou às fron teiras da Bulgária teria sido impraticável não apenas porque a solução desses problemas envolve questões de poder mas tam bém porque não há acordo político mesmo do tipo mais vago sobre o que significam eqüidade e bom senso relacionados a tais problemas Nas raras ocasiões em que as partes deram poderes a tribunais internacionais para decidirem em termos que não os do direito estrito os tribunais demonstraram a maior relutância em utilizar a discrição a eles dada não corno supõe o Professor Lauterpacht porque o direito é mais justo do que os frouxos conceitos de justiça e eqüidade mas porque nenhum tribunal responsável se sente inclinado a se comprometer em qualquer assunto importante com um pronunciamento peremptório acerca do que seja eqüitativo ou justo nas relações internacionais Um tribunal internacional uma vez havendo deixado o terreno 20 Lauterpacht Tbe Function oi Law in lhe International Commllniry pág 252 266 E H CARR comparativamente sólido do direito internacional e dos direitos legais não pode encontrar nenhum ponto de apoio em nenhum conceito pacífico acerca de eqüidade ou bom senso ou de bem da comunidade Permanece nas palavras do Professor Zimmern uma plêiade de perucas e togas vociferando no vazio A dificuldade contudo permanece As questões políticas nacional e internacionalmente são muito mais ameaçadoras do que as questões de direitos legais A periódica ou melhor a cons tante revisão dos direitos existentes é uma das primeiras neces sidades de uma sociedade organizada e provocar revisões na sociedade internacional por outros meios que não a guerra é o problema mais vital da política internacional contemporânea O primeiro passo foi nos livrarmos do beco sem saída do arbitramento e do procedimento judiciário onde não se pode encontrar nenhuma solução para o problema Após este passo estamos livres para abordálo por outras e provavelmente mais promissoras avenidas 21 Zimrnern Tbe League oj Nations and lhe ie of Law pág 125 As palavras foram usadas para descrever a corte arbitral internacional de Taft Elas poderseiam aplicar mais ade quadamente ao tribunal de eqüidade defendido pela New Commonwealth Society CAPÍTULO XIII MUDANÇA PACÍFICA o RECONHECIMENTO da necessidade de mudança política tem sido um lugar comum entre os pensadores de todos os períodos e de todos os matizes de opinião Um estado sem os meios de pro mover alguma mudança disse Burke numa frase famosa está sem os meios de promover sua própria conservação Em 1853 Marx escreveu causticamente sobre a questão do Oriente A impotência se exprime numa única proposta a manutenção do status quo Esta convicção geral de que um estado de coisas resultante do acaso e das circunstâncias deve ser obstinadamente mantido é uma prova de falência uma confissão das principais potências de sua com pleta incapacidade para levar avante a causa do progresso e da civili zaçãoz o professor Gilbert Murray colocou o mesmo ponto de for ma diferente A guerra não surge sempre por mera iniqüidade ou loucura Por ve zes surge do próprio crescimento e desenvolvimento A humanidade não pode permanecer estática Parece derivar dessa visão que a tentativa de estabelecer uma distinção moral entre guerras de agressão e guerras de fensivas é errônea Se uma mudança é necessária e desejável o uso ou a ameaça do uso da força para manter o status quo pode ser moralmente mais condenável do que o uso ou a ameaça de Burke Refexíons on lhe Revoution in France pág 19 2 Marx e Engels Workr ed russa IX pág 372 3 G Murray The League of Nations and lhe Democratic Idea pág 16 I 268 E H CARR uso da força para alterálo Poucas pessoas hoje crêem que a ação dos colonos americanos que atacaram o status quo pela for ça em 1776 ou dos irlandeses que atacaram o status quo pela força entre 1916 e 1920 eram necessariamente menos morais do que as dos britânicos que o defenderam pela força O critério moral não deve ser o do caráter agressivo ou defensivo da guerra mas a natureza da mudança a que visa e à qual se resiste Sem rebelião a humanidade se estagnaria e a injustiça seria irremediável Poucos autores sérios sustentam ser sempre e incondicionalmente errado começar uma revolução e é igualmen te difícil de crer que seja sempre e incondicionalmente errado começar uma guerra Todos concordarão contudo que guerra e revolução são por si mesmas indesejáveis O problema da mu dança pacifica é em política nacional o de como efetuar as alterações necessárias e desejáveis sem revolução e em política internacional o de como efetuar tais alterações sem guerra Toda demanda efetiva por mudança como qualquer outra força política efetiva compõese de poder e moral e o objetivo da mudança pacífica não pode ser expresso em termos de poder puro nem de moral pura É bastante estéril exceto como exercí cio acadêmico discutir se o propósito de toda mudança deva ser o estabelecimento da justiça pelo desagravo das queixas justas ou a manutenção da paz pela satisfação das forças que caso contrário se tornariam fortes o suficiente para desen cadear uma revolução ou uma guerra Mas é perigoso supor que os dois objetivos são idênticos e que não se requer o sacrifício de nenhum deles Qualquer solução do problema da mudança política seja nacional ou internacional deve se basear num meio termo entre moral e poder o PAPEL DO PODER NA MUDANÇA PoLinCA O papel necessário do poder na mudança política será ignorado pelos observadores mais superficiais Poucas campanhas B Russell Pouer pág 263 Mudança pacífica 269 revisionistas na história se basearam mais firmemente em con siderações morais do que a dos dreyfusards na França Porém o protesto contra condenação de Dreyfus jamais teria sido efi caz se não fosse encampado por poderosas organizações políti cas e usado por elas como arma contra oponentes políticos As queixas de Albânia e Nicarágua qualquer que seja a base moral jamais serão eficazes a menos que sejam endossadas por razões de interesse por alguma ou algumas das grandes potên cias É justo atribuir o crescimento da legislação social nos úl timos cem anos à crescente conscientização das demandas da classe trabalhadora Porém esses resultados jamais teriam sido atingidos sem o uso constante ou a ameaça do uso da força na forma de greves e revoluções É verdade observa John Strachey que os governos sempre nos afirmam que jamais cede rão à força Toda a história nos afirma que eles jamais cederão a outra coisa qualquer Secessão pacífica exclamava Daniel Webster em 1849 Senhor seus olhos e os meus não foram des tinados para ver tal milagre A recuperação dos territórios perdidos escreveu Hitler numa passagem famosa de Mein Kampj não se consegue por meio de invocações solenes ao Se nhor Deus ou de esperanças piedosas numa Liga das Nações mas sim através da força armada Hitler poderia mesmo ter apelado para a respeitável autoridade de Gladstone que na época em que o liberalismo ainda era uma força política observou que este país jamais obteria suas liberdades se numa crise política só se rememorasse ao povo o ódio à violência o amor à ordem e o exercício da paciência Dizse que nenhuma classe dominan te jamais abdica do que possui O Artigo 19 do Pacto da Liga das Nações permanece um monumento solitário à patética falá cia de que as queixas internacionais serão reconhecidas como justas e voluntariamente sanadas pela força do parecer una 5 J Strachey The Menace oj Fascism pág 228 6 Citado em J Truslow Adams Tbe Epic oj America pág 239 7 Hitler Mein Kampj pág 70S 8 Citado em E PethickLawrence My Pari in a Changing World pág 269 270 E H CARR nimemente proferido por um corpo representativo da opinião pública mundial Enquanto o problema de fundo da mudança política o meio termo entre poder e moral é idêntico na política nacional e in ternacional a questão do processo é contudo complicada pelo caráter anárquicoê da comunidade internacional As analogias retiradas dos processos de mudança na esfera nacional só po dem ser aplicadas no campo internacional com cautela Vimos que não se podem invocar os procedimentos judiciários nacio nal ou internacionalmente para a solução dos principais proble mas políticos Mas a analogia de legislação parece à primeira vista mais frutífera O processo legislativo ao contrário do pro cesso judicial reconhece o papel do poder que é inerente a toda mudança política pois a autoridade legislativa é o poder supre mo do Estado impondo sua vontade à comunidade inteira e a legislação que um autor alemão chamou de revolução Iegal é a forma mais óbvia e regular de provocar a mudança política dentro do estado O que é a mudança pacífica como uma efi caz instituição do direito internacional ou da sociedade interna cional pergunta o Professor Lauterpacht e ele mesmo res ponde É a aceitação pelos Estados do dever legal de concordarem com as mudanças no direito decretadas por um órgão internacional cornpeterite Já foi ressaltado que o direito internacional repousa no cos tume e que não há no presente momento algo como legislação internacional ou um legislativo internacional Os termos do Ar tigo 19 do Pacto demonstram o quão longe estavam em 1919 os principais estados da aceitação do dever legal de concorda rem com as mudanças no direito decretadas por um órgão inter nacional competente Nem poderia ser de outra forma O raci ocínio mostrará que o processo legislativo assim como o 8 No original unorganised nota do editor 9 Berber Sicherheit und Gerechligkeit pág 9 10 Peaceful Change ed C A W Manning pág 141 Mudança pacífica 271 judiciário pressupõe a existência de uma ordem política É ape nas através da combinação de consentimento e coerção que sustenta toda sociedade política que podemos chegar ao esta belecimento de um órgão supremo seja parlamento conselho de estado ou autocrata individual cuja ordem cria o direito obri gatório para todos os membros da comunidade Essas condições não são satisfeitas na comunidade internacional A Assembléia da Liga das Nações cujas decisões requeriam unanimidade era uma conferência dotada do poder de concluir acordos internacio nais não um poder legislativo que aprovasse uma legislação in ternacional pois como Eden observou sem cerimônia numa de suas sessões seria claramente impraticável dar à Assem bléia o poder de impor mudanças contra a vontade das partes envolvidas A dificuldade não reside na falta de mecanismo para a legislação internacional mas na ausência de uma ordem política internacional suficientemente bem integrada para tor nar