26
Literatura
UNILAB
154
Literatura
UNILAB
132
Literatura
UNILAB
5
Literatura
UNILAB
2
Literatura
UNILAB
79
Literatura
UNILAB
1
Literatura
UNILAB
13
Literatura
UNILAB
70
Literatura
UNILAB
13
Literatura
UNILAB
Texto de pré-visualização
3 Os pressupostos básicos João Luiz Lafetá 1930 A CRÍTICA E O MODERNISMO 4 1930 a crítica e o Modernismo Livraria Duas Cidades Ltda Rua Bento Freitas 158 Centro CEP 01220000 São Paulo SP Brasil Tel 11 2205134 Fax 11 2205813 wwwduascidadescombr livrariaduascidadescombr Editora 34 Ltda Rua Hungria 592 Jardim Europa CEP 01455000 São Paulo SP Brasil TelFax 11 8166777 editora34uolcombr Copyright Duas CidadesEditora 34 2000 1930 a crítica e o Modernismo João Luiz Lafetá 1974 A fotocópia de qualquer folha deste livro é ilegal e configura uma apropriação indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor Capa projeto gráfico e editoração eletrônica Bracher Malta Produção Gráfica Revisão Mara Valles Iracema Alves Lazari Isabella Marcatti 2ª Edição 2000 Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro Fundação Biblioteca Nacional RJ Brasil Lafetá João Luiz 19461996 L624c 1930 a crítica e o Modernismo João Luiz Lafetá São Paulo Duas Cidades Ed 34 2000 288 p Coleção Espírito Crítico ISBN 8573261706 Inclui bibliografia 1 Crítica literária Modernismo Brasil I Grieco Agripino 18881973 II Athayde Tristão de 18931983 III Andrade Mário de 18931945 IV Faria Octavio de 19081980 V Título VI Série CDD 80195 7 Prefácio Prefácio Este livro foi um marco na crítica brasileira do nosso tem po e a sua reedição faz pensar no quanto ela perdeu com a mor te precoce de João Luiz Lafetá Lafetá era contido e exigente não fazia questão de apare cer nem tinha pressa em publicar O seu trabalho intelectual se processava com o lento rigor dos que desejam tirar de si mesmos o melhor possível duvidando sempre do resultado Rigor e ten são mental freqüentemente tingidos de angústia caracterizavam o ritmo e o teor do seu esforço de crítico e docente O cuidado com que preparava os cursos e a longa gestação de dúvidas que lhe custavam florescia em aulas que se podem considerar perfei tas porque eram verdadeiras obras de arte didática Usando o qua dronegro com precisão desenvolvendo a explicação e interca lando os exemplos com domínio perfeito da matéria era sempre pessoal e o auditório talvez sentisse o quanto ele o respeitava ao perceber a riqueza de informação e de reflexão embutidas no preparo assim como o esforço de clarificação com que expunha as noções e os conceitos E com certeza admirava o sereno equi líbrio da sua elocução servida pela voz grave naturalmente em postada O que não podia perceber era a natureza do esforço da crispação angustiada que precedia aquele resultado eram as ho ras de tentativa hesitante dissolvidas na harmonia da exposição 8 1930 a crítica e o Modernismo Esse grande professor era um crítico finíssimo e cheio de ta lento capaz de ler os textos de maneira original e de sobrevoar períodos e tendências com força integrativa Prova é este livro que não por acaso se tornou logo título essencial na bibliografia especializada Nele João Luiz Lafetá reinterpretou com espírito renovador o movimento geral do Modernismo brasileiro como enquadramento e ao mesmo tempo finalidade implícita de um estudo sobre a crítica do decênio de 1930 por meio de amostra significativa Teoricamente o seu objetivo é sugerir certas conexões en tre literatura e ideologia problema que tem feito correr rios de tinta e quem navegou por eles bem sabe como são freqüentes as tentativas malogradas as formulações insatisfatórias e sobretu do as afirmações sem demonstração pecado capital no trabalho crítico Ora este livro é impecável pela segurança com que sou be adequar o proposto no plano teórico ao realizado no plano da análise Bem concebido e bem composto repousa num par de con ceitos que o autor manipula tanto no âmbito largo do período domínio próprio da história literária quanto no âmbito reduzi do de cada obra domínio da análise crítica Explícita ou im plicitamente esse par interpretativo percorre o livro não apenas dandolhe unidade e coerência mas operando a interpenetração dos níveis A proposta de Lafetá desde logo incorporada ao elenco dos nossos estudos literários se baseia no intuito de mostrar de que maneira o Modernismo se desdobrou como passagem do projeto estético dos anos de 1920 ao projeto ideológico dos anos de 1930 E é preciso salientar que ao estabelecer esta distinção ele não quis definir momentos estanques mas fases de predomi nância pois estético e ideológico se combinam nos dois momen tos Esta é uma das razões pelas quais o seu trabalho analítico é 9 Prefácio compreensivo e flexível superando a rigidez das dicotomias fre qüente nesse tipo de estudos Inclusive porque tem sempre na mira o problema da linguagem como algo inseparável do teor das mensagens Nas suas palavras qualquer nova proposição estética de verá ser encarada em suas duas faces complementares e aliás intimamente conjugadas não obstante às vezes conjugadas em forte tensão enquanto projeto estético diretamente ligada às mo dificações operadas na linguagem e enquanto projeto ideológico diretamente atada ao pensamento visão de mundo de sua épo ca E adiante Essa distinção que pretendemos usar no exame de um aspecto do Modernismo brasileiro é útil porque opera tória não podemos entretanto correr o risco de tornála mecâ nica e fácil na verdade o projeto estético que é a crítica da velha linguagem pela confrontação com uma nova linguagem já con tém em si o seu projeto ideológico O ataque às maneiras de dizer se identifica ao ataque às maneiras de ver ser conhecer de uma época se é na e pela linguagem que os homens externam a sua visão de mundo justificando explicitando desvelando simbo lizando ou encobrindo suas relações reais com a natureza e a so ciedade investir contra o falar de um tempo será investir contra o ser desse tempo Tendo exposto a sua posição Lafetá se fixa na crítica como placa sensível estudando quatro autores que representam qua tro posições em face do Modernismo e lhe permitem analisar níveis diferentes na dialética dos projetos Agripino Grieco Alceu Amoroso Lima Tristão de Athayde Mário de Andrade e Octavio de Faria Utilizando os escritos que produziram no de cênio de 1930 consegue demonstrar o seu ponto de vista e es clarecer a dinâmica do Modernismo brasileiro à luz da consciência crítica A ordem em que estuda os quatro autores segue a crono logia da respectiva entrada na vida literária mas ao mesmo tem 10 1930 a crítica e o Modernismo po gradua a variedade das posições em face da renovação moder nista de maneira a obter uma visão bastante completa Agripino Grieco vinha impregnado da atmosfera póspar nasiana e se aceitou o Modernismo não chegou a penetrar na sua singularidade nem no que havia de diferença criadora na obra dos seus protagonistas Lafetá ressalta a sua qualidade de crítico impressionista identificado ao espírito do jornalismo que pro duz não análises compreensivas mas crônicas pitorescas por vezes cintilantes de humor É como se a renovação literária ti vesse deslizado sobre ele sem modificar a sua visão arraigada nas fases anteriores embora ele tenha usado como os modernistas a arma profilática do riso e do sarcasmo em ataques irreverentes a figurões consagrados do mundo intelectual Deste modo con tribuiu também na sua escala modesta para espanar a literatura do