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Direito Penal

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PARTE III FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE 181 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE Carlos Frederico Marés1 INtRODUÇÃO A terra é a grande provedora das necessidades humanas É da terra que todos os povos tiram o seu sustento sua alegria seu vestuário e sua arte Não apenas a terra que germina o grão mas a que fornece os minerais o barro dos objetos o ferro do machado e o abrigo às intempéries se liga ao ser humano para criar sua cultura mística e espiritualidade Por isso no processo de transformação da riqueza natural em objetos da riqueza humana a fonte é sempre a terra e a natureza que a acompanha A terra é um bem comum A terra e todas as coisas da natureza dizia Las Casas é uma criação divina para a satisfação de todos os homens sem diferenças de povos clãs ou raças LAS CASAS 1985 Com isso e sempre baseado nas escrituras Las Casas não estava sequer imaginando a possibilidade de a terra ser propriedade privada mas ser um direito de uso seja para a produção de bens seja para o exercício da jurisdição Da mesma maneira John Locke escreveu também baseado nas escrituras e claramente descrevendo o nascente mercantilismo capitalista que o cultivo da terra e seu domínio são coisas idênticas sendo ilegítimo insensato e desonesto em suas palavras ter o domínio de mais do que pudesse lavrar e usar A propriedade da terra portanto tem como único fundamento o trabalho nela exercido LOCKE 1994 1 Carlos Frederico Marés de Souza Filho é Doutor em Direito do Estado Professor Titular de Direito Socioambiental da PUCPR e Procurador do Estado Autor de vários livros entre eles A função social da terra de 2003 182 Esses dois autores que foram entre si contemporâneos no início da modernidade nos apresentam a terra como provedora como a fonte de todas as riquezas e culturas e têm claro de como a terra é apenas o meio pelo qual o ser humano alcança os bens terrenais os produtos que lhe servem de alimento vestuário remédio ou conforto O direito de uso se confunde nesse início com o direito de propriedade a terra cercada era para uso Deste uso se fez propriedade A tERRA COMO MERCADORIA A modernidade capitalista transformou a terra em mercadoria quando a fez propriedade privada individual e transferível a quem não a usa Antes da invenção moderna da propriedade individual da terra seu uso era determinante Quer dizer para que alguém se considerasse proprietário ou pelo menos com direito à terra tinha que usála E usála no conceito da época era lavrála fazêla produzir bens consumíveis que para o capitalismo se chamaria mercadoria Em todo o longo processo de transformação capitalista português no regime sesmarial 13751822 o não uso da terra importava em seu abandono e em consequência na possibilidade de retomada do imóvel pelo Sesmeiro do Rei RAU 1982 Aliás quando se lê os juristas liberais do século XVIII e XIX se percebe claramente a diferença a crítica às sesmarias e à antiga Lei de D Fernando 1375 é exatamente a diferença entre a exigência de uso e o conceito de propriedade capitalista da terra Aqueles juristas entendiam que a intromissão da Estado no regime de propriedade da terra era nefasto e que cada proprietário haveria de usar a terra porque era de seu interesse e não de sua obrigação Este fundamento liberal defendendo e criando o direito absoluto sobre a terra a tornava uma simples mercadoria Para o direito liberal o uso é apenas um direito do proprietário que pode exercêlo ou não mas ainda que não o exerça não o perde 183 Argumentavam os juristas e economistas liberais que ninguém deixaria a terra sem lavrar e produzir porque era de seu interesse o lucro a produção Argumentavam ainda que o insensato seria obrigar alguém a produzir e obter lucros e portanto a terra teria que ser um bem jurídico como outro qualquer disponível no preciso termo que o direito moderno o conhece isto é passível de transferência de dominialidade pela só vontade do proprietário Disponível no sentido de destrutível mal usado ou guardado A lógica do capitalismo porém indicava na teoria que nenhum proprietário deixaria a terra sem lavrar porque lavrála seria de seu interesse Ninguém a usaria mal porque a poria a perder ninguém a guardaria inculta como reserva para o futuro porque a haveria de preferir como lucro presente A PROPRIEDADE AbSOLUtA DA tERRA A LEI DOS CóDIgOS Quem lê o Código Civil dos Franceses mandado redigir por Napoleão em 1804 vê como a terra e a natureza viraram objeto de propriedade e ainda mais