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Direito Penal
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MICHEL FOUCAULT VIGIAR E PUNIR 27ª EDIÇÃO EDITORA VOZES FICHA CATALOGRÁFICA Preparada pelo Centro de Catalogaçãonafonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ Foucault Michel F86v Vigiar e punir nascimento da prisão tradução de Raquel Ramalhete Petrópolis Vozes 1987 288p Do original em francês Surveiller et punir Bibliografia Direito penal História 2 Prisões História I Título 770328 CDU 3438091 343091 MICHEL FOUCAULT VIGIAR E PUNIR NASCIMENTO DA PRISÃO Tradução de Raquel Ramalhete 20a Edição Petrópolis 1999 Editions Gallimard 1975 Título do original francês Surveiller et punir Direitos de publicação em língua portuguesa no Brasil Editora Vozes Ltda Rua Frei Luís 100 25689900 Petrópolis RJ Internet httpwwwvozescombr Brasil Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma eou quaisquer meios eletrônico ou mecânico incluindo fotocópia e gravação ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora Apresentação gráfica reformulada a partir da 16a edição em 1997 FICHA TÉCNICA DA VOZES GERENTE EDITORIAL Avelino Grassi EDITOR Lídio Peretti Edgar Orth GERENTE INDUSTRIAL José Luiz Castro EDITOR DE ARTE Omar Santos EDITORAÇÃO Revisão gráfica Revitec SC Paginação Sheila Roque Supervisão gráfica Valderes e Monique Rodrigues ISBN 8532605087 Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda Rua Frei Luís 100 Petrópolis RJ Brasil CEP 25689900 Tel 024 2375112 Fax 024 2314676 Caixa Postal 90023 SUMÁRIO Primeira Parte SUPLÍCIO CAP I O CORPO DOS CONDENADOS CAP II A OSTENTAÇÃO DOS SUPLÍCIOS NOTAS Segunda Parte PUNIÇÃO CAP I A PUNIÇÃO GENERALIZADA CAP II A MITIGAÇÃO DAS PENAS NOTAS Terceira Parte DISCIPLINA CAP I OS CORPOS DÓCEIS A arte das distribuições O controle da atividade A organização das gêneses A composição das forças CAP II OS RECURSOS PARA O BOM ADESTRAMENTO A vigilância hierárquica A sanção normalizadora O exame CAP III O PANOPTISMO NOTAS Quarta Parte PRISÃO CAP I INSTITUIÇÕES COMPLETAS E AUSTERAS CAP II ILEGALIDADE E DELINQÜÊNCIA CAP III O CARCERÁRIO NOTAS Primeira Parte SUPLÍCIO CAPÍTULO I O CORPO DOS CONDENADOS Damiens fora condenado a 2 de março de 1757 a pedir perdão publicamente diante da poria principal da Igreja de Paris aonde devia ser levado e acompanhado numa carroça nu de camisola carregando uma tocha de cera acesa de duas libras em seguida na dita carroça na praça de Greve e sobre um patíbulo que aí será erguido atenazado nos mamilos braços coxas e barrigas das pernas sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio queimada com fogo de enxofre e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido óleo fervente piche em fogo cera e enxofre derretidos conjuntamente e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo reduzidos a cinzas e suas cinzas lançadas ao vento1 Finalmente foi esquartejado relata a Gazette dAmsterdam2 Essa última operação foi muito longa porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração de modo que em vez de quatro foi preciso colocar seis e como isso não bastasse foi necessário para desmembrar as coxas do infeliz cortarlhe os nervos e retalharlhe as juntas Afirmase que embora ele sempre tivesse sido um grande praguejador nenhuma blasfêmia lhe escapou dos lábios apenas as dores excessivas faziamno dar gritos horríveis e muitas vezes repetia Meu Deus tende piedade de mim Jesus socorreime Os espectadores ficaram todos edificados com a solicitude do cura de SaintPaul que a despeito de sua idade avançada não perdia nenhum momento para consolar o paciente O comissário de polícia Bouton relata Acendeuse o enxofre mas o fogo era tão fraco que a pele das costas da mão mal e mal sofreu Depois um executor de mangas arregaçadas acima dos cotovelos tomou umas tenazes de aço preparadas ad hoc medindo cerca de um pé e meio de comprimento atenazoulhe primeiro a barriga da perna direita depois a coxa daí passando às duas partes da barriga do braço direito em seguida os mamilos Este executor ainda que forte e robusto teve grande dificuldade em arrancar os pedaços de carne que tirava em suas tenazes duas ou três vezes do mesmo lado ao torcer e o que ele arrancava formava em cada parte uma chaga do tamanho de um escudo de seis libras Depois desses suplícios Damiens que gritava muito sem contudo blasfemar levantava a cabeça e se olhava o mesmo carrasco tirou com uma colher de ferro do caldeirão daquela droga fervente e derramoua fartamente sobre cada ferida Em seguida com cordas menores se ataram as cordas destinadas a atrelar os cavalos sendo estes atrelados a seguir a cada membro ao longo das coxas das pernas e dos braços O senhor Le Breton escrivão aproximouse diversas vezes do paciente para lhe perguntar se tinha algo a dizer Disse que não nem é preciso dizer que ele gritava com cada tortura da forma como costumamos ver representados os condenados Perdão meu Deus Perdão Senhor Apesar de todos esses sofrimentos referidos acima ele levantava de vez em quando a cabeça e se olhava com destemor As cordas tão apertadas pelos homens que puxavam as extremidades faziamno sofrer dores inexprimíveis O senhor Le Breton aproximouse outra vez dele e perguntoulhe se não queria dizer nada disse que não Achegaramse vários confessores e lhe falaram demoradamente beijava conformado o crucifixo que lhe apresentavam estendia os lábios e dizia sempre Perdão Senhor Os cavalos deram uma arrancada puxando cada qual um membro em linha reta cada cavalo segurado por um carrasco Um quarto de hora mais tarde a mesma cerimônia e enfim após várias tentativas foi necessário fazer os cavalos puxar da seguinte forma os do braço direito à cabeça os das coxas voltando para o lado dos braços fazendolhe romper os braços nas juntas Esses arrancos foram repetidos várias vezes sem resultado Ele levantava a cabeça e se olhava Foi necessário colocar dois cavalos diante das atrelados às coxas totalizando seis cavalos Mas sem resultado algum Enfim o carrasco Samson foi dizer ao senhor Le Breton que não havia meio nem esperança de se conseguir e lhe disse que perguntasse às autoridades se desejavam que ele fosse coitado em pedaços O senhor Le Breton de volta da cidade deu ordem que se fizessem novos esforços o que foi feito mas os cavalos empacaram e um dos atrelados às coxas caiu na laje Tendo voltado os confessores falaramlhe outra vez Dizialhes ele ouvio falar Beijemme reverendos O senhor cura de SaintPaul não teve coragem mas o de Marsilly passou por baixo da corda do braço esquerdo e beijouo na testa Os carrascos se reuniram e Damiens dizialhes que não blasfemassem que cumprissem seu oficio pois não lhes queria mal por isso rogavalhes que orassem a Deus por ele e recomendava ao cura de SaintPaul que rezasse por ele na primeira missa Depois de duas ou três tentativas o carrasco Samson e o que lhe havia atenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas na junção com o tronco do corpo os quatro cavalos colocando toda força levaramlhe as duas coxas de arrasto isto é a do lado direito por primeiro e depois a outra a seguir fizeram o mesmo com os braços com as espáduas e axilas e as quatro partes foi preciso cortar as carnes até quase aos ossos os cavalos puxando com toda força arrebataramlhe o braço direito primeiro e depois o outro Uma vez retiradas essas quatro partes desceram os confessores para lhe falar mas o carrasco informoulhes que ele estava morto embora na verdade eu visse que o homem se agitava mexendo o maxilar inferior como se falasse Um dos carrascos chegou mesmo a dizer pouco depois que assim que eles levantaram o tronco para o lançar na fogueira ele ainda estava vivo Os quatro membros uma vez soltos das cordas dos cavalos foram lançados numa fogueira preparada no local sito em linha reta do patíbulo depois o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos de lenha e se pôs fogo à palha ajuntada a essa lenha Em cumprimento da sentença tudo foi reduzido a cinzas O último pedaço encontrado nas brasas só acabou de se consumir às dez e meia da noite Os pedaços de carne e o tronco permaneceram cerca de quatro horas ardendo Os oficiais entre os quais me encontrava eu e meu filho com alguns arqueiros formados em destacamento permanecemos no local até mais ou menos onze horas Alguns pretendem tirar conclusões do lato de um cão se haver deitado no dia seguinte no lugar onde fora levantada a fogueira voltando cada vez que era enxotado Mas não é difícil compreender que esse animal achasse o lugar mais quente do que outro3 Três décadas mais tarde eis o regulamento redigido por Léon Faucher para a Casa dos jovens detentos em Paris4 Art 17 O dia dos detentos começará às seis horas da manhã no inverno às cinco horas no verão O trabalho há de durar nove horas por dia em qualquer estação Duas horas por dia serão consagradas ao ensino O trabalho e o dia terminarão às nove horas no inverno às oito horas no verão Art 18 Levantar Ao primeiro rufar de tambor os detentos devem levantarse e vestirse em silêncio enquanto o vigia abre as portas das celas Ao segundo rufar devem estar de pé e fazer a cama Ao terceiro põemse em fila por ordem para irem ã capela fazer a oração da manhã Há cinco minutos de intervalo entre cada rufar Art 19 A oração é feita pelo capelão e seguida de uma leitura moral ou religiosa Esse exercício não deve durar mais de meia hora Art 20 Trabalho Às cinco e quarenta e cinco no verão às seis e quarenta e cinco no inverno os detentos descem para o pátio onde devem lavar as mãos e o rosto e receber uma primeira distribuição de pão Logo em seguida formamse por oficinas e vão ao trabalho que deve começar às seis horas no verão e às sete horas no inverno Art 21 Refeições Às dez horas os detentos deixam o trabalho para se dirigirem ao refeitório lavam as mãos nos pátios e formam por divisão Depois do almoço recreio até às dez e quarenta Art 22 Escola Às dez e quarenta ao rufar do tambor formamse as filas e todos entram na escola por divisões A aula dura duas horas empregadas alternativamente na leitura no desenho linear e no cálculo Art 23 Às doze e quarenta os detentos deixam a escola por divisões e se dirigem aos seus pátios para o recreio Às doze e cinqüenta e cinco ao rufar do tambor entram em forma por oficinas Art 24 À uma hora os detentos devem estar nas oficinas o trabalho vai até às quatro horas Art 25 Às quatro horas todos deixam as oficinas e vão aos pátios onde os detentos lavam as mãos e formam por divisões para o refeitório Art 26 O jantar e o recreio que segue vão até às cinco horas neste momento os detentos voltam às oficinas Art 27 Às sete horas no verão às oito horas no inverno termina o trabalho faz se uma última distribuição de pão nas oficinas Uma leitura de um quarto de hora tendo por objeto algumas noções instrutivas ou algum fato comovente é feita por um detento ou algum vigia seguida pela oração da noite Art 28 Às sete e meia no verão às oito e meia no inverno devem os detentos estar nas celas depois de lavarem as mãos e feita a inspeção das vestes nos pátios ao primeiro rufar de tambor despirse e ao segundo deitarse na cama Fechamse as portas das celas e os vigias fazem a ronda nos corredores para verificarem a ordem e o silêncio Apresentamos exemplo de suplício e de utilização do tempo Eles não sancionam os mesmos crimes não punem o mesmo gênero de delinqüentes Mas definem bem cada um deles um certo estilo penal Menos de um século medeia entre ambos É a época em que foi redistribuída na Europa e nos Estados Unidos toda a economia do castigo Época de grandes escândalos para a justiça tradicional época dos inúmeros projetos de reformas nova teoria da lei e do crime nova justificação moral ou política do direito de punir abolição das antigas ordenanças supressão dos costumes projeto ou redação de códigos modernos Rússia 1769 Prússia 1780 Pensilvânia e Toscana 1786 Áustria 1788 França 1791 Ano IV 1808 e 1810 Para a justiça penal uma era nova Dentre tantas modificações atenhome a uma o desaparecimento dos suplícios Hoje existe a tendência a desconsiderálo talvez em seu tempo tal desaparecimento tenha sido visto com muita superficialidade ou com exagerada ênfase como humanização que autorizava a não analisálo De qualquer forma qual é sua importância comparandoo às grandes transformações institucionais com códigos explícitos e gerais com regras unificadas de procedimento o júri adotado quase em toda parte a definição do caráter essencialmente corretivo da pena e essa tendência que se vem acentuando sempre mais desde o século XIX a modular os castigos segundo os indivíduos culpados Punições menos diretamente físicas uma certa discrição na arte de fazer sofrer um arranjo de sofrimentos mais sutis mais velados e despojados de ostentação merecerá tudo isso acaso um tratamento à parte sendo apenas o efeito sem dúvida de novos arranjos com maior profundidade No entanto um fato é certo em algumas dezenas de anos desapareceu o corpo supliciado esquartejado amputado marcado simbolicamente no rosto ou no ombro exposto vivo ou morto dado como espetáculo Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal No fim do século XVIII e começo do XIX a despeito de algumas grandes fogueiras a melancólica festa de punição vaise extinguindo Nessa transformação misturaramse dois processos Não tiveram nem a mesma cronologia nem as mesmas razões de ser De um lado a supressão do espetáculo punitivo O cerimonial da pena vai sendo obliterado e passa a ser apenas um novo ato de procedimento ou de administração A confissão pública dos crimes tinha sido abolida na França pela primeira vez em 1791 depois novamente em 1830 após ter sido restabelecida por breve tempo o pelourinho foi supresso em 1789 a Inglaterra aboliuo em 1837 As obras públicas que a Áustria a Suíça e algumas províncias americanas como a Pensilvânia obrigavam a fazer em plena rua ou nas estradas condenados com coleiras de ferro em vestes multicores grilhetas nos pés trocando com o povo desafios injúrias zombarias pancadas sinais de rancor ou de cumplicidade5 são eliminados mais ou menos em toda parte no fim do século XVIII ou na primeira metade do século XIX O suplício de exposição do condenado foi mantido na França até 1831 apesar das críticas violentas cena repugnante dizia Real6 ela é finalmente abolida em abril de 1848 Quanto às cadeias que arrastavam os condenados a serviços forçados através de toda a França até Brest e Toulon foram substituídas em 1837 por decentes carruagens celulares pintadas de preto A punição pouco a pouco deixou de ser uma cena E tudo o que pudesse implicar de espetáculo desde então terá um cunho negativo e como as funções da cerimônia penal deixavam pouco a pouco de ser compreendidas ficou a suspeita de que tal rito que dava um fecho ao crime mantinha com ele afinidades espúrias igualandoo ou mesmo ultrapassandoo em selvageria acostumando os espectadores a uma ferocidade de que todos queriam vêlos afastados mostrandolhes a freqüência dos crimes fazendo o carrasco se parecer com criminoso os juizes aos assassinos invertendo no último momento os papéis fazendo do supliciado um objeto de piedade e de admiração Beccaria há muito dissera O assassinato que nos é apresentado como um crime horrível vemolo sendo cometido friamente sem remorsos7 A execução pública é vista então como uma fornalha em que se acende a violência A punição vaise tornando pois a parte mais velada do processo penal provocando várias conseqüências deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata sua eficácia é atribuída à sua fatalidade não à sua intensidade visível a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens Por essa razão a justiça não mais assume publicamente a parte de violência que está ligada a seu exercício O fato de ela matar ou ferir já não é mais a glorificação de sua força mas um elemento intrínseco a ela que ela é obrigada a tolerar e muito lhe custa ter que impor As caracterizações da infâmia são redistribuídas no castigoespetáculo um horror confuso nascia do patíbulo ele envolvia ao mesmo tempo o carrasco e o condenado e se por um lado sempre estava a ponto de transformar em piedade ou em glória a vergonha infligida ao supliciado por outro lado ele fazia redundar geralmente em infâmia a violência legal do executor Desde então o escândalo e a luz serão partilhados de outra forma é a própria condenação que marcará o delinqüente com sinal negativo e unívoco publicidade portanto dos debates e da sentença quanto à execução ela é como uma vergonha suplementar que a justiça tem vergonha de impor ao condenado ela guarda distância tendendo sempre a confiála a outros e sob a marca do sigilo É indecoroso ser passível de punição mas pouco glorioso punir Daí esse duplo sistema de proteção que a justiça estabeleceu entre ela e o castigo que ela impõe A execução da pena vaise tornando um setor autônomo em que um mecanismo administrativo desonera a justiça que se livra desse secreto malestar por um enterramento burocrático da pena É um caso típico na França que a administração das prisões por muito tempo ficou sob a dependência do ministério do Interior e a dos trabalhos forçados sob o controle da Marinha e das Colônias E acima dessa distribuição dos papéis se realiza a negação teórica o essencial da pena que nós juizes infligimos não creiais que consista em punir o essencial é procurar corrigir reeducar curar uma técnica de aperfeiçoamento recalca na pena a estrita expiação do mal e liberta os magistrados do vil ofício de castigadores Existe na justiça moderna e entre aqueles que a distribuem uma vergonha de punir que nem sempre exclui o zelo ela aumenta constantemente sobre esta chaga pululam os psicólogos e o pequeno funcionário da ortopedia moral O desaparecimento dos suplícios é pois o espetáculo que se elimina mas é também o domínio sobre o corpo que se extingue Em 1787 dizia Rush Só posso esperar que não esteja longe o tempo em que as forças o pelourinho o patíbulo o chicote a roda serão considerados na história dos suplícios como as marcas da barbárie dos séculos e dos países e como as provas da fraca influência da razão e da religião sobre o espírito humano8 Efetivamente Van Meenen ao abrir sessenta anos mais tarde o segundo congresso penitenciário em Bruxelas lembrava o tempo de sua infância como uma época passada Vi o solo semeado de rodas de forcas de patíbulos de pelourinhos vi esqueletos horrendamente estendidos sobre rodas9 A marca a ferro quente foi abolida na Inglaterra 1834 e na França 1832 o grande suplício dos traidores já a Inglaterra não ousava aplicálo plenamente em 1820 Thistlewood não foi esquartejado Unicamente o chicote ainda permanecia em alguns sistemas penais Rússia Inglaterra Prússia Mas de modo geral as práticas punitivas se tornaram pudicas Não tocar mais no corpo ou o mínimo possível e para atingir nele algo que não é o corpo propriamente Dirseá a prisão a reclusão os trabalhos forçados a servidão de forçados a interdição de domicílio a deportação que parte tão importante tiveram nos sistemas penais modernos são penas físicas com exceção da multa se referem diretamente ao corpo Mas a relação castigocorpo não é idêntica ao que ela era nos suplícios O corpo encontra se aí em posição de instrumento ou de intermediário qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem Segundo essa penalidade o corpo é colocado num sistema de coação e de privação de obrigações e de interdições O sofrimento físico a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis tal se fará à distância propriamente segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais elevado Por efeito dessa nova retenção um exército inteiro de técnicos veio substituir o carrasco anatomista imediato do sofrimento os guardas os médicos os capelães os psiquiatras os psicólogos os educadores por sua simples presença ao lado do condenado eles cantam à justiça o louvor de que ela precisa eles lhe garantem que o corpo e a dor não são os objetos últimos de sua ação punitiva É preciso refletir no seguinte um médico hoje deve cuidar dos condenados à morte até ao último instante justapondose destarte como chefe do bemestar como agente de nãosofrimento aos funcionários que por sua vez estão encarregados de eliminar a vida Ao se aproximar o momento da execução aplicamse aos pacientes injeções de tranqüilizantes Utopia do pudor judiciário tirar a vida evitando de deixar que o condenado sinta o mal privar de todos os direitos sem fazer sofrer impor penas isentas de dor O emprego da psicofarmacologia e de diversos desligadores fisiológicos ainda que provisório corresponde perfeitamente ao sentido dessa penalidade incorpórea Os rituais modernos da execução capital dão testemunho desse duplo processo supressão do espetáculo anulação da dor Um mesmo movimento arrastou cada qual com seu ritmo próprio as legislações européias para todos uma mesma morte sem que ela tenha que ostentar a marca específica do crime ou o estatuto social do criminoso morte que dura apenas um instante e nenhum furor há de multiplicála antecipadamente ou prolongála sobre o cadáver uma execução que atinja a vida mais do que o corpo Não mais aqueles longos processos em que a morte é ao mesmo tempo retardada por interrupções calculadas e multiplicada por uma série de ataques sucessivos Não mais aquelas combinações que eram levadas a espetáculo para matar os regicidas ou como aquela com que sonhava no começo do século XVIII o autor de Hanging not Punishment Enough10 e que teria permitido arrebentar um condenado sobre a roda depois açoitálo até a perda dos sentidos em seguida suspendêlo com correntes antes de deixálo morrer lentamente de fome Não mais aqueles suplícios em que o condenado era arrastado sobre uma grade para evitar que a cabeça arrebentasse contra o pavimento seu ventre aberto as entranhas arrancadas às pressas para que ele tivesse tempo de as ver com seus próprios olhos ser lançadas ao fogo em que era decapitado enfim e seu corpo dividido em postas11 A redução dessas mil mortes à estrita execução capital define uma moral bem nova própria do ato de punir Já em 1760 se havia tentado na Inglaterra por ocasião da execução de Lord Ferrer uma máquina de enforcamento um suporte que se escamoteava por baixo dos pés do condenado devia evitar as lentas agonias e as altercações ocasionadas entre a vítima e o verdugo Foi aperfeiçoada e adotada definitivamente em 1783 no ano em que se suprimiu o cortejo de Newgate em Tyburn e se aproveitou a reconstrução da prisão depois dos Gordon Riots para se instalar os patíbulos em Newgate mesmo12 O famoso artigo 3o do código francês de 1791 todo condenado à morte terá a cabeça decepada tem estas três significações uma morte igual para todos Os delitos do mesmo gênero serão punidos pelo mesmo gênero de pena quaisquer que sejam a classe ou condição do culpado dizia já a moção votada por proposta de Guillotin a 1o de dezembro de 1789 uma só morte por condenado obtida de uma só vez e sem recorrer a esses suplícios longos e conseqüentemente cruéis como a forca denunciada por Le Peletier enfim o castigo unicamente para o condenado pois a decapitação pena dos nobres é a menos infamante para a família do criminoso13 A guilhotina utilizada a partir de março de 1792 é a mecânica adequada a tais princípios A morte é então reduzida a um acontecimento visível mas instantâneo Entre a lei ou aqueles que a executam e o corpo do criminoso o contacto é reduzido à duração de um raio Já não ocorrem as afrontas físicas o carrasco só tem que se comportar como um relojoeiro meticuloso A experiência e a razão demonstram que o modo em uso no passado para decepar a cabeça de um criminoso leva a um suplício mais horrendo que a simples privação da vida que é a intenção formal da lei para que a execução seja feita num só instante e de uma só vez os exemplos provam como é difícil chegar a este ponto É preciso necessariamente para a certeza do processo que ele dependa de meios mecânicos invariáveis cuja força e efeito possam ser igualmente determinados É fácil fazer construir semelhante máquina de efeito infalível a decapitação será feita num instante de acordo com a nova lei Tal aparelho embora necessário não causaria nenhuma sensação e mal seria percebido14 Quase sem tocar o corpo a guilhotina suprime a vida tal como a prisão suprime a liberdade ou uma multa tira os bens Ela aplica a lei não tanto a um corpo real e susceptível de dor quanto a um sujeito jurídico detentor entre outros direitos do de existir Ela devia ter a abstração da própria lei Sem dúvida algo dos suplícios prevaleceu por algum tempo na França à sobriedade das execuções Os parricidas e os regicidas a eles assemelhados eram conduzidos ao cadafalso cobertos por um véu negro onde até 1832 lhes cortavam a mão Assim restou apenas o ornamento do crepe tal como aconteceu para Fieschi em novembro de 1836 Será conduzido ao lugar da execução em camisão pés descalços e com a cabeça coberta por um véu negro será exposto em um cadafalso enquanto o meirinho levará para o povo a sentença condenatória e imediatamente executado Devemos lembrarnos de Damiens e comparar que o derradeiro implemento à morte penal foi o crepe O condenado não deve mais ser visto Só a leitura da sentença punitiva mostra um crime que não deve ter rosto15 O último vestígio dos grandes espetáculos de execução é sua própria anulação um pano para esconder um corpo Exemplo disto foi a execução de Benoît três vezes criminoso matador da mãe homossexual homicida o primeiro parricida cujas mãos a lei não cortou Enquanto era feita a leitura da sentença de condenação estava de pé no cadafalso sustentado pelos carrascos Era horrível aquele espetáculo envolto em grande mortalha a cabeça coberta por um crepe o parricida estava fora do alcance dos olhares da silenciosa multidão E sob aquelas vestes misteriosas e lúgubres a vida só continuava a manifestar se através dos gritos horrorosos que se extinguiram logo sob o facão16 Desaparece destarte em princípios do século XIX o grande espetáculo da punição física o corpo supliciado é escamoteado excluise do castigo a encenação da dor Penetramos na época da sobriedade punitiva Podemos considerar o desaparecimento dos suplícios como um objetivo mais ou menos alcançado no período compreendido entre 1830 e 1848 Claro tal afirmação em termos globais deve ser bem entendida Primeiro as transformações não se fazem em conjunto nem de acordo com um único processo Houve atrasos Paradoxalmente a Inglaterra foi um dos países mais reacionários ao cancelamento dos suplícios talvez por causa da função de modelo que a instituição do júri o processo público e o respeito ao habeascorpus haviam dado à sua justiça criminal principalmente sem dúvida porque ela não quis diminuir o rigor de suas leis penais no decorrer dos grandes distúrbios sociais do período 17801820 Por muito tempo Romilly Mackintosh e Fowell Buston não conseguiram atenuar a multiplicidade e o rigor das penas previstas na lei inglesa esta terrível carnificina dizia Rossi Sua severidade ao menos nas penas previstas uma vez que sua aplicação se afrouxava à proporção que a lei parecia excessiva aos olhos dos júris havia aumentado pois em 1760 Blackstone constatara a existência de cento e sessenta crimes capitais na legislação inglesa que somavam duzentos e vinte e três em 1819 Devemos levar em consideração também as acelerações e recuos que o processo global seguiu entre 1760 e 1840 a rapidez da reforma em certos países como a Áustria a Rússia os Estados Unidos a França no momento da Constituinte depois o refluxo da Contra Revolução na Europa e o grande temor social de 1820 a 1848 as modificações mais ou menos temporárias ocasionadas pelos tribunais ou pelas leis de exceção a distorção entre a teoria da lei e a prática dos tribunais longe de refletir o espírito da legislação Tudo isto torna bem irregular o processo evolutivo que se desenvolveu na virada do século XVIII ao XIX A isto tudo acresce que embora se tenha alcançado o essencial da trans mutação por volta de 1840 embora os mecanismos punitivos tenham adotado novo tipo de funcionamento o processo assim mesmo está longe de ter chegado ao fim A redução do suplício é uma tendência com raízes na grande transformação de 1760 1840 mas que não chegou ao termo E podemos dizer que a prática da tortura se fixou por muito tempo e ainda continua no sistema penal francês A guilhotina a máquina das mortes rápidas e discretas marcou na França nova ética da morte legal Mas a Revolução logo a revestiu de um grandioso rito teatral Durante anos deu espetáculos Foi necessário deslocála para a barreira de Saint Jacques substituir a carroça por uma carruagem fechada empurrar rapidamente o condenado do furgão para o estrado organizar execuções apressadas e em horas tardias finalmente colocála no interior das prisões e tornála inacessível ao público depois da execução de Weidmann em 1939 bloquear as ruas que davam acesso à prisão onde estava oculto o cadafalso e onde a execução se passava em segredo execuções de Buffet e Bontemps em Santé em 1972 processar as testemunhas que relatavam o ocorrido para que a execução deixasse de ser um espetáculo e permanecesse um estranho segredo entre a justiça e o condenado Basta evocar tantas precauções para verificarse que a morte penal permanece hoje ainda uma cena que com inteira justiça é preciso proibir O poder sobre o corpo por outro lado tampouco deixou de existir totalmente até meados do século XIX Sem dúvida a pena não mais se centralizava no suplício como técnica de sofrimento tomou como objeto a perda de um bem ou de um direito Porém castigos como trabalhos forçados ou prisão privação pura e simples da liberdade nunca funcionaram sem certos complementos punitivos referentes ao corpo redução alimentar privação sexual expiação física masmorra Conseqüências não tencionadas mas inevitáveis da própria prisão Na realidade a prisão nos seus dispositivos mais explícitos sempre aplicou certas medidas de sofrimento físico A crítica ao sistema penitenciário na primeira metade do século XIX a prisão não é bastante punitiva em suma os detentos têm menos fome menos frio e privações que muitos pobres ou operários indica um postulado que jamais foi efetivamente levantado é justo que o condenado sofra mais que os outros homens A pena se dissocia totalmente de um complemento de dor física Que seria então um castigo incorporai Permanece por conseguinte um fundo supliciante nos modernos mecanismos da justiça criminal fundo que não está inteiramente sob controle mas envolvido cada vez mais amplamente por uma penalidade do incorporai O afrouxamento da severidade penal no decorrer dos últimos séculos é um fenômeno bem conhecido dos historiadores do direito Entretanto foi visto durante muito tempo de forma geral como se fosse fenômeno quantitativo menos sofrimento mais suavidade mais respeito e humanidade Na verdade tais modificações se fazem concomitantes ao deslocamento do objeto da ação punitiva Redução de intensidade Talvez Mudança de objetivo certamente Se não é mais ao corpo que se dirige a punição em suas formas mais duras sobre o que então se exerce A resposta dos teóricos daqueles que abriram por volta de 1780 o período que ainda não se encerrou é simples quase evidente Dirseia inscrita na própria indagação Pois não é mais o corpo é a alma À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue profundamente sobre o coração o intelecto a vontade as disposições Mably formulou o princípio decisivo Que o castigo se assim posso exprimir fira mais a alma do que o corpo17 Momento importante O corpo e o sangue velhos partidários do fausto punitivo são substituídos Novo personagem entra em cena mascarado Terminada uma tragédia começa a comédia com sombrias silhuetas vozes sem rosto entidades impalpáveis O aparato da justiça punitiva tem que aterse agora a esta nova realidade realidade incorpórea Pura informação teórica repelida pela prática penal Seria superficialidade afirmálo A verdade é que punir atualmente não é apenas converter uma alma Entretanto o princípio de Mably não permaneceu como um piedoso voto Por toda a moderna história da penalidade é possível seguirlhe os efeitos Em primeiro lugar a substituição de objetos Não queremos dizer com isso que subitamente se começou a punir outros crimes Sem dúvida a definição das infrações sua hierarquia de gravidade as margens de indulgência o que era tolerado de fato e o que era permitido de direito tudo isto modificouse amplamente nos últimos duzentos anos Muitos crimes perderam tal conotação uma vez que estavam objetivamente ligados a um exercício de autoridade religiosa ou a um tipo de vida econômica a blasfêmia deixou de se constituir em crime o contrabando e o furto doméstico perderam parte de sua gravidade Mas tais transformações não são por certo o mais importante a divisão de permitido e proibido manteve entre um e outro século certa constância Em compensação o objeto crime aquilo a que se refere a prática penal foi profundamente modificado a qualidade a natureza a substância de algum modo de que se constitui o elemento punível mais do que a própria definição formal A relativa estabilidade da lei obrigou um jogo de substituições sutis e rápidas Sob o nome de crimes c delitos são sempre julgados corretamente os objetos jurídicos definidos pelo Código Porém julgamse também as paixões os instintos as anomalias as enfermidades as inadaptações os efeitos de meio ambiente ou de hereditariedade Punemse as agressões mas por meio delas as agressividades as violações e ao mesmo tempo as perversões os assassinatos que são também impulsos e desejos Dirseia que não são eles que são julgados se são invocados é para explicar os fatos a serem julgados e determinar até que ponto a vontade do réu estava envolvida no crime Resposta insuficiente pois são as sombras que se escondem por trás dos elementos da causa que são na realidade julgadas e punidas Julgadas mediante recurso às circunstâncias atenuantes que introduzem no veredicto não apenas elementos circunstanciais do ato mas coisa bem diversa juridicamente não codificável o conhecimento do criminoso a apreciação que dele se faz o que se pode saber sobre suas relações entre ele seu passado e o crime e o que se pode esperar dele no futuro Julgadas também por todas essas noções veiculadas entre medicina e jurisprudência desde o século XIX os monstros da época de Georget as anomalias psíquicas da circular Chaumié os pervertidos e os inadaptados dos laudos periciais contemporâneos e que pretendendo explicar um ato não passam de maneiras de qualificar um indivíduo Punidas pelo castigo que se atribui a função de tornar o criminoso não só desejoso mas também capaz de viver respeitando a lei e de suprir às suas próprias necessidades são punidas pela economia interna de uma pena que embora sancione o crime pode modificarse abreviandose ou se for o caso prolongando se conforme se transformar o comportamento do condenado são punidas ainda pela aplicação dessas medidas de segurança que acompanham a pena proibição de permanência liberdade vigiada tutela penal tratamento médico obrigatório e não se destinam a sancionar a infração mas a controlar o indivíduo a neutralizar sua periculosidade a modificar suas disposições criminosas a cessar somente após obtenção de tais modificações A alma do criminoso não é invocada no tribunal somente para explicar o crime e introduzila como um elemento na atribuição jurídica das responsabilidades se ela é invocada com tanta ênfase com tanto cuidado de compreensão e tão grande aplicação científica é para julgála ao mesmo tempo que o crime e fazêla participar da punição Em todo o ritual penal desde a informação até a sentença e as últimas conseqüências da pena se permitiu a penetração de um campo de objetos que vêm duplicar mas também dissociar os objetos juridicamente definidos e codificados O laudo psiquiátrico mas de maneira mais geral a antropologia criminal e o discurso repisante da criminologia encontram aí uma de suas funções precisas introduzindo solenemente as infrações no campo dos objetos susceptíveis de um conhecimento científico dar aos mecanismos da punição legal um poder justificável não mais simplesmente sobre as infrações mas sobre os indivíduos não mais sobre o que eles fizeram mas sobre aquilo que eles são serão ou possam ser O suplemento de alma que a justiça garantiu para si é aparentemente explicativo e limitativo e de fato anexionista Faz 150 ou 200 anos que a Europa implantou seus novos sistemas de penalidade e desde então os juizes pouco a pouco mas por um processo que remonta bem longe no tempo começaram a julgar coisa diferente além dos crimes a alma dos criminosos E com isso começaram a fazer algo diferente do que julgar Ou para ser mais exato no próprio cerne da modalidade judicial do julgamento outros tipos de avaliação se introduziram discretamente modificando no essencial suas regras de elaboração Desde que a Idade Média construiu não sem dificuldade e lentidão a grande procedura do inquérito julgar era estabelecer a verdade de um crime era determinar seu autor era aplicarlhe uma sanção legal Conhecimento da infração conhecimento do responsável conhecimento da lei três condições que permitiam estabelecer um julgamento como verdade bem fundada Eis porém que durante o julgamento penal encontramos inserida agora uma questão bem diferente de verdade Não mais simplesmente O fato está comprovado é delituoso Mas também O que é realmente esse fato o que significa essa violência ou esse crime Em que nível ou em que campo da realidade deverá ser colocado Fantasma reação psicótica episódio de delírio perversidade Não mais simplesmente Quem é o autor Mas Como citar o processo causai que o produziu Onde estará no próprio autor a origem do crime Instinto inconsciente meio ambiente hereditariedade Não mais simplesmente Que lei sanciona esta infração Mas Que medida tomar que seja apropriada Como prever a evolução do sujeito De que modo será ele mais seguramente corrigido Todo um conjunto de julgamentos apreciativos diagnósticos prognósticos normativos concernentes ao indivíduo criminoso encontrou acolhida no sistema do juízo penal Uma outra verdade veio penetrar aquela que a mecânica judicial requeria uma verdade que enredada na primeira faz da afirmação de culpabilidade um estranho complexo científicojurídico Um fato significativo a maneira como a questão da loucura evoluiu na prática penal De acordo com o código francês de 1810 ela só era abordada no final do artigo 64 Este prevê que não há crime nem delito se o infrator estava em estado de demência no instante do ato A possibilidade de invocar a loucura excluía pois a qualificação de um ato como crime na alegação de o autor ter ficado louco não era a gravidade de seu gesto que se modificava nem a sua pena que devia ser atenuada mas o próprio crime desaparecia Impossível pois declarar alguém ao mesmo tempo culpado e louco o diagnóstico de loucura uma vez declarado não podia ser integrado no juízo ele interrompia o processo e retirava o poder da justiça sobre o autor do ato Não apenas o exame do criminoso suspeito de demência mas também os próprios efeitos desse exame deviam ser exteriores e anteriores à sentença Mas desde logo os tribunais do século XIX se equivocaram acerca do sentido do artigo 64 Apesar de vários decretos do supremo tribunal de justiça lembrando que o estado de loucura não podia acarretar nem uma pena moderada nem sequer uma absolvição mas uma improcedência judicial eles levantaram em seu próprio veredicto a questão da loucura Admitiram que era possível alguém ser culpado e louco quanto mais louco tanto menos culpado culpado sem dúvida mas que deveria ser enclausurado e tratado e não punido culpado perigoso pois manifestamente doente etc Do ponto de vista do código penal eram absurdos jurídicos Mas estava aí o ponto de partida de uma evolução que a jurisprudência e a própria legislação iam desencadear durante os 150 anos seguintes já a reforma de 1832 introduzindo as circunstâncias atenuantes permitia modular a sentença segundo os graus supostos de uma doença ou as formas de uma semiloucura E a prática usual nos tribunais aplicada às vezes à prática correcional da perícia psiquiátrica faz com que a sentença ainda que formulada em termos de sanção legal implique mais ou menos obscuramente em juízos de normalidade atribuições de causalidade apreciações de eventuais mudanças previsões sobre o futuro dos delinqüentes Operações todas de que não se poderia dizer com razão que preparam do exterior um julgamento bem fundado elas se integram diretamente no processo de formação da sentença Em vez de a loucura apagar o crime no sentido primitivo do artigo 64 qualquer crime agora e em última análise qualquer infração incluem como uma suspeita legítima mas também como um direito que podem reivindicar a hipótese da loucura ou em todo caso da anomalia E a sentença que condena ou absolve não é simplesmente um julgamento de culpa uma decisão legal que sanciona ela implica uma apreciação de normalidade e uma prescrição técnica para uma normalização possível O juiz de nossos dias magistrado ou jurado faz outra coisa bem diferente de julgar E ele não julga mais sozinho Ao longo do processo penal e da execução da pena prolifera toda uma série de instâncias anexas Pequenas justiças e juizes paralelos se multiplicaram em torno do julgamento principal peritos psiquiátricos ou psicológicos magistrados da aplicação das penas educadores funcionários da administração penitenciária fracionam o poder legal de punir dirseá que nenhum deles partilha realmente do direito de julgar que uns depois das sentenças só têm o direito de fazer executar uma pena fixada pelo tribunal e principalmente que outros os peritos não intervêm antes da sentença para fazer um julgamento mas para esclarecer a decisão dos juizes Mas desde que as penas e as medidas de segurança definidas pelo tribunal não são determinadas de uma maneira absoluta a partir do momento em que elas podem ser modificadas no caminho a partir do momento em que se deixa a pessoas que não são os juizes da infração o cuidado de decidir se o condenado merece ser posto em semiliberdade ou em liberdade condicional se eles podem pôr um termo à sua tutela penal são sem dúvida mecanismos de punição legal que lhes são colocados entre as mãos e deixados à sua apreciação juizes anexos mas juizes de todo modo Todo o aparelho que se desenvolveu há anos em tomo da aplicação das penas e de seu ajustamento aos indivíduos desmultiplica as instâncias da decisão judiciária prolongandoa muito além da sentença Quanto aos peritos psiquiatras podem bem evitar de julgar Basta examinar as três perguntas que depois da circular de 1958 eles têm que responder O acusado apresenta alguma periculosidade É acessível à sanção penal É curável ou readaptável Estas perguntas não têm relação com o artigo 64 nem com a loucura eventual do acusado no momento do ato Não são perguntas em termos de responsabilidade Só dizem respeito à administração da pena sua necessidade sua utilidade sua eficácia possível permitem indicar num vocabulário que apenas foi codificado se é melhor o hospício que a prisão se é necessário prever um enclausuramento breve ou longo um tratamento médico ou medidas de segurança E o papel do psiquiatra em matéria penal Não será o perito em responsabilidade mas de conselheiro de punição cabe lhe dizer se o indivíduo é perigoso de que maneira se proteger dele como intervir para modificálo se é melhor tentar reprimir ou tratar Bem no começo de sua história a perícia psiquiátrica tivera que formular proposições verdadeiras sobre a medida da participação da liberdade do infrator no ato que cometera ela tem agora que sugerir uma receita sobre o que se poderia chamar seu tratamento médico judicial Resumindo desde que funciona o novo sistema penal o definido pelos grandes códigos dos séculos XVIII e XIX um processo global levou os juízes a julgar coisa bem diversa do que crimes foram levados em suas sentenças a fazer coisa diferente de julgar e o poder de julgar foi em parte transferido a instâncias que não são as dos juizes da infração A operação penal inteira carregouse de elementos e personagens extrajurídicos Podese dizer que não há nisso nada de extraordinário que é do destino do direito absorver pouco a pouco elementos que lhe são estranhos Mas uma coisa é singular na justiça criminal moderna se ela se carrega de tantos elementos extrajurídicos não é para poder qualificálos juridicamente e integrálos pouco a pouco no estrito poder de punir é ao contrário para poder fazêlos funcionar no interior da operação penal como elementos não jurídicos é para evitar que essa operação seja pura e simplesmente uma punição legal é para escusar o juiz de ser pura e simplesmente aquele que castiga Naturalmente damos um veredicto mas ainda que reclamado por um crime vocês bem podem ver que para nós funciona como uma maneira de tratar um criminoso punimos mas é um modo de dizer que queremos obter a cura A justiça criminal hoje em dia só funciona e só se justifica por essa perpétua referência a outra coisa que não é ela mesma por essa incessante reinscrição nos sistemas não jurídicos Ela está votada a essa requalificação pelo saber Sob a suavidade ampliada dos castigos podemos então verificar um deslo camento de seu ponto de aplicação e através desse deslocamento todo um campo de objetos recentes todo um novo regime da verdade e uma quantidade de papéis até então inéditos no exercício da justiça criminal Um saber técnicas discursos científicos se formam e se entrelaçam com a prática do poder de punir Objetivo deste livro uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar uma genealogia do atual complexo científicojudiciário onde o poder de punir se apóia recebe suas justificações e suas regras estende seus efeitos e mascara sua exorbitante singularidade Mas a partir de onde se pode fazer essa história da alma moderna em julgamento Se nos limitarmos ã evolução das regras de direito ou dos processos penais corremos o risco de valorizar como fato maciço exterior inerte e primeiro uma mudança na sensibilidade coletiva um progresso do humanismo ou o desenvolvimento das ciências humanas Para estudar como fez Durkheim18 apenas as formas sociais gerais corremos o risco de colocar como princípio da suavização punitiva processos de individualização que são antes efeitos das novas táticas de poder e entre elas dos novos mecanismos penais O presente estudo obedece a quatro regras gerais 1 Não centrar o estudo dos mecanismos punitivos unicamente em seus efeitos repressivos só em seu aspecto de sanção mas recolocálos na série completa dos efeitos positivos que eles podem induzir mesmo se à primeira vista são marginais Conseqüentemente tomar a punição como uma função social complexa 2 Analisar os métodos punitivos não como simples conseqüências de regras de direito ou como indicadores de estruturas sociais mas como técnicas que têm sua especificidade no campo mais geral dos outros processos de poder Adotar em relação aos castigos a perspectiva da tática política 3 Em lugar de tratar a história do direito penal e a das ciências humanas como duas séries separadas cujo encontro teria sobre uma ou outra ou sobre as duas talvez um efeito digamos perturbador ou útil verificar se não há uma matriz comum e se as duas não se originam de um processo de formação epistemológico jurídico em resumo colocar a tecnologia do poder no princípio tanto da humanização da penalidade quanto do conhecimento do homem 4 Verificar se esta entrada da alma no palco da justiça penal e com ela a inserção na prática judiciária de todo um saber científico não é o efeito de uma transformação na maneira como o próprio corpo é investido pelas relações de poder Em suma tentar estudar a metamorfose dos métodos punitivos a partir de uma tecnologia política do corpo onde se poderia ler uma história comum das relações de poder e das relações de objeto De maneira que pela análise da suavidade penal como técnica de poder poderíamos compreender ao mesmo tempo como o homem a alma o indivíduo normal ou anormal vieram fazer a dublagem do crime como objetos da intervenção penal e de que maneira um modo específico de sujeição pôde dar origem ao homem como objeto de saber para um discurso com status científico Mas não tenho a pretensão de ter sido o primeiro a trabalhar nessa direção19 Do grande livro de Rusche e Kirchheimer20 podemos guardar algumas referências essenciais Abandonar em primeiro lugar a ilusão de que a penalidade é antes de tudo se não exclusivamente uma maneira de reprimir os delitos e que nesse papel de acordo com as formas sociais os sistemas políticos ou as crenças ela pode ser severa ou indulgente voltarse para a expiação ou procurar obter uma reparação aplicarse em perseguir o indivíduo ou em atribuir responsabilidades coletivas Analisar antes os sistemas punitivos concretos estudálos como fenômenos sociais que não podem ser explicados unicamente pela armadura jurídica da sociedade nem por suas opções éticas fundamentais recolocálos em seu campo de funcionamento onde a sanção dos crimes não é o único elemento mostrar que as medidas punitivas não são simplesmente mecanismos negativos que permitem reprimir impedir excluir suprimir mas que elas estão ligadas a toda uma série de efeitos positivos e úteis que elas têm por encargo sustentar e nesse sentido se os castigos legais são feitos para sancionar as infrações podese dizer que a definição das infrações e sua repressão são feitas em compensação para manter os mecanismos punitivos e suas funções Nessa linha Rusche e Kirchheimer estabeleceram a relação entre os vários regimes punitivos e os sistemas de produção em que se efetuam assim numa economia servil os mecanismos punitivos teriam como papel trazer mãodeobra suplementar e constituir uma escravidão civil ao lado da que é fornecida pelas guerras ou pelo comércio com o feudalismo e numa época em que a moeda e a produção estão pouco desenvolvidas assistiríamos a um brusco crescimento dos castigos corporais sendo o corpo na maior parte dos casos o único bem acessível a casa de correção o Hospital Geral o Spinhuis ou Rasphuis o trabalho obrigatório a manufatura penal apareceriam com o desenvolvimento da economia de comércio Mas como o sistema industrial exigia um mercado de mãodeobra livre a parte do trabalho obrigatório diminuiria no século XIX nos mecanismos de punição e seria substituída por uma detenção com fim corretivo Há sem dúvida muitas observações a fazer sobre essa correlação estrita Mas podemos sem dúvida ressaltar esse tema geral de que em nossas sociedades os sistemas punitivos devem ser recolocados em uma certa economia política do corpo ainda que não recorram a castigos violentos ou sangrentos mesmo quando utilizam métodos suaves de trancar ou corrigir é sempre do corpo que se trata do corpo e de suas forças da utilidade e da docilidade delas de sua repartição e de sua submissão É certamente legítimo fazer uma história dos castigos com base nas idéias morais ou nas estruturas jurídicas Mas podese fazêla com base numa história dos corpos uma vez que só visam à alma secreta dos criminosos Os historiadores vêm abordando a história do corpo há muito tempo Estudaramno no campo de uma demografia ou de uma patologia históricas encararamno como sede de necessidades e de apetites como lugar de processos fisiológicos e de metabolismos como alvos de ataques microbianos ou de vírus mostraram até que ponto os processos históricos estavam implicados no que se poderia considerar a base puramente biológica da existência e que lugar se deveria conceder na história das sociedades a acontecimentos biológicos como a circulação dos bacilos ou o prolongamento da duração da vida21 Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político as relações de poder têm alcance imediato sobre ele elas o investem o marcam o dirigem o supliciam sujeitamno a trabalhos obrigamno a cerimônias exigemlhe sinais Este investimento político do corpo está ligado segundo relações complexas e recíprocas à sua utilização econômica é numa boa proporção como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado calculado e utilizado o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia pode muito bem ser direta física usar a força contra a força agir sobre elementos materiais sem no entanto ser violenta pode ser calculada organizada tecnicamente pensada pode ser sutil não fazer uso de armas nem do terror e no entanto continuar a ser de ordem física Quer dizer que pode haver um saber do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcio namento e um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencêlas esse saber e esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo Essa tecnologia é difusa claro raramente formulada em discursos contínuos e sistemáticos compõese muitas vezes de peças ou de pedaços utiliza um material e processos sem relação entre si O mais das vezes apesar da coerência de seus resultados ela não passa de uma instrumentação multiforme Além disso seria impossível localizála quer num tipo definido de instituição quer num aparelho do Estado Estes recorrem a ela utilizamna valorizamna ou impõem algumas de suas maneiras de agir Mas ela mesma em seus mecanismos e efeitos se situa num nível completamente diferente Tratase de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças Ora o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade mas como uma estratégia que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma apropriação mas a disposições a manobras a táticas a técnicas a funcionamentos que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas sempre em atividade que um privilégio que se pudesse deter que lhe seja dado como modelo antes a batalha perpétua que o contrato que faz uma cessão ou a conquista que se apodera de um domínio Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais que se possui que não é o privilégio adquirido ou conservado da classe dominante mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados Esse poder por outro lado não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma proibição aos que não têm ele os investe passa por eles e através deles apóiase neles do mesmo modo que eles em sua luta contra esse poder apóiamse por sua vez nos pontos em que ele os alcança O que significa que essas relações aprofundamse dentro da sociedade que não se localizam nas relações do Estado com os cidadãos ou na fronteira das classes e que não se contentam em reproduzir ao nível dos indivíduos dos corpos dos gestos e dos comportamentos a forma geral da lei ou do governo que se há continuidade realmente elas se articulam bem nessa forma de acordo com toda uma série de complexas engrenagens não há analogia nem homologia mas especificidade do mecanismo e de modalidade Finalmente não são unívocas definem inúmeros pontos de luta focos de instabilidade comportando cada um seus riscos de conflito de lutas e de inversão pelo menos transitória da relação de forças A derrubada desses micropoderes não obedece portanto à lei do tudo ou nada ele não é adquirido de uma vez por todas por um novo controle dos aparelhos nem por um novo funcionamento ou uma destruição das instituições em compensação nenhum de seus episódios localizados pode ser inscrito na história senão pelos efeitos por ele induzidos em toda a rede em que se encontra Seria talvez preciso também renunciar a toda uma tradição que deixa imaginar que só pode haver saber onde as relações de poder estão suspensas e que o saber só pode desenvolverse fora de suas injunções suas exigências e seus interesses Seria talvez preciso renunciar a crer que o poder enlouquece e que em compensação a renúncia ao poder é uma das condições para que se possa tornarse sábio Temos antes que admitir que o poder produz saber e não simplesmente favorecendoo porque o serve ou aplicandoo porque é útil que poder e saber estão diretamente implicados que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder Essas relações de podersaber não devem então ser analisadas a partir de um sujeito do conhecimento que seria ou não livre em redação ao sistema do poder mas é preciso considerar ao contrário que o sujeito que conhece os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimentos são outros tantos efeitos dessas implicações fundamentais do podersaber e de suas transformações históricas Resumindo não é a atividade do sujeito de conhecimento que produziria um saber útil ou arredio ao poder mas o podersaber os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento Analisar o investimento político do corpo e a microfísica do poder supõe então que se renuncie no que se refere ao poder à oposição violênciaideologia à metáfora da propriedade ao modelo do contrato ou ao da conquista no que se refere ao saber que se renuncie à oposição do que é interessado e do que é desinteressado ao modelo do conhecimento e ao primado do sujeito Dando à palavra um sentido diferente do que lhe era dado no século XVII por Petty e seus contemporâneos poderseia sonhar com uma anatomia política Não seria o estudo de um Estado tomado como um corpo com seus elementos seus recursos e suas forças mas não seria tampouco o estudo do corpo e do que lhe está conexo tomados como um pequeno Estado Trataríamos aí do corpo político como conjunto dos elementos materiais e das técnicas que servem de armas de reforço de vias de comunicação e de pontos de apoio para as relações de poder e de saber que investem os corpos humanos e os submetem fazendo deles objetos de saber Tratase de recolocar as técnicas punitivas quer elas se apossem do corpo no ritual dos suplícios quer se dirijam à alma na história desse corpo político Considerar as práticas penais mais como um capítulo da anatomia política do que uma conseqüência das teorias jurídicas Kantorowitz22 fez uma vez do corpo do rei uma análise notável corpo duplo de acordo com a teologia jurídica formada na Idade Média pois comporta além do elemento transitório que nasce e morre um outro que permanece através do tempo e se mantém como fundamento físico mas intangível do reino em tomo dessa dualidade que esteve em sua origem próxima do modelo cristológico organizamse uma iconografia uma teoria política da monarquia mecanismos jurídicos que ao mesmo tempo distinguem e ligam a pessoa do rei e as exigências da Coroa e todo um ritual que encontra na coroação nos funerais nas cerimônias de submissão seus tempos mais fortes Poderíamos imaginar no pólo oposto o corpo do condenado ele também tem seu estatuto jurídico reclama seu cerimonial e impõe todo um discurso teórico não para fundamentar o mais poder que afetava a pessoa do soberano mas para codificar o menos poder que marca os que são submetidos a uma punição Na região mais sombria do campo político o condenado desenha a figura simétrica e invertida do rei Seria preciso analisar o que se poderia chamar em homenagem a Kantorowitz o mínimo corpo do condenado Se o suplemento de poder do lado do rei provoca o desdobramento de seu corpo o poder excedente exercido sobre o corpo submetido do condenado não suscitou um outro tipo de desdobramento o de um incorpóreo de uma alma como dizia Mably A história dessa microfísica do poder punitivo seria então uma genealogia ou uma peça para uma genealogia da alma moderna A ver nessa alma os restos reativados de uma ideologia antes reconheceríamos nela o correlativo atual de uma certa tecnologia do poder sobre o corpo Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão ou um efeito ideológico mas afirmar que ela existe que tem uma realidade que é produzida permanentemente em tomo na superfície no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados treinados e corrigidos sobre os loucos as crianças os escolares os colonizados sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência Realidade histórica dessa alma que diferentemente da alma representada pela teologia cristã não nasce faltosa e merecedora de castigo mas nasce antes de procedimentos de punição de vigilância de castigo e de coação Esta alma real e incorpórea não é absolutamente substância é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder Sobre essa realidadereferência vários conceitos foram construídos e campos de análise foram demarcados psique subjetividade personalidade consciência etc sobre ela técnicas e discursos científicos foram edificados a partir dela valorizaramse as reivindicações morais do humanismo Mas não devemos nos enganar a alma ilusão dos teólogos não foi substituída por um homem real objeto de saber de reflexão filosófica ou de intervenção técnica O homem de que nos falam e que nos convidam a liberar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele Uma alma o habita e o leva à existência que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo A alma efeito e instrumento de uma anatomia política a alma prisão do corpo Que as punições em gera e a prisão se originem de uma tecnologia política do corpo talvez me tenha ensinado mais pelo presente do que pela história Nos últimos anos houve revoltas em prisões em muitos lugares do mundo Os objetivos que tinham suas palavras de ordem seu desenrolar tinham certamente qualquer coisa de paradoxal Eram revoltas contra toda uma miséria física que dura há mais de um século contra o frio contra a sufocação e o excesso de população contra as paredes velhas contra a fome contra os golpes Mas eram também revoltas contra as prisõesmodelos contra os tranqüilizantes contra o isolamento contra o serviço médico ou educativo Revoltas cujos objetivos eram só materiais Revoltas contraditórias contra a decadência e ao mesmo tempo contra o conforto contra os guardas e ao mesmo tempo contra os psiquiatras De fato tratavase realmente dos corpos e de coisas materiais em todos esses movimentos como se trata disso nos inúmeros discursos que a prisão tem produzido desde o começo do século XIX O que provocou esses discursos e essas revoltas essas lembranças e invectivas foram realmente essas pequenas essas ínfimas coisas materiais Quem quiser tem toda liberdade de ver nisso apenas reivindicações cegas ou suspeitar que haja aí estratégias estranhas Tratavase bem de uma revolta ao nível dos corpos contra o próprio corpo da prisão O que estava em jogo não era o quadro rude demais ou ascético demais rudimentar demais ou aperfeiçoado demais da prisão era sua materialidade na medida em que ele é instrumento e vetor de poder era toda essa tecnologia do poder sobre o corpo que a tecnologia da alma a dos educadores dos psicólogos e dos psiquiatras não consegue mascarar nem compensar pela boa razão de que não passa de um de seus instrumentos É desta prisão com todos os investimentos políticos do corpo que ela reúne em sua arquitetura fechada que eu gostaria de fazer a história Por puro anacronismo Não se entendemos com isso fazer a história do passado nos termos do presente Sim se entendermos com isso fazer a história do presente23 CAPÍTULO II A OSTENTAÇÃO DOS SUPLÍCIOS A ordenação de 1670 regeu até à Revolução as formas gerais da prática penal Eis a hierarquia dos castigos por ela descritos A morte a questão com reserva de provas as galeras o açoite a confissão pública o banimento As penas físicas tinham portanto uma parte considerável Os costumes a natureza dos crimes o status dos condenados as faziam variar ainda mais A pena de morte natural compreende todos os tipos de morte uns podem ser condenados à forca outros a ter a mão ou a língua cortada ou furada e ser enforcados em seguida outros por crimes mais graves a ser arrebentados vivos e expirar na roda depois de ter os membros arrebentados outros a ser arrebentados até a morte natural outros a ser estrangulados e em seguida arrebentados outros a ser queimados vivos outros a ser queimados depois de estrangulados outros a ter a língua cortada ou furada e em seguida queimados vivos outros a ser puxados por quatro cavalos outros a ter a cabeça cortada outros enfim a ter a cabeça quebrada1 E Soulatges de passagem acrescenta que há também penas leves de que a Ordenação não fala satisfação à pessoa ofendida admoestação repreensão prisão temporária abstenção de um lugar e enfim as penas pecuniárias muitas ou confiscação Não devemos no entanto nos enganar Entre esse arsenal de horror e a prática cotidiana da penalidade a margem era grande Os suplícios não constituíam as penas mais freqüentes longe disso Sem dúvida para nossos olhos atuais a proporção de veredictos de morte na penalidade da era clássica pode parecer considerável as decisões do Châtelet durante o período de 1755 a 1785 comportam 9 a 10 de penas capitais roda forca ou fogueira2 em 260 sentenças o Parlamento de Flandres pronunciou 39 condenações à morte de 1721 a 1730 e 26 em 500 entre 1781 e 17903 Mas não se deve esquecer que os tribunais encontravam muitos meios de abrandar os rigores da penalidade regular seja recusandose a levar adiante processos quando as infrações eram exageradamente castigadas seja modificando a qualificação do crime às vezes também o próprio poder real indicava não aplicar estritamente tal ordenação particularmente severa4 De qualquer modo a maior parte das condenações era banimento ou multa numa jurisprudência como a do Châtelet que só conhecia delitos relativamente graves o banimento representou entre 1755 e 1785 mais da metade das penas aplicadas Ora grande parte dessas penas não corporais era acompanhada a título acessório de penas que comportavam uma dimensão de suplício exposição roda coleira de ferro açoite marcação com ferrete era a regra para todas as condenações às galeras ou ao equivalente para as mulheres a reclusão no hospital o banimento era muitas vezes precedido pela exposição e pela marcação com ferrete a multa às vezes era acompanhada de açoite Não só nas grandes e solenes execuções mas também nessa forma anexa é que o suplício manifestava a parte significativa que tinha na penalidade qualquer pena um pouco séria devia incluir alguma coisa do suplício Que é um suplício Pena corporal dolorosa mais ou menos atroz dizia Jaucourt e acrescentava é um fenômeno inexplicável a extensão da imaginação dos homens para a barbárie e a crueldade5 Inexplicável talvez mas certamente não irregular nem selvagem O suplício é uma técnica e não deve ser equiparado aos extremos de uma raiva sem lei Uma pena para ser um suplício deve obedecer a três critérios principais em primeiro lugar produzir uma certa quantidade de sofrimento que se possa se não medir exatamente ao menos apreciar comparar e hierarquizar a morte é um suplício na medida em que ela não é simplesmente privação do direito de viver mas a ocasião e o termo final de uma graduação calculada de sofrimentos desde a decapitação que reduz todos os sofrimentos a um só gesto e num só instante o grau zero do suplício até o esquartejamento que os leva quase ao infinito através do enforcamento da fogueira e da roda na qual se agoniza muito tempo a morte suplício é a arte de reter a vida no sofrimento subdividindoa em mil mortes e obtendo antes de cessar a existência the most exquisite agonies6 O suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento Mas não é só esta produção é regulada O suplício faz correlacionar o tipo de ferimento físico a qualidade a intensidade o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime a pessoa do criminoso o nível social de suas vítimas Há um código jurídico da dor a pena quando é supliciante não se abate sobre o corpo ao acaso ou em bloco ela é calculada de acordo com regras detalhadas número de golpes de açoite localização do ferrete em brasa tempo de agonia na fogueira ou na roda o tribunal decide se é o caso de estrangular o paciente imediatamente em vez de deixálo morrer e ao fim de quanto tempo esse gesto de piedade deve intervir tipo de mutilação a impor mão decepada lábios ou língua furados Todos esses diversos elementos multiplicam as penas e se combinam de acordo com os tribunais e os crimes A poesia de Dante posta em leis dizia Rossi um longo saber físicopenal em todo caso Além disso o suplício faz parte de um ritual É um elemento na liturgia punitiva e que obedece a duas exigências Em relação à vítima ele deve ser marcante destinase ou pela cicatriz que deixa no corpo ou pela ostentação de que se acompanha a tornar infame aquele que é sua vítima o suplício mesmo se tem como função purgar o crime não reconcilia traça em tomo ou melhor sobre o próprio corpo do condenado sinais que não devem se apagar a memória dos homens em todo caso guardará a lembrança da exposição da roda da tortura ou do sofrimento devidamente constatados E pelo lado da justiça que o impõe o suplício deve ser ostentoso deve ser constatado por todos um pouco como seu triunfo O próprio excesso das violências cometidas é uma das peças de sua glória o fato de o culpado gemer ou gritar com os golpes não constitui algo de acessório e vergonhoso mas é o próprio cerimonial da justiça que se manifesta em sua força Por isso sem dúvida é que os suplícios se prolongam ainda depois da morte cadáveres queimados cinzas jogadas ao vento corpos arrastados na grade expostos à beira das estradas A justiça persegue o corpo além de qualquer sofrimento possível O suplício penal não corresponde a qualquer punição corporal é uma produção diferenciada de sofrimentos um ritual organizado para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune não é absolutamente a exasperação de uma justiça que esquecendo seus princípios perdesse todo o controle Nos excessos dos suplícios se investe toda a economia do poder O corpo supliciado se insere em primeiro lugar no cerimonial judiciário que deve trazer à luz a verdade do crime Na França como na maior parte dos países europeus com a notável exceção da Inglaterra todo o processo criminal até à sentença permanecia secreto ou seja opaco não só para o público mas para o próprio acusado O processo se desenrolava sem ele ou pelo menos sem que ele pudesse conhecer a acusação as imputações os depoimentos as provas Na ordem da justiça criminal o saber era privilégio absoluto da acusação O mais diligente e o mais secretamente que se puder fazer dizia a respeito da instrução o edito de 1498 De acordo com a ordenação de 1670 que resumia e em alguns pontos reforçava a severidade da época precedente era impossível ao acusado ter acesso às peças do processo impossível conhecer a identidade dos denunciadores impossível saber o sentido dos depoimentos antes de recusar as testemunhas impossível fazer valer até os últimos momentos do processo os fatos justificativos impossível ter um advogado seja para verificar a regularidade do processo seja para participar da defesa Por seu lado o magistrado tinha o direito de receber denúncias anônimas de esconder ao acusado a natureza da causa de interrogálo de maneira capciosa de usar insinuações7 Ele constituía sozinho e com pleno poder uma verdade com a qual investia o acusado e essa verdade os juízes a recebiam pronta sob a forma de peças e de relatórios escritos para eles esses documentos sozinhos comprovavam só encontravam o acusado uma vez para interrogálo antes de dar a sentença A forma secreta e escrita do processo confere com o principio de que em matéria criminal o estabelecimento da verdade era para o soberano e seus juizes um direito 1 N Andry A Ortopedia ou a Arte de Prevenir e Corrigir nas Crianças as Deformidades do Corpo 1749 2 Medalha comemorativa da primeira revista militar passada por Luís XIV em 1666 B N Gabinete das medalhas V p 167 34 P Giffart A Arte Militar Francesa 1696 V p 140 56 Plantas que acompanhavam a Ordenação de 25 de setembro de 1719 sobre a construção dos quartéis V p 130 7 P G Joly de Maizeroy Teoria da Guerra 1777 Campo para dezoito batalhas e vinte e quatro esquadrões 1 Acampamento da infantaria 2 Da cavalaria 3 Das tropas ligeiras 4 Grandes guardas 5 Alinhamento dos guardas do campo 6 Quartelgeneral 7 Parque da artilharia 8 Parque dos víveres 9 Reduto V p 154 8 Modelo para caligrafia Coleções históricas do INRDP V p 139 9 Colégio de Navarra Desenhado e gravado por FrançoisNicolas Martinet por volta de 1760 Coleções históricas do INRDP V p 131 1011 Interior da Escola de Ensino Mútuo situada na Rua PortMahon ao momento do exercício de caligrafia Litografia de Hippolite Lecomte 1818 Coleções históricas do INRDP V p 135 12 B Poyet Projeto de hospital 1786 V p 156 13 J F de Neufforge Projeto do hospital Coletânea elementar de arquitetura 17571780 V p 156 14 Jardim Zoológico de Versalles à época de Luís XIV gravura de Aveline V p 179 15 Planta da Casa de Detenção de Grand 1773 V p 108 16 J F de Neufforge Projeção de prisão ob cit V p 156 17 J Bentham Planta do Panopticon The Works of Jeremy Bentham ed Bowring t IV p 172173 V p 177 1819 N HarouRomain Projetos de penitenciárias 1840 V p 222 20 N HarouRomain Projeto de penitenciária 1840 Planta e corte das celas V p 222 Cada cela comporta uma entrada um quarto uma sala para trabalho e outra para lazer Durante a prece a porta da entrada permanece aberta onde o prisioneiro se ajoelha desenho central 21 N HarouRomain Projeto de penitenciária 1840 Um detento em sua cela reza diante da torre central de vigilância V p 222 22 A Blouet Projeto de prisão celular para quinhentos e oitenta e cinco condenados 1843 V p 222 23 Planta da prisão de Mazas V p 222 24 Prisão de Petite Roquette V p 222 24 Prisão de Petite Roquete V p 222 25 A Casa Central de Rennes em 1877 V p 222 26 Interior da penitenciária de Stateville Estados Unidos século XX V p 222 27 A hora de dormir na colônia de Mettray V p 258 28 Conferência sobre os males do alcoolismo no auditório da prisão de Fresnes 29 Máquina a vapor para a rápida correção das meninas e dos meninos Avisamos aos pais e mães tios tias tutores tutoras diretores e diretoras de internatos e de modo geral todas as pessoas que tenham crianças preguiçosas gulosas indóceis desobedientes briguentas mexeriqueiras faladoras sem religião ou que tenham qualquer outro defeito que o senhor BichoPapão e a senhora TralhaVelha acabaram de colocar em cada distrito da cidade de Paris uma máquina semelhante à representada nesta gravura e recebem diariamente em seus estabelecimentos de meiodia às duas horas crianças que precisem ser corrigidas Os senhores Lobisomem Carvoeiro Rotomago e ComesemFome e as senhoras Pantera Furiosa Caratonha semDó e BebesemSede amigos e parentes do senhor BichoPapão e da Senhora Tralha Velha instalarão brevemente máquina semelhante que será enviada às cidades das províncias e eles mesmos irão dirigir a execução O baixo preço da correção dada pela máquina a vapor e seus surpreendentes efeitos levarão os pais a usála tanto quanto o exija o mau comportamento de seus filhos Aceitamse como internas crianças incorrigíveis que são alimentadas a pão e água Gravura do fim do século XVIII Coleções históricas do INRDP 30 N Andry A Ortopedia ou a Arte de Prevenir e Corrigir nas Crianças as Deformidades do Corpo 1749 absoluto e um poder exclusivo Ayrault supunha que esse procedimento já estabelecida no que tange ao essencial no século XVI tinha por origem o medo dos tumultos das gritarias e aclamações que o povo normalmente faz o medo de que houvesse desordem violência e impetuosidade contra as partes talvez ate mesmo contra os juizes o rei quereria mostrar com isso que a força soberana de que se origina o direito de punir não pode em caso algum pertencer à multidão8 Diante da justiça do soberano todas as vozes devemse calar Mas o segredo não impedia que para estabelecer a verdade se devesse obedecer a certas regras O segredo implicava mesmo na definição rigorosa de um modelo de demonstração penal Toda uma tradição que remontava ao meio ambiente medieval mas que os juristas da Renascença haviam largamente desenvolvido prescrevia o que deviam ser a natureza e a eficácia das provas Ainda no século XVIII encontravamse regularmente distinções como as seguintes as provas verdadeiras diretas ou legítimas os testemunhos por exemplo e as provas indiretas conjeturais artificiais por argumento ou ainda as provas manifestas as provas consideráveis as provas imperfeitas ou ligeiras9 ou ainda as provas urgentes e necessárias que não permitem duvidar da verdade do fato são provas plenas assim duas testemunhas irrepreensíveis que a afirmassem ter visto o acusado com uma espada nua e ensangüentada na mão a sair do lugar onde algum tempo depois foi encontrado o corpo do morto marcado por golpes de espada os indícios próximos ou provas semiplenas que se podem considerar verdadeiras enquanto o acusado não as destruir com uma prova contrária prova semiplena como uma só testemunha ocular ou ameaças de morte que precedem um assassinato enfim os indícios longínquos ou adminículos que consistem apenas no parecer dos homens opinião pública fuga do suspeito sua perturbação ao ser interrogado etc10 Ora essas distinções não são simplesmente sutilezas teóricas Elas têm uma função operatória Em primeiro lugar porque cada um desses indícios tomado em si mesmo e se permanece isolado pode ter um tipo definido de efeito judiciário as provas plenas podem acarretar qualquer condenação as semiplenas podem acarretar penas físicas infamantes mas nunca a morte os indícios imperfeitos e leves bastam para fazer decretar o suspeito para fazer contra ele investigações mais aprofundadas ou para lhe impor uma multa Em segundo lugar porque se combinam entre si de acordo com regras precisas de cálculo duas provas semiplenas podem fazer uma prova completa adminículos desde que sejam vários e concordem podem combinarse para formar uma meiaprova mas sozinhos por numerosos que sejam não podem equivaler a uma prova completa Temos então uma aritmética penal meticulosa em muitos pontos mas que deixa ainda margem a muitas discussões podemos apoiarnos para dar uma sentença capital numa única prova plena ou é preciso que ela seja acompanhada de outros indícios mais ligeiros Dois indícios próximos são sempre equivalentes a uma prova plena Não seria necessário admitir três deles ou combinálos com os indícios longínquos Há elementos que só podem ser indícios para certos crimes em certas circunstâncias e em relação a certas pessoas assim um testemunho é anulado se provém de um vagabundo é ao contrário reforçado se se trata de uma pessoa de consideração ou de um patrão a respeito de um delito doméstico Aritmética modulada por uma casuística que tem por função definir como se pode construir uma prova judicial Por um lado esse sistema das provas legais faz da verdade no campo penal o resultado de uma arte complexa obedece a regras que só os especialistas podem conhecer e conseqüentemente reforça o princípio do segredo Não basta que o juiz tenha a convicção que qualquer homem razoável pode ter Nada mais errado que essa maneira de julgar que na verdade não passa de uma opinião mais ou menos fundamentada Mas por outro lado ele cerceia o magistrado severamente sem essa regularidade qualquer julgamento de condenação seria temerário e podese dizer de certa maneira que é injusto mesmo se na verdade o acusado fosse culpado11 Chegará o dia em que a singularidade dessa verdade judicial parecerá escandalosa como se a justiça não tivesse que obedecer às regras da verdade comum Que se diria de uma meiaprova nas ciências demonstráveis Que seria uma meiaprova geométrica ou algébrica12 Mas não devemos esquecer que essas exigências formais da prova jurídica eram um modo de controle interno do poder absoluto e exclusivo de saber A informação penal escrita secreta submetida para construir suas provas a regras rigorosas é uma máquina que pode produzir a verdade na ausência do acusado E por essa mesma razão embora no estrito direito isso não seja necessário esse procedimento vai necessariamente tender à confissão Por duas razões em primeiro lugar porque esta constitui uma prova tão forte que não há nenhuma necessidade de acrescentar outras nem de entrar na difícil e duvidosa combinação dos indícios a confissão desde que feita na forma correta quase desobriga o acusador do cuidado de fornecer outras provas em todo caso as mais difíceis Em seguida a única maneira para que esse procedimento perca tudo o que tem de autoridade unívoca e se torne efetivamente uma vitória conseguida sobre o acusado a única maneira para que a verdade exerça todo o seu poder é que o criminoso tome sobre si o próprio crime e ele mesmo assine o que foi sábia e obscuramente construído pela informação Não é bastante como dizia Ayrault que não gostava nem um pouco desses processos secretos que os maus sejam justamente punidos É preciso se possível que eles mesmos se julguem e se condenem13 No interior do crime reconstituído por escrito o criminoso que confessa vem desempenhar o papel de verdade viva A confissão ato do sujeito criminoso responsável e que fala é a peça complementar de uma informação escrita e secreta Daí a importância dada à confissão por todo esse processo de tipo inquisitorial Daí também as ambigüidades de seu papel Por um lado tentase fazêlo entrar no cálculo geral das provas ressaltase que ela não passa de uma delas ela não é a evidentia rei assim como a mais forte das provas ela sozinha não pode levar à condenação deve ser acompanhada de indícios anexos e de presunções pois já houve acusados que se declararam culpados de crimes que não tinham cometido o juiz deverá então fazer pesquisas complementares se só estiver de posse da confissão regular do culpado Mas por outro lado a confissão ganha qualquer outra prova Até certo ponto ela as transcende elemento no cálculo da verdade ela é também o ato pelo qual o acusado aceita a acusação e reconhece que esta é bem fundamentada transforma uma afirmação feita sem ele em uma afirmação voluntária Pela confissão o próprio acusado toma lugar no ritual de produção de verdade penal Como já dizia o direito medieval a confissão torna a coisa notória e manifesta A esta primeira ambigüidade se sobrepõe uma segunda investigase de novo a confissão como prova particularmente forte que exige para levar à condenação apenas alguns indícios suplementares que reduzem ao mínimo o trabalho de informação e a mecânica de demonstração todas as formas possíveis de coerção serão utilizadas para obtêla Mas embora ela deva ser no processo a contrapartida viva e oral da informação escrita a réplica desta e como que sua autenticação por parte do acusado será cercada de garantias e formalidades Ela conserva alguma coisa de uma transação por isso exigese que seja espontânea que seja formulada diante do tribunal competente que seja feita com toda consciência que não trate de coisas impossíveis etc14 Pela confissão o acusado se compromete em relação ao processo ele assina a verdade da informação Essa dupla ambigüidade da confissão elemento de prova e contrapartida da informação efeito de coação e transação semivoluntária explica os dois grandes meios que o direito criminal clássico utiliza para obtêla o juramento que se pede ao acusado antes do interrogatório ameaça por conseguinte de ser perjuro diante da justiça dos homens e diante da de Deus e ao mesmo tempo ato ritual de compromisso a tortura violência física para arrancar uma verdade que de qualquer maneira para valer como prova tem que ser em seguida repetida diante dos juizes a título de confissão espontânea No fim do século XVIII a tortura será denunciada como resto das barbáries de uma outra época marca de uma selvageria denunciada como gótica É verdade que a prática da tortura remonta à Inquisição é claro e mais longe ainda do que os suplícios dos escravos Mas ela não figura no direito clássico como sua característica ou mancha Ela tem seu lugar estrito num mecanismo penal complexo em que o processo de tipo inquisitorial tem um lastro de elementos do sistema acusatório em que a demonstração escrita precisa de um correlato oral em que as técnicas da prova administrada pelos magistrados se misturam com os procedimentos de provas que eram desafios ao acusado em que lhe é pedido se necessário pela coação mais violenta que desempenhe no processo o papel do parceiro voluntário em que se trata em suma de produzir a verdade por um mecanismo de dois elementos o do inquérito conduzido em segredo pela autoridade judiciária e o do ato realizado ritualmente pelo acusado O corpo do acusado corpo que fala e se necessário sofre serve de engrenagem aos dois mecanismos é por isso que enquanto o sistema punitivo clássico não for totalmente reconsiderado haverá muito poucas críticas radicais da tortura15 Com muito mais freqüência simples conselhos de prudência O interrogatório é um meio perigoso de chegar ao conhecimento da verdade por isso os juizes não devem recorrer a ela sem refletir Nada é mais equívoco Há culpados que têm firmeza suficiente para esconder um crime verdadeiro e outros inocentes a quem a força dos tormentos fez confessar crimes de que não eram culpados16 Podese a partir daí encontrar o funcionamento do interrogatório como suplício da verdade Em primeiro lugar o interrogatório não é uma maneira de arrancar a verdade a qualquer preço não é absolutamente a louca tortura dos interrogatórios modernos é cruel certamente mas não selvagem Tratase de uma prática regulamentada que obedece a um procedimento bem definido com momentos duração instrumentos utilizados comprimentos das cordas peso dos chumbos número de cunhas intervenções do magistrado que interroga tudo segundo os diferentes hábitos cuidadosamente codificado17 A tortura é um jogo judiciário estrito E a esse título mais longe do que às técnicas da Inquisição ela se liga às antigas provas que se utilizavam nos processos acusatórios ordálias duelos judiciais julgamentos divinos Entre o juiz que ordena a tortura e o suspeito que é torturado há ainda como uma espécie de justa o paciente é o termo pelo qual é designado o supliciado é submetido a uma série de provas de severidade graduada e que ele ganha agüentando ou perde confessando18 Mas o juiz não impõe a tortura sem por seu lado correr riscos e não é só o perigo de ver morrer o suspeito ele põe alguma coisa em jogo no torneio que são os elementos de prova que já reuniu pois a regra diz que se o condenado agüenta e não confessa o magistrado é obrigado a abandonar as acusações O supliciado ganhou Daí o hábito que se introduzira para os casos mais graves de impor suplício do interrogatório com reserva de provas nesse caso o juiz podia continuar depois das torturas a fazer valer as presunções reunidas o suspeito não era inocentado por sua resistência mas pelo menos devia ele à sua vitória não mais poder ser condenado à morte O juiz conservava todas as cartas menos a principal Omnia citra mortem Daí a recomendação que se faz muitas vezes aos juizes de não submeter a suplício do interrogatório um suspeito contra o qual há convicção suficiente dos crimes mais graves pois se ele viesse a resistir à tortura o juiz não teria mais o direito de lhe infligir a pena de morte que ele merece entretanto nessa justa a justiça perderia se as provas são suficientes para condenar tal culpado à morte não se deve arriscar a condenação ao destino e ao desenlace de um suplício de interrogatório provisório que não leva a nada pois afinal é para o bemestar e o interesse público castigar para escarmento os crimes graves atrozes e capitais19 Sob a aparente pesquisa intensa de uma verdade urgente encontramos na tortura clássica o mecanismo regulamentado de uma prova um desafio físico que deve decidir sobre a verdade se o paciente é culpado os sofrimentos impostos pela verdade não são injustos mas ela é também uma prova de desculpa se ele for inocente Sofrimento confronto e verdade estão ligados uns aos outros na prática da tortura trabalham em comum o corpo do paciente A investigação da verdade pelo suplício do interrogatório é realmente uma maneira de fazer aparecer um indício o mais grave de todos a confissão do culpado mas é também a batalha é a vitória de um adversário sobre o outro que produz ritualmente a verdade A tortura para fazer confessar tem alguma coisa de inquérito mas tem também de duelo Do mesmo modo misturamse aí um ato de instrução e um elemento de punição E esse não é um de seus menores paradoxos Com efeito ela é definida como uma maneira de completar a demonstração quando não há penas suficientes no processo E é classificada entre as penas e uma pena tão grave que na hierarquia das punições a Ordenação de 1670 a insere logo depois da morte Como pode uma pena ser utilizada como um meio se perguntará mais tarde Como se pode fazer valer a título de castigo o que deveria ser um processo de demonstração A razão está na maneira como na época clássica a justiça criminal fazia funcionar a demonstração da verdade As diferentes partes da prova não constituíam outros tantos elementos neutros não lhes cabia serem reunidas num feixe único para darem a certeza final da culpa Cada indício trazia consigo um grau de abominação A culpa não começava uma vez reunidas todas as provas peça por peça ela era constituída por cada um dos elementos que permitiam reconhecer um culpado Assim uma meiaprova não deixava inocente o suspeito enquanto não fosse completada fazia dele um meioculpado o indício apenas leve de um crime grave marcava alguém como um pouco criminoso Enfim a demonstração em matéria penal não obedecia a um sistema dualista verdadeiro ou falso mas um princípio de gradação contínua um grau atingido na demonstração já formava um grau de culpa e implicava conseqüentemente num grau de punição O suspeito enquanto tal merecia sempre um certo castigo não se podia ser inocentemente objeto de suspeita A suspeita implicava ao mesmo tempo da parte do juiz um elemento de demonstração da parte do acusado a prova de uma certa culpa e da parte da punição uma forma limitada de pena Um suspeito que continuasse suspeito não estava inocentado por isso mas era parcialmente punido Quando se chegava a um certo grau de presunção podiase então legitimamente executar uma prática que tinha um duplo papel começar a punir em razão das indicações já reunidas e servirse deste início de pena para extorquir o resto de verdade que ainda faltava A tortura judiciária no século XVIII funciona nessa estranha economia em que o ritual que produz a verdade caminha a par com o ritual que impõe a punição O corpo interrogado no suplício constitui o ponto de aplicação do castigo e o lugar de extorsão da verdade E do mesmo modo que a presunção é solidariamente um elemento de inquérito e um fragmento de culpa o sofrimento regulado da tortura é ao mesmo tempo uma medida para punir e um ato de instrução Ora curiosamente essa engrenagem dos dois rituais através do corpo continua feita a prova e formulada a sentença na própria execução da pena E o corpo do condenado é novamente uma peça essencial no cerimonial do castigo público Cabe ao culpado levar à luz do dia sua condenação e a verdade do crime que cometeu Seu corpo mostrado passeado exposto supliciado deve ser como o suporte público de um processo que ficara até então na sombra nele sobre ele o ato de justiça deve se tornar legível para todos Essa manifestação atual e brilhante da verdade na execução pública das penas toma no século XVIII vários aspectos 1 Fazer em primeiro lugar do culpado o arauto de sua própria condenação Ele é encarregado de algum modo de proclamála e dessa maneira de atestar a verdade do que lhe foi reprovado passeio pelas ruas cartaz que lhe é pendurado nas costas no peito ou na cabeça para lembrar a sentença paradas em vários cruzamentos leitura do documento de condenação confissão pública à porta das igrejas durante a qual o condenado reconhece solenemente seu crime Descalço de camisola levando uma tocha de joelhos dizer e declarar que com maldade horrivelmente traidoramente e com intenção premeditada ele havia cometido o crime detestável etc exposição junto ao poste onde são lembrados os fatos e a sentença mais uma vez leitura da condenação ao pé do patíbulo quer se trate simplesmente do pelourinho ou da fogueira e da roda o condenado publica seu crime e a justiça que ele é obrigado a fazer a si mesmo levandoos fisicamente sobre o corpo 2 Prosseguir uma vez mais a cena da confissão Dublar a proclamação forçada da confissão pública com um reconhecimento espontâneo e público Estabelecer o suplício como momento da verdade Fazer com que esses últimos instantes em que o culpado não tem mais nada a perder sejam ganhos para a luz plena da verdade O tribunal podia mesmo decidir depois da condenação uma nova tortura para arrancar o nome dos eventuais cúmplices Estava também previsto que no momento de subir ao cadafalso o condenado podia pedir um tempo para fazer novas revelações O público esperava essa nova peripécia da verdade Muitos aproveitavam isso para ganhar um pouco de tempo como Michel Barbier culpado de ataque a mão armada Olhou desafiadoramente o cadafalso dizendo que não era para ele que tinham erguido já que era inocente pediu primeiro para subir ao quarto onde apenas ficou a divagar durante meia hora querendo sempre se justificar depois levado ao suplício sobe ao patíbulo decididamente mas quando se vê despojado das vestes e preso na cruz pronto a receber os golpes de barra pede para subir uma segunda vez ao quarto e lá finalmente confessa o crime e declara mesmo que era culpado de outro assassinato20 O verdadeiro suplício tem por função fazer brilhar a verdade e nisso ele continua até sob os olhos do público o trabalho do suplício do interrogatório Ele opõe à condenação a assinatura daquele que sofre Um suplício bem sucedido justifica a justiça na medida em que publica a verdade do crime no próprio corpo do supliciado Exemplo do bom condenado foi François Billiard caixageral do correio que em 1772 havia assassinado a mulher o carrasco queria esconderlhe o rosto para defendêlo dos insultos Não me infligiram disse ele essa pena que mereci para não ser visto pelo público Usava ainda o traje de luto pela mulher calçava escarpins novos tinha frisado os cabelos e aplicara pó branco à pele caminhava numa atitude tão modesta e imponente que as pessoas que haviam podido contemplálo mais de perto diziam que ele tinha que ser ou o cristão mais perfeito ou o maior de todos os hipócritas O cartaz que levava no peito estava torto notaram que ele mesmo o arrumava sem dúvida para que pudesse ser lido mais facilmente21 A cerimônia penal se cada um dos atores desempenha bem seu papel tem a eficácia de uma longa confissão pública 3 Prender o suplício no próprio crime estabelecer de um para o outro relações decifráveis Exposição do cadáver do condenado no local do crime ou num dos cruzamentos mais próximos Execução no próprio local em que o crime fora cometido como aquele estudante que em 1723 matara várias pessoas e para quem o tribunal de Nantes decidiu erguer um cadafalso em frente à porta do albergue onde ele cometera os assassinatos22 Utilização de suplícios simbólicos em que a forma da execução faz lembrar a natureza do crime furase a língua dos blasfemadores queimamse os impuros cortase o punho que matou às vezes fazse o condenado ostentar o instrumento de seu crime como Damiens com a famosa faquinha que foi coberta com enxofre e amarrada à mão culpada para queimar ao mesmo tempo que ele Como dizia Vico essa velha jurisprudência foi toda uma poética Enfim encontramos às vezes a reprodução quase teatral do crime na execução do culpado mesmos instrumentos mesmos gestos Aos olhos de todos a justiça faz os suplícios repetirem o crime publicandoo em sua verdade e anulandoo ao mesmo tempo na morte do culpado Ainda no final do século XVIII em 1772 encontramse sentenças como a seguinte Uma criada de Cambrai que matara sua senhora é condenada a ser levada ao lugar do suplício numa carroça usada para retirar as imundícies em todas as encruzilhadas lá haverá uma forca a cujo pé será colocada a mesma poltrona onde estava sentada a senhora Laleu sua patroa quando foi assassinada e sendo colocada lá o executor da alta justiça lhe cortará a mão direita e em sua presença a jogará ao fogo e lhe dará imediatamente depois quatro facadas com a faca utilizada por ela para assassinar a senhora Laleu a primeira e a segunda na cabeça a terceira no antebraço esquerdo e a quarta no peito feito o que será pendurada e estrangulada na dita forca até à morte e depois de duas horas seu cadáver será retirado e a cabeça separada ao pé da dita forca sobre o dito cadafalso com a mesma faca que ela utilizou para assassinar sua senhora e a cabeça exposta sobre uma figura de vinte pés fora da porta da dita Cambrai junto ao caminho que leva a Douai e o resto do corpo posto num saco e enterrado perto do dito poste a dez pés de profundidade23 4 Enfim a lentidão do suplício suas peripécias os gritos e o sofrimento do condenado têm ao termo do ritual judiciário o papel de uma derradeira prova Como qualquer agonia a que se desenrola no cadafalso diz uma certa verdade mas com mais intensidade na medida em que é pressionada pela dor com mais rigor pois está exatamente no ponto de junção do julgamento dos homens com o de Deus com mais ostentação pois se desenrola em público O sofrimento do suplício prolonga o da tortura preparatória nesta entretanto o jogo não estava feito e a vida podia ser salva agora a morte é certa tratase de salvar a alma O jogo eterno já começou o suplício antecipa as penas do além mostra o que são elas ele é o teatro do inferno os gritos do condenado sua revolta suas blasfêmias já significam seu destino irremediável Mas as dores deste mundo podem valer também como penitência para aliviar os castigos do além um martírio desses se é suportado com resignação Deus não deixará de levar em conta A crueldade da punição terrestre é considerada como dedução da pena futura nela se esboça a promessa do perdão Mas podese dizer ainda um sofrimento tão vivo não seria sinal de que Deus abandonou o culpado nas mãos dos homens E longe de garantir uma futura absolvição ele representa a danação iminente enquanto que se o condenado morre rápido sem agonia prolongada não é isso a prova de que Deus quis protegêlo e impedir que ele caísse no desespero Portanto ambigüidade desse sofrimento que pode do mesmo modo significar a verdade do crime ou o erro dos juizes a bondade ou a maldade do criminoso a coincidência ou a divergência entre o julgamento dos homens e o de Deus Daí essa extraordinária curiosidade que leva os espectadores a se comprimirem em torno do cadafalso e do sofrimento que este exibe lêemse aí o crime e a inocência o passado e o futuro este mundo e o eterno Momento de verdade que todos os espectadores interrogam cada palavra cada grito a duração da agonia o corpo que resiste a vida que não quer ser arrancada tudo isso vale por um sinal o homem que viveu seis horas na roda não querendo que o executor que o consolava e o encorajava sem dúvida por sua iniciativa o deixasse um só instante o que morre com os sentimentos mais cristãos e demonstra o mais sincero arrependimento o que expira na roda uma hora depois de lá ter sido posto dizem que os espectadores de seu suplício ficaram comovidos com suas demonstrações exteriores de religião e de arrependimento o que revelara os mais claros sinais de contrição durante todo o trajeto até o cadafalso e que colocado vivo na roda não cessa de dar gritos pavorosos ou ainda a mulher que conservara o sangue frio até o momento da leitura do julgamento mas cuja cabeça começou então a ficar perturbada e completamente louca ao ser enforcada24 O ciclo está fechado da tortura à execução o corpo produziu e reproduziu a verdade do crime Ou melhor ele constitui o elemento que através de todo um jogo de rituais e de provas confessa que o crime aconteceu que ele mesmo o cometeu mostra que o leva inscrito em si e sobre si suporta a operação do castigo e manifesta seus efeitos da maneira mais ostensiva O corpo várias vezes supliciado sintesa a realidade dos fatos e a verdade da informação dos atos de processo e do discurso do criminoso do crime e da punição Peça essencial conseqüentemente numa liturgia penal em que deve constituir o parceiro de um processo organizado em torno dos direitos formidáveis do soberano do inquérito e do segredo O suplício judiciário deve ser compreendido também como um ritual político Faz parte mesmo num modo menor das cerimônias pelas quais se manifesta o poder A infração segundo o direito da era clássica além do dano que pode eventualmente produzir além mesmo da regra que infringe prejudica o direito do que faz valer a lei Mesmo supondo que não haja prejuízo nem injúria ao indivíduo se foi cometida alguma coisa proibida por lei é um delito que exige reparação porque o direito do superior é violado e é injuriar a dignidade de seu caráter25 O crime além de sua vítima imediata ataca o soberano atacao pessoalmente pois a lei vale como a vontade do soberano atacao fisicamente pois a força da lei é a força do príncipe Pois para que uma lei pudesse vigorar neste reino era preciso necessariamente que emanasse diretamente do soberano ou pelo menos que fosse confirmada com o selo de sua autoridade26 A intervenção do soberano não é portanto uma arbitragem entre dois adversários é mesmo muito mais que uma ação para fazer respeitar os direitos de cada um é uma réplica direta àquele que a ofendeu O exercício do poder soberano na punição dos crimes é sem dúvida uma das partes essenciais na administração da justiça27 O castigo então não pode ser identificado nem medido como reparação do dano deve haver sempre na punição pelo menos uma parte que é a do príncipe e mesmo quando se combina com a reparação prevista ela constitui o elemento mais importante da liquidação penal do crime Ora essa parte que toca ao príncipe em si mesma não é simples ela implica por um lado na reparação do prejuízo que foi trazido ao reino a desordem instaurada o mau exemplo dado são prejuízos consideráveis que não têm comparação como o que é sofrido por um particular mas implica também em que o rei procure a vingança de uma afronta feita à sua pessoa O direito de punir será então como um aspecto do direito que tem o soberano de guerrear seus inimigos castigar provém desse direito de espada desse poder absoluto de vida ou de morte de que trata o direito romano ao se referir ao merum imperium direito em virtude do qual o príncipe faz executar sua lei ordenando a punição do crime28 Mas o castigo é também uma maneira de buscar uma vingança pessoal e pública pois na lei a força físicopolítica do soberano está de certo modo presente Vemos pela própria definição da lei que ela tende não só a defender mas também a vingar o desprezo de sua autoridade com a punição daqueles que vierem a violar suas defesas29 Na execução da pena mais regular no respeito mais exato das formas jurídicas reinam as forças ativas da vindita O suplício tem então uma função jurídicopolítica É um cerimonial para reconstituir a soberania lesada por um instante Ele a restaura manifestandoa em todo o seu brilho A execução pública por rápida e cotidiana que seja se insere em toda a série dos grandes rituais do poder eclipsado e restaurado coroação entrada do rei numa cidade conquistada submissão dos súditos revoltados por cima do crime que desprezou o soberano ela exibe aos olhos de todos uma força invencível Sua finalidade é menos de estabelecer um equilíbrio que de fazer funcionar até um extremo a dissimetria entre o súdito que ousou violar a lei e o soberano todo poderoso que faz valer sua força Se a reparação do dano privado ocasionado pelo delito deve ser bem proporcionada se a sentença deve ser justa a execução da pena é feita para dar não o espetáculo da medida mas do desequilíbrio e do excesso deve haver nessa liturgia da pena uma afirmação enfática do poder e de sua superioridade intrínseca E esta superioridade não é simplesmente a do direito mas a da força física do soberano que se abate sobre o corpo de seu adversário e o domina atacando a lei o infrator lesa a própria pessoa do príncipe ela ou pelo menos aqueles a quem ele delegou sua força se apodera do corpo do condenado para mostrálo marcado vencido quebrado A cerimônia punitiva é aterrorizante Os juristas do século XVIII ao entrarem em polêmica com os reformadores darão uma interpretação restritiva e modernista da crueldade física das penas se são necessárias penas severas é porque o exemplo deve ficar profundamente inscrito no coração dos homens Na realidade entretanto o que até então sustentara essa prática dos suplícios não era a economia do exemplo no sentido em que isso será entendido na época dos ideólogos de que a representação da pena é mais importante do que o interesse pelo crime mas a política do medo tornar sensível a todos sobre o corpo do criminoso a presença encolerizada do soberano O suplício não restabelecia a justiça reativava o poder No século XVII e ainda no começo do XVIII ele não era com todo o seu teatro de terror o resíduo ainda não extinto de uma outra época Suas crueldades sua ostentação a violência corporal o jogo desmesurado de forças o cerimonial cuidadoso enfim todo o seu aparato se engrenava no funcionamento político da penalidade Podese compreender a partir daí certas características da liturgia dos suplícios E antes de mais nada a importância de um ritual que devia exibir seu fausto em público Nada devia ser escondido desse triunfo da lei Os episódios eram tradicionalmente os mesmos e no entanto as sentenças não deixavam de enumerá los de tal modo eles eram importantes no mecanismo penal desfiles paradas nos cruzamentos permanência à porta das igrejas leitura pública da sentença ajoelhar se declarações em voz alta de arrependimento pela ofensa feita a Deus e ao rei As questões de precedência e etiqueta eram muitas vezes reguladas pelo próprio tribunal Os oficiais irão a cavalo segundo a ordem abaixo a saber à frente os dois sargentos de polícia em seguida o paciente depois deste Bonfort e Le Corre caminharão juntos à sua esquerda e darão lugar ao escrivão que os seguirá e desta maneira irão à praça pública do grande mercado em que será executado o julgamento30 Ora esse cerimonial meticuloso é de uma maneira muito explícita não só judicial mas militar A justiça do rei mostrase como uma justiça armada O gládio que pune o culpado é também o que destrói os inimigos Todo um aparato militar cerca o suplício sentinelas arqueiros policiais soldados Pois importa evidentemente impedir qualquer evasão ou ato de violência importa prevenir também da parte do povo um movimento de simpatia para salvar os condenados ou uma onda de indignação para matálos imediatamente importa igualmente lembrar que em todo crime há uma espécie de sublevação contra a lei e que o criminoso é um inimigo do príncipe Todas essas razões quer sejam de precaução numa determinada conjuntura ou de função no desenrolar de um ritual fazem da execução pública mais uma manifestação de força do que uma obra de justiça ou antes é a justiça como força física material e temível do soberano que é exibida A cerimônia do suplício coloca em plena luz a relação de força que dá poder à lei Como ritual da lei armada em que o príncipe se mostra ao mesmo tempo e de maneira indissociável sob o duplo aspecto de chefe de justiça e chefe de guerra a execução pública tem duas faces uma de vitória outra de luta De um lado ela é o desfecho entre o criminoso e o soberano cujo resultado é conhecido antecipadamente ela deve manifestar o poder sem medidas do soberano sobre aqueles que ele reduziu à impotência A dissimetria o irreversível desequilíbrio das forças faziam parte das funções do suplício Um corpo liquidado reduzido à poeira e jogado ao vento um corpo destruído parte por parte pelo poder infinito do soberano constitui o limite não só ideal mas real do castigo Atesta esse fato o famoso suplício de la Massola aplicado em Avignon e que foi um dos primeiros a excitar a indignação dos contemporâneos suplício aparentemente paradoxal pois se desenrola quase inteiramente depois da morte e a justiça não faz outra coisa que estender sobre um cadáver seu teatro magnífico a louvação ritual de suas forças o condenado é amarrado a um poste com os olhos vendados em toda a volta sobre o cadafalso estacas com ganchos de ferro O confessor fala com o paciente ao ouvido e depois que ele lhe dá a bênção imediatamente o executor com uma maça de ferro das que são usadas nos matadouros descarrega um golpe com toda a força na têmpora do infeliz que cai morto no mesmo instante o mortis exactor lhe corta o pescoço com uma grande faca banhandose de sangue num espetáculo horrível para os olhos cortalhe os nervos até os dos calcanhares e em seguida abrelhe o ventre de onde tira o coração o fígado o baço os pulmões pendurandoos num gancho de ferro e o corta e disseca em pedaços que põe em outros ganchos à medida que vai cortando assim como se faz com os de um animal Quem puder que olhe uma coisa dessas31 Na forma lembrada explicitamente do açougue a destruição infinitesimal do corpo equivale aqui a um espetáculo cada pedaço é exposto no balcão O suplício se realiza num grandioso cerimonial de triunfo mas comporta também como núcleo dramático em seu desenrolar monótono uma cena de confronto de inimigos é a ação imediata e direta do carrasco sobre o corpo do paciente Ação codificada é claro pois o costume e muitas vezes de maneira explícita a sentença prescrevem os principais episódios Esta ação no entanto conserva alguma coisa da batalha O executor não é simplesmente aquele que aplica a lei mas o que exibe a força é o agente de uma violência aplicada à violência do crime para dominála Desse crime ele é o adversário material e físico Adversário ora digno de piedade ora encarniçado Damhoudère se queixava bem como muitos contemporâneos seus de que os carrascos praticavam toda espécie de crueldade para com os pacientes malfeitores maltratandoos com empurrões e pontapés e matandoos como se tivessem animais sob suas mãos32 E durante muito tempo esse hábito persistirá33 Há também alguma coisa de desafio e de justa na cerimônia do suplício Se o carrasco triunfa se consegue fazer saltar com um golpe a cabeça que lhe mandaram abater ele a mostra ao povo põe na no chão e saúda em seguida o público que o ovaciona muito batendo palmas34 Ao contrário se ele fracassa se não consegue matar como devia é passível de punição Foi o caso do carrasco de Damiens que como não soubesse esquartejálo de acordo com as regras teve que cortálo com a faca confiscaram em proveito dos pobres os cavalos do suplício que lhe tinham sido prometidos Alguns anos mais tarde o carrasco de Avignon fizera sofrer demais os três bandidos aliás temíveis que devia enforcar os espectadores se aborrecem denunciamno para punilo e também para subtraílo à vindita popular é preso35 E por trás dessa punição do carrasco inábil encontramos uma tradição ainda bem próxima ela dizia que o condenado seria perdoado se a execução fracassasse Era um costume claramente estabelecido em certas regiões36 Muitas vezes o povo esperava que tal tradição fosse aplicada e às vezes protegia um condenado que dessa maneira acabava escapando à morte Para fazer desaparecer tanto o costume quanto a expectativa foi preciso lembrar o adágio a força não perde sua presa foi necessário o cuidado de introduzir nas sentenças capitais instruções explícitas pendurado e estrangulado até a morte até à extinção da vida E jurista como Serpillon ou Blackstone insistem em pleno século XVIII no fato de que o fracasso do carrasco não deve significar que o condenado salvou a vida37 Havia algo da prova e do julgamento de Deus que ainda se podia perceber na cerimônia da execução Em sua confrontação com o condenado o executor era um pouco como o campeão do rei Campeão entretanto não condenável e condenado a tradição dizia parece que quando as cartas do carrasco haviam sido lacradas não eram postas na mesa mas jogadas à terra Conhecemse todas as proibições que cercam esse ofício muito necessário mas contrário à natureza38 Apesar de o carrasco ser em certo sentido o gládio do rei partilhava da infâmia do adversário O poder soberano que o obrigava a matar e que agia através dele não estava presente nele não se identificava com sua fúria E justamente nunca aparecia com tanta ostentação do que ao sustar eventualmente com uma carta de indulto o gesto do executor O pouco tempo que comumente separava a sentença da execução muitas vezes algumas horas fazia com que geralmente a remissão interviesse no último momento Mas a cerimônia com a lentidão de seus lances havia sido organizada para permitir essa eventualidade39 Os condenados a esperavam e para fazer durar as coisas pretendiam ainda ao pé do cadafalso ter revelações a fazer O povo quando a desejava lembravaa aos gritos procurando retardar o último momento observando se o mensageiro vinha trazer a carta com lacre de cera verde e se necessário sugeriam que ele estava chegando foi o que aconteceu no momento em que eram executados os condenados por sublevação popular ocasionada por raptos de crianças em 3 de agosto de 1750 O soberano está presente à execução não só como o poder que vinga a lei mas como o poder que é capaz de suspender tanto a lei quanto a vingança Só ele como senhor deve decidir se lava as mãos ou as ofensas que lhe foram feitas embora tenha conferido aos tribunais o cuidado de exercer seu poder de justiça ele não o alienou conservao integralmente para suspender a pena ou fazêla valer Devese conceber o suplício tal como é ritualizado ainda no século XVIII como um agente político Ele entra logicamente num sistema punitivo em que o soberano de maneira direta ou indireta exige resolve e manda executar os castigos na medida em que ele através da lei é atingido pelo crime Em toda infração há um crimen majestatis e no menor dos criminosos um pequeno regicida em potencial E o regicida por sua vez não é nem mais nem menos que o criminoso total e absoluto pois em vez de atacar como qualquer delinqüente uma decisão ou uma vontade particular do poder soberano ele ataca seu princípio na pessoa física do príncipe A punição do regicida deveria ser soma de todos os suplícios possíveis Seria a vingança infinita as leis francesas em todo caso não previam pena fixa para essa espécie de monstruosidade Foi preciso inventar a de Ravaillac combinando entre si as mais cruéis que tinham sido praticadas na França Queriam imaginar ainda mais atrozes para Damiens Houve projetos mas foram considerados menos perfeitos Retomouse então a cena de Ravaillac E temos que reconhecer que foram moderados comparados com os suplícios que em 1584 o assassino de Guilherme de Orange teve que suportar entregue a uma vingança sem fim No primeiro dia ele foi levado à praça onde encontrou uma caldeira dágua fervente onde foi enfiado o braço com o qual desferira o golpe No dia seguinte o braço foi cortado e tendo caído a seus pés chutouo lá de cima do cadafalso sem pestanejar no terceiro foi atenazado na frente nos mamilos e na parte dianteira do braço no quarto foi igualmente atenazado nos braços por trás e nas nádegas e assim consecutivamente esse homem foi martirizado pelo espaço de dezoito dias No último foi posto na roda e atado Ao fim de seis horas ainda pedia água que não lhe deram Finalmente pediram ao magistrado que autorizasse liquidálo por estrangulamento para que sua alma não desesperasse e se perdesse40 Não há dúvida de que a existência dos suplícios se ligava a alguma coisa bem diferente dessa organização interna Rusche e Kirchheimer têm razão de ver aí o efeito de um regime e produção em que as forças de trabalho e portanto o corpo humano não têm a utilidade nem o valor de mercado que lhes serão conferidos numa sociedade de tipo industrial É certo também que o desprezo pelo corpo se refere a uma atitude geral em relação à morte e nessa atitude poderseia tanto os valores próprios ao cristianismo quanto uma situação demográfica e de certo modo biológica as devastações da doença e da fome os morticínios periódicos das epidemias a enorme mortalidade infantil a precariedade dos equilíbrios bioeconômicos tudo isso tornava a morte familiar e provocava em torno dela rituais para integrála tornála aceitável e dar sentido à sua agressão permanente Seria necessário também para analisar esse longo período de legalidade dos suplícios referirse a fatos de conjuntura não devemos esquecer que a ordenação de 1670 que regulou a justiça criminal até às vésperas da Revolução agravara ainda em certos pontos o rigor dos antigos editos Pussort que entre os comissários encarregados de preparar os textos representava as intenções do rei a impusera dessa maneira apesar de certos magistrados como Lamoignon a multiplicidade das sublevações ainda no meio da era clássica a ameaça de iminentes guerras civis a vontade do rei de fazer valer seu poder em prejuízo dos parlamentos explicam em grande parte a persistência de um regime penal duro Para explicar o emprego do suplício como penalidade não faltam razões gerais e de algum modo externas que esclarecem a possibilidade e a longa persistência das penas físicas a fraqueza e o caráter bastante isolado dos protestos feitos Mas sobre esse fundo é preciso fazer aparecer sua função precisa O suplício se inseriu tão fortemente na prática judicial porque é revelador da verdade e agente do poder Ele promove a articulação do escrito com o oral do secreto com o público do processo de inquérito com a operação de confissão permite que o crime seja reproduzido e voltado contra o corpo visível do criminoso faz com que o crime no mesmo horror se manifeste e se anule Faz também do corpo do condenado o local de aplicação da vindita soberana o ponto sobre o qual se manifesta o poder a ocasião de afirmar a dissimetria das forças Veremos mais adiante que a relação verdadepoder é essencial a todos os mecanismos de punição e se encontra nas práticas contemporâneas da penalidade mas com uma forma totalmente diversa e com efeitos muito diferentes O iluminismo logo há de desqualificar os suplícios reprovandolhes a atrocidade Termo pelo qual os suplícios eram muitas vezes caracterizados sem intenção crítica pelos próprios juristas Talvez a noção de atrocidade seja uma das que melhor designam a economia do suplício na antiga prática penal A atrocidade é em primeiro lugar um caráter próprio a certos grandes crimes ela se refere ao número de leis naturais e positivas divinas ou humanas que eles violam à ostentação escandalosa ou ao contrário à esperteza secreta com que foram cometidos ao nível social e ao status dos que são seus autores e vítimas à desordem que implicam ou ocasionam ao horror que suscitam Mas na medida em que a punição põe em cena aos olhos de todos o crime em toda a sua severidade deve assumir essa atrocidade deve trazêla à luz por meio de confissões discursos inscrições que a tornem pública deve reproduzila em cerimônias que a apliquem ao corpo do culpado sob forma de humilhação e de sofrimento A atrocidade é essa parte do crime que o castigo torna em suplício para fazer brilhar em plena luz figura inerente ao mecanismo que produz no próprio coração da punição a verdade visível do crime O suplício faz parte do procedimento que estabelece a realidade do que é punido Mas não é só a atrocidade de um crime é também a violência do desafio lançado ao soberano é o que vai provocar da parte dele uma réplica que tem por função ir mais longe que essa atrocidade dominála vencêla por um excesso que a anula A atrocidade que paira sobre o suplício desempenha portanto um duplo papel sendo princípio da comunicação do crime com a pena ela é por outro lado a exasperação do castigo em relação ao crime Realiza ao mesmo tempo a ostentação da verdade e do poder é o ritual do inquérito que termina e da cerimônia onde triunfa o soberano E ela os une no corpo supliciado A prática punitiva do século XIX procurará pôr o máximo de distância possível entre a pesquisa serena da verdade e a violência que não se pode eliminar inteiramente da punição Será feito o possível para marcar a heterogeneidade que separa o crime que deve ser sancionado e o castigo imposto pelo poder público Entre a verdade e a punição só deverá haver agora uma relação de conseqüência legítima Que o poder que sanciona não se macule mais por um crime maior que o que ele quis castigar Que fique inocente da pena que inflige Tratemos de proscrever tais suplícios Eram dignos só dos monstros coroados que governaram os romanos41 Mas de acordo com a prática penal da época anterior a proximidade do crime e do soberano no crime a mistura que se fazia entre a demonstração e o castigo não provinham de uma confusão bárbara o que então se realizava era o mecanismo da atrocidade e suas ligações necessárias A atrocidade da expiação organizava a redução ritual da infâmia pelo todopoderoso Que o erro e a punição se intercomuniquem e se liguem sob a forma de atrocidade não era a conseqüência de uma lei de talião obscuramente admitida Era o efeito nos ritos punitivos de uma certa mecânica do poder de um poder que não só não se furta a se exercer diretamente sobre os corpos mas se exalta e se reforça por suas manifestações físicas de um poder que se afirma como poder armado e cujas funções de ordem não são inteiramente desligadas das funções de guerra de um poder que faz valer as regras e as obrigações como laços pessoais cuja ruptura constitui uma ofensa e exige vingança de um poder para o qual a desobediência é um ato de hostilidade um começo de sublevação que não é em seu princípio muito diferente da guerra civil de um poder que não precisa demonstrar por que aplica suas leis mas quem são seus inimigos e que forças descontroladas os ameaçam de um poder que na falta de uma vigilância ininterrupta procura a renovação de seu efeito no brilho de suas manifestações singulares de um poder que se retempera ostentando ritualmente sua realidade de superpoder Ora entre todas as razões pelas quais os castigos que reivindicarão a honra de ser humanos substituirão as penas que não tinham vergonha de ser atrozes há uma que devemos analisar imediatamente pois é inerente ao próprio suplício ao mesmo tempo elemento de seu funcionamento e princípio de sua perpétua desordem Nas cerimônias do suplício o personagem principal é o povo cuja presença real e imediata é requerida para sua realização Um suplício que tivesse sido conhecido mas cujo desenrolar houvesse sido secreto não teria sentido Procurava se dar o exemplo não só suscitando a consciência de que a menor infração corria sério risco de punição mas provocando um efeito de terror pelo espetáculo do poder tripudiando sobre o culpado Em matéria criminal o ponto mais difícil é a imposição da pena é o objetivo e o fim do processo e o único fruto pelo exemplo e pelo terror quando é bem aplicada ao culpado42 Mas nessa cena de terror o papel do povo é ambíguo Ele é chamado como espectador é convocado para assistir às exposições às confissões públicas os pelourinhos as forcas e os cadafalsos são erguidos nas praças públicas ou à beira dos caminhos os cadáveres dos supliciados muitas vezes são colocados bem em evidência perto do local de seus crimes As pessoas não só têm que saber mas também ver com seus próprios olhos Porque é necessário que tenham medo mas também porque devem ser testemunhas e garantias da punição e porque até certo ponto devem tomar parte nela Ser testemunhas é um direito que eles têm e reivindicam um suplício escondido é um suplício de privilegiado e muitas vezes suspeitase que não se realize em toda a sua severidade Todos protestam quando no último instante se retira a vítima aos olhares dos espectadores O caixageral do correio exposto porque matara a mulher é em seguida subtraído à multidão fazemno subir numa carruagem de praça se não estivesse bem escoltado teria sido difícil defendêlo dos maus tratos da populaça que queria justiçálo43 Quando a mulher Lescombat é enforcada tiveram a cautela de lhe esconder o rosto com uma espécie de coifa ela leva um lenço sobre o colo e a cabeça o que faz o público murmurar muito e dizer que não era a Lescombat44 O povo reivindica seu direito de constatar o suplício e quem é supliciado45 Tem direito também de tomar parte O condenado depois de ter andado muito tempo exposto humilhado várias vezes lembrado do horror de seu crime é oferecido aos insultos às vezes aos ataques dos espectadores Na vingança do soberano a do povo era chamada a se insinuar Não que esta seja o fundamento daquela e que o rei deva à sua maneira traduzir a vindita do povo é antes o povo que deve trazer sua participação ao rei quando este vai se vingar de seus inimigos até e principalmente quando esses inimigos estão no meio do povo Há um tal qual serviço de cadafalso que o povo deve à vingança do rei Serviço que fora previsto pelas velhas ordenações o edito de 1347 sobre os blasfemadores previa que seriam expostos no pelourinho desde a primeira hora da manhã até à da morte E se poderá lhes jogar nos olhos lama e outras sujeiras sem pedra ou outra coisa que fira Na segunda vez em caso de reincidência queremos que seja posto no pelourinho em dia de mercado solene e que o lábio superior seja tendido e que apareçam os dentes Sem dúvida na época clássica essa forma de participação ao suplício já não é mais que uma tolerância que se procura limitar por causa das barbaridades que provoca e da usurpação que faz do poder de punir Mas ela pertencia muito intimamente à economia geral dos suplícios e não podia por isso ser totalmente reprimida Ainda se vêem no século XVIII cenas como a do suplício de Montigny enquanto o carrasco executava o condenado as peixeiras de La Halle andavam com um boneco ao qual decepavam a cabeça46 E várias vezes foi preciso proteger da multidão os criminosos que eram obrigados a desfilar lentamente no meio dela ao mesmo tempo para escarmento e alvo ameaça eventual e presa prometida e ao mesmo tempo proibida O soberano ao chamar a multidão para a manifestação de seu poder tolerava um instante as violências que ele permitia como sinal de fidelidade mas às quais opunha imediatamente os limites de seus próprios privilégios Ora é nesse ponto que o povo atraído a um espetáculo feito para aterrorizálo pode precipitar sua recusa do poder punitivo e às vezes sua revolta Impedir uma execução que se considera injusta arrancar um condenado às mãos do carrasco obter à força seu perdão eventualmente perseguir e assaltar os executores de qualquer maneira maldizer os juizes e fazer tumulto contra a sentença isso tudo faz parte das práticas populares que contrariam perturbam e desorganizam muitas vezes o ritual dos suplícios Claro isto sucede com freqüência quando as condenações sancionam revoltas foi o que sucedeu aos seqüestras de crianças quando a multidão queria impedir a execução de três supostos amotinados condenados à forca no cemitério SaintJean porque há menos saídas e desfiladeiros para guardar47 o carrasco amedrontado soltou um dos condenados os arqueiros atiraram Foi o caso depois da sublevação dos trigos em 1775 ou ainda em 1786 quando os trabalhadores diaristas depois de ter marchado sobre Versalhes começaram a libertar os seus que tinham sido presos Mas fora desses casos em que o processo de agitação é provocado anteriormente e por razões que não se referem a uma medida de justiça penal encontramos muitos exemplos em que a agitação é provocada diretamente por um veredicto e uma execução Pequenas mas inúmeras emoções de cadafalso Em suas formas mais elementares essas agitações começam com os encorajamentos as aclamações às vezes que acompanham o condenado até a execução Durante toda a sua longa caminhada ele é sustentado pela compaixão dos que têm coração sensível e os aplausos a admiração a inveja dos que são cruéis e duros48 Se a multidão se comprime em torno do cadafalso não é simplesmente para assistir ao sofrimento do condenado ou excitar a raiva do carrasco é também para ouvir aquele que não tem mais nada a perder maldizer os juizes as leis o poder a religião O suplício permite ao condenado essas saturnais de um instante em que nada mais é proibido nem punível Ao abrigo da morte que vai chegar o criminoso pode dizer tudo e os assistentes aclamálo Se houvesse anais para registrar escrupulosamente as últimas palavras dos supliciados e se tivesse a coragem de percorrêlos se se perguntasse a essa vil população reunida por uma curiosidade cruel em torno dos cadafalsos ela responderia que não há culpado amarrado à roda que não morra acusando o céu da miséria que o levou ao crime reprovando a barbárie de seus juizes maldizendo o ministério dos altares que os acompanha e blasfemando contra Deus de que ele é o instrumento49 Há nessas acusações que só deveriam mostrar o poder aterrorizante do príncipe todo um aspecto de carnaval em que os papéis são invertidos os poderes ridicularizados e os criminosos transformados em heróis A infâmia se transforma no contrário a coragem deles seus gritos e lamentos só podem preocupar a lei Fielding observa com pesar Quando se vê tremer um condenado não se pensa na vergonha E menos ainda se ele é arrogante50 Para o povo que aí está e olha sempre existe mesmo na mais extremada vingança do soberano pretexto para uma revanche Ainda mais se a condenação é considerada injusta E se vê levar à morte um homem do povo por um crime que teria custado a alguém mais bem nascido ou mais rico uma pena relativamente leve Parece que certas práticas da justiça penal não eram mais suportadas no século XVIII e talvez desde há muito tempo pelas camadas profundas da população O que facilmente dava lugar pelo menos a começos de agitação Já que os mais pobres observa um magistrado não têm possibilidade de ser ouvidos na justiça51 eles podem intervir fisicamente onde quer que ela se manifeste publicamente onde quer que eles sejam chamados como testemunhas e quase coadjutores dessa justiça entrando violentamente no mecanismo punitivo e redistribuindo os efeitos dele repetindo em outro sentido a violência dos rituais punitivos Agitação contra a diferença das penas segundo as classes sociais em 1781 o cura de Champré foi morto pelo senhor do local que muitos querem fazer passar por louco os camponeses furiosos porque eram extremamente ligados ao seu pastor pareceram primeiro dispostos a ir aos últimos excessos contra seu senhor cujo castelo ameaçaram incendiar Todo mundo reclamava com razão contra a indulgência do ministério que retirava à justiça os meios de punir um crime tão abominável52 Agitação também contra as penas excessivamente pesadas para os delitos freqüentes e considerados pouco graves latrocínio com arrombamento ou contra castigos que punem certas infrações ligadas a condições sociais como o furto doméstico a pena de morte para esse crime provocava muito descontentamento porque os criados eram numerosos e era difícil para eles nesse assunto provar sua inocência podiam ser facilmente vítimas da maldade dos patrões e a indulgência de certos senhores que fechavam os olhos tornava mais iníqua a sorte dos servidores acusados condenados e enforcados A execução desses criados muitas vezes dava lugar a protestos53 Houve uma pequena revolta em Paris em 1761 por causa de uma criada que roubara um pedaço de tecido do patrão Apesar da restituição apesar das súplicas este não quis retirar a queixa no dia da execução o pessoal do bairro impede o enforcamento invade a loja do comerciante e a saqueia a empregada é finalmente perdoada mas uma mulher que quase picotara a agulhadas o mau patrão é banida por três anos54 No século XVIII recordamse os grandes casos judiciais em que a opinião das pessoas esclarecidas intervém junto com a dos filósofos e certos magistrados Calas Sirven o cavaleiro de La Barre Mas falase menos de todas essas agitações populares em torno da prática punitiva Raramente com efeito elas ultrapassaram o âmbito de uma cidade às vezes de um bairro Tiveram entretanto real importância Porque esses movimentos partindo de baixo se propagaram chamaram a atenção de gente mais bem colocada que ao chamar a atenção para eles lhes deram uma nova dimensão assim nos anos que precederam a Revolução os casos de Catherine Espinas falsamente acusada de parricídio em 1785 os três condenados à roda de Chaumont para quem Dupaty em 1786 escrevera sua famosa memória ou daquela Marie Françoise Salmon que o parlamento de Rouen em 1782 condenara à fogueira como envenenadora mas que em 1786 continuava sem ser executada E também porque essas agitações conservaram em torno da justiça penal e de suas manifestações que deveriam ter sido exemplares uma inquietação permanente Quantas vezes para manter a calma em volta dos cadafalsos foi necessário tomar providências penosas para o povo e precauções humilhantes para a autoridade55 Viase bem que o grande espetáculo das penas corria o risco de retornar através dos mesmos a quem se dirigia O pavor dos suplícios na realidade acendia focos de ilegalismo nos dias de execução o trabalho era interrompido as tabernas ficavam cheias lançavamse injúrias ou pedras ao carrasco aos policiais e aos soldados procuravase apossar do condenado para salválo ou para melhor matálo brigava se e os ladrões não tinham ocasião melhor que o aperto e a curiosidade em torno do cadafalso56 Mas principalmente e aí é que esses inconvenientes se tornavam um perigo político em nenhuma outra ocasião do que nesses rituais organizados para mostrar o crime abominável e o poder invencível o povo se sentia mais próximo dos que sofriam a pena em nenhuma outra ocasião ele se sentia mais ameaçado como eles por uma violência legal sem proporção nem medida A solidariedade de toda uma camada da população com os que chamaríamos pequenos delinqüentes vagabundos falsos mendigos maus pobres batedores de carteira receptadores passadores se manifestou com muita continuidade atestam esse fato a resistência ao policiamento a caça aos denunciantes os ataques contra as sentinelas ou os inspetores57 E era a ruptura dessa solidariedade que visava sempre mais a repressão penal e policial Muito mais do que o poder soberano podia essa solidariedade sair reforçada da cerimônia dos suplícios dessa festa incerta onde a violência era instantaneamente reversível E os reformadores do século XVIII e XIX não esquecerão que as execuções no fim das contas simplesmente não assustavam o povo Um de seus primeiros apelos foi exigir a suspensão delas Para definir o problema político trazido pela intervenção popular na ação do suplício basta citar duas cenas Uma data do fim do século XVII situase em Avignon Aí encontramos os principais elementos do teatro do tormento confrontação física do carrasco e do condenado a inversão da justa o executor perseguido pelo povo o condenado salvo pelos revoltosos e a violenta reviravolta da maquinaria penal Ia ser enforcado um assassino chamado Pierre du Fort várias vezes ele prendeu os pés nos degraus e não pôde ficar suspenso no vazio Vendo isso o carrasco lhe cobriu o rosto com seu gibão e lhe batia por baixo do joelho sobre o estômago e a barriga Vendo o povo que ele o fazia sofrer demais e pensando mesmo que o degolava com uma baioneta tomado de compaixão pelo paciente e de fúria contra o carrasco jogou pedras contra ele enquanto isto o carrasco abriu as duas escadas e jogou a vitima para baixo saltandolhe sobre os ombros e pisandoa enquanto a mulher do dito carrasco o puxava pelos pés por baixo da forca Fizeramlhe sair sangue da boca Mas a chuva de pedras contra ele aumentou houve até algumas que atingiram o enforcado na testa o que obrigou o carrasco a subir a escada de onde desceu com tanta precipitação que caiu no meio dela e deu com a cabeça no chão E a multidão se lançou sobre ele Este se levantou com uma baioneta na mão ameaçando matar quem se aproximasse mas depois de cair e se levantar várias vezes apanhou muito do povo que o emporcalhou e o afogou no riacho arrastandoo em seguida com grande paixão e fúria até à Universidade e de lá até o cemitério dos Cordeliers Seu criado igualmente surrado com a cabeça e o corpo machucados foi levado ao hospital onde morreu alguns dias depois Entretanto alguns forasteiros e desconhecidos subiram a escada e cortaram a corda do enforcado enquanto outros o recebiam por baixo depois de ter ficado pendurado o tempo maior que um grande Miserere E ao mesmo tempo quebraram a forca e o povo fez em pedaços a escada do carrasco As crianças atiraram a forca com grande precipitação no Ródano Quanto ao supliciado foi transportado para um cemitério para não ser apanhado pela justiça e de lá para a Igreja de SaintAntoine O arcebispo lhe concedeu o perdão mandou transportálo para o hospital e recomendou aos oficiais que tomassem com ele um cuidado todo especial Enfim acrescenta o redator da ata mandamos fazer uma roupa nova dois pares de meias sapatos vestimolo de novo da cabeça aos pés Os nossos confrades lhe deram camisas calções luvas e uma peruca58 A outra cena se situa em Paris um século mais tarde Foi em 1775 logo depois da revolta sobre os trigos A tensão muito forte no povo faz com que se deseje uma execução limpa Entre o cadafalso e o público cuidadosamente mantido à distância uma dupla fileira de soldados vigia de um lado a execução iminente de outro a revolta possível O contato está rompido suplício público mas onde a parte do espetáculo é neutralizada ou melhor reduzida à intimidação abstrata Ao abrigo das armas numa praça vazia a justiça sobriamente executa Se ela mostra a morte que dá é de cima e de longe Só às três horas da tarde tinham sido colocadas as duas forcas de 18 pés de altura e sem dúvida para maior exemplo Desde as duas horas a praça de Grève e todos os arredores tinham sigo guarnecidos por destacamentos das diferentes tropas tanto a pé quanto a cavalo os suíços e as guardas francesas continuavam suas patrulhas nas ruas adjacentes Não foi permitida a entrada de ninguém na Grève durante a execução e em toda a volta se via uma dupla fileira de soldados com a baioneta no fuzil enfileirados de costas uns para os outros de maneira que uns olhassem o exterior e outros o interior da praça os dois infelizes gritavam ao longo do caminho que eram inocentes e continuavam a protestar da mesma maneira subindo na escada59 No abandono da liturgia dos suplícios que papel tiveram os sentimentos de humanidade para com os condenados Houve de todo modo de parte do poder um medo político diante do efeito desses rituais ambíguos Tal equívoco aparece claramente no que se poderia chamar discurso de cadafalso O rito da execução previa que o próprio condenado proclamasse sua culpa reconhecendoa publicamente de viva voz pelo cartaz que levava e também pelas declarações que sem dúvida era obrigado a fazer No momento da execução parece que lhe deixavam além disso tomar a palavra não para clamar sua inocência mas para atestar seu crime e a justiça de sua condenação As crônicas reportam um bom número de discursos desse gênero Discursos reais Sem dúvida num certo número de casos Discursos fictícios que em seguida se faziam circular para exemplo e exortação Foi sem dúvida ainda o caso mais freqüente Que crédito dar ao que se conta por exemplo da morte de Marion Le Goff famosa chefe de quadrilha na Bretanha em meados do século XVIII Ela teria gritado do alto do cadafalso Pai e mãe que me ouvem guardai e ensinai bem vossos filhos fui em minha infância mentirosa e preguiçosa comecei roubando uma faquinha de seis réis depois assaltei mascates mercadores de gado enfim comandei uma quadrilha de ladrões e por isso estou aqui Dizei isso a vossos filhos e que ao menos lhes sirva de exemplo60 Tal discurso se parece demais até nos termos da moral tradicionalmente encontrada nos folhetins nos pasquins e na literatura popular para que não seja apócrifo Mas a existência do gênero últimas palavras de um condenado é em si mesma significativa A justiça precisava que sua vítima autenticasse de algum modo o suplício que sofria Pediase ao criminoso que consagrasse ele mesmo sua própria punição proclamando o horror de seus crimes faziamno dizer como Jean Dominique Langlade três vezes assassino Escutai todos minha ação horrível infame e lamentável cometida na cidade de Avignon onde minha lembrança é execrável ao violar sem humanidade os direitos sagrados da amizade61 De um certo ponto de vista o folhetim e o canto do morto são a continuação do processo ou antes eles continuam o mecanismo pelo qual o suplício fazia passar a verdade secreta e escrita do processo para o corpo para o gesto e as palavras do criminoso A justiça precisava desses apócrifos para se fundamentar na verdade Suas decisões eram assim cercadas de todas essas provas póstumas Acontecia também que eram publicadas narrativas de crimes e de vidas infames a título de pura propaganda antes da qualquer processo e para forçar a mão de uma justiça que se suspeitava de ser excessivamente tolerante A fim de desacreditar os contrabandistas a Compagnie des Fermes publicava boletins contando os crimes deles em 1768 contra um certo Montagne que estava à frente de um bando ela distribui folhetins de que diz o próprio redator Foramlhe atribuídos alguns roubos cuja verdade é bastante incerta representaram Montagne como uma besta fera uma segunda hiena que tinha que ser caçada como as cabeças no Auvergne andavam quentes a idéia pegou62 Mas o efeito e o uso dessa literatura eram equívocos O condenado se tornava herói pela enormidade de seus crimes largamente propalados e às vezes pela afirmação de seu arrependimento tardio Contra a lei contra os ricos os poderosos os magistrados a polícia montada ou a patrulha contra o fisco e seus agentes ele aparecia como alguém que tivesse travado um combate em que todos se reconheciam facilmente Os crimes proclamados elevavam à epopéia lutas minúsculas que as trevas acobertavam todos os dias Se o condenado era mostrado arrependido aceitando o veredicto pedindo perdão a Deus e aos homens por seus crimes era visto purificado morria à sua maneira como um santo Mas até sua irredutibilidade lhe dava grandeza não cedendo aos suplícios mostrava uma força que nenhum poder conseguia dobrar No dia da execução poucos acreditarão nisto viramme sem emoção afazer confissão pública senteime enfim sobre a cruz sem mostrar nenhum temor63 Herói negro ou criminoso reconciliado defensor do verdadeiro direito ou força indomável o criminoso dos folhetins das novelas dos almanaques das bibliotecas azuis64 representa sob a moral aparente do exemplo que não deve ser seguido toda uma memória de lutas e confrontos Já houve condenado que depois da morte se tornaram uma espécie de santos de memória venerada e túmulo respeitado65 Alguns passaram quase inteiramente para o lado do herói positivo Para outros a glória e a abominação não estavam dissociadas mas coexistiam muito tempo ainda numa figura reversível Em toda essa literatura de crimes que prolifera em torno de algumas grandes silhuetas66 não se deve ver certamente nem uma expressão popular em estado puro nem tampouco uma ação combinada de moralização e propaganda vinda de cima era um lugar em que se encontravam dois investimentos da prática penal uma espécie de frente de luta em torno do crime de sua punição e lembrança Se esses relatos podem ser impressos e postos em circulação é certamente porque se esperam deles efeitos de controle ideológico67 fábulas verídicas da pequena história Mas se são recebidos com tanta atenção se fazem parte das leituras de base das classes populares é porque elas aí encontram não só lembranças mas pontos de apoio o interesse de curiosidade é também um interesse político De modo que esses textos podem ser lidos como discursos com duas faces nos fatos que contam na divulgação que dão a eles e na glória que conferem a esses criminosos designados como ilustres e sem dúvida nas próprias palavras que empregam seria preciso estudar o uso de categorias como as de desgraça abominações ou os qualificativos de famoso lamentável em relatos como História da vida grandes roubos e espertezas de Guilleri e seus companheiros e seu fim lamentável e desgraçado68 É preciso sem dúvida aproximar dessa literatura as emoções de cadafalso onde se defrontavam através do corpo do supliciado o poder que condenava e o povo que era testemunha participante a vítima eventual e eminente daquela execução A seqüência de uma cerimônia que canalizava mal as relações de poder que pretendia ritualizar Foi invadido por uma massa de discursos que continuava o mesmo confronto a proclamação póstuma dos crimes justificava a justiça mas também glorificava o criminoso Por isso os reformadores do sistema penal logo pediram a supressão desses folhetins69 Por isso houve no meio do povo um tão grande interesse por aquilo que desempenhava um pouco o papel da epopéia menor e cotidiana das ilegalidades Por isso eles perderam importância à medida que se modificou a função política da ilegalidade popular E desapareceram à medida que se desenvolveu uma literatura do crime totalmente diferente uma literatura em que o crime é glorificado mas porque é uma das belasartes porque só pode ser obra de seres de exceção porque revela a monstruosidade dos fortes e dos poderosos porque a perversidade é ainda uma maneira de ser privilegiado do romance negro a Quincey ou do Château dOtrante a Baudelaire há toda uma reescrita estética do crime que é também a apropriação da criminalidade sob formas aceitáveis É aparentemente a descoberta da beleza e da grandeza do crime na realidade é a afirmação de que a grandeza também tem direito ao crime e se torna mesmo privilégio dos que são realmente grandes Os belos assassinatos não são para os pobres coitados de ilegalidade Quanto à literatura policial a partir de Gaboriau ela dá seqüência a esse primeiro deslocamento por suas astúcias sutilezas e extrema vivacidade de sua inteligência o criminoso tornou se insuspeitável e a luta entre dois puros espíritos o de assassino e o detetive constituirá a forma essencial do confronto Estamos muito longe daqueles relatos que detalhavam a vida e as más ações do criminoso que o faziam confessar ele mesmo seus crimes e que contavam com minúcias o suplício sofrido passouse da exposição dos fatos ou da confissão ao lento processo da descoberta do momento do suplício à fase do inquérito do confronto físico com o poder à luta intelectual entre o criminoso e o inquisidor Não são simplesmente os folhetins que desaparecem ao nascer a literatura policial é a glória do malfeitor rústico e é a sombria heroicização pelo suplício O homem do povo agora é simples demais para ser protagonista das verdades sutis Nesse novo gênero não há mais heróis populares nem grandes execuções os criminosos são maus mas inteligentes e se há punição não há sofrimento A literatura policial transpõe para outra classe social aquele brilho de que o criminoso fora cercado São os jornais que trarão à luz nas colunas dos crimes e ocorrências diárias a mornidão sem epopéia dos delitos e punições Está feita a divisão que o povo se despoje do antigo orgulho de seus crimes os grandes assassinatos tornaramse o jogo silencioso dos sábios NOTAS CAPÍTULO I 1 Pièces originales et procédures du procès fait à RobertFrançois Damiens 1757 t III p 372374 2 Gazette dAmsterdam 1 abr 1757 3 Citado in A L Zevaes Damiens le régicide 1937 p 201214 4 L Faucher De la réforme des prisions 1838 p 274282 5 Robert Vaux Notices citado in NK Teeters They were in prison 1937 p 24 6 Archives parlamentaires 2a série t LXXII 1 dez 1831 7 C de Beccaria Traité des délits et des peines 1764 p 101 da edição dada por F Hélie em 1856 e que será citada aqui 8 B Rush diante da Society for promoting political enquiries in NK Teeters The Cradle of the Penitentiary 1935 p 30 9 Annales de la Charité vol II 1847 p 529530 10 Texto anônimo publicado em 1701 11 Suplício dos traidores descrito por W Blackstone Commentaire sur le Code criminel anglais trad 1776 vol I p 105 Como a tradução se destinava a valorizar a humanidade da legislação inglesa em oposição à velha Ordenação de 1760 o comentador acrescenta Nesse suplício aterrorizante como espetáculo o culpado não sofre muito nem por muito tempo 12 Cf Ch Hibbert The Roots of Evil ed de 1866 p 8586 13 Le Peletier de SaintFargeau Archives parlementaires t XXVI 3 jun 1791 p 720 14 A Louis Relatório sobre a guilhotina citado por SaintEdme Dictionnaire de pénalité 1825 t IV p 161 15 Tema freqüente na época um criminoso na medida em que é monstruoso deve ser privado de luz não ver não ser visto Para o parricida se devia fabricar uma jaula de ferro ou cavar uma masmorra impenetrável que lhe servisse de retiro eterno De Molène De 1humanité des lois criminelles 1830 p 275277 16 Gazette des tribunaux 30 ago 1832 17 G de Mably De la législation Oeuvres complètes 1789 t IX p 326 18 E Durkheim Deux lois de lévolution penale in Année sociologique IV 18991900 19 De qualquer modo sermeia impossível medir por referências ou citações o que este livro deve a G Deleuze e ao trabalho feito por ele com F Guattari Eu deveria igualmente citar muitas páginas do psicanalismo de R Castel e dizer o quanto devo a P Nora 20 G Rusche e O Kirchheimer Punishment and Social Structures 1939 21 VE Le RoyLadurie Lhistoire immobile in Annales maijun 1974 22 E Kantorowitz The Kings Two Bodies 1959 23 Só estudarei o nascimento da prisão no sistema penal francês As diferenças entre os desenvolvimentos históricos e as instituições tornariam muito pesada a tarefa de entrar em detalhes e excessivamente esquemático o trabalho de fornecer o fenômeno de conjunto CAPÍTULO II 1 JA Soulatges Traité des crimes 1762 I p 169171 2 Cf artigo de P Petrovitch in Crime et criminalité en France XVleXVIle siècles 1971 p 226s 3 P Dautricourt La criminalité et la répression au Parlement de Flandre 17211790 1912 4 É o que indicava Choiseul a respeito da declaração de 3 de agosto de 1764 sobre os vagabundos Mémoire expositif BN ms 8129 fl 128129 5 Encyclopédie verbete suplício 6 A expressão é de Olyffe An Essay to Prevent Capital Crimes 1731 7 Até o século XVIII longas discussões para se saber se no decorrer das interrogações capciosas era lícito ao juiz usar falsas promessas mentiras palavras de duplo sentido Toda uma casuística da máfé judiciária 8 P Ayrault LOrdre formalité et Instruction Judiciaire 1576 L III cap LXXII e LXXIX 9 D Jousse Traité de la justice criminelle 1771 vol I p 660 10 PF Muyart de Vouglans Institutes au droit criminel 1757 p 345347 11 Poullain du Parc Príncipes du droit français selon les coutumes de Bretagne 1767 1771 t XI p 112113 VA Esmein Histoire de la procédure criminelle en France 1882 p 260283 KJ Mittermaier Traité de la preuve trad 1848 p 1519 12 G Seigneux de Correvon Essai sur 1usage Tabus et les inconvénients de la torture 1768 p 63 13 P Ayrault LOrdre formalité et instruction judiciaire LI cap 14 14 Nos catálogos das provas judiciárias a confissão aparece pelo século XIIIXIV Não é encontrada em Bernard de Pavie mas em Hostiemis Aliás a fórmula de Crater é característica Aut legitime convictus aut sponte confessus No direito medieval a confissão só era válida se feita por um maior e diante do adversário VJ Ph Lévy La Hiérarchie des preuves dans le droit savant du Moyen Âge 1939 15 A mais famosa dessas críticas é a de Nicolas Si la torture est um moyen à verifier les crimes 1682 16 Cl Ferrière Dictionnaire de pratique 1740 t II p 612 17 Em 1729 Aguesseau mandou fazer uma pesquisa sobre os meios e as regras de tortura aplicados na França Foi resumida por Joly de Fleury BN Fonds Joly de Fleury 258 vols 322328 18 O primeiro grau do suplício era o espetáculo desses instrumentos As crianças e os velhos demais de setenta anos não tinham acesso a outro espetáculo além deste 19 G du Rousseaud de la Combe Traité des matières criminelles 1741 p 503 20 SP Hardy Mes loisirs BN ms 668087 t IV p 80 1778 21 SP Hardy Mes loisirs t I p 327 só o tomo I está impresso 22 Arquivos municipais de Nantes FF 124 VP Parfouru Mémoires de la société archéologique dIlleetVilaine 1896 t XXV 23 Citado in P Dautricourt op cit p 269270 24 SP Hardy Mes loisirs t I p 13 t IV p 42 t V p 134 25 P Risi Observations sur les matières de jurisprudence criminelle 1768 p 9 com referência a Cocceius Dissertationes ad Grotium XII 545 26 PF Muyart de Vouglans Les Lois criminelles de France 1780 p XXXIV 27 D Jousse Traité de la justice criminelle 1777 p VII 28 PF Muyart de Vouglans Les Lois criminelles de France 1780 p XXXIV 29 Ibid 30 Citado in A Corre Documente pour servir à 1histoire de la torture judiciaire en Bretagne 1896 p 7 31 A Bruneau Observations et maximes sur les matières criminelles 1715 p 259 32 J de Damhoudère Pratique judiciaire ès causes civiles 1572 p 219 33 A Gazette des tribunaux de 6 de julho de 1837 descreve segundo o Journal de Gloucester o comportamento atroz e asqueroso de um executor que depois de ter enforcado um condenado tomou o cadáver pelos ombros fêlo voltarse sobre si mesmo com violência e lhe bateu várias vezes dizendo Palhaço está morto que chega Depois voltandose para a multidão disse em tom de troça as frases mais indecentes 34 Cena anotada por TS Gueulette quando a execução do policial Montigny em 1737 Cf R Anchel Crimes et chátiments au XVIIIe siècle 1983 p 6269 35 Cf L Duhamel Les exécutions capitales à Avignon 1890 p 25 36 Na Borgonha por exemplo cf Chassanée Consuetudo Burgundi fl 55 37 F Serpillon Code criminel 1767 t III p 1100 Blackstone É evidente que se um criminoso condenado a ser enforcado até que sobrevenha a morte escapa a esta por inabilidade do executor em algum ponto o xerife tem que renovar a execução porque a sentença não foi executada e que se as pessoas se deixassem levar por essa falsa compaixão abrirseia a porta a uma infinidade de tramóias Commentaire sur le Code criminel dAngleterre trad francesa 1776 p 201 38 Ch Loyseau Cinq livres du droit des offices ed de 1616 p 8081 39 VSP Hardy 30 jan 1769 p 125 do volume impresso 14 dez 1779 p 229 R Anchel Crimes et chátiments au XVIIIe siècle p 162163 conta a história de Antoine Bulleteix que já está ao pé do cadafalso quando chega um cavaleiro trazendo o famoso pergaminho Gritam viva o Rei levam Bulleteix para a taverna enquanto o escrivão recolhe dinheiro para ele no chapéu 40 Brantôme Mémoires La vie des hommes illustres ed de 1722 t II p 191192 41 CE de Pastoret a respeito da pena dos regicidas Des lois pénales 1790 vol II p 61 42 A Bruneau Observations et maximes sur les affaires criminelles 1715 Prefácio não paginado da primeira parte 43 SP Hardy Mes loisirs vol I impresso p 328 44 TS Gueulette citado por R Anchel Crimes et chátiments au XVIIIe siècle p 7071 45 Na primeira vez em que a guilhotina foi utilizada a Chronique de Paris conta que o povo se queixava porque não via nada e cantava Queremos nossas forcas de volta VJ Laurence A History of Capital Punishment 1432 p 71s 46 TS Gueulette citado por R Anchel p 63 A cena se passa em 1737 47 Marquês de Argenson Journal et mémoires vol VI p 241 Cf o Journal de Barbier t IV p 455Um dos primeiros episódios desse caso é aliás muito característico da agitação popular no século XVIII em torno da justiça penal O tenentegeral de polícia Berryer mandara recolher as crianças libertinas e vadias os policiais só consentem em devolvê las aos pais à força de dinheiro murmurase que é para servir aos prazeres do rei A multidão que apanhou um denunciante o massacra com uma desumanidade até o último excesso e o arrasta depois de morto com a corda no pescoço até a porta do senhor Berryer Ora esse denunciante era um ladrão que deveria ter sido posto na roda com seu companheiro Baffiat se não tivesse aceito o papel de denunciante da polícia o conhecimento que tinha dos fios de todas as intrigas tornavamno apreciado pela polícia e ele era muito estimado em sua nova profissão Temos aí um exemplo muito carregado um movimento de revolta provocado por um meio de repressão relativamente novo e que não é a justiça penal mas a polícia um caso dessa colaboração técnica entre delinqüentes e policiais que se torna sistemática a partir do século XVIII um motim em que o povo se encarrega de supliciar um condenado que escapou indevidamente ao cadafalso 48 H Fielding An Inquiry in The Causes of the Late Increase of Robbers 1751 p 61 49 A Boucher dArgis Observations sur les lois criminelles 1781 p 128129 Boucher dArgis era conselheiro no Châtelet 50 H Fielding loc cit p 41 51 C Dupaty Mémoire pour trois hommes condamnés à la roue 1786 p 247 52 SP Hardy Mes loisirs 14 de janeiro de 1781 t IV p 394 53 Sobre o descontentamento provocado por esse tipo de condenação v Hardy Mes loisirs t I p 319 t III p 227228 t IV p 180 54 Transmitido por R Anchel Crimes et chátiments au XVIIIe siècles 1937 p 226 55 Marquês de Argenson Journal et Mémoires t VI p 241 56 Hardy relata numerosos casos desses assim como o roubo considerável cometido na própria casa onde o tenente encarregado do setor criminal estava instalado para assistir a uma execução Mes loisirs t IV p 56 57 VD Richet La France moderne 1974 p 118119 58 L Duhamel Les Exécutions capitales à Avignon au XVIIIe siècle 1890 p 56 Cenas desse gênero ainda se passaram no século XIX J Laurence cita algumas em A History of Capital Punishment 1932 p 195198 e p 56 59 SP Hardy Mes loisirs t III 11 de maio de 1775 p 67 60 Corre Documents de criminologie rétrospective 1896 p 257 61 Citado in L Duhamel p 32 62 Arquivos do PuydeDôme Citado in M Juillard Brigandage et contrabande en haute Auvergne au XVIIIe siècle 1937 p 24 63 Queixa de JD Langlade executado em Avignon a 12 de abril de 1768 64 Biblioteca azul era uma coleção de livros populares de capa azul geralmente adaptações de romances medievais de cavalaria NT 65 Foi o caso de Tanguy executado na Bretanha por volta de 1940 É verdade que antes de ser condenado ele começara uma longa penitência ordenada pelo confessor Conflito entre a justiça civil e a penitência religiosa Vide sobre o assunto A Corre Documents de criminologie rétrospective 1895 p 21 Corre se refere a Trevedy Une promenade à la montagne de justice et à la tombe Tanguy 66 Aqueles que R Mandrou chama os dois grandes Cartouche e Mandrin a quem se deve acrescentar Guilleri De la culture populaire aux XVIIe et XVIIle siècles 1964 p 112 Na Inglaterra Jonathan Wild Jack Sheppard Claude Duval tinham um papel bastante semelhante 67 A impressão e a difusão dos almanaques folhetins etc estava em princípio sob rígido controle 68 Encontramos esse título tanto na Biblioteca Azul da Normandia quanto na de Troyes v R Helot La Bibliothèque bleue en Normandie 1928 69 V por ex Lacrecelle Para satisfazer essa necessidade de emoções fortes que nos atormenta para aprofundar a impressão de um grande exemplo deixamse circular essas histórias horrorosas então os poetas do povo delas se apoderam divulgandoas por toda parte Alguma família um dia ouve cantar à sua porta o crime e o suplício de seus filhos Discours sur les peines infamantes 1784 p 106 Segunda Parte PUNIÇÃO CAPÍTULO I A PUNIÇÃO GENERALIZADA Que as penas sejam moderadas e proporcionais aos delitos que a de morte só seja imputada contra os culpados assassinos e sejam abolidos os suplícios que revoltem a humanidade1 O protesto contra os suplícios é encontrado em toda parte na segunda metade do século XVIII entre os filósofos e teóricos do direito entre juristas magistrados parlamentares nos chaiers de doléances2 e entre os legisladores das assembléias É preciso punir de outro modo eliminar essa confrontação física entre soberano e condenado esse conflito frontal entre a vingança do príncipe e a cólera contida do povo por intermédio do supliciado e do carrasco O suplício tornouse rapidamente intolerável Revoltante visto da perspectiva do povo onde ele revela a tirania o excesso a sede de vingança e o cruel prazer de punir3 Vergonhoso considerado da perspectiva da vítima reduzida ao desespero e da qual ainda se espera que bendiga o céu e seus juizes por quem parece abandonada4 Perigoso de qualquer modo pelo apoio que nele encontram uma contra a outra a violência do rei e a do povo Como se o poder soberano não visse nessa emulação de atrocidades um desafio que ele mesmo lança e que poderá ser aceito um dia acostumado a ver correr sangue o povo aprende rápido que só pode se vingar com sangue5 Nessas cerimônias que são objeto de tantas investidas adversas percebemse o choque e a desproporção entre a justiça armada e a cólera do povo ameaçado Nessa relação Joseph de Maistre reconhecerá um dos mecanismos fundamentais do poder absoluto o carrasco forma a engrenagem entre o príncipe e o povo a morte que ele leva é como a dos camponeses escravizados que construíram São Petersburgo por cima dos pântanos e das pestes ela é princípio de universalidade da vontade singular do déspota ela faz uma lei para todos e de cada um desses corpos destruídos uma pedra para o Estado que importa que atinja inocentes Nessa mesma violência ritual e dependente do caso os reformadores do século XVIII denunciaram ao contrário o que excede de um lado e de outro o exercício legítimo do poder a tirania segundo eles se opõe à revolta elas se reclamam reciprocamente Duplo perigo É preciso que a justiça criminal puna em vez de se vingar Essa necessidade de um castigo sem suplício é formulada primeiro como um grito do coração ou da natureza indignada no pior dos assassinos uma coisa pelo menos deve ser respeitada quando punimos sua humanidade Chegará o dia no século XIX em que esse homem descoberto no criminoso se tornará o alvo da intervenção penal o objeto que ela pretende corrigir e transformar o domínio de uma série de ciências e de práticas estranhas penitenciárias criminológicas Mas nessa época das Luzes não é como tema de um saber positivo que o homem é posto como objeção contra a barbárie dos suplícios mas como limite de direito como fronteira legítima do poder de punir Não o que ela tem de atingir se quiser modificálo mas o que ela deve deixar intato para estar em condições de respeitálo Noli me tangere Marca o ponto de parada imposto à vingança do soberano O homem que os reformadores puseram em destaque contra o despotismo do cadafalso é também um homemmedida não das coisas mas do poder O problema portanto é como esse homemlimite serviu de objeção à prática tradicional dos castigos De que maneira ele se tornou a grande justificação moral do movimento de reforma Por que esse horror tão unânime pelos suplícios e tal insistência lírica por castigos que fossem humanos Ou o que dá no mesmo como se articulam um sobre o outro numa única estratégia esses dois elementos sempre presentes na reivindicação de uma penalidade suavizada medida e humanidade São esses elementos tão necessários e no entanto tão incertos tão confusos e ainda tão associados na mesma relação duvidosa que encontramos hoje sempre que abordamos o problema de uma economia dos castigos Temse a impressão de que o século XVIII abriu a crise dessa economia e propôs para resolvêla a lei fundamental de que o castigo deve ter a humanidade como medida sem poder dar um sentido definitivo considerado entretanto incontornável É preciso então contar o nascimento e a primeira história dessa enigmática suavidade Glorificamse os grandes reformadores Beccaria Servan Dupaty ou Lacretelle Duport Pastoret Target Bergasse os redatores dos Cahiers e os Constituintes por terem imposto essa suavidade a um aparato judiciário e a teóricos clássicos que já no fim do século XVIII a recusavam e com um rigor argumentado6 Temos entretanto que recolocar essa reforma num processo que os histo riadores isolaram recentemente ao estudar os arquivos judiciários o afrouxamento da penalidade no decorrer do século XVIII ou de maneira mais precisa o duplo movimento pelo qual durante esse período os crimes parecem perder violência enquanto as punições reciprocamente reduzem em parte sua intensidade mas à custa de múltiplas intervenções Desde o fim do século XVII com efeito notase uma diminuição considerável dos crimes de sangue e de um modo geral das agressões físicas os delitos contra a propriedade parecem prevalecer sobre os crimes violentos o roubo e a vigarice sobre os assassinatos os ferimentos e golpes a delinqüência difusa ocasional mas freqüente das classes mais pobres é substituída por uma delinqüência limitada e hábil os criminosos do século XVII são homens prostrados mal alimentados levados pelos impulsos e pela cólera criminosos de verão os do XVIII velhacos espertos matreiros que calculam criminalidade de marginais7 modificase enfim a organização interna da delinqüência os grandes bandos de malfeitores assaltantes formados em pequenas unidades armadas tropas de contrabandistas que faziam fogo contra os agentes do Fisco soldados licenciados ou desertores que vagabundeiam juntos tendem a se dissociar mais bem caçados sem dúvida obrigados a se fazer menores para passar despercebidos não mais que um punhado de homens muitas vezes contentamse com operações mais furtivas com menor demonstração de forças e menores riscos de massacres A liquidação física ou o deslocamento institucional de grandes quadrilhas deixa depois de 1755 o campo livre para urna delinqüência antipropriedade que agora se mostra individualista ou passa a ser exercida por grupos bem pequenos compostos de ladrões de capote ou batedores de carteira em número não superior a quatro pessoas8 Um movimento global faz derivar a ilegalidade do ataque aos corpos para o desvio mais ou menos direto dos bens e da criminalidade de massa para um criminalidade das bordas e margens reservada por um lado aos profissionais Tudo se passa como se tivesse havido uma baixa progressiva do nível das águas um desarmamento das tensões que reinam nas relações humanas um melhor controle dos impulsos violentos9 e como se as práticas ilegais tivessem afrouxado o cerco sobre o corpo e se tivessem dirigido a outros alvos Suavização dos crimes antes da suavização das leis Ora essa transformação não pode ser separada de vários processos que lhe armam uma base e em primeiro lugar como nota P Chaunu de uma modificação no jogo das pressões econômicas de uma elevação geral do nível de vida de um forte crescimento demográfico de uma multiplicação das riquezas e das propriedades e da necessidade de segurança que é uma conseqüência disso10 Além disso constatase no decorrer do século XVIII que a justiça se torna de certo modo mais pesada e seus textos em vários pontos agravam a severidade na Inglaterra dos 223 crimes capitais que se encontravam definidos no começo do século XIX 156 haviam sido durante os últimos cem anos11 na França a legislação sobre a vadiagem fora renovada e agravada várias vezes desde o século XVII um exercício mais apertado e mais meticuloso da justiça tende a levar em conta toda uma pequena delinqüência que antigamente ela deixava mais facilmente escapar Ela tornase no século XVIII mais lenta mais pesada mais severa com o roubo cuja freqüência relativa aumentou e contra o qual toma agora ares burgueses de justiça de classe12 o crescimento na França principalmente mas mais ainda em Paris de um aparelho policial que impedia o desenvolvimento de uma criminalidade organizada e a céu aberto deslocaa para formas mais discretas E a esse conjunto de precauções deve se acrescentar a crença bastante generalizada num aumento incessante e perigoso dos crimes Enquanto os historiadores de hoje constatam uma diminuição das grandes quadrilhas de malfeitores Le Trosne por sua vez os via abaterse como nuvens de gafanhotos sobre todo o campo francês São insetos vorazes que devastam diariamente a subsistência dos agricultores São para falar claramente tropas inimigas espalhadas pela superfície do território que nele vivem à vontade como num país conquistado e retiram verdadeiras contribuições a título de esmola custariam para os camponeses mais pobres mais que o imposto direto taille pelo menos um terço onde o tributo é mais alto13 A maior parte dos observadores sustenta que a delinqüência aumenta é claro que os partidários de maior rigor é que o afirmam afirmamno também os que pensam que uma justiça mais comedida em suas violências seria mais eficaz menos disposta a recuar por si mesma diante de suas próprias conseqüências14 afirmamno os magistrados que pretendem que o número de processos é excessivo a miséria do povo e a corrupção dos costumes multiplicaram os crimes e os culpados15 mostrao em todo caso a prática real dos tribunais Já é mesmo a era revolucionária e imperial que é anunciada pelos últimos anos do Antigo Regime Chamará a atenção nos processos de 17821789 o aumento dos perigos Severidade em relação aos pobres recusa combinada de testemunho aumento recíproco das desconfianças dos ódios e medos16 Na verdade a passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de fraude faz parte de todo um mecanismo complexo onde figuram o desenvolvimento da produção o aumento das riquezas uma valorização jurídica e moral maior das relações de propriedade métodos de vigilância mais rigorosos um policiamento mais estreito da população técnicas mais bem ajustadas de descoberta de captura de informação o deslocamento das práticas ilegais é correlato de uma extensão e de um afinamento das práticas punitivas Será uma transformação geral de atitude uma mudança que pertence ao campo do espírito e da subconsciência17 Talvez Com maior certeza e mais imediatamente porém significa um esforço para ajustar os mecanismos de poder que enquadram a existência dos indivíduos significa uma adaptação e harmonia dos instrumentos que se encarregam de vigiar o comportamento cotidiano das pessoas sua identidade atividade gestos aparentemente sem importância significa uma outra política a respeito dessa multiplicidade de corpos e forças que uma população representa O que se vai definindo não é tanto um respeito novo pela humanidade dos condenados os suplícios ainda são freqüentes mesmo para os crimes leves quanto uma tendência para uma justiça mais desembaraçada e mais inteligente para uma vigilância penal mais atenta do corpo social De acordo com um processo circular quando se eleva o limiar da passagem para os crimes violentos também aumenta a intolerância aos delitos econômicos os controles ficam mais rígidos as intervenções penais se antecipam mais e tornamse mais numerosas Ora se confrontamos esse processo com o discurso crítico dos reformadores vemos uma notável coincidência estratégica Realmente o que eles atacam na justiça tradicional antes de estabelecer os princípios de uma nova penalidade é mesmo o excesso de castigo mas um excesso que está ainda mais ligado a uma irregularidade que a um abuso do poder de punir A 24 de março de 1790 Thouret abre na Constituinte a discussão sobre a nova organização do poder judiciário Poder que em sua opinião está desnaturado de três maneiras na França Por uma apropriação privada vendemse os ofícios do juiz transmitemse por herança têm valor comercial e a justiça feita é por isso onerosa Por uma confusão entre dois tipos de poder o que presta justiça e formula uma sentença aplicando a lei e o que faz a própria lei Enfim pela existência de toda uma série de privilégios que tornam incerto o exercício da justiça há tribunais processos partes litigantes até delitos que são privilegiados e se situam fora do direito comum18 Isso não passa de uma das inúmeras formulações de críticas velhas de pelo menos meio século e que denunciam todas nessa desnaturação o princípio de uma justiça irregular A justiça penal é irregular em primeiro lugar pela multiplicidade das instâncias que estão encarregadas de realizála sem nunca constituir uma pirâmide única e contínua19 Mesmo deixando de lado as jurisdições religiosas é necessário considerar as descontinuidades as sobreposições e os conflitos entre as diferentes justiças as dos senhores que são ainda importantes para a repressão dos pequenos delitos as do rei que são elas mesmas numerosas e mal coordenadas as cortes soberanas estão em constante conflito com os bailados bailliages e principalmente com os tribunais presidiais présidiaux recentemente criados como instâncias intermediárias as que de direito ou de fato estão a cargo de instâncias administrativas como os intendentes ou policiais como os prebostes e os chefes de polícia a que se deveria ainda acrescentar o direito que tem o rei ou seus representantes de tomar decisões de internamento ou de exílio fora de qualquer procedimento regular Essas instâncias múltiplas por sua própria suberabundância se neutralizam e são incapazes de cobrir o corpo social em toda a sua extensão A confusão torna essa justiça penal paradoxalmente lacunosa Lacunosa devido às diferenças de costumes e de procedimentos apesar da Ordenação Geral de 1670 lacunosa pelos conflitos internos de competência lacunosa pelos interesses particulares políticos ou econômicos que a cada instante é levada a defender lacunosa enfim devido às intervenções do poder real que pode impedir o curso regular e austero da justiça pelos perdões comutações evocações em conselho ou pressões diretas sobre os magistrados A má economia do poder e não tanto a fraqueza ou a crueldade é o que ressalta da crítica dos reformadores Poder excessivo nas jurisdições inferiores que podem ajudadas pela pobreza e pela ignorância dos condenados negligenciar as apelações de direito e mandar executar sem controle sentenças arbitrárias poder excessivo do lado de uma acusação à qual são dados quase sem limite meios de prosseguir enquanto que o acusado está desarmado diante dela o que leva os juizes a ser às vezes severos demais às vezes por reação indulgentes demais poder excessivo para os juizes que podem se contentar com provas fúteis se são legais e que dispõem de uma liberdade bastante grande na escolha da pena poder excessivo dado à gente do rei não só em relação aos acusados mas também aos outros magistrados poder excessivo enfim exercido pelo rei pois ele pode suspender o curso da justiça modificar suas decisões cassar os magistrados revogálos ou exilá los substituílos por juízes por comissão real A paralisia da justiça está ligada menos a um enfraquecimento que a uma distribuição mal regulada do poder a sua concentração em um certo número de pontos e aos conflitos e descontinuidades que daí resultam Ora essa disfunção do poder provém de um excesso central o que se poderia chamar o superpoder monárquico que identifica o direito de punir com o poder pessoal do soberano Identificação teórica que faz do rei a fons justitiae mas cujas conseqüências práticas são verificáveis até no que parece se opor a ele e limitar seu absolutismo É porque o rei por razões de tesouraria se arroga o direito de vender ofícios de justiça que lhe pertencem que ele tem diante de si magistrados proprietários de seus cargos não só indóceis mas ignorantes interesseiros prontos ao compromisso É porque cria constantemente novos ofícios que ele multiplica os conflitos de poder e de atribuição É porque exerce um poder muito rigoroso sobre sua gente e lhes confere um poder quase discricionário que ele intensifica os conflitos na magistratura É por ter posto a justiça em concorrência com um excesso de procedimentos de urgência jurisdições dos prebostes ou dos chefes de polícia ou com medidas administrativas que ele paralisa a justiça regular que a torna às vezes indulgente e incerta mas às vezes precipitada e severa20 Não são tanto ou não são só os privilégios da justiça sua arbitrariedade sua arrogância arcaica seus direitos sem controle que são criticados mas antes a mistura entre suas fraquezas e seus excessos entre seus exageros e suas lacunas e sobretudo o próprio princípio dessa mistura o superpoder monárquico O verdadeiro objetivo da reforma e isso desde suas formulações mais gerais não é tanto fundar um novo direito de punir a partir de princípios mais eqüitativos mas estabelecer uma nova economia do poder de castigar assegurar uma melhor distribuição dele fazer com que não fique concentrado demais em alguns pontos privilegiados nem partilhado demais entre instâncias que se opõem que seja repartido em circuitos homogêneos que possam ser exercidos em toda parte de maneira contínua e até o mais fino grão do corpo social21 A reforma do direito criminal deve ser lida como uma estratégia para o remanejamento do poder de punir de acordo com modalidades que o tornam mais regular mais eficaz mais constante e mais bem detalhado em seus efeitos enfim que aumentem os efeitos diminuindo o custo econômico ou seja dissociandoo do sistema da propriedade das compras e vendas da venalidade tanto dos ofícios quanto das próprias decisões e seu custo político dissociandoo do arbitrário do poder monárquico A nova teoria jurídica da penalidade engloba na realidade uma nova economia política do poder de punir Compreendese então por que essa reforma não teve um ponto de origem único Não foram os mais esclarecidos dos expostos à ação da justiça nem os filósofos inimigos do despotismo e amigos da humanidade não foram nem os grupos sociais opostos aos parlamentares que suscitaram a reforma Ou antes não foram só eles no mesmo projeto global de uma nova distribuição do poder de punir e de uma nova repartição de seus efeitos vêm encontrar seu lugar muitos interesses diferentes A reforma não foi preparada fora do aparato judiciário e contra todos os seus representantes foi preparada e no essencial de dentro por um grande número de magistrados e a partir de objetivos que lhes eram comuns e dos conflitos de poder que os opunham uns aos outros Os reformadores não eram a maioria entre os magistrados naturalmente mas foram legistas que idearam os princípios gerais da reforma um poder de julgar sobre o qual não pesasse o exercício imediato da soberania do príncipe que fosse independente da pretensão de legislar que não tivesse ligação com as relações de propriedade e que tendo apenas as funções de julgar exerceria plenamente esse poder Em uma palavra fazer com que o poder de julgar não dependesse mais de privilégios múltiplos descontínuos contraditórias da soberania às vezes mas de efeitos continuamente distribuídos do poder público Esse princípio geral define uma estratégia de conjunto que deu ensejo a muitos combates diferentes Os de filósofos como Voltaire e de publicistas como Brissot ou Marat mas também os de magistrados cujos interesses eram entretanto bem diversos Le Trosne conselheiro no tribunal presidial de Orléans e Lacretelle advogado geral no parlamento Target que com os parlamentos se opõe à reforma de Maupeou mas também JN Moreau que sustenta o poder real contra os parlamentares Servan e Dupaty magistrados um como o outro mas em conflito com os colegas etc Durante todo o século XVIII dentro e fora do sistema judiciário na prática penal cotidiana como na crítica das instituições vemos formarse uma nova estratégia para o exercício do poder de castigar E a reforma propriamente dita tal como ela se formula nas teorias de direito ou que se esquematiza nos projetos é a retomada política ou filosófica dessa estratégia com seus objetivos primeiros fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular coextensiva à sociedade não punir menos mas punir melhor punir talvez com uma severidade atenuada mas para punir com mais universalidade e necessidade inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir A conjuntura que viu nascer a reforma não é portanto a de uma nova sensibilidade mas a de outra política em relação às ilegalidades Podemos dizer esquematicamente que no Antigo Regime os diferentes estratos sociais tinham cada um sua margem de ilegalidade tolerada a nãoaplicação da regra a inobservância de inúmeros editos ou ordenações eram condição do funcionamento político e econômico da sociedade Traço que não é particular ao Antigo Regime Sem dúvida Mas essa ilegalidade era tão profundamente enraizada e tão necessária à vida de cada camada social que tinha de certo modo sua coerência e economia próprias Ora se revestia de uma forma absolutamente estatutária que fazia dela não tanto uma ilegalidade quanto uma isenção regular eram os privilégios concedidos aos indivíduos e às comunidades Ora tinha a forma de uma inobservância maciça e geral que fazia com que durante dezenas de anos séculos às vezes ordenações podiam ser publicadas e renovadas constantemente sem nunca chegar à aplicação Ora se tratava de desuso progressivo que dava lugar às vezes a súbitas reativações Ora de um consentimento mudo do poder de uma negligência ou simplesmente da impossibilidade efetiva de impor a lei e reprimir os infratores As camadas mais desfavorecidas da população não tinham privilégios em princípio mas gozavam no que lhes impunham as leis e os costumes de margens de tolerân cia conquistadas pela força ou pela obstinação e essas margens eram para elas condição tão indispensável de existência que muitas vezes estavam prontas a se sublevar para defendêlas as tentativas periodicamente feitas para reduzilas alegando velhas regras ou subutilizando os processos de repressão provocavam sempre agitações populares do mesmo modo que as tentativas para reduzir certos privilégios agitavam a nobreza o clero e a burguesia Ora essa ilegalidade necessária e de que cada camada social exercia formas específicas estava envolvida numa série de paradoxos Em suas regiões inferiores encontravase com a criminalidade de que era difícil distinguila juridicamente senão moralmente da ilegalidade fiscal à ilegalidade aduaneira ao contrabando ao saque à luta armada contra os