tempo inclusive porque seus artigos atingiam um público nu meroso atraído pela sua verve O caso de Alceu Amoroso Lima é diferente pois tratase de um grande crítico que trouxe contribuições importantes com os seus ensaios do decênio de 1920 não apenas sobre os contem porâneos brasileiros mas sobre estrangeiros então pouco divul gados aqui como foi o caso do tratamento precoce e inteligente da obra de Marcel Proust cujo último volume apareceu em 1926 O estudo de seus escritos do decênio de 1930 valeu como caso ideal para o desígnio de Lafetá pois assim como o Moder nismo estava segundo ele transitando do projeto estético para o projeto ideológico o mesmo se dava com a concepção de li teratura de Alceu Amoroso Lima que a partir de 1929 deixou de ser um intelectual disponível para tornarse católico ardente e empenhado depois de convertido por influência de Jackson de Figueiredo Isso permitiu a Lafetá surpreender o embate dos dois projetos no interior de uma obra cujo autor desejava preser var a integridade do estético apesar de embebido de ideolo 11 Prefácio gia religiosa com fervor de neófito Ele mostra então como Alceu Amoroso Lima viveu uma espécie de drama intelectual ao querer preservar contraditoriamente os valores da tradição sem negar as experiências literárias contemporâneas Daí uma ambi güidade que no fundo tem precedentes em sua fase anterior de relativa neutralidade ideológica pois já nos anos de 1920 assi nala Lafetá estava claro que nele o apreço pelo Modernismo era temperado pelo apego a tipos anteriores de literatura segun do os quais tinham sido formados a sua mente e a sua sensibili dade Nos anos de 1930 essa tendência avulta e é reforçada pela opção católica que o levou a simpatizar com a ordem num sentido bem geral oposta à revolução também em sentido amplo pois esta lhe parecia minar a sociedade contemporânea como elemento dissolvente Daí o fato de encarar com simpatia as fórmulas políticas de direita inclusive as de corte fascista Esse pendor é analisado por Lafetá com acuidade e senso dos mati zes e como precisa respeitar os limites temporais do seu corpus pôde apenas mencionar que no decênio seguinte Alceu Amoro so Lima modificou essencialmente a sua posição na esteira do pensamento cristão progressista coroado pelo processo de atua lização secularização e radicalização de muitos setores da Igreja Católica acelerado nos anos de 1950 O leitor pressente que Lafetá teria gostado de entrar na análise dessa mudança mais afinada com as suas convicções de esquerda O caso de Mário de Andrade é especial pois ele foi um dos líderes do movimento modernista nos anos de 1920 e não ape nas o seu maior representante mas o seu grande teórico Não é portanto de estranhar que lhe seja dedicada a parte mais impor tante e atraente do livro inclusive porque estuda posições que praticamente coincidem com as do seu autor Procurando penetrar o mais fundo possível na mente com plexa e contraditória de Mário de Andrade Lafetá recua até o 12 1930 a crítica e o Modernismo começo do movimento modernista a fim de mostrar como ele definiu o projeto estético nos dois escritos que constituem a sua plataforma teórica o Prefácio interessantíssimo em Pauli céia desvairada e A escrava que não é Isaura Ambos denotam consciência crítica excepcional e propõem temas que Mário de Andrade trabalhará pela vida afora notadamente a relação entre técnica e impulso criador que aprofundaria nos anos de 1930 Para estudar as suas posições Lafetá usa tanto os ensaios e arti gos quanto certos poemas de conotação social nos quais conse gue localizar por dentro isto é no próprio tecido do discurso poético a presença de idéias políticas inseparáveis dos recursos de renovação da linguagem E aí está o ponto de apoio desse capítulo na medida em que mostra como Mário de Andrade teve a verdadeira consciência do problema não apenas ao sentir e perceber mas ao ser capaz de exprimir tanto no plano da cria ção quanto no da teoria a fusão inextricável dos dois projetos A análise lúcida com que Lafetá sugere essa posição é um verda deiro feito crítico seja pela capacidade de leitura seja pela feli cidade na escolha dos exemplos e a segurança de critérios teóri cos Por isso é uma contribuição de primeira ordem para o de bate complicado e freqüentemente inconclusivo sobre as relações entre convicção e fatura nas obras literárias Uma citação deixa rá claro o propósito deste capítulo Procuraremos na frente mostrar como Mário de Andra de na sua pesquisa de uma expressão nova voltouse para o es tudo da psicologia da criação buscando subsídios extraliterários que confirmassem as suas teorias estéticas e a sua concepção do poema como um fato de linguagem Em seguida tentaremos mostrar como a preocupação de participar levao a incluir em seu esquema o dado sociológico modificando sensivelmente várias das posições anteriores mas mantendo sempre a consciên cia básica da linguagem a noção da obra de arte como fatura e 13 Prefácio forma A tentativa final é a de examinar no interior dessas consciências a obra como fato estético como fato psíquico como fato social a tensão entre projeto estético a linguagem nova de vanguarda e projeto ideológico participação na vida social Este roteiro límpido é limpidamente seguido e demonstra a segurança de Lafetá no trabalho de resolver um problema difí cil da crítica literária pois desculpem a insistência consegue mos trar concretamente por meio de uma análise lúcida dos textos o que freqüentemente permanece mesmo em críticos bem do tados no terreno da afirmação sem demonstração Agripino Grieco apolítico não tinha diretriz ideológica Alceu Amoroso Lima era um agnóstico que ao se converter ao catolicismo imprimiu à sua crítica a subordinação do estético ao ético Mário de Andrade foi um intelectual simpatizante da es querda que soube manter a integridade da visão estética numa obra marcada pela participação ideológica O quarto crítico abor dado por Lafetá completa o circuito deste livro pois Octavio de Faria um dos ensaístas mais talentosos do fascismo no Brasil pro curou desqualificar com veemência o Modernismo dos anos de 1920 e a ficção social dos anos de 1930 que a princípio tinha recebido com louvores Ao estudálo Lafetá reformula o que denomina o seu ponto básico isto é a indagação de como o projeto ideológico con trasta com o projeto estético nele interfere e às vezes o determi na Com efeito neste capítulo final fica bem claro que a bússo la crítica do livro é a noção de que a literatura é linguagem antes de mais nada e a conseqüência disso para o crítico é a convic ção de que há uma relação entre a linguagem e a visão do mun do Por não compreendêla Octavio de Faria não compreen deu o Modernismo como não percebeu que os desequilíbrios eventuais da novelística de cunho social dos anos de 1930 eram 14 1930 a crítica e o Modernismo semelhantes aos dos seus próprios romances caudalosos fracas sos nos quais o peso ideológico de uma visão conservadora con tribuiu para a sua insensibilidade estilística como prosador E nes se passo Lafetá mostra que esquerda e direita podem se encon trar quando conferem ao projeto ideológico um predomínio que oblitera o projeto estético Ao fecharmos este livro tão bem concebido e realizado e pararmos para pensar sobre ele o sentimento principal é de ad miração pela coerência e a força interpretativa com que o autor realizou o seu intuito armado de uma firmeza teórica