claramente o mais importante objeto do direito de propriedade dos quantos bens pudesse o ser humano inventar porque a ele se agregam as coisas seus acessórios além do direito de usar gozar e fruir A leitura do artigo 544 daquela lei civil que é a primeira a dar estrutura jurídica ao capitalismo é reveladora da mudança sofrida a propriedade é o direito de fazer e de dispor das coisas do modo mais absoluto contanto que delas não se faça uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos Dois verbos enlaçam esse direito de propriedade dois verbos que se combinam fazer e dispor Há que se notar quem tem o direito absoluto de fazer tem também o de não fazer Nesse momento o uso deixou de ser o fundamento da propriedade Ao contrário o uso decorre agora da propriedade o proprietário tem o direito inerente de usar a propriedade ou de a dispor a uso alheio 184 Nessa concepção qual é o fundamento da propriedade então É o direito de dispor isto é o ato pelo qual um proprietário legítimo transfere o bem a outrem Dito tecnicamente é a legitimidade do contrato O contrato legítimo gera uma propriedade legítima O problema é a propriedade originária a que não precisou de contrato a primeira inicial Para as coisas feitas produzidas pelo ser humano é o trabalho O trabalho origina a propriedade No caso da terra também é o trabalho Então voltaríamos ao uso proprietário da terra é quem nela trabalha Errado para o direito capitalista O uso da terra só gera propriedade em duas situações 1 quando o Poder Público o Estado ou o Rei formalmente autorizam ou concedem o direito de uso como no caso das sesmarias neste sistema o uso tinha que ser mantido ou como no cercamento inglês 2 a usucapião que nada mais é do que o uso continuado como se dono fosse de um bem em geral é exigido pela lei que o usuário de boafé se considere proprietário Mas no brasil e muitos outros lugares onde havia terra a serem adquiridas por ação de conquista diferente de Portugal Inglaterra e França onde o domínio já estava consolidado a lei limitou o acesso permitindo somente a quem fosse amigo do Rei ou tivesse suficiente capital para contratar trabalhadores ou melhor ainda as duas coisas ao mesmo tempo No Brasil o instituto usado para isso foi o das sesmarias criado em 1375 e que obrigava o cessionário a usar a terra sob pena de perdêla de volta ao Rei que poderia cedêla a outra pessoa Entretanto se produzisse na terra confirmaria a concessão e na prática se tornaria proprietário podendo vendêla doála ou transferila por contrato Esta construção prática da propriedade da terra se tornou lei em 1850 com a Lei de Terras do Império Lei n 601 de 18 de agosto de 1850 que criou o instituto da concessão de terras devolutas gerando um direito originário próprio Essa lei veio reconhecer como propriedade todas as sesmarias confirmadas pela produção Resolvido o problema da propriedade originária o uso volta a ser apenas um direito do proprietário e como direito seu exercício depende 185 da vontade do titular Quer dizer todo aquele que adquirisse o título de propriedade seja pelo contrato ou sucessão seja pelo reconhecimento originário já tinha o direito de não usála A terra assim passou a ser um bem como outro qualquer uma mercadoria sem qualquer restrição ética a liberdade do sujeito do direito autorizava a acumulação de quanta terra quisesse ou pudesse ter da mesma forma que o ouro a prata e o dinheiro Como qualquer mercadoria não consumível sujeita à especulação do capital Assim passou o século XIX sem precisar de muitos teóricos que justificassem a propriedade da terra improdutiva porque os economistas liberais acreditavam que ninguém deixaria a terra sem lavrar pelo simples fato de seu interesse na produção e seu rendimento o lucro Esqueceram do fato de que a terra poderia ser reserva de valor ainda que sem produzir e usada como garantia bancária podia alavancar capitais para a indústria e as atividades urbanas e comercias A terra nem precisava ser produtiva para ser valor capitalista para ter renda O ESTADO INTERVÉM NA PROPRIEDADE PRIVADA Quando no final do século XIX a fome bate na porta da frente da Europa e o socialismo a fustiga por trás os liberais perdem espaço teórico e prático e os Estado começam a intervir na economia a força do caráter absoluto da propriedade começa a declinar O laissez faire laissez passer começou a dar lugar a um Estado intervencionista preocupado com as péssimas condições de trabalho de alimentação de saúde das pessoas preocupado também com a crescente organização dos trabalhadores dos sindicatos dos partidos políticos da imprensa livre e de esquerda enfim