possível o estabelecimento de uma autoridade legislativa cujos decretos sejam reconhecidos como obrigatórios para os estados sem seu consentimento específico Se aceitarmos a iden tificação do Professor Lauterpacht de mudança pacífica com legislação internacional só poderemos concluir que em suas pa lavras um sistema internacional de mudança pacífica corre o risco de ser irreal a menos que seja parte e parcela de uma orga nização política completa da humanidade A condição para a legislação internacional é o superestado mundial Precisamos contudo nos acomodar à conclusão desencora jadora de que qualquer sistema internacional de mudança pací fica deve aguardar o advento do superestado A analogia da le gislação pode demonstrar ser não apenas desencorajadora mas também enganosa A crença corrente quase universal na exce lência da legislação como instrumento reformador dentro do estado é principalmente um desenvolvimento dos últimos cin 11 League ofNations SetJenteenthAssembfy pág 46 12 Peacifuf Change ed C A W Manníng pág 164 272 E H CARR qüenta anos Até o final do século dezenove muitas pessoas inteligentes continuavam a encarar o estado como um mal ne cessário e a legislação como um lamentável instrumento para ser usado somente em caso de necessidade cornprovadaP No seio da comunidade nacional a distinção familiar ao pensamen to do século dezenove entre sociedade e estado perdeu muito de seu significado devido ao desenvolvimento das fun ções sociais do estado moderno Na esfera internacional entre tanto estamos na presença de uma sociedade que não possui um estado correspondente e por conseguinte vamos encon trar alguma ajuda na concepção que dificilmente pareceria pa radoxal a qualquer época exceto a nossa de mudanças na es trutura social sendo efetuadas pacificamente sem legislação ou qualquer outra forma clara de intervenção estatal Mesmo hoje é fácil exagerar o papel da legislação e pode ainda ser verdade dizer como certamente teria sido cem anos atrás que as altera ções mais importantes na estrutura da sociedade e no equilí brio de forças dentro dela foram realizadas sem ação legislativa Pode ser desnecessariamente pessimista tirar a conclusão de que a ausência de um poder legislativo internacional aborta qual quer processo internacional de mudança pacífica Se portanto procuramos a mais próxima analogia na co munidade nacional com as relações turbulentas que tornam crí tico o problema da mudança na sociedade internacional pode mos encontrála nas relações das entidadesgrupais dentro do estado cujos conflitos não foram no passado e em larga medida não são solucionados por nenhum processo legislativo Dessas entidadesgrupais de longe as mais importantes e de longe as mais instrutivas para o nosso objetivo são as que representam o capital e o trabalho respectivamente Aqui temos o mesmo cons tante conflito entre os que têm e os que não têm entre os 13 A observação do Professor Lauterpacht de que o círculo de interesses diretamente regulados pelo direito se expande com o desenvolvimento da civilização The Ftmction of Low in lhe lnternational Commul1iD pág 392 é uma banalidade hoje em dia mas teria sido paradoxo para os pensadores do século dezenove 273 Mudança pacífica satisfeitos e os insatisfeitos a mesma relutância de uma parte ou de ambas em aceitar o principio do arbitramento ge ral para a solução de seus litígios o mesmo reconhecimento da inaplicabilidade ou inadequação do procedimento legislativo os mesmos apelos pela lei e a ordem do grupo satisfeito e o mesmo uso ou ameaça de uso da violência pelos insatisfeitos para satisfazer suas queixas Por vezes se diz que não pode exis tir um processo internacional de mudança pacífica uma vez que os estados insistem em serem juizes de suas próprias causas Eis aqui uma classe de disputas na qual ambas as partes normal mente insistem em ser juízes de sua própria causa e na qual algum progresso pelo menos foi feito para um processo ordeiro de mudança pacífica A força sempre foi um fator crucial nas relações entre capi tal e trabalho No começo da Revolução Industrial toda tentati va de autoajuda organizada por parte dos trabalhadores foi rigorosamente reprimida Essa repressão irrestrita terminou na GrãBretanha com a revogação dos Combination Acts em 1825 mas continuou na Rússia até 1905 Entre estas duas datas os trabalhadores de todo país industrial importante asseguraram o reconhecimento do seu direito de se utilizarem da arma da gre ve organizada A greve não apenas demonstrou ser um instru mento eficaz para extrair concessões dos empregadores mas tam bém se tornou um símbolo reconhecido da principal arma de força a revolução 14 Em épocas recentes o elemento força foi uma vez mais eliminado das relações entre empregador e empre gados pelos governos autoritários da Rússia Soviética da Itá lia e da Alemanha através de legislação proibindo as greves e 4Este é o significado da greve por um dia que foi popular em certos países e que embora inútil em si mesma visava a demonstrar que os trabalhadores eram suficientemente fortes para desafiar o poder do estado O sucesso ou fracasso da greve por um dia era então um teste de força e seu resultado permitia que ambos os lados tirassem as conclusões apropri adas sem recorrerem a medidas extremas 5 A posição não é substancialmente alterada pelo fato de que na Rússia Soviética o empregador é normalmente uma companhia ou instituição estatal 274 E H CARR de um executivo suficientemente forte e rude para levar a efeito tal proibição Os países democráticos de tempos em tempos proibiram as greves embora os trabalhadores quase sempre re sistissem a tais proibições e essas proibições raramente pude ram ser impostas por um longo período Teoricamente a força poderia da mesma forma ser eliminada da solução dos litígios internacionais por um superestado poderoso e autoritário Mas esse resultado desejável ou não fica fora do plano da conside ração prática e portanto encontraremos uma analogia melhor para a posição internacional se considerarmos os países e os períodos em que as relações entre capital e trabalho não foram dominadas pelo poder esmagador do estado Na última parte do século dezenove e na primeira parte do vinte os que não têm de muitos países continuamente melhoraram sua posição por meio de uma série de greves e negociações e os que têm seja em virtude de senso de justiça ou por medo da revolução em caso de recusa preferiram ceder terreno do que submeter a ques tão a um teste de força Esse processo por fim criou em ambos os lados um desejo de submeter os litígios a várias formas de conciliação e arbitramento e terminou por criar algo semelhan te a um sistema regular de mudança pacífica Em muitos paí ses tal sistema tem estado em operação por muitos anos com grande sucesso embora o direito supremo do recurso à greve não tenha sido abandonado Se pudermos aplicar esta analogia às relações internacionais podemos esperar que uma vez que as potências insatisfeitas se conscientizem da possibilidade de reparar queixas através de negociações pacíficas precedidas sem 16Na GrãBretanha as greves nas fábricas de munições foram proibidas durante a Primeira Guerra Mundial pelas Leis de Munições de Guerra Mas embora ocorressem greves a lei raramente foi imposta e perdeu o vigor com o fim da guerra Sob a Lei de Disputas Comerciais de 1927 as greves políticas foram declaradas ilegais mas nenhum caso previsto nessa lei aconteceu desde que foi aprovada A situação noutros países é resumida num panfleto publicado pela Liga Americana para a Democracia Industrial Shall Strikes be OutlawedDe Joel Seidman que conclui que os trabalhadores sentem que seu direito de greve é sua mais segura garantia de um tratamento justo e que pelo caminho da negoci ação coletiva voluntária se espalha a maior esperança de relações industriais satisfatórias 275 Mudança pacífica dúvida em primeira instância por ameaças de força algum pro cesso regular de mudança pacífica pode gradualmente ser es tabelecido e ganhar a confiança dos insatisfeitos Uma vez que tal sistema seja reconhecido podemos esperar que a conciliação seria tida como natural e a ameaça da força embora nunca for malmente abandonada recuaria cada vez mais Se esta analogia é de fato válida ou se esta esperança é puramente utópica tra tase de uma questão que dificilmente pode ser solucionada exceto pelo teste da experiência Mas podese registrar com al guma confiança a opinião de que esta é a única linha de ação que permite algum projeto de estabelecimento de qualquer pro cesso internacional mesmo imperfeito de mudança pacífica As implicações deste processo devem contudo ser clara mente reconhecidas Poucas questões de mudança social ou po lítica de magnitude suficiente para envolver o risco de uma re volução ou de uma guerra podem ser solucionadas sem o prejuízo ou o aparente prejuízo dos interesses de uma das par tes Que a parte a cujas expensas a mudança tiver de ser efetu ada concordaria sem a necessidade da utilização de meios de pressão para forçála a fazer tal coisa é uma das estranhas ilu sões do malfadado Artigo 19 do Pacto e esta ilusão deve ser descartada Na verdade uma tal abnegação dificilmente pode ser esperada O governante o líder sindical ou o diretor de com panhia são mandatários daqueles cujos interesses eles represen tam e para justificarem concessões extensas às expensas destes eles devem geralmente estar em posição de argumentar que ce deram por força maior Quando a mudança é feita pela legisla ção o agente compulsório é o estado Mas quando a mudança se efetua pelo processo de barganha a força maior só pode ser a da parte mais forte O empregador que cede às demandas dos grevistas argumenta a impossibilidade de resistir O líder sindi cal que suspende uma greve fracassada argumenta que o sindi cato é fraco demais para continuar A expressão ceder a amea ças de força que por vezes é entendido com sentido negativo é no entanto uma parte normal do processo 276 E H CARR o paralelo não deve ser levado muito longe O papel da força mesmo nos estados democráticos mais avançados com efeito é mais constante e mais evidente do que admitem os de mocratas mais sentimentais Num país tão ordeiro como a Grã Bretanha no século atual a força foi utilizada ou sua ameaça para assegurar fins políticos por nacionalistas irlandeses mu lheres sufragistas comunistas fascistas e trabalhadores organi zados Mas dentro do estado existem freios ao recurso muito violento da força