agentes do fisco depois contra os próprios soldados à revolta enfim havia uma continuidade onde as fronteiras eram difíceis de marcar ou ainda a vadiagem severamente punida nos termos de ordenações quase nunca aplicadas com tudo o que comportava de rapinas de roubos qualificados de assassinatos às vezes servia como meio favorável para os desempregados os operários que haviam deixado irregularmente os patrões os criados que tinham alguma razão para fugir do emprego os aprendizes maltratados os soldados desertores todos os que queriam escapar ao alistamento forçado De modo que a criminalidade se fundamentava numa ilegalidade mais vasta à qual as camadas populares estavam ligadas como a condições de existência e inversamente essa ilegalidade era um fator perpétuo de aumento da criminalidade Daí uma ambigüidade nas atitudes populares por um lado o criminoso principalmente quando se tratava de um contrabandista ou de um camponês perseguido pelas extorsões de um senhor gozava de uma valorização espontânea reencontravase em suas violências o fio de velhas lutas mas por outro lado aquele que ao abrigo de uma ilegalidade aceita pela população cometia crimes à custa desta o mendigo vagabundo por exemplo que roubava e assassinava tornavase facilmente objeto de um ódio particular ele voltara contra os mais desfavorecidos uma ilegalidade que estava integrada em suas condições de existência Assim se associavam aos crimes a glorificação e o anátema a ajuda efetiva e o medo alternavamse em relação a essa população movediça da qual todos se sentiam tão próximos e temerosos de que dela podia nascer o crime A ilegalidade popular envolvia o núcleo da criminalidade que era ao mesmo tempo sua forma extrema e o perigo interno Ora entre essa ilegalidade de baixo e as das outras castas sociais não havia exatamente convergência nem oposição fundamental De maneira geral as diversas ilegalidades próprias a cada grupo tinham umas com as outras relações que eram ao mesmo tempo de rivalidade de concorrência de conflitos de interesse e de apoio recíproco de cumplicidade a recusa por parte dos camponeses em pagar certos foros estatais ou eclesiásticos não era obrigatoriamente mal vista pelos proprietários de terras a não aplicação pelos artesãos dos regulamentos de fábrica era muitas vezes encorajada pelos novos empresários o contrabando provao a história de Mandrin recebido por toda a população acolhido nos castelos e protegido pelos parlamentares tinha amplo apoio Enfim no século XVII as diferentes rejeições do fisco fizeram as camadas da população entre si afastadas se coligarem em graves revoltas Em suma o jogo recíproco das ilegalidades fazia parte da vida política e econômica da sociedade Mais ainda na brecha diariamente alargada pela ilegalidade popular ocorrera um certo número de transformações por exemplo o desuso dos regulamentos de Colbert as inobservâncias das barreiras alfandegárias no reino o deslocamento das práticas corporativas ora dessas transformações a burguesia tivera necessidade e sobre elas fundamentara uma parte do crescimento econômico A tolerância tornavase então estímulo Mas na segunda metade do século XVIII o processo tende a se inverter Primeiro com o aumento geral da riqueza mas também com o grande crescimento demográfico o alvo principal da ilegalidade popular tende a ser não mais em primeira linha os direitos mas os bens a pilhagem o roubo tendem a substituir o contrabando e a luta armada contra os agentes do fisco E nessa medida os camponeses os colonos os artesãos são muitas vezes a vítima principal Le Trosne sem dúvida exagerava apenas uma tendência real quando descrevia os camponeses que sofriam com as extorsões dos vagabundos mais ainda que antigamente com as exigências dos feudais os ladrões agora se teriam abatido sobre eles como uma nuvem de insetos nocivos devorando as colheitas arrasando os celeiros22 Podemos dizer que se abriu progressivamente no século XVIII uma crise da ilegalidade popular e nem os movimentos do início da Revolução em torno da recusa dos direitos senhoriais nem aqueles mais tardios aos quais acresciam a luta contra os direitos dos proprietários o protesto político e religioso a recusa do recrutamento na realidade não o restabeleceram em sua forma antiga e acolhedora Além do mais se uma boa parte da burguesia aceitou sem muitos problemas a ilegalidade dos direitos ela a suportava mal quando se tratava do que considerava seus direitos de propriedade Nada mais característico a esse respeito que o problema da delinqüência no campo no fim do século XVIII e principalmente a partir da Revolução23 A passagem a uma agricultura intensiva exerce sobre os direitos de uso sobre as tolerâncias sobre as pequenas ilegalidades aceitas uma pressão cada vez mais cerrada Além do mais adquirida em parte pela burguesia despojada dos encargos feudais que sobre ela pesavam a propriedade da terra tornouse uma propriedade absoluta todas as tolerâncias que o campesinato adquirira ou conservara abandono de antigas obrigações ou consolidação de práticas irregulares direito de pasto livre24 de recolher lenha etc são agora perseguidas pelos novos proprietários que lhes dão a posição de infração pura e simples provocando dessa forma na população uma série de reações em cadeia cada vez mais ilegais ou se quisermos cada vez mais criminosas quebra de cercas roubo ou massacre de gado incêndios violências assassinatos25 A ilegalidade dos direitos que muitas vezes assegurava a sobrevivência dos mais despojados tende com o novo estatuto da propriedade a tornarse uma ilegalidade de bens Será então necessário punila E essa ilegalidade se é mal suportada pela burguesia na propriedade imobiliária é intolerável na propriedade comercial e industrial o desenvolvimento dos portos o aparecimento de grandes armazéns onde se acumulam mercadorias a organização de oficinas de grandes dimensões com uma massa considerável de matériaprima de ferramentas de objetos fabricados que pertencem ao empresário e são difíceis de vigiar exigem também uma repressão rigorosa da ilegalidade A maneira pela qual a riqueza tende a investir segundo escalas quantitativas totalmente novas nas mercadorias e nas máquinas supõe uma intolerância sistemática e armada à ilegalidade O fenômeno é evidentemente muito sensível onde o desenvolvimento é mais intenso Dessa urgência em reprimir as inúmeras práticas de ilegalidade Colquhoun procurara dar provas em números só para a cidade de Londres segundo as estimativas dos empresários e seguradoras o roubo de produtos importados da América e depositados às margens do Tâmisa subia em média a 250000 libras ao todo roubavamse cerca de 500000 cada ano só no porto de Londres e isso sem levar em conta os arsenais a que se deviam acrescentar 700000 libras para a própria cidade E nessa pilhagem permanente três fenômenos segundo Colquhoun deviam ser considerados a cumplicidade e muitas vezes a participação ativa dos empregados dos vigias dos contramestres e dos trabalhadores todas as vezes que estiver reunida no mesmo lugar uma grande quantidade de trabalhadores haverá necessariamente muitos maus elementos a existência de toda uma organização de comércio ilícito que começa nas oficinas ou nas docas passa em seguida pelos receptadores receptadores por atacado especializados num certo tipo de mercadorias e receptadores de varejo cujas vitrines só oferecem uma miserável exposição de velhos ferros trapos roupas em mau estado enquanto o depósito da loja esconde munições navais de grande valor cavilhas e pregos de cobre pedaços de ferro fundido e de metais preciosos de produção das Índias Ocidentais móveis e bagagens comprados de trabalhadores de todo tipo depois por revendedores e mascates que espalham longe no campo o produto dos roubos26 enfim a fabricação de dinheiro falso haveria disseminadas por toda a Inglaterra 40 a 50 fábricas de dinheiro falso trabalhando permanentemente Mas o que facilita essa imensa empresa de depredação e ao mesmo tempo de concorrência é todo um conjunto de tolerâncias algumas valem como espécies de direitos adquiridos direito por exemplo de recolher em torno do navio os pedaços de ferro e as pontas de corda ou de revender as varreduras de açúcar outras são da ordem da aceitação moral a analogia que essa pilhagem mantém no espírito de seus autores com o contrabando os familiariza com essa espécie de delitos cuja enormidade não sentem27 É portanto necessário controlar e codificar todas essas práticas ilícitas É preciso que as infrações sejam bem definidas e punidas com segurança que nessa massa de irregularidades toleradas e sancionadas de maneira descontínua com ostentação sem igual seja determinado o que é infração intolerável e que lhe seja infligido um castigo de que ela não poderá escapar Com as novas formas de acumulação de capital de relações de produção e de estatuto jurídico da propriedade todas as práticas populares que se classificavam seja numa forma silenciosa cotidiana tolerada seja numa forma violenta na ilegalidade dos direitos são desviadas à força para a ilegalidade dos bens O roubo tende a tornarse a primeira das grandes escapatórias à legalidade nesse movimento que vai de uma sociedade da apropriação jurídicopolítica a uma sociedade da apropriação dos meios e produtos do trabalho Ou para dizer as coisas de outra maneira a economia das ilegalidades se reestruturou com o desenvolvimento da sociedade capitalista A ilegalidade dos bens foi separada da ilegalidade dos direitos Divisão que corresponde a uma oposição de classes pois de um lado a ilegalidade mais acessível às classes populares será a dos bens transferência violenta das propriedades de outro a burguesia então se reservará a ilegalidade dos direitos a possibilidade de desviar seus próprios regulamentos e suas próprias leis de fazer funcionar todo um imenso setor da circulação econômica por um jogo que se desenrola nas margens da legislação margens previstas por seus silêncios ou liberadas por uma tolerância de fato E essa grande redistribuição das ilegalidades se traduzirá até por uma especialização dos circuitos judiciários para as ilegalidades de bens para o roubo os tribunais ordinários e os castigos para as ilegalidades de direitos fraudes evasões fiscais operações comerciais irregulares jurisdições especiais com transações acomodações multas atenuadas etc A burguesia se reservou o campo fecundo da ilegalidade dos direitos E ao mesmo tempo em que essa separação se realiza afirmase a necessidade de uma vigilância constante que se faça essencialmente sobre essa ilegalidade dos bens Afirmase a necessidade de se desfazer da antiga economia do poder de punir que tinha como princípios a multiplicidade confusa e lacunosa das instâncias uma repartição e uma concentração de poder correlatas com uma inércia de fato e uma inevitável tolerância castigos ostensivos em suas manifestações e incertos em sua aplicação Afirmase a necessidade de definir uma estratégia e técnicas de punição em que uma economia da continuidade e da permanência substituirá a da despesa e do excesso Em suma a reforma penal nasceu no ponto de junção entre a luta contra o superpoder do soberano e a luta contra o infrapoder das ilegalidades conquistadas e toleradas E se foi outra coisa que o resultado provisório de um encontro de pura circunstância é porque entre esse superpoder e esse infrapoder se estendia uma rede de relações A forma da soberania monárquica ao mesmo tempo que colocava do lado do soberano a sobrecarga de um poder brilhante ilimitado pessoal irregular e descontínuo deixava do lado dos súditos lugar livre para uma ilegalidade constante esta era como a correlata daquele tipo de poder Se bem que atacarse às diversas prerrogativas do soberano era atacar ao mesmo tempo o funcionamento das ilegalidades Os dois objetivos estavam em continuidade E segundo as circunstâncias ou as táticas particulares os reformadores faziam passar um na frente do outro Le Trosne o fisiocrata que foi conselheiro no tribunal presidial de Orléans pode servir de exemplo aqui Em 1764 ele publica uma memória sobre a vadiagem viveiro de ladrões e assassinos que vivem no meio da sociedade sem serem seus membros que fazem uma verdadeira guerra contra todos os cidadãos que estão entre nós naquele estado que se supõe ter existido antes do estabelecimento da sociedade civil Contra eles pede as mais severas penas e estranha significativamente que se tenha mais indulgência para com eles que para com os contrabandistas quer que a polícia seja reforçada que a cavalaria os persiga ajudada pela população vítima de seus roubos pede que essas pessoas inúteis e perigosas sejam adquiridas pelo Estado e lhe pertençam como escravos a seus senhores e se for o caso que se organizem batidas coletivas nos bosques para desentocálos sendo dado um salário a cada um que fizer uma captura Pois dáse uma recompensa de 10 libras por uma cabeça de lobo Um vagabundo é infinitamente mais perigoso para a sociedade28 Em 1777 em Vues sur la justice criminelle o mesmo Le Trosne pede que sejam reduzidas as prerrogativas da parte pública que os acusados sejam considerados inocentes até a eventual condenação que o juiz seja um justo árbitro entre eles e a sociedade que as leis sejam fixas constantes determinadas da maneira mais precisa de modo que os súditos saibam a que se expõem e que os magistrados não sejam mais que o órgão da lei29 Para Le Trosne como para tantos outros na mesma época a luta pela delimitação do poder de punir se articula diretamente com a exigência de submeter a ilegalidade popular a um controle mais estrito e mais constante Compreendese que a crítica dos suplícios tenha tido tanta importância na reforma penal pois era uma figura onde se uniam de modo visível o poder ilimitado do soberano e a ilegalidade sempre desperta do povo A humanidade das penas é a regra que se dá a um regime de punições que deve fixar limites a um e à outra O homem que se pretende fazer respeitar na pena à a forma jurídica e moral que se dá a essa dupla delimitação Mas se é verdade que a reforma como teoria penal e como estratégia do poder de punir foi ideada no ponto de coincidência desses dois objetivos sua estabilidade futura se deveu ao fato de que o segundo ocupou por muito tempo um lugar prioritário Foi porque a pressão sobre as ilegalidades populares se tornou na época da Revolução depois no Império finalmente durante todo o século XIX um imperativo essencial que a reforma pôde passar da condição de projeto à de instituição e conjunto prático Quer dizer que se aparentemente a nova legislação criminal se caracteriza por uma suavização das penas uma codificação mais nítida uma considerável diminuição do arbitrário um consenso mais bem estabelecido a respeito do poder de punir na falta de uma partilha mais real de seu exercício ela é apoiada basicamente por uma profunda alteração na economia tradicional das ilegalidades e uma rigorosa coerção para manter seu novo ajustamento Um sistema penal deve ser concebido como um instrumento para gerir diferencialmente as ilegalidades não para suprimilas a todas Deslocar o objetivo e mudar sua escala Definir novas táticas para atingir um alvo que agora é mais tênue mas também mais largamente difuso no corpo social Encontrar novas técnicas às quais ajustar as punições e cujos efeitos adaptar Colocar novos princípios para regularizar afinar universalizar a arte de castigar Homogeneizar seu exercício Diminuir seu custo econômico e político aumentando sua eficácia e multiplicando seus circuitos Em resumo constituir uma nova economia e uma nova tecnologia do poder de punir tais são sem dúvida as razões de ser essenciais da reforma penal no século XVIII Ao nível dos princípios essa nova estratégia é facilmente formulada na teoria geral do contrato Supõese que o cidadão tenha aceito de uma vez por todas com as leis da sociedade também aquela que poderá punilo O criminoso aparece então como um ser juridicamente paradoxal Ele rompeu o pacto é portanto inimigo da sociedade inteira mas participa da punição que se exerce sobre ele O menor crime ataca toda a sociedade e toda a sociedade inclusive o criminoso está presente na menor punição O castigo penal é então uma função generalizada coextensiva ao corpo social e a cada um de seus elementos Colocase então o problema da medida e da economia do poder de punir Efetivamente a infração lança o indivíduo contra todo o corpo social a sociedade tem o direito de se levantar em peso contra ele para punilo Luta desigual de um só lado todas as forças todo o poder todos os direitos E tem mesmo que ser assim pois aí está representada a defesa de cada um Constituise assim um formidável direito de punir pois o infrator tornase o inimigo comum Até mesmo pior que um inimigo é um traidor pois ele desfere seus golpes dentro da sociedade Um monstro Sobre ele como não teria a sociedade um direito absoluto Como deixaria ela de pedir sua supressão pura e simples E se é verdade que o princípio dos castigos deve estar subscrito no pacto não é necessário logicamente que cada cidadão aceite a pena extrema para aqueles dentre eles que os atacam como organização Todo malfeitor atacando o direito social tornase por seus crimes rebelde e traidor da pátria a conservação do Estado é então incompatível com a sua um dos dois tem que perecer e quando se faz perecer o culpado é menos como cidadão que como inimigo30 O direito de punir deslocouse da vingança do soberano à defesa da sociedade Mas ele se encontra então recomposto com elementos tão fortes que se torna quase mais temível O malfeitor foi arrancado a uma ameaça por natureza excessiva mas é exposto a uma pena que não se vê o que pudesse limitar Volta de um terrível superpoder E necessidade de colocar um princípio de moderação ao poder do castigo Quem não tem arrepios de horror ao ver na história tantos tormentos horríveis e inúteis inventados e usados friamente por monstros que se davam o nome de sábios31 Ou ainda As leis me chamam para o castigo do maior dos crimes Vou com todo o furor que ele me inspirou Mas como Meu furor ainda o ultrapassa Deus que imprimistes em nossos corações a aversão à dor por nós mesmos e nossos semelhantes são então esses seres que criastes tão fracos e sensíveis que inventaram suplícios tão bárbaros tão refinados32 O princípio da moderação das penas mesmo quando se trata de castigar o inimigo do corpo social se articula em primeiro lugar como um discurso do coração Melhor ele jorra como um grito do corpo que se revolta ao ver ou ao imaginar crueldades demais A formulação do princípio de que a penalidade deve permanecer humana é feita entre os reformadores na primeira pessoa Como se se exprimisse imediatamente a sensibilidade daquele que fala como se o corpo do filósofo ou do teórico viesse entre a fúria do carrasco e do supliciado afirmar sua própria lei e impôla finalmente a toda a economia das penas Lirismo que manifesta a impotência em encontrar o fundamento racional de um cálculo penal Entre o princípio contratual que rejeita o criminoso para fora da sociedade e a imagem do monstro vomitado pela natureza onde encontrar um limite senão na natureza humana que se manifesta não no rigor da lei não na ferocidade do delinqüente mas na sensibilidade do homem razoável que faz a lei e não comete crimes Mas esse recurso à sensibilidade não traduz exatamente uma impossibilidade teórica Ele traz em si na realidade um princípio de cálculo O corpo a imaginação o sofrimento o coração a respeitar não são na verdade os do criminoso que deve ser punido mas os dos homens que tendo subscrito o pacto têm o direito de exercer contra ele o poder de se unir O sofrimento que deve ser excluído pela suavização das penas é o dos juizes ou dos espectadores com tudo o que pode acarretar de endurecimento de ferocidade trazida pelo hábito ou ao contrário de piedade indevida de indulgência sem fundamento Misericórdia para essas almas doces e sensíveis sobre quem esses horríveis suplícios exercem uma espécie de tortura33 O que se precisa moderar e calcular são os efeitos de retorno do castigo sobre a instância que pune e o poder que ela pretende exercer Aí está a raiz do princípio de que se deve aplicar só punições humanas sempre a um criminoso que pode muito bem ser um traidor e um monstro entretanto Se a lei agora deve tratar humanamente aquele que está fora da natureza enquanto que a justiça de antigamente tratava de maneira desumana o foradalei a razão não se encontra numa humanidade profunda que o criminoso esconda em si mas no controle necessário dos efeitos de poder Essa racionalidade econômica é que deve medir a pena e prescrever as técnicas ajustadas Humanidade é o nome respeitoso dado a essa economia e a seus cálculos minuciosos Em matéria de pena o mínimo é ordenado pela humanidade e aconselhado pela política34 Para compreendermos essa tecnopolítica da punição tomemos o casolimite o último dos crimes um delito hediondo enorme que violasse ao mesmo tempo todas as leis mais respeitadas Aconteceria em circunstâncias tão extraordinárias dentro de um segredo tão profundo tão desmedidamente e como que no limite tão extremo de qualquer possibilidade que só poderia ser o único e em todo caso o último de sua espécie ninguém nunca poderia imitálo ninguém poderia seguilo como exemplo nem mesmo se escandalizar por que tivesse sido cometido Seria fadado a desaparecer sem deixar vestígio Esse apólogo35 da extremidade do crime é um pouco na nova penalidade o que era a falta original na antiga a forma pura em que aparece a razão das penas Um crime como esse deveria ser punido De acordo com que medida Que utilidade poderia ter seu castigo na economia do poder de punir Seria útil na medida em que poderia reparar o mal feito à sociedade36 Ora se deixarmos de lado o dano propriamente material que embora irreparável como num assassinato é de pouca extensão na escala de uma sociedade inteira o prejuízo que um crime traz ao corpo social é a desordem que introduz nele o escândalo que suscita o exemplo que dá a incitação a recomeçar se não é punido a possibilidade de generalização que traz consigo Para ser útil o castigo deve ter como objetivo as conseqüências do crime entendidas como a série de desordens que este é capaz de abrir A proporção entre a pena e a qualidade do delito é determinada pela influência que o pacto violado tem sobre a ordem social37 Ora essa influência de um crime não está forçosamente em proporção direta com sua atrocidade um crime que apavora a consciência tem muitas vezes um efeito menor que um delito que todo mundo tolera e se sente capaz de imitar por sua conta Raridade dos grandes crimes perigo em compensação dos pequenos delitos familiares que se multiplicam Não procurar conseqüentemente uma relação qualitativa entre o crime e sua punição uma equivalência de horror Podem os gritos de um infeliz entre tormentos retirar do seio do passado que não volta mais uma ação já cometida38 Calcular uma pena em função não do crime mas de sua possível repetição Visar não à ofensa passada mas à desordem futura Fazer de tal modo que o malfeitor não possa ter vontade de recomeçar nem possibilidade de ter imitadores39 Punir será então uma arte dos efeitos mais que opor a enormidade da pena à enormidade da falta é preciso ajustar uma à outra as duas séries que seguem o crime seus próprios efeitos e os da pena Um crime sem dinastia não clama castigo Tampouco segundo outra versão do mesmo apólogo às vésperas de se dissolver e desaparecer uma sociedade não teria o direito de erguer cadafalsos O último dos crimes só pode ficar sem punição Velha concepção Não era preciso esperar a reforma do século XVIII para definir essa função exemplar do castigo Que a punição olhe para o futuro e que uma de suas funções mais importantes seja prevenir era há séculos uma das justificações correntes do direito de punir Mas a diferença é que a prevenção que se esperava como um efeito do castigo e de seu brilho portanto de seu descomedimento tende a tornarse agora o princípio de sua economia e a medida de suas justas proporções É preciso punir exatamente o suficiente para impedir Deslocamento então na mecânica do exemplo numa penalidade de suplício o exemplo era a réplica do crime devia por uma espécie de manifestação geminada mostrálo e mostrar ao mesmo tempo o poder soberano que o dominava numa penalidade calculada pelos seus próprios efeitos o exemplo devese referir ao crime mas da maneira mais discreta possível indicar a intervenção do poder mas com a máxima economia e no caso ideal impedir qualquer reaparecimento posterior de um e outro O exemplo não é mais um ritual que manifesta é um sinal que cria obstáculo Através dessa técnica dos sinais punitivos que tende a inverter todo o campo temporal da ação penal os reformadores pensam dar ao poder de punir um instrumento econômico eficaz generalizável por todo o corpo social que possa codificar todos os comportamentos e conseqüentemente reduzir todo o domínio difuso das ilegalidades A semiotécnica com que se procura armar o poder de punir repousa sobre cinco ou seis regras mais importantes Regra da quantidade mínima Um crime é cometido porque traz vantagens Se à idéia do crime fosse ligada a idéia de uma desvantagem um pouco maior ele deixaria de ser desejável Para que o castigo produza o efeito que se deve esperar dele basta que o mal que causa ultrapasse o bem que o culpado retirou do crime40 Podemos é preciso admitir uma proximidade da pena e do crime mas não mais na antiga forma em que o suplício devia equivaler ao crime em intensidade com um suplemento que marcava o maispoder do soberano que realizava sua vingança legítima é uma quaseequivalência ao nível dos interesses um pouco mais de interesse em evitar a pena que em arriscar o crime Regra da idealidade suficiente Se o motivo de um crime é a vantagem que se representa com ele a eficácia da pena está na desvantagem que se espera dela O que ocasiona a pena na essência da punição não é a sensação do sofrimento mas a idéia de uma dor de um desprazer de um inconveniente a pena da idéia da pena A punição não precisa portanto utilizar o corpo mas a representação Ou antes se ela tem que utilizar o corpo isto o será na medida em que ele não é tanto o sujeito de um sofrimento quanto o objeto de uma representação a lembrança de uma dor pode impedir a reincidência do mesmo modo que o espetáculo mesmo artificial de uma pena física pode prevenir o contágio do crime Mas não é a dor em si que será instrumento da técnica punitiva Portanto de nada adianta fazer ostentação dos patíbulos por tempo o mais prolongado possível e exceto nos casos em que se trate de suscitar uma representação eficaz Eliminação do corpo como sujeito da pena mas não forçosamente como elemento num espetáculo A recusa aos suplícios que no limiar da teoria só encontrara uma formulação lírica encontra aqui a possibilidade de se articular racionalmente É a representação da pena que deve ser maximizada e não sua realidade corpórea Regra dos efeitos laterais A pena deve ter efeitos mais intensos naqueles que não cometeram a falta em suma se pudéssemos ter certeza de que o culpado não poderia recomeçar bastaria convencer os outros de que ele fora punido Intensificação centrífuga dos efeitos que conduz ao paradoxo de que no cálculo das penas o elemento menos interessante ainda é o culpado exceto se é passível de reincidência Esse paradoxo Beccaria ilustrou no castigo que propunha no lugar da pena de morte escravidão perpétua Pena fisicamente mais cruel que a morte Absolutamente dizia ele pois a dor da escravidão para o condenado está dividida em tantas parcelas quantos instantes de vida lhe restam pena indefinidamente divisível pena eleática muito menos severa que o castigo capital que logo se equipara ao suplício Em compensação para os que vêem ou se representam esses escravos o sofrimento que suportam se resume numa só idéia todos os instantes da escravidão se contraem numa representação que se torna então mais assustadora que a idéia da morte É a pena economicamente ideal é mínima para o que a sofre e que reduzido à escravidão não poderá reincidir e máxima para os que a imaginam Entre as penas e na maneira de aplicálas em proporção com os delitos devemos escolher os meios que causarão no espírito do povo a impressão mais eficaz e mais durável e ao mesmo tempo a menos cruel sobre o corpo do culpado41 Regra da certeza perfeita É preciso que à idéia de cada crime e das vantagens que se esperam dele esteja associada a idéia de um determinado castigo com as desvantagens precisas que dele resultam é preciso que de um a outro o laço seja considerado necessário e nada possa rompêlo Esse elemento geral de certeza que deve dar eficácia ao sistema punitivo implica num certo número de medidas precisas Que as leis que definem os crimes e prescrevem as penas sejam perfeitamente claras a fim de que cada membro da sociedade possa distinguir as ações criminosas das ações virtuosas42 Que essas leis sejam publicadas e cada qual possa ter acesso a elas que se acabem as tradições orais e os costumes mas se elabore uma legislação escrita que seja o monumento estável do pacto social que se imprimam textos para conhecimento de todos Só a imprensa pode tornar todo o público e não alguns particulares depositários do código sagrado das leis43 Que o monarca renuncie a seu direito de misericórdia para que a força que está presente na idéia da pena não seja atenuada pela esperança dessa intervenção Se deixamos ver aos homens que o crime pode ser perdoado e que o castigo não é sua continuação necessária nutrimos neles a esperança da impunidade que as leis sejam inexoráveis os executores inflexíveis44 E principalmente que nenhum crime cometido escape ao olhar dos que têm que fazer justiça nada torna mais frágil o instrumento das leis que a esperança de impunidade como se poderia estabelecer no espírito dos jurisdicionados um laço estreito entre um delito e uma pena se viesse afetálo um certo coeficiente de improbabilidade Não seria preciso tornar a pena tanto mais temível por sua violência quanto ela deixa menos a temer por sua pouca certeza Mais que imitar assim o antigo sistema e ser mais severo é preciso ser mais vigilante45 Daí a idéia de que o instrumento de justiça seja acompanhado por um órgão de vigilância que lhe seja diretamente ordenado e permita impedir os crimes ou se não cometidos prender seus autores polícia e justiça devem andar juntas como duas ações complementares de um mesmo processo a polícia assegurando a ação da sociedade sobre cada indivíduo a justiça os direitos dos indivíduos contra a sociedade46 assim cada crime virá à luz do dia e será punido com toda certeza Mas é preciso além disso que os processos não fiquem secretos que sejam conhecidas por todos as razões pelas quais um acusado foi condenado ou absolvido e que cada um possa reconhecer as razões de punir Que o magistrado pronuncie em alta voz sua opinião que seja obrigado a reproduzir em seu julgamento o texto da lei que condena o culpado que os processos que se ocultam misteriosamente na escuridão dos cartórios sejam abertos a todos os cidadãos que se interessam pelo destino dos condenados47 Regra da verdade comum Sob esse princípio de grande banalidade escondese uma transformação de importância O antigo sistema das provas legais o uso da tortura a extorsão da confissão a utilização do suplício do corpo e do espetáculo para a reprodução da verdade haviam durante muito tempo isolado a prática penal das formas comuns da demonstração as meiasprovas faziam meiasverdades e meiosculpados frases arrancadas pelo sofrimento tinham valor de autentificação uma presunção acarretava um grau de pena Sistema cuja heterogeneidade em relação ao regime ordinário da prova só constituiu realmente um escândalo no dia em que o poder de punir teve necessidade para sua própria economia de um clima de certeza irrefutável Como ligar de maneira absoluta no espírito dos homens a idéia do crime e a do castigo se a realidade do castigo não acompanha em todos os casos a realidade do delito Estabelecer esta última com toda evidência e de acordo com meios válidos para todos tornase uma tarefa primeira A verificação do crime deve obedecer aos critérios gerais de qualquer verdade O julgamento judiciário nos argumentos que utiliza nas provas que traz deve ser homogêneo ao julgamento puro e simples Abandono então das provas legais rejeição da tortura necessidade de uma demonstração completa para fazer uma verdade justa retirada de qualquer correlação entre os graus da suspeita e os da pena Como uma verdade matemática a verdade do crime só poderá ser admitida uma vez inteiramente comprovada Seguese que até à demonstração final de seu crime o acusado deve ser reputado inocente e que para fazer a demonstração o juiz deve usar não formas rituais mas instrumentos comuns essa razão de todo mundo que é também a dos filósofos e cientistas Em teoria considero o magistrado como um filósofo que se propõe a descobrir uma verdade interessante Sua sagacidade o fará compreender todas as circunstâncias e relações aproximar ou separar o que deve sêlo para julgar sadiamente48 O inquérito exercício da razão comum despojase do antigo modelo inquisitorial para acolher o outro muito mais flexível e duplamente reconhecido pela ciência e o senso comum da pesquisa empírica O juiz será como um piloto que navega entre os rochedos Quais serão as provas ou de que indícios podernosemos contentar É o que nem eu nem ninguém ainda ousou determinar em geral estando as circunstâncias sujeitas a variar ao infinito devendo as provas e os indícios se deduzir dessas circunstâncias é necessário que os indícios e as provas mais claros variem proporcionalmente49 Agora a prática penal vaise encontrar submetida a um regime comum da verdade ou antes a um regime complexo em que se misturam para formar a íntima convicção do juiz elementos heterogêneos de demonstração científica de evidências sensíveis e de senso comum A justiça penal se conserva formas que garantem sua eqüidade podese abrir agora às verdades de todos os ventos desde que sejam evidentes bem estabelecidas aceitáveis por todos O ritual judiciário não é mais em si mesmo formador de uma verdade partilhada É recolocado no campo de referência das provas comuns Estabelecese então com a multiplicidade dos discursos científicos uma relação difícil e infinita que a justiça penal hoje ainda não está apta a controlar O senhor de justiça não é mais senhor de sua verdade Regra da especificação ideal Para que a semiótica penal recubra bem todo o campo das ilegalidades que se quer reduzir todas as infrações têm que ser qualificadas têm que ser classificadas e reunidas em espécies que não deixem escapar nenhuma ilegalidade É então necessário um código e que seja sufi cientemente preciso para que cada tipo de infração possa estar claramente presente nele A esperança da impunidade não pode se precipitar no silêncio da lei É necessário um código exaustivo e explícito que defina os crimes fixando as penas50 Mas o mesmo imperativo de cobertura integral pelo efeitossinais da punição obriga a ir mais longe A idéia de um mesmo castigo não tem a mesma força para todo mundo a multa não é temível para o rico nem a infâmia a quem já está exposto A nocividade de um delito e seu valor de indução não são os mesmos de acordo com o status do infrator o crime de um nobre é mais nocivo para a sociedade que o de um homem do povo51 Enfim já que o castigo quer impedir a reincidência ele tem que levar bem em conta o que é o criminoso em sua natureza profunda o grau presumível de sua maldade a qualidade intrínseca de sua vontade De dois homens que cometeram o mesmo crime em que proporção é menos culpado aquele que mal tinha o necessário com relação àquele a quem sobrava o supérfluo De dois perjuros em que medida é mais criminoso aquele em que se procurou desde a infância imprimir sentimentos de honra com relação àquele que abandonado à natureza nunca recebeu educação52 Vemos aí ao mesmo tempo a necessidade de uma classificação paralela dos crimes e dos castigos e a necessidade de uma individualização das penas em conformidade com as características singulares de cada criminoso Essa individualização vai representar um peso muito grande em toda a história do direito penal moderno aí está sua fundamentação sem dúvida em termos de teoria do direito e do acordo com as exigências da prática cotidiana ela está em oposição radical com o princípio da codificação mas do ponto de vista de uma economia do poder de punir e das técnicas através das quais se pretende pôr em circulação em todo o corpo social sinais de punição exatamente ajustados sem excessos nem lacunas sem gasto inútil de poder mas sem timidez vêse bem que a codificação do sistema delitoscastigos e a modulação do par criminosopunição vão a par e se chamam um ao outro A individualização aparece como o objetivo derradeiro de um código bem adaptado Ora essa individualização é muito diferente em natureza das modulações da pena que se encontravam na jurisprudência antiga Esta e nesse ponto ela estava de acordo com a prática penitenciária cristã usava duas séries de variáveis para ajustar o castigo as da circunstância e as da intenção Ou seja elementos que permitiam classificar o ato em si mesmo A modulação da pena provinha de uma casuística em sentido lato53 Mas o que começa a se esboçar agora é uma modulação que se refere ao próprio infrator à sua natureza a seu modo de vida e de pensar a seu passado à qualidade e não mais à intenção de sua vontade Percebe se mas como um lugar ainda deixado vazio o local onde na prática penal o saber psicológico virá substituir a jurisprudência casuística Claro que no fim do século XVIII esse momento ainda está longe Procurase a ligação códigoindividualização nos modelos científicos da época A história natural oferecia sem dúvida o esquema mais adequado a taxinomia das espécies segundo uma gradação ininterrupta Procurase constituir um Linné dos crimes e das penas de maneira a que cada infração particular e cada indivíduo punível possa sem nenhuma margem de arbítrio ser atingido por uma lei geral Devese compor uma tabela de todos os gêneros de crimes que se notam nas diferentes regiões De acordo com o inventário dos crimes deverseá fazer uma divisão em espécies A melhor regra para essa divisão é pareceme separar os crimes pelas diferenças de objetos Essa divisão deve ser tal que cada espécie seja bem distinta da outra e cada crime particular considerado em todas as suas relações seja colocado entre aquele que deve precedêlo e aquele que deve seguilo e na mais justa gradação esta tabela enfim deve ser de tal modo que possa se aproximar de outra tabela que será feita para as penas e de maneira a que elas possam corresponder exatamente uma à outra54 Em teoria ou antes em sonho a dupla taxinomia dos castigos e dos crimes pode resolver o problema como aplicar leis fixas a indivíduos singulares Mas longe desse modelo especulativo formas de individualização antro pológica estavam na mesma época se constituindo de maneira ainda muito rudimentar Em primeiro lugar com a noção de reincidência Não que esta fosse desconhecida nas antigas leis criminais55 Mas tende a tornarse uma qualificação do próprio delinqüente susceptível de modificar a pena pronunciada de acordo com a legislação de 1791 os reincidentes em quase todos os casos eram passíveis de ter a pena dobrada segundo a lei de Floreal ano X deviam ser marcados com a letra R e o Código Penal de 1810 indicavalhes ou o máximo da pena ou a pena imediatamente superior Mas através da reincidência não se visa o autor de um ato definido pela lei mas o sujeito delinqüente uma certa vontade que manifesta seu caráter intrinsecamente criminoso Pouco a pouco à medida que no lugar do crime a criminalidade se torna o objeto da intervenção penal a oposição entre primário e reincidente tenderá a tornarse mais importante E a partir dessa oposição reforçandoa em muitos pontos vemos na mesma época formarse a noção de crime passional crime involuntário irrefletido ligado a circunstâncias extraordinárias que não tem por certo a desculpa da loucura mas promete nunca ser um crime habitual Le Peletier já observava em 1791 que a sutil gradação das penas que ele apresentava à Constituinte podia desviar do crime o maldoso que de sanguefrio medita uma ação má e pode ser retido pelo temor da pena que em compensação ela é impotente contra os crimes devidos às paixões violentas que não calculam mas que isso tem pouca importância pois tais crimes não mostram da parte de seus autores nenhuma maldade calculada56 Sob a humanização das penas o que se encontra são todas essas regras que autorizam melhor que exigem a suavidade como uma economia calculada do poder de punir Mas elas exigem também um deslocamento no ponto de aplicação desse poder que não seja mais o corpo com o jogo ritual dos sofrimentos excessivos das marcas ostensivas no ritual dos suplícios que seja o espírito ou antes um jogo de representações e de sinais que circulem discretamente mas com necessidade e evidência no espírito de todos Não mais o corpo mas a alma dizia Mably E vemos bem o que se deve entender por esse termo o correlato de uma técnica de poder Dispensamse as velhas anatomias punitivas Mas teremos entrado por isso verdadeiramente na era dos castigos incorpóreos No ponto de partida podemos então colocar o projeto político de classificar exatamente as ilegalidades de generalizar a função punitiva e de delimitar para controlálo o poder de punir Ora daí se definem duas linhas de objetivação do crime e do criminoso De um lado o criminoso designado como inimigo de todos que têm interesse em perseguir sai do pacto desqualificase como cidadão e surge trazendo em si como que um fragmento selvagem de natureza aparece como o celerado o monstro o louco talvez o doente e logo o anormal É a esse título que ele se encontrará um dia sob uma objetivação científica e o tratamento que lhe é correlato De outro lado a necessidade de medir de dentro os efeitos do poder punitivo prescreve táticas de intervenção sobre todos os criminosos atuais ou eventuais a organização de um campo de prevenção o cálculo dos interesses a entrada em circulação de representações e sinais a constituição de um horizonte de certeza e verdade o ajustamento das penas a variáveis cada vez mais sutis tudo isso leva igualmente a uma objetivação dos crimes e dos criminosos Nos dois casos vemos que a relação de poder que fundamenta o exercício da punição começa a ser acompanhada por uma relação de objeto na qual se encontram incluídos não só o crime como fato a estabelecer segundo normas comuns mas o criminoso como indivíduo a conhecer segundo critérios específicos Vemos também que essa relação de objeto não vêm se sobrepor de fora à prática punitiva como faria uma proibição imposta à fúria dos suplícios pelos limites da sensibilidade ou como faria uma interrogação racional ou científica sobre o que é o homem que se pune Os processos de objetivação nascem nas próprias táticas do poder e na distribuição de seu exercício Entretanto esses dois tipos de objetivação que se definem com os projetos de reforma penal são muito diferentes entre si por sua cronologia e por seus efeitos A objetivação do criminoso fora da lei como homem da natureza não passa ainda de uma virtualidade uma linha de fuga onde se entrecruzam os temas da critica política e as figuras do imaginário Será necessário esperar muito tempo para que o homo criminalis se torne um objeto definido num campo de conhecimento A outra objetivação ao contrário teve efeitos muito mais rápidos e decisivos na medida em que estava mais diretamente ligada à reorganização do poder de punir codificação definição dos papéis tarifação das penas regras de procedimento definição do papel dos magistrados E também porque se apoiava sobre o discurso já constituído dos Ideólogos Este fornecia com efeito pela teoria dos interesses das representações e dos sinais pelas séries e gêneses que reconstituía uma espécie de receita geral para o exercício do poder sobre os homens o espírito como superfície de inscrição para o poder com a semiologia por instrumento a submissão dos corpos pelo controle das idéias a análise das representações como princípio numa política dos corpos bem mais eficaz que a anatomia ritual dos suplícios O pensamento dos ideólogos não foi apenas uma teoria do indivíduo e da sociedade desenvolveuse como uma tecnologia dos poderes sutis eficazes e econômicos em oposição aos gastos suntuários do poder dos soberanos Ouçamos mais uma vez Servan as idéias de crime e de castigo têm que estar fortemente ligadas e se suceder sem intervalo Quando tiverdes conseguido formar assim a cadeia das idéias na cabeça de vossos cidadãos podereis então vos gabar de conduzilos e de ser seus senhores Um déspota imbecil pode coagir escravos com correntes de ferro mas um verdadeiro político os amarra bem mais fortemente com a corrente de suas próprias idéias é no plano fixo da razão que ele ata a primeira ponta laço tanto mais forte quanto ignoramos sua tessitura e pensamos que é obra nossa o desespero e o tempo roem os laços de ferro e de aço mas são impotentes contra a união habitual das idéias apenas conseguem estreitála ainda mais e sobre as fibras moles do cérebro fundase a base inabalável dos mais sólidos impérios57 Essa semiotécnica das punições esse poder ideológico é que pelo menos em parte vai ficar em suspenso e será substituído por uma nova anatomia política em que o corpo novamente mas numa forma inédita será o personagem principal E essa nova anatomia política permitirá recruzar as duas linhas divergentes de objetivação que vemos formarse no século XVIII a que rejeita o criminoso para o outro lado o lado de uma natureza contra a natureza e a que procura controlar a delinqüência por uma anatomia calculada das punições Um exame da nova arte de punir mostra bem a substituição da semiotécnica punitiva por uma nova política do corpo CAPÍTULO II A MITIGAÇÃO DAS PENAS A arte de punir deve portanto repousar sobre toda uma tecnologia da representação A empresa só pode ser bem sucedida se estiver inscrita numa mecânica natural Semelhante à gravitação dos corpos uma força secreta nos empurra sempre para nosso bemestar Esse impulso só é afetado pelos obstáculos que as leis lhe opõem Todas as várias ações do homem são efeitos dessa tendência interior Encontrar para um crime o castigo que convém é encontrar a desvantagem cuja idéia seja tal que torne definitivamente sem atração a idéia de um delito É uma arte das energias que se combatem arte das imagens que se associam fabricação de ligações estáveis que desafiem o tempo Importa constituir pares de representação de valores opostos instaurar diferenças quantitativas entre as forças em questão estabelecer um jogo de sinaisobstáculos que possam submeter o movimento das forças a uma relação de poder Que a idéia do suplício esteja sempre presente no coração do homem fraco e domine o sentimento que o arrasta para o crime1 Esses sinaisobstáculos devem constituir o novo arsenal das penas como as marcasvinditas organizavam os antigos suplícios Mas para funcionar têm que obedecer a várias condições 1 Ser tão pouco arbitrários quanto possível É verdade que é a sociedade que define em função de seus interesses próprios o que deve ser considerado como crime este portanto não é natural Mas se queremos que a punição possa sem dificuldade apresentarse ao espírito assim que se pensa no crime é preciso que de um ao outro a ligação seja a mais imediata possível de semelhança de analogia de proximidade É preciso dar à pena toda a conformidade possível com a natureza de delito a fim de que o medo de um castigo afaste o espírito do caminho por onde era levado na perspectiva de um crime vantajoso2 A punição ideal será transparente ao crime que sanciona assim para quem a contempla ela será infalivelmente o sinal do crime que castiga e para quem sonha com o crime a simples idéia do delito despertará o sinal punitivo Vantagem para a estabilidade da ligação vantagem para o cálculo das proporções entre crime e castigo e para a leitura quantitativa dos interesses pois tomando a forma de uma conseqüência natural a punição não aparece como o efeito arbitrário de um poder humano Tirar ao castigo o delito é a melhor maneira de proporcionar a punição ao crime Se é isso o triunfo da justiça é também o triunfo da liberdade pois então não vindo mais as penas da vontade do legislador mas da natureza das coisas não se vê mais o homem fazer violência ao homem3 Na punição analógica o poder que pune se esconde Os reformadores apresentaram uma série inteira das penas naturais por instituição e das que retomam em sua forma o conteúdo do crime Vermeil por exemplo os que abusam da liberdade pública serão privados da sua serão retirados os direitos civis dos que abusarem das vantagens da lei e dos privilégios das funções públicas a multa punirá o peculato e a usura a confiscação punirá o roubo a humilhação os delitos de vanglória a morte o assassinato a fogueira o incêndio Quanto ao envenenador o carrasco lhe apresentará uma taça cujo conteúdo lhe jogará no rosto para esmagálo com o horror de seu crime ao fazêlo ver sua imagem e o meterá em seguida numa caldeira de água fervente4 Simples sonho Talvez Mas o princípio de uma comunicação simbólica é de novo claramente formulado por Le Peletier quando apresenta em 1791 a nova legislação criminal Tem que haver relações exatas entre a natureza do delito e a natureza da punição aquele que foi feroz em seu crime sofrerá dores físicas aquele que tiver sido preguiçoso será obrigado a um trabalho penoso aquele que foi abjeto sofrerá uma pena de infâmia5 Apesar de crueldades que lembram muito o Antigo Regime é um mecanismo bem diverso que funciona nessas penas analógicas Não se opõem mais o atroz ao atroz numa justa de poder não é mais a simetria da vingança é a transparência do sinal ao que ele significa pretendese no teatro dos castigos estabelecer uma relação imediatamente inteligível aos sentidos e que possa dar lugar a um cálculo simples Uma espécie de estética razoável da pena Não é só nas belasartes que se deve seguir fielmente a natureza as instituições políticas pelo menos as que têm um caráter de sabedoria e elementos de duração se fundamentam na natureza6 Que o castigo decorra do crime que a lei pareça ser uma necessidade das coisas e que o poder aja mascarandose sob a força suave da natureza 2 Esse jogo de sinais deve corresponder à mecânica das forças diminuir o desejo que torna o crime atraente aumentar o interesse que torna a pena temível inverter a relação das intensidades fazer que a representação da pena e de suas desvantagens seja mais viva que a do crime com seus prazeres Toda uma mecânica portanto do interesse de seu movimento da maneira como é representado e da vivacidade dessa representação O legislador deve ser um arquiteto hábil que saiba ao mesmo tempo empregar todas as forças que possam contribuir para a solidez do edifício e amortecer todas as que poderiam arruinálo7 Várias meios Ir direto à fonte do mal8 Quebrar a mola que anima a representação do crime Tornar sem força o interesse que a fez nascer Atrás dos delitos de vadiagem há a preguiça é esta que se deve combater Não teremos sucesso trancando os mendigos em prisões infectas que são antes cloacas será preciso obrigálos ao trabalho Empregálos é a melhor maneira de puni los9 Contra uma paixão má um bom hábito contra uma força outra força mas o importante é a força da sensibilidade e da paixão não as do poder com suas armas Não devemos deduzir todas as penas desse princípio tão simples tão feliz e já conhecido de escolhêlas no que há de mais deprimente para a paixão que levou ao crime cometido10 Fazer funcionar contra ela mesma a força que levou ao delito Dividir o interesse servirse dele para tornar temível a pena Que o castigo o irrite e o estimule mais do que o erro que encorajara Se o orgulho fez cometer um crime que seja ferido que se revolte com a punição A eficácia das penas infamantes é se apoiarem sobre a vaidade que estava na raiz do crime Os fanáticos se glorificam tanto de suas opiniões quanto dos suplícios que suportam por elas Que se faça então funcionar contra o fanatismo a teimosia orgulhosa que o sustenta Comprimilo pelo ridículo e pela vergonha se humilharmos a orgulhosa vaidade dos fanáticos diante de uma grande multidão de espectadores devemos esperar efeitos felizes dessa pena De nada serviria ao contrário imporlhes dores físicas11 Reanimar um interesse útil e virtuoso cujo enfraquecimento é provado pelo crime O sentimento de respeito pela propriedade a de riquezas mas também a de honra de liberdade de vida o malfeitor o perde quando rouba calunia seqüestra ou mata É preciso então que lhe seja reensinado E começaremos a ensinálo nele mesmo ele sentirá o que é perder a livre disposição de seus bens de sua honra de seu tempo e de seu corpo para por sua vez respeitálo nos outros12 A pena que forma sinais estáveis e facilmente legíveis deve assim recompor a economia dos interesses e a dinâmica das paixões 3 Conseqüentemente utilidade de uma modulação temporal A pena transforma modifica estabelece sinais organiza obstáculos Qual seria sua utilidade se se tornasse definitiva Uma pena que não tivesse termo seria contraditória todas as restrições por ela impostas ao condenado e que voltando a ser virtuoso ele nunca poderia aproveitar não passariam de suplícios e o esforço feito para reformálo seria pena e custo perdidos pelo lado da sociedade Se há incorrigíveis temos que nos resolver a eliminálos Mas para todos os outros as penas só podem funcionar se terminam Análise aceita pelos Constituintes o Código de 1791 prevê a morte para os traidores e os assassinos todas as outras penas devem ter um termo o máximo é de vinte anos Mas principalmente o papel da duração deve estar integrado à economia da pena Os suplícios em sua violência corriam o risco de ter esse resultado quanto mais grave o crime menos longo era seu castigo A duração intervinha sem dúvida no antigo sistema das penas dias de pelourinho anos de banimento horas passadas a expirar na roda Mas era um tempo de prova não de transformação concertada A duração deve agora permitir a ação própria do castigo Uma série prolongada de privações penosas poupando à humanidade o horror das torturas afeta muito mais o culpado que um instante passageiro de dor Ela renova sem cessar aos olhos do povo que serve de testemunha a lembrança das leis vingadoras e faz a todos os momentos reviver um terror salutar13 O tempo operador da pena Ora a frágil mecânica das paixões não permite que as pressionemos da mesma maneira nem com a mesma insistência à medida que elas se reaprumam é bom que a pena se atenue com os efeitos que produz Pode naturalmente ser fixa no sentido de que é determinada para todos da mesma maneira pela lei seu mecanismo interno deve ser variável Em seu projeto à Constituinte Le Peletier propunha penas de intensidade regressiva um condenado à pena mais grave só irá para a masmorra corrente nos pés e nas mãos escuridão solidão pão e água durante uma primeira fase terá a possibilidade de trabalhar dois depois três dias por semana Depois dos dois primeiros terços da pena poderá passar ao regime da limitação masmorra iluminada corrente em torno da cintura trabalho solitário durante cinco dias na semana mas em comum os outros dois dias esse trabalho será pago e lhe permitirá melhorar seu passadio Enfim quando se aproximar do fim da pena poderá passar ao regime da prisão Poderá se reunir com os outros prisioneiros todos os dias para um trabalho comum Se preferir poderá trabalhar sozinho Sua comida será o que lhe render seu trabalho14 4 Pelo lado do condenado a pena é uma mecânica dos sinais dos interesses e da duração Mas o culpado é apenas um dos alvos do castigo Este interessa principalmente aos outros todos os culpados possíveis Que esses sinaisobstáculos que são pouco a pouco gravados na representação do condenado circulem então rápida e largamente que sejam aceitos e redistribuídos por todos que formem o discurso que cada um faz a todo mundo e com o qual todos se proíbem o crime a boa moeda que nos espíritos toma o lugar do falso proveito do crime Para isso é preciso que o castigo seja achado não só natural mas interessante é preciso que cada um possa ler nele sua própria vantagem Que não haja mais essas penas ostensivas mas inúteis Que também cessem as penas secretas mas que os castigos possam ser vistos como uma retribuição que o culpado faz a cada um de seus concidadãos pelo crime com que lesou a todos como penas continuamente apresentadas aos olhos dos cidadãos e evidenciem a utilidade pública dos movimentos comuns e particulares15 O ideal seria que o condenado fosse considerado como uma espécie de propriedade rentável um escravo posto a serviço de todos Por que haveria a sociedade de suprimir uma vida e um corpo de que ela poderia se apropriar Seria mais útil fazer servir ao Estado numa escravidão mais ou menos longa de acordo com a natureza de seu crime a França tem muitas estradas intransitáveis que prejudicam o comércio os ladrões que também criam obstáculo à livre circulação das mercadorias terão que reconstruir as estradas Seria mais eloqüente do que a morte o exemplo de um homem que conservamos sempre sob os olhos cuja liberdade foi retirada e é obrigado a usar o resto da vida a reparar a perda que causou à sociedade16 No antigo sistema o corpo dos condenados se tornava coisa do rei sobre a qual o soberano imprimia sua marca e deixava cair os efeitos de seu poder Agora ele será antes um bem social objeto de uma apropriação coletiva e útil Daí o fato de que os reformadores tenham quase sempre proposto as obras públicas como uma das melhores penas possíveis os Cahiers de doléances aliás os acompanharam Que os condenados a alguma pena abaixo da morte sejam condenados às obras públicas do país por um tempo proporcional a seu crime17 Obra pública quer dizer duas coisas interesse coletivo na pena do condenado e caráter visível controlável do castigo O culpado assim paga duas vezes pelo trabalho que ele fornece e pelos sinais que produz No centro da sociedade nas praças públicas ou nas grandes estrada o condenado irradia lucros e significações Ele serve visivelmente a cada um mas ao mesmo tempo introduz no espírito de todos o sinal crimecastigo utilidade secundária puramente moral esta mas tanto mais real 5 Daí resulta uma sábia economia da publicidade No suplício corporal o terror era o suporte do exemplo medo físico pavor coletivo imagens que devem ser gravadas na memória dos espectadores como a marca na face ou no ombro do condenado O suporte do exemplo agora é a lição o discurso o sinal decifrável a encenação e a exposição da moralidade pública Não é mais a restauração aterrorizante da soberania que vai sustentar a cerimônia do castigo é a reativação do Código o reforço coletivo da ligação entre a idéia do crime e a idéia da pena Na punição mais que a visão da presença do soberano haverá a leitura das próprias leis Estas haviam associado a tal crime tal castigo Assim que o crime for cometido e sem perda de tempo virá a punição traduzindo em ações o discurso da lei e mostrando que o Código que liga as idéias liga também as realidades A junção imediata no texto deve sêlo nos atos Considerai os primeiros momentos quando a notícia de alguma ação atroz se espalha em nossas cidades e campos os cidadãos parecem homens que vêem cair um raio perto de si cada um está penetrado de indignação e de horror Este é o movimento de castigar o crime não o deixeis escapar apressaivos em convencêlo e julgálo Levantai cadafalsos fogueiras arrastai o culpado pelas praças públicas chamai o povo em altas vozes ouviloeis então aplaudir a proclamação de vossos julgamentos como a de paz e de liberdade vêloeis socorrer a esses terríveis espetáculos como ao triunfo das leis18 A punição pública é a cerimônia da recodificação imediata A lei se reforma vem retomar um lugar ao lado do crime que a violara O malfeitor em compensação é separado da sociedade Deixaa Mas não naquelas festas ambíguas do Antigo Regime em que o povo fatalmente tomava partido do crime ou da execução mas numa cerimônia de luto A sociedade que recuperou suas leis perdeu o cidadão que as violara A punição pública deve manifestar essa dupla aflição que se possa ter ignorado a lei e que um cidadão tenha que ser isolado Ligai ao suplício o mais lúgubre e mais tocante aparelho que esse dia terrível seja para a pátria um dia de luto que a dor geral seja estampada em toda parte em grandes caracteres Que o magistrado coberto com o crepe fúnebre anuncie ao povo o atentado e a triste necessidade de uma vingança legal Que as diversas cenas desta tragédia atinjam todos os sentidos mexam com todas as afeições suaves e honestas19 Luto cujo sentido deve ser claro para todos cada elemento de seu ritual deve falar dizer o crime lembrar a lei mostrar a necessidade da punição justificar sua medida Cartazes placas sinais símbolos devem ser multiplicados para que cada um possa apreender seus significados A publicidade da punição não deve espalhar um efeito físico de terror deve abrir um livro de leitura Le Peletier propunha que o povo uma vez por mês pudesse visitar os condenados em seu doloroso reduto lerá traçado em grandes caracteres acima da porta da masmorra o nome do culpado o crime e o julgamento20 E no estilo ingênuo e militar das cerimônias imperiais Bexon imaginará alguns anos mais tarde todo um quadro heráldico penal O condenado à morte será conduzido ao cadafalso num carro tingido ou pintado de preto entremeado de vermelho se traiu terá uma camisa vermelha sobre a qual estará escrita na frente e atrás a palavra traidor se for parricida terá a cabeça coberta com um véu negro e em sua camisa serão bordados punhais ou os instrumentos de morte de que se tiver servido se envenenou sua camisa vermelha será ornamentada com serpentes e outros animais venenosos21 Essa lição legível essa recodificação ritual devem ser repetidas com toda a freqüência possível que os castigos sejam uma escola mais que uma festa um livro sempre aberto mais que uma cerimônia A duração que torna o castigo eficaz para o culpado também é útil para os espectadores Estes devem poder consultar a cada instante o léxico permanente do crime e do castigo Pena secreta pena perdida pela metade Seria necessário que as crianças pudessem vir aos lugares onde é executada lá fariam suas aulas cívicas E os homens feitos lá reaprenderiam periodicamente as leis Concebamos os lugares de castigos como um Jardim de Leis que as famílias visitariam aos domingos Eu gostaria que de vez em quando depois de preparar os espíritos com um discurso fundamentado sobre a conservação da ordem social sobre a utilidade dos castigos se levassem os jovens mesmo os homens às minas às obras para contemplar o horrível destino dos proscritos Essas peregrinações seriam mais úteis que as que os turcos fazem a Meca22 E Le Peletier considerava que essa visibilidade dos castigos era um dos princípios fundamentais do novo Código Penal Freqüentemente e em momentos marcados a presença do povo deve levar a vergonha à cabeça do culpado e a presença do culpado no estado penoso a que foi reduzido por seu crime deve dar à alma do povo uma útil instrução23 Bem antes de ser concebido como objeto de ciência pensase no criminoso como elemento de instrução Depois da visita de caridade para partilhar do sofrimento dos prisioneiros o século XVII a inventara ou restabelecera pensouse nessas visitas de crianças que viriam aprender como a justiça da lei vem se aplicar ao crime lição viva no museu da ordem 6 Então se poderá inverter na sociedade o tradicional discurso do crime Grave preocupação para os fazedores de leis no século XVIII como apagar a glória duvidosa dos criminosos Como fazer calarse a epopéia dos grandes malfeitores cantada pelos almanaques folhetins as narrativas populares Se a recodificação for bem feita se a cerimônia de luto se desenrolar como deve o crime só poderá aparecer então como uma desgraça e o malfeitor como um inimigo a quem se reensina a vida social Em lugar dessas louvações que tornam o criminoso um herói só se propagarão então no discurso dos homens esses sinaisobstáculos que impedem o desejo do crime pelo receio calculado do castigo A mecânica positiva funcionará totalmente na linguagem de todos os dias e esta a fortalecerá sem cessar com novas narrativas O discurso se tornará o veículo da lei princípio constante da recodificação universal Os poetas do povo se juntarão enfim aos que se chamam a si mesmos missionários da razão eterna tornarseão moralistas Pleno dessas imagens terríveis e dessas idéias salutares cada cidadão virá espalhálas em sua família e aí com longas narrativas feitas com tanto calor quanto avidamente ouvidas seus filhos em torno dele abrirão suas jovens memórias para receber em traços inalteráveis a idéia do crime e do castigo o amor pelas leis e pela pátria o respeito e a confiança na magistratura Os habitantes do campo testemunhas também desses exemplos os semearão em torno de suas cabanas o gosto pela virtude criará raízes nessas almas grosseiras enquanto que o mau consternado pela alegria pública assustado de ver tantos inimigos talvez venha a renunciar a seus projetos cujo resultado é tão rápido quanto funesto24 Eis então como devemos imaginar a cidade punitiva Nas encruzilhadas nos jardins à beira das estradas que são refeitas ou das pontes que são construídas em oficinas abertas a todos no fundo de minas que serão visitadas mil pequenos teatros de castigos Para cada crime sua lei para cada criminoso sua pena Pena visível pena loquaz que diz tudo que explica se justifica convence placas bonés cartazes tabuletas símbolos textos lidos ou impressos isso tudo repete incansavelmente o Código Cenários perspectivas efeitos de ótica fachadas às vezes ampliam a cena tornamna mais temível mas também mais clara Do lugar onde está colocado o público poderseia acreditar em certas crueldades que na realidade não acontecem Mas o essencial para essas severidades reais ou ampliadas é que segundo uma economia estrita todas elas sirvam de lição que cada castigo seja um apólogo E que em contraponto a todos os exemplos diretos de virtude se possam a cada instante encontrar como uma cena viva as desgraças do vício Em torno de cada uma dessas representações morais os escolares se comprimirão com seus professores e os adultos aprenderão que lição ensinar aos filhos Não mais o grande ritual aterrorizante dos suplícios mas no correr dos dias e pelas ruas esse teatro sério com suas cenas múltiplas e persuasivas E a memória popular reproduzirá em seus boatos o discurso austero da lei Mas talvez fosse necessário acima desses mil espetáculos e narrativas colocar o sinal maior da punição para o mais terrível dos crimes o ápice do edifício penal Vermeil em todo caso imaginara a cena da punição absoluta que devia dominar todos os teatros do castigo diário o único caso em que se deveria procurar atingir o infinito punitivo Um pouco o equivalente na nova penalidade ao que fora o regicídio na antiga O culpado teria os olhos furados seria colocado numa jaula de ferro suspensa em pleno ar acima de uma praça pública estaria completamente nu com um cinto de ferro em torno da cintura seria amarrado às grades até o fim de seus dias seria alimentado a pão e água Estaria assim exposto a todos os rigores das estações ora a fronte coberta de neve ora calcinado por um sol ardente Seria nesse suplício enérgico que apresenta antes o prolongamento de uma morte dolorosa que o de uma vida penosa que se poderia realmente reconhecer um celerado votado ao horror da natureza inteira condenado a não ver mais o céu que ultrajou e a não habitar mais a terra que maculou25 Acima da cidade punitiva essa aranha de ferro e o que deve ser assim crucificado pela nova lei é o parricida Todo um arsenal de castigos pitorescos Evitai infligir as mesmas punições dizia Mably É banida a idéia de uma pena uniforme modulada unicamente pela gravidade da falta Mais precisamente a utilização da prisão como forma geral de castigo nunca é apresentada nesses projetos de penas específicas visíveis e eloqüentes Sem dúvida a prisão é prevista mas entre outras penas é então o castigo específico para certos delitos os que atentam à liberdade dos indivíduos como o rapto ou que resultam do abuso da liberdade a desordem a violência É prevista também como condição para que se possam executar certas penas o trabalho forçado por exemplo Mas não cobre todo o campo da penalidade com a duração como único princípio de variação Melhor a idéia de uma reclusão penal é explicitamente criticada por muitos reformadores Porque é incapaz de responder à especificidade dos crimes Porque é desprovida de efeito sobre o público Porque é inútil à sociedade até nociva é cara mantém os condenados na ociosidade multiplicalhes os vícios26 Porque é difícil controlar o cumprimento de uma pena dessas e correse o risco de expor os detentos à arbitrariedade de seus guardiães Porque o trabalho de privar um homem de sua liberdade e vigiálo na prisão é um exercício de tirania Exigis que haja entre vós monstros e esses homens odiosos se existissem o legislador deveria talvez tratálos como assassinos27 A prisão em seu todo é incompatível com toda essa técnica da penaefeito da penarepresentação da penafunção geral da penasinal e discurso Ela é a escuridão a violência e a suspeita É um lugar de trevas onde o olho do cidadão não pode contar as vítimas onde conseqüentemente seu número está perdido para o exemplo Enquanto que se sem multiplicar os crimes pudermos multiplicar o exemplo dos castigos conseguimos enfim tomálos menos necessários aliás a escuridão das prisões tornase assunto de desconfiança para os cidadãos supõem facilmente que lá se cometem grandes injustiças Há certamente alguma coisa que vai mal quando a lei que é feita para o bem da multidão em vez de excitar seu reconhecimento excita continuamente seus murmúrios28 Que a reclusão pudesse como hoje entre a morte e as penas leves cobrir todo o espaço médio da punição é uma idéia que os reformadores não podiam ter imediatamente Ora eis o problema depois de bem pouco tempo a detenção se tornou a forma essencial de castigo No Código Penal de 1810 entre a morte e as multas ela ocupa sob um certo número de formas quase todo o campo das punições possíveis Que é o sistema de penalidades admitido pela nova lei É o encarceramento sob todas as suas formas Comparai com efeito as quatro penas principais que restam no Código Penal Os trabalhos forçados são uma forma de encarceramento O local desse castigo é uma prisão ao ar livre A detenção a reclusão o encarceramento correcional não passam de certo modo de nomes diversos de um único e mesmo castigo29 E esse encarceramento pedido pela lei o Império resolvera transcrevêlo logo para a realidade segundo uma hierarquia penal administrativa geográfica no grau mais baixo associada a cada justiça de paz delegacia municipal em cada distrito prisões em todos os departamentos uma casa de correção no cume várias casas centrais para os condenados criminosos ou os correcionais que são condenados a mais de um ano enfim em alguns portos prisão com trabalhos forçados É programado um grande edifício carceral cujos níveis diversos devemse ajustar exatamente aos andares da centralização administrativa O cadafalso onde o corpo do supliciado era exposto à força ritualmente manifesta do soberano o teatro punitivo onde a representação do castigo teria sido permanentemente dada ao corpo social são substituídos por uma grande arquitetura fechada complexa e hierarquizada que se integra no próprio corpo do aparelho do Estado Uma materialidade totalmente diferente uma física do poder totalmente diferente uma maneira de investir o corpo do homem totalmente diferente A partir da Restauração e sob a monarquia de julho encontraremos por pequenas diferenças entre 40 e 43000 detentos nas prisões francesas mais ou menos um prisioneiro para cada 600 habitantes O muro alto não mais aquele que cerca e protege não mais aquele que manifesta por seu prestígio o poder e a riqueza mas o muro cuidadosamente trancado intransponível num sentido e no outro e fechado sobre o trabalho agora misterioso da punição será bem perto e às vezes mesmo no meio das cidades do século XIX a figura monótona ao mesmo tempo material e simbólica do poder de punir Já sob o Consulado o ministro do interior fora encarregado de investigar sobre os diversos lugares de segurança que já funcionavam ou que podiam ser utilizados nas diversas cidades Alguns anos mais tarde haviam sido previstos créditos para construir à altura do poder que deviam representar e servir esses novos castelos da ordem civil O Império os utilizou na realidade para uma outra guerra30 Uma economia menos suntuária mas mais obstinada acabou construindo os pouco a pouco no século XIX Em todo caso em menos de vinte anos o princípio tão claramente formulado na Constituinte de penas específicas ajustadas eficazes que formassem em cada caso lição para todos tornouse a lei de detenção para qualquer infração pouco importante se ela ao menos não merecer a morte Esse teatro punitivo com que se sonhava no século XVIII e que teria agido essencialmente sobre o espírito dos cidadãos foi substituído pelo grande aparelho uniforme das prisões cuja rede de imensos edifícios se estenderá por toda a França e a Europa Mas dar vinte anos como cronologia para esse passe de mágica é talvez ainda excessivo Podese dizer que foi quase instantâneo Basta examinar com atenção o projeto de Código Criminal apresentado por Le Peletier à Constituinte O princípio formulado no início é que são necessárias relações exatas entre a natureza do delito e a natureza da punição dores para os que foram ferozes trabalho para os que foram preguiçosos infâmia para aqueles cuja alma está degradada Ora as penas aflitivas efetivamente propostas são três formas de detenção a masmorra onde a pena de encarceramento é agravada por diversas medidas referentes à solidão à privação de luz às restrições de comida a limitação em que essas medidas anexas são atenuadas enfim a prisão propriamente dita que se reduz ao encarceramento puro e simples A diversidade tão solenemente prometida reduzse finalmente a essa penalidade uniforme e melancólica Houve aliás no momento deputados que se espantaram de que em vez de estabelecer uma relação entre delitos e penas se houvesse seguido um plano totalmente diferente De maneira que se eu traí meu país sou preso se matei meu pai sou preso todos os delitos imagináveis são punidos da maneira mais uniforme Tenho a impressão de ver um médico que para todas as doenças tem o mesmo remédio31 Pronta substituição que não foi privilégio da França Encontramola igual em tudo nos países estrangeiros Quando Catarina II nos anos que se seguiram imediatamente ao tratado Dos delitos e das penas manda redigir um projeto para um novo código das leis a lição de Beccaria sobre a especificidade e a variedade das penas não foi esquecida é repetida quase palavra por palavra É o triunfo da liberdade civil quando as leis criminais tiram cada pena da natureza particular de cada crime Então cessa qualquer arbitrariedade a pena não depende em nada do capricho do legislador mas da natureza da coisa não é de modo algum o homem que faz violência ao homem mas a própria ação do homem32 Alguns anos mais tarde os princípios gerais de Beccaria ainda fundamentam o novo código toscano e o que José II deu à Áustria e no entanto essas duas legislações fazem do encarceramento modulado segundo a duração e agravado em certos casos pelo ferrete ou pelas algemas uma pena quase uniforme trinta anos pelo menos de detenção por atentado contra o soberano por falsificação de moeda e por assassinato complicado com roubo de quinze a trinta anos por homicídio voluntário ou por roubo a mão armada de um mês a cinco anos por roubo simples etc33 Mas se essa colonização da penalidade pela prisão é de surpreender é porque esta não era como se imagina um castigo que já estivesse solidamente instalado no sistema penal logo abaixo da pena de morte e que teria naturalmente ocupado o lugar deixado vago pelo desaparecimento dos suplícios Na realidade a prisão e muitos países nesse ponto estavam na mesma situação da França tinha apenas uma posição restrita e marginal no sistema das penas Os textos o provam A ordenação de 1670 entre as penas aflitivas não cita a detenção A prisão perpétua ou temporária havia sem dúvida figurado entre as penas em certos costumes34 Mas pretendese que ela está caindo em desuso como outros suplícios Havia antigamente penas que não se praticam mais na França como escrever na testa ou rosto de um condenado sua pena e a prisão perpétua assim como não se deve condenar um criminoso a ser exposto às feras nem às minas35 De fato é certo que a prisão subsistira de maneira tenaz para sancionar as faltas sem gravidade e isto segundo os costumes ou hábitos locais Nesse sentido Soulatges fala das penas leves que a ordenação de 1670 não mencionara o anátema a admoestação a abstenção de lugar a satisfação à pessoa ofendida e a prisão temporária Em certas regiões principalmente as que haviam melhor conservado seu particularismo judiciário a pena de prisão tinha ainda uma grande extensão mas a coisa tinha suas dificuldades como no Roussillon recentemente anexado Mas através dessas divergências os juristas defendem firmemente o princípio de que a prisão não é vista como uma pena em nosso direito civil36 Seu papel é de ser uma garantia sobre a pessoa e sobre seu corpo ad continendos homines non ad puniendos diz o adágio nesse sentido o encarceramento de um suspeito tem um pouco o mesmo papel que o de um devedor A prisão assegura que temos alguém não o pune37 É este o princípio geral E se às vezes a prisão desempenha o papel de pena mesmo e em casos importantes é essencialmente a título do substituto substitui as galés para aqueles mulheres crianças inválidos que nelas não podem servir A condenação a ser encarcerado temporária ou definitivamente numa casa de força é equivalente à das galés38 Nessa equivalência vemos bem esboçarse uma possível substituição Mas para que ela se realizasse foi preciso que a prisão mudasse de estatuto jurídico Foi preciso também superar um segundo obstáculo que para a França pelo menos era considerável Com efeito a prisão era ainda mais desqualificada porque estava na prática diretamente ligada ao arbítrio real e aos excessos do poder soberano As casas de força os hospitais gerais as ordens do rei ou as do chefe de polícia as cartas timbradas obtidas pelos notáveis ou pelas famílias haviam constituído toda uma prática repressiva justaposta à justiça regular e ainda mais freqüentemente oposta a ela E esse encarceramento extrajudiciário era rejeitado tanto pelos juristas clássicos quanto pelos reformadores Prisões feito do príncipe dizia um tradicionalista como Serpillon que se abrigava por trás da autoridade do presidente Bouhier Embora os príncipes por razões de Estado cheguem às vezes a infligir esta pena a justiça ordinária não utiliza esses tipos de condenação39 Detenção figura e instrumento privilegiado do despotismo dizem os reformadores em inúmeras declarações Que se dirá dessas prisões secretas imaginadas pelo espírito fatal do monarquismo reservadas principalmente ou para os filósofos em cujas mãos a natureza colocou seu facho e que ousam iluminar seu século ou para essas almas orgulhosas e independentes que não têm a covardia de calar os males de sua pátria prisões cujas portas funestas são abertas por misteriosas cartas para aí sepultar para sempre suas infelizes vítimas Que se dirá mesmo dessas cartas obraprima de uma misteriosa tirania que invertem o privilégio que tem qualquer cidadão de ser ouvido antes de ser julgado e que são mil vezes mais perigosas para os homens que a invenção das Phalaris40 Sem dúvida que esses protestos vindos de horizontes tão diversos se referem não ao encarceramento como pena legal mas à utilização fora da lei da detenção arbitrária e indeterminada Nem por isso a prisão deixava de aparecer de uma maneira geral como marcada pelos abusos do poder E muitos rejeitamna por incompatível com uma boa justiça Quer em nome dos princípios jurídicos clássicos As prisões na intenção da lei sendo destinadas não a punir mas a garantir a presença das pessoas41 Quer em nome dos efeitos da prisão que já pune os que ainda não estão condenados que comunica e generaliza o mal que deveria prevenir e que vai contra o princípio da individualização da pena sancionando toda uma família dizse que a prisão é uma pena A humanidade se levanta contra esse horrível pensamento de que não é uma punição privar um cidadão do mais precioso dos bens mergulhálo ignominiosamente no mundo do crime arrancálo a tudo o que lhe é caro precipitálo talvez na ruína e retirarlhe não só a ele mas à sua infeliz família todos os meios de subsistência42 E os cahiers por várias vezes pedem a supressão dessas casas de internação Pensamos que as cadeias devem ser arrasadas43 E realmente o decreto de 13 de março de 1790 ordena que se ponha em liberdade todas as pessoas detidas nos castelos nas casas religiosas cadeias delegacias ou quaisquer outras prisões por cartas de prego ou por ordem dos agentes do poder executivo Como pôde a detenção tão visivelmente ligada a esse ilegalismo que é denunciado até no poder do príncipe em tão pouco tempo tornarse uma das formas mais gerais dos castigos legais A explicação mais freqüente é a formação durante a época clássica de alguns grandes modelos de encarceramento punitivo Seu prestígio ainda maior dado o fato de que os mais recentes vinham da Inglaterra e principalmente da América teria permitido superar o duplo obstáculo constituído pelas regras seculares do direito e o funcionamento despótico da prisão Muito rapidamente teriam afastado as maravilhas punitivas imaginadas pelos reformadores e imposto a realidade séria da detenção A importância desses modelos foi grande não se deve duvidar Mas são justamente eles que antes de fornecer a solução trazem problemas o de sua existência e o de sua difusão Como puderam nascer e principalmente como puderam ser aceitos de maneira tão geral Pois é fácil mostrar que se apresentam um certo número de pontos em comum com os princípios gerais da reforma penal em muitos pontos são inteiramente heterogêneos a ela e às vezes mesmo incompatíveis O mais antigo desses modelos o que passa por ter de perto ou de longe inspirado todos os outros é o Rasphuis de Amsterdam aberto em 159644 Destinava se em princípio a mendigos ou a jovens malfeitores Seu funcionamento obedecia a três grandes princípios a duração das penas podia pelo menos dentro de certos limites ser determinada pela própria administração de acordo com o comportamento do prisioneiro essa latitude podia aliás ser prevista pela sentença em 1597 um detento era condenado a doze anos de prisão que podiam se reduzir a oito se seu comportamento fosse satisfatório O trabalho era obrigatório feito em comum aliás a cela individual só era utilizada a título de punição suplementar os detentos dormiam 2 ou 3 em cada cama em celas que continham 4 a 12 pessoas e pelo trabalho feito os prisioneiros recebiam um salário Enfim um horário estrito um sistema de proibições e de obrigações uma vigilância contínua exortações leituras espirituais todo um jogo de meios para atrair para o bem e desviar do mal enquadrava os detentos no diaadia Podese tomar o Rasphuis de Amsterdam como exemplo básico Historicamente faz a ligação entre a teoria característica do século XVI de uma transformação pedagógica e espiritual dos indivíduos por um exercício contínuo e as técnicas penitenciárias imaginadas na segunda metade do século XVIII E deu às três instituições que são então implantadas os princípios fundamentais que cada uma desenvolverá numa direção particular A cadeia de Gand organizou o trabalho penal em torno principalmente de imperativos econômicos A razão dada é que a ociosidade é a causa geral da maior parte dos crimes Um levantamento um dos primeiros sem dúvida feito sobre os condenados na jurisdição de Alost em 1749 mostra que os malfeitores não eram artesões ou lavradores os operários só pensam no trabalho que os alimenta mas vagabundos que se dedicavam à mendicância45 Daí a idéia de uma casa que realizasse de uma certa maneira a pedagogia universal do trabalho para aqueles que se mostrassem refratários Quatro vantagens diminuir o número de processos criminais que custam caro ao Estado poderseiam assim economizar mais de 100000 libras em Flandres não ser mais necessário adiar os impostos para os proprietários dos bosques arruinados pelos vagabundos formar uma quantidade de novos operários o que contribuiria pela concorrência a diminuir a mãodeobra enfim permitir aos verdadeiros pobres ter os benefícios sem divisão da caridade necessária46 Essa pedagogia tão útil reconstituirá no indivíduo preguiçoso o gosto pelo trabalho recolocáloá por força num sistema de interesses em que o trabalho será mais vantajoso que a preguiça formará em torno dele uma pequena sociedade reduzida simplificada e coercitiva onde aparecerá claramente a máxima quem quer viver tem que trabalhar Obrigação do trabalho mas também retribuição que permite ao detento melhorar seu destino durante e depois da detenção O homem que não encontra sua subsistência deve absolutamente ser levado ao desejo de procurála pelo trabalho ela lhe é oferecida pela polícia e pela disciplina de alguma maneira ele é obrigado a se entregar a atração do ganho o excita em seguida corrigido em seus hábitos acostumado a trabalhar alimentado sem inquietação com alguns lucros que reserva para a saída ele aprendeu uma profissão que lhe garante uma subsistência sem perigo47 Reconstrução do Homo oeconomicus que exclui a utilização de penas muito breves o que impediria a aquisição das técnicas e do gosto pelo trabalho ou definitivas o que tornaria inútil qualquer aprendizagem O prazo de seis meses é curto demais para corrigir os criminosos e leválos ao espírito de trabalho em compensação o prazo perpétuo os desespera ficam indiferentes à correção dos hábitos e ao espírito de trabalho só se ocupam com projetos de evasão e de revolta e já que não foram julgados quanto a serem privados da vida por que procurar tornála insuportável48 A duração da pena só tem sentido em relação a uma possível correção e a uma utilização econômica dos criminosos corrigidos Ao princípio do trabalho o modelo inglês acrescenta como condição essencial para a correção o isolamento O esquema fora dado em 1775 por Hanway que o justificava em primeiro lugar por razões negativas a promiscuidade na prisão dá maus exemplos e possibilidades de evasão no imediato de chantagem ou de cumplicidade para o futuro A prisão se pareceria demais com uma fábrica deixando se os detentos trabalhar em comum As razões positivas em seguida o isolamento constitui um choque terrível a partir do qual o condenado escapando às más influências pode fazer meiavolta e redescobrir no fundo de sua consciência a voz do bem o trabalho solitário se tornará então tanto um exercício de conversão quanto de aprendizado não reformará simplesmente o jogo de interesses próprios ao homo oeconomicus mas também os imperativos do indivíduo moral A cela esta técnica do monaquismo cristão e que só subsistia em países católicos tornase nessa sociedade protestante o instrumento através do qual se podem reconstituir ao mesmo tempo o homo oeconomicus e a consciência religiosa Entre o crime e a volta ao direito e à virtude a prisão constituirá um espaço entre dois mundos um lugar para as transformações individuais que devolverão ao Estado os indivíduos que este perdera Aparelho para modificar os indivíduos que Hanway chama um reformatório49 São esses princípios gerais que Howard e Blackstone põem em prática em 1779 quando a independência dos Estados Unidos impede as deportações e se prepara uma lei para modificar o sistema de penas O encarceramento com a finalidade de transformação da alma e do comportamento faz sua entrada no sistema das leis civis O preâmbulo da lei redigido por Blackstone e Howard descreve o encarceramento individual em sua tríplice função de exemplo temível de instrumento de conversão e de condição para um aprendizado submetidos a uma detenção isolada a um trabalho regular e à influência da instrução religiosa certos criminosos poderiam não só assustar aqueles que ficassem tentados a imitálos mas ainda eles mesmos se corrigirem e contrair o hábito do trabalho50 Donde a decisão de construir duas penitenciárias uma para os homens outra para as mulheres onde os detentos isolados seriam obrigados aos trabalhos mais servis e mais compatíveis com a ignorância a negligência e a obstinação dos criminosos andar numa roda para movimentar uma máquina fixar um cabrestante polir mármore bater cânhamo raspar paucampeche retalhar trapos fazer cordas e sacos Na realidade só uma penitenciária foi construída a de Gloucester e que só parcialmente correspondia ao esquema inicial confinamento total para os criminosos mais perigosos para os outros trabalho em comum durante o dia e separação à noite Enfim o modelo de Filadélfia O mais famoso sem dúvida porque surgia ligado às inovações políticas do sistema americano e também porque não foi votado como os outros ao fracasso imediato e ao abandono foi continuamente retomado e transformado até às grandes discussões dos anos 1830 sobre a reforma penitenciária Em muitos pontos a prisão de Walnut Street aberta em 1790 sob a influência direta dos meios quaker retomava o modelo de Gand e de Gloucester51 Trabalho obrigatório em oficinas ocupação constante dos detentos custeio das despesas da prisão com esse trabalho mas também retribuição individual dos prisioneiros para assegurar sua reinserção moral e material no mundo estrito da economia os condenados são então constantemente empregados em trabalhos produtivos para fazêlos suportar os gastos da prisão para não deixálos na inação e para lhes preparar alguns recursos para o momento em que deverá cessar seu cativeiro52 A vida é então repartida de acordo com um horário absolutamente estrito sob uma vigilância ininterrupta cada instante do dia é destinado a alguma coisa prescrevese um tipo de atividade e implica obrigações e proibições Todos os prisioneiros se levantam cedo de madrugada de maneira que depois de terem feito as camas se terem lavado e atendido a outras necessidades começam o trabalho geralmente ao nascer do sol A partir desse momento ninguém pode entrar nas salas ou outros lugares que não sejam as oficinas e locais designados para seus trabalhos No fim do dia toca um sino que os avisa para deixar o trabalho Eles têm meia hora para arrumar as camas e depois disso não lhes é mais permitido conversar alto e fazer o mínimo ruído53 Como em Gloucester o confinamento solitário não é total é para certos condenados que em outras épocas teriam recebido a morte e para aqueles que no interior da prisão merecem uma punição especial Lá sem ocupação sem nada para distraílo à espera e na incerteza do momento em que será libertado o prisioneiro passa longas horas ansiosas trancado em pensamentos que se apresentam ao espírito de todos os culpados54 Como em Gand enfim a duração do encarceramento pode variar com o comportamento do detento os inspetores da prisão depois de consultar o processo obtêm das autoridades e isso sem dificuldades até pelos anos 1820 o perdão para os detentos que se comportarem bem Walnut Street comporta além disso um certo número de traços que lhe são específicos ou pelo menos que desenvolvem o que estava virtualmente presente nos outros modelos Em primeiro lugar o princípio da nãopublicidade da pena Se a condenação e o que a motivou devem ser conhecidos por todos a execução da pena em compensação deve ser feita em segredo o público não deve intervir nem como testemunha nem como abonador da punição a certeza de que atrás dos muros o detento cumpre sua pena deve ser suficiente para constituir um exemplo terminados aqueles espetáculos de rua criados pela lei de 1786 quando impôs a certos condenados obras públicas a executar nas cidades ou estradas55 O castigo e a correção que este deve operar são processos que se desenrolam entre o prisioneiro e aqueles que o vigiam Processos que impõem uma transformação do indivíduo inteiro de seu corpo e de seus hábitos pelo trabalho cotidiano a que é obrigado de seu espírito e de sua vontade pelos cuidados espirituais de que é objeto São fornecidas Bíblias e outros livros de religião prática o clero das diversas obediências que se encontrar na cidade e nos arrabaldes realiza o serviço religioso uma vez por semana e qualquer outra pessoa edificante pode ter acesso aos prisioneiros todo o tempo56 Mas a própria administração tem o papel de empreender essa transformação A solidão e o retorno sobre si mesmo não bastam assim tampouco as exortações puramente religiosas Deve ser feito com tanta freqüência quanto possível um trabalho sobre a alma do detento A prisão aparelho administrativo será ao mesmo tempo uma máquina para modificar os espíritos Quando o detento entra o regulamento lhe é lido ao mesmo tempo os inspetores procuram fortalecer nele as obrigações morais onde ele está demonstramlhe a infração em que caiu em relação a eles o mal que disso conseqüentemente resultou para a sociedade que o protegia e a necessidade de fazer uma compensação por seu exemplo e ao se emendar Fazemno em seguida comprometerse a cumprir seu dever com alegria a se comportar decentemente prometendolhe ou fazendoo esperar que antes da expiração do termo da sentença poderá obter seu relaxamento se se comportar bem De vez em quando os inspetores sem falta conversam com os criminosos um depois do outro relativamente a seus deveres como homens e como membros da sociedade57 Mas o mais importante sem dúvida é que esse controle e essa transformação do comportamento são acompanhados ao mesmo tempo condição e conseqüência da formação de um saber dos indivíduos Ao mesmo tempo que o próprio condenado a administração de Walnut Street recebe um relatório sobre seu crime as circunstâncias em que foi cometido um resumo de interrogatório do culpado notas sobre a maneira como ele se conduziu antes e depois da sentença Outros tantos elementos indispensáveis se queremos determinar quais serão os cuidados necessários para destruir seus hábitos antigos58 E durante todo o tempo da detenção ele será observado seu comportamento será anotado dia por dia e os inspetores doze notáveis da cidade designados em 1795 que dois a dois visitam a prisão toda semana deverão se informar do que se passou tomar conhecimento da conduta de cada condenado e designar aqueles para os quais será pedida a graça Esses conhecimentos dos indivíduos continuamente atualizados permitem repartilos na prisão menos em função de seus crimes que das disposições que demonstram A prisão tornase uma espécie do observatório permanente que permite distribuir as variedades do vício ou da fraqueza A partir de 1797 os prisioneiros estavam divididos em quatro classes a primeira para os que foram explicitamente condenados ao confinamento solitário ou que cometeram faltas graves na prisão outra é a reservada aos que são bem conhecidos por serem velhos delinqüentes ou cuja moral depravada temperamento perigoso disposições irregulares ou conduta desordenada se manifestaram durante o tempo em que estavam na prisão outra para aqueles de quem o caráter e as circunstâncias antes e depois da condenação fazem pensar que não são delinqüentes comuns Existe enfim uma seção especial uma classe de prova para aqueles cujo temperamento ainda não é conhecido ou que se são mais bem conhecidos não merecem entrar na categoria anterior59 Organizase todo um saber individualizante que toma como campo de referência não tanto o crime cometido pelo menos em estado isolado mas a virtualidade de perigos contida num indivíduo e que se manifesta no comportamento observado cotidianamente A prisão funciona aí como um aparelho de saber Entre este aparelho punitivo proposto pelos modelos flamengo inglês americano entre esses reformatórios e todos os castigos imaginados pelos reformadores podemse estabelecer pontos de convergência e disparidades Pontos de convergência Em primeiro lugar o retorno temporal da punição Os reformatórios se dão por função também eles não apagar um crime mas evitar que recomece São dispositivos voltados para o futuro e organizados para bloquear a repetição do delito O objeto das penas não é a expiação do crime cuja determinação deve ser deixada ao Ser supremo mas prevenir os delitos da mesma espécie60 E na Pensilvânia Buxton afirmava que os princípios de Montesquieu e de Beccaria deviam ter agora força de axiomas a prevenção dos crimes é o único fim do castigo61 Não se pune portanto para apagar um crime mas para transformar um culpado atual ou virtual o castigo deve levar em si uma certa técnica corretiva Ainda nesse ponto Rush está bem próximo dos juristas reformadores não fora talvez a metáfora que utiliza quando diz inventaramse sem dúvida máquinas que facilitam o trabalho bem mais se deveria louvar aquele que inventasse os métodos mais rápidos e mais eficazes para trazer de volta à virtude e à felicidade a parte mais viciosa da humanidade e para extirpar uma parte do vício que está no mundo62 Enfim os modelos anglosaxões como os projetos dos legisladores e dos teóricos utilizam processos para singularizar a pena em sua duração sua natureza sua intensidade na maneira como se desenrola o castigo deve ser ajustado ao caráter individual e ao que este comporta de perigo para os outros O sistema das penas deve estar aberto às variáveis individuais Em seu esquema geral os modelos mais ou menos derivados do Rasphuis de Amsterdam não estavam em contradição com o que propunham os reformadores Poderseia mesmo pensar à primeira vista que eram apenas os desenvolvimentos ou o esboço dessa proposta ao nível das instituições concretas E no entanto a disparidade salta aos olhos desde que se trata de definir as técnicas dessa correção individualizante Onde se faz a diferença é no procedimento de acesso ao indivíduo na maneira como o poder punitivo se apossa dele nos instrumentos que utiliza para realizar essa transformação é na tecnologia da pena não em seu fundamento teórico na relação que ela estabelece no corpo e na alma e não na maneira como ela se insere no interior do sistema do direito Vejamos o método dos reformadores Será o ponto a que se refere a pena aquilo com que ela tem poder sobre o indivíduo As representações representação de seus interesses representação de suas vantagens suas desvantagens seu prazer e seu desprazer e se acontece que o castigo se aposse do corpo lhe aplique técnicas que não tem nada a invejar aos suplícios é na medida em que esse corpo é para o condenado e para os espectadores um objeto de representação O instrumento com o qual se age sobre as representações Outras representações ou antes as duplas de idéias crimepunição vantagem imaginada do crimedesvantagem percebida dos castigos esses emparelhamentos só podem funcionar no elemento da publicidade cenas punitivas que os estabelecem ou os reforçam aos olhos de todos discursos que os fazem circular e revalorizam a cada instante o jogo dos sinais O papel do criminoso na punição é reintroduzir diante do código e dos crimes a presença real do significado ou seja dessa pena que segundo os termos do código deve estar infalivelmente associada à infração Produzir com abundância e com evidência esse significado reativar desse modo o sistema significante do código fazer funcionar a idéia de crime como um sinal de punição é com essa moeda que o malfeitor paga sua dívida à sociedade A correção individual deve então realizar o processo de requalificação do indivíduo como sujeito de direito pelo reforço dos sistemas de sinais e das representações que fazem circular O aparelho da penalidade corretiva age de maneira totalmente diversa O ponto de aplicação da pena não é a representação é o corpo é o tempo são os gestos e as atividades de todos os dias a alma também mas na medida em que é sede de hábitos O corpo e a alma como princípios dos comportamentos formam o elemento que agora é proposto à intervenção punitiva Mais que sobre uma arte de representações ela deve repousar sobre uma manipulação refletida do indivíduo Qualquer crime tem sua cura na influência física e moral é necessário então para determinar os castigos conhecer o princípio das sensações e das simpatias que se produzem no sistema nervoso63 Quanto aos instrumentos utilizados não são mais jogos de representação que são reforçados e que se faz circular mas formas de coerção esquemas de limitação aplicados e repetidos Exercícios e não sinais horários distribuição do tempo movimentos obrigatórios atividades regulares meditação solitária trabalho em comum silêncio aplicação respeito bons hábitos E finalmente o que se procura reconstruir nessa técnica de correção não é tanto o sujeito de direito que se encontra preso nos interesses fundamentais do pacto social é o sujeito obediente o indivíduo sujeito a hábitos regras ordens uma autoridade que se exerce continuamente sobre ele e em torno dele e que ele deve deixar funcionar automaticamente nele Duas maneiras portanto bem distintas de reagir à infração reconstituir o sujeito jurídico do pacto social ou formar um sujeito de obediência dobrado à forma ao mesmo tempo geral e meticulosa de um poder qualquer Tudo isso não passaria talvez de uma diferença bem especulativa pois no total tratase nos dois casos de formar indivíduos submissos se a penalidade de coerção não trouxesse consigo algumas conseqüências capitais O treinamento do comportamento pelo pleno emprego do tempo a aquisição de hábitos as limitações do corpo implicam entre o que é punido e o que pune uma relação bem particular Relação que não só torna simplesmente inútil a dimensão do espetáculo ela o exclui64 O agente de punição deve exercer um poder total que nenhum terceiro pode vir perturbar o indivíduo a corrigir deve estar inteiramente envolvido no poder que se exerce sobre ele Imperativo do segredo E portanto também autonomia pelo menos relativa dessa técnica de punição ela deverá ter seu funcionamento suas técnicas seu saber ela deverá fixar suas normas decidir de seus resultados descontinuidade ou em todo caso especificidade em relação ao poder judiciário que declara a culpa e fixa os limites gerais da punição Ora essas duas conseqüências segredo e autonomia no exercício do poder de punir são exorbitantes para uma teoria e uma política de penalidade que se propunha dois objetivos fazer todos os cidadãos participarem do castigo do inimigo social tornar o exercício do poder de punir inteiramente adequado e transparente às leis que o delimitam publicamente Castigos secretos e não codificados pela legislação um poder de punir que se exerce na sombra de acordo com critérios e instrumentos que escapam ao controle é toda a estratégia da reforma que corre o risco de ser comprometida Depois da sentença é constituído um poder que lembra o que era exercido no antigo sistema O poder que aplica às penas ameaça ser tão arbitrário tão despótico quanto aquele que antigamente as decidia No total a divergência é a seguinte cidade punitiva ou instituição coercitiva De um lado funcionamento do poder penal repartido em todo o espaço social presente em toda parte como cena espetáculo sinal discurso legível como um livro aberto que opera por uma recodificação permanente do espírito dos cidadãos que realiza a repressão do crime por esses obstáculos colocados à idéia do crime que age de maneira invisível e inútil sobre as fibras moles do cérebro como dizia Servan Um poder de punir que correria ao longo de toda a rede social agiria em cada um de seus pontos e terminaria não sendo mais percebido como poder de alguns sobre alguns mas como reação imediata de todos em relação a cada um De outro um funcionamento compacto do poder de punir ocupação meticulosa do corpo e do tempo do culpado enquadramento de seus gestos de suas condutas por um sistema de autoridade e de saber uma ortopedia concertada que é aplicada aos culpados a fim de corrigilos individualmente gestão autônoma desse poder que se isola tanto do corpo social quanto do poder judiciário propriamente dito O que se engaja no aparecimento da prisão é a institucionalização do poder de punir ou mais precisamente o poder de punir com o objetivo estratégico que lhe foi dado no fim do século XVIII a redução dos ilegalismos populares será mais bem realizado escondendose sob uma função social geral na cidade punitiva ou investindose numa instituição coercitiva no local fechado do reformatório Em todo caso podese dizer que os encontramos no fim do século XVIII diante de três maneiras de organizar o poder de punir A primeira é a que ainda estava funcionando e se apoiava no velho direito monárquico As outras se referem ambas a uma concepção preventiva utilitária corretiva de um direito de punir que pertenceria à sociedade inteira mas são muito diferentes entre si ao nível dos dispositivos que esboçam Esquematizando muito poderíamos dizer que no direito monárquico a punição é um cerimonial de soberania ela utiliza as marcas rituais da vingança que aplica sobre o corpo do condenado e estende sob os olhos dos espectadores um efeito de terror ainda mais intenso por ser descontínuo irregular e sempre acima de suas próprias leis a presença física do soberano e de seu poder No projeto dos juristas reformadores a punição é um processo para requalificar os indivíduos como sujeitos de direito utiliza não marcas mas sinais conjuntos codificados de representações cuja circulação deve ser realizada o mais rapidamente possível pela cena do castigo e a aceitação deve ser a mais universal possível Enfim no projeto de instituição carcerária que se elabora a punição é uma técnica de coerção dos indivíduos ela utiliza processos de treinamento do corpo não sinais com os traços que deixa sob a forma de hábitos no comportamento e ela supõe a implantação de um poder específico de gestão da pena O soberano e sua força o corpo social o aparelho administrativo A marca o sinal o traço A cerimônia a representação o exercício O inimigo vencido o sujeito de direito em vias de requalificação o indivíduo submetido a uma coerção imediata O corpo que é supliciado a alma cujas representações são manipuladas o corpo que é treinado temos aí três séries de elementos que caracterizam os três dispositivos que se defrontam na última metade do século XVIII Não podemos reduzilos nem a teorias de direito se bem que eles lhes sejam paralelos nem identificálos a aparelhos ou a instituições se bem que se apoiem sobre estes nem fazêlos derivar de escolhas morais se bem que nelas encontrem eles suas justificações São modalidades de acordo com as quais se exerce o poder de punir Três tecnologias de poder O problema é então o seguinte como é possível que o terceiro se tenha finalmente imposto Como o modelo coercitivo corporal solitário secreto do poder de punir substitui o modelo representativo cênico significante público coletivo Por que o exercício físico da punição e que não é o suplício substituiu com a prisão que é seu suporte institucional o jogo social dos sinais de castigo e da festa bastarda que os fazia circular NOTAS CAPÍTULO I 1 É assim que a chancelaria em 1789 resume a posição geral dos cahiers de doléances quanto aos suplícios VE Selligman La Justice sous la Révolution t 1 1901 e A Desjardin Les Cahiers des Etats généraux et la justice criminelle 1883 p 1320 2 Cahiers de doléances cadernos dos delegados aos Estados Gerais de 1789 em que se registravam seus pedidos NT 3 J Petion de Villeneuve Discurso na Constituinte Archives parlementaires t XXVI p 641 4 A Boucher dArgis Observations sur les lois criminelles 1781 p 125 5 Lachèze Discurso na Constituinte 3 de junho de 1791 Archives Parlementaires t XXVI 6 V particularmente a polêmica de Muyart de Vouglans contra Beccaria Réfutation du Traité des délits et des peines 1766 7 P Chaunu Annales de Normandie 1962 p 236 e 1966 p 107108 8 E Le RoyLadurie in Contrepoint 1973 9 NW Mogensen Aspects de la société augeronne aux XVIIe et XVIIIe siècles 1971 Tese datilografada p 326 O autor mostra que na região de Auge os crimes de violência são quatro vezes menos numerosos nas vésperas da Revolução que no fim do reinado de Luís XIV De uma maneira geral os trabalhos dirigidos por Pierre Chaunu sobre a criminalidade na Normandia demonstram esse aumento da fraude às custas da violência V Artigos de B Boutelet de J Cl Gégot e V Boucheron nos Annales de Normandie de 1962 1966 e 1971 Para Paris v P Petrovitch in Crime er criminalité en France aux XVIIe et XVIIIe siècles 1971 Mesmo fenômeno parece na Inglaterra v Ch Hibbert The roots of evil 1966 p 72 e J Tobias Crime and industrial society 1967 p 37 10 P Chaunu Annales de Normandie 1971 p 56 11 Thomas Fowell Buxton Parliamentary Debate 1819 XXXIX 12 E Le RoyLadurie Contrepoint 1973 O estudo de A Farge sobre o roubo de alimentos em Paris no século XVIII Le vol laliments à Paris au XVIIIe siècle 1974 confirma essa tendência de 1750 a 1755 5 das sentenças baseadas nisso levam às galés mas 15 de 1775 a 1790 a severidade dos tribunais se acentua com o tempo pesa uma ameaça sobre os valores úteis à sociedade que se pretende organizada e respeitadora da propriedade p 130142 13 G Le Trosne Mémoires sur les vagabonds 1764 p 4 14 V por exemplo C Dupaty Mémoire justificatif pour trois hommes condamnés à la roue 1786 p 247 15 Um dos presidentes da Câmara de la Tournelle dirigindose ao rei em 2 de agosto de 1768 citado in Arlette Farge p 66 16 P Chaunu Anales de Normandie 1966 p 108 17 A expressão é de NW Mogensen loc cit 18 Archives parlementaires t XII p 344 19 Sobre esse assunto podese consultar entre outros S Linguet Nécessité dune refórme dans 1administration de la justice 1764 ou A Boucher dArgis Chaier dun magistrat 1789 20 A respeito dessa crítica sobre o excesso de poder e sua má distribuição no aparelho judiciário v particularmente C Dupaty Lettres sur la procédure criminelle 1788 PL de Lacretelle Dissertation sur le ministère public in Discours sur le préjugé des peines infamantes 1784 G Target LEsprit des cahiers présentés aux Etats généraux 1789 21 Cf N Bergasse a respeito do poder judiciário E preciso que desprovido de qualquer atividade contra o regime político do Estado e não tendo nenhuma influência sobre as vontades que concorrem para formar esse regime ou para mantêlo ele disponha para proteger todos os indivíduos e todos os direitos de tal força que todopoderosa para defender e socorrer ela se torne absolutamente nula logo que mudando seu objetivo se tenderá utilizála para oprimir Rapport à la Constituante sur le pouvoir judiciaire 1789 p 1112 22 Le Trosne Mémoire sur les vagabonds 1764 p 4 23 YM Bercé Croquants et nupieds 1974 p 161 24 Droit de vaine pâture direito de levar o gado a pastar nos pastos naturais e não cercados dos outros depois da primeira colheita do feno NT 25 VO Festy Les délits ruraux et leur répression sous la Révolution et le Consulat 1956 M Agulhon La vie sociale en Provence 1970 26 P Colquhoun Traité sur la police de Londres tradução de 1807 t 1 Nas páginas 153 182 e 292339 Colquhoun expõe muito detalhadamente esses recursos 27 Ibid p 297298 28 G Le Trosne Mémoire sur les vagabonds 764 p 8 50 54 6162 29 G Le Trosne Vues sur la justice criminelle 1777 p 31 103106 30 JJ Rousseau Contrat Social livro II cap V Devese notar que essas idéias de Rousseau foram usadas na Constituinte por certos deputados que queriam manter um sistema de penas muito rigoroso E curiosamente os princípios do Contrat puderam servir para sustentar a velha correspondência de atrocidade entre crime e castigo A proteção devida aos cidadãos exige que as penas sejam medidas de acordo com a atrocidade dos crimes e que não se sacrifique em nome da humanidade a própria humanidade Mougins de Roquefort que cita a passagem em questão do Contrat Social Discurso na Constituinte Archives Parlementaires t XXVI p 637 31 Beccaria Des délits et des peines ed 1856 p 87 32 PL de Lacretelle Discours sur le préjugé des peines infamantes 1784 p 129 33 Ibid p 131 34 A Duport Discurso na Constituinte 22 de dezembro de 1789 Archives parlementaires t X p 744 Poderíamos no mesmo sentido citar os vários concursos propostos no fim do século XVIII pelas sociedades e academias científicas como fazer que a suavidade das instruções e das penas se concilie com a certeza de um castigo pronto e exemplar e que a sociedade civil encontre a maior segurança possível para a liberdade e a humanidade Société économique de Berne 1777 Marat respondeu com seu Plan de législation criminelle Quais são os meios de suavizar o rigor das leis penais na França sem prejudicar a segurança pública Academia de ChâlonssurMarne 1780 os premiados foram Brissot e Bernardi tenderá a extrema severidade das leis a diminuir o número e a enormidade dos crimes numa nação depravada Academia de Marselha 1786 o premiado foi Eymar 35 G Target Observations sur le projet du Code pénal in Locré La Législation de la France t XXIX p 78 Encontrado numa forma invertida em Kant 36 C E de Pastoret Des lois pénales 1790 vol II p 21 37 G Filangieri La Science de la législation trad 1786 t IV p 214 38 Beccaria Des délits et des peines 1856 p 87 39 A Barnave Discurso na Constituinte A sociedade não vê nas punições que inflige o gozo bárbaro de fazer sofrer um ser humano vê nelas a precaução necessária para prevenir crimes semelhantes para afastar da sociedade os males que ameaçam atentar contra ela Archives parlementaires t XXVII 6 jun 1791 p 9 40 Beccaria Traité des délits et des peines p 89 41 Beccaria Des délits et des peines p 87 42 JP Brissot Théorie des lois criminelles 1781 t 1 p 24 43 Beccaria Des délits et des peines p 26 44 Beccaria ibid V também Brissot Se a misericórdia é justa a lei é má onde a legislação é boa as misericórdias não passam de crimes contra a lei Théorie des lois criminelles 1781 t 1 p 200 45 G de Mably De la législation Oeuvres completes 1789 t IX p 327 V também Vattel É menos a atrocidade das penas que a exatidão na exigência que retém todos no dever Le Droit des gens 1768 p 163 46 A Duport Discurso na Constituinte Archives parlementaires p 45 t XXI 47 G de Mably De la législation Oeuvres complètes 1789 t IX p 348 48 G Seigneux de Correvon Essai sur 1usage de la torture 1768 p 49 49 P Risi Observations de jurisprudence criminelle trad 1758 p 53 50 Sobre esse tema ver entre outros S Linguer Nécessité dune réforme de ladministration de la justice criminelle 1764 p 8 51 PL de Lacretelle Discours sur les peines infamamantes 1784 p 144 52 JP Marat Plan de législation criminelle 1780 p 34 53 Sobre o caráter não individualizante da casuística ver P Cariou Les Idéalités casuistiques tese datilografia 54 PL de Lacretelle Réflexions sur la législation pénale in Discours sur les peines infamantes 1784 p 351352 55 Contrariamente ao que disseram Carnot ou F Helie e Chauveau a reincidência era muito claramente sancionada em bom número de leis no Antigo Regime A ordenação de 1549 declara que o malfeitor que recomeça é um ser execrável infame eminentemente pernicioso à coisa pública as reincidências de blasfêmia de roubo de vadiagem etc eram passíveis de penas especiais 56 Le Peletier de SaintFargeau Archives parlementaires t XXVI p 321322 No ano seguinte Belart pronuncia o que pode ser considerada a primeira defesa por um crime passional É o caso Gras v Annales du barreau moderne 1823 t III p 34 57 JM Servan Discours sur 1administration de la justice criminelle 1767 p 35 CAPÍTULO II 1 Beccaria Des délits et des peines ed de 1856 p 119 2 Ibid 3 JP Marat Plan de législation criminelle 1780 p 33 4 FM Vermeil Essai sur les réformes à faire dans notre législation criminelle 1781 p 68145 Cf também Ch E Dufriche de Valazé Des lois pénales 1784 p 349 5 Le Peletier de SaintFargeau Archives parlementaires t XXVI p 321322 6 Beccaria Des délits et des peines 1856 p 114 7 Ibid p 135 8 Mably De la législation Oeuvres complètes vol IX p 246 9 JP Brissot Théorie des lois criminelles 1781 vol I p 258 10 PL de Lacretelle Réflexions sur la législation pénale in Discours sur les peines infamantes 1784 p 361 11 Beccaria Des délits et des peines p 113 12 GE Pastoret Des lois pénales 1790 vol I p 49 13 Le Peletier de SaintFargeau Archives parlementaires t XXVI Os autores que renunciam à pena de morte prevêem algumas penas definitivas JP Brissot Théorie des lois criminelles 1781 p 2930 Ch E Dufriche de Valazé Des lois pénales 1784 p 344 prisão perpétua para os que foram julgados irremediavelmente maus 14 Le Peletier de SaintFargeau Archives parlementaires t XXVI p 329330 15 Ch E Dufriche de Valazé Des lois pénales 1784 p 346 16 A Boucher dArgis Observations sur les lois criminelles 1781 p 139 17 Ver L Masson La révolution pénale en 1791 p 139 Contra o trabalho penal objetavase entretanto que ele implicava no recurso à violência Le Peletier ou na profanação do caráter sagrado do trabalho Duport Rabaud SaintEtienne chama a atenção para a expressão trabalhos forçados em oposição a trabalhos livres que pertencem exclusivamente aos homens livres Archives parlementaires t XXVI p 710s 18 JM Servan Discours sur 1administration de la justice criminelle 1767 p 3536 19 Dufau Discurso à Constituinte Archives parlementaires t XXVI p 688 20 Ibid p 329330 21 S Bexon Code de sûreté publique 1807 2ª parte p 2425 Tratavase de um projeto apresentado ao rei da Baviera 22 JP Brissot Thérie des lois criminelles 1781 23 Archives parlementaires t XXVI p 322 24 JM Servan Discours sur 1administration de la justice criminelle 1767 p 37 25 FM Vermeil Essai sur les réformes à faire dans notre législation criminelle 1781 p 148149 26 Cf Archives parlementaires t XXVI p 712 27 G de Mably De la législation Oeuvres complètes 1789 t IX p 338 28 Ch E Dufriche de Valazé Des lois pénales 1784 p 344345 29 CFM de Rémusat Archives parlementaires t LXXI1 1 dez 1831 p 185 30 Cf E Decazes Relatório ao Rei sobre as prisões in Le Moniteur 11 abr 1819 31 Ch Chabroud Archives parlementaires t XXVI p 618 32 Catarina II Instructions pour la commission chargée de dresser le projet du nouveau code des lois art 67 33 Uma parte desse Código foi traduzida na introdução à P Colquhoun Traité sur la police de Londres tradução francesa 1807 vol I p 84 34 Cf por exemplo Coquille Coutume du Nivernais 35 G du Rousseaud de la Combe Traité des matières criminelles 1741 p 3 36 F Serpillon Code criminel 1767 t III p 1095 Encontramos entretanto em Serpillon a idéia de que o rigor da prisão é um começo de pena 37 É assim que se devem compreender os numerosos regulamentos referentes às prisões e que tratam do rigor dos carcereiros da segurança dos locais e da impossibilidade dos prisioneiros se comunicarem Por exemplo a decisão do parlamento de Dijon de 21 de setembro de 1706 Cf também F Serpillon Code criminel 1767 t III p 601647 38 É o que determina a declaração de 4 de março de 1724 sobre as reincidências de roubo ou a de 18 de julho de 1724 a respeito da vadiagem Um rapazinho que não tivesse idade para ir para as galés ficava numa casa de detenção até o momento em que podia ser enviado para lá às vezes para purgar a totalidade da pena Cf Crime et criminalité en France sous 1Ancien Régime 1971 p 266s 39 F Serpillon Code criminel 1767 t III p 1095 40 JP Brissot Théorie des lois criminelles 1781 t I p 173 41 Paris intra muros Nobreza citado in A Desjardin Les cahiers de doléance et la justice criminelle p 477 42 Langres Trois Ordres citado ibid p 483 43 Briey Tiers Etat citado ibid p 484 Cf P Goubert e M Denis Les Français ont la parole 1964 p 203 Encontramse também nos Cahiers pedidos para a manutenção de casas de detenção que as famílias pudessem utilizar 44 Cf Thorsten Sellin Pioneering in Penology 1944 que dá um estudo exaustivo do Rasphuis e do Spinhuis de Amsterdam Podemos deixar de lado um outro modelo freqüentemente citado no século XVIII É o proposto por Mabillon nas Réflexions sur les prisions des ordres religieux reeditado em 1845 Parece que esse texto foi exumado no século XIX no momento em que os católicos disputavam com os protestantes o lugar que estes haviam tomado no movimento da filantropia e em certas repartições O opúsculo de Mabillon que parece ter ficado pouco conhecido e sem influência mostraria que o primeiro pensamento do sistema penitenciário americano é um pensamento totalmente monástico e francês a despeito do que se possa ter dito para lhe atribuir uma origem genebrina ou pensilvaniana L Faucher 45 Vilan XIV Mémoire sur les moyens de corriger les malfaiteurs 1773 p 64 esta memória que é ligada à fundação da casa de força de Gand permaneceu inédita até 1841 A freqüência das penas de banimento acentuava ainda as relações entre crime e vadiagem Em 1771 os Estados de Flandres constatavam que as penas de banimento editadas contra os mendigos permanecem sem efeito já que os Estados se enviam reciprocamente os indivíduos que acham perniciosos em seu território Resulta disso que um mendigo assim mandado de um lugar para o outro terminará sendo enforcado enquanto que se houvesse sido acostumado ao trabalho não chegaria a esse mau caminho L Stoobant in Annales de la Société dhistoire de Gand t III 1898 p 228 Cf figura n 15 46 Vilan XIV Mémoire p 68 47 Ibid p 107 48 Ibid p 102103 49 J Hanway The Defects of Police 1775 50 Preâmbulo do Bill de 1779 citado por Julius Leçons sur les prisons trad francesa 1831 vol I p 299 51 Os quakers com toda certeza também conheciam o Rasphuis e o Spinhuis de Amsterdam Cf T Sellin Pioneering in Penology p 109110 De qualquer modo a prisão de Walnut Street se situava na continuação da Almhouse aberta em 1767 e da legislação penal que os quakers haviam querido impor apesar da administração inglesa 52 G de La RochefoucauldLiancourt Des prisons de Philadelphie 1796 p 9 53 J Turnbull Visite à la prison de Philadelphie trad francesa 1797 p 1516 54 Caleb Lownes in NK Teeters Cradle of Penitentiary 1955 p 49 55 Sobre as desordens provocadas por essa lei cf B Rush An Inquiry Into the Effects of Public Punishment 1787 p 59 e Roberts Vaux Notices p 45 Devese notar que no relatório de JL Siegel que inspirara o Rasphuis de Amsterdam era previsto que as penas não seriam proclamadas publicamente que os prisioneiros seriam levados à casa de correção à noite que os guardiães se comprometeriam sob juramento a não lhes revelar a identidade e não seria permitida nenhuma visita T Sellin Pioneering in Penology p 2728 56 Primeiro relatório dos inspetores de Walnut Street citado por Teeters p 5354 57 J Turnbull Visite à la prison de Philadelphie trad 1797 p 27 58 B Rush que foi um dos inspetores nota o seguinte depois de uma visita a Walnut Street Cuidados morais pregação leitura de bons livros limpeza das roupas e dos quartos banhos falase em voz baixa pouco vinho o mínimo de fumo pouca conversa obscena ou profana Trabalho constante horta bem cuidada está bonita 1200 cabeças de repolho In NK Teeters The cradle of penitentiary 1935 p 50 59 Minutes of the Board 16 de junho de 1797 citado in NK Teeters op cit p 59 60 W Blackstone Commentaire sur le Code criminel dAngleterre trad francesa 1776 p 19 61 W Bradford An Inquiry How Far the Punishment of Death Is Necessary in Pennsylvania 1793 p 3 62 B Rush An Inquiry into the Effects of Public Punishments 1787 p 14 Esta idéia de um aparelho para transformar já se encontra em Hanway no projeto de um reformatório A idéia de hospital e a de malfeitor são incompatíveis mas tentemos fazer da prisão um reformatório reformatory autêntico e eficaz em vez de que seja como as outras uma escola de vício Defects of Police p 52 63 B Rush An Inquiry into the Effects of Public Punishments 1787 p 13 64 Cf as críticas que Rush fazia aos espetáculos punitivos particularmente aos que imaginara Dufriche de Valazé An Inquiry into the Effects or Public Punishments 1787 p 59 Terceira Parte DISCIPLINA CAPÍTULO I Os CORPOS DÓCEIS Eis como ainda no início do século XVII se descrevia a figura ideal do soldado O soldado é antes de tudo alguém que se reconhece de longe que leva os sinais naturais de seu vigor e coragem as marcas também de seu orgulho seu corpo é o brasão de sua força e de sua valentia e se é verdade que deve aprender aos poucos o ofício das armas essencialmente lutando as manobras como a marcha as atitudes como o porte da cabeça se originam em boa parte de uma retórica corporal da honra Os sinais para reconhecer os mais idôneos para esse ofício são a atitude viva e alerta a cabeça direita o estômago levantado os ombros largos os braços longos os dedos fortes o ventre pequeno as coxas grossas as pernas finas e os pés secos pois o homem desse tipo não poderia deixar de ser ágil e forte tornado lanceiro o soldado deverá ao marchar tomar a cadência do passos para ter o máximo de graça e gravidade que for possível pois a Lança é uma arma honrada e merece ser levada com um porte grave e audaz1 Segunda metade do século XVIII o soldado tornouse algo que se fabrica de uma massa informe de um corpo inapto fezse a máquina de que se precisa corrigiramse aos poucos as posturas lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo se assenhoreia dele dobra o conjunto tornao perpetuamente disponível e se prolonga em silêncio no automatismo dos hábitos em resumo foi expulso o camponês e lhe foi dada a fisionomia de soldado2 Os recrutas são habituados a manter a cabeça ereta e alta a se manter direito sem curvar as costas a fazer avançar o ventre a salientar o peito e encolher o dorso e a fim de que se habituem essa posição lhes será dada apoiandoos contra um muro de maneira que os calcanhares a batata da perna os ombros e a cintura encostem nele assim como as costas das mãos virando os braços para fora sem afastálos do corpo serlhesá igualmente ensinado a nunca fixar os olhos na terra mas a olhar com ousadia aqueles diante de quem eles passam a ficar imóveis esperando o comando sem mexer a cabeça as mãos nem os pés enfim a marchar com passo firme com o joelho e a perna esticados a ponta baixa e para foram3 Houve durante a época clássica uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo ao corpo que se manipula se modela se treina que obedece responde se torna hábil ou cujas forças se multiplicam O grande livro do Homemmáquina foi escrito simultaneamente em dois registros no anátomometafísico cujas primeiras páginas haviam sido escritas por Descartes e que os médicos os filósofos continuaram o outro técnicopolítico constituído por um conjunto de regulamentos militares escolares hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo Dois registros bem distintos pois tratavase ora de submissão e utilização ora de funcionamento e de explicação corpo útil corpo inteligível E entretanto de um ao outro pontos de cruzamento O Homemmáquina de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento no centro dos quais reina a noção de docilidade que une ao corpo analisável o corpo manipulável É dócil um corpo que pode ser submetido que pode ser utilizado que pode ser transformado e aperfeiçoado Os famosos autômatos por seu lado não eram apenas uma maneira de ilustrar o organismo eram também bonecos políticos modelos reduzidos de poder obsessão de Frederico II rei minucioso das pequenas máquinas dos regimentos bem treinados e dos longos exercícios Nesses esquemas de docilidade em que o século XVIII teve tanto interesse o que há de tão novo Não é a primeira vez certamente que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos e urgentes em qualquer sociedade o corpo está preso no interior de poderes muito apertados que lhe impõem limitações proibições ou obrigações Muitas coisas entretanto são novas nessas técnicas A escala em primeiro lugar do controle não se trata de cuidar do corpo em massa grosso modo como se fosse uma unidade indissociável mas de trabalhálo detalhadamente de exercer sobre ele uma coerção sem folga de mantêlo ao nível mesmo da mecânica movimentos gestos atitude rapidez poder infinitesimal sobre o corpo ativo O objeto em seguida do controle não ou não mais os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do corpo mas a economia a eficácia dos movimentos sua organização interna a coação se faz mais sobre as forças que sobre os sinais a única cerimônia que realmente importa é a do exercício A modalidade enfim implica numa coerção ininterrupta constante que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo o espaço os movimentos Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidadeutilidade são o que podemos chamar as disciplinas Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo nos conventos nos exércitos nas oficinas também Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação Diferentes da escravidão pois não se fundamentam numa relação de apropriação dos corpos é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes Diferentes também da domesticidade que é uma relação de dominação constante global maciça não analítica ilimitada e estabelecida sob a forma da vontade singular do patrão seu capricho Diferentes da vassalidade que é uma relação de submissão altamente codificada mas longínqua e que se realiza menos sobre as operações do corpo que sobre os produtos do trabalho e as marcas rituais da obediência Diferentes ainda do ascetismo e das disciplinas de tipo monástico que têm por função realizar renúncias mais do que aumentos de utilidade e que se implicam em obediência a outrem têm como fim principal um aumento do domínio de cada um sobre seu próprio corpo O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano que visa não unicamente o aumento de suas habilidades nem tampouco aprofundar sua sujeição mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil e inversamente Forma se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo uma manipulação calculada de seus elementos de seus gestos de seus comportamentos O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha o desarticula e o recompõe Uma anatomia política que é também igualmente uma mecânica do poder está nascendo ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros não simplesmente para que façam o que se quer mas para que operem como se quer com as técnicas segundo a rapidez e a eficácia que se determina A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados corpos dóceis A disciplina aumenta as forças do corpo em termos econômicos de utilidade e diminui essas mesmas forças em termos políticos de obediência Em uma palavra ela dissocia o poder do corpo faz dele por um lado uma aptidão uma capacidade que ela procura aumentar e inverte por outro lado a energia a potência que poderia resultar disso e faz dela uma relação de sujeição estrita Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada A invenção dessa nova anatomia política não deve ser entendida como uma descoberta súbita Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos de origens diferentes de localizações esparsas que se recordam se repetem ou se imitam apóiamse uns sobre os outros distinguemse segundo seu campo de aplicação entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral Encontramolos em funcionamento nos colégios muito cedo mais tarde nas escolas primárias investiram lentamente o espaço hospitalar e em algumas dezenas de anos reestruturam a organização militar Circularam às vezes muito rápido de um ponto a outro entre o exército e as escolas técnicas ou os colégios e liceus às vezes lentamente e de maneira mais discreta militarização insidiosa das grandes oficinas A cada vez ou quase impuseramse para responder a exigências de conjuntura aqui uma inovação industrial lá a recrudescência de certas doenças epidêmicas acolá a invenção do fuzil ou as vitórias da Prússia O que não impede que se inscrevam no total nas transformações gerais e essenciais que necessariamente serão determinadas Não se trata de fazer aqui a história das diversas instituições disciplinares no que podem ter cada uma de singular Mas de localizar apenas numa série de exemplos algumas das técnicas essenciais que de uma a outra se generalizaram mais facilmente Técnicas sempre minuciosas muitas vezes íntimas mas que têm sua importância porque definem um certo modo de investimento político e detalhado do corpo uma nova microfísica do poder e porque não cessaram desde o século XVII de ganhar campos cada vez mais vastos como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão arranjos sutis de aparência inocente mas profundamente suspeitos dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis ou que procuram coerções sem grandeza são eles entretanto que levaram à mutação do regime punitivo no limiar da época contemporânea Descrevêlos implicará na demora sobre o detalhe e na atenção às minúcias sob as mínimas figuras procurar não um sentido mas uma precaução recolocálas não apenas na solidariedade de um funcionamento mas na coerência de uma tática Astúcias não tanto de grande razão que trabalha até durante o sono e dá um sentido ao insignificante quanto da atenta malevolência que de tudo se alimenta A disciplina é uma anatomia política do detalhe Para advertir os impacientes lembremos o marechal de Saxe Aqueles que cuidam dos detalhes muitas vezes parecem espíritos tacanhos entretanto esta parte é essencial porque ela é o fundamento e é impossível levantar qualquer edifício ou estabelecer qualquer método sem ter os princípios Não basta ter o gosto pela arquitetura É preciso conhecer a arte de talhar pedras4 Dessa arte de talhar pedras haveria uma longa história a ser escrita história da racionalização utilitária do detalhe na contabilidade moral e no controle político A era clássica não a inaugurou ela a acelerou mudou sua escala deulhe instrumentos precisos e talvez tenha encontrado alguns ecos para ela no cálculo do infinitamente pequeno ou na descrição das características mais tênues dos seres naturais Em todo caso o detalhe era já há muito tempo uma categoria da teologia e do ascetismo todo detalhe é importante pois aos olhos de Deus nenhuma imensidão é maior que um detalhe e nada há tão pequeno que não seja querido por uma dessas vontades singulares Nessa grande tradição da eminência do detalhe viriam se localizar sem dificuldade todas as meticulosidades da educação cristã da pedagogia escolar ou militar de todas as formas finalmente de treinamento Para o homem disciplinado como para o verdadeiro crente nenhum detalhe é indiferente mas menos pelo sentido que nele se esconde que pela entrada que aí encontra o poder que quer apanhálo Característico esse hino às pequenas coisas e à sua eterna importância cantado por JeanBaptiste de La Salle em seu Tratado sobre as Obrigações dos Irmãos das Escolas Cristãs A mística do cotidiano aí se associa à disciplina do minúsculo Como é perigoso negligenciar as pequenas coisas É um pensamento bem consolador para uma alma como a minha pouco indicada para as grandes ações pensar que a fidelidade às pequenas coisas pode por um progresso insensível elevarnos à mais eminente santidade porque as pequenas coisas nos dispõem às grandes Pequenas coisas meu Deus infelizmente dirá alguém que podemos fazer de grande para Vós criaturas fracas e mortais que somos Pequenas coisas se as grandes se apresentassem praticálasíamos Não as creríamos acima de nossas forças Pequenas coisas e se Deus as aceita e quer recebêlas como grandes Pequenas coisas acaso já as experimentamos acaso as julgamos pela experiência Pequenas coisas somos então culpados se vendoas como tais as recusamos Pequenas coisas são elas entretanto que com o tempo formaram grandes santos Sim pequenas coisas mas grandes móveis grandes sentimentos grande fervor grande ardor e em conseqüência grandes méritos grandes tesouros grandes recompensas5 A minúcia dos regulamentos o olhar esmiuçante das inspeções o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo darão em breve no quadro da escola do quartel do hospital ou da oficina um conteúdo laicizado uma racionalidade econômica ou técnica a esse cálculo místico do ínfimo e do infinito E uma História do Detalhe no século XVIII colocada sob o signo de JeanBaptiste de La Salle esbarrando em Leibniz e Buffon passando por Frederico II atravessando a pedagogia a medicina a tática militar e a economia deveria chegar ao homem que sonhara no fim do século ser um novo Newton não mais aquele das imensidões do céu ou das massas planetárias mas dos pequenos corpos dos pequenos movimentos das pequenas ações ao homem que respondeu a Monge Só havia um mundo a ser descoberto Que ouvi eu Mas o mundo dos detalhes quem jamais pensou neste ou naquele Desde meus quinze anos eu acreditava nele Cuidei disso então e essa lembrança vive em mim como uma idéia fixa que nunca me abandonará Esse outro mundo é o mais importante de todos os que me orgulhei de descobrir de pensar nisso dóime a alma6 Ele não o descobriu mas sabemos que empreendeu organizálo e quis distribuir em torno de si um dispositivo de poder que lhe permitisse perceber até o menor acontecimento do Estado que governava pretendia com a rigorosa disciplina que fazia reinar abraçar o conjunto dessa vasta máquina sem que lhe pudesse escapar o mínimo detalhe7 Uma observação minuciosa do detalhe e ao mesmo tempo um enfoque político dessas pequenas coisas para controle e utilização dos homens sobem através da era clássica levando consigo todo um conjunto de técnicas todo um corpo de processos e de saber de descrições de receitas e dados E desses esmiuçamentos sem dúvida nasceu o homem do humanismo moderno8 A ARTE DAS DISTRIBUIÇÕES A disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço Para isso utiliza diversas técnicas 1 A disciplina às vezes exige a cerca a especificação de um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo Local protegido da monotonia disciplinar Houve o grande encarceramento dos vagabundos e dos miseráveis houve outros mais discretos mas insidiosos e eficientes Colégios o modelo do convento se impõe pouco a pouco o internato aparece como o regime de educação senão o mais freqüente pelo menos o mais perfeito tornase obrigatório em LouisleGrand quando depois da partida dos jesuítas fez se um colégiomodelo9 Quartéis é preciso fixar o exército essa massa vagabunda impedir a pilhagem e as violências acalmar os habitantes que suportam mal as tropas de passagem evitar os conflitos com as autoridades civis fazer cessar as deserções controlar as despesas A ordenação de 1719 prescreve a construção de várias centenas de quartéis imitando os já organizados no sul do país o encarceramento neles será estrito O conjunto será fechado e cercado por uma muralha de dez pés de altura que rodeará os ditos pavilhões a trinta pés de distância de todos os lados e isto para manter as tropas em ordem e em disciplina e que o oficial esteja em condições de responder por ela10 Em 1745 havia quartéis em 320 cidades aproximadamente e estimavase mais ou menos em 200000 homens a capacidade total dos quartéis em 177511 Ao lado das oficinas espalhadas criamse também grandes espaços para as indústrias homogêneos e bem delimitados as manufaturas reunidas primeiro depois as fábricas na segunda metade do século XVIII as forjas da Chaussade ocupam toda a península de Medina entre Nièvre e Loire para instalar a fábrica de Indret em 1777 Wilkinson à custa de aterros e diques cria uma ilha no Loire Toufait constrói Le Creusot no vale de La Charbonnière que ele remodela e instala na própria fábrica alojamentos operários é uma mudança de escala é também um novo tipo de controle A fábrica parece claramente um convento uma fortaleza uma cidade fechada o guardião só abrirá as portas à entrada dos operários e depois que houver soado o sino que anuncia o reinicio do trabalho quinze minutos depois ninguém mais terá o direito de entrar no fim do dia os chefes de oficina devem entregar as chaves ao guarda suíço da fábrica que então abre as portas12 É porque à medida que se concentram as forças de produção o importante é tirar delas o máximo de vantagens e neutralizar seus inconvenientes roubos interrupção do trabalho agitações e cabalas de proteger os materiais e ferramentas e de dominar as forças de trabalho A ordem e a polícia que se deve manter exigem que todos os operários sejam reunidos sob o mesmo teto a fim de que aquele dos sócios que está encarregado da direção da fábrica possa prevenir e remediar os abusos que poderiam se introduzir entre os operários e impedir desde o início que progridam13 2 Mas o princípio de clausura não é constante nem indispensável nem suficiente nos aparelhos disciplinares Estes trabalham o espaço de maneira muito mais flexível e mais fina E em primeiro lugar segundo o princípio da localização imediata ou do quadriculamento Cada indivíduo no seu lugar e em cada lugar um indivíduo Evitar as distribuições por grupos decompor as implantações coletivas analisar as pluralidades confusas maciças ou fugidias O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quando corpos ou elementos há a repartir É preciso anular os efeitos das repartições indecisas o desaparecimento descontrolado dos indivíduos sua circulação difusa sua coagulação inutilizável e perigosa tática de antideserção de antivadiagem de antiaglomeração Importa estabelecer as presenças e as ausências saber onde e como encontrar os indivíduos instaurar as comunicações úteis interromper as outras poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um apreciálo sancionálo medir as qualidades ou os méritos Procedimento portanto para conhecer dominar e utilizar A disciplina organiza um espaço analítico E ainda aí ela encontra um velho procedimento arquitetural e religioso a cela dos conventos Mesmo se os compartimentos que ele atribui se tornam puramente ideais o espaço das disciplinas é sempre no fundo celular Solidão necessária do corpo e da alma dizia um certo ascetismo eles devem ao menos por momentos se defrontar a sós com a tentação e talvez com a severidade de Deus O sono é a imagem da morte o dormitório é a imagem do sepulcro embora os dormitórios sejam comuns os leitos entretanto estão arrumados de tal modo e se fecham tão exatamente por meio de cortinas que as moças podem se levantar e se deitar sem se verem14 Mas isso ainda não passa de uma forma muito tosca 3 A regra das localizações funcionais vai pouco a pouco nas instituições disciplinares codificar um espaço que a arquitetura deixava geralmente livre e pronto para vários usos Lugares determinados se definem para satisfazer não só à necessidade de vigiar de romper as comunicações perigosas mas também de criar um espaço útil O processo aparece claramente nos hospitais principalmente nos hospitais militares e marítimos Na França parece que Rochefort serviu de experiência e de modelo Um porto e um porto militar é com circuitos de mercadorias de homens alistados por bem ou à força de marinheiros embarcando e desembarcando de doenças e de epidemias um lugar de deserção de contrabando de contágio encruzilhada de misturas perigosas cruzamento de circulações proibidas O hospital marítimo deve então cuidar mas por isso mesmo deve ser um filtro um dispositivo que afixa e quadricula tem que realizar uma apropriação sobre toda essa mobilidade e esse formigar humano decompondo a confusão da ilegalidade e do mal A vigilância médica das doenças e dos contágios é aí solidária de toda uma série de outros controles militar sobre os desertores fiscal sobre as mercadorias administrativo sobre os remédios as rações os desaparecimentos as curas as mortes as simulações Donde a necessidade de distribuir e dividir o espaço com rigor As primeiras medidas tomadas em Rochefort se referiam às coisas mais que aos homens às mercadorias preciosas mais que aos doentes As distribuições da vigilância fiscal e econômica precedem as técnicas de observação médica localização dos medicamentos em caixas fechadas registro de sua utilização um pouco mais tarde é estabelecido um sistema para verificar o número real de doentes sua identidade as unidades de onde procedem depois regulamentamse suas idas e vindas são obrigados a ficar em suas salas a cada leito é preso o nome de quem se encontra nele todo indivíduo tratado é inscrito num registro que o médico deve consultar durante a visita mais tarde virão o isolamento dos contagiosos os leitos separados Pouco a pouco um espaço administrativo e político se articula em espaço terapêutico tende a individualizar os corpos as doenças os sintomas as vidas e as mortes constitui um quadro real de singularidades justapostas e cuidadosamente distintas Nasce da disciplina um espaço útil do ponto de vista médico Nas fábricas que aparecem no fim do século XVIII o princípio do quadriculamento individualizante se complica Importa distribuir os indivíduos num espaço onde se possa isolálos e localizálos mas também articular essa distribuição sobre um aparelho de produção que tem suas exigências próprias É preciso ligar a distribuição dos corpos a arrumação espacial do aparelho de produção e as diversas formas de atividade na distribuição dos postos A esse princípio obedece a manufatura de Oberkampf em Jouy Ela se compõe de uma série de oficinas especificadas segundo cada grande tipo de operações para os impressores os encaixadores os coloristas as pinceladoras os gravadores os tintureiros O maior dos edifícios construído em 1791 por Toussaint Barré tem cento e dez metros de comprimento e três andares O térreo é reservado essencialmente à impressão em bloco contém 132 mesas dispostas em duas fileiras ao longo da sala com 88 janelas cada impressor trabalha a uma mesa com seu puxador encarregado de preparar e espalhar as tintas Ao todo 264 pessoas Na extremidade de cada mesa uma espécie de cabide sobre o qual o operário coloca para secar a tela que ele acabou de imprimir15 Percorrendose o corredor central da oficina é possível realizar uma vigilância ao mesmo tempo geral e individual constatar a presença a aplicação do operário a qualidade de seu trabalho comparar os operários entre si classificálos segundo sua habilidade e rapidez acompanhar os sucessivos estágios da fabricação Todas essas seriações formam um quadriculado permanente as confusões se desfazem16 a produção se divide e o processo de trabalho se articula por um lado segundo suas fases estágios ou operações elementares e por outro segundo os indivíduos que o efetuam os corpos singulares que a ele são aplicados cada variável dessa força vigor rapidez habilidade constância pode ser observada portanto caracterizada apreciada contabilizada e transmitida a quem é o agente particular dela Assim afixada de maneira perfeitamente legível a toda série dos corpos singulares a força de trabalho pode ser analisada em unidades individuais Sob a divisão do processo de produção ao mesmo tempo que ela encontramos no nascimento da grande indústria a decomposição individualizante da força de trabalho as repartições do espaço disciplinar muitas vezes efetuaram uma e outra 4 Na disciplina os elementos são intercambiáveis pois cada um se define pelo lugar que ocupa na série e pela distância que o separa dos outros A unidade não é portanto nem o território unidade de dominação nem o local unidade de residência mas a posição na fila o lugar que alguém ocupa numa classificação o ponto em que se cruzam uma linha e uma coluna o intervalo numa série de intervalos que se pode percorrer sucessivamente A disciplina arte de dispor em fila e da técnica para a transformação dos arranjos Ela individualiza os corpos por uma localização que não os implanta mas os distribui e os faz circular numa rede de relações Vejamos o exemplo da classe Nos colégios dos jesuítas encontravase ainda uma organização ao mesmo tempo binária e maciça as classes que podiam ter até duzentos ou trezentos alunos eram divididas em grupos de dez cada um desses grupos com seu decurião era colocado em um campo o romano ou o cartaginês a cada decúria correspondia uma decúria adversa A forma geral era a da guerra e da rivalidade o trabalho o aprendizado a classificação eram feitos sob a forma de justa pela defrontação dos dois exércitos a participação de cada aluno entrava nesse duelo geral ele assegurava por seu lado a vitória ou as derrotas de um campo e os alunos determinavam um lugar que correspondia à função de cada um e a seu valor de combatente no grupo unitário de sua decúria17 Podemos notar aliás que essa comédia romana permitia associar aos exercícios binários da rivalidade uma disposição espacial inspirada na legião com suas fileiras hierarquia e vigilância piramidal Não esquecer que de um modo geral o modelo romano na época das Luzes desempenhou um duplo papel em seu aspecto republicano era a própria instituição da liberdade em seu aspecto militar era o esquema ideal da disciplina A Roma do século XVIII e da Revolução é a do Senado e da legião do Forum e dos campos militares Até o Império a referência romana veiculou de maneira ambígua o ideal jurídico da cidadania e a técnica dos processos disciplinares Em todo caso o que havia de estritamente disciplinar na fábula antiga permanentemente representada nos colégios jesuítas superou o que havia de justa e de guerra em mímica Pouco a pouco mas principalmente depois de 1762 o espaço escolar se desdobra a classe tornase homogênea ela agora só se compõe de elementos individuais que vêm se colocar uns ao lado dos outros sob os olhares do mestre A ordenação por fileiras no século XVIII começa a definir a grande forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar filas de alunos na sala nos corredores nos pátios colocação atribuída a cada um em relação a cada tarefa e cada prova colocação que ele obtém de semana em semana de mês em mês de ano em ano alinhamento das classes de idade umas depois das outras sucessão dos assuntos ensinados das questões tratadas segundo uma ordem de dificuldade crescente E nesse conjunto de alinhamentos obrigatórios cada aluno segundo sua idade seus desempenhos seu comportamento ocupa ora uma fila ora outra ele se desloca o tempo todo numa série de casas umas ideais que marcam uma hierarquia do saber ou das capacidades outras devendo traduzir materialmente no espaço da classe ou do colégio essa repartição de valores ou dos méritos Movimento perpétuo onde os indivíduos substituem uns aos outros num espaço escondido por intervalos alinhados A organização de um espaço serial foi uma das grandes modificações técnicas do ensino elementar Permitiu ultrapassar o sistema tradicional um aluno que trabalha alguns minutos com o professor enquanto fica ocioso e sem vigilância o grupo confuso dos que estão esperando Determinando lugares individuais tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos Organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem Fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar mas também de vigiar de hierarquizar de recompensar J B de La Salle imaginava uma classe onde a distribuição espacial pudesse realizar ao mesmo tempo toda uma série de distinções segundo o nível de avanço dos alunos segundo o valor de cada um segundo seu temperamento melhor ou pior segundo sua maior ou menor aplicação segundo sua limpeza e segundo a fortuna dos país Então a sala de aula formaria um grande quadro único com entradas múltiplas sob o olhar cuidadosamente classificador do professor Haverá em todas as salas de aula lugares determinados para todos os escolares de todas as classes de maneira que todos os da mesma classe sejam colocados num mesmo lugar e sempre fixo Os escolares das lições mais adiantadas serão colocados nos bancos mais próximos da parede e em seguida os outros segundo a ordem das lições avançando para o meio da sala Cada um dos alunos terá seu lugar marcado e nenhum o deixará nem trocará sem a ordem e o consentimento do inspetor das escolas Será preciso fazer com que aqueles cujos pais são negligentes e têm piolhos fiquem separados dos que são limpos e não os têm que um escolar leviano e distraído seja colocado entre dois bem comportados e ajuizados que o libertino ou fique sozinho ou entre dois piedosos18 As disciplinas organizando as celas os lugares e as fileiras criam espaços complexos ao mesmo tempo arquiteturais funcionais e hierárquicos São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias marcam lugares e indicam valores garantem a obediência dos indivíduos mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos São espaços mistos reais pois que regem a disposição de edifícios de salas de móveis mas ideais pois projetamse sobre essa organização caracterizações estimativas hierarquias A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de quadros vivos que transformam as multidões confusas inúteis ou perigosas em multiplicidades organizadas A constituição de quadros foi um dos grandes problemas da tecnologia científica política e econômica do século XVIII arrumar jardins de plantas e de animais e construir ao mesmo tempo classificações racionais dos seres vivos observar controlar regularizar a circulação das mercadorias e da moeda e estabelecer assim um quadro econômico que possa valer como princípio de enriquecimento inspecionar os homens constatar sua presença e sua ausência e constituir um registro geral e permanente das forças armadas repartir os doentes dividir com cuidado e espaço hospitalar e fazer uma classificação sistemática das doenças outras tantas operações conjuntas em que os dois constituintes distribuição e análise controle e inteligibilidade são solidários O quadro no século XVIII é ao mesmo tempo uma técnica de poder e um processo de saber Tratase de organizar o múltiplo de se obter um instrumento para percorrêlo e dominálo tratase de lhe impor uma ordem Como o chefe militar de que falava o naturalista Guilbert o médico o economista fica cego pela imensidão atordoado pela multidão as inúmeras combinações que resultam da multiplicidade dos objetos tantas atenções reunidas constituem um peso acima de suas forças A ciência da guerra moderna ao se aperfeiçoar ao se aproximar dos verdadeiros princípios poderia se tornar mais simples e menos difícil os exércitos com táticas simples análogas flexíveis a todos os movimentos seriam mais fáceis de mexer e de conduzir19 Tática ordenamento espacial dos homens taxinomia espaço disciplinar dos seres naturais quadro econômico movimento regulamentado das riquezas Mas o quadro não tem a mesma função nesses diversos registros Na ordem da economia permite a medida das quantidades e a análise dos movimentos Sob a forma da taxinomia tem por função caracterizar e em conseqüência reduzir as singularidades individuais e constituir classes portanto excluir as considerações de número Mas sob a forma de repartição disciplinar a colocação em quadro tem por função ao contrário tratar a multiplicidade por si mesma distribuíla e dela tirar o maior número possível de efeitos Enquanto a taxinomia natural se situa sobre o eixo que vai do caráter à categoria a tática disciplinar se situa sobre o eixo que liga o singular e o múltiplo Ela permite ao mesmo tempo a caracterização do indivíduo como indivíduo e a colocação em ordem de uma multiplicidade dada Ela é a condição primeira para o controle e o uso de um conjunto de elementos distintos a base para uma microfísica de um poder que poderíamos chamar celular O CONTROLE DA ATIVIDADE 1 O horário é uma velha herança As comunidades monásticas haviam sem dúvida sugerido seu modelo estrito Ele se difundiria rapidamente Seus três grandes processos estabelecer as cesuras obrigar a ocupações determinadas regulamentar os ciclos de repetição muito cedo foram encontrados nos colégios nas oficinas nos hospitais Dentro dos antigos esquemas as novas disciplinas não tiveram dificuldade para se abrigar as casas de educação e os estabelecimentos de assistência prolongavam a vida e a regularidade dos conventos de que muitas vezes eram anexos O rigor do tempo industrial guardou durante muito tempo uma postura religiosa no século XVII o regulamento das grandes manufaturas precisava os exercícios que deviam escandir o trabalho Todas as pessoas chegando a seu ofício de manhã antes de trabalhar começarão lavando as mãos oferecerão seu trabalho a Deus farão o sinal da cruz e começarão a trabalhar20 mas ainda no século XIX quando se quiser utilizar populações rurais na indústria será necessário apelar a congregações para acostumálas ao trabalho em oficinas os operários são enquadrados em fábricasconventos A grande disciplina militar formouse nos exércitos protestantes de Maurício de Orange e de Gustavo Adolfo através de uma rítmica do tempo escandida pelos exercícios de piedade a vida no exército deve ter dizia Boussanelle bem mais tarde algumas das perfeições do próprio claustro21 Durante séculos as ordens religiosas foram mestras de disciplinas eram os especialistas do tempo grandes técnicos do ritmo e das atividades regulares Mas esses processos de regularização temporal que elas herdam as disciplinas os modificam Afinandoos primeiro Começase a contar por quartos de hora minutos e segundos No exército é claro Guibert mandou proceder sistematicamente a cronometragens de tiro de que Vauban tivera a idéia Nas escolas elementares a divisão do tempo tornase cada vez mais esmiuçante as atividades são cercadas o mais possível por ordens a que se tem que responder imediatamente À última pancada do relógio um aluno baterá o sino e ao primeiro toque todos os alunos se porão de joelhos com os braços cruzados e os olhos baixos Terminada a oração o professor dará um sinal para os alunos se levantarem um segundo para saudarem Cristo e o terceiro para se sentarem22 No começo do século XIX serão propostos para a escola mútua horários como o seguinte 845 entrada do monitor 852 chamada do monitor 856 entrada das crianças e oração 9 horas entrada nos bancos 904 primeira lousa 908 fim do ditado 912 segunda lousa etc23 A extensão progressiva dos assalariados acarreta por seu lado um quadriculamento cerrado do tempo Se acontecer que os operários cheguem mais tarde que em quarto de hora depois que tocar a campanhia24 aquele companheiro que for chamado durante o trabalho e que perder mais de cinco minutos aquele que não estiver em seu trabalho na hora precisa25 Mas procurase também garantir a qualidade do tempo empregado controle ininterrupto pressão dos fiscais anulação de tudo o que possa perturbar e distrair tratase de constituir um tempo integralmente útil É expressamente proibido durante o trabalho divertir os companheiros com gestos ou de outra maneira fazer qualquer brincadeira comer dormir contar histórias e comédias26 e mesmo durante a interrupção para a refeição não será permitido contar histórias aventuras ou outras conversações que distraiam os operários de seu trabalho é expressamente proibido a qualquer operário e sob qualquer pretexto que seja introduzir vinho na fábrica e beber nas oficinas27 O tempo medido e pago deve ser também um tempo sem impureza nem defeito um tempo de boa qualidade e durante todo o seu transcurso o corpo deve ficar aplicado a seu exercício A exatidão e a aplicação são com a regularidade as virtudes fundamentais do tempo disciplinar Mas não é isso o mais novo Outros modos de proceder são mais característicos das disciplinas 2 A elaboração temporal do ato vejamos duas maneiras de controlar a marcha de uma tropa Começo do século XVII Acostumar os soldados a marchar por fila ou em batalhão a marchar na cadência do tambor E para isso começar com o pé direito a fim de que toda a tropa esteja levantando o mesmo pé ao mesmo tempo28 Metade do século XVIII quatro tipos de passo O comprimento do pequeno passo será de um pé o do passo comum do passo dobrado e do passo de estrada de dois pés medidos ao todo de um calcanhar ao outro quanto à duração a do pequeno passo e do passo comum serão de um segundo durante o qual se farão dois passos dobrados a duração do passo de estrada será de um pouco mais de um segundo O passo oblíquo será feito no mesmo espaço de um segundo terá no máximo 18 polegadas de um calcanhar ao outro O passo comum será executado mantendose a cabeça alta e o corpo direito conservandose o equilíbrio sucessivamente sobre uma única perna e levando a outra à frente a perna esticada a ponta do pé um pouco voltada para fora e baixa para aflorar sem afetação o terreno sobre o qual se deve marchar e colocar o pé na terra de maneira que cada parte se apóie ao mesmo tempo sem bater contra a terra29 Entre essas duas prescrições um novo conjunto de obrigações é imposto outro grau de precisão na decomposição dos gestos e dos movimentos outra maneira de ajustar o corpo a imperativos temporais O que é definido pela ordenação de 1766 não é um horário um quadro geral para uma atividade é mais que um ritmo coletivo e obrigatório imposto do exterior é um programa ele realiza a elaboração do próprio ato controla do interior seu desenrolar e suas fases Passamos de uma forma de injunção que media ou escandia os gestos a uma trama que os obriga e sustenta ao longo de todo o seu encadeamento Definese uma espécie de esquema anátomocronológico do comportamento O ato é decomposto em seus elementos é definida a posição do corpo dos membros das articulações para cada movimento é determinada uma direção uma amplitude uma duração é prescrita sua ordem de sucessão O tempo penetra o corpo e com ele todos os controles minuciosos do poder 3 Donde o corpo e o gesto postos em correlação o controle disciplinar não consiste simplesmente em ensinar ou impor uma série de gestos definidos impõe a melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo que é sua condição de eficácia e de rapidez No bom emprego do corpo que permite um bom emprego do tempo nada deve ficar ocioso ou inútil tudo deve ser chamado a formar o suporte do ato requerido Um corpo bem disciplinado forma o contexto de realização do mínimo gesto Uma boa caligrafia por exemplo supõe uma ginástica uma rotina cujo rigoroso código abrange o corpo por inteiro da ponta do pé à extremidade do indicador Devese manter o corpo direito um pouco voltado e solto do lado esquerdo e algo inclinado para a frente de maneira que estando o cotovelo pousado na mesa o queixo possa ser apoiado na mão a menos que o alcance da vista não o permita a perna esquerda deve ficar um pouco mais avançada que a direita sob a mesa Devese deixar uma distância de dois dedos entre o corpo e a mesa pois não só se escreve com mais rapidez mas nada é mais nocivo à saúde que contrair o hábito de apoiar o estômago contra a mesa a parte do braço esquerdo do cotovelo até à mão deve ser colocada sobre a mesa O braço direito deve estar afastado do corpo cerca de três dedos e sair aproximadamente cinco dedos da mesa sobre a qual deve apoiar ligeiramente O mestre ensinará aos escolares a postura que estes devem manter ao escrever e a corrigirá seja por sinal seja de outra maneira quando dela se afastarem30 Um corpo disciplinado é a base de um gesto eficiente 4 A articulação corpoobjeto a disciplina define cada uma das relações que o corpo deve manter com o objeto que manipula Ela estabelece cuidadosa engrenagem entre um e outro Leve a arma à frente Em três tempos Levantase o fuzil com a mão direita aproximandoo do corpo para mantêlo perpendicularmente em frente ao joelho direito a ponta do cano à altura do olho apanhandoo batendo com a mão esquerda o braço esticado colado ao corpo à altura do cinturão No segundo trazse o fuzil com a mão esquerda diante de si o cano para dentro entre os dois olhos a prumo a mão direita o apanha pelo punho com o braço esticado o guardamato apoiado sobre o primeiro dedo a mão esquerda à altura da alça de mira o polegar estendido ao longo do cano contra a soleira No terceiro a mão esquerda deixa o fuzil e cai ao longo da coxa a mão direita o eleva com o fecho para fora e em frente ao peito com o braço direito meio esticado o cotovelo colado ao corpo o polegar estendido contra o fecho apoiado ao primeiro parafuso o cão apoiado sobre o primeiro dedo o cano a prumo31 Temos aí um exemplo do que se poderia chamar a codificação instrumental do corpo Consiste em uma decomposição do gesto global em duas séries paralelas a dos elementos do corpo que serão postos em jogo mão direita mão esquerda diversos dedos da mão joelho olho cotovelo etc a dos elementos do objeto manipulado cano alça de mira cão parafuso etc colocaos depois em correlação uns com os outros segundo um certo número de gestos simples apoiar dobrar finalmente fixa a ordem canônica em que cada uma dessas correlações ocupa um lugar determinado A esta sintaxe forçada é que os teóricos militares do século XVIII chamavam manobra A receita tradicional dá lugar a prescrições explícitas e coercitivas Sobre toda a superfície de contato entre o corpo e o objeto que o manipula o poder vem se introduzir amarraos um ao outro Constitui um complexo corpoarma corpoinstrumento corpomáquina Estamos inteiramente longe daquelas formas de sujeição que só pediam ao corpo sinais ou produtos formas de expressão ou o resultado de um trabalho A regulamentação imposta pelo poder é ao mesmo tempo a lei de construção da operação E assim aparece esse caráter do poder disciplinar tem uma função menos de retirada que de síntese menos de extorsão do produto que de laço coercitivo com o aparelho de produção 5 A utilização exaustiva o princípio que estava subjacente ao horário em sua forma tradicional era essencialmente negativo princípio da nãoociosidade é proibido perder um tempo que é contado por Deus e pago pelos homens o horário devia conjurar o perigo de desperdiçar tempo erro moral e desonestidade econômica Já a disciplina organiza uma economia positiva coloca o princípio de uma utilização teoricamente sempre crescente do tempo mais exaustão que emprego importa extrair do tempo sempre mais instantes disponíveis e de cada instante sempre mais forças úteis O que significa que se deve procurar intensificar o uso do mínimo instante como se o tempo em seu próprio fracionamento fosse inesgotável ou como se pelo menos por uma organização interna cada vez mais detalhada se pudesse tender para um ponto ideal em que o máximo de rapidez encontra o máximo de eficiência E a essa técnica mesma que era usada nos famosos regulamentos da infantaria prussiana que a Europa inteira imitou depois das vitórias de Frederico II32 quanto mais se decompõe o tempo quanto mais se multiplicam suas subdivisões quanto melhor o desarticulamos desdobrando seus elementos internos sob um olhar que os controla mais então podese acelerar uma operação ou pelo menos regulála segundo um rendimento ótimo de velocidade daí essa regulamentação do tempo da ação que foi tão importante no exército e que devia sê lo para toda a tecnologia da atividade humana o regulamento prussiano de 1743 previa 6 tempos para pôr a arma ao pé 4 para estendêla 13 para colocála ao contrário sobre o ombro etc Por outros meios a escola mútua também foi disposta como um aparelho para intensificar a utilização do tempo sua organização permitia desviar o caráter linear e sucessivo do ensino do mestre regulava o contraponto de operações feitas ao mesmo tempo por diversos grupos de alunos sob a direção dos monitores e dos adjuntos de maneira que cada instante que passava era povoado de atividades múltiplas mas ordenadas e por outro lado o ritmo imposto por sinais apitos comandos impunha a todos normas temporais que deviam ao mesmo tempo acelerar o processo de aprendizagem e ensinar a rapidez como uma virtude33 A única finalidade dessas ordens é acostumar as crianças a executar rapidamente e bem as mesmas operações diminuir tanto quanto possível pela celeridade a perda de tempo acarretada pela passagem de uma operação a outra34 Ora através dessa técnica de sujeição um novo objeto vaise compondo e lentamente substituindo o corpo mecânico o corpo composto de sólidos e comandado por movimentos cuja imagem tanto povoara os sonhos dos que buscavam a perfeição disciplinar Esse novo objeto é o corpo natural portador de forças e sede de algo durável é o corpo suscetível de operações especificadas que têm sua ordem seu tempo suas condições internas seus elementos constituintes O corpo tornandose alvo dos novos mecanismos do poder oferecese a novas formas de saber Corpo do exercício mais que da física especulativa corpo manipulado pela autoridade mais que atravessado pelos espíritos animais corpo do treinamento útil e não da mecânica racional mas no qual por essa mesma razão se anunciará um certo número de exigências de natureza e de limitações funcionais É ele que Guibert descobre na crítica que faz das manobras excessivamente artificiais No exercício que lhe é imposto e ao qual resiste o corpo desenha suas correlações essenciais e rejeita espontaneamente o incompatível Entremos na maior parte de nossas escolas de exercício veremos todos aqueles infelizes soldados em atitudes coagidas e forçadas veremos todos os seus músculos em contração sua circulação sangüínea interrompia Estudemos a intenção da natureza e a construção do corpo humano e encontraremos a posição e a compostura que ela prescreve claramente que se deve dar ao soldado A cabeça deve ficar direita solta dos ombros perpendicularmente colocada entre eles Não deve ficar voltada nem à esquerda nem à direita porque considerando a correspondência que existe entre as vértebras do pescoço e a omoplata a que estão ligadas nenhuma delas pode agir circularmente sem arrastar de leve do mesmo lado em que ela age uma das ramificações do ombro e não estando mais o corpo colocado direito o soldado não pode mais marchar reto para frente nem servir de ponto de alinhamento Como o osso da anca indicado pela Ordenação como sendo o ponto contra o qual se deve apoiar o bico da coronha não está igualmente situado em todos os homens o fuzil para alguns deve ser levado mais à direita para outros mais à esquerda Pela mesma razão de desigualdade de estrutura o guardamato pode estar mais ou menos apertado contra o corpo dependendo de ter um homem a parte externa do ombro mais ou menos carnuda etc35 Vimos como os processos da repartição disciplinar tinham seu lugar entre as técnicas contemporâneas de classificação e de enquadramento e como eles aí introduziam o problema específico dos indivíduos e da multiplicidade Do mesmo modo os controles disciplinares da atividade encontram lugar em todas as pesquisas teóricas ou práticas sobre a máquina natural dos corpos mas elas começaram a descobrir nisso processos específicos o comportamento e suas exigências orgânicas vão pouco a pouco substituir a simples física do movimento O corpo do qual se requer que seja dócil até em suas mínimas operações opõe e mostra as condições de funcionamento próprias a um organismo O poder disciplinar tem por correlato uma individualidade não só analítica e celular mas também natural e orgânica A ORGANIZAÇÃO DAS GÊNESES Em 1667 o edito que criava a fábrica dos Gobelins previa a organização de uma escola Sessenta crianças bolsistas deviam ser escolhidas pelo superintendente dos prédios reais confiados durante certo tempo a um mestre que devia realizar sua educação e instrução depois colocados para aprendizagem junto aos diversos mestres tapeceiros da manufatura estes recebiam por isso uma indenização retirada da bolsa dos alunos depois de seis anos de aprendizagem quatro anos de serviço e uma prova qualificatória tinham direito de erguer e manter loja em qualquer cidade do reino Encontramos aí as características próprias da aprendizagem corporativa relação de dependência ao mesmo tempo individual e total quanto ao mestre duração estatutária da formação que se conclui com uma prova qualificatória mas que não se decompõe segundo um programa preciso troca total entre o mestre que deve dar seu saber e o aprendiz que deve trazer seus serviços sua ajuda e muitas vezes uma retribuição A forma da domesticidade se mistura a uma transferência de conhecimento36 Em 1737 um edito organiza uma escola de desenho para os aprendizes dos Gobelins ela não se destina a substituir a formação com os mestres operários mas a completála Ora ela implica numa organização do tempo totalmente diversa Duas horas por dia menos aos domingos e festas os alunos se reúnem na escola É feita a chamada segundo uma lista afixada à parede anotamse as ausências num registro A escola é dividida em três classes A primeira para os que não têm nenhuma noção de desenho mandamnos copiar modelos mais difíceis ou menos difíceis segundo as aptidões de cada um A segunda para os que já têm alguns princípios ou que passaram pela primeira classe devem reproduzir quadros à primeira vista e sem tomarlhes o traço mas considerando só o desenho Na terceira classe aprendem as cores fazem pastel iniciamse na teoria e na prática do tingimento Regularmente os alunos fazem deveres individuais cada um desses exercícios marcado com o nome do autor e a data da execução é depositado nas mãos do professor os melhores são recompensados reunidos no fim do ano e comparados entre eles permitem estabelecer os progressos o valor atual o lugar relativo de cada aluno determinamse então os que podem passar para a classe superior Um livro geral mantido pelos professores e seus adjuntos deve registrar dia por dia o comportamento dos alunos e tudo o que se passa na escola é periodicamente submetido a um inspetor37 A escola dos Gobelins é apenas o exemplo de um fenômeno importante o desenvolvimento na época clássica de uma nova técnica para a apropriação do tempo das existências singulares para reger as relações do tempo dos corpos e das forças para realizar uma acumulação da duração e para inverter em lucro ou em utilidade sempre aumentados o movimento do tempo que passa Como capitalizar o tempo dos indivíduos acumulálo em cada um deles em seus corpos em suas forças ou capacidades e de uma maneira que seja susceptível de utilização e de controle Como organizar durações rentáveis As disciplinas que analisam o espaço que decompõem e recompõem as atividades devem ser também compreendidas como aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo E isto por quatro processos que a organização militar mostra com toda a clareza 1o Dividir a duração em segmentos sucessivos ou paralelos dos quais cada um deve chegar a um termo específico Por exemplo isolar o tempo de formação e o período da prática não misturar a instrução dos recrutas e o exercício dos veteranos abrir escolas militares distintas do serviço armado em 1764 criação da Escola de Paris em 1776 criação das doze escolas de província recrutar os soldados profissionais desde muito jovens tomar crianças fazêlos adotar pela pátria preparálos em escolas particulares38 ensinar sucessivamente a postura depois a marcha depois o manejo das armas depois o tiro e só passar a uma atividade se a anterior estiver completamente adquirida É um dos erros principais mostrar a um soldado todos os exercícios ao mesmo tempo39 enfim decompor o tempo em seqüências separadas e ajustadas 2 Organizar essas seqüências segundo um esquema analítico sucessão de elementos tão simples quanto possível combinandose segundo uma complexidade crescente O que supõe que a instrução abandone o princípio da repetição analógica No século XVI o exercício militar consistia principalmente em uma pantomima de todo ou de parte do combate e em fazer crescer globalmente a habilidade ou a força do soldado40 No século XVIII a instrução do manual segue o princípio do elementar e não mais do exemplar gestos simples posição dos dedos flexão da perna movimento dos braços que são no máximo os componentes de base para os comportamentos úteis e que além disso efetuam um treinamento geral da força da habilidade da docilidade 3o Finalizar esses segmentos temporais fixarlhes um termo marcado por uma prova que tem a tríplice função de indicar se o indivíduo atingiu o nível estatutário de garantir que sua aprendizagem está em conformidade com a dos outros e diferenciar as capacidades de cada indivíduo Quando os sargentos cabos etc encarregados de instruir os outros acharem que puseram alguém em condições de passar à primeira classe eles o apresentarão primeiro aos oficiais da companhia que o examinarão com atenção se ainda não o acharem suficientemente treinado recusarão admitilo se ao contrário o homem apresentado lhes parecer em condições de ser recebido os ditos oficiais o proporão eles mesmos ao comandante do regimento que verá se o julga a propósito e fará os oficiais majores o examinarem As faltas mais leves bastarão para recusálo e ninguém poderá passar da segunda classe para a primeira sem ter feito esse primeiro exame41 4o Estabelecer séries de séries prescrever a cada um de acordo com seu nível sua antigüidade seu posto os exercícios que lhe convêm os exercícios comuns têm um papel diferenciador e cada diferença comporta exercícios específicos Ao termo de cada série começam outras formam uma ramificação e se subdividem por sua vez De maneira que cada indivíduo se encontra preso numa série temporal que define especificamente seu nível ou sua categoria Polifonia disciplinar dos exercícios Os soldados da segunda classe serão treinados todas as manhãs pelos sargentos cabos anspeçadas soldados de primeira classe Os soldados de primeira classe serão treinados todos os domingos pelo chefe da esquadra os cabos e os anspeçadas todas as terçasfeiras à tarde pelos sargentos de sua companhia e estes aos 2 12 e 22 de cada mês também à tarde pelos oficiais majores42 Esse é o tempo disciplinar que se impõe pouco a pouco à prática pedagógica especializando o tempo de formação e destacandoo do tempo adulto do tempo do ofício adquirido organizando diversos estágios separados uns dos outros por provas graduadas determinando programas que devem desenrolarse cada um durante uma determinada fase e que comportam exercícios de dificuldade crescente qualificando os indivíduos de acordo com a maneira como percorreram essas séries O tempo iniciático da formação tradicional tempo global controlado só pelo mestre sancionado por uma única prova foi substituído pelo tempo disciplinar com suas séries múltiplas e progressivas Formase toda uma pedagogia analítica muito minuciosa decompõe até aos mais simples elementos a matéria de ensino hierarquiza no maior número possível de graus cada fase do progresso e também muito precoce em sua história antecipa largamente as análises genéticas dos ideólogos dos quais aparece como o modelo técnico Demia bem no começo do século XVIII queria que o aprendizado da leitura fosse dividido em sete níveis o primeiro para os que aprendem a conhecer as letras o segundo para os que aprendem a soletrar o terceiro para os que aprendem a juntar as sílabas para formar palavras o quarto para os que lêem o latim por frase ou de pontuação em pontuação o quinto para os que começam a ler o francês o sexto para os mais capazes na leitura o sétimo para os que lêem os manuscritos Mas caso os alunos fossem numerosos seria necessário introduzir ainda subdivisões a primeira classe devia comportar quatro grupos um para os que aprendem as letras simples outro para os que aprendem as letras misturadas um terceiro para os que aprendem as letras abreviadas  ê um último para os que aprendem as letras duplas ff ss tt st A segunda classe seria dividida em três grupos para os que contam alto cada letra antes de soletrar a sílaba DO DO para os que soletram as sílabas mais difíceis como bant brand spinx etc43 Cada patamar na combinatória dos elementos deve se inserir numa grande série temporal que é ao mesmo tempo uma marcha natural do espírito e um código para os processos educativos A colocação em série das atividades sucessivas permite todo um inves timento da duração pelo poder possibilidade de um controle detalhado e de uma intervenção pontual de diferenciação de correção de castigo de eliminação a cada momento do tempo possibilidade de caracterizar portanto de utilizar os indivíduos de acordo com o nível que têm nas séries que percorrem possibilidade de acumular o tempo e a atividade de encontrálos totalizados e utilizáveis num resultado último que é a capacidade final de um indivíduo Recolhese a dispersão temporal para lucrar com isso e conservase o domínio de uma duração que escapa O poder se articula diretamente sobre o tempo realiza o controle dele e garante sua utilização Os procedimentos disciplinares revelam um tempo linear cujos momentos se integram uns nos outros e que se orienta para um ponto terminal e estável Em suma um tempo evolutivo Ora é preciso lembrar que no mesmo momento as técnicas administrativas e econômicas de controle manifestavam um tempo social de tipo serial orientado e cumulativo descoberta de uma evolução em termos de progresso As técnicas disciplinares por sua vez fazem emergir séries individuais descoberta de uma evolução em termos de gênese Progresso das sociedades gênese dos indivíduos essas duas grandes descobertas do século XVIII são talvez correlatas das novas técnicas de poder e mais precisamente de uma nova maneira de gerir o tempo e