preocupados com a deterioração do sistema e do avanço do socialismo Autoridades como o conservador alemão Otto Bismarck chanceler e unificador do império alemão e do Papa Leão XIII entenderam a necessidade 186 de o Estado intervir entrando em ação na defesa do liberalismo e da ordem econômica capitalista Aparentemente contraditória esta frase significa que ambos entenderam que para manter o capitalismo era necessário corrigir lhe as falhas como dizia o Papa Bismarck fez editar leis que protegessem trabalhadores contra acidentes de trabalho doenças sinistros e invalidez além de permitir e reconhecer os sindicatos Era o Estado intervindo nos contratos mais especificamente nos contratos de trabalho regulando outra curiosa mercadoria criada pelo capitalismo o trabalho O Papa com sua encíclica Rerum Novarum propunha que o Estado cuidasse do trabalho e também da propriedade verificando que uma das falhas do capitalismo era justamente o caráter absoluto da propriedade O final do século XIX e o começo do XX são marcados por grandes comoções na Europa capitalista a unificação da Alemanha guerras a Constituição de Weimar a Revolução Russa a preocupação social e política da Igreja Católica e na América a Revolução Mexicana a Constituição Mexicana A União Soviética promove a abolição da propriedade privada a República de Weimar corrige os Códigos e dispõe que a propriedade não é apenas direito é também obrigação a revolução camponesa do México faz aprovar um norma constitucional que interfere nas leis civis garantido rigorosos critérios para a propriedade da terra O capitalismo estava assustado com tantas e tão profundas divisões internas era preciso regulamentar a propriedade era necessário que Estado bulisse na ordem econômica e social o liberalismo absoluto pai e mãe da propriedade absoluta tinha fracassado A reação a isso se dá de muitas diversas formas desde as duras e desumanas ditaduras à moda Hitler Mussollini Franco e Salazar até a propostas de reformas sociais para geração de um bemestar coletivo com o controle pelo Estado da produção e da riqueza Com isso surgem as necessidades de reformas sociais previdenciárias trabalhistas urbanas e agrária 187 Mais uma vez a propriedade da terra é posta na berlinda mais uma vez sem aprofundar a discussão teórica sobre a legitimidade da propriedade da terra se inclui nas legislações obrigações ao proprietário ora respeitadas ora não obrigações que podem significar tão somente o respeito ao patrimônio cultural das sociedades preservando monumentos históricos como a obrigação de produzir em terra fértil O que as ideias do bemestar queriam coibir era por um lado a transformação da terra em reserva de valor como ativo líquido que se tornara e por outro baratear os preços dos bens da terra possibilitando a diminuição dos salários urbanos Daí a necessidade de impor aos proprietários de terras dos países com capitalismo atrasado ou pouco desenvolvido no sentido industrial condições para que usassem suas terras Era o capitalismo mais avançado cobrando de seus parceiros mais atrasados A palavra mágica para essa intervenção estatal não era por certo a que traria de volta o império do uso em detrimento da propriedade o que seria perigoso ao capital mas usar um eufemismo que mantivesse a propriedade incólume e o uso como um direito O eufemismo mágico foi produtividade A PRODUTIVIDADE UMA OBRIgAçãO DA PROPRIEDADE O uso é um direito a produtividade uma qualidade Quando imperava o uso sobre a propriedade só quem usava tinha direito como nas sesmaria e a propriedade era coisa precária porque o rei poderia entregar a terra a outrem se não estivesse sendo usada Por isso exigir uso voltando ao velho sistema seria diminuir a propriedade retirarlhe o caráter capitalista de ser um bem disponível à vontade do titular Quando o uso se torna o direito principal a propriedade perde a dimensão que o capitalismo lhe empresta Se levarmos em conta que a terra era e é ainda a melhor e a principal garantia hipotecária ao sistema financeiro fácil a conclusão da importância 188 para o sistema capitalista financeirobancário do caráter absoluto da disponibilidade da terra Quando o Banco fica com a terra do devedor inadimplente ela passava a representar apenas um valor Isso significa que embora não fosse interessante a manutenção da terras como reserva de valor porque entrava o desenvolvimento do capitalismo retirar essa característica seria muito pior por isso se admite a manutenção da reserva do valor temporariamente Se o uso dominasse a propriedade porém o Banco deixaria de ter interesse na terra como garantia A solução mais