Em primeiro lugar existe o processo legisla tivo e proporciona um método alternativo de mudança A fé no voto já afastou de políticas revolucionárias os trabalhadores de muitos países Em segundo lugar o estado demonstra freqüen temente de forma imperfeita manter um equilíbrio imparcial entre as partes quanto à questão em disputa Graças a esses frei os um certo descrédito moral se liga nos países democráticos na mente de todas as classes ao uso aberto ou ameaça de uso da força até que outros meios de mudança sejam tentados Em política internacional nenhum desses freios existe O uso ou ameaça de uso da força é portanto um método normal e reconhecido para provocar mudanças políticas importantes e é tido como moralmente condenável principalmente pelos paí ses conservadores cujos interesses sofreriam com as mudan ças A maior operação de mudança pacífica no século deze nove foi a realizada pelo Congresso de Berlim que reviu o tratado imposto pela Rússia à Turquia em San Stefano Mas esta revisão somente teve lugar sob a ameaça tácita de uma declara ção de guerra contra a Rússia pela GrãBretanha e Áustria Hungria O Tratado de Lausanne de 1923 foi uma revisão extraída pelo uso e ameaça de uso da força do tratado assinado com a Turquia em Sêvres em 1920 Foi denunciado por Lloyd George como uma rendição abjeta infame e covarde e esta 17 Um autor que pesquisou a história da mudança pacífica até 1914 registra a conclusão de que Ué sempre mais sábio apresentar à Europa un foi accompli Crutrwell History of Peociful Chonge pág 3 Mudança pacífica 277 oplnlao se generalizou na época 18 A revrsao das fronteiras tchecoslovacas efetuada pelo Acordo de Munique de setembro de 1938 também foi produto de uma ameaça de força e aqui temos o testemunho explícito de Benes de que não se conse guiu nenhum método alternativo Realmente cinco anos antes ele havia declarado publicamente que nenhum país poderia ser forçado por alguém a rever suas fronteiras e alguém que tentas se no caso da Tchecoslováquia teria que levar seu exército jun to Podese adicionar outro exemplo curioso Quando a Polônia anexou Vilna em 1920 a Lituânia fechou a fronteira e cortou todas as comunicações com a Polônia É duvidoso se este isola mento conferiu alguma vantagem à Lituânia Mas nenhum governante lituano poderia ter justificado a reabertura da fron teira e a conseqüente perda de moral ante seu país se não esti vesse em posição de argumentar força maior Em março de 1938 a Polônia mobilizou um exército e apresentou um ultimatum à Lituânia A fronteira foi de pronto reaberta e relações normais foram estabelecidas Uma operação de mudança pacífica geral mente considerada salutar não poderia ser realizada exceto sob ameaça de guerra Normalmente a ameaça de guerra tácita ou expressa parece ser uma condição necessária para importantes mudanças políticas na esfera internacional Este princípio não somente foi demonstrado na prática em muitas ocasiões como também recebeu uma grande dose de re conhecimento da parte dos idealizadores e comentadores do 18 Lloyd George The Trutb About lhe Peace Treaty ii pág 1351 19The Times 26 de abril de 1933 citado pelo Professor Manning em Política dezembro de 1938 pág 363 20 Os que opinam que as mudanças realizadas sob a ameaça de força armada não são mudanças pacíficas têm é evidente a liberdade de definir seus termos como bem dese jarem Mas devese notar que uma definição assim restrita igualmente excluiria as mudan ças efetuadas através de um processo legislativo ou judicial se estes implicarem coerção Se o território tchecoslovaco houvesse sido transferido à Alemanha em setembro de 1938 por uma decisão da Assembléia da Liga ou de um tribunal de eqüidade tornada eficaz pela mobilização de exércitos da Liga ou de uma força policial internacional a mudança não teria sido mais digna por este motivo do epíteto pacifica A força armada teria sido utilizada precisamente da mesma maneira 278 E H CARR Pacto da Liga das Nações O mecanismo da Liga foi posto em ação em virtude do perigo de guerra O Artigo 11 mencionava qualquer guerra ou ameaça de guerra e quaisquer circunstân cias que ameacem perturbar a paz internacional enquanto o Artigo 19 pretendia lidar com tratados que se tornaram inaplicáveis uma expressão que nunca foi satisfatoriamente explicada e com as condições internacionais cuja continuação possa pôr em perigo a paz do mundo Além disso o artigo mais eficaz do Pacto para promover a mudança pacífica e o único que foi invocado para tal firrr não era o Artigo 19 mas o Artigo 15 pelo qual poderseiam fazer recomendações sem a aquies cência das partes envolvidas e na eventualidade de uma guerra tais recomendações poderiam ser apoiadas por sanções Mas por outro lado a única condição que poderia acionar este artigo era um litígio que pudesse levar à ruptura As queixas de que o Pacto tomava conhecimento eram em termos gerais as queixas de estados suficientemente fortes para criarem um perigo de guer ra Em 1932 quando a Finlândia apresentou ao Conselho uma queixa contra a GrãBretanha em virtude do apresamento de barcos finlandeses na Primeira Guerra Mundial o governo bri tânico argumentou inter alia que este não era um caso para o Conselho uma vez que o litígio não parecia poder levar à rup tura No mesmo ano o governo britânico submeteu ao Conse lho baseado no Artigo 15 um litígio com o Irã em virtude de negócios da Companhia Petrolífera AngloIraniana A diferença essencial era a de que a GrãBretanha era forte o suficiente para criar o perigo de uma ruptura e a Finlândia não22 Quando o 21 A Assembléia Especial tratando do litígio da Manchúria pelo Artigo 15 do Pacto endos sou as recomendações da Comissão Lytton para modificações substanciais do status quo na Manchúria É pouco necessário aduzir que a ação militar japonesa foi a força que inspirou tais recomendações que provaram ser contudo insuficientes para satisfazer o Japão 22 Na questão finlandesa Madariaga expressava a opinião de que era extremamente peri goso para o Conselho a Assembléia e a Liga das Nações estabelecer a doutrina de que as partes irascíveis devam ser ouvidas e as calmas não porque no último caso não haveria problema de ruptura League oj Nations Official aurnal November 1934 pág 1458 A insuficiência do caso finlandês contudo não era tanto o fato de a Finlândia ser calma mas sim o de ser fraca 279 Mudança pacífica Artigo 19 foi invocado pela primeira vez pela Bolívia em 1921 argumentouse convincentemente que uma vez que as condi ções de que a Bolívia se queixava existiam por um longo perío do sem ameaçar a paz não havia motivo para submetêlas à Liga Noutras palavras teria sido necessário para pôr em ação o pro cesso de mudança pacífica que a Bolívia fosse forte o suficien te para ameaçar guerra contra o Chile A doutrina do Pacto por tanto confirma a lição da experiência de que não se pode efetuar uma mudança pacífica em política internacional em qualquer escala importante na ausência de uma ameaça ou ameaça po tencial de guerra Este é um lado da questão e uma vez que se trata do lado ignorado em grande parte dos trabalhos sobre política internaci onal foi o lado deliberadamente enfatizado aqui Não devemos porém diminuir o valor da mudança pacífica mesmo se consi derada apenas deste ponto de vista Se as relações entre empre gadores e empregados forem tais que os primeiros não possam resistir ou os últimos não possam sustentar a uma pressão de demanda por um aumento de salários e uma redução de horas de trabalho é preferível independente de qualquer problema de justiça ou injustiça da demanda que seja concedida ou rejeita da em virtude de negociações pacíficas do que em virtude de uma greve longa e exacerbada que quase arruína empregadores e empregados Se as relações de poder entre os principais países europeus em 1877 tornavam inevitável que se retirasse da Bulgária muito dos territórios a ela concedidos pelo Tratado de San Stefano então era preferível que se chegasse a este resulta do através de discussões em torno de uma mesa em Berlim do que através de uma guerra entre GrãBretanha e ÁustriaHungria de um lado e Rússia do outro Se considerarmos a mudança pacífica um instrumento mais ou menos mecânico substituindo o alternativo instrumento da guerra para o reajustamento da distribuição de territórios e de outras coisas desejáveis para mudanças no equilíbrio das forças políticas ela desempenha uma 280 E H CARR função cuja utilidade seria hipocrisia negar Muitas mudanças realizadas nas comunidades nacionais seja por legislação ou outra coisa qualquer e reconhecidas como saudáveis não pos suem outra base que não esta o PAPEL DA MORAL NA MUDANÇA POLirrCA Não obstante é claro que existe um outro aspecto da mudança pacífica que ocupa os pensamentos dos homens e que não é mais possível discutir mudança pacífica ou qualquer outro tipo de processo político apenas em termos de poder Quando se faz uma demanda controvertida por mudança a pergunta que ime diatamente excita a mente da maioria das pessoas é a de saber se a demanda é justa É verdade que nossa opinião sobre se é justa tende a assumir nossas cores e pode ser totalmente deter minada por nosso próprio interesse É verdade que se nossos interesses não estiverem fortemente envolvidos seremos tenta dos a descobrir razões para considerar justa uma solução que pareça inevitável ou que só poderia ser evitada por um grande esforço de nossa parte Também é verdade que aqui como em qualquer outra questão política o poder desempenha um papel na determinação de nossa concepção moral de modo que esta remos dispostos ceteris paribus a encarar a solução desejada pelo forte ou pela maioria como mais justa do que uma solução dese jada pelo fraco ou pela minoria Mas quando todas essas con cessões tiverem sido feitas a opinião adotada acerca da moralidade da transação uma opinião não totalmente domina da por considerações de poder influenciará a atitude da massa das pessoas afetadas por ela Se o governo ordeiro tiver de contar com o consenso geral escreve Bertrand Russell devese en contrar alguma forma de persuadir a maioria da humanidade a concordar com outra doutrina que não a de Trasímaco e se um processo ordeiro de mudança pacífica for um dia estabeleci 23 B Russell Potuer pág 100 281 Mudança pacífica do nas relações internacionais devese encontrar alguma forma de basear sua operação não apenas no poder mas no difícil meio termo entre poder e moral que é o fundamento de toda a vida política O