tornálo útil por recorte segmentar por seriação por síntese e totalização Uma macro e uma microfísica do poder permitiram não certamente a invenção da história já há um bom tempo ela não precisava mais ser inventada mas a integração de uma dimensão temporal unitária cumulativa no exercício dos controles e na prática das dominações A historicidade evolutiva assim como se constitui então e tão profundamente que ainda hoje é para muitos uma evidência está ligada a um modo de funcionamento do poder da mesma forma que a históriarememoração das crônicas das genealogias das proezas dos reinos e dos atos esteve muito tempo ligada a uma outra modalidade do poder Com as novas técnicas de sujeição a dinâmica das evoluções contínuas tende a substituir a dinástica dos acontecimentos solenes Em todo caso o pequeno continuam temporal da individualidadegênese parece ser mesmo como a individualidadecélula ou a individualidadeorganismo um efeito e um objeto da disciplina E no centro dessa seriação do tempo encontramos um procedimento que é para ela o que era a colocação em quadro para a repartição dos indivíduos ou o recorte celular ou ainda o que era a manobra para a economia das atividades e o controle orgânico O ponto em apreço é o exercício a técnica pela qual se impõe aos corpos tarefas ao mesmo tempo repetitivas e diferentes mas sempre graduadas Dirigindo o comportamento para um estado terminal o exercício permite uma perpétua caracterização do indivíduo seja em relação a esse termo seja em relação aos outros indivíduos seja em relação a um tipo de percurso Assim realiza na forma da continuidade e da coerção um crescimento uma observação uma qualificação Antes de tomar essa forma estritamente disciplinar o exercício teve uma longa história é encontrado nas práticas militares religiosas universitárias às vezes ritual de iniciação cerimônia preparatória ensaio teatral prova Sua organização linear continuamente progressiva seu desenrolar genético ao longo do tempo têm pelo menos no exército e na escola introdução tardia E sem dúvida de origem religiosa Em todo caso a idéia de um programa escolar que acompanharia a criança até o termo de sua educação e que implicaria de ano em ano de mês em mês em exercícios de complexidade crescente apareceu primeiro parece num grupo religioso os Irmãos da Vida Comum44 Fortemente inspirados por Ruysbroeck e na mística renana transpuseram à educação uma parte das técnicas espirituais e não só à educação dos clérigos mas à dos magistrados e comerciantes o tema da perfeição em direção à qual o mestre exemplar conduz tornase entre eles o de um aperfeiçoamento autoritário dos alunos pelo professor os exercícios cada vez mais rigorosos propostos pela vida ascética tornamse tarefas de complexidade crescente que marcam a aquisição progressiva do saber e do bom comportamento o esforço de toda a comunidade para a salvação tornase o concurso coletivo e permanente dos indivíduos que se classificam uns em relação aos outros Foram talvez processos de vida e de salvação comunitárias o primeiro núcleo de métodos destinados a produzir aptidões individualmente caracterizadas mas coletivamente úteis45 Sob sua forma mística ou ascética o exercício era uma maneira de ordenar o tempo aqui de baixo para a conquista da salvação Vai pouco a pouco na história do Ocidente inverter o sentido guardando algumas características serve para economizar o tempo da vida para acumulálo de uma maneira útil e para exercer o poder sobre os homens por meio do tempo assim arrumado O exercício transformado em elemento de uma tecnologia política do corpo e da duração não culmina num mundo além mas tende para uma sujeição que nunca terminou de se completar A COMPOSIÇÃO DAS FORÇAS Comecemos destruindo o antigo preconceito segundo o qual pensavase aumentar a força de uma tropa aumentandolhe a profundidade Todas as leis físicas sobre o movimento tornamse quimeras quando queremos adaptálas à tática46 Desde o fim do século XVII o problema técnico da infantaria foi de libertarse do modelo físico da massa Armada de lanças e mosquetões lentos imprecisos que não permitiam ajustar um alvo e mirar uma tropa era usada ou como um projétil ou como um muro ou uma fortaleza a temível infantaria do exército da Espanha a repartição dos soldados nessa massa era feita principalmente segundo sua antigüidade e valentia no centro encarregados de fazer peso e volume de dar densidade ao corpo os mais novatos na frente nos ângulos ou pelos lados os soldados mais corajosos ou reputados os mais hábeis Passouse no decorrer da época clássica a um jogo de articulações minuciosas A unidade regimento batalhão seção mais tarde divisão47 tornase uma espécie de máquina de peças múltiplas que se deslocam em relação umas às outras para chegar a uma configuração e obter um resultado específico As razões dessa mudança Algumas são econômicas tornar útil cada indivíduo e rentável a formação a manutenção o armamento das tropas dar a cada soldado unidade preciosa um máximo de eficiência Mas essas razões econômicas só puderam se tornar determinantes a partir de uma transformação técnica a invenção do fuzil48 mais preciso mais rápido que o mosquete valorizava a habilidade do soldado mais capaz de atingir um alvo determinado permitia explorar a potência de fogo ao nível individual e inversamente fazia de cada soldado um alvo possível exigindo pela mesma razão maior mobilidade e assim ocasionava o desaparecimento de uma técnica das massas em proveito de uma arte que distribuía as unidades e os homens ao longo de linhas extensas relativamente flexíveis e móveis Daí a necessidade de encontrar uma prática calculada das localizações individuais e coletivas dos deslocamentos de grupos ou de elementos isolados das mudanças de posição de passagem de uma disposição a outra enfim de inventar uma maquinaria cujo princípio não seja mais a massa móvel ou imóvel mas uma geometria de segmentos divisíveis cuja unidade de base é o soldado móvel com seu fuzil49 e acima do próprio soldado os gestos mínimos os tempos elementares de ação os fragmentos de espaços ocupados ou percorridos Mesmos problemas ao se constituir uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares que a compõem Que o dia de trabalho combinado adquira essa produtividade superior multiplicando a potência mecânica do trabalho estendendo sua ação no espaço ou diminuindo o campo de produção em relação à sua escala mobilizando nos momentos críticos grandes quantidades de trabalho a força específica do dia combinado é uma força social do trabalho ou uma força do trabalho social Nasce da própria cooperação50 Surge assim uma exigência nova a que a disciplina tem que atender construir uma máquina cujo efeito será elevado ao máximo pela articulação combinada das peças elementares de que ela se compõe A disciplina não é mais simplesmente uma arte de repartir os corpos de extrair e acumular o tempo deles mas de compor forças para obter um aparelho eficiente Essa exigência se traduz de várias maneiras 1 O corpo singular tornase um elemento que se pode colocar mover articular com outros Sua coragem ou força não são mais as variáveis principais que o definem mas o lugar que ele ocupa o intervalo que cobre a regularidade a boa ordem segundo as quais opera seus deslocamentos O homem de tropa é antes de tudo um fragmento de espaço móvel antes de ser uma coragem ou uma honra Caracterização do soldado por Guibert Quando está sob as armas ocupa dois pés em seu maior diâmetro ou seja tomandoo de um extremo ao outro e cerca de um pé em sua maior espessura tomada do peito aos ombros a que se deve acrescentar um pé de intervalo real entre ele e o homem seguinte o que dá dois pés em todos os sentidos por soldado e indica que uma tropa de infantaria em batalha ocupa seja numa frente seja em profundidade tantos passos quantas filas tem51 Redução funcional do corpo Mas também inserção desse corposegmento em todo um conjunto com o qual se articula O soldado cujo corpo foi treinado para funcionar peça por peça para operações determinadas deve por sua vez formar elemento num mecanismo de outro nível Os soldados serão instruídos um a um depois dois a dois depois em maior número Será observado para o manejo das armas quando os soldados tiverem sido instruídos separadamente fazêlos executá lo dois a dois e fazêlos trocar de lugar alternadamente para que o da esquerda aprenda a se regular pelo da direita52 O corpo se constitui como peça de uma máquina multissegmentar 2 São também peças as várias séries cronológicas que a disciplina deve combinar para formar um tempo composto O tempo de uns devese ajustar ao tempo de outros de maneira que se possa extrair a máxima quantidade de forças de cada um e combinála num resultado ótimo Servan sonhava assim com um aparelho militar que cobriria todo o território da nação e em que cada um estaria ocupado sem interrupção mas de maneira diferente segundo o segmento evolutivo a seqüência genética em que se encontrasse A vida militar começaria na mais tenra idade quando se ensinaria às crianças em moradas militares o ofício das armas ela terminaria nessas mesmas moradas quando os veteranos até seu último dia ensinariam as crianças mandariam os recrutas fazer manobras presidiriam aos exercícios dos soldados os fiscalizariam quando executassem obras de interesse público e enfim fariam reinar a ordem no país enquanto a tropa se batia nas fronteiras Não há um só momento da vida de que não se possa extrair forças desde que se saiba diferenciálo e combinálo com outros Da mesma maneira nas grandes oficinas apelase para as crianças e os velhos pois eles têm certas capacidades elementares para as quais não é necessário utilizar operários que têm várias outras aptidões além disso constituem mãodeobra barata enfim se trabalham não são dependentes de ninguém A humanidade laboriosa dizia um recebedor de impostos a respeito de uma empresa de Angers pode encontrar nessa manufatura da idade de dez anos até à velhice recursos contra a ociosidade e a miséria que é conseqüência desta53 Mas é sem dúvida no ensino primário que esse ajustamento das cronologias diferentes será mais útil Do século XVII até a introdução no começo do XIX do método Lancaster o mecanismo complexo da escola mútua se construirá uma engrenagem depois da outra confiaramse primeiro aos alunos mais velhos tarefas de simples fiscalização depois de controle do trabalho em seguida de ensino e então no fim das contas todo o tempo de todos os alunos estava ocupado seja ensinando seja aprendendo A escola tornase um aparelho de aprender onde cada aluno cada nível e cada momento se estão combinados como deve ser são permanentemente utilizados no processo geral de ensino Um dos grandes partidários da escola mútua dá a medida desse progresso Numa escola de 360 crianças o professor que quisesse instruir cada aluno por sua vez durante uma sessão de três horas só poderia dar meio minuto a cada um Pelo novo método todos os 360 alunos escrevem lêem ou contam durante duas horas e meia cada um54 3 Essa combinação cuidadosamente medida das forças exige um sistema preciso de comando Toda a atividade do indivíduo disciplinar deve ser repartida e sustentada por injunções cuja eficiência repousa na brevidade e na clareza a ordem não tem que ser explicada nem mesmo formulada é necessário e suficiente que provoque o comportamento desejado Do mestre de disciplina àquele que lhe é sujeito a relação é de sinalização o que importa não é compreender a injunção mas perceber o sinal reagir logo a ele de acordo com um código mais ou menos artificial estabelecido previamente Colocar os corpos num pequeno mundo de sinais a cada um dos quais está ligada uma resposta obrigatória e só uma técnica do treinamento que exclui despoticamente em tudo a menor representação e o menor murmúrio o soldado disciplinado começa a obedecer ao que quer que lhe seja ordenado sua obediência é pronta e cega a aparência de indocilidade o menor atraso seria um crime55 O treinamento das escolares deve ser feito da mesma maneira poucas palavras nenhuma explicação no máximo um silêncio total que só seria interrompido por sinais sinos palmas gestos simples olhar do mestre ou ainda aquele pequeno aparelho de madeira que os Irmãos das Escolas Cristãs usavam era chamado por excelência o Sinal e devia significar em sua brevidade maquinai ao mesmo tempo a técnica do comando e a moral da obediência O primeiro e principal uso do sinal é atrair de uma só vez todos os olhares dos escolares para o mestre e fazêlos ficar atentos ao que ele lhes quer comunicar Assim toda vez que este quiser chamar a atenção das crianças e fazer parar qualquer exercício baterá uma vez Um bom escolar toda vez que ouvir o ruído do sinal pensará ouvir a voz do mestre ou antes a voz de Deus mesmo que o chame pelo nome Entrará então nos sentimentos do jovem Samuel dizendo com ele no fundo de sua alma Senhor eisme aqui O aluno deverá aprender o código dos sinais e atender automaticamente a cada um deles Feita a oração o mestre dará uma pancada de sinal olhando a criança que quer mandar ler lhe fará sinal de começar Para fazer parar o que está lendo dará uma pancada de sinal Para fazer sinal ao que está lendo de se corrigir quando pronunciou mal uma letra uma sílaba ou uma palavra dará duas pancadas sucessivamente e seguidas Se após se ter corrigido ele não recomeça na palavra que pronunciou mal porque leu várias depois dela o mestre dará três pancadas sucessivamente uma em seguida da outra para lhe fazer sinal de recuar de algumas palavras e continuará a fazer esse sinal até o escolar chegar à sílaba ou à palavra que pronunciou mal56 A escola mútua levará ainda mais longe esse controle dos comportamentos pelo sistema dos sinais a que se tem que reagir imediatamente Até as ordens verbais devem funcionar como sinalização Entrem em seus bancos À palavra Entrem as crianças colocam com ruído a mão direita sobre a mesa e ao mesmo tempo passam a perna para dentro do banco às palavras em seus bancos eles passam a outra perna e se sentam diante das lousas Pegarlousas à palavra pegar as crianças levam a mão direita ao barbante que serve para suspender a lousa ao prego que está diante deles e com a esquerda pegam a lousa pelo meio à palavra lousas eles a soltam e a colocam sobre a mesa57 Em resumo podese dizer que a disciplina produz a partir dos corpos que controla quatro tipos de individualidade ou antes uma individualidade dotada de quatro características é celular pelo jogo da repartição espacial é orgânica pela codificação das atividades é genética pela acumulação do tempo é combinatória pela composição das forças E para tanto utiliza quatro grandes técnicas constrói quadros prescreve manobras impõe exercícios enfim para realizar a combinação das forças organiza táticas A tática arte de construir com os corpos localizados atividades codificadas e as aptidões formadas aparelhos em que o produto das diferentes forças se encontra majorado por sua combinação calculada é sem dúvida a forma mais elevada da prática disciplinar Nesse saber os teóricos do século XVIII viam o fundamento geral de toda a prática militar desde o controle e o exercício dos corpos individuais até à utilização das forças específicas às multiplicidades mais complexas Arquitetura anatomia mecânica economia do corpo disciplinar aos olhos da maior parte dos militares a tática não passa de um ramo da vasta ciência da guerra aos meus ela é a base dessa ciência ela é a própria ciência pois ensina a constituir as tropas a ordenálas a movêlas a mandálas combater pois só ela pode completar o número e manejar a multidão ela incluirá enfim o conhecimento dos homens das armas das tensões das circunstâncias pois são todos esses conhecimentos reunidos que devem determinar esses movimentos58 Ou ainda Esse termo tática dá a idéia da posição respectiva dos homens que compõem uma tropa das diversas tropas que compõem um exército de seus movimentos e ações das relações que têm entre si59 É possível que a guerra como estratégia seja a continuação da política Mas não se deve esquecer que a política foi concebida como a continuação senão exata e diretamente da guerra pelo menos do modelo militar como meio fundamental para prevenir o distúrbio civil A política como técnica da paz e da ordem internas procurou pôr em funcionamento o dispositivo do exército perfeito da massa disciplinada da tropa dócil e útil do regimento no acampamento e nos campos na manobra e no exercício Nos grandes Estados do século XVIII o exército garante a paz civil sem dúvida porque é uma força real uma espada sempre ameaçadora mas também porque é uma técnica e um saber que podem projetar seu esquema sobre o corpo social Se há uma série guerrapolítica que passa pela estratégia há uma série exércitopolítica que passa pela tática É a estratégia que permite compreender a guerra como uma maneira de conduzir a guerra entre os Estados é a tática que permite compreender o exército como um princípio para manter a ausência de guerra na sociedade civil A era clássica viu nascer a grande estratégia política e militar segundo a qual as nações defrontam suas forças econômicas e demográficas mas viu nascer também a minuciosa tática militar e política pela qual se exerce nos Estados o controle dos corpos e das forças individuais O militar a instituição militar o personagem do militar a ciência militar tão diferentes do que caracterizava antes o homem de guerra se especifica durante esse período no ponto de junção entre a guerra e os ruídos da batalha por um lado a ordem e o silêncio obediente da paz por outro O sonho de uma sociedade perfeita é facilmente atribuído pelos historiadores aos filósofos e juristas do século XVIII mas há também um sonho militar da sociedade sua referência fundamental era não ao estado de natureza mas às engrenagens cuidadosamente subordinadas de uma máquina não ao contrato primitivo mas às coerções permanentes não aos direitos fundamentais mas aos treinamentos indefinidamente progressivos não à vontade geral mas à docilidade automática Deverseia tomar a disciplina nacional dizia Guibert O Estado que eu idealizo terá uma administração simples sólida fácil de governar Parecerá com essas imensas máquinas que com molas pouco complicadas produzem grandes efeitos a força desse Estado nascerá de sua força sua prosperidade de sua prosperidade O tempo que destrói tudo aumentará sua potência Ele desmentirá esse preconceito vulgar que leva a imaginar que os impérios estão submetidos a uma lei imperiosa de decadência e ruína60 O regime napoleônico não está longe e com ele essa forma de Estado que lhe subsistirá e que não se deve esquecer que foi preparado por juristas mas também por soldados conselheiros de Estado e oficiais baixos homens de lei e homens de acampamento A referência romana que acompanha essa formação inclui claramente esse duplo índice os cidadãos e os legionários a lei e a manobra Enquanto os juristas procuravam no pacto um modelo primitivo para a construção ou a reconstrução do corpo social os militares e com eles os técnicos da disciplina elaboravam processos para a coerção individual e coletiva dos corpos CAPÍTULO II Os RECURSOS PARA o BOM ADESTRAMENTO Walhausen bem no início do século XVII falava da correta disciplina como uma arte do bom adestramento1 O poder disciplinar é com efeito um poder que em vez de se apropriar e de retirar tem como função maior adestrar ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor Ele não amarra as forças para reduzilas procura ligálas para multiplicálas e utilizálas num todo Em vez de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido separa analisa diferencia leva seus processos de decomposição até às singularidades necessárias e suficientes Adestra as multidões confusas móveis inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos individuais pequenas células separadas autonomias orgânicas identidades e continuidades genéticas segmentos combinatórios A disciplina fabrica indivíduos ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício Não é um poder triunfante que a partir de seu próprio excesso podese fiar em seu superpoderio é um poder modesto desconfiado que funciona a modo de uma economia calculada mas permanente Humildes modalidades procedimentos menores se os compararmos aos rituais majestosos da soberania ou aos grandes aparelhos do Estado E são eles justamente que vão pouco a pouco invadir essas formas maiores modificarlhes os mecanismos e imporlhes seus processos O aparelho judiciário não escapará a essa invasão mal secreta O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples o olhar hierárquico a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico o exame A VIGILÂNCIA HIERÁRQUICA O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder e onde em troca os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam Lentamente no decorrer da época clássica são construídos esses observatórios da multiplicidade humana para as quais a história das ciências guardou tão poucos elogios Ao lado da grande tecnologia dos óculos das lentes dos feixes luminosos unida à fundação da física e da cosmologia novas houve as pequenas técnicas das vigilâncias múltiplas e entrecruzadas dos olhares que devem ver sem ser vistos uma arte obscura da luz e do visível preparou em surdina um saber novo sobre o homem através de técnicas para sujeitálo e processos para utilizálo Esses observatórios têm um modelo quase ideal o acampamento militar É a cidade apressada e artificial que se constrói e remodela quase à vontade é o ápice de um poder que deve ter ainda mais intensidade mas também mais discrição por se exercer sobre homens de armas No acampamento perfeito todo o poder seria exercido somente pelo jogo de uma vigilância exata e cada olhar seria uma peça no funcionamento global do poder O velho e tradicional plano quadrado foi consideravelmente afinado de acordo com inúmeros esquemas Definese exatamente a geometria das aléias o número e a distribuição das tendas a orientação de suas entradas a disposição das filas e das colunas desenhase a rede dos olhares que se controlam uns aos outros Na praça darmas tiramse cinco linhas a primeira fica a 16 pés da segunda as outras ficam a 8 pés uma da outra e a última fica a 8 pés dos tabardos Os tabardos ficam a 10 pés das tendas dos oficiais inferiores precisamente em frente ao primeiro bastão Uma rua de companhia tem 51 pés de largura Todas as tendas ficam a dois pés umas das outras As tendas dos subalternos ficam em frente às ruelas de suas companhias O bastão de trás fica a 8 pés da última tenda dos soldados e a porta olha para a tenda dos capitães As tendas dos capitães ficam levantadas em frente às ruas de suas companhias A porta olha para as próprias companhias2 O acampamento é o diagrama de um poder que age pelo efeito de uma visibilidade geral Durante muito tempo encontraremos no urbanismo na construção das cidades operárias dos hospitais dos asilos das prisões das casas de educação esse modelo do acampamento ou pelo menos o princípio que o sustenta o encaixamento espacial das vigilâncias hierarquizadas Princípio do encastramento O acampamento foi para a ciência pouco confessável das vigilâncias o que a câmara escura foi para a grande ciência da ótica Toda uma problemática se desenvolve então a de uma arquitetura que não é mais feita simplesmente para ser vista fausto dos palácios ou para vigiar o espaço exterior geometria das fortalezas mas para permitir um controle interior articulado e detalhado para tornar visíveis os que nela se encontram mais geralmente a de uma arquitetura que seria um operador para a transformação dos indivíduos agir sobre aquele que abriga dar domínio sobre seu comportamento reconduzir até eles os efeitos do poder oferecêlos a um conhecimento modificá los As pedras podem tornar dócil e conhecível O velho esquema simples do encarceramento e do fechamento do muro espesso da porta sólida que impedem de entrar ou de sair começa a ser substituído pelo cálculo das aberturas dos cheios e dos vazios das passagens e das transparências Assim é que o hospital edifício se organiza pouco a pouco como instrumento de ação médica deve permitir que se possa observar bem os doentes portanto coordenar melhor os cuidados a forma dos edifícios pela cuidadosa separação dos doentes deve impedir os contágios a ventilação que se faz circular em torno de cada leito deve enfim evitar que os vapores deletérios se estagnem em volta do paciente decompondo seus humores e multiplicando a doença por seus efeitos imediatos O hospital aquele que se quer aparelhar na segunda metade do século e para o qual se fizeram tantos projetos depois do segundo incêndio do HôtelDieu não é mais simplesmente o teto onde se abrigavam a miséria e a morte próxima é sem sua própria materialidade um operador terapêutico Como a escolaedifício deve ser um operador de adestramento Fora uma máquina pedagógica que PârisDuverney concebera na Escola militar e até nos mínimos detalhes que ele impusera a Gabriel Adestrar corpos vigorosos imperativo de saúde obter oficiais competentes imperativo de qualificação formar militares obedientes imperativo político prevenir a devassidão e a homossexualidade imperativo de moralidade Quádrupla razão para estabelecer separações estanques entre os indivíduos mas também aberturas para observação contínua O próprio edifício da Escola devia ser um aparelho de vigiar os quartos eram repartidos ao longo de um corredor como uma série de pequenas celas a intervalos regulares encontravase um alojamento de oficial de maneira que cada dezena de alunos tivesse um oficial à direita e à esquerda os alunos aí ficavam trancados durante toda a noite e Pâris insistira para que fosse envidraçada a parede de cada quarto do lado do corredor desde a altura de apoio até um ou dois pés do teto Além disso a vista dessas vidraças só pode ser agradável ousamos dizer que é útil sob vários pontos de vista sem falar das razões de disciplina que podem determinar essa disposição3 Nas salas de refeições fora preparado um estrado um pouco alto para colocar as mesas dos inspetores dos estudos para que eles possam ver todas as mesas dos alunos de suas divisões durante as refeições haviam sido instaladas latrinas com meiasportas para que o vigia para lá designado pudesse ver a cabeça e as pernas dos alunos mas com separações laterais suficientemente elevadas para que os que lá estão não se possam ver4 Escrúpulos infinitos de vigilância que a arquitetura transmite por mil dispositivos sem honra Só os acharemos irrisórios se esquecermos o papel dessa instrumentação menor mas sem falha na objetivação progressiva e no quadriculamento cada vez mais detalhado dos comportamentos individuais As instituições disciplinares produziram uma maquinaria de controle que funcionou como um microscópio do comportamento as divisões tênues e analíticas por elas realizadas formaram em torno dos homens um aparelho de observação de registro e de treinamento Nessas máquinas de observar como subdividir os olhares como estabelecer entre eles escalas comunicações Como fazer para que de sua multiplicidade calculada resulte um poder homogêneo e contínuo O aparelho disciplinar perfeito capacitaria um único olhar tudo ver permanentemente Um ponto central seria ao mesmo tempo fonte de luz que iluminasse todas as coisas e lugar de convergência para tudo o que deve ser sabido olho perfeito a que nada escapa e centro em direção ao qual todos os olhares convergem Foi o que imaginara Ledoux ao construir ArcetSenans no centro dos edifícios dispostos em círculo e que se abriam todos para o interior uma alta construção devia acumular as funções administrativas de direção policiais de vigilância econômicas de controle e de verificação religiosas de encorajamento à obediência e ao trabalho de lá viriam todas as ordens lá seriam registradas todas as atividades percebidas e julgadas todas as faltas e isso imediatamente sem quase nenhum suporte a não ser uma geometria exata Entre todas as razões do prestígio que foi dado na segunda metade do século XVIII às arquiteturas circulares5 é preciso sem dúvida contar esta elas exprimiam uma certa utopia política Mas o olhar disciplinar teve de fato necessidade de escala Melhor que o círculo a pirâmide podia atender a duas exigências ser bastante completa para formar uma rede sem lacuna possibilidade em conseqüência de multiplicar seus degraus e de espalhálos sobre toda a superfície a controlar e entretanto ser bastante discreta para não pesar como uma massa inerte sobre a atividade a disciplinar e não ser para ela um freio ou um obstáculo integrarse ao dispositivo disciplinar como uma função que lhe aumenta os efeitos possíveis É preciso decompor suas instâncias mas para aumentar sua função produtora Especificar a vigilância e torná la funcional É o problema das grandes oficinas e das fábricas onde se organiza um novo tipo de vigilância É diferente do que se realizava nos regimes das manufaturas do exterior pelos inspetores encarregados de fazer aplicar os regulamentos tratase agora de um controle intenso contínuo corre ao longo de todo o processo de trabalho não se efetua ou não só sobre a produção natureza quantidade de matériasprimas tipo de instrumentos utilizados dimensões e qualidades dos produtos mas leva em conta a atividade dos homens seu conhecimento técnico a maneira de fazêlo sua rapidez seu zelo seu comportamento Mas é também diferente do controle doméstico do mestre presente ao lado dos operários e dos aprendizes pois é realizado por prepostos fiscais controladores e contramestres À medida que o aparelho de produção se torna mais importante e mais complexo à medida que aumentam o número de operários e a divisão do trabalho as tarefas de controle se fazem mais necessárias e mais difíceis Vigiar tornase então uma função definida mas deve fazer parte integrante do processo de produção deve duplicálo em todo o seu comprimento Um pessoal especializado tornase indispensável constantemente presente e distinto dos operários Na grande manufatura tudo é feito ao toque da campainha os operários são forçados e reprimidos Os chefes acostumados a ter com eles um ar de superioridade e de comando que realmente é necessário com a multidão tratamnos duramente ou com desprezo acontece daí que esses operários ou são mais caros ou apenas passam pela manufatura6 Mas se os operários preferem o enquadramento de tipo corporativo a esse novo regime de vigilância os patrões quanto a eles reconhecem nisso um elemento indissociável do sistema da produção industrial da propriedade privada e do lucro Em nível de fábrica de grande forja ou de mina os objetos de despesa são tão multiplicados que a menor infidelidade sobre cada objeto daria no total uma fraude imensa que não somente absorveria os lucros mas levaria a fonte dos capitais a mínima imperícia desapercebida e por isso repetida cada dia pode se tornar funesta à empresa ao ponto de anulála em muito pouco tempo donde o fato que só agentes diretamente dependentes do proprietário e designados só para esta tarefa poderão zelar para que não haja um tostão de despesa inútil para que não haja um momento perdido no dia seu papel será de vigiar os operários visitar todas as obras instruir o comitê sobre todos os acontecimentos7 A vigilância tornase um operador econômico decisivo na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar8 Mesmo movimento na reorganização do ensino elementar especificação da vigilância e integração à relação pedagógica O desenvolvimento das escolas paroquiais o aumento de seu número de alunos a inexistência de métodos que permitissem regulamentar simultaneamente a atividade de toda uma turma a desordem e a confusão que daí provinham tornavam necessária a organização dos controles Para ajudar o mestre Batencour escolhe entre os melhores alunos toda uma série de oficiais intendentes observadores monitores repetidores recitadores de orações oficiais de escrita recebedores de tinta capelães e visitadores Os papéis assim definidos são de duas ordens uns correspondem a tarefas materiais distribuir a tinta e o papel dar as sobras aos pobres ler textos espirituais nos dias de festa etc outros são da ordem da fiscalização Os observadores devem anotar quem sai do banco quem conversa quem não tem o terço ou o livro de orações quem se comporta mal na missa quem comete alguma imodéstia conversa ou grita na rua os admonitores estão encarregados de tomar conta dos que falam ou fazem zunzum ao estudar as lições dos que não escrevem ou brincam os visitadores vão se informar nas famílias sobre os alunos que estiveram ausentes ou cometeram faltas graves Quanto aos intendentes fiscalizam todos os outros oficiais Só os repetidores têm um papel pedagógico têm que fazer os alunos ler dois a dois em voz baixa9 Ora algumas dezenas de anos mais tarde Demia volta a uma hierarquia do mesmo tipo mas as funções de fiscalização agora são quase todas duplicadas por um papel pedagógico um submestre ensina a segurar a pena guia a mão corrige os erros e ao mesmo tempo marca as faltas quando se discute outro submestre tem as mesmas tarefas na classe de leitura o intendente que controla os outros oficiais e zela pelo comportamento geral é também encarregado de adequar os recém chegados aos exercícios da escola os decuriões fazem recitar as lições e marcam os que não as sabem10 Temos aí o esboço de uma instituição tipo escola mútua em que estão integrados no interior de um dispositivo único três procedimentos o ensino propriamente dito a aquisição dos conhecimentos pelo próprio exercício da atividade pedagógica enfim uma observação recíproca e hierarquizada Uma relação de fiscalização definida e regulada está inserida na essência da prática do ensino não como uma peça trazida ou adjacente mas como um mecanismo que lhe é inerente e multiplica sua eficiência A vigilância hierarquizada contínua e funcional não é sem dúvida uma das grandes invenções técnicas do século XVIII mas sua insidiosa extensão deve sua importância às novas mecânicas de poder que traz consigo O poder disciplinar graças a ela tornase um sistema integrado ligado do interior à economia e aos fins do dispositivo onde é exercido Organizase assim como um poder múltiplo automático e anônimo pois se é verdade que a vigilância repousa sobre indivíduos seu funcionamento é de uma rede de relações de alto a baixo mas também até um certo ponto de baixo para cima e lateralmente essa rede sustenta o conjunto e o perpassa de efeitos de poder que se apóiam uns sobre os outros fiscais perpetuamente fiscalizados O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como uma coisa não se transfere como uma propriedade funciona como uma máquina E se é verdade que sua organização piramidal lhe dá um chefe é o aparelho inteiro que produz poder e distribui os indivíduos nesse campo permanente e contínuo O que permite ao poder disciplinar ser absolutamente indiscreto pois está em toda parte e sempre alerta pois em princípio não deixa nenhuma parte às escuras e controla continuamente os mesmos que estão encarregados de controlar e absolutamente discreto pois funciona permanentemente e em grande parte em silêncio A disciplina faz funcionar um poder relacionai que se autosustenta por seus próprios mecanismos e substitui o brilho das manifestações pelo jogo ininterrupto dos olhares calculados Graças às técnicas de vigilância a física do poder o domínio sobre o corpo se efetuam segundo as leis da ótica e de mecânica segundo um jogo de espaços de linhas de telas de feixes de graus e sem recurso pelo menos em princípio ao excesso à força à violência Poder que é em aparência ainda menos corporal por ser mais sabiamente físico A SANÇÃO NORMALIZADORA 1 No orfanato do cavaleiro Paulet as sessões do tribunal que se reunia todas as manhãs davam lugar a um cerimonial Encontramos todos os alunos em formação alinhamento imobilidade e silêncio perfeitos O major jovem da nobreza de dezesseis anos estava fora da fila a espada na mão à sua ordem a tropa se abalou ao passo duplo para formar o círculo O conselho se reuniu no centro cada oficial fez o relatório de sua tropa nas vinte e quatro horas Os acusados foram admitidos a se justificar ouviramse as testemunhas deliberouse e quando se chegou a um acordo o major prestou contas em voz alta do número dos culpados da natureza dos delitos e dos castigos ordenados A tropa em seguida desfilou na maior ordem11 Na essência de todos os sistemas disciplinares funciona um pequeno mecanismo penal É beneficiado por uma espécie de privilégio de justiça com suas leis próprias seus delitos especificados suas formas particulares de sanção suas instâncias de julgamento As disciplinas estabelecem uma infrapenalidade quadriculam um espaço deixado vazio pelas leis qualificam e reprimem um conjunto de comportamentos que escapava aos grandes sistemas de castigo por sua relativa indiferença Ao entrar os companheiros deverão saudarse reciprocamente ao sair deverão guardar as mercadorias e ferramentas que utilizaram e em época de serão apagar a lâmpada é expressamente proibido divertir os companheiros com gestos ou de outra maneira eles deverão se comportar honesta e decentemente quem se ausentar por mais de cinco minutos sem avisar o Sr Oppenheim será anotado por meiodia e para que fique certo que nada será esquecido nessa justiça criminal miúda é proibido fazer qualquer coisa que puder prejudicar o Sr Oppenheim e seus companheiros12 Na oficina na escola no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo atrasos ausências interrupções das tarefas da atividade desatenção negligência falta de zelo da maneira de ser grosseria desobediência dos discursos tagarelice insolência do corpo atitudes incorretas gestos não conformes sujeira da sexualidade imodéstia indecência Ao mesmo tempo é utilizada a título de punição toda uma série de processos sutis que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações Tratase ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações mais tênues da conduta e de dar uma função punitiva aos elementos aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar levando ao extremo que tudo possa servir para punir a mínima coisa que cada indivíduo se encontre preso numa universalidade punívelpunidora Pela palavra punição devese compreender tudo o que é capaz de fazer as crianças sentir a falta que cometeram tudo o que é capaz de humilhálas de confundilas uma certa frieza uma certa indiferença uma pergunta uma humilhação uma destituição de posto13 2 Mas a disciplina traz consigo uma maneira específica de punir e que é apenas um modelo reduzido do tribunal O que pertence à penalidade disciplinar é a inobservância tudo o que está inadequado à regra tudo o que se afasta dela os desvios É passível de pena o campo indefinido do nãoconforme o soldado comete uma falta cada vez que não atinge o nível requerido a falta do aluno é assim como um delito menor uma inaptidão a cumprir suas tarefas O regulamento da infantaria prussiana impunha tratar com todo o rigor possível o soldado que não tivesse aprendido a manejar corretamente o fuzil Do mesmo modo quando um escolar não tiver guardado o catecismo da véspera poderseá obrigálo a aprender o daquele dia sem nenhum erro e deverá repetilo no dia seguinte ou será obrigado a ouvilo de pé ou de joelhos ou com as mãos postas ou então lhe será imposta alguma outra penitência A ordem que os castigos disciplinares devem fazer respeitar é de natureza mista é uma ordem artificial colocada de maneira explícita por uma lei um programa um regulamento Mas é também uma ordem definida por processos naturais e observáveis a duração de um aprendizado o tempo de um exercício o nível de aptidão têm por referência uma regularidade que é também uma regra As crianças das escolas cristãs nunca devem ser colocadas numa lição de que ainda não são capazes pois estariam correndo o perigo de não poder aprender nada entretanto a duração de cada estágio é fixada de maneira regulamentar e quem no fim de três meses não houver passado para a ordem superior deve ser colocado bem em evidência no banco dos ignorantes A punição em regime disciplinar comporta uma dupla referência jurídiconatural 3 O castigo disciplinar tem a função de reduzir os desvios Deve portanto ser essencialmente corretivo Ao lado das punições copiadas ao modelo judiciário multas açoite masmorra os sistemas disciplinares privilegiam as punições que são da ordem do exercício aprendizado intensificado multiplicado muitas vezes repetido o regulamento de 1766 para a infantaria previa que os soldados de primeira classe que mostrarem alguma negligência ou má vontade serão enviados para a última classe e só poderão voltar à primeira depois de novos exercícios e um novo exame Como dizia por seu lado JB de La Salle O castigo escrito é de todas as penitências a mais honesta para um mestre a mais vantajosa e a que mais agrada aos pais permite tirar dos próprios erros das crianças maneiras de avançar seus progressos corrigindolhes os defeitos àqueles por exemplo que não houverem escrito tudo o que deviam escrever ou não se aplicarem para fazêlo bem se poderá dar algum dever para escrever ou para decorar14 A punição disciplinar é pelo menos por uma boa parte isomorfa à própria obrigação ela é menos a vingança da lei ultrajada que sua repetição sua insistência redobrada De modo que o efeito corretivo que dela se espera apenas de uma maneira acessória passa pela expiação e pelo arrependimento é diretamente obtido pela mecânica de um castigo Castigar é exercitar 4 A punição na disciplina não passa de um elemento de um sistema duplo gratificaçãosanção E é esse sistema que se torna operante no processo de treinamento e de correção O professor deve evitar tanto quanto possível usar castigos ao contrário deve procurar tornar as recompensas mais freqüentes que as penas sendo os preguiçosos mais incitados pelo desejo de ser recompensados como os diligentes que pelo receio dos castigos por isso será muito proveitoso quando o mestre for obrigado a usar de castigo que ele ganhe se puder o coração da criança antes de aplicarlhe o castigo15 Este mecanismo de dois elementos permite um certo número de operações características da penalidade disciplinar Em primeiro lugar a qualificação dos comportamentos e dos desempenhos a partir de dois valores opostos do bem e do mal em vez da simples separação do proibido como é feito pela justiça penal temos uma distribuição entre pólo positivo e pólo negativo todo o comportamento cai no campo das boas e das más notas dos bons e dos maus pontos É possível além disso estabelecer uma quantificação e uma economia traduzida em números Uma contabilidade penal constantemente posta em dia permite obter o balanço positivo de cada um A justiça escolar levou muito longe esse sistema de que se encontram pelo menos os rudimentos no exército ou nas oficinas Os irmãos das Escolas Cristãs haviam organizado uma microeconomia dos privilégios e dos castigos escritos Os privilégios servirão aos escolares para se isentarem das penitências que lhes serão impostas Um escolar por exemplo terá por castigo quatro ou cinco perguntas do catecismo para copiar ele poderá se libertar dessa penitência mediante alguns pontos de privilégios o mestre anotará o número para cada pergunta Valendo os privilégios um número determinado de pontos o mestre tem também outros de menor valor que servirão como que de troco para os primeiros Uma criança por exemplo terá um castigo de que se poderá redimir com seis pontos tem um privilégio de dez apresentao ao mestre que lhe devolve quatro pontos e assim outros16 E pelo jogo dessa quantificação dessa circulação dos adiantamentos e das dívidas graças ao cálculo permanente das notas a mais ou a menos os aparelhos disciplinares hierarquizam numa relação mútua os bons e os maus indivíduos Através dessa microeconomia de uma penalidade perpétua operase uma diferenciação que não é a dos atos mas dos próprios indivíduos de sua natureza de suas virtualidades de seu nível ou valor A disciplina ao sancionar os atos com exatidão avalia os indivíduos com verdade a penalidade que ela põe em execução se integra no ciclo de conhecimento dos indivíduos 5 A divisão segundo as classificações ou os graus tem um duplo papel marcar os desvios hierarquizar as qualidades as competências e as aptidões mas também castigar e recompensar Funcionamento penal da ordenação e caráter ordinal da sanção A disciplina recompensa unicamente pelo jogo das promoções que permitem hierarquias e lugares pune rebaixando e degradando O próprio sistema de classificação vale como recompensa ou punição Havia sido aperfeiçoado na Escola Militar um sistema complexo de hierarquização honorífica em que as roupas traduziam essa classificação aos olhos de todos e castigos mais ou menos nobres ou vergonhosos estavam ligados como marca de privilégio ou de infâmia às categorias assim distribuídas Essa repartição classificatória e penal se efetua a intervalos próximos por relatórios que os oficiais os professores seus adjuntos fazem sem consideração de idade ou de posto sobre as qualidades morais dos alunos e sobre seu comportamento universalmente reconhecido A primeira classe dita dos muito bons se distingue por uma dragona de prata sua honra é ser tratada como uma tropa puramente militar militares serão portanto as punições a que ela tem direito as detenções e nos casos graves a prisão A segunda classe dos bons usa uma dragona de seda cor de papoula e prata são passíveis de prisão e detenção e também da jaula e de se ajoelhar A classe dos medíocres tem direito a uma dragona de lã vermelha às penas precedentes se acrescenta se for o caso o burel A última classe a dos maus é marcada por uma dragona de lã parda os alunos desta classe serão submetidos a todas as punições usuais no Hotel ou todas as que se julgar necessário introduzir e até à masmorra escura A isso se acrescentou durante algum tempo a classe vergonhosa para a qual se prepararam regulamentos especiais de maneira que os que a compõem estarão sempre separados dos outros e vestidos de burel Como só o mérito e o comportamento devem decidir sobre o lugar do aluno os das duas últimas classes poderão se orgulhar de subir às primeiras e usar suas marcas quando por testemunhos universais se reconhecerá que se tornaram dignos disso pela mudança de seu comportamento e seus progressos e os das primeiras classes também descerão para as outras se relaxarem e se relatórios reunidos e desvantajosos mostrarem que não merecem mais as distribuições e prerrogativas das primeiras classes A classificação que pune deve tender a se extinguir A classe vergonhosa só existe para desaparecer A fim de julgar a espécie de conversão dos alunos da classe vergonhosa que nela se comportam bem eles serão reintroduzidos nas outras classes suas roupas lhes serão devolvidas mas ficarão com seus camaradas de infâmia durante as refeições e as recreações aí permanecerão se não continuarem a se comportar bem daí sairão absolutamente se derem satisfação tanto nessa classe quanto nessa divisão17 Duplo efeito conseqüentemente dessa penalidade hierarquizante distribuir os alunos segundo suas aptidões e seu comportamento portanto segundo o uso que se poderá fazer deles quando saírem da escola exercer sobre eles uma pressão constante para que se submetam todos ao mesmo modelo para que sejam obrigados todos juntos à subordinação à docilidade à atenção nos estudos e nos exercícios e à exata prática dos deveres e de todas as partes da disciplina Para que todos se pareçam Em suma a arte de punir no regime do poder disciplinar não visa nem a expiação nem mesmo exatamente a repressão Põe em funcionamento cinco operações bem distintas relacionar os atos os desempenhos os comportamentos singulares a um conjunto que é ao mesmo tempo campo de comparação espaço de diferenciação e princípio de uma regra a seguir Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa regra de conjunto que se deve fazer funcionar como base mínima como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades o nível a natureza dos indivíduos Fazer funcionar através dessa medida valorizadora a coação de uma conformidade a realizar Enfim traçar o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças a fronteira externa do anormal a classe vergonhosa da Escola Militar A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara diferencia hierarquiza homogeniza exclui Em uma palavra ela normaliza Opõese então termo por termo a uma penalidade judiciária que tem a função essencial de tomar por referência não um conjunto de fenômenos observáveis mas um corpo de leis e de textos que é preciso memorizar não diferenciar indivíduos mas especificar atos num certo número de categorias gerais não hierarquizar mas fazer funcionar pura e simplesmente a oposição binária do permitido e do proibido não homogeneizar mas realizar a partilha adquirida de uma vez por todas da condenação Os dispositivos disciplinares produziram uma penalidade da norma que é irredutível em seus princípios e seu funcionamento à penalidade tradicional da lei O pequeno tribunal que parece ter sede permanente nos edifícios da disciplina e às vezes toma a forma teatral do grande aparelho judiciário não deve iludir ele não conduz a não ser por algumas continuidades formais os mecanismos da justiça criminal até à trama da existência cotidiana ou ao menos não é isso o essencial as disciplinas inventaram apoiandose aliás sobre uma série de processos muito antigos um novo funcionamento punitivo e é este que pouco a pouco investiu o grande aparelho exterior que parecia reproduzir modesta ou ironicamente O funcio namento jurídicoantropológico que toda a história da penalidade moderna revela não se origina na superposição à justiça criminal das ciências humanas e nas exigências próprias a essa nova racionalidade ou ao humanismo que ela traria consigo ele tem seu ponto de formação nessa técnica disciplinar que fez funcionar esses novos mecanismos de sanção normalizadora Aparece através das disciplinas o poder da Norma Nova lei da sociedade moderna Digamos antes que desde o século XVIII ele veio unirse a outros poderes obrigandoos a novas delimitações o da Lei o da Palavra e do Texto o da Tradição O Normal se estabelece como princípio de coerção no ensino com a instauração de uma educação estandardizada e a criação das escolas normais estabelecese no esforço para organizar um corpo médico e um quadro hospitalar da nação capazes de fazer funcionar normas gerais de saúde estabelecese na regularização dos processos e dos produtos industriais18 Tal como a vigilância e junto com ela a regulamentação é um dos grandes instrumentos de poder no fim da era clássica As marcas que significavam status privilégios filiações tendem a ser substituídas ou pelo menos acrescidas de um conjunto de graus de normalidade que são sinais de filiação a um corpo social homogêneo mas que têm em si mesmos um papel de classificação de hierarquização e de distribuição de lugares Em certo sentido o poder de regulamentação obriga à homogeneidade mas individualiza permitindo medir os desvios determinar os níveis fixar as especialidades e tornar úteis as diferenças ajustandoas umas às outras Compreendese que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal pois dentro de uma homogeneidade que é a regra ele introduz como um imperativo útil e resultado de uma medida toda a gradação das diferenças individuais O EXAME O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza É um controle normalizante uma vigilância que permite qualificar classificar e punir Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados É por isso que em todos os dispositivos de disciplina o exame é altamente ritualizado Nele vêmse reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência a demonstração da força e o estabelecimento da verdade No coração dos processos de disciplina ele manifesta a sujeição dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujeitam A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível Mais uma inovação da era clássica que os historiadores deixaram na sombra Fazse a história das experiências com cegos de nascença meninoslobo ou com a hipnose Mas quem fará a história mais geral mais vaga mais determinante também do exame de seus rituais de seus métodos de seus personagens e seus papéis de seus jogos de perguntas e respostas de seus sistemas de notas e de classificação Pois nessa técnica delicada estão comprometidos todo um campo de saber todo um tipo de poder Falase muitas vezes da ideologia que as ciências humanas pressupõem de maneira discreta ou declarada Mas sua própria tecnologia esse pequeno esquema operatório que tem tal difusão da psiquiatria à pedagogia do diagnóstico das doenças à contratação de mãodeobra esse processo tão familiar do exame não põe em funcionamento dentro de um só mecanismo relações de poder que permitem obter e constituir saber O investimento político não se faz simplesmente ao nível da consciência das representações e no que julgamos saber mas ao nível daquilo que torna possível algum saber Uma das condições essenciais para a liberação epistemológica da medicina no fim do século XVIII foi a organização do hospital como aparelho de examinar O ritual da visita é uma de suas formas mais evidentes No século XVII o médico vindo de fora juntava a sua inspeção vários outros controles religiosos administrativos não participava absolutamente da gestão cotidiana do hospital Pouco a pouco a visita tornouse mais regular mais rigorosa principalmente mais extensa ocupou uma parte cada vez mais importante do funcionamento hospitalar Em 1661 o médico do HotelDieu de Paris era encarregado de uma visita por dia em 1687 um médico expectante devia examinar à tarde certos doentes mais graves Os regulamentos do século XVIII determinam os horários da visita e sua duração duas horas no mínimo insistem para que um rodízio permita que seja realizado todos os dias inclusive domingo de Páscoa enfim em 1771 instituise um médico residente encarregado de prestar todos os serviços de seu estado tanto de noite como de dia nos intervalos entre uma visita e outra de um médico de fora19 A inspeção de antigamente descontínua e rápida se transforma em uma observação regular que coloca o doente em situação de exame quase perpétuo Com duas conseqüências na hierarquia interna o médico elemento até então exterior começa a suplantar o pessoal religioso e a lhe confiar um papel determinado mas subordinado na técnica do exame aparece então a categoria do enfermeiro quanto ao próprio hospital que era antes de tudo um local de assistência vai tornar se local de formação e aperfeiçoamento científico viravolta das relações de poder e constituição de um saber O hospital bem disciplinado constituirá o local adequado da disciplina médica esta poderá então perder seu caráter textual e encontrar suas referências menos na tradição dos autores decisivos que num campo de objetos perpetuamente oferecidos ao exame Do mesmo modo a escola tornase uma espécie de aparelho de exame ininterrupto que acompanha em todo o seu comprimento a operação do ensino Tratarseá cada vez menos daquelas justas em que os alunos defrontavam forças e cada vez mais de uma comparação perpétua de cada um com todos que permite ao mesmo tempo medir e sancionar Os Irmãos das Escolas Cristãs queriam que seus alunos fizessem provas de classificação todos os dias da semana o primeiro dia para a ortografia o segundo para a aritmética o terceiro para o catecismo da manhã e de tarde para a caligrafia etc Além disso devia haver uma prova todo mês para designar os que merecessem ser submetidos ao exame do inspetor20 Desde 1775 há na escola de Ponts et Chaussées 16 exames por ano 3 de matemática 3 de arquitetura 3 de desenho 2 de caligrafia 1 de corte de pedras 1 de estilo 1 de levantamento de planta 1 de nivelamento 1 de medição de edifícios21 O exame não se contenta em sancionar um aprendizado é um de seus fatores permanentes sustentao segundo um ritual de poder constantemente renovado O exame permite ao mestre ao mesmo tempo em que transmite seu saber levantar um campo de conhecimentos sobre seus alunos Enquanto que a prova com que terminava um aprendizado na tradição corporativa validava uma aptidão adquirida a obra prima autentificava uma transmissão de saber já feita o exame é na escola uma verdadeira e constante troca de saberes garante a passagem dos conhecimentos do mestre ao aluno mas retira do aluno um saber destinado e reservado ao mestre A escola tornase o local de elaboração da pedagogia E do mesmo modo como o processo do exame hospitalar permitiu a liberação epistemológica da medicina a era da escola examinatória marcou o início de uma pedagogia que funciona como ciência A era das inspeções e das manobras indefinidamente repetidas no exército marcou também o desenvolvimento de um imenso saber tático que teve efeito na época das guerras napoleônicas O exame supõe um mecanismo que liga um certo tipo de formação de saber a uma certa forma de exercício do poder 1 O exame inverte a economia da visibilidade no exercício do poder tradicionalmente o poder é o que se vê se mostra se manifesta e de maneira paradoxal encontra o princípio de sua força no movimento com o qual a exibe Aqueles sobre o qual ele é exercido podem ficar esquecidos só recebem luz daquela parte do poder que lhes é concedida ou do reflexo que mostram um instante O poder disciplinar ao contrário se exerce tornandose invisível em compensação impõe aos que submete um princípio de visibilidade obrigatória Na disciplina são os súditos que têm que ser vistos Sua iluminação assegura a garra do poder que se exerce sobre eles É o fato de ser visto sem cessar de sempre poder ser visto que mantém sujeito o indivíduo disciplinar E o exame é a técnica pela qual o poder em vez de emitir os sinais de seu poderio em vez de impor sua marca a seus súditos captaos num mecanismo de objetivação No espaço que domina o poder disciplinar manifesta para o essencial seu poderio organizando os objetos O exame vale como cerimônia dessa objetivação Até então o papel da cerimônia política fora dar lugar à manifestação ao mesmo tempo excessiva e regulamentada do poder era uma expressão suntuosa de poderio uma despesa ao mesmo tempo exagerada e codificada onde o poder se revigorava Era sempre mais ou menos aparentada ao triunfo A aparição solene do soberano trazia consigo qualquer coisa da consagração do coroamento do retorno da vitória até mesmo os faustos funerários se desenrolavam no brilho do poderio exibido Já a disciplina tem seu próprio tipo de cerimônia Não é o triunfo é a revista é a parada forma faustosa do exame Os súditos são aí oferecidos como objetos à observação de um poder que só se manifesta pelo olhar Não recebem diretamente a imagem do poderio soberano apenas mostram seus efeitos e por assim dizer em baixo relevo sobre seus corpos tornados exatamente legíveis e dóceis Em 15 de março de 1666 Luís XIV passa sua primeira revista militar 18000 homens uma das ações mais brilhantes do reino e que passava por ter mantido toda a Europa inquieta Muitos anos depois foi cunhada uma medalha para comemorar o acontecimento22 Traz no exergo Disciplina militaris restituta e na legenda Prolusio ad victorias À direita o rei com o pé direito para a frente comanda ele próprio o exercício com um bastão Na metade esquerda várias fileiras de soldados são vistos de frente e alinhados no sentido da profundidade eles estendem o braço na altura do ombro e seguram o fuzil exatamente na vertical avançam a perna direita e estão com o pé esquerdo voltado para fora No chão linhas se cortam em ângulo reto representando sob os pés dos soldados grandes quadrados que servem de referência para as diversas fases e posições do exercício Bem no fundo esboçase uma arquitetura clássica As colunas do palácio prolongam as constituídas pelos homens alinhados e pelos fuzis levantados como as lajes do calçamento prolongam as linhas do exercício Mas acima da balaustrada que coroa o edifício estátuas representam personagens que dançam linhas sinuosas gestos arredondados cortinados O mármore é percorrido por movimentos cujo princípio de unidade é harmônico Já os homens estão imobilizados numa atitude uniformemente repetida de fileira em fileira e de linha em linha unidade tática A ordem da arquitetura que liberta em seu topo as figuras de dança impõe no solo suas regras e geometria aos homens disciplinados As colunas do poder Bem dizia um dia o grãoduque Michel diante de quem as tropas haviam acabado de manobrar mas eles estão respirando23 Tomemos essa medalha como testemunho do momento em que se reúnem de maneira paradoxal mas significativa a figura mais brilhante do poder soberano e a emergência dos rituais próprios ao poder disciplinar A visibilidade mal sustentável do monarca se torna em visibilidade inevitável dos súditos E essa inversão de visibilidade no funcionamento das disciplinas é que realizará o exercício do poder até em seus graus mais baixos Entramos na era do exame interminável e da objetivação limitadora 2 O exame faz também a individualidade entrar num campo documentário Seu resultado é um arquivo inteiro com detalhes e minúcias que se constitui ao nível dos corpos e dos dias O exame que coloca os indivíduos num campo de vigilância situaos igualmente numa rede de anotações escritas comprometeos em toda uma quantidade de documentos que os captam e os fixam Os procedimentos de exame são acompanhados imediatamente de um sistema de registro intenso e de acumulação documentária Um poder de escrita é constituído como uma peça essencial nas engrenagens da disciplina Em muitos pontos modelase pelos métodos tradicionais da documentação administrativa Mas com técnicas particulares e inovações importantes Umas se referem aos métodos de identificação de assimilação ou de descrição Era esse o problema do exército onde urgia encontrar os desertores evitar as convocações repetidas corrigir as listas fictícias apresentadas pelos oficiais conhecer os serviços e o valor de cada um estabelecer com segurança o balanço dos desaparecidos e mortos Era esse o problema dos hospitais onde era preciso reconhecer os doentes expulsar os simuladores acompanhar a evolução das doenças verificar a eficácia dos tratamentos descobrir os casos análogos e os começos de epidemias Era o problema dos estabelecimentos de ensino onde era forçoso caracterizar a aptidão de cada um situar seu nível e capacidades indicar a utilização eventual que se pode fazer dele A função do registro é fornecer indicações de tempo e lugar dos hábitos das crianças de seu progresso na piedade no catecismo nas letras de acordo com o tempo na Escola seu espírito e critério que ele encontrará marcado desde sua recepção24 Daí a formação de uma série de códigos da individualidade disciplinar que permitem transcrever homogeneizandoos os traços individuais estabelecidos pelo exame código físico da qualificação código médico dos sintomas código escolar ou militar dos comportamentos e dos desempenhos Esses códigos eram ainda muito rudimentares em sua forma qualitativa ou quantitativa mas marcam o momento de uma primeira formalização do individual dentro de relações do poder As outras inovações da escrita disciplinar se referem à correlação desses elementos à acumulação dos documentos sua seriação à organização de campos comparativos que permitam classificar formar categorias estabelecer médias fixar normas Os hospitais do século XVIII foram particularmente grandes laboratórios para os métodos escriturários e documentários A manutenção dos registros sua especificação os modos de transcrição de uns para os outros sua circulação durante as visitas sua confrontação durante as reuniões regulares dos médicos e dos administradores a transmissão de seus dados a organismos de centralização ou no hospital ou no escritório central dos serviços hospitalares a contabilidade das doenças das curas dos falecimentos ao nível de um hospital de uma cidade e até da nação inteira fizeram parte integrante do processo pelo qual os hospitais foram submetidos ao regime disciplinar Entre as condições fundamentais de uma boa disciplina médica nos dois sentidos da palavra é preciso incluir os processos de escrita que permitem integrar mas sem que se percam os dados individuais em sistemas cumulativos fazer de maneira que a partir de qualquer registro geral se possa encontrar um indivíduo e que inversamente cada dado do exame individual possa repercutir nos cálculos de conjunto Graças a todo esse aparelho de escrita que o acompanha o exame abre duas possibilidades que são correlatas a constituição do indivíduo como objeto descritível analisável não contudo para reduzilo a traços específicos como fazem os naturalistas a respeito dos seres vivos mas para mantêlo em seus traços singulares em sua evolução particular em suas aptidões ou capacidades próprias sob o controle de um saber permanente e por outro lado a constituição de um sistema comparativo que permite a medida de fenômenos globais a descrição de grupos a caracterização de fatos coletivos a estimativa dos desvios dos indivíduos entre si sua distribuição numa população Importância decisiva conseqüentemente dessas pequenas técnicas de anotação de registro de constituição de processos de colocação em colunas que nos são familiares mas que permitiram a liberação epistemológica das ciências do indivíduo Sem dúvida temos razão em colocar o problema aristotélico é possível uma ciência do indivíduo e legítima Para um grande problema grandes soluções talvez Mas há o pequeno problema histórico da emergência pelo fim do século XVIII do que se poderia colocar sob a sigla de ciências clínicas problema da entrada do indivíduo e não mais da espécie no campo do saber problema da entrada de descrição singular do interrogatório da anamnese do processo no funcionamento geral do discurso científico Para essa simples questão de fato é preciso sem dúvida uma resposta sem grandeza é preciso ver o lado desses processos de escrita e de registro é preciso ver o lado dos mecanismos de exame o lado da formação dos dispositivos de disciplina e da formação de um novo tipo de poder sobre os corpos O nascimento das ciências do homem Aparentemente ele deve ser procurado nesses arquivos de pouca glória onde foi elaborado o jogo moderno das coerções sobre os corpos os gestos os comportamentos 3 O exame cercado de todas as suas técnicas documentárias faz de cada indivíduo um caso um caso que ao mesmo tempo constitui um objeto para o conhecimento e uma tomada para o poder O caso não é mais como na casuística ou na jurisprudência um conjunto de circunstâncias que qualificam um ato e podem modificar a aplicação de uma regra é o indivíduo tal como pode ser descrito mensurado medido comparado a outros e isso em sua própria individualidade e é também o indivíduo que tem que ser treinado ou retreinado tem que ser classificado normalizado excluído etc Durante muito tempo a individualidade qualquer a de baixo e de todo mundo permaneceu abaixo do limite de descrição Ser olhado observado contado detalhadamente seguido dia por dia por uma escrita ininterrupta era um privilégio A crônica de um homem o relato de sua vida sua historiografia redigida no desenrolar de sua existência faziam parte dos rituais do poderio Os procedimentos disciplinares reviram essa relação abaixando o limite da individualidade descritível e fazem dessa descrição um meio de controle e um método de dominação Não mais monumento para uma memória futura mas documento para uma utilização eventual E essa nova descritibilidade é ainda mais marcada porquanto é estrito o enquadramento disciplinar a criança o doente o louco o condenado se tornarão cada vez mais facilmente a partir do século XVIII e segundo uma via que é a dos mecanismos de disciplina objeto de descrições individuais e de relatos biográficos Esta transcrição por escrito das existências reais não é mais um processo de heroificação funciona como processo de objetivação e de sujeição A vida cuidadosamente estudada dos doentes mentais ou dos delinqüentes se origina como a crônica dos reis ou a epopéia dos grandes bandidos populares de uma certa função política da escrita mas numa técnica de poder totalmente diversa O exame como fixação ao mesmo tempo ritual e científica das diferenças individuais como aposição de cada um à sua própria singularidade em oposição à cerimônia onde se manifestam os status os nascimentos os privilégios as funções com todo o brilho de suas marcas indica bem a aparição de uma nova modalidade de poder em que cada um recebe como status sua própria individualidade e onde está estatutariamente ligado aos traços às medidas aos desvios às notas que o caracterizam e fazem dele de qualquer modo um caso Finalmente o exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder como efeito e objeto de saber É ele que combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora realiza as grandes funções disciplinares de repartição e classificação de extração máxima das forças e do tempo de acumulação genética contínua de composição ótima das aptidões Portanto de fabricação da individualidade celular orgânica genética e combinatória Com ele se ritualizam aquelas disciplinas que se pode caracterizar com uma palavra dizendo que são uma modalidade de poder para o qual a diferença individual é pertinente As disciplinas marcam o momento em que se efetua o que se poderia chamar a troca do eixo político da individualização Nas sociedades de que o regime feudal é apenas um exemplo podese dizer que a individualização é máxima do lado em que a soberania é exercida e nas regiões superiores do poder Quanto mais o homem é detentor de poder ou de privilégio tanto mais é marcado como indivíduo por rituais discursos ou representações plásticas O nome de família e a genealogia que situam dentro de um conjunto de parentes a realização de proezas que manifestam a superioridade das forças e que são imortalizadas por relatos as cerimônias que marcam por sua ordenação as relações de poder os monumentos ou as doações que dão uma outra vida depois da morte os faustos e os excessos da despesa os múltiplos laços de vassalagem e de suserania que se entrecruzam tudo isso constitui outros procedimentos de uma individualização ascendente Num regime disciplinar a individualização ao contrário é descendente à medida que o poder se torna mais anônimo e mais funcional aqueles sobre os quais se exerce tendem a ser mais fortemente individualizados e por fiscalizações mais que por cerimônias por observações mais que por relatos comemorativos por medidas comparativas que têm a norma como referência e não por genealogias que dão os ancestrais como pontos de referência por desvios mais que por proezas Num sistema de disciplina a criança é mais individualizada que o adulto o doente o é antes do homem são o louco e delinqüente mais que o normal e o nãodelinqüente É em direção aos primeiros em todo caso que se voltam em nossa civilização todos os mecanismos individualizantes e quando se quer individualizar o adulto são normal e legalista agora é sempre perguntandolhe o que ainda há nele de criança que loucura secreta o habita que crime fundamental ele quis cometer Todas as ciências análises ou práticas com radical psico têm seu lugar nessa troca histórica dos processos de individualização O momento em que passamos de mecanismos históricorituais de formação da individualidade a mecanismos científico disciplinares em que o normal tomou o lugar do ancestral e a medida o lugar do status substituindo assim a individualidade do homem memorável pela do homem calculável esse momento em que as ciências do homem se tornaram possíveis é aquele em que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma outra anatomia política do corpo E se da Idade Média mais remota até hoje a aventura é o relato da individualidade a passagem do épico ao romanesco do feito importante à singularidade secreta dos longos exílios à procura interior da infância das justas aos fantasmas se insere também na formação de uma sociedade disciplinar São as desgraças do pequeno Hans e não mais o bom Henriquinho que contam a aventura de nossa infância O Roman de La Rose é escrito hoje em dia por Mary Barnes no lugar de Lancelot o presidente Schreber Muitas vezes se afirma que o modelo de uma sociedade que teria indivíduos como elementos constituintes é tomada às formas jurídicas abstratas do contrato e da troca A sociedade comercial se teria representado como uma associação contratual de sujeitos jurídicos isolados Talvez A teoria política dos séculos XVII e XVIII parece com efeito obedecer a esse esquema Mas não se deve esquecer que existiu na mesma época uma técnica para constituir efetivamente os indivíduos como elementos correlates de um poder e de um saber O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação ideológica da sociedade mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama a disciplina Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos ele exclui reprime recalca censura abstrai mascara esconde Na verdade o poder produz ele produz realidade produz campos de objetos e rituais da verdade O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção Mas emprestar tal poderio às astúcias muitas vezes minúsculas da disciplina não seria lhes conceder muito De onde podem elas tirar tão vastos efeitos CAPÍTULO III O PANOPTISMO Eis as medidas que se faziam necessárias segundo um regulamento do fim do século XVII quando se declarava a peste numa cidade1 Em primeiro lugar um policiamento espacial estrito fechamento claro da cidade e da terra proibição de sair sob pena de morte fim de todos os animais errantes divisão da cidade em quarteirões diversos onde se estabelece o poder de um intendente Cada rua é colocada sob a autoridade de um síndico ele a vigia se a deixar será punido de morte No dia designado ordenase todos que se fechem em suas casas proibido sair sob pena de morte O próprio síndico vem fechar por fora a porta de cada casa leva a chave que entrega ao intendente de quarteirão este a conserva até o fim da quarentena Cada família terá feito suas provisões mas para o vinho e o pão se terá preparado entre a rua e o interior das casas pequenos canais de madeira que permitem fazer chegar a cada um sua ração sem que haja comunicação entre os fornecedores e os habitantes para a carne o peixe e as verduras utilizamse roldanas e cestas Se for absolutamente necessário sair das casas tal se fará por turnos e evitandose qualquer encontro Só circulam os intendentes os síndicos os soldados da guarda e também entre as casas infectadas de um cadáver ao outro os corvos que tanto faz abandonar à morte é gente vil que leva os doentes enterra os mortos limpa e faz muitos ofícios vis e abjetos Espaço recortado imóvel fixado Cada qual se prende a seu lugar E caso se mexa corre perigo de vida por contágio ou punição A inspeção funciona constantemente O olhar está alerta em toda parte Um corpo de milícia considerável comandado por bons oficiais e gente de bem corpos de guarda nas portas na prefeitura e em todos os bairros para tornar mais pronta a obediência do povo e mais absoluta a autoridade dos magistrados assim como para vigiar todas as desordens roubos e pilhagens Às portas postos de vigilância no fim de cada rua sentinelas Todos os dias o intendente visita o quarteirão de que está encarregado verifica se os síndicos cumprem suas tarefas se os habitantes têm queixas eles fiscalizam seus atos Todos os dias também o síndico passa na rua por que é responsável pára diante de cada casa manda colocar todos os moradores às janelas os que habitassem nos fundos teriam designada uma janela dando para a rua onde ninguém mais poderia se mostrar chama cada um por seu nome informa se do estado de todos um por um no que os habitantes serão obrigados a dizer a verdade sob pena de morte se alguém não se apresentar à janela o síndico deve perguntar a razão Ele assim descobrirá facilmente se escondem mortos ou doentes Cada um trancado em sua gaiola cada um à sua janela respondendo a seu nome e se mostrando quando é perguntado é a grande revista dos mortos e dos vivos Essa vigilância se apóia num sistema de registro permanente relatórios dos síndicos aos intendentes dos intendentes aos almotacés ou ao prefeito No começo da apuração se estabelece o papel de todos os habitantes presentes na cidade um por um nela se anotam o nome a idade o sexo sem exceção de condição um exemplar para o intendente do quarteirão um segundo no escritório da prefeitura um outro para o síndico poder fazer a chamada diária Tudo o que é observado durante as visitas mortes doenças reclamações irregularidades é anotado e transmitido aos intendentes e magistrados Estes têm o controle dos cuidados médicos e um médico responsável nenhum outro médico pode cuidar nenhum boticário preparar os remédios nenhum confessor visitar um doente sem ter recebido dele um bilhete escrito para impedir que se escondam e se tratem à revelia dos magistrados doentes do contágio O registro do patológico deve ser constante e centralizado A relação de cada um com sua doença e sua morte passa pelas instâncias do poder pelo registro que delas é feito pelas decisões que elas tomam Cinco ou seis dias depois do começo da quarentena procedese à purificação das casas uma por uma Mandase sair todos os moradores em cada cômodo levantamse ou penduramse os móveis e as mercadorias espalhase perfume ele é queimado depois de bem fechadas as janelas as portas e até os buracos de fechadura que se enche de cera Finalmente fechase a casa inteira enquanto se consome o perfume como na entrada revistamse os perfumadores na presença dos moradores da casa para ver se eles não têm à saída qualquer coisa que não tivessem ao entrar Quatro horas depois os moradores podem entrar em casa Esse espaço fechado recortado vigiado em todos os seus pontos onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo onde os menores movimentos são controlados onde todos os acontecimentos são registrados onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia onde o poder é exercido sem divisão segundo uma figura hierárquica contínua onde cada indivíduo é constantemente localizado examinado e distribuído entre os vivos os doentes e os mortos isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar A ordem responde à peste ela tem como função desfazer todas as confusões a da doença que se transmite quando os corpos se misturam a do mal que se multiplica quando o medo e a morte desfazem as proibições Ela prescreve a cada um seu lugar a cada um seu corpo a cada um sua doença e sua morte a cada um seu bem por meio de um poder onipresente e onisciente que se subdivide ele mesmo de maneira regular e ininterrupta até a determinação final do indivíduo do que o caracteriza do que lhe pertence o do que lhe acontece Contra a peste que é mistura a disciplina faz valer seu poder que é de análise Houve em torno da peste uma ficção literária da festa as leis suspensas os interditos levantados o frenesi do tempo que passa os corpos se misturando sem respeito os indivíduos que se desmascaram que abandonam sua identidade estatutária e a figura sob a qual eram reconhecidos deixando aparecer uma verdade totalmente diversa Mas houve também um sonho político da peste que era exatamente o contrário não a festa coletiva mas as divisões estritas não as leis transgredidas mas a penetração do regulamento até nos mais finos detalhes da existência e por meio de uma hierarquia completa que realiza o funcionamento capilar do poder não as máscaras que se colocam e se retiram mas a determinação a cada um de seu verdadeiro nome de seu verdadeiro lugar de seu verdadeiro corpo e da verdadeira doença A peste como forma real e ao mesmo tempo imaginária da desordem tem a disciplina como correlato médico e político Atrás dos dispositivos disciplinares se lê o terror dos contágios da peste das revoltas dos crimes da vagabundagem das deserções das pessoas que aparecem e desaparecem vivem e morrem na desordem Se é verdade que a lepra suscitou modelos de exclusão que deram até um certo ponto o modelo e como que a forma geral do grande Fechamento já a peste suscitou esquemas disciplinares Mais que a divisão maciça e binária entre uns e outros ela recorre a separações múltiplas a distribuições individualizantes a uma organização aprofundada das vigilâncias e dos controles a uma intensificação e ramificação do poder O leproso é visto dentro de uma prática da rejeição do exíliocerca deixase que se perca lá dentro como numa massa que não tem muita importância diferenciar os pestilentos são considerados num policiamento tático meticuloso onde as diferenciações individuais são os efeitos limitantes de um poder que se multiplica se articula e se subdivide O grande fechamento por um lado o bom treinamento por outro A lepra e sua divisão a peste e seus recortes Uma é marcada a outra analisada e repartida O exílio do leproso e a prisão da peste não trazem consigo o mesmo sonho político Um é o de uma comunidade pura o outro o de uma sociedade disciplinar Duas maneiras de exercer poder sobre os homens de controlar suas relações de desmanchar suas perigosas misturas A cidade pestilenta atraves sada inteira pela hierarquia pela vigilância pelo olhar pela documentação a cidade imobilizada no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre todos os corpos individuais é a utopia da cidade perfeitamente governada A peste pelo menos aquela que permanece no estado de previsão é a prova durante a qual se pode definir idealmente o exercício do poder disciplinar Para fazer funcionar segundo a pura teoria os direitos e as leis os juristas se punham imaginariamente no estado de natureza para ver funcionar suas disciplinas perfeitas os governantes sonhavam com o estado de peste No fundo dos esquemas disciplinares a imagem da peste vale por todas as confusões e desordens assim como a imagem da lepra do contato a ser cortado está no fundo do esquema de exclusão Esquemas diferentes portanto mas não incompatíveis Lentamente vemolos se aproximarem e é próprio do século XIX ter aplicado ao espaço de exclusão de que o leproso era o habitante simbólico e os mendigos os vagabundos os loucos os violentos formavam a população real a técnica de poder própria do quadriculamento disciplinar Tratar os leprosos como pestilentos projetar recortes finos da disciplina sobre o espaço confuso do internamente trabalhálo com os métodos de repartição analítica do poder individualizar os excluídos mas utilizar processos de individualização para marcar exclusões isso é o que foi regularmente realizado pelo poder disciplinar desde o começo do século XIX o asilo psiquiátrico a penitenciária a casa de correção o estabelecimento de educação vigiada e por um lado os hospitais de um modo geral todas as instâncias de controle individual funcional num duplo modo o da divisão binária e da marcação louco não louco perigosoinofensivo normalanormal e o da determinação coercitiva da repartição diferencial quem é ele onde deve estar como caracterizálo como reconhecêlo como exercer sobre ele de maneira individual uma vigilância constante etc De um lado pestilentamse os leprosos impõemse aos excluídos a tática das disciplinas individualizantes e de outro lado a universalidade dos controles disciplinares permite marcar quem é leproso e fazer funcionar contra ele os mecanismos dualistas da exclusão A divisão constante do normal e do anormal a que todo indivíduo é submetido leva até nós e aplicandoos a objetos totalmente diversos a marcação binária e o exílio dos leprosos a existência de todo um conjunto de técnicas e de instituições que assumem como tarefa medir controlar e corrigir os anormais faz funcionar os dispositivos disciplinares que o medo da peste chamava Todos os mecanismos de poder que ainda em nossos dias são dispostos em torno do anormal para marcálo como para modificálo compõem essas duas formas de que longinquamente derivam O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição O princípio é conhecido na periferia uma construção em anel no centro uma torre esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel a construção periférica é dividida em celas cada uma atravessando toda a espessura da construção elas têm duas janelas uma para o interior correspondendo às janelas da torre outra que dá para o exterior permite que a luz atravesse a cela de lado a lado Basta então colocar um vigia na torre central e em cada cela trancar um louco um doente um condenado um operário ou um escolar Pelo efeito da contraluz podese perceber da torre recortandose exatamente sobre a claridade as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia Tantas jaulas tantos pequenos teatros em que cada ator está sozinho perfeitamente individualizado e constantemente visível O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente Em suma o princípio da masmorra é invertido ou antes de suas três funções trancar privar de luz e esconder só se conserva a primeira e suprimemse as outras duas A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra que finalmente protegia A visibilidade é uma armadilha O que permite em primeiro lugar como efeito negativo evitar aquelas massas compactas fervilhantes pululantes que eram encontradas nos locais de encarceramento os pintados por Goya ou descritos por Howard Cada um em seu lugar está bem trancado em sua cela de onde é visto de frente pelo vigia mas os muros laterais impedem que entre em contato com seus companheiros É visto mas não vê objeto de uma informação nunca sujeito numa comunicação A disposição de seu quarto em frente da torre central lhe impõe uma visibilidade axial mas as divisões do anel essas celas bem separadas implicam uma invisibilidade lateral E esta é a garantia da ordem Se os detentos são condenados não há perigo de complô de tentativa de evasão coletiva projeto de novos crimes para o futuro más influências recíprocas se são doentes não há perigo de contágio loucos não há risco de violências recíprocas crianças não há cola nem barulho nem conversa nem dissipação Se são operários não há roubos nem conluios nada dessas distrações que atrasam o trabalho tornamno menos perfeito ou provocam acidentes A multidão massa compacta local de múltiplas trocas individualidades que se fundem efeito coletivo é abolida em proveito de uma coleção de individualidades separadas Do ponto de vista do guardião é substituída por uma multiplicidade enumerável e controlável do ponto de vista dos detentos por uma solidão seqüestrada e olhada2 Daí o efeito mais importante do Panóptico induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos mesmo se é descontínua em sua ação que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce enfim que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores Para isso é ao mesmo tempo excessivo e muito pouco que o prisioneiro seja observado sem cessar por um vigia muito pouco pois o essencial é que ele se saiba vigiado excessivo porque ele não tem necessidade de sêlo efetivamente Por isso Bentham colocou o princípio de que o poder devia ser visível e inverificável Visível sem cessar o detento terá diante dos olhos a alta silhueta da torre central de onde é espionado Inverificável o detento nunca deve saber se está sendo observado mas deve ter certeza de que sempre pode sêlo Para tornar indecidível a presença ou a ausência do vigia para que os prisioneiros de suas celas não pudessem nem perceber uma sombra ou enxergar uma contraluz previu Bentham não só persianas nas janelas da sala central de vigia mas por dentro separações que a cortam em ângulo reto e para passar de um quarto a outro não portas mas biombos pois a menor batida uma luz entrevista uma claridade numa abertura trairiam a presença do guardião3 O Panóptico é uma máquina de dissociar o par verser visto no anel periférico se é totalmente visto sem nunca ver na torre central vêse tudo sem nunca ser visto4 Dispositivo importante pois automatiza e desindividualiza o poder Este tem seu princípio não tanto numa pessoa quanto numa certa distribuição concertada dos corpos das superfícies das luzes dos olhares numa aparelhagem cujos mecanismos internos produzem a relação na qual se encontram presos os indivíduos As cerimônias os rituais as marcas pelas quais se manifesta no soberano o maispoder são inúteis Há uma maquinaria que assegura a dissimetria o desequilíbrio a diferença Pouco importa conseqüentemente quem exerce o poder Um indivíduo qualquer quase tomado ao acaso pode fazer funcionar a máquina na falta do diretor sua família os que o cercam seus amigos suas visitas até seus criados5 Do mesmo modo que é indiferente o motivo que o anima a curiosidade de um indiscreto a malícia de uma criança o apetite de saber de um filósofo que quer percorrer esse museu da natureza humana ou a maldade daqueles que têm prazer em espionar e em punir Quanto mais numerosos esses observadores anônimos e passageiros tanto mais aumentam para o prisioneiro o risco de ser surpreendido e a consciência inquieta de ser observado O Panóptico é uma máquina maravilhosa que a partir dos desejos mais diversos fabrica efeitos homogêneos de poder Uma sujeição real nasce mecanicamente de uma relação fictícia De modo que não é necessário recorrer à força para obrigar o condenado ao bom comportamento o louco à calma o operário ao trabalho o escolar à aplicação o doente à observância das receitas Bentham se maravilha de que as instituições panópticas pudessem ser tão leves fim das grades fim das correntes fim das fechaduras pesadas basta que as separações sejam nítidas e as aberturas bem distribuídas O peso das velhas casas de segurança com sua arquitetura de fortaleza é substituído pela geometria simples e econômica de uma casa de certeza A eficácia do poder sua força limitadora passaram de algum modo para o outro lado para o lado de sua superfície de aplicação Quem está submetido a um campo de visibilidade e sabe disso retoma por sua conta as limitações do poder fálas funcionar espontaneamente sobre si mesmo inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis tornase o princípio de sua própria sujeição Em conseqüência disso mesmo o poder externo por seu lado podese aliviar de seus fardos físicos tende ao incorpóreo e quanto mais se aproxima desse limite mais esses efeitos são constantes profundos adquiridos em caráter definitivo e continuamente recomeçados vitória perpétua que evita qualquer defrontamento físico e está sempre decidida por antecipação Bentham não diz se se inspirou em seu projeto no zoológico que Le Vaux construíra em Versalhes primeiro zoológico cujos elementos não estão como tradicionalmente espalhados em um parque6 no centro um pavilhão octogonal que no primeiro andar só comportava uma peça o salão do rei todos os lados se abriam com largas janelas sobre sete jaulas o oitavo lado estava reservado para a entrada onde estavam encerradas diversas espécies de animais Na época de Bentham esse zoológico desaparecera Mas encontramos no programa do Panóptico a preocupação análoga da observação individualizante da caracterização e da classificação da organização analítica da espécie O Panóptico é um zoológico real o animal é substituído pelo homem a distribuição individual pelo grupamento específico e o rei pela maquinaria de um poder furtivo Fora essa diferença o Panóptico também faz um trabalho de naturalista Permite estabelecer as diferenças nos doentes observar os sintomas de cada um sem que a proximidade dos leitos a circulação dos miasmas os efeitos do contágio misturem os quadros clínicos nas crianças anotar os desempenhos sem que haja limitação ou cópia perceber as aptidões apreciar os caracteres estabelecer classificações rigorosas e em relação a uma evolução normal distinguir o que é preguiça e teimosia do que é imbecilidade incurável nos operários anotar as aptidões de cada um comparar o tempo que levam para fazer um serviço e se são pagos por dia calcular seu salário em vista disso7 Este é um dos aspectos Por outro lado o Panóptico pode ser utilizado como máquina de fazer experiências modificar o comportamento treinar ou retreinar os indivíduos Experimentar remédios e verificar seus efeitos Tentar diversas punições sobre os prisioneiros segundo seus crimes e temperamento e procurar as mais eficazes Ensinar simultaneamente diversas técnicas aos operários estabelecer qual é a melhor Tentar experiências pedagógicas e particularmente abordar o famoso problema da educação reclusa usando crianças encontradas verseia o que acontece quando aos dezesseis ou dezoito anos rapazes e moças se encontram poderseia verificar se como pensa Helvetius qualquer pessoa pode aprender qualquer coisa poderseia acompanhar a genealogia de qualquer idéia observável criar diversas crianças em diversos sistemas de pensamento fazer alguns acreditarem que dois e dois não são quatro e que a lua é um queijo depois juntálos todos quando tivessem vinte ou vinte e cinco anos haveria então discussões que valeriam bem os sermões ou as conferências para as quais se gasta tanto dinheiro haveria pelo menos ocasião de fazer descobertas no campo da metafísica O Panóptico é um local privilegiado para tornar possível a experiência com homens e para analisar com toda certeza as transformações que se pode obter neles O Panóptico pode até constituirse em aparelho de controle sobre seus próprios mecanismos Em sua torre de controle o diretor pode espionar todos os empregados que tem a seu serviço enfermeiros médicos contramestres professores guardas poderá julgálos continuamente modificar seu comportamento imporlhes métodos que considerar melhores e ele mesmo por sua vez poderá ser facilmente observado Um inspetor que surja sem avisar no centro do Panóptico julgará com uma única olhadela e sem que se possa esconder nada dele como funciona todo o estabelecimento E aliás fechado como está no meio desse dispositivo arquitetural o diretor não está comprometido com ele O médico incompetente que tiver deixado o contágio se espalhar o diretor de prisão ou de oficina que tiver sido inábil serão as primeiras vítimas da epidemia ou da revolta Meu destino diz o mestre do Panóptico está ligado ao deles ao dos detentos por todos os laços que pude inventar8 O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder Graças a seus mecanismos de observação ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este se exerça Cidade pestilenta estabelecimento panóptico as diferenças são importantes Elas marcam com um século e meio de distância as transformações do programa disciplinar Num caso um situação de exceção contra um mal extraordinário o poder se levanta tornase em toda parte presente e visível inventa novas engrenagens compartimenta imobiliza quadricula constrói por algum tempo o que é ao mesmo tempo a contracidade e a sociedade perfeita impõe um funcionamento ideal mas que no fim das contas se reduz como o mal que combate ao dualismo simples vidamorte o que se mexe traz a morte e matase o que se mexe O Panóptico ao contrário deve ser compreendido como um modelo generalizável de funcionamento uma maneira de definir as relações do poder com a vida cotidiana dos homens Bentham sem dúvida o apresenta como uma instituição particular bem fechada em si mesma Muitas vezes se fez dele uma utopia do encarceramento perfeito Diante das prisões arruinadas fervilhantes e povoadas de suplícios gravadas por Piranese o Panóptico aparece como jaula cruel e sábia O fato de ele ter até nosso tempo dado lugar a tantas variações projetadas ou realizadas mostra qual foi durante quase dois séculos sua intensidade imaginária Mas o Panóptico não deve ser compreendido como um edifício onírico é o diagrama de um mecanismo de poder levado à sua forma ideal seu funcionamento abstraindose de qualquer obstáculo resistência ou desgaste pode ser bem representado como um puro sistema arquitetural e óptico é na realidade uma figura de tecnologia política que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico É polivalente em suas aplicações serve para emendar os prisioneiros mas também para cuidar dos doentes instruir os escolares guardar os loucos fiscalizar os operários fazer trabalhar os mendigos e ociosos É um tipo de implantação dos corpos no espaço de distribuição dos indivíduos em relação mútua de organização hierárquica de disposição dos centros e dos canais de poder de definição de seus instrumentos e de modos de intervenção que se podem utilizar nos hospitais nas oficinas nas escolas nas prisões Cada vez que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve impor uma tarefa ou um comportamento o esquema panóptico poderá ser utilizado Ele é ressalvadas as modificações necessárias aplicável a todos os estabelecimentos onde nos limites de um espaço que não é muito extenso é preciso manter sob vigilância um certo número de pessoas9 Em cada uma de suas aplicações permite aperfeiçoar o exercício do poder E isto de várias maneiras porque pode reduzir o número dos que o exercem ao mesmo tempo em que multiplica o número daqueles sobre os quais é exercido Porque permite intervir a cada momento e a pressão constante age antes mesmo que as faltas os erros os crimes sejam cometidos Porque nessas condições sua força é nunca intervir é se exercer espontaneamente e sem ruído é constituir um mecanismo de efeitos em cadeia Porque sem outro instrumento físico que uma arquitetura e uma geometria ele age diretamente sobre os indivíduos dá ao espírito poder sobre o espírito O esquema panóptico é um intensificador para qualquer aparelho de poder assegura sua economia em material em pessoal em tempo assegura sua eficácia por seu caráter preventivo seu funcionamento contínuo e seus mecanismos automáticos É uma maneira de obter poder numa quantidade até então sem igual um grande e novo instrumento de governo sua excelência consiste na grande força que é capaz de dar a qualquer instituição a que seja aplicado10 Uma espécie de ovo de Colombo na ordem da política Ele é capaz com efeito de vir se integrar a uma função qualquer de educação de terapêutica de produção de castigo de aumentar essa função ligandose intimamente a ela de constituir um mecanismo misto no qual as relações de poder e de saber podemse ajustar exatamente e até nos detalhes aos processos que é preciso controlar de estabelecer uma proporção direta entre o maispoder e a maisprodução Em suma faz com que o exercício do poder não se acrescente de fora como uma limitação rígida ou como um peso sobre as funções que investe mas que esteja nelas presente bastante sutilmente para aumentarlhes a eficácia aumentando ele mesmo seus próprios pontos de apoio O dispositivo panóptico não é simplesmente uma charneira um local de troca entre um mecanismo de poder e uma função é uma maneira de fazer funcionar relações de poder numa função e uma função para essas relações de poder O panoptismo é capaz de reformar a moral preservar a saúde revigorar a indústria difundir a instrução aliviar os encargos públicos estabelecer a economia como que sobre um rochedo desfazer em vez de cortar o nó górdio das leis sobre os pobres tudo isso com uma simples idéia arquitetural11 Além disso o arranjo dessa máquina é tal que seu fechamento não exclui uma presença permanente do exterior vimos que qualquer pessoa pode vir exercer na torre central as funções de vigilância e que fazendo isso pode adivinhar a maneira como é exercida a vigilância Na realidade qualquer instituição panóptica mesmo que seja tão cuidadosamente fechada quanto uma penitenciária poderá sem dificuldade ser submetida a essas inspeções ao mesmo tempo aleatórias e incessantes e isso não só por parte dos controladores designados mas por parte do público qualquer membro da sociedade terá direito de vir constatar com seus olhos como funcionam as escolas os hospitais as fábricas as prisões Não há conseqüentemente risco de que o crescimento de poder devido à máquina panóptica possa degenerar em tirania o dispositivo disciplinar será democraticamente controlado pois será sem cessar acessível ao grande comitê do tribunal do mundo12 Esse panóptico sutilmente arranjado para que um vigia possa observar com uma olhadela tantos indivíduos diferentes permite também a qualquer pessoa vigiar o menor vigia A máquina de ver é uma espécie de câmara escura em que se espionam os indivíduos ela tornase um edifício transparente onde o exercício do poder é controlável pela sociedade inteira O esquema panóptico sem se desfazer nem perder nenhuma de suas propriedades é destinado a se difundir no corpo social tem por vocação tornarse aí uma função generalizada A cidade pestilenta dava um modelo disciplinar excepcional perfeito mas absolutamente violento à doença que trazia a morte o poder opunha sua perpétua ameaça de morte a vida nela se reduzia a sua expressão mais simples era contra o poder da morte o exercício minucioso do direito de gládio O Panóptico ao contrário tem um papel de amplificação se organiza o poder não é pelo próprio poder nem pela salvação imediata de uma sociedade ameaçada o que importa é tornar mais fortes as forças sociais aumentar a produção desenvolver a economia espalhar a instrução elevar o nível da moral pública fazer crescer e multiplicar Como reforçar esse poder de tal maneira que longe de atrapalhar esse processo longe de pesar sobre ele com suas exigências e seu peso ele ao contrário o facilite Que intensificador de poder poderá ao mesmo tempo ser um multiplicador de produção Como o poder aumentando suas forças poderá fazer crescer as da sociedade em vez de confiscálas ou freálas A solução do Panóptico para esse problema é que a majoração produtiva do poder só pode ser assegurada se por um lado ele tem possibilidade de se exercer de maneira contínua nos alicerces da sociedade até seu mais fino grão e se por outro lado ele funciona fora daquelas formas súbitas violentas descontínuas que estão ligadas ao exercício da soberania O corpo do rei com sua estranha presença material e mítica com a força que ele mesmo exibe ou transmite a alguns está no extremo oposto dessa nova física do poder definida pelo panoptismo seu campo é ao contrário toda aquela região de baixo a dos corpos irregulares com seus detalhes seus movimentos múltiplos suas forças heterogêneas suas relações espaciais são mecanismos que analisam distribuições desvios séries combinações e utilizam instrumentos para tornar visível registrar diferenciar e comparar física de um poder relacionai e múltiplo que tem sua intensidade máxima não na pessoa do rei mas nos corpos que essas relações justamente permitem individualizar Ao nível teórico Bentham define outra maneira de analisar o corpo social e as relações de poder que o atravessam em termos de prática ele define um processo de subordinação dos corpos e das forças que a utilidade do poder deve majorar fazendo a economia do Príncipe O panoptismo é o princípio geral de uma nova anatomia política cujo objeto e fim não são a relação de soberania mas as relações de disciplina Na famosa jaula transparente e circular com sua torre alta potente e sábia será talvez o caso para Bentham de projetar uma instituição disciplinar perfeita mas também importa mostrar como se pode destrancar as disciplinas e fazêlas funcionar de maneira difusa múltipla polivalente no corpo social inteiro Essas disciplinas que a era clássica elabora em locais precisos e relativamente fechados casernas colégios grandes oficinas e cuja utilização global só fora imaginada na escala limitada e provisória de uma cidade em estado de peste Bentham sonha fazer delas uma rede de dispositivos que estariam em toda parte e sempre alertas percorrendo a sociedade sem lacuna nem interrupção O arranjo panóptico dá a fórmula dessa generalização Ele programa ao nível de um mecanismo elementar e facilmente transferível o funcionamento de base de uma sociedade toda atravessada e penetrada por mecanismos disciplinares Duas imagens portanto da disciplina Num extremo a disciplinabloco a instituição fechada estabelecida à margem e toda voltada para funções negativas fazer parar o mal romper as comunicações suspender o tempo No outro extremo com o panoptismo temos a disciplinamecanismo um dispositivo funcional que deve melhorar o exercício do poder tornandoo mais rápido mais leve mais eficaz um desenho das coerções sutis para uma sociedade que está por vir O movimento que vai de um projeto ao outro de um esquema da disciplina de exceção ao de uma vigilância generalizada repousa sobre uma transformação histórica a extensão progressiva dos dispositivos de disciplina ao longo dos séculos XVII e XVIII sua multiplicação através de todo o corpo social a formação do que se poderia chamar grosso modo a sociedade disciplinar Realizouse uma generalização disciplinar atestada pela física benthamiana do poder no decorrer da era clássica Comprovao a multiplicação das instituições de disciplina com sua rede que começa a cobrir uma superfície cada vez mais vasta e principalmente a ocupar um lugar cada vez menos marginal o que era ilha local privilegiado medida circunstancial ou modelo singular tornase fórmula geral as regulamentações características dos exércitos protestantes e piedosos de Guilherme de Orange ou de Gustavo Adolfo se transformaram em regulamentos para todos os exércitos da Europa os colégios modelos dos jesuítas ou as escolas de Batencour e de Demia depois da de Sturm esboçam as formas gerais da disciplina escolar a ordem estabelecida nos hospitais Marítimos e militares serve de esquema para toda a reorganização hospitalar do século XVIII Mas essa extensão das instituições disciplinares não passa sem dúvida do aspecto mais visível de diversos processos mais profundos 1 A inversão funcional das disciplinas originalmente cabialhes princi palmente neutralizar os perigos fixar as populações inúteis ou agitadas evitar os inconvenientes de reuniões muito numerosas agora se lhes atribui pois se tornaram capazes disso o papel positivo de aumentar a utilidade possível dos indivíduos A disciplina militar não é mais um simples meio de impedir a pilhagem a deserção ou a desobediência das tropas tornase uma técnica de base para que o exército exista não mais como uma multidão ajustada mas como uma unidade que tira dessa mesma unidade uma majoração de forças a disciplina faz crescer a habilidade de cada um coordena essas habilidades acelera os movimentos multiplica a potência de fogo alarga as frentes de ataque sem lhes diminuir o vigor aumenta as capacidades de resistência etc A disciplina de oficina sem deixar de ser uma maneira de fazer respeitar os regulamentos e as autoridades de impedir os roubos ou a dissipação tende a fazer crescer as aptidões as velocidades os rendimentos e portanto os lucros ela continua a moralizar as condutas mas cada vez mais ela modela os comportamentos e faz os corpos entrar numa máquina as forças numa economia Quando no século XVII se desenvolveram as escolas de província ou as escolas cristãs elementares as justificações dadas eram principalmente negativas os pobres não tendo recursos para educar os filhos deixavamnos na ignorância de suas obrigações e entregues ao simples cuidado de viver e tendo eles mesmos sido mal educados não podem comunicar uma boa educação que jamais tiveram o que acarreta três inconvenientes ponderáveis a ignorância de Deus a preguiça com todo o seu cortejo de bebedeira de impureza de furtos de banditismo e a formação dessas tropas de mendigos sempre prontos a provocar desordens públicas e que só servem para esgotar os fundos do HôtelDieu13 Mas no começo da Revolução a finalidade prescrita ao ensino primário será entre outras coisas fortificar desenvolver o corpo dispor a criança para qualquer trabalho mecânico no futuro darlhe uma capacidade de visão rápida e global uma mão firme hábitos rápidos14 As disciplinas funcionam cada vez mais como técnicas que fabricam indivíduos úteis Daí se libertarem elas de sua posição marginal nos confins da sociedade e se destacarem das formas de exclusão ou de expiação de encarceramento ou retiro Daí desfazerem elas lentamente seu parentesco com as regularidades e os muros religiosos Daí também tenderem a se implantar nos setores mais importantes mais centrais mais produtivos da sociedade e se fixarem em algumas das grandes funções essenciais na produção manufatureira na transmissão de conhecimentos na difusão das aptidões e do knowhow no aparelho de guerra Daí enfim a dupla tendência que vemos se desenvolver no decorrer do século XVIII de multiplicar o número das instituições de disciplina e de disciplinar os aparelhos existentes 2 A ramificação dos mecanismos disciplinares enquanto por um lado os estabelecimentos de disciplina se multiplicam seus mecanismos têm uma certa tendência a se desinstitucionalizar a sair das fortalezas fechadas onde funcionavam e a circular em estado livre as disciplinas maciças e compactas se decompõem em processos flexíveis de controle que se pode transferir e adaptar Às vezes são os aparelhos fechados que acrescentam à sua função interna e específica um papel de vigilância externa desenvolvendo uma margem de controles laterais Assim a escola cristã não deve simplesmente formar crianças dóceis deve também permitir vigiar os pais informarse de sua maneira de viver seus recursos sua piedade seus costumes A escola tende a constituir minúsculos observatórios sociais para penetrar até nos adultos e exercer sobre eles um controle regular o mau comportamento de uma criança ou sua ausência é um pretexto legítimo segundo Demia para se ir interrogar os vizinhos principalmente se há razão para se pensar que a família não dirá a verdade depois os próprios pais para verificar se eles sabem o catecismo e as orações se estão decididos a arrancar os vícios das crianças quantas camas há e como eles se repartem nelas durante a noite a visita termina eventualmente com uma esmola o presente de uma imagem ou a doação de camas suplementares15 Da mesma maneira o hospital é concebido cada vez mais como ponto de apoio para a vigilância médica da população externa depois do incêndio do HôtelDieu em 1772 muita gente pede que se substituam os grandes estabelecimentos tão pesados e desorganizados por uma série de hospitais de pequena dimensão teriam por função recolher os doentes do bairro mas também reunir informações tomar conta dos fenômenos endêmicos ou epidêmicos abrir dispensários dar conselhos aos moradores e manter as autoridades a par do estado sanitário da região16 Vemos também se difundirem os procedimentos disciplinares não a partir de instituições fechadas mas de focos de controle disseminados na sociedade Grupos religiosos associações de beneficência muito tempo desempenharam esse papel de disciplinamento da população Desde a ContraReforma até à filantropia da monarquia de julho multiplicaramse iniciativas desse tipo tinham objetivos religiosos a conversão e a moralização econômicos o socorro e a incitação ao trabalho ou políticos tratavase de lutar contra o descontentamento ou a agitação Que seja suficiente citar a título de exemplo os regulamentos para as companhias de caridade das paróquias parisienses O território a cobrir está dividido em bairros e cantões que são repartidos pelos membros da companhia Estes têm que visitálos regularmente Eles trabalharão para impedir os maus locais tabacarias academias jogos escândalos públicos blasfêmias impiedades e outras desordens que possam chegar a seu conhecimento Terão também que fazer visitas individuais aos pobres e os pontos de informação são precisados no regulamento estabilidade de habitação conhecimento das orações freqüência aos sacramentos conhecimento de um ofício moralidade e se não caíram na pobreza por sua culpa enfim é preciso se informar direito de que maneira se comportam em casa se mantêm paz entre si e com os vizinhos se têm o cuidado de criar os filhos no temor de Deus se não deitam os filhos crescidos de sexo diferente juntos e com eles se não há libertinagem e carícias nas famílias principalmente para com as filhas crescidas Se há dúvida de que sejam casados é preciso pedirlhes uma certidão de casamento17 3 A estatização dos mecanismos de disciplina na Inglaterra foram grupos privados de inspiração religiosa que muito tempo realizaram as funções de disciplina social18 Na França se uma parte desse papel ficou nas mãos das sociedades de patronatos ou de auxílio outra e sem dúvida a mais considerável foi muito cedo ocupada pelo sistema policial A organização de uma polícia centralizada durante muito tempo foi considerada pelos contemporâneos como a expressão mais direta do absolutismo real o soberano quisera ter um magistrado a quem pudesse confiar diretamente suas ordens seus recados suas intenções e fosse encarregado da execução das ordens e das cartas de prego19 Com efeito ao mesmo tempo em que retomavam um certo número de funções preexistentes procura dos criminosos vigilância urbana controle econômico e político os chefes de polícia e a chefia geral que os coroava em Paris as transpunham para uma máquina administrativa unitária e rigorosa Todos os raios de força e de instrução que partem da circunferência chegam ao chefe geral É ele que faz funcionar as rodas cujo conjunto produz a ordem e a harmonia Os efeitos de sua administração só podem ser bem comparados aos movimentos dos corpos celestes20 Mas se a polícia como instituição foi realmente organizada sob a forma de um aparelho de Estado e se foi mesmo diretamente ligada ao centro da soberania política o tipo de poder que exerce os mecanismos que põe em funcionamento e os elementos aos quais ela os aplica são específicos É um aparelho que deve ser coextensivo ao corpo social inteiro e não só pelos limites extremos que atinge mas também pela minúcia dos detalhes de que se encarrega O poder policial devese exercer sobre tudo não é entretanto a totalidade do Estado nem do reino como corpo visível e invisível do monarca é a massa dos acontecimentos das ações dos comportamentos das opiniões tudo o que acontece21 o objeto da polícia são essas coisas de todo instante essas coisas àtoa de que falava Catarina II em sua Grande Instrução22 Com a polícia estamos no indefinido de um controle que procura idealmente atingir o grão mais elementar o fenômeno mais passageiro do corpo social O ministério dos magistrados e oficiais de polícia é dos mais importantes os objetos que ele abarca são de certo modo indefinidos só podemos percebêlos por um exame suficientemente detalhado23 o infinitamente pequeno do poder político E para se exercer esse poder deve adquirir o instrumento para uma vigilância permanente exaustiva onipresente capaz de tornar tudo visível mas com a condição de se tornar ela mesma invisível Deve ser como um olhar sem rosto que transforme todo o corpo social em um campo de percepção milhares de olhos postados em toda parte atenções móveis e sempre alerta uma longa rede hierarquizada que segundo Le Maire comporta para Paris os 48 comissários os 20 inspetores depois os observadores pagos regularmente os moscas abjetas retribuídos por dia depois os denunciadores qualificados de acordo com a tarefa enfim as prostitutas E essa incessante observação devese acumular numa série de relatórios e de registros ao longo de todo o século XVIII um imenso texto policial tende a recobrir a sociedade graças a uma organização documentária complexa24 E ao contrário dos métodos de escrita judiciária ou administrativa o que é assim registrado são comportamentos atitudes virtualidades suspeitas uma tomada de contas permanente do comportamento dos indivíduos Ora é preciso notar que esse controle policial se está inteiro na mão do rei não funciona numa só direção É na realidade um sistema de entrada dupla tem que responder ligando o aparelho de justiça às vantagens imediatas do rei mas é também capaz de responder às solicitações de baixo em sua imensa maioria as famosas cartas de prego que foram muito tempo símbolo do arbítrio real e que politicamente desqualificaram a prática da detenção eram na realidade solicitadas por famílias mestres notáveis locais habitantes de bairros curas de paróquia e tinham por função fazer sancionar com um internamento toda uma infrapenalidade a da desordem da agitação da desobediência do mau comportamento o que Ledoux queria expulsar de sua cidade arquiteturalmente perfeita e que chamava os delitos de falta de vigilância Em suma a polícia do século XVIII a seu papel de auxiliar de justiça na busca aos criminosos e de instrumento para o controle político dos complôs dos movimentos de oposição ou das revoltas acrescenta uma função disciplinar Função complexa pois une o poder absoluto do monarca às mínimas instâncias de poder disseminadas na sociedade pois entre essas diversas instituições fechadas de disciplina oficinas exércitos escolas estende uma rede intermediária agindo onde aquelas não podem intervir disciplinando os espaços não disciplinares mas que ela recobre liga entre si garante com sua força armada disciplina intersticial e metadisciplina O soberano com uma polícia disciplinada acostuma o povo à ordem e à obediência25 A organização do aparelho policial no século XVIII sanciona uma gene ralização das disciplinas que alcança as dimensões do Estado Se bem que a polícia tenha estado ligada da maneira mais explícita a tudo o que no poder real excedia o exercício da justiça regulamentada compreendese por que a polícia pôde resistir com um mínimo de modificações à reorganização do poder judiciário e por que ela não parou de lhe impor cada vez mais pesadamente até hoje suas prerrogativas é sem dúvida porque ela é seu braço secular mas é também porque bem melhor que a instituição judiciária ela se identifica por sua extensão e seus mecanismos com a sociedade de tipo disciplinar Seria entretanto inexato pensar que as funções disciplinares tenham sido confiscadas e absorvidas definitivamente por um aparelho de Estado A disciplina não pode se identificar com uma instituição nem com um aparelho ela é um tipo de poder uma modalidade para exercêlo que comporta todo um conjunto de instrumentos de técnicas de procedimentos de níveis de aplicação de alvos ela é uma física ou uma anatomia do poder uma tecnologia E pode ficar a cargo seja de instituições especializadas as penitenciárias ou as casas de correção do século XIX seja de instituições que dela se servem como instrumento essencial para um fim determinado as casas de educação os hospitais seja de instâncias preexistentes que nela encontram maneira de reforçar ou de reorganizar seus mecanismos internos de poder um dia se precisará mostrar como as relações intrafamiliares essencialmente na célula paisfilhos se disciplinaram absorvendo desde a era clássica esquemas externos escolares militares depois médicos psiquiátricos psicológicos que fizeram da família o local de surgimento privilegiado para a questão disciplinar do normal e do anormal seja de aparelhos que fizeram da disciplina seu princípio de funcionamento interior disciplinação do aparelho administrativo a partir da época napoleônica seja enfim de aparelhos estatais que têm por função não exclusiva mas principalmente fazer reinar a disciplina na escala de uma sociedade a polícia Podese então falar em suma da formação de uma sociedade disciplinar nesse movimento que vai das disciplinas fechadas espécie de quarentena social até o mecanismo indefinidamente generalizável do panoptismo Não que a modalidade disciplinar do poder tenha substituído todas as outras mas porque ela se infiltrou no meio das outras desqualifícandoas às vezes mas servindolhes de intermediária ligandoas entre si prolongandoas e principalmente permitindo conduzir os efeitos de poder até os elementos mais tênues e mais longínquos Ela assegura uma distribuição infinitesimal das relações de poder Poucos anos depois de Bentham Julius redigia a certidão de nascimento dessa sociedade26 Falando do princípio panóptico dizia que nele se via bem mais que um talento arquitetural um acontecimento na história do espírito humano Aparentemente não passa da solução de um problema técnico mas através dela se constrói um tipo de sociedade A Antigüidade foi uma civilização do espetáculo Tornar acessível a uma multidão de homens a inspeção de um pequeno número de objetos a esse problema respondia a arquitetura dos templos dos teatros e dos circos Com o espetáculo predominavam a vida pública a intensidade das festas a proximidade sensual Naqueles rituais em que corria sangue a sociedade encontrava vigor e formava um instante como que um grande corpo único A Idade Moderna coloca o problema contrário Proporcionar a um pequeno número ou mesmo a um só a visão instantânea de uma grande multidão Numa sociedade em que os elementos principais não são mais a comunidade e a vida pública mas os indivíduos privados por um lado e o Estado por outro as relações só podem ser reguladas numa forma exatamente inversa ao espetáculo No tempo moderno estava reservado à influência sempre crescente do Estado à sua intervenção cada dia mais profunda em todos os detalhes e relações da vida social aumentar e aperfeiçoar as garantias estatais utilizando e dirigindo para essa grande finalidade a construção e a distribuição de edifícios destinados a vigiar ao mesmo tempo uma grande multidão de homens Julius via como um processo histórico cabalmente realizado o que Bentham descrevera como um programa técnico Nossa sociedade não é de espetáculos mas de vigilância sob a superfície das imagens investemse os corpos em profundidade atrás da grande abstração da troca se processa o treinamento minucioso e concreto das forças úteis os circuitos da comunicação são os suportes de uma acumulação e centralização do saber o jogo dos sinais define os pontos de apoio do poder a totalidade do indivíduo não é amputada reprimida alterada por nossa ordem social mas o indivíduo é cuidadosamente fabricado segundo uma tática das forças e dos corpos Somos bem menos gregos que pensamos Não estamos nem nas arquibancadas nem no palco mas na máquina panóptica investidos por seus efeitos de poder que nós mesmos renovamos pois somos suas engrenagens A importância na mitologia histórica da personagem napoleônica tem talvez aí uma de suas origens encontrase no ponto de junção do exercício monárquico e ritual da soberania e do exercício hierárquico e permanente da disciplina indefinida É aquele que descortina tudo com um só olhar mas a que nenhum detalhe por ínfimo que seja escapa jamais Podeis julgar que nenhuma parte do Império está privada de vigilância que nenhum crime nenhum delito nenhuma contravenção deve permanecer sem punição e que o olho do gênio que tudo sabe acender abarca o conjunto dessa vasta máquina sem que o mínimo detalhe lhe possa escapar27 A sociedade disciplinar no momento de sua plena eclosão assume ainda com o Imperador o velho aspecto do poder de espetáculo Como monarca ao mesmo tempo usurpador do antigo trono e organizador do novo Estado ele recolheu numa figura simbólica e derradeira todo o longo processo pelo qual os faustos da soberania as manifestações necessariamente espetaculares do poder apagaramse um por um no exercício cotidiano da vigilância num panoptismo em que a penetração dos olhares entrecruzados há de em breve tornar inúteis a águia e o sol A formação da sociedade disciplinar está ligada a um certo número de amplos processos históricos no interior dos quais ela tem lugar econômicos jurídico políticos científicos enfim 1 De uma maneira global podese dizer que as disciplinas são técnicas para assegurar a ordenação das multiplicidades humanas É verdade que não há nisso nada de excepcional nem mesmo de característico a qualquer sistema de poder se coloca o mesmo problema Mas o que é próprio das disciplinas é que elas tentam definir em relação às multiplicidades uma tática de poder que responde a três critérios tornar o exercício do poder o menos custoso possível economicamente pela parca despesa que acarreta politicamente por sua discrição sua fraca exteriorização sua relativa invisibilidade o pouco de resistência que suscita fazer com que os efeitos desse poder social sejam levados a seu máximo de intensidade e estendidos tão longe quanto possível sem fracasso nem lacuna ligar enfim esse crescimento econômico do poder e o rendimento dos aparelhos no interior dos quais se exerce sejam os aparelhos pedagógicos militares industriais médicos em suma fazer crescer ao mesmo tempo a docilidade e a utilidade de todos os elementos do sistema Esse triplo objetivo das disciplinas responde a uma conjuntura histórica bem conhecida É por um lado a grande explosão demográfica do século XVIII aumento da população flutuante fixar é um dos primeiros objetivos da disciplina é um processo de antinomadismo mudança da escala quantitativa dos grupos que importa controlar ou manipular do começo do século XVII às vésperas da Revolução Francesa a população escolar se multiplicou como sem dúvida a população hospitalizada o exército em tempo de paz contava no fim do século XVIII mais de 200000 homens O outro aspecto da conjuntura é o crescimento do aparelho de produção cada vez mais extenso e complexo cada vez mais custoso também e cuja rentabilidade urge fazer crescer O desenvolvimento dos modos disciplinares de proceder responde a esses dois processos ou antes sem dúvida à necessidade de ajustar sua correlação Nem as formas residuais do poder feudal nem as estruturas da monarquia administrativa nem os mecanismos locais de controle nem o emaranhado instável que formavam todos juntos podia desempenhar esse papel impediaos de fazêlo a extensão lacunosa e sem regularidade de sua rede seu funcionamento muitas vezes conflitante mas principalmente o caráter dispendioso do poder exercido Dispendioso em vários sentidos porque diretamente custava muito ao Tesouro porque o sistema dos ofícios venais ou o da cobrança dos impostos pesava de maneira indireta e muito sobre a população porque as resistências que encontrava o arrastavam a um ciclo de reforço perpétuo porque procedia essencialmente por retirada retirada de dinheiro ou de produtos pelo fisco monárquico senhorial eclesiástico retirada de homens ou de tempo pelos serviços obrigatórios ou pelos alistamentos pelo encarceramento de vagabundos ou seu banimento O desenvolvimento das disciplinas marca a aparição de técnicas elementares do poder que derivam de uma economia totalmente diversa mecanismos de poder que em vez de vir em dedução integramse de dentro à eficácia produtiva dos aparelhos ao crescimento dessa eficácia e à utilização do que ela produz As disciplinas substituem o velho princípio retiradaviolência que regia a economia do poder pelo princípio suavidadeproduçãolucro Devem ser tomadas como técnicas que permitem ajustar segundo esse princípio a multiplicidade dos homens e a multiplicação dos aparelhos de produção e como tal devese entender não só produção propriamente dita mas a produção de saber e de aptidões na escola a produção de saúde nos hospitais a produção de força destrutiva com o exército Nessa tarefa de ajustamento a disciplina encontra alguns problemas a resolver para os quais a antiga economia do poder não estava suficientemente aparelhada Pode fazer diminuir a desutilidade dos fenômenos de massa reduzir aquilo que numa multiplicidade faz com que esta seja muito menos manejável que uma unidade reduzir o que se opõe à utilização de cada um de seus elementos e de sua soma reduzir tudo o que nela possa anular as vantagens do número é por isso que a disciplina fixa ela imobiliza ou regulamenta os movimentos resolve as confusões as aglomerações compactas sobre as circulações incertas as repartições calculadas Ela deve também dominar todas as forças que se formam a partir da própria constituição de uma multiplicidade organizada deve neutralizar os efeitos de contrapoder que dela nascem e que formam resistência ao poder que quer dominála agitações revoltas organizações espontâneas conluios tudo o que pode se originar das conjunções horizontais Daí o fato de as disciplinas utilizarem processos de separação e de verticalidade de introduzirem entre os diversos elementos de mesmo plano barreiras tão estanques quanto possível de definirem redes hierárquicas precisas em suma de oporem à força intrínseca e adversa da multiplicidade o processo da pirâmide contínua e individualizante Elas devem também fazer crescer a utilidade singular de cada elemento da multiplicidade mas por meios que sejam os mais rápidos e menos custosos ou seja utilizando a própria multiplicidade como instrumento desse crescimento daí para extrair dos corpos o máximo de tempo e de forças esses métodos de conjunto que são os horários os treinamentos coletivos os exercícios a vigilância ao mesmo tempo global e minuciosa É preciso além disso que as disciplinas façam crescer o efeito de utilidade próprio às multiplicidades e que tornem cada uma delas mais útil que a simples soma de seus elementos é para fazer crescer os efeitos utilizáveis do múltiplo que as disciplinas definem táticas de distribuição de ajustamento recíproco dos corpos dos gestos e dos ritmos de diferenciação das capacidades de coordenação recíproca em relação a aparelhos ou a tarefas Enfim a disciplina tem que fazer funcionar as relações de poder não acima mas na própria trama da multiplicidade da maneira mais discreta possível articulada do melhor modo sobre as outras funções dessas multiplicidades e também o menos dispendiosamente possível atendem a isso instrumentos de poder anônimos e coextensivos à multiplicidade que regimentam como a vigilância hierárquica o registro contínuo o julgamento e a classificação perpétuos Em suma substituir um poder que se manifesta pelo brilho dos que o exercem por um poder que objetiva insidiosamente aqueles aos quais é aplicado formar um saber a respeito destes mais que patentear os sinais faustosos da soberania Em uma palavra as disciplinas são o conjunto das minúsculas invenções técnicas que permitiram fazer crescer a extensão útil das multiplicidades fazendo diminuir os inconvenientes do poder que justamente para tornálas úteis deve regêlas Uma multiplicidade seja uma oficina ou uma nação um exército ou uma escola atinge o limiar da disciplina quando a relação de uma para com a outra tornase favorável Se a decolagem econômica do Ocidente começou com os processos que permitiram a acumulação do capital podese dizer talvez que os métodos para gerir a acumulação dos homens permitiram uma decolagem política em relação a formas de poder tradicionais rituais dispendiosas violentas e que logo caídas em desuso foram substituídas por uma tecnologia minuciosa e calculada da sujeição Na verdade os dois processos acumulação de homens e acumulação de capital não podem ser separados não teria sido possível resolver o problema da acumulação de homens sem o crescimento de um aparelho de produção capaz ao mesmo tempo de mantêlos e de utilizálos inversamente as técnicas que tornam útil a multiplicidade cumulativa de homens aceleram o movimento de acumulação de capital A um nível menos geral as mutações tecnológicas do aparelho de produção a divisão do trabalho e a elaboração das maneiras de proceder disciplinares mantiveram um conjunto de relações muito próximas28 Cada uma das duas tornou possível a outra e necessária cada uma das duas serviu de modelo para a outra A pirâmide disciplinar constituiu a pequena célula de poder no interior da qual a separação a coordenação e o controle das tarefas foram impostos e tornaramse eficazes e o quadriculamento analítico do tempo dos gestos das forças dos corpos constituiu um esquema operatório que pôde facilmente ser transferido dos grupos a submeter para os mecanismos da produção a projeção maciça dos métodos militares sobre a organização industrial foi um exemplo dessa modelação da divisão do trabalho a partir de esquemas de poder Mas em compensação a análise técnica do processo de produção sua decomposição maquinai se projetaram sobre a força de trabalho que tinha como tarefa realizálo a constituição dessas máquinas disciplinares onde são compostas e assim amplificadas as forças individuais que elas associam é o efeito dessa projeção Digamos que a disciplina é o processo técnico unitário pelo qual a força do corpo é com o mínimo ônus reduzida como força política e maximalizada como força útil O crescimento de uma economia capitalista fez apelo à modalidade específica do poder disciplinar cujas fórmulas gerais cujos processos de submissão das forças e dos corpos cuja anatomia política em uma palavra podem ser postos em funcionamento através de regimes políticos de aparelhos ou de instituições muito diversas 2 A modalidade panóptica do poder ao nível elementar técnico humil demente físico em que se situa não está na dependência imediata nem no prolongamento direto das grandes estruturas jurídicopolíticas de uma sociedade ela não é entretanto absolutamente independente Historicamente c processo pelo qual a burguesia se tornou no decorrer do século XVIII a classe politicamente dominante abrigouse atrás da instalação de um quadro jurídico explícito codificado formalmente igualitário e através da organização de um regime de tipo parlamentar e representativo Mas o desenvolvimento e a generalização dos dispositivos disciplinares constituíram a outra vertente obscura desse processo A forma jurídica geral que garantia um sistema de direitos em princípio igualitários era sustentada por esses mecanismos miúdos cotidianos e físicos por todos esses sistemas de micropoder essencialmente inigualitários e assimétricos que constituem as disciplinas E se de uma maneira formal o regime representativo permite que direta ou indiretamente com ou sem revezamento a vontade de todos forme a instância fundamental da soberania as disciplinas dão na base garantia da submissão das forças e dos corpos As disciplinas reais e corporais constituíram o subsolo das liberdades formais e jurídicas O contrato podia muito bem ser imaginado como fundamento ideal do direito e do poder político o panoptismo constituía o processo técnico universalmente difundido da coerção Não parou de elaborar em profundidade as estruturas jurídicas da sociedade para fazer funcionar os mecanismos efetivos do poder ao encontro dos quadros formais de que este dispunha As Luzes que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas Aparentemente as disciplinas não constituem nada mais que um infradireito Parecem prolongar até um nível infinitesimal das existências singulares as formas gerais definidas pelo direito ou ainda aparecem como maneiras de aprendizagem que permitem aos indivíduos se integrarem a essas exigências gerais Constituiriam o mesmo tipo de direito fazendoo mudar de escala e assim tornandoo mais minucioso e sem dúvida mais indulgente Temos antes que ver nas disciplinas uma espécie de contradireito Elas têm o papel preciso de introduzir assimetrias insuperáveis e de excluir reciprocidades Em primeiro lugar porque a disciplina cria entre os indivíduos um laço privado que é uma relação de limitações inteiramente diferente da obrigação contratual a aceitação de uma disciplina pode ser subscrita por meio de contrato a maneira como ela é imposta os mecanismos que faz funcionar a subordinação não reversível de uns em relação aos outros o mais poder que é sempre fixado do mesmo lado a desigualdade de posição dos diversos parceiros em relação ao regulamento comum opõem o laço disciplinar e o laço contratual e permitem sistematicamente falsear este último a partir do momento em que tem por conteúdo um mecanismo de disciplina Sabemos por exemplo quantos procedimentos reais acomodam a seus objetivos a função jurídica do contrato de trabalho a disciplina de oficina não é o menos importante Além disso enquanto os sistemas jurídicos qualificam os sujeitos de direito segundo normas universais as disciplinas caracterizam classificam especializam distribuem ao longo de uma escala repartem em torno de uma norma hierarquizam os indivíduos em relação uns aos outros e levando ao limite desqualificam e invalidam De qualquer modo no espaço e durante o tempo em que exercem seu controle e fazem funcionar as assimetrias de seu poder elas efetuam uma suspensão nunca total mas também nunca anulada do direito Por regular e institucional que seja a disciplina em seu mecanismo é um contradireito E se o juridismo universal da sociedade moderna parece fixar limites ao exercício dos poderes seu panoptismo difundido em toda parte faz funcionar ao arrepio do direito uma maquinaria ao mesmo tempo imensa e minúscula que sustenta reforça multiplica a assimetria dos poderes e torna vãos os limites que lhe foram traçados As disciplinas ínfimas os panoptismos de todos os dias podem muito bem estar abaixo do nível de emergência dos grandes aparelhos e das grandes lutas políticas Elas foram na genealogia da sociedade moderna com a dominação de classe que a atravessa a contrapartida política das normas jurídicas segundo as quais era redistribuído o poder Daí sem dúvida a importância que se dá há tanto tempo aos pequenos processos da disciplina a essas espertezas àtoa que ela inventou ou ainda aos saberes que lhe emprestam uma face confessável daí o receio de se desfazer delas se não lhes encontramos substituto daí a afirmação de que estão no próprio fundamento da sociedade e de seu equilíbrio enquanto são uma série de mecanismos para desequilibrar definitivamente e em toda parte as relações de poder daí o fato de nos obstinarmos a fazêlas passar pela forma humilde mas concreta de qualquer moral enquanto elas são um feixe de técnicas físicopolíticas E para voltar ao problema dos castigos legais a prisão com toda a tecnologia corretiva de que se acompanha deve ser recolocada aí no ponto em que se faz a torsão do poder codificado de punir em um poder disciplinar de vigiar no ponto que os castigos universais das leis vêm aplicarse seletivamente a certos indivíduos e sempre aos mesmos no ponto em que a requalificação do sujeito de direito pela pena se torna treinamento útil do criminoso no ponto em que o direito se inverte e passa para fora de si mesmo e em que o contradireito se torna o conteúdo efetivo e institucionalizado das formas jurídicas O que generaliza então o poder de punir não é a consciência universal da lei em cada um dos sujeitos de direito é a extensão regular é a trama infinitamente cerrada dos processos panópticos 3 Tomados um por um a maior parte desses processos tem uma longa história atrás de si Mas o ponto da novidade no século XVIII é que compondose e regularizandose eles atingem o nível a partir do qual formação de saber e majoração de poder se reforçam regularmente segundo um processo circular As disciplinas atravessam então o limiar tecnológico O hospital primeiro depois a escola mais tarde ainda a oficina não foram simplesmente postos em ordem pelas disciplinas tornaramse graças a elas aparelhos tais que qualquer mecanismo de objetivação pode valer neles como instrumento de sujeição e qualquer crescimento de poder dá neles lugar a conhecimentos possíveis foi a partir desse laço próprio dos sistemas tecnológicos que se puderam formar no elemento disciplinar a medicina clínica a psiquiatria a psicologia da criança a psicopedagogia a racionalização do trabalho Duplo processo portanto arrancada epistemológica a partir de um afinamento das relações de poder multiplicação dos efeitos de poder graças à formação e à acumulação de novos conhecimentos A extensão dos métodos disciplinares se inscreve num amplo processo histórico o desenvolvimento mais ou menos na mesma época de várias outras tecnologias agronômicas industriais econômicas Mas temos que reconhecer ao lado das indústrias mineiras da química que nascia dos métodos de contabilidade nacional ao lado dos altosfornos ou da máquina a vapor o panoptismo foi pouco celebrado Só se reconhece nele uma pequena utopia estranha o sonho de uma maldade um pouco como se Bentham tivesse sido o Fourier de uma sociedade policial cujo Falanstério houvesse tido a forma do Panóptico E entretanto tinhase aí a fórmula abstrata de uma tecnologia bem real a dos indivíduos Que ela tenha colhido poucos elogios há muitas razões que explicam a mais evidente é que os discursos a que deu lugar raramente adquiriram a não ser para as classificações acadêmicas o status de ciências mas a mais real é sem dúvida a de que o poder que ela põe em funcionamento e que ela permite aumentar é um poder direto e físico que os homens exercem uns sobre os outros Para um ponto de chegada sem glória uma origem difícil de confessar Mas seria injusto confrontar os processos disciplinares com invenções como a máquina a vapor ou o microscópio de Amici Eles são muito menos e entretanto de certo modo são muito mais Se fosse preciso encontrar para eles um equivalente histórico ou pelo menos um ponto de comparação seria antes do lado da técnica inquisitorial O século XVIII inventou as técnicas da disciplina e o exame um pouco sem dúvida como a Idade Média inventou o inquérito judiciário Mas por vias totalmente diversas O processo do inquérito velha técnica fiscal e administrativa se desenvolveu principalmente com a reorganização da Igreja e o crescimento dos Estados principescos nos séculos XII e XIII Foi então que ele penetrou com a amplitude que se sabe na jurisprudência dos tribunais eclesiásticos depois nas cortes leigas O inquérito como pesquisa autoritária de uma verdade constatada ou atestada se opunha assim aos antigos processos do juramento da ordália do duelo judiciário do julgamento de Deus ou ainda da transação entre particulares O inquérito era o poder soberano que se arrogava o direito de estabelecer a verdade através de um certo número de técnicas regulamentadas Ora embora o inquérito desde aquele momento se tenha incorporado à justiça ocidental e até em nossos dias não se deve esquecer sua origem política sua ligação com o nascimento dos Estados e da soberania monárquica nem tampouco sua derivação posterior e seu papel na formação do saber O inquérito foi com efeito a peça rudimentar e fundamental para a constituição das ciências empíricas foi a matriz jurídicopolítica desse saber experimental que como se sabe teve seu rápido surto no fim da Idade Média É talvez verdade que a matemática na Grécia nasceu das técnicas da medida as ciências da natureza em todo caso nasceram por um lado no fim da Idade Média das práticas do inquérito O grande conhecimento empírico que recobriu as coisas do mundo e as transcreveu na ordenação de um discurso indefinido que constata descreve e estabelece os fatos e isto no momento em que o mundo ocidental começava a conquista econômica e política desse mesmo mundo tem sem dúvida seu modelo operatório na Inquisição essa imensa invenção que nosso recente amolecimento colocou na sombra da memória Ora o que esse inquérito político jurídico administrativo e criminal religioso e leigo foi para as ciências da natureza a análise disciplinar foi para as ciências do homem Essas ciências com que nossa humanidade se encanta há mais de um século têm sua matriz técnica na minúcia tateante e maldosa das disciplinas e de suas investigações Estas são talvez para a psicologia a pedagogia a psiquiatria a criminologia e para tantos outros estranhos conhecimentos o que foi o terrível poder de inquérito para o saber calmo dos animais das plantas ou da terra Outro poder outro saber No limiar da era clássica Bacon o homem da lei e do Estado tentou fazer para as ciências empíricas a metodologia do inquérito Quem será o Grande Vigia que fará a do exame para as ciências humanas Tal não sucederá apenas se não for possível Pois se é verdade que o inquérito ao se tornar uma técnica para as ciências empíricas se destacou do processo inquisitorial em que tinha suas raízes históricas já o exame permaneceu o mais próximo do poder disciplinar que o formou E ainda e sempre uma peça intrínseca das disciplinas É claro ele parece ter sofrido uma depuração especulativa ao se integrar em ciências como a psiquiatria a psicologia E efetivamente sob a forma de testes de entrevistas de interrogatórios de consultas o vemos retificar aparentemente os mecanismos da disciplina a psicologia é encarregada de corrigir os rigores da escola como a entrevista médica ou psiquiátrica é encarregada de retificar os efeitos da disciplina de trabalho Mas não devemos nos enganar essas técnicas apenas mandam os indivíduos de uma instância disciplinar a outra e reproduzem de uma forma concentrada ou formalizada o esquema de poder saber próprio a toda disciplina29 O grande inquérito que deu lugar às ciências da natureza destacouse de seu modelo políticojurídico o exame em compensação continua preso à tecnologia disciplinar O procedimento do inquérito na Idade Média foi imposto à velha justiça acusatória mas por um processo vindo de cima já a técnica disciplinar invadiu insidiosamente e como que por baixo uma justiça penal que é ainda em seu princípio inquisitória Todos os grandes movimentos de derivação que caracterizam a penalidade moderna a problematização do criminoso por trás de seu crime a preocupação com uma punição que seja correção terapêutica normalização a divisão do ato do julgamento entre diversas instâncias que devem segundo se espera medir avaliar diagnosticar curar transformar os indivíduos tudo isso trai a penetração do exame disciplinar na inquisição judiciária O que agora é imposto à justiça penal como seu ponto de aplicação seu objeto útil não será mais o corpo do culpado levantado contra o corpo do rei não será mais tampouco o sujeito de direito de um contrato ideal mas o indivíduo disciplinar O ponto extremo da justiça penal no Antigo Regime era o retalhamento infinito do corpo do regicida manifestação do poder mais forte sobre o corpo do maior criminoso cuja destruição total faz brilhar o crime em sua verdade O ponto ideal da penalidade hoje seria a disciplina infinita um interrogatório sem termo um inquérito que se prolongasse sem limite numa observação minuciosa e cada vez mais analítica um julgamento que seja ao mesmo tempo a constituição de um processo nunca encerrado o amolecimento calculado de uma pena ligada à curiosidade implacável de um exame um procedimento que seja ao mesmo tempo a medida permanente de um desvio em relação a uma norma inacessível e o movimento assintótico que obriga a encontrála no infinito O suplício completa logicamente um processo comandado pela Inquisição A observação prolonga naturalmente uma justiça invadida pelos métodos disciplinares e pelos processos de exame Acaso devemos nos admirar que a prisão celular com suas cronologias marcadas seu trabalho obrigatório suas instâncias de vigilância e de notação com seus mestres de normalidade que retomam e multiplicam as funções do juiz se tenha tornado o instrumento moderno da penalidade Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas com as escolas com os quartéis com os hospitais e todos se pareçam com as prisões NOTAS CAPÍTULO I 1 L de Montgommery La Milice française edição de 1636 p 67 2 Ordenação de 20 de março de 1764 3 Ibid 4 Marechal de Saxe Mês rêveries t I avantpropos p 5 5 JB de La Salle Traité sur les obligations des frères des Écoles chrétiennes edição de 1783 p 238239 6 E Geoffroy de SaintHilaire empresta essa declaração a Bonaparte sobre a Introdução às Notions synthétiques et historiques de philosophie naturelle 7 JB de Treilhard Motifs du code dinstruction criminelle 1808 p 14 8 Escolherei os exemplos nas instituições militares médicas escolares e industriais Outros exemplos poderiam ser tomados na colonização na escravidão nos cuidados na primeira infância 9 Cf Ph Ariès LEnfant et la famille 1960 p 308313 e G Snyders La Pédagogie en France aux XVIIe et XVIIIe siècles 1965 p 3541 10 Lordonnance militaire t IXL 25 de setembro de 1719 Cl Ilustr 5 11 Daisy Le Royaume de France 1745 p 201209 memória anônima de 1775 depósito da guerra 3689 f 156 A Navereau Le logement et les utensiles des gens de guerre de 1439 à 1789 1924 p 132135 Cf ilustrs n 56 12 Projet de règlement pour 1aciérie dAmboise Arquivos nacionais f 12 1301 13 Memória ao rei a respeito da fábrica de tecido para velas de Angers e in V Dauphin Recherches sur 1industric textile en anjou 1913 p 199 14 Règlement pour la communauté des files du Bom Pauster in Delamare Traité de Police livro III título V p 507 Cf também ilustr n 9 15 Regulamento da fábrica de SaintMaur BN Ms coleção Delamare Manufactures III 16 Cf o que dizia La Métherie visitando Le Cresot Os edifícios para um tão belo estabelecimento e uma tão grande quantidade de operários deviam ter uma extensão suficiente para que não houvesse confusão entre os operários durante o tempo de trabalho Journal de physique t XXX 1787 p 66 17 Cf C de Rochemontei Un collège au XVII siècle 1889 t III p 51s 18 JB de La Salle Conduite des écoles chrétiennes BN Ms 11759 p 248249 Um pouco mais cedo Batencour propunha que as salas de aula fossem divididas em três partes A mais respeitável para os que aprendem latim É de se desejar que haja tantos lugares nas mesas quantos escritores houver para evitar as confusões que ordinariamente fazem os preguiçosos Em outra os que aprendem a ler um banco para os ricos um banco para os pobres para que os piolhos não contaminem Terceira localização para os recém chegados quando sua capacidade for reconhecida serlhesá atribuído um lugar MIDB Instruction méthodique pour lécole paroissiale 1669 p 5657 Cf ilustrações n 1011 19 JA de Guibert Essai général de tactique 1772 vol I Discurso preliminar p XXXVI 20 Artigo primeiro do regulamento da fábrica de SaintMaur 21 L de Boussanelle Le Bom Militaire 1770 p 2 Sobre o caráter religioso da disciplina no exército sueco cf The Swedish Discipline Londres 1632 22 JB de La Salle Conduite des écoles chrétiennes BN Ms 11759 p 2728 188 23 Bally citado por RR Tronchot LEnseigeraent mutuel en France tese datilografada vol I p 21 24 Projet de réglement pour la fabrique dAmboise art 2 Arquivos nacionais F 12 1301 Especificase que isso vale também para os que trabalham com peças 25 Regulamento provisório para a fábrica de MS Oppenheim 1809 art 78 in Hayem Mémoires et documente pour revenir à lhistore du commerce 26 Regulamento para a fábrica de MS Oppenheim art 16 27 Projet de réglement pour la fabrique dAmboise art 4 28 L de Montgommery La Milice française ed de 1636 p 86 29 Ordonnance du ler janvier 1766 pour régler 1exercice de linfanterie 30 JB de La Salle Conduite des écoles chrétiennes ed de 1828 p 6364 Cf ilustração n 8 31 Ordonnance du ler janvier 1766 título XI art 2 32 Só se pode atribuir o sucesso das tropas prussianas à excelência de sua disciplina e de seu exercício a escolha do exercício não é portanto indiferente foi trabalhando na Prússia durante quarenta anos com uma aplicação sem descanso Marechal de Saxe carta ao conde dArgenson 25 de fevereiro de 1750 Arsenal Ms 2701 e Mês rêveries t II p 249 Cf ilustrações nos 3 e 4 33 Exercício de escrita 9 Mão sobre os joelhos Essa ordem é dada por um toque de campanhia 10 mãos sobre a mesa cabeça alta 11 limpar as lousas todos limpam as lousas com um pouco de saliva ou melhor com um trapo 12 mostrar as lousas 13 monitores inspecionar Eles vão ver as lousas de seus adjuntos e em seguida as de seu banco Os adjuntos visitam as de seu banco e todos ficam no lugar 34 Sammuel Bernard Rapport du 30 octobre 1816 à la sociète de 1enseigment mutuel 35 JA de Guibert Essai général de tactique 1772 I p 2122 36 Essa mistura aparece claramente em certas classes do contrato de aprendizagem o mestre é obrigado a dar ao aluno mediante seu dinheiro e seu trabalho todo o seu saber sem guardar nenhum segredo senão é passível de multa Cf por exemplo F Grosrenaud La Corporation ouorière à Besançon 1907 p 62 37 Cf E Gerspach La Manufacture des Gobelins 1892 38 Era o projeto de J Servan Le Soldat citoyen 1780 p 456 39 Regulamento de 1743 para a infantaria prussiana Arsenal Ms 4076 40 F de la Noue recomendava a criação de academias militares no fim do século XVI pretendia que lá se aprendesse a manejar os cavalos correr com a adaga no gibão e às vezes armado atirar voltear saltar se se acrescentassem nadar e lutar só seria melhor pois tudo isso torna a pessoa mais robusta e mais hábil Discours politiques et militaires ed 1614 p 181182 41 Instruction pour 1exercise de linfanterie 14 de maio de 1754 42 Ibid 43 Demia Réglement pour les écoles de la ville de Lyon 1716 p 1920 44 Cf G Codina Meir Aux sources de la pédagogie des Jésuites 1968 p 160s 45 Por intermédio das escolas de Liège Devenport Zwolle Wesel e graças também a Jean Sturm a sua memória de 1533 para a organização de um ginásio em Estrasburgo Cf Bulletin de la société dhistoire du protestantisme t XXV p 499505 Notese que as relações entre o exército a organização religiosa e a pedagogia são muito complexas A decúria unidade do exército romano é encontrada nos conventos beneditinos como unidade de trabalho e sem dúvida de vigilância Os irmãos da vida comum a tomaram emprestada e a transpuseram para sua organização pedagógica os alunos são agrupados por 10 Essa é a unidade que os jesuítas retomaram na cenografia de seus colégios reintroduzindo aí um modelo militar Mas a decúria por sua vez foi dissolvida em proveito de um esquema ainda mais militar com fileiras colunas linhas 46 JA de Guibert Essai général de tactique 1772 1 18 Para dizer a verdade esse velho problema retomara atualidade no século XVIII pelas razões econômicas e técnicas que veremos e o preconceito em questão muito freqüentemente discutido fora do próprio Guibert em tomo de Folard de Pireh de MesnilDurard 47 No sentido em que esse termo foi empregado depois de 1759 48 Podese datar grosso modo a partir da batalha de Steinkerque 1699 o movimento que generalizou o fuzil 49 Sobre essa importância de geometria ver J de Beausobre A ciência da guerra é essencialmente geométrica A distribuição de um batalhão e de um esquadrão sobre toda uma frente e uma certa altura é apenas o efeito de uma geometria profunda ainda ignorada Commentaires sur les défenses des places 1757 t 11 p 307 50 K Marx Le Capital livro I 4ª seção cap XIII Marx insiste várias vezes na analogia entre os problemas de divisão do trabalho e os de tática militar Por exemplo Da mesma forma que a força de ataque de um esquadrão de cavalaria ou a força de resistência de um regimento de cavalaria diferem essencialmente da força das somas individuais da mesma maneira a soma das forças mecânicas de operários isolados difere da força mecânica que se desenvolve desde que eles funcionam conjunta e simultaneamente numa só operação indivisa Ibid 51 JA de Guibert Essai général de tactique 1772 t I p 27 52 Ordenação sobre o exercício da infantaria 6 de maio de 1755 53 Harvouin Rapport sur la généralité de Tours in P Marchegay Archives dAnjou t II p 360 54 Samuel Bernard Rapport du 30 octobre 1816 à la société de lEnseignement mutuel 55 L de Boussanelle Le Bom Militaire 1770 p 2 56 JB de La Salle Conduite des Écoles chrétiennes 1828 p 137138 Cf também Ch Demia Règlements pour les écoles de la ville de Lyon 1716 p 21 57 Journal pour 1instruction élémentaire abril de 1816 Cf RR Tronchot Lenseignement mutuel en France tese datilografada I que calculou que os alunos deviam receber mais de 200 ordens por dia sem contar as ordens excepcionais só de manhã 26 ordens por voz 23 por sinais 37 batidas de campainha e 24 por apito o que faz um toque de campainha ou de apito cada 3 minutos 58 JA de Guibert Essai général de tactique 1772 p 4 59 P Joly de Maizeroy Théorie de la guerre 1777 p 2 60 JA de Guibert Essai général de tactique 1772 Discours préliminares p XXIIIXXIV Cf o que dizia Marx a respeito do exército e das formas da sociedade burguesa carta a Engels 25 de setembro de 1857 CAPÍTULO II 1 JJ Walhausen LArt militaire pour linfanterie 1615 p 23 2 Règlement pour Pinfanterie prussienne trad Franc Arsenal Ms 1067 f 144 Para os esquemas antigos ver Praissac Les discours militaires 1623m p 2728 Montgommery La milice française p 77 Para os novos esquemas cf Beneton de Morange Histoire de la guerre 1741 p 6164 e Dissertations sur les Tentes cf também vários regulamentos como a Instruction sur le service des règlements de Cavalerie dans les camps 29 de junho de 1753 Ver ilustração n 7 3 Citado em R Laulan LÉcole militaire de Paris 1950 p 117118 4 Arch Nat MM 666669 J Bentham conta que foi visitando a Escola Militar que seu irmão teve a primeira idéia do Panopticon 5 Ver ilustrações nos 12 13 16 6 Encyclopédie artigo Manufacture 7 Cournol Considérations dintérêt public sur le droit dexploiter les mines 1790 Arqu Nac A XIII 14 8 Cf K Marx Essa função de vigilância de direção e de mediação tomase a função do capital assim que O trabalho que lhe é subordinado se torna cooperativo e como função capitalista ela adquire características especiais O Capital livro I quarta seção cap XIII 9 MIDB Instruction méthodique pour 1école paroissiale 1669 p 6883 10 Ch Demia Règlement pour les écoles de la ville de Lyon 1716 p 2729 Poderíamos notar um fenômeno do mesmo gênero na organização dos colégios durante muito tempo os prefeitos eram independentemente dos professores encarregados da responsabilidade moral dos pequenos grupos de alunos Depois de 1762 principalmente vemos aparecer um tipo de controle ao mesmo tempo mais administrativo e mais integrado à hierarquia fiscais mestres de bairro mestres subalternos Cf DupontFerrier Du colège de Clermont au lycée LouisleGrand vol I p 254 e 476 11 Pictet de Rochemont Journal de Genève 5 de janeiro de 1788 12 Regulamento provisório para a fábrica de M Oppenheim 29 de setembro de 1809 13 JB de la Salle Conduite des Écoles chrétiennes 1828 p 204205 14 Ibidem 15 Ch Demia Règlement pour les écoles de la ville de Lyon 1716 p 17 16 JB de la Salle Conduite des Écoles chrétiennes BN Ms 11759 p 156s Temos aí a transposição do sistema das indulgências 17 Archives nationales MM 658 30 de março de 1758 e MM 666 15 de setembro de 1763 18 Sobre esse ponto é necessário se reportar às páginas essenciais de G Canguilhem Le normal et le pathologique ed de 1866 p 171191 19 Registre des délibérations du bureau de lHôtelDieu 20 JB de La Salle Conduite des Écoles chrétiennes 1828 p 160 21 Cf LEnseignement et la diffusion des sciences au XVIIIe 1964 p 360 22 Sobre essa medalha cf o artigo de J Jucquiot in Le Club français de la médaille 4o trimestre de 1970 p 5054 Ver ilustração n 2 23 Kropotkine Autour dune vie 1902 p 9 Devo essa referência a MG Ganguilhem 24 MIDB Instruction méthodique pour 1école paroissiale 1669 p 64 CAPÍTULO III 1 Archives militaires de Vincennes A 1516 91 sc Peça Esse regulamento está no essencial de acordo com toda uma série de outros que datam desta mesma época ou de um período anterior 2 J Bentham Panopticon Works ed Bowring t IV p 6064 Ver ilustração n 17 3 No Postscript to the Panopticon 1791 Bentham acrescenta galerias escuras pintadas de preto que fazem a volta ao prédio de vigilância permitindo cada uma observar dois andares de celas 4 Ver ilustração nº 17 Bentham em sua primeira versão do Panopticon imagina também uma vigilânciaacústica por tubos que iam das celas à torre central Abandonoua no Post script talvez porque não p desse introduzir assimetria e impedir que os prisioneiros ouvissem o vigia tão bem quanto este os ouvia Julius tentou aperfeiçoar um sistema de escuta assimétrica Leçons sur les prisons trad Francesa 1831 p 18 5 J Bentham Panopticon Works t IV p 45 6 G Loisel Histoire des ménageries 1912 vol II p 104107 Ver ilustração n 14 7 Ibid p 6064 8 J bentham Panopticon versus New South Wales Works ed Bowring t IV p 177 9 Ibid p 40 Se Bentham deu destaque ao exemplo da penitenciária é porque esta tem funções múltiplas para exercer vigilância controle automático confinamento solidão trabalho forçado instrução 10 Ibid p 65 11 Ibid p 39 12 Ao imaginar esse fluxo contínuo de visitantes que penetravam por um subterrâneo até a torre central e de lá observavam a paisagem circular do Panóptico Bentham conheceria os Panoramas que Barker construía exatamente na mesma época o primeiro parece datar de 1787 e nos quais os visitantes que vinham ocupar o lugar central viam em toda sua volta se desenrolar uma paisagem uma cidade uma batalha Os visitantes ocupavam exatamente o lugar do olhar soberano 13 Ch Demia Règlement pour les écoles de la ville de Lyon 1716 p 6061 14 Relatório de Talleyrand à Constituinte 10 de setembro de 1791 Citado por A Léon La Révolution française et 1éducation technique 1968 p 106 15 Ch Demia Règlement pour les écoles de la ville de Lyon 1716 p 3940 16 Na segunda metade do século XVIII pensouse muito em utilizar o exército como instância de vigilância e de policiamento geral permitindo vigiar a população O exército ainda a disciplinar no século XVII é concebido como disciplinante Cf por ex J Servan Le Soldat citoyen 1780 17 Arsenal ms 2565 Nessa numeração encontramse numerosos regulamentos para as companhias de caridade dos séculos XVII e XVIII 18 Cf L Radzinovitz The English Criminal Law 1956 t II p 203214 19 Nota de Duval primeiro secretário de chefia de polícia citada por FunckBrentano Catalogue des manuscrits de la bibliotèque de lArsenal t IX p 1 20 NT Des Essarts Dictionnaire universal de police 1787 p 344 528 21 Le Maire numa memória redigida a pedido de Sartine para responder a dezesseis perguntas de Joseph II sobre a polícia parisiense Essa memória foi publicada por Gazier em 1879 22 Suplemento à Instruction pour la rédaction dun nouveau code 1769 535 23 N Delamare Traité de la police 1705 prefácio sem numeração de página 24 Sobre os registros da polícia no século XVIII podemos nos reportar a M Chassaigne La Lieutenance générale de police 1906 25 E de Vattel Le Droit des gens 1768 p 162 26 NH Julius Leçons sur les prisons trad Francesa 1831 vol I p 384386 27 JB Treilhard Motifs du code dinstruction criminelle 1808 p 14 28 Cf K Marx O Capital livro 1 4ª seção cap XIII E a análise muito interessante de F Guerry e D Deleule Le Corps productif 1973 29 Cf quanto a este assunto Michel Tort QI 1974 Quarta Parte PRISÃO CAPÍTULO I INSTITUIÇÕES COMPLETAS E AUSTERAS A prisão é menos recente do que se diz quando se faz datar seu nascimento dos novos códigos A formaprisão preexiste à sua utilização sistemática nas leis penais Ela se constituiu fora do aparelho judiciário quando se elaboraram por todo o corpo social os processos para repartir os indivíduos fixálos e distribuílos espacialmente classificálos tirar deles o máximo de tempo e o máximo de forças treinar seus corpos codificar seu comportamento contínuo mantêlos numa visibilidade sem lacuna formar em torno deles um aparelho completo de observação registro e notações constituir sobre eles um saber que se acumula e se centraliza A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis através de um trabalho preciso sobre seu corpo criou a instituiçãoprisão antes que a lei a definisse como a pena por excelência No fim do século XVIII e princípio do século XIX se dá a passagem a uma penalidade de detenção é verdade e era coisa nova Mas era na verdade abertura da penalidade a mecanismos de coerção já elaborados em outros lugares Os modelos da detenção penal Gand Gloucester Walnut Street marcam os primeiros pontos visíveis dessa transição mais que inovações ou pontos de partida A prisão peça essencial no conjunto das punições marca certamente um momento importante na história da justiça penal seu acesso à humanidade Mas também um momento importante na história desses mecanismos disciplinares que o novo poder de classe estava desenvolvendo o momento em que aqueles colonizam a instituição judiciária Na passagem dos dois séculos uma nova legislação define o poder de punir como uma função geral da sociedade que é exercida da mesma maneira sobre todos os seus membros e na qual cada um deles é igualmente representado mas ao fazer da detenção a pena por excelência ela introduz processos de dominação característicos de um tipo particular de poder Uma justiça que se diz igual um aparelho judiciário que se pretende autônomo mas que é investido pelas assimetrias das sujeições disciplinares tal é a conjunção do nascimento da prisão pena das sociedades civilizadas1 Podese compreender o caráter de obviedade que a prisãocastigo muito cedo assumiu Desde os primeiros anos do século XIX terseá ainda consciência de sua novidade e entretanto ela surgiu tão ligada e em profundidade com o próprio funcionamento da sociedade que relegou ao esquecimento todas as outras punições que os reformadores do século XVIII haviam imaginado Pareceu sem alternativa e levada pelo próprio movimento da história Não foi o acaso não foi o capricho do legislador que fizeram do encarceramento a base e o edifício quase inteiro de nossa escala penal atual foi o progresso das idéias e a educação dos costumes2 E se em pouco mais de um século o clima de obviedade se transformou não desapareceu Conhecemse todos os inconvenientes da prisão e sabese que é perigosa quando não inútil E entretanto não vemos o que pôr em seu lugar Ela é a detestável solução de que não se pode abrir mão Essa obviedade da prisão de que nos destacamos tão mal se fundamenta em primeiro lugar na forma simples da privação de liberdade Como não seria a prisão a pena por excelência numa sociedade em que a liberdade é um bem que pertence a todos da mesma maneira e ao qual cada um está ligado por um sentimento universal e constante3 Sua perda tem portanto o mesmo preço para todos melhor que a multa ela é o castigo igualitário Clareza de certo modo jurídica da prisão Além disso ela permite quantificar exatamente a pena segundo a variável do tempo Há uma formasalário da prisão que constitui nas sociedades industriais sua obviedade econômica E permite que ela pareça como uma reparação Retirando tempo do condenado a prisão parece traduzir concretamente a idéia de que a infração lesou mais além da vítima a sociedade inteira Obviedade econômico moral de uma penalidade que contabiliza os castigos em dias em meses em anos e estabelece equivalências quantitativas delitosduração Daí a expressão tão freqüente e que está tão de acordo com o funcionamento das punições se bem que contrária à teoria estrita do direito penal de que a pessoa está na prisão para pagar sua dívida A prisão é natural como é natural na nossa sociedade o uso do tempo para medir as trocas4 Mas a obviedade da prisão se fundamenta também em seu papel suposto ou exigido de aparelho para transformar os indivíduos Como não seria a prisão imediatamente aceita pois se só o que ela faz ao encarcerar ao retreinar ao tornar dócil é reproduzir podendo sempre acentuálos um pouco todos os mecanismos que encontramos no corpo social A prisão um quartel um pouco estrito uma escola sem indulgência uma oficina sombria mas levando ao fundo nada de qualitativamente diferente Esse duplo fundamento jurídicoeconômico por um lado técnicodisciplinar por outro fez a prisão aparecer como a forma mais imediata e mais civilizada de todas as penas E foi esse duplo funcionamento que lhe deu imediata solidez Uma coisa com efeito é clara a prisão não foi primeiro uma privação de liberdade a que se teria dado em seguida uma função técnica de correção ela foi desde o início uma detenção legal encarregada de um suplemento corretivo ou ainda uma empresa de modificação dos indivíduos que a privação de liberdade permite fazer funcionar no sistema legal Em suma o encarceramento penal desde o início do século XIX recobriu ao mesmo tempo a privação de liberdade e a transformação técnica dos indivíduos Lembremos um certo número de fatos Nos códigos de 1808 e de 1810 e nas medidas que os seguiram ou os precederam imediatamente o encarceramento nunca se confunde com a simples privação de liberdade É ou deve ser em todo caso um mecanismo diferenciado e finalizado Diferenciado pois não deve ter a mesma forma consoante se trate de um indiciado ou de um condenado de um contraventor ou de um criminoso cadeia casa de correção penitenciária devem em princípio corresponder mais ou menos a essas diferenças e realizar um castigo não só graduado em intensidade mas diversificado em seus objetivos Pois a prisão tem um fim apresentado de saída Como a lei inflige penas umas mais graves que outras não pode permitir que o indivíduo condenado a penas leves se encontre preso no mesmo local que o criminoso condenado a penas mais graves se a pena infligida pela lei tem como objetivo principal a reparação do crime ela pretende também que o culpado se emende5 E devese requerer essa transformação aos efeitos internos do encarceramento Prisãocastigo prisãoaparelho A ordem que deve reinar nas cadeias pode contribuir fortemente para regenerar os condenados os vícios da educação o contágio dos maus exemplos a ociosidade originaram crimes Pois bem tentemos fechar todas essas fontes de corrupção que sejam praticadas regras de sã moral nas casas de detenção que obrigados a um trabalho de que terminarão gostando quando dele recolherem o fruto os condenados contraiam o hábito o gosto e a necessidade da ocupação que se dêem respectivamente o exemplo de uma vida laboriosa ela logo se tornará uma vida pura logo começarão a lamentar o passado primeiro sinal avançado de amor pelo dever6 As técnicas corretivas imediatamente fazem parte da armadura institucional da detenção penal Devemos lembrar também que o movimento para reformar as prisões para controlar seu funcionamento não é um fenômeno tardio Não parece sequer ter nascido de um atestado de fracasso devidamente lavrado A reforma da prisão é mais ou menos contemporânea da própria prisão Ela é como que seu programa A prisão se encontrou desde o início engajada numa série de mecanismos de acompanhamento que aparentemente devem corrigila mas que parecem fazer parte de seu próprio funcionamento de tal modo têm estado ligados a sua existência em todo o decorrer de sua história Houve imediatamente uma tecnologia loquaz da prisão Inquéritos o de Chaptal já em 1801 quando se tratava de fazer o levantamento do que se podia utilizar para implantar na França o aparelho carcerário a de Decazes em 1819 o livro de Villermé publicado em 1820 o relatório sobre as penitenciárias preparado por Martignac em 1829 os inquéritos conduzidos nos Estados Unidos por Beaumont de Tocqueville em 1831 por Demetz e Blouet em 1835 os questionários dirigidos por Montalivet aos diretores de penitenciárias e aos conselhos gerais quando se está em pleno debate sobre o isolamento dos detentos Sociedades para controlar o funcionamento das prisões e propor sua melhora em 1818 é a muito oficial Sociedade para a melhoria das prisões um pouco mais tarde a sociedade das prisões e diversos grupos filantrópicos Inúmeras providências portarias instruções ou leis desde a reforma que a primeira Restauração havia previsto logo no mês de setembro de 1814 e que nunca foi aplicada até à lei de 1844 preparada por Tocqueville e que por algum tempo encerrou um longo debate sobre os meios de tornar eficaz a prisão Programas para assegurar o funcionamento da máquinaprisão7 programas de tratamento para os detentos modelos de arranjo material alguns permanecendo puros projetos como os de Danjou de Blouet de HarouRomain outros tomando forma em instruções como a circular de 9 de agosto de 1841 sobre as construções das cadeias outras tornandose arquiteturas muito reais como a Petite Roquette onde pela primeira vez na França foi organizado o encarceramento celular A que se devem ainda acrescentar as publicações mais ou menos diretamente saídas da prisão e redigidas ou por filantropos como appert ou um pouco mais tarde por especialistas assim como os Annales de la Charité8 ou ainda por antigos detentos Pauvre Jacques no fim da Restauração ou a Gazette de SaintePélagie no começo da monarquia de julho9 A prisão não deve ser vista como uma instituição inerte que volta e meia teria sido sacudida por movimentos de reforma A teoria da prisão foi seu modo de usar constante mais que sua crítica incidente uma de suas condições de funcionamento A prisão fez sempre parte de um campo ativo onde abundaram os projetos os remanejamentos as experiências os discursos teóricos os testemunhos os inquéritos Em torno da instituição carcerária toda uma prolixidade todo um zelo A prisão região sombria e abandonada O simples fato de que não se pare de dizêlo há cerca de dois séculos prova que ela não o era Ao se tornar punição legal ela carregou a velha questão jurídicopolítica do direito de punir com todos os problemas todas as agitações que surgiram em torno das tecnologias corretivas do indivíduo Instituições completas e austeras dizia Baltard10 A prisão deve ser um aparelho disciplinar exaustivo Em vários sentidos deve tomar a seu cargo todos os aspectos do indivíduo seu treinamento físico sua aptidão para o trabalho seu comportamento cotidiano sua atitude moral suas disposições a prisão muito mais que a escola a oficina ou o exército que implicam sempre numa certa especialização é onidisciplinar Além disso a prisão é sem exterior nem lacuna não se interrompe a não ser depois de terminada totalmente sua tarefa sua ação sobre o indivíduo deve ser ininterrupta disciplina incessante Enfim ela dá um poder quase total sobre os detentos tem seus mecanismos internos de repressão e de castigo disciplina despótica Leva à mais forte intensidade todos os processos que encontramos nos outros dispositivos de disciplina Ela tem que ser a maquinaria mais potente para impor uma nova forma ao indivíduo pervertido seu modo de ação é a coação de uma educação total Na prisão o governo pode dispor da liberdade da pessoa e do tempo do detento a partir daí concebese a potência da educação que não em só um dia mas na sucessão dos dias e mesmo dos anos pode regular para o homem o tempo da vigília e do sono da atividade e do repouso o número e a duração das refeições a qualidade e a ração dos alimentos a natureza e o produto do trabalho o tempo da oração o uso da palavra e por assim dizer até o do pensamento aquela educação que nos simples e curtos trajetos do refeitório à oficina da oficina à cela regula os movimentos do corpo e até nos momentos de repouso determina o horário aquela educação em uma palavra que se apodera do homem inteiro de todas as faculdades físicas e morais que estão nele e do tempo em que ele mesmo está11 Esse reformatório integral prescreve uma recodificação da existência bem diferente da pura privação jurídica de liberdade e bem diferente também da simples mecânica de representações com que sonhavam os reformadores na época da Ideologia 1 Primeiro princípio o isolamento Isolamento do condenado em relação ao mundo exterior a tudo o que motivou a infração às cumplicidades que a facilitaram Isolamento dos detentos uns em relação aos outros Não somente a pena deve ser individual mas também individualizante E isso de duas maneiras Em primeiro lugar a prisão deve ser concebida de maneira a que ela mesma apague as conseqüências nefastas que atrai ao reunir num mesmo local condenados muito diversos abafar os complôs e revoltas que se possam formar impedir que se formem cumplicidades futuras ou nasçam possibilidades de chantagem no dia em que os detentos se encontrarem livres criar obstáculo à imoralidade de tantas associações misteriosas Enfim que a prisão não forme a partir dos malfeitores que reúne uma população homogênea e solidária Existe entre nós neste momento uma sociedade organizada de criminosos formam uma pequena nação no seio da grande Quase todos esses homens se conheceram nas prisões ou nelas se encontram São os membros dessa sociedade que importa hoje dispersar12 Além disso a solidão deve ser um instrumento positivo de reforma Pela reflexão que suscita e pelo remorso que não pode deixar de chegar jogado na solidão o condenado reflete Colocado a sós em presença de seu crime ele aprende a odiálo e se sua alma ainda não estiver empedernida pelo mal é no isolamento que o remorso virá assaltalo13 Pelo fato também de que a solidão realiza uma espécie de autoregulação da pena e permite uma como que individualização espontânea do castigo quanto mais o condenado é capaz de refletir mais ele foi culpado de cometer seu crime mas mais também o remorso será vivo e a solidão dolorosa em compensação quando estiver profundamente arrependido e corrigido sem a menor dissimulação a solidão não lhe será mais pesada Assim segundo essa admirável disciplina cada inteligência e cada moralidade levam em si mesmas o princípio e a medida de uma repressão cuja certeza e invariável eqüidade não poderiam ser alteradas pelo erro e pela falibilidade humanas Não é em verdade como o selo de uma justiça divina e providencial14 Enfim e talvez principalmente o isolamento dos condenados garante que se possa exercer sobre eles com o máximo de intensidade um poder que não será abalado por nenhuma outra influência a solidão é a condição primeira da submissão total Imaginese dizia Charles Lucas evocando o papel do diretor do professor do sacerdote e das pessoas caridosas sobre o detento isolado imaginese a força da palavra humana que intervém no meio da terrível disciplina do silêncio para falar ao coração à alma à pessoa humana15 O isolamento assegura o encontro do detento a sós com o poder que se exerce sobre ele É nesse ponto que se situa a discussão sobre os dois sistemas americanos de encarceramento o de Auburn e o de Filadélfia Na realidade essa discussão que ocupa tanto lugar16 só se refere à realização de um isolamento admitido por todos O modelo de Auburn prescreve a cela individual durante a noite o trabalho e as refeições em comum mas sob a regra do silêncio absoluto os detentos só podendo falar com os guardas com a permissão destes e em voz baixa Referência clara tomada ao modelo monástico referência também tomada à disciplina de oficina A prisão deve ser um microcosmo de uma sociedade perfeita onde os indivíduos estão isolados em sua existência moral mas onde sua reunião se efetua num enquadramento hierárquico estrito sem relacionamento lateral só se podendo fazer comunicação no sentido vertical Vantagem do sistema auburniano segundo seus partidários é uma repetição da própria sociedade A coação é assegurada por meios materiais mas sobretudo por uma regra que se tem que aprender a respeitar e é garantida por uma vigilância e punições Mais que manter os condenados a sete chaves como uma fera em sua jaula devese associálo aos outros fazêlos participar em comum de exercícios úteis obrigálos em comum a bons hábitos prevenindo o contágio moral por uma vigilância ativa e mantendo o recolhimento pela regra do silêncio Esta regra habitua o detendo a considerar a lei como um preceito sagrado cuja infração acarreta um mal justo e legítimo17 Assim esse jogo do isolamento da reunião sem comunicação e da lei garantida por um controle ininterrupto deve requalificar o criminoso como indivíduo social ele o treina para uma atividade útil e resignada18 devolvelhe hábitos de sociabilidade19 No isolamento absoluto como em Filadélfia não se pede a requalificação do criminoso ao exercício de uma lei comum mas à relação do indivíduo com sua própria consciência e com aquilo que pode iluminálo de dentro20 Sozinho em sua cela o detento está entregue a si mesmo no silêncio de suas paixões e do mundo que o cerca ele desce à sua consciência interrogaa e sente despertar em si o sentimento moral que nunca perece inteiramente no coração do homem21 Não é portanto um respeito exterior pela lei ou apenas o receio da punição que vai agir sobre o detento mas o próprio trabalho de sua consciência Antes uma submissão profunda que um treinamento superficial uma mudança de moralidade e não de atitude Na prisão pensilvaniana as únicas operações da correção são a consciência e a arquitetura muda contra a qual ela esbarra Em Cherry Hill os muros são a punição do crime a cela põe o detento em presença de si mesmo ele é forçado a ouvir sua consciência Donde o fato de que o trabalho é aí antes um consolo que uma obrigação que os vigias não têm que exercer uma coação que é realizada pela materialidade das coisas e que sua autoridade conseqüentemente pode ser aceita A cada visita algumas palavras benevolentes saem dessa boca honesta e levam ao coração do detento junto com o reconhecimento a esperança e o consolo ele ama seu guarda e o ama porque este é suave e tem compaixão Os muros são terríveis e o homem é bom22 Nessa cela fechada sepulcro provisório facilmente crescem os mitos da ressurreição Depois da noite e do silêncio a vida regenerada Auburn era a própria vida renovada em seus vigores essenciais Cherry Hill a vida aniquilada e recomeçada O catolicismo recupera rapidamente em seus discursos essa técnica quaker Só vejo em vossa cela um horroroso sepulcro no qual em lugar dos vermes os remorsos e o desespero avançam em vossa direção para roervos e fazer de vossa existência um inferno antecipado Mas aquilo que para o prisioneiro sem religião não passa de uma tumba um ossário repulsivo tornase para o detento sinceramente cristão o próprio berço da imortalidade bemaventurada23 Na oposição entre esses dois modelos veio se fixar toda uma série de conflitos diferentes religioso deve a conversão ser a peça principal da correção