e uma ima ginação crítica que fazem mais uma vez lamentar a sua falta Antonio Candido 19 Os pressupostos básicos Os pressupostos básicos 1 Modernismo projeto estético e ideológico O estudo da história literária colocanos sempre diante de dois problemas fundamentais quando se trata de desvendar o alcance e os exatos limites circunscritos por qualquer movimen to de renovação estética primeiro é preciso verificar em que me dida os meios tradicionais de expressão são afetados pelo poder transformador da nova linguagem proposta isto é até que pon to essa linguagem é realmente nova em seguida e como neces sária complementação é preciso determinar quais as relações que o movimento mantém com os outros aspectos da vida cultural de que maneira a renovação dos meios expressivos se insere no contexto mais amplo de sua época Para retomar a distinção apre sentada pelos formalistas russos diríamos que se trata na his tória literária de situar o movimento inovador em primeiro lu gar dentro da série literária a seguir na sua relação com as ou tras séries da totalidade social Decorre daí que qualquer nova pro posição estética deverá ser encarada em suas duas faces comple mentares e aliás intimamente conjugadas não obstante às ve zes relacionadas em forte tensão enquanto projeto estético di retamente ligada às modificações operadas na linguagem e en 20 1930 a crítica e o Modernismo quanto projeto ideológico diretamente atada ao pensamento vi são de mundo de sua época Essa distinção que pretendemos usar no exame de um as pecto do Modernismo brasileiro é útil porque operatória não podemos entretanto correr o risco de tornála mecânica e fácil na verdade o projeto estético que é a crítica da velha linguagem pela confrontação com uma nova linguagem já contém em si o seu projeto ideológico O ataque às maneiras de dizer se identifica ao ataque às maneiras de ver ser conhecer de uma época se é na e pela linguagem que os homens externam sua visão de mun do justificando explicitando desvelando simbolizando ou en cobrindo suas relações reais com a natureza e a sociedade inves tir contra o falar de um tempo será investir contra o ser desse tempo Entretanto consideremos o poder que tem uma ideolo gia de se disfarçar em formas múltiplas de linguagem revestin dose de meios expressivos diversos dos anteriores pode passar por novo e crítico o que permanece velho e apenas diferente Pensemos por exemplo em certo aspecto exaltador do futuris mo marinettiano que pretendendose expressão da moderna vida industrial representava de fato o prolongamento anacrônico da consciência burguesa otimista e progressista do século XIX ou lembremos ainda a retórica popularesca e demagógica de con trarevoluções como o fascismo e o nazismo com seu apelo à mobilização das massas instaurando na simbólica partidária a fraude ideológica Por outro lado é também verdade que Mari netti e o fascismo para continuar com nosso exemplo em muitos dos seus aspectos representam inovações radicais na lite ratura e na retórica política e nesse sentido devem ser vistos como rupturas parciais com o passado nesse caso apesar da postura ideológica reacionária de base a linguagem contém elementos pertencentes à modernidade Assim é possível concluir que a despeito de sua artificialida 21 Os pressupostos básicos de a distinção estéticoideológico desde que encarada de forma dialética é importante como instrumento de análise O exame de um movimento artístico deverá buscar a complementaridade desses dois aspectos mas deverá também descobrir os pontos de atrito e tensão existentes entre eles Sob esse prisma e com a finalidade de nos situarmos numa base teórica face ao nosso ob jeto de estudo aspectos da crítica literária no decênio de 30 em São Paulo e no Rio procuramos examinar o Modernismo bra sileiro em uma das linhas de sua evolução Distinguimos o pro jeto estético do Modernismo renovação dos meios ruptura da lin guagem tradicional do seu projeto ideológico consciência do país desejo e busca de uma expressão artística nacional caráter de classe de suas atitudes e produções A experimentação estética é revolucionária e caracteriza for temente os primeiros anos do movimento propondo uma radi cal mudança na concepção da obra de arte vista não mais como mimese no sentido em que o Naturalismo marcou de forma exa cerbada esse termo ou representação direta da natureza mas como um objeto de qualidade diversa e de relativa autonomia subverteu assim os princípios da expressão literária Por outro lado inserindose dentro de um processo de conhecimento e in terpretação da realidade nacional característica de nossa lite ratura não ficou apenas no desmascaramento da estética pas sadista mas procurou abalar toda uma visão do país que subjazia à produção cultural anterior à sua atividade Nesse ponto encon tramos aliás uma curiosa convergência entre projeto estético e ideológico assumindo a modernidade dos procedimentos ex pressionais o Modernismo rompeu a linguagem bacharelesca ar tificial e idealizante que espelhava na literatura passadista de 18901920 a consciência ideológica da oligarquia rural instala da no poder a gerir estruturas esclerosadas que em breve graças às transformações provocadas pela imigração pelo surto indus 22 1930 a crítica e o Modernismo trial pela urbanização enfim pelo desenvolvimento do país iriam estalar e desaparecer em parte Sensível ao processo de mo dernização e crescimento de nossos quadros culturais o Moder nismo destruiu as barreiras dessa linguagem oficializada acres centandolhe a força ampliadora e libertadora do folclore e da literatura popular Assim as componentes recalcadas de nossa personalidade vêm à tona rompendo o bloqueio imposto pela ideologia oficial curiosamente é a experimentação de linguagem com suas exigências de novo léxico novos torneios sintáticos imagens surpreendentes temas diferentes que permite e obri ga essa ruptura1 Tal coincidência entre o estético e o ideológico se deve em parte à própria natureza da poética modernista O Modernismo brasileiro foi tomar das vanguardas européias sua concepção de arte e as bases de sua linguagem a deformação do natural como fator construtivo o popular e o grotesco como contrapeso ao falso refinamento academista a cotidianidade como recusa à idealiza ção do real o fluxo da consciência como processo desmascara dor da linguagem tradicional Ora para realizar tais princípios os vanguardistas europeus foram buscar inspiração em grande parte nos procedimentos técnicos da arte primitiva aliandoos à tradição artística de que provinham e por essa via transfor mandoa mas no Brasil já o notou Antonio Candido as artes negra e ameríndia estavam tão presentes e atuantes quanto a cultura branca de procedência européia O senso do fantásti co a deformação do sobrenatural o canto do cotidiano ou a es pontaneidade da inspiração eram elementos que circundavam as 1 Ver para a análise que se segue Antonio Candido Literatura e sociedade capítulos Literatura e cultura de 19001945 e A literatura na evolução de uma comunidade pp 1956 especialmente 23 Os pressupostos básicos formas acadêmicas de produção artística Dirigindose a eles e dandolhes lugar na nova estética o Modernismo de um só pas so rompia com a ideologia que segregava o popular distor cendo assim nossa realidade e instalava uma linguagem con forme à modernidade do século Outro fator que permite essa convergência é a transforma ção