estabelecimento de um processo de negociação pa cífica nos litígios entre capital e trabalho pressupõe não apenas uma percepção aguda de ambos os lados sobre a força e a fra queza de suas respectivas posições em certo período mas tam bém uma certa dose de consenso sobre o que seja justo e razoá vel em suas relações mútuas um espírito de dar e receber e mesmo de autosacrifício de modo a existir uma base ainda que imperfeita para discutir as reivindicações em termos da justiça aceita por ambos É o caráter embrionário desse sentimento co mum entre as nações não a falta de um legislativo mundial nem a insistência dos estados em serem juízes de suas próprias cau sas que é o obstáculo real no caminho de um processo interna cional de mudança pacifica Em que extensão este sentimento comum é operativo com relação às reivindicações de mudança internacional Evidente mente em certo grau Podemse selecionar para análise dois casos concretos de reivindicações de mudança um da esfera quasiinternacional outro da esfera internacional N o século dezenove a reivindicação de governo próprio para a Irlanda encontrou entre um grande número de pessoas na GrãBretanha um apoio baseado não em considerações de poder mas no reconhecimento comum como um cânone da moral internacional do direito das nacionalidades oprimidas à auto determinação e numa aquiescência em sacrificar o interesse pró prio por este princípio O conjunto de sentimentos comuns en tre GrãBretanha e Irlanda era consideravelmente maior do que o normalmente existente entre dois países estrangeiros Contu do a reivindicação por mudança não se tornou eficaz até que devido à movimentação do poderio militar britânico noutra par te a força pôde se colocar por trás dela Se o ajuste finalmente realizado em 1921 pudesse ter sido atingido em 1916 teríamos 282 E H CARR um exemplo real de mudança pacífica conseguida como a maior parte dos exemplos internacionais de mudança pacífica sob a ameaça de guerra Mas mesmo em 1921 o acordo não poderia ser alcançado e sobretudo não poderia ser mantido somente so bre a base do poder O Tratado AngloIrlandês foi um caso fla grante de ceder às ameaças da força foi celebrado com os autores de uma revolta vitoriosa Mas teve seu necessário fun damento moral na aceitação de um padrão comum do gue fosse justo e razoável nas relações mútuas entre os dois países e na disposição de ambos particularmente do lado mais forte faze rem sacrifícios no interesse da conciliação Isto provocou o es trondoso sucesso de um acordo sobre o gual na época de sua conclusão se espalhavam os prognósticos mais sombrios O segundo exemplo é o do fracasso em se atingir uma solu ção pacífica com a Alemanha no período entre as duas guerras mundiais A massa da opinião política na GrãBretanha e na Ale manha e na maioria dos outros países concordou por muitos anos gue um critério de justiça e injustiça poderia com proprie dade ser aplicado ao Tratado de Versail1es e houve um consenso surpreendentemente considerável embora longe de ser total sobre as disposições do tratado gue eram justas ou injustas In felizmente a Alemanha esteve guase totalmente desprovida por guinze anos após 1918 do poder gue é como vimos uma força motriz necessária da mudança política e essa deficiência impe diu gue fosse levado a efeito exceto numa escala menor o con senso de opinião geral de gue partes do Tratado de Versail1es deveriam ser modificadas Na época em gue a Alemanha reco brou seu poder adotou uma atitude completamente cínica acer ca do papel da moral na política internacional Embora continu asse a basear suas reivindicações em termos de justiça expressouas cada vez mais claramente em termos de força nua e isto provocou a reação da opinião pública dos países do status quo gue se tornou cada vez mais inclinada a esguecer as antigas admissões de injustiças do Tratado de Versail1es e a considerar Mudança pacífica 283 a questão como exclusivamente um problema de poder A fácil aquiescência das potências do status quo com ações como a de núncia das cláusulas militares a reocupação da Renânia ou a anexação da Áustria se deveu não totalmente ao fato de ser a linha de menor resistência mas em parte também a um consen so de opinião de que essas mudanças eram por si razoáveis e justas Contudo elas foram recebidas com censuras e protes tos oficiais que inevitavelmente criaram a impressão de que as potências que protestavam concordaram apenas porque não es tavam aptas ou desejosas de fazerem um esforço para resistir Remoções sucessivas de injustiças há muito reconhecidas do Tratado de Versailles tornaramse não um motivo de reconcilia ção mas de maior distanciamento entre a Alemanha e as potên cias de Versail1es e destruíram ao invés de aumentarem o con junto limitado de sentimentos comuns que anteriormente existira Ultrapassa o propósito do presente livro discutir a política externa presente ou futura da GrãBretanha ou de qualquer outro Estado Mas a defesa do status quo não é uma política que possa durar muito com sucesso Terminará em guerra tão segu ramente quanto o conservadorismo rígido terminará em revolu ção A resistência à agressão embora necessária como instru mento transitório da política nacional não é uma solução pois a disposição de lutar para evitar mudanças é tão amoral quanto a disposição de lutar para forçálas Estabelecer meios de mudan ça pacífica é portanto o problema fundamental da moral e da política internacionais Podemos descartar como puramente utó picos e tolos planos para um processo de mudança pacífica di tada por um poder legislativo ou uma corte mundial Podemos descrever como utópico no sentido correto ou seja desempe 24 A reação foi é lógico intensificada devido à política interna da Alemanha nazista 25 Na GrãBretanha uma leitura atenta da imprensa britânica em 7 e 8 de março de 1936 demonstrará o quão amplamente a reocupação da Renânia foi não meramente tolerada mas bemvinda Posteriormente o tom da imprensa foi se tornando menos favorável sendo claramente influenciado pela atitude oficial mais crítica 284 E H CARR nhando a função própria de uma utopia ao proclamar um ideal a ser realizado embora não totalmente atingível o desejo de eli minar o elemento poder e de basear o processo de barganha da mudança pacífica num sentimento comum do que seria justo e razoável Mas também devemos ter em mente a visão realista da mudança pacífica como um ajustamento às relações de poder alteradas e uma vez que a parte que demonstra reunir a maior quantidade de poder normalmente sai vencedora de operações de mudança pacífica devemos dar o máximo para aumentar nos so poder tanto quanto possível Na prática sabemos que só se pode conseguir a mudança pacífica através de um meiotermo entre a concepção utópica de um sentimento comum do que é certo e a concepção realista de um ajustamento mecânico a um equilíbrio de forças alterado Eis por que uma política externa bemsucedida deve oscilar nos pólos aparentemente opostos da força e da conciliação CAPÍTULO XIV AS PERSPECTIVAS DE UMA NOVA ORDEM INTERNACIONAL o FIM DA ANTIGA ORDEM Períodos de crise têm sido comuns na história O aspecto carac terístico dos vinte anos de crise entre 1919 e 1939 foi a queda súbita das esperanças visionárias da primeira década para o som brio desespero da segunda da utopia que não se prendia à reali dade para uma realidade da qual a utopia fora rigorosamente excluída A miragem da década de vin te como agora sabemos era o reflexo tardio de um século anterior que não se poderia ressuscitar a idade de ouro de territórios e mercados em conti nua expansão de um mundo policiado pela hegemonia britânica autoafirmada e não muito onerosa de uma civilização oci dental coerente cujos conflitos se poderiam harmonizar por um alargamento progressivo da área de desenvolvimento e ex ploração comum dos pressupostos fáceis de que o que era bom para um era bom para todos e o que era economicamente corre to não podia ser moralmente errado A realidade que certa vez tinha dado conteúdo a essa utopia já estava em decadência an tes do final do século dezenove A utopia de 1919 era vazia e sem substância Não exerceu influência alguma no futuro por que não mais possuía raízes no presente A primeira e mais óbvia tragédia desta utopia foi seu colap so ignominioso e o desespero que este colapso trouxe consigo As massas européias se conscientizaram pela primeira vez 288 E H CARR disse um autor antes da Segunda Guerra Mundial que a exis tência nesta sociedade não é governada por forças racionais e sensatas mas sim por forças irracionais e demoníacasl Não era mais possível racionalizar as relações internacionais preten dendose que o que era bom para a GrãBretanha também era bom para a Iugoslávia e o que era bom para a Alemanha tam bém o era para a Polônia de forma que os conflitos internacio nais fossem apenas produtos transitórios de malentendidos evi táveis ou má vontade curável Por mais de cem anos a realidade do conflito foi escamoteada pelos pensadores políticos da civi lização ocidental Os homens da década de trinta retomaram chocados e perplexos ao mundo da natureza As brutalidades que nos séculos dezoito e dezenove se restringiam ao trato en tre povos civilizados e nãocivilizados foram transpostas para as relações entre os povos civilizados A relação entre o totali tarismo e a crise claramente não foi de causa mas de efeito O totalitarismo não era a doença mas sim um de seus sintomas Em toda parte por onde se espalhava a crise traços desse sinto ma podiam ser encontrados A segunda tragédia do colapso da utopia que derivou da primeira e mais tarde intensificoua foi de um tipo mais sutil N a última metade do século dezenove quando a harmonia de interesses já estava ameaçada por conflitos de gravidade cres cente a racionalidade do mundo foi salva por uma boa dose for te de darwinismo A realidade do conflito foi admitida Mas uma vez que o conflito terminasse com a vitória do mais forte e a vitória do mais forte era uma condição para o progresso a honra estaria salva às custas do inapto Após 1919 somente os fascis tas e os nazistas se apegaram abertamente a este instrumento fora de moda para racionalização e moralização das relações internacionais Mas os países ocidentais recorreram a um expe diente igualmente dúbio e desastroso Perturbados pela falência da harmonia de interesses e chocados por seu desvio darwinista I P Drucker The End oi Economic Man pág 56 As perspectivas de uma nova ordem internacional 