médico o isolamento completo enlouquece econômico onde está o menor custo arquitetural e administrativo qual é a forma que garante a melhor vigilância Donde sem dúvida o tamanho da polêmica Mas no centro das discussões e tornandoas possíveis este objetivo primeiro da ação carceral a individualização coercitiva pela ruptura de qualquer relação que não seja controlada pelo poder ou ordenada de acordo com a hierarquia 2 O trabalho que se alterna com as refeições acompanha o detento até à oração da noite então um novo sono lhe dá um repouso agradável que não vem perturbar os fantasmas de uma imaginação desregrada Assim se passam seis dias da semana São seguidos por um dia exclusivamente consagrado à oração à instrução e a meditações salutares É assim que se sucedem e se substituem as semanas os meses os anos assim o prisioneiro que em sua entrada para o estabelecimento era um homem inconstante ou que só tinha convicção de sua irregularidade procurando destruir sua existência pela variedade de seus vícios tornase pouco a pouco pela força de um hábito inicialmente puramente exterior mas logo transformado em segunda natureza tão familiarizado com o trabalho e os gozos dele decorrentes que por pouco que uma instrução sábia tenha aberto sua alma ao arrependimento ele poderá ser exposto com mais confiança às tentações que lhe serão trazidas pela recuperação de sua liberdade24 O trabalho é definido junto com o isolamento como um agente da transformação carcerária E isso desde o código de 1808 Se a pena infligida pela lei tem por objetivo a reparação do crime ela pretende também que o culpado se emende e esse duplo objetivo será cumprido se o malfeitor for arrancado a essa ociosidade funesta que tendoo atirado à prisão aí viria encontrálo de novo e dele se apoderar para conduzilo ao último grau da depravação25 O trabalho não é nem uma adição nem um corretivo ao regime de detenção quer se trate de trabalhos forçados da reclusão do encarceramento é concebido pelo próprio legislador como tendo que acompanhála necessariamente Mas uma necessidade que justamente não é aquela de que falavam os reformadores do século XVIII quando queriam fazer da prisão ou um exemplo para o público ou uma reparação útil para a sociedade No regime carcerário a ligação do trabalho e da punição é de outro tipo Várias polêmicas surgidas na Restauração ou durante a monarquia de julho esclarecem a função que se empresta ao trabalho penal Discussão em primeiro lugar sobre o salário O trabalho dos detentos era remunerado na França Problema se uma retribuição recompensa o trabalho em prisão é porque esta não faz realmente parte da pena e o detento pode então recusálo Além disso o benefício recompensa a habilidade do operário e não a regeneração do culpado Os piores elementos são quase em toda parte os mais hábeis operários são os mais retribuídos conseqüentemente os mais intemperantes e os menos aptos ao arrependimento26 A discussão que nunca se encerrou totalmente recomeça e muito vivamente nos anos 18401845 época de crise econômica época de agitação operária época também em que começa a se cristalizar a oposição do operário e do delinqüente27 Há greves contra as oficinas de prisão quando um fabricante de luvas de Chaumont arranja para organizar uma oficina em Clairvaux os operários protestam declaram que seu trabalho está desonrado ocupam a manufatura e forçam o patrão a renunciar a seu projeto28 Há também uma campanha de imprensa nos jornais operários sobre o tema de que o governo favorece o trabalho penal para fazer baixar os salários livres sobre o tema de que os inconvenientes dessas oficinas de prisão são ainda mais graves para as mulheres a quem eles retiram o trabalho levandoas à prostituição portanto à prisão onde essas mesmas mulheres que não podiam mais trabalhar quando eram livres vêm então fazer concorrência às que ainda têm serviço29 sobre o tema de que se reservam aos detentos os trabalhos mais seguros os ladrões vivendo em prisões bem aquecidas e bem abrigados executam os trabalhos de chapelaria e de marcenaria enquanto o chapeleiro reduzido ao desemprego tem que ir ao abatedouro humano fabricar alvaiade a 2 francos por dia30 sobre o tema de que a filantropia dá muita importância às condições de trabalho dos detentos mas negligencia as do trabalhador livre Temos certeza de que se os prisioneiros trabalhassem com mercúrio por exemplo a ciência seria bem mais rápida do que é para encontrar meios de preservar os trabalhadores do perigo de suas emanações Esses pobres condenados diria aquele que quase não fala dos operários douradores Que se há de fazer é preciso ter matado ou roubado para atrair a compaixão ou o interesse dos outros Sobre o tema principalmente de que se a prisão tender a se tornar uma oficina logo para lá serão enviados os mendigos e os desempregados reconstituindo assim os velhos hospitais gerais da França ou as workhouses da Inglaterra31 Houve ainda principalmente depois da votação da lei de 1844 petições e cartas uma petição é recusada pela Câmara de Paris que achou desumano que se propusesse empregar assassinos ladrões em trabalhos que pertencem agora a alguns milhares de operários a Câmara preferiu Barrabás a nós32 operários tipógrafos enviam uma carta ao ministro ao tomarem conhecimento de que foi instalada uma gráfica na Central de Melun Tendes a escolher entre reprovados justamente atingidos pela lei e cidadãos que sacrificam seus dias na abnegação e na probidade à existência de suas famílias tanto quanto à riqueza da pátria33 Ora a toda essa campanha as respostas dadas pelo governo e pela admi nistração são muito constantes O trabalho penal não pode ser criticado pelo desemprego que provocaria com sua parca extensão seu fraco rendimento ele não pode ter incidência geral sobre a economia Não é como atividade de produção que ele é intrinsecamente útil mas pelos efeitos que toma na mecânica humana É um princípio de ordem e de regularidade pelas exigências que lhe são próprias veicula de maneira insensível as formas de um poder rigoroso sujeita os corpos a movimentos regulares exclui a agitação e a distração impõe uma hierarquia e uma vigilância que serão ainda mais bem aceitas e penetrarão ainda mais profundamente no comportamento dos condenados por fazerem parte de sua lógica com o trabalho a regra é introduzida numa prisão ela reina sem esforço sem emprego de nenhum meio repressivo e violento Ocupandose o detento sãolhe dados hábitos de ordem e de obediência tornamolo diligente e ativo de preguiçoso que era com o tempo ele encontra no movimento regular da casa nos trabalhos manuais a que foi submetido um remédio certo contra os desvios de sua imaginação34 O trabalho penal deve ser concebido como sendo por si mesmo uma maquinaria que transforma o prisioneiro violento agitado irrefletido em uma peça que desempenha seu papel com perfeita regularidade A prisão não é uma oficina ela é ela tem que ser em si mesma uma máquina de que os detentosoperários são ao mesmo tempo as engrenagens e os produtos ela os ocupa e isso continuamente mesmo se fora com o único objetivo de preencher seus momentos Quando o corpo se agita quando o espírito se aplica a um objeto determinado as idéias importunas se afastam a calma renasce na alma35 Se no fim das contas o trabalho da prisão tem um efeito econômico é produzindo indivíduos mecanizados segundo as normas gerais de uma sociedade industrial O trabalho é a providência dos povos modernos servelhes como moral preenche o vazio das crenças e passa por ser o princípio de todo bem O trabalho devia ser a religião das prisões A uma sociedademáquina seriam necessárias meios de reforma puramente mecânicas36 Fabricação de indivíduosmáquinas mas também de proletários efetivamente quando o homem possui apenas os braços como bens só poderá viver do produto de seu trabalho pelo exercício de uma profissão ou do produto do trabalho alheio pelo ofício do roubo ora se a prisão não obrigasse os malfeitores ao trabalho ela reproduziria em sua própria instituição pelo fisco essa vantagem de uns sobre o trabalho de outros A questão da ociosidade é a mesma que na sociedade é do trabalho dos outros que têm que viver os detentos se não vivem do seu próprio37 O trabalho pelo qual o condenado atende a suas próprias necessidades requalifica o ladrão em operário dócil E é nesse ponto que intervém a utilidade de uma retribuição pelo trabalho penal ela impõe ao detento a forma moral do salário como condição de sua existência O salário faz com que se adquira amor e hábito ao trabalho38 dá a esses malfeitores que ignoram a diferença entre o meu e o teu o sentido da propriedade daquela que se ganhou com o suor do rosto39 ensina lhes também a eles que viveram na dissipação o que é a previdência a poupança o cálculo do futuro40 enfim propondo uma medida do trabalho feito permite avaliar quantitativamente o zelo do detento e os progressos de sua regeneração41 O salário do trabalho penal não retribui uma produção funciona como motor e marca transformações individuais uma ficção jurídica pois não representa a livre cessão de uma força de trabalho mas um artifício que se supõe eficaz nas técnicas de correção A utilidade do trabalho penal Não é um lucro nem mesmo a formação de uma habilidade útil mas a constituição de uma relação de poder de uma forma econômica vazia de um esquema da submissão individual e de seu ajustamento a um aparelho de produção Imagem perfeita do trabalho de prisão a oficina de mulheres em Clairvaux a exatidão silenciosa da maquinaria humana atinge aí o rigor regulamentar do convento Num púlpito acima do qual há um crucifixo está sentada uma freira diante dela e alinhadas em duas fileiras as prisioneiras efetuam a tarefa que lhes é imposta e como domina quase exclusivamente o trabalho de agulha resulta que o mais rigoroso silêncio é constantemente mantido Parece que nessas salas tudo respira a penitência e a expiação Ocorrenos como por um movimento espontâneo os tempos dos veneráveis hábitos desta tão antiga habitação lembranos os penitentes voluntários que aqui se fechavam para dizer adeus ao mundo42 3 Mas a prisão excede a simples privação de liberdade de uma maneira mais importante Ela tende a tornarse um instrumento de modulação da pena um aparelho que através da execução da sentença de que está encarregado teria o direito de retomar pelo menos em parte seu princípio É claro que esse direito não foi recebido pela instituição carcerária no século XIX nem mesmo ainda no XX salvo sob uma forma fragmentária por via das liberações condicionais das semiliberdades da organização das centrais de reforma Mas devese notar que foi muito cedo reclamado pelos responsáveis pela administração penitenciária como a própria condição de um bom funcionamento da prisão e de sua eficácia nessa tarefa de regeneração que a própria justiça lhe confia Assim para a duração do castigo ela permite quantificar exatamente as penas graduálas segundo as circunstâncias e dar ao castigo legal a forma mais ou menos explícita de um salário mas corre o risco de não ter valor corretivo se for fixada em caráter definitivo ao nível do julgamento A extensão da pena não deve medir o valor de troca da infração ela deve se ajustar à transformação útil do detento no decorrer de sua condenação Não um tempomedida mas um tempo com meta prefixada Mais que a forma do salário a forma da operação Do mesmo modo que o médico prudente pára a medicação ou continua com ela conforme o doente tenha ou não chegado à cura perfeita assim também na primeira dessas duas hipóteses a expiação deveria cessar diante da regeneração completa do condenado pois nesse caso qualquer detenção se terá tornado inútil e portanto tão desumana para com o regenerado quanto inútil e onerosa para o Estado43 A justa duração da pena deve portanto variar não só com o ato e suas circunstâncias mas com a própria pena tal como ela se desenrola concretamente O que eqüivale a dizer que se a pena deve ser individualizada não é a partir do indivíduoinfrator sujeito jurídico de seu ato autor responsável do delito mas a partir do indivíduo punido objeto de uma matéria controlada de transformação o indivíduo em detenção inserido no aparelho carcerário modificado por este ou a ele reagindo O importante é apenas reformar o mau Uma vez operada essa reforma o criminoso deve voltar à sociedade44 A qualidade e o conteúdo da infração não deveriam tampouco ser determinados só pela natureza da infração A gravidade jurídica de um crime não tem absolutamente valor de sinal unívoco para o caráter corrigível ou não do condenado Particularmente a distinção crimecontravenção a que o código faz corresponder a distinção entre prisão e reclusão ou trabalhos forçados não é operatória em termos de regeneração É a opinião quase geral formulada pelos diretores de penitenciárias quando de uma pesquisa feita pelo ministério em 1836 Os contraventores são em geral os mais viciosos Entre os criminosos encontram se muitos homens que sucumbiram à violência de suas paixões e às necessidades de uma família numerosa O comportamento dos criminosos é bem melhor que o dos contraventores os primeiros são mais submissos mais laboriosos que os últimos que são em geral ladinos devassos preguiçosos45 Donde a idéia de que o rigor punitivo não deve estar em proporção direta com a importância penal do ato condenado Nem determinado de uma vez por todas Operação corretora o encarceramento tem suas exigências e peripécias próprias Seus efeitos é que devem determinar suas etapas agravações temporárias atenuações sucessivas o que Charles Lucas chamava a classificação móvel das moralidades O sistema progressivo aplicado em Genebra desde 182546 foi muitas vezes reclamado na França Sob a forma por exemplo dos três setores o de prova para a generalidade dos detentos o setor de punição e o setor de recompensa para os que estão no caminho da melhora47 Ou sob a forma das quatro fases período de intimidação privação de trabalho e de qualquer relação interior ou exterior período de trabalho isolamento mas trabalho que depois da fase de ociosidade forçada seria acolhido como um benefício regime de moralização conferências mais ou menos freqüentes com os diretores e os visitantes oficiais período de trabalho em comum48 Se o princípio da pena é sem dúvida uma decisão de justiça sua gestão sua qualidade e seus rigores devem pertencer a um mecanismo autônomo que controla os efeitos da punição no próprio interior do aparelho que os produz Todo um regime de punições e de recompensas que não é simplesmente uma maneira de fazer respeitar o regulamento da prisão mas de tornar efetiva a ação da prisão sobre os detentos Acontece que a própria autoridade judiciária o reconheça Não devemos dizia a Corte de Cassação consultada a respeito do projeto de lei sobre as prisões nos espantar com a idéia de conceder recompensas que poderão consistir seja num pecúlio maior seja num melhor regime alimentar seja mesmo em abreviações de pena Se alguma coisa há que possa despertar no espírito dos condenados as noções de bem e de mal leválos a considerações morais e eleválos um pouco a seus próprios olhos é a possibilidade de conseguir alguma recompensa49 E para todos esses atos que retificam a pena à medida que ela se desenrola é forçoso admitir que as instâncias judiciárias não podem ter autoridade imediata Tratase com efeito de medidas que por definição só poderiam intervir depois do julgamento e só podem agir sobre as coisas que não sejam infrações Autonomia indispensável por conseguinte do pessoal que gere a detenção quando importa individualizar e variar a aplicação da pena fiscais um diretor de estabelecimento um sacerdote ou um professor são mais capazes de exercer essa função corretiva que os detentores do poder penal É seu julgamento entendido como constatação diagnóstico caracterização precisão classificação diferencial e não mais um veredicto em forma de determinação de culpa que deve servir de suporte a essa modulação interna da pena a sua atenuação ou mesmo a sua interrupção Quando Bonneville em 1846 apresentou seu projeto de liberdade condicional ele a definiu como o direito que teria a administração com opinião favorável da autoridade judiciária de pôr em liberdade provisória depois de um tempo suficiente de expiação e mediante certas condições o condenado completamente regenerado com a possibilidade de reintegrálo à prisão à mínima queixa fundamentada50 Todo aquele arbitrário que no antigo regime penal permitia aos juizes modular a pena e aos príncipes eventualmente dar fim a ela todo aquele arbitrário que os códigos modernos retiraram do poder judiciário vemolo se reconstituir progressivamente do lado do poder que gere e controla a punição Soberania sábia do guardião Verdadeiro magistrado chamado a reinar soberanamente na casa e que deve para não estar abaixo de sua missão unir à mais eminente virtude uma ciência profunda dos homens51 E chegamos formulado claramente por Charles Lucas a um princípio que bem poucos juristas ousariam hoje admitir sem reticências se bem que ele marque a direção essencial do funcionamento penal moderno chamemolo a Declaração de Independência carcerária que reivindica o direito de ser um poder que tem não somente sua autonomia administrativa mas como que uma parte da soberania punitiva Essa afirmação dos direitos da prisão coloca em princípio que o julgamento criminal é uma unidade arbitrária que tem que ser decomposta que os redatores dos códigos já tiveram razão de distinguir o nível legislativo que classifica os atos e lhes atribui as penas e o nível do julgamento que exara as sentenças que a tarefa hoje é analisar por sua vez esse último nível que é preciso distinguir nele o que é propriamente judiciário apreciar menos os atos que os agentes medir as intencionalidades que dão aos atos humanos tantas moralidades diversas e portanto retificar se possível as avaliações do legislador e dar autonomia ao julgamento penitenciário o que é talvez o mais importante em relação a ele a avaliação do tribunal não passa de uma maneira de prejulgar pois a moralidade do agente só pode ser apreciada quando posta à prova O juiz precisa portanto por sua vez de um controle necessário e retificativo de suas avaliações e é esse controle que a prisão penitenciária deve fornecer52 Podese portanto falar de um excesso ou de uma série de excessos do encarceramento em relação à detenção legal do carcerário em relação ao judiciário Ora esse excesso é desde muito cedo constatado desde o nascimento da prisão seja sob a forma de práticas reais seja sob a forma de projetos Ele não veio em seguida como um efeito secundário A grande maquinaria carcerária está ligada ao próprio funcionamento da prisão Podemos bem ver o sinal dessa autonomia nas violências inúteis dos guardas ou no despotismo de uma administração que tem os privilégios das quatro paredes Sua raiz está em outra parte no fato justamente de que se pede à prisão que seja útil no fato de que a privação de liberdade essa retirada jurídica sobre um bem ideal teve desde o início que exercer um papel técnico positivo realizar transformações nos indivíduos E para essa operação o aparelho carcerário recorreu a três grandes esquemas o esquema políticomoral do isolamento individual e da hierarquia o modelo econômico da força aplicada a um trabalho obrigatório o modelo técnicomédico da cura e da normalização A cela a oficina o hospital A margem pela qual a prisão excede a detenção é preenchida de fato por técnicas de tipo disciplinar E esse suplemento disciplinar em relação ao jurídico é a isso em suma que se chama o penitenciário Este acréscimo não foi aceito sem problemas Questão que foi primeiro de princípio a pena não deve ser mais nada além da privação da liberdade como nossos atuais governantes Decazes o dizia mas com o brilho de sua linguagem A lei deve seguir o culpado à prisão onde o levou53 Mas rapidamente e isso é um fato característico esses debates se tornarão batalha para a apropriação do controle desse suplemento penitenciário os juizes pedirão direito de vista sobre os mecanismos carcerários A moralização dos detentos exige numerosos cooperadores só com visitas de inspeção comissões de fiscalização sociedades patrocinadoras ela pode se realizar Precisa então de auxiliares e é a magistratura que deve fornecêlos54 Desde aquela época a ordem penitenciária adquiria consistência bastante para que se pudesse procurar não desfazêla mas tomála a seu cargo Eis então o juiz assaltado pelo desejo da prisão Disso nascerá um século depois um filho bastardo e entretanto disforme o juiz da aplicação das penas Mas se o penitenciário em seu excesso em relação à detenção pôde de fato se impor bem mais apanhar toda a justiça penal e trancar os próprios juizes é porque ele conseguiu introduzir a justiça criminal em relações de saber que agora se tornaram para ela seu labirinto infinito A prisão local de execução da pena é ao mesmo tempo local de observação dos indivíduos punidos Em dois sentidos Vigilância é claro Mas também conhecimento de cada detento de seu comportamento de suas disposições profundas de sua progressiva melhora as prisões devem ser concebidas como um local de formação para um saber clínico sobre os condenados o sistema penitenciário não pode ser uma concepção a priori é uma indução do estado social Há doenças morais assim como acidentes da saúde em que o tratamento depende do foco e da direção do mal55 O que implica em dois dispositivos essenciais É preciso que o prisioneiro possa ser mantido sob um olhar permanente é preciso que sejam registradas e contabilizadas todas as anotações que se possa tomar sobre eles O tema do Panóptico ao mesmo tempo vigilância e observação segurança e saber individualização e totalização isolamento e transparência encontrou na prisão seu local privilegiado de realização Se é verdade que os processos panópticos como formas concretas de exercício do poder tiveram pelo menos em estado disperso larga difusão foi só nas instituições penitenciárias que a utopia de Bentham pôde num bloco tomar forma material O Panóptico tornouse por volta dos anos 1830 1840 o programa arquitetural da maior parte dos projetos de prisão Era a maneira mais direta de traduzir na pedra a inteligência da disciplina56 de tornar a arquitetura transparente à gestão do poder57 de permitir que a força ou as coações violentas fossem substituídas pela eficácia suave de uma vigilância sem falha de ordenar o espaço segundo a recente humanização dos códigos e a nova teoria penitenciária A autoridade por um lado e o arquiteto por outro têm que saber se as prisões devem ser combinadas no sentido da suavização das penas ou num sistema de regeneração dos culpados e em conformidade com uma legislação que remontando à origem dos vícios do povo se torna um princípio regenerador das virtudes que este deve praticar58 No total constituir uma prisãomáquina59 com uma cela de visibilidade onde o detento se encontrará preso como na casa de vidro do filósofo grego60 e um ponto central de onde um olhar permanente possa controlar ao mesmo tempo os prisioneiros e o pessoal Em torno dessas duas exigências muitas variações possíveis o Panóptico benthamiano em sua forma estrita ou em semicírculo ou em forma de cruz ou a disposição em estrela61 No meio de todas essas discussões o ministro do Interior em 1841 lembra os princípios fundamentais A sala central de inspeção é o eixo do sistema Sem ponto central de inspeção a vigilância deixa de ser assegurada contínua e geral pois é impossível ter inteira confiança na atividade no zelo e na inteligência do preposto que vigia imediatamente as celas O arquiteto deve então colocar toda a sua atenção nesse objeto há aí ao mesmo tempo uma questão de disciplina e de economia Quanto mais for exata e fácil a vigilância menos será necessário procurar na força dos edifícios garantias contra as tentativas de evasão e contra as comunicações dos detentos entre si Ora a vigilância será perfeita se de uma sala central o diretor ou o preposto em chefe sem mudar de lugar vê sem ser visto não só a entrada de todas as celas e até o interior do maior número de celas quando a porta está toda aberta mas ainda os vigias destacados à guarda dos prisioneiros em todos os andares com a fórmula das prisões circulares ou semicirculares seria aparentemente possível ver de um centro único todos os prisioneiros em suas celas e os guardas nas galerias de vigilância62 Mas o Panóptico penitenciário é também um sistema de documentação individualizante e permanente No mesmo ano em que se recomendava as variantes do sistema benthamiano para construir as prisões tornavase obrigatório o sistema de conta moral boletim individual de modelo uniforme em todas as prisões e no qual o diretor ou o chefe dos guardas o sacerdote o professor são chamados a inscrever suas observações a respeito de cada detento É de certo modo a vademécum da administração da prisão que lhe dá condições de avaliar cada caso cada circunstância e de tornar claro em conseqüência o tratamento a ser aplicado a cada prisioneiro individualmente63 Muitos outros sistemas de registro bem mais completos foram projetados ou tentados64 Tratase de qualquer maneira de fazer da prisão um local de constituição de um saber que deve servir de princípio regulador para o exercício da prática penitenciária A prisão não tem só que conhecer a decisão dos juizes e aplicála em função dos regulamentos estabelecidos ela tem que coletar permanentemente do detento um saber que permitirá transformar a medida penal em uma operação penitenciária que fará da pena tornada necessária pela infração uma modificação do detento útil para a sociedade A autonomia do regime carcerário e o saber que ela torna possível permitem multiplicar essa utilidade da pena que o código colocara no princípio de sua filosofia punitiva Quanto ao diretor ele não pode perder nenhum detento de vista porque em qualquer setor que se encontre o detento esteja ele entrando esteja ele saindo ou que fique o diretor deve igualmente justificar os motivos de sua manutenção em tal classe ou de sua passagem para tal outra É um verdadeiro contador Cada detento é para ele na esfera da educação individual um capital colocado no interesse penitenciário65 A prática penal tecnologia sábia rentabiliza o capital investido no sistema penal e a construção das pesadas prisões Correlatamente o delinqüente tornase indivíduo a conhecer Esta exigência de saber não se insere em primeira instância no próprio ato jurídico para melhor fundamentar a sentença e determinar na verdade a medida da culpa É como condenado e a título de ponto de aplicação de mecanismos punitivos que o infrator se constitui como objeto de saber possível Mas isso implica em que o aparelho penitenciário com todo o programa tecnológico de que é acompanhado efetue uma curiosa substituição das mãos da justiça ele recebe um condenado mas aquilo sobre que ele deve ser aplicado não é a infração é claro nem mesmo exatamente o infrator mas um objeto um pouco diferente e definido por variáveis que pelo menos no início não foram levadas em conta na sentença pois só eram pertinentes para uma tecnologia corretiva Esse outro personagem que o aparelho penitenciário coloca no lugar do infrator condenado é o delinqüente O delinqüente se distingue do infrator pelo fato de não ser tanto seu ato quanto sua vida o que mais o caracteriza A operação penitenciária para ser uma verdadeira reeducação deve totalizar a existência do delinqüente tornar a prisão uma espécie de teatro artificial e coercitivo onde é preciso refazêla totalmente O castigo legal se refere a um ato a técnica punitiva a uma vida cabelhe por conseguinte reconstituir o ínfimo e o pior na forma do saber cabelhe modificar seus efeitos ou preencher suas lacunas através de uma prática coercitiva Conhecimento da biografia e técnica da existência retreinada A observação do delinqüente deve remontar não só às circunstâncias mas às causas de seu crime procurálas na história de sua vida sob o triplo ponto de vista da organização da posição social e da educação para conhecer e constatar as inclinações perigosas da primeira as predisposições nocivas da segunda e os maus antecedentes da terceira Esse inquérito biográfico é parte essencial da instrução judiciária para a classificação das penalidades antes de se tornar uma condição do sistema penitenciário para a classificação das moralidades Deve acompanhar o detento do tribunal à prisão onde o ofício do diretor é não somente recolher mas também completar controlar e retificar seus elementos no decorrer da detenção66 Por trás do infrator a quem o inquérito dos fatos pode atribuir a respon sabilidade de um delito revelase o caráter delinqüente cuja lenta formação transparece na investigação biográfica A introdução do biográfico é importante na história da penalidade Porque ele faz existir o criminoso antes do crime e num raciocíniolimite fora deste E porque a partir daí uma causalidade psicológica vai acompanhando a determinação jurídica da responsabilidade confundirlhe os efeitos Entramos então no dédalo criminológico de que estamos bem longe de ter saído hoje em dia qualquer causa que como determinação só pode diminuir a responsabilidade marca o autor da infração com uma criminalidade ainda mais temível e que exige medidas penitenciárias ainda mais estritas À medida que a biografia do criminoso acompanha na prática penal a análise das circunstâncias quando se trata de medir o crime vemos os discursos penal e psiquiátrico confundirem suas fronteiras e aí em seu ponto de junção formase aquela noção de indivíduo perigoso que permite estabelecer uma rede de causalidade na escala de uma biografia inteira e estabelecer um veredicto de puniçãocorreção67 O delinqüente se distingue também do infrator pelo fato de não somente ser o autor de seu ato autor responsável em função de certos critérios da vontade livre e consciente mas também de estar amarrado a seu delito por um feixe de fios complexos instintos pulsões tendências temperamento A técnica penitenciária se exerce não sobre a relação de autoria mas sobre a afinidade do criminoso com seu crime O delinqüente manifestação singular de um fenômeno global de criminalidade se distribui em classes quase naturais dotadas cada uma de suas características definidas e a cada uma cabendo um tratamento específico como o que MarquetWasselot chamava em 1841 de Ethnographie des prisons Os condenados são outro povo num mesmo povo que tem seus hábitos seus instintos seus costumes à parte68 Estamos aí ainda muito próximos das descrições pitorescas do mundo dos malfeitores velha tradição que remonta longe e se revigora na primeira metade do século XIX no momento em que a percepção de outra forma de vida vem se articular sobre a de outra classe e outra espécie humana Uma zoologia das subespécies sociais uma etnologia das civilizações de malfeitores com seus ritos e língua se esboçam numa forma de paródia Mas aí se manifesta entretanto o trabalho de constituição de uma nova objetividade onde o criminoso pertence a uma tipologia ao mesmo tempo natural e desviante A delinqüência desvio patológico da espécie humana pode ser analisada como síndromes mórbidas ou como grandes formas teratológicas Com a classificação de Ferrus temos uma das primeiras conversões da velha etnografia do crime em uma tipologia sistemática dos delinqüentes É uma análise rápida é verdade mas nela vemos funcionar claramente o princípio de que a delinqüência deve ser especificada menos em função da lei que da norma Três tipos de condenados Há os que são dotados de recursos intelectuais superiores à média de inteligência que estabelecemos mas que se tornam perversos quer pelas tendências de sua organização e predisposição inata quer por uma lógica perniciosa por uma moral iníqua por uma perigosa apreciação dos deveres sociais Para esses seria necessário o isolamento de dia e de noite o passeio solitário e quando for preciso mantêlos em contato com os outros usar uma máscara leve em tela metálica parecida com as que se usam para cortar pedras ou na esgrima A segunda categoria é feita de condenados viciosos limitados embrutecidos ou passivos que são arrastados ao mal por indiferença pela vergonha como pelo bem por covardia por preguiça digamos e falta de resistência às más incitações o regime que lhes convém é mais de educação do que de repressão e se possível de educação mútua isolamento de noite trabalho em comum de dia conversas permitidas só em voz alta leituras em comum seguidas de interrogações recíprocas sancionadas por recompensas Enfim há os condenados inaptos ou incapazes que uma organização incompleta torna impróprios para qualquer ocupação que exija esforços pensados e força de vontade que se encontram então na impossibilidade de sustentar a concorrência do trabalho com os operários inteligentes e não tendo nem instrução bastante para conhecer os deveres sociais nem inteligência bastante para compreendêlos e combater seus instintos pessoais são levados ao crime por sua própria incapacidade Para esses a solidão só serviria para fomentar a inércia devem portanto viver em comum mas de maneira a formar grupos pouco numerosos sempre estimulados por ocupações coletivas e submetidos a uma vigilância rígida69 Assim se estabelece progressivamente um conhecimento positivo dos delinqüentes e de suas espécies muito diferente da qualificação jurídica dos delitos e de suas circunstâncias mas distinto também do conhecimento médico que permite ressaltar a loucura do indivíduo e apagar conseqüentemente o caráter delituoso do ato Ferrus enuncia claramente o princípio Os criminosos considerados em massa são apenas loucos haveria injustiça para com esses últimos se os confundíssemos com homens coincidentemente perversos Nesse novo saber importa qualificar cientificamente o ato enquanto delito e principalmente o indivíduo enquanto delinqüente Surge a possibilidade de uma criminologia O correlativo da justiça penal é o próprio infrator mas o do aparelho penitenciário é outra pessoa é o delinqüente unidade biográfica núcleo de periculosidade representante de um tipo de anomalia E se é verdade que à detenção privativa de liberdade que o direito definira a prisão acrescentou o suplemento do penitenciário este por sua vez introduziu um personagem a mais que se meteu entre aquele que a lei condena e aquela que executa essa lei Onde desapareceu o corpo marcado recortado queimado aniquilado do supliciado apareceu o corpo do prisioneiro acompanhado pela individualidade do delinqüente pela pequena alma do criminoso que o próprio aparelho do castigo fabricou como ponto de aplicação do poder de punir e como objeto do que ainda hoje se chama a ciência penitenciária Dizem que a prisão fabrica delinqüentes é verdade que ela leva de novo quase fatalmente diante dos tribunais aqueles que lhe foram confiados Mas ela os fabrica no outro sentido de que ela introduziu no jogo da lei e da infração do juiz e do infrator do condenado e do carrasco a realidade incorpórea da delinqüência que os liga uns aos outros e há um século e meio os pega todos juntos na mesma armadilha A técnica penitenciária e o homem delinqüente são de algum modo irmãos gêmeos Ninguém creia que foi a descoberta do delinqüente por uma racionalidade científica que trouxe para as velhas prisões o aperfeiçoamento das técnicas penitenciárias Nem tampouco que a elaboração interna dos métodos penitenciários terminou trazendo à luz a existência objetiva de uma delinqüência que a abstração e a inflexibilidade judiciárias não podiam perceber Elas apareceram as duas juntas e no prolongamento uma da outra como um conjunto tecnológico que forma e recorta o objeto a que aplica seus instrumentos E é essa delinqüência formada nos subterrâneos do aparelho judiciário ao nível das obras vis de que a justiça desvia os olhos pela vergonha que sente de punir os que condena é ela que se faz presente agora nos tribunais serenos e na majestade das leis ela é que tem que ser conhecida avaliada medida diagnosticada tratada quando se proferem sentenças é ela agora essa anomalia esse desvio esse perigo inexorável essa doença essa forma de existência que deverão ser considerados ao se reelaborarem os códigos A delinqüência é a vingança da prisão contra a justiça Revanche tão temível que pode fazer calar o juiz É então que os criminologistas se impõem Mas devemos não esquecer que a prisão figura concentrada e austera de todas as disciplinas não é um elemento endógeno no sistema penal definido entre os séculos XVIII e XIX O tema de uma sociedade punitiva e de uma semiotécnica geral da punição que sustentou os códigos ideológicos beccarianos ou benthamianos não fazia apelo ao uso universal da prisão Essa prisão vem de outro lugar dos mecanismos próprios a um poder disciplinar Ora apesar dessa heterogeneidade os mecanismos e os efeitos da prisão se difundiram ao longo de toda a justiça criminal moderna a delinqüência e os delinqüentes a infestaram toda Será necessário procurar a razão dessa temível eficácia da prisão Mas já podemos anotar uma coisa a justiça penal definida no século XVIII pelos reformadores traçava duas linhas de objetivação possíveis do criminoso mas duas linhas divergentes uma era a série dos monstros morais ou políticos caídos do pacto social outra a do sujeito jurídico requalificado pela punição Ora o delinqüente permite justamente unir as duas linhas e constituir com a caução da medicina da psicologia ou da criminologia um indivíduo no qual o infrator da lei e o objeto de uma técnica científica se superpõem aproximadamente Que o enxerto da prisão no sistema penal não tenha acarretado reação violenta de rejeição se deve sem dúvida a muitas razões Uma delas é que ao fabricar delinqüência ela deu à justiça criminal um campo unitário de objetos autentificado por ciências e que assim lhe permitiu funcionar num horizonte geral de verdade A prisão essa região mais sombria do aparelho de justiça é o local onde o poder de punir que não ousa mais se exercer com o rosto descoberto organiza silenciosamente um campo de objetividade em que o castigo poderá funcionar em plena luz como terapêutica e a sentença se inscrever entre os discursos do saber Compreendese que a justiça tenha adotado tão facilmente uma prisão que não fora entretanto filha de seus pensamentos Ela lhe era agradecida por isso CAPÍTULO II ILEGALIDADE E DELINQÜÊNCIA No que se refere à lei a detenção pode ser privação de liberdade O encarceramento que a realiza sempre comportou um projeto técnico A passagem dos suplícios com seus rituais de ostentação com sua arte misturada à cerimônia do sofrimento a penas de prisões enterradas em arquiteturas maciças e guardadas pelo segredo das repartições não é passagem a uma penalidade indiferenciada abstrata e confusa é a passagem de uma arte de punir a outra não menos científica que ela Mutação técnica Dessa passagem um sintoma e um resumo a substituição em 1837 da cadeia dos forçados pelo carro celular A cadeia tradição que remontava à época das galeras ainda subsistia sob a monarquia de julho A importância que parece ter adquirido como espetáculo no começo do século XIX talvez esteja ligada ao fato de que ela juntava numa só manifestação dois modos de castigo o caminho para a detenção se desenrolava como um cerimonial de suplício1 Os relatos da última cadeia na verdade as que cruzaram a França em todos os sentidos no verão de 1836 e de seus escândalos permitem encontrar esse funcionamento bem estranho às regras da ciência penitenciária A saída um ritual de cadafalso é a selagem das coleiras de ferro e das cadeias no pátio de Bicêtre o forçado fica com a nuca virada sobre a bigorna como uma estaca de ferro mas desta vez a arte do carrasco ao martelar é não esmagar a cabeça habilidade invertida que sabe não dar a morte O grande pátio de Bicêtre exibe os instrumentos do suplício várias fileiras de cadeias com suas gargantilhas Os artoupans chefes dos guardas ferreiros temporários dispõem a bigorna e o martelo À grade do caminho da ronda estão coladas todas aquelas cabeças com uma expressão indiferente ou atrevida e que o operador vai rebitar Mais alto em todos os andares da prisão vêemse pernas e braços pendurados pelas grades dos cubículos parecendo um bazar de carne humana são os detentos que vêm assistir à toalete de seus companheiros da véspera eilos na atitude do sacrifício Estão sentados no chão emparelhados ao acaso e de acordo com o tamanho esses ferros de que cada um deve levar 8 libras por seu lado pesamlhes sobre os joelhos O operador passaos em revista tomando a medida das cabeças e adaptando os enormes colares de uma polegada de espessura Para rebitar uma gargantilha é necessário o concurso de três carrascos um agüenta a bigorna o outro mantém reunidos os dois lados do colar de ferro e preserva com os dois braços estendidos a cabeça do paciente e o terceiro bate com pancadas redobradas e achata o cravo sob seu martelo maciço Cada golpe abala a cabeça e o corpo aliás não se pensa no perigo que a vítima poderia correr se o martelo se desviasse esta impressão é nula ou antes ela se desfaz diante da impressão profunda de horror que se experimenta ao contemplar a criatura de Deus num tal rebaixamento2 Depois é a dimensão do espetáculo público segunda a Gazette des tribunaux3 mais de 100000 pessoas vêem a cadeia partir de Paris a 19 de julho A descida da Courtille ao Mardi Gras A ordem e a riqueza vêm ver passar de longe a grande tribo nômade acorrentada essa outra espécie a raça diferente que tem o privilégio de povoar os campos de trabalhos forçados e as prisões Já os espectadores populares como no tempo dos suplícios públicos levam avante com os condenados as trocas ambíguas de injúrias de ameaças de encorajamentos de golpes de sinais de ódio ou de cumplicidade Qualquer coisa de violento se ergue e não pára de correr ao longo de toda a procissão cólera contra uma justiça severa ou indulgente em excesso gritos contra criminosos detestados movimentos a favor dos prisioneiros conhecidos e que são saudados defrontações com a polícia Durante todo o trajeto percorrido desde a barreira de Fontainebleau grupos de exaltados davam gritos de indignação contra Delacollonge Abaixo o padre diziam abaixo esse homem execrável deveriam ter feito justiça com ele Sem a energia e a firmeza da guarda municipal poderiam ter sido cometidas graves desordens Em Vaugirard eram as mulheres que estavam mais furiosas Gritavam Abaixo o mau padre Abaixo o monstro Delacollonge Os delegados de polícia de Montrouge de Vaugirard e vários prefeitos e seus assessores acorreram com a Echarpe aberta para fazer respeitar a decisão da justiça A pouca distância de Issy François percebendo M Allard e os agentes da brigada lançou sobre eles sua gamela de madeira Lembraramse então que a família de alguns antigos companheiros desse condenado morava em Ivry Desde esse momento os inspetores do serviço se escalonaram pela estrada e acompanharam de perto a carroça dos forçados Os do cordão de Paris sem exceção lançaram cada um sua gamela de madeira à cabeça dos agentes e alguns foram atingidos Nesse momento a multidão se encolerizou e uns se atiravam contra os outros4 Entre Bicêtre e Sèvres um número considerável de casas teria sido pilhado durante a passagem da cadeia5 Nessa festa dos condenados que partem há um pouco dos ritos do bode expiatório que é surrado ao ser banido um pouco da festa dos loucos onde se pratica a inversão dos papéis uma parte das velhas cerimônias de cadafalso onde a verdade deve brilhar em plena luz do dia uma parte também daqueles espetáculos populares onde se vêm reconhecer os personagens famosos ou os tipos tradicionais jogo da verdade e da infâmia desfile da notoriedade e da vergonha invectivas contra os culpados que se desmascaram e por outro lado alegre confissão dos crimes Todos procuram reconhecer o rosto dos criminosos que tiveram sua glória folhas volantes recordam os crimes dos que se vêem passar os jornais com antecedência dão seus nomes e contam suas vidas às vezes fazem a descrição deles descrevem sua roupa para que sua identidade não possa escapar programas para os espectadores6 O povo vem também contemplar tipos de criminosos tentar distinguir pelo traje ou pelo rosto a profissão do condenado se é assassino ou ladrão jogo de máscaras e marionetes mas onde se introduz também para olhares mais educados como que uma etnografia empírica do crime Dos espetáculos de saltimbancos à frenologia de Gall utilizamse de acordo com o meio a que se pertence as semiologias do crime de que se dispõe As fisionomias são tão variadas quanto os trajes aqui uma cabeça majestosa como as figuras de Murillo lá um rosto depravado enquadrado por sobrancelhas espessas que anuncia uma energia de um celerado específico acolá uma cabeça de árabe se ergue sobre um corpo de garoto Aqui vemos traços femininos e suaves são cúmplices olhai essas figuras lustrosas de devassidão são os preceptores7 A esse jogo respondem os próprios condenados arvorando seus crimes e dando a representação de sua falta é uma das funções da tatuagem vinheta de sua proeza ou de seu destino Eles levam as insígnias seja uma guilhotina tatuada no braço esquerdo seja no peito um punhal enterrado num coração que sangra Ao passar representam em gestos a cena de seu crime debocham dos juizes ou da polícia gabamse de malfeitos que não foram descobertos François o antigo cúmplice de Lacenaire conta que é o inventor de um método para matar um homem sem fazêlo gritar e sem derramar uma gota de sangue A grande feira ambulante do crime tinha seus truões e suas máscaras onde a afirmação cômica da verdade respondia à curiosidade e às invectivas Toda uma série de cenas naquele verão de 1836 em torno de Delacollonge a seu crime ele cortara em pedaços a amante grávida sua qualidade de sacerdote dera muita ostentação permitiralhe também escapar do cadafalso Parece que foi perseguido por um grande ódio popular Já antes na carroça que o levara a Paris em junho de 1836 ele fora insultado e não conseguira reter as lágrimas não quisera entretanto ser transportado de carro considerando que a humilhação fazia parte de seu castigo À partida de Paris não se pode imaginar o que a multidão esgotou como indignação virtuosa cólera moral e covardia sobre esse homem ele foi coberto de terra e de lama as pedras choviamlhe em cima com os gritos da fúria pública Era uma incrível explosão de raiva as mulheres principalmente verdadeiras fúrias mostravam uma inacreditável exaltação de ódio8 Para protegêlo mandamno trocar de roupa Alguns espectadores enganados pensam reconhecêlo em François Que de brincadeira aceita o papel mas à comédia do crime que não cometeu ele acrescenta a do padre que não é ao relato de seu crime mistura orações e grandes gestos de bênção dirigidos à multidão que o invectiva e ri A alguns passos de lá o verdadeiro Delacollonge que parecia um mártir sofria a dupla afronta dos insultos que não recebia mas lhe eram dirigidos e do ridículo que fazia reaparecer sob a forma de outro criminoso o padre que ele era e que quisera esconder Sua paixão era representada sob seus olhos por um bufão assassino a que estava acorrentado Em todas as cidades por onde passava a cadeia trazia consigo a festa eram as saturnais do castigo nela a pena virava privilégio E por uma curiosa tradição que de seu lado parece escapar aos ritos comuns dos suplícios provocava nos condenados menos as marcas obrigadas do arrependimento que a explosão de uma alegria louca que negava a punição Ao ornamento da coleira e dos ferros os próprios forçados juntavam o enfeite de fitas de palha trançada de flores ou de uma roupa preciosa A cadeia é a roda e a dança é o acasalamento também o casamento forçado no amor proibido Núpcias festa e sagração sob as correntes Eles acorrem diante dos ferros com um buquê na mão fitas ou borlas de palha enfeitam seus bonés e os mais hábeis preparam capacetes com cimeira Outros usam meias com aberturas em tamancos ou um colete na moda por baixo de uma blusa de trabalho9 E durante toda a tarde que se seguia à ferração a cadeia formava uma grande farândola que girava sem parar no pátio de Bicêtre Ai dos vigias se a cadeia os reconhecesse ela os embrulhava e os sufocava em seus anéis os forçados permaneciam donos do campo de batalha até o fim do dia10 O sabá dos condenados respondia ao cerimonial da justiça com faustos que inventava Invertia os esplendores a ordem do poder e seus sinais as formas do prazer Mas alguma coisa do sabá político não estava longe Só sendo surdo para não se ouvir um pouco desses novos acentos Os forçados cantavam canções de marcha de celebridade rápida e que durante muito tempo foram repetidas em toda parte Encontravase aí sem dúvida o eco das queixas emprestadas aos criminosos pelas folhas volantes afirmação do crime heroicização negra evocação de castigos terríveis e do ódio geral que os cerca Fama a nós as trombetas Coragem crianças soframos sem estremecer o destino horrível que paira sobre nossas cabeças Nossos ferros são pesados mas nós os suportaremos Para os forçados não há voz que se eleve aliviemolos Há entretanto nesses cantos coletivos uma outra tonalidade invertese o código moral a que obedecia a maior parte das velhas queixas O suplício em vez de trazer o remorso aguça a vaidade a justiça que condenou é recusada e recebe vitupérios a multidão que vem contemplar o que ela pensa ser arrependimentos ou humilhações Tão longe dos lares às vezes gememos Nossas frontes sempre severas farão empalidecer nossos juizes Ávidos de desgraça vossos olhares em nosso meio procuram encontrar uma raça vencida que chora e se humilha Mas nossos olhares são orgulhosos Encontramos aí também a afirmação de que a vida nos trabalhos forçados com seus companheirismos reserva prazeres que a liberdade não conhece Acorrentemos os prazeres com o tempo Sob os ferrolhos nascerão dias de festa Os prazeres são fugitivos Fugirão dos carrascos seguirão as canções E principalmente a ordem atual não durará para sempre não só os condenados serão libertados e recobrarão seus direitos mas seus acusadores virão tomarlhes o lugar Entre os criminosos e os juizes virá o dia do grande julgamento às avessas A nós forçados o desprezo pelos homens A nós também todo o ouro que eles deificam Esse ouro um dia passará a nossas mãos Nós o compramos pelo preço de nossa vida Outros retomarão essas cadeias que hoje vós nos fazeis levar eles se tornarão escravos Nós rompendo os encraves o astro de liberdade terá reluzido para nós Adeus pois desprezamos tanto vossos ferros quanto vossas leis11 O teatro piedoso imaginado pelas folhas volantes e onde o condenado exortava a multidão a nunca imitálo está se tornando uma cena ameaçadora onde a multidão é obrigada a escolher entre a barbárie dos carrascos a injustiça dos juizes e a desgraça dos condenados vencidos hoje mas que triunfarão um dia O grande espetáculo da cadeia se relacionava com a antiga tradição dos suplícios públicos relacionavase também com aquela múltipla representação do crime dada na época pelos jornais pasquins palhaços teatros de bulevar12 mas relacionavase igualmente com defrontações e lutas cujo estrondo carrega consigo ele lhes dá como que uma saída simbólica o exército da desordem aterrorizado pela lei promete voltar o que foi expulso pela violência da ordem trará ao retornar a reviravolta libertadora Fiquei apavorado de ver tantas faíscas reaparecerem naquelas cinzas13 A agitação que sempre cercara os suplícios entra em ressonância com ameaças precisas Compreendese que a monarquia de julho tenha decidido suprimir a cadeia pelas mesmas razões mas mais precisas que exigiam no século XVIII a abolição dos suplícios Não faz parte de nossos costumes levar homens desta maneira devese evitar proporcionar nas cidades atravessadas pela caravana um espetáculo tão feio que aliás não é de nenhuma instrução para a população14 Necessidade portanto de romper com esses ritos públicos de fazer as transferências de condenados passarem pela mesma mutação que os próprios castigos e de colocálos a eles também sob o signo do pudor administrativo Ora o que foi adotado em junho de 1837 para substituir a cadeia não foi a simples carroça coberta de que se falara um momento mas uma máquina bem cuidadosamente elaborada Uma carruagem concebida como prisão ambulante Um equivalente móvel do Panóptico dividido em todo o comprimento por um corredor central de um lado e de outro seis celas onde os detentos estão sentados de frente Seus pés são passados em anéis forrados de lã por dentro e reunidos entre si por cadeias de 18 polegadas as pernas são presas em joelheiras de metal O condenado fica sentado sobre uma espécie de funil de zinco e carvalho aberto sobre a via pública A cela não tem nenhuma janela para fora é inteiramente forrada de chapas metálicas só um basculante também de lata furada dá passagem a uma corrente de ar conveniente Do lado do corredor a porta de cada cela é guarnecida de um guichê com um compartimento duplo um para os alimentos outro de grades para a vigilância A abertura e a direção oblíqua dos guichês são combinadas de tal modo que os guardas mantêm constantemente os olhos sobre os prisioneiros e entendem suas menores palavras sem que estes possam chegar a se ver ou se ouvir entre si De tal maneira que a mesma viatura pode sem o menor inconveniente conter ao mesmo tempo um forçado e um simples acusado homens e mulheres crianças e adultos Qualquer que seja o comprimento do trajeto uns e outros são levados a seu destino sem poder ter se visto nem se falado Enfim a vigilância constante dos dois guardas que estão armados com uma pequena maça de carvalho com grandes cravos de diamante rombudos permite fazer funcionar um sistema de punições conforme o regulamento interno da carruagem regime de pão e água dedos polegares amarrados privação da almofada para dormir os dois braços amarrados É proibida qualquer leitura senão a dos livros de moral Houvera ela tido apenas sua suavidade e rapidez essa máquina teria feito honra à sensibilidade de seu autor mas seu mérito é ser uma verdadeira carruagem penitenciária Por seus efeitos externos ela é de uma perfeição toda benthamiana Na passagem rápida dessa prisão sobre rodas que em seus lados silenciosos e sombrios só leva como inscrição as palavras Transporte de Forçados há qualquer coisa de misterioso e lúgubre que Bentham requer na execução das sentenças criminais e que deixa no espírito dos espectadores uma impressão mais salutar e durável que a visão daqueles cínicos e alegres viajantes15 Ela tem também efeitos internos já nos poucos dias de transporte durante os quais os detentos não ficam soltos um só instante funciona como um aparelho de correção Saise dela espantosamente bem comportado Do ponto de vista moral esse transporte que entretanto dura só setenta e duas horas é um suplício horrível cujo efeito age durante muito tempo ao que parece sobre o prisioneiro Os próprios forçados são testemunhas disso No carro celular quando não estamos dormindo só podemos pensar De tanto pensar parece que me arrependo do que fiz afinal entendem eu teria medo de me tornar melhor e não quero16 Breve história a da carruagem panóptica Entretanto a maneira como ela substitui a cadeia e as razões dessa substituição resumem todo o processo pelo qual em oitenta anos a detenção penal tomou o lugar dos suplícios como uma técnica pensada para modificar os indivíduos A carruagem celular é um aparelho de reforma O que substituiu o suplício não foi um encarceramento maciço foi um dispositivo disciplinar cuidadosamente articulado Pelo menos em princípio Pois logo a seguir a prisão em sua realidade e seus efeitos visíveis foi denunciada como o grande fracasso da justiça penal Estranhamente a história do encarceramento não segue uma cronologia ao longo da qual se sucedessem logicamente o estabelecimento de uma penalidade de detenção depois o registro de seu fracasso depois a lenta subida dos projetos de reforma que chegariam à definição mais ou menos coerente de técnica penitenciária depois a implantação desse projeto enfim a constatação de seus sucessos ou fracassos Houve na realidade uma superposição ou em todo caso outra distribuição desses elementos E do mesmo modo que o projeto de uma técnica corretiva acompanhou o princípio de uma detenção punitiva a crítica da prisão e de seus métodos aparece muito cedo nesses mesmos anos de 18201845 ela aliás se fixa num certo número de formulações que a não ser pelos números se repetem hoje sem quase mudança nenhuma As prisões não diminuem a taxa de criminalidade podese aumentálas multiplicálas ou transformálas a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável ou ainda pior aumenta Avaliase na França em cerca de 108 mil o número de indivíduos que estão em condição de hostilidade flagrante à sociedade Os meios de repressão de que dispomos são a forca o pelourinho 3 campos de trabalhos forçados 19 casas centrais 86 casas de justiça 362 cadeias 2800 prisões de cantão 2238 quartos de segurança nos postos de policia Apesar desta série de meios o vício conserva sua audácia O número de crimes não diminui o número de reincidências aumenta mais que decresce17 A detenção provoca a reincidência depois de sair da prisão se têm mais chance que antes de voltar para ela os condenados são em proporção considerável antigos detentos 38 dos que saem das casas centrais são condenados novamente e 33 são forçados18 de 1828 a 1834 de cerca de 35000 condenados por crime perto de 7400 eram reincidentes ou seja um em cada 47 condenados em mais de 200000 contraventores quase 35 mil o eram também 1 em cada 6 no total um reincidente para 58 condenados19 em 1831 em 2174 condenados por reincidência 350 haviam saído dos trabalhos forçados 1682 das casas centrais 142 das 4 casas de correção submetidas ao mesmo regime que as centrais20 E o diagnóstico tornase cada vez mais pesado ao longo de toda a monarquia de julho em 1835 contamse 1486 reincidentes em 7223 condenados criminosos em 1839 1749 em 7858 em 1844 1821 em 7195 Entre os 980 detentos de Loos havia 570 reincidentes e em Melun 745 dos 1088 prisioneiros21 A prisão conseqüentemente em vez de devolver à liberdade indivíduos corrigidos espalha na população delinqüentes perigosos 7000 pessoas entregues cada ano à sociedade são 7000 princípios de crimes ou de corrupção espalhados no corpo social E quando pensamos que essa população cresce sem parar que ela vive e se agita em torno de nós pronta para aproveitar todas as chances de desordem e a se prevalecer de todas as crises da sociedade para experimentar suas forças podemos permanecer impassíveis diante de tal espetáculo22 A prisão não pode deixar de fabricar delinqüentes Fabricaos pelo tipo de existência que faz os detentos levarem que fiquem isolados nas celas ou que lhes seja imposto um trabalho inútil para o qual não encontrarão utilidade é de qualquer maneira não pensar no homem em sociedade é criar uma existência contra a natureza inútil e perigosa queremos que a prisão eduque os detentos mas um sistema de educação que se dirige ao homem pode ter razoavelmente como objetivo agir contra o desejo da natureza23 A prisão fabrica também delinqüentes impondo aos detentos limitações violentas ela se destina a aplicar as leis e a ensinar o respeito por elas ora todo o seu funcionamento se desenrola no sentido do abuso de poder Arbitrário da administração O sentimento de injustiça que um prisioneiro experimenta é uma das causas que mais podem tornar indomável seu caráter Quando se vê assim exposto a sofrimentos que a lei não ordenou nem mesmo previu ele entra num estado habitual de cólera contra tudo o que o cerca só vê carrascos em todos os agentes da autoridade não pensa mais ter sido culpado acusa a própria justiça24 Corrupção medo e incapacidade dos guardas 1000 a 5000 vigias que só mantêm alguma segurança contando com a delação ou seja com a corrupção que eles mesmos têm o cuidado de semear Quem são esses guardas Soldados que receberam baixa homens sem instrução sem inteligência de sua função que guardam os malfeitores por profissão25 Exploração por um trabalho penal que nessas condições não pode ter nenhum caráter educativo Falase muito contra o tráfico de negros Como eles os detentos não são vendidos pelos empresários e comprados pelos comerciantes Os prisioneiros recebem neste ponto lições de probidade Não ficam mais desencorajados por esses exemplos de abominável exploração26 A prisão torna possível ou melhor favorece a organização de um meio de delinqüentes solidários entre si hierarquizados prontos para todas as cumplicidades futuras A sociedade proíbe as associações de mais de 20 pessoas e ela mesma constitui associações de 200 de 500 de 1200 condenados nas casas centrais que são para eles construídas ad hoc e que para seu maior conforto ela divide em oficinas em pátios refeitórios comuns e multiplicase por toda a superfície da França de tal modo que onde houver uma prisão há uma associação outros tantos clubes antisociais27 E nesses clubes é feita a educação do jovem delinqüente que está em sua primeira condenação O primeiro desejo que nele nascerá será de aprender com os colegas hábeis como se escapa aos rigores da lei a primeira lição será tirada dessa lógica cerrada dos ladrões que os leva a considerar a sociedade como inimiga a primeira moral será a delação a espionagem honrada nas nossas prisões a primeira paixão que nele será excitada virá assustar a jovem natureza por aquelas monstruosidades que devem ter nascido nas masmorras e que a pena se recusa a citar ele agora rompeu com tudo o que o ligava à sociedade28 Faucher falava dos quartéis do crime As condições dadas aos detentos libertados condenamnos fatalmente à reincidência porque estão sob a vigilância da polícia porque têm designação de domicílio ou proibição de permanência porque só saem da prisão com um passaporte que têm que mostrar em todo lugar onde vão e que menciona a condenação que sofreram29 A quebra de banimento a impossibilidade de encontrar trabalho a vadiagem são os fatores mais freqüentes da reincidência A Gazette des tribunaux mas também os jornais operários citam muitas vezes casos semelhantes como o daquele operário condenado por roubo posto sob vigilância em Rouen preso novamente por roubo e que os advogados desistiram de defender ele mesmo toma então a palavra diante do tribunal faz o histórico de sua vida explica como saído da prisão e com determinação de residência não consegue recuperar seu ofício de dourador sendo recusado em toda parte por sua qualidade de presidiário a polícia recusalhe o direito de procurar trabalho em outro lugar ele se viu preso a Rouen e fadado a morrer aí de fome e miséria como efeito dessa vigilância opressiva Pediu trabalho à prefeitura ficou ocupado 8 dias nos cemitérios por 14 soldos por dia Mas diz ele sou moço tenho bom apetite eu comia mais de duas libras de pão a 5 soldos a libra que fazer com 14 soldos para me alimentar lavar roupa e morar Estava reduzido ao desespero queria voltar a ser um homem honesto a vigilância me fez mergulhar de novo na desgraça Desgosteime de tudo foi então que conheci Lemaître que também está na miséria tínhamos que viver e a má idéia de roubar nos voltou30 Enfim a prisão fabrica indiretamente delinqüentes ao fazer cair na miséria a família do detento A mesma ordem que manda para a prisão o chefe de família reduz cada dia a mãe à penúria os filhos ao abandono a família inteira à vagabundagem e à mendicância Sob esse ponto de vista o crime ameaça prolongarse31 Devemos notar que essa crítica monótona da prisão é feita constantemente em duas direções contra o fato de que prisão não era efetivamente corretora que a técnica penitenciária nela permanecia em estado rudimentar contra o fato de que ao querer ser corretiva ela perde sua força de punição32 que a verdadeira técnica penitenciária é o rigor33 e que a prisão é um duplo erro econômico diretamente pelo custo intrínseco de sua organização e indiretamente pelo custo da delinqüência que ela não reprime34 Ora a essas críticas a resposta foi invariavelmente a mesma a recondução dos princípios invariáveis da técnica penitenciária Há um século e meio que a prisão vem sempre sendo dada como seu próprio remédio a reativação das técnicas penitenciárias como a única maneira de reparar seu fracasso permanente a realização do projeto corretivo como o único método para superar a impossibilidade de tornálo realidade Um fato o comprova as revoltas de detentos nas últimas semanas que a reforma definida em 1945 nunca se efetuara realmente que era então necessário voltar a seus princípios fundamentais Ora esses princípios de que ainda hoje se esperam efeitos tão maravilhosos são conhecidos constituem há quase 150 anos as sete máximas universais da boa condição penitenciária 1 A detenção penal deve então ter por função essencial a transformação do comportamento do indivíduo A recuperação do condenado como objetivo principal da pena é um princípio sagrado cuja aparição formal no campo da ciência e principalmente no da legislação é bem recente Congresso Penitenciário de Bruxelas 1847 E a comissão amor de maio de 1945 repete fielmente A pena privativa de liberdade tem como objetivo principal a recuperação e a reclassificação social do condenado Princípio da correção 2 Os detentos devem ser isolados ou pelo menos repartidos de acordo com a gravidade penal de seu ato mas principalmente segundo sua idade suas disposições as técnicas de correção que se pretende utilizar para com eles as fases de sua transformação Devese levar em conta no uso dos meios modificadores das grandes diferenças físicas e morais que comportam a organização dos condenados de seu grau de perversidade das chances desiguais de correção que podem oferecer fevereiro de 1850 1945 a repartição nos estabelecimentos penitenciários dos indivíduos com pena inferior a um ano tem por base o sexo a personalidade e o grau de perversão do delinqüente Princípio da classificação 3 As penas cujo desenrolar deve poder ser modificado segundo a indivi dualidade dos detentos os resultados obtidos os progressos ou as recaídas Sendo o objetivo principal da pena a reforma do culpado seria desejável que se pudesse soltar qualquer condenado quando sua regeneração moral estivesse suficientemente garantida Ch Lucas 1836 1945 É aplicado um regime progressivo com vistas a adaptar o tratamento do prisioneiro à sua atitude e ao seu grau de regeneração Este regime vai da colocação em cela à semiliberdade O benefício da liberdade condicional é estendido a todas as penas temporárias Princípio da modulação das penas 4 O trabalho deve ser uma das peças essenciais da transformação e da socialização progressiva dos detentos O trabalho penal não deve ser considerado como o complemento e por assim dizer como uma agravação da pena mas sim como uma suavização cuja privação seria totalmente possível Deve permitir aprender ou praticar um ofício e dar recursos ao detento e a sua família Ducpétiaux 1857 1945 Todo condenado de direito comum é obrigado ao trabalho Nenhum pode ser obrigado a permanecer desocupado Princípio do trabalho como obrigação e como direito 5 A educação do detento é por parte do poder público ao mesmo tempo uma precaução indispensável no interesse da sociedade e uma obrigação para com o detento Só a educação pode servir de instrumento penitenciário A questão do encarceramento penitenciário é uma questão de educação Ch Lucas 1838 1945 O tratamento infligido ao prisioneiro fora de qualquer promiscuidade corruptora deve tender principalmente à sua instrução geral e profissional e à sua melhora Princípio da educação penitenciária 6 O regime da prisão deve ser pelo menos em parte controlado e assumido por um pessoal especializado que possua as capacidades morais e técnicas de zelar pela boa formação dos indivíduos Ferrus em 1850 a respeito do médico da prisão Seu concurso é útil com todas as formas de encarceramento ninguém mais intimamente que um médico poderia possuir a confiança dos detentos conhecer melhor seu temperamento exercer ação mais eficaz sobre seus sentimentos aliviandolhes os males físicos e aproveitando essa forma de ascendência para fazêlos ouvir palavras severas ou encorajamentos úteis 1945 em todo estabelecimento penitenciário funciona um serviço social e médicopsicológico Princípio do controle técnico da detenção 7 O encarceramento deve ser acompanhado de medidas de controle e de assistência até a readaptação definitiva do antigo detento Seria necessário não só vigiálo à sua saída da prisão mas prestarlhe apoio e socorro Boulet e Benquot na Câmara de Paris 1945 É dada assistência aos prisioneiros durante e depois da pena com a finalidade de facilitar sua reclassificação Princípio das instituições anexas Palavra por palavra de um século a outro as mesmas proposições funda mentais se repetem E são dadas a cada vez como a formulação enfim obtida enfim aceita de uma reforma até então sempre fracassada Poderseia ter tomado as mesmas frases ou quase as mesmas de outros períodos fecundos da reforma o fim do século XIX e o movimento da defesa social ou ainda os anos mais recentes com as revoltas dos detentos Não devemos então conceber a prisão seu fracasso e sua reforma mais ou menos bem aplicada como três tempos sucessivos Devemos antes pensar num sistema simultâneo que historicamente se sobrepôs à privação jurídica da liberdade um sistema de quatro termos que compreende o suplemento disciplinar da prisão elemento de sobrepoder a produção de uma objetividade de uma técnica de uma racionalidade penitenciária elemento do saber conexo a recondução de fato se não a acentuação de uma criminalidade que a prisão devia destruir elemento de eficácia inversa enfim a repetição de uma reforma que é isomorfa apesar de sua idealidade ao funcionamento disciplinar da prisão elemento do desdobramento utópico É este conjunto complexo que constitui o sistema carcerário e não só a instituição da prisão com seus muros seu pessoal seus regulamentos e sua violência O sistema carcerário junta numa mesma figura discursos e arquitetos regulamentos coercitivos e proposições científicas efeitos sociais reais e utopias invencíveis programas para corrigir a delinqüência e mecanismos que solidificam a delinqüência O pretenso fracasso não faria então parte do funcionamento da prisão Não deveria ser inscrito naqueles efeitos de poder que a disciplina e a tecnologia conexa do encarceramento induziram no aparelho de justiça de uma maneira mais geral na sociedade e que podemos agrupar sob o nome de sistema carcerário Se a instituiçãoprisão resistiu tanto tempo e em tal imobilidade se o princípio da detenção penal nunca foi seriamente questionado é sem dúvida porque esse sistema carcerário se enraizava em profundidade e exercia funções precisas Dessa solidez tomemos como testemunho um fato recente a prisão modelo que foi aberta em FleuryMérogis em 1969 apenas se serviu em sua distribuição de conjunto da estrela panóptica que em 1836 dera à PetiteRoquette a fama que esta teve É a mesma maquinaria de poder que aí se concretiza e assume forma simbólica Mas para desempenhar que papel Vamos admitir que a lei se destine a definir infrações que o aparelho penal tenha como função reduzilas e que a prisão seja o instrumento dessa repressão temos então que passar um atestado de fracasso Ou antes pois para estabelecêla em termos históricos seria preciso poder medir a incidência da penalidade de detenção no nível global da criminalidade temos que nos admirar de que há 150 anos a proclamação do fracasso da prisão se acompanhe sempre de sua manutenção A única alternativa realmente apontada foi a deportação que a Inglaterra abandonara desde o começo do século XIX e que a França retomou sob o Segundo Império mas antes como uma forma ao mesmo tempo rigorosa e longínqua de encarceramento Mas talvez devamos inverter o problema e nos perguntar para que serve o fracasso da prisão qual é a utilidade desses diversos fenômenos que a crítica continuamente denuncia manutenção da delinqüência indução em reincidência transformação do infrator ocasional em delinqüência Talvez devamos procurar o que se esconde sob o aparente cinismo da instituição penal que depois de ter feito os condenados pagar sua pena continua a seguilos através de toda uma série de marcações vigilância que era de direito antigamente e o é de fato hoje passaportes dos degredados de antes e agora folha corrida e que persegue assim como delinqüente aquele que quitou sua punição como infrator Não podemos ver aí mais que uma contradição uma conseqüência Deveríamos então supor que a prisão e de uma maneira geral sem dúvida os castigos não se destinam a suprimir as infrações mas antes a distinguilas a distribuílas a utilizálas que visam não tanto tornar dóceis os que estão prontos a transgredir as leis mas que tendem a organizar a transgressão das leis numa tática geral das sujeições A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades de riscar limites de tolerância de dar terreno a alguns de fazer pressão sobre outros de excluir uma parte de tornar útil outra de neutralizar estes de tirar proveito daqueles Em resumo a penalidade não reprimiria pura e simplesmente as ilegalidades ela as diferenciaria faria sua economia geral E se podemos falar de uma justiça não é só porque a própria lei ou a maneira de aplicála servem aos interesses de uma classe é porque toda a gestão diferencial das ilegalidades por intermédio da penalidade faz parte desses mecanismos de dominação Os castigos legais devem ser recolocados numa estratégia global das ilegalidades O fracasso da prisão pode sem dúvida ser compreendido a partir daí O esquema geral da reforma penal foi aplicado no fim do século XVIII na luta contra as ilegalidades rompeuse o equilíbrio de tolerâncias de apoios e de interesses recíprocos que sob o Antigo Regime mantivera umas ao lado das outras as ilegalidades de diversas camadas sociais Formarase então a utopia de uma sociedade universal e publicamente punitiva onde mecanismos penais sempre em atividade funcionariam sem atraso nem mediação nem incerteza uma lei duplamente ideal pois perfeita em seus cálculos e presente na representação de cada cidadão bloquearia desde a origem quaisquer práticas de ilegalidade Ora na passagem do século XVIII ao XIX e contra os novos códigos surge o perigo de um novo ilegalismo popular Ou mais exatamente talvez as ilegalidades populares se desenvolvam então segundo dimensões novas as que trazem consigo todos os movimentos que desde os anos 1780 até às revoluções de 1848 entrecruzam os conflitos sociais as lutas contra os regimes políticos a resistência ao movimento de industrialização os efeitos das crises econômicas Esquematicamente podemos definir três processos característicos Em primeiro lugar o desenvolvimento da dimensão política das ilegalidades populares e isso de duas maneiras práticas até então localizadas e de certo modo limitadas a elas mesmas como a recusa do imposto do recrutamento das cobranças das taxações a confiscação violenta de mercadorias desapropriadas a pilhagem de lojas e a venda autoritária dos produtos pelo justo preço as defrontações com os representantes do poder resultaram durante a Revolução em lutas diretamente políticas que tinham por finalidade não simplesmente fazer ceder o poder ou transferir uma medida intolerável mas mudar o governo e a própria estrutura do poder Em contraposição certos movimentos políticos apoiaramse de maneira explícita nas formas existentes de ilegalidade como a agitação realista do oeste ou do sul da França utilizou a recusa dos camponeses das novas leis sobre a propriedade a religião o recrutamento essa dimensão política da ilegalidade se tornará ao mesmo tempo mais complexa e mais marcada nas relações entre o movimento operário e os partidos republicanos no século XIX na passagem das lutas operárias greves conluios proibidos associações ilícitas à revolução política Em todo caso no horizonte dessas práticas ilegais e que se multiplicam com legislações cada vez mais restritivas entrevêemse as lutas propriamente políticas nem todas têm em mira a eventual derrubada do poder longe disso mas boa parte delas pode se capitalizar para combates políticos de conjunto e às vezes até conduzir diretamente a isso Por outro lado através da recusa da lei ou dos regulamentos reconhecemse facilmente as lutas contra aqueles que os estabelecem em conformidade com seus interesses não se luta mais contra os arrendatários de impostos o pessoal das finanças os agentes do rei os oficiais prevaricadores ou os maus ministros contra todos os agentes da injustiça mas contra a própria lei e a justiça que é encarregada de aplicála contra os proprietários próximos e que impõem os novos direitos contra os empregadores que se entendem entre si mas mandam proibir os conluios contra os chefes de empresa que multiplicam as máquinas baixam os salários prolongam as horas de trabalho tornam cada vez mais rigorosos os regulamentos de fábricas Foi sem dúvida contra o novo regime de propriedade da terra instaurado pela burguesia que aproveitou a Revolução que se desenvolveu a ilegalidade camponesa que sem dúvida conheceu suas formas mais violentas do Termidor ao consulado mas não desapareceu então foi contra o novo regime de exploração legal do trabalho que se desenvolveram as ilegalidades operárias no começo do século XIX desde os mais violentos como as quebras de máquinas ou os mais duráveis como a constituição de associações até os mais cotidianos como o absenteísmo o abandono do serviço a vadiagem as fraudes nas matériasprimas na quantidade e qualidade do trabalho terminado Uma série de ilegalidades surge em lutas onde sabemos que se defrontam ao mesmo tempo a lei e a classe que a impôs Enfim se é verdade que no decorrer do século XVIII vimos35 a criminalidade tender para formas especializadas inclinarse cada vez mais para o roubo fácil e tornarse em parte coisa de marginais isolados no meio de uma população que lhes era hostil pudemos assistir nos últimos anos do século XVIII à reconstituição de certos laços ou ao estabelecimento de novas relações não como diziam os contemporâneos que os líderes da agitação popular tivessem sido criminosos mas porque as novas formas do direito os rigores da regulamentação as exigências ou do Estado ou dos proprietários ou dos empregadores e as técnicas mais cerradas de vigilância multiplicavam as ocasiões de delito e faziam se bandear para o outro lado da lei muitos indivíduos que em outras condições não teriam passado para a criminalidade especializada foi tendo por fundo as novas leis sobre a propriedade tendo também por fundo o recrutamento recusado que uma ilegalidade camponesa se desenvolveu nos últimos anos da Revolução multiplicando as violências as agressões os roubos as pilhagens e até as grandes formas de banditismo político foi também tendo por fundo uma legislação ou regulamento muito pesados referentes ao certificado de reservista aos aluguéis aos horários às ausências que se desenvolveu uma vagabundagem operária que muitas vezes ia de par com a estrita delinqüência Toda uma série de práticas ilegais que durante o século anterior tinham tido tendência a se decantar e se isolar parecem agora reatar relações para formar uma nova ameaça Tríplice generalização das ilegalidades populares na passagem dos dois séculos e fora mesmo de uma extensão quantitativa que é problemática e ainda fica por medir tratase de sua inserção num horizonte político geral de sua articulação explícita sobre lutas sociais da comunicação entre diferentes formas e níveis de infração Esses processos não seguiram sem dúvida um desenvolvimento pleno certamente não se formou no começo do século XIX uma ilegalidade maciça ao mesmo tempo política e social Mas em sua forma esboçada e apesar de sua dispersão foram suficientemente marcados para servir de suporte ao grande medo de uma plebe que se acredita toda em conjunto criminosa e sediciosa ao mito da classe bárbara imoral e fora da lei que do império à monarquia de julho está continuamente no discurso dos legisladores dos filantropos ou dos pesquisadores da vida operária São processos que encontramos atrás de toda uma série de afirmações bem estranhas à teoria penal do século XVIII que o crime não é uma virtualidade que o interesse ou as paixões introduziram no coração de todos os homens mas que é coisa quase exclusiva de uma certa classe social que os criminosos que antigamente eram encontrados em todas as classes sociais saem agora quase todos da última fileira da ordem social36 que nove décimos de matadores de assassinos de ladrões e de covardes procedem do que chamamos a base social37 que não é o crime que torna estranho à sociedade mas antes que ele mesmo se deve ao fato de que se está na sociedade como um estranho que se pertence àquela raça abastarda de que falava Target àquela classe degradada pela miséria cujos vícios se opõem como um obstáculo invencível às generosas intenções que querem combatêla38 que nessas condições seria hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei é feita para todo mundo em nome de todo mundo que é mais prudente reconhecer que ela é feita para alguns e se aplica a outros que em princípio ela obriga a todos os cidadãos mas se dirige principalmente às classes mais numerosas e menos esclarecidas que ao contrário do que acontece com as leis políticas ou civis sua aplicação não se refere a todos da mesma forma39 que nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um de seus membros mas uma categoria social encarregada da ordem sanciona outra fadada à desordem Percorrei os locais onde se julga se prende se mata Um fato nos chama a atenção sempre em toda parte vedes duas classes bem distintas de homens dos quais uns se encontram sempre nos assentos dos acusadores e dos juizes e os outros nos bancos dos réus e dos acusados O que é explicado pelo fato de que os últimos por falta de recursos e de educação não sabem permanecer nos limites da probidade legal40 tanto que a linguagem da lei que se pretende universal é por isso mesmo inadequada ela deve ser se é para ser eficaz o discurso de uma classe a outra que não tem nem as mesmas idéias que ela nem as mesmas palavras Ora com nossas línguas pudicas desdenhosas e embaraçadas com a etiqueta será fácil fazerse compreender por aqueles que nunca ouviram senão o dialeto rude pobre irregular mas vivo franco pitoresco do mercado dos cabarés e da feira Que língua que método seria preciso usar na redação das leis para agir de maneira eficaz sobre o espírito inculto dos que podem menos resistir às tentações do crime41 A lei e a justiça não hesitam em proclamar sua necessária dissimetria de classe Se tal é a situação a prisão ao aparentemente fracassar não erra seu objetivo ao contrário ela o atinge na medida em que suscita no meio das outras uma forma particular de ilegalidade que ela permite separar pôr em plena luz e organizar como um meio relativamente fechado mas penetrável Ela contribui para estabelecer uma ilegalidade visível marcada irredutível a um certo nível e secretamente útil rebelde e dócil ao mesmo tempo ela desenha isola e sublinha uma forma de ilegalidade que parece resumir simbolicamente todas as outras mas que permite deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar Essa forma é a delinqüência propriamente dita Não devemos ver nesta a forma mais intensa e mais nociva da ilegalidade aquela que o aparelho penal deve mesmo tentar reduzir pela prisão por causa do perigo que representa ela é antes um efeito da penalidade e da penalidade de detenção que permite diferenciar arrumar e controlar as ilegalidades Sem dúvida a delinqüência é uma das formas da ilegalidade em todo caso tem suas raízes nela mas é uma ilegalidade que o sistema carcerário com todas as suas ramificações investiu recortou penetrou organizou fechou num meio definido e ao qual deu um papel instrumental em relação às outras ilegalidades Em resumo se a oposição jurídica ocorre entre a legalidade e a prática ilegal a oposição estratégica ocorre entre as ilegalidades e a delinqüência O atestado de que a prisão fracassa em reduzir os crimes deve talvez ser substituído pela hipótese de que a prisão conseguiu muito bem produzir a delinqüência tipo especificado forma política ou economicamente menos perigosa talvez até utilizável de ilegalidade produzir os delinqüentes meio aparentemente marginalizado mas centralmente controlado produzir o delinqüente como sujeito patologizado O sucesso da prisão nas lutas em torno da lei e das ilegalidades especificar uma delinqüência Vimos como o sistema carcerário substituiu o infrator pelo delinqüente E afixou também sobre a prática jurídica todo um horizonte de conhecimento possível Ora esse processo de constituição da delinqüênciaobjeto se une à operação política que dissocia as ilegalidades e delas isola a delinqüência A prisão é o elo desses dois mecanismos permitelhes se reforçarem perpetuamente um ao outro objetivar a delinqüência por trás da infração consolidar a delinqüência no movimento das ilegalidades O sucesso é tal que depois de um século e meio de fracasso a prisão continua a existir produzindo os mesmos efeitos e que se têm os maiores escrúpulos em derrubála A penalidade de detenção fabricaria daí sem dúvida sua longevidade uma ilegalidade fechada separada e útil O circuito da delinqüência não seria o subproduto de uma prisão que ao punir não conseguisse corrigir seria o efeito direto de uma penalidade que para gerir as práticas ilegais investiria algumas delas num mecanismo de puniçãoreprodução de que o encarceramento seria uma das peças principais Mas por que e como teria sido a prisão chamada a funcionar na fabricação de uma delinqüência que seria de seu dever combater A instituição de uma delinqüência que constitua como que uma ilegalidade fechada apresenta com efeito um certo número de vantagens É possível em primeiro lugar controlála localizando os indivíduos infiltrandose no grupo organizando a delação mútua a agitação imprecisa de uma população que pratica uma ilegalidade de ocasião que é sempre susceptível de se propagar ou ainda aqueles bandos incertos de vagabundos que recrutam segundo o itinerário ou as circunstâncias desempregados mendigos refratários e que crescem às vezes isso fora visto no fim do século XVIII até formar forças temíveis de pilhagem e de motim são substituídos por um grupo relativamente restrito e fechado de indivíduos sobre os quais se pode efetuar vigilância constante É possível além disso orientar essa delinqüência fechada em si mesma para as formas de ilegalidade que são menos perigosas mantidos pela pressão dos controles nos limites da sociedade reduzidos a precárias condições de existência sem ligação com uma população que poderia sustentálos como se fazia antigamente para os contrabandistas ou certas formas de banditismo43 os delinqüentes se atiram fatalmente a uma criminalidade localizada sem poder de atração politicamente sem perigo e economicamente sem conseqüência Mas essa ilegalidade concentrada controlada e desarmada é diretamente útil Ela o pode ser em relação a outras ilegalidades isolada e junto a elas voltada para suas próprias organizações internas fadada a uma criminalidade violenta cujas primeiras vítimas são muitas vezes as classes pobres acoçada de todos os lados pela polícia exposta a longas penas de prisão depois a uma vida definitivamente especializada A delinqüência esse outro mundo perigoso e muitas vezes hostil bloqueia ou ao menos mantém a um nível bastante baixo as práticas ilegais correntes pequenos roubos pequenas violências recusas ou desvios cotidianos da lei impede que elas resultem em formas amplas e manifestas um pouco como se o efeito de exemplo que antigamente se exigia da ostentação dos suplícios fosse procurado agora menos no rigor das punições que na existência visível marcada da própria delinqüência ao se diferenciar das outras ilegalidades populares a delinqüência pesa sobre elas Mas a delinqüência é também capaz de utilização direta Ocorrenos o exemplo da colonização Mas não é o que melhor comprova com efeito se a deportação dos criminosos foi várias vezes pedida sob a Restauração tanto pela Câmara dos Deputados quanto pelos Conselhos Gerais foi essencialmente para aliviar os encargos financeiros exigidos por todo o aparelho da detenção e apesar de todos os projetos que se pôde fazer sob a monarquia de julho para que os delinqüentes os soldados indisciplinados as prostitutas e as crianças abandonadas pudessem participar da colonização da Argélia esta foi formalmente excluída pela lei de 1854 que criava os campos de trabalhos forçados nas colônias na realidade a deportação para a Guiana ou mais tarde para a Nova Caledônia não teve importância econômica real apesar de serem os condenados obrigados a permanecer na colônia onde haviam cumprido pena um número de anos pelo menos igual a seu tempo de detenção em certos casos deviam mesmo permanecer toda a vida43 Na realidade a utilização da delinqüência como meio ao mesmo tempo separado e manejável foi feita principalmente nas margens da legalidade Ou seja instalouse também no século XIX uma espécie de ilegalidade subordinada cuja docilidade é garantida por sua organização em delinqüência com todas as vigilâncias em que isto implica A delinqüência ilegalidade dominada é um agente para a ilegalidade dos grupos dominantes A implantação das redes de prostituição no século XIX é característica a respeito44 os controles de polícia e de saúde sobre as prostitutas sua passagem regular pela prisão a organização em grande escala dos lupanares a hierarquia cuidadosa que era mantida no meio da prostituição seu enquadramento por delinqüentesindicadores tudo isso permitia canalizar e recuperar através de uma série de intermediários os enormes lucros sobre um prazer sexual que uma moralização cotidiana cada vez mais insistente votava a uma semiclandestinidade e tornava naturalmente dispendioso na computação do preço do prazer na constituição de lucro da sexualidade reprimida e na recuperação desse lucro o meio delinqüente era cúmplice de um puritanismo interessado um agente fiscal ilícito sobre práticas ilegais45 Os tráficos de armas os de álcool nos países de lei seca ou mais recentemente os de droga mostrariam da mesma maneira esse funcionamento da delinqüência útil a existência de uma proibição legal cria em torno dela um campo de práticas ilegais sobre o qual se chega a exercer controle e a tirar um lucro ilícito por meio de elementos ilegais mas tornados manejáveis por sua organização em delinqüência Esta é um instrumento para gerir e explorar as ilegalidades É também um instrumento para a ilegalidade que o próprio exercício do poder atrai a si A utilização política dos delinqüentes sob a forma de espias denunciantes provocadores era fato sabido bem antes do século XIX46 Mas depois da Revolução essa prática tomou dimensões completamente diversas a infiltração nos partidos políticos e associações operárias o recrutamento de homens de ação contra os grevistas e amotinados a organização de uma subpolítica que trabalha em relação direta com a polícia legal e suscetível em último caso de se tornar uma espécie de exército paralelo todo um funcionamento extralegal do poder foi em parte realizado pela massa de manobra constituída pelos delinqüentes polícia clandestina e exército de reserva do poder Na França parece que foi em torno da Revolução de 1848 e da tomada do poder de Luís Napoleão que essas práticas atingiram seu pleno florescimento47 Podese dizer que a delinqüência solidificada por um sistema penal centrado sobre a prisão representa um desvio de ilegalidade para os circuitos de lucro e de poder ilícitos da classe dominante A organização de uma ilegalidade isolada e fechada na delinqüência não teria sido possível sem o desenvolvimento dos controles policiais Fiscalização geral da população vigilância muda misteriosa desapercebida é o olho do governo incessantemente aberto e velando indistintamente sobre todos os cidadãos sem para isso submetêlos a qualquer medida coercitiva ela não tem necessidade de estar escrita na lei48 Controle particular e previsto pelo código de 1810 dos criminosos libertados e de todos aqueles que tendo já passado pela justiça por fatos graves presumese legalmente que devam atentar de novo contra o repouso da sociedade Mas a vigilância também de meios e de grupos considerados como perigosos pelos espias ou indicadores que são quase todos antigos delinqüentes controlados como tais pela polícia a delinqüência objeto entre outros da vigilância policial é um dos instrumentos privilegiados dessa mesma vigilância Todas essas vigilâncias pressupõem a organização de uma hierarquia em parte oficial em parte secreta era essencialmente na polícia parisiense o serviço de segurança que compreendia além dos agentes ostensivos inspetores e cabos os agentes secretos e indicadores movidos pelo receio do castigo ou pela atração de uma recompensa49 Pressupõem também a organização de um sistema de documentação cujo centro se constitui pela localização e identificação dos criminosos descrição obrigatória juntada aos mandados de prisão e às decisões do tribunal do júri descrição anotada nos registros de entrada das prisões cópia de registros do tribunal do júri e de juizes de execução dirigidas de três em três meses aos Ministérios da Justiça e da Polícia Geral um pouco mais tarde no Ministério do Interior organização de um fichário com lista alfabética recapitulando esses registros e por volta de 1833 segundo o método dos naturalistas dos bibliotecários dos negociantes dos comerciantes utilização de um sistema de fichas ou boletins individuais que permite facilmente integrar novos dados e ao mesmo tempo com o nome do indivíduo procurado todas as informações que poderiam ser utilizadas50 A delinqüência com os agentes ocultos que proporciona mas também com a quadriculagem geral que autoriza constitui em meio de vigilância perpétua da população um aparelho que permite controlar através dos próprios delinqüentes todo o campo social A delinqüência funciona como um observatório político Os estatísticos e os sociólogos dela se utilizaram por sua vez bem depois dos policiais Mas essa vigilância só pôde funcionar conjugada com a prisão Porque esta facilita o controle dos indivíduos quando são libertados porque permite o recrutamento dos indicadores e multiplica as denúncias mútuas porque coloca os infratores em contato uns com os outros ela precipita a organização de um meio delinqüente fechado em si mesmo mas que é fácil de controlar e todos os efeitos de desinserção que acarreta desemprego proibição de permanência residências forçadas disponibilidades abrem largamente a possibilidade de impor aos antigos detentos as tarefas que lhes são determinadas Prisão e polícia formam um dispositivo geminado sozinhas elas realizam em todo o campo das ilegalidades a diferenciação o isolamento e a utilização de uma delinqüência Nas ilegalidades o sistema políciaprisão corresponde a uma delinqüência manejável Esta com sua especificidade é um efeito do sistema mas tornase também uma engrenagem e um instrumento daquele De maneira que se deveria falar de um conjunto cujos três termos políciaprisãodelinqüência se apóiam uns sobre os outros e formam um circuito que nunca é interrompido A vigilância policial fornece à prisão os infratores que esta transforma em delinqüentes alvo e auxiliares dos controles policiais que regularmente mandam alguns deles de volta à prisão Não há uma justiça penal destinada a punir todas as práticas ilegais e que para isso utilizasse a polícia como auxiliar e a prisão como instrumento punitivo podendo deixar no rastro de sua ação o resíduo inassimilável da delinqüência Devese ver nessa justiça um instrumento para o controle diferencial das ilegalidades Em relação a este a justiça criminal desempenha o papel de caução legal e princípio de transmissão Ela é um ponto de troca numa economia geral das ilegalidades cujas outras peças são não abaixo dela mas a seu lado a polícia a prisão e a delinqüência A invasão da justiça pela polícia a força de inércia que a instituição carcerária opõe à justiça não é coisa nova nem efeito de uma esclerose ou de um progressivo deslocamento do poder é um traço de estrutura que marca os mecanismos punitivos nas sociedades modernas Podem falar os magistrados a justiça penal com todo o seu aparelho de espetáculo é feita para atender à demanda cotidiana de um aparelho de controle meio mergulhado na sombra que visa engrenar uma sobre a outra polícia e delinqüência Os juizes são os empregados que quase não se rebelam desse mecanismo51 Ajudam na medida de suas possibilidades a constituição da delinqüência ou seja a diferenciação das ilegalidades o controle a colonização e a utilização de algumas delas pela ilegalidade da classe dominante Desse processo que se desenvolveu nos trinta ou quarenta primeiros anos do século XIX duas figuras dão testemunho Vidocq em primeiro lugar Ele foi52 o homem das velhas ilegalidades um Gil Blas do outro extremo do século e que descamba rápido para o pior turbulências aventuras vigarices de que o mais das vezes foi ele a vítima rixas e duelos alistamentos e deserções em série encontros com o meio da prostituição do jogo dos batedores de carteira e logo do grande banditismo Mas a importância quase mítica que ele teve aos próprios olhos de seus contemporâneos não se deve a esse passado talvez enfeitado demais não se deve sequer ao fato de que pela primeira vez na história um antigo forçado alforriado ou comprado se tenha tornado chefe de polícia mas antes ao fato de que nele a delinqüência assumiu verdadeiramente seu estatuto ambíguo de objeto e instrumento para um aparelho de polícia que trabalha contra ela e com ela Vidocq marca o momento em que a delinqüência destacada das outras ilegalidades é investida pelo poder e voltada para o outro lado É então que se opera a acoplagem direta e institucional da polícia e da delinqüência Momento inquietante em que a criminalidade se torna uma das engrenagens do poder Uma figura era constante nas épocas anteriores a do rei monstruoso fonte de toda justiça e entretanto maculado de crimes aparece outro medo o de um acordo escondido e torpe entre os que fazem valer a lei e os que a violam Terminada a era shakespearina em que a soberania se defrontava com a abominação num mesmo personagem breve começará o melodrama cotidiano do poderio policial e das cumplicidades que o crime estabelece com o poder Em frente a Vidocq seu contemporâneo Lacenaire Sua presença marcada para sempre no paraíso dos estetas do crime tem razões para surpreender apesar de toda a sua boa vontade seu zelo de neófito nunca conseguiu cometer e com bastante inabilidade senão alguns crimes sem grandeza suspeitavase tanto que ele fosse um delator que a administração teve que protegêlo contra os detentos da Força que procuravam matálo53 e foi a alta roda do Paris de Luís Filipe que fez para ele antes de sua execução uma festa ao lado da qual muitas ressurreições literárias depois não passaram de homenagens acadêmicas Sua glória não deve nada à vastidão de seus crimes nem à arte de sua concepção o que espanta é seu balbucio Mas deve muito ao jogo visível em sua existência e seus discursos entre a ilegalidade e a delinqüência Lacenaire é o tipo do delinqüente por fraude deserção pequeno furto prisão reconstituição das amizades de cela chantagem mútua reincidências até à última tentativa falha de assassinato Mas trazia consigo pelo menos em estado virtual um horizonte de ilegalidades que ainda recentemente haviam sido ameaçadoras esse pequenoburguês arruinado que sabia falar e escrever uma geração antes teria sido revolucionário jacobino regicida54 contemporâneo de Robespierre sua recusa das leis poderia ter tido efeito num campo imediatamente histórico Nascido em 1800 quase como Julien Sorel seu personagem tem a marca dessas possibilidades mas elas descambaram para o roubo o assassinato e a denúncia Todas aquelas virtualidades se tornaram uma delinqüência de bem pouca envergadura nesse sentido Lacenaire é um personagem tranqüilizador E se reaparecem é no discurso que ele faz sobre a teoria do crime No momento da morte Lacenaire manifesta o triunfo da delinqüência sobre a ilegalidade ou antes a figura de uma ilegalidade confiscada por um lado na delinqüência e deslocada por outro para uma estética do crime ou seja para uma arte das classes privilegiadas Simetria de Lacenaire com Vidocq que na mesma época permitia fechar a delinqüência em si mesma constituindoa como ambiente fechado e controlável e deslocando para as técnicas policiais a prática delinqüente que se torna ilegalidade lícita do poder Há uma razão que explica por que a burguesia parisiense festejou Lacenaire por que sua cela foi aberta para visitantes famosos por que ele foi coberto de homenagens durante os últimos dias de sua vida ele que a plebe da Força antes dos juizes quisera levar à morte ele que fizera tudo no tribunal para arrastar seu cúmplice François ao cadafalso É que se celebrava a figura simbólica de uma ilegalidade submetida na delinqüência e transformada em discurso ou seja tornada duas vezes inofensiva a burguesia aí inventava um novo prazer cujo exercício ela ainda está longe de esgotar Não devemos esquecer que essa tão famosa morte de Lacenaire vinha bloquear a repercussão do atentado de Fieschi o mais recente dos regicidas que representa a figura inversa de uma pequena criminalidade que resulta na violência política Não devemos tampouco esquecer que ela aconteceu alguns meses antes da partida da última cadeia e das manifestações tão escandalosas que a haviam acompanhado Essas duas festas se cruzaram na história e aliás François o cúmplice de Lacenaire foi um dos personagens mais em evidência da cadeia de 19 de julho55 Uma prolongava os rituais antigos dos suplícios com o risco de reativar em torno dos criminosos as ilegalidades populares Seria proibida pois o criminoso não devia mais ter lugar a não ser no espaço apropriado da delinqüência A outra iniciava o jogo teórico de uma ilegalidade de privilegiados ou antes ela marcava o momento em que as ilegalidades políticas e econômicas praticadas pela burguesia de fato iam ser acompanhadas pela representação teórica e estética a Metafísica do crime como se diz a respeito de Lacenaire LAssassinat considéré comme un des BeauxArts foi publicado em 1849 Essa produção da delinqüência e seu investimento pelo aparelho penal devem ser tomados pelo que são não resultados definitivos mas táticas que se deslocam na medida em que nunca atingem inteiramente seu objetivo O corte entre sua delinqüência e as outras ilegalidades o fato de que ela se tenha voltado contra elas sua colonização pelas ilegalidades dominantes outros tantos efeitos que aparecem claramente na maneira como funciona o sistema políciaprisão não cessaram entretanto de encontrar resistências suscitaram lutas e provocaram reações Erguer a barreira que deveria separar os delinqüentes de todas as camadas populares de que saíam e com as quais permaneciam ligados era uma tarefa difícil principalmente sem dúvida nos meios urbanos56 Demorou muito tempo e exigiu obstinação Foram usados os processos gerais daquela moralização das classes pobres que teve aliás importância capital tanto do ponto de vista econômico quanto político aquisição do que se poderia chamar uma legalidade de base indispensável a partir do momento em que o sistema do código substituíra os costumes aprendizado das regras elementares da propriedade e da poupança treinamento para a docilidade no trabalho para a estabilidade da habitação e da família etc Recorreuse a processos mais particulares para alimentar a hostilidade dos menos populares contra os delin qüentes usando os antigos detentos como indicadores espias furadores de greve ou homens de ação Foram sistematicamente confundidos os delitos de direito comum e aquelas infrações à pesada legislação sobre as carteiras de reservista as greves os conluios as associações57 para as quais os operários pediam o reconhecimento de um estatuto político Com muita freqüência as ações operárias eram acusadas de serem animadas senão manipuladas por simples criminosos58 Mostrouse nos veredictos muitas vezes maior severidade contra os operários que contra os ladrões59 Misturaramse nas prisões as duas categorias de condenados e foi dado tratamento preferencial ao direito comum enquanto que os jornalistas ou políticos detidos tinham direito a maior parte do tempo de serem postos separados Em resumo toda uma tática de confusão que tinha como finalidade um estado de conflito permanente A isso se acrescentava um longo trabalho para impor à percepção que se tinha dos delinqüentes contornos bem determinados apresentálos como bem próximos presentes em toda parte e em toda parte temíveis É a função do noticiário policial que invade parte da imprensa e começa a ter seus próprios jornais60 A notícia policial por sua redundância cotidiana torna aceitável o conjunto dos controles judiciários e policiais que vigiam a sociedade conta dia a dia uma espécie de batalha interna contra o inimigo sem rosto nessa guerra constitui o boletim cotidiano de alarme ou de vitória O romance de crime que começa a se desenvolver nos folhetins e na literatura barata assume um papel aparentemente contrário Tem por função principalmente mostrar que o delinqüente pertence a um mundo inteiramente diverso sem relação com a existência cotidiana e familiar Essa excepcionalidade caracterizou primeiro o basfond Les Mystères de Paris Rocambole depois a loucura sobretudo na segunda metade do século enfim o crime dourado a delinqüência de grande envergadura Arsène Lupin O noticiário policial junto com a literatura de crimes vem produzindo há mais de um século uma quantidade enorme de histórias de crimes nas quais principalmente a delinqüência aparece como muito familiar e ao mesmo tempo totalmente estranha uma perpétua ameaça para a vida cotidiana mas extremamente longínqua por sua origem pelo que a move pelo meio onde se mostra cotidiana e exótica Pela importância que lhe é dada e o fausto discursivo de que se acompanha traçase em torno dela uma linha que ao exaltála põena à parte Nessa delinqüência tão temível e vinda de um céu tão estranho que ilegalidade poderia reconhecer Essa tática múltipla não ficou sem efeito provamno as campanhas dos jornais populares contra o trabalho penal61 contra o conforto das prisões para que sejam reservados aos detentos os trabalhos mais duros e mais perigosos contra o excesso de interesse que a filantropia dedica aos delinqüentes contra a literatura que exalta o crime62 provao também a desconfiança experimentada em geral em todo o movimento operário em relação aos antigos condenados de direito comum Ao despertar do século XX escreve Michèle Perrot cercada de desprezo a mais altaneira das muralhas a prisão acabase fechando a um povo impopular63 Entretanto essa tática está longe de ter triunfado ou em todo caso de ter obtido uma ruptura total entre os delinqüentes e as camadas populares As relações das classes populares com a infração a posição recíproca do proletariado e da plebe urbana deveriam ser estudadas Mas uma coisa é certa a delinqüência e a repressão são consideradas no movimento operário dos anos 18301850 como um trunfo importante Hostilidade aos delinqüentes sem dúvida mas batalha em torno da penalidade Os jornais populares propõem muitas vezes uma análise política da criminalidade que se opõe termo por termo à descrição familiar dos filantropos probrezadissipaçãopreguiçabebedeiravícioroubocrime O ponto de origem da delinqüência é por eles determinado não no indivíduo criminoso este é apenas a ocasião ou a primeira vítima mas na sociedade O homem que vos traz a morte não é livre de não trazêla A sociedade é a culpada ou para dizer melhor a má organização social64 E isto seja porque ela não está apta a prover a suas necessidades fundamentais seja porque ela destrói ou apaga nele possibilidades aspirações ou exigências que surgirão em seguida no crime A falsa instrução as aptidões e as forças não consultadas a inteligência e o coração comprimidos por um trabalho forçado numa idade muito tenra65 Mas essa criminalidade de necessidade ou de repressão mascara com o brilho que lhe é dado e a desconsideração de que é cercada outra criminalidade que é às vezes causa dela e sempre a amplificação E a delinqüência de cima exemplo escandaloso fonte de miséria e princípio de revolta para os pobres Enquanto a miséria cobre de cadáveres vossas ruas de ladrões e assassinos vossas prisões que vemos da parte dos escroques da fina sociedade os exemplos mais corruptores o mais revoltante cinismo o banditismo mais desavergonhado Não receais que o pobre que é citado ao banco dos criminosos por ter arrancado um pedaço de pão pelas grades de uma padaria se indigne o bastante algum dia para demolir pedra por pedra a Bolsa um antro selvagem onde se roubam impunemente os tesouros do Estado a fortuna das famílias66 Ora essa delinqüência própria à riqueza é tolerada pelas leis e quando lhe acontece cair em seus domínios ela está segura da indulgência dos tribunais e da discrição da imprensa67 Daí a idéia de que os processos criminais podem se tornar ocasião para um debate político que é preciso aproveitar os processos de opinião ou ações intentadas contra os operários para denunciar o funcionamento geral da justiça penal O recinto dos tribunais não é mais apenas como antigamente um local de exibição das misérias e pragas de nossa época uma espécie de marca onde vêm se exibir lado a lado as tristes vítimas de nossa desordem social é uma arena onde ressoa o grito dos combatentes68 Daí também a idéia de que os prisioneiros políticos já que têm como os delinqüentes experiência direta do sistema penal mas que estão em condições de se fazer ouvir têm o dever de ser portavozes de todos os detentos a eles cabe esclarecer o bom burguês da França que nunca conheceu as penas que se infligem senão por meio de pomposas frases de um procurador geral69 Nesse questionamento da justiça penal e dos limites que ela estabelece cuidadosamente em torno da delinqüência é característica a tática do que poderíamos chamar o contranoticiário policial Para os jornais populares o importante era transformar o uso que se dava aos crimes ou aos processos nos jornais que à maneira da Gazette des tribunaux alimentam de sangue se alimentam de prisão e fazem representar todo dia um repertório de melodrama70 O contranoticiário policial destaca sistematicamente os fatos de delinqüência da burguesia mostrando que ela é a classe submetida à degenerescência física à podridão moral substitui os relatos de crimes cometidos por gente do povo pela descrição da miséria em que caem os que os exploram e que no sentido estrito os deixam com fome e os assassinam71 mostra nos processos criminais contra os operários a parte de responsabilidade que deve ser atribuída aos empregadores e à sociedade inteira Enfim empenhase todo esforço para transformar esse discurso monótono sobre o crime procurando ao mesmo tempo isolálo como uma monstruosidade e fazendo cair todo o seu escândalo sobre a classe mais pobre No curso dessa polêmica antipenal os partidários de Fourier foram sem dúvida mais longe que os outros Elaboraram os primeiros talvez uma teoria política que é ao mesmo tempo uma valorização positiva do crime Se este é segundo eles um efeito da civilização é igualmente e pela mesma razão uma arma contra ela Traz consigo um vigor e um futuro A ordem social dominada pela fatalidade de seu princípio compressivo continua a matar pela mão do carrasco ou com as prisões aqueles cujo natural robusto rejeita ou desdenha suas prescrições aqueles que por serem fortes demais para ficar presos nesses cueiros acanhados os desfazem e rasgam homens que não querem permanecer crianças72 Não há então natureza criminosa mas jogos de força que segundo a classe a que pertencem os indivíduos73 os conduzirão ao poder ou à prisão pobres os magistrados de hoje sem dúvida povoariam os campos de trabalhos forçados e os forçados se fossem bem nascidos tomariam assento nos tribunais e aí distribuiriam justiça74 No fundo a existência do crime manifesta felizmente uma incompressibilidade da natureza humana devese ver nele mais que uma fraqueza ou uma doença uma energia que se ergue um brilhante protesto da individualidade humana que sem dúvida lhe dá aos olhos de todos seu estranho poder de fascínio Sem o crime que desperta em nós uma grande quantidade de sentimentos adormecidos e de paixões meio apagadas ficaríamos mais tempo na desordem ou seja na atonia75 Pode então acontecer que o crime constitua um instrumento político que seja tão importante para a libertação de nossa sociedade quanto foi para a emancipação dos negros teria esta acontecido sem ele O veneno o incêndio e às vezes até a revolta atestam as ardentes misérias da condição social76 Os prisioneiros A parte mais infeliz e mais oprimida da humanidade La Phalange se reunia às vezes à estética contemporânea do crime mas para um combate bem diferente Daí uma utilização do noticiário policial que não tem simplesmente como objetivo fazer voltar contra o adversário a acusação de imoralidade mas fazer aparecer o jogo das forças que se opõem reciprocamente La Phalange analisa os casos penais como uma defrontação codificada pela civilização os grandes crimes não como monstruosidades mas como a volta fatal e a revolta do que é reprimido77 as pequenas ilegalidades não como as margens necessárias da sociedade mas como o fulcro da batalha que aí se desenrola Coloquemos aí depois de Vidocq e Lacenaire um terceiro personagem Esse fez só uma breve aparição sua notoriedade não durou mais que um dia Era apenas a figura passageira das ilegalidades menores uma criança de treze anos sem domicílio nem família acusada de vadiagem e que uma condenação a dois anos de correção sem dúvida colocou por muito tempo nos circuitos da delinqüência Teria com toda certeza passado sem vestígios se não tivesse oposto ao discurso da lei que a tornava delinqüente mais em nome das disciplinas que em termos do código o discurso de uma ilegalidade que permanecia rebelde a essas coerções E que valorizava a indisciplina de uma maneira sistematicamente ambígua como a ordem desordenada da sociedade e como afirmação de direitos irredutíveis Todas as ilegalidades que o tribunal codifica como infrações o acusado reformulou como afirmação de uma força viva a ausência de habitat em vadiagem a ausência de patrão em autonomia a ausência de trabalho em liberdade a ausência de horário em plenitude dos dias e das noites Essa defrontação da ilegalidade com o sistema disciplinapenalidadedelinqüência foi percebida pelos contemporâneos ou antes pelo jornalista que lá se encontrava como o efeito cômico da lei criminal às voltas com os fatos miúdos da indisciplina E estava certo o próprio caso e o veredicto que se lhe seguiu estão bem no centro do problema dos castigos legais no século XIX A ironia com que o juiz tenta envolver a indisciplina na majestade da lei e a insolência com que o acusado reinscreve a indisciplina nos direitos fundamentais constituem para a penalidade uma cena exemplar O que nos valeu sem dúvida a síntese da Gazette des tribunaux78 O Presidente Devese dormir em casa Béasse Eu tenho um em casa O senhor vive em perpétua vagabundagem Eu trabalho para ganhar a vida Qual é a sua profissão Minha profissão Em primeiro lugar tenho trinta e seis mas não trabalho para ninguém Já faz algum tempo estou por minha conta Tenho minhas ocupações de dia e de noite Assim por exemplo de dia distribuo impressos grátis a todos os passantes corro atrás das diligências que chegam para carregar os pacotes dou o meu show na avenida de Neuilly de noite são os espetáculos vou abrir as portas vendo senhas de saída sou muito ocupado Seria melhor para o senhor estar colocado numa boa casa e lá fazer seu aprendizado Ah é sim uma boa casa um aprendizado é chato Mas esses burgueses resmungam sempre e eu fico sem a minha liberdade Seu pai não o chama Não tenho mais pai E sua mãe Também não nem parentes nem amigos livre e independente Ouvindo sua condenação a dois anos de correção Béasse faz uma careta feia depois recobrando o bom humor Dois anos nunca duram mais que vinte e quatro meses Vamos embora vamos indo Esta é a cena que a Phalange aproveitou E a importância que lhe atribui a análise muito lenta muito cuidadosa que faz dela mostra que os partidários de Fourier viam num caso tão cotidiano como esse um jogo de forças fundamentais De um lado a força da civilização representada pelo presidente legalidade viva espírito e letra da lei Ela tem seu sistema de coerção que parece o código e na realidade é a disciplina É preciso ter um local uma localização uma inserção obrigatória Dormese em casa diz o presidente porque na verdade para ele tudo tem que ter um domicílio uma moradia esplêndida ou mísera pouco importa não é a ele que cabe provêla ele é encarregado de forçar a isso todos os indivíduos Devese além disso ter uma profissão uma identidade reconhecível uma individualidade definitivamente fixada Qual é sua profissão Esta pergunta é a expressão mais simples da ordem que se estabelece na sociedade a qual repugna e perturba a vagabundagem é preciso ter uma profissão estável contínua de largo fôlego idéias que vejam o futuro idéias de construção do futuro para premunir a sociedade de qualquer ataque Devese enfim ter um patrão estar preso e situado dentro de uma hierarquia o homem só existe fixado em relações definidas de dominação Para quem o senhor trabalha Quer dizer já que o senhor não é patrão tem que ser servidor de alguma forma o que importa não é a satisfação do indivíduo mas a ordem a ser mantida Diante da disciplina com aspecto de lei temos a ilegalidade que se impõe como um direito A ruptura se dá mais pela indisciplina do que pela infração Indisciplina da linguagem a incorreção gramatical e o tom das respostas indicam uma cisão violenta ente o acusado e a sociedade que por meio do presidente se dirige a ele em termos corretos Indisciplina que é a da liberdade nata e imediata Ele sente muito bem que o aprendiz o operário é escravo e que a escravidão é triste Ele sente que não a gozaria mais na ordem comum essa liberdade de movimento de que é possuído ele prefere a liberdade mesmo sendo desordem que importa E a liberdade ou seja o desenvolvimento mais espontâneo de sua individualidade desenvolvimento selvagem e conseqüentemente brutal e limitado mas desenvolvimento natural e instintivo Indisciplina nas relações familiares pouco importa que essa criança perdida tenha sido abandonada ou se tenha libertado voluntariamente pois não pôde também suportar a escravidão da educação em casa dos pais ou de estranhos E através de todas essas pequenas indisciplinas no fundo se acusa a civilização inteira enquanto desponta a selvageria É trabalho preguiça despreocupação devassidão é tudo menos ordem excetuandose as ocupações e devassidões é a vida do selvagem no diaadia e sem amanhã79 Sem dúvida as análises de La Phalange não podem ser consideradas representativas das discussões que os jornais populares faziam na época sobre os crimes e a penalidade Mas elas se situam no contexto dessa polêmica As lições de La Phalange não se perderam totalmente Elas é que foram despertadas pela reação tão ampla de resposta aos anarquistas quando na segunda metade do século XIX eles tomando como ponto de ataque o aparelho penal colocaram o problema político da delinqüência quando pensaram reconhecer nela a forma mais combativa de recusa da lei quando tentaram não tanto heroicizar a revolta dos delinqüentes quanto desligar a delinqüência em relação à legalidade e à ilegalidade burguesa que a haviam colonizado quando quiseram restabelecer ou constituir a unidade política das ilegalidades populares CAPÍTULO III O CARCERÁRIO Tivesse eu que fixar a data em que se completa a formação do sistema carcerário não escolheria 1810 e o Código Penal nem mesmo 1844 com a lei que estabelecia o princípio do internamente celular talvez não escolhesse 1838 quando foram publicados os livros de Charles Lucas MoreauChristophe e Faucher sobre a reforma das prisões Mas 22 de janeiro de 1840 data da abertura oficial de Mettray Ou melhor talvez aquele dia de uma glória sem calendário em que uma criança de Mettray agonizava dizendo Que pena ter que deixar tão cedo a colônia1 Era a morte do primeiro santo penitenciário Muitos bemaventurados o seguiram sem dúvida se é verdade que os colonos costumavam dizer para fazer o elogio da nova política punitiva do corpo Preferiríamos as pancadas mas a cela é melhor para nós Por que Mettray Porque é a forma disciplinar no estado mais intenso o modelo em que concentram todas as tecnologias coercitivas do comportamento Tem alguma coisa do claustro da prisão do colégio do regimento Os pequenos grupos fortemente hierarquizados entre os quais os detentos se repartem têm simultaneamente cinco modelos de referência o modelo da família cada grupo é uma família composta de irmãos e de dois mais velhos o modelo do exército cada família comandada por um chefe se divide em suas seções cada qual com um subchefe todo detento tem um número de matrícula e deve aprender os exercícios militares básicos realizase todos os dias uma revista de limpeza e uma vez por semana uma revista de roupas a chamada é feita três vezes por dia o modelo da oficina com chefes e contramestres que asseguram o enquadramento do trabalho e o aprendizado dos mais jovens o modelo da escola uma hora ou hora e meia de aula por dia o ensino é feito pelo professor e pelos subchefes e por fim o modelo judiciário todos os dias se faz uma distribuição de justiça no parlatório A mínima desobediência é castigada e o melhor meio de evitar delitos graves é punir muito severamente as mais leves faltas em Mettray reprimese qualquer palavra inútil a principal das punições infligidas é o encarceramento em cela pois o isolamento é o melhor meio de agir sobre o moral das crianças é aí principalmente que a voz da religião mesmo se nunca houvesse falado a seu coração recebe toda a sua força e emoção2 toda a instituição parapenal que é feita para não ser prisão culmina na cela em cujos muros está escrito em letras negras Deus o vê Essa superposição de modelos diferentes permite determinar a função de adestramento no que ela tem de específico Os chefes e subchefes em Mettray não devem ser exatamente nem juizes nem professores nem contramestres nem soboficiais nem pais mas um pouco de tudo isso e num modo de intervenção que é específico São de certo modo técnicos do comportamento engenheiros da conduta ortopedistas da individualidade Tem que fabricar corpos ao mesmo tempo dóceis e capazes controlam as nove ou dez horas de trabalho cotidiano artesanal ou agrícola dirigem as paradas os exercícios físicos a escola de pelotão as alvoradas o recolher as marchas com corneta e apito mandam fazer ginástica3 verificam a limpeza presidem aos banhos Adestramento que é acompanhado por uma observação permanente continuamente se avalia o comportamento cotidiano dos colonos é um saber organizado como instrumento de apreciação perpétua Ao entrar na colônia a criança é submetida a uma espécie de interrogatório para se ter uma idéia de sua origem posição de sua família a falta que a levou diante dos tribunais e todos os delitos que compõem sua curta e muitas vezes bem triste existência Essas informações são postas num quadro onde se anota sucessivamente tudo o que se refere a cada colono sua estada na colônia e sua situação depois que sai4 A modelagem do corpo dá lugar a um conhecimento do indivíduo o aprendizado das técnicas induz a modos de comportamento e a aquisição de aptidões se mistura com a fixação de relações de poder formamse bons agricultores vigorosos e hábeis nesse mesmo trabalho desde que tecnicamente controlado fabricamse indivíduos submissos e constituise sobre eles um saber em que se pode confiar Duplo efeito dessa técnica disciplinar que é exercida sobre os corpos uma alma a conhecer e uma sujeição a manter Um resultado autentica esse trabalho de treinamento em 1848 no momento em que a febre revolucionária apaixonava todas as imaginações no momento em que as escolas de Angers de La Flèche de Alfort e os próprios colégios se insurgiram os colonos de Mettray redobraram sua calma5 Mettray é sobretudo um exemplo na especificidade que lhe é reconhecida nessa operação de adestramento Ela se aproxima de outras formas de controle sobre as quais ela se apóia isto é na medicina na educação geral na direção religiosa Mas não se confunde absolutamente com elas Nem tampouco com a administração propriamente dita Os homens da direção chefes ou subchefes de família monitores ou contramestres tinham que viver bem próximos dos colonos usavam uma roupa quase tão humilde quanto a deles praticamente nunca os deixavam vigiandoos dia e noite constituíam no meio deles uma rede de observação permanente E para a formação destes chefes fora organizada na colônia uma escola especializada O elemento essencial de seu programa era submeter os futuros administradores aos mesmos aprendizados e às mesmas coerções que os próprios detentos eram submetidos como alunos à disciplina que deveriam como professores impor mais tarde Eralhes ensinada a arte das relações de poder Primeira escola normal da disciplina pura o penitenciário não é simplesmente um projeto que procura sua caução na humanidade ou seus fundamentos numa ciência mas uma técnica que se aprende se transmite e que obedece a normas gerais A prática que normaliza à força o comportamento dos indisciplinados ou dos perigosos pode ser por sua vez normalizada por uma elaboração técnica e uma reflexão racional A técnica disciplinar tornase uma disciplina que também tem sua escola A certidão de nascimento da psicologia científica segundo os historiadores das ciências humanas é passada com data dessa época Weber para medir as sensações teria começado a manipular seu pequeno compasso nesses mesmos anos O que se passa em Mettray e nos outros países da Europa um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde é evidentemente de outra ordem inteiramente diversa É a aparição ou antes a especificação institucional e como que o batismo de um novo tipo de controle ao mesmo tempo conhecimento e poder sobre os indivíduos que resistem à normalização disciplinar E no entanto na formação e no crescimento da psicologia o aparecimento desses profissionais da disciplina da normalidade e da sujeição vale bem sem dúvida a medida de um limiar diferencial Dirseá que a estimação quantitativa das respostas sensoriais podia pelo menos usar a autoridade dos prestígios da fisiologia nascente e que a esse título merece constar na história dos conhecimentos Mas os controles de normalidade eram por sua vez fortemente enquadrados por uma medicina ou uma psiquiatria que lhes garantiam uma forma de cientificidade estavam apoiados num aparelho judiciário que de maneira direta ou indireta lhes trazia sua canção legal Assim ao abrigo dessas duas consideráveis tutelas e aliás servindolhes de vínculo ou de lugar de troca desenvolveuse continuamente até hoje uma técnica refletida do controle das normas Os suportes institucionais e específicos desses processos se multiplicaram desde a pequena escola de Mettray seus aparelhos aumentaram em quantidade e em superfície seus laços se multiplicaram com os hospitais as escolas as repartições públicas e as empresas privadas seus agentes proliferaram em número em poder em qualificação técnica os técnicos da indisciplina fizeram escola Na normalização do poder de normalização na organização de um podersaber sobre os indivíduos Mettray e sua escola fazem época Mas por que ter escolhido este momento como ponto de chegada na formação de uma certa arte de punir que é ainda mais ou menos a nossa Precisamente porque essa escolha é um pouco injusta Porque situa o fim do processo na região menos nobre do direito criminal Porque Mettray é uma prisão embora falha prisão porque eram detidos aí os jovens delinqüentes condenados pelos tribunais e no entanto algo diferente pois eram presos aí os menores que haviam sido citados mas absolvidos em virtude do artigo 66 do Código e alunos internos retidos como no século XVIII a título da correção paterna Mettray como modelo punitivo está no limite da penalidade estrita Foi a mais famosa de toda uma série de instituições que bem além das fronteiras do direito penal constituíram o que se poderia chamar o arquipélago carcerário No entanto os princípios gerais os grandes códigos e as legislações afirmaram não há encarceramento fora da lei não há detenção que não seja decidida por uma instituição judiciária qualificada não há mais esses enclausuramentos arbitrários e no entanto maciços Ora o próprio princípio do encarceramento extrapenal na realidade nunca foi abandonado6 E se o aparelho do grande enclausuramento clássico foi em parte desmantelado e só em parte foi muito cedo reativado reorganizado desenvolvido em certos pontos Mas o que é ainda mais importante é que foi homogeneizado por intermédio da prisão por um lado com os castigos legais e por outro lado com os mecanismos disciplinares As fronteiras que já eram pouco claras na era clássica entre o encarceramento os castigos judiciários e as instituições de disciplina tendem a desaparecer para constituir um grande continuam carcerário que difunde as técnicas penitenciárias até as disciplinas mais inocentes transmitem as normas disciplinares até a essência do sistema penal e fazem pesar sobre a menor ilegalidade sobre a mínima irregularidade desvio ou anomalia a ameaça da delinqüência Uma rede carcerária sutil graduada com instituições compactas mas também com procedimentos parcelados e difusos encarregouse do que cabia ao encarceramento arbitrário maciço mal integrado da era clássica Não se trata aqui de reconstituir todo esse tecido que forma a ambiência imediata primeira depois cada vez mais longínqua da prisão Que seja suficiente dar algumas referências para avaliar a amplitude e algumas datas para medir a precocidade Houve as seções agrícolas das casas centrais cujo primeiro exemplo foi Gaillon em 1824 seguido mais tarde por Fontevrault les Douaires le Boulard houve as colônias para crianças pobres abandonadas e vadias PetitBourg em 1840 Ostwald em 1842 houve os refúgios as caridades as misericórdias destinadas às moças culpadas que recuam diante do pensamento de voltar a uma vida de desordem para as pobres inocentes expostas a uma perversidade precoce pela imoralidade materna ou para as meninas pobres encontradas à porta dos hospitais e das pensões Houve as colônias penitenciárias previstas pela lei de 1850 os menores absolvidos ou condenados lá deviam ser criados em comum sob uma severa disciplina e aplicados em trabalhos de agricultura assim como nas principais indústrias que a ela se ligam e mais tarde virão reunirse a eles os menores passíveis de internamente em colônias os pupilos viciosos e insubmissos da Assistência Pública7 E afastandose sempre mais da penalidade propriamente dita os círculos carcerários se alargam e a forma da prisão se dilui lentamente antes de desaparecer por completo as instituições para crianças abandonadas ou indigentes os orfanatos como Neuhof ou Le MesnilFirmin os estabelecimentos para aprendizes como o Bethléem de Reims ou a Maison de Nancy distanciandose ainda mais as fábricasconventos como a de La Sauvagère depois de Tarare e de Jujurieu onde as operárias entram pelos treze anos vivem reclusas durante anos e só saem sob vigilância não recebem salários mas fianças em forma de prêmios de zelo e bom comportamento que só lhes são entregues ao saírem Indo mais além houve ainda uma série de dispositivos que não retomam a prisão compacta mas utilizam alguns dos mecanismos carcerários patronatos obras de moralização centrais de distribuição de auxílios e vigilância cidades e alojamentos operários cujas formas primitivas e mais grosseiras trazem ainda muito visíveis as marcas do sistema penitenciário8 E finalmente essa grande organização carcerária reúne todos os dispositivos disciplinares que funcionam disseminados na sociedade Vimos que na justiça penal a prisão transformava o processo punitivo em técnica penitenciária quatro ao arquipélago carcerário ele transporta essa técnica da instituição penal para o corpo social inteiro Com vários efeitos importantes 1 Esse vasto dispositivo estabelece uma gradação lenta contínua imper ceptível que permite passar como que naturalmente da desordem à infração e em sentido inverso da transgressão da lei ao desvio em relação a uma regra a uma média a uma exigência a uma norma Na época clássica apesar de uma certa referência comum à falta em geral9 a ordem da infração a ordem do pecado e do mau comportamento ficavam separadas na medida em que dependiam de critérios e instâncias separadas a penitência o tribunal o enclausuramento O encarceramento com seus mecanismos de vigilância e punição funciona ao contrário segundo um princípio de relativa continuidade Continuidade das próprias instituições que existem num relacionamento recíproco dos órgãos de assistência para o orfanato para a casa de correção para a penitenciária para o batalhão disciplinar para a prisão da escola para o patronato para a oficina para o refúgio para o convento penitenciário da cidade operária para o hospital a prisão Continuidade dos critérios e mecanismos punitivos que a partir do simples desvio fazem pesar cada vez mais a regra e agravam a sanção Gradação contínua das autoridades instituídas especializadas e competentes na ordem do saber e na ordem do poder que sem arbitrariedade mas segundo regulamentos por meio de verificação e medida hierarquizam diferenciam sancionam punem e vão pouco a pouco da sanção dos desvios ao castigo dos crimes O carcerário com suas formas múltiplas difusas ou compactas suas instituições de controle ou de coação de vigilância discreta e de coerção insistente assegura a comunicação qualitativa e quantitativa dos castigos coloca em série ou dispõe segundo ligações sutis as pequenas e as grandes penas as atenuações e os rigores as más notas e as menores condenações Você ainda vai acabar nos trabalhos forçados pode dizer a menor das disciplinas e a mais severa das prisões diz ao condenado à prisão perpétua Vou tomar nota do menor desvio de seu comportamento A generalidade da função punitiva que o século XVIII procurava na técnica ideológica das representações e dos sinais tem agora por suporte a extensão a armadura material complexa dispersa mas coerente dos diversos dispositivos carcerários Por isso mesmo um certo significado comum circula entre a primeira das irregularidades e o último dos crimes não é mais a falta não é mais tampouco o ataque ao interesse comum é o desvio e a anomalia é a sombra que povoa a escola o tribunal o asilo ou a prisão Generaliza pelo lado do sentido a função que o carcerário generaliza pelo lado da tática O adversário do soberano depois inimigo social transformouse em desviador que traz consigo o perigo múltiplo da desordem do crime da loucura A rede carcerária acopla segundo múltiplas relações as duas séries longas e múltiplas do punitivo e do anormal 2 O carcerário com seus canais permite o recrutamento dos grandes delinqüentes Organiza o que se poderia chamar as carcereiras disciplinares onde sob o aspecto das exclusões e das rejeições todo um trabalho de elaboração se opera Na época clássica ficava aberto nos confins ou nos interstícios da sociedade o campo confuso tolerante e perigoso do foradalei ou pelo menos do que escapava ao domínio direto do poder espaço incerto que era para a criminalidade um local de formação e região de refúgio lá se encontravam ao sabor do acaso a pobreza o desemprego a inocência perseguida a esperteza a luta contra os poderosos a recusa das obrigações e das leis o crime organizado era o espaço da aventura percorrido por Gil Blas Sheppard ou Mandrin cada um a seu modo O século XIX com o jogo das diferenciações e das interligações disciplinares construiu canais rigorosos que na essência do sistema adestram a docilidade e fabricam a delinqüência com os mesmos mecanismos Houve uma espécie de formação disciplinar contínua e cerceadora que tem um pouco de curso pedagógico um pouco de canal profissional Delineiamse carreiras tão certas tão fatais quanto as de função pública asilos e associações de ajuda prisões domiciliares colônias penitenciárias batalhões de disciplina cadeias hospitais asilos de velhos Esses canais já eram bem conhecidos no século XIX Nossos estabelecimentos de beneficência apresentam um conjunto admiravelmente coordenado por meio do qual o indigente não permanece um momento sem ajuda do nascimento até o túmulo Segui o infeliz vêloeis nascer no meio das crianças enjeitadas daí passa à creche depois às salas de asilo daí sai aos seis anos para entrar na escola primária e mais tarde nas escolas de adultos Se não pode trabalhar é inscrito nos centros de beneficência de seu bairro e se ficar doente pode escolher entre 12 hospitais Enfim quando o pobre de Paris chega ao fim de sua carreira 7 asilos esperam sua velhice e muitas vezes seu regime saudável prolongou dias inúteis até bem mais longe que os dos ricos10 A rede carcerária não lança o elemento inassimilável num inferno confuso ela não tem lado de fora Toma por um lado o que parece excluir por outro Economiza tudo inclusive o que sanciona Não consente em perder nem o que consentiu em desqualificar Nesta sociedade panóptica cuja defesa onipresente é o encarceramento o delinqüente não está fora da lei mas desde o início dentro dela na própria essência da lei ou pelo menos bem no meio desses mecanismos que fazem passar insensivelmente da disciplina à lei do desvio à infração Se é verdade que a prisão sanciona a delinqüência esta no essencial é fabricada num encarceramento e por um encarceramento que a prisão no fim de contas continua por sua vez A prisão é apenas a continuação natural nada mais que um grau superior dessa hierarquia percorrida passo a passo O delinqüente é um produto da instituição Não admira pois que numa proporção considerável a biografia dos condenados passe por todos esses mecanismos e estabelecimentos dos quais fingimos crer que se destinavam a evitar a prisão Que se encontre aí se quisermos o indício de um temperamento delinqüente irredutível o recluso de Mende foi cuidadosamente produzido a partir da criança de casa de correção segundo as linhas de força do sistema carcerário generalizado E inversamente o lirismo da marginalidade pode se encantar o quanto quiser com a imagem do foradalei grande nômade social que ronda nos confins da ordem dócil e amedrontado A criminalidade não nasce nas margens e por efeito de exílios sucessivos mas graças a inserções cada vez mais rigorosas debaixo de vigilâncias cada vez mais insistentes por uma acumulação de coerções disciplinares Em resumo o arquipélago carcerário realiza nas profundezas do corpo social a formação da delinqüência a partir das ilegalidades sutis o ressarcimento destas por aquela e a implantação de uma criminalidade especificada 3 Mas o efeito mais importante talvez do sistema carcerário e de sua extensão bem além da prisão legal é que ele consegue tornar natural e legítimo o poder de punir baixar pelo menos o limite de tolerância à penalidade Tende a apagar o que possa haver de exorbitante no exercício do castigo fazendo funcionar um em relação ao outro os dois registros em que se divide um legal da justiça outro extralegal da disciplina Com efeito a grande continuidade do sistema carcerário por um lado e outro da lei e suas sentenças dá uma espécie de caução legal aos mecanismos disciplinares às decisões e às sanções que estes utilizam De um extremo a outro dessa rede que compreende tantas instituições regionais relativamente autônomas e independentes transmitese com a formaprisão o modelo da grande justiça Os regulamentos das casas de disciplina podem reproduzir a lei as sanções imitar os veredictos e as penas a vigilância imitar o modelo policial e acima de todos esses múltiplos estabelecimentos a prisão que é em relação a todos eles uma forma pura sem mistura nem atenuação lhes dá uma maneira de caução de Estado O carcerário com toda sua gama de punições que se estende dos trabalhos forçados ou da reclusão criminal até aos enquadramentos difusos e leves comunica um tipo de poder que a lei valida e que a justiça usa como sua arma preferida Como poderiam parecer arbitrários as disciplinas e o poder que nelas funciona se o que fazem é apenas acionar os mecanismos da própria justiça com o risco de diminuirlhes a intensidade Ou se generalizam esses efeitos se os transmitem até os últimos níveis é para evitar seus rigores A continuidade carcerária e a difusão da forma prisão permitem legalizar ou em todo caso legitimar o poder disciplinar que evita assim o que possa comportar de excesso ou de abuso Mas inversamente a pirâmide carcerária dá ao poder de infligir punições legais um contexto no qual este aparece livre de qualquer excesso e violência Na gradação sabiamente progressiva dos aparelhos de disciplina e dos ajustes que eles supõem a prisão não representa absolutamente o desencadear de um poder de outra natureza mas apenas um grau suplementar na intensidade de um mecanismo que não parou de funcionar desde as primeiras sanções Entre a última das instituições de adestramento onde a pessoa é recolhida para evitar a prisão e a prisão aonde ela é enviada depois de uma infração caracterizada a diferença é mau e mal perceptível e deve ser Rigorosa economia que tem o efeito de tornar tão discreto quanto possível o singular poder de punir Nele nada mais lembra agora o antigo excesso do poder soberano quando vingava sua autoridade sobre o corpo dos supliciados A prisão continua sobre aqueles que lhe são confiados um trabalho começado fora dela e exercido pela sociedade sobre cada um através de inúmeros mecanismos de disciplinas Graças ao continuum carcerário a instância que condena se introduz entre todas as que controlam transformam corrigem melhoram Na verdade nada mais os distinguiria realmente não fora o caráter singularmente perigoso dos delinqüentes a gravidade de seus desvios e a necessária solenidade do rito Mas em sua função esse poder de punir não é essencialmente diferente do de curar ou educar Recebe destes e de sua tarefa menor e inferior uma garantia que vem de baixo mas nem por isso menos importante pois é o socorro da técnica e da racionalidade O carcerário naturaliza o poder legal de punir como legaliza o poder técnico de disciplinar Homogeneizandoos assim apagando o que possa haver de violento em um e de arbitrário no outro atenuando os efeitos de revolta que ambos possam suscitar tornando conseqüentemente inúteis sua exasperação e excesso fazendo circular de um para o outro os mesmos métodos calculados mecânicos e discretos o carcerário permite a realização daquela grande economia do poder cuja fórmula o século XVIII procurou quando veio à tona o problema da acumulação e da gestão útil dos homens A generalidade carcerária funcionando em toda a amplitude do corpo social e misturando incessantemente a arte de retificar com o direito de punir baixa o nível a partir do qual se torna natural e aceitável ser punido Muitas vezes se pergunta como antes e depois da Revolução se deu um novo fundamento ao direito de punir E sem dúvida é pelo lado da teoria do contrato que se deve procurar a resposta Mas devese também e talvez sobretudo fazer a pergunta contrária como se fez para que as pessoas aceitassem o poder de punir ou simplesmente sendo punidos tolerassem sêlo A teoria do contrato só pode responder a isto pela ficção de um sujeito jurídico que dá aos outros o poder de exercer sobre ele o poder que ele próprio detém sobre eles E bem provável que o grande continuum carcerário que faz se relacionarem o poder da disciplina e o da lei e se estende sem ruptura das menores coerções até a grande detenção penal tenha constituído a dupla técnica real e imediatamente material daquela cessão quimérica do direito de punir 4 Com essa nova economia do poder o sistema carcerário que é seu instrumento de base encareceu uma nova forma de lei um misto de legalidade e natureza de prescrição e constituição a norma Daí toda uma série de efeitos o deslocamento interno do poder judiciário ou ao menos de seu funcionamento cada vez mais dificuldade de julgar e uma tal qual vergonha de condenar um desejo furioso de parte dos juizes de medir avaliar diagnosticar reconhecer o normal e o anormal e a honra reivindicada de curar ou readaptar Inútil creditar isso à consciência limpa ou pesada dos juizes nem mesmo a seu inconsciente Seu imenso apetite de medicina que se manifesta sem cessar desde seu apelo aos peritos psiquiatras até à atenção que dão ao falatório da criminologia traduz o fato maior de que o poder que exercem foi desnaturado que a um certo nível ele é realmente regido pelas leis que a outro e mais fundamental funciona como poder normativo é a economia do poder que exercem e não a de seus escrúpulos ou humanismo que os faz formular veredictos terapêuticos e decidir por encarceramentos readaptativos Mas inversamente se os juizes aceitarem cada vez com mais dificuldade ter que condenar por condenar a atividade de julgar se multiplicará na medida em que se difundir o poder normalizador Levado pela onipresença dos dispositivos de disciplina apoiandose em todas as aparelhagens carcerárias este poder se tornou uma das funções mais importantes de nossa sociedade Nela há juizes da normalidade em toda parte Estamos na sociedade do professorjuiz do médicojuiz do educadorjuiz do assistente socialjuiz todos fazem reinar a universalidade do normativo e cada um no ponto em que se encontra aí submete o corpo os gestos os comportamentos as condutas as aptidões os desempenhos A rede carcerária em suas formas concentradas ou disseminadas com seus sistemas de inserção distribuição vigilância observação foi o grande apoio na sociedade moderna do poder normalizador 5 A tessitura carcerária da sociedade realiza ao mesmo tempo as captações reais do corpo e sua perpétua observação é por suas propriedades intrínsecas o aparelho de punição mais de acordo com a nova economia do poder e o instrumento para a formação do saber que essa mesma economia tem necessidade Seu funcionamento panóptico lhe permite desempenhar esse duplo papel Através de seus processos de fixação repartição registro foi ele por muito tempo uma das condições a mais simples a mais primitiva a mais material também mas talvez a mais indispensável para que se desenvolvesse essa imensa atividade de exame que objetivou o comportamento humano Se entrarmos depois da era da justiça inquisitória na da justiça examinatória se de uma maneira ainda mais geral o procedimento do exame pôde estenderse tão amplamente à sociedade toda e dar lugar às ciências do homem um dos grandes instrumentos disso foi a multiplicidade e o entrecruzamento preciso dos diversos mecanismos de encarceramento Não quer dizer que da prisão saíram as ciências humanas Mas se elas puderam se formar e provocar no êpistemê todos os efeitos de profunda alteração que conhecemos é porque foram levadas por uma modalidade específica e nova de poder uma certa política do corpo uma certa maneira de tornar dócil e útil a acumulação dos homens Esta exigia a implicação de correlações definidas de saber nas relações de poder reclamava uma técnica para entrecruzar a sujeição e a objetivação incluía novos procedimentos de individualização A rede carcerária constitui uma das armaduras desse podersaber que tornou historicamente possíveis as ciências humanas O homem conhecível alma individualidade consciência comportamento aqui pouco importa é o efeitoobjeto desse investimento analítico dessa dominação observação 6 Isto explica sem dúvida a extrema solidez da prisão essa pequena invenção desacreditada desde o nascimento Se ela tivesse sido apenas um instrumento para eliminar ou esmagar a serviço de um aparelho estatal teria sido mais fácil modificar suas formas evidentes demais ou encontrar para ela um substituto mais aceitável Mas enterrada como está no meio de dispositivos e de estratégias de poder ela pode opor a quem quisesse transformála uma grande força de inércia Um fato é característico quando se pretende modificar o regime de encarceramento as dificuldades não vêm só da instituição judiciária o que resiste não é a prisãosanção penal mas a prisão com todas as suas determinações ligações e efeitos extrajudiciários é a prisão como recurso de recuperação na rede geral das disciplinas e das vigilâncias a prisão tal como funciona num regime panóptico O que não quer dizer que não possa ser modificada ou dispensável definitivamente para um tipo de sociedade como a nossa Podemos ao contrário situar os dois processos que na própria continuidade dos processos que a fizeram funcionar são capazes de restringir consideravelmente seu uso e transformar seu funcionamento interno E eles já foram sem dúvida iniciados em grande escala Um é o que diminui a utilidade ou faz aumentar as desvantagens de uma delinqüência organizada como uma ilegalidade específica fechada e controlada assim com a constituição em escala nacional ou internacional de grandes ilegalidades ligadas aos aparelhos políti cos e econômicos ilegalidades financeiras serviços de informação tráfico de armas e de droga especulações imobiliária é evidente que a mãodeobra um pouco rústica e manifesta da delinqüência se mostra ineficiente ou ainda em escala mais restrita a hierarquia arcaica da prostituição perde grande parte de sua antiga utilidade desde o momento em que previsões econômicas sobre o prazer sexual foram feitos de modo muito melhor pela venda de anticoncepcionais ou através de publicações filmes e espetáculos O outro processo é o crescimento das redes disciplinares a multiplicação de seus intercâmbios com o aparelho penal os poderes cada vez mais amplos que lhe são dados a transferência para eles cada vez maior de funções judiciárias ora à medida que a medicina a psicologia a educação a assistência o trabalho social tomam uma parte maior nos poderes de controle e de sanção em compensação o aparelho penal poderá se medicalizar se psicologizar se pedagogizar e desse modo tornarse menos útil a ligação que a prisão constituía quando pela defasagem entre seu discurso penitenciário e seu efeito de consolidação da delinqüência ela articulava o poder penal e o poder disciplinar No meio de todos esses dispositivos de normalização que se densificam a especificidade da prisão e seu papel de junção perdem parte de sua razão de ser Portanto se há um desafio político global em torno da prisão este não é saber se ela será não corretiva se os juizes os psiquiatras ou os sociólogos exercerão nela mais poder que os administradores e guardas na verdade ele está na alternativa prisão ou algo diferente de prisão O problema atualmente está mais no grande avanço desses dispositivos de normalização e em toda a extensão dos efeitos de poder que eles trazem através da colocação de novas objetividades Em 1836 um correspondente escrevia à La Phalange Moralistas filósofos legisladores e todos os que gabais a civilização aí tendes a planta de vossa cidade de Paris bem ordenada planta aperfeiçoada onde todas as coisas semelhantes estão reunidas No centro e num primeiro círculo hospitais para todas as doenças asilos para todas as misérias hospícios prisões locais de trabalhos forçados de homens de mulheres e de crianças Em torno do primeiro círculo quartéis tribunais delegacias de polícia moradia dos beleguins local dos cadafalsos habitação do carrasco e de seus ajudantes Nos quatro cantos câmara dos deputados câmara dos pares Instituto e Palácio do Rei Fora o que alimenta o circulo central o comércio com suas fraudes e bancarrotas a indústria e suas lutas furiosas a imprensa e seus sofismas as casas de jogo a prostituição o povo que morre de fome ou chafurda na orgia sempre atento à voz do Gênio das Revoluções os ricos sem coração enfim a guerra encarniçada de todos contra todos11 Termino aqui com este texto anônimo Estamos agora muito longe do país dos suplícios das rodas dos patíbulos das forcas dos pelourinhos estamos muito longe também daquele sonho que cinqüenta anos antes alimentavam os reformadores a cidade das punições onde mil pequenos teatros levariam à cena constantemente a representação multicor da justiça e onde os castigos cuidadosamente encenados sobre cadafalsos decorativos constituiriam a quermesse permanente do Código A cidade carcerária com sua geopolítica imaginária obedece a princípios totalmente diferentes O texto de La Phalange lembra alguns desses princípios mais importantes que no coração da cidade e como que para mantêla há não o centro do poder não um núcleo de forças mas uma rede múltipla de elementos diversos muros espaço instituição regras discursos que o modelo da cidade carcerária não é então o corpo do rei com os poderes que dele emanam nem tampouco a reunião contratual das vontades de onde nasceria um corpo ao mesmo tempo individual e coletivo mas uma repartição estratégica de elementos de diferentes naturezas e níveis Que a prisão não é filha das leis nem dos códigos nem do aparelho judiciário que não está subordinada ao tribunal como instrumento dócil e inadequado das sentenças que aquele exara e dos efeitos que queria obter que é o tribunal que em relação a ela é externo e subordinado Que na posição central que ocupa ela não está sozinha mas ligada a toda uma série de outros dispositivos carcerários aparentemente bem diversos pois se destinam a aliviar a curar a socorrer mas que tendem todos como ela a exercer um poder de normalização Que aquilo sobre o qual se aplicam esses dispositivos não são as transgressões em relação a uma lei central mas em torno do aparelho de produção o comércio e a indústria toda uma multiplicidade de ilegalidades com sua diversidade de natureza e de origem seu papel específico no lucro e o destino diferente que lhes é dado pelos mecanismos punitivos E que finalmente o que preside a todos esses mecanismos não é o funcionamento unitário de um aparelho ou de uma instituição mas a necessidade de um combate e as regras de uma estratégia Que conseqüentemente as noções de instituição de repressão de eliminação de exclusão de marginalização não são adequadas para descrever no próprio centro da cidade carcerária a formação das atenuações insidiosas das maldades pouco confessáveis das pequenas espertezas dos procedimentos calculados das técnicas das ciências enfim que permitem a fabricação do indivíduo disciplinar Nessa humanidade central e centralizada efeito e instrumento de complexas relações de poder corpos e forças submetidos por múltiplos dispositivos de encarceramento objetos para discursos que são eles mesmos elementos dessa estratégia temos que ouvir o ronco surdo da batalha12 NOTAS CAPÍTULO I 1 P Rossi Trité de droit pénal 1829 vol III p 169 2 Van Meenen Congresso penitenciário de Bruxelas in Annales de la Charité 1847 p 529530 3 A Duport Discurso à constituinte in Archives parlementaires 4 O jogo entre as duas naturezas da prisão ainda é constante Há alguns dias o chefe da Nação lembrou o princípio de que a detenção só devia ser uma privação de liberdade a pura essência do encarceramento libertado da realidade da prisão e acrescentou que a prisão só se podia justificar por seus efeitos corretivos ou readaptadores 5 Motifs du Code dinstruction criminelle relatório de GA Real p 244 6 Ibid Relatório de Treilhard p 89 Nos anos anteriores encontramos freqüentemente o mesmo tema A pena de detenção pronunciada pela lei tem principalmente por objeto corrigir os indivíduos ou seja tornálos melhores preparálos com provas mais ou menos longas para retomar seu lugar na sociedade sem tornar a abusar Os meios mais seguros de tornar melhores os indivíduos são o trabalho e a instrução Esta consiste não só em aprender a ler e a calcular mas também em reconciliar os condenados com as idéias de ordem de moral de respeito por si mesmos e pelos outros Beugnot prefeito de SeineInférieure portaria de Frimário ano X Nos relatórios pedidos por Chaptal aos conselhos gerais mais de uma dúzia pedem prisões onde se possa fazer os detentos trabalhar 7 Os mais importantes foram sem dúvida os propostos por Ch Lucas Marquet Wasselot Faucher Bonneville um pouco mais tarde Ferrus Devese ressaltar que a maior parte destes não eram filantropos que criticavam do exterior a instituição carcerária mas que estavam ligados de um modo ou de outro à administração das prisões Técnicos oficiais 8 Na Alemanha Julius dirigia os Jahrbücher für Strafsund Besserungs Anstalten 9 Se bem que esses jornais tenham sido principalmente órgãos de defesa dos prisioneiros por dívidas e que várias vezes marcaram sua distância em relação aos delinqüentes propriamente ditos encontramos a afirmação de que as colunas de Pauvre Jacques não são absolutamente consagradas a uma única especialidade A terrível lei da coação por corpo sua funesta aplicação não serão o único ponto atacado pelo prisioneiro jornalista Pauvre Jacques levará a atenção dos leitores aos locais de reclusão de detenção às cadeias aos centros de refúgio não manterá silêncio sobre os locais de tortura onde o homem culpado é entregue aos suplícios quando a lei só o condena aos trabalhos Pauvre Jacques ano I n 7 Assim também a Gazette de SaintePélagie milita por um sistema penitenciário que tivesse por finalidade a melhoria da espécie sendo todo o resto expressão de uma sociedade ainda bárbara 21 mar 1833 10 L Baltard Architectonographie des prisons 1829 11 Ch Lucas De la réforme des prisons 1838 vol II p 123124 12 A de Tocqueville Rapport à la Chambre des Députés citado in Beaumont e Tocqueville Le Système pénitentiaire aux Etatsunis 3ª ed 1845 p 392393 13 E de Beaumont e A de Tocqueville Ibid p 109 14 S Aylies Du système pénitentiaire 1837 p 132133 15 Ch Lucas De la réforme des prisons t I 1836 p 167 16 A discussão aberta na França por volta de 1830 não estava encerrada em 1850 Charles Lucas partidário de Auburn inspirara a portaria de 1839 sobre o regime das Centrais trabalho em comum e silêncio absoluto A vaga de revolta que se segue e talvez a agitação geral no país durante os anos 18421843 fazem que seja preferido em 1844 o regime pensilvaniano do isolamento absoluto gabado por Demetz Blouet Tocqueville Mas o 3 congresso penitenciário em 1847 opta contra esse método 17 K Mittermaier in Revue française et étrangère de législation 1836 18 AE de Gasparin Rapport au ministre de lIntérieur sur la réforme des prisons 19 E de Beaumont e A de Tocqueville Du système pénal aux EtatsUnis ed de 1945 p 112 20 Cada homem dizia Fox é iluminado pela luz divina e eu a vi brilhar através de cada homem Nesta linha dos quakers e de Walnut Street é que foram organizadas a partir de 1820 as prisões de Pensilvânia Pitsburgo depois Cherry Hill 21 Journal des économistes vol II 1842 22 Abel Blouet Projet des prisons cellulaires 1843 23 Abbé Petigny Allocution adressée aux prisonniers à 1occasion de 1inauguration des bâtiments cellulaires de la prison de Versailles Cf alguns anos mais tarde em Monte Cristo uma versão muito claramente cristológica da ressurreição depois do encarceramento mas então se trata não de aprender na prisão a docilidade às leis mas de adquirir por um saber secreto o poder de fazer justiça além da injustiça dos magistrados 24 NH Julius Leçons sur les prisons trad francesa 1831 t I p 417418 25 GA Real Motifs du Code dinstruction criminelle Antes disso várias instruções do Ministério do Interior haviam lembrado a necessidade de fazer trabalhar os detentos 5 Frutidor ano VI 3 Messidor ano VIII 8 Pluvioso e 28 Ventoso ano IX 7 Brumário ano X Logo depois dos códigos de 1808 e de 1810 encontramos ainda novas instruções 20 de outubro de 1811 8 de dezembro de 1812 ou ainda a longa Instrução de 1816 É da maior importância ocupar o mais possível os detentos Devese fazer nascer neles o desejo de trabalhar diferenciando o destino dos que se ocupam e dos detentos que querem permanecer ociosos Os primeiros serão mais bem nutridos mais bem acomodados que os segundos Melun e Clairvaux foram muito cedo organizados em grandes oficinas 26 JJ Marquet Wasselot t III p 171 27 Cf abaixo p 251 28 Cf JP Aguet Les Grèves sous la monarchie de Juillet 1954 p 3031 29 LAtelier 30 ano n 4 dez 1842 30 Ibid 6 ano n 2 nov 1845 31 Ibid 32 LAtelier 4 ano n 9 jun 1844 e 5 ano n 7 abr 1845 cf também na mesma época La Démocratie pacifique 33 LAtelier 5 ano n 6 mar 1845 34 Bérenger Rapport à lAcadémie des sciences morales junho de 1836 35 E Danjou Des prisons 1821 p 180 36 L Faucher De la réforme des prisons 1838 p 64 Na Inglaterra o tredmill e a bomba realizariam uma mecanização disciplinar dos detentos sem nenhum efeito produtivo 37 Ch Lucas De la réforme des prisons vol II 1838 p 313314 38 Ibid p 243 39 E Danjou Des prisons 1821 p 210211 cf também LAtelier 6 ano n 2 nov 1845 40 Ch Lucas op cit Um terço do salário diário era posto de lado para a saída do detento 41 E Ducpétiaux Du système de lempresionnement cellulaire 1857 p 3031 42 Comparese com o seguinte texto de Faucher Entrai numa fábrica de tecidos ouvi as conversas dos operários e o ruído das máquinas Haverá no mundo um contraste mais aflitivo que a regularidade e a previsão desses movimentos mecânicos comparados com a desordem de idéias e de costumes produzida pelo contato de tantos homens mulheres e crianças De la réforme des prisons 1838 p 20 43 A Bonneville Des libérations préparatoires 1846 p 6 Bonneville propunha medidas de liberdade preparatória mas também de suplemento de sofrimento ou de aumento penitenciário se se evidencia que a prescrição penal fixada aproximadamente de acordo com o grau provável de endurecimento do delinqüente não foi suficiente para produzir o efeito esperado Esse suplemento não devia ultrapassar um oitavo da pena a liberdade preparatória podia intervir depois de três quartos da pena Traité des diverses instructions complémentaires p 25ls 44 Ch Lucas citado na Gazette des tribunaux 6 de abril de 1837 45 In Gazette des tribunaux Cf também MarquetWasselot La Ville du refuge 1832 p 64 76 Ch Lucas anota que os contraventores são geralmente recrutados nas populações urbanas e as moralidades reclusionárias provêm geralmente das populações agrícolas De la réforme des prisons vol I 1836 p 4650 46 R Fresnel Considérations sur les maisons de refuge Paris 1829 p 2931 47 Ch Lucas De la réforme des prisons vol II 1838 p 440 48 L Duras Artigo publicado no Le Progressif e citado por La Phalange 1 dez 1838 49 Ch Lucas Ibid p 441442 50 A Bonneville Des libérations préparatoires 1846 p 5 51 A Bérenger Rapport à 1Académie des sciences morales et politiques jun 1836 52 Ch Lucas De la réforme des prisons vol II 1838 p 418422 53 E Decazes Rapport au Roi sur les prisons Le Moniteur 11 abr 1819 54 Vivien in G Ferrus Des prisonniers 1850 p VIII Uma ordenação de 1847 criara as comissões de vigilância 55 Léon Faucher De la réforme des prisons 1838 p 6 56 Ch Lucas De la réforme des prisons vol I 1836 p 69 57 Se quisermos tratar a questão administrativa abstraindo a de construção expomonos a estabelecer princípios a que não corresponde a realidade enquanto que com o suficiente conhecimento das necessidades administrativas um arquiteto pode muito bem admitir esse ou aquele sistema de encarceramento que a teoria talvez houvesse colocado entre as utopias Abel Blouet Projet de prison cellulaire 1843 p 1 58 L Baltard Architectonographie des prisons 1829 p 45 59 Os ingleses trazem em todas as suas obras o gênio da mecânica e quiseram que seus edifícios funcionassem com uma máquina submetida à ação de um único motor Ibid p 18 60 N P HarouRomain Projet de pénitencier 1840 p 8 61 V ilustrações nos 1826 62 Ducatel Instruction pour la construction des maisons darrêt p 9 63 E Ducpétiaux Du système de lemprisonnement cellulaire 1847 p 5657 64 Cf por exemplo G de Gregory Projet de Code pénal universel 1832 p 199s Grellet Wammy Manuel des prisons 1839 vol II p 2325 e 199203 65 Ch Lucas De la réforme des prisons vol II 1838 p 449450 66 Ch Lucas De la réforme des prisons vol II 1838 p 440442 67 Seria necessário estudar como a prática da biografia se difundiu a partir da constituição do indivíduo delinqüente nos mecanismos punitivos biografia ou autobiografia de prisioneiros em Appert estabelecimento de dossiês biográficos sobre o modelo psiquiátrico utilização da biografia na defesa dos acusados Sobre esse último ponto poderíamos comparar as grandes memórias justificativas do fim do século XVIII para os três homens condenados à roda ou para Jeanne Salmon e as defesas criminais da época de Luís Filipe Chaix dEstAge defendia La roncière Se muito tempo antes do crime muito tempo antes da acusação podeis escrutar a vida do acusado penetrar em seu coração sondar seu âmago mais escondido pôr a descoberto todos os seus pensamentos sua alma inteira Discours et Plaidoyers vol II p 166 68 JJ MarquetWasselot LEthmographie des prisons 1841 p 9 69 G Ferrus Des prisonniers 1850 p 182s e 278s CAPÍTULO II 1 Faucher notava que a cadeia era um espetáculo popular principalmente depois que se haviam quase suprimido os cadafalsos 2 Revue de Paris 7 jun 1836 Essa parte do espetáculo em 1836 não era mais pública só alguns espectadores privilegiados eram admitidos a ela O relato da ferração que se encontra na Revue de Paris é exatamente de acordo as vezes com as mesmas palavras com o de Dernier jour dum condamné 1829 3 Gazette des tribunaux 20 jul 1836 4 Ibid 5 La Phalange 1o ago 1836 6 A Gazette des tribunaux publica regularmente essas listas e notas criminais Exemplo de descrição para se reconhecer bem Delacollonge Calças de sarja velhas cobrindo um par de botas um boné do mesmo tecido com viseira e uma blusa cinza casaco de sarja azul 6 jun 1836 Mais tarde resolvem disfaçar Delacollonge para fazêlo escapar das violências da multidão A Gazette des tribunaux descreve logo o disfarce Calças listradas blusa de tela azul chapéu de palha 20 jul 7 Revue de Paris jun 1836 Cf Claude Gueux Apalpai todos esses crânios cada um desses homens caídos tem por baixo seu tipo bestial Eis o lobo eis o gato eis o macaco eis o abutre eis a hiena 8 La Phalange 1 ago 1836 9 Revue de Paris 7 jun 1836 Segundo a Gazette des tribunaux o capitão Thorez que comandava a cadeia de 19 de julho quis mandar retirar esses enfeites É inconveniente que indo para os trabalhos forçados expiar vossos crimes levais a afronta ao ponto de enfeitar a cabeça como se fosse para vós um dia de núpcias 10 Revue de Paris 7 jun 1836 Nessa data a cadeia fora encurtada para impedir a farândola e os soldados encarregados de manter a ordem até à partida da cadeia O sabá dos forçados é descrito no Dernier jour dum condamné A sociedade lá estava representada pelos carcereiros e curiosos apavorados enquanto o crime zombava dela um pouco fazendo desse tremendo castigo uma festa de família 11 Uma canção do mesmo gênero é citada pela Gazette des tribunaux de 10 abr 1836 Era cantada com a melodia da Marselhesa O canto da guerra patriótica nela se torna claramente o canto da guerra social Que quer de nós esse povo imbecil vem insultar a desgraça Vênos com um olhar tranqüilo Nossos carrascos não o horrorizam 12 Há uma classe de escritores que se dedicou a colocar malfeitores dotados de espantosa habilidade na glorificação do crime que os faz desempenhar o papel principal e entrega os agentes da autoridade a suas piadas ironias e sua zombaria mal disfarçada Quem tiver visto representar Auberge des Adrets ou Robert Macaire drama famoso no meio do povo reconhecerá facilmente a justeza de minhas observações É o triunfo é a apoteose da audácia e do crime A gente honesta e a polícia são totalmente mistificadas HA Fregier Les classes dangereuses 1840 vol II p 187188 13 Le dernier jour dum condamné 14 Gazette des tribunaux 19 jul 1836 15 Gazette des tribunaux 15 jun 1837 16 Gazette des tribunaux 23 jul 1837 A 9 de agosto a Gazette conta que a carruagem virou nos arredores de Guingamp em vez de se amotinar os prisioneiros ajudaram os guardas a erguer o veículo comum A 30 de outubro entretanto ela indica uma evasão em Valence 17 La Fraternité n 10 fev 1842 18 Número citado por G de la Rochefoucauld durante a discussão sobre a reforma do Código Penal 2 dez 1831 Archives parlementaires t LXXI1 p 209210 19 E Ducpétiaux De la réforme pénitentiaire 1837 t III p 276s 20 E Ducpétiaux Ibid 21 G Ferrus Des prisonniers 1850 p 363367 22 E de Beaumont e A de Tocqueville Note sur le système pénitentiaire 1831 p 2223 23 Ch Lucas De la réforme des prisons vol I 1836 p 127 e 130 24 F Bigot Préameneu Rapport au conseil général de la société des prisons 1819 25 La Fraternité mar 1842 26 Texto dirigido a LAtelier out 1842 3o ano n 3 por um operário preso por conluio Ele pôde anotar esse protesto a uma época em que o mesmo jornal fazia campanha contra a concorrência do trabalho penal No mesmo número outra carta de outro operário sobre o mesmo assunto Cf também La Fraternité mar 1842 1 ano n 10 27 L MoreauChristophe De la mortalité et de la folie dans le régime pénitentiaire 1839 p 7 28 LAlmanach populaire de la France 1839 assinado D p 4956 29 F de Barbé Marbois Rapport sur 1état des prisons du Calvados de 1Eure la Manche et la Seine Inférieure 1823 p 17 30 Gazette des tribunaux 3 dez 1829 Cf no mesmo sentido Gazette des tribunaux 19 jul 1839 a Ruche populaire ago 1840 La Fraternité julago 1847 31 Charles Lucas De la réforme des prisons vol II 1838 p 64 32 Essa campanha foi muito viva antes e depois da nova regulamentação das centrais em 1839 Regulamentação severa silêncio supressão do vinho e do fumo diminuição da cantina que foi seguida por revoltas Le Moniteur 3 out 1840 Era escandaloso ver os detentos se fartarem de vinho de carne de caça de guloseimas de todo tipo e tomar a prisão por um hotel confortável onde lhes eram proporcionadas todas as comodidades que muitas vezes o estado de liberdade lhes recusava 33 Em 1826 muitos conselhos gerais pedem que a deportação substitua um encarceramento constante e sem eficácia Em 1842 o Conselho Geral dos HautesAlpes pede que as prisões se tornem verdadeiramente expiatórias no mesmo sentido o de Drôme de EureetLoir de Nièvre de Rhône e de SeineetOise 34 Segundo uma pesquisa feita em 1839 junto aos diretores de prisões centrais Diretor de Embrun O excesso de bemestar nas prisões provavelmente contribui muito para o aumento assustador das reincidências Eysses O regime atual não é suficientemente severo e se uma coisa é certa é que para muitos detentos a prisão tem encantos e eles nela encontram gozos depravados que são tudo para eles Limoges O regime atual das casas centrais que na realidade não passam para os reincidentes de verdadeiros pensionatos não é absolutamente repressivo cf L MoreauChristophie Polémiques pénitentiaires 1840 p 86 Comparar com as declarações feitas em julho de 1874 pelos responsáveis pelos sindicatos de administração penitenciária a respeito dos efeitos da liberalização na prisão 35 Cf supra p 77s 36 Ch Comte Traité de législation 1843 p 49 37 H Lauvergne Les Forçats 1841 p 337 38 E Buré De la misère des classes laborieuses en Angleterre et en France 1840 vol II p 391 39 P Rossi Traité de droit pénal 1829 vol I p 32 40 Ch Lucas De la réforme des prisons vol II 1838 p 82 41 P Rossi Loc Cit p 33 42 Cf EJ Hobsbawm Les Bandits tradução francesa 1972 43 Sobre o problema da deportação cf F de BarbéMarbois Observations sur les votes de 41 conseils généraux e a discussão entre Blosseville e La Pilorgerie a respeito de Botany Bay Buré o coronel Marengo e L de Carné entre outros fizeram projetos de colonização da Argélia com delinqüentes 44 Um dos primeiros episódios foi a organização sob controle da polícia das casas de tolerância 1823 o que ultrapassava largamente as disposições da lei de 14 de julho de 1791 sobre a fiscalização nas casas de prostituição Cf sobre esse ponto os registros manuscritos da Delegacia de Polícia 2026 Particularmente esta circular do delegado de polícia de 14 de junho de 1823 O estabelecimento das casas de prostituição deveria naturalmente dessagradar a qualquer homem que se interesse pela moralidade pública não me espanta absolutamente que os Srs Comissários de Polícia se oponham com todas as suas forças ao estabelecimento dessas casas em seus diversos bairros A polícia acreditaria ter cuidado bastante bem da ordem pública se conseguisse fechar a prostituição em casas toleradas sobre as quais sua ação pode ser constante e uniforme e não pudessem escapar à fiscalização 45 O livro de ParentDuchatelet sobre a prostituição em Paris Prostitution à Paris 1836 pode ser lido como testemunha dessa ramificação patrocinada pela polícia e pelas instituições penais do meio delinqüente sobre a prostituição O caso da Máfia italiana transplantada para os Estados Unidos e utilizada em conjunto para a obtenção de lucros ilícitos e fins políticos é um belo exemplo da colonização de uma ilegalidade de origem popular 46 Sobre esse papel dos delinqüentes na vigilância policial e principalmente política cf a memória redigida por Lemaire Os denunciantes são gente que espera indulgências são geralmente maus elementos que servem para descobrir os que o são mais Além disso o simples fato de alguém ser incluído uma só vez no registro da polícia desde esse momento não é mais perdido de vista 47 K Marx Le 18Brumaire de LouisNapoléon Bonaparte Ed Sociales 1969 p 7678 48 A Bonneville Des institutions complémentaires du système pénitencier 1847 p 397 399 49 Cf HA Fregier Les classes dangereuses 1840 vol I p 142148 50 A Bonneville De Ia récidive 1844 p 9293 Aparecimento da ficha e constituição das ciências humanas mais uma invenção pouco celebrada pelos historiadores 51 Da resistência dos magistrados a participarem desse funcionamento temos testemunhos muito precoces desde a Restauração o que prova bem que não é um fenômeno nem uma reação tardia Particularmente a liquidação ou antes a reutilização da polícia napoleônica trouxe problemas Mas as dificuldades se prolongaram Cf o discurso com o qual Beleyme em 1825 inicia suas funções e procura se diferenciar de seus predecessores As vias legais estão abertas para nós Educado na escola das leis instruído na escola de uma magistratura tão digna somos os auxiliares da justiça cf Histoire de lAdministration de M de Belleyme ver também o panfleto muito interessante de Molène De la liberté 52 Ver tanto suas Mémoires publicadas em seu nome quanto a Histoire de Vidocq racontée par luimêne 53 A acusação é formalmente retomada por Canler Mémoires reeditadas em 1968 p 15 54 Sobre o que Lacenaire poderia ter sido segundo seus contemporâneos ver o dossiê feito por M Lebaily em sua edição das Mémoires de Lacenaire 1968 p 297304 55 Foi a ronda dos anos 18351836 Fieschi que se incluía na pena comum aos parricidas e regicidas foi uma das razões por que Rivière o parricida fosse condenado à morte apesar de uma memória cujo caráter espantoso foi sem dúvida abafado pelo brilho de Lacenaire de seu processo e de seus escritos publicados graças ao chefe da segurança não sem certas censuras no começo de 1836 alguns meses antes de seu cúmplice François ir dar com a cadeia de Brest um dos últimos grandes espetáculos ao ar livre do crime Ronda das ilegalidades e das delinqüências ronda dos discursos do crime e sobre o crime 56 No fim do século XVIII Colquhoum dá idéia da dificuldade da tarefa para uma cidade como Londres Traité de la police de Londres traduzido para o francês 1807 vol I p 3234 299300 57 Nenhuma outra classe está sujeita a uma vigilância deste gênero é exercida quase da mesma maneira que a dos condenados libertados parece colocar os operários na categoria que se chama agora a classe perigosa da sociedade LAtelier 5o ano n 6 mar 1845 a respeito da caderneta 58 Cf por exemplo JB Monfalcon Histoire des insurrections de Lyon 1834 p 142 59 Cf LAtelier outubro de 1840 ou ainda La Fraternité julhoagosto de 1847 60 Fora a Gazette des tribunaux e o Courrier des tribunaux o Journal des concierges 61 Cf LAtelier julho de 1844 Petição à Câmara de Paris para que os detentos sejam encarregados dos trabalhos insalubres e perigosos em abril de 1845 o jornal cita a experiência da Bretanha onde um número bem grande de condenados militares morreu de febre ao fazer trabalhos de canalização Em novembro de 1845 por que os prisioneiros não trabalham com mercúrio ou com alvaiade Cf igualmente a Démocratie politique dos anos 18441845 62 Em LAtelier de novembro de 1843 um ataque contra os Mystères de Paris porque exaltam demais os delinqüentes seu pitoresco seu vocabulário e porque é sublinhado demais o caráter fatal da inclinação para o crime Na Ruche populaire encontramos ataques do mesmo tipo a respeito do teatro 63 Délinquance et système pénitentiaire de France au XIXe siècle texto inédito 64 LHumanitaire ago 1841 65 La Fraternité nov 1845 66 La Ruche populaire nov 1842 67 Cf em La Ruche populaire dez 1839 uma réplica de Vinçard a um artigo de Balzac no Le Siècle Balzac dizia que uma acusação de roubo devia ser levada com prudência e discrição quando se tratasse de um rico cuja menor desonestidade é imediatamente conhecida Diga senhor com a mão na consciência se não acontece o contrário todos os dias se com uma grande fortuna e uma posição elevada no mundo não se encontram mil soluções mil maneiras de abafar um caso desagradável 68 La Fraternité nov 1841 69 Almanach populaire de la France 1839 p 50 70 Pauvre Jacques 1o ano n 3 71 Em Fraternité mar 1847 falase do caso Drouillard e alusivamente dos roubos na administração da marinha em Rochefort Em junho de 1847 artigo sobre o processo Boulmy e sobre o caso CubièrePellaprat em julhoagosto de 1847 sobre o caso de peculato BenierLagrangeJussieu 72 La Phalange 10 jan 1837 73 A prostituição patente o furto material direto o roubo o assassinato o banditismo para as classes inferiores enquanto que os esbulhos hábeis o roubo indireto e refinado a exploração bem feita do gado humano as traições de alta tática as espertezas transcendentes enfim todos os vícios e crimes realmente lucrativos e elegantes em que a lei está alta demais para atingilos se mantêm monopólio das classes superiores 1o dez 1838 74 La Phalange 1 dez 1838 75 La Phalange 10 jan 1837 76 Ibid 77 Cf por exemplo o que diz La Phalange de Delacollonge ou de Elirabide 1 de agosto de 1836 e 2 out 1840 78 La Gazette des tribunaux ago 1840 79 La Phalange 15 ago 1840 CAPÍTULO II 1 E Ducpétiaux De la condition physique et morale des jeunes ouvriers t II p 383 2 Ibid p 377 3 Tudo o que contribui para cansar contribui para afastar os maus pensamentos assim cuidamos que os jogos se componham de exercícios violentos A noite eles adormecem no mesmo instante em que se deitam Ibid p 375376 Cf figura n 27 4 E Ducpétiaux Des colonies agricoles 1851 p 61 5 G Ferrus Des prisonniers 1850 6 Haveria todo um estudo a ser feito sobre os debates que houve sob a Revolução a respeito dos tribunais de família da correção paterna e do direito dos pais de mandar prender os filhos 7 Sobre todas estas instituições cf H Gaillac Les Maisons de correction 1971 p 99107 8 Cf por exemplo a respeito das habitações operárias construídas em Lille em meados do século XIX A limpeza está na ordem do dia É a alma do regulamento Algumas disposições severas contra os que fazem barulho os bêbados as desordens de qualquer natureza Uma falta grave acarreta exclusão Levados a hábitos regulares de ordem e de economia os operários não desertam mais na segundafeira As crianças mais bem vigiadas não são mais razão de escândalo São distribuídos prêmios pelo cuidado da casa por bom comportamento pelos gestos de dedicação e cada ano concorrem em grande número a esses prêmios Houzé de lAulnay Des longements ouvriers à Lille 1863 p 1315 9 Encontramola explicitamente formulada por certos juristas como Muyart de Vouglans Réfutation dês príncipes hasardés dans le traité des délits et des peines 1767 p 108 Les lois criminelles de la France 1780 p 3 ou como Rousseaud de la Combe Traité des matières criminelles 1741 p 12 10 Moreau de Jonnès citado in H du Touquet De la condition des classes pauvres 1846 11 La Phalange 10 ago 1836 12 Interrompo aqui este livro que deve servir como pano de fundo histórico para diversos estudos sobre o poder de normalização e sobre a formação do saber na sociedade moderna Esta obra é distribuída Gratuitamente pela Equipe Digital Source e Viciados em Livros para proporcionar o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler Dessa forma a venda deste ebook ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância A generosidade e a humildade é a marca da distribuição portanto distribua este livro livremente Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras Se quiser outros títulos nos procure httpgroupsgooglecomgroupViciadosemLivros será um prazer recebêlo em nosso grupo httpgroupsgooglecomgroupViciadosemLivros httpgroupsgooglecomgroupdigitalsource