sócioeconômica que ocorre então no país O surto indus trial dos anos de guerra a imigração e o conseqüente processo de urbanização por que passamos nessa época começam a con figurar um Brasil novo A atividade de industrialização já permite comparar uma cidade como São Paulo no seu cosmopolitismo aos grandes centros europeus Esse dado é decisivo já que a lite ratura moderna está em relação com a sociedade industrial tan to na temática quanto nos procedimentos a simultaneidade a rapidez as técnicas de montagem a economia e a racionalização da síntese É de se notar entretanto que no Brasil a arte mo derna não nasce com o patrocínio dos capitãesdeindústria é a parte mais refinada da burguesia rural os detentores das gran des fortunas de café que acolhem estimulam e protegem os es critores e artistas da nova corrente Mário de Andrade insiste nesse aspecto em várias partes do seu O movimento modernista afir mando com humor Nenhum salão de ricaço tivemos nenhum milionário estrangeiro nos acolheu Os italianos alemães os is raelitas se faziam de mais guardadores do bomsenso nacional que Prados e Penteados e Amarais2 Há uma contradição aparente no fato de a arte moderna implicando todas aquelas ligações com a sociedade industrial ter sido patrocinada e estimulada por fração da burguesia rural O 2 Mário de Andrade O movimento modernista in Aspectos da literatura brasileira p 241 24 1930 a crítica e o Modernismo paradoxo todavia fica ao menos parcialmente resolvido se aten tarmos para a divisão de classes no Brasil durante a década de 20 apesar da insuficiência de estudos a esse respeito parece hoje confirmado que além das relações de produção no campo pau lista já terem caráter nitidamente capitalista por essa época uma importante fração da burguesia industrial provém da burguesia rural bem como grande parte dos capitais que permitiram o pro cesso de industrialização3 Daí não haver de fato nada de espan toso em que uma fração da burguesia rural assuma a arte moderna contra a estética passadista oficializada nos jornais do gover no e na Academia Educada na Europa culturalmente refinada adaptada aos padrões e aos estilos da vida moderna não apenas podia aceitar a nova arte como na verdade necessitava dela Por outro lado e isso ajuda a explicar o caráter localista que marca tão fundamente o Modernismo a par do seu cosmopolitismo a burguesia faz praça de sua origem senhorial de proprietária de terras O aristocratismo de que se reveste precisa ser justificado por uma tradição que seja característica marcante e distintiva um verdadeiro caráter nacional que ela represente em seu máxi mo refinamento É interessante observar que ainda em O mo vimento modernista Mário de Andrade assinala a imponência de riqueza e tradição no ambiente dos salões e se refere várias vezes ao cultivo da tradição representada principalmente pela cozinha de cunho afrobrasileiro aparecendo em almoços e jantares perfeitíssimos de composição Dessa forma os artistas do Modernismo e os senhores do café uniam o culto da moder nidade internacional à prática da tradição brasileira 3 Ver Edgard Carone A Primeira República e A República Velha vol I Boris Fausto A Revolução de 1930 Caio Prado Jr A revolução brasileira Celso Furta do Formação econômica do Brasil 25 Os pressupostos básicos Desrecalque localista assimilação da vanguarda européia sintetiza Antonio Candido4 A convergência de projeto estético e de projeto ideológico deu as obras mais radicais mais tipica mente modernistas e talvez mais modernas vistas da perspec tiva de hoje do movimento o Miramar e o Serafim de Oswald de Andrade o Macunaíma de Mário a contundência estética da poesia PauBrasil A ruptura na linguagem literária correspondia ao instante em que o curso da história propiciava um reajusta mento da vida nacional E a coincidência da primeira constru ção brasileira no movimento de reconstrução geral Poesia Pau Brasil intuiu Oswald5 Daí a força renovadora modernista seu caráter marcadamente nacional e o viço de contemporaneidade que cinqüenta anos depois faz com que suas obras mais repre sentativas mantenham o traço da vanguarda 2 Da fase heróica aos anos trinta Essa convergência feliz no entanto se dá principalmente durante a fase heróica do Modernismo por razões que como é óbvio estão longe de terem sido esgotadas sequer afloradas em toda a sua extensão nos breves parágrafos anteriores Li mitemos entretanto nosso campo de investigações não cabe aqui uma análise da essência do movimento modernista e apenas abor damos tais aspectos a fim de nos situarmos com maior clareza face à problemática enfrentada pela crítica literária durante os anos 4 Antonio Candido op cit p 145 5 Oswald de Andrade Manifesto da poesia PauBrasil in Correio da Ma nhã 18031924 26 1930 a crítica e o Modernismo subseqüentes à Revolução de 30 Recapitulemos portanto o que foi visto e tentemos chegar até lá Vimos que por uma razão de ordem artística a natureza intrínseca da linguagem modernista solicitando a incorporação do popular e do primitivo e outra de ordem ideológica a bur guesia apoiandose em sua origem e revalorizando através da transmutação estética modernizante hábitos e tradições cultu rais do Brasil arcaico os dois projetos do Modernismo se arti culam e se complementam Podemos agora levar um pouco mais longe o raciocínio e indagar das condições sociais e políticas que a essa época permitem a complementação Para situar corretamente o Modernismo é preciso pensar na sua correlação com outras séries da vida social brasileira em es pecial na sua correlação com o desenvolvimento da economia ca pitalista em nosso país Aí parece estar o fulcro da questão aten tando para a efervescência política dos anos vinte o observador poderá inferir que o Brasil atravessa uma fase de transformações profundas tendentes a configurar um quadro econômicoestru tural mais complexo que o sistema agrárioexportador herdado do Império As modificações no sistema de produção datam na turalmente de muito antes da década de 20 vêm de antes da Abo lição com o emprego do trabalho assalariado e passam pelos su cessivos surtos de industrialização pela política do Encilhamen to pelas várias levas imigratórias pelas inúmeras agitações operá rias do começo do século tudo caminhando em direção a uma complexificação crescente tanto da nossa vida econômica quan to da nossa vida cultural Apesar de não afastar do poder as oli garquias rurais a burguesia comercial financeira industrial so zinha ou aliada aos interesses capitalistas imperialistas se encontra em franco processo de ascensão cresce também a classe média formase nas cidades um proletariado que sabe às vezes demons trar sua agressividade Nos três primeiros decênios do século XX 27 Os pressupostos básicos os velhos quadros econômicos políticos e culturais do século XIX são lentamente modificados e acabam por estourar na Revolu ção de 30 Há durante esses anos não obstante a resistência das su perestruturas permanece a política dos governadores a serviço das oligarquias permanece em suas linhas básicas a política fi nanceira protecionista do café gerando atritos com a burguesia industrial permanecem ainda em alto grau de diluição o Natu ralismo e o Simbolismo do século anterior Durante os anos vinte esses óbices vão sendo mais vigorosamente atacados o tenen tismo é a clara expressão de um desejo de modificação do país assim como a fundação do Partido Comunista e a