289 tentaram construir uma nova moral internacional fundada não no direito do mais forte mas no direito dos que possuíam Como todas as utopias que são institucionalizadas essa utopia tornou se uma arma para interesses disfarçados e foi transformada num sustentáculo do status quo É um ponto discutível se os políticos e publicistas das potências satisfeitas que tentaram identificar a moral internacional com a segurança a lei e a ordem e outros slogans venerados dos grupos privilegiados não têm sua parte de responsabilidade pelo desastre tanto quanto os políticos e publicistas das potências insatisfeitas que brutalmente nega ram a validade de uma moral internacional assim constituída Ambas as tentativas de moralizar as relações internacionais ne cessariamente falharam Não podemos aceitar nem a doutrina darwinista que identifica o bem do todo com o bem do mais apto e contempla sem repugnância a eliminação do inapto nem a doutrina de uma harmonia natural de interesses que perdeu o fundamento na realidade que possuía e que se tornou inevita velmente um manto para os interesses ocultos dos privilegiados Ambas as doutrinas se tornaram insustentáveis como base da moral internacional O colapso delas nos deixou sem solução pronta para o problema de reconciliar o bem da nação com o da comunidade mundial e a moral internacional está sofrendo uma reformulação total Em que direção podemos procurar um renascimento da moral internacional É sem dúvida possível que não haja pers pectiva de tal renascimento e que o mundo esteja caindo num daqueles períodos históricos de retrocesso e caos em que o molde existente da sociedade se esfacela e de onde formas no vas e familiares finalmente surgem Se assim for a experiência não deverá ser breve ou indolor Os que crêem na revolução mundial como um atalho para a utopia estão singularmente ce gos às lições da história e o número dos que sustentam esta crença parece ter diminuído nos últimos anos Não há maior razão para se presumir que o caminho leva à revolução mundial do que para 290 E H CARR se encontrar refúgio no puro desespero Nossa tarefa é explorar as ruínas de nossa ordem internacional e descobrir sobre que novos fundamentos podemos esperar reconstruíla e como ou tros problemas políticos este problema deve ser considerado tanto do ponto de vista do poder quanto do da moral A NAyfO SOBREVIVERA COMO UNIDADE DE PODER Antes de considerarmos o papel do poder em qualquer nova or dem internacional devemos primeiro perguntar qual será a uni dade de poder O atual aspecto da política internacional se deve ao fato de que as unidades efetivas são estadosnações O as pecto da futura ordem internacional está intimamente ligado ao futuro da unidade grupal A Revolução Francesa que inaugurou o período da história agora chegando a seu fim levantou a questão dos direitos do homem Sua demanda por igualdade foi uma demanda por igual dade entre os indivíduos No século dezenove esta reivindica ção se transformou numa reivindicação por igualdade entre os grupos sociais Marx estava certo ao perceber que o indivíduo isolado não poderia ser a unidade efetiva na luta pelos direitos humanos e pela igualdade humana Mas estava errado ao supor que a unidade suprema era a classe social e ao não levar em conta as qualidades coesivas e abrangentes da unidade nacio nal As grandes figuras européias do fim do século dezenove foram Disraeli e Bismarck que se empenharam em fundir as duas nações em uma através do serviço social educação po pular e imperialismo refutaram o mote de que o proletário não tem pátria e prepararam o caminho para o trabalhismo nacio nal o socialismo nacional e mesmo para o comunismo na cional Antes de 1914 a reivindicação de igualdade já estava começando a se transformar na Europa ocidental de igualdade entre as classes em igualdade entre as nações Autores italianos descreveram a Itália como uma nação proletária usando o ter As perspectivas de uma nova ordem internacional 291 mo no sentido de nãoprivilegiada A Alemanha reivindicou igualdade na forma de seu lugar ao sol uma coisa pela qual como disse Bernhardi se deveria lutar e vencer contra uma força superior de interesses e poderes hostis2 Na França ministros socialistas e exsocialistas apelaram pela paz industrial no inte resse da unidade nacional Imperceptivelmente a luta entre as classes começava a parecer mesmo para os próprios trabalha dores menos importante do que a luta entre as nações E a luta pela igualdade se tornou de acordo com as leis comuns do po der político indistinto da luta pelo predomínio Esta é então a razão básica da extrema importância da política internacional após 1919 O conflito entre os privilegia dos e os nãoprivilegiados entre os defensores da ordem exis tente e os revolucionários que foi travado no século dezenove dentro das comunidades nacionais da Europa ocidental foi transferido no século vinte para a comunidade internacional A nação se tornou mais do que nunca a unidade suprema em tomo da qual se centraram as reivindicações humanas por igual dade e as ambições humanas por predomínio Em toda parte na Europa surgiram governos nacionais e estados de partido único e onde as questões partidárias sobreviveram eram consideradas como algo fora de moda e deplorável uma nódoa na unidade nacional que se exigia fosse apagada A desigualdade que amea çou uma convulsão mundial não foi a desigualdade entre indiví duos nem a desigualdade entre classes mas sim a desigualdade entre nações Assim como a desigualdade de riqueza e de opor tunidades entre as classes freqüentemente leva a revoluções dizia Mussolini calculase que uma desigualdade similar entre as nações se não for corrigida pacificamente leva a explosões de caráter muito mais grave3 A nova harmonia que se reivindi cava não era como os filósofos do laisserfaire presumiam uma harmonia entre indivíduos nem como Marx presumia quando 2 Bernhardi GernJany and lhe Next War trad ingl pág 8I 3The Times April 211939 292 E H CARR negou a possibilidade de sua realização uma harmonia entre as classes mas sim uma harmonia entre as nações Hoje em dia não precisamos comentar o erro semelhante ao que Marx come teu sobre a classe social de tratar a nação como a unidade giupal suprema da sociedade humana Não precisamos parar para per guntar se ela é o melhor ou o pior tipo de unidade para servir de foco do poder político Mas somos obrigados a nos perguntar se e se assim for por que outra coisa ela deverá ser substituída As especulações acerca deste assunto naturalmente tendem a duas questões a as maiores e mais abrangentes unidades de poder políti co no mundo possuem necessariamente um caráter territorial b se assim for continuarão a manter aproximadamente o aspecto do Estadonação contemporâneo A questão de saber se as maiores e mais abrangentes uni dades de poder devam ser necessariamente territoriais não pode receber uma resposta dogmática aplicável a todos os períodos da história No presente tais unidades possuem uma forma ca racteristicamente territorial É fácil observar na história passa da o desenvolvimento gradual levando com lapsos ocasionais a essa realização e o poder político provavelmente jamais este ve mesmo nas sociedades mais primitivas totalmente divorcia do da posse de território Porém em muitos períodos da histó ria dos quais o medieval é o mais recente o poder se baseou ostensivamente e mesmo de fato sobre outros fundamentos que não a soberania territorial Foi a aceitação do princípio cuius regia eius religia que substituiu a unidade baseada na vassalagem religiosa pela unidade baseada no domicílio e assim plantou as bases do estadonação moderno Em nenhum período anterior da história moderna as fronteiras foram tão rigidamente demarcadas e seu caráter de barreiras tão rudemente imposto como hoje em dia e em período algum como já vimos foi tão manifestamente impossível organizar e manter qualquer forma As perspectivas de uma nova ordem internacional 293 internacional de poder A técnica moderna militar e econômi ca parece ter indissoluvelmente fundido poder e território É difícil para o homem contemporâneo até mesmo imaginar um mundo no qual o poder político fosse organizado não em termo de território mas de raça credo ou classe Contudo não se pode ignorar a atração duradoura das ideologias que transcendem os limites das unidades políticas existentes Poucas coisas são per manentes na história e seria temerário presumir que a unidade territorial de poder é uma delas Seu abandono em favor de al guma outra forma de poder grupal organizado seria contudo tão revolucionário que pouco do que se tem como verdade na política internacional do período atual se aplicaria ao novo ar ranjo As relações internacionais seriam suplantadas por um novo conjunto de relações grupais A questão de saber se as unidades territoriais do futuro irão manter aproximadamente seu aspecto atual possui importância prática mais imediata O problema do tamanho ótimo das uni dades sejam unidades de produção industrial ou agrícola ou unidades de poder econômico e político é um dos mais intrin cados e importantes atualmente e o futuro próximo poderá tes temunhar evoluções surpreendentes A esse respeito no campo do poder político podemse observar duas tendências opostas Numa direção existe uma tendência claramente marcada para a integração e a formação de unidades políticas e econômi cas ainda maiores Essa tendência se estabeleceu na última par te do século dezenove e parece ter estado intimamente ligada ao crescimento do capitalismo e do industrialismo em larga es cala e também ao aperfeiçoamento dos meios de comunicação e dos instrumentos técnicos do poder A Primeira Guerra Mundial deu a este desenvolvimento um destacado relevo A soberania ou seja a liberdade de tomar decisões de grande impor tância histórica escreveu Naumann em seu famoso livro publicado em 1915 está hoje concentrada em muito poucas partes do globo Ainda está distante o dia em que haverá um rebanho e um pastor 294 E H CARR mas já se passaram os dias em que um semnúmero de pastores con duziam seus rebanhos livremente sobre os pastos da Europa O espí rito da indústria de larga escala e das organizações supranacionais to mou conta da política Isto está de acordo com a técnica militar centralizadat o interlúdio de 1918 quando o nacionalismo momentane amente reassumiu seu papel desintegrador demonstrou ter sido pelo menos na Europa um perigoso fiasco A multiplicação de unidades econômicas aumentou