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MICHEL FOUCAULT VIGIAR E PUNIR 27ª EDIÇÃO EDITORA VOZES FICHA CATALOGRÁFICA Preparada pelo Centro de Catalogaçãonafonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ Foucault Michel F86v Vigiar e punir nascimento da prisão tradução de Raquel Ramalhete Petrópolis Vozes 1987 288p Do original em francês Surveiller et punir Bibliografia Direito penal História 2 Prisões História I Título 770328 CDU 3438091 343091 MICHEL FOUCAULT VIGIAR E PUNIR NASCIMENTO DA PRISÃO Tradução de Raquel Ramalhete 20a Edição Petrópolis 1999 Editions Gallimard 1975 Título do original francês Surveiller et punir Direitos de publicação em língua portuguesa no Brasil Editora Vozes Ltda Rua Frei Luís 100 25689900 Petrópolis RJ Internet httpwwwvozescombr Brasil Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma eou quaisquer meios eletrônico ou mecânico incluindo fotocópia e gravação ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora Apresentação gráfica reformulada a partir da 16a edição em 1997 FICHA TÉCNICA DA VOZES GERENTE EDITORIAL Avelino Grassi EDITOR Lídio Peretti Edgar Orth GERENTE INDUSTRIAL José Luiz Castro EDITOR DE ARTE Omar Santos EDITORAÇÃO Revisão gráfica Revitec SC Paginação Sheila Roque Supervisão gráfica Valderes e Monique Rodrigues ISBN 8532605087 Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda Rua Frei Luís 100 Petrópolis RJ Brasil CEP 25689900 Tel 024 2375112 Fax 024 2314676 Caixa Postal 90023 SUMÁRIO Primeira Parte SUPLÍCIO CAP I O CORPO DOS CONDENADOS CAP II A OSTENTAÇÃO DOS SUPLÍCIOS NOTAS Segunda Parte PUNIÇÃO CAP I A PUNIÇÃO GENERALIZADA CAP II A MITIGAÇÃO DAS PENAS NOTAS Terceira Parte DISCIPLINA CAP I OS CORPOS DÓCEIS A arte das distribuições O controle da atividade A organização das gêneses A composição das forças CAP II OS RECURSOS PARA O BOM ADESTRAMENTO A vigilância hierárquica A sanção normalizadora O exame CAP III O PANOPTISMO NOTAS Quarta Parte PRISÃO CAP I INSTITUIÇÕES COMPLETAS E AUSTERAS CAP II ILEGALIDADE E DELINQÜÊNCIA CAP III O CARCERÁRIO NOTAS Primeira Parte SUPLÍCIO CAPÍTULO I O CORPO DOS CONDENADOS Damiens fora condenado a 2 de março de 1757 a pedir perdão publicamente diante da poria principal da Igreja de Paris aonde devia ser levado e acompanhado numa carroça nu de camisola carregando uma tocha de cera acesa de duas libras em seguida na dita carroça na praça de Greve e sobre um patíbulo que aí será erguido atenazado nos mamilos braços coxas e barrigas das pernas sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio queimada com fogo de enxofre e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido óleo fervente piche em fogo cera e enxofre derretidos conjuntamente e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo reduzidos a cinzas e suas cinzas lançadas ao vento1 Finalmente foi esquartejado relata a Gazette dAmsterdam2 Essa última operação foi muito longa porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração de modo que em vez de quatro foi preciso colocar seis e como isso não bastasse foi necessário para desmembrar as coxas do infeliz cortarlhe os nervos e retalharlhe as juntas Afirmase que embora ele sempre tivesse sido um grande praguejador nenhuma blasfêmia lhe escapou dos lábios apenas as dores excessivas faziamno dar gritos horríveis e muitas vezes repetia Meu Deus tende piedade de mim Jesus socorreime Os espectadores ficaram todos edificados com a solicitude do cura de SaintPaul que a despeito de sua idade avançada não perdia nenhum momento para consolar o paciente O comissário de polícia Bouton relata Acendeuse o enxofre mas o fogo era tão fraco que a pele das costas da mão mal e mal sofreu Depois um executor de mangas arregaçadas acima dos cotovelos tomou umas tenazes de aço preparadas ad hoc medindo cerca de um pé e meio de comprimento atenazoulhe primeiro a barriga da perna direita depois a coxa daí passando às duas partes da barriga do braço direito em seguida os mamilos Este executor ainda que forte e robusto teve grande dificuldade em arrancar os pedaços de carne que tirava em suas tenazes duas ou três vezes do mesmo lado ao torcer e o que ele arrancava formava em cada parte uma chaga do tamanho de um escudo de seis libras Depois desses suplícios Damiens que gritava muito sem contudo blasfemar levantava a cabeça e se olhava o mesmo carrasco tirou com uma colher de ferro do caldeirão daquela droga fervente e derramoua fartamente sobre cada ferida Em seguida com cordas menores se ataram as cordas destinadas a atrelar os cavalos sendo estes atrelados a seguir a cada membro ao longo das coxas das pernas e dos braços O senhor Le Breton escrivão aproximouse diversas vezes do paciente para lhe perguntar se tinha algo a dizer Disse que não nem é preciso dizer que ele gritava com cada tortura da forma como costumamos ver representados os condenados Perdão meu Deus Perdão Senhor Apesar de todos esses sofrimentos referidos acima ele levantava de vez em quando a cabeça e se olhava com destemor As cordas tão apertadas pelos homens que puxavam as extremidades faziamno sofrer dores inexprimíveis O senhor Le Breton aproximouse outra vez dele e perguntoulhe se não queria dizer nada disse que não Achegaramse vários confessores e lhe falaram demoradamente beijava conformado o crucifixo que lhe apresentavam estendia os lábios e dizia sempre Perdão Senhor Os cavalos deram uma arrancada puxando cada qual um membro em linha reta cada cavalo segurado por um carrasco Um quarto de hora mais tarde a mesma cerimônia e enfim após várias tentativas foi necessário fazer os cavalos puxar da seguinte forma os do braço direito à cabeça os das coxas voltando para o lado dos braços fazendolhe romper os braços nas juntas Esses arrancos foram repetidos várias vezes sem resultado Ele levantava a cabeça e se olhava Foi necessário colocar dois cavalos diante das atrelados às coxas totalizando seis cavalos Mas sem resultado algum Enfim o carrasco Samson foi dizer ao senhor Le Breton que não havia meio nem esperança de se conseguir e lhe disse que perguntasse às autoridades se desejavam que ele fosse coitado em pedaços O senhor Le Breton de volta da cidade deu ordem que se fizessem novos esforços o que foi feito mas os cavalos empacaram e um dos atrelados às coxas caiu na laje Tendo voltado os confessores falaramlhe outra vez Dizialhes ele ouvio falar Beijemme reverendos O senhor cura de SaintPaul não teve coragem mas o de Marsilly passou por baixo da corda do braço esquerdo e beijouo na testa Os carrascos se reuniram e Damiens dizialhes que não blasfemassem que cumprissem seu oficio pois não lhes queria mal por isso rogavalhes que orassem a Deus por ele e recomendava ao cura de SaintPaul que rezasse por ele na primeira missa Depois de duas ou três tentativas o carrasco Samson e o que lhe havia atenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas na junção com o tronco do corpo os quatro cavalos colocando toda força levaramlhe as duas coxas de arrasto isto é a do lado direito por primeiro e depois a outra a seguir fizeram o mesmo com os braços com as espáduas e axilas e as quatro partes foi preciso cortar as carnes até quase aos ossos os cavalos puxando com toda força arrebataramlhe o braço direito primeiro e depois o outro Uma vez retiradas essas quatro partes desceram os confessores para lhe falar mas o carrasco informoulhes que ele estava morto embora na verdade eu visse que o homem se agitava mexendo o maxilar inferior como se falasse Um dos carrascos chegou mesmo a dizer pouco depois que assim que eles levantaram o tronco para o lançar na fogueira ele ainda estava vivo Os quatro membros uma vez soltos das cordas dos cavalos foram lançados numa fogueira preparada no local sito em linha reta do patíbulo depois o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos de lenha e se pôs fogo à palha ajuntada a essa lenha Em cumprimento da sentença tudo foi reduzido a cinzas O último pedaço encontrado nas brasas só acabou de se consumir às dez e meia da noite Os pedaços de carne e o tronco permaneceram cerca de quatro horas ardendo Os oficiais entre os quais me encontrava eu e meu filho com alguns arqueiros formados em destacamento permanecemos no local até mais ou menos onze horas Alguns pretendem tirar conclusões do lato de um cão se haver deitado no dia seguinte no lugar onde fora levantada a fogueira voltando cada vez que era enxotado Mas não é difícil compreender que esse animal achasse o lugar mais quente do que outro3 Três décadas mais tarde eis o regulamento redigido por Léon Faucher para a Casa dos jovens detentos em Paris4 Art 17 O dia dos detentos começará às seis horas da manhã no inverno às cinco horas no verão O trabalho há de durar nove horas por dia em qualquer estação Duas horas por dia serão consagradas ao ensino O trabalho e o dia terminarão às nove horas no inverno às oito horas no verão Art 18 Levantar Ao primeiro rufar de tambor os detentos devem levantarse e vestirse em silêncio enquanto o vigia abre as portas das celas Ao segundo rufar devem estar de pé e fazer a cama Ao terceiro põemse em fila por ordem para irem ã capela fazer a oração da manhã Há cinco minutos de intervalo entre cada rufar Art 19 A oração é feita pelo capelão e seguida de uma leitura moral ou religiosa Esse exercício não deve durar mais de meia hora Art 20 Trabalho Às cinco e quarenta e cinco no verão às seis e quarenta e cinco no inverno os detentos descem para o pátio onde devem lavar as mãos e o rosto e receber uma primeira distribuição de pão Logo em seguida formamse por oficinas e vão ao trabalho que deve começar às seis horas no verão e às sete horas no inverno Art 21 Refeições Às dez horas os detentos deixam o trabalho para se dirigirem ao refeitório lavam as mãos nos pátios e formam por divisão Depois do almoço recreio até às dez e quarenta Art 22 Escola Às dez e quarenta ao rufar do tambor formamse as filas e todos entram na escola por divisões A aula dura duas horas empregadas alternativamente na leitura no desenho linear e no cálculo Art 23 Às doze e quarenta os detentos deixam a escola por divisões e se dirigem aos seus pátios para o recreio Às doze e cinqüenta e cinco ao rufar do tambor entram em forma por oficinas Art 24 À uma hora os detentos devem estar nas oficinas o trabalho vai até às quatro horas Art 25 Às quatro horas todos deixam as oficinas e vão aos pátios onde os detentos lavam as mãos e formam por divisões para o refeitório Art 26 O jantar e o recreio que segue vão até às cinco horas neste momento os detentos voltam às oficinas Art 27 Às sete horas no verão às oito horas no inverno termina o trabalho faz se uma última distribuição de pão nas oficinas Uma leitura de um quarto de hora tendo por objeto algumas noções instrutivas ou algum fato comovente é feita por um detento ou algum vigia seguida pela oração da noite Art 28 Às sete e meia no verão às oito e meia no inverno devem os detentos estar nas celas depois de lavarem as mãos e feita a inspeção das vestes nos pátios ao primeiro rufar de tambor despirse e ao segundo deitarse na cama Fechamse as portas das celas e os vigias fazem a ronda nos corredores para verificarem a ordem e o silêncio Apresentamos exemplo de suplício e de utilização do tempo Eles não sancionam os mesmos crimes não punem o mesmo gênero de delinqüentes Mas definem bem cada um deles um certo estilo penal Menos de um século medeia entre ambos É a época em que foi redistribuída na Europa e nos Estados Unidos toda a economia do castigo Época de grandes escândalos para a justiça tradicional época dos inúmeros projetos de reformas nova teoria da lei e do crime nova justificação moral ou política do direito de punir abolição das antigas ordenanças supressão dos costumes projeto ou redação de códigos modernos Rússia 1769 Prússia 1780 Pensilvânia e Toscana 1786 Áustria 1788 França 1791 Ano IV 1808 e 1810 Para a justiça penal uma era nova Dentre tantas modificações atenhome a uma o desaparecimento dos suplícios Hoje existe a tendência a desconsiderálo talvez em seu tempo tal desaparecimento tenha sido visto com muita superficialidade ou com exagerada ênfase como humanização que autorizava a não analisálo De qualquer forma qual é sua importância comparandoo às grandes transformações institucionais com códigos explícitos e gerais com regras unificadas de procedimento o júri adotado quase em toda parte a definição do caráter essencialmente corretivo da pena e essa tendência que se vem acentuando sempre mais desde o século XIX a modular os castigos segundo os indivíduos culpados Punições menos diretamente físicas uma certa discrição na arte de fazer sofrer um arranjo de sofrimentos mais sutis mais velados e despojados de ostentação merecerá tudo isso acaso um tratamento à parte sendo apenas o efeito sem dúvida de novos arranjos com maior profundidade No entanto um fato é certo em algumas dezenas de anos desapareceu o corpo supliciado esquartejado amputado marcado simbolicamente no rosto ou no ombro exposto vivo ou morto dado como espetáculo Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal No fim do século XVIII e começo do XIX a despeito de algumas grandes fogueiras a melancólica festa de punição vaise extinguindo Nessa transformação misturaramse dois processos Não tiveram nem a mesma cronologia nem as mesmas razões de ser De um lado a supressão do espetáculo punitivo O cerimonial da pena vai sendo obliterado e passa a ser apenas um novo ato de procedimento ou de administração A confissão pública dos crimes tinha sido abolida na França pela primeira vez em 1791 depois novamente em 1830 após ter sido restabelecida por breve tempo o pelourinho foi supresso em 1789 a Inglaterra aboliuo em 1837 As obras públicas que a Áustria a Suíça e algumas províncias americanas como a Pensilvânia obrigavam a fazer em plena rua ou nas estradas condenados com coleiras de ferro em vestes multicores grilhetas nos pés trocando com o povo desafios injúrias zombarias pancadas sinais de rancor ou de cumplicidade5 são eliminados mais ou menos em toda parte no fim do século XVIII ou na primeira metade do século XIX O suplício de exposição do condenado foi mantido na França até 1831 apesar das críticas violentas cena repugnante dizia Real6 ela é finalmente abolida em abril de 1848 Quanto às cadeias que arrastavam os condenados a serviços forçados através de toda a França até Brest e Toulon foram substituídas em 1837 por decentes carruagens celulares pintadas de preto A punição pouco a pouco deixou de ser uma cena E tudo o que pudesse implicar de espetáculo desde então terá um cunho negativo e como as funções da cerimônia penal deixavam pouco a pouco de ser compreendidas ficou a suspeita de que tal rito que dava um fecho ao crime mantinha com ele afinidades espúrias igualandoo ou mesmo ultrapassandoo em selvageria acostumando os espectadores a uma ferocidade de que todos queriam vêlos afastados mostrandolhes a freqüência dos crimes fazendo o carrasco se parecer com criminoso os juizes aos assassinos invertendo no último momento os papéis fazendo do supliciado um objeto de piedade e de admiração Beccaria há muito dissera O assassinato que nos é apresentado como um crime horrível vemolo sendo cometido friamente sem remorsos7 A execução pública é vista então como uma fornalha em que se acende a violência A punição vaise tornando pois a parte mais velada do processo penal provocando várias conseqüências deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata sua eficácia é atribuída à sua fatalidade não à sua intensidade visível a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens Por essa razão a justiça não mais assume publicamente a parte de violência que está ligada a seu exercício O fato de ela matar ou ferir já não é mais a glorificação de sua força mas um elemento intrínseco a ela que ela é obrigada a tolerar e muito lhe custa ter que impor As caracterizações da infâmia são redistribuídas no castigoespetáculo um horror confuso nascia do patíbulo ele envolvia ao mesmo tempo o carrasco e o condenado e se por um lado sempre estava a ponto de transformar em piedade ou em glória a vergonha infligida ao supliciado por outro lado ele fazia redundar geralmente em infâmia a violência legal do executor Desde então o escândalo e a luz serão partilhados de outra forma é a própria condenação que marcará o delinqüente com sinal negativo e unívoco publicidade portanto dos debates e da sentença quanto à execução ela é como uma vergonha suplementar que a justiça tem vergonha de impor ao condenado ela guarda distância tendendo sempre a confiála a outros e sob a marca do sigilo É indecoroso ser passível de punição mas pouco glorioso punir Daí esse duplo sistema de proteção que a justiça estabeleceu entre ela e o castigo que ela impõe A execução da pena vaise tornando um setor autônomo em que um mecanismo administrativo desonera a justiça que se livra desse secreto malestar por um enterramento burocrático da pena É um caso típico na França que a administração das prisões por muito tempo ficou sob a dependência do ministério do Interior e a dos trabalhos forçados sob o controle da Marinha e das Colônias E acima dessa distribuição dos papéis se realiza a negação teórica o essencial da pena que nós juizes infligimos não creiais que consista em punir o essencial é procurar corrigir reeducar curar uma técnica de aperfeiçoamento recalca na pena a estrita expiação do mal e liberta os magistrados do vil ofício de castigadores Existe na justiça moderna e entre aqueles que a distribuem uma vergonha de punir que nem sempre exclui o zelo ela aumenta constantemente sobre esta chaga pululam os psicólogos e o pequeno funcionário da ortopedia moral O desaparecimento dos suplícios é pois o espetáculo que se elimina mas é também o domínio sobre o corpo que se extingue Em 1787 dizia Rush Só posso esperar que não esteja longe o tempo em que as forças o pelourinho o patíbulo o chicote a roda serão considerados na história dos suplícios como as marcas da barbárie dos séculos e dos países e como as provas da fraca influência da razão e da religião sobre o espírito humano8 Efetivamente Van Meenen ao abrir sessenta anos mais tarde o segundo congresso penitenciário em Bruxelas lembrava o tempo de sua infância como uma época passada Vi o solo semeado de rodas de forcas de patíbulos de pelourinhos vi esqueletos horrendamente estendidos sobre rodas9 A marca a ferro quente foi abolida na Inglaterra 1834 e na França 1832 o grande suplício dos traidores já a Inglaterra não ousava aplicálo plenamente em 1820 Thistlewood não foi esquartejado Unicamente o chicote ainda permanecia em alguns sistemas penais Rússia Inglaterra Prússia Mas de modo geral as práticas punitivas se tornaram pudicas Não tocar mais no corpo ou o mínimo possível e para atingir nele algo que não é o corpo propriamente Dirseá a prisão a reclusão os trabalhos forçados a servidão de forçados a interdição de domicílio a deportação que parte tão importante tiveram nos sistemas penais modernos são penas físicas com exceção da multa se referem diretamente ao corpo Mas a relação castigocorpo não é idêntica ao que ela era nos suplícios O corpo encontra se aí em posição de instrumento ou de intermediário qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem Segundo essa penalidade o corpo é colocado num sistema de coação e de privação de obrigações e de interdições O sofrimento físico a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis tal se fará à distância propriamente segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais elevado Por efeito dessa nova retenção um exército inteiro de técnicos veio substituir o carrasco anatomista imediato do sofrimento os guardas os médicos os capelães os psiquiatras os psicólogos os educadores por sua simples presença ao lado do condenado eles cantam à justiça o louvor de que ela precisa eles lhe garantem que o corpo e a dor não são os objetos últimos de sua ação punitiva É preciso refletir no seguinte um médico hoje deve cuidar dos condenados à morte até ao último instante justapondose destarte como chefe do bemestar como agente de nãosofrimento aos funcionários que por sua vez estão encarregados de eliminar a vida Ao se aproximar o momento da execução aplicamse aos pacientes injeções de tranqüilizantes Utopia do pudor judiciário tirar a vida evitando de deixar que o condenado sinta o mal privar de todos os direitos sem fazer sofrer impor penas isentas de dor O emprego da psicofarmacologia e de diversos desligadores fisiológicos ainda que provisório corresponde perfeitamente ao sentido dessa penalidade incorpórea Os rituais modernos da execução capital dão testemunho desse duplo processo supressão do espetáculo anulação da dor Um mesmo movimento arrastou cada qual com seu ritmo próprio as legislações européias para todos uma mesma morte sem que ela tenha que ostentar a marca específica do crime ou o estatuto social do criminoso morte que dura apenas um instante e nenhum furor há de multiplicála antecipadamente ou prolongála sobre o cadáver uma execução que atinja a vida mais do que o corpo Não mais aqueles longos processos em que a morte é ao mesmo tempo retardada por interrupções calculadas e multiplicada por uma série de ataques sucessivos Não mais aquelas combinações que eram levadas a espetáculo para matar os regicidas ou como aquela com que sonhava no começo do século XVIII o autor de Hanging not Punishment Enough10 e que teria permitido arrebentar um condenado sobre a roda depois açoitálo até a perda dos sentidos em seguida suspendêlo com correntes antes de deixálo morrer lentamente de fome Não mais aqueles suplícios em que o condenado era arrastado sobre uma grade para evitar que a cabeça arrebentasse contra o pavimento seu ventre aberto as entranhas arrancadas às pressas para que ele tivesse tempo de as ver com seus próprios olhos ser lançadas ao fogo em que era decapitado enfim e seu corpo dividido em postas11 A redução dessas mil mortes à estrita execução capital define uma moral bem nova própria do ato de punir Já em 1760 se havia tentado na Inglaterra por ocasião da execução de Lord Ferrer uma máquina de enforcamento um suporte que se escamoteava por baixo dos pés do condenado devia evitar as lentas agonias e as altercações ocasionadas entre a vítima e o verdugo Foi aperfeiçoada e adotada definitivamente em 1783 no ano em que se suprimiu o cortejo de Newgate em Tyburn e se aproveitou a reconstrução da prisão depois dos Gordon Riots para se instalar os patíbulos em Newgate mesmo12 O famoso artigo 3o do código francês de 1791 todo condenado à morte terá a cabeça decepada tem estas três significações uma morte igual para todos Os delitos do mesmo gênero serão punidos pelo mesmo gênero de pena quaisquer que sejam a classe ou condição do culpado dizia já a moção votada por proposta de Guillotin a 1o de dezembro de 1789 uma só morte por condenado obtida de uma só vez e sem recorrer a esses suplícios longos e conseqüentemente cruéis como a forca denunciada por Le Peletier enfim o castigo unicamente para o condenado pois a decapitação pena dos nobres é a menos infamante para a família do criminoso13 A guilhotina utilizada a partir de março de 1792 é a mecânica adequada a tais princípios A morte é então reduzida a um acontecimento visível mas instantâneo Entre a lei ou aqueles que a executam e o corpo do criminoso o contacto é reduzido à duração de um raio Já não ocorrem as afrontas físicas o carrasco só tem que se comportar como um relojoeiro meticuloso A experiência e a razão demonstram que o modo em uso no passado para decepar a cabeça de um criminoso leva a um suplício mais horrendo que a simples privação da vida que é a intenção formal da lei para que a execução seja feita num só instante e de uma só vez os exemplos provam como é difícil chegar a este ponto É preciso necessariamente para a certeza do processo que ele dependa de meios mecânicos invariáveis cuja força e efeito possam ser igualmente determinados É fácil fazer construir semelhante máquina de efeito infalível a decapitação será feita num instante de acordo com a nova lei Tal aparelho embora necessário não causaria nenhuma sensação e mal seria percebido14 Quase sem tocar o corpo a guilhotina suprime a vida tal como a prisão suprime a liberdade ou uma multa tira os bens Ela aplica a lei não tanto a um corpo real e susceptível de dor quanto a um sujeito jurídico detentor entre outros direitos do de existir Ela devia ter a abstração da própria lei Sem dúvida algo dos suplícios prevaleceu por algum tempo na França à sobriedade das execuções Os parricidas e os regicidas a eles assemelhados eram conduzidos ao cadafalso cobertos por um véu negro onde até 1832 lhes cortavam a mão Assim restou apenas o ornamento do crepe tal como aconteceu para Fieschi em novembro de 1836 Será conduzido ao lugar da execução em camisão pés descalços e com a cabeça coberta por um véu negro será exposto em um cadafalso enquanto o meirinho levará para o povo a sentença condenatória e imediatamente executado Devemos lembrarnos de Damiens e comparar que o derradeiro implemento à morte penal foi o crepe O condenado não deve mais ser visto Só a leitura da sentença punitiva mostra um crime que não deve ter rosto15 O último vestígio dos grandes espetáculos de execução é sua própria anulação um pano para esconder um corpo Exemplo disto foi a execução de Benoît três vezes criminoso matador da mãe homossexual homicida o primeiro parricida cujas mãos a lei não cortou Enquanto era feita a leitura da sentença de condenação estava de pé no cadafalso sustentado pelos carrascos Era horrível aquele espetáculo envolto em grande mortalha a cabeça coberta por um crepe o parricida estava fora do alcance dos olhares da silenciosa multidão E sob aquelas vestes misteriosas e lúgubres a vida só continuava a manifestar se através dos gritos horrorosos que se extinguiram logo sob o facão16 Desaparece destarte em princípios do século XIX o grande espetáculo da punição física o corpo supliciado é escamoteado excluise do castigo a encenação da dor Penetramos na época da sobriedade punitiva Podemos considerar o desaparecimento dos suplícios como um objetivo mais ou menos alcançado no período compreendido entre 1830 e 1848 Claro tal afirmação em termos globais deve ser bem entendida Primeiro as transformações não se fazem em conjunto nem de acordo com um único processo Houve atrasos Paradoxalmente a Inglaterra foi um dos países mais reacionários ao cancelamento dos suplícios talvez por causa da função de modelo que a instituição do júri o processo público e o respeito ao habeascorpus haviam dado à sua justiça criminal principalmente sem dúvida porque ela não quis diminuir o rigor de suas leis penais no decorrer dos grandes distúrbios sociais do período 17801820 Por muito tempo Romilly Mackintosh e Fowell Buston não conseguiram atenuar a multiplicidade e o rigor das penas previstas na lei inglesa esta terrível carnificina dizia Rossi Sua severidade ao menos nas penas previstas uma vez que sua aplicação se afrouxava à proporção que a lei parecia excessiva aos olhos dos júris havia aumentado pois em 1760 Blackstone constatara a existência de cento e sessenta crimes capitais na legislação inglesa que somavam duzentos e vinte e três em 1819 Devemos levar em consideração também as acelerações e recuos que o processo global seguiu entre 1760 e 1840 a rapidez da reforma em certos países como a Áustria a Rússia os Estados Unidos a França no momento da Constituinte depois o refluxo da Contra Revolução na Europa e o grande temor social de 1820 a 1848 as modificações mais ou menos temporárias ocasionadas pelos tribunais ou pelas leis de exceção a distorção entre a teoria da lei e a prática dos tribunais longe de refletir o espírito da legislação Tudo isto torna bem irregular o processo evolutivo que se desenvolveu na virada do século XVIII ao XIX A isto tudo acresce que embora se tenha alcançado o essencial da trans mutação por volta de 1840 embora os mecanismos punitivos tenham adotado novo tipo de funcionamento o processo assim mesmo está longe de ter chegado ao fim A redução do suplício é uma tendência com raízes na grande transformação de 1760 1840 mas que não chegou ao termo E podemos dizer que a prática da tortura se fixou por muito tempo e ainda continua no sistema penal francês A guilhotina a máquina das mortes rápidas e discretas marcou na França nova ética da morte legal Mas a Revolução logo a revestiu de um grandioso rito teatral Durante anos deu espetáculos Foi necessário deslocála para a barreira de Saint Jacques substituir a carroça por uma carruagem fechada empurrar rapidamente o condenado do furgão para o estrado organizar execuções apressadas e em horas tardias finalmente colocála no interior das prisões e tornála inacessível ao público depois da execução de Weidmann em 1939 bloquear as ruas que davam acesso à prisão onde estava oculto o cadafalso e onde a execução se passava em segredo execuções de Buffet e Bontemps em Santé em 1972 processar as testemunhas que relatavam o ocorrido para que a execução deixasse de ser um espetáculo e permanecesse um estranho segredo entre a justiça e o condenado Basta evocar tantas precauções para verificarse que a morte penal permanece hoje ainda uma cena que com inteira justiça é preciso proibir O poder sobre o corpo por outro lado tampouco deixou de existir totalmente até meados do século XIX Sem dúvida a pena não mais se centralizava no suplício como técnica de sofrimento tomou como objeto a perda de um bem ou de um direito Porém castigos como trabalhos forçados ou prisão privação pura e simples da liberdade nunca funcionaram sem certos complementos punitivos referentes ao corpo redução alimentar privação sexual expiação física masmorra Conseqüências não tencionadas mas inevitáveis da própria prisão Na realidade a prisão nos seus dispositivos mais explícitos sempre aplicou certas medidas de sofrimento físico A crítica ao sistema penitenciário na primeira metade do século XIX a prisão não é bastante punitiva em suma os detentos têm menos fome menos frio e privações que muitos pobres ou operários indica um postulado que jamais foi efetivamente levantado é justo que o condenado sofra mais que os outros homens A pena se dissocia totalmente de um complemento de dor física Que seria então um castigo incorporai Permanece por conseguinte um fundo supliciante nos modernos mecanismos da justiça criminal fundo que não está inteiramente sob controle mas envolvido cada vez mais amplamente por uma penalidade do incorporai O afrouxamento da severidade penal no decorrer dos últimos séculos é um fenômeno bem conhecido dos historiadores do direito Entretanto foi visto durante muito tempo de forma geral como se fosse fenômeno quantitativo menos sofrimento mais suavidade mais respeito e humanidade Na verdade tais modificações se fazem concomitantes ao deslocamento do objeto da ação punitiva Redução de intensidade Talvez Mudança de objetivo certamente Se não é mais ao corpo que se dirige a punição em suas formas mais duras sobre o que então se exerce A resposta dos teóricos daqueles que abriram por volta de 1780 o período que ainda não se encerrou é simples quase evidente Dirseia inscrita na própria indagação Pois não é mais o corpo é a alma À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue profundamente sobre o coração o intelecto a vontade as disposições Mably formulou o princípio decisivo Que o castigo se assim posso exprimir fira mais a alma do que o corpo17 Momento importante O corpo e o sangue velhos partidários do fausto punitivo são substituídos Novo personagem entra em cena mascarado Terminada uma tragédia começa a comédia com sombrias silhuetas vozes sem rosto entidades impalpáveis O aparato da justiça punitiva tem que aterse agora a esta nova realidade realidade incorpórea Pura informação teórica repelida pela prática penal Seria superficialidade afirmálo A verdade é que punir atualmente não é apenas converter uma alma Entretanto o princípio de Mably não permaneceu como um piedoso voto Por toda a moderna história da penalidade é possível seguirlhe os efeitos Em primeiro lugar a substituição de objetos Não queremos dizer com isso que subitamente se começou a punir outros crimes Sem dúvida a definição das infrações sua hierarquia de gravidade as margens de indulgência o que era tolerado de fato e o que era permitido de direito tudo isto modificouse amplamente nos últimos duzentos anos Muitos crimes perderam tal conotação uma vez que estavam objetivamente ligados a um exercício de autoridade religiosa ou a um tipo de vida econômica a blasfêmia deixou de se constituir em crime o contrabando e o furto doméstico perderam parte de sua gravidade Mas tais transformações não são por certo o mais importante a divisão de permitido e proibido manteve entre um e outro século certa constância Em compensação o objeto crime aquilo a que se refere a prática penal foi profundamente modificado a qualidade a natureza a substância de algum modo de que se constitui o elemento punível mais do que a própria definição formal A relativa estabilidade da lei obrigou um jogo de substituições sutis e rápidas Sob o nome de crimes c delitos são sempre julgados corretamente os objetos jurídicos definidos pelo Código Porém julgamse também as paixões os instintos as anomalias as enfermidades as inadaptações os efeitos de meio ambiente ou de hereditariedade Punemse as agressões mas por meio delas as agressividades as violações e ao mesmo tempo as perversões os assassinatos que são também impulsos e desejos Dirseia que não são eles que são julgados se são invocados é para explicar os fatos a serem julgados e determinar até que ponto a vontade do réu estava envolvida no crime Resposta insuficiente pois são as sombras que se escondem por trás dos elementos da causa que são na realidade julgadas e punidas Julgadas mediante recurso às circunstâncias atenuantes que introduzem no veredicto não apenas elementos circunstanciais do ato mas coisa bem diversa juridicamente não codificável o conhecimento do criminoso a apreciação que dele se faz o que se pode saber sobre suas relações entre ele seu passado e o crime e o que se pode esperar dele no futuro Julgadas também por todas essas noções veiculadas entre medicina e jurisprudência desde o século XIX os monstros da época de Georget as anomalias psíquicas da circular Chaumié os pervertidos e os inadaptados dos laudos periciais contemporâneos e que pretendendo explicar um ato não passam de maneiras de qualificar um indivíduo Punidas pelo castigo que se atribui a função de tornar o criminoso não só desejoso mas também capaz de viver respeitando a lei e de suprir às suas próprias necessidades são punidas pela economia interna de uma pena que embora sancione o crime pode modificarse abreviandose ou se for o caso prolongando se conforme se transformar o comportamento do condenado são punidas ainda pela aplicação dessas medidas de segurança que acompanham a pena proibição de permanência liberdade vigiada tutela penal tratamento médico obrigatório e não se destinam a sancionar a infração mas a controlar o indivíduo a neutralizar sua periculosidade a modificar suas disposições criminosas a cessar somente após obtenção de tais modificações A alma do criminoso não é invocada no tribunal somente para explicar o crime e introduzila como um elemento na atribuição jurídica das responsabilidades se ela é invocada com tanta ênfase com tanto cuidado de compreensão e tão grande aplicação científica é para julgála ao mesmo tempo que o crime e fazêla participar da punição Em todo o ritual penal desde a informação até a sentença e as últimas conseqüências da pena se permitiu a penetração de um campo de objetos que vêm duplicar mas também dissociar os objetos juridicamente definidos e codificados O laudo psiquiátrico mas de maneira mais geral a antropologia criminal e o discurso repisante da criminologia encontram aí uma de suas funções precisas introduzindo solenemente as infrações no campo dos objetos susceptíveis de um conhecimento científico dar aos mecanismos da punição legal um poder justificável não mais simplesmente sobre as infrações mas sobre os indivíduos não mais sobre o que eles fizeram mas sobre aquilo que eles são serão ou possam ser O suplemento de alma que a justiça garantiu para si é aparentemente explicativo e limitativo e de fato anexionista Faz 150 ou 200 anos que a Europa implantou seus novos sistemas de penalidade e desde então os juizes pouco a pouco mas por um processo que remonta bem longe no tempo começaram a julgar coisa diferente além dos crimes a alma dos criminosos E com isso começaram a fazer algo diferente do que julgar Ou para ser mais exato no próprio cerne da modalidade judicial do julgamento outros tipos de avaliação se introduziram discretamente modificando no essencial suas regras de elaboração Desde que a Idade Média construiu não sem dificuldade e lentidão a grande procedura do inquérito julgar era estabelecer a verdade de um crime era determinar seu autor era aplicarlhe uma sanção legal Conhecimento da infração conhecimento do responsável conhecimento da lei três condições que permitiam estabelecer um julgamento como verdade bem fundada Eis porém que durante o julgamento penal encontramos inserida agora uma questão bem diferente de verdade Não mais simplesmente O fato está comprovado é delituoso Mas também O que é realmente esse fato o que significa essa violência ou esse crime Em que nível ou em que campo da realidade deverá ser colocado Fantasma reação psicótica episódio de delírio perversidade Não mais simplesmente Quem é o autor Mas Como citar o processo causai que o produziu Onde estará no próprio autor a origem do crime Instinto inconsciente meio ambiente hereditariedade Não mais simplesmente Que lei sanciona esta infração Mas Que medida tomar que seja apropriada Como prever a evolução do sujeito De que modo será ele mais seguramente corrigido Todo um conjunto de julgamentos apreciativos diagnósticos prognósticos normativos concernentes ao indivíduo criminoso encontrou acolhida no sistema do juízo penal Uma outra verdade veio penetrar aquela que a mecânica judicial requeria uma verdade que enredada na primeira faz da afirmação de culpabilidade um estranho complexo científicojurídico Um fato significativo a maneira como a questão da loucura evoluiu na prática penal De acordo com o código francês de 1810 ela só era abordada no final do artigo 64 Este prevê que não há crime nem delito se o infrator estava em estado de demência no instante do ato A possibilidade de invocar a loucura excluía pois a qualificação de um ato como crime na alegação de o autor ter ficado louco não era a gravidade de seu gesto que se modificava nem a sua pena que devia ser atenuada mas o próprio crime desaparecia Impossível pois declarar alguém ao mesmo tempo culpado e louco o diagnóstico de loucura uma vez declarado não podia ser integrado no juízo ele interrompia o processo e retirava o poder da justiça sobre o autor do ato Não apenas o exame do criminoso suspeito de demência mas também os próprios efeitos desse exame deviam ser exteriores e anteriores à sentença Mas desde logo os tribunais do século XIX se equivocaram acerca do sentido do artigo 64 Apesar de vários decretos do supremo tribunal de justiça lembrando que o estado de loucura não podia acarretar nem uma pena moderada nem sequer uma absolvição mas uma improcedência judicial eles levantaram em seu próprio veredicto a questão da loucura Admitiram que era possível alguém ser culpado e louco quanto mais louco tanto menos culpado culpado sem dúvida mas que deveria ser enclausurado e tratado e não punido culpado perigoso pois manifestamente doente etc Do ponto de vista do código penal eram absurdos jurídicos Mas estava aí o ponto de partida de uma evolução que a jurisprudência e a própria legislação iam desencadear durante os 150 anos seguintes já a reforma de 1832 introduzindo as circunstâncias atenuantes permitia modular a sentença segundo os graus supostos de uma doença ou as formas de uma semiloucura E a prática usual nos tribunais aplicada às vezes à prática correcional da perícia psiquiátrica faz com que a sentença ainda que formulada em termos de sanção legal implique mais ou menos obscuramente em juízos de normalidade atribuições de causalidade apreciações de eventuais mudanças previsões sobre o futuro dos delinqüentes Operações todas de que não se poderia dizer com razão que preparam do exterior um julgamento bem fundado elas se integram diretamente no processo de formação da sentença Em vez de a loucura apagar o crime no sentido primitivo do artigo 64 qualquer crime agora e em última análise qualquer infração incluem como uma suspeita legítima mas também como um direito que podem reivindicar a hipótese da loucura ou em todo caso da anomalia E a sentença que condena ou absolve não é simplesmente um julgamento de culpa uma decisão legal que sanciona ela implica uma apreciação de normalidade e uma prescrição técnica para uma normalização possível O juiz de nossos dias magistrado ou jurado faz outra coisa bem diferente de julgar E ele não julga mais sozinho Ao longo do processo penal e da execução da pena prolifera toda uma série de instâncias anexas Pequenas justiças e juizes paralelos se multiplicaram em torno do julgamento principal peritos psiquiátricos ou psicológicos magistrados da aplicação das penas educadores funcionários da administração penitenciária fracionam o poder legal de punir dirseá que nenhum deles partilha realmente do direito de julgar que uns depois das sentenças só têm o direito de fazer executar uma pena fixada pelo tribunal e principalmente que outros os peritos não intervêm antes da sentença para fazer um julgamento mas para esclarecer a decisão dos juizes Mas desde que as penas e as medidas de segurança definidas pelo tribunal não são determinadas de uma maneira absoluta a partir do momento em que elas podem ser modificadas no caminho a partir do momento em que se deixa a pessoas que não são os juizes da infração o cuidado de decidir se o condenado merece ser posto em semiliberdade ou em liberdade condicional se eles podem pôr um termo à sua tutela penal são sem dúvida mecanismos de punição legal que lhes são colocados entre as mãos e deixados à sua apreciação juizes anexos mas juizes de todo modo Todo o aparelho que se desenvolveu há anos em tomo da aplicação das penas e de seu ajustamento aos indivíduos desmultiplica as instâncias da decisão judiciária prolongandoa muito além da sentença Quanto aos peritos psiquiatras podem bem evitar de julgar Basta examinar as três perguntas que depois da circular de 1958 eles têm que responder O acusado apresenta alguma periculosidade É acessível à sanção penal É curável ou readaptável Estas perguntas não têm relação com o artigo 64 nem com a loucura eventual do acusado no momento do ato Não são perguntas em termos de responsabilidade Só dizem respeito à administração da pena sua necessidade sua utilidade sua eficácia possível permitem indicar num vocabulário que apenas foi codificado se é melhor o hospício que a prisão se é necessário prever um enclausuramento breve ou longo um tratamento médico ou medidas de segurança E o papel do psiquiatra em matéria penal Não será o perito em responsabilidade mas de conselheiro de punição cabe lhe dizer se o indivíduo é perigoso de que maneira se proteger dele como intervir para modificálo se é melhor tentar reprimir ou tratar Bem no começo de sua história a perícia psiquiátrica tivera que formular proposições verdadeiras sobre a medida da participação da liberdade do infrator no ato que cometera ela tem agora que sugerir uma receita sobre o que se poderia chamar seu tratamento médico judicial Resumindo desde que funciona o novo sistema penal o definido pelos grandes códigos dos séculos XVIII e XIX um processo global levou os juízes a julgar coisa bem diversa do que crimes foram levados em suas sentenças a fazer coisa diferente de julgar e o poder de julgar foi em parte transferido a instâncias que não são as dos juizes da infração A operação penal inteira carregouse de elementos e personagens extrajurídicos Podese dizer que não há nisso nada de extraordinário que é do destino do direito absorver pouco a pouco elementos que lhe são estranhos Mas uma coisa é singular na justiça criminal moderna se ela se carrega de tantos elementos extrajurídicos não é para poder qualificálos juridicamente e integrálos pouco a pouco no estrito poder de punir é ao contrário para poder fazêlos funcionar no interior da operação penal como elementos não jurídicos é para evitar que essa operação seja pura e simplesmente uma punição legal é para escusar o juiz de ser pura e simplesmente aquele que castiga Naturalmente damos um veredicto mas ainda que reclamado por um crime vocês bem podem ver que para nós funciona como uma maneira de tratar um criminoso punimos mas é um modo de dizer que queremos obter a cura A justiça criminal hoje em dia só funciona e só se justifica por essa perpétua referência a outra coisa que não é ela mesma por essa incessante reinscrição nos sistemas não jurídicos Ela está votada a essa requalificação pelo saber Sob a suavidade ampliada dos castigos podemos então verificar um deslo camento de seu ponto de aplicação e através desse deslocamento todo um campo de objetos recentes todo um novo regime da verdade e uma quantidade de papéis até então inéditos no exercício da justiça criminal Um saber técnicas discursos científicos se formam e se entrelaçam com a prática do poder de punir Objetivo deste livro uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar uma genealogia do atual complexo científicojudiciário onde o poder de punir se apóia recebe suas justificações e suas regras estende seus efeitos e mascara sua exorbitante singularidade Mas a partir de onde se pode fazer essa história da alma moderna em julgamento Se nos limitarmos ã evolução das regras de direito ou dos processos penais corremos o risco de valorizar como fato maciço exterior inerte e primeiro uma mudança na sensibilidade coletiva um progresso do humanismo ou o desenvolvimento das ciências humanas Para estudar como fez Durkheim18 apenas as formas sociais gerais corremos o risco de colocar como princípio da suavização punitiva processos de individualização que são antes efeitos das novas táticas de poder e entre elas dos novos mecanismos penais O presente estudo obedece a quatro regras gerais 1 Não centrar o estudo dos mecanismos punitivos unicamente em seus efeitos repressivos só em seu aspecto de sanção mas recolocálos na série completa dos efeitos positivos que eles podem induzir mesmo se à primeira vista são marginais Conseqüentemente tomar a punição como uma função social complexa 2 Analisar os métodos punitivos não como simples conseqüências de regras de direito ou como indicadores de estruturas sociais mas como técnicas que têm sua especificidade no campo mais geral dos outros processos de poder Adotar em relação aos castigos a perspectiva da tática política 3 Em lugar de tratar a história do direito penal e a das ciências humanas como duas séries separadas cujo encontro teria sobre uma ou outra ou sobre as duas talvez um efeito digamos perturbador ou útil verificar se não há uma matriz comum e se as duas não se originam de um processo de formação epistemológico jurídico em resumo colocar a tecnologia do poder no princípio tanto da humanização da penalidade quanto do conhecimento do homem 4 Verificar se esta entrada da alma no palco da justiça penal e com ela a inserção na prática judiciária de todo um saber científico não é o efeito de uma transformação na maneira como o próprio corpo é investido pelas relações de poder Em suma tentar estudar a metamorfose dos métodos punitivos a partir de uma tecnologia política do corpo onde se poderia ler uma história comum das relações de poder e das relações de objeto De maneira que pela análise da suavidade penal como técnica de poder poderíamos compreender ao mesmo tempo como o homem a alma o indivíduo normal ou anormal vieram fazer a dublagem do crime como objetos da intervenção penal e de que maneira um modo específico de sujeição pôde dar origem ao homem como objeto de saber para um discurso com status científico Mas não tenho a pretensão de ter sido o primeiro a trabalhar nessa direção19 Do grande livro de Rusche e Kirchheimer20 podemos guardar algumas referências essenciais Abandonar em primeiro lugar a ilusão de que a penalidade é antes de tudo se não exclusivamente uma maneira de reprimir os delitos e que nesse papel de acordo com as formas sociais os sistemas políticos ou as crenças ela pode ser severa ou indulgente voltarse para a expiação ou procurar obter uma reparação aplicarse em perseguir o indivíduo ou em atribuir responsabilidades coletivas Analisar antes os sistemas punitivos concretos estudálos como fenômenos sociais que não podem ser explicados unicamente pela armadura jurídica da sociedade nem por suas opções éticas fundamentais recolocálos em seu campo de funcionamento onde a sanção dos crimes não é o único elemento mostrar que as medidas punitivas não são simplesmente mecanismos negativos que permitem reprimir impedir excluir suprimir mas que elas estão ligadas a toda uma série de efeitos positivos e úteis que elas têm por encargo sustentar e nesse sentido se os castigos legais são feitos para sancionar as infrações podese dizer que a definição das infrações e sua repressão são feitas em compensação para manter os mecanismos punitivos e suas funções Nessa linha Rusche e Kirchheimer estabeleceram a relação entre os vários regimes punitivos e os sistemas de produção em que se efetuam assim numa economia servil os mecanismos punitivos teriam como papel trazer mãodeobra suplementar e constituir uma escravidão civil ao lado da que é fornecida pelas guerras ou pelo comércio com o feudalismo e numa época em que a moeda e a produção estão pouco desenvolvidas assistiríamos a um brusco crescimento dos castigos corporais sendo o corpo na maior parte dos casos o único bem acessível a casa de correção o Hospital Geral o Spinhuis ou Rasphuis o trabalho obrigatório a manufatura penal apareceriam com o desenvolvimento da economia de comércio Mas como o sistema industrial exigia um mercado de mãodeobra livre a parte do trabalho obrigatório diminuiria no século XIX nos mecanismos de punição e seria substituída por uma detenção com fim corretivo Há sem dúvida muitas observações a fazer sobre essa correlação estrita Mas podemos sem dúvida ressaltar esse tema geral de que em nossas sociedades os sistemas punitivos devem ser recolocados em uma certa economia política do corpo ainda que não recorram a castigos violentos ou sangrentos mesmo quando utilizam métodos suaves de trancar ou corrigir é sempre do corpo que se trata do corpo e de suas forças da utilidade e da docilidade delas de sua repartição e de sua submissão É certamente legítimo fazer uma história dos castigos com base nas idéias morais ou nas estruturas jurídicas Mas podese fazêla com base numa história dos corpos uma vez que só visam à alma secreta dos criminosos Os historiadores vêm abordando a história do corpo há muito tempo Estudaramno no campo de uma demografia ou de uma patologia históricas encararamno como sede de necessidades e de apetites como lugar de processos fisiológicos e de metabolismos como alvos de ataques microbianos ou de vírus mostraram até que ponto os processos históricos estavam implicados no que se poderia considerar a base puramente biológica da existência e que lugar se deveria conceder na história das sociedades a acontecimentos biológicos como a circulação dos bacilos ou o prolongamento da duração da vida21 Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político as relações de poder têm alcance imediato sobre ele elas o investem o marcam o dirigem o supliciam sujeitamno a trabalhos obrigamno a cerimônias exigemlhe sinais Este investimento político do corpo está ligado segundo relações complexas e recíprocas à sua utilização econômica é numa boa proporção como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado calculado e utilizado o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia pode muito bem ser direta física usar a força contra a força agir sobre elementos materiais sem no entanto ser violenta pode ser calculada organizada tecnicamente pensada pode ser sutil não fazer uso de armas nem do terror e no entanto continuar a ser de ordem física Quer dizer que pode haver um saber do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcio namento e um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencêlas esse saber e esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo Essa tecnologia é difusa claro raramente formulada em discursos contínuos e sistemáticos compõese muitas vezes de peças ou de pedaços utiliza um material e processos sem relação entre si O mais das vezes apesar da coerência de seus resultados ela não passa de uma instrumentação multiforme Além disso seria impossível localizála quer num tipo definido de instituição quer num aparelho do Estado Estes recorrem a ela utilizamna valorizamna ou impõem algumas de suas maneiras de agir Mas ela mesma em seus mecanismos e efeitos se situa num nível completamente diferente Tratase de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças Ora o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade mas como uma estratégia que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma apropriação mas a disposições a manobras a táticas a técnicas a funcionamentos que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas sempre em atividade que um privilégio que se pudesse deter que lhe seja dado como modelo antes a batalha perpétua que o contrato que faz uma cessão ou a conquista que se apodera de um domínio Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais que se possui que não é o privilégio adquirido ou conservado da classe dominante mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados Esse poder por outro lado não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma proibição aos que não têm ele os investe passa por eles e através deles apóiase neles do mesmo modo que eles em sua luta contra esse poder apóiamse por sua vez nos pontos em que ele os alcança O que significa que essas relações aprofundamse dentro da sociedade que não se localizam nas relações do Estado com os cidadãos ou na fronteira das classes e que não se contentam em reproduzir ao nível dos indivíduos dos corpos dos gestos e dos comportamentos a forma geral da lei ou do governo que se há continuidade realmente elas se articulam bem nessa forma de acordo com toda uma série de complexas engrenagens não há analogia nem homologia mas especificidade do mecanismo e de modalidade Finalmente não são unívocas definem inúmeros pontos de luta focos de instabilidade comportando cada um seus riscos de conflito de lutas e de inversão pelo menos transitória da relação de forças A derrubada desses micropoderes não obedece portanto à lei do tudo ou nada ele não é adquirido de uma vez por todas por um novo controle dos aparelhos nem por um novo funcionamento ou uma destruição das instituições em compensação nenhum de seus episódios localizados pode ser inscrito na história senão pelos efeitos por ele induzidos em toda a rede em que se encontra Seria talvez preciso também renunciar a toda uma tradição que deixa imaginar que só pode haver saber onde as relações de poder estão suspensas e que o saber só pode desenvolverse fora de suas injunções suas exigências e seus interesses Seria talvez preciso renunciar a crer que o poder enlouquece e que em compensação a renúncia ao poder é uma das condições para que se possa tornarse sábio Temos antes que admitir que o poder produz saber e não simplesmente favorecendoo porque o serve ou aplicandoo porque é útil que poder e saber estão diretamente implicados que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder Essas relações de podersaber não devem então ser analisadas a partir de um sujeito do conhecimento que seria ou não livre em redação ao sistema do poder mas é preciso considerar ao contrário que o sujeito que conhece os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimentos são outros tantos efeitos dessas implicações fundamentais do podersaber e de suas transformações históricas Resumindo não é a atividade do sujeito de conhecimento que produziria um saber útil ou arredio ao poder mas o podersaber os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento Analisar o investimento político do corpo e a microfísica do poder supõe então que se renuncie no que se refere ao poder à oposição violênciaideologia à metáfora da propriedade ao modelo do contrato ou ao da conquista no que se refere ao saber que se renuncie à oposição do que é interessado e do que é desinteressado ao modelo do conhecimento e ao primado do sujeito Dando à palavra um sentido diferente do que lhe era dado no século XVII por Petty e seus contemporâneos poderseia sonhar com uma anatomia política Não seria o estudo de um Estado tomado como um corpo com seus elementos seus recursos e suas forças mas não seria tampouco o estudo do corpo e do que lhe está conexo tomados como um pequeno Estado Trataríamos aí do corpo político como conjunto dos elementos materiais e das técnicas que servem de armas de reforço de vias de comunicação e de pontos de apoio para as relações de poder e de saber que investem os corpos humanos e os submetem fazendo deles objetos de saber Tratase de recolocar as técnicas punitivas quer elas se apossem do corpo no ritual dos suplícios quer se dirijam à alma na história desse corpo político Considerar as práticas penais mais como um capítulo da anatomia política do que uma conseqüência das teorias jurídicas Kantorowitz22 fez uma vez do corpo do rei uma análise notável corpo duplo de acordo com a teologia jurídica formada na Idade Média pois comporta além do elemento transitório que nasce e morre um outro que permanece através do tempo e se mantém como fundamento físico mas intangível do reino em tomo dessa dualidade que esteve em sua origem próxima do modelo cristológico organizamse uma iconografia uma teoria política da monarquia mecanismos jurídicos que ao mesmo tempo distinguem e ligam a pessoa do rei e as exigências da Coroa e todo um ritual que encontra na coroação nos funerais nas cerimônias de submissão seus tempos mais fortes Poderíamos imaginar no pólo oposto o corpo do condenado ele também tem seu estatuto jurídico reclama seu cerimonial e impõe todo um discurso teórico não para fundamentar o mais poder que afetava a pessoa do soberano mas para codificar o menos poder que marca os que são submetidos a uma punição Na região mais sombria do campo político o condenado desenha a figura simétrica e invertida do rei Seria preciso analisar o que se poderia chamar em homenagem a Kantorowitz o mínimo corpo do condenado Se o suplemento de poder do lado do rei provoca o desdobramento de seu corpo o poder excedente exercido sobre o corpo submetido do condenado não suscitou um outro tipo de desdobramento o de um incorpóreo de uma alma como dizia Mably A história dessa microfísica do poder punitivo seria então uma genealogia ou uma peça para uma genealogia da alma moderna A ver nessa alma os restos reativados de uma ideologia antes reconheceríamos nela o correlativo atual de uma certa tecnologia do poder sobre o corpo Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão ou um efeito ideológico mas afirmar que ela existe que tem uma realidade que é produzida permanentemente em tomo na superfície no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados treinados e corrigidos sobre os loucos as crianças os escolares os colonizados sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência Realidade histórica dessa alma que diferentemente da alma representada pela teologia cristã não nasce faltosa e merecedora de castigo mas nasce antes de procedimentos de punição de vigilância de castigo e de coação Esta alma real e incorpórea não é absolutamente substância é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder Sobre essa realidadereferência vários conceitos foram construídos e campos de análise foram demarcados psique subjetividade personalidade consciência etc sobre ela técnicas e discursos científicos foram edificados a partir dela valorizaramse as reivindicações morais do humanismo Mas não devemos nos enganar a alma ilusão dos teólogos não foi substituída por um homem real objeto de saber de reflexão filosófica ou de intervenção técnica O homem de que nos falam e que nos convidam a liberar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele Uma alma o habita e o leva à existência que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo A alma efeito e instrumento de uma anatomia política a alma prisão do corpo Que as punições em gera e a prisão se originem de uma tecnologia política do corpo talvez me tenha ensinado mais pelo presente do que pela história Nos últimos anos houve revoltas em prisões em muitos lugares do mundo Os objetivos que tinham suas palavras de ordem seu desenrolar tinham certamente qualquer coisa de paradoxal Eram revoltas contra toda uma miséria física que dura há mais de um século contra o frio contra a sufocação e o excesso de população contra as paredes velhas contra a fome contra os golpes Mas eram também revoltas contra as prisõesmodelos contra os tranqüilizantes contra o isolamento contra o serviço médico ou educativo Revoltas cujos objetivos eram só materiais Revoltas contraditórias contra a decadência e ao mesmo tempo contra o conforto contra os guardas e ao mesmo tempo contra os psiquiatras De fato tratavase realmente dos corpos e de coisas materiais em todos esses movimentos como se trata disso nos inúmeros discursos que a prisão tem produzido desde o começo do século XIX O que provocou esses discursos e essas revoltas essas lembranças e invectivas foram realmente essas pequenas essas ínfimas coisas materiais Quem quiser tem toda liberdade de ver nisso apenas reivindicações cegas ou suspeitar que haja aí estratégias estranhas Tratavase bem de uma revolta ao nível dos corpos contra o próprio corpo da prisão O que estava em jogo não era o quadro rude demais ou ascético demais rudimentar demais ou aperfeiçoado demais da prisão era sua materialidade na medida em que ele é instrumento e vetor de poder era toda essa tecnologia do poder sobre o corpo que a tecnologia da alma a dos educadores dos psicólogos e dos psiquiatras não consegue mascarar nem compensar pela boa razão de que não passa de um de seus instrumentos É desta prisão com todos os investimentos políticos do corpo que ela reúne em sua arquitetura fechada que eu gostaria de fazer a história Por puro anacronismo Não se entendemos com isso fazer a história do passado nos termos do presente Sim se entendermos com isso fazer a história do presente23 CAPÍTULO II A OSTENTAÇÃO DOS SUPLÍCIOS A ordenação de 1670 regeu até à Revolução as formas gerais da prática penal Eis a hierarquia dos castigos por ela descritos A morte a questão com reserva de provas as galeras o açoite a confissão pública o banimento As penas físicas tinham portanto uma parte considerável Os costumes a natureza dos crimes o status dos condenados as faziam variar ainda mais A pena de morte natural compreende todos os tipos de morte uns podem ser condenados à forca outros a ter a mão ou a língua cortada ou furada e ser enforcados em seguida outros por crimes mais graves a ser arrebentados vivos e expirar na roda depois de ter os membros arrebentados outros a ser arrebentados até a morte natural outros a ser estrangulados e em seguida arrebentados outros a ser queimados vivos outros a ser queimados depois de estrangulados outros a ter a língua cortada ou furada e em seguida queimados vivos outros a ser puxados por quatro cavalos outros a ter a cabeça cortada outros enfim a ter a cabeça quebrada1 E Soulatges de passagem acrescenta que há também penas leves de que a Ordenação não fala satisfação à pessoa ofendida admoestação repreensão prisão temporária abstenção de um lugar e enfim as penas pecuniárias muitas ou confiscação Não devemos no entanto nos enganar Entre esse arsenal de horror e a prática cotidiana da penalidade a margem era grande Os suplícios não constituíam as penas mais freqüentes longe disso Sem dúvida para nossos olhos atuais a proporção de veredictos de morte na penalidade da era clássica pode parecer considerável as decisões do Châtelet durante o período de 1755 a 1785 comportam 9 a 10 de penas capitais roda forca ou fogueira2 em 260 sentenças o Parlamento de Flandres pronunciou 39 condenações à morte de 1721 a 1730 e 26 em 500 entre 1781 e 17903 Mas não se deve esquecer que os tribunais encontravam muitos meios de abrandar os rigores da penalidade regular seja recusandose a levar adiante processos quando as infrações eram exageradamente castigadas seja modificando a qualificação do crime às vezes também o próprio poder real indicava não aplicar estritamente tal ordenação particularmente severa4 De qualquer modo a maior parte das condenações era banimento ou multa numa jurisprudência como a do Châtelet que só conhecia delitos relativamente graves o banimento representou entre 1755 e 1785 mais da metade das penas aplicadas Ora grande parte dessas penas não corporais era acompanhada a título acessório de penas que comportavam uma dimensão de suplício exposição roda coleira de ferro açoite marcação com ferrete era a regra para todas as condenações às galeras ou ao equivalente para as mulheres a reclusão no hospital o banimento era muitas vezes precedido pela exposição e pela marcação com ferrete a multa às vezes era acompanhada de açoite Não só nas grandes e solenes execuções mas também nessa forma anexa é que o suplício manifestava a parte significativa que tinha na penalidade qualquer pena um pouco séria devia incluir alguma coisa do suplício Que é um suplício Pena corporal dolorosa mais ou menos atroz dizia Jaucourt e acrescentava é um fenômeno inexplicável a extensão da imaginação dos homens para a barbárie e a crueldade5 Inexplicável talvez mas certamente não irregular nem selvagem O suplício é uma técnica e não deve ser equiparado aos extremos de uma raiva sem lei Uma pena para ser um suplício deve obedecer a três critérios principais em primeiro lugar produzir uma certa quantidade de sofrimento que se possa se não medir exatamente ao menos apreciar comparar e hierarquizar a morte é um suplício na medida em que ela não é simplesmente privação do direito de viver mas a ocasião e o termo final de uma graduação calculada de sofrimentos desde a decapitação que reduz todos os sofrimentos a um só gesto e num só instante o grau zero do suplício até o esquartejamento que os leva quase ao infinito através do enforcamento da fogueira e da roda na qual se agoniza muito tempo a morte suplício é a arte de reter a vida no sofrimento subdividindoa em mil mortes e obtendo antes de cessar a existência the most exquisite agonies6 O suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento Mas não é só esta produção é regulada O suplício faz correlacionar o tipo de ferimento físico a qualidade a intensidade o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime a pessoa do criminoso o nível social de suas vítimas Há um código jurídico da dor a pena quando é supliciante não se abate sobre o corpo ao acaso ou em bloco ela é calculada de acordo com regras detalhadas número de golpes de açoite localização do ferrete em brasa tempo de agonia na fogueira ou na roda o tribunal decide se é o caso de estrangular o paciente imediatamente em vez de deixálo morrer e ao fim de quanto tempo esse gesto de piedade deve intervir tipo de mutilação a impor mão decepada lábios ou língua furados Todos esses diversos elementos multiplicam as penas e se combinam de acordo com os tribunais e os crimes A poesia de Dante posta em leis dizia Rossi um longo saber físicopenal em todo caso Além disso o suplício faz parte de um ritual É um elemento na liturgia punitiva e que obedece a duas exigências Em relação à vítima ele deve ser marcante destinase ou pela cicatriz que deixa no corpo ou pela ostentação de que se acompanha a tornar infame aquele que é sua vítima o suplício mesmo se tem como função purgar o crime não reconcilia traça em tomo ou melhor sobre o próprio corpo do condenado sinais que não devem se apagar a memória dos homens em todo caso guardará a lembrança da exposição da roda da tortura ou do sofrimento devidamente constatados E pelo lado da justiça que o impõe o suplício deve ser ostentoso deve ser constatado por todos um pouco como seu triunfo O próprio excesso das violências cometidas é uma das peças de sua glória o fato de o culpado gemer ou gritar com os golpes não constitui algo de acessório e vergonhoso mas é o próprio cerimonial da justiça que se manifesta em sua força Por isso sem dúvida é que os suplícios se prolongam ainda depois da morte cadáveres queimados cinzas jogadas ao vento corpos arrastados na grade expostos à beira das estradas A justiça persegue o corpo além de qualquer sofrimento possível O suplício penal não corresponde a qualquer punição corporal é uma produção diferenciada de sofrimentos um ritual organizado para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune não é absolutamente a exasperação de uma justiça que esquecendo seus princípios perdesse todo o controle Nos excessos dos suplícios se investe toda a economia do poder O corpo supliciado se insere em primeiro lugar no cerimonial judiciário que deve trazer à luz a verdade do crime Na França como na maior parte dos países europeus com a notável exceção da Inglaterra todo o processo criminal até à sentença permanecia secreto ou seja opaco não só para o público mas para o próprio acusado O processo se desenrolava sem ele ou pelo menos sem que ele pudesse conhecer a acusação as imputações os depoimentos as provas Na ordem da justiça criminal o saber era privilégio absoluto da acusação O mais diligente e o mais secretamente que se puder fazer dizia a respeito da instrução o edito de 1498 De acordo com a ordenação de 1670 que resumia e em alguns pontos reforçava a severidade da época precedente era impossível ao acusado ter acesso às peças do processo impossível conhecer a identidade dos denunciadores impossível saber o sentido dos depoimentos antes de recusar as testemunhas impossível fazer valer até os últimos momentos do processo os fatos justificativos impossível ter um advogado seja para verificar a regularidade do processo seja para participar da defesa Por seu lado o magistrado tinha o direito de receber denúncias anônimas de esconder ao acusado a natureza da causa de interrogálo de maneira capciosa de usar insinuações7 Ele constituía sozinho e com pleno poder uma verdade com a qual investia o acusado e essa verdade os juízes a recebiam pronta sob a forma de peças e de relatórios escritos para eles esses documentos sozinhos comprovavam só encontravam o acusado uma vez para interrogálo antes de dar a sentença A forma secreta e escrita do processo confere com o principio de que em matéria criminal o estabelecimento da verdade era para o soberano e seus juizes um direito 1 N Andry A Ortopedia ou a Arte de Prevenir e Corrigir nas Crianças as Deformidades do Corpo 1749 2 Medalha comemorativa da primeira revista militar passada por Luís XIV em 1666 B N Gabinete das medalhas V p 167 34 P Giffart A Arte Militar Francesa 1696 V p 140 56 Plantas que acompanhavam a Ordenação de 25 de setembro de 1719 sobre a construção dos quartéis V p 130 7 P G Joly de Maizeroy Teoria da Guerra 1777 Campo para dezoito batalhas e vinte e quatro esquadrões 1 Acampamento da infantaria 2 Da cavalaria 3 Das tropas ligeiras 4 Grandes guardas 5 Alinhamento dos guardas do campo 6 Quartelgeneral 7 Parque da artilharia 8 Parque dos víveres 9 Reduto V p 154 8 Modelo para caligrafia Coleções históricas do INRDP V p 139 9 Colégio de Navarra Desenhado e gravado por FrançoisNicolas Martinet por volta de 1760 Coleções históricas do INRDP V p 131 1011 Interior da Escola de Ensino Mútuo situada na Rua PortMahon ao momento do exercício de caligrafia Litografia de Hippolite Lecomte 1818 Coleções históricas do INRDP V p 135 12 B Poyet Projeto de hospital 1786 V p 156 13 J F de Neufforge Projeto do hospital Coletânea elementar de arquitetura 17571780 V p 156 14 Jardim Zoológico de Versalles à época de Luís XIV gravura de Aveline V p 179 15 Planta da Casa de Detenção de Grand 1773 V p 108 16 J F de Neufforge Projeção de prisão ob cit V p 156 17 J Bentham Planta do Panopticon The Works of Jeremy Bentham ed Bowring t IV p 172173 V p 177 1819 N HarouRomain Projetos de penitenciárias 1840 V p 222 20 N HarouRomain Projeto de penitenciária 1840 Planta e corte das celas V p 222 Cada cela comporta uma entrada um quarto uma sala para trabalho e outra para lazer Durante a prece a porta da entrada permanece aberta onde o prisioneiro se ajoelha desenho central 21 N HarouRomain Projeto de penitenciária 1840 Um detento em sua cela reza diante da torre central de vigilância V p 222 22 A Blouet Projeto de prisão celular para quinhentos e oitenta e cinco condenados 1843 V p 222 23 Planta da prisão de Mazas V p 222 24 Prisão de Petite Roquette V p 222 24 Prisão de Petite Roquete V p 222 25 A Casa Central de Rennes em 1877 V p 222 26 Interior da penitenciária de Stateville Estados Unidos século XX V p 222 27 A hora de dormir na colônia de Mettray V p 258 28 Conferência sobre os males do alcoolismo no auditório da prisão de Fresnes 29 Máquina a vapor para a rápida correção das meninas e dos meninos Avisamos aos pais e mães tios tias tutores tutoras diretores e diretoras de internatos e de modo geral todas as pessoas que tenham crianças preguiçosas gulosas indóceis desobedientes briguentas mexeriqueiras faladoras sem religião ou que tenham qualquer outro defeito que o senhor BichoPapão e a senhora TralhaVelha acabaram de colocar em cada distrito da cidade de Paris uma máquina semelhante à representada nesta gravura e recebem diariamente em seus estabelecimentos de meiodia às duas horas crianças que precisem ser corrigidas Os senhores Lobisomem Carvoeiro Rotomago e ComesemFome e as senhoras Pantera Furiosa Caratonha semDó e BebesemSede amigos e parentes do senhor BichoPapão e da Senhora Tralha Velha instalarão brevemente máquina semelhante que será enviada às cidades das províncias e eles mesmos irão dirigir a execução O baixo preço da correção dada pela máquina a vapor e seus surpreendentes efeitos levarão os pais a usála tanto quanto o exija o mau comportamento de seus filhos Aceitamse como internas crianças incorrigíveis que são alimentadas a pão e água Gravura do fim do século XVIII Coleções históricas do INRDP 30 N Andry A Ortopedia ou a Arte de Prevenir e Corrigir nas Crianças as Deformidades do Corpo 1749 absoluto e um poder exclusivo Ayrault supunha que esse procedimento já estabelecida no que tange ao essencial no século XVI tinha por origem o medo dos tumultos das gritarias e aclamações que o povo normalmente faz o medo de que houvesse desordem violência e impetuosidade contra as partes talvez ate mesmo contra os juizes o rei quereria mostrar com isso que a força soberana de que se origina o direito de punir não pode em caso algum pertencer à multidão8 Diante da justiça do soberano todas as vozes devemse calar Mas o segredo não impedia que para estabelecer a verdade se devesse obedecer a certas regras O segredo implicava mesmo na definição rigorosa de um modelo de demonstração penal Toda uma tradição que remontava ao meio ambiente medieval mas que os juristas da Renascença haviam largamente desenvolvido prescrevia o que deviam ser a natureza e a eficácia das provas Ainda no século XVIII encontravamse regularmente distinções como as seguintes as provas verdadeiras diretas ou legítimas os testemunhos por exemplo e as provas indiretas conjeturais artificiais por argumento ou ainda as provas manifestas as provas consideráveis as provas imperfeitas ou ligeiras9 ou ainda as provas urgentes e necessárias que não permitem duvidar da verdade do fato são provas plenas assim duas testemunhas irrepreensíveis que a afirmassem ter visto o acusado com uma espada nua e ensangüentada na mão a sair do lugar onde algum tempo depois foi encontrado o corpo do morto marcado por golpes de espada os indícios próximos ou provas semiplenas que se podem considerar verdadeiras enquanto o acusado não as destruir com uma prova contrária prova semiplena como uma só testemunha ocular ou ameaças de morte que precedem um assassinato enfim os indícios longínquos ou adminículos que consistem apenas no parecer dos homens opinião pública fuga do suspeito sua perturbação ao ser interrogado etc10 Ora essas distinções não são simplesmente sutilezas teóricas Elas têm uma função operatória Em primeiro lugar porque cada um desses indícios tomado em si mesmo e se permanece isolado pode ter um tipo definido de efeito judiciário as provas plenas podem acarretar qualquer condenação as semiplenas podem acarretar penas físicas infamantes mas nunca a morte os indícios imperfeitos e leves bastam para fazer decretar o suspeito para fazer contra ele investigações mais aprofundadas ou para lhe impor uma multa Em segundo lugar porque se combinam entre si de acordo com regras precisas de cálculo duas provas semiplenas podem fazer uma prova completa adminículos desde que sejam vários e concordem podem combinarse para formar uma meiaprova mas sozinhos por numerosos que sejam não podem equivaler a uma prova completa Temos então uma aritmética penal meticulosa em muitos pontos mas que deixa ainda margem a muitas discussões podemos apoiarnos para dar uma sentença capital numa única prova plena ou é preciso que ela seja acompanhada de outros indícios mais ligeiros Dois indícios próximos são sempre equivalentes a uma prova plena Não seria necessário admitir três deles ou combinálos com os indícios longínquos Há elementos que só podem ser indícios para certos crimes em certas circunstâncias e em relação a certas pessoas assim um testemunho é anulado se provém de um vagabundo é ao contrário reforçado se se trata de uma pessoa de consideração ou de um patrão a respeito de um delito doméstico Aritmética modulada por uma casuística que tem por função definir como se pode construir uma prova judicial Por um lado esse sistema das provas legais faz da verdade no campo penal o resultado de uma arte complexa obedece a regras que só os especialistas podem conhecer e conseqüentemente reforça o princípio do segredo Não basta que o juiz tenha a convicção que qualquer homem razoável pode ter Nada mais errado que essa maneira de julgar que na verdade não passa de uma opinião mais ou menos fundamentada Mas por outro lado ele cerceia o magistrado severamente sem essa regularidade qualquer julgamento de condenação seria temerário e podese dizer de certa maneira que é injusto mesmo se na verdade o acusado fosse culpado11 Chegará o dia em que a singularidade dessa verdade judicial parecerá escandalosa como se a justiça não tivesse que obedecer às regras da verdade comum Que se diria de uma meiaprova nas ciências demonstráveis Que seria uma meiaprova geométrica ou algébrica12 Mas não devemos esquecer que essas exigências formais da prova jurídica eram um modo de controle interno do poder absoluto e exclusivo de saber A informação penal escrita secreta submetida para construir suas provas a regras rigorosas é uma máquina que pode produzir a verdade na ausência do acusado E por essa mesma razão embora no estrito direito isso não seja necessário esse procedimento vai necessariamente tender à confissão Por duas razões em primeiro lugar porque esta constitui uma prova tão forte que não há nenhuma necessidade de acrescentar outras nem de entrar na difícil e duvidosa combinação dos indícios a confissão desde que feita na forma correta quase desobriga o acusador do cuidado de fornecer outras provas em todo caso as mais difíceis Em seguida a única maneira para que esse procedimento perca tudo o que tem de autoridade unívoca e se torne efetivamente uma vitória conseguida sobre o acusado a única maneira para que a verdade exerça todo o seu poder é que o criminoso tome sobre si o próprio crime e ele mesmo assine o que foi sábia e obscuramente construído pela informação Não é bastante como dizia Ayrault que não gostava nem um pouco desses processos secretos que os maus sejam justamente punidos É preciso se possível que eles mesmos se julguem e se condenem13 No interior do crime reconstituído por escrito o criminoso que confessa vem desempenhar o papel de verdade viva A confissão ato do sujeito criminoso responsável e que fala é a peça complementar de uma informação escrita e secreta Daí a importância dada à confissão por todo esse processo de tipo inquisitorial Daí também as ambigüidades de seu papel Por um lado tentase fazêlo entrar no cálculo geral das provas ressaltase que ela não passa de uma delas ela não é a evidentia rei assim como a mais forte das provas ela sozinha não pode levar à condenação deve ser acompanhada de indícios anexos e de presunções pois já houve acusados que se declararam culpados de crimes que não tinham cometido o juiz deverá então fazer pesquisas complementares se só estiver de posse da confissão regular do culpado Mas por outro lado a confissão ganha qualquer outra prova Até certo ponto ela as transcende elemento no cálculo da verdade ela é também o ato pelo qual o acusado aceita a acusação e reconhece que esta é bem fundamentada transforma uma afirmação feita sem ele em uma afirmação voluntária Pela confissão o próprio acusado toma lugar no ritual de produção de verdade penal Como já dizia o direito medieval a confissão torna a coisa notória e manifesta A esta primeira ambigüidade se sobrepõe uma segunda investigase de novo a confissão como prova particularmente forte que exige para levar à condenação apenas alguns indícios suplementares que reduzem ao mínimo o trabalho de informação e a mecânica de demonstração todas as formas possíveis de coerção serão utilizadas para obtêla Mas embora ela deva ser no processo a contrapartida viva e oral da informação escrita a réplica desta e como que sua autenticação por parte do acusado será cercada de garantias e formalidades Ela conserva alguma coisa de uma transação por isso exigese que seja espontânea que seja formulada diante do tribunal competente que seja feita com toda consciência que não trate de coisas impossíveis etc14 Pela confissão o acusado se compromete em relação ao processo ele assina a verdade da informação Essa dupla ambigüidade da confissão elemento de prova e contrapartida da informação efeito de coação e transação semivoluntária explica os dois grandes meios que o direito criminal clássico utiliza para obtêla o juramento que se pede ao acusado antes do interrogatório ameaça por conseguinte de ser perjuro diante da justiça dos homens e diante da de Deus e ao mesmo tempo ato ritual de compromisso a tortura violência física para arrancar uma verdade que de qualquer maneira para valer como prova tem que ser em seguida repetida diante dos juizes a título de confissão espontânea No fim do século XVIII a tortura será denunciada como resto das barbáries de uma outra época marca de uma selvageria denunciada como gótica É verdade que a prática da tortura remonta à Inquisição é claro e mais longe ainda do que os suplícios dos escravos Mas ela não figura no direito clássico como sua característica ou mancha Ela tem seu lugar estrito num mecanismo penal complexo em que o processo de tipo inquisitorial tem um lastro de elementos do sistema acusatório em que a demonstração escrita precisa de um correlato oral em que as técnicas da prova administrada pelos magistrados se misturam com os procedimentos de provas que eram desafios ao acusado em que lhe é pedido se necessário pela coação mais violenta que desempenhe no processo o papel do parceiro voluntário em que se trata em suma de produzir a verdade por um mecanismo de dois elementos o do inquérito conduzido em segredo pela autoridade judiciária e o do ato realizado ritualmente pelo acusado O corpo do acusado corpo que fala e se necessário sofre serve de engrenagem aos dois mecanismos é por isso que enquanto o sistema punitivo clássico não for totalmente reconsiderado haverá muito poucas críticas radicais da tortura15 Com muito mais freqüência simples conselhos de prudência O interrogatório é um meio perigoso de chegar ao conhecimento da verdade por isso os juizes não devem recorrer a ela sem refletir Nada é mais equívoco Há culpados que têm firmeza suficiente para esconder um crime verdadeiro e outros inocentes a quem a força dos tormentos fez confessar crimes de que não eram culpados16 Podese a partir daí encontrar o funcionamento do interrogatório como suplício da verdade Em primeiro lugar o interrogatório não é uma maneira de arrancar a verdade a qualquer preço não é absolutamente a louca tortura dos interrogatórios modernos é cruel certamente mas não selvagem Tratase de uma prática regulamentada que obedece a um procedimento bem definido com momentos duração instrumentos utilizados comprimentos das cordas peso dos chumbos número de cunhas intervenções do magistrado que interroga tudo segundo os diferentes hábitos cuidadosamente codificado17 A tortura é um jogo judiciário estrito E a esse título mais longe do que às técnicas da Inquisição ela se liga às antigas provas que se utilizavam nos processos acusatórios ordálias duelos judiciais julgamentos divinos Entre o juiz que ordena a tortura e o suspeito que é torturado há ainda como uma espécie de justa o paciente é o termo pelo qual é designado o supliciado é submetido a uma série de provas de severidade graduada e que ele ganha agüentando ou perde confessando18 Mas o juiz não impõe a tortura sem por seu lado correr riscos e não é só o perigo de ver morrer o suspeito ele põe alguma coisa em jogo no torneio que são os elementos de prova que já reuniu pois a regra diz que se o condenado agüenta e não confessa o magistrado é obrigado a abandonar as acusações O supliciado ganhou Daí o hábito que se introduzira para os casos mais graves de impor suplício do interrogatório com reserva de provas nesse caso o juiz podia continuar depois das torturas a fazer valer as presunções reunidas o suspeito não era inocentado por sua resistência mas pelo menos devia ele à sua vitória não mais poder ser condenado à morte O juiz conservava todas as cartas menos a principal Omnia citra mortem Daí a recomendação que se faz muitas vezes aos juizes de não submeter a suplício do interrogatório um suspeito contra o qual há convicção suficiente dos crimes mais graves pois se ele viesse a resistir à tortura o juiz não teria mais o direito de lhe infligir a pena de morte que ele merece entretanto nessa justa a justiça perderia se as provas são suficientes para condenar tal culpado à morte não se deve arriscar a condenação ao destino e ao desenlace de um suplício de interrogatório provisório que não leva a nada pois afinal é para o bemestar e o interesse público castigar para escarmento os crimes graves atrozes e capitais19 Sob a aparente pesquisa intensa de uma verdade urgente encontramos na tortura clássica o mecanismo regulamentado de uma prova um desafio físico que deve decidir sobre a verdade se o paciente é culpado os sofrimentos impostos pela verdade não são injustos mas ela é também uma prova de desculpa se ele for inocente Sofrimento confronto e verdade estão ligados uns aos outros na prática da tortura trabalham em comum o corpo do paciente A investigação da verdade pelo suplício do interrogatório é realmente uma maneira de fazer aparecer um indício o mais grave de todos a confissão do culpado mas é também a batalha é a vitória de um adversário sobre o outro que produz ritualmente a verdade A tortura para fazer confessar tem alguma coisa de inquérito mas tem também de duelo Do mesmo modo misturamse aí um ato de instrução e um elemento de punição E esse não é um de seus menores paradoxos Com efeito ela é definida como uma maneira de completar a demonstração quando não há penas suficientes no processo E é classificada entre as penas e uma pena tão grave que na hierarquia das punições a Ordenação de 1670 a insere logo depois da morte Como pode uma pena ser utilizada como um meio se perguntará mais tarde Como se pode fazer valer a título de castigo o que deveria ser um processo de demonstração A razão está na maneira como na época clássica a justiça criminal fazia funcionar a demonstração da verdade As diferentes partes da prova não constituíam outros tantos elementos neutros não lhes cabia serem reunidas num feixe único para darem a certeza final da culpa Cada indício trazia consigo um grau de abominação A culpa não começava uma vez reunidas todas as provas peça por peça ela era constituída por cada um dos elementos que permitiam reconhecer um culpado Assim uma meiaprova não deixava inocente o suspeito enquanto não fosse completada fazia dele um meioculpado o indício apenas leve de um crime grave marcava alguém como um pouco criminoso Enfim a demonstração em matéria penal não obedecia a um sistema dualista verdadeiro ou falso mas um princípio de gradação contínua um grau atingido na demonstração já formava um grau de culpa e implicava conseqüentemente num grau de punição O suspeito enquanto tal merecia sempre um certo castigo não se podia ser inocentemente objeto de suspeita A suspeita implicava ao mesmo tempo da parte do juiz um elemento de demonstração da parte do acusado a prova de uma certa culpa e da parte da punição uma forma limitada de pena Um suspeito que continuasse suspeito não estava inocentado por isso mas era parcialmente punido Quando se chegava a um certo grau de presunção podiase então legitimamente executar uma prática que tinha um duplo papel começar a punir em razão das indicações já reunidas e servirse deste início de pena para extorquir o resto de verdade que ainda faltava A tortura judiciária no século XVIII funciona nessa estranha economia em que o ritual que produz a verdade caminha a par com o ritual que impõe a punição O corpo interrogado no suplício constitui o ponto de aplicação do castigo e o lugar de extorsão da verdade E do mesmo modo que a presunção é solidariamente um elemento de inquérito e um fragmento de culpa o sofrimento regulado da tortura é ao mesmo tempo uma medida para punir e um ato de instrução Ora curiosamente essa engrenagem dos dois rituais através do corpo continua feita a prova e formulada a sentença na própria execução da pena E o corpo do condenado é novamente uma peça essencial no cerimonial do castigo público Cabe ao culpado levar à luz do dia sua condenação e a verdade do crime que cometeu Seu corpo mostrado passeado exposto supliciado deve ser como o suporte público de um processo que ficara até então na sombra nele sobre ele o ato de justiça deve se tornar legível para todos Essa manifestação atual e brilhante da verdade na execução pública das penas toma no século XVIII vários aspectos 1 Fazer em primeiro lugar do culpado o arauto de sua própria condenação Ele é encarregado de algum modo de proclamála e dessa maneira de atestar a verdade do que lhe foi reprovado passeio pelas ruas cartaz que lhe é pendurado nas costas no peito ou na cabeça para lembrar a sentença paradas em vários cruzamentos leitura do documento de condenação confissão pública à porta das igrejas durante a qual o condenado reconhece solenemente seu crime Descalço de camisola levando uma tocha de joelhos dizer e declarar que com maldade horrivelmente traidoramente e com intenção premeditada ele havia cometido o crime detestável etc exposição junto ao poste onde são lembrados os fatos e a sentença mais uma vez leitura da condenação ao pé do patíbulo quer se trate simplesmente do pelourinho ou da fogueira e da roda o condenado publica seu crime e a justiça que ele é obrigado a fazer a si mesmo levandoos fisicamente sobre o corpo 2 Prosseguir uma vez mais a cena da confissão Dublar a proclamação forçada da confissão pública com um reconhecimento espontâneo e público Estabelecer o suplício como momento da verdade Fazer com que esses últimos instantes em que o culpado não tem mais nada a perder sejam ganhos para a luz plena da verdade O tribunal podia mesmo decidir depois da condenação uma nova tortura para arrancar o nome dos eventuais cúmplices Estava também previsto que no momento de subir ao cadafalso o condenado podia pedir um tempo para fazer novas revelações O público esperava essa nova peripécia da verdade Muitos aproveitavam isso para ganhar um pouco de tempo como Michel Barbier culpado de ataque a mão armada Olhou desafiadoramente o cadafalso dizendo que não era para ele que tinham erguido já que era inocente pediu primeiro para subir ao quarto onde apenas ficou a divagar durante meia hora querendo sempre se justificar depois levado ao suplício sobe ao patíbulo decididamente mas quando se vê despojado das vestes e preso na cruz pronto a receber os golpes de barra pede para subir uma segunda vez ao quarto e lá finalmente confessa o crime e declara mesmo que era culpado de outro assassinato20 O verdadeiro suplício tem por função fazer brilhar a verdade e nisso ele continua até sob os olhos do público o trabalho do suplício do interrogatório Ele opõe à condenação a assinatura daquele que sofre Um suplício bem sucedido justifica a justiça na medida em que publica a verdade do crime no próprio corpo do supliciado Exemplo do bom condenado foi François Billiard caixageral do correio que em 1772 havia assassinado a mulher o carrasco queria esconderlhe o rosto para defendêlo dos insultos Não me infligiram disse ele essa pena que mereci para não ser visto pelo público Usava ainda o traje de luto pela mulher calçava escarpins novos tinha frisado os cabelos e aplicara pó branco à pele caminhava numa atitude tão modesta e imponente que as pessoas que haviam podido contemplálo mais de perto diziam que ele tinha que ser ou o cristão mais perfeito ou o maior de todos os hipócritas O cartaz que levava no peito estava torto notaram que ele mesmo o arrumava sem dúvida para que pudesse ser lido mais facilmente21 A cerimônia penal se cada um dos atores desempenha bem seu papel tem a eficácia de uma longa confissão pública 3 Prender o suplício no próprio crime estabelecer de um para o outro relações decifráveis Exposição do cadáver do condenado no local do crime ou num dos cruzamentos mais próximos Execução no próprio local em que o crime fora cometido como aquele estudante que em 1723 matara várias pessoas e para quem o tribunal de Nantes decidiu erguer um cadafalso em frente à porta do albergue onde ele cometera os assassinatos22 Utilização de suplícios simbólicos em que a forma da execução faz lembrar a natureza do crime furase a língua dos blasfemadores queimamse os impuros cortase o punho que matou às vezes fazse o condenado ostentar o instrumento de seu crime como Damiens com a famosa faquinha que foi coberta com enxofre e amarrada à mão culpada para queimar ao mesmo tempo que ele Como dizia Vico essa velha jurisprudência foi toda uma poética Enfim encontramos às vezes a reprodução quase teatral do crime na execução do culpado mesmos instrumentos mesmos gestos Aos olhos de todos a justiça faz os suplícios repetirem o crime publicandoo em sua verdade e anulandoo ao mesmo tempo na morte do culpado Ainda no final do século XVIII em 1772 encontramse sentenças como a seguinte Uma criada de Cambrai que matara sua senhora é condenada a ser levada ao lugar do suplício numa carroça usada para retirar as imundícies em todas as encruzilhadas lá haverá uma forca a cujo pé será colocada a mesma poltrona onde estava sentada a senhora Laleu sua patroa quando foi assassinada e sendo colocada lá o executor da alta justiça lhe cortará a mão direita e em sua presença a jogará ao fogo e lhe dará imediatamente depois quatro facadas com a faca utilizada por ela para assassinar a senhora Laleu a primeira e a segunda na cabeça a terceira no antebraço esquerdo e a quarta no peito feito o que será pendurada e estrangulada na dita forca até à morte e depois de duas horas seu cadáver será retirado e a cabeça separada ao pé da dita forca sobre o dito cadafalso com a mesma faca que ela utilizou para assassinar sua senhora e a cabeça exposta sobre uma figura de vinte pés fora da porta da dita Cambrai junto ao caminho que leva a Douai e o resto do corpo posto num saco e enterrado perto do dito poste a dez pés de profundidade23 4 Enfim a lentidão do suplício suas peripécias os gritos e o sofrimento do condenado têm ao termo do ritual judiciário o papel de uma derradeira prova Como qualquer agonia a que se desenrola no cadafalso diz uma certa verdade mas com mais intensidade na medida em que é pressionada pela dor com mais rigor pois está exatamente no ponto de junção do julgamento dos homens com o de Deus com mais ostentação pois se desenrola em público O sofrimento do suplício prolonga o da tortura preparatória nesta entretanto o jogo não estava feito e a vida podia ser salva agora a morte é certa tratase de salvar a alma O jogo eterno já começou o suplício antecipa as penas do além mostra o que são elas ele é o teatro do inferno os gritos do condenado sua revolta suas blasfêmias já significam seu destino irremediável Mas as dores deste mundo podem valer também como penitência para aliviar os castigos do além um martírio desses se é suportado com resignação Deus não deixará de levar em conta A crueldade da punição terrestre é considerada como dedução da pena futura nela se esboça a promessa do perdão Mas podese dizer ainda um sofrimento tão vivo não seria sinal de que Deus abandonou o culpado nas mãos dos homens E longe de garantir uma futura absolvição ele representa a danação iminente enquanto que se o condenado morre rápido sem agonia prolongada não é isso a prova de que Deus quis protegêlo e impedir que ele caísse no desespero Portanto ambigüidade desse sofrimento que pode do mesmo modo significar a verdade do crime ou o erro dos juizes a bondade ou a maldade do criminoso a coincidência ou a divergência entre o julgamento dos homens e o de Deus Daí essa extraordinária curiosidade que leva os espectadores a se comprimirem em torno do cadafalso e do sofrimento que este exibe lêemse aí o crime e a inocência o passado e o futuro este mundo e o eterno Momento de verdade que todos os espectadores interrogam cada palavra cada grito a duração da agonia o corpo que resiste a vida que não quer ser arrancada tudo isso vale por um sinal o homem que viveu seis horas na roda não querendo que o executor que o consolava e o encorajava sem dúvida por sua iniciativa o deixasse um só instante o que morre com os sentimentos mais cristãos e demonstra o mais sincero arrependimento o que expira na roda uma hora depois de lá ter sido posto dizem que os espectadores de seu suplício ficaram comovidos com suas demonstrações exteriores de religião e de arrependimento o que revelara os mais claros sinais de contrição durante todo o trajeto até o cadafalso e que colocado vivo na roda não cessa de dar gritos pavorosos ou ainda a mulher que conservara o sangue frio até o momento da leitura do julgamento mas cuja cabeça começou então a ficar perturbada e completamente louca ao ser enforcada24 O ciclo está fechado da tortura à execução o corpo produziu e reproduziu a verdade do crime Ou melhor ele constitui o elemento que através de todo um jogo de rituais e de provas confessa que o crime aconteceu que ele mesmo o cometeu mostra que o leva inscrito em si e sobre si suporta a operação do castigo e manifesta seus efeitos da maneira mais ostensiva O corpo várias vezes supliciado sintesa a realidade dos fatos e a verdade da informação dos atos de processo e do discurso do criminoso do crime e da punição Peça essencial conseqüentemente numa liturgia penal em que deve constituir o parceiro de um processo organizado em torno dos direitos formidáveis do soberano do inquérito e do segredo O suplício judiciário deve ser compreendido também como um ritual político Faz parte mesmo num modo menor das cerimônias pelas quais se manifesta o poder A infração segundo o direito da era clássica além do dano que pode eventualmente produzir além mesmo da regra que infringe prejudica o direito do que faz valer a lei Mesmo supondo que não haja prejuízo nem injúria ao indivíduo se foi cometida alguma coisa proibida por lei é um delito que exige reparação porque o direito do superior é violado e é injuriar a dignidade de seu caráter25 O crime além de sua vítima imediata ataca o soberano atacao pessoalmente pois a lei vale como a vontade do soberano atacao fisicamente pois a força da lei é a força do príncipe Pois para que uma lei pudesse vigorar neste reino era preciso necessariamente que emanasse diretamente do soberano ou pelo menos que fosse confirmada com o selo de sua autoridade26 A intervenção do soberano não é portanto uma arbitragem entre dois adversários é mesmo muito mais que uma ação para fazer respeitar os direitos de cada um é uma réplica direta àquele que a ofendeu O exercício do poder soberano na punição dos crimes é sem dúvida uma das partes essenciais na administração da justiça27 O castigo então não pode ser identificado nem medido como reparação do dano deve haver sempre na punição pelo menos uma parte que é a do príncipe e mesmo quando se combina com a reparação prevista ela constitui o elemento mais importante da liquidação penal do crime Ora essa parte que toca ao príncipe em si mesma não é simples ela implica por um lado na reparação do prejuízo que foi trazido ao reino a desordem instaurada o mau exemplo dado são prejuízos consideráveis que não têm comparação como o que é sofrido por um particular mas implica também em que o rei procure a vingança de uma afronta feita à sua pessoa O direito de punir será então como um aspecto do direito que tem o soberano de guerrear seus inimigos castigar provém desse direito de espada desse poder absoluto de vida ou de morte de que trata o direito romano ao se referir ao merum imperium direito em virtude do qual o príncipe faz executar sua lei ordenando a punição do crime28 Mas o castigo é também uma maneira de buscar uma vingança pessoal e pública pois na lei a força físicopolítica do soberano está de certo modo presente Vemos pela própria definição da lei que ela tende não só a defender mas também a vingar o desprezo de sua autoridade com a punição daqueles que vierem a violar suas defesas29 Na execução da pena mais regular no respeito mais exato das formas jurídicas reinam as forças ativas da vindita O suplício tem então uma função jurídicopolítica É um cerimonial para reconstituir a soberania lesada por um instante Ele a restaura manifestandoa em todo o seu brilho A execução pública por rápida e cotidiana que seja se insere em toda a série dos grandes rituais do poder eclipsado e restaurado coroação entrada do rei numa cidade conquistada submissão dos súditos revoltados por cima do crime que desprezou o soberano ela exibe aos olhos de todos uma força invencível Sua finalidade é menos de estabelecer um equilíbrio que de fazer funcionar até um extremo a dissimetria entre o súdito que ousou violar a lei e o soberano todo poderoso que faz valer sua força Se a reparação do dano privado ocasionado pelo delito deve ser bem proporcionada se a sentença deve ser justa a execução da pena é feita para dar não o espetáculo da medida mas do desequilíbrio e do excesso deve haver nessa liturgia da pena uma afirmação enfática do poder e de sua superioridade intrínseca E esta superioridade não é simplesmente a do direito mas a da força física do soberano que se abate sobre o corpo de seu adversário e o domina atacando a lei o infrator lesa a própria pessoa do príncipe ela ou pelo menos aqueles a quem ele delegou sua força se apodera do corpo do condenado para mostrálo marcado vencido quebrado A cerimônia punitiva é aterrorizante Os juristas do século XVIII ao entrarem em polêmica com os reformadores darão uma interpretação restritiva e modernista da crueldade física das penas se são necessárias penas severas é porque o exemplo deve ficar profundamente inscrito no coração dos homens Na realidade entretanto o que até então sustentara essa prática dos suplícios não era a economia do exemplo no sentido em que isso será entendido na época dos ideólogos de que a representação da pena é mais importante do que o interesse pelo crime mas a política do medo tornar sensível a todos sobre o corpo do criminoso a presença encolerizada do soberano O suplício não restabelecia a justiça reativava o poder No século XVII e ainda no começo do XVIII ele não era com todo o seu teatro de terror o resíduo ainda não extinto de uma outra época Suas crueldades sua ostentação a violência corporal o jogo desmesurado de forças o cerimonial cuidadoso enfim todo o seu aparato se engrenava no funcionamento político da penalidade Podese compreender a partir daí certas características da liturgia dos suplícios E antes de mais nada a importância de um ritual que devia exibir seu fausto em público Nada devia ser escondido desse triunfo da lei Os episódios eram tradicionalmente os mesmos e no entanto as sentenças não deixavam de enumerá los de tal modo eles eram importantes no mecanismo penal desfiles paradas nos cruzamentos permanência à porta das igrejas leitura pública da sentença ajoelhar se declarações em voz alta de arrependimento pela ofensa feita a Deus e ao rei As questões de precedência e etiqueta eram muitas vezes reguladas pelo próprio tribunal Os oficiais irão a cavalo segundo a ordem abaixo a saber à frente os dois sargentos de polícia em seguida o paciente depois deste Bonfort e Le Corre caminharão juntos à sua esquerda e darão lugar ao escrivão que os seguirá e desta maneira irão à praça pública do grande mercado em que será executado o julgamento30 Ora esse cerimonial meticuloso é de uma maneira muito explícita não só judicial mas militar A justiça do rei mostrase como uma justiça armada O gládio que pune o culpado é também o que destrói os inimigos Todo um aparato militar cerca o suplício sentinelas arqueiros policiais soldados Pois importa evidentemente impedir qualquer evasão ou ato de violência importa prevenir também da parte do povo um movimento de simpatia para salvar os condenados ou uma onda de indignação para matálos imediatamente importa igualmente lembrar que em todo crime há uma espécie de sublevação contra a lei e que o criminoso é um inimigo do príncipe Todas essas razões quer sejam de precaução numa determinada conjuntura ou de função no desenrolar de um ritual fazem da execução pública mais uma manifestação de força do que uma obra de justiça ou antes é a justiça como força física material e temível do soberano que é exibida A cerimônia do suplício coloca em plena luz a relação de força que dá poder à lei Como ritual da lei armada em que o príncipe se mostra ao mesmo tempo e de maneira indissociável sob o duplo aspecto de chefe de justiça e chefe de guerra a execução pública tem duas faces uma de vitória outra de luta De um lado ela é o desfecho entre o criminoso e o soberano cujo resultado é conhecido antecipadamente ela deve manifestar o poder sem medidas do soberano sobre aqueles que ele reduziu à impotência A dissimetria o irreversível desequilíbrio das forças faziam parte das funções do suplício Um corpo liquidado reduzido à poeira e jogado ao vento um corpo destruído parte por parte pelo poder infinito do soberano constitui o limite não só ideal mas real do castigo Atesta esse fato o famoso suplício de la Massola aplicado em Avignon e que foi um dos primeiros a excitar a indignação dos contemporâneos suplício aparentemente paradoxal pois se desenrola quase inteiramente depois da morte e a justiça não faz outra coisa que estender sobre um cadáver seu teatro magnífico a louvação ritual de suas forças o condenado é amarrado a um poste com os olhos vendados em toda a volta sobre o cadafalso estacas com ganchos de ferro O confessor fala com o paciente ao ouvido e depois que ele lhe dá a bênção imediatamente o executor com uma maça de ferro das que são usadas nos matadouros descarrega um golpe com toda a força na têmpora do infeliz que cai morto no mesmo instante o mortis exactor lhe corta o pescoço com uma grande faca banhandose de sangue num espetáculo horrível para os olhos cortalhe os nervos até os dos calcanhares e em seguida abrelhe o ventre de onde tira o coração o fígado o baço os pulmões pendurandoos num gancho de ferro e o corta e disseca em pedaços que põe em outros ganchos à medida que vai cortando assim como se faz com os de um animal Quem puder que olhe uma coisa dessas31 Na forma lembrada explicitamente do açougue a destruição infinitesimal do corpo equivale aqui a um espetáculo cada pedaço é exposto no balcão O suplício se realiza num grandioso cerimonial de triunfo mas comporta também como núcleo dramático em seu desenrolar monótono uma cena de confronto de inimigos é a ação imediata e direta do carrasco sobre o corpo do paciente Ação codificada é claro pois o costume e muitas vezes de maneira explícita a sentença prescrevem os principais episódios Esta ação no entanto conserva alguma coisa da batalha O executor não é simplesmente aquele que aplica a lei mas o que exibe a força é o agente de uma violência aplicada à violência do crime para dominála Desse crime ele é o adversário material e físico Adversário ora digno de piedade ora encarniçado Damhoudère se queixava bem como muitos contemporâneos seus de que os carrascos praticavam toda espécie de crueldade para com os pacientes malfeitores maltratandoos com empurrões e pontapés e matandoos como se tivessem animais sob suas mãos32 E durante muito tempo esse hábito persistirá33 Há também alguma coisa de desafio e de justa na cerimônia do suplício Se o carrasco triunfa se consegue fazer saltar com um golpe a cabeça que lhe mandaram abater ele a mostra ao povo põe na no chão e saúda em seguida o público que o ovaciona muito batendo palmas34 Ao contrário se ele fracassa se não consegue matar como devia é passível de punição Foi o caso do carrasco de Damiens que como não soubesse esquartejálo de acordo com as regras teve que cortálo com a faca confiscaram em proveito dos pobres os cavalos do suplício que lhe tinham sido prometidos Alguns anos mais tarde o carrasco de Avignon fizera sofrer demais os três bandidos aliás temíveis que devia enforcar os espectadores se aborrecem denunciamno para punilo e também para subtraílo à vindita popular é preso35 E por trás dessa punição do carrasco inábil encontramos uma tradição ainda bem próxima ela dizia que o condenado seria perdoado se a execução fracassasse Era um costume claramente estabelecido em certas regiões36 Muitas vezes o povo esperava que tal tradição fosse aplicada e às vezes protegia um condenado que dessa maneira acabava escapando à morte Para fazer desaparecer tanto o costume quanto a expectativa foi preciso lembrar o adágio a força não perde sua presa foi necessário o cuidado de introduzir nas sentenças capitais instruções explícitas pendurado e estrangulado até a morte até à extinção da vida E jurista como Serpillon ou Blackstone insistem em pleno século XVIII no fato de que o fracasso do carrasco não deve significar que o condenado salvou a vida37 Havia algo da prova e do julgamento de Deus que ainda se podia perceber na cerimônia da execução Em sua confrontação com o condenado o executor era um pouco como o campeão do rei Campeão entretanto não condenável e condenado a tradição dizia parece que quando as cartas do carrasco haviam sido lacradas não eram postas na mesa mas jogadas à terra Conhecemse todas as proibições que cercam esse ofício muito necessário mas contrário à natureza38 Apesar de o carrasco ser em certo sentido o gládio do rei partilhava da infâmia do adversário O poder soberano que o obrigava a matar e que agia através dele não estava presente nele não se identificava com sua fúria E justamente nunca aparecia com tanta ostentação do que ao sustar eventualmente com uma carta de indulto o gesto do executor O pouco tempo que comumente separava a sentença da execução muitas vezes algumas horas fazia com que geralmente a remissão interviesse no último momento Mas a cerimônia com a lentidão de seus lances havia sido organizada para permitir essa eventualidade39 Os condenados a esperavam e para fazer durar as coisas pretendiam ainda ao pé do cadafalso ter revelações a fazer O povo quando a desejava lembravaa aos gritos procurando retardar o último momento observando se o mensageiro vinha trazer a carta com lacre de cera verde e se necessário sugeriam que ele estava chegando foi o que aconteceu no momento em que eram executados os condenados por sublevação popular ocasionada por raptos de crianças em 3 de agosto de 1750 O soberano está presente à execução não só como o poder que vinga a lei mas como o poder que é capaz de suspender tanto a lei quanto a vingança Só ele como senhor deve decidir se lava as mãos ou as ofensas que lhe foram feitas embora tenha conferido aos tribunais o cuidado de exercer seu poder de justiça ele não o alienou conservao integralmente para suspender a pena ou fazêla valer Devese conceber o suplício tal como é ritualizado ainda no século XVIII como um agente político Ele entra logicamente num sistema punitivo em que o soberano de maneira direta ou indireta exige resolve e manda executar os castigos na medida em que ele através da lei é atingido pelo crime Em toda infração há um crimen majestatis e no menor dos criminosos um pequeno regicida em potencial E o regicida por sua vez não é nem mais nem menos que o criminoso total e absoluto pois em vez de atacar como qualquer delinqüente uma decisão ou uma vontade particular do poder soberano ele ataca seu princípio na pessoa física do príncipe A punição do regicida deveria ser soma de todos os suplícios possíveis Seria a vingança infinita as leis francesas em todo caso não previam pena fixa para essa espécie de monstruosidade Foi preciso inventar a de Ravaillac combinando entre si as mais cruéis que tinham sido praticadas na França Queriam imaginar ainda mais atrozes para Damiens Houve projetos mas foram considerados menos perfeitos Retomouse então a cena de Ravaillac E temos que reconhecer que foram moderados comparados com os suplícios que em 1584 o assassino de Guilherme de Orange teve que suportar entregue a uma vingança sem fim No primeiro dia ele foi levado à praça onde encontrou uma caldeira dágua fervente onde foi enfiado o braço com o qual desferira o golpe No dia seguinte o braço foi cortado e tendo caído a seus pés chutouo lá de cima do cadafalso sem pestanejar no terceiro foi atenazado na frente nos mamilos e na parte dianteira do braço no quarto foi igualmente atenazado nos braços por trás e nas nádegas e assim consecutivamente esse homem foi martirizado pelo espaço de dezoito dias No último foi posto na roda e atado Ao fim de seis horas ainda pedia água que não lhe deram Finalmente pediram ao magistrado que autorizasse liquidálo por estrangulamento para que sua alma não desesperasse e se perdesse40 Não há dúvida de que a existência dos suplícios se ligava a alguma coisa bem diferente dessa organização interna Rusche e Kirchheimer têm razão de ver aí o efeito de um regime e produção em que as forças de trabalho e portanto o corpo humano não têm a utilidade nem o valor de mercado que lhes serão conferidos numa sociedade de tipo industrial É certo também que o desprezo pelo corpo se refere a uma atitude geral em relação à morte e nessa atitude poderseia tanto os valores próprios ao cristianismo quanto uma situação demográfica e de certo modo biológica as devastações da doença e da fome os morticínios periódicos das epidemias a enorme mortalidade infantil a precariedade dos equilíbrios bioeconômicos tudo isso tornava a morte familiar e provocava em torno dela rituais para integrála tornála aceitável e dar sentido à sua agressão permanente Seria necessário também para analisar esse longo período de legalidade dos suplícios referirse a fatos de conjuntura não devemos esquecer que a ordenação de 1670 que regulou a justiça criminal até às vésperas da Revolução agravara ainda em certos pontos o rigor dos antigos editos Pussort que entre os comissários encarregados de preparar os textos representava as intenções do rei a impusera dessa maneira apesar de certos magistrados como Lamoignon a multiplicidade das sublevações ainda no meio da era clássica a ameaça de iminentes guerras civis a vontade do rei de fazer valer seu poder em prejuízo dos parlamentos explicam em grande parte a persistência de um regime penal duro Para explicar o emprego do suplício como penalidade não faltam razões gerais e de algum modo externas que esclarecem a possibilidade e a longa persistência das penas físicas a fraqueza e o caráter bastante isolado dos protestos feitos Mas sobre esse fundo é preciso fazer aparecer sua função precisa O suplício se inseriu tão fortemente na prática judicial porque é revelador da verdade e agente do poder Ele promove a articulação do escrito com o oral do secreto com o público do processo de inquérito com a operação de confissão permite que o crime seja reproduzido e voltado contra o corpo visível do criminoso faz com que o crime no mesmo horror se manifeste e se anule Faz também do corpo do condenado o local de aplicação da vindita soberana o ponto sobre o qual se manifesta o poder a ocasião de afirmar a dissimetria das forças Veremos mais adiante que a relação verdadepoder é essencial a todos os mecanismos de punição e se encontra nas práticas contemporâneas da penalidade mas com uma forma totalmente diversa e com efeitos muito diferentes O iluminismo logo há de desqualificar os suplícios reprovandolhes a atrocidade Termo pelo qual os suplícios eram muitas vezes caracterizados sem intenção crítica pelos próprios juristas Talvez a noção de atrocidade seja uma das que melhor designam a economia do suplício na antiga prática penal A atrocidade é em primeiro lugar um caráter próprio a certos grandes crimes ela se refere ao número de leis naturais e positivas divinas ou humanas que eles violam à ostentação escandalosa ou ao contrário à esperteza secreta com que foram cometidos ao nível social e ao status dos que são seus autores e vítimas à desordem que implicam ou ocasionam ao horror que suscitam Mas na medida em que a punição põe em cena aos olhos de todos o crime em toda a sua severidade deve assumir essa atrocidade deve trazêla à luz por meio de confissões discursos inscrições que a tornem pública deve reproduzila em cerimônias que a apliquem ao corpo do culpado sob forma de humilhação e de sofrimento A atrocidade é essa parte do crime que o castigo torna em suplício para fazer brilhar em plena luz figura inerente ao mecanismo que produz no próprio coração da punição a verdade visível do crime O suplício faz parte do procedimento que estabelece a realidade do que é punido Mas não é só a atrocidade de um crime é também a violência do desafio lançado ao soberano é o que vai provocar da parte dele uma réplica que tem por função ir mais longe que essa atrocidade dominála vencêla por um excesso que a anula A atrocidade que paira sobre o suplício desempenha portanto um duplo papel sendo princípio da comunicação do crime com a pena ela é por outro lado a exasperação do castigo em relação ao crime Realiza ao mesmo tempo a ostentação da verdade e do poder é o ritual do inquérito que termina e da cerimônia onde triunfa o soberano E ela os une no corpo supliciado A prática punitiva do século XIX procurará pôr o máximo de distância possível entre a pesquisa serena da verdade e a violência que não se pode eliminar inteiramente da punição Será feito o possível para marcar a heterogeneidade que separa o crime que deve ser sancionado e o castigo imposto pelo poder público Entre a verdade e a punição só deverá haver agora uma relação de conseqüência legítima Que o poder que sanciona não se macule mais por um crime maior que o que ele quis castigar Que fique inocente da pena que inflige Tratemos de proscrever tais suplícios Eram dignos só dos monstros coroados que governaram os romanos41 Mas de acordo com a prática penal da época anterior a proximidade do crime e do soberano no crime a mistura que se fazia entre a demonstração e o castigo não provinham de uma confusão bárbara o que então se realizava era o mecanismo da atrocidade e suas ligações necessárias A atrocidade da expiação organizava a redução ritual da infâmia pelo todopoderoso Que o erro e a punição se intercomuniquem e se liguem sob a forma de atrocidade não era a conseqüência de uma lei de talião obscuramente admitida Era o efeito nos ritos punitivos de uma certa mecânica do poder de um poder que não só não se furta a se exercer diretamente sobre os corpos mas se exalta e se reforça por suas manifestações físicas de um poder que se afirma como poder armado e cujas funções de ordem não são inteiramente desligadas das funções de guerra de um poder que faz valer as regras e as obrigações como laços pessoais cuja ruptura constitui uma ofensa e exige vingança de um poder para o qual a desobediência é um ato de hostilidade um começo de sublevação que não é em seu princípio muito diferente da guerra civil de um poder que não precisa demonstrar por que aplica suas leis mas quem são seus inimigos e que forças descontroladas os ameaçam de um poder que na falta de uma vigilância ininterrupta procura a renovação de seu efeito no brilho de suas manifestações singulares de um poder que se retempera ostentando ritualmente sua realidade de superpoder Ora entre todas as razões pelas quais os castigos que reivindicarão a honra de ser humanos substituirão as penas que não tinham vergonha de ser atrozes há uma que devemos analisar imediatamente pois é inerente ao próprio suplício ao mesmo tempo elemento de seu funcionamento e princípio de sua perpétua desordem Nas cerimônias do suplício o personagem principal é o povo cuja presença real e imediata é requerida para sua realização Um suplício que tivesse sido conhecido mas cujo desenrolar houvesse sido secreto não teria sentido Procurava se dar o exemplo não só suscitando a consciência de que a menor infração corria sério risco de punição mas provocando um efeito de terror pelo espetáculo do poder tripudiando sobre o culpado Em matéria criminal o ponto mais difícil é a imposição da pena é o objetivo e o fim do processo e o único fruto pelo exemplo e pelo terror quando é bem aplicada ao culpado42 Mas nessa cena de terror o papel do povo é ambíguo Ele é chamado como espectador é convocado para assistir às exposições às confissões públicas os pelourinhos as forcas e os cadafalsos são erguidos nas praças públicas ou à beira dos caminhos os cadáveres dos supliciados muitas vezes são colocados bem em evidência perto do local de seus crimes As pessoas não só têm que saber mas também ver com seus próprios olhos Porque é necessário que tenham medo mas também porque devem ser testemunhas e garantias da punição e porque até certo ponto devem tomar parte nela Ser testemunhas é um direito que eles têm e reivindicam um suplício escondido é um suplício de privilegiado e muitas vezes suspeitase que não se realize em toda a sua severidade Todos protestam quando no último instante se retira a vítima aos olhares dos espectadores O caixageral do correio exposto porque matara a mulher é em seguida subtraído à multidão fazemno subir numa carruagem de praça se não estivesse bem escoltado teria sido difícil defendêlo dos maus tratos da populaça que queria justiçálo43 Quando a mulher Lescombat é enforcada tiveram a cautela de lhe esconder o rosto com uma espécie de coifa ela leva um lenço sobre o colo e a cabeça o que faz o público murmurar muito e dizer que não era a Lescombat44 O povo reivindica seu direito de constatar o suplício e quem é supliciado45 Tem direito também de tomar parte O condenado depois de ter andado muito tempo exposto humilhado várias vezes lembrado do horror de seu crime é oferecido aos insultos às vezes aos ataques dos espectadores Na vingança do soberano a do povo era chamada a se insinuar Não que esta seja o fundamento daquela e que o rei deva à sua maneira traduzir a vindita do povo é antes o povo que deve trazer sua participação ao rei quando este vai se vingar de seus inimigos até e principalmente quando esses inimigos estão no meio do povo Há um tal qual serviço de cadafalso que o povo deve à vingança do rei Serviço que fora previsto pelas velhas ordenações o edito de 1347 sobre os blasfemadores previa que seriam expostos no pelourinho desde a primeira hora da manhã até à da morte E se poderá lhes jogar nos olhos lama e outras sujeiras sem pedra ou outra coisa que fira Na segunda vez em caso de reincidência queremos que seja posto no pelourinho em dia de mercado solene e que o lábio superior seja tendido e que apareçam os dentes Sem dúvida na época clássica essa forma de participação ao suplício já não é mais que uma tolerância que se procura limitar por causa das barbaridades que provoca e da usurpação que faz do poder de punir Mas ela pertencia muito intimamente à economia geral dos suplícios e não podia por isso ser totalmente reprimida Ainda se vêem no século XVIII cenas como a do suplício de Montigny enquanto o carrasco executava o condenado as peixeiras de La Halle andavam com um boneco ao qual decepavam a cabeça46 E várias vezes foi preciso proteger da multidão os criminosos que eram obrigados a desfilar lentamente no meio dela ao mesmo tempo para escarmento e alvo ameaça eventual e presa prometida e ao mesmo tempo proibida O soberano ao chamar a multidão para a manifestação de seu poder tolerava um instante as violências que ele permitia como sinal de fidelidade mas às quais opunha imediatamente os limites de seus próprios privilégios Ora é nesse ponto que o povo atraído a um espetáculo feito para aterrorizálo pode precipitar sua recusa do poder punitivo e às vezes sua revolta Impedir uma execução que se considera injusta arrancar um condenado às mãos do carrasco obter à força seu perdão eventualmente perseguir e assaltar os executores de qualquer maneira maldizer os juizes e fazer tumulto contra a sentença isso tudo faz parte das práticas populares que contrariam perturbam e desorganizam muitas vezes o ritual dos suplícios Claro isto sucede com freqüência quando as condenações sancionam revoltas foi o que sucedeu aos seqüestras de crianças quando a multidão queria impedir a execução de três supostos amotinados condenados à forca no cemitério SaintJean porque há menos saídas e desfiladeiros para guardar47 o carrasco amedrontado soltou um dos condenados os arqueiros atiraram Foi o caso depois da sublevação dos trigos em 1775 ou ainda em 1786 quando os trabalhadores diaristas depois de ter marchado sobre Versalhes começaram a libertar os seus que tinham sido presos Mas fora desses casos em que o processo de agitação é provocado anteriormente e por razões que não se referem a uma medida de justiça penal encontramos muitos exemplos em que a agitação é provocada diretamente por um veredicto e uma execução Pequenas mas inúmeras emoções de cadafalso Em suas formas mais elementares essas agitações começam com os encorajamentos as aclamações às vezes que acompanham o condenado até a execução Durante toda a sua longa caminhada ele é sustentado pela compaixão dos que têm coração sensível e os aplausos a admiração a inveja dos que são cruéis e duros48 Se a multidão se comprime em torno do cadafalso não é simplesmente para assistir ao sofrimento do condenado ou excitar a raiva do carrasco é também para ouvir aquele que não tem mais nada a perder maldizer os juizes as leis o poder a religião O suplício permite ao condenado essas saturnais de um instante em que nada mais é proibido nem punível Ao abrigo da morte que vai chegar o criminoso pode dizer tudo e os assistentes aclamálo Se houvesse anais para registrar escrupulosamente as últimas palavras dos supliciados e se tivesse a coragem de percorrêlos se se perguntasse a essa vil população reunida por uma curiosidade cruel em torno dos cadafalsos ela responderia que não há culpado amarrado à roda que não morra acusando o céu da miséria que o levou ao crime reprovando a barbárie de seus juizes maldizendo o ministério dos altares que os acompanha e blasfemando contra Deus de que ele é o instrumento49 Há nessas acusações que só deveriam mostrar o poder aterrorizante do príncipe todo um aspecto de carnaval em que os papéis são invertidos os poderes ridicularizados e os criminosos transformados em heróis A infâmia se transforma no contrário a coragem deles seus gritos e lamentos só podem preocupar a lei Fielding observa com pesar Quando se vê tremer um condenado não se pensa na vergonha E menos ainda se ele é arrogante50 Para o povo que aí está e olha sempre existe mesmo na mais extremada vingança do soberano pretexto para uma revanche Ainda mais se a condenação é considerada injusta E se vê levar à morte um homem do povo por um crime que teria custado a alguém mais bem nascido ou mais rico uma pena relativamente leve Parece que certas práticas da justiça penal não eram mais suportadas no século XVIII e talvez desde há muito tempo pelas camadas profundas da população O que facilmente dava lugar pelo menos a começos de agitação Já que os mais pobres observa um magistrado não têm possibilidade de ser ouvidos na justiça51 eles podem intervir fisicamente onde quer que ela se manifeste publicamente onde quer que eles sejam chamados como testemunhas e quase coadjutores dessa justiça entrando violentamente no mecanismo punitivo e redistribuindo os efeitos dele repetindo em outro sentido a violência dos rituais punitivos Agitação contra a diferença das penas segundo as classes sociais em 1781 o cura de Champré foi morto pelo senhor do local que muitos querem fazer passar por louco os camponeses furiosos porque eram extremamente ligados ao seu pastor pareceram primeiro dispostos a ir aos últimos excessos contra seu senhor cujo castelo ameaçaram incendiar Todo mundo reclamava com razão contra a indulgência do ministério que retirava à justiça os meios de punir um crime tão abominável52 Agitação também contra as penas excessivamente pesadas para os delitos freqüentes e considerados pouco graves latrocínio com arrombamento ou contra castigos que punem certas infrações ligadas a condições sociais como o furto doméstico a pena de morte para esse crime provocava muito descontentamento porque os criados eram numerosos e era difícil para eles nesse assunto provar sua inocência podiam ser facilmente vítimas da maldade dos patrões e a indulgência de certos senhores que fechavam os olhos tornava mais iníqua a sorte dos servidores acusados condenados e enforcados A execução desses criados muitas vezes dava lugar a protestos53 Houve uma pequena revolta em Paris em 1761 por causa de uma criada que roubara um pedaço de tecido do patrão Apesar da restituição apesar das súplicas este não quis retirar a queixa no dia da execução o pessoal do bairro impede o enforcamento invade a loja do comerciante e a saqueia a empregada é finalmente perdoada mas uma mulher que quase picotara a agulhadas o mau patrão é banida por três anos54 No século XVIII recordamse os grandes casos judiciais em que a opinião das pessoas esclarecidas intervém junto com a dos filósofos e certos magistrados Calas Sirven o cavaleiro de La Barre Mas falase menos de todas essas agitações populares em torno da prática punitiva Raramente com efeito elas ultrapassaram o âmbito de uma cidade às vezes de um bairro Tiveram entretanto real importância Porque esses movimentos partindo de baixo se propagaram chamaram a atenção de gente mais bem colocada que ao chamar a atenção para eles lhes deram uma nova dimensão assim nos anos que precederam a Revolução os casos de Catherine Espinas falsamente acusada de parricídio em 1785 os três condenados à roda de Chaumont para quem Dupaty em 1786 escrevera sua famosa memória ou daquela Marie Françoise Salmon que o parlamento de Rouen em 1782 condenara à fogueira como envenenadora mas que em 1786 continuava sem ser executada E também porque essas agitações conservaram em torno da justiça penal e de suas manifestações que deveriam ter sido exemplares uma inquietação permanente Quantas vezes para manter a calma em volta dos cadafalsos foi necessário tomar providências penosas para o povo e precauções humilhantes para a autoridade55 Viase bem que o grande espetáculo das penas corria o risco de retornar através dos mesmos a quem se dirigia O pavor dos suplícios na realidade acendia focos de ilegalismo nos dias de execução o trabalho era interrompido as tabernas ficavam cheias lançavamse injúrias ou pedras ao carrasco aos policiais e aos soldados procuravase apossar do condenado para salválo ou para melhor matálo brigava se e os ladrões não tinham ocasião melhor que o aperto e a curiosidade em torno do cadafalso56 Mas principalmente e aí é que esses inconvenientes se tornavam um perigo político em nenhuma outra ocasião do que nesses rituais organizados para mostrar o crime abominável e o poder invencível o povo se sentia mais próximo dos que sofriam a pena em nenhuma outra ocasião ele se sentia mais ameaçado como eles por uma violência legal sem proporção nem medida A solidariedade de toda uma camada da população com os que chamaríamos pequenos delinqüentes vagabundos falsos mendigos maus pobres batedores de carteira receptadores passadores se manifestou com muita continuidade atestam esse fato a resistência ao policiamento a caça aos denunciantes os ataques contra as sentinelas ou os inspetores57 E era a ruptura dessa solidariedade que visava sempre mais a repressão penal e policial Muito mais do que o poder soberano podia essa solidariedade sair reforçada da cerimônia dos suplícios dessa festa incerta onde a violência era instantaneamente reversível E os reformadores do século XVIII e XIX não esquecerão que as execuções no fim das contas simplesmente não assustavam o povo Um de seus primeiros apelos foi exigir a suspensão delas Para definir o problema político trazido pela intervenção popular na ação do suplício basta citar duas cenas Uma data do fim do século XVII situase em Avignon Aí encontramos os principais elementos do teatro do tormento confrontação física do carrasco e do condenado a inversão da justa o executor perseguido pelo povo o condenado salvo pelos revoltosos e a violenta reviravolta da maquinaria penal Ia ser enforcado um assassino chamado Pierre du Fort várias vezes ele prendeu os pés nos degraus e não pôde ficar suspenso no vazio Vendo isso o carrasco lhe cobriu o rosto com seu gibão e lhe batia por baixo do joelho sobre o estômago e a barriga Vendo o povo que ele o fazia sofrer demais e pensando mesmo que o degolava com uma baioneta tomado de compaixão pelo paciente e de fúria contra o carrasco jogou pedras contra ele enquanto isto o carrasco abriu as duas escadas e jogou a vitima para baixo saltandolhe sobre os ombros e pisandoa enquanto a mulher do dito carrasco o puxava pelos pés por baixo da forca Fizeramlhe sair sangue da boca Mas a chuva de pedras contra ele aumentou houve até algumas que atingiram o enforcado na testa o que obrigou o carrasco a subir a escada de onde desceu com tanta precipitação que caiu no meio dela e deu com a cabeça no chão E a multidão se lançou sobre ele Este se levantou com uma baioneta na mão ameaçando matar quem se aproximasse mas depois de cair e se levantar várias vezes apanhou muito do povo que o emporcalhou e o afogou no riacho arrastandoo em seguida com grande paixão e fúria até à Universidade e de lá até o cemitério dos Cordeliers Seu criado igualmente surrado com a cabeça e o corpo machucados foi levado ao hospital onde morreu alguns dias depois Entretanto alguns forasteiros e desconhecidos subiram a escada e cortaram a corda do enforcado enquanto outros o recebiam por baixo depois de ter ficado pendurado o tempo maior que um grande Miserere E ao mesmo tempo quebraram a forca e o povo fez em pedaços a escada do carrasco As crianças atiraram a forca com grande precipitação no Ródano Quanto ao supliciado foi transportado para um cemitério para não ser apanhado pela justiça e de lá para a Igreja de SaintAntoine O arcebispo lhe concedeu o perdão mandou transportálo para o hospital e recomendou aos oficiais que tomassem com ele um cuidado todo especial Enfim acrescenta o redator da ata mandamos fazer uma roupa nova dois pares de meias sapatos vestimolo de novo da cabeça aos pés Os nossos confrades lhe deram camisas calções luvas e uma peruca58 A outra cena se situa em Paris um século mais tarde Foi em 1775 logo depois da revolta sobre os trigos A tensão muito forte no povo faz com que se deseje uma execução limpa Entre o cadafalso e o público cuidadosamente mantido à distância uma dupla fileira de soldados vigia de um lado a execução iminente de outro a revolta possível O contato está rompido suplício público mas onde a parte do espetáculo é neutralizada ou melhor reduzida à intimidação abstrata Ao abrigo das armas numa praça vazia a justiça sobriamente executa Se ela mostra a morte que dá é de cima e de longe Só às três horas da tarde tinham sido colocadas as duas forcas de 18 pés de altura e sem dúvida para maior exemplo Desde as duas horas a praça de Grève e todos os arredores tinham sigo guarnecidos por destacamentos das diferentes tropas tanto a pé quanto a cavalo os suíços e as guardas francesas continuavam suas patrulhas nas ruas adjacentes Não foi permitida a entrada de ninguém na Grève durante a execução e em toda a volta se via uma dupla fileira de soldados com a baioneta no fuzil enfileirados de costas uns para os outros de maneira que uns olhassem o exterior e outros o interior da praça os dois infelizes gritavam ao longo do caminho que eram inocentes e continuavam a protestar da mesma maneira subindo na escada59 No abandono da liturgia dos suplícios que papel tiveram os sentimentos de humanidade para com os condenados Houve de todo modo de parte do poder um medo político diante do efeito desses rituais ambíguos Tal equívoco aparece claramente no que se poderia chamar discurso de cadafalso O rito da execução previa que o próprio condenado proclamasse sua culpa reconhecendoa publicamente de viva voz pelo cartaz que levava e também pelas declarações que sem dúvida era obrigado a fazer No momento da execução parece que lhe deixavam além disso tomar a palavra não para clamar sua inocência mas para atestar seu crime e a justiça de sua condenação As crônicas reportam um bom número de discursos desse gênero Discursos reais Sem dúvida num certo número de casos Discursos fictícios que em seguida se faziam circular para exemplo e exortação Foi sem dúvida ainda o caso mais freqüente Que crédito dar ao que se conta por exemplo da morte de Marion Le Goff famosa chefe de quadrilha na Bretanha em meados do século XVIII Ela teria gritado do alto do cadafalso Pai e mãe que me ouvem guardai e ensinai bem vossos filhos fui em minha infância mentirosa e preguiçosa comecei roubando uma faquinha de seis réis depois assaltei mascates mercadores de gado enfim comandei uma quadrilha de ladrões e por isso estou aqui Dizei isso a vossos filhos e que ao menos lhes sirva de exemplo60 Tal discurso se parece demais até nos termos da moral tradicionalmente encontrada nos folhetins nos pasquins e na literatura popular para que não seja apócrifo Mas a existência do gênero últimas palavras de um condenado é em si mesma significativa A justiça precisava que sua vítima autenticasse de algum modo o suplício que sofria Pediase ao criminoso que consagrasse ele mesmo sua própria punição proclamando o horror de seus crimes faziamno dizer como Jean Dominique Langlade três vezes assassino Escutai todos minha ação horrível infame e lamentável cometida na cidade de Avignon onde minha lembrança é execrável ao violar sem humanidade os direitos sagrados da amizade61 De um certo ponto de vista o folhetim e o canto do morto são a continuação do processo ou antes eles continuam o mecanismo pelo qual o suplício fazia passar a verdade secreta e escrita do processo para o corpo para o gesto e as palavras do criminoso A justiça precisava desses apócrifos para se fundamentar na verdade Suas decisões eram assim cercadas de todas essas provas póstumas Acontecia também que eram publicadas narrativas de crimes e de vidas infames a título de pura propaganda antes da qualquer processo e para forçar a mão de uma justiça que se suspeitava de ser excessivamente tolerante A fim de desacreditar os contrabandistas a Compagnie des Fermes publicava boletins contando os crimes deles em 1768 contra um certo Montagne que estava à frente de um bando ela distribui folhetins de que diz o próprio redator Foramlhe atribuídos alguns roubos cuja verdade é bastante incerta representaram Montagne como uma besta fera uma segunda hiena que tinha que ser caçada como as cabeças no Auvergne andavam quentes a idéia pegou62 Mas o efeito e o uso dessa literatura eram equívocos O condenado se tornava herói pela enormidade de seus crimes largamente propalados e às vezes pela afirmação de seu arrependimento tardio Contra a lei contra os ricos os poderosos os magistrados a polícia montada ou a patrulha contra o fisco e seus agentes ele aparecia como alguém que tivesse travado um combate em que todos se reconheciam facilmente Os crimes proclamados elevavam à epopéia lutas minúsculas que as trevas acobertavam todos os dias Se o condenado era mostrado arrependido aceitando o veredicto pedindo perdão a Deus e aos homens por seus crimes era visto purificado morria à sua maneira como um santo Mas até sua irredutibilidade lhe dava grandeza não cedendo aos suplícios mostrava uma força que nenhum poder conseguia dobrar No dia da execução poucos acreditarão nisto viramme sem emoção afazer confissão pública senteime enfim sobre a cruz sem mostrar nenhum temor63 Herói negro ou criminoso reconciliado defensor do verdadeiro direito ou força indomável o criminoso dos folhetins das novelas dos almanaques das bibliotecas azuis64 representa sob a moral aparente do exemplo que não deve ser seguido toda uma memória de lutas e confrontos Já houve condenado que depois da morte se tornaram uma espécie de santos de memória venerada e túmulo respeitado65 Alguns passaram quase inteiramente para o lado do herói positivo Para outros a glória e a abominação não estavam dissociadas mas coexistiam muito tempo ainda numa figura reversível Em toda essa literatura de crimes que prolifera em torno de algumas grandes silhuetas66 não se deve ver certamente nem uma expressão popular em estado puro nem tampouco uma ação combinada de moralização e propaganda vinda de cima era um lugar em que se encontravam dois investimentos da prática penal uma espécie de frente de luta em torno do crime de sua punição e lembrança Se esses relatos podem ser impressos e postos em circulação é certamente porque se esperam deles efeitos de controle ideológico67 fábulas verídicas da pequena história Mas se são recebidos com tanta atenção se fazem parte das leituras de base das classes populares é porque elas aí encontram não só lembranças mas pontos de apoio o interesse de curiosidade é também um interesse político De modo que esses textos podem ser lidos como discursos com duas faces nos fatos que contam na divulgação que dão a eles e na glória que conferem a esses criminosos designados como ilustres e sem dúvida nas próprias palavras que empregam seria preciso estudar o uso de categorias como as de desgraça abominações ou os qualificativos de famoso lamentável em relatos como História da vida grandes roubos e espertezas de Guilleri e seus companheiros e seu fim lamentável e desgraçado68 É preciso sem dúvida aproximar dessa literatura as emoções de cadafalso onde se defrontavam através do corpo do supliciado o poder que condenava e o povo que era testemunha participante a vítima eventual e eminente daquela execução A seqüência de uma cerimônia que canalizava mal as relações de poder que pretendia ritualizar Foi invadido por uma massa de discursos que continuava o mesmo confronto a proclamação póstuma dos crimes justificava a justiça mas também glorificava o criminoso Por isso os reformadores do sistema penal logo pediram a supressão desses folhetins69 Por isso houve no meio do povo um tão grande interesse por aquilo que desempenhava um pouco o papel da epopéia menor e cotidiana das ilegalidades Por isso eles perderam importância à medida que se modificou a função política da ilegalidade popular E desapareceram à medida que se desenvolveu uma literatura do crime totalmente diferente uma literatura em que o crime é glorificado mas porque é uma das belasartes porque só pode ser obra de seres de exceção porque revela a monstruosidade dos fortes e dos poderosos porque a perversidade é ainda uma maneira de ser privilegiado do romance negro a Quincey ou do Château dOtrante a Baudelaire há toda uma reescrita estética do crime que é também a apropriação da criminalidade sob formas aceitáveis É aparentemente a descoberta da beleza e da grandeza do crime na realidade é a afirmação de que a grandeza também tem direito ao crime e se torna mesmo privilégio dos que são realmente grandes Os belos assassinatos não são para os pobres coitados de ilegalidade Quanto à literatura policial a partir de Gaboriau ela dá seqüência a esse primeiro deslocamento por suas astúcias sutilezas e extrema vivacidade de sua inteligência o criminoso tornou se insuspeitável e a luta entre dois puros espíritos o de assassino e o detetive constituirá a forma essencial do confronto Estamos muito longe daqueles relatos que detalhavam a vida e as más ações do criminoso que o faziam confessar ele mesmo seus crimes e que contavam com minúcias o suplício sofrido passouse da exposição dos fatos ou da confissão ao lento processo da descoberta do momento do suplício à fase do inquérito do confronto físico com o poder à luta intelectual entre o criminoso e o inquisidor Não são simplesmente os folhetins que desaparecem ao nascer a literatura policial é a glória do malfeitor rústico e é a sombria heroicização pelo suplício O homem do povo agora é simples demais para ser protagonista das verdades sutis Nesse novo gênero não há mais heróis populares nem grandes execuções os criminosos são maus mas inteligentes e se há punição não há sofrimento A literatura policial transpõe para outra classe social aquele brilho de que o criminoso fora cercado São os jornais que trarão à luz nas colunas dos crimes e ocorrências diárias a mornidão sem epopéia dos delitos e punições Está feita a divisão que o povo se despoje do antigo orgulho de seus crimes os grandes assassinatos tornaramse o jogo silencioso dos sábios NOTAS CAPÍTULO I 1 Pièces originales et procédures du procès fait à RobertFrançois Damiens 1757 t III p 372374 2 Gazette dAmsterdam 1 abr 1757 3 Citado in A L Zevaes Damiens le régicide 1937 p 201214 4 L Faucher De la réforme des prisions 1838 p 274282 5 Robert Vaux Notices citado in NK Teeters They were in prison 1937 p 24 6 Archives parlamentaires 2a série t LXXII 1 dez 1831 7 C de Beccaria Traité des délits et des peines 1764 p 101 da edição dada por F Hélie em 1856 e que será citada aqui 8 B Rush diante da Society for promoting political enquiries in NK Teeters The Cradle of the Penitentiary 1935 p 30 9 Annales de la Charité vol II 1847 p 529530 10 Texto anônimo publicado em 1701 11 Suplício dos traidores descrito por W Blackstone Commentaire sur le Code criminel anglais trad 1776 vol I p 105 Como a tradução se destinava a valorizar a humanidade da legislação inglesa em oposição à velha Ordenação de 1760 o comentador acrescenta Nesse suplício aterrorizante como espetáculo o culpado não sofre muito nem por muito tempo 12 Cf Ch Hibbert The Roots of Evil ed de 1866 p 8586 13 Le Peletier de SaintFargeau Archives parlementaires t XXVI 3 jun 1791 p 720 14 A Louis Relatório sobre a guilhotina citado por SaintEdme Dictionnaire de pénalité 1825 t IV p 161 15 Tema freqüente na época um criminoso na medida em que é monstruoso deve ser privado de luz não ver não ser visto Para o parricida se devia fabricar uma jaula de ferro ou cavar uma masmorra impenetrável que lhe servisse de retiro eterno De Molène De 1humanité des lois criminelles 1830 p 275277 16 Gazette des tribunaux 30 ago 1832 17 G de Mably De la législation Oeuvres complètes 1789 t IX p 326 18 E Durkheim Deux lois de lévolution penale in Année sociologique IV 18991900 19 De qualquer modo sermeia impossível medir por referências ou citações o que este livro deve a G Deleuze e ao trabalho feito por ele com F Guattari Eu deveria igualmente citar muitas páginas do psicanalismo de R Castel e dizer o quanto devo a P Nora 20 G Rusche e O Kirchheimer Punishment and Social Structures 1939 21 VE Le RoyLadurie Lhistoire immobile in Annales maijun 1974 22 E Kantorowitz The Kings Two Bodies 1959 23 Só estudarei o nascimento da prisão no sistema penal francês As diferenças entre os desenvolvimentos históricos e as instituições tornariam muito pesada a tarefa de entrar em detalhes e excessivamente esquemático o trabalho de fornecer o fenômeno de conjunto CAPÍTULO II 1 JA Soulatges Traité des crimes 1762 I p 169171 2 Cf artigo de P Petrovitch in Crime et criminalité en France XVleXVIle siècles 1971 p 226s 3 P Dautricourt La criminalité et la répression au Parlement de Flandre 17211790 1912 4 É o que indicava Choiseul a respeito da declaração de 3 de agosto de 1764 sobre os vagabundos Mémoire expositif BN ms 8129 fl 128129 5 Encyclopédie verbete suplício 6 A expressão é de Olyffe An Essay to Prevent Capital Crimes 1731 7 Até o século XVIII longas discussões para se saber se no decorrer das interrogações capciosas era lícito ao juiz usar falsas promessas mentiras palavras de duplo sentido Toda uma casuística da máfé judiciária 8 P Ayrault LOrdre formalité et Instruction Judiciaire 1576 L III cap LXXII e LXXIX 9 D Jousse Traité de la justice criminelle 1771 vol I p 660 10 PF Muyart de Vouglans Institutes au droit criminel 1757 p 345347 11 Poullain du Parc Príncipes du droit français selon les coutumes de Bretagne 1767 1771 t XI p 112113 VA Esmein Histoire de la procédure criminelle en France 1882 p 260283 KJ Mittermaier Traité de la preuve trad 1848 p 1519 12 G Seigneux de Correvon Essai sur 1usage Tabus et les inconvénients de la torture 1768 p 63 13 P Ayrault LOrdre formalité et instruction judiciaire LI cap 14 14 Nos catálogos das provas judiciárias a confissão aparece pelo século XIIIXIV Não é encontrada em Bernard de Pavie mas em Hostiemis Aliás a fórmula de Crater é característica Aut legitime convictus aut sponte confessus No direito medieval a confissão só era válida se feita por um maior e diante do adversário VJ Ph Lévy La Hiérarchie des preuves dans le droit savant du Moyen Âge 1939 15 A mais famosa dessas críticas é a de Nicolas Si la torture est um moyen à verifier les crimes 1682 16 Cl Ferrière Dictionnaire de pratique 1740 t II p 612 17 Em 1729 Aguesseau mandou fazer uma pesquisa sobre os meios e as regras de tortura aplicados na França Foi resumida por Joly de Fleury BN Fonds Joly de Fleury 258 vols 322328 18 O primeiro grau do suplício era o espetáculo desses instrumentos As crianças e os velhos demais de setenta anos não tinham acesso a outro espetáculo além deste 19 G du Rousseaud de la Combe Traité des matières criminelles 1741 p 503 20 SP Hardy Mes loisirs BN ms 668087 t IV p 80 1778 21 SP Hardy Mes loisirs t I p 327 só o tomo I está impresso 22 Arquivos municipais de Nantes FF 124 VP Parfouru Mémoires de la société archéologique dIlleetVilaine 1896 t XXV 23 Citado in P Dautricourt op cit p 269270 24 SP Hardy Mes loisirs t I p 13 t IV p 42 t V p 134 25 P Risi Observations sur les matières de jurisprudence criminelle 1768 p 9 com referência a Cocceius Dissertationes ad Grotium XII 545 26 PF Muyart de Vouglans Les Lois criminelles de France 1780 p XXXIV 27 D Jousse Traité de la justice criminelle 1777 p VII 28 PF Muyart de Vouglans Les Lois criminelles de France 1780 p XXXIV 29 Ibid 30 Citado in A Corre Documente pour servir à 1histoire de la torture judiciaire en Bretagne 1896 p 7 31 A Bruneau Observations et maximes sur les matières criminelles 1715 p 259 32 J de Damhoudère Pratique judiciaire ès causes civiles 1572 p 219 33 A Gazette des tribunaux de 6 de julho de 1837 descreve segundo o Journal de Gloucester o comportamento atroz e asqueroso de um executor que depois de ter enforcado um condenado tomou o cadáver pelos ombros fêlo voltarse sobre si mesmo com violência e lhe bateu várias vezes dizendo Palhaço está morto que chega Depois voltandose para a multidão disse em tom de troça as frases mais indecentes 34 Cena anotada por TS Gueulette quando a execução do policial Montigny em 1737 Cf R Anchel Crimes et chátiments au XVIIIe siècle 1983 p 6269 35 Cf L Duhamel Les exécutions capitales à Avignon 1890 p 25 36 Na Borgonha por exemplo cf Chassanée Consuetudo Burgundi fl 55 37 F Serpillon Code criminel 1767 t III p 1100 Blackstone É evidente que se um criminoso condenado a ser enforcado até que sobrevenha a morte escapa a esta por inabilidade do executor em algum ponto o xerife tem que renovar a execução porque a sentença não foi executada e que se as pessoas se deixassem levar por essa falsa compaixão abrirseia a porta a uma infinidade de tramóias Commentaire sur le Code criminel dAngleterre trad francesa 1776 p 201 38 Ch Loyseau Cinq livres du droit des offices ed de 1616 p 8081 39 VSP Hardy 30 jan 1769 p 125 do volume impresso 14 dez 1779 p 229 R Anchel Crimes et chátiments au XVIIIe siècle p 162163 conta a história de Antoine Bulleteix que já está ao pé do cadafalso quando chega um cavaleiro trazendo o famoso pergaminho Gritam viva o Rei levam Bulleteix para a taverna enquanto o escrivão recolhe dinheiro para ele no chapéu 40 Brantôme Mémoires La vie des hommes illustres ed de 1722 t II p 191192 41 CE de Pastoret a respeito da pena dos regicidas Des lois pénales 1790 vol II p 61 42 A Bruneau Observations et maximes sur les affaires criminelles 1715 Prefácio não paginado da primeira parte 43 SP Hardy Mes loisirs vol I impresso p 328 44 TS Gueulette citado por R Anchel Crimes et chátiments au XVIIIe siècle p 7071 45 Na primeira vez em que a guilhotina foi utilizada a Chronique de Paris conta que o povo se queixava porque não via nada e cantava Queremos nossas forcas de volta VJ Laurence A History of Capital Punishment 1432 p 71s 46 TS Gueulette citado por R Anchel p 63 A cena se passa em 1737 47 Marquês de Argenson Journal et mémoires vol VI p 241 Cf o Journal de Barbier t IV p 455Um dos primeiros episódios desse caso é aliás muito característico da agitação popular no século XVIII em torno da justiça penal O tenentegeral de polícia Berryer mandara recolher as crianças libertinas e vadias os policiais só consentem em devolvê las aos pais à força de dinheiro murmurase que é para servir aos prazeres do rei A multidão que apanhou um denunciante o massacra com uma desumanidade até o último excesso e o arrasta depois de morto com a corda no pescoço até a porta do senhor Berryer Ora esse denunciante era um ladrão que deveria ter sido posto na roda com seu companheiro Baffiat se não tivesse aceito o papel de denunciante da polícia o conhecimento que tinha dos fios de todas as intrigas tornavamno apreciado pela polícia e ele era muito estimado em sua nova profissão Temos aí um exemplo muito carregado um movimento de revolta provocado por um meio de repressão relativamente novo e que não é a justiça penal mas a polícia um caso dessa colaboração técnica entre delinqüentes e policiais que se torna sistemática a partir do século XVIII um motim em que o povo se encarrega de supliciar um condenado que escapou indevidamente ao cadafalso 48 H Fielding An Inquiry in The Causes of the Late Increase of Robbers 1751 p 61 49 A Boucher dArgis Observations sur les lois criminelles 1781 p 128129 Boucher dArgis era conselheiro no Châtelet 50 H Fielding loc cit p 41 51 C Dupaty Mémoire pour trois hommes condamnés à la roue 1786 p 247 52 SP Hardy Mes loisirs 14 de janeiro de 1781 t IV p 394 53 Sobre o descontentamento provocado por esse tipo de condenação v Hardy Mes loisirs t I p 319 t III p 227228 t IV p 180 54 Transmitido por R Anchel Crimes et chátiments au XVIIIe siècles 1937 p 226 55 Marquês de Argenson Journal et Mémoires t VI p 241 56 Hardy relata numerosos casos desses assim como o roubo considerável cometido na própria casa onde o tenente encarregado do setor criminal estava instalado para assistir a uma execução Mes loisirs t IV p 56 57 VD Richet La France moderne 1974 p 118119 58 L Duhamel Les Exécutions capitales à Avignon au XVIIIe siècle 1890 p 56 Cenas desse gênero ainda se passaram no século XIX J Laurence cita algumas em A History of Capital Punishment 1932 p 195198 e p 56 59 SP Hardy Mes loisirs t III 11 de maio de 1775 p 67 60 Corre Documents de criminologie rétrospective 1896 p 257 61 Citado in L Duhamel p 32 62 Arquivos do PuydeDôme Citado in M Juillard Brigandage et contrabande en haute Auvergne au XVIIIe siècle 1937 p 24 63 Queixa de JD Langlade executado em Avignon a 12 de abril de 1768 64 Biblioteca azul era uma coleção de livros populares de capa azul geralmente adaptações de romances medievais de cavalaria NT 65 Foi o caso de Tanguy executado na Bretanha por volta de 1940 É verdade que antes de ser condenado ele começara uma longa penitência ordenada pelo confessor Conflito entre a justiça civil e a penitência religiosa Vide sobre o assunto A Corre Documents de criminologie rétrospective 1895 p 21 Corre se refere a Trevedy Une promenade à la montagne de justice et à la tombe Tanguy 66 Aqueles que R Mandrou chama os dois grandes Cartouche e Mandrin a quem se deve acrescentar Guilleri De la culture populaire aux XVIIe et XVIIle siècles 1964 p 112 Na Inglaterra Jonathan Wild Jack Sheppard Claude Duval tinham um papel bastante semelhante 67 A impressão e a difusão dos almanaques folhetins etc estava em princípio sob rígido controle 68 Encontramos esse título tanto na Biblioteca Azul da Normandia quanto na de Troyes v R Helot La Bibliothèque bleue en Normandie 1928 69 V por ex Lacrecelle Para satisfazer essa necessidade de emoções fortes que nos atormenta para aprofundar a impressão de um grande exemplo deixamse circular essas histórias horrorosas então os poetas do povo delas se apoderam divulgandoas por toda parte Alguma família um dia ouve cantar à sua porta o crime e o suplício de seus filhos Discours sur les peines infamantes 1784 p 106 Segunda Parte PUNIÇÃO CAPÍTULO I A PUNIÇÃO GENERALIZADA Que as penas sejam moderadas e proporcionais aos delitos que a de morte só seja imputada contra os culpados assassinos e sejam abolidos os suplícios que revoltem a humanidade1 O protesto contra os suplícios é encontrado em toda parte na segunda metade do século XVIII entre os filósofos e teóricos do direito entre juristas magistrados parlamentares nos chaiers de doléances2 e entre os legisladores das assembléias É preciso punir de outro modo eliminar essa confrontação física entre soberano e condenado esse conflito frontal entre a vingança do príncipe e a cólera contida do povo por intermédio do supliciado e do carrasco O suplício tornouse rapidamente intolerável Revoltante visto da perspectiva do povo onde ele revela a tirania o excesso a sede de vingança e o cruel prazer de punir3 Vergonhoso considerado da perspectiva da vítima reduzida ao desespero e da qual ainda se espera que bendiga o céu e seus juizes por quem parece abandonada4 Perigoso de qualquer modo pelo apoio que nele encontram uma contra a outra a violência do rei e a do povo Como se o poder soberano não visse nessa emulação de atrocidades um desafio que ele mesmo lança e que poderá ser aceito um dia acostumado a ver correr sangue o povo aprende rápido que só pode se vingar com sangue5 Nessas cerimônias que são objeto de tantas investidas adversas percebemse o choque e a desproporção entre a justiça armada e a cólera do povo ameaçado Nessa relação Joseph de Maistre reconhecerá um dos mecanismos fundamentais do poder absoluto o carrasco forma a engrenagem entre o príncipe e o povo a morte que ele leva é como a dos camponeses escravizados que construíram São Petersburgo por cima dos pântanos e das pestes ela é princípio de universalidade da vontade singular do déspota ela faz uma lei para todos e de cada um desses corpos destruídos uma pedra para o Estado que importa que atinja inocentes Nessa mesma violência ritual e dependente do caso os reformadores do século XVIII denunciaram ao contrário o que excede de um lado e de outro o exercício legítimo do poder a tirania segundo eles se opõe à revolta elas se reclamam reciprocamente Duplo perigo É preciso que a justiça criminal puna em vez de se vingar Essa necessidade de um castigo sem suplício é formulada primeiro como um grito do coração ou da natureza indignada no pior dos assassinos uma coisa pelo menos deve ser respeitada quando punimos sua humanidade Chegará o dia no século XIX em que esse homem descoberto no criminoso se tornará o alvo da intervenção penal o objeto que ela pretende corrigir e transformar o domínio de uma série de ciências e de práticas estranhas penitenciárias criminológicas Mas nessa época das Luzes não é como tema de um saber positivo que o homem é posto como objeção contra a barbárie dos suplícios mas como limite de direito como fronteira legítima do poder de punir Não o que ela tem de atingir se quiser modificálo mas o que ela deve deixar intato para estar em condições de respeitálo Noli me tangere Marca o ponto de parada imposto à vingança do soberano O homem que os reformadores puseram em destaque contra o despotismo do cadafalso é também um homemmedida não das coisas mas do poder O problema portanto é como esse homemlimite serviu de objeção à prática tradicional dos castigos De que maneira ele se tornou a grande justificação moral do movimento de reforma Por que esse horror tão unânime pelos suplícios e tal insistência lírica por castigos que fossem humanos Ou o que dá no mesmo como se articulam um sobre o outro numa única estratégia esses dois elementos sempre presentes na reivindicação de uma penalidade suavizada medida e humanidade São esses elementos tão necessários e no entanto tão incertos tão confusos e ainda tão associados na mesma relação duvidosa que encontramos hoje sempre que abordamos o problema de uma economia dos castigos Temse a impressão de que o século XVIII abriu a crise dessa economia e propôs para resolvêla a lei fundamental de que o castigo deve ter a humanidade como medida sem poder dar um sentido definitivo considerado entretanto incontornável É preciso então contar o nascimento e a primeira história dessa enigmática suavidade Glorificamse os grandes reformadores Beccaria Servan Dupaty ou Lacretelle Duport Pastoret Target Bergasse os redatores dos Cahiers e os Constituintes por terem imposto essa suavidade a um aparato judiciário e a teóricos clássicos que já no fim do século XVIII a recusavam e com um rigor argumentado6 Temos entretanto que recolocar essa reforma num processo que os histo riadores isolaram recentemente ao estudar os arquivos judiciários o afrouxamento da penalidade no decorrer do século XVIII ou de maneira mais precisa o duplo movimento pelo qual durante esse período os crimes parecem perder violência enquanto as punições reciprocamente reduzem em parte sua intensidade mas à custa de múltiplas intervenções Desde o fim do século XVII com efeito notase uma diminuição considerável dos crimes de sangue e de um modo geral das agressões físicas os delitos contra a propriedade parecem prevalecer sobre os crimes violentos o roubo e a vigarice sobre os assassinatos os ferimentos e golpes a delinqüência difusa ocasional mas freqüente das classes mais pobres é substituída por uma delinqüência limitada e hábil os criminosos do século XVII são homens prostrados mal alimentados levados pelos impulsos e pela cólera criminosos de verão os do XVIII velhacos espertos matreiros que calculam criminalidade de marginais7 modificase enfim a organização interna da delinqüência os grandes bandos de malfeitores assaltantes formados em pequenas unidades armadas tropas de contrabandistas que faziam fogo contra os agentes do Fisco soldados licenciados ou desertores que vagabundeiam juntos tendem a se dissociar mais bem caçados sem dúvida obrigados a se fazer menores para passar despercebidos não mais que um punhado de homens muitas vezes contentamse com operações mais furtivas com menor demonstração de forças e menores riscos de massacres A liquidação física ou o deslocamento institucional de grandes quadrilhas deixa depois de 1755 o campo livre para urna delinqüência antipropriedade que agora se mostra individualista ou passa a ser exercida por grupos bem pequenos compostos de ladrões de capote ou batedores de carteira em número não superior a quatro pessoas8 Um movimento global faz derivar a ilegalidade do ataque aos corpos para o desvio mais ou menos direto dos bens e da criminalidade de massa para um criminalidade das bordas e margens reservada por um lado aos profissionais Tudo se passa como se tivesse havido uma baixa progressiva do nível das águas um desarmamento das tensões que reinam nas relações humanas um melhor controle dos impulsos violentos9 e como se as práticas ilegais tivessem afrouxado o cerco sobre o corpo e se tivessem dirigido a outros alvos Suavização dos crimes antes da suavização das leis Ora essa transformação não pode ser separada de vários processos que lhe armam uma base e em primeiro lugar como nota P Chaunu de uma modificação no jogo das pressões econômicas de uma elevação geral do nível de vida de um forte crescimento demográfico de uma multiplicação das riquezas e das propriedades e da necessidade de segurança que é uma conseqüência disso10 Além disso constatase no decorrer do século XVIII que a justiça se torna de certo modo mais pesada e seus textos em vários pontos agravam a severidade na Inglaterra dos 223 crimes capitais que se encontravam definidos no começo do século XIX 156 haviam sido durante os últimos cem anos11 na França a legislação sobre a vadiagem fora renovada e agravada várias vezes desde o século XVII um exercício mais apertado e mais meticuloso da justiça tende a levar em conta toda uma pequena delinqüência que antigamente ela deixava mais facilmente escapar Ela tornase no século XVIII mais lenta mais pesada mais severa com o roubo cuja freqüência relativa aumentou e contra o qual toma agora ares burgueses de justiça de classe12 o crescimento na França principalmente mas mais ainda em Paris de um aparelho policial que impedia o desenvolvimento de uma criminalidade organizada e a céu aberto deslocaa para formas mais discretas E a esse conjunto de precauções deve se acrescentar a crença bastante generalizada num aumento incessante e perigoso dos crimes Enquanto os historiadores de hoje constatam uma diminuição das grandes quadrilhas de malfeitores Le Trosne por sua vez os via abaterse como nuvens de gafanhotos sobre todo o campo francês São insetos vorazes que devastam diariamente a subsistência dos agricultores São para falar claramente tropas inimigas espalhadas pela superfície do território que nele vivem à vontade como num país conquistado e retiram verdadeiras contribuições a título de esmola custariam para os camponeses mais pobres mais que o imposto direto taille pelo menos um terço onde o tributo é mais alto13 A maior parte dos observadores sustenta que a delinqüência aumenta é claro que os partidários de maior rigor é que o afirmam afirmamno também os que pensam que uma justiça mais comedida em suas violências seria mais eficaz menos disposta a recuar por si mesma diante de suas próprias conseqüências14 afirmamno os magistrados que pretendem que o número de processos é excessivo a miséria do povo e a corrupção dos costumes multiplicaram os crimes e os culpados15 mostrao em todo caso a prática real dos tribunais Já é mesmo a era revolucionária e imperial que é anunciada pelos últimos anos do Antigo Regime Chamará a atenção nos processos de 17821789 o aumento dos perigos Severidade em relação aos pobres recusa combinada de testemunho aumento recíproco das desconfianças dos ódios e medos16 Na verdade a passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de fraude faz parte de todo um mecanismo complexo onde figuram o desenvolvimento da produção o aumento das riquezas uma valorização jurídica e moral maior das relações de propriedade métodos de vigilância mais rigorosos um policiamento mais estreito da população técnicas mais bem ajustadas de descoberta de captura de informação o deslocamento das práticas ilegais é correlato de uma extensão e de um afinamento das práticas punitivas Será uma transformação geral de atitude uma mudança que pertence ao campo do espírito e da subconsciência17 Talvez Com maior certeza e mais imediatamente porém significa um esforço para ajustar os mecanismos de poder que enquadram a existência dos indivíduos significa uma adaptação e harmonia dos instrumentos que se encarregam de vigiar o comportamento cotidiano das pessoas sua identidade atividade gestos aparentemente sem importância significa uma outra política a respeito dessa multiplicidade de corpos e forças que uma população representa O que se vai definindo não é tanto um respeito novo pela humanidade dos condenados os suplícios ainda são freqüentes mesmo para os crimes leves quanto uma tendência para uma justiça mais desembaraçada e mais inteligente para uma vigilância penal mais atenta do corpo social De acordo com um processo circular quando se eleva o limiar da passagem para os crimes violentos também aumenta a intolerância aos delitos econômicos os controles ficam mais rígidos as intervenções penais se antecipam mais e tornamse mais numerosas Ora se confrontamos esse processo com o discurso crítico dos reformadores vemos uma notável coincidência estratégica Realmente o que eles atacam na justiça tradicional antes de estabelecer os princípios de uma nova penalidade é mesmo o excesso de castigo mas um excesso que está ainda mais ligado a uma irregularidade que a um abuso do poder de punir A 24 de março de 1790 Thouret abre na Constituinte a discussão sobre a nova organização do poder judiciário Poder que em sua opinião está desnaturado de três maneiras na França Por uma apropriação privada vendemse os ofícios do juiz transmitemse por herança têm valor comercial e a justiça feita é por isso onerosa Por uma confusão entre dois tipos de poder o que presta justiça e formula uma sentença aplicando a lei e o que faz a própria lei Enfim pela existência de toda uma série de privilégios que tornam incerto o exercício da justiça há tribunais processos partes litigantes até delitos que são privilegiados e se situam fora do direito comum18 Isso não passa de uma das inúmeras formulações de críticas velhas de pelo menos meio século e que denunciam todas nessa desnaturação o princípio de uma justiça irregular A justiça penal é irregular em primeiro lugar pela multiplicidade das instâncias que estão encarregadas de realizála sem nunca constituir uma pirâmide única e contínua19 Mesmo deixando de lado as jurisdições religiosas é necessário considerar as descontinuidades as sobreposições e os conflitos entre as diferentes justiças as dos senhores que são ainda importantes para a repressão dos pequenos delitos as do rei que são elas mesmas numerosas e mal coordenadas as cortes soberanas estão em constante conflito com os bailados bailliages e principalmente com os tribunais presidiais présidiaux recentemente criados como instâncias intermediárias as que de direito ou de fato estão a cargo de instâncias administrativas como os intendentes ou policiais como os prebostes e os chefes de polícia a que se deveria ainda acrescentar o direito que tem o rei ou seus representantes de tomar decisões de internamento ou de exílio fora de qualquer procedimento regular Essas instâncias múltiplas por sua própria suberabundância se neutralizam e são incapazes de cobrir o corpo social em toda a sua extensão A confusão torna essa justiça penal paradoxalmente lacunosa Lacunosa devido às diferenças de costumes e de procedimentos apesar da Ordenação Geral de 1670 lacunosa pelos conflitos internos de competência lacunosa pelos interesses particulares políticos ou econômicos que a cada instante é levada a defender lacunosa enfim devido às intervenções do poder real que pode impedir o curso regular e austero da justiça pelos perdões comutações evocações em conselho ou pressões diretas sobre os magistrados A má economia do poder e não tanto a fraqueza ou a crueldade é o que ressalta da crítica dos reformadores Poder excessivo nas jurisdições inferiores que podem ajudadas pela pobreza e pela ignorância dos condenados negligenciar as apelações de direito e mandar executar sem controle sentenças arbitrárias poder excessivo do lado de uma acusação à qual são dados quase sem limite meios de prosseguir enquanto que o acusado está desarmado diante dela o que leva os juizes a ser às vezes severos demais às vezes por reação indulgentes demais poder excessivo para os juizes que podem se contentar com provas fúteis se são legais e que dispõem de uma liberdade bastante grande na escolha da pena poder excessivo dado à gente do rei não só em relação aos acusados mas também aos outros magistrados poder excessivo enfim exercido pelo rei pois ele pode suspender o curso da justiça modificar suas decisões cassar os magistrados revogálos ou exilá los substituílos por juízes por comissão real A paralisia da justiça está ligada menos a um enfraquecimento que a uma distribuição mal regulada do poder a sua concentração em um certo número de pontos e aos conflitos e descontinuidades que daí resultam Ora essa disfunção do poder provém de um excesso central o que se poderia chamar o superpoder monárquico que identifica o direito de punir com o poder pessoal do soberano Identificação teórica que faz do rei a fons justitiae mas cujas conseqüências práticas são verificáveis até no que parece se opor a ele e limitar seu absolutismo É porque o rei por razões de tesouraria se arroga o direito de vender ofícios de justiça que lhe pertencem que ele tem diante de si magistrados proprietários de seus cargos não só indóceis mas ignorantes interesseiros prontos ao compromisso É porque cria constantemente novos ofícios que ele multiplica os conflitos de poder e de atribuição É porque exerce um poder muito rigoroso sobre sua gente e lhes confere um poder quase discricionário que ele intensifica os conflitos na magistratura É por ter posto a justiça em concorrência com um excesso de procedimentos de urgência jurisdições dos prebostes ou dos chefes de polícia ou com medidas administrativas que ele paralisa a justiça regular que a torna às vezes indulgente e incerta mas às vezes precipitada e severa20 Não são tanto ou não são só os privilégios da justiça sua arbitrariedade sua arrogância arcaica seus direitos sem controle que são criticados mas antes a mistura entre suas fraquezas e seus excessos entre seus exageros e suas lacunas e sobretudo o próprio princípio dessa mistura o superpoder monárquico O verdadeiro objetivo da reforma e isso desde suas formulações mais gerais não é tanto fundar um novo direito de punir a partir de princípios mais eqüitativos mas estabelecer uma nova economia do poder de castigar assegurar uma melhor distribuição dele fazer com que não fique concentrado demais em alguns pontos privilegiados nem partilhado demais entre instâncias que se opõem que seja repartido em circuitos homogêneos que possam ser exercidos em toda parte de maneira contínua e até o mais fino grão do corpo social21 A reforma do direito criminal deve ser lida como uma estratégia para o remanejamento do poder de punir de acordo com modalidades que o tornam mais regular mais eficaz mais constante e mais bem detalhado em seus efeitos enfim que aumentem os efeitos diminuindo o custo econômico ou seja dissociandoo do sistema da propriedade das compras e vendas da venalidade tanto dos ofícios quanto das próprias decisões e seu custo político dissociandoo do arbitrário do poder monárquico A nova teoria jurídica da penalidade engloba na realidade uma nova economia política do poder de punir Compreendese então por que essa reforma não teve um ponto de origem único Não foram os mais esclarecidos dos expostos à ação da justiça nem os filósofos inimigos do despotismo e amigos da humanidade não foram nem os grupos sociais opostos aos parlamentares que suscitaram a reforma Ou antes não foram só eles no mesmo projeto global de uma nova distribuição do poder de punir e de uma nova repartição de seus efeitos vêm encontrar seu lugar muitos interesses diferentes A reforma não foi preparada fora do aparato judiciário e contra todos os seus representantes foi preparada e no essencial de dentro por um grande número de magistrados e a partir de objetivos que lhes eram comuns e dos conflitos de poder que os opunham uns aos outros Os reformadores não eram a maioria entre os magistrados naturalmente mas foram legistas que idearam os princípios gerais da reforma um poder de julgar sobre o qual não pesasse o exercício imediato da soberania do príncipe que fosse independente da pretensão de legislar que não tivesse ligação com as relações de propriedade e que tendo apenas as funções de julgar exerceria plenamente esse poder Em uma palavra fazer com que o poder de julgar não dependesse mais de privilégios múltiplos descontínuos contraditórias da soberania às vezes mas de efeitos continuamente distribuídos do poder público Esse princípio geral define uma estratégia de conjunto que deu ensejo a muitos combates diferentes Os de filósofos como Voltaire e de publicistas como Brissot ou Marat mas também os de magistrados cujos interesses eram entretanto bem diversos Le Trosne conselheiro no tribunal presidial de Orléans e Lacretelle advogado geral no parlamento Target que com os parlamentos se opõe à reforma de Maupeou mas também JN Moreau que sustenta o poder real contra os parlamentares Servan e Dupaty magistrados um como o outro mas em conflito com os colegas etc Durante todo o século XVIII dentro e fora do sistema judiciário na prática penal cotidiana como na crítica das instituições vemos formarse uma nova estratégia para o exercício do poder de castigar E a reforma propriamente dita tal como ela se formula nas teorias de direito ou que se esquematiza nos projetos é a retomada política ou filosófica dessa estratégia com seus objetivos primeiros fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular coextensiva à sociedade não punir menos mas punir melhor punir talvez com uma severidade atenuada mas para punir com mais universalidade e necessidade inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir A conjuntura que viu nascer a reforma não é portanto a de uma nova sensibilidade mas a de outra política em relação às ilegalidades Podemos dizer esquematicamente que no Antigo Regime os diferentes estratos sociais tinham cada um sua margem de ilegalidade tolerada a nãoaplicação da regra a inobservância de inúmeros editos ou ordenações eram condição do funcionamento político e econômico da sociedade Traço que não é particular ao Antigo Regime Sem dúvida Mas essa ilegalidade era tão profundamente enraizada e tão necessária à vida de cada camada social que tinha de certo modo sua coerência e economia próprias Ora se revestia de uma forma absolutamente estatutária que fazia dela não tanto uma ilegalidade quanto uma isenção regular eram os privilégios concedidos aos indivíduos e às comunidades Ora tinha a forma de uma inobservância maciça e geral que fazia com que durante dezenas de anos séculos às vezes ordenações podiam ser publicadas e renovadas constantemente sem nunca chegar à aplicação Ora se tratava de desuso progressivo que dava lugar às vezes a súbitas reativações Ora de um consentimento mudo do poder de uma negligência ou simplesmente da impossibilidade efetiva de impor a lei e reprimir os infratores As camadas mais desfavorecidas da população não tinham privilégios em princípio mas gozavam no que lhes impunham as leis e os costumes de margens de tolerân cia conquistadas pela força ou pela obstinação e essas margens eram para elas condição tão indispensável de existência que muitas vezes estavam prontas a se sublevar para defendêlas as tentativas periodicamente feitas para reduzilas alegando velhas regras ou subutilizando os processos de repressão provocavam sempre agitações populares do mesmo modo que as tentativas para reduzir certos privilégios agitavam a nobreza o clero e a burguesia Ora essa ilegalidade necessária e de que cada camada social exercia formas específicas estava envolvida numa série de paradoxos Em suas regiões inferiores encontravase com a criminalidade de que era difícil distinguila juridicamente senão moralmente da ilegalidade fiscal à ilegalidade aduaneira ao contrabando ao saque à luta armada contra os agentes do fisco depois contra