coerente para o sistema então foi manter o caráter de mercadoria obrigando os proprietários que a fizesse produzir A produtividade passou a ser entendida cada vez como a obrigação do proprietário de terra Contrapondo ao direito de usar o sistema criou a obrigação de produzir Obrigação naquela vaga ideia da Constituição da República de Weimar a propriedade obriga Mas que tipo de obrigação é esta Ética Jurídica Contratual Certamente a Constituição de Weimar propunha uma obrigação jurídica que deveria ser revestida de sanção mas a Alemanha nunca pode aplicála com a grandeza que tinha o esgarçamento político escondeu qualquer possibilidade de avanço a lógica nazista não dava margem a teorizações ou sutilezas Essa obrigação é jurídica e deveria importar em sanção o seu descumprimento que acaba não sendo aplicada em função da confusão e pouca clareza das legislações Na América Latina o começo do século XX começou com a revolução mexicana e sua constituição isto é com um golpe duro na propriedade absoluta da terra O artigo 27 da Constituição de 1917 filho direto da revolução de 1910 como diz a historiadora Cristina Noble foi motivo de profundas divergências com os Estados Unidos da América porque mantinha a terra e outros recursos naturais sob o restrito controle do Estado NOBLE 2007 A Constituição mexicana é um exemplo para o continente mau exemplo do ponto de vista do capitalismo mas bom exemplo para os países 189 e sociedades que pretendiam frear os malefícios da propriedade absoluta não cria obrigações restringe direitos condiciona o direito de propriedade colocandoo em subordinação aos interesses e às necessidades da sociedade Entre a propriedade absoluta do liberalismo oitocentista e a abolição da propriedade sobre a terra estabelecida na Constituição socialista soviética da revolução de 1917 múltiplas alternativas podem ser propostas A mexicana por certo está muito mais próxima da socialista do que qualquer outra por isso mesmo é tão atacada e repudiada pelos conservadores a ponto de ser muitas vezes omitida como possibilidade jurídica Surgem então algumas discussões teóricas que jamais chegaram com clareza nas leis de terras das Américas A mais centrada de todas diz respeito ao conceito mesmo da propriedade da terra é possível haver propriedade da terra sem uso sem uma utilização que garanta tanto alimentos para a população como manutenção do bemestar dos homens e mulheres que vivem na terra Como se vê o conteúdo da propriedade da terra sugere algumas interpretações pode ser entendido como mera mercadoria como meio de produção capitalista capital como provedora da vida humana e animal como a argamassa cultural das sociedades MARÉS 2003 Não parece ter sido essa porém a questão central na discussão prática do capitalismo do início do século XX O exemplo da revolução russa e da mexicana tinham que ser afastados mas não só o pragmatismo político buscava alternativas para o abuso da propriedade absoluta há também razões de ordem econômica O capitalismo vê também a necessidade de reformas na política fundiária e agrária para que a terra cumpra duas funções que como latifúndio improdutivo não cumpre produzir matériasprimas e alimentos para baratear o custo da mão de obra e dos insumos industriais e gerar com salários e rendas rurais maior volume de consumo para as mercadorias manufaturadas na indústria urbana 190 É claro que o capitalismo podia aceitar e setores mais avançados recomendar uma reforma agrária que expurgasse o latifúndio improdutivo transformandoo com dinheiro público em capital dinâmico seja pelo valor pago pela terra seja pela própria terra transformada em meio efetivo de produção Para isso um novo conceito se fazia necessário Sendo o uso um direito do proprietário era necessário inventar a produtividade O que se tinha que exigir não era que o proprietário ou quem quer que fosse usasse a terra mas que o proprietário e só ele a tornasse produtiva O uso é um direito a produtividade uma qualidade Isto é o proprietário teria a obrigação de dar esta qualidade à terra no exercício de seu direito de uso O sistema estava com uma única cajadada resolvendo dois problemas jurídicos garantir a propriedade absoluta e o uso como direito e ao mesmo tempo criando uma obrigação legal a de produzir Já que o capitalismo precisava da terra para produzir matériasprimas ou alimentos o Estado pagaria o preço ao proprietário inadimplente e o próprio capitalismo sairia fortalecido Sempre há soluções mágicas quando há interesse econômico e sempre nas soluções mágicas fundadas no interesse econômico privado o povo paga a conta Portanto a função