desastrosamente os problemas do período do pósguerra Naumann com seu MittelEuropa se revelou um profeta mais seguro do que Woodrow Wilson com seu principio de autodeterminação Os vitoriosos de 1918 per deram a paz na Europa Central porque continuaram a perse guir um princípio de desintegração política e econômica numa época que pedia unidades cada vez maiores O processo de con centração continuou Quanto mais a autarquia for tida como objetivo tanto maiores devem ser as unidades Os Estados Uni dos fortaleceram sua posição no continente americano A Grã Bretanha criou um bloco esterlino e lançou os fundamentos de um sistema econômico fechado A Alemanha reconstituiu a MittelEuropa e buscou a in fluência nos Balcãs A Rússia Soviética transformou seus vas tos territórios numa unidade compacta de produção industrial e agrícola O Japão tentou criar uma nova unidade da Ásia do Leste sob o domínio japonês Essa era a tendência para a con centração do poder econômico e político nas mãos de seis ou sete unidades altamente organizadas em torno das quais have ria de girar um número de unidades satélites sem movimento próprio apreciável Por outro lado existe algum indício de que embora o desenvolvimento técnico industrial e econômico dos últimos cem anos haja ditado um aumento progressivo do ta manho da unidade política eficaz pode haver um tamanho que 4 F Naumann Central Europe trad ingl págs 45 As perspectivas de uma nova ordem internacional 295 não possa ser excedido sem provocar um recrudescimento das tendências desintegradoras Se existe uma lei desse tipo em ope ração é impossível formulála com alguma precisão e serão ne cessárias mais investigações para lançar alguma luz sobre as condições que governam o tamanho das unidades econômicas e políticas Este assunto é contudo provavelmente mais decisivo do que qualquer outro para o curso da história mundial nas pró ximas gerações Uma previsão pode ser feita com alguma certeza O con ceito de soberania deve tornarse no futuro ainda mais obscuro e indistinto do que é atualmente O termo foi inventado após a ruptura do sistema medieval para descrever o caráter indepen dente da autoridade reivindicada e exercida pelos estados que não mais reconheciam sequer a supremacia formal do Império Nunca passou de um rótulo conveniente e quando começaram a ser estabelecidas distinções entre soberania política legal e econômica ou entre soberania externa e interna estava claro que o rótulo deixara de exercer a função para a qual era apto de marca distintiva para uma única categoria de fenômenos Dis cussões de questões como se as colônias britânicas eram pode res soberanos ou a quem tocava a soberania dos territórios administrados por mandato revelam a crescente confusão Tais discussões ou tratam de argumentos legais acerca da natureza dos poderes constitucionalmente atribuídos às autoridades des sas áreas em cujo caso o uso do termo soberania pouco aju da ou de argumentos puramente formais sobre a questão de saber se é conveniente usar o rótulo soberania para descrever situa ções que divergem em escala maior ou menor de um padrão comum O conceito de soberania se torna definitivamente ilu sório quando por exemplo no cômputo do valor do comércio ou dos investimentos coloniais britânicos Egito e Iraque são excluídos por se tratarem de estados soberanos Não parece pro vável que as futuras unidades de poder levem muito em conta a soberania formal Não há razão para que cada unidade seja com 296 E H CARR posta de grupos de varios estados formalmente soberanos na medida em que a autoridade efetiva mas não necessariamente a nominal é exercida por um único centro A unidade grupal efe tiva do futuro com toda a probabilidade não será a unidade formalmente reconhecida como tal pelo direito internacional Qualquer projeto de uma ordem internacional que se baseie nes tas unidades formais tende a ser irreal Podese muito bem aduzir a isto o fato de que as unidades grupais sob alguma forma certamente sobreviverão como repositórios do poder político qualquer que seja a forma que tais unidades possam assumir O nacionalismo foi uma das for ças através das quais o aparentemente irreconciliável choque de interesses entre as classes dentro da comunidade nacional foi resolvido Não há força correspondente que possa ser invocada para conciliar o hoje aparentemente inconciliável choque de in teresses entre as nações É sem sentido imaginar um mundo hi potético onde os homens não mais se organizem em grupos com objetivos de conflito e o conflito não pode uma vez mais ser transferido para um campo mais amplo e mais abrangente Como freqüentemente foi observado a comunidade internacional não se pode organizar contra Marte Este é apenas um outro aspecto do dilema com o qual o colapso das condições folgadas da civi lização do século dezenove nos defrontou Não mais parece ser possível criar uma clara harmonia de interesses às custas de outrem Não se pode mais escamotear o conflito o PODER NA NOVA ORDEM INIERNACIONAL O poder é um ingrediente necessário de qualquer ordem políti ca Historicamente toda semelhança no passado a uma socieda de mundial foi produto da ascendência de uma única potência No século dezenove a esquadra britânica não apenas garantiu a ausência de guerras importantes como policiou os mares e ofe receu segurança igual a todos O mercado monetário de Londres As perspectivas de uma nova ordem internacional 297 estabeleceu um único padrão de moeda para virtualmente o mundo inteiro O comércio britânico assegurou ainda que de forma imperfeita e limitada uma ampla aceitação do principio do livre comércio No século dezenove o inglês tornouse a lín gua franca de quatro continentes Essas condições que foram ao mesmo tempo produto e garantia da supremacia britânica criaram a ilusão e em certo sentido a realidade de uma socie dade mundial possuindo interesses e afinidades em comum A hipótese atuante de uma ordem internacional foi criada por uma potência superior Esta hipótese foi destruída pelo declínio re lativo ou absoluto dessa potência A esquadra britânica não é mais suficientemente forte para evitar a guerra o mercado de Londres só pode forçar um único padrão monetário numa área limitada o livre comércio desabou totalmente e se a língua in glesa mantém e aumentou sua ascendência isto se deve ao fato de que é compartilhada pela GrãBretanha com outros países importantes Através de que poder poderá a ordem internacio nal ser restaurada Esta questão tende a ser respondida por diferentes nações em diferentes formas A maioria dos ingleses contemporâneos está consciente de que as condições que garantiram a ascendên cia formidável da GrãBretanha não mais existem Mas eles às vezes se consolam com o sonho de que a supremacia britânica ao invés de desaparecer se transformará na mais alta e mais eficaz forma de uma ascendência dos povos de língua inglesa A pax britannica será perpetuada e se tornará uma pax angiosaxonnica sob a qual as colônias britânicas colocandose a meio caminho entre a metrópole e os Estados Unidos serão habilidosamente fiadas no tecido da cooperação angloamericana Esta idéia ro mântica remonta aos últimos anos do século dezenove quando a GrãBretanha já estava consciente do fardo crescente da su premacia mundial e quando Cecil Rhodes teve uma das primei ras visões registradas de um império mundial baseado numa as sociação angloamericana Estranhamente foi um Embaixador 298 E H CARR americano em Londres que logo antes da guerra deu à idéia sua expressão mais concreta Em 1913 Walter Hines Page propôs que o Presidente Wilson visitasse Londres e concluísse uma ali ança angloamericana Eu penso declarou o embaixador que o mundo notará a quem ele pertence e ficará quieto O Trata do Naval de Washington de 1922 foi uma jogada mais ou me nos consciente da GrãBretanha buscando uma sociedade igual com os Estados Unidos na administração do mundo A esperan ça era reiterada sempre dentro das reservas e da cautela ditadas pelas susceptibilidades americanas pelos estadistas britânicos no período entre as duas guerras mundiais Eu sempre acreditei disse Lord Baldwin no Albert Hall em maio de 1935 que a maior segurança contra a guerra em qualquer parte do mundo na Europa no Oriente em toda parte seria a colaboração estreita do Império Britânico com os Estados Unidos da América Os poderes combinados das marinhas o potencial humano o poder eco nômico imediato do bloqueio combinado e uma recusa a comerciar e a conceder empréstimos seriam sanções que nenhuma potência na terra por mais forte que fosse ousaria enfrentar Podem ser necessários cem anos até que este fim desejável seja atingido pode ser que isto jamais aconteça Mas por vezes podemos ter nossos sonhos Olho para o futuro e vejo esta união de forças pela paz e a justiça no mundo e só posso pensar mesmo que os homens ainda não possam advogálo abertamente que algum dia e em alguma época os que nos seguem poderão ver isto e saber que a paz do mundo estará garantida pelos que falam nossa língua 6 O enorme crescimento do interesse na GrãBretanha por tudo o que se relaciona com os Estados Unidos demonstra o quanto enraizada está esta ambição nos corações britânicos Do outro lado do Atlântico o quadro se delineia de forma bastante diferente Ao invés de um velho enfermo ansioso de renovar suas forças com o sangue novo de um sócio temos aqui 5 R s Baker Woodrow Wilson Life and Letters v pág 31 6 Tbe Times May 28 1935 As perspectivas de uma nova ordem internacional 299 uma jovem e inexperiente nação confiante em sua própria for ça mas ainda incerta quanto até onde esta força a levará Os Estados Unidos até a virada do século não haviam demonstra do seu desejo de reconhecimento como uma grande potência Mas não tardou para que os líderes americanos começassem a ter visões de supremacia mundial Meu sonho disse Woodrow Wilson num discurso por ocasiao do dia da independência em 1914 é o de que à medida que os anos passem e o mundo conheça cada vez mais a América ele se volte para a América devido às inspirações morais que servem como base de toda liberdade e que a América se sobressaia quando todos sou berem que ela coloca os direitos humanos acima de quaisquer outros direitos e que sua bandeira não é apenas a bandeira da América mas sim da humanidade inteira O sonho revelouse profético Em 1918 a liderança mun dial foi oferecida por consenso quase unânime aos Estados Unidos O fato de que foi então recusada não significa que não possa