os próprios soldados à revolta enfim havia uma continuidade onde as fronteiras eram difíceis de marcar ou ainda a vadiagem severamente punida nos termos de ordenações quase nunca aplicadas com tudo o que comportava de rapinas de roubos qualificados de assassinatos às vezes servia como meio favorável para os desempregados os operários que haviam deixado irregularmente os patrões os criados que tinham alguma razão para fugir do emprego os aprendizes maltratados os soldados desertores todos os que queriam escapar ao alistamento forçado De modo que a criminalidade se fundamentava numa ilegalidade mais vasta à qual as camadas populares estavam ligadas como a condições de existência e inversamente essa ilegalidade era um fator perpétuo de aumento da criminalidade Daí uma ambigüidade nas atitudes populares por um lado o criminoso principalmente quando se tratava de um contrabandista ou de um camponês perseguido pelas extorsões de um senhor gozava de uma valorização espontânea reencontravase em suas violências o fio de velhas lutas mas por outro lado aquele que ao abrigo de uma ilegalidade aceita pela população cometia crimes à custa desta o mendigo vagabundo por exemplo que roubava e assassinava tornavase facilmente objeto de um ódio particular ele voltara contra os mais desfavorecidos uma ilegalidade que estava integrada em suas condições de existência Assim se associavam aos crimes a glorificação e o anátema a ajuda efetiva e o medo alternavamse em relação a essa população movediça da qual todos se sentiam tão próximos e temerosos de que dela podia nascer o crime A ilegalidade popular envolvia o núcleo da criminalidade que era ao mesmo tempo sua forma extrema e o perigo interno Ora entre essa ilegalidade de baixo e as das outras castas sociais não havia exatamente convergência nem oposição fundamental De maneira geral as diversas ilegalidades próprias a cada grupo tinham umas com as outras relações que eram ao mesmo tempo de rivalidade de concorrência de conflitos de interesse e de apoio recíproco de cumplicidade a recusa por parte dos camponeses em pagar certos foros estatais ou eclesiásticos não era obrigatoriamente mal vista pelos proprietários de terras a não aplicação pelos artesãos dos regulamentos de fábrica era muitas vezes encorajada pelos novos empresários o contrabando provao a história de Mandrin recebido por toda a população acolhido nos castelos e protegido pelos parlamentares tinha amplo apoio Enfim no século XVII as diferentes rejeições do fisco fizeram as camadas da população entre si afastadas se coligarem em graves revoltas Em suma o jogo recíproco das ilegalidades fazia parte da vida política e econômica da sociedade Mais ainda na brecha diariamente alargada pela ilegalidade popular ocorrera um certo número de transformações por exemplo o desuso dos regulamentos de Colbert as inobservâncias das barreiras alfandegárias no reino o deslocamento das práticas corporativas ora dessas transformações a burguesia tivera necessidade e sobre elas fundamentara uma parte do crescimento econômico A tolerância tornavase então estímulo Mas na segunda metade do século XVIII o processo tende a se inverter Primeiro com o aumento geral da riqueza mas também com o grande crescimento demográfico o alvo principal da ilegalidade popular tende a ser não mais em primeira linha os direitos mas os bens a pilhagem o roubo tendem a substituir o contrabando e a luta armada contra os agentes do fisco E nessa medida os camponeses os colonos os artesãos são muitas vezes a vítima principal Le Trosne sem dúvida exagerava apenas uma tendência real quando descrevia os camponeses que sofriam com as extorsões dos vagabundos mais ainda que antigamente com as exigências dos feudais os ladrões agora se teriam abatido sobre eles como uma nuvem de insetos nocivos devorando as colheitas arrasando os celeiros22 Podemos dizer que se abriu progressivamente no século XVIII uma crise da ilegalidade popular e nem os movimentos do início da Revolução em torno da recusa dos direitos senhoriais nem aqueles mais tardios aos quais acresciam a luta contra os direitos dos proprietários o protesto político e religioso a recusa do recrutamento na realidade não o restabeleceram em sua forma antiga e acolhedora Além do mais se uma boa parte da burguesia aceitou sem muitos problemas a ilegalidade dos direitos ela a suportava mal quando se tratava do que considerava seus direitos de propriedade Nada mais característico a esse respeito que o problema da delinqüência no campo no fim do século XVIII e principalmente a partir da Revolução23 A passagem a uma agricultura intensiva exerce sobre os direitos de uso sobre as tolerâncias sobre as pequenas ilegalidades aceitas uma pressão cada vez mais cerrada Além do mais adquirida em parte pela burguesia despojada dos encargos feudais que sobre ela pesavam a propriedade da terra tornouse uma propriedade absoluta todas as tolerâncias que o campesinato adquirira ou conservara abandono de antigas obrigações ou consolidação de práticas irregulares direito de pasto livre24 de recolher lenha etc são agora perseguidas pelos novos proprietários que lhes dão a posição de infração pura e simples provocando dessa forma na população uma série de reações em cadeia cada vez mais ilegais ou se quisermos cada vez mais criminosas quebra de cercas roubo ou massacre de gado incêndios violências assassinatos25 A ilegalidade dos direitos que muitas vezes assegurava a sobrevivência dos mais despojados tende com o novo estatuto da propriedade a tornarse uma ilegalidade de bens Será então necessário punila E essa ilegalidade se é mal suportada pela burguesia na propriedade imobiliária é intolerável na propriedade comercial e industrial o desenvolvimento dos portos o aparecimento de grandes armazéns onde se acumulam mercadorias a organização de oficinas de grandes dimensões com uma massa considerável de matériaprima de ferramentas de objetos fabricados que pertencem ao empresário e são difíceis de vigiar exigem também uma repressão rigorosa da ilegalidade A maneira pela qual a riqueza tende a investir segundo escalas quantitativas totalmente novas nas mercadorias e nas máquinas supõe uma intolerância sistemática e armada à ilegalidade O fenômeno é evidentemente muito sensível onde o desenvolvimento é mais intenso Dessa urgência em reprimir as inúmeras práticas de ilegalidade Colquhoun procurara dar provas em números só para a cidade de Londres segundo as estimativas dos empresários e seguradoras o roubo de produtos importados da América e depositados às margens do Tâmisa subia em média a 250000 libras ao todo roubavamse cerca de 500000 cada ano só no porto de Londres e isso sem levar em conta os arsenais a que se deviam acrescentar 700000 libras para a própria cidade E nessa pilhagem permanente três fenômenos segundo Colquhoun deviam ser considerados a cumplicidade e muitas vezes a participação ativa dos empregados dos vigias dos contramestres e dos trabalhadores todas as vezes que estiver reunida no mesmo lugar uma grande quantidade de trabalhadores haverá necessariamente muitos maus elementos a existência de toda uma organização de comércio ilícito que começa nas oficinas ou nas docas passa em seguida pelos receptadores receptadores por atacado especializados num certo tipo de mercadorias e receptadores de varejo cujas vitrines só oferecem uma miserável exposição de velhos ferros trapos roupas em mau estado enquanto o depósito da loja esconde munições navais de grande valor cavilhas e pregos de cobre pedaços de ferro fundido e de metais preciosos de produção das Índias Ocidentais móveis e bagagens comprados de trabalhadores de todo tipo depois por revendedores e mascates que espalham longe no campo o produto dos roubos26 enfim a fabricação de dinheiro falso haveria disseminadas por toda a Inglaterra 40 a 50 fábricas de dinheiro falso trabalhando permanentemente Mas o que facilita essa imensa empresa de depredação e ao mesmo tempo de concorrência é todo um conjunto de tolerâncias algumas valem como espécies de direitos adquiridos direito por exemplo de recolher em torno do navio os pedaços de ferro e as pontas de corda ou de revender as varreduras de açúcar outras são da ordem da aceitação moral a analogia que essa pilhagem mantém no espírito de seus autores com o contrabando os familiariza com essa espécie de delitos cuja enormidade não sentem27 É portanto necessário controlar e codificar todas essas práticas ilícitas É preciso que as infrações sejam bem definidas e punidas com segurança que nessa massa de irregularidades toleradas e sancionadas de maneira descontínua com ostentação sem igual seja determinado o que é infração intolerável e que lhe seja infligido um castigo de que ela não poderá escapar Com as novas formas de acumulação de capital de relações de produção e de estatuto jurídico da propriedade todas as práticas populares que se classificavam seja numa forma silenciosa cotidiana tolerada seja numa forma violenta na ilegalidade dos direitos são desviadas à força para a ilegalidade dos bens O roubo tende a tornarse a primeira das grandes escapatórias à legalidade nesse movimento que vai de uma sociedade da apropriação jurídicopolítica a uma sociedade da apropriação dos meios e produtos do trabalho Ou para dizer as coisas de outra maneira a economia das ilegalidades se reestruturou com o desenvolvimento da sociedade capitalista A ilegalidade dos bens foi separada da ilegalidade dos direitos Divisão que corresponde a uma oposição de classes pois de um lado a ilegalidade mais acessível às classes populares será a dos bens transferência violenta das propriedades de outro a burguesia então se reservará a ilegalidade dos direitos a possibilidade de desviar seus próprios regulamentos e suas próprias leis de fazer funcionar todo um imenso setor da circulação econômica por um jogo que se desenrola nas margens da legislação margens previstas por seus silêncios ou liberadas por uma tolerância de fato E essa grande redistribuição das ilegalidades se traduzirá até por uma especialização dos circuitos judiciários para as ilegalidades de bens para o roubo os tribunais ordinários e os castigos para as ilegalidades de direitos fraudes evasões fiscais operações comerciais irregulares jurisdições especiais com transações acomodações multas atenuadas etc A burguesia se reservou o campo fecundo da ilegalidade dos direitos E ao mesmo tempo em que essa separação se realiza afirmase a necessidade de uma vigilância constante que se faça essencialmente sobre essa ilegalidade dos bens Afirmase a necessidade de se desfazer da antiga economia do poder de punir que tinha como princípios a multiplicidade confusa e lacunosa das instâncias uma repartição e uma concentração de poder correlatas com uma inércia de fato e uma inevitável tolerância castigos ostensivos em suas manifestações e incertos em sua aplicação Afirmase a necessidade de definir uma estratégia e técnicas de punição em que uma economia da continuidade e da permanência substituirá a da despesa e do excesso Em suma a reforma penal nasceu no ponto de junção entre a luta contra o superpoder do soberano e a luta contra o infrapoder das ilegalidades conquistadas e toleradas E se foi outra coisa que o resultado provisório de um encontro de pura circunstância é porque entre esse superpoder e esse infrapoder se estendia uma rede de relações A forma da soberania monárquica ao mesmo tempo que colocava do lado do soberano a sobrecarga de um poder brilhante ilimitado pessoal irregular e descontínuo deixava do lado dos súditos lugar livre para uma ilegalidade constante esta era como a correlata daquele tipo de poder Se bem que atacarse às diversas prerrogativas do soberano era atacar ao mesmo tempo o funcionamento das ilegalidades Os dois objetivos estavam em continuidade E segundo as circunstâncias ou as táticas particulares os reformadores faziam passar um na frente do outro Le Trosne o fisiocrata que foi conselheiro no tribunal presidial de Orléans pode servir de exemplo aqui Em 1764 ele publica uma memória sobre a vadiagem viveiro de ladrões e assassinos que vivem no meio da sociedade sem serem seus membros que fazem uma verdadeira guerra contra todos os cidadãos que estão entre nós naquele estado que se supõe ter existido antes do estabelecimento da sociedade civil Contra eles pede as mais severas penas e estranha significativamente que se tenha mais indulgência para com eles que para com os contrabandistas quer que a polícia seja reforçada que a cavalaria os persiga ajudada pela população vítima de seus roubos pede que essas pessoas inúteis e perigosas sejam adquiridas pelo Estado e lhe pertençam como escravos a seus senhores e se for o caso que se organizem batidas coletivas nos bosques para desentocálos sendo dado um salário a cada um que fizer uma captura Pois dáse uma recompensa de 10 libras por uma cabeça de lobo Um vagabundo é infinitamente mais perigoso para a sociedade28 Em 1777 em Vues sur la justice criminelle o mesmo Le Trosne pede que sejam reduzidas as prerrogativas da parte pública que os acusados sejam considerados inocentes até a eventual condenação que o juiz seja um justo árbitro entre eles e a sociedade que as leis sejam fixas constantes determinadas da maneira mais precisa de modo que os súditos saibam a que se expõem e que os magistrados não sejam mais que o órgão da lei29 Para Le Trosne como para tantos outros na mesma época a luta pela delimitação do poder de punir se articula diretamente com a exigência de submeter a ilegalidade popular a um controle mais estrito e mais constante Compreendese que a crítica dos suplícios tenha tido tanta importância na reforma penal pois era uma figura onde se uniam de modo visível o poder ilimitado do soberano e a ilegalidade sempre desperta do povo A humanidade das penas é a regra que se dá a um regime de punições que deve fixar limites a um e à outra O homem que se pretende fazer respeitar na pena à a forma jurídica e moral que se dá a essa dupla delimitação Mas se é verdade que a reforma como teoria penal e como estratégia do poder de punir foi ideada no ponto de coincidência desses dois objetivos sua estabilidade futura se deveu ao fato de que o segundo ocupou por muito tempo um lugar prioritário Foi porque a pressão sobre as ilegalidades populares se tornou na época da Revolução depois no Império finalmente durante todo o século XIX um imperativo essencial que a reforma pôde passar da condição de projeto à de instituição e conjunto prático Quer dizer que se aparentemente a nova legislação criminal se caracteriza por uma suavização das penas uma codificação mais nítida uma considerável diminuição do arbitrário um consenso mais bem estabelecido a respeito do poder de punir na falta de uma partilha mais real de seu exercício ela é apoiada basicamente por uma profunda alteração na economia tradicional das ilegalidades e uma rigorosa coerção para manter seu novo ajustamento Um sistema penal deve ser concebido como um instrumento para gerir diferencialmente as ilegalidades não para suprimilas a todas Deslocar o objetivo e mudar sua escala Definir novas táticas para atingir um alvo que agora é mais tênue mas também mais largamente difuso no corpo social Encontrar novas técnicas às quais ajustar as punições e cujos efeitos adaptar Colocar novos princípios para regularizar afinar universalizar a arte de castigar Homogeneizar seu exercício Diminuir seu custo econômico e político aumentando sua eficácia e multiplicando seus circuitos Em resumo constituir uma nova economia e uma nova tecnologia do poder de punir tais são sem dúvida as razões de ser essenciais da reforma penal no século XVIII Ao nível dos princípios essa nova estratégia é facilmente formulada na teoria geral do contrato Supõese que o cidadão tenha aceito de uma vez por todas com as leis da sociedade também aquela que poderá punilo O criminoso aparece então como um ser juridicamente paradoxal Ele rompeu o pacto é portanto inimigo da sociedade inteira mas participa da punição que se exerce sobre ele O menor crime ataca toda a sociedade e toda a sociedade inclusive o criminoso está presente na menor punição O castigo penal é então uma função generalizada coextensiva ao corpo social e a cada um de seus elementos Colocase então o problema da medida e da economia do poder de punir Efetivamente a infração lança o indivíduo contra todo o corpo social a sociedade tem o direito de se levantar em peso contra ele para punilo Luta desigual de um só lado todas as forças todo o poder todos os direitos E tem mesmo que ser assim pois aí está representada a defesa de cada um Constituise assim um formidável direito de punir pois o infrator tornase o inimigo comum Até mesmo pior que um inimigo é um traidor pois ele desfere seus golpes dentro da sociedade Um monstro Sobre ele como não teria a sociedade um direito absoluto Como deixaria ela de pedir sua supressão pura e simples E se é verdade que o princípio dos castigos deve estar subscrito no pacto não é necessário logicamente que cada cidadão aceite a pena extrema para aqueles dentre eles que os atacam como organização Todo malfeitor atacando o direito social tornase por seus crimes rebelde e traidor da pátria a conservação do Estado é então incompatível com a sua um dos dois tem que perecer e quando se faz perecer o culpado é menos como cidadão que como inimigo30 O direito de punir deslocouse da vingança do soberano à defesa da sociedade Mas ele se encontra então recomposto com elementos tão fortes que se torna quase mais temível O malfeitor foi arrancado a uma ameaça por natureza excessiva mas é exposto a uma pena que não se vê o que pudesse limitar Volta de um terrível superpoder E necessidade de colocar um princípio de moderação ao poder do castigo Quem não tem arrepios de horror ao ver na história tantos tormentos horríveis e inúteis inventados e usados friamente por monstros que se davam o nome de sábios31 Ou ainda As leis me chamam para o castigo do maior dos crimes Vou com todo o furor que ele me inspirou Mas como Meu furor ainda o ultrapassa Deus que imprimistes em nossos corações a aversão à dor por nós mesmos e nossos semelhantes são então esses seres que criastes tão fracos e sensíveis que inventaram suplícios tão bárbaros tão refinados32 O princípio da moderação das penas mesmo quando se trata de castigar o inimigo do corpo social se articula em primeiro lugar como um discurso do coração Melhor ele jorra como um grito do corpo que se revolta ao ver ou ao imaginar crueldades demais A formulação do princípio de que a penalidade deve permanecer humana é feita entre os reformadores na primeira pessoa Como se se exprimisse imediatamente a sensibilidade daquele que fala como se o corpo do filósofo ou do teórico viesse entre a fúria do carrasco e do supliciado afirmar sua própria lei e impôla finalmente a toda a economia das penas Lirismo que manifesta a impotência em encontrar o fundamento racional de um cálculo penal Entre o princípio contratual que rejeita o criminoso para fora da sociedade e a imagem do monstro vomitado pela natureza onde encontrar um limite senão na natureza humana que se manifesta não no rigor da lei não na ferocidade do delinqüente mas na sensibilidade do homem razoável que faz a lei e não comete crimes Mas esse recurso à sensibilidade não traduz exatamente uma impossibilidade teórica Ele traz em si na realidade um princípio de cálculo O corpo a imaginação o sofrimento o coração a respeitar não são na verdade os do criminoso que deve ser punido mas os dos homens que tendo subscrito o pacto têm o direito de exercer contra ele o poder de se unir O sofrimento que deve ser excluído pela suavização das penas é o dos juizes ou dos espectadores com tudo o que pode acarretar de endurecimento de ferocidade trazida pelo hábito ou ao contrário de piedade indevida de indulgência sem fundamento Misericórdia para essas almas doces e sensíveis sobre quem esses horríveis suplícios exercem uma espécie de tortura33 O que se precisa moderar e calcular são os efeitos de retorno do castigo sobre a instância que pune e o poder que ela pretende exercer Aí está a raiz do princípio de que se deve aplicar só punições humanas sempre a um criminoso que pode muito bem ser um traidor e um monstro entretanto Se a lei agora deve tratar humanamente aquele que está fora da natureza enquanto que a justiça de antigamente tratava de maneira desumana o foradalei a razão não se encontra numa humanidade profunda que o criminoso esconda em si mas no controle necessário dos efeitos de poder Essa racionalidade econômica é que deve medir a pena e prescrever as técnicas ajustadas Humanidade é o nome respeitoso dado a essa economia e a seus cálculos minuciosos Em matéria de pena o mínimo é ordenado pela humanidade e aconselhado pela política34 Para compreendermos essa tecnopolítica da punição tomemos o casolimite o último dos crimes um delito hediondo enorme que violasse ao mesmo tempo todas as leis mais respeitadas Aconteceria em circunstâncias tão extraordinárias dentro de um segredo tão profundo tão desmedidamente e como que no limite tão extremo de qualquer possibilidade que só poderia ser o único e em todo caso o último de sua espécie ninguém nunca poderia imitálo ninguém poderia seguilo como exemplo nem mesmo se escandalizar por que tivesse sido cometido Seria fadado a desaparecer sem deixar vestígio Esse apólogo35 da extremidade do crime é um pouco na nova penalidade o que era a falta original na antiga a forma pura em que aparece a razão das penas Um crime como esse deveria ser punido De acordo com que medida Que utilidade poderia ter seu castigo na economia do poder de punir Seria útil na medida em que poderia reparar o mal feito à sociedade36 Ora se deixarmos de lado o dano propriamente material que embora irreparável como num assassinato é de pouca extensão na escala de uma sociedade inteira o prejuízo que um crime traz ao corpo social é a desordem que introduz nele o escândalo que suscita o exemplo que dá a incitação a recomeçar se não é punido a possibilidade de generalização que traz consigo Para ser útil o castigo deve ter como objetivo as conseqüências do crime entendidas como a série de desordens que este é capaz de abrir A proporção entre a pena e a qualidade do delito é determinada pela influência que o pacto violado tem sobre a ordem social37 Ora essa influência de um crime não está forçosamente em proporção direta com sua atrocidade um crime que apavora a consciência tem muitas vezes um efeito menor que um delito que todo mundo tolera e se sente capaz de imitar por sua conta Raridade dos grandes crimes perigo em compensação dos pequenos delitos familiares que se multiplicam Não procurar conseqüentemente uma relação qualitativa entre o crime e sua punição uma equivalência de horror Podem os gritos de um infeliz entre tormentos retirar do seio do passado que não volta mais uma ação já cometida38 Calcular uma pena em função não do crime mas de sua possível repetição Visar não à ofensa passada mas à desordem futura Fazer de tal modo que o malfeitor não possa ter vontade de recomeçar nem possibilidade de ter imitadores39 Punir será então uma arte dos efeitos mais que opor a enormidade da pena à enormidade da falta é preciso ajustar uma à outra as duas séries que seguem o crime seus próprios efeitos e os da pena Um crime sem dinastia não clama castigo Tampouco segundo outra versão do mesmo apólogo às vésperas de se dissolver e desaparecer uma sociedade não teria o direito de erguer cadafalsos O último dos crimes só pode ficar sem punição Velha concepção Não era preciso esperar a reforma do século XVIII para definir essa função exemplar do castigo Que a punição olhe para o futuro e que uma de suas funções mais importantes seja prevenir era há séculos uma das justificações correntes do direito de punir Mas a diferença é que a prevenção que se esperava como um efeito do castigo e de seu brilho portanto de seu descomedimento tende a tornarse agora o princípio de sua economia e a medida de suas justas proporções É preciso punir exatamente o suficiente para impedir Deslocamento então na mecânica do exemplo numa penalidade de suplício o exemplo era a réplica do crime devia por uma espécie de manifestação geminada mostrálo e mostrar ao mesmo tempo o poder soberano que o dominava numa penalidade calculada pelos seus próprios efeitos o exemplo devese referir ao crime mas da maneira mais discreta possível indicar a intervenção do poder mas com a máxima economia e no caso ideal impedir qualquer reaparecimento posterior de um e outro O exemplo não é mais um ritual que manifesta é um sinal que cria obstáculo Através dessa técnica dos sinais punitivos que tende a inverter todo o campo temporal da ação penal os reformadores pensam dar ao poder de punir um instrumento econômico eficaz generalizável por todo o corpo social que possa codificar todos os comportamentos e conseqüentemente reduzir todo o domínio difuso das ilegalidades A semiotécnica com que se procura armar o poder de punir repousa sobre cinco ou seis regras mais importantes Regra da quantidade mínima Um crime é cometido porque traz vantagens Se à idéia do crime fosse ligada a idéia de uma desvantagem um pouco maior ele deixaria de ser desejável Para que o castigo produza o efeito que se deve esperar dele basta que o mal que causa ultrapasse o bem que o culpado retirou do crime40 Podemos é preciso admitir uma proximidade da pena e do crime mas não mais na antiga forma em que o suplício devia equivaler ao crime em intensidade com um suplemento que marcava o maispoder do soberano que realizava sua vingança legítima é uma quaseequivalência ao nível dos interesses um pouco mais de interesse em evitar a pena que em arriscar o crime Regra da idealidade suficiente Se o motivo de um crime é a vantagem que se representa com ele a eficácia da pena está na desvantagem que se espera dela O que ocasiona a pena na essência da punição não é a sensação do sofrimento mas a idéia de uma dor de um desprazer de um inconveniente a pena da idéia da pena A punição não precisa portanto utilizar o corpo mas a representação Ou antes se ela tem que utilizar o corpo isto o será na medida em que ele não é tanto o sujeito de um sofrimento quanto o objeto de uma representação a lembrança de uma dor pode impedir a reincidência do mesmo modo que o espetáculo mesmo artificial de uma pena física pode prevenir o contágio do crime Mas não é a dor em si que será instrumento da técnica punitiva Portanto de nada adianta fazer ostentação dos patíbulos por tempo o mais prolongado possível e exceto nos casos em que se trate de suscitar uma representação eficaz Eliminação do corpo como sujeito da pena mas não forçosamente como elemento num espetáculo A recusa aos suplícios que no limiar da teoria só encontrara uma formulação lírica encontra aqui a possibilidade de se articular racionalmente É a representação da pena que deve ser maximizada e não sua realidade corpórea Regra dos efeitos laterais A pena deve ter efeitos mais intensos naqueles que não cometeram a falta em suma se pudéssemos ter certeza de que o culpado não poderia recomeçar bastaria convencer os outros de que ele fora punido Intensificação centrífuga dos efeitos que conduz ao paradoxo de que no cálculo das penas o elemento menos interessante ainda é o culpado exceto se é passível de reincidência Esse paradoxo Beccaria ilustrou no castigo que propunha no lugar da pena de morte escravidão perpétua Pena fisicamente mais cruel que a morte Absolutamente dizia ele pois a dor da escravidão para o condenado está dividida em tantas parcelas quantos instantes de vida lhe restam pena indefinidamente divisível pena eleática muito menos severa que o castigo capital que logo se equipara ao suplício Em compensação para os que vêem ou se representam esses escravos o sofrimento que suportam se resume numa só idéia todos os instantes da escravidão se contraem numa representação que se torna então mais assustadora que a idéia da morte É a pena economicamente ideal é mínima para o que a sofre e que reduzido à escravidão não poderá reincidir e máxima para os que a imaginam Entre as penas e na maneira de aplicálas em proporção com os delitos devemos escolher os meios que causarão no espírito do povo a impressão mais eficaz e mais durável e ao mesmo tempo a menos cruel sobre o corpo do culpado41 Regra da certeza perfeita É preciso que à idéia de cada crime e das vantagens que se esperam dele esteja associada a idéia de um determinado castigo com as desvantagens precisas que dele resultam é preciso que de um a outro o laço seja considerado necessário e nada possa rompêlo Esse elemento geral de certeza que deve dar eficácia ao sistema punitivo implica num certo número de medidas precisas Que as leis que definem os crimes e prescrevem as penas sejam perfeitamente claras a fim de que cada membro da sociedade possa distinguir as ações criminosas das ações virtuosas42 Que essas leis sejam publicadas e cada qual possa ter acesso a elas que se acabem as tradições orais e os costumes mas se elabore uma legislação escrita que seja o monumento estável do pacto social que se imprimam textos para conhecimento de todos Só a imprensa pode tornar todo o público e não alguns particulares depositários do código sagrado das leis43 Que o monarca renuncie a seu direito de misericórdia para que a força que está presente na idéia da pena não seja atenuada pela esperança dessa intervenção Se deixamos ver aos homens que o crime pode ser perdoado e que o castigo não é sua continuação necessária nutrimos neles a esperança da impunidade que as leis sejam inexoráveis os executores inflexíveis44 E principalmente que nenhum crime cometido escape ao olhar dos que têm que fazer justiça nada torna mais frágil o instrumento das leis que a esperança de impunidade como se poderia estabelecer no espírito dos jurisdicionados um laço estreito entre um delito e uma pena se viesse afetálo um certo coeficiente de improbabilidade Não seria preciso tornar a pena tanto mais temível por sua violência quanto ela deixa menos a temer por sua pouca certeza Mais que imitar assim o antigo sistema e ser mais severo é preciso ser mais vigilante45 Daí a idéia de que o instrumento de justiça seja acompanhado por um órgão de vigilância que lhe seja diretamente ordenado e permita impedir os crimes ou se não cometidos prender seus autores polícia e justiça devem andar juntas como duas ações complementares de um mesmo processo a polícia assegurando a ação da sociedade sobre cada indivíduo a justiça os direitos dos indivíduos contra a sociedade46 assim cada crime virá à luz do dia e será punido com toda certeza Mas é preciso além disso que os processos não fiquem secretos que sejam conhecidas por todos as razões pelas quais um acusado foi condenado ou absolvido e que cada um possa reconhecer as razões de punir Que o magistrado pronuncie em alta voz sua opinião que seja obrigado a reproduzir em seu julgamento o texto da lei que condena o culpado que os processos que se ocultam misteriosamente na escuridão dos cartórios sejam abertos a todos os cidadãos que se interessam pelo destino dos condenados47 Regra da verdade comum Sob esse princípio de grande banalidade escondese uma transformação de importância O antigo sistema das provas legais o uso da tortura a extorsão da confissão a utilização do suplício do corpo e do espetáculo para a reprodução da verdade haviam durante muito tempo isolado a prática penal das formas comuns da demonstração as meiasprovas faziam meiasverdades e meiosculpados frases arrancadas pelo sofrimento tinham valor de autentificação uma presunção acarretava um grau de pena Sistema cuja heterogeneidade em relação ao regime ordinário da prova só constituiu realmente um escândalo no dia em que o poder de punir teve necessidade para sua própria economia de um clima de certeza irrefutável Como ligar de maneira absoluta no espírito dos homens a idéia do crime e a do castigo se a realidade do castigo não acompanha em todos os casos a realidade do delito Estabelecer esta última com toda evidência e de acordo com meios válidos para todos tornase uma tarefa primeira A verificação do crime deve obedecer aos critérios gerais de qualquer verdade O julgamento judiciário nos argumentos que utiliza nas provas que traz deve ser homogêneo ao julgamento puro e simples Abandono então das provas legais rejeição da tortura necessidade de uma demonstração completa para fazer uma verdade justa retirada de qualquer correlação entre os graus da suspeita e os da pena Como uma verdade matemática a verdade do crime só poderá ser admitida uma vez inteiramente comprovada Seguese que até à demonstração final de seu crime o acusado deve ser reputado inocente e que para fazer a demonstração o juiz deve usar não formas rituais mas instrumentos comuns essa razão de todo mundo que é também a dos filósofos e cientistas Em teoria considero o magistrado como um filósofo que se propõe a descobrir uma verdade interessante Sua sagacidade o fará compreender todas as circunstâncias e relações aproximar ou separar o que deve sêlo para julgar sadiamente48 O inquérito exercício da razão comum despojase do antigo modelo inquisitorial para acolher o outro muito mais flexível e duplamente reconhecido pela ciência e o senso comum da pesquisa empírica O juiz será como um piloto que navega entre os rochedos Quais serão as provas ou de que indícios podernosemos contentar É o que nem eu nem ninguém ainda ousou determinar em geral estando as circunstâncias sujeitas a variar ao infinito devendo as provas e os indícios se deduzir dessas circunstâncias é necessário que os indícios e as provas mais claros variem proporcionalmente49 Agora a prática penal vaise encontrar submetida a um regime comum da verdade ou antes a um regime complexo em que se misturam para formar a íntima convicção do juiz elementos heterogêneos de demonstração científica de evidências sensíveis e de senso comum A justiça penal se conserva formas que garantem sua eqüidade podese abrir agora às verdades de todos os ventos desde que sejam evidentes bem estabelecidas aceitáveis por todos O ritual judiciário não é mais em si mesmo formador de uma verdade partilhada É recolocado no campo de referência das provas comuns Estabelecese então com a multiplicidade dos discursos científicos uma relação difícil e infinita que a justiça penal hoje ainda não está apta a controlar O senhor de justiça não é mais senhor de sua verdade Regra da especificação ideal Para que a semiótica penal recubra bem todo o campo das ilegalidades que se quer reduzir todas as infrações têm que ser qualificadas têm que ser classificadas e reunidas em espécies que não deixem escapar nenhuma ilegalidade É então necessário um código e que seja sufi cientemente preciso para que cada tipo de infração possa estar claramente presente nele A esperança da impunidade não pode se precipitar no silêncio da lei É necessário um código exaustivo e explícito que defina os crimes fixando as penas50 Mas o mesmo imperativo de cobertura integral pelo efeitossinais da punição obriga a ir mais longe A idéia de um mesmo castigo não tem a mesma força para todo mundo a multa não é temível para o rico nem a infâmia a quem já está exposto A nocividade de um delito e seu valor de indução não são os mesmos de acordo com o status do infrator o crime de um nobre é mais nocivo para a sociedade que o de um homem do povo51 Enfim já que o castigo quer impedir a reincidência ele tem que levar bem em conta o que é o criminoso em sua natureza profunda o grau presumível de sua maldade a qualidade intrínseca de sua vontade De dois homens que cometeram o mesmo crime em que proporção é menos culpado aquele que mal tinha o necessário com relação àquele a quem sobrava o supérfluo De dois perjuros em que medida é mais criminoso aquele em que se procurou desde a infância imprimir sentimentos de honra com relação àquele que abandonado à natureza nunca recebeu educação52 Vemos aí ao mesmo tempo a necessidade de uma classificação paralela dos crimes e dos castigos e a necessidade de uma individualização das penas em conformidade com as características singulares de cada criminoso Essa individualização vai representar um peso muito grande em toda a história do direito penal moderno aí está sua fundamentação sem dúvida em termos de teoria do direito e do acordo com as exigências da prática cotidiana ela está em oposição radical com o princípio da codificação mas do ponto de vista de uma economia do poder de punir e das técnicas através das quais se pretende pôr em circulação em todo o corpo social sinais de punição exatamente ajustados sem excessos nem lacunas sem gasto inútil de poder mas sem timidez vêse bem que a codificação do sistema delitoscastigos e a modulação do par criminosopunição vão a par e se chamam um ao outro A individualização aparece como o objetivo derradeiro de um código bem adaptado Ora essa individualização é muito diferente em natureza das modulações da pena que se encontravam na jurisprudência antiga Esta e nesse ponto ela estava de acordo com a prática penitenciária cristã usava duas séries de variáveis para ajustar o castigo as da circunstância e as da intenção Ou seja elementos que permitiam classificar o ato em si mesmo A modulação da pena provinha de uma casuística em sentido lato53 Mas o que começa a se esboçar agora é uma modulação que se refere ao próprio infrator à sua natureza a seu modo de vida e de pensar a seu passado à qualidade e não mais à intenção de sua vontade Percebe se mas como um lugar ainda deixado vazio o local onde na prática penal o saber psicológico virá substituir a jurisprudência casuística Claro que no fim do século XVIII esse momento ainda está longe Procurase a ligação códigoindividualização nos modelos científicos da época A história natural oferecia sem dúvida o esquema mais adequado a taxinomia das espécies segundo uma gradação ininterrupta Procurase constituir um Linné dos crimes e das penas de maneira a que cada infração particular e cada indivíduo punível possa sem nenhuma margem de arbítrio ser atingido por uma lei geral Devese compor uma tabela de todos os gêneros de crimes que se notam nas diferentes regiões De acordo com o inventário dos crimes deverseá fazer uma divisão em espécies A melhor regra para essa divisão é pareceme separar os crimes pelas diferenças de objetos Essa divisão deve ser tal que cada espécie seja bem distinta da outra e cada crime particular considerado em todas as suas relações seja colocado entre aquele que deve precedêlo e aquele que deve seguilo e na mais justa gradação esta tabela enfim deve ser de tal modo que possa se aproximar de outra tabela que será feita para as penas e de maneira a que elas possam corresponder exatamente uma à outra54 Em teoria ou antes em sonho a dupla taxinomia dos castigos e dos crimes pode resolver o problema como aplicar leis fixas a indivíduos singulares Mas longe desse modelo especulativo formas de individualização antro pológica estavam na mesma época se constituindo de maneira ainda muito rudimentar Em primeiro lugar com a noção de reincidência Não que esta fosse desconhecida nas antigas leis criminais55 Mas tende a tornarse uma qualificação do próprio delinqüente susceptível de modificar a pena pronunciada de acordo com a legislação de 1791 os reincidentes em quase todos os casos eram passíveis de ter a pena dobrada segundo a lei de Floreal ano X deviam ser marcados com a letra R e o Código Penal de 1810 indicavalhes ou o máximo da pena ou a pena imediatamente superior Mas através da reincidência não se visa o autor de um ato definido pela lei mas o sujeito delinqüente uma certa vontade que manifesta seu caráter intrinsecamente criminoso Pouco a pouco à medida que no lugar do crime a criminalidade se torna o objeto da intervenção penal a oposição entre primário e reincidente tenderá a tornarse mais importante E a partir dessa oposição reforçandoa em muitos pontos vemos na mesma época formarse a noção de crime passional crime involuntário irrefletido ligado a circunstâncias extraordinárias que não tem por certo a desculpa da loucura mas promete nunca ser um crime habitual Le Peletier já observava em 1791 que a sutil gradação das penas que ele apresentava à Constituinte podia desviar do crime o maldoso que de sanguefrio medita uma ação má e pode ser retido pelo temor da pena que em compensação ela é impotente contra os crimes devidos às paixões violentas que não calculam mas que isso tem pouca importância pois tais crimes não mostram da parte de seus autores nenhuma maldade calculada56 Sob a humanização das penas o que se encontra são todas essas regras que autorizam melhor que exigem a suavidade como uma economia calculada do poder de punir Mas elas exigem também um deslocamento no ponto de aplicação desse poder que não seja mais o corpo com o jogo ritual dos sofrimentos excessivos das marcas ostensivas no ritual dos suplícios que seja o espírito ou antes um jogo de representações e de sinais que circulem discretamente mas com necessidade e evidência no espírito de todos Não mais o corpo mas a alma dizia Mably E vemos bem o que se deve entender por esse termo o correlato de uma técnica de poder Dispensamse as velhas anatomias punitivas Mas teremos entrado por isso verdadeiramente na era dos castigos incorpóreos No ponto de partida podemos então colocar o projeto político de classificar exatamente as ilegalidades de generalizar a função punitiva e de delimitar para controlálo o poder de punir Ora daí se definem duas linhas de objetivação do crime e do criminoso De um lado o criminoso designado como inimigo de todos que têm interesse em perseguir sai do pacto desqualificase como cidadão e surge trazendo em si como que um fragmento selvagem de natureza aparece como o celerado o monstro o louco talvez o doente e logo o anormal É a esse título que ele se encontrará um dia sob uma objetivação científica e o tratamento que lhe é correlato De outro lado a necessidade de medir de dentro os efeitos do poder punitivo prescreve táticas de intervenção sobre todos os criminosos atuais ou eventuais a organização de um campo de prevenção o cálculo dos interesses a entrada em circulação de representações e sinais a constituição de um horizonte de certeza e verdade o ajustamento das penas a variáveis cada vez mais sutis tudo isso leva igualmente a uma objetivação dos crimes e dos criminosos Nos dois casos vemos que a relação de poder que fundamenta o exercício da punição começa a ser acompanhada por uma relação de objeto na qual se encontram incluídos não só o crime como fato a estabelecer segundo normas comuns mas o criminoso como indivíduo a conhecer segundo critérios específicos Vemos também que essa relação de objeto não vêm se sobrepor de fora à prática punitiva como faria uma proibição imposta à fúria dos suplícios pelos limites da sensibilidade ou como faria uma interrogação racional ou científica sobre o que é o homem que se pune Os processos de objetivação nascem nas próprias táticas do poder e na distribuição de seu exercício Entretanto esses dois tipos de objetivação que se definem com os projetos de reforma penal são muito diferentes entre si por sua cronologia e por seus efeitos A objetivação do criminoso fora da lei como homem da natureza não passa ainda de uma virtualidade uma linha de fuga onde se entrecruzam os temas da critica política e as figuras do imaginário Será necessário esperar muito tempo para que o homo criminalis se torne um objeto definido num campo de conhecimento A outra objetivação ao contrário teve efeitos muito mais rápidos e decisivos na medida em que estava mais diretamente ligada à reorganização do poder de punir codificação definição dos papéis tarifação das penas regras de procedimento definição do papel dos magistrados E também porque se apoiava sobre o discurso já constituído dos Ideólogos Este fornecia com efeito pela teoria dos interesses das representações e dos sinais pelas séries e gêneses que reconstituía uma espécie de receita geral para o exercício do poder sobre os homens o espírito como superfície de inscrição para o poder com a semiologia por instrumento a submissão dos corpos pelo controle das idéias a análise das representações como princípio numa política dos corpos bem mais eficaz que a anatomia ritual dos suplícios O pensamento dos ideólogos não foi apenas uma teoria do indivíduo e da sociedade desenvolveuse como uma tecnologia dos poderes sutis eficazes e econômicos em oposição aos gastos suntuários do poder dos soberanos Ouçamos mais uma vez Servan as idéias de crime e de castigo têm que estar fortemente ligadas e se suceder sem intervalo Quando tiverdes conseguido formar assim a cadeia das idéias na cabeça de vossos cidadãos podereis então vos gabar de conduzilos e de ser seus senhores Um déspota imbecil pode coagir escravos com correntes de ferro mas um verdadeiro político os amarra bem mais fortemente com a corrente de suas próprias idéias é no plano fixo da razão que ele ata a primeira ponta laço tanto mais forte quanto ignoramos sua tessitura e pensamos que é obra nossa o desespero e o tempo roem os laços de ferro e de aço mas são impotentes contra a união habitual das idéias apenas conseguem estreitála ainda mais e sobre as fibras moles do cérebro fundase a base inabalável dos mais sólidos impérios57 Essa semiotécnica das punições esse poder ideológico é que pelo menos em parte vai ficar em suspenso e será substituído por uma nova anatomia política em que o corpo novamente mas numa forma inédita será o personagem principal E essa nova anatomia política permitirá recruzar as duas linhas divergentes de objetivação que vemos formarse no século XVIII a que rejeita o criminoso para o outro lado o lado de uma natureza contra a natureza e a que procura controlar a delinqüência por uma anatomia calculada das punições Um exame da nova arte de punir mostra bem a substituição da semiotécnica punitiva por uma nova política do corpo CAPÍTULO II A MITIGAÇÃO DAS PENAS A arte de punir deve portanto repousar sobre toda uma tecnologia da representação A empresa só pode ser bem sucedida se estiver inscrita numa mecânica natural Semelhante à gravitação dos corpos uma força secreta nos empurra sempre para nosso bemestar Esse impulso só é afetado pelos obstáculos que as leis lhe opõem Todas as várias ações do homem são efeitos dessa tendência interior Encontrar para um crime o castigo que convém é encontrar a desvantagem cuja idéia seja tal que torne definitivamente sem atração a idéia de um delito É uma arte das energias que se combatem arte das imagens que se associam fabricação de ligações estáveis que desafiem o tempo Importa constituir pares de representação de valores opostos instaurar diferenças quantitativas entre as forças em questão estabelecer um jogo de sinaisobstáculos que possam submeter o movimento das forças a uma relação de poder Que a idéia do suplício esteja sempre presente no coração do homem fraco e domine o sentimento que o arrasta para o crime1 Esses sinaisobstáculos devem constituir o novo arsenal das penas como as marcasvinditas organizavam os antigos suplícios Mas para funcionar têm que obedecer a várias condições 1 Ser tão pouco arbitrários quanto possível É verdade que é a sociedade que define em função de seus interesses próprios o que deve ser considerado como crime este portanto não é natural Mas se queremos que a punição possa sem dificuldade apresentarse ao espírito assim que se pensa no crime é preciso que de um ao outro a ligação seja a mais imediata possível de semelhança de analogia de proximidade É preciso dar à pena toda a conformidade possível com a natureza de delito a fim de que o medo de um castigo afaste o espírito do caminho por onde era levado na perspectiva de um crime vantajoso2 A punição ideal será transparente ao crime que sanciona assim para quem a contempla ela será infalivelmente o sinal do crime que castiga e para quem sonha com o crime a simples idéia do delito despertará o sinal punitivo Vantagem para a estabilidade da ligação vantagem para o cálculo das proporções entre crime e castigo e para a leitura quantitativa dos interesses pois tomando a forma de uma conseqüência natural a punição não aparece como o efeito arbitrário de um poder humano Tirar ao castigo o delito é a melhor maneira de proporcionar a punição ao crime Se é isso o triunfo da justiça é também o triunfo da liberdade pois então não vindo mais as penas da vontade do legislador mas da natureza das coisas não se vê mais o homem fazer violência ao homem3 Na punição analógica o poder que pune se esconde Os reformadores apresentaram uma série inteira das penas naturais por instituição e das que retomam em sua forma o conteúdo do crime Vermeil por exemplo os que abusam da liberdade pública serão privados da sua serão retirados os direitos civis dos que abusarem das vantagens da lei e dos privilégios das funções públicas a multa punirá o peculato e a usura a confiscação punirá o roubo a humilhação os delitos de vanglória a morte o assassinato a fogueira o incêndio Quanto ao envenenador o carrasco lhe apresentará uma taça cujo conteúdo lhe jogará no rosto para esmagálo com o horror de seu crime ao fazêlo ver sua imagem e o meterá em seguida numa caldeira de água fervente4 Simples sonho Talvez Mas o princípio de uma comunicação simbólica é de novo claramente formulado por Le Peletier quando apresenta em 1791 a nova legislação criminal Tem que haver relações exatas entre a natureza do delito e a natureza da punição aquele que foi feroz em seu crime sofrerá dores físicas aquele que tiver sido preguiçoso será obrigado a um trabalho penoso aquele que foi abjeto sofrerá uma pena de infâmia5 Apesar de crueldades que lembram muito o Antigo Regime é um mecanismo bem diverso que funciona nessas penas analógicas Não se opõem mais o atroz ao atroz numa justa de poder não é mais a simetria da vingança é a transparência do sinal ao que ele significa pretendese no teatro dos castigos estabelecer uma relação imediatamente inteligível aos sentidos e que possa dar lugar a um cálculo simples Uma espécie de estética razoável da pena Não é só nas belasartes que se deve seguir fielmente a natureza as instituições políticas pelo menos as que têm um caráter de sabedoria e elementos de duração se fundamentam na natureza6 Que o castigo decorra do crime que a lei pareça ser uma necessidade das coisas e que o poder aja mascarandose sob a força suave da natureza 2 Esse jogo de sinais deve corresponder à mecânica das forças diminuir o desejo que torna o crime atraente aumentar o interesse que torna a pena temível inverter a relação das intensidades fazer que a representação da pena e de suas desvantagens seja mais viva que a do crime com seus prazeres Toda uma mecânica portanto do interesse de seu movimento da maneira como é representado e da vivacidade dessa representação O legislador deve ser um arquiteto hábil que saiba ao mesmo tempo empregar todas as forças que possam contribuir para a solidez do edifício e amortecer todas as que poderiam arruinálo7 Várias meios Ir direto à fonte do mal8 Quebrar a mola que anima a representação do crime Tornar sem força o interesse que a fez nascer Atrás dos delitos de vadiagem há a preguiça é esta que se deve combater Não teremos sucesso trancando os mendigos em prisões infectas que são antes cloacas será preciso obrigálos ao trabalho Empregálos é a melhor maneira de puni los9 Contra uma paixão má um bom hábito contra uma força outra força mas o importante é a força da sensibilidade e da paixão não as do poder com suas armas Não devemos deduzir todas as penas desse princípio tão simples tão feliz e já conhecido de escolhêlas no que há de mais deprimente para a paixão que levou ao crime cometido10 Fazer funcionar contra ela mesma a força que levou ao delito Dividir o interesse servirse dele para tornar temível a pena Que o castigo o irrite e o estimule mais do que o erro que encorajara Se o orgulho fez cometer um crime que seja ferido que se revolte com a punição A eficácia das penas infamantes é se apoiarem sobre a vaidade que estava na raiz do crime Os fanáticos se glorificam tanto de suas opiniões quanto dos suplícios que suportam por elas Que se faça então funcionar contra o fanatismo a teimosia orgulhosa que o sustenta Comprimilo pelo ridículo e pela vergonha se humilharmos a orgulhosa vaidade dos fanáticos diante de uma grande multidão de espectadores devemos esperar efeitos felizes dessa pena De nada serviria ao contrário imporlhes dores físicas11 Reanimar um interesse útil e virtuoso cujo enfraquecimento é provado pelo crime O sentimento de respeito pela propriedade a de riquezas mas também a de honra de liberdade de vida o malfeitor o perde quando rouba calunia seqüestra ou mata É preciso então que lhe seja reensinado E começaremos a ensinálo nele mesmo ele sentirá o que é perder a livre disposição de seus bens de sua honra de seu tempo e de seu corpo para por sua vez respeitálo nos outros12 A pena que forma sinais estáveis e facilmente legíveis deve assim recompor a economia dos interesses e a dinâmica das paixões 3 Conseqüentemente utilidade de uma modulação temporal A pena transforma modifica estabelece sinais organiza obstáculos Qual seria sua utilidade se se tornasse definitiva Uma pena que não tivesse termo seria contraditória todas as restrições por ela impostas ao condenado e que voltando a ser virtuoso ele nunca poderia aproveitar não passariam de suplícios e o esforço feito para reformálo seria pena e custo perdidos pelo lado da sociedade Se há incorrigíveis temos que nos resolver a eliminálos Mas para todos os outros as penas só podem funcionar se terminam Análise aceita pelos Constituintes o Código de 1791 prevê a morte para os traidores e os assassinos todas as outras penas devem ter um termo o máximo é de vinte anos Mas principalmente o papel da duração deve estar integrado à economia da pena Os suplícios em sua violência corriam o risco de ter esse resultado quanto mais grave o crime menos longo era seu castigo A duração intervinha sem dúvida no antigo sistema das penas dias de pelourinho anos de banimento horas passadas a expirar na roda Mas era um tempo de prova não de transformação concertada A duração deve agora permitir a ação própria do castigo Uma série prolongada de privações penosas poupando à humanidade o horror das torturas afeta muito mais o culpado que um instante passageiro de dor Ela renova sem cessar aos olhos do povo que serve de testemunha a lembrança das leis vingadoras e faz a todos os momentos reviver um terror salutar13 O tempo operador da pena Ora a frágil mecânica das paixões não permite que as pressionemos da mesma maneira nem com a mesma insistência à medida que elas se reaprumam é bom que a pena se atenue com os efeitos que produz Pode naturalmente ser fixa no sentido de que é determinada para todos da mesma maneira pela lei seu mecanismo interno deve ser variável Em seu projeto à Constituinte Le Peletier propunha penas de intensidade regressiva um condenado à pena mais grave só irá para a masmorra corrente nos pés e nas mãos escuridão solidão pão e água durante uma primeira fase terá a possibilidade de trabalhar dois depois três dias por semana Depois dos dois primeiros terços da pena poderá passar ao regime da limitação masmorra iluminada corrente em torno da cintura trabalho solitário durante cinco dias na semana mas em comum os outros dois dias esse trabalho será pago e lhe permitirá melhorar seu passadio Enfim quando se aproximar do fim da pena poderá passar ao regime da prisão Poderá se reunir com os outros prisioneiros todos os dias para um trabalho comum Se preferir poderá trabalhar sozinho Sua comida será o que lhe render seu trabalho14 4 Pelo lado do condenado a pena é uma mecânica dos sinais dos interesses e da duração Mas o culpado é apenas um dos alvos do castigo Este interessa principalmente aos outros todos os culpados possíveis Que esses sinaisobstáculos que são pouco a pouco gravados na representação do condenado circulem então rápida e largamente que sejam aceitos e redistribuídos por todos que formem o discurso que cada um faz a todo mundo e com o qual todos se proíbem o crime a boa moeda que nos espíritos toma o lugar do falso proveito do crime Para isso é preciso que o castigo seja achado não só natural mas interessante é preciso que cada um possa ler nele sua própria vantagem Que não haja mais essas penas ostensivas mas inúteis Que também cessem as penas secretas mas que os castigos possam ser vistos como uma retribuição que o culpado faz a cada um de seus concidadãos pelo crime com que lesou a todos como penas continuamente apresentadas aos olhos dos cidadãos e evidenciem a utilidade pública dos movimentos comuns e particulares15 O ideal seria que o condenado fosse considerado como uma espécie de propriedade rentável um escravo posto a serviço de todos Por que haveria a sociedade de suprimir uma vida e um corpo de que ela poderia se apropriar Seria mais útil fazer servir ao Estado numa escravidão mais ou menos longa de acordo com a natureza de seu crime a França tem muitas estradas intransitáveis que prejudicam o comércio os ladrões que também criam obstáculo à livre circulação das mercadorias terão que reconstruir as estradas Seria mais eloqüente do que a morte o exemplo de um homem que conservamos sempre sob os olhos cuja liberdade foi retirada e é obrigado a usar o resto da vida a reparar a perda que causou à sociedade16 No antigo sistema o corpo dos condenados se tornava coisa do rei sobre a qual o soberano imprimia sua marca e deixava cair os efeitos de seu poder Agora ele será antes um bem social objeto de uma apropriação coletiva e útil Daí o fato de que os reformadores tenham quase sempre proposto as obras públicas como uma das melhores penas possíveis os Cahiers de doléances aliás os acompanharam Que os condenados a alguma pena abaixo da morte sejam condenados às obras públicas do país por um tempo proporcional a seu crime17 Obra pública quer dizer duas coisas interesse coletivo na pena do condenado e caráter visível controlável do castigo O culpado assim paga duas vezes pelo trabalho que ele fornece e pelos sinais que produz No centro da sociedade nas praças públicas ou nas grandes estrada o condenado irradia lucros e significações Ele serve visivelmente a cada um mas ao mesmo tempo introduz no espírito de todos o sinal crimecastigo utilidade secundária puramente moral esta mas tanto mais real 5 Daí resulta uma sábia economia da publicidade No suplício corporal o terror era o suporte do exemplo medo físico pavor coletivo imagens que devem ser gravadas na memória dos espectadores como a marca na face ou no ombro do condenado O suporte do exemplo agora é a lição o discurso o sinal decifrável a encenação e a exposição da moralidade pública Não é mais a restauração aterrorizante da soberania que vai sustentar a cerimônia do castigo é a reativação do Código o reforço coletivo da ligação entre a idéia do crime e a idéia da pena Na punição mais que a visão da presença do soberano haverá a leitura das próprias leis Estas haviam associado a tal crime tal castigo Assim que o crime for cometido e sem perda de tempo virá a punição traduzindo em ações o discurso da lei e mostrando que o Código que liga as idéias liga também as realidades A junção imediata no texto deve sêlo nos atos Considerai os primeiros momentos quando a notícia de alguma ação atroz se espalha em nossas cidades e campos os cidadãos parecem homens que vêem cair um raio perto de si cada um está penetrado de indignação e de horror Este é o movimento de castigar o crime não o deixeis escapar apressaivos em convencêlo e julgálo Levantai cadafalsos fogueiras arrastai o culpado pelas praças públicas chamai o povo em altas vozes ouviloeis então aplaudir a proclamação de vossos julgamentos como a de paz e de liberdade vêloeis socorrer a esses terríveis espetáculos como ao triunfo das leis18 A punição pública é a cerimônia da recodificação imediata A lei se reforma vem retomar um lugar ao lado do crime que a violara O malfeitor em compensação é separado da sociedade Deixaa Mas não naquelas festas ambíguas do Antigo Regime em que o povo fatalmente tomava partido do crime ou da execução mas numa cerimônia de luto A sociedade que recuperou suas leis perdeu o cidadão que as violara A punição pública deve manifestar essa dupla aflição que se possa ter ignorado a lei e que um cidadão tenha que ser isolado Ligai ao suplício o mais lúgubre e mais tocante aparelho que esse dia terrível seja para a pátria um dia de luto que a dor geral seja estampada em toda parte em grandes caracteres Que o magistrado coberto com o crepe fúnebre anuncie ao povo o atentado e a triste necessidade de uma vingança legal Que as diversas cenas desta tragédia atinjam todos os sentidos mexam com todas as afeições suaves e honestas19 Luto cujo sentido deve ser claro para todos cada elemento de seu ritual deve falar dizer o crime lembrar a lei mostrar a necessidade da punição justificar sua medida Cartazes placas sinais símbolos devem ser multiplicados para que cada um possa apreender seus significados A publicidade da punição não deve espalhar um efeito físico de terror deve abrir um livro de leitura Le Peletier propunha que o povo uma vez por mês pudesse visitar os condenados em seu doloroso reduto lerá traçado em grandes caracteres acima da porta da masmorra o nome do culpado o crime e o julgamento20 E no estilo ingênuo e militar das cerimônias imperiais Bexon imaginará alguns anos mais tarde todo um quadro heráldico penal O condenado à morte será conduzido ao cadafalso num carro tingido ou pintado de preto entremeado de vermelho se traiu terá uma camisa vermelha sobre a qual estará escrita na frente e atrás a palavra traidor se for parricida terá a cabeça coberta com um véu negro e em sua camisa serão bordados punhais ou os instrumentos de morte de que se tiver servido se envenenou sua camisa vermelha será ornamentada com serpentes e outros animais venenosos21 Essa lição legível essa recodificação ritual devem ser repetidas com toda a freqüência possível que os castigos sejam uma escola mais que uma festa um livro sempre aberto mais que uma cerimônia A duração que torna o castigo eficaz para o culpado também é útil para os espectadores Estes devem poder consultar a cada instante o léxico permanente do crime e do castigo Pena secreta pena perdida pela metade Seria necessário que as crianças pudessem vir aos lugares onde é executada lá fariam suas aulas cívicas E os homens feitos lá reaprenderiam periodicamente as leis Concebamos os lugares de castigos como um Jardim de Leis que as famílias visitariam aos domingos Eu gostaria que de vez em quando depois de preparar os espíritos com um discurso fundamentado sobre a conservação da ordem social sobre a utilidade dos castigos se levassem os jovens mesmo os homens às minas às obras para contemplar o horrível destino dos proscritos Essas peregrinações seriam mais úteis que as que os turcos fazem a Meca22 E Le Peletier considerava que essa visibilidade dos castigos era um dos princípios fundamentais do novo Código Penal Freqüentemente e em momentos marcados a presença do povo deve levar a vergonha à cabeça do culpado e a presença do culpado no estado penoso a que foi reduzido por seu crime deve dar à alma do povo uma útil instrução23 Bem antes de ser concebido como objeto de ciência pensase no criminoso como elemento de instrução Depois da visita de caridade para partilhar do sofrimento dos prisioneiros o século XVII a inventara ou restabelecera pensouse nessas visitas de crianças que viriam aprender como a justiça da lei vem se aplicar ao crime lição viva no museu da ordem 6 Então se poderá inverter na sociedade o tradicional discurso do crime Grave preocupação para os fazedores de leis no século XVIII como apagar a glória duvidosa dos criminosos Como fazer calarse a epopéia dos grandes malfeitores cantada pelos almanaques folhetins as narrativas populares Se a recodificação for bem feita se a cerimônia de luto se desenrolar como deve o crime só poderá aparecer então como uma desgraça e o malfeitor como um inimigo a quem se reensina a vida social Em lugar dessas louvações que tornam o criminoso um herói só se propagarão então no discurso dos homens esses sinaisobstáculos que impedem o desejo do crime pelo receio calculado do castigo A mecânica positiva funcionará totalmente na linguagem de todos os dias e esta a fortalecerá sem cessar com novas narrativas O discurso se tornará o veículo da lei princípio constante da recodificação universal Os poetas do povo se juntarão enfim aos que se chamam a si mesmos missionários da razão eterna tornarseão moralistas Pleno dessas imagens terríveis e dessas idéias salutares cada cidadão virá espalhálas em sua família e aí com longas narrativas feitas com tanto calor quanto avidamente ouvidas seus filhos em torno dele abrirão suas jovens memórias para receber em traços inalteráveis a idéia do crime e do castigo o amor pelas leis e pela pátria o respeito e a confiança na magistratura Os habitantes do campo testemunhas também desses exemplos os semearão em torno de suas cabanas o gosto pela virtude criará raízes nessas almas grosseiras enquanto que o mau consternado pela alegria pública assustado de ver tantos inimigos talvez venha a renunciar a seus projetos cujo resultado é tão rápido quanto funesto24 Eis então como devemos imaginar a cidade punitiva Nas encruzilhadas nos jardins à beira das estradas que são refeitas ou das pontes que são construídas em oficinas abertas a todos no fundo de minas que serão visitadas mil pequenos teatros de castigos Para cada crime sua lei para cada criminoso sua pena Pena visível pena loquaz que diz tudo que explica se justifica convence placas bonés cartazes tabuletas símbolos textos lidos ou impressos isso tudo repete incansavelmente o Código Cenários perspectivas efeitos de ótica fachadas às vezes ampliam a cena tornamna mais temível mas também mais clara Do lugar onde está colocado o público poderseia acreditar em certas crueldades que na realidade não acontecem Mas o essencial para essas severidades reais ou ampliadas é que segundo uma economia estrita todas elas sirvam de lição que cada castigo seja um apólogo E que em contraponto a todos os exemplos diretos de virtude se possam a cada instante encontrar como uma cena viva as desgraças do vício Em torno de cada uma dessas representações morais os escolares se comprimirão com seus professores e os adultos aprenderão que lição ensinar aos filhos Não mais o grande ritual aterrorizante dos suplícios mas no correr dos dias e pelas ruas esse teatro sério com suas cenas múltiplas e persuasivas E a memória popular reproduzirá em seus boatos o discurso austero da lei Mas talvez fosse necessário acima desses mil espetáculos e narrativas colocar o sinal maior da punição para o mais terrível dos crimes o ápice do edifício penal Vermeil em todo caso imaginara a cena da punição absoluta que devia dominar todos os teatros do castigo diário o único caso em que se deveria procurar atingir o infinito punitivo Um pouco o equivalente na nova penalidade ao que fora o regicídio na antiga O culpado teria os olhos furados seria colocado numa jaula de ferro suspensa em pleno ar acima de uma praça pública estaria completamente nu com um cinto de ferro em torno da cintura seria amarrado às grades até o fim de seus dias seria alimentado a pão e água Estaria assim exposto a todos os rigores das estações ora a fronte coberta de neve ora calcinado por um sol ardente Seria nesse suplício enérgico que apresenta antes o prolongamento de uma morte dolorosa que o de uma vida penosa que se poderia realmente reconhecer um celerado votado ao horror da natureza inteira condenado a não ver mais o céu que ultrajou e a não habitar mais a terra que maculou25 Acima da cidade punitiva essa aranha de ferro e o que deve ser assim crucificado pela nova lei é o parricida Todo um arsenal de castigos pitorescos Evitai infligir as mesmas punições dizia Mably É banida a idéia de uma pena uniforme modulada unicamente pela gravidade da falta Mais precisamente a utilização da prisão como forma geral de castigo nunca é apresentada nesses projetos de penas específicas visíveis e eloqüentes Sem dúvida a prisão é prevista mas entre outras penas é então o castigo específico para certos delitos os que atentam à liberdade dos indivíduos como o rapto ou que resultam do abuso da liberdade a desordem a violência É prevista também como condição para que se possam executar certas penas o trabalho forçado por exemplo Mas não cobre todo o campo da penalidade com a duração como único princípio de variação Melhor a idéia de uma reclusão penal é explicitamente criticada por muitos reformadores Porque é incapaz de responder à especificidade dos crimes Porque é desprovida de efeito sobre o público Porque é inútil à sociedade até nociva é cara mantém os condenados na ociosidade multiplicalhes os vícios26 Porque é difícil controlar o cumprimento de uma pena dessas e correse o risco de expor os detentos à arbitrariedade de seus guardiães Porque o trabalho de privar um homem de sua liberdade e vigiálo na prisão é um exercício de tirania Exigis que haja entre vós monstros e esses homens odiosos se existissem o legislador deveria talvez tratálos como assassinos27 A prisão em seu todo é incompatível com toda essa técnica da penaefeito da penarepresentação da penafunção geral da penasinal e discurso Ela é a escuridão a violência e a suspeita É um lugar de trevas onde o olho do cidadão não pode contar as vítimas onde conseqüentemente seu número está perdido para o exemplo Enquanto que se sem multiplicar os crimes pudermos multiplicar o exemplo dos castigos conseguimos enfim tomálos menos necessários aliás a escuridão das prisões tornase assunto de desconfiança para os cidadãos supõem facilmente que lá se cometem grandes injustiças Há certamente alguma coisa que vai mal quando a lei que é feita para o bem da multidão em vez de excitar seu reconhecimento excita continuamente seus murmúrios28 Que a reclusão pudesse como hoje entre a morte e as penas leves cobrir todo o espaço médio da punição é uma idéia que os reformadores não podiam ter imediatamente Ora eis o problema depois de bem pouco tempo a detenção se tornou a forma essencial de castigo No Código Penal de 1810 entre a morte e as multas ela ocupa sob um certo número de formas quase todo o campo das punições possíveis Que é o sistema de penalidades admitido pela nova lei É o encarceramento sob todas as suas formas Comparai com efeito as quatro penas principais que restam no Código Penal Os trabalhos forçados são uma forma de encarceramento O local desse castigo é uma prisão ao ar livre A detenção a reclusão o encarceramento correcional não passam de certo modo de nomes diversos de um único e mesmo castigo29 E esse encarceramento pedido pela lei o Império resolvera transcrevêlo logo para a realidade segundo uma hierarquia penal administrativa geográfica no grau mais baixo associada a cada justiça de paz delegacia municipal em cada distrito prisões em todos os departamentos uma casa de correção no cume várias casas centrais para os condenados criminosos ou os correcionais que são condenados a mais de um ano enfim em alguns portos prisão com trabalhos forçados É programado um grande edifício carceral cujos níveis diversos devemse ajustar exatamente aos andares da centralização administrativa O cadafalso onde o corpo do supliciado era exposto à força ritualmente manifesta do soberano o teatro punitivo onde a representação do castigo teria sido permanentemente dada ao corpo social são substituídos por uma grande arquitetura fechada complexa e hierarquizada que se integra no próprio corpo do aparelho do Estado Uma materialidade totalmente diferente uma física do poder totalmente diferente uma maneira de investir o corpo do homem totalmente diferente A partir da Restauração e sob a monarquia de julho encontraremos por pequenas diferenças entre 40 e 43000 detentos nas prisões francesas mais ou menos um prisioneiro para cada 600 habitantes O muro alto não mais aquele que cerca e protege não mais aquele que manifesta por seu prestígio o poder e a riqueza mas o muro cuidadosamente trancado intransponível num sentido e no outro e fechado sobre o trabalho agora misterioso da punição será bem perto e às vezes mesmo no meio das cidades do século XIX a figura monótona ao mesmo tempo material e simbólica do poder de punir Já sob o Consulado o ministro do interior fora encarregado de investigar sobre os diversos lugares de segurança que já funcionavam ou que podiam ser utilizados nas diversas cidades Alguns anos mais tarde haviam sido previstos créditos para construir à altura do poder que deviam representar e servir esses novos castelos da ordem civil O Império os utilizou na realidade para uma outra guerra30 Uma economia menos suntuária mas mais obstinada acabou construindo os pouco a pouco no século XIX Em todo caso em menos de vinte anos o princípio tão claramente formulado na Constituinte de penas específicas ajustadas eficazes que formassem em cada caso lição para todos tornouse a lei de detenção para qualquer infração pouco importante se ela ao menos não merecer a morte Esse teatro punitivo com que se sonhava no século XVIII e que teria agido essencialmente sobre o espírito dos cidadãos foi substituído pelo grande aparelho uniforme das prisões cuja rede de imensos edifícios se estenderá por toda a França e a Europa Mas dar vinte anos como cronologia para esse passe de mágica é talvez ainda excessivo Podese dizer que foi quase instantâneo Basta examinar com atenção o projeto de Código Criminal apresentado por Le Peletier à Constituinte O princípio formulado no início é que são necessárias relações exatas entre a natureza do delito e a natureza da punição dores para os que foram ferozes trabalho para os que foram preguiçosos infâmia para aqueles cuja alma está degradada Ora as penas aflitivas efetivamente propostas são três formas de detenção a masmorra onde a pena de encarceramento é agravada por diversas medidas referentes à solidão à privação de luz às restrições de comida a limitação em que essas medidas anexas são atenuadas enfim a prisão propriamente dita que se reduz ao encarceramento puro e simples A diversidade tão solenemente prometida reduzse finalmente a essa penalidade uniforme e melancólica Houve aliás no momento deputados que se espantaram de que em vez de estabelecer uma relação entre delitos e penas se houvesse seguido um plano totalmente diferente De maneira que se eu traí meu país sou preso se matei meu pai sou preso todos os delitos imagináveis são punidos da maneira mais uniforme Tenho a impressão de ver um médico que para todas as doenças tem o mesmo remédio31 Pronta substituição que não foi privilégio da França Encontramola igual em tudo nos países estrangeiros Quando Catarina II nos anos que se seguiram imediatamente ao tratado Dos delitos e das penas manda redigir um projeto para um novo código das leis a lição de Beccaria sobre a especificidade e a variedade das penas não foi esquecida é repetida quase palavra por palavra É o triunfo da liberdade civil quando as leis criminais tiram cada pena da natureza particular de cada crime Então cessa qualquer arbitrariedade a pena não depende em nada do capricho do legislador mas da natureza da coisa não é de modo algum o homem que faz violência ao homem mas a própria ação do homem32 Alguns anos mais tarde os princípios gerais de Beccaria ainda fundamentam o novo código toscano e o que José II deu à Áustria e no entanto essas duas legislações fazem do encarceramento modulado segundo a duração e agravado em certos casos pelo ferrete ou pelas algemas uma pena quase uniforme trinta anos pelo menos de detenção por atentado contra o soberano por falsificação de moeda e por assassinato complicado com roubo de quinze a trinta anos por homicídio voluntário ou por roubo a mão armada de um mês a cinco anos por roubo simples etc33 Mas se essa colonização da penalidade pela prisão é de surpreender é porque esta não era como se imagina um castigo que já estivesse solidamente instalado no sistema penal logo abaixo da pena de morte e que teria naturalmente ocupado o lugar deixado vago pelo desaparecimento dos suplícios Na realidade a prisão e muitos países nesse ponto estavam na mesma situação da França tinha apenas uma posição restrita e marginal no sistema das penas Os textos o provam A ordenação de 1670 entre as penas aflitivas não cita a detenção A prisão perpétua ou temporária havia sem dúvida figurado entre as penas em certos costumes34 Mas pretendese que ela está caindo em desuso como outros suplícios Havia antigamente penas que não se praticam mais na França como escrever na testa ou rosto de um condenado sua pena e a prisão perpétua assim como não se deve condenar um criminoso a ser exposto às feras nem às minas35 De fato é certo que a prisão subsistira de maneira tenaz para sancionar as faltas sem gravidade e isto segundo os costumes ou hábitos locais Nesse sentido Soulatges fala das penas leves que a ordenação de 1670 não mencionara o anátema a admoestação a abstenção de lugar a satisfação à pessoa ofendida e a prisão temporária Em certas regiões principalmente as que haviam melhor conservado seu particularismo judiciário a pena de prisão tinha ainda uma grande extensão mas a coisa tinha suas dificuldades como no Roussillon recentemente anexado Mas através dessas divergências os juristas defendem firmemente o princípio de que a prisão não é vista como uma pena em nosso direito civil36 Seu papel é de ser uma garantia sobre a pessoa e sobre seu corpo ad continendos homines non ad puniendos diz o adágio nesse sentido o encarceramento de um suspeito tem um pouco o mesmo papel que o de um devedor A prisão assegura que temos alguém não o pune37 É este o princípio geral E se às vezes a prisão desempenha o papel de pena mesmo e em casos importantes é essencialmente a título do substituto substitui as galés para aqueles mulheres crianças inválidos que nelas não podem servir A condenação a ser encarcerado temporária ou definitivamente numa casa de força é equivalente à das galés38 Nessa equivalência vemos bem esboçarse uma possível substituição Mas para que ela se realizasse foi preciso que a prisão mudasse de estatuto jurídico Foi preciso também superar um segundo obstáculo que para a França pelo menos era considerável Com efeito a prisão era ainda mais desqualificada porque estava na prática diretamente ligada ao arbítrio real e aos excessos do poder soberano As casas de força os hospitais gerais as ordens do rei ou as do chefe de polícia as cartas timbradas obtidas pelos notáveis ou pelas famílias haviam constituído toda uma prática repressiva justaposta à justiça regular e ainda mais freqüentemente oposta a ela E esse encarceramento extrajudiciário era rejeitado tanto pelos juristas clássicos quanto pelos reformadores Prisões feito do príncipe dizia um tradicionalista como Serpillon que se abrigava por trás da autoridade do presidente Bouhier Embora os príncipes por razões de Estado cheguem às vezes a infligir esta pena a justiça ordinária não utiliza esses tipos de condenação39 Detenção figura e instrumento privilegiado do despotismo dizem os reformadores em inúmeras declarações Que se dirá dessas prisões secretas imaginadas pelo espírito fatal do monarquismo reservadas principalmente ou para os filósofos em cujas mãos a natureza colocou seu facho e que ousam iluminar seu século ou para essas almas orgulhosas e independentes que não têm a covardia de calar os males de sua pátria prisões cujas portas funestas são abertas por misteriosas cartas para aí sepultar para sempre suas infelizes vítimas Que se dirá mesmo dessas cartas obraprima de uma misteriosa tirania que invertem o privilégio que tem qualquer cidadão de ser ouvido antes de ser julgado e que são mil vezes mais perigosas para os homens que a invenção das Phalaris40 Sem dúvida que esses protestos vindos de horizontes tão diversos se referem não ao encarceramento como pena legal mas à utilização fora da lei da detenção arbitrária e indeterminada Nem por isso a prisão deixava de aparecer de uma maneira geral como marcada pelos abusos do poder E muitos rejeitamna por incompatível com uma boa justiça Quer em nome dos princípios jurídicos clássicos As prisões na intenção da lei sendo destinadas não a punir mas a garantir a presença das pessoas41 Quer em nome dos efeitos da prisão que já pune os que ainda não estão condenados que comunica e generaliza o mal que deveria prevenir e que vai contra o princípio da individualização da pena sancionando toda uma família dizse que a prisão é uma pena A humanidade se levanta contra esse horrível pensamento de que não é uma punição privar um cidadão do mais precioso dos bens mergulhálo ignominiosamente no mundo do crime arrancálo a tudo o que lhe é caro precipitálo talvez na ruína e retirarlhe não só a ele mas à sua infeliz família todos os meios de subsistência42 E os cahiers por várias vezes pedem a supressão dessas casas de internação Pensamos que as cadeias devem ser arrasadas43 E realmente o decreto de 13 de março de 1790 ordena que se ponha em liberdade todas as pessoas detidas nos castelos nas casas religiosas cadeias delegacias ou quaisquer outras prisões por cartas de prego ou por ordem dos agentes do poder executivo Como pôde a detenção tão visivelmente ligada a esse ilegalismo que é denunciado até no poder do príncipe em tão pouco tempo tornarse uma das formas mais gerais dos castigos legais A explicação mais freqüente é a formação durante a época clássica de alguns grandes modelos de encarceramento punitivo Seu prestígio ainda maior dado o fato de que os mais recentes vinham da Inglaterra e principalmente da América teria permitido superar o duplo obstáculo constituído pelas regras seculares do direito e o funcionamento despótico da prisão Muito rapidamente teriam afastado as maravilhas punitivas imaginadas pelos reformadores e imposto a realidade séria da detenção A importância desses modelos foi grande não se deve duvidar Mas são justamente eles que antes de fornecer a solução trazem problemas o de sua existência e o de sua difusão Como puderam nascer e principalmente como puderam ser aceitos de maneira tão geral Pois é fácil mostrar que se apresentam um certo número de pontos em comum com os princípios gerais da reforma penal em muitos pontos são inteiramente heterogêneos a ela e às vezes mesmo incompatíveis O mais antigo desses modelos o que passa por ter de perto ou de longe inspirado todos os outros é o Rasphuis de Amsterdam aberto em 159644 Destinava se em princípio a mendigos ou a jovens malfeitores Seu funcionamento obedecia a três grandes princípios a duração das penas podia pelo menos dentro de certos limites ser determinada pela própria administração de acordo com o comportamento do prisioneiro essa latitude podia aliás ser prevista pela sentença em 1597 um detento era condenado a doze anos de prisão que podiam se reduzir a oito se seu comportamento fosse satisfatório O trabalho era obrigatório feito em comum aliás a cela individual só era utilizada a título de punição suplementar os detentos dormiam 2 ou 3 em cada cama em celas que continham 4 a 12 pessoas e pelo trabalho feito os prisioneiros recebiam um salário Enfim um horário estrito um sistema de proibições e de obrigações uma vigilância contínua exortações leituras espirituais todo um jogo de meios para atrair para o bem e desviar do mal enquadrava os detentos no diaadia Podese tomar o Rasphuis de Amsterdam como exemplo básico Historicamente faz a ligação entre a teoria característica do século XVI de uma transformação pedagógica e espiritual dos indivíduos por um exercício contínuo e as técnicas penitenciárias imaginadas na segunda metade do século XVIII E deu às três instituições que são então implantadas os princípios fundamentais que cada uma desenvolverá numa direção particular A cadeia de Gand organizou o trabalho penal em torno principalmente de imperativos econômicos A razão dada é que a ociosidade é a causa geral da maior parte dos crimes Um levantamento um dos primeiros sem dúvida feito sobre os condenados na jurisdição de Alost em 1749 mostra que os malfeitores não eram artesões ou lavradores os operários só pensam no trabalho que os alimenta mas vagabundos que se dedicavam à mendicância45 Daí a idéia de uma casa que realizasse de uma certa maneira a pedagogia universal do trabalho para aqueles que se mostrassem refratários Quatro vantagens diminuir o número de processos criminais que custam caro ao Estado poderseiam assim economizar mais de 100000 libras em Flandres não ser mais necessário adiar os impostos para os proprietários dos bosques arruinados pelos vagabundos formar uma quantidade de novos operários o que contribuiria pela concorrência a diminuir a mãodeobra enfim permitir aos verdadeiros pobres ter os benefícios sem divisão da caridade necessária46 Essa pedagogia tão útil reconstituirá no indivíduo preguiçoso o gosto pelo trabalho recolocáloá por força num sistema de interesses em que o trabalho será mais vantajoso que a preguiça formará em torno dele uma pequena sociedade reduzida simplificada e coercitiva onde aparecerá claramente a máxima quem quer viver tem que trabalhar Obrigação do trabalho mas também retribuição que permite ao detento melhorar seu destino durante e depois da detenção O homem que não encontra sua subsistência deve absolutamente ser levado ao desejo de procurála pelo trabalho ela lhe é oferecida pela polícia e pela disciplina de alguma maneira ele é obrigado a se entregar a atração do ganho o excita em seguida corrigido em seus hábitos acostumado a trabalhar alimentado sem inquietação com alguns lucros que reserva para a saída ele aprendeu uma profissão que lhe garante uma subsistência sem perigo47 Reconstrução do Homo oeconomicus que exclui a utilização de penas muito breves o que impediria a aquisição das técnicas e do gosto pelo trabalho ou definitivas o que tornaria inútil qualquer aprendizagem O prazo de seis meses é curto demais para corrigir os criminosos e leválos ao espírito de trabalho em compensação o prazo perpétuo os desespera ficam indiferentes à correção dos hábitos e ao espírito de trabalho só se ocupam com projetos de evasão e de revolta e já que não foram julgados quanto a serem privados da vida por que procurar tornála insuportável48 A duração da pena só tem sentido em relação a uma possível correção e a uma utilização econômica dos criminosos corrigidos Ao princípio do trabalho o modelo inglês acrescenta como condição essencial para a correção o isolamento O esquema fora dado em 1775 por Hanway que o justificava em primeiro lugar por razões negativas a promiscuidade na prisão dá maus exemplos e possibilidades de evasão no imediato de chantagem ou de cumplicidade para o futuro A prisão se pareceria demais com uma fábrica deixando se os detentos trabalhar em comum As razões positivas em seguida o isolamento constitui um choque terrível a partir do qual o condenado escapando às más influências pode fazer meiavolta e redescobrir no fundo de sua consciência a voz do bem o trabalho solitário se tornará então tanto um exercício de conversão quanto de aprendizado não reformará simplesmente o jogo de interesses próprios ao homo oeconomicus mas também os imperativos do indivíduo moral A cela esta técnica do monaquismo cristão e que só subsistia em países católicos tornase nessa sociedade protestante o instrumento através do qual se podem reconstituir ao mesmo tempo o homo oeconomicus e a consciência religiosa Entre o crime e a volta ao direito e à virtude a prisão constituirá um espaço entre dois mundos um lugar para as transformações individuais que devolverão ao Estado os indivíduos que este perdera Aparelho para modificar os indivíduos que Hanway chama um reformatório49 São esses princípios gerais que Howard e Blackstone põem em prática em 1779 quando a independência dos Estados Unidos impede as deportações e se prepara uma lei para modificar o sistema de penas O encarceramento com a finalidade de transformação da alma e do comportamento faz sua entrada no sistema das leis civis O preâmbulo da lei redigido por Blackstone e Howard descreve o encarceramento individual em sua tríplice função de exemplo temível de instrumento de conversão e de condição para um aprendizado submetidos a uma detenção isolada a um trabalho regular e à influência da instrução religiosa certos criminosos poderiam não só assustar aqueles que ficassem tentados a imitálos mas ainda eles mesmos se corrigirem e contrair o hábito do trabalho50 Donde a decisão de construir duas penitenciárias uma para os homens outra para as mulheres onde os detentos isolados seriam obrigados aos trabalhos mais servis e mais compatíveis com a ignorância a negligência e a obstinação dos criminosos andar numa roda para movimentar uma máquina fixar um cabrestante polir mármore bater cânhamo raspar paucampeche retalhar trapos fazer cordas e sacos Na realidade só uma penitenciária foi construída a de Gloucester e que só parcialmente correspondia ao esquema inicial confinamento total para os criminosos mais perigosos para os outros trabalho em comum durante o dia e separação à noite Enfim o modelo de Filadélfia O mais famoso sem dúvida porque surgia ligado às inovações políticas do sistema americano e também porque não foi votado como os outros ao fracasso imediato e ao abandono foi continuamente retomado e transformado até às grandes discussões dos anos 1830 sobre a reforma penitenciária Em muitos pontos a prisão de Walnut Street aberta em 1790 sob a influência direta dos meios quaker retomava o modelo de Gand e de Gloucester51 Trabalho obrigatório em oficinas ocupação constante dos detentos custeio das despesas da prisão com esse trabalho mas também retribuição individual dos prisioneiros para assegurar sua reinserção moral e material no mundo estrito da economia os condenados são então constantemente empregados em trabalhos produtivos para fazêlos suportar os gastos da prisão para não deixálos na inação e para lhes preparar alguns recursos para o momento em que deverá cessar seu cativeiro52 A vida é então repartida de acordo com um horário absolutamente estrito sob uma vigilância ininterrupta cada instante do dia é destinado a alguma coisa prescrevese um tipo de atividade e implica obrigações e proibições Todos os prisioneiros se levantam cedo de madrugada de maneira que depois de terem feito as camas se terem lavado e atendido a outras necessidades começam o trabalho geralmente ao nascer do sol A partir desse momento ninguém pode entrar nas salas ou outros lugares que não sejam as oficinas e locais designados para seus trabalhos No fim do dia toca um sino que os avisa para deixar o trabalho Eles têm meia hora para arrumar as camas e depois disso não lhes é mais permitido conversar alto e fazer o mínimo ruído53 Como em Gloucester o confinamento solitário não é total é para certos condenados que em outras épocas teriam recebido a morte e para aqueles que no interior da prisão merecem uma punição especial Lá sem ocupação sem nada para distraílo à espera e na incerteza do momento em que será libertado o prisioneiro passa longas horas ansiosas trancado em pensamentos que se apresentam ao espírito de todos os culpados54 Como em Gand enfim a duração do encarceramento pode variar com o comportamento do detento os inspetores da prisão depois de consultar o processo obtêm das autoridades e isso sem dificuldades até pelos anos 1820 o perdão para os detentos que se comportarem bem Walnut Street comporta além disso um certo número de traços que lhe são específicos ou pelo menos que desenvolvem o que estava virtualmente presente nos outros modelos Em primeiro lugar o princípio da nãopublicidade da pena Se a condenação e o que a motivou devem ser conhecidos por todos a execução da pena em compensação deve ser feita em segredo o público não deve intervir nem como testemunha nem como abonador da punição a certeza de que atrás dos muros o detento cumpre sua pena deve ser suficiente para constituir um exemplo terminados aqueles espetáculos de rua criados pela lei de 1786 quando impôs a certos condenados obras públicas a executar nas cidades ou estradas55 O castigo e a correção que este deve operar são processos que se desenrolam entre o prisioneiro e aqueles que o vigiam Processos que impõem uma transformação do indivíduo inteiro de seu corpo e de seus hábitos pelo trabalho cotidiano a que é obrigado de seu espírito e de sua vontade pelos cuidados espirituais de que é objeto São fornecidas Bíblias e outros livros de religião prática o clero das diversas obediências que se encontrar na cidade e nos arrabaldes realiza o serviço religioso uma vez por semana e qualquer outra pessoa edificante pode ter acesso aos prisioneiros todo o tempo56 Mas a própria administração tem o papel de empreender essa transformação A solidão e o retorno sobre si mesmo não bastam assim tampouco as exortações puramente religiosas Deve ser feito com tanta freqüência quanto possível um trabalho sobre a alma do detento A prisão aparelho administrativo será ao mesmo tempo uma máquina para modificar os espíritos Quando o detento entra o regulamento lhe é lido ao mesmo tempo os inspetores procuram fortalecer nele as obrigações morais onde ele está demonstramlhe a infração em que caiu em relação a eles o mal que disso conseqüentemente resultou para a sociedade que o protegia e a necessidade de fazer uma compensação por seu exemplo e ao se emendar Fazemno em seguida comprometerse a cumprir seu dever com alegria a se comportar decentemente prometendolhe ou fazendoo esperar que antes da expiração do termo da sentença poderá obter seu relaxamento se se comportar bem De vez em quando os inspetores sem falta conversam com os criminosos um depois do outro relativamente a seus deveres como homens e como membros da sociedade57 Mas o mais importante sem dúvida é que esse controle e essa transformação do comportamento são acompanhados ao mesmo tempo condição e conseqüência da formação de um saber dos indivíduos Ao mesmo tempo que o próprio condenado a administração de Walnut Street recebe um relatório sobre seu crime as circunstâncias em que foi cometido um resumo de interrogatório do culpado notas sobre a maneira como ele se conduziu antes e depois da sentença Outros tantos elementos indispensáveis se queremos determinar quais serão os cuidados necessários para destruir seus hábitos antigos58 E durante todo o tempo da detenção ele será observado seu comportamento será anotado dia por dia e os inspetores doze notáveis da cidade designados em 1795 que dois a dois visitam a prisão toda semana deverão se informar do que se passou tomar conhecimento da conduta de cada condenado e designar aqueles para os quais será pedida a graça Esses conhecimentos dos indivíduos continuamente atualizados permitem repartilos na prisão menos em função de seus crimes que das disposições que demonstram A prisão tornase uma espécie do observatório permanente que permite distribuir as variedades do vício ou da fraqueza A partir de 1797 os prisioneiros estavam divididos em quatro classes a primeira para os que foram explicitamente condenados ao confinamento solitário ou que cometeram faltas graves na prisão outra é a reservada aos que são bem conhecidos por serem velhos delinqüentes ou cuja moral depravada temperamento perigoso disposições irregulares ou conduta desordenada se manifestaram durante o tempo em que estavam na prisão outra para aqueles de quem o caráter e as circunstâncias antes e depois da condenação fazem pensar que não são delinqüentes comuns Existe enfim uma seção especial uma classe de prova para aqueles cujo temperamento ainda não é conhecido ou que se são mais bem conhecidos não merecem entrar na categoria anterior59 Organizase todo um saber individualizante que toma como campo de referência não tanto o crime cometido pelo menos em estado isolado mas a virtualidade de perigos contida num indivíduo e que se manifesta no comportamento observado cotidianamente A prisão funciona aí como um aparelho de saber Entre este aparelho punitivo proposto pelos modelos flamengo inglês americano entre esses reformatórios e todos os castigos imaginados pelos reformadores podemse estabelecer pontos de convergência e disparidades Pontos de convergência Em primeiro lugar o retorno temporal da punição Os reformatórios se dão por função também eles não apagar um crime mas evitar que recomece São dispositivos voltados para o futuro e organizados para bloquear a repetição do delito O objeto das penas não é a expiação do crime cuja determinação deve ser deixada ao Ser supremo mas prevenir os delitos da mesma espécie60 E na Pensilvânia Buxton afirmava que os princípios de Montesquieu e de Beccaria deviam ter agora força de axiomas a prevenção dos crimes é o único fim do castigo61 Não se pune portanto para apagar um crime mas para transformar um culpado atual ou virtual o castigo deve levar em si uma certa técnica corretiva Ainda nesse ponto Rush está bem próximo dos juristas reformadores não fora talvez a metáfora que utiliza quando diz inventaramse sem dúvida máquinas que facilitam o trabalho bem mais se deveria louvar aquele que inventasse os métodos mais rápidos e mais eficazes para trazer de volta à virtude e à felicidade a parte mais viciosa da humanidade e para extirpar uma parte do vício que está no mundo62 Enfim os modelos anglosaxões como os projetos dos legisladores e dos teóricos utilizam processos para singularizar a pena em sua duração sua natureza sua intensidade na maneira como se desenrola o castigo deve ser ajustado ao caráter individual e ao que este comporta de perigo para os outros O sistema das penas deve estar aberto às variáveis individuais Em seu esquema geral os modelos mais ou menos derivados do Rasphuis de Amsterdam não estavam em contradição com o que propunham os reformadores Poderseia mesmo pensar à primeira vista que eram apenas os desenvolvimentos ou o esboço dessa proposta ao nível das instituições concretas E no entanto a disparidade salta aos olhos desde que se trata de definir as técnicas dessa correção individualizante Onde se faz a diferença é no procedimento de acesso ao indivíduo na maneira como o poder punitivo se apossa dele nos instrumentos que utiliza para realizar essa transformação é na tecnologia da pena não em seu fundamento teórico na relação que ela estabelece no corpo e na alma e não na maneira como ela se insere no interior do sistema do direito Vejamos o método dos reformadores Será o ponto a que se refere a pena aquilo com que ela tem poder sobre o indivíduo As representações representação de seus interesses representação de suas vantagens suas desvantagens seu prazer e seu desprazer e se acontece que o castigo se aposse do corpo lhe aplique técnicas que não tem nada a invejar aos suplícios é na medida em que esse corpo é para o condenado e para os espectadores um objeto de representação O instrumento com o qual se age sobre as representações Outras representações ou antes as duplas de idéias crimepunição vantagem imaginada do crimedesvantagem percebida dos castigos esses emparelhamentos só podem funcionar no elemento da publicidade cenas punitivas que os estabelecem ou os reforçam aos olhos de todos discursos que os fazem circular e revalorizam a cada instante o jogo dos sinais O papel do criminoso na punição é reintroduzir diante do código e dos crimes a presença real do significado ou seja dessa pena que segundo os termos do código deve estar infalivelmente associada à infração Produzir com abundância e com evidência esse significado reativar desse modo o sistema significante do código fazer funcionar a idéia de crime como um sinal de punição é com essa moeda que o malfeitor paga sua dívida à sociedade A correção individual deve então realizar o processo de requalificação do indivíduo como sujeito de direito pelo reforço dos sistemas de sinais e das representações que fazem circular O aparelho da penalidade corretiva age de maneira totalmente diversa O ponto de aplicação da pena não é a representação é o corpo é o tempo são os gestos e as atividades de todos os dias a alma também mas na medida em que é sede de hábitos O corpo e a alma como princípios dos comportamentos formam o elemento que agora é proposto à intervenção punitiva Mais que sobre uma arte de representações ela deve repousar sobre uma manipulação refletida do indivíduo Qualquer crime tem sua cura na influência física e moral é necessário então para determinar os castigos conhecer o princípio das sensações e das simpatias que se produzem no sistema nervoso63 Quanto aos instrumentos utilizados não são mais jogos de representação que são reforçados e que se faz circular mas formas de coerção esquemas de limitação aplicados e repetidos Exercícios e não sinais horários distribuição do tempo movimentos obrigatórios atividades regulares meditação solitária trabalho em comum silêncio aplicação respeito bons hábitos E finalmente o que se procura reconstruir nessa técnica de correção não é tanto o sujeito de direito que se encontra preso nos interesses fundamentais do pacto social é o sujeito obediente o indivíduo sujeito a hábitos regras ordens uma autoridade que se exerce continuamente sobre ele e em torno dele e que ele deve deixar funcionar automaticamente nele Duas maneiras portanto bem distintas de reagir à infração reconstituir o sujeito jurídico do pacto social ou formar um sujeito de obediência dobrado à forma ao mesmo tempo geral e meticulosa de um poder qualquer Tudo isso não passaria talvez de uma diferença bem especulativa pois no total tratase nos dois casos de formar indivíduos submissos se a penalidade de coerção não trouxesse consigo algumas conseqüências capitais O treinamento do comportamento pelo pleno emprego do tempo a aquisição de hábitos as limitações do corpo implicam entre o que é punido e o que pune uma relação bem particular Relação que não só torna simplesmente inútil a dimensão do espetáculo ela o exclui64 O agente de punição deve exercer um poder total que nenhum terceiro pode vir perturbar o indivíduo a corrigir deve estar inteiramente envolvido no poder que se exerce sobre ele Imperativo do segredo E portanto também autonomia pelo menos relativa dessa técnica de punição ela deverá ter seu funcionamento suas técnicas seu saber ela deverá fixar suas normas decidir de seus resultados descontinuidade ou em todo caso especificidade em relação ao poder judiciário que declara a culpa e fixa os limites gerais da punição Ora essas duas conseqüências segredo e autonomia no exercício do poder de punir são exorbitantes para uma teoria e uma política de penalidade que se propunha dois objetivos fazer todos os cidadãos participarem do castigo do inimigo social tornar o exercício do poder de punir inteiramente adequado e transparente às leis que o delimitam publicamente Castigos secretos e não codificados pela legislação um poder de punir que se exerce na sombra de acordo com critérios e instrumentos que escapam ao controle é toda a estratégia da reforma que corre o risco de ser comprometida Depois da sentença é constituído um poder que lembra o que era exercido no antigo sistema O poder que aplica às penas ameaça ser tão arbitrário tão despótico quanto aquele que antigamente as decidia No total a divergência é a seguinte cidade punitiva ou instituição coercitiva De um lado funcionamento do poder penal repartido em todo o espaço social presente em toda parte como cena espetáculo sinal discurso legível como um livro aberto que opera por uma recodificação permanente do espírito dos cidadãos que realiza a repressão do crime por esses obstáculos colocados à idéia do crime que age de maneira invisível e inútil sobre as fibras moles do cérebro como dizia Servan Um poder de punir que correria ao longo de toda a rede social agiria em cada um de seus pontos e terminaria não sendo mais percebido como poder de alguns sobre alguns mas como reação imediata de todos em relação a cada um De outro um funcionamento compacto do poder de punir ocupação meticulosa do corpo e do tempo do culpado enquadramento de seus gestos de suas condutas por um sistema de autoridade e de saber uma ortopedia concertada que é aplicada aos culpados a fim de corrigilos individualmente gestão autônoma desse poder que se isola tanto do corpo social quanto do poder judiciário propriamente dito O que se engaja no aparecimento da prisão é a institucionalização do poder de punir ou mais precisamente o poder de punir com o objetivo estratégico que lhe foi dado no fim do século XVIII a redução dos ilegalismos populares será mais bem realizado escondendose sob uma função social geral na cidade punitiva ou investindose numa instituição coercitiva no local fechado do reformatório Em todo caso podese dizer que os encontramos no fim do século XVIII diante de três maneiras de organizar o poder de punir A primeira é a que ainda estava funcionando e se apoiava no velho direito monárquico As outras se referem ambas a uma concepção preventiva utilitária corretiva de um direito de punir que pertenceria à sociedade inteira mas são muito diferentes entre si ao nível dos dispositivos que esboçam Esquematizando muito poderíamos dizer que no direito monárquico a punição é um cerimonial de soberania ela utiliza as marcas rituais da vingança que aplica sobre o corpo do condenado e estende sob os olhos dos espectadores um efeito de terror ainda mais intenso por ser descontínuo irregular e sempre acima de suas próprias leis a presença física do soberano e de seu poder No projeto dos juristas reformadores a punição é um processo para requalificar os indivíduos como sujeitos de direito utiliza não marcas mas sinais conjuntos codificados de representações cuja circulação deve ser realizada o mais rapidamente possível pela cena do castigo e a aceitação deve ser a mais universal possível Enfim no projeto de instituição carcerária que se elabora a punição é uma técnica de coerção dos indivíduos ela utiliza processos de treinamento do corpo não sinais com os traços que deixa sob a forma de hábitos no comportamento e ela supõe a implantação de um poder específico de gestão da pena O soberano e sua força o corpo social o aparelho administrativo A marca o sinal o traço A cerimônia a representação o exercício O inimigo vencido o sujeito de direito em vias de requalificação o indivíduo submetido a uma coerção imediata O corpo que é supliciado a alma cujas representações são manipuladas o corpo que é treinado temos aí três séries de elementos que caracterizam os três dispositivos que se defrontam na última metade do século XVIII Não podemos reduzilos nem a teorias de direito se bem que eles lhes sejam paralelos nem identificálos a aparelhos ou a instituições se bem que se apoiem sobre estes nem fazêlos derivar de escolhas morais se bem que nelas encontrem eles suas justificações São modalidades de acordo com as quais se exerce o poder de punir Três tecnologias de poder O problema é então o seguinte como é possível que o terceiro se tenha finalmente imposto Como o modelo coercitivo corporal solitário secreto do poder de punir substitui o modelo representativo cênico significante público coletivo Por que o exercício físico da punição e que não é o suplício substituiu com a prisão que é seu suporte institucional o jogo social dos sinais de castigo e da festa bastarda que os fazia circular NOTAS CAPÍTULO I 1 É assim que a chancelaria em 1789 resume a posição geral dos cahiers de doléances quanto aos suplícios VE Selligman La Justice sous la Révolution t 1 1901 e A Desjardin Les Cahiers des Etats généraux et la justice criminelle 1883 p 1320 2 Cahiers de doléances cadernos dos delegados aos Estados Gerais de 1789 em que se registravam seus pedidos NT 3 J Petion de Villeneuve Discurso na Constituinte Archives parlementaires t XXVI p 641 4 A Boucher dArgis Observations sur les lois criminelles 1781 p 125 5 Lachèze Discurso na Constituinte 3 de junho de 1791 Archives Parlementaires t XXVI 6 V particularmente a polêmica de Muyart de Vouglans contra Beccaria Réfutation du Traité des délits et des peines 1766 7 P Chaunu Annales de Normandie 1962 p 236 e 1966 p 107108 8 E Le RoyLadurie in Contrepoint 1973 9 NW Mogensen Aspects de la société augeronne aux XVIIe et XVIIIe siècles 1971 Tese datilografada p 326 O autor mostra que na região de Auge os crimes de violência são quatro vezes menos numerosos nas vésperas da Revolução que no fim do reinado de Luís XIV De uma maneira geral os trabalhos dirigidos por Pierre Chaunu sobre a criminalidade na Normandia demonstram esse aumento da fraude às custas da violência V Artigos de B Boutelet de J Cl Gégot e V Boucheron nos Annales de Normandie de 1962 1966 e 1971 Para Paris v P Petrovitch in Crime er criminalité en France aux XVIIe et XVIIIe siècles 1971 Mesmo fenômeno parece na Inglaterra v Ch Hibbert The roots of evil 1966 p 72 e J Tobias Crime and industrial society 1967 p 37 10 P Chaunu Annales de Normandie 1971 p 56 11 Thomas Fowell Buxton Parliamentary Debate 1819 XXXIX 12 E Le RoyLadurie Contrepoint 1973 O estudo de A Farge sobre o roubo de alimentos em Paris no século XVIII Le vol laliments à Paris au XVIIIe siècle 1974 confirma essa tendência de 1750 a 1755 5 das sentenças baseadas nisso levam às galés mas 15 de 1775 a 1790 a severidade dos tribunais se acentua com o tempo pesa uma ameaça sobre os valores úteis à sociedade que se pretende organizada e respeitadora da propriedade p 130142 13 G Le Trosne Mémoires sur les vagabonds 1764 p 4 14 V por exemplo C Dupaty Mémoire justificatif pour trois hommes condamnés à la roue 1786 p 247 15 Um dos presidentes da Câmara de la Tournelle dirigindose ao rei em 2 de agosto de 1768 citado in Arlette Farge p 66 16 P Chaunu Anales de Normandie 1966 p 108 17 A expressão é de NW Mogensen loc cit 18 Archives parlementaires t XII p 344 19 Sobre esse assunto podese consultar entre outros S Linguet Nécessité dune refórme dans 1administration de la justice 1764 ou A Boucher dArgis Chaier dun magistrat 1789 20 A respeito dessa crítica sobre o excesso de poder e sua má distribuição no aparelho judiciário v particularmente C Dupaty Lettres sur la procédure criminelle 1788 PL de Lacretelle Dissertation sur le ministère public in Discours sur le préjugé des peines infamantes 1784 G Target LEsprit des cahiers présentés aux Etats généraux 1789 21 Cf N Bergasse a respeito do poder judiciário E preciso que desprovido de qualquer atividade contra o regime político do Estado e não tendo nenhuma influência sobre as vontades que concorrem para formar esse regime ou para mantêlo ele disponha para proteger todos os indivíduos e todos os direitos de tal força que todopoderosa para defender e socorrer ela se torne absolutamente nula logo que mudando seu objetivo se tenderá utilizála para oprimir Rapport à la Constituante sur le pouvoir judiciaire 1789 p 1112 22 Le Trosne Mémoire sur les vagabonds 1764 p 4 23 YM Bercé Croquants et nupieds 1974 p 161 24 Droit de vaine pâture direito de levar o gado a pastar nos pastos naturais e não cercados dos outros depois da primeira colheita do feno NT 25 VO Festy Les délits ruraux et leur répression sous la Révolution et le Consulat 1956 M Agulhon La vie sociale en Provence 1970 26 P Colquhoun Traité sur la police de Londres tradução de 1807 t 1 Nas páginas 153 182 e 292339 Colquhoun expõe muito detalhadamente esses recursos 27 Ibid p 297298 28 G Le Trosne Mémoire sur les vagabonds 764 p 8 50 54 6162 29 G Le Trosne Vues sur la justice criminelle 1777 p 31 103106 30 JJ Rousseau Contrat Social livro II cap V Devese notar que essas idéias de Rousseau foram usadas na Constituinte por certos deputados que queriam manter um sistema de penas muito rigoroso E curiosamente os princípios do Contrat puderam servir para sustentar a velha correspondência de atrocidade entre crime e castigo A proteção devida aos cidadãos exige que as penas sejam medidas de acordo com a atrocidade dos crimes e que não se sacrifique em nome da humanidade a própria humanidade Mougins de Roquefort que cita a passagem em questão do Contrat Social Discurso na Constituinte Archives Parlementaires t XXVI p 637 31 Beccaria Des délits et des peines ed 1856 p 87 32 PL de Lacretelle Discours sur le préjugé des peines infamantes 1784 p 129 33 Ibid p 131 34 A Duport Discurso na Constituinte 22 de dezembro de 1789 Archives parlementaires t X p 744 Poderíamos no mesmo sentido citar os vários concursos propostos no fim do século XVIII pelas sociedades e academias científicas como fazer que a suavidade das instruções e das penas se concilie com a certeza de um castigo pronto e exemplar e que a sociedade civil encontre a maior segurança possível para a liberdade e a humanidade Société économique de Berne 1777 Marat respondeu com seu Plan de législation criminelle Quais são os meios de suavizar o rigor das leis penais na França sem prejudicar a segurança pública Academia de ChâlonssurMarne 1780 os premiados foram Brissot e Bernardi tenderá a extrema severidade das leis a diminuir o número e a enormidade dos crimes numa nação depravada Academia de Marselha 1786 o premiado foi Eymar 35 G Target Observations sur le projet du Code pénal in Locré La Législation de la France t XXIX p 78 Encontrado numa forma invertida em Kant 36 C E de Pastoret Des lois pénales 1790 vol II p 21 37 G Filangieri La Science de la législation trad 1786 t IV p 214 38 Beccaria Des délits et des peines 1856 p 87 39 A Barnave Discurso na Constituinte A sociedade não vê nas punições que inflige o gozo bárbaro de fazer sofrer um ser humano vê nelas a precaução necessária para prevenir crimes semelhantes para afastar da sociedade os males que ameaçam atentar contra ela Archives parlementaires t XXVII 6 jun 1791 p 9 40 Beccaria Traité des délits et des peines p 89 41 Beccaria Des délits et des peines p 87 42 JP Brissot Théorie des lois criminelles 1781 t 1 p 24 43 Beccaria Des délits et des peines p 26 44 Beccaria ibid V também Brissot Se a misericórdia é justa a lei é má onde a legislação é boa as misericórdias não passam de crimes contra a lei Théorie des lois criminelles 1781 t 1 p 200 45 G de Mably De la législation Oeuvres completes 1789 t IX p 327 V também Vattel É menos a atrocidade das penas que a exatidão na exigência que retém todos no dever Le Droit des gens 1768 p 163 46 A Duport Discurso na Constituinte Archives parlementaires p 45 t XXI 47 G de Mably De la législation Oeuvres complètes 1789 t IX p 348 48 G Seigneux de Correvon Essai sur 1usage de la torture 1768 p 49 49 P Risi Observations de jurisprudence criminelle trad 1758 p 53 50 Sobre esse tema ver entre outros S Linguer Nécessité dune réforme de ladministration de la justice criminelle 1764 p 8 51 PL de Lacretelle Discours sur les peines infamamantes 1784 p 144 52 JP Marat Plan de législation criminelle 1780 p 34 53 Sobre o caráter não individualizante da casuística ver P Cariou Les Idéalités casuistiques tese datilografia 54 PL de Lacretelle Réflexions sur la législation pénale in Discours sur les peines infamantes 1784 p 351352 55 Contrariamente ao que disseram Carnot ou F Helie e Chauveau a reincidência era muito claramente sancionada em bom número de leis no Antigo Regime A ordenação de 1549 declara que o malfeitor que recomeça é um ser execrável infame eminentemente pernicioso à coisa pública as reincidências de blasfêmia de roubo de vadiagem etc eram passíveis de penas especiais 56 Le Peletier de SaintFargeau Archives parlementaires t XXVI p 321322 No ano seguinte Belart pronuncia o que pode ser considerada a primeira defesa por um crime passional É o caso Gras v Annales du barreau moderne 1823 t III p 34 57 JM Servan Discours sur 1administration de la justice criminelle 1767 p 35 CAPÍTULO II 1 Beccaria Des délits et des peines ed de 1856 p 119 2 Ibid 3 JP Marat Plan de législation criminelle 1780 p 33 4 FM Vermeil Essai sur les réformes à faire dans notre législation criminelle 1781 p 68145 Cf também Ch E Dufriche de Valazé Des lois pénales 1784 p 349 5 Le Peletier de SaintFargeau Archives parlementaires t XXVI p 321322 6 Beccaria Des délits et des peines 1856 p 114 7 Ibid p 135 8 Mably De la législation Oeuvres complètes vol IX p 246 9 JP Brissot Théorie des lois criminelles 1781 vol I p 258 10 PL de Lacretelle Réflexions sur la législation pénale in Discours sur les peines infamantes 1784 p 361 11 Beccaria Des délits et des peines p 113 12 GE Pastoret Des lois pénales 1790 vol I p 49 13 Le Peletier de SaintFargeau Archives parlementaires t XXVI Os autores que renunciam à pena de morte prevêem algumas penas definitivas JP Brissot Théorie des lois criminelles 1781 p 2930 Ch E Dufriche de Valazé Des lois pénales 1784 p 344 prisão perpétua para os que foram julgados irremediavelmente maus 14 Le Peletier de SaintFargeau Archives parlementaires t XXVI p 329330 15 Ch E Dufriche de Valazé Des lois pénales 1784 p 346 16 A Boucher dArgis Observations sur les lois criminelles 1781 p 139 17 Ver L Masson La révolution pénale en 1791 p 139 Contra o trabalho penal objetavase entretanto que ele implicava no recurso à violência Le Peletier ou na profanação do caráter sagrado do trabalho Duport Rabaud SaintEtienne chama a atenção para a expressão trabalhos forçados em oposição a trabalhos livres que pertencem exclusivamente aos homens livres Archives parlementaires t XXVI p 710s 18 JM Servan Discours sur 1administration de la justice criminelle 1767 p 3536 19 Dufau Discurso à Constituinte Archives parlementaires t XXVI p 688 20 Ibid p 329330 21 S Bexon Code de sûreté publique 1807 2ª parte p 2425 Tratavase de um projeto apresentado ao rei da Baviera 22 JP Brissot Thérie des lois criminelles 1781 23 Archives parlementaires t XXVI p 322 24 JM Servan Discours sur 1administration de la justice criminelle 1767 p 37 25 FM Vermeil Essai sur les réformes à faire dans notre législation criminelle 1781 p 148149 26 Cf Archives parlementaires t XXVI p 712 27 G de Mably De la législation Oeuvres complètes 1789 t IX p 338 28 Ch E Dufriche de Valazé Des lois pénales 1784 p 344345 29 CFM de Rémusat Archives parlementaires t LXXI1 1 dez 1831 p 185 30 Cf E Decazes Relatório ao Rei sobre as prisões in Le Moniteur 11 abr 1819 31 Ch Chabroud Archives parlementaires t XXVI p 618 32 Catarina II Instructions pour la commission chargée de dresser le projet du nouveau code des lois art 67 33 Uma parte desse Código foi traduzida na introdução à P Colquhoun Traité sur la police de Londres tradução francesa 1807 vol I p 84 34 Cf por exemplo Coquille Coutume du Nivernais 35 G du Rousseaud de la Combe Traité des matières criminelles 1741 p 3 36 F Serpillon Code criminel 1767 t III p 1095 Encontramos entretanto em Serpillon a idéia de que o rigor da prisão é um começo de pena 37 É assim que se devem compreender os numerosos regulamentos referentes às prisões e que tratam do rigor dos carcereiros da segurança dos locais e da impossibilidade dos prisioneiros se comunicarem Por exemplo a decisão do parlamento de Dijon de 21 de setembro de 1706 Cf também F Serpillon Code criminel 1767 t III p 601647 38 É o que determina a declaração de 4 de março de 1724 sobre as reincidências de roubo ou a de 18 de julho de 1724 a respeito da vadiagem Um rapazinho que não tivesse idade para ir para as galés ficava numa casa de detenção até o momento em que podia ser enviado para lá às vezes para purgar a totalidade da pena Cf Crime et criminalité en France sous 1Ancien Régime 1971 p 266s 39 F Serpillon Code criminel 1767 t III p 1095 40 JP Brissot Théorie des lois criminelles 1781 t I p 173 41 Paris intra muros Nobreza citado in A Desjardin Les cahiers de doléance et la justice criminelle p 477 42 Langres Trois Ordres citado ibid p 483 43 Briey Tiers Etat citado ibid p 484 Cf P Goubert e M Denis Les Français ont la parole 1964 p 203 Encontramse também nos Cahiers pedidos para a manutenção de casas de detenção que as famílias pudessem utilizar 44 Cf Thorsten Sellin Pioneering in Penology 1944 que dá um estudo exaustivo do Rasphuis e do Spinhuis de Amsterdam Podemos deixar de lado um outro modelo freqüentemente citado no século XVIII É o proposto por Mabillon nas Réflexions sur les prisions des ordres religieux reeditado em 1845 Parece que esse texto foi exumado no século XIX no momento em que os católicos disputavam com os protestantes o lugar que estes haviam tomado no movimento da filantropia e em certas repartições O opúsculo de Mabillon que parece ter ficado pouco conhecido e sem influência mostraria que o primeiro pensamento do sistema penitenciário americano é um pensamento totalmente monástico e francês a despeito do que se possa ter dito para lhe atribuir uma origem genebrina ou pensilvaniana L Faucher 45 Vilan XIV Mémoire sur les moyens de corriger les malfaiteurs 1773 p 64 esta memória que é ligada à fundação da casa de força de Gand permaneceu inédita até 1841 A freqüência das penas de banimento acentuava ainda as relações entre crime e vadiagem Em 1771 os Estados de Flandres constatavam que as penas de banimento editadas contra os mendigos permanecem sem efeito já que os Estados se enviam reciprocamente os indivíduos que acham perniciosos em seu território Resulta disso que um mendigo assim mandado de um lugar para o outro terminará sendo enforcado enquanto que se houvesse sido acostumado ao trabalho não chegaria a esse mau caminho L Stoobant in Annales de la Société dhistoire de Gand t III 1898 p 228 Cf figura n 15 46 Vilan XIV Mémoire p 68 47 Ibid p 107 48 Ibid p 102103 49 J Hanway The Defects of Police 1775 50 Preâmbulo do Bill de 1779 citado por Julius Leçons sur les prisons trad francesa 1831 vol I p 299 51 Os quakers com toda certeza também conheciam o Rasphuis e o Spinhuis de Amsterdam Cf T Sellin Pioneering in Penology p 109110 De qualquer modo a prisão de Walnut Street se situava na continuação da Almhouse aberta em 1767 e da legislação penal que os quakers haviam querido impor apesar da administração inglesa 52 G de La RochefoucauldLiancourt Des prisons de Philadelphie 1796 p 9 53 J Turnbull Visite à la prison de Philadelphie trad francesa 1797 p 1516 54 Caleb Lownes in NK Teeters Cradle of Penitentiary 1955 p 49 55 Sobre as desordens provocadas por essa lei cf B Rush An Inquiry Into the Effects of Public Punishment 1787 p 59 e Roberts Vaux Notices p 45 Devese notar que no relatório de JL Siegel que inspirara o Rasphuis de Amsterdam era previsto que as penas não seriam proclamadas publicamente que os prisioneiros seriam levados à casa de correção à noite que os guardiães se comprometeriam sob juramento a não lhes revelar a identidade e não seria permitida nenhuma visita T Sellin Pioneering in Penology p 2728 56 Primeiro relatório dos inspetores de Walnut Street citado por Teeters p 5354 57 J Turnbull Visite à la prison de Philadelphie trad 1797 p 27 58 B Rush que foi um dos inspetores nota o seguinte depois de uma visita a Walnut Street Cuidados morais pregação leitura de bons livros limpeza das roupas e dos quartos banhos falase em voz baixa pouco vinho o mínimo de fumo pouca conversa obscena ou profana Trabalho constante horta bem cuidada está bonita 1200 cabeças de repolho In NK Teeters The cradle of penitentiary 1935 p 50 59 Minutes of the Board 16 de junho de 1797 citado in NK Teeters op cit p 59 60 W Blackstone Commentaire sur le Code criminel dAngleterre trad francesa 1776 p 19 61 W Bradford An Inquiry How Far the Punishment of Death Is Necessary in Pennsylvania 1793 p 3 62 B Rush An Inquiry into the Effects of Public Punishments 1787 p 14 Esta idéia de um aparelho para transformar já se encontra em Hanway no projeto de um reformatório A idéia de hospital e a de malfeitor são incompatíveis mas tentemos fazer da prisão um reformatório reformatory autêntico e eficaz em vez de que seja como as outras uma escola de vício Defects of Police p 52 63 B Rush An Inquiry into the Effects of Public Punishments 1787 p 13 64 Cf as críticas que Rush fazia aos espetáculos punitivos particularmente aos que imaginara Dufriche de Valazé An Inquiry into the Effects or Public Punishments 1787 p 59 Terceira Parte DISCIPLINA CAPÍTULO I Os CORPOS DÓCEIS Eis como ainda no início do século XVII se descrevia a figura ideal do soldado O soldado é antes de tudo alguém que se reconhece de longe que leva os sinais naturais de seu vigor e coragem as marcas também de seu orgulho seu corpo é o brasão de sua força e de sua valentia e se é verdade que deve aprender aos poucos o ofício das armas essencialmente lutando as manobras como a marcha as atitudes como o porte da cabeça se originam em boa parte de uma retórica corporal da honra Os sinais para reconhecer os mais idôneos para esse ofício são a atitude viva e alerta a cabeça direita o estômago levantado os ombros largos os braços longos os dedos fortes o ventre pequeno as coxas grossas as pernas finas e os pés secos pois o homem desse tipo não poderia deixar de ser ágil e forte tornado lanceiro o soldado deverá ao marchar tomar a cadência do passos para ter o máximo de graça e gravidade que for possível pois a Lança é uma arma honrada e merece ser levada com um porte grave e audaz1 Segunda metade do século XVIII o soldado tornouse algo que se fabrica de uma massa informe de um corpo inapto fezse a máquina de que se precisa corrigiramse aos poucos as posturas lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo se assenhoreia dele dobra o conjunto tornao perpetuamente disponível e se prolonga em silêncio no automatismo dos hábitos em resumo foi expulso o camponês e lhe foi dada a fisionomia de soldado2 Os recrutas são habituados a manter a cabeça ereta e alta a se manter direito sem curvar as costas a fazer avançar o ventre a salientar o peito e encolher o dorso e a fim de que se habituem essa posição lhes será dada apoiandoos contra um muro de maneira que os calcanhares a batata da perna os ombros e a cintura encostem nele assim como as costas das mãos virando os braços para fora sem afastálos do corpo serlhesá igualmente ensinado a nunca fixar os olhos na terra mas a olhar com ousadia aqueles diante de quem eles passam a ficar imóveis esperando o comando sem mexer a cabeça as mãos nem os pés enfim a marchar com passo firme com o joelho e a perna esticados a ponta baixa e para foram3 Houve durante a época clássica uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo ao corpo que se manipula se modela se treina que obedece responde se torna hábil ou cujas forças se multiplicam O grande livro do Homemmáquina foi escrito simultaneamente em dois registros no anátomometafísico cujas primeiras páginas haviam sido escritas por Descartes e que os médicos os filósofos continuaram o outro técnicopolítico constituído por um conjunto de regulamentos militares escolares hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo Dois registros bem distintos pois tratavase ora de submissão e utilização ora de funcionamento e de explicação corpo útil corpo inteligível E entretanto de um ao outro pontos de cruzamento O Homemmáquina de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento no centro dos quais reina a noção de docilidade que une ao corpo analisável o corpo manipulável É dócil um corpo que pode ser submetido que pode ser utilizado que pode ser transformado e aperfeiçoado Os famosos autômatos por seu lado não eram apenas uma maneira de ilustrar o organismo eram também bonecos políticos modelos reduzidos de poder obsessão de Frederico II rei minucioso das pequenas máquinas dos regimentos bem treinados e dos longos exercícios Nesses esquemas de docilidade em que o século XVIII teve tanto interesse o que há de tão novo Não é a primeira vez certamente que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos e urgentes em qualquer sociedade o corpo está preso no interior de poderes muito apertados que lhe impõem limitações proibições ou obrigações Muitas coisas entretanto são novas nessas técnicas A escala em primeiro lugar do controle não se trata de cuidar do corpo em massa grosso modo como se fosse uma unidade indissociável mas de trabalhálo detalhadamente de exercer sobre ele uma coerção sem folga de mantêlo ao nível mesmo da mecânica movimentos gestos atitude rapidez poder infinitesimal sobre o corpo ativo O objeto em seguida do controle não ou não mais os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do corpo mas a economia a eficácia dos movimentos sua organização interna a coação se faz mais sobre as forças que sobre os sinais a única cerimônia que realmente importa é a do exercício A modalidade enfim implica numa coerção ininterrupta constante que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo o espaço os movimentos Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidadeutilidade são o que podemos chamar as disciplinas Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo nos conventos nos exércitos nas oficinas também Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação Diferentes da escravidão pois não se fundamentam numa relação de apropriação dos corpos é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes Diferentes também da domesticidade que é uma relação de dominação constante global maciça não analítica ilimitada e estabelecida sob a forma da vontade singular do patrão seu capricho Diferentes da vassalidade que é uma relação de submissão altamente codificada mas longínqua e que se realiza menos sobre as operações do corpo que sobre os produtos do trabalho e as marcas rituais da obediência Diferentes ainda do ascetismo e das disciplinas de tipo monástico que têm por função realizar renúncias mais do que aumentos de utilidade e que se implicam em obediência a outrem têm como fim principal um aumento do domínio de cada um sobre seu próprio corpo O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano que visa não unicamente o aumento de suas habilidades nem tampouco aprofundar sua sujeição mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil e inversamente Forma se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo uma manipulação calculada de seus elementos de seus gestos de seus comportamentos O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha o desarticula e o recompõe Uma anatomia política que é também igualmente uma mecânica do poder está nascendo ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros não simplesmente para que façam o que se quer mas para que operem como se quer com as técnicas segundo a rapidez e a eficácia que se determina A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados corpos dóceis A disciplina aumenta as forças do corpo em termos econômicos de utilidade e diminui essas mesmas forças em termos políticos de obediência Em uma palavra ela dissocia o poder do corpo faz dele por um lado uma aptidão uma capacidade que ela procura aumentar e inverte por outro lado a energia a potência que poderia resultar disso e faz dela uma relação de sujeição estrita Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada A invenção dessa nova anatomia política não deve ser entendida como uma descoberta súbita Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos de origens diferentes de localizações esparsas que se recordam se repetem ou se imitam apóiamse uns sobre os outros distinguemse segundo seu campo de aplicação entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral Encontramolos em funcionamento nos colégios muito cedo mais tarde nas escolas primárias investiram lentamente o espaço hospitalar e em algumas dezenas de anos reestruturam a organização militar Circularam às vezes muito rápido de um ponto a outro entre o exército e as escolas técnicas ou os colégios e liceus às vezes lentamente e de maneira mais discreta militarização insidiosa das grandes oficinas A cada vez ou quase impuseramse para responder a exigências de conjuntura aqui uma inovação industrial lá a recrudescência de certas doenças epidêmicas acolá a invenção do fuzil ou as vitórias da Prússia O que não impede que se inscrevam no total nas transformações gerais e essenciais que necessariamente serão determinadas Não se trata de fazer aqui a história das diversas instituições disciplinares no que podem ter cada uma de singular Mas de localizar apenas numa série de exemplos algumas das técnicas essenciais que de uma a outra se generalizaram mais facilmente Técnicas sempre minuciosas muitas vezes íntimas mas que têm sua importância porque definem um certo modo de investimento político e detalhado do corpo uma nova microfísica do poder e porque não cessaram desde o século XVII de ganhar campos cada vez mais vastos como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão arranjos sutis de aparência inocente mas profundamente suspeitos dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis ou que procuram coerções sem grandeza são eles entretanto que levaram à mutação do regime punitivo no limiar da época contemporânea Descrevêlos implicará na demora sobre o detalhe e na atenção às minúcias sob as mínimas figuras procurar não um sentido mas uma precaução recolocálas não apenas na solidariedade de um funcionamento mas na coerência de uma tática Astúcias não tanto de grande razão que trabalha até durante o sono e dá um sentido ao insignificante quanto da atenta malevolência que de tudo se alimenta A disciplina é uma anatomia política do detalhe Para advertir os impacientes lembremos o marechal de Saxe Aqueles que cuidam dos detalhes muitas vezes parecem espíritos tacanhos entretanto esta parte é essencial porque ela é o fundamento e é impossível levantar qualquer edifício ou estabelecer qualquer método sem ter os princípios Não basta ter o gosto pela arquitetura É preciso conhecer a arte de talhar pedras4 Dessa arte de talhar pedras haveria uma longa história a ser escrita história da racionalização utilitária do detalhe na contabilidade moral e no controle político A era clássica não a inaugurou ela a acelerou mudou sua escala deulhe instrumentos precisos e talvez tenha encontrado alguns ecos para ela no cálculo do infinitamente pequeno ou na descrição das características mais tênues dos seres naturais Em todo caso o detalhe era já há muito tempo uma categoria da teologia e do ascetismo todo detalhe é importante pois aos olhos de Deus nenhuma imensidão é maior que um detalhe e nada há tão pequeno que não seja querido por uma dessas vontades singulares Nessa grande tradição da eminência do detalhe viriam se localizar sem dificuldade todas as meticulosidades da educação cristã da pedagogia escolar ou militar de todas as formas finalmente de treinamento Para o homem disciplinado como para o verdadeiro crente nenhum detalhe é indiferente mas menos pelo sentido que nele se esconde que pela entrada que aí encontra o poder que quer apanhálo Característico esse hino às pequenas coisas e à sua eterna importância cantado por JeanBaptiste de La Salle em seu Tratado sobre as Obrigações dos Irmãos das Escolas Cristãs A mística do cotidiano aí se associa à disciplina do minúsculo Como é perigoso negligenciar as pequenas coisas É um pensamento bem consolador para uma alma como a minha pouco indicada para as grandes ações pensar que a fidelidade às pequenas coisas pode por um progresso insensível elevarnos à mais eminente santidade porque as pequenas coisas nos dispõem às grandes Pequenas coisas meu Deus infelizmente dirá alguém que podemos fazer de grande para Vós criaturas fracas e mortais que somos Pequenas coisas se as grandes se apresentassem praticálasíamos Não as creríamos acima de nossas forças Pequenas coisas e se Deus as aceita e quer recebêlas como grandes Pequenas coisas acaso já as experimentamos acaso as julgamos pela experiência Pequenas coisas somos então culpados se vendoas como tais as recusamos Pequenas coisas são elas entretanto que com o tempo formaram grandes santos Sim pequenas coisas mas grandes móveis grandes sentimentos grande fervor grande ardor e em conseqüência grandes méritos grandes tesouros grandes recompensas5 A minúcia dos regulamentos o olhar esmiuçante das inspeções o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo darão em breve no quadro da escola do quartel do hospital ou da oficina um conteúdo laicizado uma racionalidade econômica ou técnica a esse cálculo místico do ínfimo e do infinito E uma História do Detalhe no século XVIII colocada sob o signo de JeanBaptiste de La Salle esbarrando em Leibniz e Buffon passando por Frederico II atravessando a pedagogia a medicina a tática militar e a economia deveria chegar ao homem que sonhara no fim do século ser um novo Newton não mais aquele das imensidões do céu ou das massas planetárias mas dos pequenos corpos dos pequenos movimentos das pequenas ações ao homem que respondeu a Monge Só havia um mundo a ser descoberto Que ouvi eu Mas o mundo dos detalhes quem jamais pensou neste ou naquele Desde meus quinze anos eu acreditava nele Cuidei disso então e essa lembrança vive em mim como uma idéia fixa que nunca me abandonará Esse outro mundo é o mais importante de todos os que me orgulhei de descobrir de pensar nisso dóime a alma6 Ele não o descobriu mas sabemos que empreendeu organizálo e quis distribuir em torno de si um dispositivo de poder que lhe permitisse perceber até o menor acontecimento do Estado que governava pretendia com a rigorosa disciplina que fazia reinar abraçar o conjunto dessa vasta máquina sem que lhe pudesse escapar o mínimo detalhe7 Uma observação minuciosa do detalhe e ao mesmo tempo um enfoque político dessas pequenas coisas para controle e utilização dos homens sobem através da era clássica levando consigo todo um conjunto de técnicas todo um corpo de processos e de saber de descrições de receitas e dados E desses esmiuçamentos sem dúvida nasceu o homem do humanismo moderno8 A ARTE DAS DISTRIBUIÇÕES A disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço Para isso utiliza diversas técnicas 1 A disciplina às vezes exige a cerca a especificação de um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo Local protegido da monotonia disciplinar Houve o grande encarceramento dos vagabundos e dos miseráveis houve outros mais discretos mas insidiosos e eficientes Colégios o modelo do convento se impõe pouco a pouco o internato aparece como o regime de educação senão o mais freqüente pelo menos o mais perfeito tornase obrigatório em LouisleGrand quando depois da partida dos jesuítas fez se um colégiomodelo9 Quartéis é preciso fixar o exército essa massa vagabunda impedir a pilhagem e as violências acalmar os habitantes que suportam mal as tropas de passagem evitar os conflitos com as autoridades civis fazer cessar as deserções controlar as despesas A ordenação de 1719 prescreve a construção de várias centenas de quartéis imitando os já organizados no sul do país o encarceramento neles será estrito O conjunto será fechado e cercado por uma muralha de dez pés de altura que rodeará os ditos pavilhões a trinta pés de distância de todos os lados e isto para manter as tropas em ordem e em disciplina e que o oficial esteja em condições de responder por ela10 Em 1745 havia quartéis em 320 cidades aproximadamente e estimavase mais ou menos em 200000 homens a capacidade total dos quartéis em 177511 Ao lado das oficinas espalhadas criamse também grandes espaços para as indústrias homogêneos e bem delimitados as manufaturas reunidas primeiro depois as fábricas na segunda metade do século XVIII as forjas da Chaussade ocupam toda a península de Medina entre Nièvre e Loire para instalar a fábrica de Indret em 1777 Wilkinson à custa de aterros e diques cria uma ilha no Loire Toufait constrói Le Creusot no vale de La Charbonnière que ele remodela e instala na própria fábrica alojamentos operários é uma mudança de escala é também um novo tipo de controle A fábrica parece claramente um convento uma fortaleza uma cidade fechada o guardião só abrirá as portas à entrada dos operários e depois que houver soado o sino que anuncia o reinicio do trabalho quinze minutos depois ninguém mais terá o direito de entrar no fim do dia os chefes de oficina devem entregar as chaves ao guarda suíço da fábrica que então abre as portas12 É porque à medida que se concentram as forças de produção o importante é tirar delas o máximo de vantagens e neutralizar seus inconvenientes roubos interrupção do trabalho agitações e cabalas de proteger os materiais e ferramentas e de dominar as forças de trabalho A ordem e a polícia que se deve manter exigem que todos os operários sejam reunidos sob o mesmo teto a fim de que aquele dos sócios que está encarregado da direção da fábrica possa prevenir e remediar os abusos que poderiam se introduzir entre os operários e impedir desde o início que progridam13 2 Mas o princípio de clausura não é constante nem indispensável nem suficiente nos aparelhos disciplinares Estes trabalham o espaço de maneira muito mais flexível e mais fina E em primeiro lugar segundo o princípio da localização imediata ou do quadriculamento Cada indivíduo no seu lugar e em cada lugar um indivíduo Evitar as distribuições por grupos decompor as implantações coletivas analisar as pluralidades confusas maciças ou fugidias O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quando corpos ou elementos há a repartir É preciso anular os efeitos das repartições indecisas o desaparecimento descontrolado dos indivíduos sua circulação difusa sua coagulação inutilizável e perigosa tática de antideserção de antivadiagem de antiaglomeração Importa estabelecer as presenças e as ausências saber onde e como encontrar os indivíduos instaurar as comunicações úteis interromper as outras poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um apreciálo sancionálo medir as qualidades ou os méritos Procedimento portanto para conhecer dominar e utilizar A disciplina organiza um espaço analítico E ainda aí ela encontra um velho procedimento arquitetural e religioso a cela dos conventos Mesmo se os compartimentos que ele atribui se tornam puramente ideais o espaço das disciplinas é sempre no fundo celular Solidão necessária do corpo e da alma dizia um certo ascetismo eles devem ao menos por momentos se defrontar a sós com a tentação e talvez com a severidade de Deus O sono é a imagem da morte o dormitório é a imagem do sepulcro embora os dormitórios sejam comuns os leitos entretanto estão arrumados de tal modo e se fecham tão exatamente por meio de cortinas que as moças podem se levantar e se deitar sem se verem14 Mas isso ainda não passa de uma forma muito tosca 3 A regra das localizações funcionais vai pouco a pouco nas instituições disciplinares codificar um espaço que a arquitetura deixava geralmente livre e pronto para vários usos Lugares determinados se definem para satisfazer não só à necessidade de vigiar de romper as comunicações perigosas mas também de criar um espaço útil O processo aparece claramente nos hospitais principalmente nos hospitais militares e marítimos Na França parece que Rochefort serviu de experiência e de modelo Um porto e um porto militar é com circuitos de mercadorias de homens alistados por bem ou à força de marinheiros embarcando e desembarcando de doenças e de epidemias um lugar de deserção de contrabando de contágio encruzilhada de misturas perigosas cruzamento de circulações proibidas O hospital marítimo deve então cuidar mas por isso mesmo deve ser um filtro um dispositivo que afixa e quadricula tem que realizar uma apropriação sobre toda essa mobilidade e esse formigar humano decompondo a confusão da ilegalidade e do mal A vigilância médica das doenças e dos contágios é aí solidária de toda uma série de outros controles militar sobre os desertores fiscal sobre as mercadorias administrativo sobre os remédios as rações os desaparecimentos as curas as mortes as simulações Donde a necessidade de distribuir e dividir o espaço com rigor As primeiras medidas tomadas em Rochefort se referiam às coisas mais que aos homens às mercadorias preciosas mais que aos doentes As distribuições da vigilância fiscal e econômica precedem as técnicas de observação médica localização dos medicamentos em caixas fechadas registro de sua utilização um pouco mais tarde é estabelecido um sistema para verificar o número real de doentes sua identidade as unidades de onde procedem depois regulamentamse suas idas e vindas são obrigados a ficar em suas salas a cada leito é preso o nome de quem se encontra nele todo indivíduo tratado é inscrito num registro que o médico deve consultar durante a visita mais tarde virão o isolamento dos contagiosos os leitos separados Pouco a pouco um espaço administrativo e político se articula em espaço terapêutico tende a individualizar os corpos as doenças os sintomas as vidas e as mortes constitui um quadro real de singularidades justapostas e cuidadosamente distintas Nasce da disciplina um espaço útil do ponto de vista médico Nas fábricas que aparecem no fim do século XVIII o princípio do quadriculamento individualizante se complica Importa distribuir os indivíduos num espaço onde se possa isolálos e localizálos mas também articular essa distribuição sobre um aparelho de produção que tem suas exigências próprias É preciso ligar a distribuição dos corpos a arrumação espacial do aparelho de produção e as diversas formas de atividade na distribuição dos postos A esse princípio obedece a manufatura de Oberkampf em Jouy Ela se compõe de uma série de oficinas especificadas segundo cada grande tipo de operações para os impressores os encaixadores os coloristas as pinceladoras os gravadores os tintureiros O maior dos edifícios construído em 1791 por Toussaint Barré tem cento e dez metros de comprimento e três andares O térreo é reservado essencialmente à impressão em bloco contém 132 mesas dispostas em duas fileiras ao longo da sala com 88 janelas cada impressor trabalha a uma mesa com seu puxador encarregado de preparar e espalhar as tintas Ao todo 264 pessoas Na extremidade de cada mesa uma espécie de cabide sobre o qual o operário coloca para secar a tela que ele acabou de imprimir15 Percorrendose o corredor central da oficina é possível realizar uma vigilância ao mesmo tempo geral e individual constatar a presença a aplicação do operário a qualidade de seu trabalho comparar os operários entre si classificálos segundo sua habilidade e rapidez acompanhar os sucessivos estágios da fabricação Todas essas seriações formam um quadriculado permanente as confusões se desfazem16 a produção se divide e o processo de trabalho se articula por um lado segundo suas fases estágios ou operações elementares e por outro segundo os indivíduos que o efetuam os corpos singulares que a ele são aplicados cada variável dessa força vigor rapidez habilidade constância pode ser observada portanto caracterizada apreciada contabilizada e transmitida a quem é o agente particular dela Assim afixada de maneira perfeitamente legível a toda série dos corpos singulares a força de trabalho pode ser analisada em unidades individuais Sob a divisão do processo de produção ao mesmo tempo que ela encontramos no nascimento da grande indústria a decomposição individualizante da força de trabalho as repartições do espaço disciplinar muitas vezes efetuaram uma e outra 4 Na disciplina os elementos são intercambiáveis pois cada um se define pelo lugar que ocupa na série e pela distância que o separa dos outros A unidade não é portanto nem o território unidade de dominação nem o local unidade de residência mas a posição na fila o lugar que alguém ocupa numa classificação o ponto em que se cruzam uma linha e uma coluna o intervalo numa série de intervalos que se pode percorrer sucessivamente A disciplina arte de dispor em fila e da técnica para a transformação dos arranjos Ela individualiza os corpos por uma localização que não os implanta mas os distribui e os faz circular numa rede de relações Vejamos o exemplo da classe Nos colégios dos jesuítas encontravase ainda uma organização ao mesmo tempo binária e maciça as classes que podiam ter até duzentos ou trezentos alunos eram divididas em grupos de dez cada um desses grupos com seu decurião era colocado em um campo o romano ou o cartaginês a cada decúria correspondia uma decúria adversa A forma geral era a da guerra e da rivalidade o trabalho o aprendizado a classificação eram feitos sob a forma de justa pela defrontação dos dois exércitos a participação de cada aluno entrava nesse duelo geral ele assegurava por seu lado a vitória ou as derrotas de um campo e os alunos determinavam um lugar que correspondia à função de cada um e a seu valor de combatente no grupo unitário de sua decúria17 Podemos notar aliás que essa comédia romana permitia associar aos exercícios binários da rivalidade uma disposição espacial inspirada na legião com suas fileiras hierarquia e vigilância piramidal Não esquecer que de um modo geral o modelo romano na época das Luzes desempenhou um duplo papel em seu aspecto republicano era a própria instituição da liberdade em seu aspecto militar era o esquema ideal da disciplina A Roma do século XVIII e da Revolução é a do Senado e da legião do Forum e dos campos militares Até o Império a referência romana veiculou de maneira ambígua o ideal jurídico da cidadania e a técnica dos processos disciplinares Em todo caso o que havia de estritamente disciplinar na fábula antiga permanentemente representada nos colégios jesuítas superou o que havia de justa e de guerra em mímica Pouco a pouco mas principalmente depois de 1762 o espaço escolar se desdobra a classe tornase homogênea ela agora só se compõe de elementos individuais que vêm se colocar uns ao lado dos outros sob os olhares do mestre A ordenação por fileiras no século XVIII começa a definir a grande forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar filas de alunos na sala nos corredores nos pátios colocação atribuída a cada um em relação a cada tarefa e cada prova colocação que ele obtém de semana em semana de mês em mês de ano em ano alinhamento das classes de idade umas depois das outras sucessão dos assuntos ensinados das questões tratadas segundo uma ordem de dificuldade crescente E nesse conjunto de alinhamentos obrigatórios cada aluno segundo sua idade seus desempenhos seu comportamento ocupa ora uma fila ora outra ele se desloca o tempo todo numa série de casas umas ideais que marcam uma hierarquia do saber ou das capacidades outras devendo traduzir materialmente no espaço da classe ou do colégio essa repartição de valores ou dos méritos Movimento perpétuo onde os indivíduos substituem uns aos outros num espaço escondido por intervalos alinhados A organização de um espaço serial foi uma das grandes modificações técnicas do ensino elementar Permitiu ultrapassar o sistema tradicional um aluno que trabalha alguns minutos com o professor enquanto fica ocioso e sem vigilância o grupo confuso dos que estão esperando Determinando lugares individuais tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos Organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem Fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar mas também de vigiar de hierarquizar de recompensar J B de La Salle imaginava uma classe onde a distribuição espacial pudesse realizar ao mesmo tempo toda uma série de distinções segundo o nível de avanço dos alunos segundo o valor de cada um segundo seu temperamento melhor ou pior segundo sua maior ou menor aplicação segundo sua limpeza e segundo a fortuna dos país Então a sala de aula formaria um grande quadro único com entradas múltiplas sob o olhar cuidadosamente classificador do professor Haverá em todas as salas de aula lugares determinados para todos os escolares de todas as classes de maneira que todos os da mesma classe sejam colocados num mesmo lugar e sempre fixo Os escolares das lições mais adiantadas serão colocados nos bancos mais próximos da parede e em seguida os outros segundo a ordem das lições avançando para o meio da sala Cada um dos alunos terá seu lugar marcado e nenhum o deixará nem trocará sem a ordem e o consentimento do inspetor das escolas Será preciso fazer com que aqueles cujos pais são negligentes e têm piolhos fiquem separados dos que são limpos e não os têm que um escolar leviano e distraído seja colocado entre dois bem comportados e ajuizados que o libertino ou fique sozinho ou entre dois piedosos18 As disciplinas organizando as celas os lugares e as fileiras criam espaços complexos ao mesmo tempo arquiteturais funcionais e hierárquicos São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias marcam lugares e indicam valores garantem a obediência dos indivíduos mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos São espaços mistos reais pois que regem a disposição de edifícios de salas de móveis mas ideais pois projetamse sobre essa organização caracterizações estimativas hierarquias A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de quadros vivos que transformam as multidões confusas inúteis ou perigosas em multiplicidades organizadas A constituição de quadros foi um dos grandes problemas da tecnologia científica política e econômica do século XVIII arrumar jardins de plantas e de animais e construir ao mesmo tempo classificações racionais dos seres vivos observar controlar regularizar a circulação das mercadorias e da moeda e estabelecer assim um quadro econômico que possa valer como princípio de enriquecimento inspecionar os homens constatar sua presença e sua ausência e constituir um registro geral e permanente das forças armadas repartir os doentes dividir com cuidado e espaço hospitalar e fazer uma classificação sistemática das doenças outras tantas operações conjuntas em que os dois constituintes distribuição e análise controle e inteligibilidade são solidários O quadro no século XVIII é ao mesmo tempo uma técnica de poder e um processo de saber Tratase de organizar o múltiplo de se obter um instrumento para percorrêlo e dominálo tratase de lhe impor uma ordem Como o chefe militar de que falava o naturalista Guilbert o médico o economista fica cego pela imensidão atordoado pela multidão as inúmeras combinações que resultam da multiplicidade dos objetos tantas atenções reunidas constituem um peso acima de suas forças A ciência da guerra moderna ao se aperfeiçoar ao se aproximar dos verdadeiros princípios poderia se tornar mais simples e menos difícil os exércitos com táticas simples análogas flexíveis a todos os movimentos seriam mais fáceis de mexer e de conduzir19 Tática ordenamento espacial dos homens taxinomia espaço disciplinar dos seres naturais quadro econômico movimento regulamentado das riquezas Mas o quadro não tem a mesma função nesses diversos registros Na ordem da economia permite a medida das quantidades e a análise dos movimentos Sob a forma da taxinomia tem por função caracterizar e em conseqüência reduzir as singularidades individuais e constituir classes portanto excluir as considerações de número Mas sob a forma de repartição disciplinar a colocação em quadro tem por função ao contrário tratar a multiplicidade por si mesma distribuíla e dela tirar o maior número possível de efeitos Enquanto a taxinomia natural se situa sobre o eixo que vai do caráter à categoria a tática disciplinar se situa sobre o eixo que liga o singular e o múltiplo Ela permite ao mesmo tempo a caracterização do indivíduo como indivíduo e a colocação em ordem de uma multiplicidade dada Ela é a condição primeira para o controle e o uso de um conjunto de elementos distintos a base para uma microfísica de um poder que poderíamos chamar celular O CONTROLE DA ATIVIDADE 1 O horário é uma velha herança As comunidades monásticas haviam sem dúvida sugerido seu modelo estrito Ele se difundiria rapidamente Seus três grandes processos estabelecer as cesuras obrigar a ocupações determinadas regulamentar os ciclos de repetição muito cedo foram encontrados nos colégios nas oficinas nos hospitais Dentro dos antigos esquemas as novas disciplinas não tiveram dificuldade para se abrigar as casas de educação e os estabelecimentos de assistência prolongavam a vida e a regularidade dos conventos de que muitas vezes eram anexos O rigor do tempo industrial guardou durante muito tempo uma postura religiosa no século XVII o regulamento das grandes manufaturas precisava os exercícios que deviam escandir o trabalho Todas as pessoas chegando a seu ofício de manhã antes de trabalhar começarão lavando as mãos oferecerão seu trabalho a Deus farão o sinal da cruz e começarão a trabalhar20 mas ainda no século XIX quando se quiser utilizar populações rurais na indústria será necessário apelar a congregações para acostumálas ao trabalho em oficinas os operários são enquadrados em fábricasconventos A grande disciplina militar formouse nos exércitos protestantes de Maurício de Orange e de Gustavo Adolfo através de uma rítmica do tempo escandida pelos exercícios de piedade a vida no exército deve ter dizia Boussanelle bem mais tarde algumas das perfeições do próprio claustro21 Durante séculos as ordens religiosas foram mestras de disciplinas eram os especialistas do tempo grandes técnicos do ritmo e das atividades regulares Mas esses processos de regularização temporal que elas herdam as disciplinas os modificam Afinandoos primeiro Começase a contar por quartos de hora minutos e segundos No exército é claro Guibert mandou proceder sistematicamente a cronometragens de tiro de que Vauban tivera a idéia Nas escolas elementares a divisão do tempo tornase cada vez mais esmiuçante as atividades são cercadas o mais possível por ordens a que se tem que responder imediatamente À última pancada do relógio um aluno baterá o sino e ao primeiro toque todos os alunos se porão de joelhos com os braços cruzados e os olhos baixos Terminada a oração o professor dará um sinal para os alunos se levantarem um segundo para saudarem Cristo e o terceiro para se sentarem22 No começo do século XIX serão propostos para a escola mútua horários como o seguinte 845 entrada do monitor 852 chamada do monitor 856 entrada das crianças e oração 9 horas entrada nos bancos 904 primeira lousa 908 fim do ditado 912 segunda lousa etc23 A extensão progressiva dos assalariados acarreta por seu lado um quadriculamento cerrado do tempo Se acontecer que os operários cheguem mais tarde que em quarto de hora depois que tocar a campanhia24 aquele companheiro que for chamado durante o trabalho e que perder mais de cinco minutos aquele que não estiver em seu trabalho na hora precisa25 Mas procurase também garantir a qualidade do tempo empregado controle ininterrupto pressão dos fiscais anulação de tudo o que possa perturbar e distrair tratase de constituir um tempo integralmente útil É expressamente proibido durante o trabalho divertir os companheiros com gestos ou de outra maneira fazer qualquer brincadeira comer dormir contar histórias e comédias26 e mesmo durante a interrupção para a refeição não será permitido contar histórias aventuras ou outras conversações que distraiam os operários de seu trabalho é expressamente proibido a qualquer operário e sob qualquer pretexto que seja introduzir vinho na fábrica e beber nas oficinas27 O tempo medido e pago deve ser também um tempo sem impureza nem defeito um tempo de boa qualidade e durante todo o seu transcurso o corpo deve ficar aplicado a seu exercício A exatidão e a aplicação são com a regularidade as virtudes fundamentais do tempo disciplinar Mas não é isso o mais novo Outros modos de proceder são mais característicos das disciplinas 2 A elaboração temporal do ato vejamos duas maneiras de controlar a marcha de uma tropa Começo do século XVII Acostumar os soldados a marchar por fila ou em batalhão a marchar na cadência do tambor E para isso começar com o pé direito a fim de que toda a tropa esteja levantando o mesmo pé ao mesmo tempo28 Metade do século XVIII quatro tipos de passo O comprimento do pequeno passo será de um pé o do passo comum do passo dobrado e do passo de estrada de dois pés medidos ao todo de um calcanhar ao outro quanto à duração a do pequeno passo e do passo comum serão de um segundo durante o qual se farão dois passos dobrados a duração do passo de estrada será de um pouco mais de um segundo O passo oblíquo será feito no mesmo espaço de um segundo terá no máximo 18 polegadas de um calcanhar ao outro O passo comum será executado mantendose a cabeça alta e o corpo direito conservandose o equilíbrio sucessivamente sobre uma única perna e levando a outra à frente a perna esticada a ponta do pé um pouco voltada para fora e baixa para aflorar sem afetação o terreno sobre o qual se deve marchar e colocar o pé na terra de maneira que cada parte se apóie ao mesmo tempo sem bater contra a terra29 Entre essas duas prescrições um novo conjunto de obrigações é imposto outro grau de precisão na decomposição dos gestos e dos movimentos outra maneira de ajustar o corpo a imperativos temporais O que é definido pela ordenação de 1766 não é um horário um quadro geral para uma atividade é mais que um ritmo coletivo e obrigatório imposto do exterior é um programa ele realiza a elaboração do próprio ato controla do interior seu desenrolar e suas fases Passamos de uma forma de injunção que media ou escandia os gestos a uma trama que os obriga e sustenta ao longo de todo o seu encadeamento Definese uma espécie de esquema anátomocronológico do comportamento O ato é decomposto em seus elementos é definida a posição do corpo dos membros das articulações para cada movimento é determinada uma direção uma amplitude uma duração é prescrita sua ordem de sucessão O tempo penetra o corpo e com ele todos os controles minuciosos do poder 3 Donde o corpo e o gesto postos em correlação o controle disciplinar não consiste simplesmente em ensinar ou impor uma série de gestos definidos impõe a melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo que é sua condição de eficácia e de rapidez No bom emprego do corpo que permite um bom emprego do tempo nada deve ficar ocioso ou inútil tudo deve ser chamado a formar o suporte do ato requerido Um corpo bem disciplinado forma o contexto de realização do mínimo gesto Uma boa caligrafia por exemplo supõe uma ginástica uma rotina cujo rigoroso código abrange o corpo por inteiro da ponta do pé à extremidade do indicador Devese manter o corpo direito um pouco voltado e solto do lado esquerdo e algo inclinado para a frente de maneira que estando o cotovelo pousado na mesa o queixo possa ser apoiado na mão a menos que o alcance da vista não o permita a perna esquerda deve ficar um pouco mais avançada que a direita sob a mesa Devese deixar uma distância de dois dedos entre o corpo e a mesa pois não só se escreve com mais rapidez mas nada é mais nocivo à saúde que contrair o hábito de apoiar o estômago contra a mesa a parte do braço esquerdo do cotovelo até à mão deve ser colocada sobre a mesa O braço direito deve estar afastado do corpo cerca de três dedos e sair aproximadamente cinco dedos da mesa sobre a qual deve apoiar ligeiramente O mestre ensinará aos escolares a postura que estes devem manter ao escrever e a corrigirá seja por sinal seja de outra maneira quando dela se afastarem30 Um corpo disciplinado é a base de um gesto eficiente 4 A articulação corpoobjeto a disciplina define cada uma das relações que o corpo deve manter com o objeto que manipula Ela estabelece cuidadosa engrenagem entre um e outro Leve a arma à frente Em três tempos Levantase o fuzil com a mão direita aproximandoo do corpo para mantêlo perpendicularmente em frente ao joelho direito a ponta do cano à altura do olho apanhandoo batendo com a mão esquerda o braço esticado colado ao corpo à altura do cinturão No segundo trazse o fuzil com a mão esquerda diante de si o cano para dentro entre os dois olhos a prumo a mão direita o apanha pelo punho com o braço esticado o guardamato apoiado sobre o primeiro dedo a mão esquerda à altura da alça de mira o polegar estendido ao longo do cano contra a soleira No terceiro a mão esquerda deixa o fuzil e cai ao longo da coxa a mão direita o eleva com o fecho para fora e em frente ao peito com o braço direito meio esticado o cotovelo colado ao corpo o polegar estendido contra o fecho apoiado ao primeiro parafuso o cão apoiado sobre o primeiro dedo o cano a prumo31 Temos aí um exemplo do que se poderia chamar a codificação instrumental do corpo Consiste em uma decomposição do gesto global em duas séries paralelas a dos elementos do corpo que serão postos em jogo mão direita mão esquerda diversos dedos da mão joelho olho cotovelo etc a dos elementos do objeto manipulado cano alça de mira cão parafuso etc colocaos depois em correlação uns com os outros segundo um certo número de gestos simples apoiar dobrar finalmente fixa a ordem canônica em que cada uma dessas correlações ocupa um lugar determinado A esta sintaxe forçada é que os teóricos militares do século XVIII chamavam manobra A receita tradicional dá lugar a prescrições explícitas e coercitivas Sobre toda a superfície de contato entre o corpo e o objeto que o manipula o poder vem se introduzir amarraos um ao outro Constitui um complexo corpoarma corpoinstrumento corpomáquina Estamos inteiramente longe daquelas formas de sujeição que só pediam ao corpo sinais ou produtos formas de expressão ou o resultado de um trabalho A regulamentação imposta pelo poder é ao mesmo tempo a lei de construção da operação E assim aparece esse caráter do poder disciplinar tem uma função menos de retirada que de síntese menos de extorsão do produto que de laço coercitivo com o aparelho de produção 5 A utilização exaustiva o princípio que estava subjacente ao horário em sua forma tradicional era essencialmente negativo princípio da nãoociosidade é proibido perder um tempo que é contado por Deus e pago pelos homens o horário devia conjurar o perigo de desperdiçar tempo erro moral e desonestidade econômica Já a disciplina organiza uma economia positiva coloca o princípio de uma utilização teoricamente sempre crescente do tempo mais exaustão que emprego importa extrair do tempo sempre mais instantes disponíveis e de cada instante sempre mais forças úteis O que significa que se deve procurar intensificar o uso do mínimo instante como se o tempo em seu próprio fracionamento fosse inesgotável ou como se pelo menos por uma organização interna cada vez mais detalhada se pudesse tender para um ponto ideal em que o máximo de rapidez encontra o máximo de eficiência E a essa técnica mesma que era usada nos famosos regulamentos da infantaria prussiana que a Europa inteira imitou depois das vitórias de Frederico II32 quanto mais se decompõe o tempo quanto mais se multiplicam suas subdivisões quanto melhor o desarticulamos desdobrando seus elementos internos sob um olhar que os controla mais então podese acelerar uma operação ou pelo menos regulála segundo um rendimento ótimo de velocidade daí essa regulamentação do tempo da ação que foi tão importante no exército e que devia sê lo para toda a tecnologia da atividade humana o regulamento prussiano de 1743 previa 6 tempos para pôr a arma ao pé 4 para estendêla 13 para colocála ao contrário sobre o ombro etc Por outros meios a escola mútua também foi disposta como um aparelho para intensificar a utilização do tempo sua organização permitia desviar o caráter linear e sucessivo do ensino do mestre regulava o contraponto de operações feitas ao mesmo tempo por diversos grupos de alunos sob a direção dos monitores e dos adjuntos de maneira que cada instante que passava era povoado de atividades múltiplas mas ordenadas e por outro lado o ritmo imposto por sinais apitos comandos impunha a todos normas temporais que deviam ao mesmo tempo acelerar o processo de aprendizagem e ensinar a rapidez como uma virtude33 A única finalidade dessas ordens é acostumar as crianças a executar rapidamente e bem as mesmas operações diminuir tanto quanto possível pela celeridade a perda de tempo acarretada pela passagem de uma operação a outra34 Ora através dessa técnica de sujeição um novo objeto vaise compondo e lentamente substituindo o corpo mecânico o corpo composto de sólidos e comandado por movimentos cuja imagem tanto povoara os sonhos dos que buscavam a perfeição disciplinar Esse novo objeto é o corpo natural portador de forças e sede de algo durável é o corpo suscetível de operações especificadas que têm sua ordem seu tempo suas condições internas seus elementos constituintes O corpo tornandose alvo dos novos mecanismos do poder oferecese a novas formas de saber Corpo do exercício mais que da física especulativa corpo manipulado pela autoridade mais que atravessado pelos espíritos animais corpo do treinamento útil e não da mecânica racional mas no qual por essa mesma razão se anunciará um certo número de exigências de natureza e de limitações funcionais É ele que Guibert descobre na crítica que faz das manobras excessivamente artificiais No exercício que lhe é imposto e ao qual resiste o corpo desenha suas correlações essenciais e rejeita espontaneamente o incompatível Entremos na maior parte de nossas escolas de exercício veremos todos aqueles infelizes soldados em atitudes coagidas e forçadas veremos todos os seus músculos em contração sua circulação sangüínea interrompia Estudemos a intenção da natureza e a construção do corpo humano e encontraremos a posição e a compostura que ela prescreve claramente que se deve dar ao soldado A cabeça deve ficar direita solta dos ombros perpendicularmente colocada entre eles Não deve ficar voltada nem à esquerda nem à direita porque considerando a correspondência que existe entre as vértebras do pescoço e a omoplata a que estão ligadas nenhuma delas pode agir circularmente sem arrastar de leve do mesmo lado em que ela age uma das ramificações do ombro e não estando mais o corpo colocado direito o soldado não pode mais marchar reto para frente nem servir de ponto de alinhamento Como o osso da anca indicado pela Ordenação como sendo o ponto contra o qual se deve apoiar o bico da coronha não está igualmente situado em todos os homens o fuzil para alguns deve ser levado mais à direita para outros mais à esquerda Pela mesma razão de desigualdade de estrutura o guardamato pode estar mais ou menos apertado contra o corpo dependendo de ter um homem a parte externa do ombro mais ou menos carnuda etc35 Vimos como os processos da repartição disciplinar tinham seu lugar entre as técnicas contemporâneas de classificação e de enquadramento e como eles aí introduziam o problema específico dos indivíduos e da multiplicidade Do mesmo modo os controles disciplinares da atividade encontram lugar em todas as pesquisas teóricas ou práticas sobre a máquina natural dos corpos mas elas começaram a descobrir nisso processos específicos o comportamento e suas exigências orgânicas vão pouco a pouco substituir a simples física do movimento O corpo do qual se requer que seja dócil até em suas mínimas operações opõe e mostra as condições de funcionamento próprias a um organismo O poder disciplinar tem por correlato uma individualidade não só analítica e celular mas também natural e orgânica A ORGANIZAÇÃO DAS GÊNESES Em 1667 o edito que criava a fábrica dos Gobelins previa a organização de uma escola Sessenta crianças bolsistas deviam ser escolhidas pelo superintendente dos prédios reais confiados durante certo tempo a um mestre que devia realizar sua educação e instrução depois colocados para aprendizagem junto aos diversos mestres tapeceiros da manufatura estes recebiam por isso uma indenização retirada da bolsa dos alunos depois de seis anos de aprendizagem quatro anos de serviço e uma prova qualificatória tinham direito de erguer e manter loja em qualquer cidade do reino Encontramos aí as características próprias da aprendizagem corporativa relação de dependência ao mesmo tempo individual e total quanto ao mestre duração estatutária da formação que se conclui com uma prova qualificatória mas que não se decompõe segundo um programa preciso troca total entre o mestre que deve dar seu saber e o aprendiz que deve trazer seus serviços sua ajuda e muitas vezes uma retribuição A forma da domesticidade se mistura a uma transferência de conhecimento36 Em 1737 um edito organiza uma escola de desenho para os aprendizes dos Gobelins ela não se destina a substituir a formação com os mestres operários mas a completála Ora ela implica numa organização do tempo totalmente diversa Duas horas por dia menos aos domingos e festas os alunos se reúnem na escola É feita a chamada segundo uma lista afixada à parede anotamse as ausências num registro A escola é dividida em três classes A primeira para os que não têm nenhuma noção de desenho mandamnos copiar modelos mais difíceis ou menos difíceis segundo as aptidões de cada um A segunda para os que já têm alguns princípios ou que passaram pela primeira classe devem reproduzir quadros à primeira vista e sem tomarlhes o traço mas considerando só o desenho Na terceira classe aprendem as cores fazem pastel iniciamse na teoria e na prática do tingimento Regularmente os alunos fazem deveres individuais cada um desses exercícios marcado com o nome do autor e a data da execução é depositado nas mãos do professor os melhores são recompensados reunidos no fim do ano e comparados entre eles permitem estabelecer os progressos o valor atual o lugar relativo de cada aluno determinamse então os que podem passar para a classe superior Um livro geral mantido pelos professores e seus adjuntos deve registrar dia por dia o comportamento dos alunos e tudo o que se passa na escola é periodicamente submetido a um inspetor37 A escola dos Gobelins é apenas o exemplo de um fenômeno importante o desenvolvimento na época clássica de uma nova técnica para a apropriação do tempo das existências singulares para reger as relações do tempo dos corpos e das forças para realizar uma acumulação da duração e para inverter em lucro ou em utilidade sempre aumentados o movimento do tempo que passa Como capitalizar o tempo dos indivíduos acumulálo em cada um deles em seus corpos em suas forças ou capacidades e de uma maneira que seja susceptível de utilização e de controle Como organizar durações rentáveis As disciplinas que analisam o espaço que decompõem e recompõem as atividades devem ser também compreendidas como aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo E isto por quatro processos que a organização militar mostra com toda a clareza 1o Dividir a duração em segmentos sucessivos ou paralelos dos quais cada um deve chegar a um termo específico Por exemplo isolar o tempo de formação e o período da prática não misturar a instrução dos recrutas e o exercício dos veteranos abrir escolas militares distintas do serviço armado em 1764 criação da Escola de Paris em 1776 criação das doze escolas de província recrutar os soldados profissionais desde muito jovens tomar crianças fazêlos adotar pela pátria preparálos em escolas particulares38 ensinar sucessivamente a postura depois a marcha depois o manejo das armas depois o tiro e só passar a uma atividade se a anterior estiver completamente adquirida É um dos erros principais mostrar a um soldado todos os exercícios ao mesmo tempo39 enfim decompor o tempo em seqüências separadas e ajustadas 2 Organizar essas seqüências segundo um esquema analítico sucessão de elementos tão simples quanto possível combinandose segundo uma complexidade crescente O que supõe que a instrução abandone o princípio da repetição analógica No século XVI o exercício militar consistia principalmente em uma pantomima de todo ou de parte do combate e em fazer crescer globalmente a habilidade ou a força do soldado40 No século XVIII a instrução do manual segue o princípio do elementar e não mais do exemplar gestos simples posição dos dedos flexão da perna movimento dos braços que são no máximo os componentes de base para os comportamentos úteis e que além disso efetuam um treinamento geral da força da habilidade da docilidade 3o Finalizar esses segmentos temporais fixarlhes um termo marcado por uma prova que tem a tríplice função de indicar se o indivíduo atingiu o nível estatutário de garantir que sua aprendizagem está em conformidade com a dos outros e diferenciar as capacidades de cada indivíduo Quando os sargentos cabos etc encarregados de instruir os outros acharem que puseram alguém em condições de passar à primeira classe eles o apresentarão primeiro aos oficiais da companhia que o examinarão com atenção se ainda não o acharem suficientemente treinado recusarão admitilo se ao contrário o homem apresentado lhes parecer em condições de ser recebido os ditos oficiais o proporão eles mesmos ao comandante do regimento que verá se o julga a propósito e fará os oficiais majores o examinarem As faltas mais leves bastarão para recusálo e ninguém poderá passar da segunda classe para a primeira sem ter feito esse primeiro exame41 4o Estabelecer séries de séries prescrever a cada um de acordo com seu nível sua antigüidade seu posto os exercícios que lhe convêm os exercícios comuns têm um papel diferenciador e cada diferença comporta exercícios específicos Ao termo de cada série começam outras formam uma ramificação e se subdividem por sua vez De maneira que cada indivíduo se encontra preso numa série temporal que define especificamente seu nível ou sua categoria Polifonia disciplinar dos exercícios Os soldados da segunda classe serão treinados todas as manhãs pelos sargentos cabos anspeçadas soldados de primeira classe Os soldados de primeira classe serão treinados todos os domingos pelo chefe da esquadra os cabos e os anspeçadas todas as terçasfeiras à tarde pelos sargentos de sua companhia e estes aos 2 12 e 22 de cada mês também à tarde pelos oficiais majores42 Esse é o tempo disciplinar que se impõe pouco a pouco à prática pedagógica especializando o tempo de formação e destacandoo do tempo adulto do tempo do ofício adquirido organizando diversos estágios separados uns dos outros por provas graduadas determinando programas que devem desenrolarse cada um durante uma determinada fase e que comportam exercícios de dificuldade crescente qualificando os indivíduos de acordo com a maneira como percorreram essas séries O tempo iniciático da formação tradicional tempo global controlado só pelo mestre sancionado por uma única prova foi substituído pelo tempo disciplinar com suas séries múltiplas e progressivas Formase toda uma pedagogia analítica muito minuciosa decompõe até aos mais simples elementos a matéria de ensino hierarquiza no maior número possível de graus cada fase do progresso e também muito precoce em sua história antecipa largamente as análises genéticas dos ideólogos dos quais aparece como o modelo técnico Demia bem no começo do século XVIII queria que o aprendizado da leitura fosse dividido em sete níveis o primeiro para os que aprendem a conhecer as letras o segundo para os que aprendem a soletrar o terceiro para os que aprendem a juntar as sílabas para formar palavras o quarto para os que lêem o latim por frase ou de pontuação em pontuação o quinto para os que começam a ler o francês o sexto para os mais capazes na leitura o sétimo para os que lêem os manuscritos Mas caso os alunos fossem numerosos seria necessário introduzir ainda subdivisões a primeira classe devia comportar quatro grupos um para os que aprendem as letras simples outro para os que aprendem as letras misturadas um terceiro para os que aprendem as letras abreviadas  ê um último para os que aprendem as letras duplas ff ss tt st A segunda classe seria dividida em três grupos para os que contam alto cada letra antes de soletrar a sílaba DO DO para os que soletram as sílabas mais difíceis como bant brand spinx etc43 Cada patamar na combinatória dos elementos deve se inserir numa grande série temporal que é ao mesmo tempo uma marcha natural do espírito e um código para os processos educativos A colocação em série das atividades sucessivas permite todo um inves timento da duração pelo poder possibilidade de um controle detalhado e de uma intervenção pontual de diferenciação de correção de castigo de eliminação a cada momento do tempo possibilidade de caracterizar portanto de utilizar os indivíduos de acordo com o nível que têm nas séries que percorrem possibilidade de acumular o tempo e a atividade de encontrálos totalizados e utilizáveis num resultado último que é a capacidade final de um indivíduo Recolhese a dispersão temporal para lucrar com isso e conservase o domínio de uma duração que escapa O poder se articula diretamente sobre o tempo realiza o controle dele e garante sua utilização Os procedimentos disciplinares revelam um tempo linear cujos momentos se integram uns nos outros e que se orienta para um ponto terminal e estável Em suma um tempo evolutivo Ora é preciso lembrar que no mesmo momento as técnicas administrativas e econômicas de controle manifestavam um tempo social de tipo serial orientado e cumulativo descoberta de uma evolução em termos de progresso As técnicas disciplinares por sua vez fazem emergir séries individuais descoberta de uma evolução em termos de gênese Progresso das sociedades gênese dos indivíduos essas duas grandes descobertas do século XVIII são talvez correlatas das novas técnicas de poder e mais precisamente de uma nova maneira de gerir o tempo e tornálo útil por recorte segmentar