formação por Jackson de Figueiredo de um grupamento pequenoburguês católico e direitista Tratase no fundo do processo de plena im plantação do capitalismo no país e do fluxo ascencional da bur guesia dois fatores que mexem com as demais camadas sociais e são espelhados por tal agitação Nesse panorama de modernização geral se inscreve a cor rente artística renovadora que assumindo o arranco burguês con segue paradoxalmente exprimir de igual forma as aspirações de outras classes abrindose para a totalidade da nação através da crítica radical às instituições já ultrapassadas6 Nesse ponto o Mo dernismo retoma e aprofunda uma tradição que vem de Euclides da Cunha passa por Lima Barreto Graça Aranha Monteiro Lobato tratase da denúncia do Brasil arcaico regido por uma política ineficaz e incompetente Mas notemos não há no movimento uma aspiração que transborde os quadros da burguesia A ideologia de esquerda não encontra eco nas obras da fase heróica se há denúncia das más 6 Cf Nelson Werneck Sodré Memórias de um escritor vol I pp 278 28 1930 a crítica e o Modernismo condições de vida do povo não existe todavia consciência da possibilidade ou da necessidade de uma revolução proletária Essa é a grande diferença com relação à segunda fase do Modernismo O decênio de 30 é marcado no mundo inteiro por um recrudescimento da luta ideológica fascismo nazismo co munismo socialismo e liberalismo medem suas forças em disputa ativa os imperialismos se expandem o capitalismo monopolista se consolida e em contraparte as Frentes Populares se organi zam para enfrentálo No Brasil é a fase de crescimento do Partido Comunista de organização da Aliança Nacional Libertadora da Ação Integralista de Getúlio e seu populismo trabalhista A cons ciência da luta de classes embora de forma confusa penetra em todos os lugares na literatura inclusive e com uma profundi dade que vai causar transformações importantes Um exame comparativo superficial que seja da fase herói ca e da que se segue à Revolução mostranos uma diferença bá sica entre as duas enquanto na primeira a ênfase das discussões cai predominantemente no projeto estético isto é o que se dis cute principalmente é a linguagem na segunda a ênfase é sobre o projeto ideológico isto é discutese a função da literatura o papel do escritor as ligações da ideologia com a arte Uma das justifi cativas apresentadas para explicar tal mudança de enfoque diz que o Modernismo por volta de 30 já teria obtido ampla vitória com seu programa estético e se encontrava portanto no instante de se voltar para outro tipo de preocupação Veremos isso adiante Por enquanto importa assinalar essa diferença enquanto nos anos vinte o projeto ideológico do Modernismo correspondia à neces sidade de atualização das estruturas proposta por frações das classes dominantes nos anos trinta esse projeto transborda os qua dros da burguesia principalmente em direção às concepções es querdizantes denúncia dos males sociais descrição do operário e do camponês mas também no rumo das posições conserva 29 Os pressupostos básicos doras e de direita literatura espiritualista essencialista metafí sica e ainda definições políticas tradicionalistas como a de Gil berto Freyre ou francamente reacionárias como o integralismo Na verdade os dois projetos ideológicos parecem corresponder para retomar aqui uma proposição de Mário Vieira de Mello a duas fases distintas da consciência de nosso atraso nos anos vinte a tomada de consciência é tranqüila e otimista e identifica as de ficiências do país compensandoas ao seu estatuto de país novo nos anos trinta dáse início à passagem para a consciência pessimista do subdesenvolvimento implicando atitude diferen te diante da realidade7 Dentro disso podemos concluir que se a ideologia do país novo serve à burguesia que está em franca ascensão e se prevalece portanto de todas as formas mesmo destrutivas de otimismo a consciência ou a préconsciên cia como prefere Antonio Candido pessimista do subdesen volvimento não se enquadra dentro dos mesmos esquemas já que aprofunda contradições insolucionáveis pelo modelo burguês A diferença entre os projetos ideológicos das duas fases vai principalmente por conta dessa agudização da consciência polí tica O anarquismo dos anos vinte descobre o país desmasca ra a idealização mantida pela literatura representativa das oligar quias e das estruturas tradicionais instaura uma nova visão e uma nova linguagem muito diferentes do ufanismo mas ainda oti mistas e pitorescas pintando como em PauBrasil e em João Mi ramar na Paulicéia desvairada e no Clã do jaboti no Verdama relismo estados de ânimo vitais e eufóricos o humorismo é a grande arma desse modernismo e o aspecto carnavalesco o can to largo e aberto jovem e confiante são sua meta e seu princí 7 Mário Vieira de Mello apud Antonio Candido Sousdéveloppement et littérature en Amérique Latine 30 1930 a crítica e o Modernismo pio A politização dos anos trinta descobre ângulos diferentes preocupase mais diretamente com os problemas sociais e pro duz os ensaios históricos e sociológicos o romance de denúncia a poesia militante e de combate Não se trata mais nesse instan te de ajustar o quadro cultural do país a uma realidade mais moderna tratase de reformar ou revolucionar essa realidade de modificála profundamente para além ou para aquém da pro posição burguesa os escritores e intelectuais esquerdistas mos tram a figura do proletário Jubiabá por exemplo e do campo nês Vidas secas instando contra as estruturas que os mantêm em estado de subhumanidade por outro lado o conservadorismo católico o tradicionalismo de Gilberto Freyre as teses do inte gralismo são maneiras de reagir contra a própria modernização Entretanto não podemos dizer que haja uma mudança ra dical no corpo de doutrinas do Modernismo da consciência oti mista e anarquista dos anos vinte à préconsciência do subdesen volvimento há principalmente uma mudança de ênfase Assinale mos por exemplo o Retrato do Brasil oscilando entre o pessi mismo da análise de que foi tão acusado e o otimismo do Post scriptum confiante na revolução ou Macunaíma cuja agu deza satírica parece em 1928 mostrar já o instante da virada ressaltando em tom alternadamente humorístico e melancólico principalmente ao final do livro o nãocaráter do brasileiro As duas fases não sofrem solução de continuidade apenas como dissemos atrás se o projeto estético a revolução na literatura é a predominante da fase heróica a literatura na revolução para utilizar o eficiente jogo de palavras de Cortázar o projeto ideo lógico é empurrado por certas condições políticas especiais para o primeiro plano dos anos trinta E mais essa troca de posições vai se dando progressivamente durante todo o período moder nista o equilíbrio inicial entre revolução literária e literatura revolucionária ou reacionária conservadora tradicionalista pen 31 Os pressupostos básicos semos sempre na direita política vai sendo lentamente desfeito e a década de 30 chegando a seu término assiste a um qua seesquecimento da lição estética essencial do Modernismo a ruptura da linguagem 3 Vanguarda e diluição Esse último ponto pelo que encerra de complexidade deve ser mais detalhadamente matizado Com efeito a opinião unâ nime dos estudiosos do Modernismo é que o movimento atin giu durante o decênio de 30 sua fase áurea de maturidade e equilíbrio superando os modismos e os cacoetes dos anos vinte abandonando