ser agarrada em alguma época futura Se os precedentes históricos significam algo a pax americana imposta a uma Euro pa dividida e enfraquecida seria por uma contingência de reali zação mais fácil do que a pax anglosaxonica baseada numa asso ciação igualitária dos povos de língua inglesa Mas estamos aqui no reino da especulação onde o estudante sério não pode fazer mais do que examinar suposições e possibilidades O inconveniente necessário de todas as concepções de uma ordem mundial dependente da ascendência de uma potência su perior é o de que elas basicamente envolvem o reconhecimento do direito do mais forte assumir a liderança mundial A pax ro mana foi produto do imperialismo de Roma a pax britannica do imperialismo britânico A política de boa vizinhança dos Es tados Unidos na América Latina não é a antítese mas a conti nuação e a conseqüência do imperialismo yankee pois é ape 7 R S Baker Woodrow Wilson and World 5 ettlement i pág 18 300 E H CARR nas o mais forte que pode manter sua supremacia e permanecer bom vizinho Não há nenhuma razão teórica para se recusar a outras nações o direito de aspirar à liderança mundial Quem quer que realmente deseje em seu coração a vitória da con cepção pacifista do mundo escreve Hitler em Mein Kampf deve devotarse por todos os meios à conquista do mundo pelos ale mães O ideal pacifista e humanitário provavelmente será excelente quando o homem superior a todos os outros houver primeiramente conquistado e subjugado o mundo de forma a se tornar seu único senhorY A política do Japão como o delegado da China ressaltou numa Assembléia da Liga das Nações era de estabelecer uma pax niponica no Extremo Oriente O inglês ou o americano têm o direito de resistir a tais ambições Mas eles não podem resistir a elas nos termos universais que as tornam atraentes ao alemão ou ao japonês A concepção de uma pax germanica ou de uma pax niponica ou seja de uma ordem mundial dominada por Alemanha ou Japão não foi a priori mais absurda ou presunçosa do que a concepção de uma pax britannica no reinado de Elisabeth ou de uma pax americana na época de Washington e Madison A única razão por que seria absurdo para Nicarágua ou Lituânia aspira rem a liderança mundial é a de que segundo qualquer prognós tico razoável estes países jamais serão suficientemente fortes para terem a mais leve esperança de realizar tal ambição Tentar ignorar o poder como um fator decisivo em qualquer situação política é puramente utópico Certamente não é menos utópico imaginar uma ordem internacional construída por uma coalizão de Estados cada qual se empenhando em defender e postular seus interesses próprios A nova ordem internacional só pode ser construída a partir de uma unidade de poder suficientemen te coerente e forte para manter sua ascendência sem ser 8 Hitler Mein Kampj pág 315 9 uague of Nations Eighleenlh AssembIJ pág 49 As perspectivas de uma nova ordem internacional 301 compelida a assumir partidos nas rivalidades das unidades me nores Quaisquer que sejam as questões morais envolvidas existe a questão do poder que não pode ser expresso em termos de moral A MORAL NA NOVA ORDEM INIERNAOONAL Se é contudo utópico ignorar o elemento poder é uma forma irreal de realismo o que ignora o elemento moral em qualquer ordem mundial Assim como dentro do estado todo governo embora necessite do poder como base de sua autoridade tam bém precisa da base moral do consentimento dos governados Uma ordem internacional não pode se basear apenas no poder pela simples razão de que a humanidade a longo prazo sempre se revoltará contra o poder puro Qualquer ordem internacional pressupõe uma dose substancial de consentimento geral Não obstante nos condenaremos ao desapontamento se exagerarmos o papel que a moral deve desempenhar O inevitável dualismo da política sempre manterá considerações de moral ligadas a considerações de poder Jamais atingiremos uma ordem política em que as queixas do fraco e da minoria recebam a mesma aten ção pronta do que as queixas do forte e da maioria O poder tem grande capacidade para criar a moral conveniente para si e a coerção é uma fonte frutífera de consentimento Mas após te rem sido feitas todas essas reservas permanece verdade que uma nova ordem e uma nova harmonia internacionais só podem ser construídas tendo por base uma ascendência geralmente aceita como tolerante e nãoopressiva ou pelo menos como preferí vel a qualquer alternativa praticável Criar essas condições é a tarefa moral da potência ou potências preponderantes O argu mento moral mais eficaz que poderia ser usado em favor de uma hegemonia mundial britânica ou americana mais do que uma hegemonia alemã ou japonesa era o de que a GrãBretanha e os Estados Unidos aproveitando uma longa tradição e algumas li 302 E H CARR ções duras do passado no total aprenderam com maior sucesso do que Alemanha e Japão a importância capital de sua tarefa A crença na existência do desejo de buscar o consentimento dos governados por outros métodos que não os da coerção de fato desempenhou um papel maior na administração britânica e ame ricana de territórios dominados do que na alemã ou japonesa A crença na utilidade da conciliação mesmo ao lidar com aqueles contra quem teria sido mais fácil usar a força desempenhou no passado um papel maior na política externa britânica e america na do que na alemã ou japonesa Que qualquer superioridade moral que isto possa significar seja primordialmente produto de um longo e seguro gozo de poder superior não altera o fato em bora esta consideração possa bem afetar o apelo do argumento para alemães e japoneses e expor os britânicos e americanos à acusação de farisaísmo quando estes o invocarem É contudo desprovido de utilidade discutir estes proble mas de poder e moral num cenário do século dezenove como se algum afortunado giro da roda do tempo pudesse restaurar as antigas condições e permitir a reconstituição da ordem interna cional segundo algo como as antigas linhas A real crise interna cional do mundo moderno é o colapso final e irrevogável das condições que tornaram possível a ordem do século dezenove A antiga ordem não pode ser restaurada e uma drástica mudan ça de perspectiva é inevitável Os que buscam a conciliação in ternacional podem estudar com vantagem as condições que tornaram até certo ponto bemsucedido o processo de concili ação entre as classes sociais As condições essenciais deste pro cesso foram as de que a realidade do conflito fosse reconhecida francamente e não posta de lado como uma ilusão das mentes de agitadores perversos que a hipótese fácil de uma harmonia natural de interesses que uma quantidade módica de boa von tade e bom senso seria suficiente para manter fosse relegada ao esquecimento que o que era moralmente desejável não fosse identificado com o que era economicamente vantajoso e que os As perspectivas de uma nova ordem internacional 303 interesses econômicos fossem se necessano sacrificados para resolver o conflito pela mitigação das desigualdades Nenhuma dessas condições foi ainda realizada na comunidade internacio nal Estadistas britânicos e americanos ainda falam normalmen te como se houvesse uma harmonia natural de interesses entre as nações do mundo que requer apenas boa vontade e bom sen so para sua manutenção e que está sendo deliberadamente per turbada por ditadores perversos Economistas britânicos e ame ricanos ainda presumem normalmente que o que é economicamente bom para GrãBretanha e Estados Unidos é economicamente bom para os demais países e portanto moral mente desejável Poucas pessoas ainda estão dispostas a reco nhecer que o conflito entre as nações como o conflito entre as classes não pode ser resolvido sem sacrifícios reais envolven do com toda a probabilidade uma substancial redução do con sumo dos grupos privilegiados e dos países privilegiados Pode haver outros obstáculos ao estabelecimento de uma nova ordem internacional Mas o fracasso em reconhecer o caráter funda mental do conflito e a natureza radical das medidas necessárias à sua solução é certamente um deles Por fim a melhor esperança de progresso para a concilia ção internacional parece se localizar ao longo do caminho da reconstrução econômica Na comunidade nacional a necessi dade nos levou longe e nos abandonamos à vantagem econômi ca como norma do que é desejável Em praticamente todos os países e não menos nos Estados Unidos tem sido feitos gran des investimentos de capitais nos últimos anos não pelo objeti vo econômico de auferir lucros mas pelo objetivo social de cri ar empregos Por algum tempo o preconceito dos economistas ortodoxos contra essa política foi suficientemente forte para res tringila a meiasmedidas Na Rússia Soviética tal preconceito não existia desde o princípio Nos outros estados totalitários ele rapidamente desapareceu Mas noutras partes o rearmamento e a guerra proporcionaram a primeira cura substancial para o 304 E H CARR desemprego A lição não será esquecida A repetição da crise de 193033 não será tolerada em parte alguma pela simples razão de que os trabalhadores aprenderam que o desemprego pode ser curado por um gigantesco programa economicamente não rernunerativo de gastos em armamentos e esses gastos seriam igualmente eficazes do ponto de vista do emprego se fossem dedicados a outros objetivos economicamente nãoremunera tivos como a construção de moradias gratuitas carros gratuitos ou roupas gratuitas Enquanto isso estaremos nos movendo ra pidamente em toda parte para a abolição ou restrição dos lu cros industriais Nos países totalitários isto tem sido hoje virtu almente conseguido Na GrãBretanha há muito se presume que ganhar mais do que uma taxa limitada de lucro em serviços pú blicos essenciais é imoral Este pressuposto hoje se estende à indústria de armamentos Sua extensão a outras indústrias é ape nas uma questão de tempo e será acelerada por qualquer crise A crise rearrnamentista de 1939 mesmo se houvesse passado sem guerra teria produzido em toda parte mudanças na estru tura social e industrial menos revolucionárias apenas do que as produzidas pela própria guerra E a essência desta revolução é o abandono da vantagem econômica como norma de política O emprego se tomou mais importante do que o lucro a estabilida de social mais do que o aumento do consumo e a distribuição eqüitativa da renda mais do que a produção máxima Internacionalmente esta revolução complica alguns proble mas e pode ajudar a resolver outros Na medida em que o poder