por seriação por síntese e totalização Uma macro e uma microfísica do poder permitiram não certamente a invenção da história já há um bom tempo ela não precisava mais ser inventada mas a integração de uma dimensão temporal unitária cumulativa no exercício dos controles e na prática das dominações A historicidade evolutiva assim como se constitui então e tão profundamente que ainda hoje é para muitos uma evidência está ligada a um modo de funcionamento do poder da mesma forma que a históriarememoração das crônicas das genealogias das proezas dos reinos e dos atos esteve muito tempo ligada a uma outra modalidade do poder Com as novas técnicas de sujeição a dinâmica das evoluções contínuas tende a substituir a dinástica dos acontecimentos solenes Em todo caso o pequeno continuam temporal da individualidadegênese parece ser mesmo como a individualidadecélula ou a individualidadeorganismo um efeito e um objeto da disciplina E no centro dessa seriação do tempo encontramos um procedimento que é para ela o que era a colocação em quadro para a repartição dos indivíduos ou o recorte celular ou ainda o que era a manobra para a economia das atividades e o controle orgânico O ponto em apreço é o exercício a técnica pela qual se impõe aos corpos tarefas ao mesmo tempo repetitivas e diferentes mas sempre graduadas Dirigindo o comportamento para um estado terminal o exercício permite uma perpétua caracterização do indivíduo seja em relação a esse termo seja em relação aos outros indivíduos seja em relação a um tipo de percurso Assim realiza na forma da continuidade e da coerção um crescimento uma observação uma qualificação Antes de tomar essa forma estritamente disciplinar o exercício teve uma longa história é encontrado nas práticas militares religiosas universitárias às vezes ritual de iniciação cerimônia preparatória ensaio teatral prova Sua organização linear continuamente progressiva seu desenrolar genético ao longo do tempo têm pelo menos no exército e na escola introdução tardia E sem dúvida de origem religiosa Em todo caso a idéia de um programa escolar que acompanharia a criança até o termo de sua educação e que implicaria de ano em ano de mês em mês em exercícios de complexidade crescente apareceu primeiro parece num grupo religioso os Irmãos da Vida Comum44 Fortemente inspirados por Ruysbroeck e na mística renana transpuseram à educação uma parte das técnicas espirituais e não só à educação dos clérigos mas à dos magistrados e comerciantes o tema da perfeição em direção à qual o mestre exemplar conduz tornase entre eles o de um aperfeiçoamento autoritário dos alunos pelo professor os exercícios cada vez mais rigorosos propostos pela vida ascética tornamse tarefas de complexidade crescente que marcam a aquisição progressiva do saber e do bom comportamento o esforço de toda a comunidade para a salvação tornase o concurso coletivo e permanente dos indivíduos que se classificam uns em relação aos outros Foram talvez processos de vida e de salvação comunitárias o primeiro núcleo de métodos destinados a produzir aptidões individualmente caracterizadas mas coletivamente úteis45 Sob sua forma mística ou ascética o exercício era uma maneira de ordenar o tempo aqui de baixo para a conquista da salvação Vai pouco a pouco na história do Ocidente inverter o sentido guardando algumas características serve para economizar o tempo da vida para acumulálo de uma maneira útil e para exercer o poder sobre os homens por meio do tempo assim arrumado O exercício transformado em elemento de uma tecnologia política do corpo e da duração não culmina num mundo além mas tende para uma sujeição que nunca terminou de se completar A COMPOSIÇÃO DAS FORÇAS Comecemos destruindo o antigo preconceito segundo o qual pensavase aumentar a força de uma tropa aumentandolhe a profundidade Todas as leis físicas sobre o movimento tornamse quimeras quando queremos adaptálas à tática46 Desde o fim do século XVII o problema técnico da infantaria foi de libertarse do modelo físico da massa Armada de lanças e mosquetões lentos imprecisos que não permitiam ajustar um alvo e mirar uma tropa era usada ou como um projétil ou como um muro ou uma fortaleza a temível infantaria do exército da Espanha a repartição dos soldados nessa massa era feita principalmente segundo sua antigüidade e valentia no centro encarregados de fazer peso e volume de dar densidade ao corpo os mais novatos na frente nos ângulos ou pelos lados os soldados mais corajosos ou reputados os mais hábeis Passouse no decorrer da época clássica a um jogo de articulações minuciosas A unidade regimento batalhão seção mais tarde divisão47 tornase uma espécie de máquina de peças múltiplas que se deslocam em relação umas às outras para chegar a uma configuração e obter um resultado específico As razões dessa mudança Algumas são econômicas tornar útil cada indivíduo e rentável a formação a manutenção o armamento das tropas dar a cada soldado unidade preciosa um máximo de eficiência Mas essas razões econômicas só puderam se tornar determinantes a partir de uma transformação técnica a invenção do fuzil48 mais preciso mais rápido que o mosquete valorizava a habilidade do soldado mais capaz de atingir um alvo determinado permitia explorar a potência de fogo ao nível individual e inversamente fazia de cada soldado um alvo possível exigindo pela mesma razão maior mobilidade e assim ocasionava o desaparecimento de uma técnica das massas em proveito de uma arte que distribuía as unidades e os homens ao longo de linhas extensas relativamente flexíveis e móveis Daí a necessidade de encontrar uma prática calculada das localizações individuais e coletivas dos deslocamentos de grupos ou de elementos isolados das mudanças de posição de passagem de uma disposição a outra enfim de inventar uma maquinaria cujo princípio não seja mais a massa móvel ou imóvel mas uma geometria de segmentos divisíveis cuja unidade de base é o soldado móvel com seu fuzil49 e acima do próprio soldado os gestos mínimos os tempos elementares de ação os fragmentos de espaços ocupados ou percorridos Mesmos problemas ao se constituir uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares que a compõem Que o dia de trabalho combinado adquira essa produtividade superior multiplicando a potência mecânica do trabalho estendendo sua ação no espaço ou diminuindo o campo de produção em relação à sua escala mobilizando nos momentos críticos grandes quantidades de trabalho a força específica do dia combinado é uma força social do trabalho ou uma força do trabalho social Nasce da própria cooperação50 Surge assim uma exigência nova a que a disciplina tem que atender construir uma máquina cujo efeito será elevado ao máximo pela articulação combinada das peças elementares de que ela se compõe A disciplina não é mais simplesmente uma arte de repartir os corpos de extrair e acumular o tempo deles mas de compor forças para obter um aparelho eficiente Essa exigência se traduz de várias maneiras 1 O corpo singular tornase um elemento que se pode colocar mover articular com outros Sua coragem ou força não são mais as variáveis principais que o definem mas o lugar que ele ocupa o intervalo que cobre a regularidade a boa ordem segundo as quais opera seus deslocamentos O homem de tropa é antes de tudo um fragmento de espaço móvel antes de ser uma coragem ou uma honra Caracterização do soldado por Guibert Quando está sob as armas ocupa dois pés em seu maior diâmetro ou seja tomandoo de um extremo ao outro e cerca de um pé em sua maior espessura tomada do peito aos ombros a que se deve acrescentar um pé de intervalo real entre ele e o homem seguinte o que dá dois pés em todos os sentidos por soldado e indica que uma tropa de infantaria em batalha ocupa seja numa frente seja em profundidade tantos passos quantas filas tem51 Redução funcional do corpo Mas também inserção desse corposegmento em todo um conjunto com o qual se articula O soldado cujo corpo foi treinado para funcionar peça por peça para operações determinadas deve por sua vez formar elemento num mecanismo de outro nível Os soldados serão instruídos um a um depois dois a dois depois em maior número Será observado para o manejo das armas quando os soldados tiverem sido instruídos separadamente fazêlos executá lo dois a dois e fazêlos trocar de lugar alternadamente para que o da esquerda aprenda a se regular pelo da direita52 O corpo se constitui como peça de uma máquina multissegmentar 2 São também peças as várias séries cronológicas que a disciplina deve combinar para formar um tempo composto O tempo de uns devese ajustar ao tempo de outros de maneira que se possa extrair a máxima quantidade de forças de cada um e combinála num resultado ótimo Servan sonhava assim com um aparelho militar que cobriria todo o território da nação e em que cada um estaria ocupado sem interrupção mas de maneira diferente segundo o segmento evolutivo a seqüência genética em que se encontrasse A vida militar começaria na mais tenra idade quando se ensinaria às crianças em moradas militares o ofício das armas ela terminaria nessas mesmas moradas quando os veteranos até seu último dia ensinariam as crianças mandariam os recrutas fazer manobras presidiriam aos exercícios dos soldados os fiscalizariam quando executassem obras de interesse público e enfim fariam reinar a ordem no país enquanto a tropa se batia nas fronteiras Não há um só momento da vida de que não se possa extrair forças desde que se saiba diferenciálo e combinálo com outros Da mesma maneira nas grandes oficinas apelase para as crianças e os velhos pois eles têm certas capacidades elementares para as quais não é necessário utilizar operários que têm várias outras aptidões além disso constituem mãodeobra barata enfim se trabalham não são dependentes de ninguém A humanidade laboriosa dizia um recebedor de impostos a respeito de uma empresa de Angers pode encontrar nessa manufatura da idade de dez anos até à velhice recursos contra a ociosidade e a miséria que é conseqüência desta53 Mas é sem dúvida no ensino primário que esse ajustamento das cronologias diferentes será mais útil Do século XVII até a introdução no começo do XIX do método Lancaster o mecanismo complexo da escola mútua se construirá uma engrenagem depois da outra confiaramse primeiro aos alunos mais velhos tarefas de simples fiscalização depois de controle do trabalho em seguida de ensino e então no fim das contas todo o tempo de todos os alunos estava ocupado seja ensinando seja aprendendo A escola tornase um aparelho de aprender onde cada aluno cada nível e cada momento se estão combinados como deve ser são permanentemente utilizados no processo geral de ensino Um dos grandes partidários da escola mútua dá a medida desse progresso Numa escola de 360 crianças o professor que quisesse instruir cada aluno por sua vez durante uma sessão de três horas só poderia dar meio minuto a cada um Pelo novo método todos os 360 alunos escrevem lêem ou contam durante duas horas e meia cada um54 3 Essa combinação cuidadosamente medida das forças exige um sistema preciso de comando Toda a atividade do indivíduo disciplinar deve ser repartida e sustentada por injunções cuja eficiência repousa na brevidade e na clareza a ordem não tem que ser explicada nem mesmo formulada é necessário e suficiente que provoque o comportamento desejado Do mestre de disciplina àquele que lhe é sujeito a relação é de sinalização o que importa não é compreender a injunção mas perceber o sinal reagir logo a ele de acordo com um código mais ou menos artificial estabelecido previamente Colocar os corpos num pequeno mundo de sinais a cada um dos quais está ligada uma resposta obrigatória e só uma técnica do treinamento que exclui despoticamente em tudo a menor representação e o menor murmúrio o soldado disciplinado começa a obedecer ao que quer que lhe seja ordenado sua obediência é pronta e cega a aparência de indocilidade o menor atraso seria um crime55 O treinamento das escolares deve ser feito da mesma maneira poucas palavras nenhuma explicação no máximo um silêncio total que só seria interrompido por sinais sinos palmas gestos simples olhar do mestre ou ainda aquele pequeno aparelho de madeira que os Irmãos das Escolas Cristãs usavam era chamado por excelência o Sinal e devia significar em sua brevidade maquinai ao mesmo tempo a técnica do comando e a moral da obediência O primeiro e principal uso do sinal é atrair de uma só vez todos os olhares dos escolares para o mestre e fazêlos ficar atentos ao que ele lhes quer comunicar Assim toda vez que este quiser chamar a atenção das crianças e fazer parar qualquer exercício baterá uma vez Um bom escolar toda vez que ouvir o ruído do sinal pensará ouvir a voz do mestre ou antes a voz de Deus mesmo que o chame pelo nome Entrará então nos sentimentos do jovem Samuel dizendo com ele no fundo de sua alma Senhor eisme aqui O aluno deverá aprender o código dos sinais e atender automaticamente a cada um deles Feita a oração o mestre dará uma pancada de sinal olhando a criança que quer mandar ler lhe fará sinal de começar Para fazer parar o que está lendo dará uma pancada de sinal Para fazer sinal ao que está lendo de se corrigir quando pronunciou mal uma letra uma sílaba ou uma palavra dará duas pancadas sucessivamente e seguidas Se após se ter corrigido ele não recomeça na palavra que pronunciou mal porque leu várias depois dela o mestre dará três pancadas sucessivamente uma em seguida da outra para lhe fazer sinal de recuar de algumas palavras e continuará a fazer esse sinal até o escolar chegar à sílaba ou à palavra que pronunciou mal56 A escola mútua levará ainda mais longe esse controle dos comportamentos pelo sistema dos sinais a que se tem que reagir imediatamente Até as ordens verbais devem funcionar como sinalização Entrem em seus bancos À palavra Entrem as crianças colocam com ruído a mão direita sobre a mesa e ao mesmo tempo passam a perna para dentro do banco às palavras em seus bancos eles passam a outra perna e se sentam diante das lousas Pegarlousas à palavra pegar as crianças levam a mão direita ao barbante que serve para suspender a lousa ao prego que está diante deles e com a esquerda pegam a lousa pelo meio à palavra lousas eles a soltam e a colocam sobre a mesa57 Em resumo podese dizer que a disciplina produz a partir dos corpos que controla quatro tipos de individualidade ou antes uma individualidade dotada de quatro características é celular pelo jogo da repartição espacial é orgânica pela codificação das atividades é genética pela acumulação do tempo é combinatória pela composição das forças E para tanto utiliza quatro grandes técnicas constrói quadros prescreve manobras impõe exercícios enfim para realizar a combinação das forças organiza táticas A tática arte de construir com os corpos localizados atividades codificadas e as aptidões formadas aparelhos em que o produto das diferentes forças se encontra majorado por sua combinação calculada é sem dúvida a forma mais elevada da prática disciplinar Nesse saber os teóricos do século XVIII viam o fundamento geral de toda a prática militar desde o controle e o exercício dos corpos individuais até à utilização das forças específicas às multiplicidades mais complexas Arquitetura anatomia mecânica economia do corpo disciplinar aos olhos da maior parte dos militares a tática não passa de um ramo da vasta ciência da guerra aos meus ela é a base dessa ciência ela é a própria ciência pois ensina a constituir as tropas a ordenálas a movêlas a mandálas combater pois só ela pode completar o número e manejar a multidão ela incluirá enfim o conhecimento dos homens das armas das tensões das circunstâncias pois são todos esses conhecimentos reunidos que devem determinar esses movimentos58 Ou ainda Esse termo tática dá a idéia da posição respectiva dos homens que compõem uma tropa das diversas tropas que compõem um exército de seus movimentos e ações das relações que têm entre si59 É possível que a guerra como estratégia seja a continuação da política Mas não se deve esquecer que a política foi concebida como a continuação senão exata e diretamente da guerra pelo menos do modelo militar como meio fundamental para prevenir o distúrbio civil A política como técnica da paz e da ordem internas procurou pôr em funcionamento o dispositivo do exército perfeito da massa disciplinada da tropa dócil e útil do regimento no acampamento e nos campos na manobra e no exercício Nos grandes Estados do século XVIII o exército garante a paz civil sem dúvida porque é uma força real uma espada sempre ameaçadora mas também porque é uma técnica e um saber que podem projetar seu esquema sobre o corpo social Se há uma série guerrapolítica que passa pela estratégia há uma série exércitopolítica que passa pela tática É a estratégia que permite compreender a guerra como uma maneira de conduzir a guerra entre os Estados é a tática que permite compreender o exército como um princípio para manter a ausência de guerra na sociedade civil A era clássica viu nascer a grande estratégia política e militar segundo a qual as nações defrontam suas forças econômicas e demográficas mas viu nascer também a minuciosa tática militar e política pela qual se exerce nos Estados o controle dos corpos e das forças individuais O militar a instituição militar o personagem do militar a ciência militar tão diferentes do que caracterizava antes o homem de guerra se especifica durante esse período no ponto de junção entre a guerra e os ruídos da batalha por um lado a ordem e o silêncio obediente da paz por outro O sonho de uma sociedade perfeita é facilmente atribuído pelos historiadores aos filósofos e juristas do século XVIII mas há também um sonho militar da sociedade sua referência fundamental era não ao estado de natureza mas às engrenagens cuidadosamente subordinadas de uma máquina não ao contrato primitivo mas às coerções permanentes não aos direitos fundamentais mas aos treinamentos indefinidamente progressivos não à vontade geral mas à docilidade automática Deverseia tomar a disciplina nacional dizia Guibert O Estado que eu idealizo terá uma administração simples sólida fácil de governar Parecerá com essas imensas máquinas que com molas pouco complicadas produzem grandes efeitos a força desse Estado nascerá de sua força sua prosperidade de sua prosperidade O tempo que destrói tudo aumentará sua potência Ele desmentirá esse preconceito vulgar que leva a imaginar que os impérios estão submetidos a uma lei imperiosa de decadência e ruína60 O regime napoleônico não está longe e com ele essa forma de Estado que lhe subsistirá e que não se deve esquecer que foi preparado por juristas mas também por soldados conselheiros de Estado e oficiais baixos homens de lei e homens de acampamento A referência romana que acompanha essa formação inclui claramente esse duplo índice os cidadãos e os legionários a lei e a manobra Enquanto os juristas procuravam no pacto um modelo primitivo para a construção ou a reconstrução do corpo social os militares e com eles os técnicos da disciplina elaboravam processos para a coerção individual e coletiva dos corpos CAPÍTULO II Os RECURSOS PARA o BOM ADESTRAMENTO Walhausen bem no início do século XVII falava da correta disciplina como uma arte do bom adestramento1 O poder disciplinar é com efeito um poder que em vez de se apropriar e de retirar tem como função maior adestrar ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor Ele não amarra as forças para reduzilas procura ligálas para multiplicálas e utilizálas num todo Em vez de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido separa analisa diferencia leva seus processos de decomposição até às singularidades necessárias e suficientes Adestra as multidões confusas móveis inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos individuais pequenas células separadas autonomias orgânicas identidades e continuidades genéticas segmentos combinatórios A disciplina fabrica indivíduos ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício Não é um poder triunfante que a partir de seu próprio excesso podese fiar em seu superpoderio é um poder modesto desconfiado que funciona a modo de uma economia calculada mas permanente Humildes modalidades procedimentos menores se os compararmos aos rituais majestosos da soberania ou aos grandes aparelhos do Estado E são eles justamente que vão pouco a pouco invadir essas formas maiores modificarlhes os mecanismos e imporlhes seus processos O aparelho judiciário não escapará a essa invasão mal secreta O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples o olhar hierárquico a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico o exame A VIGILÂNCIA HIERÁRQUICA O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder e onde em troca os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam Lentamente no decorrer da época clássica são construídos esses observatórios da multiplicidade humana para as quais a história das ciências guardou tão poucos elogios Ao lado da grande tecnologia dos óculos das lentes dos feixes luminosos unida à fundação da física e da cosmologia novas houve as pequenas técnicas das vigilâncias múltiplas e entrecruzadas dos olhares que devem ver sem ser vistos uma arte obscura da luz e do visível preparou em surdina um saber novo sobre o homem através de técnicas para sujeitálo e processos para utilizálo Esses observatórios têm um modelo quase ideal o acampamento militar É a cidade apressada e artificial que se constrói e remodela quase à vontade é o ápice de um poder que deve ter ainda mais intensidade mas também mais discrição por se exercer sobre homens de armas No acampamento perfeito todo o poder seria exercido somente pelo jogo de uma vigilância exata e cada olhar seria uma peça no funcionamento global do poder O velho e tradicional plano quadrado foi consideravelmente afinado de acordo com inúmeros esquemas Definese exatamente a geometria das aléias o número e a distribuição das tendas a orientação de suas entradas a disposição das filas e das colunas desenhase a rede dos olhares que se controlam uns aos outros Na praça darmas tiramse cinco linhas a primeira fica a 16 pés da segunda as outras ficam a 8 pés uma da outra e a última fica a 8 pés dos tabardos Os tabardos ficam a 10 pés das tendas dos oficiais inferiores precisamente em frente ao primeiro bastão Uma rua de companhia tem 51 pés de largura Todas as tendas ficam a dois pés umas das outras As tendas dos subalternos ficam em frente às ruelas de suas companhias O bastão de trás fica a 8 pés da última tenda dos soldados e a porta olha para a tenda dos capitães As tendas dos capitães ficam levantadas em frente às ruas de suas companhias A porta olha para as próprias companhias2 O acampamento é o diagrama de um poder que age pelo efeito de uma visibilidade geral Durante muito tempo encontraremos no urbanismo na construção das cidades operárias dos hospitais dos asilos das prisões das casas de educação esse modelo do acampamento ou pelo menos o princípio que o sustenta o encaixamento espacial das vigilâncias hierarquizadas Princípio do encastramento O acampamento foi para a ciência pouco confessável das vigilâncias o que a câmara escura foi para a grande ciência da ótica Toda uma problemática se desenvolve então a de uma arquitetura que não é mais feita simplesmente para ser vista fausto dos palácios ou para vigiar o espaço exterior geometria das fortalezas mas para permitir um controle interior articulado e detalhado para tornar visíveis os que nela se encontram mais geralmente a de uma arquitetura que seria um operador para a transformação dos indivíduos agir sobre aquele que abriga dar domínio sobre seu comportamento reconduzir até eles os efeitos do poder oferecêlos a um conhecimento modificá los As pedras podem tornar dócil e conhecível O velho esquema simples do encarceramento e do fechamento do muro espesso da porta sólida que impedem de entrar ou de sair começa a ser substituído pelo cálculo das aberturas dos cheios e dos vazios das passagens e das transparências Assim é que o hospital edifício se organiza pouco a pouco como instrumento de ação médica deve permitir que se possa observar bem os doentes portanto coordenar melhor os cuidados a forma dos edifícios pela cuidadosa separação dos doentes deve impedir os contágios a ventilação que se faz circular em torno de cada leito deve enfim evitar que os vapores deletérios se estagnem em volta do paciente decompondo seus humores e multiplicando a doença por seus efeitos imediatos O hospital aquele que se quer aparelhar na segunda metade do século e para o qual se fizeram tantos projetos depois do segundo incêndio do HôtelDieu não é mais simplesmente o teto onde se abrigavam a miséria e a morte próxima é sem sua própria materialidade um operador terapêutico Como a escolaedifício deve ser um operador de adestramento Fora uma máquina pedagógica que PârisDuverney concebera na Escola militar e até nos mínimos detalhes que ele impusera a Gabriel Adestrar corpos vigorosos imperativo de saúde obter oficiais competentes imperativo de qualificação formar militares obedientes imperativo político prevenir a devassidão e a homossexualidade imperativo de moralidade Quádrupla razão para estabelecer separações estanques entre os indivíduos mas também aberturas para observação contínua O próprio edifício da Escola devia ser um aparelho de vigiar os quartos eram repartidos ao longo de um corredor como uma série de pequenas celas a intervalos regulares encontravase um alojamento de oficial de maneira que cada dezena de alunos tivesse um oficial à direita e à esquerda os alunos aí ficavam trancados durante toda a noite e Pâris insistira para que fosse envidraçada a parede de cada quarto do lado do corredor desde a altura de apoio até um ou dois pés do teto Além disso a vista dessas vidraças só pode ser agradável ousamos dizer que é útil sob vários pontos de vista sem falar das razões de disciplina que podem determinar essa disposição3 Nas salas de refeições fora preparado um estrado um pouco alto para colocar as mesas dos inspetores dos estudos para que eles possam ver todas as mesas dos alunos de suas divisões durante as refeições haviam sido instaladas latrinas com meiasportas para que o vigia para lá designado pudesse ver a cabeça e as pernas dos alunos mas com separações laterais suficientemente elevadas para que os que lá estão não se possam ver4 Escrúpulos infinitos de vigilância que a arquitetura transmite por mil dispositivos sem honra Só os acharemos irrisórios se esquecermos o papel dessa instrumentação menor mas sem falha na objetivação progressiva e no quadriculamento cada vez mais detalhado dos comportamentos individuais As instituições disciplinares produziram uma maquinaria de controle que funcionou como um microscópio do comportamento as divisões tênues e analíticas por elas realizadas formaram em torno dos homens um aparelho de observação de registro e de treinamento Nessas máquinas de observar como subdividir os olhares como estabelecer entre eles escalas comunicações Como fazer para que de sua multiplicidade calculada resulte um poder homogêneo e contínuo O aparelho disciplinar perfeito capacitaria um único olhar tudo ver permanentemente Um ponto central seria ao mesmo tempo fonte de luz que iluminasse todas as coisas e lugar de convergência para tudo o que deve ser sabido olho perfeito a que nada escapa e centro em direção ao qual todos os olhares convergem Foi o que imaginara Ledoux ao construir ArcetSenans no centro dos edifícios dispostos em círculo e que se abriam todos para o interior uma alta construção devia acumular as funções administrativas de direção policiais de vigilância econômicas de controle e de verificação religiosas de encorajamento à obediência e ao trabalho de lá viriam todas as ordens lá seriam registradas todas as atividades percebidas e julgadas todas as faltas e isso imediatamente sem quase nenhum suporte a não ser uma geometria exata Entre todas as razões do prestígio que foi dado na segunda metade do século XVIII às arquiteturas circulares5 é preciso sem dúvida contar esta elas exprimiam uma certa utopia política Mas o olhar disciplinar teve de fato necessidade de escala Melhor que o círculo a pirâmide podia atender a duas exigências ser bastante completa para formar uma rede sem lacuna possibilidade em conseqüência de multiplicar seus degraus e de espalhálos sobre toda a superfície a controlar e entretanto ser bastante discreta para não pesar como uma massa inerte sobre a atividade a disciplinar e não ser para ela um freio ou um obstáculo integrarse ao dispositivo disciplinar como uma função que lhe aumenta os efeitos possíveis É preciso decompor suas instâncias mas para aumentar sua função produtora Especificar a vigilância e torná la funcional É o problema das grandes oficinas e das fábricas onde se organiza um novo tipo de vigilância É diferente do que se realizava nos regimes das manufaturas do exterior pelos inspetores encarregados de fazer aplicar os regulamentos tratase agora de um controle intenso contínuo corre ao longo de todo o processo de trabalho não se efetua ou não só sobre a produção natureza quantidade de matériasprimas tipo de instrumentos utilizados dimensões e qualidades dos produtos mas leva em conta a atividade dos homens seu conhecimento técnico a maneira de fazêlo sua rapidez seu zelo seu comportamento Mas é também diferente do controle doméstico do mestre presente ao lado dos operários e dos aprendizes pois é realizado por prepostos fiscais controladores e contramestres À medida que o aparelho de produção se torna mais importante e mais complexo à medida que aumentam o número de operários e a divisão do trabalho as tarefas de controle se fazem mais necessárias e mais difíceis Vigiar tornase então uma função definida mas deve fazer parte integrante do processo de produção deve duplicálo em todo o seu comprimento Um pessoal especializado tornase indispensável constantemente presente e distinto dos operários Na grande manufatura tudo é feito ao toque da campainha os operários são forçados e reprimidos Os chefes acostumados a ter com eles um ar de superioridade e de comando que realmente é necessário com a multidão tratamnos duramente ou com desprezo acontece daí que esses operários ou são mais caros ou apenas passam pela manufatura6 Mas se os operários preferem o enquadramento de tipo corporativo a esse novo regime de vigilância os patrões quanto a eles reconhecem nisso um elemento indissociável do sistema da produção industrial da propriedade privada e do lucro Em nível de fábrica de grande forja ou de mina os objetos de despesa são tão multiplicados que a menor infidelidade sobre cada objeto daria no total uma fraude imensa que não somente absorveria os lucros mas levaria a fonte dos capitais a mínima imperícia desapercebida e por isso repetida cada dia pode se tornar funesta à empresa ao ponto de anulála em muito pouco tempo donde o fato que só agentes diretamente dependentes do proprietário e designados só para esta tarefa poderão zelar para que não haja um tostão de despesa inútil para que não haja um momento perdido no dia seu papel será de vigiar os operários visitar todas as obras instruir o comitê sobre todos os acontecimentos7 A vigilância tornase um operador econômico decisivo na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar8 Mesmo movimento na reorganização do ensino elementar especificação da vigilância e integração à relação pedagógica O desenvolvimento das escolas paroquiais o aumento de seu número de alunos a inexistência de métodos que permitissem regulamentar simultaneamente a atividade de toda uma turma a desordem e a confusão que daí provinham tornavam necessária a organização dos controles Para ajudar o mestre Batencour escolhe entre os melhores alunos toda uma série de oficiais intendentes observadores monitores repetidores recitadores de orações oficiais de escrita recebedores de tinta capelães e visitadores Os papéis assim definidos são de duas ordens uns correspondem a tarefas materiais distribuir a tinta e o papel dar as sobras aos pobres ler textos espirituais nos dias de festa etc outros são da ordem da fiscalização Os observadores devem anotar quem sai do banco quem conversa quem não tem o terço ou o livro de orações quem se comporta mal na missa quem comete alguma imodéstia conversa ou grita na rua os admonitores estão encarregados de tomar conta dos que falam ou fazem zunzum ao estudar as lições dos que não escrevem ou brincam os visitadores vão se informar nas famílias sobre os alunos que estiveram ausentes ou cometeram faltas graves Quanto aos intendentes fiscalizam todos os outros oficiais Só os repetidores têm um papel pedagógico têm que fazer os alunos ler dois a dois em voz baixa9 Ora algumas dezenas de anos mais tarde Demia volta a uma hierarquia do mesmo tipo mas as funções de fiscalização agora são quase todas duplicadas por um papel pedagógico um submestre ensina a segurar a pena guia a mão corrige os erros e ao mesmo tempo marca as faltas quando se discute outro submestre tem as mesmas tarefas na classe de leitura o intendente que controla os outros oficiais e zela pelo comportamento geral é também encarregado de adequar os recém chegados aos exercícios da escola os decuriões fazem recitar as lições e marcam os que não as sabem10 Temos aí o esboço de uma instituição tipo escola mútua em que estão integrados no interior de um dispositivo único três procedimentos o ensino propriamente dito a aquisição dos conhecimentos pelo próprio exercício da atividade pedagógica enfim uma observação recíproca e hierarquizada Uma relação de fiscalização definida e regulada está inserida na essência da prática do ensino não como uma peça trazida ou adjacente mas como um mecanismo que lhe é inerente e multiplica sua eficiência A vigilância hierarquizada contínua e funcional não é sem dúvida uma das grandes invenções técnicas do século XVIII mas sua insidiosa extensão deve sua importância às novas mecânicas de poder que traz consigo O poder disciplinar graças a ela tornase um sistema integrado ligado do interior à economia e aos fins do dispositivo onde é exercido Organizase assim como um poder múltiplo automático e anônimo pois se é verdade que a vigilância repousa sobre indivíduos seu funcionamento é de uma rede de relações de alto a baixo mas também até um certo ponto de baixo para cima e lateralmente essa rede sustenta o conjunto e o perpassa de efeitos de poder que se apóiam uns sobre os outros fiscais perpetuamente fiscalizados O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como uma coisa não se transfere como uma propriedade funciona como uma máquina E se é verdade que sua organização piramidal lhe dá um chefe é o aparelho inteiro que produz poder e distribui os indivíduos nesse campo permanente e contínuo O que permite ao poder disciplinar ser absolutamente indiscreto pois está em toda parte e sempre alerta pois em princípio não deixa nenhuma parte às escuras e controla continuamente os mesmos que estão encarregados de controlar e absolutamente discreto pois funciona permanentemente e em grande parte em silêncio A disciplina faz funcionar um poder relacionai que se autosustenta por seus próprios mecanismos e substitui o brilho das manifestações pelo jogo ininterrupto dos olhares calculados Graças às técnicas de vigilância a física do poder o domínio sobre o corpo se efetuam segundo as leis da ótica e de mecânica segundo um jogo de espaços de linhas de telas de feixes de graus e sem recurso pelo menos em princípio ao excesso à força à violência Poder que é em aparência ainda menos corporal por ser mais sabiamente físico A SANÇÃO NORMALIZADORA 1 No orfanato do cavaleiro Paulet as sessões do tribunal que se reunia todas as manhãs davam lugar a um cerimonial Encontramos todos os alunos em formação alinhamento imobilidade e silêncio perfeitos O major jovem da nobreza de dezesseis anos estava fora da fila a espada na mão à sua ordem a tropa se abalou ao passo duplo para formar o círculo O conselho se reuniu no centro cada oficial fez o relatório de sua tropa nas vinte e quatro horas Os acusados foram admitidos a se justificar ouviramse as testemunhas deliberouse e quando se chegou a um acordo o major prestou contas em voz alta do número dos culpados da natureza dos delitos e dos castigos ordenados A tropa em seguida desfilou na maior ordem11 Na essência de todos os sistemas disciplinares funciona um pequeno mecanismo penal É beneficiado por uma espécie de privilégio de justiça com suas leis próprias seus delitos especificados suas formas particulares de sanção suas instâncias de julgamento As disciplinas estabelecem uma infrapenalidade quadriculam um espaço deixado vazio pelas leis qualificam e reprimem um conjunto de comportamentos que escapava aos grandes sistemas de castigo por sua relativa indiferença Ao entrar os companheiros deverão saudarse reciprocamente ao sair deverão guardar as mercadorias e ferramentas que utilizaram e em época de serão apagar a lâmpada é expressamente proibido divertir os companheiros com gestos ou de outra maneira eles deverão se comportar honesta e decentemente quem se ausentar por mais de cinco minutos sem avisar o Sr Oppenheim será anotado por meiodia e para que fique certo que nada será esquecido nessa justiça criminal miúda é proibido fazer qualquer coisa que puder prejudicar o Sr Oppenheim e seus companheiros12 Na oficina na escola no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo atrasos ausências interrupções das tarefas da atividade desatenção negligência falta de zelo da maneira de ser grosseria desobediência dos discursos tagarelice insolência do corpo atitudes incorretas gestos não conformes sujeira da sexualidade imodéstia indecência Ao mesmo tempo é utilizada a título de punição toda uma série de processos sutis que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações Tratase ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações mais tênues da conduta e de dar uma função punitiva aos elementos aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar levando ao extremo que tudo possa servir para punir a mínima coisa que cada indivíduo se encontre preso numa universalidade punívelpunidora Pela palavra punição devese compreender tudo o que é capaz de fazer as crianças sentir a falta que cometeram tudo o que é capaz de humilhálas de confundilas uma certa frieza uma certa indiferença uma pergunta uma humilhação uma destituição de posto13 2 Mas a disciplina traz consigo uma maneira específica de punir e que é apenas um modelo reduzido do tribunal O que pertence à penalidade disciplinar é a inobservância tudo o que está inadequado à regra tudo o que se afasta dela os desvios É passível de pena o campo indefinido do nãoconforme o soldado comete uma falta cada vez que não atinge o nível requerido a falta do aluno é assim como um delito menor uma inaptidão a cumprir suas tarefas O regulamento da infantaria prussiana impunha tratar com todo o rigor possível o soldado que não tivesse aprendido a manejar corretamente o fuzil Do mesmo modo quando um escolar não tiver guardado o catecismo da véspera poderseá obrigálo a aprender o daquele dia sem nenhum erro e deverá repetilo no dia seguinte ou será obrigado a ouvilo de pé ou de joelhos ou com as mãos postas ou então lhe será imposta alguma outra penitência A ordem que os castigos disciplinares devem fazer respeitar é de natureza mista é uma ordem artificial colocada de maneira explícita por uma lei um programa um regulamento Mas é também uma ordem definida por processos naturais e observáveis a duração de um aprendizado o tempo de um exercício o nível de aptidão têm por referência uma regularidade que é também uma regra As crianças das escolas cristãs nunca devem ser colocadas numa lição de que ainda não são capazes pois estariam correndo o perigo de não poder aprender nada entretanto a duração de cada estágio é fixada de maneira regulamentar e quem no fim de três meses não houver passado para a ordem superior deve ser colocado bem em evidência no banco dos ignorantes A punição em regime disciplinar comporta uma dupla referência jurídiconatural 3 O castigo disciplinar tem a função de reduzir os desvios Deve portanto ser essencialmente corretivo Ao lado das punições copiadas ao modelo judiciário multas açoite masmorra os sistemas disciplinares privilegiam as punições que são da ordem do exercício aprendizado intensificado multiplicado muitas vezes repetido o regulamento de 1766 para a infantaria previa que os soldados de primeira classe que mostrarem alguma negligência ou má vontade serão enviados para a última classe e só poderão voltar à primeira depois de novos exercícios e um novo exame Como dizia por seu lado JB de La Salle O castigo escrito é de todas as penitências a mais honesta para um mestre a mais vantajosa e a que mais agrada aos pais permite tirar dos próprios erros das crianças maneiras de avançar seus progressos corrigindolhes os defeitos àqueles por exemplo que não houverem escrito tudo o que deviam escrever ou não se aplicarem para fazêlo bem se poderá dar algum dever para escrever ou para decorar14 A punição disciplinar é pelo menos por uma boa parte isomorfa à própria obrigação ela é menos a vingança da lei ultrajada que sua repetição sua insistência redobrada De modo que o efeito corretivo que dela se espera apenas de uma maneira acessória passa pela expiação e pelo arrependimento é diretamente obtido pela mecânica de um castigo Castigar é exercitar 4 A punição na disciplina não passa de um elemento de um sistema duplo gratificaçãosanção E é esse sistema que se torna operante no processo de treinamento e de correção O professor deve evitar tanto quanto possível usar castigos ao contrário deve procurar tornar as recompensas mais freqüentes que as penas sendo os preguiçosos mais incitados pelo desejo de ser recompensados como os diligentes que pelo receio dos castigos por isso será muito proveitoso quando o mestre for obrigado a usar de castigo que ele ganhe se puder o coração da criança antes de aplicarlhe o castigo15 Este mecanismo de dois elementos permite um certo número de operações características da penalidade disciplinar Em primeiro lugar a qualificação dos comportamentos e dos desempenhos a partir de dois valores opostos do bem e do mal em vez da simples separação do proibido como é feito pela justiça penal temos uma distribuição entre pólo positivo e pólo negativo todo o comportamento cai no campo das boas e das más notas dos bons e dos maus pontos É possível além disso estabelecer uma quantificação e uma economia traduzida em números Uma contabilidade penal constantemente posta em dia permite obter o balanço positivo de cada um A justiça escolar levou muito longe esse sistema de que se encontram pelo menos os rudimentos no exército ou nas oficinas Os irmãos das Escolas Cristãs haviam organizado uma microeconomia dos privilégios e dos castigos escritos Os privilégios servirão aos escolares para se isentarem das penitências que lhes serão impostas Um escolar por exemplo terá por castigo quatro ou cinco perguntas do catecismo para copiar ele poderá se libertar dessa penitência mediante alguns pontos de privilégios o mestre anotará o número para cada pergunta Valendo os privilégios um número determinado de pontos o mestre tem também outros de menor valor que servirão como que de troco para os primeiros Uma criança por exemplo terá um castigo de que se poderá redimir com seis pontos tem um privilégio de dez apresentao ao mestre que lhe devolve quatro pontos e assim outros16 E pelo jogo dessa quantificação dessa circulação dos adiantamentos e das dívidas graças ao cálculo permanente das notas a mais ou a menos os aparelhos disciplinares hierarquizam numa relação mútua os bons e os maus indivíduos Através dessa microeconomia de uma penalidade perpétua operase uma diferenciação que não é a dos atos mas dos próprios indivíduos de sua natureza de suas virtualidades de seu nível ou valor A disciplina ao sancionar os atos com exatidão avalia os indivíduos com verdade a penalidade que ela põe em execução se integra no ciclo de conhecimento dos indivíduos 5 A divisão segundo as classificações ou os graus tem um duplo papel marcar os desvios hierarquizar as qualidades as competências e as aptidões mas também castigar e recompensar Funcionamento penal da ordenação e caráter ordinal da sanção A disciplina recompensa unicamente pelo jogo das promoções que permitem hierarquias e lugares pune rebaixando e degradando O próprio sistema de classificação vale como recompensa ou punição Havia sido aperfeiçoado na Escola Militar um sistema complexo de hierarquização honorífica em que as roupas traduziam essa classificação aos olhos de todos e castigos mais ou menos nobres ou vergonhosos estavam ligados como marca de privilégio ou de infâmia às categorias assim distribuídas Essa repartição classificatória e penal se efetua a intervalos próximos por relatórios que os oficiais os professores seus adjuntos fazem sem consideração de idade ou de posto sobre as qualidades morais dos alunos e sobre seu comportamento universalmente reconhecido A primeira classe dita dos muito bons se distingue por uma dragona de prata sua honra é ser tratada como uma tropa puramente militar militares serão portanto as punições a que ela tem direito as detenções e nos casos graves a prisão A segunda classe dos bons usa uma dragona de seda cor de papoula e prata são passíveis de prisão e detenção e também da jaula e de se ajoelhar A classe dos medíocres tem direito a uma dragona de lã vermelha às penas precedentes se acrescenta se for o caso o burel A última classe a dos maus é marcada por uma dragona de lã parda os alunos desta classe serão submetidos a todas as punições usuais no Hotel ou todas as que se julgar necessário introduzir e até à masmorra escura A isso se acrescentou durante algum tempo a classe vergonhosa para a qual se prepararam regulamentos especiais de maneira que os que a compõem estarão sempre separados dos outros e vestidos de burel Como só o mérito e o comportamento devem decidir sobre o lugar do aluno os das duas últimas classes poderão se orgulhar de subir às primeiras e usar suas marcas quando por testemunhos universais se reconhecerá que se tornaram dignos disso pela mudança de seu comportamento e seus progressos e os das primeiras classes também descerão para as outras se relaxarem e se relatórios reunidos e desvantajosos mostrarem que não merecem mais as distribuições e prerrogativas das primeiras classes A classificação que pune deve tender a se extinguir A classe vergonhosa só existe para desaparecer A fim de julgar a espécie de conversão dos alunos da classe vergonhosa que nela se comportam bem eles serão reintroduzidos nas outras classes suas roupas lhes serão devolvidas mas ficarão com seus camaradas de infâmia durante as refeições e as recreações aí permanecerão se não continuarem a se comportar bem daí sairão absolutamente se derem satisfação tanto nessa classe quanto nessa divisão17 Duplo efeito conseqüentemente dessa penalidade hierarquizante distribuir os alunos segundo suas aptidões e seu comportamento portanto segundo o uso que se poderá fazer deles quando saírem da escola exercer sobre eles uma pressão constante para que se submetam todos ao mesmo modelo para que sejam obrigados todos juntos à subordinação à docilidade à atenção nos estudos e nos exercícios e à exata prática dos deveres e de todas as partes da disciplina Para que todos se pareçam Em suma a arte de punir no regime do poder disciplinar não visa nem a expiação nem mesmo exatamente a repressão Põe em funcionamento cinco operações bem distintas relacionar os atos os desempenhos os comportamentos singulares a um conjunto que é ao mesmo tempo campo de comparação espaço de diferenciação e princípio de uma regra a seguir Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa regra de conjunto que se deve fazer funcionar como base mínima como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades o nível a natureza dos indivíduos Fazer funcionar através dessa medida valorizadora a coação de uma conformidade a realizar Enfim traçar o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças a fronteira externa do anormal a classe vergonhosa da Escola Militar A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara diferencia hierarquiza homogeniza exclui Em uma palavra ela normaliza Opõese então termo por termo a uma penalidade judiciária que tem a função essencial de tomar por referência não um conjunto de fenômenos observáveis mas um corpo de leis e de textos que é preciso memorizar não diferenciar indivíduos mas especificar atos num certo número de categorias gerais não hierarquizar mas fazer funcionar pura e simplesmente a oposição binária do permitido e do proibido não homogeneizar mas realizar a partilha adquirida de uma vez por todas da condenação Os dispositivos disciplinares produziram uma penalidade da norma que é irredutível em seus princípios e seu funcionamento à penalidade tradicional da lei O pequeno tribunal que parece ter sede permanente nos edifícios da disciplina e às vezes toma a forma teatral do grande aparelho judiciário não deve iludir ele não conduz a não ser por algumas continuidades formais os mecanismos da justiça criminal até à trama da existência cotidiana ou ao menos não é isso o essencial as disciplinas inventaram apoiandose aliás sobre uma série de processos muito antigos um novo funcionamento punitivo e é este que pouco a pouco investiu o grande aparelho exterior que parecia reproduzir modesta ou ironicamente O funcio namento jurídicoantropológico que toda a história da penalidade moderna revela não se origina na superposição à justiça criminal das ciências humanas e nas exigências próprias a essa nova racionalidade ou ao humanismo que ela traria consigo ele tem seu ponto de formação nessa técnica disciplinar que fez funcionar esses novos mecanismos de sanção normalizadora Aparece através das disciplinas o poder da Norma Nova lei da sociedade moderna Digamos antes que desde o século XVIII ele veio unirse a outros poderes obrigandoos a novas delimitações o da Lei o da Palavra e do Texto o da Tradição O Normal se estabelece como princípio de coerção no ensino com a instauração de uma educação estandardizada e a criação das escolas normais estabelecese no esforço para organizar um corpo médico e um quadro hospitalar da nação capazes de fazer funcionar normas gerais de saúde estabelecese na regularização dos processos e dos produtos industriais18 Tal como a vigilância e junto com ela a regulamentação é um dos grandes instrumentos de poder no fim da era clássica As marcas que significavam status privilégios filiações tendem a ser substituídas ou pelo menos acrescidas de um conjunto de graus de normalidade que são sinais de filiação a um corpo social homogêneo mas que têm em si mesmos um papel de classificação de hierarquização e de distribuição de lugares Em certo sentido o poder de regulamentação obriga à homogeneidade mas individualiza permitindo medir os desvios determinar os níveis fixar as especialidades e tornar úteis as diferenças ajustandoas umas às outras Compreendese que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal pois dentro de uma homogeneidade que é a regra ele introduz como um imperativo útil e resultado de uma medida toda a gradação das diferenças individuais O EXAME O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza É um controle normalizante uma vigilância que permite qualificar classificar e punir Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados É por isso que em todos os dispositivos de disciplina o exame é altamente ritualizado Nele vêmse reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência a demonstração da força e o estabelecimento da verdade No coração dos processos de disciplina ele manifesta a sujeição dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujeitam A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível Mais uma inovação da era clássica que os historiadores deixaram na sombra Fazse a história das experiências com cegos de nascença meninoslobo ou com a hipnose Mas quem fará a história mais geral mais vaga mais determinante também do exame de seus rituais de seus métodos de seus personagens e seus papéis de seus jogos de perguntas e respostas de seus sistemas de notas e de classificação Pois nessa técnica delicada estão comprometidos todo um campo de saber todo um tipo de poder Falase muitas vezes da ideologia que as ciências humanas pressupõem de maneira discreta ou declarada Mas sua própria tecnologia esse pequeno esquema operatório que tem tal difusão da psiquiatria à pedagogia do diagnóstico das doenças à contratação de mãodeobra esse processo tão familiar do exame não põe em funcionamento dentro de um só mecanismo relações de poder que permitem obter e constituir saber O investimento político não se faz simplesmente ao nível da consciência das representações e no que julgamos saber mas ao nível daquilo que torna possível algum saber Uma das condições essenciais para a liberação epistemológica da medicina no fim do século XVIII foi a organização do hospital como aparelho de examinar O ritual da visita é uma de suas formas mais evidentes No século XVII o médico vindo de fora juntava a sua inspeção vários outros controles religiosos administrativos não participava absolutamente da gestão cotidiana do hospital Pouco a pouco a visita tornouse mais regular mais rigorosa principalmente mais extensa ocupou uma parte cada vez mais importante do funcionamento hospitalar Em 1661 o médico do HotelDieu de Paris era encarregado de uma visita por dia em 1687 um médico expectante devia examinar à tarde certos doentes mais graves Os regulamentos do século XVIII determinam os horários da visita e sua duração duas horas no mínimo insistem para que um rodízio permita que seja realizado todos os dias inclusive domingo de Páscoa enfim em 1771 instituise um médico residente encarregado de prestar todos os serviços de seu estado tanto de noite como de dia nos intervalos entre uma visita e outra de um médico de fora19 A inspeção de antigamente descontínua e rápida se transforma em uma observação regular que coloca o doente em situação de exame quase perpétuo Com duas conseqüências na hierarquia interna o médico elemento até então exterior começa a suplantar o pessoal religioso e a lhe confiar um papel determinado mas subordinado na técnica do exame aparece então a categoria do enfermeiro quanto ao próprio hospital que era antes de tudo um local de assistência vai tornar se local de formação e aperfeiçoamento científico viravolta das relações de poder e constituição de um saber O hospital bem disciplinado constituirá o local adequado da disciplina médica esta poderá então perder seu caráter textual e encontrar suas referências menos na tradição dos autores decisivos que num campo de objetos perpetuamente oferecidos ao exame Do mesmo modo a escola tornase uma espécie de aparelho de exame ininterrupto que acompanha em todo o seu comprimento a operação do ensino Tratarseá cada vez menos daquelas justas em que os alunos defrontavam forças e cada vez mais de uma comparação perpétua de cada um com todos que permite ao mesmo tempo medir e sancionar Os Irmãos das Escolas Cristãs queriam que seus alunos fizessem provas de classificação todos os dias da semana o primeiro dia para a ortografia o segundo para a aritmética o terceiro para o catecismo da manhã e de tarde para a caligrafia etc Além disso devia haver uma prova todo mês para designar os que merecessem ser submetidos ao exame do inspetor20 Desde 1775 há na escola de Ponts et Chaussées 16 exames por ano 3 de matemática 3 de arquitetura 3 de desenho 2 de caligrafia 1 de corte de pedras 1 de estilo 1 de levantamento de planta 1 de nivelamento 1 de medição de edifícios21 O exame não se contenta em sancionar um aprendizado é um de seus fatores permanentes sustentao segundo um ritual de poder constantemente renovado O exame permite ao mestre ao mesmo tempo em que transmite seu saber levantar um campo de conhecimentos sobre seus alunos Enquanto que a prova com que terminava um aprendizado na tradição corporativa validava uma aptidão adquirida a obra prima autentificava uma transmissão de saber já feita o exame é na escola uma verdadeira e constante troca de saberes garante a passagem dos conhecimentos do mestre ao aluno mas retira do aluno um saber destinado e reservado ao mestre A escola tornase o local de elaboração da pedagogia E do mesmo modo como o processo do exame hospitalar permitiu a liberação epistemológica da medicina a era da escola examinatória marcou o início de uma pedagogia que funciona como ciência A era das inspeções e das manobras indefinidamente repetidas no exército marcou também o desenvolvimento de um imenso saber tático que teve efeito na época das guerras napoleônicas O exame supõe um mecanismo que liga um certo tipo de formação de saber a uma certa forma de exercício do poder 1 O exame inverte a economia da visibilidade no exercício do poder tradicionalmente o poder é o que se vê se mostra se manifesta e de maneira paradoxal encontra o princípio de sua força no movimento com o qual a exibe Aqueles sobre o qual ele é exercido podem ficar esquecidos só recebem luz daquela parte do poder que lhes é concedida ou do reflexo que mostram um instante O poder disciplinar ao contrário se exerce tornandose invisível em compensação impõe aos que submete um princípio de visibilidade obrigatória Na disciplina são os súditos que têm que ser vistos Sua iluminação assegura a garra do poder que se exerce sobre eles É o fato de ser visto sem cessar de sempre poder ser visto que mantém sujeito o indivíduo disciplinar E o exame é a técnica pela qual o poder em vez de emitir os sinais de seu poderio em vez de impor sua marca a seus súditos captaos num mecanismo de objetivação No espaço que domina o poder disciplinar manifesta para o essencial seu poderio organizando os objetos O exame vale como cerimônia dessa objetivação Até então o papel da cerimônia política fora dar lugar à manifestação ao mesmo tempo excessiva e regulamentada do poder era uma expressão suntuosa de poderio uma despesa ao mesmo tempo exagerada e codificada onde o poder se revigorava Era sempre mais ou menos aparentada ao triunfo A aparição solene do soberano trazia consigo qualquer coisa da consagração do coroamento do retorno da vitória até mesmo os faustos funerários se desenrolavam no brilho do poderio exibido Já a disciplina tem seu próprio tipo de cerimônia Não é o triunfo é a revista é a parada forma faustosa do exame Os súditos são aí oferecidos como objetos à observação de um poder que só se manifesta pelo olhar Não recebem diretamente a imagem do poderio soberano apenas mostram seus efeitos e por assim dizer em baixo relevo sobre seus corpos tornados exatamente legíveis e dóceis Em 15 de março de 1666 Luís XIV passa sua primeira revista militar 18000 homens uma das ações mais brilhantes do reino e que passava por ter mantido toda a Europa inquieta Muitos anos depois foi cunhada uma medalha para comemorar o acontecimento22 Traz no exergo Disciplina militaris restituta e na legenda Prolusio ad victorias À direita o rei com o pé direito para a frente comanda ele próprio o exercício com um bastão Na metade esquerda várias fileiras de soldados são vistos de frente e alinhados no sentido da profundidade eles estendem o braço na altura do ombro e seguram o fuzil exatamente na vertical avançam a perna direita e estão com o pé esquerdo voltado para fora No chão linhas se cortam em ângulo reto representando sob os pés dos soldados grandes quadrados que servem de referência para as diversas fases e posições do exercício Bem no fundo esboçase uma arquitetura clássica As colunas do palácio prolongam as constituídas pelos homens alinhados e pelos fuzis levantados como as lajes do calçamento prolongam as linhas do exercício Mas acima da balaustrada que coroa o edifício estátuas representam personagens que dançam linhas sinuosas gestos arredondados cortinados O mármore é percorrido por movimentos cujo princípio de unidade é harmônico Já os homens estão imobilizados numa atitude uniformemente repetida de fileira em fileira e de linha em linha unidade tática A ordem da arquitetura que liberta em seu topo as figuras de dança impõe no solo suas regras e geometria aos homens disciplinados As colunas do poder Bem dizia um dia o grãoduque Michel diante de quem as tropas haviam acabado de manobrar mas eles estão respirando23 Tomemos essa medalha como testemunho do momento em que se reúnem de maneira paradoxal mas significativa a figura mais brilhante do poder soberano e a emergência dos rituais próprios ao poder disciplinar A visibilidade mal sustentável do monarca se torna em visibilidade inevitável dos súditos E essa inversão de visibilidade no funcionamento das disciplinas é que realizará o exercício do poder até em seus graus mais baixos Entramos na era do exame interminável e da objetivação limitadora 2 O exame faz também a individualidade entrar num campo documentário Seu resultado é um arquivo inteiro com detalhes e minúcias que se constitui ao nível dos corpos e dos dias O exame que coloca os indivíduos num campo de vigilância situaos igualmente numa rede de anotações escritas comprometeos em toda uma quantidade de documentos que os captam e os fixam Os procedimentos de exame são acompanhados imediatamente de um sistema de registro intenso e de acumulação documentária Um poder de escrita é constituído como uma peça essencial nas engrenagens da disciplina Em muitos pontos modelase pelos métodos tradicionais da documentação administrativa Mas com técnicas particulares e inovações importantes Umas se referem aos métodos de identificação de assimilação ou de descrição Era esse o problema do exército onde urgia encontrar os desertores evitar as convocações repetidas corrigir as listas fictícias apresentadas pelos oficiais conhecer os serviços e o valor de cada um estabelecer com segurança o balanço dos desaparecidos e mortos Era esse o problema dos hospitais onde era preciso reconhecer os doentes expulsar os simuladores acompanhar a evolução das doenças verificar a eficácia dos tratamentos descobrir os casos análogos e os começos de epidemias Era o problema dos estabelecimentos de ensino onde era forçoso caracterizar a aptidão de cada um situar seu nível e capacidades indicar a utilização eventual que se pode fazer dele A função do registro é fornecer indicações de tempo e lugar dos hábitos das crianças de seu progresso na piedade no catecismo nas letras de acordo com o tempo na Escola seu espírito e critério que ele encontrará marcado desde sua recepção24 Daí a formação de uma série de códigos da individualidade disciplinar que permitem transcrever homogeneizandoos os traços individuais estabelecidos pelo exame código físico da qualificação código médico dos sintomas código escolar ou militar dos comportamentos e dos desempenhos Esses códigos eram ainda muito rudimentares em sua forma qualitativa ou quantitativa mas marcam o momento de uma primeira formalização do individual dentro de relações do poder As outras inovações da escrita disciplinar se referem à correlação desses elementos à acumulação dos documentos sua seriação à organização de campos comparativos que permitam classificar formar categorias estabelecer médias fixar normas Os hospitais do século XVIII foram particularmente grandes laboratórios para os métodos escriturários e documentários A manutenção dos registros sua especificação os modos de transcrição de uns para os outros sua circulação durante as visitas sua confrontação durante as reuniões regulares dos médicos e dos administradores a transmissão de seus dados a organismos de centralização ou no hospital ou no escritório central dos serviços hospitalares a contabilidade das doenças das curas dos falecimentos ao nível de um hospital de uma cidade e até da nação inteira fizeram parte integrante do processo pelo qual os hospitais foram submetidos ao regime disciplinar Entre as condições fundamentais de uma boa disciplina médica nos dois sentidos da palavra é preciso incluir os processos de escrita que permitem integrar mas sem que se percam os dados individuais em sistemas cumulativos fazer de maneira que a partir de qualquer registro geral se possa encontrar um indivíduo e que inversamente cada dado do exame individual possa repercutir nos cálculos de conjunto Graças a todo esse aparelho de escrita que o acompanha o exame abre duas possibilidades que são correlatas a constituição do indivíduo como objeto descritível analisável não contudo para reduzilo a traços específicos como fazem os naturalistas a respeito dos seres vivos mas para mantêlo em seus traços singulares em sua evolução particular em suas aptidões ou capacidades próprias sob o controle de um saber permanente e por outro lado a constituição de um sistema comparativo que permite a medida de fenômenos globais a descrição de grupos a caracterização de fatos coletivos a estimativa dos desvios dos indivíduos entre si sua distribuição numa população Importância decisiva conseqüentemente dessas pequenas técnicas de anotação de registro de constituição de processos de colocação em colunas que nos são familiares mas que permitiram a liberação epistemológica das ciências do indivíduo Sem dúvida temos razão em colocar o problema aristotélico é possível uma ciência do indivíduo e legítima Para um grande problema grandes soluções talvez Mas há o pequeno problema histórico da emergência pelo fim do século XVIII do que se poderia colocar sob a sigla de ciências clínicas problema da entrada do indivíduo e não mais da espécie no campo do saber problema da entrada de descrição singular do interrogatório da anamnese do processo no funcionamento geral do discurso científico Para essa simples questão de fato é preciso sem dúvida uma resposta sem grandeza é preciso ver o lado desses processos de escrita e de registro é preciso ver o lado dos mecanismos de exame o lado da formação dos dispositivos de disciplina e da formação de um novo tipo de poder sobre os corpos O nascimento das ciências do homem Aparentemente ele deve ser procurado nesses arquivos de pouca glória onde foi elaborado o jogo moderno das coerções sobre os corpos os gestos os comportamentos 3 O exame cercado de todas as suas técnicas documentárias faz de cada indivíduo um caso um caso que ao mesmo tempo constitui um objeto para o conhecimento e uma tomada para o poder O caso não é mais como na casuística ou na jurisprudência um conjunto de circunstâncias que qualificam um ato e podem modificar a aplicação de uma regra é o indivíduo tal como pode ser descrito mensurado medido comparado a outros e isso em sua própria individualidade e é também o indivíduo que tem que ser treinado ou retreinado tem que ser classificado normalizado excluído etc Durante muito tempo a individualidade qualquer a de baixo e de todo mundo permaneceu abaixo do limite de descrição Ser olhado observado contado detalhadamente seguido dia por dia por uma escrita ininterrupta era um privilégio A crônica de um homem o relato de sua vida sua historiografia redigida no desenrolar de sua existência faziam parte dos rituais do poderio Os procedimentos disciplinares reviram essa relação abaixando o limite da individualidade descritível e fazem dessa descrição um meio de controle e um método de dominação Não mais monumento para uma memória futura mas documento para uma utilização eventual E essa nova descritibilidade é ainda mais marcada porquanto é estrito o enquadramento disciplinar a criança o doente o louco o condenado se tornarão cada vez mais facilmente a partir do século XVIII e segundo uma via que é a dos mecanismos de disciplina objeto de descrições individuais e de relatos biográficos Esta transcrição por escrito das existências reais não é mais um processo de heroificação funciona como processo de objetivação e de sujeição A vida cuidadosamente estudada dos doentes mentais ou dos delinqüentes se origina como a crônica dos reis ou a epopéia dos grandes bandidos populares de uma certa função política da escrita mas numa técnica de poder totalmente diversa O exame como fixação ao mesmo tempo ritual e científica das diferenças individuais como aposição de cada um à sua própria singularidade em oposição à cerimônia onde se manifestam os status os nascimentos os privilégios as funções com todo o brilho de suas marcas indica bem a aparição de uma nova modalidade de poder em que cada um recebe como status sua própria individualidade e onde está estatutariamente ligado aos traços às medidas aos desvios às notas que o caracterizam e fazem dele de qualquer modo um caso Finalmente o exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder como efeito e objeto de saber É ele que combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora realiza as grandes funções disciplinares de repartição e classificação de extração máxima das forças e do tempo de acumulação genética contínua de composição ótima das aptidões Portanto de fabricação da individualidade celular orgânica genética e combinatória Com ele se ritualizam aquelas disciplinas que se pode caracterizar com uma palavra dizendo que são uma modalidade de poder para o qual a diferença individual é pertinente As disciplinas marcam o momento em que se efetua o que se poderia chamar a troca do eixo político da individualização Nas sociedades de que o regime feudal é apenas um exemplo podese dizer que a individualização é máxima do lado em que a soberania é exercida e nas regiões superiores do poder Quanto mais o homem é detentor de poder ou de privilégio tanto mais é marcado como indivíduo por rituais discursos ou representações plásticas O nome de família e a genealogia que situam dentro de um conjunto de parentes a realização de proezas que manifestam a superioridade das forças e que são imortalizadas por relatos as cerimônias que marcam por sua ordenação as relações de poder os monumentos ou as doações que dão uma outra vida depois da morte os faustos e os excessos da despesa os múltiplos laços de vassalagem e de suserania que se entrecruzam tudo isso constitui outros procedimentos de uma individualização ascendente Num regime disciplinar a individualização ao contrário é descendente à medida que o poder se torna mais anônimo e mais funcional aqueles sobre os quais se exerce tendem a ser mais fortemente individualizados e por fiscalizações mais que por cerimônias por observações mais que por relatos comemorativos por medidas comparativas que têm a norma como referência e não por genealogias que dão os ancestrais como pontos de referência por desvios mais que por proezas Num sistema de disciplina a criança é mais individualizada que o adulto o doente o é antes do homem são o louco e delinqüente mais que o normal e o nãodelinqüente É em direção aos primeiros em todo caso que se voltam em nossa civilização todos os mecanismos individualizantes e quando se quer individualizar o adulto são normal e legalista agora é sempre perguntandolhe o que ainda há nele de criança que loucura secreta o habita que crime fundamental ele quis cometer Todas as ciências análises ou práticas com radical psico têm seu lugar nessa troca histórica dos processos de individualização O momento em que passamos de mecanismos históricorituais de formação da individualidade a mecanismos científico disciplinares em que o normal tomou o lugar do ancestral e a medida o lugar do status substituindo assim a individualidade do homem memorável pela do homem calculável esse momento em que as ciências do homem se tornaram possíveis é aquele em que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma outra anatomia política do corpo E se da Idade Média mais remota até hoje a aventura é o relato da individualidade a passagem do épico ao romanesco do feito importante à singularidade secreta dos longos exílios à procura interior da infância das justas aos fantasmas se insere também na formação de uma sociedade disciplinar São as desgraças do pequeno Hans e não mais o bom Henriquinho que contam a aventura de nossa infância O Roman de La Rose é escrito hoje em dia por Mary Barnes no lugar de Lancelot o presidente Schreber Muitas vezes se afirma que o modelo de uma sociedade que teria indivíduos como elementos constituintes é tomada às formas jurídicas abstratas do contrato e da troca A sociedade comercial se teria representado como uma associação contratual de sujeitos jurídicos isolados Talvez A teoria política dos séculos XVII e XVIII parece com efeito obedecer a esse esquema Mas não se deve esquecer que existiu na mesma época uma técnica para constituir efetivamente os indivíduos como elementos correlates de um poder e de um saber O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação ideológica da sociedade mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama a disciplina Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos ele exclui reprime recalca censura abstrai mascara esconde Na verdade o poder produz ele produz realidade produz campos de objetos e rituais da verdade O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção Mas emprestar tal poderio às astúcias muitas vezes minúsculas da disciplina não seria lhes conceder muito De onde podem elas tirar tão vastos efeitos CAPÍTULO III O PANOPTISMO Eis as medidas que se faziam necessárias segundo um regulamento do fim do século XVII quando se declarava a peste numa cidade1 Em primeiro lugar um policiamento espacial estrito fechamento claro da cidade e da terra proibição de sair sob pena de morte fim de todos os animais errantes divisão da cidade em quarteirões diversos onde se estabelece o poder de um intendente Cada rua é colocada sob a autoridade de um síndico ele a vigia se a deixar será punido de morte No dia designado ordenase todos que se fechem em suas casas proibido sair sob pena de morte O próprio síndico vem fechar por fora a porta de cada casa leva a chave que entrega ao intendente de quarteirão este a conserva até o fim da quarentena Cada família terá feito suas provisões mas para o vinho e o pão se terá preparado entre a rua e o interior das casas pequenos canais de madeira que permitem fazer chegar a cada um sua ração sem que haja comunicação entre os fornecedores e os habitantes para a carne o peixe e as verduras utilizamse roldanas e cestas Se for absolutamente necessário sair das casas tal se fará por turnos e evitandose qualquer encontro Só circulam os intendentes os síndicos os soldados da guarda e também entre as casas infectadas de um cadáver ao outro os corvos que tanto faz abandonar à morte é gente vil que leva os doentes enterra os mortos limpa e faz muitos ofícios vis e abjetos Espaço recortado imóvel fixado Cada qual se prende a seu lugar E caso se mexa corre perigo de vida por contágio ou punição A inspeção funciona constantemente O olhar está alerta em toda parte Um corpo de milícia considerável comandado por bons oficiais e gente de bem corpos de guarda nas portas na prefeitura e em todos os bairros para tornar mais pronta a obediência do povo e mais absoluta a autoridade dos magistrados assim como para vigiar todas as desordens roubos e pilhagens Às portas postos de vigilância no fim de cada rua sentinelas Todos os dias o intendente visita o quarteirão de que está encarregado verifica se os síndicos cumprem suas tarefas se os habitantes têm queixas eles fiscalizam seus atos Todos os dias também o síndico passa na rua por que é responsável pára diante de cada casa manda colocar todos os moradores às janelas os que habitassem nos fundos teriam designada uma janela dando para a rua onde ninguém mais poderia se mostrar chama cada um por seu nome informa se do estado de todos um por um no que os habitantes serão obrigados a dizer a verdade sob pena de morte se alguém não se apresentar à janela o síndico deve perguntar a razão Ele assim descobrirá facilmente se escondem mortos ou doentes Cada um trancado em sua gaiola cada um à sua janela respondendo a seu nome e se mostrando quando é perguntado é a grande revista dos mortos e dos vivos Essa vigilância se apóia num sistema de registro permanente relatórios dos síndicos aos intendentes dos intendentes aos almotacés ou ao prefeito No começo da apuração se estabelece o papel de todos os habitantes presentes na cidade um por um nela se anotam o nome a idade o sexo sem exceção de condição um exemplar para o intendente do quarteirão um segundo no escritório da prefeitura um outro para o síndico poder fazer a chamada diária Tudo o que é observado durante as visitas mortes doenças reclamações irregularidades é anotado e transmitido aos intendentes e magistrados Estes têm o controle dos cuidados médicos e um médico responsável nenhum outro médico pode cuidar nenhum boticário preparar os remédios nenhum confessor visitar um doente sem ter recebido dele um bilhete escrito para impedir que se escondam e se tratem à revelia dos magistrados doentes do contágio O registro do patológico deve ser constante e centralizado A relação de cada um com sua doença e sua morte passa pelas instâncias do poder pelo registro que delas é feito pelas decisões que elas tomam Cinco ou seis dias depois do começo da quarentena procedese à purificação das casas uma por uma Mandase sair todos os moradores em cada cômodo levantamse ou penduramse os móveis e as mercadorias espalhase perfume ele é queimado depois de bem fechadas as janelas as portas e até os buracos de fechadura que se enche de cera Finalmente fechase a casa inteira enquanto se consome o perfume como na entrada revistamse os perfumadores na presença dos moradores da casa para ver se eles não têm à saída qualquer coisa que não tivessem ao entrar Quatro horas depois os moradores podem entrar em casa Esse espaço fechado recortado vigiado em todos os seus pontos onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo onde os menores movimentos são controlados onde todos os acontecimentos são registrados onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia onde o poder é exercido sem divisão segundo uma figura hierárquica contínua onde cada indivíduo é constantemente localizado examinado e distribuído entre os vivos os doentes e os mortos isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar A ordem responde à peste ela tem como função desfazer todas as confusões a da doença que se transmite quando os corpos se misturam a do mal que se multiplica quando o medo e a morte desfazem as proibições Ela prescreve a cada um seu lugar a cada um seu corpo a cada um sua doença e sua morte a cada um seu bem por meio de um poder onipresente e onisciente que se subdivide ele mesmo de maneira regular e ininterrupta até a determinação final do indivíduo do que o caracteriza do que lhe pertence o do que lhe acontece Contra a peste que é mistura a disciplina faz valer seu poder que é de análise Houve em torno da peste uma ficção literária da festa as leis suspensas os interditos levantados o frenesi do tempo que passa os corpos se misturando sem respeito os indivíduos que se desmascaram que abandonam sua identidade estatutária e a figura sob a qual eram reconhecidos deixando aparecer uma verdade totalmente diversa Mas houve também um sonho político da peste que era exatamente o contrário não a festa coletiva mas as divisões estritas não as leis transgredidas mas a penetração do regulamento até nos mais finos detalhes da existência e por meio de uma hierarquia completa que realiza o funcionamento capilar do poder não as máscaras que se colocam e se retiram mas a determinação a cada um de seu verdadeiro nome de seu verdadeiro lugar de seu verdadeiro corpo e da verdadeira doença A peste como forma real e ao mesmo tempo imaginária da desordem tem a disciplina como correlato médico e político Atrás dos dispositivos disciplinares se lê o terror dos contágios da peste das revoltas dos crimes da vagabundagem das deserções das pessoas que aparecem e desaparecem vivem e morrem na desordem Se é verdade que a lepra suscitou modelos de exclusão que deram até um certo ponto o modelo e como que a forma geral do grande Fechamento já a peste suscitou esquemas disciplinares Mais que a divisão maciça e binária entre uns e outros ela recorre a separações múltiplas a distribuições individualizantes a uma organização aprofundada das vigilâncias e dos controles a uma intensificação e ramificação do poder O leproso é visto dentro de uma prática da rejeição do exíliocerca deixase que se perca lá dentro como numa massa que não tem muita importância diferenciar os pestilentos são considerados num policiamento tático meticuloso onde as diferenciações individuais são os efeitos limitantes de um poder que se multiplica se articula e se subdivide O grande fechamento por um lado o bom treinamento por outro A lepra e sua divisão a peste e seus recortes Uma é marcada a outra analisada e repartida O exílio do leproso e a prisão da peste não trazem consigo o mesmo sonho político Um é o de uma comunidade pura o outro o de uma sociedade disciplinar Duas maneiras de exercer poder sobre os homens de controlar suas relações de desmanchar suas perigosas misturas A cidade pestilenta atraves sada inteira pela hierarquia pela vigilância pelo olhar pela documentação a cidade imobilizada no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre todos os corpos individuais é a utopia da cidade perfeitamente governada A peste pelo menos aquela que permanece no estado de previsão é a prova durante a qual se pode definir idealmente o exercício do poder disciplinar Para fazer funcionar segundo a pura teoria os direitos e as leis os juristas se punham imaginariamente no estado de natureza para ver funcionar suas disciplinas perfeitas os governantes sonhavam com o estado de peste No fundo dos esquemas disciplinares a imagem da peste vale por todas as confusões e desordens assim como a imagem da lepra do contato a ser cortado está no fundo do esquema de exclusão Esquemas diferentes portanto mas não incompatíveis Lentamente vemolos se aproximarem e é próprio do século XIX ter aplicado ao espaço de exclusão de que o leproso era o habitante simbólico e os mendigos os vagabundos os loucos os violentos formavam a população real a técnica de poder própria do quadriculamento disciplinar Tratar os leprosos como pestilentos projetar recortes finos da disciplina sobre o espaço confuso do internamente trabalhálo com os métodos de repartição analítica do poder individualizar os excluídos mas utilizar processos de individualização para marcar exclusões isso é o que foi regularmente realizado pelo poder disciplinar desde o começo do século XIX o asilo psiquiátrico a penitenciária a casa de correção o estabelecimento de educação vigiada e por um lado os hospitais de um modo geral todas as instâncias de controle individual funcional num duplo modo o da divisão binária e da marcação louco não louco perigosoinofensivo normalanormal e o da determinação coercitiva da repartição diferencial quem é ele onde deve estar como caracterizálo como reconhecêlo como exercer sobre ele de maneira individual uma vigilância constante etc De um lado pestilentamse os leprosos impõemse aos excluídos a tática das disciplinas individualizantes e de outro lado a universalidade dos controles disciplinares permite marcar quem é leproso e fazer funcionar contra ele os mecanismos dualistas da exclusão A divisão constante do normal e do anormal a que todo indivíduo é submetido leva até nós e aplicandoos a objetos totalmente diversos a marcação binária e o exílio dos leprosos a existência de todo um conjunto de técnicas e de instituições que assumem como tarefa medir controlar e corrigir os anormais faz funcionar os dispositivos disciplinares que o medo da peste chamava Todos os mecanismos de poder que ainda em nossos dias são dispostos em torno do anormal para marcálo como para modificálo compõem essas duas formas de que longinquamente derivam O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição O princípio é conhecido na periferia uma construção em anel no centro uma torre esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel a construção periférica é dividida em celas cada uma atravessando toda a espessura da construção elas têm duas janelas uma para o interior correspondendo às janelas da torre outra que dá para o exterior permite que a luz atravesse a cela de lado a lado Basta então colocar um vigia na torre central e em cada cela trancar um louco um doente um condenado um operário ou um escolar Pelo efeito da contraluz podese perceber da torre recortandose exatamente sobre a claridade as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia Tantas jaulas tantos pequenos teatros em que cada ator está sozinho perfeitamente individualizado e constantemente visível O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente Em suma o princípio da masmorra é invertido ou antes de suas três funções trancar privar de luz e esconder só se conserva a primeira e suprimemse as outras duas A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra que finalmente protegia A visibilidade é uma armadilha O que permite em primeiro lugar como efeito negativo evitar aquelas massas compactas fervilhantes pululantes que eram encontradas nos locais de encarceramento os pintados por Goya ou descritos por Howard Cada um em seu lugar está bem trancado em sua cela de onde é visto de frente pelo vigia mas os muros laterais impedem que entre em contato com seus companheiros É visto mas não vê objeto de uma informação nunca sujeito numa comunicação A disposição de seu quarto em frente da torre central lhe impõe uma visibilidade axial mas as divisões do anel essas celas bem separadas implicam uma invisibilidade lateral E esta é a garantia da ordem Se os detentos são condenados não há perigo de complô de tentativa de evasão coletiva projeto de novos crimes para o futuro más influências recíprocas se são doentes não há perigo de contágio loucos não há risco de violências recíprocas crianças não há cola nem barulho nem conversa nem dissipação Se são operários não há roubos nem conluios nada dessas distrações que atrasam o trabalho tornamno menos perfeito ou provocam acidentes A multidão massa compacta local de múltiplas trocas individualidades que se fundem efeito coletivo é abolida em proveito de uma coleção de individualidades separadas Do ponto de vista do guardião é substituída por uma multiplicidade enumerável e controlável do ponto de vista dos detentos por uma solidão seqüestrada e olhada2 Daí o efeito mais importante do Panóptico induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos mesmo se é descontínua em sua ação que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce enfim que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores Para isso é ao mesmo tempo excessivo e muito pouco que o prisioneiro seja observado sem cessar por um vigia muito pouco pois o essencial é que ele se saiba vigiado excessivo porque ele não tem necessidade de sêlo efetivamente Por isso Bentham colocou o princípio de que o poder devia ser visível e inverificável Visível sem cessar o detento terá diante dos olhos a alta silhueta da torre central de onde é espionado Inverificável o detento nunca deve saber se está sendo observado mas deve ter certeza de que sempre pode sêlo Para tornar indecidível a presença ou a ausência do vigia para que os prisioneiros de suas celas não pudessem nem perceber uma sombra ou enxergar uma contraluz previu Bentham não só persianas nas janelas da sala central de vigia mas por dentro separações que a cortam em ângulo reto e para passar de um quarto a outro não portas mas biombos pois a menor batida uma luz entrevista uma claridade numa abertura trairiam a presença do guardião3 O Panóptico é uma máquina de dissociar o par verser visto no anel periférico se é totalmente visto sem nunca ver na torre central vêse tudo sem nunca ser visto4 Dispositivo importante pois automatiza e desindividualiza o poder Este tem seu princípio não tanto numa pessoa quanto numa certa distribuição concertada dos corpos das superfícies das luzes dos olhares numa aparelhagem cujos mecanismos internos produzem a relação na qual se encontram presos os indivíduos As cerimônias os rituais as marcas pelas quais se manifesta no soberano o maispoder são inúteis Há uma maquinaria que assegura a dissimetria o desequilíbrio a diferença Pouco importa conseqüentemente quem exerce o poder Um indivíduo qualquer quase tomado ao acaso pode fazer funcionar a máquina na falta do diretor sua família os que o cercam seus amigos suas visitas até seus criados5 Do mesmo modo que é indiferente o motivo que o anima a curiosidade de um indiscreto a malícia de uma criança o apetite de saber de um filósofo que quer percorrer esse museu da natureza humana ou a maldade daqueles que têm prazer em espionar e em punir Quanto mais numerosos esses observadores anônimos e passageiros tanto mais aumentam para o prisioneiro o risco de ser surpreendido e a consciência inquieta de ser observado O Panóptico é uma máquina maravilhosa que a partir dos desejos mais diversos fabrica efeitos homogêneos de poder Uma sujeição real nasce mecanicamente de uma relação fictícia De modo que não é necessário recorrer à força para obrigar o condenado ao bom comportamento o louco à calma o operário ao trabalho o escolar à aplicação o doente à observância das receitas Bentham se maravilha de que as instituições panópticas pudessem ser tão leves fim das grades fim das correntes fim das fechaduras pesadas basta que as separações sejam nítidas e as aberturas bem distribuídas O peso das velhas casas de segurança com sua arquitetura de fortaleza é substituído pela geometria simples e econômica de uma casa de certeza A eficácia do poder sua força limitadora passaram de algum modo para o outro lado para o lado de sua superfície de aplicação Quem está submetido a um campo de visibilidade e sabe disso retoma por sua conta as limitações do poder fálas funcionar espontaneamente sobre si mesmo inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis tornase o princípio de sua própria sujeição Em conseqüência disso mesmo o poder externo por seu lado podese aliviar de seus fardos físicos tende ao incorpóreo e quanto mais se aproxima desse limite mais esses efeitos são constantes profundos adquiridos em caráter definitivo e continuamente recomeçados vitória perpétua que evita qualquer defrontamento físico e está sempre decidida por antecipação Bentham não diz se se inspirou em seu projeto no zoológico que Le Vaux construíra em Versalhes primeiro zoológico cujos elementos não estão como tradicionalmente espalhados em um parque6 no centro um pavilhão octogonal que no primeiro andar só comportava uma peça o salão do rei todos os lados se abriam com largas janelas sobre sete jaulas o oitavo lado estava reservado para a entrada onde estavam encerradas diversas espécies de animais Na época de Bentham esse zoológico desaparecera Mas encontramos no programa do Panóptico a preocupação análoga da observação individualizante da caracterização e da classificação da organização analítica da espécie O Panóptico é um zoológico real o animal é substituído pelo homem a distribuição individual pelo grupamento específico e o rei pela maquinaria de um poder furtivo Fora essa diferença o Panóptico também faz um trabalho de naturalista Permite estabelecer as diferenças nos doentes observar os sintomas de cada um sem que a proximidade dos leitos a circulação dos miasmas os efeitos do contágio misturem os quadros clínicos nas crianças anotar os desempenhos sem que haja limitação ou cópia perceber as aptidões apreciar os caracteres estabelecer classificações rigorosas e em relação a uma evolução normal distinguir o que é preguiça e teimosia do que é imbecilidade incurável nos operários anotar as aptidões de cada um comparar o tempo que levam para fazer um serviço e se são pagos por dia calcular seu salário em vista disso7 Este é um dos aspectos Por outro lado o Panóptico pode ser utilizado como máquina de fazer experiências modificar o comportamento treinar ou retreinar os indivíduos Experimentar remédios e verificar seus efeitos Tentar diversas punições sobre os prisioneiros segundo seus crimes e temperamento e procurar as mais eficazes Ensinar simultaneamente diversas técnicas aos operários estabelecer qual é a melhor Tentar experiências pedagógicas e particularmente abordar o famoso problema da educação reclusa usando crianças encontradas verseia o que acontece quando aos dezesseis ou dezoito anos rapazes e moças se encontram poderseia verificar se como pensa Helvetius qualquer pessoa pode aprender qualquer coisa poderseia acompanhar a genealogia de qualquer idéia observável criar diversas crianças em diversos sistemas de pensamento fazer alguns acreditarem que dois e dois não são quatro e que a lua é um queijo depois juntálos todos quando tivessem vinte ou vinte e cinco anos haveria então discussões que valeriam bem os sermões ou as conferências para as quais se gasta tanto dinheiro haveria pelo menos ocasião de fazer descobertas no campo da metafísica O Panóptico é um local privilegiado para tornar possível a experiência com homens e para analisar com toda certeza as transformações que se pode obter neles O Panóptico pode até constituirse em aparelho de controle sobre seus próprios mecanismos Em sua torre de controle o diretor pode espionar todos os empregados que tem a seu serviço enfermeiros médicos contramestres professores guardas poderá julgálos continuamente modificar seu comportamento imporlhes métodos que considerar melhores e ele mesmo por sua vez poderá ser facilmente observado Um inspetor que surja sem avisar no centro do Panóptico julgará com uma única olhadela e sem que se possa esconder nada dele como funciona todo o estabelecimento E aliás fechado como está no meio desse dispositivo arquitetural o diretor não está comprometido com ele O médico incompetente que tiver deixado o contágio se espalhar o diretor de prisão ou de oficina que tiver sido inábil serão as primeiras vítimas da epidemia ou da revolta Meu destino diz o mestre do Panóptico está ligado ao deles ao dos detentos por todos os laços que pude inventar8 O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder Graças a seus mecanismos de observação ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este se exerça Cidade pestilenta estabelecimento panóptico as diferenças são importantes Elas marcam com um século e meio de distância as transformações do programa disciplinar Num caso um situação de exceção contra um mal extraordinário o poder se levanta tornase em toda parte presente e visível inventa novas engrenagens compartimenta imobiliza quadricula constrói por algum tempo o que é ao mesmo tempo a contracidade e a sociedade perfeita impõe um funcionamento ideal mas que no fim das contas se reduz como o mal que combate ao dualismo simples vidamorte o que se mexe traz a morte e matase o que se mexe O Panóptico ao contrário deve ser compreendido como um modelo generalizável de funcionamento uma maneira de definir as relações do poder com a vida cotidiana dos homens Bentham sem dúvida o apresenta como uma instituição particular bem fechada em si mesma Muitas vezes se fez dele uma utopia do encarceramento perfeito Diante das prisões arruinadas fervilhantes e povoadas de suplícios gravadas por Piranese o Panóptico aparece como jaula cruel e sábia O fato de ele ter até nosso tempo dado lugar a tantas variações projetadas ou realizadas mostra qual foi durante quase dois séculos sua intensidade imaginária Mas o Panóptico não deve ser compreendido como um edifício onírico é o diagrama de um mecanismo de poder levado à sua forma ideal seu funcionamento abstraindose de qualquer obstáculo resistência ou desgaste pode ser bem representado como um puro sistema arquitetural e óptico é na realidade uma figura de tecnologia política que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico É polivalente em suas aplicações serve para emendar os prisioneiros mas também para cuidar dos doentes instruir os escolares guardar os loucos fiscalizar os operários fazer trabalhar os mendigos e ociosos É um tipo de implantação dos corpos no espaço de distribuição dos indivíduos em relação mútua de organização hierárquica de disposição dos centros e dos canais de poder de definição de seus instrumentos e de modos de intervenção que se podem utilizar nos hospitais nas oficinas nas escolas nas prisões Cada vez que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve impor uma tarefa ou um comportamento o esquema panóptico poderá ser utilizado Ele é ressalvadas as modificações necessárias aplicável a todos os estabelecimentos onde nos limites de um espaço que não é muito extenso é preciso manter sob vigilância um certo número de pessoas9 Em cada uma de suas aplicações permite aperfeiçoar o exercício do poder E isto de várias maneiras porque pode reduzir o número dos que o exercem ao mesmo tempo em que multiplica o número daqueles sobre os quais é exercido Porque permite intervir a cada momento e a pressão constante age antes mesmo que as faltas os erros os crimes sejam cometidos Porque nessas condições sua força é nunca intervir é se exercer espontaneamente e sem ruído é constituir um mecanismo de efeitos em cadeia Porque sem outro instrumento físico que uma arquitetura e uma geometria ele age diretamente sobre os indivíduos dá ao espírito poder sobre o espírito O esquema panóptico é um intensificador para qualquer aparelho de poder assegura sua economia em material em pessoal em tempo assegura sua eficácia por seu caráter preventivo seu funcionamento contínuo e seus mecanismos automáticos É uma maneira de obter poder numa quantidade até então sem igual um grande e novo instrumento de governo sua excelência consiste na grande força que é capaz de dar a qualquer instituição a que seja aplicado10 Uma espécie de ovo de Colombo na ordem da política Ele é capaz com efeito de vir se integrar a uma função qualquer de educação de terapêutica de produção de castigo de aumentar essa função ligandose intimamente a ela de constituir um mecanismo misto no qual as relações de poder e de saber podemse ajustar exatamente e até nos detalhes aos processos que é preciso controlar de estabelecer uma proporção direta entre o maispoder e a maisprodução Em suma faz com que o exercício do poder não se acrescente de fora como uma limitação rígida ou como um peso sobre as funções que investe mas que esteja nelas presente bastante sutilmente para aumentarlhes a eficácia aumentando ele mesmo seus próprios pontos de apoio O dispositivo panóptico não é simplesmente uma charneira um local de troca entre um mecanismo de poder e uma função é uma maneira de fazer funcionar relações de poder numa função e uma função para essas relações de poder O panoptismo é capaz de reformar a moral preservar a saúde revigorar a indústria difundir a instrução aliviar os encargos públicos estabelecer a economia como que sobre um rochedo desfazer em vez de cortar o nó górdio das leis sobre os pobres tudo isso com uma simples idéia arquitetural11 Além disso o arranjo dessa máquina é tal que seu fechamento não exclui uma presença permanente do exterior vimos que qualquer pessoa pode vir exercer na torre central as funções de vigilância e que fazendo isso pode adivinhar a maneira como é exercida a vigilância Na realidade qualquer instituição panóptica mesmo que seja tão cuidadosamente fechada quanto uma penitenciária poderá sem dificuldade ser submetida a essas inspeções ao mesmo tempo aleatórias e incessantes e isso não só por parte dos controladores designados mas por parte do público qualquer membro da sociedade terá direito de vir constatar com seus olhos como funcionam as escolas os hospitais as fábricas as prisões Não há conseqüentemente risco de que o crescimento de poder devido à máquina panóptica possa degenerar em tirania o dispositivo disciplinar será democraticamente controlado pois será sem cessar acessível ao grande comitê do tribunal do mundo12 Esse panóptico sutilmente arranjado para que um vigia possa observar com uma olhadela tantos indivíduos diferentes permite também a qualquer pessoa vigiar o menor vigia A máquina de ver é uma espécie de câmara escura em que se espionam os indivíduos ela tornase um edifício transparente onde o exercício do poder é controlável pela sociedade inteira O esquema panóptico sem se desfazer nem perder nenhuma de suas propriedades é destinado a se difundir no corpo social tem por vocação tornarse aí uma função generalizada A cidade pestilenta dava um modelo disciplinar excepcional perfeito mas absolutamente violento à doença que trazia a morte o poder opunha sua perpétua ameaça de morte a vida nela se reduzia a sua expressão mais simples era contra o poder da morte o exercício minucioso do direito de gládio O Panóptico ao contrário tem um papel de amplificação se organiza o poder não é pelo próprio poder nem pela salvação imediata de uma sociedade ameaçada o que importa é tornar mais fortes as forças sociais aumentar a produção desenvolver a economia espalhar a instrução elevar o nível da moral pública fazer crescer e multiplicar Como reforçar esse poder de tal maneira que longe de atrapalhar esse processo longe de pesar sobre ele com suas exigências e seu peso ele ao contrário o facilite Que intensificador de poder poderá ao mesmo tempo ser um multiplicador de produção Como o poder aumentando suas forças poderá fazer crescer as da sociedade em vez de confiscálas ou freálas A solução do Panóptico para esse problema é que a majoração produtiva do poder só pode ser assegurada se por um lado ele tem possibilidade de se exercer de maneira contínua nos alicerces da sociedade até seu mais fino grão e se por outro lado ele funciona fora daquelas formas súbitas violentas descontínuas que estão ligadas ao exercício da soberania O corpo do rei com sua estranha presença material e mítica com a força que ele mesmo exibe ou transmite a alguns está no extremo oposto dessa nova física do poder definida pelo panoptismo seu campo é ao contrário toda aquela região de baixo a dos corpos irregulares com seus detalhes seus movimentos múltiplos suas forças heterogêneas suas relações espaciais são mecanismos que analisam distribuições desvios séries combinações e utilizam instrumentos para tornar visível registrar diferenciar e comparar física de um poder relacionai e múltiplo que tem sua intensidade máxima não na pessoa do rei mas nos corpos que essas relações justamente permitem individualizar Ao nível teórico Bentham define outra maneira de analisar o corpo social e as relações de poder que o atravessam em termos de prática ele define um processo de subordinação dos corpos e das forças que a utilidade do poder deve majorar fazendo a economia do Príncipe O panoptismo é o princípio geral de uma nova anatomia política cujo objeto e fim não são a relação de soberania mas as relações de disciplina Na famosa jaula transparente e circular com sua torre alta potente e sábia será talvez o caso para Bentham de projetar uma instituição disciplinar perfeita mas também importa mostrar como se pode destrancar as disciplinas e fazêlas funcionar de maneira difusa múltipla polivalente no corpo social inteiro Essas disciplinas que a era clássica elabora em locais precisos e relativamente fechados casernas colégios grandes oficinas e cuja utilização global só fora imaginada na escala limitada e provisória de uma cidade em estado de peste Bentham sonha fazer delas uma rede de dispositivos que estariam em toda parte e sempre alertas percorrendo a sociedade sem lacuna nem interrupção O arranjo panóptico dá a fórmula dessa generalização Ele programa ao nível de um mecanismo elementar e facilmente transferível o funcionamento de base de uma sociedade toda atravessada e penetrada por mecanismos disciplinares Duas imagens portanto da disciplina Num extremo a disciplinabloco a instituição fechada estabelecida à margem e toda voltada para funções negativas fazer parar o mal romper as comunicações suspender o tempo No outro extremo com o panoptismo temos a disciplinamecanismo um dispositivo funcional que deve melhorar o exercício do poder tornandoo mais rápido mais leve mais eficaz um desenho das coerções sutis para uma sociedade que está por vir O movimento que vai de um projeto ao outro de um esquema da disciplina de exceção ao de uma vigilância generalizada repousa sobre uma transformação histórica a extensão progressiva dos dispositivos de disciplina ao longo dos séculos XVII e XVIII sua multiplicação através de todo o corpo social a formação do que se poderia chamar grosso modo a sociedade disciplinar Realizouse uma generalização disciplinar atestada pela física benthamiana do poder no decorrer da era clássica Comprovao a multiplicação das instituições de disciplina com sua rede que começa a cobrir uma superfície cada vez mais vasta e principalmente a ocupar um lugar cada vez menos marginal o que era ilha local privilegiado medida circunstancial ou modelo singular tornase fórmula geral as regulamentações características dos exércitos protestantes e piedosos de Guilherme de Orange ou de Gustavo Adolfo se transformaram em regulamentos para todos os exércitos da Europa os colégios modelos dos jesuítas ou as escolas de Batencour e de Demia depois da de Sturm esboçam as formas gerais da disciplina escolar a ordem estabelecida nos hospitais Marítimos e militares serve de esquema para toda a reorganização hospitalar do século XVIII Mas essa extensão das instituições disciplinares não passa sem dúvida do aspecto mais visível de diversos processos mais profundos 1 A inversão funcional das disciplinas originalmente cabialhes princi palmente neutralizar os perigos fixar as populações inúteis ou agitadas evitar os inconvenientes de reuniões muito numerosas agora se lhes atribui pois se tornaram capazes disso o papel positivo de aumentar a utilidade possível dos indivíduos A disciplina militar não é mais um simples meio de impedir a pilhagem a deserção ou a desobediência das tropas tornase uma técnica de base para que o exército exista não mais como uma multidão ajustada mas como uma unidade que tira dessa mesma unidade uma majoração de forças a disciplina faz crescer a habilidade de cada um coordena essas habilidades acelera os movimentos multiplica a potência de fogo alarga as frentes de ataque sem lhes diminuir o vigor aumenta as capacidades de resistência etc A disciplina de oficina sem deixar de ser uma maneira de fazer respeitar os regulamentos e as autoridades de impedir os roubos ou a dissipação tende a fazer crescer as aptidões as velocidades os rendimentos e portanto os lucros ela continua a moralizar as condutas mas cada vez mais ela modela os comportamentos e faz os corpos entrar numa máquina as forças numa economia Quando no século XVII se desenvolveram as escolas de província ou as escolas cristãs elementares as justificações dadas eram principalmente negativas os pobres não tendo recursos para educar os filhos deixavamnos na ignorância de suas obrigações e entregues ao simples cuidado de viver e tendo eles mesmos sido mal educados não podem comunicar uma boa educação que jamais tiveram o que acarreta três inconvenientes ponderáveis a ignorância de Deus a preguiça com todo o seu cortejo de bebedeira de impureza de furtos de banditismo e a formação dessas tropas de mendigos sempre prontos a provocar desordens públicas e que só servem para esgotar os fundos do HôtelDieu13 Mas no começo da Revolução a finalidade prescrita ao ensino primário será entre outras coisas fortificar desenvolver o corpo dispor a criança para qualquer trabalho mecânico no futuro darlhe uma capacidade de visão rápida e global uma mão firme hábitos rápidos14 As disciplinas funcionam cada vez mais como técnicas que fabricam indivíduos úteis Daí se libertarem elas de sua posição marginal nos confins da sociedade e se destacarem das formas de exclusão ou de expiação de encarceramento ou retiro Daí desfazerem elas lentamente seu parentesco com as regularidades e os muros religiosos Daí também tenderem a se implantar nos setores mais importantes mais centrais mais produtivos da sociedade e se fixarem em algumas das grandes funções essenciais na produção manufatureira na transmissão de conhecimentos na difusão das aptidões e do knowhow no aparelho de guerra Daí enfim a dupla tendência que vemos se desenvolver no decorrer do século XVIII de multiplicar o número das instituições de disciplina e de disciplinar os aparelhos existentes 2 A ramificação dos mecanismos disciplinares enquanto por um lado os estabelecimentos de disciplina se multiplicam seus mecanismos têm uma certa tendência a se desinstitucionalizar a sair das fortalezas fechadas onde funcionavam e a circular em estado livre as disciplinas maciças e compactas se decompõem em processos flexíveis de controle que se pode transferir e adaptar Às vezes são os aparelhos fechados que acrescentam à sua função interna e específica um papel de vigilância externa desenvolvendo uma margem de controles laterais Assim a escola cristã não deve simplesmente formar crianças dóceis deve também permitir vigiar os pais informarse de sua maneira de viver seus recursos sua piedade seus costumes A escola tende a constituir minúsculos observatórios sociais para penetrar até nos adultos e exercer sobre eles um controle regular o mau comportamento de uma criança ou sua ausência é um pretexto legítimo segundo Demia para se ir interrogar os vizinhos principalmente se há razão para se pensar que a família não dirá a verdade depois os próprios pais para verificar se eles sabem o catecismo e as orações se estão decididos a arrancar os vícios das crianças quantas camas há e como eles se repartem nelas durante a noite a visita termina eventualmente com uma esmola o presente de uma imagem ou a doação de camas suplementares15 Da mesma maneira o hospital é concebido cada vez mais como ponto de apoio para a vigilância médica da população externa depois do incêndio do HôtelDieu em 1772 muita gente pede que se substituam os grandes estabelecimentos tão pesados e desorganizados por uma série de hospitais de pequena dimensão teriam por função recolher os doentes do bairro mas também reunir informações tomar conta dos fenômenos endêmicos ou epidêmicos abrir dispensários dar conselhos aos moradores e manter as autoridades a par do estado sanitário da região16 Vemos também se difundirem os procedimentos disciplinares não a partir de instituições fechadas mas de focos de controle disseminados na sociedade Grupos religiosos associações de beneficência muito tempo desempenharam esse papel de disciplinamento da população Desde a ContraReforma até à filantropia da monarquia de julho multiplicaramse iniciativas desse tipo tinham objetivos religiosos a conversão e a moralização econômicos o socorro e a incitação ao trabalho ou políticos tratavase de lutar contra o descontentamento ou a agitação Que seja suficiente citar a título de exemplo os regulamentos para as companhias de caridade das paróquias parisienses O território a cobrir está dividido em bairros e cantões que são repartidos pelos membros da companhia Estes têm que visitálos regularmente Eles trabalharão para impedir os maus locais tabacarias academias jogos escândalos públicos blasfêmias impiedades e outras desordens que possam chegar a seu conhecimento Terão também que fazer visitas individuais aos pobres e os pontos de informação são precisados no regulamento estabilidade de habitação conhecimento das orações freqüência aos sacramentos conhecimento de um ofício moralidade e se não caíram na pobreza por sua culpa enfim é preciso se informar direito de que maneira se comportam em casa se mantêm paz entre si e com os vizinhos se têm o cuidado de criar os filhos no temor de Deus se não deitam os filhos crescidos de sexo diferente juntos e com eles se não há libertinagem e carícias nas famílias principalmente para com as filhas crescidas Se há dúvida de que sejam casados é preciso pedirlhes uma certidão de casamento17 3 A estatização dos mecanismos de disciplina na Inglaterra foram grupos privados de inspiração religiosa que muito tempo realizaram as funções de disciplina social18 Na França se uma parte desse papel ficou nas mãos das sociedades de patronatos ou de auxílio outra e sem dúvida a mais considerável foi muito cedo ocupada pelo sistema policial A organização de uma polícia centralizada durante muito tempo foi considerada pelos contemporâneos como a expressão mais direta do absolutismo real o soberano quisera ter um magistrado a quem pudesse confiar diretamente suas ordens seus recados suas intenções e fosse encarregado da execução das ordens e das cartas de prego19 Com efeito ao mesmo tempo em que retomavam um certo número de funções preexistentes procura dos criminosos vigilância urbana controle econômico e político os chefes de polícia e a chefia geral que os coroava em Paris as transpunham para uma máquina administrativa unitária e rigorosa Todos os raios de força e de instrução que partem da circunferência chegam ao chefe geral É ele que faz funcionar as rodas cujo conjunto produz a ordem e a harmonia Os efeitos de sua administração só podem ser bem comparados aos movimentos dos corpos celestes20 Mas se a polícia como instituição foi realmente organizada sob a forma de um aparelho de Estado e se foi mesmo diretamente ligada ao centro da soberania política o tipo de poder que exerce os mecanismos que põe em funcionamento e os elementos aos quais ela os aplica são específicos É um aparelho que deve ser coextensivo ao corpo social inteiro e não só pelos limites extremos que atinge mas também pela minúcia dos detalhes de que se encarrega O poder policial devese exercer sobre tudo não é entretanto a totalidade do Estado nem do reino como corpo visível e invisível do monarca é a massa dos acontecimentos das ações dos comportamentos das opiniões tudo o que acontece21 o objeto da polícia são essas coisas de todo instante essas coisas àtoa de que falava Catarina II em sua Grande Instrução22 Com a polícia estamos no indefinido de um controle que procura idealmente atingir o grão mais elementar o fenômeno mais passageiro do corpo social O ministério dos magistrados e oficiais de polícia é dos mais importantes os objetos que ele abarca são de certo modo indefinidos só podemos percebêlos por um exame suficientemente detalhado23 o infinitamente pequeno do poder político E para se exercer esse poder deve adquirir o instrumento para uma vigilância permanente exaustiva onipresente capaz de tornar tudo visível mas com a condição de se tornar ela mesma invisível Deve ser como um olhar sem rosto que transforme todo o corpo social em um campo de percepção milhares de olhos postados em toda parte atenções móveis e sempre alerta uma longa rede hierarquizada que segundo Le Maire comporta para Paris os 48 comissários os 20 inspetores depois os observadores pagos regularmente os moscas abjetas retribuídos por dia depois os denunciadores qualificados de acordo com a tarefa enfim as prostitutas E essa incessante observação devese acumular numa série de relatórios e de registros ao longo de todo o século XVIII um imenso texto policial tende a recobrir a sociedade graças a uma organização documentária complexa24 E ao contrário dos métodos de escrita judiciária ou administrativa o que é assim registrado são comportamentos atitudes virtualidades suspeitas uma tomada de contas permanente do comportamento dos indivíduos Ora é preciso notar que esse controle policial se está inteiro na mão do rei não funciona numa só direção É na realidade um sistema de entrada dupla tem que responder ligando o aparelho de justiça às vantagens imediatas do rei mas é também capaz de responder às solicitações de baixo em sua imensa maioria as famosas cartas de prego que foram muito tempo símbolo do arbítrio real e que politicamente desqualificaram a prática da detenção eram na realidade solicitadas por famílias mestres notáveis locais habitantes de bairros curas de paróquia e tinham por função fazer sancionar com um internamento toda uma infrapenalidade a da desordem da agitação da desobediência do mau comportamento o que Ledoux queria expulsar de sua cidade arquiteturalmente perfeita e que chamava os delitos de falta de vigilância Em suma a polícia do século XVIII a seu papel de auxiliar de justiça na busca aos criminosos e de instrumento para o controle político dos complôs dos movimentos de oposição ou das revoltas acrescenta uma função disciplinar Função complexa pois une o poder absoluto do monarca às mínimas instâncias de poder disseminadas na sociedade pois entre essas diversas instituições fechadas de disciplina oficinas exércitos escolas estende uma rede intermediária agindo onde aquelas não podem intervir disciplinando os espaços não disciplinares mas que ela recobre liga entre si garante com sua força armada disciplina intersticial e metadisciplina O soberano com uma polícia disciplinada acostuma o povo à ordem e à obediência25 A organização do aparelho policial no século XVIII sanciona uma gene ralização das disciplinas que alcança as dimensões do Estado Se bem que a polícia tenha estado ligada da maneira mais explícita a tudo o que no poder real excedia o exercício da justiça regulamentada compreendese por que a polícia pôde resistir com um mínimo de modificações à reorganização do poder judiciário e por que ela não parou de lhe impor cada vez mais pesadamente até hoje suas prerrogativas é sem dúvida porque ela é seu braço secular mas é também porque bem melhor que a instituição judiciária ela se identifica por sua extensão e seus mecanismos com a sociedade de tipo disciplinar Seria entretanto inexato pensar que as funções disciplinares tenham sido confiscadas e absorvidas definitivamente por um aparelho de Estado A disciplina não pode se identificar com uma instituição nem com um aparelho ela é um tipo de poder uma modalidade para exercêlo que comporta todo um conjunto de instrumentos de técnicas de procedimentos de níveis de aplicação de alvos ela é uma física ou uma anatomia do poder uma tecnologia E pode ficar a cargo seja de instituições especializadas as penitenciárias ou as casas de correção do século XIX seja de instituições que dela se servem como instrumento essencial para um fim determinado as casas de educação os hospitais seja de instâncias preexistentes que nela encontram maneira de reforçar ou de reorganizar seus mecanismos internos de poder um dia se precisará mostrar como as relações intrafamiliares essencialmente na célula paisfilhos se disciplinaram absorvendo desde a era clássica esquemas externos escolares militares depois médicos psiquiátricos psicológicos que fizeram da família o local de surgimento privilegiado para a questão disciplinar do normal e do anormal seja de aparelhos que fizeram da disciplina seu princípio de funcionamento interior disciplinação do aparelho administrativo a partir da época napoleônica seja enfim de aparelhos estatais que têm por função não exclusiva mas principalmente fazer reinar a disciplina na escala de uma sociedade a polícia Podese então falar em suma da formação de uma sociedade disciplinar nesse movimento que vai das disciplinas fechadas espécie de quarentena social até o mecanismo indefinidamente generalizável do panoptismo Não que a modalidade disciplinar do poder tenha substituído todas as outras mas porque ela se infiltrou no meio das outras desqualifícandoas às vezes mas servindolhes de intermediária ligandoas entre si prolongandoas e principalmente permitindo conduzir os efeitos de poder até os elementos mais tênues e mais longínquos Ela assegura uma distribuição infinitesimal das relações de poder Poucos anos depois de Bentham Julius redigia a certidão de nascimento dessa sociedade26 Falando do princípio panóptico dizia que nele se via bem mais que um talento arquitetural um acontecimento na história do espírito humano Aparentemente não passa da solução de um problema técnico mas através dela se constrói um tipo de sociedade A Antigüidade foi uma civilização do espetáculo Tornar acessível a uma multidão de homens a inspeção de um pequeno número de objetos a esse problema respondia a arquitetura dos templos dos teatros e dos circos Com o espetáculo predominavam a vida pública a intensidade das festas a proximidade sensual Naqueles rituais em que corria sangue a sociedade encontrava vigor e formava um instante como que um grande corpo único A Idade Moderna coloca o problema contrário Proporcionar a um pequeno número ou mesmo a um só a visão instantânea de uma grande multidão Numa sociedade em que os elementos principais não são mais a comunidade e a vida pública mas os indivíduos privados por um lado e o Estado por outro as relações só podem ser reguladas numa forma exatamente inversa ao espetáculo No tempo moderno estava reservado à influência sempre crescente do Estado à sua intervenção cada dia mais profunda em todos os detalhes e relações da vida social aumentar e aperfeiçoar as garantias estatais utilizando e dirigindo para essa grande finalidade a construção e a distribuição de edifícios destinados a vigiar ao mesmo tempo uma grande multidão de homens Julius via como um processo histórico cabalmente realizado o que Bentham descrevera como um programa técnico Nossa sociedade não é de espetáculos mas de vigilância sob a superfície das imagens investemse os corpos em profundidade atrás da grande abstração da troca se processa o treinamento minucioso e concreto das forças úteis os circuitos da comunicação são os suportes de uma acumulação e centralização do saber o jogo dos sinais define os pontos de apoio do poder a totalidade do indivíduo não é amputada reprimida alterada por nossa ordem social mas o indivíduo é cuidadosamente fabricado segundo uma tática das forças e dos corpos Somos bem menos gregos que pensamos Não estamos nem nas arquibancadas nem no palco mas na máquina panóptica investidos por seus efeitos de poder que nós mesmos renovamos pois somos suas engrenagens A importância na mitologia histórica da personagem napoleônica tem talvez aí uma de suas origens encontrase no ponto de junção do exercício monárquico e ritual da soberania e do exercício hierárquico e permanente da disciplina indefinida É aquele que descortina tudo com um só olhar mas a que nenhum detalhe por ínfimo que seja escapa jamais Podeis julgar que nenhuma parte do Império está privada de vigilância que nenhum crime nenhum delito nenhuma contravenção deve permanecer sem punição e que o olho do gênio que tudo sabe acender abarca o conjunto dessa vasta máquina sem que o mínimo detalhe lhe possa escapar27 A sociedade disciplinar no momento de sua plena eclosão assume ainda com o Imperador o velho aspecto do poder de espetáculo Como monarca ao mesmo tempo usurpador do antigo trono e organizador do novo Estado ele recolheu numa figura simbólica e derradeira todo o longo processo pelo qual os faustos da soberania as manifestações necessariamente espetaculares do poder apagaramse um por um no exercício cotidiano da vigilância num panoptismo em que a penetração dos olhares entrecruzados há de em breve tornar inúteis a águia e o sol A formação da sociedade disciplinar está ligada a um certo número de amplos processos históricos no interior dos quais ela tem lugar econômicos jurídico políticos científicos enfim 1 De uma maneira global podese dizer que as disciplinas são técnicas para assegurar a ordenação das multiplicidades humanas É verdade que não há nisso nada de excepcional nem mesmo de característico a qualquer sistema de poder se coloca o mesmo problema Mas o que é próprio das disciplinas é que elas tentam definir em relação às multiplicidades uma tática de poder que responde a três critérios tornar o exercício do poder o menos custoso possível economicamente pela parca despesa que acarreta politicamente por sua discrição sua fraca exteriorização sua relativa invisibilidade o pouco de resistência que suscita fazer com que os efeitos desse poder social sejam levados a seu máximo de intensidade e estendidos tão longe quanto possível sem fracasso nem lacuna ligar enfim esse crescimento econômico do poder e o rendimento dos aparelhos no interior dos quais se exerce sejam os aparelhos pedagógicos militares industriais médicos em suma fazer crescer ao mesmo tempo a docilidade e a utilidade de todos os elementos do sistema Esse triplo objetivo das disciplinas responde a uma conjuntura histórica bem conhecida É por um lado a grande explosão demográfica do século XVIII aumento da população flutuante fixar é um dos primeiros objetivos da disciplina é um processo de antinomadismo mudança da escala quantitativa dos grupos que importa controlar ou manipular do começo do século XVII às vésperas da Revolução Francesa a população escolar se multiplicou como sem dúvida a população hospitalizada o exército em tempo de paz contava no fim do século XVIII mais de 200000 homens O outro aspecto da conjuntura é o crescimento do aparelho de produção cada vez mais extenso e complexo cada vez mais custoso também e cuja rentabilidade urge fazer crescer O desenvolvimento dos modos disciplinares de proceder responde a esses dois processos ou antes sem dúvida à necessidade de ajustar sua correlação Nem as formas residuais do poder feudal nem as estruturas da monarquia administrativa nem os mecanismos locais de controle nem o emaranhado instável que formavam todos juntos podia desempenhar esse papel impediaos de fazêlo a extensão lacunosa e sem regularidade de sua rede seu funcionamento muitas vezes conflitante mas principalmente o caráter dispendioso do poder exercido Dispendioso em vários sentidos porque diretamente custava muito ao Tesouro porque o sistema dos ofícios venais ou o da cobrança dos impostos pesava de maneira indireta e muito sobre a população porque as resistências que encontrava o arrastavam a um ciclo de reforço perpétuo porque procedia essencialmente por retirada retirada de dinheiro ou de produtos pelo fisco monárquico senhorial eclesiástico retirada de homens ou de tempo pelos serviços obrigatórios ou pelos alistamentos pelo encarceramento de vagabundos ou seu banimento O desenvolvimento das disciplinas marca a aparição de técnicas elementares do poder que derivam de uma economia totalmente diversa mecanismos de poder que em vez de vir em dedução integramse de dentro à eficácia produtiva dos aparelhos ao crescimento dessa eficácia e à utilização do que ela produz As disciplinas substituem o velho princípio retiradaviolência que regia a economia do poder pelo princípio suavidadeproduçãolucro Devem ser tomadas como técnicas que permitem ajustar segundo esse princípio a multiplicidade dos homens e a multiplicação dos aparelhos de produção e como tal devese entender não só produção propriamente dita mas a produção de saber e de aptidões na escola a produção de saúde nos hospitais a produção de força destrutiva com o exército Nessa tarefa de ajustamento a disciplina encontra alguns problemas a resolver para os quais a antiga economia do poder não estava suficientemente aparelhada Pode fazer diminuir a desutilidade dos fenômenos de massa reduzir aquilo que numa multiplicidade faz com que esta seja muito menos manejável que uma unidade reduzir o que se opõe à utilização de cada um de seus elementos e de sua soma reduzir tudo o que nela possa anular as vantagens do número é por isso que a disciplina fixa ela imobiliza ou regulamenta os movimentos resolve as confusões as aglomerações compactas sobre as circulações incertas as repartições calculadas Ela deve também dominar todas as forças que se formam a partir da própria constituição de uma multiplicidade organizada deve neutralizar os efeitos de contrapoder que dela nascem e que formam resistência ao poder que quer dominála agitações revoltas organizações espontâneas conluios tudo o que pode se originar das conjunções horizontais Daí o fato de as disciplinas utilizarem processos de separação e de verticalidade de introduzirem entre os diversos elementos de mesmo plano barreiras tão estanques quanto possível de definirem redes hierárquicas precisas em suma de oporem à força intrínseca e adversa da multiplicidade o processo da pirâmide contínua e individualizante Elas devem também fazer crescer a utilidade singular de cada elemento da multiplicidade mas por meios que sejam os mais rápidos e menos custosos ou seja utilizando a própria multiplicidade como instrumento desse crescimento daí para extrair dos corpos o máximo de tempo e de forças esses métodos de conjunto que são os horários os treinamentos coletivos os exercícios a vigilância ao mesmo tempo global e minuciosa É preciso além disso que as disciplinas façam crescer o efeito de utilidade próprio às multiplicidades e que tornem cada uma delas mais útil que a simples soma de seus elementos é para fazer crescer os efeitos utilizáveis do múltiplo que as disciplinas definem táticas de distribuição de ajustamento recíproco dos corpos dos gestos e dos ritmos de diferenciação das capacidades de coordenação recíproca em relação a aparelhos ou a tarefas Enfim a disciplina tem que fazer funcionar as relações de poder não acima mas na própria trama da multiplicidade da maneira mais discreta possível articulada do melhor modo sobre as outras funções dessas multiplicidades e também o menos dispendiosamente possível atendem a isso instrumentos de poder anônimos e coextensivos à multiplicidade que regimentam como a vigilância hierárquica o registro contínuo o julgamento e a classificação perpétuos Em suma substituir um poder que se manifesta pelo brilho dos que o exercem por um poder que objetiva insidiosamente aqueles aos quais é aplicado formar um saber a respeito destes mais que patentear os sinais faustosos da soberania Em uma palavra as disciplinas são o conjunto das minúsculas invenções técnicas que permitiram fazer crescer a extensão útil das multiplicidades fazendo diminuir os inconvenientes do poder que justamente para tornálas úteis deve regêlas Uma multiplicidade seja uma oficina ou uma nação um exército ou uma escola atinge o limiar da disciplina quando a relação de uma para com a outra tornase favorável Se a decolagem econômica do Ocidente começou com os processos que permitiram a acumulação do capital podese dizer talvez que os métodos para gerir a acumulação dos homens permitiram uma decolagem política em relação a formas de poder tradicionais rituais dispendiosas violentas e que logo caídas em desuso foram substituídas por uma tecnologia minuciosa e calculada da sujeição Na verdade os dois processos acumulação de homens e acumulação de capital não podem ser separados não teria sido possível resolver o problema da acumulação de homens sem o crescimento de um aparelho de produção capaz ao mesmo tempo de mantêlos e de utilizálos inversamente as técnicas que tornam útil a multiplicidade cumulativa de homens aceleram o movimento de acumulação de capital A um nível menos geral as mutações tecnológicas do aparelho de produção a divisão do trabalho e a elaboração das maneiras de proceder disciplinares mantiveram um conjunto de relações muito próximas28 Cada uma das duas tornou possível a outra e necessária cada uma das duas serviu de modelo para a outra A pirâmide disciplinar constituiu a pequena célula de poder no interior da qual a separação a coordenação e o controle das tarefas foram impostos e tornaramse eficazes e o quadriculamento analítico do tempo dos gestos das forças dos corpos constituiu um esquema operatório que pôde facilmente ser transferido dos grupos a submeter para os mecanismos da produção a projeção maciça dos métodos militares sobre a organização industrial foi um exemplo dessa modelação da divisão do trabalho a partir de esquemas de poder Mas em compensação a análise técnica do processo de produção sua decomposição maquinai se projetaram sobre a força de trabalho que tinha como tarefa realizálo a constituição dessas máquinas disciplinares onde são compostas e assim amplificadas as forças individuais que elas associam é o efeito dessa projeção Digamos que a disciplina é o processo técnico unitário pelo qual a força do corpo é com o mínimo ônus reduzida como força política e maximalizada como força útil O crescimento de uma economia capitalista fez apelo à modalidade específica do poder disciplinar cujas fórmulas gerais cujos processos de submissão das forças e dos corpos cuja anatomia política em uma palavra podem ser postos em funcionamento através de regimes políticos de aparelhos ou de instituições muito diversas 2 A modalidade panóptica do poder ao nível elementar técnico humil demente físico em que se situa não está na dependência imediata nem no prolongamento direto das grandes estruturas jurídicopolíticas de uma sociedade ela não é entretanto absolutamente independente Historicamente c processo pelo qual a burguesia se tornou no decorrer do século XVIII a classe politicamente dominante abrigouse atrás da instalação de um quadro jurídico explícito codificado formalmente igualitário e através da organização de um regime de tipo parlamentar e representativo Mas o desenvolvimento e a generalização dos dispositivos disciplinares constituíram a outra vertente obscura desse processo A forma jurídica geral que garantia um sistema de direitos em princípio igualitários era sustentada por esses mecanismos miúdos cotidianos e físicos por todos esses sistemas de micropoder essencialmente inigualitários e assimétricos que constituem as disciplinas E se de uma maneira formal o regime representativo permite que direta ou indiretamente com ou sem revezamento a vontade de todos forme a instância fundamental da soberania as disciplinas dão na base garantia da submissão das forças e dos corpos As disciplinas reais e corporais constituíram o subsolo das liberdades formais e jurídicas O contrato podia muito bem ser imaginado como fundamento ideal do direito e do poder político o panoptismo constituía o processo técnico universalmente difundido da coerção Não parou de elaborar em profundidade as estruturas jurídicas da sociedade para fazer funcionar os mecanismos efetivos do poder ao encontro dos quadros formais de que este dispunha As Luzes que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas Aparentemente as disciplinas não constituem nada mais que um infradireito Parecem prolongar até um nível infinitesimal das existências singulares as formas gerais definidas pelo direito ou ainda aparecem como maneiras de aprendizagem que permitem aos indivíduos se integrarem a essas exigências gerais Constituiriam o mesmo tipo de direito fazendoo mudar de escala e assim tornandoo mais minucioso e sem dúvida mais indulgente Temos antes que ver nas disciplinas uma espécie de contradireito Elas têm o papel preciso de introduzir assimetrias insuperáveis e de excluir reciprocidades Em primeiro lugar porque a disciplina cria entre os indivíduos um laço privado que é uma relação de limitações inteiramente diferente da obrigação contratual a aceitação de uma disciplina pode ser subscrita por meio de contrato a maneira como ela é imposta os mecanismos que faz funcionar a subordinação não reversível de uns em relação aos outros o mais poder que é sempre fixado do mesmo lado a desigualdade de posição dos diversos parceiros em relação ao regulamento comum opõem o laço disciplinar e o laço contratual e permitem sistematicamente falsear este último a partir do momento em que tem por conteúdo um mecanismo de disciplina Sabemos por exemplo quantos procedimentos reais acomodam a seus objetivos a função jurídica do contrato de trabalho a disciplina de oficina não é o menos importante Além disso enquanto os sistemas jurídicos qualificam os sujeitos de direito segundo normas universais as disciplinas caracterizam classificam especializam distribuem ao longo de uma escala repartem em torno de uma norma hierarquizam os indivíduos em relação uns aos outros e levando ao limite desqualificam e invalidam De qualquer modo no espaço e durante o tempo em que exercem seu controle e fazem funcionar as assimetrias de seu poder elas efetuam uma suspensão nunca total mas também nunca anulada do direito Por regular e institucional que seja a disciplina em seu mecanismo é um contradireito E se o juridismo universal da sociedade moderna parece fixar limites ao exercício dos poderes seu panoptismo difundido em toda parte faz funcionar ao arrepio do direito uma maquinaria ao mesmo tempo imensa e minúscula que sustenta reforça multiplica a assimetria dos poderes e torna vãos os limites que lhe foram traçados As disciplinas ínfimas os panoptismos de todos os dias podem muito bem estar abaixo do nível de emergência dos grandes aparelhos e das grandes lutas políticas Elas foram na genealogia da sociedade moderna com a dominação de classe que a atravessa a contrapartida política das normas jurídicas segundo as quais era redistribuído o poder Daí sem dúvida a importância que se dá há tanto tempo aos pequenos processos da disciplina a essas espertezas àtoa que ela inventou ou ainda aos saberes que lhe emprestam uma face confessável daí o receio de se desfazer delas se não lhes encontramos substituto daí a afirmação de que estão no próprio fundamento da sociedade e de seu equilíbrio enquanto são uma série de mecanismos para desequilibrar definitivamente e em toda parte as relações de poder daí o fato de nos obstinarmos a fazêlas passar pela forma humilde mas concreta de qualquer moral enquanto elas são um feixe de técnicas físicopolíticas E para voltar ao problema dos castigos legais a prisão com toda a tecnologia corretiva de que se acompanha deve ser recolocada aí no ponto em que se faz a torsão do poder codificado de punir em um poder disciplinar de vigiar no ponto que os castigos universais das leis vêm aplicarse seletivamente a certos indivíduos e sempre aos mesmos no ponto em que a requalificação do sujeito de direito pela pena se torna treinamento útil do criminoso no ponto em que o direito se inverte e passa para fora de si mesmo e em que o contradireito se torna o conteúdo efetivo e institucionalizado das formas jurídicas O que generaliza então o poder de punir não é a consciência universal da lei em cada um dos sujeitos de direito é a extensão regular é a trama infinitamente cerrada dos processos panópticos 3 Tomados um por um a maior parte desses processos tem uma longa história atrás de si Mas o ponto da novidade no século XVIII é que compondose e regularizandose eles atingem o nível a partir do qual formação de saber e majoração de poder se reforçam regularmente segundo um processo circular As disciplinas atravessam então o limiar tecnológico O hospital primeiro depois a escola mais tarde ainda a oficina não foram simplesmente postos em ordem pelas disciplinas tornaramse graças a elas aparelhos tais que qualquer mecanismo de objetivação pode valer neles como instrumento de sujeição e qualquer crescimento de poder dá neles lugar a conhecimentos possíveis foi a partir desse laço próprio dos sistemas tecnológicos que se puderam formar no elemento disciplinar a medicina clínica a psiquiatria a psicologia da criança a psicopedagogia a racionalização do trabalho Duplo processo portanto arrancada epistemológica a partir de um afinamento das relações de poder multiplicação dos efeitos de poder graças à formação e à acumulação de novos conhecimentos A extensão dos métodos disciplinares se inscreve num amplo processo histórico o desenvolvimento mais ou menos na mesma época de várias outras tecnologias agronômicas industriais econômicas Mas temos que reconhecer ao lado das indústrias mineiras da química que nascia dos métodos de contabilidade nacional ao lado dos altosfornos ou da máquina a vapor o panoptismo foi pouco celebrado Só se reconhece nele uma pequena utopia estranha o sonho de uma maldade um pouco como se Bentham tivesse sido o Fourier de uma sociedade policial cujo Falanstério houvesse tido a forma do Panóptico E entretanto tinhase aí a fórmula abstrata de uma tecnologia bem real a dos indivíduos Que ela tenha colhido poucos elogios há muitas razões que explicam a mais evidente é que os discursos a que deu lugar raramente adquiriram a não ser para as classificações acadêmicas o status de ciências mas a mais real é sem dúvida a de que o poder que ela põe em funcionamento e que ela permite aumentar é um poder direto e físico que os homens exercem uns sobre os outros Para um ponto de chegada sem glória uma origem difícil de confessar Mas seria injusto confrontar os processos disciplinares com invenções como a máquina a vapor ou o microscópio de Amici Eles são muito menos e entretanto de certo modo são muito mais Se fosse preciso encontrar para eles um equivalente histórico ou pelo menos um ponto de comparação seria antes do lado da técnica inquisitorial O século XVIII inventou as técnicas da disciplina e o exame um pouco sem dúvida como a Idade Média inventou o inquérito judiciário Mas por vias totalmente diversas O processo do inquérito velha técnica fiscal e administrativa se desenvolveu principalmente com a reorganização da Igreja e o crescimento dos Estados principescos nos séculos XII e XIII Foi então que ele penetrou com a amplitude que se sabe na jurisprudência dos tribunais eclesiásticos depois nas cortes leigas O inquérito como pesquisa autoritária de uma verdade constatada ou atestada se opunha assim aos antigos processos do juramento da ordália do duelo judiciário do julgamento de Deus ou ainda da transação entre particulares O inquérito era o poder soberano que se arrogava o direito de estabelecer a verdade através de um certo número de técnicas regulamentadas Ora embora o inquérito desde aquele momento se tenha incorporado à justiça ocidental e até em nossos dias não se deve esquecer sua origem política sua ligação com o nascimento dos Estados e da soberania monárquica nem tampouco sua derivação posterior e seu papel na formação do saber O inquérito foi com efeito a peça rudimentar e fundamental para a constituição das ciências empíricas foi a matriz jurídicopolítica desse saber experimental que como se sabe teve seu rápido surto no fim da Idade Média É talvez verdade que a matemática na Grécia nasceu das técnicas da medida as ciências da natureza em todo caso nasceram por um lado no fim da Idade Média das práticas do inquérito O grande conhecimento empírico que recobriu as coisas do mundo e as transcreveu na ordenação de um discurso indefinido que constata descreve e estabelece os fatos e isto no momento em que o mundo ocidental começava a conquista econômica e política desse mesmo mundo tem sem dúvida seu modelo operatório na Inquisição essa imensa invenção que nosso recente amolecimento colocou na sombra da memória Ora o que esse inquérito político jurídico administrativo e criminal religioso e leigo foi para as ciências da natureza a análise disciplinar foi para as ciências do homem Essas ciências com que nossa humanidade se encanta há mais de um século têm sua matriz técnica na minúcia tateante e maldosa das disciplinas e de suas investigações Estas são talvez para a psicologia a pedagogia a psiquiatria a criminologia e para tantos outros estranhos conhecimentos o que foi o terrível poder de inquérito para o saber calmo dos animais das plantas ou da terra Outro poder outro saber No limiar da era clássica Bacon o homem da lei e do Estado tentou fazer para as ciências empíricas a metodologia do inquérito Quem será o Grande Vigia que fará a do exame para as ciências humanas Tal não sucederá apenas se não for possível Pois se é verdade que o inquérito ao se tornar uma técnica para as ciências empíricas se destacou do processo inquisitorial em que tinha suas raízes históricas já o exame permaneceu o mais próximo do poder disciplinar que o formou E ainda e sempre uma peça intrínseca das disciplinas É claro ele parece ter sofrido uma depuração especulativa ao se integrar em ciências como a psiquiatria a psicologia E efetivamente sob a forma de testes de entrevistas de interrogatórios de consultas o vemos retificar aparentemente os mecanismos da disciplina a psicologia é encarregada de corrigir os rigores da escola como a entrevista médica ou psiquiátrica é encarregada de retificar os efeitos da disciplina de trabalho Mas não devemos nos enganar essas técnicas apenas mandam os indivíduos de uma instância disciplinar a outra e reproduzem de uma forma concentrada ou formalizada o esquema de poder saber próprio a toda disciplina29 O grande inquérito que deu lugar às ciências da natureza destacouse de seu modelo políticojurídico o exame em compensação continua preso à tecnologia disciplinar O procedimento do inquérito na Idade Média foi imposto à velha justiça acusatória mas por um processo vindo de cima já a técnica disciplinar invadiu insidiosamente e como que por baixo uma justiça penal que é ainda em seu princípio inquisitória Todos os grandes movimentos de derivação que caracterizam a penalidade moderna a problematização do criminoso por trás de seu crime a preocupação com uma punição que seja correção terapêutica normalização a divisão do ato do julgamento entre diversas instâncias que devem segundo se espera medir avaliar diagnosticar curar transformar os indivíduos tudo isso trai a penetração do exame disciplinar na inquisição judiciária O que agora é imposto à justiça penal como seu ponto de aplicação seu objeto útil não será mais o corpo do culpado levantado contra o corpo do rei não será mais tampouco o sujeito de direito de um contrato ideal mas o indivíduo disciplinar O ponto extremo da justiça penal no Antigo Regime era o retalhamento infinito do corpo do regicida manifestação do poder mais forte sobre o corpo do maior criminoso cuja destruição total faz brilhar o crime em sua verdade O ponto ideal da penalidade hoje seria a disciplina infinita um interrogatório sem termo um inquérito que se prolongasse sem limite numa observação minuciosa e cada vez mais analítica um julgamento que seja ao mesmo tempo a constituição de um processo nunca encerrado o amolecimento calculado de uma pena ligada à curiosidade implacável de um exame um procedimento que seja ao mesmo tempo a medida permanente de um desvio em relação a uma norma inacessível e o movimento assintótico que obriga a encontrála no infinito O suplício completa logicamente um processo comandado pela Inquisição A observação prolonga naturalmente uma justiça invadida pelos métodos disciplinares e pelos processos de exame Acaso devemos nos admirar que a prisão celular com suas cronologias marcadas seu trabalho obrigatório suas instâncias de vigilância e de notação com seus mestres de normalidade que retomam e multiplicam as funções do juiz se tenha tornado o instrumento moderno da penalidade Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas com as escolas com os quartéis com os hospitais e todos se pareçam com as prisões NOTAS CAPÍTULO I 1 L de Montgommery La Milice française edição de 1636 p 67 2 Ordenação de 20 de março de 1764 3 Ibid 4 Marechal de Saxe Mês rêveries t I avantpropos p 5 5 JB de La Salle Traité sur les obligations des frères des Écoles chrétiennes edição de 1783 p 238239 6 E Geoffroy de SaintHilaire empresta essa declaração a Bonaparte sobre a Introdução às Notions synthétiques et historiques de philosophie naturelle 7 JB de Treilhard Motifs du code dinstruction criminelle 1808 p 14 8 Escolherei os exemplos nas instituições militares médicas escolares e industriais Outros exemplos poderiam ser tomados na colonização na escravidão nos cuidados na primeira infância 9 Cf Ph Ariès LEnfant et la famille 1960 p 308313 e G Snyders La Pédagogie en France aux XVIIe et XVIIIe siècles 1965 p 3541 10 Lordonnance militaire t IXL 25 de setembro de 1719 Cl Ilustr 5 11 Daisy Le Royaume de France 1745 p 201209 memória anônima de 1775 depósito da guerra 3689 f 156 A Navereau Le logement et les utensiles des gens de guerre de 1439 à 1789 1924 p 132135 Cf ilustrs n 56 12 Projet de règlement pour 1aciérie dAmboise Arquivos nacionais f 12 1301 13 Memória ao rei a respeito da fábrica de tecido para velas de Angers e in V Dauphin Recherches sur 1industric textile en anjou 1913 p 199 14 Règlement pour la communauté des files du Bom Pauster in Delamare Traité de Police livro III título V p 507 Cf também ilustr n 9 15 Regulamento da fábrica de SaintMaur BN Ms coleção Delamare Manufactures III 16 Cf o que dizia La Métherie visitando Le Cresot Os edifícios para um tão belo estabelecimento e uma tão grande quantidade de operários deviam ter uma extensão suficiente para que não houvesse confusão entre os operários durante o tempo de trabalho Journal de physique t XXX 1787 p 66 17 Cf C de Rochemontei Un collège au XVII siècle 1889 t III p 51s 18 JB de La Salle Conduite des écoles chrétiennes BN Ms 11759 p 248249 Um pouco mais cedo Batencour propunha que as salas de aula fossem divididas em três partes A mais respeitável para os que aprendem latim É de se desejar que haja tantos lugares nas mesas quantos escritores houver para evitar as confusões que ordinariamente fazem os preguiçosos Em outra os que aprendem a ler um banco para os ricos um banco para os pobres para que os piolhos não contaminem Terceira localização para os recém chegados quando sua capacidade for reconhecida serlhesá atribuído um lugar MIDB Instruction méthodique pour lécole paroissiale 1669 p 5657 Cf ilustrações n 1011 19 JA de Guibert Essai général de tactique 1772 vol I Discurso preliminar p XXXVI 20 Artigo primeiro do regulamento da fábrica de SaintMaur 21 L de Boussanelle Le Bom Militaire 1770 p 2 Sobre o caráter religioso da disciplina no exército sueco cf The Swedish Discipline Londres 1632 22 JB de La Salle Conduite des écoles chrétiennes BN Ms 11759 p 2728 188 23 Bally citado por RR Tronchot LEnseigeraent mutuel en France tese datilografada vol I p 21 24 Projet de réglement pour la fabrique dAmboise art 2 Arquivos nacionais F 12 1301 Especificase que isso vale também para os que trabalham com peças 25 Regulamento provisório para a fábrica de MS Oppenheim 1809 art 78 in Hayem Mémoires et documente pour revenir à lhistore du commerce 26 Regulamento para a fábrica de MS Oppenheim art 16 27 Projet de réglement pour la fabrique dAmboise art 4 28 L de Montgommery La Milice française ed de 1636 p 86 29 Ordonnance du ler janvier 1766 pour régler 1exercice de linfanterie 30 JB de La Salle Conduite des écoles chrétiennes ed de 1828 p 6364 Cf ilustração n 8 31 Ordonnance du ler janvier 1766 título XI art 2 32 Só se pode atribuir o sucesso das tropas prussianas à excelência de sua disciplina e de seu exercício a escolha do exercício não é portanto indiferente foi trabalhando na Prússia durante quarenta anos com uma aplicação sem descanso Marechal de Saxe carta ao conde dArgenson 25 de fevereiro de 1750 Arsenal Ms 2701 e Mês rêveries t II p 249 Cf ilustrações nos 3 e 4 33 Exercício de escrita 9 Mão sobre os joelhos Essa ordem é dada por um toque de campanhia 10 mãos sobre a mesa cabeça alta 11 limpar as lousas todos limpam as lousas com um pouco de saliva ou melhor com um trapo 12 mostrar as lousas 13 monitores inspecionar Eles vão ver as lousas de seus adjuntos e em seguida as de seu banco Os adjuntos visitam as de seu banco e todos ficam no lugar 34 Sammuel Bernard Rapport du 30 octobre 1816 à la sociète de 1enseigment mutuel 35 JA de Guibert Essai général de tactique 1772 I p 2122 36 Essa mistura aparece claramente em certas classes do contrato de aprendizagem o mestre é obrigado a dar ao aluno mediante seu dinheiro e seu trabalho todo o seu saber sem guardar nenhum segredo senão é passível de multa Cf por exemplo F Grosrenaud La Corporation ouorière à Besançon 1907 p 62 37 Cf E Gerspach La Manufacture des Gobelins 1892 38 Era o projeto de J Servan Le Soldat citoyen 1780 p 456 39 Regulamento de 1743 para a infantaria prussiana Arsenal Ms 4076 40 F de la Noue recomendava a criação de academias militares no fim do século XVI pretendia que lá se aprendesse a manejar os cavalos correr com a adaga no gibão e às vezes armado atirar voltear saltar se se acrescentassem nadar e lutar só seria melhor pois tudo isso torna a pessoa mais robusta e mais hábil Discours politiques et militaires ed 1614 p 181182 41 Instruction pour 1exercise de linfanterie 14 de maio de 1754 42 Ibid 43 Demia Réglement pour les écoles de la ville de Lyon 1716 p 1920 44 Cf G Codina Meir Aux sources de la pédagogie des Jésuites 1968 p 160s 45 Por intermédio das escolas de Liège Devenport Zwolle Wesel e graças também a Jean Sturm a sua memória de 1533 para a organização de um ginásio em Estrasburgo Cf Bulletin de la société dhistoire du protestantisme t XXV p 499505 Notese que as relações entre o exército a organização religiosa e a pedagogia são muito complexas A decúria unidade do exército romano é encontrada nos conventos beneditinos como unidade de trabalho e sem dúvida de vigilância Os irmãos da vida comum a tomaram emprestada e a transpuseram para sua organização pedagógica os alunos são agrupados por 10 Essa é a unidade que os jesuítas retomaram na cenografia de seus colégios reintroduzindo aí um modelo militar Mas a decúria por sua vez foi dissolvida em proveito de um esquema ainda mais militar com fileiras colunas linhas 46 JA de Guibert Essai général de tactique 1772 1 18 Para dizer a verdade esse velho problema retomara atualidade no século XVIII pelas razões econômicas e técnicas que veremos e o preconceito em questão muito freqüentemente discutido fora do próprio Guibert em tomo de Folard de Pireh de MesnilDurard 47 No sentido em que esse termo foi empregado depois de 1759 48 Podese datar grosso modo a partir da batalha de Steinkerque 1699 o movimento que generalizou o fuzil 49 Sobre essa importância de geometria ver J de Beausobre A ciência da guerra é essencialmente geométrica A distribuição de um batalhão e de um esquadrão sobre toda uma frente e uma certa altura é apenas o efeito de uma geometria profunda ainda ignorada Commentaires sur les défenses des places 1757 t 11 p 307 50 K Marx Le Capital livro I 4ª seção cap XIII Marx insiste várias vezes na analogia entre os problemas de divisão do trabalho e os de tática militar Por exemplo Da mesma forma que a força de ataque de um esquadrão de cavalaria ou a força de resistência de um regimento de cavalaria diferem essencialmente da força das somas individuais da mesma maneira a soma das forças mecânicas de operários isolados difere da força mecânica que se desenvolve desde que eles funcionam conjunta e simultaneamente numa só operação indivisa Ibid 51 JA de Guibert Essai général de tactique 1772 t I p 27 52 Ordenação sobre o exercício da infantaria 6 de maio de 1755 53 Harvouin Rapport sur la généralité de Tours in P Marchegay Archives dAnjou t II p 360 54 Samuel Bernard Rapport du 30 octobre 1816 à la société de lEnseignement mutuel 55 L de Boussanelle Le Bom Militaire 1770 p 2 56 JB de La Salle Conduite des Écoles chrétiennes 1828 p 137138 Cf também Ch Demia Règlements pour les écoles de la ville de Lyon 1716 p 21 57 Journal pour 1instruction élémentaire abril de 1816 Cf RR Tronchot Lenseignement mutuel en France tese datilografada I que calculou que os alunos deviam receber mais de 200 ordens por dia sem contar as ordens excepcionais só de manhã 26 ordens por voz 23 por sinais 37 batidas de campainha e 24 por apito o que faz um toque de campainha ou de apito cada 3 minutos 58 JA de Guibert Essai général de tactique 1772 p 4 59 P Joly de Maizeroy Théorie de la guerre 1777 p 2 60 JA de Guibert Essai général de tactique 1772 Discours préliminares p XXIIIXXIV Cf o que dizia Marx a respeito do exército e das formas da sociedade burguesa carta a Engels 25 de setembro de 1857 CAPÍTULO II 1 JJ Walhausen LArt militaire pour linfanterie 1615 p 23 2 Règlement pour Pinfanterie prussienne trad Franc Arsenal Ms 1067 f 144 Para os esquemas antigos ver Praissac Les discours militaires 1623m p 2728 Montgommery La milice française p 77 Para os novos esquemas cf Beneton de Morange Histoire de la guerre 1741 p 6164 e Dissertations sur les Tentes cf também vários regulamentos como a Instruction sur le service des règlements de Cavalerie dans les camps 29 de junho de 1753 Ver ilustração n 7 3 Citado em R Laulan LÉcole militaire de Paris 1950 p 117118 4 Arch Nat MM 666669 J Bentham conta que foi visitando a Escola Militar que seu irmão teve a primeira idéia do Panopticon 5 Ver ilustrações nos 12 13 16 6 Encyclopédie artigo Manufacture 7 Cournol Considérations dintérêt public sur le droit dexploiter les mines 1790 Arqu Nac A XIII 14 8 Cf K Marx Essa função de vigilância de direção e de mediação tomase a função do capital assim que O trabalho que lhe é subordinado se torna cooperativo e como função capitalista ela adquire características especiais O Capital livro I quarta seção cap XIII 9 MIDB Instruction méthodique pour 1école paroissiale 1669 p 6883 10 Ch Demia Règlement pour les écoles de la ville de Lyon 1716 p 2729 Poderíamos notar um fenômeno do mesmo gênero na organização dos colégios durante muito tempo os prefeitos eram independentemente dos professores encarregados da responsabilidade moral dos pequenos grupos de alunos Depois de 1762 principalmente vemos aparecer um tipo de controle ao mesmo tempo mais administrativo e mais integrado à hierarquia fiscais mestres de bairro mestres subalternos Cf DupontFerrier Du colège de Clermont au lycée LouisleGrand vol I p 254 e 476 11 Pictet de Rochemont Journal de Genève 5 de janeiro de 1788 12 Regulamento provisório para a fábrica de M Oppenheim 29 de setembro de 1809 13 JB de la Salle Conduite des Écoles chrétiennes 1828 p 204205 14 Ibidem 15 Ch Demia Règlement pour les écoles de la ville de Lyon 1716 p 17 16 JB de la Salle Conduite des Écoles chrétiennes BN Ms 11759 p 156s Temos aí a transposição do sistema das indulgências 17 Archives nationales MM 658 30 de março de 1758 e MM 666 15 de setembro de 1763 18 Sobre esse ponto é necessário se reportar às páginas essenciais de G Canguilhem Le normal et le pathologique ed de 1866 p 171191 19 Registre des délibérations du bureau de lHôtelDieu 20 JB de La Salle Conduite des Écoles chrétiennes 1828 p 160 21 Cf LEnseignement et la diffusion des sciences au XVIIIe 1964 p 360 22 Sobre essa medalha cf o artigo de J Jucquiot in Le Club français de la médaille 4o trimestre de 1970 p 5054 Ver ilustração n 2 23 Kropotkine Autour dune vie 1902 p 9 Devo essa referência a MG Ganguilhem 24 MIDB Instruction méthodique pour 1école paroissiale 1669 p 64 CAPÍTULO III 1 Archives militaires de Vincennes A 1516 91 sc Peça Esse regulamento está no essencial de acordo com toda uma série de outros que datam desta mesma época ou de um período anterior 2 J Bentham Panopticon Works ed Bowring t IV p 6064 Ver ilustração n 17 3 No Postscript to the Panopticon 1791 Bentham acrescenta galerias escuras pintadas de preto que fazem a volta ao prédio de vigilância permitindo cada uma observar dois andares de celas 4 Ver ilustração nº 17 Bentham em sua primeira versão do Panopticon imagina também uma vigilânciaacústica por tubos que iam das celas à torre central Abandonoua no Post script talvez porque não p desse introduzir assimetria e impedir que os prisioneiros ouvissem o vigia tão bem quanto este os ouvia Julius tentou aperfeiçoar um sistema de escuta assimétrica Leçons sur les prisons trad Francesa 1831 p 18 5 J Bentham Panopticon Works t IV p 45 6 G Loisel Histoire des ménageries 1912 vol II p 104107 Ver ilustração n 14 7 Ibid p 6064 8 J bentham Panopticon versus New South Wales Works ed Bowring t IV p 177 9 Ibid p 40 Se Bentham deu destaque ao exemplo da penitenciária é porque esta tem funções múltiplas para exercer vigilância controle automático confinamento solidão trabalho forçado instrução 10 Ibid p 65 11 Ibid p 39 12 Ao imaginar esse fluxo contínuo de visitantes que penetravam por um subterrâneo até a torre central e de lá observavam a paisagem circular do Panóptico Bentham conheceria os Panoramas que Barker construía exatamente na mesma época o primeiro parece datar de 1787 e nos quais os visitantes que vinham ocupar o lugar central viam em toda sua volta se desenrolar uma paisagem uma cidade uma batalha Os visitantes ocupavam exatamente o lugar do olhar soberano 13 Ch Demia Règlement pour les écoles de la ville de Lyon 1716 p 6061 14 Relatório de Talleyrand à Constituinte 10 de setembro de 1791 Citado por A Léon La Révolution française et 1éducation technique 1968 p 106 15 Ch Demia Règlement pour les écoles de la ville de Lyon 1716 p 3940 16 Na segunda metade do século XVIII pensouse muito em utilizar o exército como instância de vigilância e de policiamento geral permitindo vigiar a população O exército ainda a disciplinar no século XVII é concebido como disciplinante Cf por ex J Servan Le Soldat citoyen 1780 17 Arsenal ms 2565 Nessa numeração encontramse numerosos regulamentos para as companhias de caridade dos séculos XVII e XVIII 18 Cf L Radzinovitz The English Criminal Law 1956 t II p 203214 19 Nota de Duval primeiro secretário de chefia de polícia citada por FunckBrentano Catalogue des manuscrits de la bibliotèque de lArsenal t IX p 1 20 NT Des Essarts Dictionnaire universal de police 1787 p 344 528 21 Le Maire numa memória redigida a pedido de Sartine para responder a dezesseis perguntas de Joseph II sobre a polícia parisiense Essa memória foi publicada por Gazier em 1879 22 Suplemento à Instruction pour la rédaction dun nouveau code 1769 535 23 N Delamare Traité de la police 1705 prefácio sem numeração de página 24 Sobre os registros da polícia no século XVIII podemos nos reportar a M Chassaigne La Lieutenance générale de police 1906 25 E de Vattel Le Droit des gens 1768 p 162 26 NH Julius Leçons sur les prisons trad Francesa 1831 vol I p 384386 27 JB Treilhard Motifs du code dinstruction criminelle 1808 p 14 28 Cf K Marx O Capital livro 1 4ª seção cap XIII E a análise muito interessante de F Guerry e D Deleule Le Corps productif 1973 29 Cf quanto a este assunto Michel Tort QI 1974 Quarta Parte PRISÃO CAPÍTULO I INSTITUIÇÕES COMPLETAS E AUSTERAS A prisão é menos recente do que se diz quando se faz datar seu nascimento dos novos códigos A formaprisão preexiste à sua utilização sistemática nas leis penais Ela se constituiu fora do aparelho judiciário quando se elaboraram por todo o corpo social os processos para repartir os indivíduos fixálos e distribuílos espacialmente classificálos tirar deles o máximo de tempo e o máximo de forças treinar seus corpos codificar seu comportamento contínuo mantêlos numa visibilidade sem lacuna formar em torno deles um aparelho completo de observação registro e notações constituir sobre eles um saber que se acumula e se centraliza A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis através de um trabalho preciso sobre seu corpo criou a instituiçãoprisão antes que a lei a definisse como a pena por excelência No fim do século XVIII e princípio do século XIX se dá a passagem a uma penalidade de detenção é verdade e era coisa nova Mas era na verdade abertura da penalidade a mecanismos de coerção já elaborados em outros lugares Os modelos da detenção penal Gand Gloucester Walnut Street marcam os primeiros pontos visíveis dessa transição mais que inovações ou pontos de partida A prisão peça essencial no conjunto das punições marca certamente um momento importante na história da justiça penal seu acesso à humanidade Mas também um momento importante na história desses mecanismos disciplinares que o novo poder de classe estava desenvolvendo o momento em que aqueles colonizam a instituição judiciária Na passagem dos dois séculos uma nova legislação define o poder de punir como uma função geral da sociedade que é exercida da mesma maneira sobre todos os seus membros e na qual cada um deles é igualmente representado mas ao fazer da detenção a pena por excelência ela introduz processos de dominação característicos de um tipo particular de poder Uma justiça que se diz igual um aparelho judiciário que se pretende autônomo mas que é investido pelas assimetrias das sujeições disciplinares tal é a conjunção do nascimento da prisão pena das sociedades civilizadas1 Podese compreender o caráter de obviedade que a prisãocastigo muito cedo assumiu Desde os primeiros anos do século XIX terseá ainda consciência de sua novidade e entretanto ela surgiu tão ligada e em profundidade com o próprio funcionamento da sociedade que relegou ao esquecimento todas as outras punições que os reformadores do século XVIII haviam imaginado Pareceu sem alternativa e levada pelo próprio movimento da história Não foi o acaso não foi o capricho do legislador que fizeram do encarceramento a base e o edifício quase inteiro de nossa escala penal atual foi o progresso das idéias e a educação dos costumes2 E se em pouco mais de um século o clima de obviedade se transformou não desapareceu Conhecemse todos os inconvenientes da prisão e sabese que é perigosa quando não inútil E entretanto não vemos o que pôr em seu lugar Ela é a detestável solução de que não se pode abrir mão Essa obviedade da prisão de que nos destacamos tão mal se fundamenta em primeiro lugar na forma simples da privação de liberdade Como não seria a prisão a pena por excelência numa sociedade em que a liberdade é um bem que pertence a todos da mesma maneira e ao qual cada um está ligado por um sentimento universal e constante3 Sua perda tem portanto o mesmo preço para todos melhor que a multa ela é o castigo igualitário Clareza de certo modo jurídica da prisão Além disso ela permite quantificar exatamente a pena segundo a variável do tempo Há uma formasalário da prisão que constitui nas sociedades industriais sua obviedade econômica E permite que ela pareça como uma reparação Retirando tempo do condenado a prisão parece traduzir concretamente a idéia de que a infração lesou mais além da vítima a sociedade inteira Obviedade econômico moral de uma penalidade que contabiliza os castigos em dias em meses em anos e estabelece equivalências quantitativas delitosduração Daí a expressão tão freqüente e que está tão de acordo com o funcionamento das punições se bem que contrária à teoria estrita do direito penal de que a pessoa está na prisão para pagar sua dívida A prisão é natural como é natural na nossa sociedade o uso do tempo para medir as trocas4 Mas a obviedade da prisão se fundamenta também em seu papel suposto ou exigido de aparelho para transformar os indivíduos Como não seria a prisão imediatamente aceita pois se só o que ela faz ao encarcerar ao retreinar ao tornar dócil é reproduzir podendo sempre acentuálos um pouco todos os mecanismos que encontramos no corpo social A prisão um quartel um pouco estrito uma escola sem indulgência uma oficina sombria mas levando ao fundo nada de qualitativamente diferente Esse duplo fundamento jurídicoeconômico por um lado técnicodisciplinar por outro fez a prisão aparecer como a forma mais imediata e mais civilizada de todas as penas E foi esse duplo funcionamento que lhe deu imediata solidez Uma coisa com efeito é clara a prisão não foi primeiro uma privação de liberdade a que se teria dado em seguida uma função técnica de correção ela foi desde o início uma detenção legal encarregada de um suplemento corretivo ou ainda uma empresa de modificação dos indivíduos que a privação de liberdade permite fazer funcionar no sistema legal Em suma o encarceramento penal desde o início do século XIX recobriu ao mesmo tempo a privação de liberdade e a transformação técnica dos indivíduos Lembremos um certo número de fatos Nos códigos de 1808 e de 1810 e nas medidas que os seguiram ou os precederam imediatamente o encarceramento nunca se confunde com a simples privação de liberdade É ou deve ser em todo caso um mecanismo diferenciado e finalizado Diferenciado pois não deve ter a mesma forma consoante se trate de um indiciado ou de um condenado de um contraventor ou de um criminoso cadeia casa de correção penitenciária devem em princípio corresponder mais ou menos a essas diferenças e realizar um castigo não só graduado em intensidade mas diversificado em seus objetivos Pois a prisão tem um fim apresentado de saída Como a lei inflige penas umas mais graves que outras não pode permitir que o indivíduo condenado a penas leves se encontre preso no mesmo local que o criminoso condenado a penas mais graves se a pena infligida pela lei tem como objetivo principal a reparação do crime ela pretende também que o culpado se emende5 E devese requerer essa transformação aos efeitos internos do encarceramento Prisãocastigo prisãoaparelho A ordem que deve reinar nas cadeias pode contribuir fortemente para regenerar os condenados os vícios da educação o contágio dos maus exemplos a ociosidade originaram crimes Pois bem tentemos fechar todas essas fontes de corrupção que sejam praticadas regras de sã moral nas casas de detenção que obrigados a um trabalho de que terminarão gostando quando dele recolherem o fruto os condenados contraiam o hábito o gosto e a necessidade da ocupação que se dêem respectivamente o exemplo de uma vida laboriosa ela logo se tornará uma vida pura logo começarão a lamentar o passado primeiro sinal avançado de amor pelo dever6 As técnicas corretivas imediatamente fazem parte da armadura institucional da detenção penal Devemos lembrar também que o movimento para reformar as prisões para controlar seu funcionamento não é um fenômeno tardio Não parece sequer ter nascido de um atestado de fracasso devidamente lavrado A reforma da prisão é mais ou menos contemporânea da própria prisão Ela é como que seu programa A prisão se encontrou desde o início engajada numa série de mecanismos de acompanhamento que aparentemente devem corrigila mas que parecem fazer parte de seu próprio funcionamento de tal modo têm estado ligados a sua existência em todo o decorrer de sua história Houve imediatamente uma tecnologia loquaz da prisão Inquéritos o de Chaptal já em 1801 quando se tratava de fazer o levantamento do que se podia utilizar para implantar na França o aparelho carcerário a de Decazes em 1819 o livro de Villermé publicado em 1820 o relatório sobre as penitenciárias preparado por Martignac em 1829 os inquéritos conduzidos nos Estados Unidos por Beaumont de Tocqueville em 1831 por Demetz e Blouet em 1835 os questionários dirigidos por Montalivet aos diretores de penitenciárias e aos conselhos gerais quando se está em pleno debate sobre o isolamento dos detentos Sociedades para controlar o funcionamento das prisões e propor sua melhora em 1818 é a muito oficial Sociedade para a melhoria das prisões um pouco mais tarde a sociedade das prisões e diversos grupos filantrópicos Inúmeras providências portarias instruções ou leis desde a reforma que a primeira Restauração havia previsto logo no mês de setembro de 1814 e que nunca foi aplicada até à lei de 1844 preparada por Tocqueville e que por algum tempo encerrou um longo debate sobre os meios de tornar eficaz a prisão Programas para assegurar o funcionamento da máquinaprisão7 programas de tratamento para os detentos modelos de arranjo material alguns permanecendo puros projetos como os de Danjou de Blouet de HarouRomain outros tomando forma em instruções como a circular de 9 de agosto de 1841 sobre as construções das cadeias outras tornandose arquiteturas muito reais como a Petite Roquette onde pela primeira vez na França foi organizado o encarceramento celular A que se devem ainda acrescentar as publicações mais ou menos diretamente saídas da prisão e redigidas ou por filantropos como appert ou um pouco mais tarde por especialistas assim como os Annales de la Charité8 ou ainda por antigos detentos Pauvre Jacques no fim da Restauração ou a Gazette de SaintePélagie no começo da monarquia de julho9 A prisão não deve ser vista como uma instituição inerte que volta e meia teria sido sacudida por movimentos de reforma A teoria da prisão foi seu modo de usar constante mais que sua crítica incidente uma de suas condições de funcionamento A prisão fez sempre parte de um campo ativo onde abundaram os projetos os remanejamentos as experiências os discursos teóricos os testemunhos os inquéritos Em torno da instituição carcerária toda uma prolixidade todo um zelo A prisão região sombria e abandonada O simples fato de que não se pare de dizêlo há cerca de dois séculos prova que ela não o era Ao se tornar punição legal ela carregou a velha questão jurídicopolítica do direito de punir com todos os problemas todas as agitações que surgiram em torno das tecnologias corretivas do indivíduo Instituições completas e austeras dizia Baltard10 A prisão deve ser um aparelho disciplinar exaustivo Em vários sentidos deve tomar a seu cargo todos os aspectos do indivíduo seu treinamento físico sua aptidão para o trabalho seu comportamento cotidiano sua atitude moral suas disposições a prisão muito mais que a escola a oficina ou o exército que implicam sempre numa certa especialização é onidisciplinar Além disso a prisão é sem exterior nem lacuna não se interrompe a não ser depois de terminada totalmente sua tarefa sua ação sobre o indivíduo deve ser ininterrupta disciplina incessante Enfim ela dá um poder quase total sobre os detentos tem seus mecanismos internos de repressão e de castigo disciplina despótica Leva à mais forte intensidade todos os processos que encontramos nos outros dispositivos de disciplina Ela tem que ser a maquinaria mais potente para impor uma nova forma ao indivíduo pervertido seu modo de ação é a coação de uma educação total Na prisão o governo pode dispor da liberdade da pessoa e do tempo do detento a partir daí concebese a potência da educação que não em só um dia mas na sucessão dos dias e mesmo dos anos pode regular para o homem o tempo da vigília e do sono da atividade e do repouso o número e a duração das refeições a qualidade e a ração dos alimentos a natureza e o produto do trabalho o tempo da oração o uso da palavra e por assim dizer até o do pensamento aquela educação que nos simples e curtos trajetos do refeitório à oficina da oficina à cela regula os movimentos do corpo e até nos momentos de repouso determina o horário aquela educação em uma palavra que se apodera do homem inteiro de todas as faculdades físicas e morais que estão nele e do tempo em que ele mesmo está11 Esse reformatório integral prescreve uma recodificação da existência bem diferente da pura privação jurídica de liberdade e bem diferente também da simples mecânica de representações com que sonhavam os reformadores na época da Ideologia 1 Primeiro princípio o isolamento Isolamento do condenado em relação ao mundo exterior a tudo o que motivou a infração às cumplicidades que a facilitaram Isolamento dos detentos uns em relação aos outros Não somente a pena deve ser individual mas também individualizante E isso de duas maneiras Em primeiro lugar a prisão deve ser concebida de maneira a que ela mesma apague as conseqüências nefastas que atrai ao reunir num mesmo local condenados muito diversos abafar os complôs e revoltas que se possam formar impedir que se formem cumplicidades futuras ou nasçam possibilidades de chantagem no dia em que os detentos se encontrarem livres criar obstáculo à imoralidade de tantas associações misteriosas Enfim que a prisão não forme a partir dos malfeitores que reúne uma população homogênea e solidária Existe entre nós neste momento uma sociedade organizada de criminosos formam uma pequena nação no seio da grande Quase todos esses homens se conheceram nas prisões ou nelas se encontram São os membros dessa sociedade que importa hoje dispersar12 Além disso a solidão deve ser um instrumento positivo de reforma Pela reflexão que suscita e pelo remorso que não pode deixar de chegar jogado na solidão o condenado reflete Colocado a sós em presença de seu crime ele aprende a odiálo e se sua alma ainda não estiver empedernida pelo mal é no isolamento que o remorso virá assaltalo13 Pelo fato também de que a solidão realiza uma espécie de autoregulação da pena e permite uma como que individualização espontânea do castigo quanto mais o condenado é capaz de refletir mais ele foi culpado de cometer seu crime mas mais também o remorso será vivo e a solidão dolorosa em compensação quando estiver profundamente arrependido e corrigido sem a menor dissimulação a solidão não lhe será mais pesada Assim segundo essa admirável disciplina cada inteligência e cada moralidade levam em si mesmas o princípio e a medida de uma repressão cuja certeza e invariável eqüidade não poderiam ser alteradas pelo erro e pela falibilidade humanas Não é em verdade como o selo de uma justiça divina e providencial14 Enfim e talvez principalmente o isolamento dos condenados garante que se possa exercer sobre eles com o máximo de intensidade um poder que não será abalado por nenhuma outra influência a solidão é a condição primeira da submissão total Imaginese dizia Charles Lucas evocando o papel do diretor do professor do sacerdote e das pessoas caridosas sobre o detento isolado imaginese a força da palavra humana que intervém no meio da terrível disciplina do silêncio para falar ao coração à alma à pessoa humana15 O isolamento assegura o encontro do detento a sós com o poder que se exerce sobre ele É nesse ponto que se situa a discussão sobre os dois sistemas americanos de encarceramento o de Auburn e o de Filadélfia Na realidade essa discussão que ocupa tanto lugar16 só se refere à realização de um isolamento admitido por todos O modelo de Auburn prescreve a cela individual durante a noite o trabalho e as refeições em comum mas sob a regra do silêncio absoluto os detentos só podendo falar com os guardas com a permissão destes e em voz baixa Referência clara tomada ao modelo monástico referência também tomada à disciplina de oficina A prisão deve ser um microcosmo de uma sociedade perfeita onde os indivíduos estão isolados em sua existência moral mas onde sua reunião se efetua num enquadramento hierárquico estrito sem relacionamento lateral só se podendo fazer comunicação no sentido vertical Vantagem do sistema auburniano segundo seus partidários é uma repetição da própria sociedade A coação é assegurada por meios materiais mas sobretudo por uma regra que se tem que aprender a respeitar e é garantida por uma vigilância e punições Mais que manter os condenados a sete chaves como uma fera em sua jaula devese associálo aos outros fazêlos participar em comum de exercícios úteis obrigálos em comum a bons hábitos prevenindo o contágio moral por uma vigilância ativa e mantendo o recolhimento pela regra do silêncio Esta regra habitua o detendo a considerar a lei como um preceito sagrado cuja infração acarreta um mal justo e legítimo17 Assim esse jogo do isolamento da reunião sem comunicação e da lei garantida por um controle ininterrupto deve requalificar o criminoso como indivíduo social ele o treina para uma atividade útil e resignada18 devolvelhe hábitos de sociabilidade19 No isolamento absoluto como em Filadélfia não se pede a requalificação do criminoso ao exercício de uma lei comum mas à relação do indivíduo com sua própria consciência e com aquilo que pode iluminálo de dentro20 Sozinho em sua cela o detento está entregue a si mesmo no silêncio de suas paixões e do mundo que o cerca ele desce à sua consciência interrogaa e sente despertar em si o sentimento moral que nunca perece inteiramente no coração do homem21 Não é portanto um respeito exterior pela lei ou apenas o receio da punição que vai agir sobre o detento mas o próprio trabalho de sua consciência Antes uma submissão profunda que um treinamento superficial uma mudança de moralidade e não de atitude Na prisão pensilvaniana as únicas operações da correção são a consciência e a arquitetura muda contra a qual ela esbarra Em Cherry Hill os muros são a punição do crime a cela põe o detento em presença de si mesmo ele é forçado a ouvir sua consciência Donde o fato de que o trabalho é aí antes um consolo que uma obrigação que os vigias não têm que exercer uma coação que é realizada pela materialidade das coisas e que sua autoridade conseqüentemente pode ser aceita A cada visita algumas palavras benevolentes saem dessa boca honesta e levam ao coração do detento junto com o reconhecimento a esperança e o consolo ele ama seu guarda e o ama porque este é suave e tem compaixão Os muros são terríveis e o homem é bom22 Nessa cela fechada sepulcro provisório facilmente crescem os mitos da ressurreição Depois da noite e do silêncio a vida regenerada Auburn era a própria vida renovada em seus vigores essenciais Cherry Hill a vida aniquilada e recomeçada O catolicismo recupera rapidamente em seus discursos essa técnica quaker Só vejo em vossa cela um horroroso sepulcro no qual em lugar dos vermes os remorsos e o desespero avançam em vossa direção para roervos e fazer de vossa existência um inferno antecipado Mas aquilo que para o prisioneiro sem religião não passa de uma tumba um ossário repulsivo tornase para o detento sinceramente cristão o próprio berço da imortalidade bemaventurada23 Na oposição entre esses dois modelos veio se fixar toda uma série de conflitos diferentes religioso deve a conversão ser a peça principal da correção médico o isolamento completo