o que era pura contingência ou necessidade do período de combate estético Tendo completado de maneira vi toriosa a luta contra o passadismo os escritores modernistas e a nova geração que surgia tinham campo aberto à sua frente e po diam criar obras mais livres mais regulares e seguras Sob esse ângulo de visão a incorporação crítica e problematizada da rea lidade social brasileira representa um enriquecimento adicional e completa pela ampliação dos horizontes de nossa literatura a revolução na linguagem Tal análise aparecenos ainda hoje como essencialmente correta É fato que a década de 30 deunos algumas das obras mais realizadas e alguns dos escritores mais importantes da literatura brasileira Na poesia bastaria lembrar a qualidade dos dois es treantes em livro de 1930 Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes acrescentando ainda que o período tem Rema te de males Libertinagem e Estrela da manhã além de Jorge de Lima na prosa de ficção o romance social de José Lins do Rego Jorge Amado e Rachel de Queiroz o ponto alto atingido por Gra ciliano Ramos a direção diferente de Cyro dos Anjos no ensaio 32 1930 a crítica e o Modernismo os estudos históricos e sociológicos de Gilberto Freyre Caio Prado Jr Sérgio Buarque de Holanda o próprio Mário de Andrade Essa produção pelo alto nível que atinge coroa sem dúvi da o Modernismo aqui a vanguarda vitoriosa mostrase no que tem de melhor e de mais completo abarcando além disso o campo dos problemas sociais A Revolução de 30 com a grande aber tura que traz propicia e pede o debate em torno da histó ria nacional da situação de vida do povo no campo e na cidade do drama das secas etc O real conhecimento do país fazse sen tir como uma necessidade urgente e os artistas são bastante sen sibilizados por essa exigência A Revista Nova por exemplo marca de forma bem clara em seu primeiro editorial o novo roteiro do Modernismo seus diretores Paulo Prado Antônio de Alcântara Machado e Mário de Andrade justificandose com o imenso atraso intelectual do Brasil explicam o caráter abrangente da publicação e escrevem Com tal intuito a Revista Nova não se cingirá à pura literatura de ficção Nem mesmo lhe reservará a maior parte do espaço O conto o romance a poesia e a crítica deles não ocuparão uma linha mais do que de direito lhes com pete numa publicação cujo objetivo é ser uma espécie de reper tório do Brasil Assim o interessado encontrará aqui tudo quan to se refere a um conhecimento ainda que sumário desta terra através da contribuição inédita de ensaístas historiadores fol cloristas técnicos críticos e está visto literatos Numa dosagem imparcial8 Peguemos o problema por esse ângulo nos anos vinte a grande discussão é eminentemente literária e se trava em torno da questão básica da linguagem nova inaugurada pelo Moder nismo no raiar dos anos trinta já se quer uma dosagem impar 8 Revista Nova ano I nº 1 15031931 pp 34 33 Os pressupostos básicos cial e já surge uma revista que se deseja uma espécie de reper tório do Brasil Em termos de mudança de ênfase essa modifica ção é significativa principalmente porque com o decorrer dos anos a imparcialidade da dosagem vai sendo levemente altera da se os primeiros tempos do decênio assistem à alta produção da maturidade modernista assistem também ao início da dilui ção de sua estética à medida que as revolucionárias proposições de linguagem vão sendo aceitas e praticadas rotinizadas se gundo Antonio Candido vão sendo igualmente atenuadas e di luídas vão perdendo a contundência que transparece em livros radicais e combativos da fase heróica como as Memórias senti mentais de João Miramar e Macunaíma Tal diluição aliás começa antes de 30 começa no interior mesmo do movimento modernista e já na hora mais quente da luta O crítico Haroldo de Campos examinando a dialética en tre Vanguarda e kitsch observava com acerto que o Verdama relismo e a Escola da Anta dissolveram e aguaram a escritura vanguardista9 Mas é principalmente na segunda metade da dé cada de 30 que a kitschização da vanguarda parece se tornar mais aguda mais grave até desembocar já nos anos quarenta numa literatura incolor e pouco inventiva e numa linguagem novamen te preciosa anêmica passadista pela qual é principalmente res ponsável a chamada geração de 45 Mas que tem isso a ver com o projeto ideológico do Moder nismo com a intensidade da luta política que se trava após a Revo lução de Outubro com as novas posições assumidas pelos inte lectuais e artistas brasileiros com os extremismos partidaristas do período que nos interessa A nossa hipótese é esta na fase de cons 9 Haroldo de Campos Vanguarda e kitsch in A arte no horizonte do pro vável p 199 34 1930 a crítica e o Modernismo cientização política de literatura participante e de combate o pro jeto ideológico colore o projeto estético imprimindolhe novos matizes que se por um lado possibilitam realizações felizes como as já citadas por outro lado desviam o conjunto da produção li terária da linha de intensa experimentação que vinha seguindo e acabam por destruirlhe o sentido mais íntimo de modernidade Vejamos de forma rápida alguns exemplos Na poesia tal modificação se dá principalmente por causa de uma reação de fundo direitista que vem do grupo espiri tualista encabeçado por Tasso da Silveira corre paralelamente ao Modernismo com as revistas Terra de Sol e Festa e vai encontrar sua realização maior nos poemas prolixos e retóricos de Schmidt Esse poeta tanto como os seus seguidores de menos talento e menos técnica e que proliferaram no decênio de 30 parecenos um bom exemplo de diluição desejando combater as exterio ridades do Modernismo o que fez na realidade foi incorporar o que havia de mais propriamente exterior no movimento ver so livre inspiração solta neoromantismo esquecendose do que este possuía de mais contundente coloquialismo condensação surpresa verbal humor Se Schmidt foi capaz de rotinizar isto é de adotar e aplicar com relativa mestria alguns processos poé ticos de compor preconizados pelos modernos foi incapaz de manter a tensão de linguagem que caracterizou a vanguarda dis solvendoa no condoreirismo reacionário que Mário de Andra de soube ver e denunciar10 Na prosa de ficção esse balanceio entre rotinização e dilui ção ou entre vanguarda e kitsch fica bem mais claro prin cipalmente no romance de denúncia no romance social po 10 Mário de Andrade A volta do condor in Aspectos da literatura brasi leira pp 14171 principalmente as partes IV e V 35 Os pressupostos básicos lítico proletário nordestino que é a grande novidade do decênio Incorporando processos fundamentais do Modernismo tais como a linguagem despida o tom coloquial e presença do popular esse tipo de narrativa mantém entretanto um arcabouço neonaturalista que se é eficaz enquanto registro e protesto contra as injustiças sociais mostrase esteticamente muito pouco inven tivo e pouco revolucionário Colocados ao lado de Serafim Pon te Grande escrito em 1928 embora publicado em 1933 ou Ma cunaíma deixam entrever a pequena audácia e a curta moderni dade de seus esquemas Não cabe nos estreitos limites dessa introdução repeti mos uma análise da evolução estética do Modernismo nos anos trinta Limitamonos aqui a esboçar o roteiro de um conflito que se nos afigura importante para compreender e situar os proble mas que serão enfrentados pela crítica nesse momento A tensão que se estabelece entre o projeto estético