dominar totalmente as relações internacionais a subordinação de qualquer outra vantagem às necessidades militares intensifi ca a crise e dá uma visão prévia do caráter totalitário da própria guerra Mas uma vez que a questão do poder esteja resolvida e a moral reassume seu papel a situação não é de desesperança Tanto internacionalmente quanto nacionalmente não podemos retornar ao mundo pré1939 tanto quanto não podemos retornar ao mundo do préguerra de 1919 A aceitação franca da subor As perspectivas de uma nova ordem internacional 305 dinação da vantagem econômica aos fins sociais e o reconheci mento de que o que é economicamente bom nem sempre é mo ralmente bom devem ser estendidos da esfera nacional à inter nacional A crescente eliminação da força motriz do lucro da economia nacional facilitaria de qualquer forma sua elimina ção parcial da política externa Após 1918 tanto o governo bri tânico quanto o americano concederam a certos países exauri dos créditos de assistência dos quais não se esperava seriamente nenhum retorno econômico Empréstimos externos com o objetivo de estimular a produção de mercadorias para ex portação têm sido um aspecto comum da política do pósguerra em muitos países Posteriores extensões desta política foram di tadas principalmente por considerações militares Mas se a crise de poder pode ser vencida não há razão para que não possa ser estendida para outros propósitos Quanto mais subsidiarmos in dústrias improdutivas por motivos políticos mais o emprego racional suplantará o lucro máximo como um objetivo da políti ca econômica quanto mais reconhecermos a necessidade de sa crificarmos as vantagens econômicas aos fins sociais menos difícil parecerá a conscientização de que estes fins sociais não se podem limitar por uma fronteira nacional e que a política britânica possa ter de levar em conta o bemestar de Lille Düsseldorf ou Lodz tanto quanto o bemestar de Oldham ou Jarrow O alargamento de nossa visão da política nacional deve ajudar a alargar nossa visão da política internacional e como foi dito num capitulo anterior não é de forma alguma certo que uma alusão direta ao motivo do sacrifício falharia sempre Isto também é uma utopia Mas se coloca mais diretamen te na linha da evolução recente do que as visões de uma federa ção mundial ou do que os projetos de uma Liga das Nações mais perfeita Estas elegantes superestruturas devem ainda es perar até que algum progresso tenha sido feito na escavação das fundações 10 Ver capítulo 9 PLEASE WEAR A MASK WHEN YOU FALL THANK YOU FOR YOUR COOPERATION ÍNDICE REMISSIVO A Acordo AngloItaliano 1938 184 Acordo de Munique 195 277 Acordo de Ottawa 167 Acton Lord 9 94133 AdamsJ T 90 129 186266 Aliança FrancoRussa 4 Allen of Hurtwood Lord 52 Anarquismo 13132268 Angellonnan19375359150 Antisemitismo 812206 Arbitragem 250 252 253 25763274 Aristóteles 127 Asquith H H 194 Attlee C R 70 Autarquia 7515762294 Autodeterminação 21294 B Bacon Francis 234 86 Bagehot W 66 Baker R 5 122125457 978 1334 299 Bakunin 131 Baldwin Lord 27136 155298 Balfour A j 49 68 101 Barth Karl 133 Bastiat 65 BBC British Broadcasting Corporation 185 Beard c 101 BeckerCarl 95 102 Beer M 19 Benes E 43 198277 Benthamj 34 35 389 5859 Berber E 230 270 Bernhardi 133291 Bismarck 96100176291 Boclin 867 Bolcheviques ver também Comunismo Internacional Comunista 245 94 95179199 Borkenau E 53 Bosanquet B 93 151208 Briand A 71 97110114 Brightj 38 198 British Council 185 Bruck Moeller van den 27 152 Bruck W E 133 152 163 Bruntz G G 176 Bryan W 45 Bryceames24 Buckle 37535988 Bukharin 25 Burocratas Burocracia 206 Burke E 59 128267 Burnet Bishop 91 Bury B 36 Butler M 50 Butler Samuel 71 C Caird93 Campanella 9 Canning 2067 CareyH 69 Catlin G E c 129196 Cavour 206 Cecil Lord 26 4551 98 102137 181 Chamberlain H 5 67 Chamberlain Neville 278 51 137 168 195211241 308 E H CARR Chicherin71 Churchill Winston 27 43 51 81 96 108131232 Clausewitz143 Clausula reb sicstantibus 23642 Cobden R 50 Cole G D H 162 Colijn77 Comissão da Palestina 82 Comunismo 119 123 130290 Comte37 Comunidade Internacional Comunidade de Nações Sociedade Internacional 46 15461621669 195199201210227 Conferência de Desarmamento 98211 212 Conferência de Especialistas Econômicos 1927 745 Conferência de Gênova 253 Conferência Econômica Mundial 1933 75 Conferência de Paz 12256467512 98101237 Confúcio 9 11 Congresso de Berlin 276 Convenções da Haia 223 249 2534 Corte Permanente de Arbitragem 259 Corte Permanente de Justiça Internacional 222244249502579 Coulanges Fustel de 93 Coulton G G 173 Croce89 Crossman R H S 40 Crowe Eyre 88 96 170 Cruttwell 276 D Darwin Darwinismo 648 214 2889 DAzeglio206 Democracia 57 123 1736 186 1956 233276 Desarmamento 26 981812 De Valera 1378 Dewey202 Dibelius 108 Dicey A v 92 100 Direito Internacional 109 192200 221266296 Direito Natural 334 115 1912258 237 Disraeli 290 DobbM92 Dostoievski678 Doutrina Monroe 254 Dreyfus2689 Drucker P288 Duguit 192224 E Economia Economia Política vertambémPoder Econômico 911 738015073025 Eden Anthony 546471114217271 Elliot W Y 162 Engels E 511241189 136 151267 Estóicos 33 Ética ver Moralidade F Fascismo 34 114 130 174 1823 186 288 Fichte160 FischerWilliamsJ42 Fisher H A L 90 Força Policial Internacional 41 277 Ford Henry 60 Fourier 11 Frederico o Grande 120 Freeman93 309 Índice Remisso Freud S 111 G Gierke 230 Ginsberg M 8 Gladstone 38 210 238 269 Goebbels 114200 Gooch G P96 238 Green1 H 63 93 208 Grotius 225 Guilherme II 191 Guyot Yves 66 H HalévyE 92 111 150 Hall192 Hamilton A 129 1589 161 Hardinge Lord 238 Harmonia de Interesses 5789 10541 215628892912296 Harrison Frederic 136 Hawtry R G 143 146 Hegel 17 65 8990 93 118 197232 Henderson Arthur 76 Higgins Pearce 192 Hindenburg71 Hitler 7111011311920143151 173186719920021342402 269300 Hoare Samuel 191 194 Hobbes 8687 191 197228 Hobhouse L T 8 93 215 Hobson C K 166 Hobson J A 92 Hoffman 178 Hook Sidney 5 Hoover H 204 House Edward 137 198 Hsuntse 232 Hudson G E 169 Hughes c 89 H ull Cordell 51 Hume D 172 Hurtwood Lord 52 Huxley T H 68 I Idade Média Medieval 8 33 132 149 157173179292295 Igualdade 1892092132901 Intelectuais vertambémRacionalismo 203 256 27 Internacionalismo 1115200 Internacional Comunista 143 179 181 1823 J James w 18 Jameson Raid 81 239 Jefferson 129 Joffre71 Julgamento MetroVickers 168 Jung 18 K Kamenev 25 86 Kant 536 Keynes J M 60 Kitchener Lord 71 Kjellen88 Krabbe 224 237 L sserfaire 103957707348092 9910671503158184291 Lamartine236 Langer W16798 Laski H 87 119 128229255 Lasswell H 176 LaudW 229 310 E H CARR Lauterpacht H 545 235 252 2623 265270272 Laval 191 nin222457189 122 135 178229 liang Chinchao 232 liberalismo 389 83136150185215 269 liga das Nações 18232641502 7489597110113120131 13671421461804198204212 25860271278 Linton 128 List E 64 159 161 Litvinov M 1892534 Lloyd George D 47 2767 Locke J 129 Lugard Lord 142 Lukacs90 Lutero 132 M Maquiavel 24856 118 120 122 147 197 MacIver5 MadariagaSde209278 Madison 300 Malkin98 Mandatos 142295 Mannheim K 22 62 Marinkovitch 767 MarleyLord 113 Marshall A 123 Martin T 112 Marx K 6 7 66 89 91 92 11822 136163174229267290292 Matsuoka71 Maxton J 133 Mayer P40 Mazzini 634 McKinley 103 148 McTaggart 93 Manning C A w 270 271277 Meinecke21 115 Mercantilismo 149157 Michon P4 MillJames 35 Mill S38 62 69 Miller D H 48 52 137237251 Mirsky D S 25 MitteIEuropa 294 Montesquieu 225 Moralidade Ética 289 335 578 678 8396710451273416872 1882182258232324282556 26782702804287903015 More Thomas 9128 Murray Gilbert 254267 Mussolini 71111122161182191 200291 N Nacionalismo 62 65 1123 2946 NamierLB12 Napoleão 133 1801 Naumann F242934 Nicolau II 71 Niebuhr R 110 119 132 134205206 210 NovicowJ66 o Opinião Pública 35 38 449 172188 Owen Robert 10 p Pada suntseruanda 235 237 240 Pacto AntiComintern 113 183 Pacto FrancoSoviético43 242 Pacto KelloggBriand 412 223 Pacto da Ligadas Nações 41 48 113 311 Índice Remisso 137198212222249512578 2789 Artigo 10 41 Artigo 11 278 Artigo 13250 Artigo 15278 Artigo 16 vertambém Sanções 113 155222244 Artigo 192692702752789 Page W H 298 Paine Thornas 128 Palrnerston Lord 194254 Parnell Charles 196 Partido Nacional Socialista Nazismo 27 86104114133200 Pearson Karl 67 PethickLawrence Mrs 269 Plano HoareLaval 191 194 Platão 911 Poder Econômico 148171 Poder Militar 143148 Poder sobre a Opinião 172188 Poincaré139 Pound Roscoe 255 Príncipe Consorte 112 Pringle H E 103 109 Protocolo de Genebra 423 25862 R Racionalismo 334 4045783 Radek25 Rappard w 142 Reade Winwood 68 Realismo 1315851151181232289 296301 Refugiados 83 200 Relativismo 904 Renner K 245 República de Weimar 130 Rhodes Cecil 81 101 297 Robbins L 10 Romilly63 Roosevelt E 50 198 204 Roosevelt T 103 109237239 Rose Holland 206 Rosebery Lord 133 Rousseau 33 129 228 Rueffj5 RussellBenIand 43 72 91 94 143268 S Sabine Cw 54 86 SaintPerreAbbé de 112 SaintSimon 10 Salisbury Lord 254 Sanções 42 138 1481545161 Schacht H 80 Schiller90 Schopenhauer121 Schuman E L 156 Schuschnigg 129 Schwarzenberger G200 Segurança Coletiva 13421114 Seidmanj274 Seymout c 46 137 198 Sforza Conde 103 Shaw G B 102 264 Siebert B de 169 Simon John 49 Simpson j Hope 83 Sionismo 82 181 Smith Adam 1016016466158 Soberania 2956 Sociedade Nova Cornomwealth 261 Sófocles 33 SoreI io 17 180 Spencer H 66 Spengler O 889 Spinoza867197207224 StaleyEugene 163 312 E H CARR Stalin 25 137 Stammler226 Statlisquo 7121121368190236 2478268278283289 Stead W T 101 Stimson H 50 StracheyJohn269 Streit c 112 Stresonann155243 Stubbs93 Sullyl12 Sun Yatsen 111 Suprema Corte dos Estados Unidos 255 Sverdlov 25 T TaW444750 164 Taracouzio254 Telegrama Kruger 93 Temperley H 26 88 96 161 Tennyson 112 Totalitarismo 1735 184288304 ToynbeeA 43 534 86102 104 109 191242 Tratado AngloIrlandês 282 Tratado de BrestLitovsk 201243 Tratado de Garantia da Bélgica 1839 1934237 Tratado de Lausanne 276 Tratado de Locamo 13940201242 243251 Tratado de Neully 154 Tratado de San Stefano 279 Tratado Naval de Washington 298 Tratado de Versailles 130200241 2436 Treitschke 67 1178 Trotsky Trotskismo 25 181 U União para o Controle Democrático 25 União para a Liga das Nações 51 98204 Utilitarismo 389 Utopia 7131729339503579 11451172012813618992 25782735300305 W Walewski Conde 96 100 Walpole R 133 Walz235 WasonC300 WattJames61 Webster Daniel 269 Wel1esS 51 Willcinson Spencer 71 101 Wilson Woodro 12 21 25 507 38 97810341141811982145237 2942989 Wolf c 202 Woodward E 206 V Venize1es90 Vyshinsky 86 Z Zee1and van 756 153 Zimmern A 49 53 54 59 156217 202217230266 Zinoviev 86