pensada e aceita pelo capitalismo para a propriedade da terra foi menos que o uso um direito mas uma função própria e adequada ao capital sua produtividade Esta função estava claramente inserida na ideia desenvolvimentista e progressista de programas capitalistas como a Aliança para o Progresso proposto para toda a América Latina pela USAID United States Agency for International Development A FUNçãO SOCIAL DA TERRA CONFUNDIDA COM A PRODUTIVIDADE MAIS UMA VEz A lei brasileira demorou muito para recepcionar a função social com instituto qualificativo da propriedade da terra e quando o fez não foi apenas tímido mas francamente dissimulado As constituições brasileiras do século XX 191 1934 1937 1946 1967 e 1969 seguindo orientação internacional permitiram em seus textos que a lei promovesse uma intervenção na propriedade privada e nos contratos na ordem econômica enfim estabelecendo políticas públicas de saúde trabalho desenvolvimento educação produção agrícola etc Mas a restrição à grande propriedade improdutiva e a reforma agrária não tiveram espaço e avançaram muito pouco até o golpe militar de 1964 O máximo que os governos progressistas conseguiram foi legalizar os sindicatos do campo e facilitar a organização da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura CONTAg ainda assim com fortíssima oposição dos ruralistas a tal ponto que o Ministro mais perseguido pela ditadura militar que derrubou o governo de João goulart foi exatamente o do Trabalho Ministro Amaury Silva a quem cabe o mérito da organização sindical do campo brasileiro2 Em 1964 foi promulgado o Estatuto da Terra Lei n 4504 de 30 de novembro Pela primeira vez uma lei brasileira adotava a função social como paradigma para a qualificação da propriedade Para aquela lei a propriedade da terra desempenha integralmente sua função social quando a favorece o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam assim como de suas famílias b mantém níveis satisfatórios de produtividades c assegura a conservação dos recursos naturais d observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivam A lei estabelecia que a reforma agrária seria promovida para entre outras coisas extinguir o latifúndio e o minifúndio considerado este as terras cuja dimensão não pudesse suprir as necessidades da família módulo mínimo regional e aquele 600 vezes maior que o módulo regional latifúndio por extensão ou terra improdutiva latifúndio por produção 2 Amaury de Oliveira e Silva nasceu em Rio Negro Paraná e faleceu em Curitiba Foi deputado estadual e Senador pelo Paraná quando assumiu o Ministério de Trabalho do governo de João goulart Na sua gestão o número de sindicatos de trabalhadores rurais passou de 150 para 1150 foram organizadas federações de trabalhadores nos então 21 estados brasileiros e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura Contag 192 Por outro lado dispunha que a desapropriação por interesse social de terras se daria sempre visando condicionar o uso da terra a sua função social mas também para permitir que políticas públicas adequadas fossem estabelecidas de tal forma que obrigasse a exploração racional da terra permitisse recuperação social e econômica da regiões evitasse degradação dos recursos naturais etc Então a ideia de função social da propriedade não estava diretamente atrelada exclusivamente à reforma agrária isto é não era apenas para fazer a terra produzir mas efetivamente adequar o seu uso inclusive para possibilitar a criação de áreas de proteção da fauna flora e outros recursos naturais art18 alínea h A questão da produtividade naquela lei estava em outra parte na política de desenvolvimento rural Título III no qual ficava instituído o Imposto Territorial Rural ITR Esse imposto deveria ser progressivo isto é seria pago com alíquotas crescentes dependendo do grau de Utilização da Terra gUT e o grau de eficiência obtido nas diferentes explorações Como era confuso o objetivo da reforma agrária o governo militar defendia a ideia de que a obrigação de alta produtividade se atingiria com a aplicação da progressividade tributária isto é com ITR Imposto Territorial Rural tanto mais alto quanto menos produtiva a propriedade A análise e eventuais sanções pelo não cumprimento da função social ficariam em segundo plano escondidas uma vez mais sob a produtividade Na prática os governos militares não fizeram nem uma nem outra coisa simplesmente abandonaram a Lei de Terras deixando de aplicála Optaram por desenvolver a agricultura aprofundando a chamada revolução verde isto é incentivando o uso cada vez mais expressivo de agrotóxicos mecanização e enfim