da vanguarda a ruptu ra da linguagem através do desnudamento dos procedimentos a criação de novos códigos a atitude de abertura e de autoreflexão contidas no interior da própria obra e o projeto ideológico im posto pela luta política vai ser o ponto em torno do qual se de senvolverá a nossa literatura por essa época Desse conflito é que nascerá uma opinião bastante comum nos anos trinta a suspei ta de que o Modernismo trazia consigo uma carga muito gran de de cacoetes de atitudes literárias que era preciso alijar para se obter a obra equilibrada e bem realizada Na verdade esse ques tionamento tinha um ponto de razão mas na medida em que foi exagerado e nisso a consciência política tanto de direita quan to de esquerda exerceu forte influência afastou das obras então produzidas grande parte da radicalidade da nova estética No bom exemplo que é a reação espiritualista em poesia parecenos que o peso da ideologia é claramente o fator responsável pela di luição pois insistindo em que a literatura devia tratar temas es 36 1930 a crítica e o Modernismo senciais e elevados caminhou para a eloqüência inflada e super ficial no bom exemplo que é o romance neonaturalista foi também a consciência da função social da literatura que toma da de forma errada conforme os parâmetros de um desguarnecido realismo provocou o desvio e a dissolução O estudo da literatura na década de 30 e até o fim da guer ra vista do ângulo dessa tensão entre o projeto estético da van guarda e as modificações introduzidas pelo novo projeto ideoló gico ainda está por ser feita Há naturalmente problemas in trincados a serem resolvidos para ficar num caso apenas pode mos exemplificar com as alterações formais na linguagem do ro mance operadas em compromisso com as estruturas narrativas do século XIX os modelos romântico e naturalista o que cons titui por si só um campo vasto de discussão Mas o nosso interesse é a crítica desse decênio portanto as sinalada a tensão entre vanguarda e posição políticoideológica fiquemos por aqui E passemos ao nosso ponto 4 A crítica do decênio pressupostos para seu estudo Em épocas de grandes revisões nos procedimentos literários de mudanças radicais nas concepções estéticas o papel da críti ca é fundamental no caso contemporâneo esse papel cresce de importância já que se trata de uma literatura que assume a po sição crítica como elemento constitutivo que se constrói a par tir da crítica constante à sua própria linguagem a revisão da obra fazendose no interior da própria obra Com efeito na medida em que o ato criador incorpora a metalinguagem provocan do dessa maneira a ruptura com uma estética da ilusão a lite ratura se pensa e se critica Que resta então a fazer Que sobrará 37 Os pressupostos básicos para a velha crítica aquela que se exerce fora da obra e que pretende ser seu conhecimento e sua avaliação Na verdade o mesmo que antes pensar o desenvolvimento da tradição literária julgar delimitar as posições esclarecer artistas e público justificar condenar Só que agora acrescentaselhe uma nova tarefa já que a literatura moderna se faz como exercí cio de sua própria crítica como reflexão sobre sua própria lin guagem à velha crítica incumbe dizer e explicitar se a obra con segue realizar essa ultrapassagem de si mesma Em outros termos a ela cabe exercer no mais alto grau a consciência da linguagem Ora uma crítica assim deverá ser necessariamente uma crítica estética Mas não tomemos essa expressão no seu sentido mais restrito pelo contrário lembremonos de que na medida mesma em que a literatura contemporânea se duplica se torna literaturaobjeto e metaliteratura ela ultrapassa o simples jogo formalista por refletir a espécie de impasse histórico de nossa sociedade le déchirement de la conscience bourgeoise no di zer de Roland Barthes11 Ao assumir a atitude estética ao estu dar a literatura no que esta tem de específico ao tomar consciência da linguagem a crítica mostra ter compreendido a essência da modernidade literária a ruptura o desnudamento dos procedi mentos funcionando como um verdadeiro engajamento da for ma Barthes e criticando pela base a sociedade na qual se insere Nasce daí o nosso primeiro pressuposto básico para o estu do da crítica literária no decênio de 30 a boa crítica será para nós aquela que mais se aproxime da consciência da linguagem aquela que melhor perceba a literatura enquanto literatura Li gado a esse primeiro pressuposto encontrase aquilo que vimos 11 Roland Barthes Crítica e verdade p 28 e Le degré zéro de lécriture p 12 38 1930 a crítica e o Modernismo discutindo na introdução e que será o segundo ponto de reparo a década de 20 inaugura no Brasil a nossa modernidade a déca da de 30 ao mesmo tempo que incorpora e desenvolve alguns aspectos das doutrinas modernistas inicia também o seu processo de diluição E no fundo desse segundo pressuposto encontrase a observação que procura explicar tal diluição a consciência es tética pressionada com violência pela problemática política e so cial cede lugar à consciência ideológica Em suma procuraremos analisar a crítica literária do decênio principalmente através desses aspectos a rotinização e o desen volvimento do ideário modernista sua diluição e as relações que isso mantém com os problemas políticos e sociais do momento A escolha dos críticos a serem estudados resultou em parte dessa perspectiva em parte da importância de suas contribuições Assim fixamonos em Agripino Grieco apolítico vindo do Pré Modernismo Tristão de Athayde na ocasião católico e conser vador aceitando em parte e recusando em parte a doutrina mo dernista Mário de Andrade a grande figura do movimento di vulgador e defensor da nova estética politicamente situado à es querda e Octavio de Faria direitista em política e timbrando em recusar a herança artística dos anos vinte Teríamos dessa maneira uma visão bastante ampla dos problemas e das soluções propostas pela crítica da época ao mesmo tempo que situandoos sempre sob o mesmo enfoque literatura Modernismo e ideo logia manteríamos a possibilidade de aprofundar a análise httpsedisciplinasuspbrpluginfilephp4332357modresourcecontent1ANTONIOCANDIDORevolucaode30eaCultu rapdf de Antonio Candido sobre as mudanças no processo dos anos 30 e a cultura da obra Literatura e sociedade httpsedisciplinasuspbrpluginfilephp5567904modresourcecontent2Sergio20Miceli20E2809320Intele ctuais20e20Classe20Dirigente20no20Brasilpdf de Sergio Micelli sobre a produção dos intelectuais entre os anos 20 e 40 observar nos links os espaços de resistência dos anos 30 pelo olhar da contemporaneidade httpsmemorialdaresistenciasporgbr no Brasil httpswwwmuseudoaljubeptexposicaopermanente em Portugal 20241 310724 Os pressupostos básicos do Modernismo projeto estético e projeto ideológico Tal coincidência entre o estético e o ideológico se deve em parte à própria natureza da poética modernista O Modernismo brasileiro foi tomar das vanguardas europeias sua concepção de arte e as bases de sua linguagem a deformação do natural como fator construtivo o popular e o grotesco como contrapeso ao falso refinamento academista a cotidianidade como recusa à idealização do real o fluxo da consciência como processo desmascarador da linguagem tradicional Ora para realizar tais princípios os vanguardistas europeus foram buscar inspiração em grande parte nos procedimentos técnicos da arte primitiva aliandoos à tradição artística de que provinham e por