enlouquece econômico onde está o menor custo arquitetural e administrativo qual é a forma que garante a melhor vigilância Donde sem dúvida o tamanho da polêmica Mas no centro das discussões e tornandoas possíveis este objetivo primeiro da ação carceral a individualização coercitiva pela ruptura de qualquer relação que não seja controlada pelo poder ou ordenada de acordo com a hierarquia 2 O trabalho que se alterna com as refeições acompanha o detento até à oração da noite então um novo sono lhe dá um repouso agradável que não vem perturbar os fantasmas de uma imaginação desregrada Assim se passam seis dias da semana São seguidos por um dia exclusivamente consagrado à oração à instrução e a meditações salutares É assim que se sucedem e se substituem as semanas os meses os anos assim o prisioneiro que em sua entrada para o estabelecimento era um homem inconstante ou que só tinha convicção de sua irregularidade procurando destruir sua existência pela variedade de seus vícios tornase pouco a pouco pela força de um hábito inicialmente puramente exterior mas logo transformado em segunda natureza tão familiarizado com o trabalho e os gozos dele decorrentes que por pouco que uma instrução sábia tenha aberto sua alma ao arrependimento ele poderá ser exposto com mais confiança às tentações que lhe serão trazidas pela recuperação de sua liberdade24 O trabalho é definido junto com o isolamento como um agente da transformação carcerária E isso desde o código de 1808 Se a pena infligida pela lei tem por objetivo a reparação do crime ela pretende também que o culpado se emende e esse duplo objetivo será cumprido se o malfeitor for arrancado a essa ociosidade funesta que tendoo atirado à prisão aí viria encontrálo de novo e dele se apoderar para conduzilo ao último grau da depravação25 O trabalho não é nem uma adição nem um corretivo ao regime de detenção quer se trate de trabalhos forçados da reclusão do encarceramento é concebido pelo próprio legislador como tendo que acompanhála necessariamente Mas uma necessidade que justamente não é aquela de que falavam os reformadores do século XVIII quando queriam fazer da prisão ou um exemplo para o público ou uma reparação útil para a sociedade No regime carcerário a ligação do trabalho e da punição é de outro tipo Várias polêmicas surgidas na Restauração ou durante a monarquia de julho esclarecem a função que se empresta ao trabalho penal Discussão em primeiro lugar sobre o salário O trabalho dos detentos era remunerado na França Problema se uma retribuição recompensa o trabalho em prisão é porque esta não faz realmente parte da pena e o detento pode então recusálo Além disso o benefício recompensa a habilidade do operário e não a regeneração do culpado Os piores elementos são quase em toda parte os mais hábeis operários são os mais retribuídos conseqüentemente os mais intemperantes e os menos aptos ao arrependimento26 A discussão que nunca se encerrou totalmente recomeça e muito vivamente nos anos 18401845 época de crise econômica época de agitação operária época também em que começa a se cristalizar a oposição do operário e do delinqüente27 Há greves contra as oficinas de prisão quando um fabricante de luvas de Chaumont arranja para organizar uma oficina em Clairvaux os operários protestam declaram que seu trabalho está desonrado ocupam a manufatura e forçam o patrão a renunciar a seu projeto28 Há também uma campanha de imprensa nos jornais operários sobre o tema de que o governo favorece o trabalho penal para fazer baixar os salários livres sobre o tema de que os inconvenientes dessas oficinas de prisão são ainda mais graves para as mulheres a quem eles retiram o trabalho levandoas à prostituição portanto à prisão onde essas mesmas mulheres que não podiam mais trabalhar quando eram livres vêm então fazer concorrência às que ainda têm serviço29 sobre o tema de que se reservam aos detentos os trabalhos mais seguros os ladrões vivendo em prisões bem aquecidas e bem abrigados executam os trabalhos de chapelaria e de marcenaria enquanto o chapeleiro reduzido ao desemprego tem que ir ao abatedouro humano fabricar alvaiade a 2 francos por dia30 sobre o tema de que a filantropia dá muita importância às condições de trabalho dos detentos mas negligencia as do trabalhador livre Temos certeza de que se os prisioneiros trabalhassem com mercúrio por exemplo a ciência seria bem mais rápida do que é para encontrar meios de preservar os trabalhadores do perigo de suas emanações Esses pobres condenados diria aquele que quase não fala dos operários douradores Que se há de fazer é preciso ter matado ou roubado para atrair a compaixão ou o interesse dos outros Sobre o tema principalmente de que se a prisão tender a se tornar uma oficina logo para lá serão enviados os mendigos e os desempregados reconstituindo assim os velhos hospitais gerais da França ou as workhouses da Inglaterra31 Houve ainda principalmente depois da votação da lei de 1844 petições e cartas uma petição é recusada pela Câmara de Paris que achou desumano que se propusesse empregar assassinos ladrões em trabalhos que pertencem agora a alguns milhares de operários a Câmara preferiu Barrabás a nós32 operários tipógrafos enviam uma carta ao ministro ao tomarem conhecimento de que foi instalada uma gráfica na Central de Melun Tendes a escolher entre reprovados justamente atingidos pela lei e cidadãos que sacrificam seus dias na abnegação e na probidade à existência de suas famílias tanto quanto à riqueza da pátria33 Ora a toda essa campanha as respostas dadas pelo governo e pela admi nistração são muito constantes O trabalho penal não pode ser criticado pelo desemprego que provocaria com sua parca extensão seu fraco rendimento ele não pode ter incidência geral sobre a economia Não é como atividade de produção que ele é intrinsecamente útil mas pelos efeitos que toma na mecânica humana É um princípio de ordem e de regularidade pelas exigências que lhe são próprias veicula de maneira insensível as formas de um poder rigoroso sujeita os corpos a movimentos regulares exclui a agitação e a distração impõe uma hierarquia e uma vigilância que serão ainda mais bem aceitas e penetrarão ainda mais profundamente no comportamento dos condenados por fazerem parte de sua lógica com o trabalho a regra é introduzida numa prisão ela reina sem esforço sem emprego de nenhum meio repressivo e violento Ocupandose o detento sãolhe dados hábitos de ordem e de obediência tornamolo diligente e ativo de preguiçoso que era com o tempo ele encontra no movimento regular da casa nos trabalhos manuais a que foi submetido um remédio certo contra os desvios de sua imaginação34 O trabalho penal deve ser concebido como sendo por si mesmo uma maquinaria que transforma o prisioneiro violento agitado irrefletido em uma peça que desempenha seu papel com perfeita regularidade A prisão não é uma oficina ela é ela tem que ser em si mesma uma máquina de que os detentosoperários são ao mesmo tempo as engrenagens e os produtos ela os ocupa e isso continuamente mesmo se fora com o único objetivo de preencher seus momentos Quando o corpo se agita quando o espírito se aplica a um objeto determinado as idéias importunas se afastam a calma renasce na alma35 Se no fim das contas o trabalho da prisão tem um efeito econômico é produzindo indivíduos mecanizados segundo as normas gerais de uma sociedade industrial O trabalho é a providência dos povos modernos servelhes como moral preenche o vazio das crenças e passa por ser o princípio de todo bem O trabalho devia ser a religião das prisões A uma sociedademáquina seriam necessárias meios de reforma puramente mecânicas36 Fabricação de indivíduosmáquinas mas também de proletários efetivamente quando o homem possui apenas os braços como bens só poderá viver do produto de seu trabalho pelo exercício de uma profissão ou do produto do trabalho alheio pelo ofício do roubo ora se a prisão não obrigasse os malfeitores ao trabalho ela reproduziria em sua própria instituição pelo fisco essa vantagem de uns sobre o trabalho de outros A questão da ociosidade é a mesma que na sociedade é do trabalho dos outros que têm que viver os detentos se não vivem do seu próprio37 O trabalho pelo qual o condenado atende a suas próprias necessidades requalifica o ladrão em operário dócil E é nesse ponto que intervém a utilidade de uma retribuição pelo trabalho penal ela impõe ao detento a forma moral do salário como condição de sua existência O salário faz com que se adquira amor e hábito ao trabalho38 dá a esses malfeitores que ignoram a diferença entre o meu e o teu o sentido da propriedade daquela que se ganhou com o suor do rosto39 ensina lhes também a eles que viveram na dissipação o que é a previdência a poupança o cálculo do futuro40 enfim propondo uma medida do trabalho feito permite avaliar quantitativamente o zelo do detento e os progressos de sua regeneração41 O salário do trabalho penal não retribui uma produção funciona como motor e marca transformações individuais uma ficção jurídica pois não representa a livre cessão de uma força de trabalho mas um artifício que se supõe eficaz nas técnicas de correção A utilidade do trabalho penal Não é um lucro nem mesmo a formação de uma habilidade útil mas a constituição de uma relação de poder de uma forma econômica vazia de um esquema da submissão individual e de seu ajustamento a um aparelho de produção Imagem perfeita do trabalho de prisão a oficina de mulheres em Clairvaux a exatidão silenciosa da maquinaria humana atinge aí o rigor regulamentar do convento Num púlpito acima do qual há um crucifixo está sentada uma freira diante dela e alinhadas em duas fileiras as prisioneiras efetuam a tarefa que lhes é imposta e como domina quase exclusivamente o trabalho de agulha resulta que o mais rigoroso silêncio é constantemente mantido Parece que nessas salas tudo respira a penitência e a expiação Ocorrenos como por um movimento espontâneo os tempos dos veneráveis hábitos desta tão antiga habitação lembranos os penitentes voluntários que aqui se fechavam para dizer adeus ao mundo42 3 Mas a prisão excede a simples privação de liberdade de uma maneira mais importante Ela tende a tornarse um instrumento de modulação da pena um aparelho que através da execução da sentença de que está encarregado teria o direito de retomar pelo menos em parte seu princípio É claro que esse direito não foi recebido pela instituição carcerária no século XIX nem mesmo ainda no XX salvo sob uma forma fragmentária por via das liberações condicionais das semiliberdades da organização das centrais de reforma Mas devese notar que foi muito cedo reclamado pelos responsáveis pela administração penitenciária como a própria condição de um bom funcionamento da prisão e de sua eficácia nessa tarefa de regeneração que a própria justiça lhe confia Assim para a duração do castigo ela permite quantificar exatamente as penas graduálas segundo as circunstâncias e dar ao castigo legal a forma mais ou menos explícita de um salário mas corre o risco de não ter valor corretivo se for fixada em caráter definitivo ao nível do julgamento A extensão da pena não deve medir o valor de troca da infração ela deve se ajustar à transformação útil do detento no decorrer de sua condenação Não um tempomedida mas um tempo com meta prefixada Mais que a forma do salário a forma da operação Do mesmo modo que o médico prudente pára a medicação ou continua com ela conforme o doente tenha ou não chegado à cura perfeita assim também na primeira dessas duas hipóteses a expiação deveria cessar diante da regeneração completa do condenado pois nesse caso qualquer detenção se terá tornado inútil e portanto tão desumana para com o regenerado quanto inútil e onerosa para o Estado43 A justa duração da pena deve portanto variar não só com o ato e suas circunstâncias mas com a própria pena tal como ela se desenrola concretamente O que eqüivale a dizer que se a pena deve ser individualizada não é a partir do indivíduoinfrator sujeito jurídico de seu ato autor responsável do delito mas a partir do indivíduo punido objeto de uma matéria controlada de transformação o indivíduo em detenção inserido no aparelho carcerário modificado por este ou a ele reagindo O importante é apenas reformar o mau Uma vez operada essa reforma o criminoso deve voltar à sociedade44 A qualidade e o conteúdo da infração não deveriam tampouco ser determinados só pela natureza da infração A gravidade jurídica de um crime não tem absolutamente valor de sinal unívoco para o caráter corrigível ou não do condenado Particularmente a distinção crimecontravenção a que o código faz corresponder a distinção entre prisão e reclusão ou trabalhos forçados não é operatória em termos de regeneração É a opinião quase geral formulada pelos diretores de penitenciárias quando de uma pesquisa feita pelo ministério em 1836 Os contraventores são em geral os mais viciosos Entre os criminosos encontram se muitos homens que sucumbiram à violência de suas paixões e às necessidades de uma família numerosa O comportamento dos criminosos é bem melhor que o dos contraventores os primeiros são mais submissos mais laboriosos que os últimos que são em geral ladinos devassos preguiçosos45 Donde a idéia de que o rigor punitivo não deve estar em proporção direta com a importância penal do ato condenado Nem determinado de uma vez por todas Operação corretora o encarceramento tem suas exigências e peripécias próprias Seus efeitos é que devem determinar suas etapas agravações temporárias atenuações sucessivas o que Charles Lucas chamava a classificação móvel das moralidades O sistema progressivo aplicado em Genebra desde 182546 foi muitas vezes reclamado na França Sob a forma por exemplo dos três setores o de prova para a generalidade dos detentos o setor de punição e o setor de recompensa para os que estão no caminho da melhora47 Ou sob a forma das quatro fases período de intimidação privação de trabalho e de qualquer relação interior ou exterior período de trabalho isolamento mas trabalho que depois da fase de ociosidade forçada seria acolhido como um benefício regime de moralização conferências mais ou menos freqüentes com os diretores e os visitantes oficiais período de trabalho em comum48 Se o princípio da pena é sem dúvida uma decisão de justiça sua gestão sua qualidade e seus rigores devem pertencer a um mecanismo autônomo que controla os efeitos da punição no próprio interior do aparelho que os produz Todo um regime de punições e de recompensas que não é simplesmente uma maneira de fazer respeitar o regulamento da prisão mas de tornar efetiva a ação da prisão sobre os detentos Acontece que a própria autoridade judiciária o reconheça Não devemos dizia a Corte de Cassação consultada a respeito do projeto de lei sobre as prisões nos espantar com a idéia de conceder recompensas que poderão consistir seja num pecúlio maior seja num melhor regime alimentar seja mesmo em abreviações de pena Se alguma coisa há que possa despertar no espírito dos condenados as noções de bem e de mal leválos a considerações morais e eleválos um pouco a seus próprios olhos é a possibilidade de conseguir alguma recompensa49 E para todos esses atos que retificam a pena à medida que ela se desenrola é forçoso admitir que as instâncias judiciárias não podem ter autoridade imediata Tratase com efeito de medidas que por definição só poderiam intervir depois do julgamento e só podem agir sobre as coisas que não sejam infrações Autonomia indispensável por conseguinte do pessoal que gere a detenção quando importa individualizar e variar a aplicação da pena fiscais um diretor de estabelecimento um sacerdote ou um professor são mais capazes de exercer essa função corretiva que os detentores do poder penal É seu julgamento entendido como constatação diagnóstico caracterização precisão classificação diferencial e não mais um veredicto em forma de determinação de culpa que deve servir de suporte a essa modulação interna da pena a sua atenuação ou mesmo a sua interrupção Quando Bonneville em 1846 apresentou seu projeto de liberdade condicional ele a definiu como o direito que teria a administração com opinião favorável da autoridade judiciária de pôr em liberdade provisória depois de um tempo suficiente de expiação e mediante certas condições o condenado completamente regenerado com a possibilidade de reintegrálo à prisão à mínima queixa fundamentada50 Todo aquele arbitrário que no antigo regime penal permitia aos juizes modular a pena e aos príncipes eventualmente dar fim a ela todo aquele arbitrário que os códigos modernos retiraram do poder judiciário vemolo se reconstituir progressivamente do lado do poder que gere e controla a punição Soberania sábia do guardião Verdadeiro magistrado chamado a reinar soberanamente na casa e que deve para não estar abaixo de sua missão unir à mais eminente virtude uma ciência profunda dos homens51 E chegamos formulado claramente por Charles Lucas a um princípio que bem poucos juristas ousariam hoje admitir sem reticências se bem que ele marque a direção essencial do funcionamento penal moderno chamemolo a Declaração de Independência carcerária que reivindica o direito de ser um poder que tem não somente sua autonomia administrativa mas como que uma parte da soberania punitiva Essa afirmação dos direitos da prisão coloca em princípio que o julgamento criminal é uma unidade arbitrária que tem que ser decomposta que os redatores dos códigos já tiveram razão de distinguir o nível legislativo que classifica os atos e lhes atribui as penas e o nível do julgamento que exara as sentenças que a tarefa hoje é analisar por sua vez esse último nível que é preciso distinguir nele o que é propriamente judiciário apreciar menos os atos que os agentes medir as intencionalidades que dão aos atos humanos tantas moralidades diversas e portanto retificar se possível as avaliações do legislador e dar autonomia ao julgamento penitenciário o que é talvez o mais importante em relação a ele a avaliação do tribunal não passa de uma maneira de prejulgar pois a moralidade do agente só pode ser apreciada quando posta à prova O juiz precisa portanto por sua vez de um controle necessário e retificativo de suas avaliações e é esse controle que a prisão penitenciária deve fornecer52 Podese portanto falar de um excesso ou de uma série de excessos do encarceramento em relação à detenção legal do carcerário em relação ao judiciário Ora esse excesso é desde muito cedo constatado desde o nascimento da prisão seja sob a forma de práticas reais seja sob a forma de projetos Ele não veio em seguida como um efeito secundário A grande maquinaria carcerária está ligada ao próprio funcionamento da prisão Podemos bem ver o sinal dessa autonomia nas violências inúteis dos guardas ou no despotismo de uma administração que tem os privilégios das quatro paredes Sua raiz está em outra parte no fato justamente de que se pede à prisão que seja útil no fato de que a privação de liberdade essa retirada jurídica sobre um bem ideal teve desde o início que exercer um papel técnico positivo realizar transformações nos indivíduos E para essa operação o aparelho carcerário recorreu a três grandes esquemas o esquema políticomoral do isolamento individual e da hierarquia o modelo econômico da força aplicada a um trabalho obrigatório o modelo técnicomédico da cura e da normalização A cela a oficina o hospital A margem pela qual a prisão excede a detenção é preenchida de fato por técnicas de tipo disciplinar E esse suplemento disciplinar em relação ao jurídico é a isso em suma que se chama o penitenciário Este acréscimo não foi aceito sem problemas Questão que foi primeiro de princípio a pena não deve ser mais nada além da privação da liberdade como nossos atuais governantes Decazes o dizia mas com o brilho de sua linguagem A lei deve seguir o culpado à prisão onde o levou53 Mas rapidamente e isso é um fato característico esses debates se tornarão batalha para a apropriação do controle desse suplemento penitenciário os juizes pedirão direito de vista sobre os mecanismos carcerários A moralização dos detentos exige numerosos cooperadores só com visitas de inspeção comissões de fiscalização sociedades patrocinadoras ela pode se realizar Precisa então de auxiliares e é a magistratura que deve fornecêlos54 Desde aquela época a ordem penitenciária adquiria consistência bastante para que se pudesse procurar não desfazêla mas tomála a seu cargo Eis então o juiz assaltado pelo desejo da prisão Disso nascerá um século depois um filho bastardo e entretanto disforme o juiz da aplicação das penas Mas se o penitenciário em seu excesso em relação à detenção pôde de fato se impor bem mais apanhar toda a justiça penal e trancar os próprios juizes é porque ele conseguiu introduzir a justiça criminal em relações de saber que agora se tornaram para ela seu labirinto infinito A prisão local de execução da pena é ao mesmo tempo local de observação dos indivíduos punidos Em dois sentidos Vigilância é claro Mas também conhecimento de cada detento de seu comportamento de suas disposições profundas de sua progressiva melhora as prisões devem ser concebidas como um local de formação para um saber clínico sobre os condenados o sistema penitenciário não pode ser uma concepção a priori é uma indução do estado social Há doenças morais assim como acidentes da saúde em que o tratamento depende do foco e da direção do mal55 O que implica em dois dispositivos essenciais É preciso que o prisioneiro possa ser mantido sob um olhar permanente é preciso que sejam registradas e contabilizadas todas as anotações que se possa tomar sobre eles O tema do Panóptico ao mesmo tempo vigilância e observação segurança e saber individualização e totalização isolamento e transparência encontrou na prisão seu local privilegiado de realização Se é verdade que os processos panópticos como formas concretas de exercício do poder tiveram pelo menos em estado disperso larga difusão foi só nas instituições penitenciárias que a utopia de Bentham pôde num bloco tomar forma material O Panóptico tornouse por volta dos anos 1830 1840 o programa arquitetural da maior parte dos projetos de prisão Era a maneira mais direta de traduzir na pedra a inteligência da disciplina56 de tornar a arquitetura transparente à gestão do poder57 de permitir que a força ou as coações violentas fossem substituídas pela eficácia suave de uma vigilância sem falha de ordenar o espaço segundo a recente humanização dos códigos e a nova teoria penitenciária A autoridade por um lado e o arquiteto por outro têm que saber se as prisões devem ser combinadas no sentido da suavização das penas ou num sistema de regeneração dos culpados e em conformidade com uma legislação que remontando à origem dos vícios do povo se torna um princípio regenerador das virtudes que este deve praticar58 No total constituir uma prisãomáquina59 com uma cela de visibilidade onde o detento se encontrará preso como na casa de vidro do filósofo grego60 e um ponto central de onde um olhar permanente possa controlar ao mesmo tempo os prisioneiros e o pessoal Em torno dessas duas exigências muitas variações possíveis o Panóptico benthamiano em sua forma estrita ou em semicírculo ou em forma de cruz ou a disposição em estrela61 No meio de todas essas discussões o ministro do Interior em 1841 lembra os princípios fundamentais A sala central de inspeção é o eixo do sistema Sem ponto central de inspeção a vigilância deixa de ser assegurada contínua e geral pois é impossível ter inteira confiança na atividade no zelo e na inteligência do preposto que vigia imediatamente as celas O arquiteto deve então colocar toda a sua atenção nesse objeto há aí ao mesmo tempo uma questão de disciplina e de economia Quanto mais for exata e fácil a vigilância menos será necessário procurar na força dos edifícios garantias contra as tentativas de evasão e contra as comunicações dos detentos entre si Ora a vigilância será perfeita se de uma sala central o diretor ou o preposto em chefe sem mudar de lugar vê sem ser visto não só a entrada de todas as celas e até o interior do maior número de celas quando a porta está toda aberta mas ainda os vigias destacados à guarda dos prisioneiros em todos os andares com a fórmula das prisões circulares ou semicirculares seria aparentemente possível ver de um centro único todos os prisioneiros em suas celas e os guardas nas galerias de vigilância62 Mas o Panóptico penitenciário é também um sistema de documentação individualizante e permanente No mesmo ano em que se recomendava as variantes do sistema benthamiano para construir as prisões tornavase obrigatório o sistema de conta moral boletim individual de modelo uniforme em todas as prisões e no qual o diretor ou o chefe dos guardas o sacerdote o professor são chamados a inscrever suas observações a respeito de cada detento É de certo modo a vademécum da administração da prisão que lhe dá condições de avaliar cada caso cada circunstância e de tornar claro em conseqüência o tratamento a ser aplicado a cada prisioneiro individualmente63 Muitos outros sistemas de registro bem mais completos foram projetados ou tentados64 Tratase de qualquer maneira de fazer da prisão um local de constituição de um saber que deve servir de princípio regulador para o exercício da prática penitenciária A prisão não tem só que conhecer a decisão dos juizes e aplicála em função dos regulamentos estabelecidos ela tem que coletar permanentemente do detento um saber que permitirá transformar a medida penal em uma operação penitenciária que fará da pena tornada necessária pela infração uma modificação do detento útil para a sociedade A autonomia do regime carcerário e o saber que ela torna possível permitem multiplicar essa utilidade da pena que o código colocara no princípio de sua filosofia punitiva Quanto ao diretor ele não pode perder nenhum detento de vista porque em qualquer setor que se encontre o detento esteja ele entrando esteja ele saindo ou que fique o diretor deve igualmente justificar os motivos de sua manutenção em tal classe ou de sua passagem para tal outra É um verdadeiro contador Cada detento é para ele na esfera da educação individual um capital colocado no interesse penitenciário65 A prática penal tecnologia sábia rentabiliza o capital investido no sistema penal e a construção das pesadas prisões Correlatamente o delinqüente tornase indivíduo a conhecer Esta exigência de saber não se insere em primeira instância no próprio ato jurídico para melhor fundamentar a sentença e determinar na verdade a medida da culpa É como condenado e a título de ponto de aplicação de mecanismos punitivos que o infrator se constitui como objeto de saber possível Mas isso implica em que o aparelho penitenciário com todo o programa tecnológico de que é acompanhado efetue uma curiosa substituição das mãos da justiça ele recebe um condenado mas aquilo sobre que ele deve ser aplicado não é a infração é claro nem mesmo exatamente o infrator mas um objeto um pouco diferente e definido por variáveis que pelo menos no início não foram levadas em conta na sentença pois só eram pertinentes para uma tecnologia corretiva Esse outro personagem que o aparelho penitenciário coloca no lugar do infrator condenado é o delinqüente O delinqüente se distingue do infrator pelo fato de não ser tanto seu ato quanto sua vida o que mais o caracteriza A operação penitenciária para ser uma verdadeira reeducação deve totalizar a existência do delinqüente tornar a prisão uma espécie de teatro artificial e coercitivo onde é preciso refazêla totalmente O castigo legal se refere a um ato a técnica punitiva a uma vida cabelhe por conseguinte reconstituir o ínfimo e o pior na forma do saber cabelhe modificar seus efeitos ou preencher suas lacunas através de uma prática coercitiva Conhecimento da biografia e técnica da existência retreinada A observação do delinqüente deve remontar não só às circunstâncias mas às causas de seu crime procurálas na história de sua vida sob o triplo ponto de vista da organização da posição social e da educação para conhecer e constatar as inclinações perigosas da primeira as predisposições nocivas da segunda e os maus antecedentes da terceira Esse inquérito biográfico é parte essencial da instrução judiciária para a classificação das penalidades antes de se tornar uma condição do sistema penitenciário para a classificação das moralidades Deve acompanhar o detento do tribunal à prisão onde o ofício do diretor é não somente recolher mas também completar controlar e retificar seus elementos no decorrer da detenção66 Por trás do infrator a quem o inquérito dos fatos pode atribuir a respon sabilidade de um delito revelase o caráter delinqüente cuja lenta formação transparece na investigação biográfica A introdução do biográfico é importante na história da penalidade Porque ele faz existir o criminoso antes do crime e num raciocíniolimite fora deste E porque a partir daí uma causalidade psicológica vai acompanhando a determinação jurídica da responsabilidade confundirlhe os efeitos Entramos então no dédalo criminológico de que estamos bem longe de ter saído hoje em dia qualquer causa que como determinação só pode diminuir a responsabilidade marca o autor da infração com uma criminalidade ainda mais temível e que exige medidas penitenciárias ainda mais estritas À medida que a biografia do criminoso acompanha na prática penal a análise das circunstâncias quando se trata de medir o crime vemos os discursos penal e psiquiátrico confundirem suas fronteiras e aí em seu ponto de junção formase aquela noção de indivíduo perigoso que permite estabelecer uma rede de causalidade na escala de uma biografia inteira e estabelecer um veredicto de puniçãocorreção67 O delinqüente se distingue também do infrator pelo fato de não somente ser o autor de seu ato autor responsável em função de certos critérios da vontade livre e consciente mas também de estar amarrado a seu delito por um feixe de fios complexos instintos pulsões tendências temperamento A técnica penitenciária se exerce não sobre a relação de autoria mas sobre a afinidade do criminoso com seu crime O delinqüente manifestação singular de um fenômeno global de criminalidade se distribui em classes quase naturais dotadas cada uma de suas características definidas e a cada uma cabendo um tratamento específico como o que MarquetWasselot chamava em 1841 de Ethnographie des prisons Os condenados são outro povo num mesmo povo que tem seus hábitos seus instintos seus costumes à parte68 Estamos aí ainda muito próximos das descrições pitorescas do mundo dos malfeitores velha tradição que remonta longe e se revigora na primeira metade do século XIX no momento em que a percepção de outra forma de vida vem se articular sobre a de outra classe e outra espécie humana Uma zoologia das subespécies sociais uma etnologia das civilizações de malfeitores com seus ritos e língua se esboçam numa forma de paródia Mas aí se manifesta entretanto o trabalho de constituição de uma nova objetividade onde o criminoso pertence a uma tipologia ao mesmo tempo natural e desviante A delinqüência desvio patológico da espécie humana pode ser analisada como síndromes mórbidas ou como grandes formas teratológicas Com a classificação de Ferrus temos uma das primeiras conversões da velha etnografia do crime em uma tipologia sistemática dos delinqüentes É uma análise rápida é verdade mas nela vemos funcionar claramente o princípio de que a delinqüência deve ser especificada menos em função da lei que da norma Três tipos de condenados Há os que são dotados de recursos intelectuais superiores à média de inteligência que estabelecemos mas que se tornam perversos quer pelas tendências de sua organização e predisposição inata quer por uma lógica perniciosa por uma moral iníqua por uma perigosa apreciação dos deveres sociais Para esses seria necessário o isolamento de dia e de noite o passeio solitário e quando for preciso mantêlos em contato com os outros usar uma máscara leve em tela metálica parecida com as que se usam para cortar pedras ou na esgrima A segunda categoria é feita de condenados viciosos limitados embrutecidos ou passivos que são arrastados ao mal por indiferença pela vergonha como pelo bem por covardia por preguiça digamos e falta de resistência às más incitações o regime que lhes convém é mais de educação do que de repressão e se possível de educação mútua isolamento de noite trabalho em comum de dia conversas permitidas só em voz alta leituras em comum seguidas de interrogações recíprocas sancionadas por recompensas Enfim há os condenados inaptos ou incapazes que uma organização incompleta torna impróprios para qualquer ocupação que exija esforços pensados e força de vontade que se encontram então na impossibilidade de sustentar a concorrência do trabalho com os operários inteligentes e não tendo nem instrução bastante para conhecer os deveres sociais nem inteligência bastante para compreendêlos e combater seus instintos pessoais são levados ao crime por sua própria incapacidade Para esses a solidão só serviria para fomentar a inércia devem portanto viver em comum mas de maneira a formar grupos pouco numerosos sempre estimulados por ocupações coletivas e submetidos a uma vigilância rígida69 Assim se estabelece progressivamente um conhecimento positivo dos delinqüentes e de suas espécies muito diferente da qualificação jurídica dos delitos e de suas circunstâncias mas distinto também do conhecimento médico que permite ressaltar a loucura do indivíduo e apagar conseqüentemente o caráter delituoso do ato Ferrus enuncia claramente o princípio Os criminosos considerados em massa são apenas loucos haveria injustiça para com esses últimos se os confundíssemos com homens coincidentemente perversos Nesse novo saber importa qualificar cientificamente o ato enquanto delito e principalmente o indivíduo enquanto delinqüente Surge a possibilidade de uma criminologia O correlativo da justiça penal é o próprio infrator mas o do aparelho penitenciário é outra pessoa é o delinqüente unidade biográfica núcleo de periculosidade representante de um tipo de anomalia E se é verdade que à detenção privativa de liberdade que o direito definira a prisão acrescentou o suplemento do penitenciário este por sua vez introduziu um personagem a mais que se meteu entre aquele que a lei condena e aquela que executa essa lei Onde desapareceu o corpo marcado recortado queimado aniquilado do supliciado apareceu o corpo do prisioneiro acompanhado pela individualidade do delinqüente pela pequena alma do criminoso que o próprio aparelho do castigo fabricou como ponto de aplicação do poder de punir e como objeto do que ainda hoje se chama a ciência penitenciária Dizem que a prisão fabrica delinqüentes é verdade que ela leva de novo quase fatalmente diante dos tribunais aqueles que lhe foram confiados Mas ela os fabrica no outro sentido de que ela introduziu no jogo da lei e da infração do juiz e do infrator do condenado e do carrasco a realidade incorpórea da delinqüência que os liga uns aos outros e há um século e meio os pega todos juntos na mesma armadilha A técnica penitenciária e o homem delinqüente são de algum modo irmãos gêmeos Ninguém creia que foi a descoberta do delinqüente por uma racionalidade científica que trouxe para as velhas prisões o aperfeiçoamento das técnicas penitenciárias Nem tampouco que a elaboração interna dos métodos penitenciários terminou trazendo à luz a existência objetiva de uma delinqüência que a abstração e a inflexibilidade judiciárias não podiam perceber Elas apareceram as duas juntas e no prolongamento uma da outra como um conjunto tecnológico que forma e recorta o objeto a que aplica seus instrumentos E é essa delinqüência formada nos subterrâneos do aparelho judiciário ao nível das obras vis de que a justiça desvia os olhos pela vergonha que sente de punir os que condena é ela que se faz presente agora nos tribunais serenos e na majestade das leis ela é que tem que ser conhecida avaliada medida diagnosticada tratada quando se proferem sentenças é ela agora essa anomalia esse desvio esse perigo inexorável essa doença essa forma de existência que deverão ser considerados ao se reelaborarem os códigos A delinqüência é a vingança da prisão contra a justiça Revanche tão temível que pode fazer calar o juiz É então que os criminologistas se impõem Mas devemos não esquecer que a prisão figura concentrada e austera de todas as disciplinas não é um elemento endógeno no sistema penal definido entre os séculos XVIII e XIX O tema de uma sociedade punitiva e de uma semiotécnica geral da punição que sustentou os códigos ideológicos beccarianos ou benthamianos não fazia apelo ao uso universal da prisão Essa prisão vem de outro lugar dos mecanismos próprios a um poder disciplinar Ora apesar dessa heterogeneidade os mecanismos e os efeitos da prisão se difundiram ao longo de toda a justiça criminal moderna a delinqüência e os delinqüentes a infestaram toda Será necessário procurar a razão dessa temível eficácia da prisão Mas já podemos anotar uma coisa a justiça penal definida no século XVIII pelos reformadores traçava duas linhas de objetivação possíveis do criminoso mas duas linhas divergentes uma era a série dos monstros morais ou políticos caídos do pacto social outra a do sujeito jurídico requalificado pela punição Ora o delinqüente permite justamente unir as duas linhas e constituir com a caução da medicina da psicologia ou da criminologia um indivíduo no qual o infrator da lei e o objeto de uma técnica científica se superpõem aproximadamente Que o enxerto da prisão no sistema penal não tenha acarretado reação violenta de rejeição se deve sem dúvida a muitas razões Uma delas é que ao fabricar delinqüência ela deu à justiça criminal um campo unitário de objetos autentificado por ciências e que assim lhe permitiu funcionar num horizonte geral de verdade A prisão essa região mais sombria do aparelho de justiça é o local onde o poder de punir que não ousa mais se exercer com o rosto descoberto organiza silenciosamente um campo de objetividade em que o castigo poderá funcionar em plena luz como terapêutica e a sentença se inscrever entre os discursos do saber Compreendese que a justiça tenha adotado tão facilmente uma prisão que não fora entretanto filha de seus pensamentos Ela lhe era agradecida por isso CAPÍTULO II ILEGALIDADE E DELINQÜÊNCIA No que se refere à lei a detenção pode ser privação de liberdade O encarceramento que a realiza sempre comportou um projeto técnico A passagem dos suplícios com seus rituais de ostentação com sua arte misturada à cerimônia do sofrimento a penas de prisões enterradas em arquiteturas maciças e guardadas pelo segredo das repartições não é passagem a uma penalidade indiferenciada abstrata e confusa é a passagem de uma arte de punir a outra não menos científica que ela Mutação técnica Dessa passagem um sintoma e um resumo a substituição em 1837 da cadeia dos forçados pelo carro celular A cadeia tradição que remontava à época das galeras ainda subsistia sob a monarquia de julho A importância que parece ter adquirido como espetáculo no começo do século XIX talvez esteja ligada ao fato de que ela juntava numa só manifestação dois modos de castigo o caminho para a detenção se desenrolava como um cerimonial de suplício1 Os relatos da última cadeia na verdade as que cruzaram a França em todos os sentidos no verão de 1836 e de seus escândalos permitem encontrar esse funcionamento bem estranho às regras da ciência penitenciária A saída um ritual de cadafalso é a selagem das coleiras de ferro e das cadeias no pátio de Bicêtre o forçado fica com a nuca virada sobre a bigorna como uma estaca de ferro mas desta vez a arte do carrasco ao martelar é não esmagar a cabeça habilidade invertida que sabe não dar a morte O grande pátio de Bicêtre exibe os instrumentos do suplício várias fileiras de cadeias com suas gargantilhas Os artoupans chefes dos guardas ferreiros temporários dispõem a bigorna e o martelo À grade do caminho da ronda estão coladas todas aquelas cabeças com uma expressão indiferente ou atrevida e que o operador vai rebitar Mais alto em todos os andares da prisão vêemse pernas e braços pendurados pelas grades dos cubículos parecendo um bazar de carne humana são os detentos que vêm assistir à toalete de seus companheiros da véspera eilos na atitude do sacrifício Estão sentados no chão emparelhados ao acaso e de acordo com o tamanho esses ferros de que cada um deve levar 8 libras por seu lado pesamlhes sobre os joelhos O operador passaos em revista tomando a medida das cabeças e adaptando os enormes colares de uma polegada de espessura Para rebitar uma gargantilha é necessário o concurso de três carrascos um agüenta a bigorna o outro mantém reunidos os dois lados do colar de ferro e preserva com os dois braços estendidos a cabeça do paciente e o terceiro bate com pancadas redobradas e achata o cravo sob seu martelo maciço Cada golpe abala a cabeça e o corpo aliás não se pensa no perigo que a vítima poderia correr se o martelo se desviasse esta impressão é nula ou antes ela se desfaz diante da impressão profunda de horror que se experimenta ao contemplar a criatura de Deus num tal rebaixamento2 Depois é a dimensão do espetáculo público segunda a Gazette des tribunaux3 mais de 100000 pessoas vêem a cadeia partir de Paris a 19 de julho A descida da Courtille ao Mardi Gras A ordem e a riqueza vêm ver passar de longe a grande tribo nômade acorrentada essa outra espécie a raça diferente que tem o privilégio de povoar os campos de trabalhos forçados e as prisões Já os espectadores populares como no tempo dos suplícios públicos levam avante com os condenados as trocas ambíguas de injúrias de ameaças de encorajamentos de golpes de sinais de ódio ou de cumplicidade Qualquer coisa de violento se ergue e não pára de correr ao longo de toda a procissão cólera contra uma justiça severa ou indulgente em excesso gritos contra criminosos detestados movimentos a favor dos prisioneiros conhecidos e que são saudados defrontações com a polícia Durante todo o trajeto percorrido desde a barreira de Fontainebleau grupos de exaltados davam gritos de indignação contra Delacollonge Abaixo o padre diziam abaixo esse homem execrável deveriam ter feito justiça com ele Sem a energia e a firmeza da guarda municipal poderiam ter sido cometidas graves desordens Em Vaugirard eram as mulheres que estavam mais furiosas Gritavam Abaixo o mau padre Abaixo o monstro Delacollonge Os delegados de polícia de Montrouge de Vaugirard e vários prefeitos e seus assessores acorreram com a Echarpe aberta para fazer respeitar a decisão da justiça A pouca distância de Issy François percebendo M Allard e os agentes da brigada lançou sobre eles sua gamela de madeira Lembraramse então que a família de alguns antigos companheiros desse condenado morava em Ivry Desde esse momento os inspetores do serviço se escalonaram pela estrada e acompanharam de perto a carroça dos forçados Os do cordão de Paris sem exceção lançaram cada um sua gamela de madeira à cabeça dos agentes e alguns foram atingidos Nesse momento a multidão se encolerizou e uns se atiravam contra os outros4 Entre Bicêtre e Sèvres um número considerável de casas teria sido pilhado durante a passagem da cadeia5 Nessa festa dos condenados que partem há um pouco dos ritos do bode expiatório que é surrado ao ser banido um pouco da festa dos loucos onde se pratica a inversão dos papéis uma parte das velhas cerimônias de cadafalso onde a verdade deve brilhar em plena luz do dia uma parte também daqueles espetáculos populares onde se vêm reconhecer os personagens famosos ou os tipos tradicionais jogo da verdade e da infâmia desfile da notoriedade e da vergonha invectivas contra os culpados que se desmascaram e por outro lado alegre confissão dos crimes Todos procuram reconhecer o rosto dos criminosos que tiveram sua glória folhas volantes recordam os crimes dos que se vêem passar os jornais com antecedência dão seus nomes e contam suas vidas às vezes fazem a descrição deles descrevem sua roupa para que sua identidade não possa escapar programas para os espectadores6 O povo vem também contemplar tipos de criminosos tentar distinguir pelo traje ou pelo rosto a profissão do condenado se é assassino ou ladrão jogo de máscaras e marionetes mas onde se introduz também para olhares mais educados como que uma etnografia empírica do crime Dos espetáculos de saltimbancos à frenologia de Gall utilizamse de acordo com o meio a que se pertence as semiologias do crime de que se dispõe As fisionomias são tão variadas quanto os trajes aqui uma cabeça majestosa como as figuras de Murillo lá um rosto depravado enquadrado por sobrancelhas espessas que anuncia uma energia de um celerado específico acolá uma cabeça de árabe se ergue sobre um corpo de garoto Aqui vemos traços femininos e suaves são cúmplices olhai essas figuras lustrosas de devassidão são os preceptores7 A esse jogo respondem os próprios condenados arvorando seus crimes e dando a representação de sua falta é uma das funções da tatuagem vinheta de sua proeza ou de seu destino Eles levam as insígnias seja uma guilhotina tatuada no braço esquerdo seja no peito um punhal enterrado num coração que sangra Ao passar representam em gestos a cena de seu crime debocham dos juizes ou da polícia gabamse de malfeitos que não foram descobertos François o antigo cúmplice de Lacenaire conta que é o inventor de um método para matar um homem sem fazêlo gritar e sem derramar uma gota de sangue A grande feira ambulante do crime tinha seus truões e suas máscaras onde a afirmação cômica da verdade respondia à curiosidade e às invectivas Toda uma série de cenas naquele verão de 1836 em torno de Delacollonge a seu crime ele cortara em pedaços a amante grávida sua qualidade de sacerdote dera muita ostentação permitiralhe também escapar do cadafalso Parece que foi perseguido por um grande ódio popular Já antes na carroça que o levara a Paris em junho de 1836 ele fora insultado e não conseguira reter as lágrimas não quisera entretanto ser transportado de carro considerando que a humilhação fazia parte de seu castigo À partida de Paris não se pode imaginar o que a multidão esgotou como indignação virtuosa cólera moral e covardia sobre esse homem ele foi coberto de terra e de lama as pedras choviamlhe em cima com os gritos da fúria pública Era uma incrível explosão de raiva as mulheres principalmente verdadeiras fúrias mostravam uma inacreditável exaltação de ódio8 Para protegêlo mandamno trocar de roupa Alguns espectadores enganados pensam reconhecêlo em François Que de brincadeira aceita o papel mas à comédia do crime que não cometeu ele acrescenta a do padre que não é ao relato de seu crime mistura orações e grandes gestos de bênção dirigidos à multidão que o invectiva e ri A alguns passos de lá o verdadeiro Delacollonge que parecia um mártir sofria a dupla afronta dos insultos que não recebia mas lhe eram dirigidos e do ridículo que fazia reaparecer sob a forma de outro criminoso o padre que ele era e que quisera esconder Sua paixão era representada sob seus olhos por um bufão assassino a que estava acorrentado Em todas as cidades por onde passava a cadeia trazia consigo a festa eram as saturnais do castigo nela a pena virava privilégio E por uma curiosa tradição que de seu lado parece escapar aos ritos comuns dos suplícios provocava nos condenados menos as marcas obrigadas do arrependimento que a explosão de uma alegria louca que negava a punição Ao ornamento da coleira e dos ferros os próprios forçados juntavam o enfeite de fitas de palha trançada de flores ou de uma roupa preciosa A cadeia é a roda e a dança é o acasalamento também o casamento forçado no amor proibido Núpcias festa e sagração sob as correntes Eles acorrem diante dos ferros com um buquê na mão fitas ou borlas de palha enfeitam seus bonés e os mais hábeis preparam capacetes com cimeira Outros usam meias com aberturas em tamancos ou um colete na moda por baixo de uma blusa de trabalho9 E durante toda a tarde que se seguia à ferração a cadeia formava uma grande farândola que girava sem parar no pátio de Bicêtre Ai dos vigias se a cadeia os reconhecesse ela os embrulhava e os sufocava em seus anéis os forçados permaneciam donos do campo de batalha até o fim do dia10 O sabá dos condenados respondia ao cerimonial da justiça com faustos que inventava Invertia os esplendores a ordem do poder e seus sinais as formas do prazer Mas alguma coisa do sabá político não estava longe Só sendo surdo para não se ouvir um pouco desses novos acentos Os forçados cantavam canções de marcha de celebridade rápida e que durante muito tempo foram repetidas em toda parte Encontravase aí sem dúvida o eco das queixas emprestadas aos criminosos pelas folhas volantes afirmação do crime heroicização negra evocação de castigos terríveis e do ódio geral que os cerca Fama a nós as trombetas Coragem crianças soframos sem estremecer o destino horrível que paira sobre nossas cabeças Nossos ferros são pesados mas nós os suportaremos Para os forçados não há voz que se eleve aliviemolos Há entretanto nesses cantos coletivos uma outra tonalidade invertese o código moral a que obedecia a maior parte das velhas queixas O suplício em vez de trazer o remorso aguça a vaidade a justiça que condenou é recusada e recebe vitupérios a multidão que vem contemplar o que ela pensa ser arrependimentos ou humilhações Tão longe dos lares às vezes gememos Nossas frontes sempre severas farão empalidecer nossos juizes Ávidos de desgraça vossos olhares em nosso meio procuram encontrar uma raça vencida que chora e se humilha Mas nossos olhares são orgulhosos Encontramos aí também a afirmação de que a vida nos trabalhos forçados com seus companheirismos reserva prazeres que a liberdade não conhece Acorrentemos os prazeres com o tempo Sob os ferrolhos nascerão dias de festa Os prazeres são fugitivos Fugirão dos carrascos seguirão as canções E principalmente a ordem atual não durará para sempre não só os condenados serão libertados e recobrarão seus direitos mas seus acusadores virão tomarlhes o lugar Entre os criminosos e os juizes virá o dia do grande julgamento às avessas A nós forçados o desprezo pelos homens A nós também todo o ouro que eles deificam Esse ouro um dia passará a nossas mãos Nós o compramos pelo preço de nossa vida Outros retomarão essas cadeias que hoje vós nos fazeis levar eles se tornarão escravos Nós rompendo os encraves o astro de liberdade terá reluzido para nós Adeus pois desprezamos tanto vossos ferros quanto vossas leis11 O teatro piedoso imaginado pelas folhas volantes e onde o condenado exortava a multidão a nunca imitálo está se tornando uma cena ameaçadora onde a multidão é obrigada a escolher entre a barbárie dos carrascos a injustiça dos juizes e a desgraça dos condenados vencidos hoje mas que triunfarão um dia O grande espetáculo da cadeia se relacionava com a antiga tradição dos suplícios públicos relacionavase também com aquela múltipla representação do crime dada na época pelos jornais pasquins palhaços teatros de bulevar12 mas relacionavase igualmente com defrontações e lutas cujo estrondo carrega consigo ele lhes dá como que uma saída simbólica o exército da desordem aterrorizado pela lei promete voltar o que foi expulso pela violência da ordem trará ao retornar a reviravolta libertadora Fiquei apavorado de ver tantas faíscas reaparecerem naquelas cinzas13 A agitação que sempre cercara os suplícios entra em ressonância com ameaças precisas Compreendese que a monarquia de julho tenha decidido suprimir a cadeia pelas mesmas razões mas mais precisas que exigiam no século XVIII a abolição dos suplícios Não faz parte de nossos costumes levar homens desta maneira devese evitar proporcionar nas cidades atravessadas pela caravana um espetáculo tão feio que aliás não é de nenhuma instrução para a população14 Necessidade portanto de romper com esses ritos públicos de fazer as transferências de condenados passarem pela mesma mutação que os próprios castigos e de colocálos a eles também sob o signo do pudor administrativo Ora o que foi adotado em junho de 1837 para substituir a cadeia não foi a simples carroça coberta de que se falara um momento mas uma máquina bem cuidadosamente elaborada Uma carruagem concebida como prisão ambulante Um equivalente móvel do Panóptico dividido em todo o comprimento por um corredor central de um lado e de outro seis celas onde os detentos estão sentados de frente Seus pés são passados em anéis forrados de lã por dentro e reunidos entre si por cadeias de 18 polegadas as pernas são presas em joelheiras de metal O condenado fica sentado sobre uma espécie de funil de zinco e carvalho aberto sobre a via pública A cela não tem nenhuma janela para fora é inteiramente forrada de chapas metálicas só um basculante também de lata furada dá passagem a uma corrente de ar conveniente Do lado do corredor a porta de cada cela é guarnecida de um guichê com um compartimento duplo um para os alimentos outro de grades para a vigilância A abertura e a direção oblíqua dos guichês são combinadas de tal modo que os guardas mantêm constantemente os olhos sobre os prisioneiros e entendem suas menores palavras sem que estes possam chegar a se ver ou se ouvir entre si De tal maneira que a mesma viatura pode sem o menor inconveniente conter ao mesmo tempo um forçado e um simples acusado homens e mulheres crianças e adultos Qualquer que seja o comprimento do trajeto uns e outros são levados a seu destino sem poder ter se visto nem se falado Enfim a vigilância constante dos dois guardas que estão armados com uma pequena maça de carvalho com grandes cravos de diamante rombudos permite fazer funcionar um sistema de punições conforme o regulamento interno da carruagem regime de pão e água dedos polegares amarrados privação da almofada para dormir os dois braços amarrados É proibida qualquer leitura senão a dos livros de moral Houvera ela tido apenas sua suavidade e rapidez essa máquina teria feito honra à sensibilidade de seu autor mas seu mérito é ser uma verdadeira carruagem penitenciária Por seus efeitos externos ela é de uma perfeição toda benthamiana Na passagem rápida dessa prisão sobre rodas que em seus lados silenciosos e sombrios só leva como inscrição as palavras Transporte de Forçados há qualquer coisa de misterioso e lúgubre que Bentham requer na execução das sentenças criminais e que deixa no espírito dos espectadores uma impressão mais salutar e durável que a visão daqueles cínicos e alegres viajantes15 Ela tem também efeitos internos já nos poucos dias de transporte durante os quais os detentos não ficam soltos um só instante funciona como um aparelho de correção Saise dela espantosamente bem comportado Do ponto de vista moral esse transporte que entretanto dura só setenta e duas horas é um suplício horrível cujo efeito age durante muito tempo ao que parece sobre o prisioneiro Os próprios forçados são testemunhas disso No carro celular quando não estamos dormindo só podemos pensar De tanto pensar parece que me arrependo do que fiz afinal entendem eu teria medo de me tornar melhor e não quero16 Breve história a da carruagem panóptica Entretanto a maneira como ela substitui a cadeia e as razões dessa substituição resumem todo o processo pelo qual em oitenta anos a detenção penal tomou o lugar dos suplícios como uma técnica pensada para modificar os indivíduos A carruagem celular é um aparelho de reforma O que substituiu o suplício não foi um encarceramento maciço foi um dispositivo disciplinar cuidadosamente articulado Pelo menos em princípio Pois logo a seguir a prisão em sua realidade e seus efeitos visíveis foi denunciada como o grande fracasso da justiça penal Estranhamente a história do encarceramento não segue uma cronologia ao longo da qual se sucedessem logicamente o estabelecimento de uma penalidade de detenção depois o registro de seu fracasso depois a lenta subida dos projetos de reforma que chegariam à definição mais ou menos coerente de técnica penitenciária depois a implantação desse projeto enfim a constatação de seus sucessos ou fracassos Houve na realidade uma superposição ou em todo caso outra distribuição desses elementos E do mesmo modo que o projeto de uma técnica corretiva acompanhou o princípio de uma detenção punitiva a crítica da prisão e de seus métodos aparece muito cedo nesses mesmos anos de 18201845 ela aliás se fixa num certo número de formulações que a não ser pelos números se repetem hoje sem quase mudança nenhuma As prisões não diminuem a taxa de criminalidade podese aumentálas multiplicálas ou transformálas a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável ou ainda pior aumenta Avaliase na França em cerca de 108 mil o número de indivíduos que estão em condição de hostilidade flagrante à sociedade Os meios de repressão de que dispomos são a forca o pelourinho 3 campos de trabalhos forçados 19 casas centrais 86 casas de justiça 362 cadeias 2800 prisões de cantão 2238 quartos de segurança nos postos de policia Apesar desta série de meios o vício conserva sua audácia O número de crimes não diminui o número de reincidências aumenta mais que decresce17 A detenção provoca a reincidência depois de sair da prisão se têm mais chance que antes de voltar para ela os condenados são em proporção considerável antigos detentos 38 dos que saem das casas centrais são condenados novamente e 33 são forçados18 de 1828 a 1834 de cerca de 35000 condenados por crime perto de 7400 eram reincidentes ou seja um em cada 47 condenados em mais de 200000 contraventores quase 35 mil o eram também 1 em cada 6 no total um reincidente para 58 condenados19 em 1831 em 2174 condenados por reincidência 350 haviam saído dos trabalhos forçados 1682 das casas centrais 142 das 4 casas de correção submetidas ao mesmo regime que as centrais20 E o diagnóstico tornase cada vez mais pesado ao longo de toda a monarquia de julho em 1835 contamse 1486 reincidentes em 7223 condenados criminosos em 1839 1749 em 7858 em 1844 1821 em 7195 Entre os 980 detentos de Loos havia 570 reincidentes e em Melun 745 dos 1088 prisioneiros21 A prisão conseqüentemente em vez de devolver à liberdade indivíduos corrigidos espalha na população delinqüentes perigosos 7000 pessoas entregues cada ano à sociedade são 7000 princípios de crimes ou de corrupção espalhados no corpo social E quando pensamos que essa população cresce sem parar que ela vive e se agita em torno de nós pronta para aproveitar todas as chances de desordem e a se prevalecer de todas as crises da sociedade para experimentar suas forças podemos permanecer impassíveis diante de tal espetáculo22 A prisão não pode deixar de fabricar delinqüentes Fabricaos pelo tipo de existência que faz os detentos levarem que fiquem isolados nas celas ou que lhes seja imposto um trabalho inútil para o qual não encontrarão utilidade é de qualquer maneira não pensar no homem em sociedade é criar uma existência contra a natureza inútil e perigosa queremos que a prisão eduque os detentos mas um sistema de educação que se dirige ao homem pode ter razoavelmente como objetivo agir contra o desejo da natureza23 A prisão fabrica também delinqüentes impondo aos detentos limitações violentas ela se destina a aplicar as leis e a ensinar o respeito por elas ora todo o seu funcionamento se desenrola no sentido do abuso de poder Arbitrário da administração O sentimento de injustiça que um prisioneiro experimenta é uma das causas que mais podem tornar indomável seu caráter Quando se vê assim exposto a sofrimentos que a lei não ordenou nem mesmo previu ele entra num estado habitual de cólera contra tudo o que o cerca só vê carrascos em todos os agentes da autoridade não pensa mais ter sido culpado acusa a própria justiça24 Corrupção medo e incapacidade dos guardas 1000 a 5000 vigias que só mantêm alguma segurança contando com a delação ou seja com a corrupção que eles mesmos têm o cuidado de semear Quem são esses guardas Soldados que receberam baixa homens sem instrução sem inteligência de sua função que guardam os malfeitores por profissão25 Exploração por um trabalho penal que nessas condições não pode ter nenhum caráter educativo Falase muito contra o tráfico de negros Como eles os detentos não são vendidos pelos empresários e comprados pelos comerciantes Os prisioneiros recebem neste ponto lições de probidade Não ficam mais desencorajados por esses exemplos de abominável exploração26 A prisão torna possível ou melhor favorece a organização de um meio de delinqüentes solidários entre si hierarquizados prontos para todas as cumplicidades futuras A sociedade proíbe as associações de mais de 20 pessoas e ela mesma constitui associações de 200 de 500 de 1200 condenados nas casas centrais que são para eles construídas ad hoc e que para seu maior conforto ela divide em oficinas em pátios refeitórios comuns e multiplicase por toda a superfície da França de tal modo que onde houver uma prisão há uma associação outros tantos clubes antisociais27 E nesses clubes é feita a educação do jovem delinqüente que está em sua primeira condenação O primeiro desejo que nele nascerá será de aprender com os colegas hábeis como se escapa aos rigores da lei a primeira lição será tirada dessa lógica cerrada dos ladrões que os leva a considerar a sociedade como inimiga a primeira moral será a delação a espionagem honrada nas nossas prisões a primeira paixão que nele será excitada virá assustar a jovem natureza por aquelas monstruosidades que devem ter nascido nas masmorras e que a pena se recusa a citar ele agora rompeu com tudo o que o ligava à sociedade28 Faucher falava dos quartéis do crime As condições dadas aos detentos libertados condenamnos fatalmente à reincidência porque estão sob a vigilância da polícia porque têm designação de domicílio ou proibição de permanência porque só saem da prisão com um passaporte que têm que mostrar em todo lugar onde vão e que menciona a condenação que sofreram29 A quebra de banimento a impossibilidade de encontrar trabalho a vadiagem são os fatores mais freqüentes da reincidência A Gazette des tribunaux mas também os jornais operários citam muitas vezes casos semelhantes como o daquele operário condenado por roubo posto sob vigilância em Rouen preso novamente por roubo e que os advogados desistiram de defender ele mesmo toma então a palavra diante do tribunal faz o histórico de sua vida explica como saído da prisão e com determinação de residência não consegue recuperar seu ofício de dourador sendo recusado em toda parte por sua qualidade de presidiário a polícia recusalhe o direito de procurar trabalho em outro lugar ele se viu preso a Rouen e fadado a morrer aí de fome e miséria como efeito dessa vigilância opressiva Pediu trabalho à prefeitura ficou ocupado 8 dias nos cemitérios por 14 soldos por dia Mas diz ele sou moço tenho bom apetite eu comia mais de duas libras de pão a 5 soldos a libra que fazer com 14 soldos para me alimentar lavar roupa e morar Estava reduzido ao desespero queria voltar a ser um homem honesto a vigilância me fez mergulhar de novo na desgraça Desgosteime de tudo foi então que conheci Lemaître que também está na miséria tínhamos que viver e a má idéia de roubar nos voltou30 Enfim a prisão fabrica indiretamente delinqüentes ao fazer cair na miséria a família do detento A mesma ordem que manda para a prisão o chefe de família reduz cada dia a mãe à penúria os filhos ao abandono a família inteira à vagabundagem e à mendicância Sob esse ponto de vista o crime ameaça prolongarse31 Devemos notar que essa crítica monótona da prisão é feita constantemente em duas direções contra o fato de que prisão não era efetivamente corretora que a técnica penitenciária nela permanecia em estado rudimentar contra o fato de que ao querer ser corretiva ela perde sua força de punição32 que a verdadeira técnica penitenciária é o rigor33 e que a prisão é um duplo erro econômico diretamente pelo custo intrínseco de sua organização e indiretamente pelo custo da delinqüência que ela não reprime34 Ora a essas críticas a resposta foi invariavelmente a mesma a recondução dos princípios invariáveis da técnica penitenciária Há um século e meio que a prisão vem sempre sendo dada como seu próprio remédio a reativação das técnicas penitenciárias como a única maneira de reparar seu fracasso permanente a realização do projeto corretivo como o único método para superar a impossibilidade de tornálo realidade Um fato o comprova as revoltas de detentos nas últimas semanas que a reforma definida em 1945 nunca se efetuara realmente que era então necessário voltar a seus princípios fundamentais Ora esses princípios de que ainda hoje se esperam efeitos tão maravilhosos são conhecidos constituem há quase 150 anos as sete máximas universais da boa condição penitenciária 1 A detenção penal deve então ter por função essencial a transformação do comportamento do indivíduo A recuperação do condenado como objetivo principal da pena é um princípio sagrado cuja aparição formal no campo da ciência e principalmente no da legislação é bem recente Congresso Penitenciário de Bruxelas 1847 E a comissão amor de maio de 1945 repete fielmente A pena privativa de liberdade tem como objetivo principal a recuperação e a reclassificação social do condenado Princípio da correção 2 Os detentos devem ser isolados ou pelo menos repartidos de acordo com a gravidade penal de seu ato mas principalmente segundo sua idade suas disposições as técnicas de correção que se pretende utilizar para com eles as fases de sua transformação Devese levar em conta no uso dos meios modificadores das grandes diferenças físicas e morais que comportam a organização dos condenados de seu grau de perversidade das chances desiguais de correção que podem oferecer fevereiro de 1850 1945 a repartição nos estabelecimentos penitenciários dos indivíduos com pena inferior a um ano tem por base o sexo a personalidade e o grau de perversão do delinqüente Princípio da classificação 3 As penas cujo desenrolar deve poder ser modificado segundo a indivi dualidade dos detentos os resultados obtidos os progressos ou as recaídas Sendo o objetivo principal da pena a reforma do culpado seria desejável que se pudesse soltar qualquer condenado quando sua regeneração moral estivesse suficientemente garantida Ch Lucas 1836 1945 É aplicado um regime progressivo com vistas a adaptar o tratamento do prisioneiro à sua atitude e ao seu grau de regeneração Este regime vai da colocação em cela à semiliberdade O benefício da liberdade condicional é estendido a todas as penas temporárias Princípio da modulação das penas 4 O trabalho deve ser uma das peças essenciais da transformação e da socialização progressiva dos detentos O trabalho penal não deve ser considerado como o complemento e por assim dizer como uma agravação da pena mas sim como uma suavização cuja privação seria totalmente possível Deve permitir aprender ou praticar um ofício e dar recursos ao detento e a sua família Ducpétiaux 1857 1945 Todo condenado de direito comum é obrigado ao trabalho Nenhum pode ser obrigado a permanecer desocupado Princípio do trabalho como obrigação e como direito 5 A educação do detento é por parte do poder público ao mesmo tempo uma precaução indispensável no interesse da sociedade e uma obrigação para com o detento Só a educação pode servir de instrumento penitenciário A questão do encarceramento penitenciário é uma questão de educação Ch Lucas 1838 1945 O tratamento infligido ao prisioneiro fora de qualquer promiscuidade corruptora deve tender principalmente à sua instrução geral e profissional e à sua melhora Princípio da educação penitenciária 6 O regime da prisão deve ser pelo menos em parte controlado e assumido por um pessoal especializado que possua as capacidades morais e técnicas de zelar pela boa formação dos indivíduos Ferrus em 1850 a respeito do médico da prisão Seu concurso é útil com todas as formas de encarceramento ninguém mais intimamente que um médico poderia possuir a confiança dos detentos conhecer melhor seu temperamento exercer ação mais eficaz sobre seus sentimentos aliviandolhes os males físicos e aproveitando essa forma de ascendência para fazêlos ouvir palavras severas ou encorajamentos úteis 1945 em todo estabelecimento penitenciário funciona um serviço social e médicopsicológico Princípio do controle técnico da detenção 7 O encarceramento deve ser acompanhado de medidas de controle e de assistência até a readaptação definitiva do antigo detento Seria necessário não só vigiálo à sua saída da prisão mas prestarlhe apoio e socorro Boulet e Benquot na Câmara de Paris 1945 É dada assistência aos prisioneiros durante e depois da pena com a finalidade de facilitar sua reclassificação Princípio das instituições anexas Palavra por palavra de um século a outro as mesmas proposições funda mentais se repetem E são dadas a cada vez como a formulação enfim obtida enfim aceita de uma reforma até então sempre fracassada Poderseia ter tomado as mesmas frases ou quase as mesmas de outros períodos fecundos da reforma o fim do século XIX e o movimento da defesa social ou ainda os anos mais recentes com as revoltas dos detentos Não devemos então conceber a prisão seu fracasso e sua reforma mais ou menos bem aplicada como três tempos sucessivos Devemos antes pensar num sistema simultâneo que historicamente se sobrepôs à privação jurídica da liberdade um sistema de quatro termos que compreende o suplemento disciplinar da prisão elemento de sobrepoder a produção de uma objetividade de uma técnica de uma racionalidade penitenciária elemento do saber conexo a recondução de fato se não a acentuação de uma criminalidade que a prisão devia destruir elemento de eficácia inversa enfim a repetição de uma reforma que é isomorfa apesar de sua idealidade ao funcionamento disciplinar da prisão elemento do desdobramento utópico É este conjunto complexo que constitui o sistema carcerário e não só a instituição da prisão com seus muros seu pessoal seus regulamentos e sua violência O sistema carcerário junta numa mesma figura discursos e arquitetos regulamentos coercitivos e proposições científicas efeitos sociais reais e utopias invencíveis programas para corrigir a delinqüência e mecanismos que solidificam a delinqüência O pretenso fracasso não faria então parte do funcionamento da prisão Não deveria ser inscrito naqueles efeitos de poder que a disciplina e a tecnologia conexa do encarceramento induziram no aparelho de justiça de uma maneira mais geral na sociedade e que podemos agrupar sob o nome de sistema carcerário Se a instituiçãoprisão resistiu tanto tempo e em tal imobilidade se o princípio da detenção penal nunca foi seriamente questionado é sem dúvida porque esse sistema carcerário se enraizava em profundidade e exercia funções precisas Dessa solidez tomemos como testemunho um fato recente a prisão modelo que foi aberta em FleuryMérogis em 1969 apenas se serviu em sua distribuição de conjunto da estrela panóptica que em 1836 dera à PetiteRoquette a fama que esta teve É a mesma maquinaria de poder que aí se concretiza e assume forma simbólica Mas para desempenhar que papel Vamos admitir que a lei se destine a definir infrações que o aparelho penal tenha como função reduzilas e que a prisão seja o instrumento dessa repressão temos então que passar um atestado de fracasso Ou antes pois para estabelecêla em termos históricos seria preciso poder medir a incidência da penalidade de detenção no nível global da criminalidade temos que nos admirar de que há 150 anos a proclamação do fracasso da prisão se acompanhe sempre de sua manutenção A única alternativa realmente apontada foi a deportação que a Inglaterra abandonara desde o começo do século XIX e que a França retomou sob o Segundo Império mas antes como uma forma ao mesmo tempo rigorosa e longínqua de encarceramento Mas talvez devamos inverter o problema e nos perguntar para que serve o fracasso da prisão qual é a utilidade desses diversos fenômenos que a crítica continuamente denuncia manutenção da delinqüência indução em reincidência transformação do infrator ocasional em delinqüência Talvez devamos procurar o que se esconde sob o aparente cinismo da instituição penal que depois de ter feito os condenados pagar sua pena continua a seguilos através de toda uma série de marcações vigilância que era de direito antigamente e o é de fato hoje passaportes dos degredados de antes e agora folha corrida e que persegue assim como delinqüente aquele que quitou sua punição como infrator Não podemos ver aí mais que uma contradição uma conseqüência Deveríamos então supor que a prisão e de uma maneira geral sem dúvida os castigos não se destinam a suprimir as infrações mas antes a distinguilas a distribuílas a utilizálas que visam não tanto tornar dóceis os que estão prontos a transgredir as leis mas que tendem a organizar a transgressão das leis numa tática geral das sujeições A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades de riscar limites de tolerância de dar terreno a alguns de fazer pressão sobre outros de excluir uma parte de tornar útil outra de neutralizar estes de tirar proveito daqueles Em resumo a penalidade não reprimiria pura e simplesmente as ilegalidades ela as diferenciaria faria sua economia geral E se podemos falar de uma justiça não é só porque a própria lei ou a maneira de aplicála servem aos interesses de uma classe é porque toda a gestão diferencial das ilegalidades por intermédio da penalidade faz parte desses mecanismos de dominação Os castigos legais devem ser recolocados numa estratégia global das ilegalidades O fracasso da prisão pode sem dúvida ser compreendido a partir daí O esquema geral da reforma penal foi aplicado no fim do século XVIII na luta contra as ilegalidades rompeuse o equilíbrio de tolerâncias de apoios e de interesses recíprocos que sob o Antigo Regime mantivera umas ao lado das outras as ilegalidades de diversas camadas sociais Formarase então a utopia de uma sociedade universal e publicamente punitiva onde mecanismos penais sempre em atividade funcionariam sem atraso nem mediação nem incerteza uma lei duplamente ideal pois perfeita em seus cálculos e presente na representação de cada cidadão bloquearia desde a origem quaisquer práticas de ilegalidade Ora na passagem do século XVIII ao XIX e contra os novos códigos surge o perigo de um novo ilegalismo popular Ou mais exatamente talvez as ilegalidades populares se desenvolvam então segundo dimensões novas as que trazem consigo todos os movimentos que desde os anos 1780 até às revoluções de 1848 entrecruzam os conflitos sociais as lutas contra os regimes políticos a resistência ao movimento de industrialização os efeitos das crises econômicas Esquematicamente podemos definir três processos característicos Em primeiro lugar o desenvolvimento da dimensão política das ilegalidades populares e isso de duas maneiras práticas até então localizadas e de certo modo limitadas a elas mesmas como a recusa do imposto do recrutamento das cobranças das taxações a confiscação violenta de mercadorias desapropriadas a pilhagem de lojas e a venda autoritária dos produtos pelo justo preço as defrontações com os representantes do poder resultaram durante a Revolução em lutas diretamente políticas que tinham por finalidade não simplesmente fazer ceder o poder ou transferir uma medida intolerável mas mudar o governo e a própria estrutura do poder Em contraposição certos movimentos políticos apoiaramse de maneira explícita nas formas existentes de ilegalidade como a agitação realista do oeste ou do sul da França utilizou a recusa dos camponeses das novas leis sobre a propriedade a religião o recrutamento essa dimensão política da ilegalidade se tornará ao mesmo tempo mais complexa e mais marcada nas relações entre o movimento operário e os partidos republicanos no século XIX na passagem das lutas operárias greves conluios proibidos associações ilícitas à revolução política Em todo caso no horizonte dessas práticas ilegais e que se multiplicam com legislações cada vez mais restritivas entrevêemse as lutas propriamente políticas nem todas têm em mira a eventual derrubada do poder longe disso mas boa parte delas pode se capitalizar para combates políticos de conjunto e às vezes até conduzir diretamente a isso Por outro lado através da recusa da lei ou dos regulamentos reconhecemse facilmente as lutas contra aqueles que os estabelecem em conformidade com seus interesses não se luta mais contra os arrendatários de impostos o pessoal das finanças os agentes do rei os oficiais prevaricadores ou os maus ministros contra todos os agentes da injustiça mas contra a própria lei e a justiça que é encarregada de aplicála contra os proprietários próximos e que impõem os novos direitos contra os empregadores que se entendem entre si mas mandam proibir os conluios contra os chefes de empresa que multiplicam as máquinas baixam os salários prolongam as horas de trabalho tornam cada vez mais rigorosos os regulamentos de fábricas Foi sem dúvida contra o novo regime de propriedade da terra instaurado pela burguesia que aproveitou a Revolução que se desenvolveu a ilegalidade camponesa que sem dúvida conheceu suas formas mais violentas do Termidor ao consulado mas não desapareceu então foi contra o novo regime de exploração legal do trabalho que se desenvolveram as ilegalidades operárias no começo do século XIX desde os mais violentos como as quebras de máquinas ou os mais duráveis como a constituição de associações até os mais cotidianos como o absenteísmo o abandono do serviço a vadiagem as fraudes nas matériasprimas na quantidade e qualidade do trabalho terminado Uma série de ilegalidades surge em lutas onde sabemos que se defrontam ao mesmo tempo a lei e a classe que a impôs Enfim se é verdade que no decorrer do século XVIII vimos35 a criminalidade tender para formas especializadas inclinarse cada vez mais para o roubo fácil e tornarse em parte coisa de marginais isolados no meio de uma população que lhes era hostil pudemos assistir nos últimos anos do século XVIII à reconstituição de certos laços ou ao estabelecimento de novas relações não como diziam os contemporâneos que os líderes da agitação popular tivessem sido criminosos mas porque as novas formas do direito os rigores da regulamentação as exigências ou do Estado ou dos proprietários ou dos empregadores e as técnicas mais cerradas de vigilância multiplicavam as ocasiões de delito e faziam se bandear para o outro lado da lei muitos indivíduos que em outras condições não teriam passado para a criminalidade especializada foi tendo por fundo as novas leis sobre a propriedade tendo também por fundo o recrutamento recusado que uma ilegalidade camponesa se desenvolveu nos últimos anos da Revolução multiplicando as violências as agressões os roubos as pilhagens e até as grandes formas de banditismo político foi também tendo por fundo uma legislação ou regulamento muito pesados referentes ao certificado de reservista aos aluguéis aos horários às ausências que se desenvolveu uma vagabundagem operária que muitas vezes ia de par com a estrita delinqüência Toda uma série de práticas ilegais que durante o século anterior tinham tido tendência a se decantar e se isolar parecem agora reatar relações para formar uma nova ameaça Tríplice generalização das ilegalidades populares na passagem dos dois séculos e fora mesmo de uma extensão quantitativa que é problemática e ainda fica por medir tratase de sua inserção num horizonte político geral de sua articulação explícita sobre lutas sociais da comunicação entre diferentes formas e níveis de infração Esses processos não seguiram sem dúvida um desenvolvimento pleno certamente não se formou no começo do século XIX uma ilegalidade maciça ao mesmo tempo política e social Mas em sua forma esboçada e apesar de sua dispersão foram suficientemente marcados para servir de suporte ao grande medo de uma plebe que se acredita toda em conjunto criminosa e sediciosa ao mito da classe bárbara imoral e fora da lei que do império à monarquia de julho está continuamente no discurso dos legisladores dos filantropos ou dos pesquisadores da vida operária São processos que encontramos atrás de toda uma série de afirmações bem estranhas à teoria penal do século XVIII que o crime não é uma virtualidade que o interesse ou as paixões introduziram no coração de todos os homens mas que é coisa quase exclusiva de uma certa classe social que os criminosos que antigamente eram encontrados em todas as classes sociais saem agora quase todos da última fileira da ordem social36 que nove décimos de matadores de assassinos de ladrões e de covardes procedem do que chamamos a base social37 que não é o crime que torna estranho à sociedade mas antes que ele mesmo se deve ao fato de que se está na sociedade como um estranho que se pertence àquela raça abastarda de que falava Target àquela classe degradada pela miséria cujos vícios se opõem como um obstáculo invencível às generosas intenções que querem combatêla38 que nessas condições seria hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei é feita para todo mundo em nome de todo mundo que é mais prudente reconhecer que ela é feita para alguns e se aplica a outros que em princípio ela obriga a todos os cidadãos mas se dirige principalmente às classes mais numerosas e menos esclarecidas que ao contrário do que acontece com as leis políticas ou civis sua aplicação não se refere a todos da mesma forma39 que nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um de seus membros mas uma categoria social encarregada da ordem sanciona outra fadada à desordem Percorrei os locais onde se julga se prende se mata Um fato nos chama a atenção sempre em toda parte vedes duas classes bem distintas de homens dos quais uns se encontram sempre nos assentos dos acusadores e dos juizes e os outros nos bancos dos réus e dos acusados O que é explicado pelo fato de que os últimos por falta de recursos e de educação não sabem permanecer nos limites da probidade legal40 tanto que a linguagem da lei que se pretende universal é por isso mesmo inadequada ela deve ser se é para ser eficaz o discurso de uma classe a outra que não tem nem as mesmas idéias que ela nem as mesmas palavras Ora com nossas línguas pudicas desdenhosas e embaraçadas com a etiqueta será fácil fazerse compreender por aqueles que nunca ouviram senão o dialeto rude pobre irregular mas vivo franco pitoresco do mercado dos cabarés e da feira Que língua que método seria preciso usar na redação das leis para agir de maneira eficaz sobre o espírito inculto dos que podem menos resistir às tentações do crime41 A lei e a justiça não hesitam em proclamar sua necessária dissimetria de classe Se tal é a situação a prisão ao aparentemente fracassar não erra seu objetivo ao contrário ela o atinge na medida em que suscita no meio das outras uma forma particular de ilegalidade que ela permite separar pôr em plena luz e organizar como um meio relativamente fechado mas penetrável Ela contribui para estabelecer uma ilegalidade visível marcada irredutível a um certo nível e secretamente útil rebelde e dócil ao mesmo tempo ela desenha isola e sublinha uma forma de ilegalidade que parece resumir simbolicamente todas as outras mas que permite deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar Essa forma é a delinqüência propriamente dita Não devemos ver nesta a forma mais intensa e mais nociva da ilegalidade aquela que o aparelho penal deve mesmo tentar reduzir pela prisão por causa do perigo que representa ela é antes um efeito da penalidade e da penalidade de detenção que permite diferenciar arrumar e controlar as ilegalidades Sem dúvida a delinqüência é uma das formas da ilegalidade em todo caso tem suas raízes nela mas é uma ilegalidade que o sistema carcerário com todas as suas ramificações investiu recortou penetrou organizou fechou num meio definido e ao qual deu um papel instrumental em relação às outras ilegalidades Em resumo se a oposição jurídica ocorre entre a legalidade e a prática ilegal a oposição estratégica ocorre entre as ilegalidades e a delinqüência O atestado de que a prisão fracassa em reduzir os crimes deve talvez ser substituído pela hipótese de que a prisão conseguiu muito bem produzir a delinqüência tipo especificado forma política ou economicamente menos perigosa talvez até utilizável de ilegalidade produzir os delinqüentes meio aparentemente marginalizado mas centralmente controlado produzir o delinqüente como sujeito patologizado O sucesso da prisão nas lutas em torno da lei e das ilegalidades especificar uma delinqüência Vimos como o sistema carcerário substituiu o infrator pelo delinqüente E afixou também sobre a prática jurídica todo um horizonte de conhecimento possível Ora esse processo de constituição da delinqüênciaobjeto se une à operação política que dissocia as ilegalidades e delas isola a delinqüência A prisão é o elo desses dois mecanismos permitelhes se reforçarem perpetuamente um ao outro objetivar a delinqüência por trás da infração consolidar a delinqüência no movimento das ilegalidades O sucesso é tal que depois de um século e meio de fracasso a prisão continua a existir produzindo os mesmos efeitos e que se têm os maiores escrúpulos em derrubála A penalidade de detenção fabricaria daí sem dúvida sua longevidade uma ilegalidade fechada separada e útil O circuito da delinqüência não seria o subproduto de uma prisão que ao punir não conseguisse corrigir seria o efeito direto de uma penalidade que para gerir as práticas ilegais investiria algumas delas num mecanismo de puniçãoreprodução de que o encarceramento seria uma das peças principais Mas por que e como teria sido a prisão chamada a funcionar na fabricação de uma delinqüência que seria de seu dever combater A instituição de uma delinqüência que constitua como que uma ilegalidade fechada apresenta com efeito um certo número de vantagens É possível em primeiro lugar controlála localizando os indivíduos infiltrandose no grupo organizando a delação mútua a agitação imprecisa de uma população que pratica uma ilegalidade de ocasião que é sempre susceptível de se propagar ou ainda aqueles bandos incertos de vagabundos que recrutam segundo o itinerário ou as circunstâncias desempregados mendigos refratários e que crescem às vezes isso fora visto no fim do século XVIII até formar forças temíveis de pilhagem e de motim são substituídos por um grupo relativamente restrito e fechado de indivíduos sobre os quais se pode efetuar vigilância constante É possível além disso orientar essa delinqüência fechada em si mesma para as formas de ilegalidade que são menos perigosas mantidos pela pressão dos controles nos limites da sociedade reduzidos a precárias condições de existência sem ligação com uma população que poderia sustentálos como se fazia antigamente para os contrabandistas ou certas formas de banditismo43 os delinqüentes se atiram fatalmente a uma criminalidade localizada sem poder de atração politicamente sem perigo e economicamente sem conseqüência Mas essa ilegalidade concentrada controlada e desarmada é diretamente útil Ela o pode ser em relação a outras ilegalidades isolada e junto a elas voltada para suas próprias organizações internas fadada a uma criminalidade violenta cujas primeiras vítimas são muitas vezes as classes pobres acoçada de todos os lados pela polícia exposta a longas penas de prisão depois a uma vida definitivamente especializada A delinqüência esse outro mundo perigoso e muitas vezes hostil bloqueia ou ao menos mantém a um nível bastante baixo as práticas ilegais correntes pequenos roubos pequenas violências recusas ou desvios cotidianos da lei impede que elas resultem em formas amplas e manifestas um pouco como se o efeito de exemplo que antigamente se exigia da ostentação dos suplícios fosse procurado agora menos no rigor das punições que na existência visível marcada da própria delinqüência ao se diferenciar das outras ilegalidades populares a delinqüência pesa sobre elas Mas a delinqüência é também capaz de utilização direta Ocorrenos o exemplo da colonização Mas não é o que melhor comprova com efeito se a deportação dos criminosos foi várias vezes pedida sob a Restauração tanto pela Câmara dos Deputados quanto pelos Conselhos Gerais foi essencialmente para aliviar os encargos financeiros exigidos por todo o aparelho da detenção e apesar de todos os projetos que se pôde fazer sob a monarquia de julho para que os delinqüentes os soldados indisciplinados as prostitutas e as crianças abandonadas pudessem participar da colonização da Argélia esta foi formalmente excluída pela lei de 1854 que criava os campos de trabalhos forçados nas colônias na realidade a deportação para a Guiana ou mais tarde para a Nova Caledônia não teve importância econômica real apesar de serem os condenados obrigados a permanecer na colônia onde haviam cumprido pena um número de anos pelo menos igual a seu tempo de detenção em certos casos deviam mesmo permanecer toda a vida43 Na realidade a utilização da delinqüência como meio ao mesmo tempo separado e manejável foi feita principalmente nas margens da legalidade Ou seja instalouse também no século XIX uma espécie de ilegalidade subordinada cuja docilidade é garantida por sua organização em delinqüência com todas as vigilâncias em que isto implica A delinqüência ilegalidade dominada é um agente para a ilegalidade dos grupos dominantes A implantação das redes de prostituição no século XIX é característica a respeito44 os controles de polícia e de saúde sobre as prostitutas sua passagem regular pela prisão a organização em grande escala dos lupanares a hierarquia cuidadosa que era mantida no meio da prostituição seu enquadramento por delinqüentesindicadores tudo isso permitia canalizar e recuperar através de uma série de intermediários os enormes lucros sobre um prazer sexual que uma moralização cotidiana cada vez mais insistente votava a uma semiclandestinidade e tornava naturalmente dispendioso na computação do preço do prazer na constituição de lucro da sexualidade reprimida e na recuperação desse lucro o meio delinqüente era cúmplice de um puritanismo interessado um agente fiscal ilícito sobre práticas ilegais45 Os tráficos de armas os de álcool nos países de lei seca ou mais recentemente os de droga mostrariam da mesma maneira esse funcionamento da delinqüência útil a existência de uma proibição legal cria em torno dela um campo de práticas ilegais sobre o qual se chega a exercer controle e a tirar um lucro ilícito por meio de elementos ilegais mas tornados manejáveis por sua organização em delinqüência Esta é um instrumento para gerir e explorar as ilegalidades É também um instrumento para a ilegalidade que o próprio exercício do poder atrai a si A utilização política dos delinqüentes sob a forma de espias denunciantes provocadores era fato sabido bem antes do século XIX46 Mas depois da Revolução essa prática tomou dimensões completamente diversas a infiltração nos partidos políticos e associações operárias o recrutamento de homens de ação contra os grevistas e amotinados a organização de uma subpolítica que trabalha em relação direta com a polícia legal e suscetível em último caso de se tornar uma espécie de exército paralelo todo um funcionamento extralegal do poder foi em parte realizado pela massa de manobra constituída pelos delinqüentes polícia clandestina e exército de reserva do poder Na França parece que foi em torno da Revolução de 1848 e da tomada do poder de Luís Napoleão que essas práticas atingiram seu pleno florescimento47 Podese dizer que a delinqüência solidificada por um sistema penal centrado sobre a prisão representa um desvio de ilegalidade para os circuitos de lucro e de poder ilícitos da classe dominante A organização de uma ilegalidade isolada e fechada na delinqüência não teria sido possível sem o desenvolvimento dos controles policiais Fiscalização geral da população vigilância muda misteriosa desapercebida é o olho do governo incessantemente aberto e velando indistintamente sobre todos os cidadãos sem para isso submetêlos a qualquer medida coercitiva ela não tem necessidade de estar escrita na lei48 Controle particular e previsto pelo código de 1810 dos criminosos libertados e de todos aqueles que tendo já passado pela justiça por fatos graves presumese legalmente que devam atentar de novo contra o repouso da sociedade Mas a vigilância também de meios e de grupos considerados como perigosos pelos espias ou indicadores que são quase todos antigos delinqüentes controlados como tais pela polícia a delinqüência objeto entre outros da vigilância policial é um dos instrumentos privilegiados dessa mesma vigilância Todas essas vigilâncias pressupõem a organização de uma hierarquia em parte oficial em parte secreta era essencialmente na polícia parisiense o serviço de segurança que compreendia além dos agentes ostensivos inspetores e cabos os agentes secretos e indicadores movidos pelo receio do castigo ou pela atração de uma recompensa49 Pressupõem também a organização de um sistema de documentação cujo centro se constitui pela localização e identificação dos criminosos descrição obrigatória juntada aos mandados de prisão e às decisões do tribunal do júri descrição anotada nos registros de entrada das prisões cópia de registros do tribunal do júri e de juizes de execução dirigidas de três em três meses aos Ministérios da Justiça e da Polícia Geral um pouco mais tarde no Ministério do Interior organização de um fichário com lista alfabética recapitulando esses registros e por volta de 1833 segundo o método dos naturalistas dos bibliotecários dos negociantes dos comerciantes utilização de um sistema de fichas ou boletins individuais que permite facilmente integrar novos dados e ao mesmo tempo com o nome do indivíduo procurado todas as informações que poderiam ser utilizadas50 A delinqüência com os agentes ocultos que proporciona mas também com a quadriculagem geral que autoriza constitui em meio de vigilância perpétua da população um aparelho que permite controlar através dos próprios delinqüentes todo o campo social A delinqüência funciona como um observatório político Os estatísticos e os sociólogos dela se utilizaram por sua vez bem depois dos policiais Mas essa vigilância só pôde funcionar conjugada com a prisão Porque esta facilita o controle dos indivíduos quando são libertados porque permite o recrutamento dos indicadores e multiplica as denúncias mútuas porque coloca os infratores em contato uns com os outros ela precipita a organização de um meio delinqüente fechado em si mesmo mas que é fácil de controlar e todos os efeitos de desinserção que acarreta desemprego proibição de permanência residências forçadas disponibilidades abrem largamente a possibilidade de impor aos antigos detentos as tarefas que lhes são determinadas Prisão e polícia formam um dispositivo geminado sozinhas elas realizam em todo o campo das ilegalidades a diferenciação o isolamento e a utilização de uma delinqüência Nas ilegalidades o sistema políciaprisão corresponde a uma delinqüência manejável Esta com sua especificidade é um efeito do sistema mas tornase também uma engrenagem e um instrumento daquele De maneira que se deveria falar de um conjunto cujos três termos políciaprisãodelinqüência se apóiam uns sobre os outros e formam um circuito que nunca é interrompido A vigilância policial fornece à prisão os infratores que esta transforma em delinqüentes alvo e auxiliares dos controles policiais que regularmente mandam alguns deles de volta à prisão Não há uma justiça penal destinada a punir todas as práticas ilegais e que para isso utilizasse a polícia como auxiliar e a prisão como instrumento punitivo podendo deixar no rastro de sua ação o resíduo inassimilável da delinqüência Devese ver nessa justiça um instrumento para o controle diferencial das ilegalidades Em relação a este a justiça criminal desempenha o papel de caução legal e princípio de transmissão Ela é um ponto de troca numa economia geral das ilegalidades cujas outras peças são não abaixo dela mas a seu lado a polícia a prisão e a delinqüência A invasão da justiça pela polícia a força de inércia que a instituição carcerária opõe à justiça não é coisa nova nem efeito de uma esclerose ou de um progressivo deslocamento do poder é um traço de estrutura que marca os mecanismos punitivos nas sociedades modernas Podem falar os magistrados a justiça penal com todo o seu aparelho de espetáculo é feita para atender à demanda cotidiana de um aparelho de controle meio mergulhado na sombra que visa engrenar uma sobre a outra polícia e delinqüência Os juizes são os empregados que quase não se rebelam desse mecanismo51 Ajudam na medida de suas possibilidades a constituição da delinqüência ou seja a diferenciação das ilegalidades o controle a colonização e a utilização de algumas delas pela ilegalidade da classe dominante Desse processo que se desenvolveu nos trinta ou quarenta primeiros anos do século XIX duas figuras dão testemunho Vidocq em primeiro lugar Ele foi52 o homem das velhas ilegalidades um Gil Blas do outro extremo do século e que descamba rápido para o pior turbulências aventuras vigarices de que o mais das vezes foi ele a vítima rixas e duelos alistamentos e deserções em série encontros com o meio da prostituição do jogo dos batedores de carteira e logo do grande banditismo Mas a importância quase mítica que ele teve aos próprios olhos de seus contemporâneos não se deve a esse passado talvez enfeitado demais não se deve sequer ao fato de que pela primeira vez na história um antigo forçado alforriado ou comprado se tenha tornado chefe de polícia mas antes ao fato de que nele a delinqüência assumiu verdadeiramente seu estatuto ambíguo de objeto e instrumento para um aparelho de polícia que trabalha contra ela e com ela Vidocq marca o momento em que a delinqüência destacada das outras ilegalidades é investida pelo poder e voltada para o outro lado É então que se opera a acoplagem direta e institucional da polícia e da delinqüência Momento inquietante em que a criminalidade se torna uma das engrenagens do poder Uma figura era constante nas épocas anteriores a do rei monstruoso fonte de toda justiça e entretanto maculado de crimes aparece outro medo o de um acordo escondido e torpe entre os que fazem valer a lei e os que a violam Terminada a era shakespearina em que a soberania se defrontava com a abominação num mesmo personagem breve começará o melodrama cotidiano do poderio policial e das cumplicidades que o crime estabelece com o poder Em frente a Vidocq seu contemporâneo Lacenaire Sua presença marcada para sempre no paraíso dos estetas do crime tem razões para surpreender apesar de toda a sua boa vontade seu zelo de neófito nunca conseguiu cometer e com bastante inabilidade senão alguns crimes sem grandeza suspeitavase tanto que ele fosse um delator que a administração teve que protegêlo contra os detentos da Força que procuravam matálo53 e foi a alta roda do Paris de Luís Filipe que fez para ele antes de sua execução uma festa ao lado da qual muitas ressurreições literárias depois não passaram de homenagens acadêmicas Sua glória não deve nada à vastidão de seus crimes nem à arte de sua concepção o que espanta é seu balbucio Mas deve muito ao jogo visível em sua existência e seus discursos entre a ilegalidade e a delinqüência Lacenaire é o tipo do delinqüente por fraude deserção pequeno furto prisão reconstituição das amizades de cela chantagem mútua reincidências até à última tentativa falha de assassinato Mas trazia consigo pelo menos em estado virtual um horizonte de ilegalidades que ainda recentemente haviam sido ameaçadoras esse pequenoburguês arruinado que sabia falar e escrever uma geração antes teria sido revolucionário jacobino regicida54 contemporâneo de Robespierre sua recusa das leis poderia ter tido efeito num campo imediatamente histórico Nascido em 1800 quase como Julien Sorel seu personagem tem a marca dessas possibilidades mas elas descambaram para o roubo o assassinato e a denúncia Todas aquelas virtualidades se tornaram uma delinqüência de bem pouca envergadura nesse sentido Lacenaire é um personagem tranqüilizador E se reaparecem é no discurso que ele faz sobre a teoria do crime No momento da morte Lacenaire manifesta o triunfo da delinqüência sobre a ilegalidade ou antes a figura de uma ilegalidade confiscada por um lado na delinqüência e deslocada por outro para uma estética do crime ou seja para uma arte das classes privilegiadas Simetria de Lacenaire com Vidocq que na mesma época permitia fechar a delinqüência em si mesma constituindoa como ambiente fechado e controlável e deslocando para as técnicas policiais a prática delinqüente que se torna ilegalidade lícita do poder Há uma razão que explica por que a burguesia parisiense festejou Lacenaire por que sua cela foi aberta para visitantes famosos por que ele foi coberto de homenagens durante os últimos dias de sua vida ele que a plebe da Força antes dos juizes quisera levar à morte ele que fizera tudo no tribunal para arrastar seu cúmplice François ao cadafalso É que se celebrava a figura simbólica de uma ilegalidade submetida na delinqüência e transformada em discurso ou seja tornada duas vezes inofensiva a burguesia aí inventava um novo prazer cujo exercício ela ainda está longe de esgotar Não devemos esquecer que essa tão famosa morte de Lacenaire vinha bloquear a repercussão do atentado de Fieschi o mais recente dos regicidas que representa a figura inversa de uma pequena criminalidade que resulta na violência política Não devemos tampouco esquecer que ela aconteceu alguns meses antes da partida da última cadeia e das manifestações tão escandalosas que a haviam acompanhado Essas duas festas se cruzaram na história e aliás François o cúmplice de Lacenaire foi um dos personagens mais em evidência da cadeia de 19 de julho55 Uma prolongava os rituais antigos dos suplícios com o risco de reativar em torno dos criminosos as ilegalidades populares Seria proibida pois o criminoso não devia mais ter lugar a não ser no espaço apropriado da delinqüência A outra iniciava o jogo teórico de uma ilegalidade de privilegiados ou antes ela marcava o momento em que as ilegalidades políticas e econômicas praticadas pela burguesia de fato iam ser acompanhadas pela representação teórica e estética a Metafísica do crime como se diz a respeito de Lacenaire LAssassinat considéré comme un des BeauxArts foi publicado em 1849 Essa produção da delinqüência e seu investimento pelo aparelho penal devem ser tomados pelo que são não resultados definitivos mas táticas que se deslocam na medida em que nunca atingem inteiramente seu objetivo O corte entre sua delinqüência e as outras ilegalidades o fato de que ela se tenha voltado contra elas sua colonização pelas ilegalidades dominantes outros tantos efeitos que aparecem claramente na maneira como funciona o sistema políciaprisão não cessaram entretanto de encontrar resistências suscitaram lutas e provocaram reações Erguer a barreira que deveria separar os delinqüentes de todas as camadas populares de que saíam e com as quais permaneciam ligados era uma tarefa difícil principalmente sem dúvida nos meios urbanos56 Demorou muito tempo e exigiu obstinação Foram usados os processos gerais daquela moralização das classes pobres que teve aliás importância capital tanto do ponto de vista econômico quanto político aquisição do que se poderia chamar uma legalidade de base indispensável a partir do momento em que o sistema do código substituíra os costumes aprendizado das regras elementares da propriedade e da poupança treinamento para a docilidade no trabalho para a estabilidade da habitação e da família etc Recorreuse a processos mais particulares para alimentar a hostilidade dos menos populares contra os delin qüentes usando os antigos detentos como indicadores espias furadores de greve ou homens de ação Foram sistematicamente confundidos os delitos de direito comum e aquelas infrações à pesada legislação sobre as carteiras de reservista as greves os conluios as associações57 para as quais os operários pediam o reconhecimento de um estatuto político Com muita freqüência as ações operárias eram acusadas de serem animadas senão manipuladas por simples criminosos58 Mostrouse nos veredictos muitas vezes maior severidade contra os operários que contra os ladrões59 Misturaramse nas prisões as duas categorias de condenados e foi dado tratamento preferencial ao direito comum enquanto que os jornalistas ou políticos detidos tinham direito a maior parte do tempo de serem postos separados Em resumo toda uma tática de confusão que tinha como finalidade um estado de conflito permanente A isso se acrescentava um longo trabalho para impor à percepção que se tinha dos delinqüentes contornos bem determinados apresentálos como bem próximos presentes em toda parte e em toda parte temíveis É a função do noticiário policial que invade parte da imprensa e começa a ter seus próprios jornais60 A notícia policial por sua redundância cotidiana torna aceitável o conjunto dos controles judiciários e policiais que vigiam a sociedade conta dia a dia uma espécie de batalha interna contra o inimigo sem rosto nessa guerra constitui o boletim cotidiano de alarme ou de vitória O romance de crime que começa a se desenvolver nos folhetins e na literatura barata assume um papel aparentemente contrário Tem por função principalmente mostrar que o delinqüente pertence a um mundo inteiramente diverso sem relação com a existência cotidiana e familiar Essa excepcionalidade caracterizou primeiro o basfond Les Mystères de Paris Rocambole depois a loucura sobretudo na segunda metade do século enfim o crime dourado a delinqüência de grande envergadura Arsène Lupin O noticiário policial junto com a literatura de crimes vem produzindo há mais de um século uma quantidade enorme de histórias de crimes nas quais principalmente a delinqüência aparece como muito familiar e ao mesmo tempo totalmente estranha uma perpétua ameaça para a vida cotidiana mas extremamente longínqua por sua origem pelo que a move pelo meio onde se mostra cotidiana e exótica Pela importância que lhe é dada e o fausto discursivo de que se acompanha traçase em torno dela uma linha que ao exaltála põena à parte Nessa delinqüência tão temível e vinda de um céu tão estranho que ilegalidade poderia reconhecer Essa tática múltipla não ficou sem efeito provamno as campanhas dos jornais populares contra o trabalho penal61 contra o conforto das prisões para que sejam reservados aos detentos os trabalhos mais duros e mais perigosos contra o excesso de interesse que a filantropia dedica aos delinqüentes contra a literatura que exalta o crime62 provao também a desconfiança experimentada em geral em todo o movimento operário em relação aos antigos condenados de direito comum Ao despertar do século XX escreve Michèle Perrot cercada de desprezo a mais altaneira das muralhas a prisão acabase fechando a um povo impopular63 Entretanto essa tática está longe de ter triunfado ou em todo caso de ter obtido uma ruptura total entre os delinqüentes e as camadas populares As relações das classes populares com a infração a posição recíproca do proletariado e da plebe urbana deveriam ser estudadas Mas uma coisa é certa a delinqüência e a repressão são consideradas no movimento operário dos anos 18301850 como um trunfo importante Hostilidade aos delinqüentes sem dúvida mas batalha em torno da penalidade Os jornais populares propõem muitas vezes uma análise política da criminalidade que se opõe termo por termo à descrição familiar dos filantropos probrezadissipaçãopreguiçabebedeiravícioroubocrime O ponto de origem da delinqüência é por eles determinado não no indivíduo criminoso este é apenas a ocasião ou a primeira vítima mas na sociedade O homem que vos traz a morte não é livre de não trazêla A sociedade é a culpada ou para dizer melhor a má organização social64 E isto seja porque ela não está apta a prover a suas necessidades fundamentais seja porque ela destrói ou apaga nele possibilidades aspirações ou exigências que surgirão em seguida no crime A falsa instrução as aptidões e as forças não consultadas a inteligência e o coração comprimidos por um trabalho forçado numa idade muito tenra65 Mas essa criminalidade de necessidade ou de repressão mascara com o brilho que lhe é dado e a desconsideração de que é cercada outra criminalidade que é às vezes causa dela e sempre a amplificação E a delinqüência de cima exemplo escandaloso fonte de miséria e princípio de revolta para os pobres Enquanto a miséria cobre de cadáveres vossas ruas de ladrões e assassinos vossas prisões que vemos da parte dos escroques da fina sociedade os exemplos mais corruptores o mais revoltante cinismo o banditismo mais desavergonhado Não receais que o pobre que é citado ao banco dos criminosos por ter arrancado um pedaço de pão pelas grades de uma padaria se indigne o bastante algum dia para demolir pedra por pedra a Bolsa um antro selvagem onde se roubam impunemente os tesouros do Estado a fortuna das famílias66 Ora essa delinqüência própria à riqueza é tolerada pelas leis e quando lhe acontece cair em seus domínios ela está segura da indulgência dos tribunais e da discrição da imprensa67 Daí a idéia de que os processos criminais podem se tornar ocasião para um debate político que é preciso aproveitar os processos de opinião ou ações intentadas contra os operários para denunciar o funcionamento geral da justiça penal O recinto dos tribunais não é mais apenas como antigamente um local de exibição das misérias e pragas de nossa época uma espécie de marca onde vêm se exibir lado a lado as tristes vítimas de nossa desordem social é uma arena onde ressoa o grito dos combatentes68 Daí também a idéia de que os prisioneiros políticos já que têm como os delinqüentes experiência direta do sistema penal mas que estão em condições de se fazer ouvir têm o dever de ser portavozes de todos os detentos a eles cabe esclarecer o bom burguês da França que nunca conheceu as penas que se infligem senão por meio de pomposas frases de um procurador geral69 Nesse questionamento da justiça penal e dos limites que ela estabelece cuidadosamente em torno da delinqüência é característica a tática do que poderíamos chamar o contranoticiário policial Para os jornais populares o importante era transformar o uso que se dava aos crimes ou aos processos nos jornais que à maneira da Gazette des tribunaux alimentam de sangue se alimentam de prisão e fazem representar todo dia um repertório de melodrama70 O contranoticiário policial destaca sistematicamente os fatos de delinqüência da burguesia mostrando que ela é a classe submetida à degenerescência física à podridão moral substitui os relatos de crimes cometidos por gente do povo pela descrição da miséria em que caem os que os exploram e que no sentido estrito os deixam com fome e os assassinam71 mostra nos processos criminais contra os operários a parte de responsabilidade que deve ser atribuída aos empregadores e à sociedade inteira Enfim empenhase todo esforço para transformar esse discurso monótono sobre o crime procurando ao mesmo tempo isolálo como uma monstruosidade e fazendo cair todo o seu escândalo sobre a classe mais pobre No curso dessa polêmica antipenal os partidários de Fourier foram sem dúvida mais longe que os outros Elaboraram os primeiros talvez uma teoria política que é ao mesmo tempo uma valorização positiva do crime Se este é segundo eles um efeito da civilização é igualmente e pela mesma razão uma arma contra ela Traz consigo um vigor e um futuro A ordem social dominada pela fatalidade de seu princípio compressivo continua a matar pela mão do carrasco ou com as prisões aqueles cujo natural robusto rejeita ou desdenha suas prescrições aqueles que por serem fortes demais para ficar presos nesses cueiros acanhados os desfazem e rasgam homens que não querem permanecer crianças72 Não há então natureza criminosa mas jogos de força que segundo a classe a que pertencem os indivíduos73 os conduzirão ao poder ou à prisão pobres os magistrados de hoje sem dúvida povoariam os campos de trabalhos forçados e os forçados se fossem bem nascidos tomariam assento nos tribunais e aí distribuiriam justiça74 No fundo a existência do crime manifesta felizmente uma incompressibilidade da natureza humana devese ver nele mais que uma fraqueza ou uma doença uma energia que se ergue um brilhante protesto da individualidade humana que sem dúvida lhe dá aos olhos de todos seu estranho poder de fascínio Sem o crime que desperta em nós uma grande quantidade de sentimentos adormecidos e de paixões meio apagadas ficaríamos mais tempo na desordem ou seja na atonia75 Pode então acontecer que o crime constitua um instrumento político que seja tão importante para a libertação de nossa sociedade quanto foi para a emancipação dos negros teria esta acontecido sem ele O veneno o incêndio e às vezes até a revolta atestam as ardentes misérias da condição social76 Os prisioneiros A parte mais infeliz e mais oprimida da humanidade La Phalange se reunia às vezes à estética contemporânea do crime mas para um combate bem diferente Daí uma utilização do noticiário policial que não tem simplesmente como objetivo fazer voltar contra o adversário a acusação de imoralidade mas fazer aparecer o jogo das forças que se opõem reciprocamente La Phalange analisa os casos penais como uma defrontação codificada pela civilização os grandes crimes não como monstruosidades mas como a volta fatal e a revolta do que é reprimido77 as pequenas ilegalidades não como as margens necessárias da sociedade mas como o fulcro da batalha que aí se desenrola Coloquemos aí depois de Vidocq e Lacenaire um terceiro personagem Esse fez só uma breve aparição sua notoriedade não durou mais que um dia Era apenas a figura passageira das ilegalidades menores uma criança de treze anos sem domicílio nem família acusada de vadiagem e que uma condenação a dois anos de correção sem dúvida colocou por muito tempo nos circuitos da delinqüência Teria com toda certeza passado sem vestígios se não tivesse oposto ao discurso da lei que a tornava delinqüente mais em nome das disciplinas que em termos do código o discurso de uma ilegalidade que permanecia rebelde a essas coerções E que valorizava a indisciplina de uma maneira sistematicamente ambígua como a ordem desordenada da sociedade e como afirmação de direitos irredutíveis Todas as ilegalidades que o tribunal codifica como infrações o acusado reformulou como afirmação de uma força viva a ausência de habitat em vadiagem a ausência de patrão em autonomia a ausência de trabalho em liberdade a ausência de horário em plenitude dos dias e das noites Essa defrontação da ilegalidade com o sistema disciplinapenalidadedelinqüência foi percebida pelos contemporâneos ou antes pelo jornalista que lá se encontrava como o efeito cômico da lei criminal às voltas com os fatos miúdos da indisciplina E estava certo o próprio caso e o veredicto que se lhe seguiu estão bem no centro do problema dos castigos legais no século XIX A ironia com que o juiz tenta envolver a indisciplina na majestade da lei e a insolência com que o acusado reinscreve a indisciplina nos direitos fundamentais constituem para a penalidade uma cena exemplar O que nos valeu sem dúvida a síntese da Gazette des tribunaux78 O Presidente Devese dormir em casa Béasse Eu tenho um em casa O senhor vive em perpétua vagabundagem Eu trabalho para ganhar a vida Qual é a sua profissão Minha profissão Em primeiro lugar tenho trinta e seis mas não trabalho para ninguém Já faz algum tempo estou por minha conta Tenho minhas ocupações de dia e de noite Assim por exemplo de dia distribuo impressos grátis a todos os passantes corro atrás das diligências que chegam para carregar os pacotes dou o meu show na avenida de Neuilly de noite são os espetáculos vou abrir as portas vendo senhas de saída sou muito ocupado Seria melhor para o senhor estar colocado numa boa casa e lá fazer seu aprendizado Ah é sim uma boa casa um aprendizado é chato Mas esses burgueses resmungam sempre e eu fico sem a minha liberdade Seu pai não o chama Não tenho mais pai E sua mãe Também não nem parentes nem amigos livre e independente Ouvindo sua condenação a dois anos de correção Béasse faz uma careta feia depois recobrando o bom humor Dois anos nunca duram mais que vinte e quatro meses Vamos embora vamos indo Esta é a cena que a Phalange aproveitou E a importância que lhe atribui a análise muito lenta muito cuidadosa que faz dela mostra que os partidários de Fourier viam num caso tão cotidiano como esse um jogo de forças fundamentais De um lado a força da civilização representada pelo presidente legalidade viva espírito e letra da lei Ela tem seu sistema de coerção que parece o código e na realidade é a disciplina É preciso ter um local uma localização uma inserção obrigatória Dormese em casa diz o presidente porque na verdade para ele tudo tem que ter um domicílio uma moradia esplêndida ou mísera pouco importa não é a ele que cabe provêla ele é encarregado de forçar a isso todos os indivíduos Devese além disso ter uma profissão uma identidade reconhecível uma individualidade definitivamente fixada Qual é sua profissão Esta pergunta é a expressão mais simples da ordem que se estabelece na sociedade a qual repugna e perturba a vagabundagem é preciso ter uma profissão estável contínua de largo fôlego idéias que vejam o futuro idéias de construção do futuro para premunir a sociedade de qualquer ataque Devese enfim ter um patrão estar preso e situado dentro de uma hierarquia o homem só existe fixado em relações definidas de dominação Para quem o senhor trabalha Quer dizer já que o senhor não é patrão tem que ser servidor de alguma forma o que importa não é a satisfação do indivíduo mas a ordem a ser mantida Diante da disciplina com aspecto de lei temos a ilegalidade que se impõe como um direito A ruptura se dá mais pela indisciplina do que pela infração Indisciplina da linguagem a incorreção gramatical e o tom das respostas indicam uma cisão violenta ente o acusado e a sociedade que por meio do presidente se dirige a ele em termos corretos Indisciplina que é a da liberdade nata e imediata Ele sente muito bem que o aprendiz o operário é escravo e que a escravidão é triste Ele sente que não a gozaria mais na ordem comum essa liberdade de movimento de que é possuído ele prefere a liberdade mesmo sendo desordem que importa E a liberdade ou seja o desenvolvimento mais espontâneo de sua individualidade desenvolvimento selvagem e conseqüentemente brutal e limitado mas desenvolvimento natural e instintivo Indisciplina nas relações familiares pouco importa que essa criança perdida tenha sido abandonada ou se tenha libertado voluntariamente pois não pôde também suportar a escravidão da educação em casa dos pais ou de estranhos E através de todas essas pequenas indisciplinas no fundo se acusa a civilização inteira enquanto desponta a selvageria É trabalho preguiça despreocupação devassidão é tudo menos ordem excetuandose as ocupações e devassidões é a vida do selvagem no diaadia e sem amanhã79 Sem dúvida as análises de La Phalange não podem ser consideradas representativas das discussões que os jornais populares faziam na época sobre os crimes e a penalidade Mas elas se situam no contexto dessa polêmica As lições de La Phalange não se perderam totalmente Elas é que foram despertadas pela reação tão ampla de resposta aos anarquistas quando na segunda metade do século XIX eles tomando como ponto de ataque o aparelho penal colocaram o problema político da delinqüência quando pensaram reconhecer nela a forma mais combativa de recusa da lei quando tentaram não tanto heroicizar a revolta dos delinqüentes quanto desligar a delinqüência em relação à legalidade e à ilegalidade burguesa que a haviam colonizado quando quiseram restabelecer ou constituir a unidade política das ilegalidades populares CAPÍTULO III O CARCERÁRIO Tivesse eu que fixar a data em que se completa a formação do sistema carcerário não escolheria 1810 e o Código Penal nem mesmo 1844 com a lei que estabelecia o princípio do internamente celular talvez não escolhesse 1838 quando foram publicados os livros de Charles Lucas MoreauChristophe e Faucher sobre a reforma das prisões Mas 22 de janeiro de 1840 data da abertura oficial de Mettray Ou melhor talvez aquele dia de uma glória sem calendário em que uma criança de Mettray agonizava dizendo Que pena ter que deixar tão cedo a colônia1 Era a morte do primeiro santo penitenciário Muitos bemaventurados o seguiram sem dúvida se é verdade que os colonos costumavam dizer para fazer o elogio da nova política punitiva do corpo Preferiríamos as pancadas mas a cela é melhor para nós Por que Mettray Porque é a forma disciplinar no estado mais intenso o modelo em que concentram todas as tecnologias coercitivas do comportamento Tem alguma coisa do claustro da prisão do colégio do regimento Os pequenos grupos fortemente hierarquizados entre os quais os detentos se repartem têm simultaneamente cinco modelos de referência o modelo da família cada grupo é uma família composta de irmãos e de dois mais velhos o modelo do exército cada família comandada por um chefe se divide em suas seções cada qual com um subchefe todo detento tem um número de matrícula e deve aprender os exercícios militares básicos realizase todos os dias uma revista de limpeza e uma vez por semana uma revista de roupas a chamada é feita três vezes por dia o modelo da oficina com chefes e contramestres que asseguram o enquadramento do trabalho e o aprendizado dos mais jovens o modelo da escola uma hora ou hora e meia de aula por dia o ensino é feito pelo professor e pelos subchefes e por fim o modelo judiciário todos os dias se faz uma distribuição de justiça no parlatório A mínima desobediência é castigada e o melhor meio de evitar delitos graves é punir muito severamente as mais leves faltas em Mettray reprimese qualquer palavra inútil a principal das punições infligidas é o encarceramento em cela pois o isolamento é o melhor meio de agir sobre o moral das crianças é aí principalmente que a voz da religião mesmo se nunca houvesse falado a seu coração recebe toda a sua força e emoção2 toda a instituição parapenal que é feita para não ser prisão culmina na cela em cujos muros está escrito em letras negras Deus o vê Essa superposição de modelos diferentes permite determinar a função de adestramento no que ela tem de específico Os chefes e subchefes em Mettray não devem ser exatamente nem juizes nem professores nem contramestres nem soboficiais nem pais mas um pouco de tudo isso e num modo de intervenção que é específico São de certo modo técnicos do comportamento engenheiros da conduta ortopedistas da individualidade Tem que fabricar corpos ao mesmo tempo dóceis e capazes controlam as nove ou dez horas de trabalho cotidiano artesanal ou agrícola dirigem as paradas os exercícios físicos a escola de pelotão as alvoradas o recolher as marchas com corneta e apito mandam fazer ginástica3 verificam a limpeza presidem aos banhos Adestramento que é acompanhado por uma observação permanente continuamente se avalia o comportamento cotidiano dos colonos é um saber organizado como instrumento de apreciação perpétua Ao entrar na colônia a criança é submetida a uma espécie de interrogatório para se ter uma idéia de sua origem posição de sua família a falta que a levou diante dos tribunais e todos os delitos que compõem sua curta e muitas vezes bem triste existência Essas informações são postas num quadro onde se anota sucessivamente tudo o que se refere a cada colono sua estada na colônia e sua situação depois que sai4 A modelagem do corpo dá lugar a um conhecimento do indivíduo o aprendizado das técnicas induz a modos de comportamento e a aquisição de aptidões se mistura com a fixação de relações de poder formamse bons agricultores vigorosos e hábeis nesse mesmo trabalho desde que tecnicamente controlado fabricamse indivíduos submissos e constituise sobre eles um saber em que se pode confiar Duplo efeito dessa técnica disciplinar que é exercida sobre os corpos uma alma a conhecer e uma sujeição a manter Um resultado autentica esse trabalho de treinamento em 1848 no momento em que a febre revolucionária apaixonava todas as imaginações no momento em que as escolas de Angers de La Flèche de Alfort e os próprios colégios se insurgiram os colonos de Mettray redobraram sua calma5 Mettray é sobretudo um exemplo na especificidade que lhe é reconhecida nessa operação de adestramento Ela se aproxima de outras formas de controle sobre as quais ela se apóia isto é na medicina na educação geral na direção religiosa Mas não se confunde absolutamente com elas Nem tampouco com a administração propriamente dita Os homens da direção chefes ou subchefes de família monitores ou contramestres tinham que viver bem próximos dos colonos usavam uma roupa quase tão humilde quanto a deles praticamente nunca os deixavam vigiandoos dia e noite constituíam no meio deles uma rede de observação permanente E para a formação destes chefes fora organizada na colônia uma escola especializada O elemento essencial de seu programa era submeter os futuros administradores aos mesmos aprendizados e às mesmas coerções que os próprios detentos eram submetidos como alunos à disciplina que deveriam como professores impor mais tarde Eralhes ensinada a arte das relações de poder Primeira escola normal da disciplina pura o penitenciário não é simplesmente um projeto que procura sua caução na humanidade ou seus fundamentos numa ciência mas uma técnica que se aprende se transmite e que obedece a normas gerais A prática que normaliza à força o comportamento dos indisciplinados ou dos perigosos pode ser por sua vez normalizada por uma elaboração técnica e uma reflexão racional A técnica disciplinar tornase uma disciplina que também tem sua escola A certidão de nascimento da psicologia científica segundo os historiadores das ciências humanas é passada com data dessa época Weber para medir as sensações teria começado a manipular seu pequeno compasso nesses mesmos anos O que se passa em Mettray e nos outros países da Europa um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde é evidentemente de outra ordem inteiramente diversa É a aparição ou antes a especificação institucional e como que o batismo de um novo tipo de controle ao mesmo tempo conhecimento e poder sobre os indivíduos que resistem à normalização disciplinar E no entanto na formação e no crescimento da psicologia o aparecimento desses profissionais da disciplina da normalidade e da sujeição vale bem sem dúvida a medida de um limiar diferencial Dirseá que a estimação quantitativa das respostas sensoriais podia pelo menos usar a autoridade dos prestígios da fisiologia nascente e que a esse título merece constar na história dos conhecimentos Mas os controles de normalidade eram por sua vez fortemente enquadrados por uma medicina ou uma psiquiatria que lhes garantiam uma forma de cientificidade estavam apoiados num aparelho judiciário que de maneira direta ou indireta lhes trazia sua canção legal Assim ao abrigo dessas duas consideráveis tutelas e aliás servindolhes de vínculo ou de lugar de troca desenvolveuse continuamente até hoje uma técnica refletida do controle das normas Os suportes institucionais e específicos desses processos se multiplicaram desde a pequena escola de Mettray seus aparelhos aumentaram em quantidade e em superfície seus laços se multiplicaram com os hospitais as escolas as repartições públicas e as empresas privadas seus agentes proliferaram em número em poder em qualificação técnica os técnicos da indisciplina fizeram escola Na normalização do poder de normalização na organização de um podersaber sobre os indivíduos Mettray e sua escola fazem época Mas por que ter escolhido este momento como ponto de chegada na formação de uma certa arte de punir que é ainda mais ou menos a nossa Precisamente porque essa escolha é um pouco injusta Porque situa o fim do processo na região menos nobre do direito criminal Porque Mettray é uma prisão embora falha prisão porque eram detidos aí os jovens delinqüentes condenados pelos tribunais e no entanto algo diferente pois eram presos aí os menores que haviam sido citados mas absolvidos em virtude do artigo 66 do Código e alunos internos retidos como no século XVIII a título da correção paterna Mettray como modelo punitivo está no limite da penalidade estrita Foi a mais famosa de toda uma série de instituições que bem além das fronteiras do direito penal constituíram o que se poderia chamar o arquipélago carcerário No entanto os princípios gerais os grandes códigos e as legislações afirmaram não há encarceramento fora da lei não há detenção que não seja decidida por uma instituição judiciária qualificada não há mais esses enclausuramentos arbitrários e no entanto maciços Ora o próprio princípio do encarceramento extrapenal na realidade nunca foi abandonado6 E se o aparelho do grande enclausuramento clássico foi em parte desmantelado e só em parte foi muito cedo reativado reorganizado desenvolvido em certos pontos Mas o que é ainda mais importante é que foi homogeneizado por intermédio da prisão por um lado com os castigos legais e por outro lado com os mecanismos disciplinares As fronteiras que já eram pouco claras na era clássica entre o encarceramento os castigos judiciários e as instituições de disciplina tendem a desaparecer para constituir um grande continuam carcerário que difunde as técnicas penitenciárias até as disciplinas mais inocentes transmitem as normas disciplinares até a essência do sistema penal e fazem pesar sobre a menor ilegalidade sobre a mínima irregularidade desvio ou anomalia a ameaça da delinqüência Uma rede carcerária sutil graduada com instituições compactas mas também com procedimentos parcelados e difusos encarregouse do que cabia ao encarceramento arbitrário maciço mal integrado da era clássica Não se trata aqui de reconstituir todo esse tecido que forma a ambiência imediata primeira depois cada vez mais longínqua da prisão Que seja suficiente dar algumas referências para avaliar a amplitude e algumas datas para medir a precocidade Houve as seções agrícolas das casas centrais cujo primeiro exemplo foi Gaillon em 1824 seguido mais tarde por Fontevrault les Douaires le Boulard houve as colônias para crianças pobres abandonadas e vadias PetitBourg em 1840 Ostwald em 1842 houve os refúgios as caridades as misericórdias destinadas às moças culpadas que recuam diante do pensamento de voltar a uma vida de desordem para as pobres inocentes expostas a uma perversidade precoce pela imoralidade materna ou para as meninas pobres encontradas à porta dos hospitais e das pensões Houve as colônias penitenciárias previstas pela lei de 1850 os menores absolvidos ou condenados lá deviam ser criados em comum sob uma severa disciplina e aplicados em trabalhos de agricultura assim como nas principais indústrias que a ela se ligam e mais tarde virão reunirse a eles os menores passíveis de internamente em colônias os pupilos viciosos e insubmissos da Assistência Pública7 E afastandose sempre mais da penalidade propriamente dita os círculos carcerários se alargam e a forma da prisão se dilui lentamente antes de desaparecer por completo as instituições para crianças abandonadas ou indigentes os orfanatos como Neuhof ou Le MesnilFirmin os estabelecimentos para aprendizes como o Bethléem de Reims ou a Maison de Nancy distanciandose ainda mais as fábricasconventos como a de La Sauvagère depois de Tarare e de Jujurieu onde as operárias entram pelos treze anos vivem reclusas durante anos e só saem sob vigilância não recebem salários mas fianças em forma de prêmios de zelo e bom comportamento que só lhes são entregues ao saírem Indo mais além houve ainda uma série de dispositivos que não retomam a prisão compacta mas utilizam alguns dos mecanismos carcerários patronatos obras de moralização centrais de distribuição de auxílios e vigilância cidades e alojamentos operários cujas formas primitivas e mais grosseiras trazem ainda muito visíveis as marcas do sistema penitenciário8 E finalmente essa grande organização carcerária reúne todos os dispositivos disciplinares que funcionam disseminados na sociedade Vimos que na justiça penal a prisão transformava o processo punitivo em técnica penitenciária quatro ao arquipélago carcerário ele transporta essa técnica da instituição penal para o corpo social inteiro Com vários efeitos importantes 1 Esse vasto dispositivo estabelece uma gradação lenta contínua imper ceptível que permite passar como que naturalmente da desordem à infração e em sentido inverso da transgressão da lei ao desvio em relação a uma regra a uma média a uma exigência a uma norma Na época clássica apesar de uma certa referência comum à falta em geral9 a ordem da infração a ordem do pecado e do mau comportamento ficavam separadas na medida em que dependiam de critérios e instâncias separadas a penitência o tribunal o enclausuramento O encarceramento com seus mecanismos de vigilância e punição funciona ao contrário segundo um princípio de relativa continuidade Continuidade das próprias instituições que existem num relacionamento recíproco dos órgãos de assistência para o orfanato para a casa de correção para a penitenciária para o batalhão disciplinar para a prisão da escola para o patronato para a oficina para o refúgio para o convento penitenciário da cidade operária para o hospital a prisão Continuidade dos critérios e mecanismos punitivos que a partir do simples desvio fazem pesar cada vez mais a regra e agravam a sanção Gradação contínua das autoridades instituídas especializadas e competentes na ordem do saber e na ordem do poder que sem arbitrariedade mas segundo regulamentos por meio de verificação e medida hierarquizam diferenciam sancionam punem e vão pouco a pouco da sanção dos desvios ao castigo dos crimes O carcerário com suas formas múltiplas difusas ou compactas suas instituições de controle ou de coação de vigilância discreta e de coerção insistente assegura a comunicação qualitativa e quantitativa dos castigos coloca em série ou dispõe segundo ligações sutis as pequenas e as grandes penas as atenuações e os rigores as más notas e as menores condenações Você ainda vai acabar nos trabalhos forçados pode dizer a menor das disciplinas e a mais severa das prisões diz ao condenado à prisão perpétua Vou tomar nota do menor desvio de seu comportamento A generalidade da função punitiva que o século XVIII procurava na técnica ideológica das representações e dos sinais tem agora por suporte a extensão a armadura material complexa dispersa mas coerente dos diversos dispositivos carcerários Por isso mesmo um certo significado comum circula entre a primeira das irregularidades e o último dos crimes não é mais a falta não é mais tampouco o ataque ao interesse comum é o desvio e a anomalia é a sombra que povoa a escola o tribunal o asilo ou a prisão Generaliza pelo lado do sentido a função que o carcerário generaliza pelo lado da tática O adversário do soberano depois inimigo social transformouse em desviador que traz consigo o perigo múltiplo da desordem do crime da loucura A rede carcerária acopla segundo múltiplas relações as duas séries longas e múltiplas do punitivo e do anormal 2 O carcerário com seus canais permite o recrutamento dos grandes delinqüentes Organiza o que se poderia chamar as carcereiras disciplinares onde sob o aspecto das exclusões e das rejeições todo um trabalho de elaboração se opera Na época clássica ficava aberto nos confins ou nos interstícios da sociedade o campo confuso tolerante e perigoso do foradalei ou pelo menos do que escapava ao domínio direto do poder espaço incerto que era para a criminalidade um local de formação e região de refúgio lá se encontravam ao sabor do acaso a pobreza o desemprego a inocência perseguida a esperteza a luta contra os poderosos a recusa das obrigações e das leis o crime organizado era o espaço da aventura percorrido por Gil Blas Sheppard ou Mandrin cada um a seu modo O século XIX com o jogo das diferenciações e das interligações disciplinares construiu canais rigorosos que na essência do sistema adestram a docilidade e fabricam a delinqüência com os mesmos mecanismos Houve uma espécie de formação disciplinar contínua e cerceadora que tem um pouco de curso pedagógico um pouco de canal profissional Delineiamse carreiras tão certas tão fatais quanto as de função pública asilos e associações de ajuda prisões domiciliares colônias penitenciárias batalhões de disciplina cadeias hospitais asilos de velhos Esses canais já eram bem conhecidos no século XIX Nossos estabelecimentos de beneficência apresentam um conjunto admiravelmente coordenado por meio do qual o indigente não permanece um momento sem ajuda do nascimento até o túmulo Segui o infeliz vêloeis nascer no meio das crianças enjeitadas daí passa à creche depois às salas de asilo daí sai aos seis anos para entrar na escola primária e mais tarde nas escolas de adultos Se não pode trabalhar é inscrito nos centros de beneficência de seu bairro e se ficar doente pode escolher entre 12 hospitais Enfim quando o pobre de Paris chega ao fim de sua carreira 7 asilos esperam sua velhice e muitas vezes seu regime saudável prolongou dias inúteis até bem mais longe que os dos ricos10 A rede carcerária não lança o elemento inassimilável num inferno confuso ela não tem lado de fora Toma por um lado o que parece excluir por outro Economiza tudo inclusive o que sanciona Não consente em perder nem o que consentiu em desqualificar Nesta sociedade panóptica cuja defesa onipresente é o encarceramento o delinqüente não está fora da lei mas desde o início dentro dela na própria essência da lei ou pelo menos bem no meio desses mecanismos que fazem passar insensivelmente da disciplina à lei do desvio à infração Se é verdade que a prisão sanciona a delinqüência esta no essencial é fabricada num encarceramento e por um encarceramento que a prisão no fim de contas continua por sua vez A prisão é apenas a continuação natural nada mais que um grau superior dessa hierarquia percorrida passo a passo O delinqüente é um produto da instituição Não admira pois que numa proporção considerável a biografia dos condenados passe por todos esses mecanismos e estabelecimentos dos quais fingimos crer que se destinavam a evitar a prisão Que se encontre aí se quisermos o indício de um temperamento delinqüente irredutível o recluso de Mende foi cuidadosamente produzido a partir da criança de casa de correção segundo as linhas de força do sistema carcerário generalizado E inversamente o lirismo da marginalidade pode se encantar o quanto quiser com a imagem do foradalei grande nômade social que ronda nos confins da ordem dócil e amedrontado A criminalidade não nasce nas margens e por efeito de exílios sucessivos mas graças a inserções cada vez mais rigorosas debaixo de vigilâncias cada vez mais insistentes por uma acumulação de coerções disciplinares Em resumo o arquipélago carcerário realiza nas profundezas do corpo social a formação da delinqüência a partir das ilegalidades sutis o ressarcimento destas por aquela e a implantação de uma criminalidade especificada 3 Mas o efeito mais importante talvez do sistema carcerário e de sua extensão bem além da prisão legal é que ele consegue tornar natural e legítimo o poder de punir baixar pelo menos o limite de tolerância à penalidade Tende a apagar o que possa haver de exorbitante no exercício do castigo fazendo funcionar um em relação ao outro os dois registros em que se divide um legal da justiça outro extralegal da disciplina Com efeito a grande continuidade do sistema carcerário por um lado e outro da lei e suas sentenças dá uma espécie de caução legal aos mecanismos disciplinares às decisões e às sanções que estes utilizam De um extremo a outro dessa rede que compreende tantas instituições regionais relativamente autônomas e independentes transmitese com a formaprisão o modelo da grande justiça Os regulamentos das casas de disciplina podem reproduzir a lei as sanções imitar os veredictos e as penas a vigilância imitar o modelo policial e acima de todos esses múltiplos estabelecimentos a prisão que é em relação a todos eles uma forma pura sem mistura nem atenuação lhes dá uma maneira de caução de Estado O carcerário com toda sua gama de punições que se estende dos trabalhos forçados ou da reclusão criminal até aos enquadramentos difusos e leves comunica um tipo de poder que a lei valida e que a justiça usa como sua arma preferida Como poderiam parecer arbitrários as disciplinas e o poder que nelas funciona se o que fazem é apenas acionar os mecanismos da própria justiça com o risco de diminuirlhes a intensidade Ou se generalizam esses efeitos se os transmitem até os últimos níveis é para evitar seus rigores A continuidade carcerária e a difusão da forma prisão permitem legalizar ou em todo caso legitimar o poder disciplinar que evita assim o que possa comportar de excesso ou de abuso Mas inversamente a pirâmide carcerária dá ao poder de infligir punições legais um contexto no qual este aparece livre de qualquer excesso e violência Na gradação sabiamente progressiva dos aparelhos de disciplina e dos ajustes que eles supõem a prisão não representa absolutamente o desencadear de um poder de outra natureza mas apenas um grau suplementar na intensidade de um mecanismo que não parou de funcionar desde as primeiras sanções Entre a última das instituições de adestramento onde a pessoa é recolhida para evitar a prisão e a prisão aonde ela é enviada depois de uma infração caracterizada a diferença é mau e mal perceptível e deve ser Rigorosa economia que tem o efeito de tornar tão discreto quanto possível o singular poder de punir Nele nada mais lembra agora o antigo excesso do poder soberano quando vingava sua autoridade sobre o corpo dos supliciados A prisão continua sobre aqueles que lhe são confiados um trabalho começado fora dela e exercido pela sociedade sobre cada um através de inúmeros mecanismos de disciplinas Graças ao continuum carcerário a instância que condena se introduz entre todas as que controlam transformam corrigem melhoram Na verdade nada mais os distinguiria realmente não fora o caráter singularmente perigoso dos delinqüentes a gravidade de seus desvios e a necessária solenidade do rito Mas em sua função esse poder de punir não é essencialmente diferente do de curar ou educar Recebe destes e de sua tarefa menor e inferior uma garantia que vem de baixo mas nem por isso menos importante pois é o socorro da técnica e da racionalidade O carcerário naturaliza o poder legal de punir como legaliza o poder técnico de disciplinar Homogeneizandoos assim apagando o que possa haver de violento em um e de arbitrário no outro atenuando os efeitos de revolta que ambos possam suscitar tornando conseqüentemente inúteis sua exasperação e excesso fazendo circular de um para o outro os mesmos métodos calculados mecânicos e discretos o carcerário permite a realização daquela grande economia do poder cuja fórmula o século XVIII procurou quando veio à tona o problema da acumulação e da gestão útil dos homens A generalidade carcerária funcionando em toda a amplitude do corpo social e misturando incessantemente a arte de retificar com o direito de punir baixa o nível a partir do qual se torna natural e aceitável ser punido Muitas vezes se pergunta como antes e depois da Revolução se deu um novo fundamento ao direito de punir E sem dúvida é pelo lado da teoria do contrato que se deve procurar a resposta Mas devese também e talvez sobretudo fazer a pergunta contrária como se fez para que as pessoas aceitassem o poder de punir ou simplesmente sendo punidos tolerassem sêlo A teoria do contrato só pode responder a isto pela ficção de um sujeito jurídico que dá aos outros o poder de exercer sobre ele o poder que ele próprio detém sobre eles E bem provável que o grande continuum carcerário que faz se relacionarem o poder da disciplina e o da lei e se estende sem ruptura das menores coerções até a grande detenção penal tenha constituído a dupla técnica real e imediatamente material daquela cessão quimérica do direito de punir 4 Com essa nova economia do poder o sistema carcerário que é seu instrumento de base encareceu uma nova forma de lei um misto de legalidade e natureza de prescrição e constituição a norma Daí toda uma série de efeitos o deslocamento interno do poder judiciário ou ao menos de seu funcionamento cada vez mais dificuldade de julgar e uma tal qual vergonha de condenar um desejo furioso de parte dos juizes de medir avaliar diagnosticar reconhecer o normal e o anormal e a honra reivindicada de curar ou readaptar Inútil creditar isso à consciência limpa ou pesada dos juizes nem mesmo a seu inconsciente Seu imenso apetite de medicina que se manifesta sem cessar desde seu apelo aos peritos psiquiatras até à atenção que dão ao falatório da criminologia traduz o fato maior de que o poder que exercem foi desnaturado que a um certo nível ele é realmente regido pelas leis que a outro e mais fundamental funciona como poder normativo é a economia do poder que exercem e não a de seus escrúpulos ou humanismo que os faz formular veredictos terapêuticos e decidir por encarceramentos readaptativos Mas inversamente se os juizes aceitarem cada vez com mais dificuldade ter que condenar por condenar a atividade de julgar se multiplicará na medida em que se difundir o poder normalizador Levado pela onipresença dos dispositivos de disciplina apoiandose em todas as aparelhagens carcerárias este poder se tornou uma das funções mais importantes de nossa sociedade Nela há juizes da normalidade em toda parte Estamos na sociedade do professorjuiz do médicojuiz do educadorjuiz do assistente socialjuiz todos fazem reinar a universalidade do normativo e cada um no ponto em que se encontra aí submete o corpo os gestos os comportamentos as condutas as aptidões os desempenhos A rede carcerária em suas formas concentradas ou disseminadas com seus sistemas de inserção distribuição vigilância observação foi o grande apoio na sociedade moderna do poder normalizador 5 A tessitura carcerária da sociedade realiza ao mesmo tempo as captações reais do corpo e sua perpétua observação é por suas propriedades intrínsecas o aparelho de punição mais de acordo com a nova economia do poder e o instrumento para a formação do saber que essa mesma economia tem necessidade Seu funcionamento panóptico lhe permite desempenhar esse duplo papel Através de seus processos de fixação repartição registro foi ele por muito tempo uma das condições a mais simples a mais primitiva a mais material também mas talvez a mais indispensável para que se desenvolvesse essa imensa atividade de exame que objetivou o comportamento humano Se entrarmos depois da era da justiça inquisitória na da justiça examinatória se de uma maneira ainda mais geral o procedimento do exame pôde estenderse tão amplamente à sociedade toda e dar lugar às ciências do homem um dos grandes instrumentos disso foi a multiplicidade e o entrecruzamento preciso dos diversos mecanismos de encarceramento Não quer dizer que da prisão saíram as ciências humanas Mas se elas puderam se formar e provocar no êpistemê todos os efeitos de profunda alteração que conhecemos é porque foram levadas por uma modalidade específica e nova de poder uma certa política do corpo uma certa maneira de tornar dócil e útil a acumulação dos homens Esta exigia a implicação de correlações definidas de saber nas relações de poder reclamava uma técnica para entrecruzar a sujeição e a objetivação incluía novos procedimentos de individualização A rede carcerária constitui uma das armaduras desse podersaber que tornou historicamente possíveis as ciências humanas O homem conhecível alma individualidade consciência comportamento aqui pouco importa é o efeitoobjeto desse investimento analítico dessa dominação observação 6 Isto explica sem dúvida a extrema solidez da prisão essa pequena invenção desacreditada desde o nascimento Se ela tivesse sido apenas um instrumento para eliminar ou esmagar a serviço de um aparelho estatal teria sido mais fácil modificar suas formas evidentes demais ou encontrar para ela um substituto mais aceitável Mas enterrada como está no meio de dispositivos e de estratégias de poder ela pode opor a quem quisesse transformála uma grande força de inércia Um fato é característico quando se pretende modificar o regime de encarceramento as dificuldades não vêm só da instituição judiciária o que resiste não é a prisãosanção penal mas a prisão com todas as suas determinações ligações e efeitos extrajudiciários é a prisão como recurso de recuperação na rede geral das disciplinas e das vigilâncias a prisão tal como funciona num regime panóptico O que não quer dizer que não possa ser modificada ou dispensável definitivamente para um tipo de sociedade como a nossa Podemos ao contrário situar os dois processos que na própria continuidade dos processos que a fizeram funcionar são capazes de restringir consideravelmente seu uso e transformar seu funcionamento interno E eles já foram sem dúvida iniciados em grande escala Um é o que diminui a utilidade ou faz aumentar as desvantagens de uma delinqüência organizada como uma ilegalidade específica fechada e controlada assim com a constituição em escala nacional ou internacional de grandes ilegalidades ligadas aos aparelhos políti cos e econômicos ilegalidades financeiras serviços de informação tráfico de armas e de droga especulações imobiliária é evidente que a mãodeobra um pouco rústica e manifesta da delinqüência se mostra ineficiente ou ainda em escala mais restrita a hierarquia arcaica da prostituição perde grande parte de sua antiga utilidade desde o momento em que previsões econômicas sobre o prazer sexual foram feitos de modo muito melhor pela venda de anticoncepcionais ou através de publicações filmes e espetáculos O outro processo é o crescimento das redes disciplinares a multiplicação de seus intercâmbios com o aparelho penal os poderes cada vez mais amplos que lhe são dados a transferência para eles cada vez maior de funções judiciárias ora à medida que a medicina a psicologia a educação a assistência o trabalho social tomam uma parte maior nos poderes de controle e de sanção em compensação o aparelho penal poderá se medicalizar se psicologizar se pedagogizar e desse modo tornarse menos útil a ligação que a prisão constituía quando pela defasagem entre seu discurso penitenciário e seu efeito de consolidação da delinqüência ela articulava o poder penal e o poder disciplinar No meio de todos esses dispositivos de normalização que se densificam a especificidade da prisão e seu papel de junção perdem parte de sua razão de ser Portanto se há um desafio político global em torno da prisão este não é saber se ela será não corretiva se os juizes os psiquiatras ou os sociólogos exercerão nela mais poder que os administradores e guardas na verdade ele está na alternativa prisão ou algo diferente de prisão O problema atualmente está mais no grande avanço desses dispositivos de normalização e em toda a extensão dos efeitos de poder que eles trazem através da colocação de novas objetividades Em 1836 um correspondente escrevia à La Phalange Moralistas filósofos legisladores e todos os que gabais a civilização aí tendes a planta de vossa cidade de Paris bem ordenada planta aperfeiçoada onde todas as coisas semelhantes estão reunidas No centro e num primeiro círculo hospitais para todas as doenças asilos para todas as misérias hospícios prisões locais de trabalhos forçados de homens de mulheres e de crianças Em torno do primeiro círculo quartéis tribunais delegacias de polícia moradia dos beleguins local dos cadafalsos habitação do carrasco e de seus ajudantes Nos quatro cantos câmara dos deputados câmara dos pares Instituto e Palácio do Rei Fora o que alimenta o circulo central o comércio com suas fraudes e bancarrotas a indústria e suas lutas furiosas a imprensa e seus sofismas as casas de jogo a prostituição o povo que morre de fome ou chafurda na orgia sempre atento à voz do Gênio das Revoluções os ricos sem coração enfim a guerra encarniçada de todos contra todos11 Termino aqui com este texto anônimo Estamos agora muito longe do país dos suplícios das rodas dos patíbulos das forcas dos pelourinhos estamos muito longe também daquele sonho que cinqüenta anos antes alimentavam os reformadores a cidade das punições onde mil pequenos teatros levariam à cena constantemente a representação multicor da justiça e onde os castigos cuidadosamente encenados sobre cadafalsos decorativos constituiriam a quermesse permanente do Código A cidade carcerária com sua geopolítica imaginária obedece a princípios totalmente diferentes O texto de La Phalange lembra alguns desses princípios mais importantes que no coração da cidade e como que para mantêla há não o centro do poder não um núcleo de forças mas uma rede múltipla de elementos diversos muros espaço instituição regras discursos que o modelo da cidade carcerária não é então o corpo do rei com os poderes que dele emanam nem tampouco a reunião contratual das vontades de onde nasceria um corpo ao mesmo tempo individual e coletivo mas uma repartição estratégica de elementos de diferentes naturezas e níveis Que a prisão não é filha das leis nem dos códigos nem do aparelho judiciário que não está subordinada ao tribunal como instrumento dócil e inadequado das sentenças que aquele exara e dos efeitos que queria obter que é o tribunal que em relação a ela é externo e subordinado Que na posição central que ocupa ela não está sozinha mas ligada a toda uma série de outros dispositivos carcerários aparentemente bem diversos pois se destinam a aliviar a curar a socorrer mas que tendem todos como ela a exercer um poder de normalização Que aquilo sobre o qual se aplicam esses dispositivos não são as transgressões em relação a uma lei central mas em torno do aparelho de produção o comércio e a indústria toda uma multiplicidade de ilegalidades com sua diversidade de natureza e de origem seu papel específico no lucro e o destino diferente que lhes é dado pelos mecanismos punitivos E que finalmente o que preside a todos esses mecanismos não é o funcionamento unitário de um aparelho ou de uma instituição mas a necessidade de um combate e as regras de uma estratégia Que conseqüentemente as noções de instituição de repressão de eliminação de exclusão de marginalização não são adequadas para descrever no próprio centro da cidade carcerária a formação das atenuações insidiosas das maldades pouco confessáveis das pequenas espertezas dos procedimentos calculados das técnicas das ciências enfim que permitem a fabricação do indivíduo disciplinar Nessa humanidade central e centralizada efeito e instrumento de complexas relações de poder corpos e forças submetidos por múltiplos dispositivos de encarceramento objetos para discursos que são eles mesmos elementos dessa estratégia temos que ouvir o ronco surdo da batalha12 NOTAS CAPÍTULO I 1 P Rossi Trité de droit pénal 1829 vol III p 169 2 Van Meenen Congresso penitenciário de Bruxelas in Annales de la Charité 1847 p 529530 3 A Duport Discurso à constituinte in Archives parlementaires 4 O jogo entre as duas naturezas da prisão ainda é constante Há alguns dias o chefe da Nação lembrou o princípio de que a detenção só devia ser uma privação de liberdade a pura essência do encarceramento libertado da realidade da prisão e acrescentou que a prisão só se podia justificar por seus efeitos corretivos ou readaptadores 5 Motifs du Code dinstruction criminelle relatório de GA Real p 244 6 Ibid Relatório de Treilhard p 89 Nos anos anteriores encontramos freqüentemente o mesmo tema A pena de detenção pronunciada pela lei tem principalmente por objeto corrigir os indivíduos ou seja tornálos melhores preparálos com provas mais ou menos longas para retomar seu lugar na sociedade sem tornar a abusar Os meios mais seguros de tornar melhores os indivíduos são o trabalho e a instrução Esta consiste não só em aprender a ler e a calcular mas também em reconciliar os condenados com as idéias de ordem de moral de respeito por si mesmos e pelos outros Beugnot prefeito de SeineInférieure portaria de Frimário ano X Nos relatórios pedidos por Chaptal aos conselhos gerais mais de uma dúzia pedem prisões onde se possa fazer os detentos trabalhar 7 Os mais importantes foram sem dúvida os propostos por Ch Lucas Marquet Wasselot Faucher Bonneville um pouco mais tarde Ferrus Devese ressaltar que a maior parte destes não eram filantropos que criticavam do exterior a instituição carcerária mas que estavam ligados de um modo ou de outro à administração das prisões Técnicos oficiais 8 Na Alemanha Julius dirigia os Jahrbücher für Strafsund Besserungs Anstalten 9 Se bem que esses jornais tenham sido principalmente órgãos de defesa dos prisioneiros por dívidas e que várias vezes marcaram sua distância em relação aos delinqüentes propriamente ditos encontramos a afirmação de que as colunas de Pauvre Jacques não são absolutamente consagradas a uma única especialidade A terrível lei da coação por corpo sua funesta aplicação não serão o único ponto atacado pelo prisioneiro jornalista Pauvre Jacques levará a atenção dos leitores aos locais de reclusão de detenção às cadeias aos centros de refúgio não manterá silêncio sobre os locais de tortura onde o homem culpado é entregue aos suplícios quando a lei só o condena aos trabalhos Pauvre Jacques ano I n 7 Assim também a Gazette de SaintePélagie milita por um sistema penitenciário que tivesse por finalidade a melhoria da espécie sendo todo o resto expressão de uma sociedade ainda bárbara 21 mar 1833 10 L Baltard Architectonographie des prisons 1829 11 Ch Lucas De la réforme des prisons 1838 vol II p 123124 12 A de Tocqueville Rapport à la Chambre des Députés citado in Beaumont e Tocqueville Le Système pénitentiaire aux Etatsunis 3ª ed 1845 p 392393 13 E de Beaumont e A de Tocqueville Ibid p 109 14 S Aylies Du système pénitentiaire 1837 p 132133 15 Ch Lucas De la réforme des prisons t I 1836 p 167 16 A discussão aberta na França por volta de 1830 não estava encerrada em 1850 Charles Lucas partidário de Auburn inspirara a portaria de 1839 sobre o regime das Centrais trabalho em comum e silêncio absoluto A vaga de revolta que se segue e talvez a agitação geral no país durante os anos 18421843 fazem que seja preferido em 1844 o regime pensilvaniano do isolamento absoluto gabado por Demetz Blouet Tocqueville Mas o 3 congresso penitenciário em 1847 opta contra esse método 17 K Mittermaier in Revue française et étrangère de législation 1836 18 AE de Gasparin Rapport au ministre de lIntérieur sur la réforme des prisons 19 E de Beaumont e A de Tocqueville Du système pénal aux EtatsUnis ed de 1945 p 112 20 Cada homem dizia Fox é iluminado pela luz divina e eu a vi brilhar através de cada homem Nesta linha dos quakers e de Walnut Street é que foram organizadas a partir de 1820 as prisões de Pensilvânia Pitsburgo depois Cherry Hill 21 Journal des économistes vol II 1842 22 Abel Blouet Projet des prisons cellulaires 1843 23 Abbé Petigny Allocution adressée aux prisonniers à 1occasion de 1inauguration des bâtiments cellulaires de la prison de Versailles Cf alguns anos mais tarde em Monte Cristo uma versão muito claramente cristológica da ressurreição depois do encarceramento mas então se trata não de aprender na prisão a docilidade às leis mas de adquirir por um saber secreto o poder de fazer justiça além da injustiça dos magistrados 24 NH Julius Leçons sur les prisons trad francesa 1831 t I p 417418 25 GA Real Motifs du Code dinstruction criminelle Antes disso várias instruções do Ministério do Interior haviam lembrado a necessidade de fazer trabalhar os detentos 5 Frutidor ano VI 3 Messidor ano VIII 8 Pluvioso e 28 Ventoso ano IX 7 Brumário ano X Logo depois dos códigos de 1808 e de 1810 encontramos ainda novas instruções 20 de outubro de 1811 8 de dezembro de 1812 ou ainda a longa Instrução de 1816 É da maior importância ocupar o mais possível os detentos Devese fazer nascer neles o desejo de trabalhar diferenciando o destino dos que se ocupam e dos detentos que querem permanecer ociosos Os primeiros serão mais bem nutridos mais bem acomodados que os segundos Melun e Clairvaux foram muito cedo organizados em grandes oficinas 26 JJ Marquet Wasselot t III p 171 27 Cf abaixo p 251 28 Cf JP Aguet Les Grèves sous la monarchie de Juillet 1954 p 3031 29 LAtelier 30 ano n 4 dez 1842 30 Ibid 6 ano n 2 nov 1845 31 Ibid 32 LAtelier 4 ano n 9 jun 1844 e 5 ano n 7 abr 1845 cf também na mesma época La Démocratie pacifique 33 LAtelier 5 ano n 6 mar 1845 34 Bérenger Rapport à lAcadémie des sciences morales junho de 1836 35 E Danjou Des prisons 1821 p 180 36 L Faucher De la réforme des prisons 1838 p 64 Na Inglaterra o tredmill e a bomba realizariam uma mecanização disciplinar dos detentos sem nenhum efeito produtivo 37 Ch Lucas De la réforme des prisons vol II 1838 p 313314 38 Ibid p 243 39 E Danjou Des prisons 1821 p 210211 cf também LAtelier 6 ano n 2 nov 1845 40 Ch Lucas op cit Um terço do salário diário era posto de lado para a saída do detento 41 E Ducpétiaux Du système de lempresionnement cellulaire 1857 p 3031 42 Comparese com o seguinte texto de Faucher Entrai numa fábrica de tecidos ouvi as conversas dos operários e o ruído das máquinas Haverá no mundo um contraste mais aflitivo que a regularidade e a previsão desses movimentos mecânicos comparados com a desordem de idéias e de costumes produzida pelo contato de tantos homens mulheres e crianças De la réforme des prisons 1838 p 20 43 A Bonneville Des libérations préparatoires 1846 p 6 Bonneville propunha medidas de liberdade preparatória mas também de suplemento de sofrimento ou de aumento penitenciário se se evidencia que a prescrição penal fixada aproximadamente de acordo com o grau provável de endurecimento do delinqüente não foi suficiente para produzir o efeito esperado Esse suplemento não devia ultrapassar um oitavo da pena a liberdade preparatória podia intervir depois de três quartos da pena Traité des diverses instructions complémentaires p 25ls 44 Ch Lucas citado na Gazette des tribunaux 6 de abril de 1837 45 In Gazette des tribunaux Cf também MarquetWasselot La Ville du refuge 1832 p 64 76 Ch Lucas anota que os contraventores são geralmente recrutados nas populações urbanas e as moralidades reclusionárias provêm geralmente das populações agrícolas De la réforme des prisons vol I 1836 p 4650 46 R Fresnel Considérations sur les maisons de refuge Paris 1829 p 2931 47 Ch Lucas De la réforme des prisons vol II 1838 p 440 48 L Duras Artigo publicado no Le Progressif e citado por La Phalange 1 dez 1838 49 Ch Lucas Ibid p 441442 50 A Bonneville Des libérations préparatoires 1846 p 5 51 A Bérenger Rapport à 1Académie des sciences morales et politiques jun 1836 52 Ch Lucas De la réforme des prisons vol II 1838 p 418422 53 E Decazes Rapport au Roi sur les prisons Le Moniteur 11 abr 1819 54 Vivien in G Ferrus Des prisonniers 1850 p VIII Uma ordenação de 1847 criara as comissões de vigilância 55 Léon Faucher De la réforme des prisons 1838 p 6 56 Ch Lucas De la réforme des prisons vol I 1836 p 69 57 Se quisermos tratar a questão administrativa abstraindo a de construção expomonos a estabelecer princípios a que não corresponde a realidade enquanto que com o suficiente conhecimento das necessidades administrativas um arquiteto pode muito bem admitir esse ou aquele sistema de encarceramento que a teoria talvez houvesse colocado entre as utopias Abel Blouet Projet de prison cellulaire 1843 p 1 58 L Baltard Architectonographie des prisons 1829 p 45 59 Os ingleses trazem em todas as suas obras o gênio da mecânica e quiseram que seus edifícios funcionassem com uma máquina submetida à ação de um único motor Ibid p 18 60 N P HarouRomain Projet de pénitencier 1840 p 8 61 V ilustrações nos 1826 62 Ducatel Instruction pour la construction des maisons darrêt p 9 63 E Ducpétiaux Du système de lemprisonnement cellulaire 1847 p 5657 64 Cf por exemplo G de Gregory Projet de Code pénal universel 1832 p 199s Grellet Wammy Manuel des prisons 1839 vol II p 2325 e 199203 65 Ch Lucas De la réforme des prisons vol II 1838 p 449450 66 Ch Lucas De la réforme des prisons vol II 1838 p 440442 67 Seria necessário estudar como a prática da biografia se difundiu a partir da constituição do indivíduo delinqüente nos mecanismos punitivos biografia ou autobiografia de prisioneiros em Appert estabelecimento de dossiês biográficos sobre o modelo psiquiátrico utilização da biografia na defesa dos acusados Sobre esse último ponto poderíamos comparar as grandes memórias justificativas do fim do século XVIII para os três homens condenados à roda ou para Jeanne Salmon e as defesas criminais da época de Luís Filipe Chaix dEstAge defendia La roncière Se muito tempo antes do crime muito tempo antes da acusação podeis escrutar a vida do acusado penetrar em seu coração sondar seu âmago mais escondido pôr a descoberto todos os seus pensamentos sua alma inteira Discours et Plaidoyers vol II p 166 68 JJ MarquetWasselot LEthmographie des prisons 1841 p 9 69 G Ferrus Des prisonniers 1850 p 182s e 278s CAPÍTULO II 1 Faucher notava que a cadeia era um espetáculo popular principalmente depois que se haviam quase suprimido os cadafalsos 2 Revue de Paris 7 jun 1836 Essa parte do espetáculo em 1836 não era mais pública só alguns espectadores privilegiados eram admitidos a ela O relato da ferração que se encontra na Revue de Paris é exatamente de acordo as vezes com as mesmas palavras com o de Dernier jour dum condamné 1829 3 Gazette des tribunaux 20 jul 1836 4 Ibid 5 La Phalange 1o ago 1836 6 A Gazette des tribunaux publica regularmente essas listas e notas criminais Exemplo de descrição para se reconhecer bem Delacollonge Calças de sarja velhas cobrindo um par de botas um boné do mesmo tecido com viseira e uma blusa cinza casaco de sarja azul 6 jun 1836 Mais tarde resolvem disfaçar Delacollonge para fazêlo escapar das violências da multidão A Gazette des tribunaux descreve logo o disfarce Calças listradas blusa de tela azul chapéu de palha 20 jul 7 Revue de Paris jun 1836 Cf Claude Gueux Apalpai todos esses crânios cada um desses homens caídos tem por baixo seu tipo bestial Eis o lobo eis o gato eis o macaco eis o abutre eis a hiena 8 La Phalange 1 ago 1836 9 Revue de Paris 7 jun 1836 Segundo a Gazette des tribunaux o capitão Thorez que comandava a cadeia de 19 de julho quis mandar retirar esses enfeites É inconveniente que indo para os trabalhos forçados expiar vossos crimes levais a afronta ao ponto de enfeitar a cabeça como se fosse para vós um dia de núpcias 10 Revue de Paris 7 jun 1836 Nessa data a cadeia fora encurtada para impedir a farândola e os soldados encarregados de manter a ordem até à partida da cadeia O sabá dos forçados é descrito no Dernier jour dum condamné A sociedade lá estava representada pelos carcereiros e curiosos apavorados enquanto o crime zombava dela um pouco fazendo desse tremendo castigo uma festa de família 11 Uma canção do mesmo gênero é citada pela Gazette des tribunaux de 10 abr 1836 Era cantada com a melodia da Marselhesa O canto da guerra patriótica nela se torna claramente o canto da guerra social Que quer de nós esse povo imbecil vem insultar a desgraça Vênos com um olhar tranqüilo Nossos carrascos não o horrorizam 12 Há uma classe de escritores que se dedicou a colocar malfeitores dotados de espantosa habilidade na glorificação do crime que os faz desempenhar o papel principal e entrega os agentes da autoridade a suas piadas ironias e sua zombaria mal disfarçada Quem tiver visto representar Auberge des Adrets ou Robert Macaire drama famoso no meio do povo reconhecerá facilmente a justeza de minhas observações É o triunfo é a apoteose da audácia e do crime A gente honesta e a polícia são totalmente mistificadas HA Fregier Les classes dangereuses 1840 vol II p 187188 13 Le dernier jour dum condamné 14 Gazette des tribunaux 19 jul 1836 15 Gazette des tribunaux 15 jun 1837 16 Gazette des tribunaux 23 jul 1837 A 9 de agosto a Gazette conta que a carruagem virou nos arredores de Guingamp em vez de se amotinar os prisioneiros ajudaram os guardas a erguer o veículo comum A 30 de outubro entretanto ela indica uma evasão em Valence 17 La Fraternité n 10 fev 1842 18 Número citado por G de la Rochefoucauld durante a discussão sobre a reforma do Código Penal 2 dez 1831 Archives parlementaires t LXXI1 p 209210 19 E Ducpétiaux De la réforme pénitentiaire 1837 t III p 276s 20 E Ducpétiaux Ibid 21 G Ferrus Des prisonniers 1850 p 363367 22 E de Beaumont e A de Tocqueville Note sur le système pénitentiaire 1831 p 2223 23 Ch Lucas De la réforme des prisons vol I 1836 p 127 e 130 24 F Bigot Préameneu Rapport au conseil général de la société des prisons 1819 25 La Fraternité mar 1842 26 Texto dirigido a LAtelier out 1842 3o ano n 3 por um operário preso por conluio Ele pôde anotar esse protesto a uma época em que o mesmo jornal fazia campanha contra a concorrência do trabalho penal No mesmo número outra carta de outro operário sobre o mesmo assunto Cf também La Fraternité mar 1842 1 ano n 10 27 L MoreauChristophe De la mortalité et de la folie dans le régime pénitentiaire 1839 p 7 28 LAlmanach populaire de la France 1839 assinado D p 4956 29 F de Barbé Marbois Rapport sur 1état des prisons du Calvados de 1Eure la Manche et la Seine Inférieure 1823 p 17 30 Gazette des tribunaux 3 dez 1829 Cf no mesmo sentido Gazette des tribunaux 19 jul 1839 a Ruche populaire ago 1840 La Fraternité julago 1847 31 Charles Lucas De la réforme des prisons vol II 1838 p 64 32 Essa campanha foi muito viva antes e depois da nova regulamentação das centrais em 1839 Regulamentação severa silêncio supressão do vinho e do fumo diminuição da cantina que foi seguida por revoltas Le Moniteur 3 out 1840 Era escandaloso ver os detentos se fartarem de vinho de carne de caça de guloseimas de todo tipo e tomar a prisão por um hotel confortável onde lhes eram proporcionadas todas as comodidades que muitas vezes o estado de liberdade lhes recusava 33 Em 1826 muitos conselhos gerais pedem que a deportação substitua um encarceramento constante e sem eficácia Em 1842 o Conselho Geral dos HautesAlpes pede que as prisões se tornem verdadeiramente expiatórias no mesmo sentido o de Drôme de EureetLoir de Nièvre de Rhône e de SeineetOise 34 Segundo uma pesquisa feita em 1839 junto aos diretores de prisões centrais Diretor de Embrun O excesso de bemestar nas prisões provavelmente contribui muito para o aumento assustador das reincidências Eysses O regime atual não é suficientemente severo e se uma coisa é certa é que para muitos detentos a prisão tem encantos e eles nela encontram gozos depravados que são tudo para eles Limoges O regime atual das casas centrais que na realidade não passam para os reincidentes de verdadeiros pensionatos não é absolutamente repressivo cf L MoreauChristophie Polémiques pénitentiaires 1840 p 86 Comparar com as declarações feitas em julho de 1874 pelos responsáveis pelos sindicatos de administração penitenciária a respeito dos efeitos da liberalização na prisão 35 Cf supra p 77s 36 Ch Comte Traité de législation 1843 p 49 37 H Lauvergne Les Forçats 1841 p 337 38 E Buré De la misère des classes laborieuses en Angleterre et en France 1840 vol II p 391 39 P Rossi Traité de droit pénal 1829 vol I p 32 40 Ch Lucas De la réforme des prisons vol II 1838 p 82 41 P Rossi Loc Cit p 33 42 Cf EJ Hobsbawm Les Bandits tradução francesa 1972 43 Sobre o problema da deportação cf F de BarbéMarbois Observations sur les votes de 41 conseils généraux e a discussão entre Blosseville e La Pilorgerie a respeito de Botany Bay Buré o coronel Marengo e L de Carné entre outros fizeram projetos de colonização da Argélia com delinqüentes 44 Um dos primeiros episódios foi a organização sob controle da polícia das casas de tolerância 1823 o que ultrapassava largamente as disposições da lei de 14 de julho de 1791 sobre a fiscalização nas casas de prostituição Cf sobre esse ponto os registros manuscritos da Delegacia de Polícia 2026 Particularmente esta circular do delegado de polícia de 14 de junho de 1823 O estabelecimento das casas de prostituição deveria naturalmente dessagradar a qualquer homem que se interesse pela moralidade pública não me espanta absolutamente que os Srs Comissários de Polícia se oponham com todas as suas forças ao estabelecimento dessas casas em seus diversos bairros A polícia acreditaria ter cuidado bastante bem da ordem pública se conseguisse fechar a prostituição em casas toleradas sobre as quais sua ação pode ser constante e uniforme e não pudessem escapar à fiscalização 45 O livro de ParentDuchatelet sobre a prostituição em Paris Prostitution à Paris 1836 pode ser lido como testemunha dessa ramificação patrocinada pela polícia e pelas instituições penais do meio delinqüente sobre a prostituição O caso da Máfia italiana transplantada para os Estados Unidos e utilizada em conjunto para a obtenção de lucros ilícitos e fins políticos é um belo exemplo da colonização de uma ilegalidade de origem popular 46 Sobre esse papel dos delinqüentes na vigilância policial e principalmente política cf a memória redigida por Lemaire Os denunciantes são gente que espera indulgências são geralmente maus elementos que servem para descobrir os que o são mais Além disso o simples fato de alguém ser incluído uma só vez no registro da polícia desde esse momento não é mais perdido de vista 47 K Marx Le 18Brumaire de LouisNapoléon Bonaparte Ed Sociales 1969 p 7678 48 A Bonneville Des institutions complémentaires du système pénitencier 1847 p 397 399 49 Cf HA Fregier Les classes dangereuses 1840 vol I p 142148 50 A Bonneville De Ia récidive 1844 p 9293 Aparecimento da ficha e constituição das ciências humanas mais uma invenção pouco celebrada pelos historiadores 51 Da resistência dos magistrados a participarem desse funcionamento temos testemunhos muito precoces desde a Restauração o que prova bem que não é um fenômeno nem uma reação tardia Particularmente a liquidação ou antes a reutilização da polícia napoleônica trouxe problemas Mas as dificuldades se prolongaram Cf o discurso com o qual Beleyme em 1825 inicia suas funções e procura se diferenciar de seus predecessores As vias legais estão abertas para nós Educado na escola das leis instruído na escola de uma magistratura tão digna somos os auxiliares da justiça cf Histoire de lAdministration de M de Belleyme ver também o panfleto muito interessante de Molène De la liberté 52 Ver tanto suas Mémoires publicadas em seu nome quanto a Histoire de Vidocq racontée par luimêne 53 A acusação é formalmente retomada por Canler Mémoires reeditadas em 1968 p 15 54 Sobre o que Lacenaire poderia ter sido segundo seus contemporâneos ver o dossiê feito por M Lebaily em sua edição das Mémoires de Lacenaire 1968 p 297304 55 Foi a ronda dos anos 18351836 Fieschi que se incluía na pena comum aos parricidas e regicidas foi uma das razões por que Rivière o parricida fosse condenado à morte apesar de uma memória cujo caráter espantoso foi sem dúvida abafado pelo brilho de Lacenaire de seu processo e de seus escritos publicados graças ao chefe da segurança não sem certas censuras no começo de 1836 alguns meses antes de seu cúmplice François ir dar com a cadeia de Brest um dos últimos grandes espetáculos ao ar livre do crime Ronda das ilegalidades e das delinqüências ronda dos discursos do crime e sobre o crime 56 No fim do século XVIII Colquhoum dá idéia da dificuldade da tarefa para uma cidade como Londres Traité de la police de Londres traduzido para o francês 1807 vol I p 3234 299300 57 Nenhuma outra classe está sujeita a uma vigilância deste gênero é exercida quase da mesma maneira que a dos condenados libertados parece colocar os operários na categoria que se chama agora a classe perigosa da sociedade LAtelier 5o ano n 6 mar 1845 a respeito da caderneta 58 Cf por exemplo JB Monfalcon Histoire des insurrections de Lyon 1834 p 142 59 Cf LAtelier outubro de 1840 ou ainda La Fraternité julhoagosto de 1847 60 Fora a Gazette des tribunaux e o Courrier des tribunaux o Journal des concierges 61 Cf LAtelier julho de 1844 Petição à Câmara de Paris para que os detentos sejam encarregados dos trabalhos insalubres e perigosos em abril de 1845 o jornal cita a experiência da Bretanha onde um número bem grande de condenados militares morreu de febre ao fazer trabalhos de canalização Em novembro de 1845 por que os prisioneiros não trabalham com mercúrio ou com alvaiade Cf igualmente a Démocratie politique dos anos 18441845 62 Em LAtelier de novembro de 1843 um ataque contra os Mystères de Paris porque exaltam demais os delinqüentes seu pitoresco seu vocabulário e porque é sublinhado demais o caráter fatal da inclinação para o crime Na Ruche populaire encontramos ataques do mesmo tipo a respeito do teatro 63 Délinquance et système pénitentiaire de France au XIXe siècle texto inédito 64 LHumanitaire ago 1841 65 La Fraternité nov 1845 66 La Ruche populaire nov 1842 67 Cf em La Ruche populaire dez 1839 uma réplica de Vinçard a um artigo de Balzac no Le Siècle Balzac dizia que uma acusação de roubo devia ser levada com prudência e discrição quando se tratasse de um rico cuja menor desonestidade é imediatamente conhecida Diga senhor com a mão na consciência se não acontece o contrário todos os dias se com uma grande fortuna e uma posição elevada no mundo não se encontram mil soluções mil maneiras de abafar um caso desagradável 68 La Fraternité nov 1841 69 Almanach populaire de la France 1839 p 50 70 Pauvre Jacques 1o ano n 3 71 Em Fraternité mar 1847 falase do caso Drouillard e alusivamente dos roubos na administração da marinha em Rochefort Em junho de 1847 artigo sobre o processo Boulmy e sobre o caso CubièrePellaprat em julhoagosto de 1847 sobre o caso de peculato BenierLagrangeJussieu 72 La Phalange 10 jan 1837 73 A prostituição patente o furto material direto o roubo o assassinato o banditismo para as classes inferiores enquanto que os esbulhos hábeis o roubo indireto e refinado a exploração bem feita do gado humano as traições de alta tática as espertezas transcendentes enfim todos os vícios e crimes realmente lucrativos e elegantes em que a lei está alta demais para atingilos se mantêm monopólio das classes superiores 1o dez 1838 74 La Phalange 1 dez 1838 75 La Phalange 10 jan 1837 76 Ibid 77 Cf por exemplo o que diz La Phalange de Delacollonge ou de Elirabide 1 de agosto de 1836 e 2 out 1840 78 La Gazette des tribunaux ago 1840 79 La Phalange 15 ago 1840 CAPÍTULO II 1 E Ducpétiaux De la condition physique et morale des jeunes ouvriers t II p 383 2 Ibid p 377 3 Tudo o que contribui para cansar contribui para afastar os maus pensamentos assim cuidamos que os jogos se componham de exercícios violentos A noite eles adormecem no mesmo instante em que se deitam Ibid p 375376 Cf figura n 27 4 E Ducpétiaux Des colonies agricoles 1851 p 61 5 G Ferrus Des prisonniers 1850 6 Haveria todo um estudo a ser feito sobre os debates que houve sob a Revolução a respeito dos tribunais de família da correção paterna e do direito dos pais de mandar prender os filhos 7 Sobre todas estas instituições cf H Gaillac Les Maisons de correction 1971 p 99107 8 Cf por exemplo a respeito das habitações operárias construídas em Lille em meados do século XIX A limpeza está na ordem do dia É a alma do regulamento Algumas disposições severas contra os que fazem barulho os bêbados as desordens de qualquer natureza Uma falta grave acarreta exclusão Levados a hábitos regulares de ordem e de economia os operários não desertam mais na segundafeira As crianças mais bem vigiadas não são mais razão de escândalo São distribuídos prêmios pelo cuidado da casa por bom comportamento pelos gestos de dedicação e cada ano concorrem em grande número a esses prêmios Houzé de lAulnay Des longements ouvriers à Lille 1863 p 1315 9 Encontramola explicitamente formulada por certos juristas como Muyart de Vouglans Réfutation dês príncipes hasardés dans le traité des délits et des peines 1767 p 108 Les lois criminelles de la France 1780 p 3 ou como Rousseaud de la Combe Traité des matières criminelles 1741 p 12 10 Moreau de Jonnès citado in H du Touquet De la condition des classes pauvres 1846 11 La Phalange 10 ago 1836 12 Interrompo aqui este livro que deve servir como pano de fundo histórico para diversos estudos sobre o poder de normalização e sobre a formação do saber na sociedade moderna Esta obra é distribuída Gratuitamente pela Equipe Digital Source e Viciados em Livros para proporcionar o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler Dessa forma a venda deste ebook ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância A generosidade e a humildade é a marca da distribuição portanto distribua este livro livremente Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras Se quiser outros títulos nos procure httpgroupsgooglecomgroupViciadosemLivros será um prazer recebêlo em nosso grupo httpgroupsgooglecomgroupViciadosemLivros httpgroupsgooglecomgroupdigitalsource