a capitalização do campo Dessa forma não promoveu nem a reforma agrária nem a modernização por via do tributo incentivando por meio de 193 financiamentos o capital agrário Longe de qualquer sanção foi estabelecido prêmio ao cumprimento da lei da produtividade não da função social De qualquer forma e para evitar riscos os índices de produtividade ficaram aqueles definidos em 1964 muito antes da revolução verde Além disso desde o início a confusão entre produtividade e função social ficou estabelecida Quando se indaga do Estatuto da Terra o que significa a reforma agrária a resposta está no artigo art 1º 1º e também no art 16 afirmando que são políticas públicas para promover a melhor distribuição para chegar à justiça social e aumentar a produtividade visando à extinção do latifúndio e do minifúndio isto é mais do que só produtividade Mas quando se indaga o que é e para que serve a função social da propriedade as respostas parecem ser mais econômicas e construídas com o fim de isolar este instituto da desapropriação por interesse social De fato condicionar o uso da terra a sua função social é apenas uma das oito finalidades dao desapropriação por interesse social estabelecidas no art 18 do Estatuto da terra Enfim ainda que o Estatuto tenha registrado que a função social somente se cumpre com a observância das quatro condições produção bem estar proteção de recursos naturais e observância das leis trabalhistas fica claro que o objetivo da reforma agrária proposta pelos militares é o aumento da produtividade portanto por vias do ITR progressivo Não foi preciso porém aumentar o tributo a revolução verde deu conta de aumentar a produção no campo para remunerar o capital ali investido3 Essa nova política fez com que alguns velhos militantes da reforma agrária capitalistaprodutivista vendo o capital chegar ao campo e se consolidar como agronegócio passaram a declarar solenemente que já não havia mais necessidade de reforma agrária não porque estivesse cumprida 3 As histórias do desvio de dinheiro público de corrupção e de violação de normas e de propósitos são incontáveis e absurdas como bem se pode imaginar 194 a função social da propriedade mas porque a produtividade havia sido alcançada em sua plenitude pelo menos nos índices estabelecidos em 1964 A confusão entre produtividade e função social atingiu seus objetivos em relação a esses militantes CONSTITUIçãO DE 1988 O ARDIL DA NORMA O momento para consertar o equívoco historicamente urdido foi o processo constituinte do final dos anos 80 Ao inscrever não só a função social da propriedade mas uma política agrária consequente a intenção dos constituintes parecia ser efetivamente condicionar o exercício do direito de propriedade aos interesses sociais Por isso em todos os lugares em que a Constituição trata da propriedade insere como sua irmã gêmea a função social Isto é a Constituição não aplica a função social apenas para a propriedade da terra mas para qualquer propriedade Mas mesmo assim embora seja uma Constituição ambientalista e com declarado apelo social maquinações de constituintes ruralistas introduziram a produtividade para confundir mais uma vez o conceito de função social A Constituição definiu com muito mais clareza que o não cumprimento da função social gera a possibilidade de desapropriação pelo Poder Público Federal é verdade que poderia ter aberto essa possibilidade aos Estados mas os ruralistas não permitiram sempre que uma propriedade rural não cumpra a sua função social Por função social entende o mesmo que o Estatuto da Terra atualizando os conceitos de Meio Ambiente e trocando níveis satisfatórios de produtividade por aproveitamento racional e adequado Tudo estaria bem para se promover a reforma agrária voltada para o cumprimento da função social possibilitando desapropriar para atingir metas de agricultura orgânica de eliminação do trabalho escravo de cobertura 195 florestal etc Não fosse uma penada de última hora que introduziu um artigo o de n 185 duplamente enganoso Diz que são insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária a pequena e média propriedade desde que o proprietário não possua outra e a propriedade produtiva Eis a confusão restabelecida A margem para a interpretação é tão larga que comporta qualquer ideologia Afinal as propriedade pequenas médias e produtivas não precisam cumprir a função social Ou somente não podem ser desapropriadas para fim de reforma agrária Então para que serve a obrigação de cumprimento da função social A velha lei da ditadura era mais clara a reforma agrária visava acabar com o minifúndio e o latifúndio produtivo ou não além disso na definição da lei não importava o tamanho sem produzir qualquer terra é latifúndio socialmente nocivo portanto Promovida a confusão nada se colocou para redimila deixando à interpretação do Poder Judiciário que invariavelmente vem impedindo a reforma agrária pelo só fato da discussão da produtividade da terra mantido os índices estabelecidos há 40 anos ainda antes da revolução verde como se o artigo 185 fosse o dispositivo baliza de toda política pública agrícola agrária e fundiária da Constituição de 1988 A Constituição de 1988 estabelece alguns objetivos do Estado entre eles a supressão da pobreza e das desigualdades sociais e regionais a reversão dos impactos negativos ao meio ambiente a proteção das culturas populares etc Entre os instrumentos capazes de fazer chegar a esses objetivos está a reforma agrária fundada no cumprimento da função social da terra mas ardilosamente mais uma vez dois impeditivos foram introduzidos para dificultar a sua aplicação a exclusividade da União para desapropriar e o império da produtividade artigo 185 Cumpre portanto em interpretação que utilize toda a Constituição e não apenas os ardilosos artigos redefinir a exclusividade da União apenas para utilizar Títulos da Dívida Agrária na desapropriação podendo os demais entes desapropriar em dinheiro e 196 redefinir a produtividade como produtividade social de interesse social e não o só e ínfimo nível de produção fornecido pelo grau de Utilização da Terra e seus similares criados em uma época já de longe ultrapassada4 A FUNÇÃO SOCIAL DA tERRA COMO ALgO MAIS DO qUE PRODUÇÃO DE MERCADORIAS Todos os povos todas as sociedades em todos os tempos tiraram da terra o seu sustento Não importa se coberta de neve areia ou densa e impenetrável floresta a terra é a provedora não só das sociedades humanas mas de quantos animais aves e plantas existam Limitar a terra a mera produtora de mercadorias é coisa recente localizada e injusta Em um determinado momento da modernidade capitalista quando o racionalismo individualista ainda imaginava que era capaz de substituir todos os elementos da natureza inclusive a própria terra produzindo no ar ou na água tudo o que fosse necessário ao ser humano reservando aos animais e plantas a vida em zoológicos e museus botânicos a terra toda a terra poderia ter como função apenas ser suporte de produção de mercadorias Mas as coisas não se deram bem assim a insurgência da natureza e dos povos reclamaram a existência de terras água e ar com liberdade sob pena de morte extinção das espécies A humanidade no final do século XX se deu conta de que a terra é necessária não só para sustentar mercadorias mas também para manter viva a biodiversidade A ela se aliam as diversas forma de sociedades de organizações humanas que tiram da terra não só seu alimento mas sua alegria mitos e cultura Esta sociodiversidade aliada a biodiversidade é que pode dar resposta mais precisa do que seja a função social da terra ou da propriedade como o chamam as leis 4 Sobre esse tema e as consequências do não cumprimento da função social ver MARÉS 2003 197 A terra serve funciona tem vida para dar vida para reproduzir a vida não de cada indivíduo isoladamente mas de todos os seus habitantes plantas animais ou humanos Portanto sua função é manter a vida nas suas mais diversas formas e em suas mais estranhas e improváveis mudanças Não importa o que diga o direito não importa o que diga a lei escrita nas reuniões de representantes dos interesses diversos da sociedade humana A terra tem a função de prover a vida É até estranho dizer que a terra tem uma função ela é a provedora da vida não por função por obrigação mas porque é de sua natureza da essência de seu ser Pelas leis da natureza que não conhecem direitos nem obrigações mas causas e consequências a função social da terra é prover a Vida assim mesmo com V maiúsculo E se assim é a organização civil e racional de nossa sociedade deve garantir que seja provida a vida de todos os seres e garantida equitativamente a vida de todos os seres humanos Somente depois de tudo isso resolvido podemos pensar na produção de bens para satisfação das necessidades do orgulho e das vaidades humanas REFERÊNCIAS LAS CASAS Bartolomé Obra indigenista Madrid Alianza Editorial 1985 LOCKE John Segundo tratado sobre el gobierno civil Barcelona Ediciones Altaya 1994 MARÉS Carlos Frederico A função social da terra Porto Alegre SAFabris 2003 NOBLE Cristina Augusto Sandino un jinete contra el imperio buenos Aires Capital Intelectual 2007 RAU Virginia Sesmarias Medievais Portuguesas Lisboa Editorial Presença 1982