essa via transformandoa mas no Brasil já o notou Antonio Candido as artes negra e ameríndia estavam tão presentes e atuantes quanto a cultura branca de procedência europeia O senso do fantástico a deformação do sobrenatural o canto do cotidiano ou a espontaneidade da inspiração eram elementos que circundavam as formas acadêmicas de produção artística Dirigindose a eles e dandolhes lugar na nova estética o Modernismo de um só passo rompia com a ideologia que segregava o popular distorcendo assim nossa realidade e instalava uma linguagem conforme à modernidade do século Os pressupostos básicos In LAFETÁ JL 1930 a crítica e o Modernismo São Paulo Ed 34 p223 Em síntese as características de estilo do Modernismo no Brasil e em Portugal Fragmentação resgate de ideias das vanguardas europeias Síntese Busca pela linguagem oralidades coloquialidade Nacionalismo Ironia humor e paródia Relato do cotidiano Revisão crítica do passado histórico e cultural Subjetivismo Versos livres Entretanto observe que mesmo no primeiro momento do Modernismo metade das características percorrem não só a estética mas também a política portanto já havia lá um projeto ideológico A temática da infância na prosa brasileira de 30 Palavraschave infância autobiografia memórias romance de formação literatura para crianças e jovens posição do narrador autor narrador personagem TOMACHEVSKI B Temática In org TODOROVTeoria da Literatura SP Unesp 2013 p305355 Leia as passagens a seguir de diversos autores que se iniciaram na literatura na década de 30 A questão do tema será retomada em outras aulas O quinze de Rachel de Queiroz Enquanto Cordulina ia raspando para um beiju o achado miserável Josias ao lado dela calado estirado no chão fazia de vez em quando uma careta Afinal disse à mãe que estava com dor de barriga De quê Ele contou a história da manipeba Cordulina levantouse assustada Meu filho Pelo amor de Deus Você comeu mandioca crua Assombrado e sentindo a dor mais forte o pequeno começou a chorar Cordulina aturdida topando no madeirame do chão andou até ao terreiro limpo procurando na terra varrida umas folhas para um chá Depois caindo em si foi às trouxas e do fundo de uma lata tirou um punhado ressequido de sene E enquanto fazia o chá gritava num pranto para o marido que mais longe trocava algumas palavras com um passante Chico Chico Valhame Nossa Senhora o Josias se envenenou Agora esgotadas as mezinhas findos os recursos sozinha o marido longe Chico Bento saíra de manhãzinha a ver se descobria alguém que ensinasse um remédio de cócoras junto à criança moribunda a cabeça quase entre os joelhos um filho agarrado à saia Cordulina chorava sem consolo Um dos outros pequenos sentado numa trave chupando o dedo olhava o irmão E o Pedro o mais velho do lado oposto de vez em quando tangia com a mão alguma mosca que tentava pousar no rosto do doentinho Mas detrás dele a mulher insistiu Que foi que você resolveu Chico Sem se voltar fixando ainda a estrelinha moribunda ele concordou É dê Se é da gente deixar morrer pra entregar aos urubus antes botar nas mãos da madrinha que ao menos faz o enterro Numa das vezes em que foi buscar as sobras de comida que Dona Inácia lhe guardava Cordulina levou o Duca com a camisinha lavada escanchado ao quadril tão triste e tão magro que não tinha para onde descarnar mais e petrificadas as feições numa careta de choro parado e sem voz Conceição vendoa entrar gritou alegremente Foi de vez comadre Agora não leva mais Pobrezinho de meu afilhado o pequeno acentuou hostilmente a careta chorona e agarrouse à mãe incrustandolhe no ombro a sua pequena garra enegrecida Com muito custo Cordulina o pôs no chão Duquinha ficou de cócoras encolhido agarrado ao pé da mesa como um bicho bravo assustado grunhindo surdamente de desconsolo e de medo a qualquer aproximação E para que ele a não visse sair a mãe depois de ir à cozinha arrecadar a sua trouxa retirouse escondida passando pela alcova Conceição aproximouse de novo procurando atrair o afilhado com agrados com comida Mas Duquinha não se mexia agarrado nervosamente ao seu pé de mesa A moça insistiu Trouxe um pouco de leite e chegouo ao menino A mãozinha seca empurrou o copo com raiva com brutalidade derramando o leite e na mesma obstinação agressiva ficou repelindo tudo enquanto Conceição desolada já não sabia o que fazer Ao meiodia Dona Inácia teve uma idéia fez Conceição com uma colher por detrás dele chegarlhe um pouco de leite à boca Quando o menino cuidou em si já engolia E gostando deixou de se revoltar chupou sofregamente a colher e entrou a beber com fúria com uma pressa áspera e esfaimada abrindo desmedidamente a boca e reclamando com gritos quando a moça se demorava Mas não se movia dali O bracinho empretecido e seco envolvia sempre o pé da mesa E quando enfim dormiu num sono leve e arfante foi com susto com infinitas cautelas que a madrinha o despregou para o levar à redinha armada perto de sua cama Vendo isso Dona Inácia estranhou Para que esses luxos Por que você não bota o menino no quarto de criada com a Maria o pobrezinho está tão doente Mãe Inácia Pode acordar de noite e a Maria é mesmo que uma pedra Menino do engenho 1932 de José Lins do Rego À noitinha chegava o bando à porta da casagrande Vinha António Silvino à frente os seus doze homens a distância Subiu a calçada como um chefe apertou a mão do meu avô com um riso na boca Levado para a sala de visitas os cabras ficaram enfileirados na banda de fora numa ordem de colegiais Só ele tomava intimidade com os de casa Ficávamos nós os meninos numa admiração de olhos compridos para o nosso herói para o seu punhal enorme os seus dedos cheios de anéis de ouro e a medalha com pedras de brilhantes que trazia ao peito O seu rifle pequeno não o deixava trazendoo entre os joelhos À hora do jantar foram todos para a mesa Ele à cabeceira e os cabras por ordem todos calados como se estivessem com medo Só ele falava contava histórias o último cerco que os macacos lhe fizeram em Cachoeira de Cebola numa fala de tátaro querendo fazerse muito engraçado Alta noite foise com o seu bando Para mim tinha perdido um bocado do prestígio Eu faziao outro arrogante e impetuoso e aquela fala bamba viera desmanchar em mim a figura do herói Vidas secas 1938 de Graciliano Ramos Lembrouse de Fabiano e procurou esquecêlo Com certeza Fabiano e Sinhá Vitória iam castigálo por causa do acidente Levantou os olhos tímidos A lua tinha aparecido engrossava acompanhada por uma estrelinha quase invisível Aquela hora os Periquitos descansavam na vazante nas touceiras secas de milho Se possuísse um daqueles periquitos seria feliz Baixou a cabeça tornou a olhar a poça escura que o gado esvaziara Uns riachos miúdos marejavam na areia como artérias abertas de animais Recordouse das cabras abatidas a mão de pilão penduradas de cabeça para baixo num caibro do copiar sangrando Retirouse A humilhação atenuouse pouco a pouco e morreu Precisava entrar em casa jantar dormir E precisava crescer ficar tão grande como Fabiano matar cabras a mão de pilão trazer uma faca de ponta à cintura Ia crescer espicharse numa cama de varas fumar cigarros de palha calçar sapatos de couro cru Subiu a ladeira chegouse a casa devagar entortando as pernas banzeiro Quando fosse homem caminharia assim pesado cambaio importante as rosetas das esporas tilintando Saltaria no lombo de um cavalo brabo e voaria na catinga como pédevento levantando poeira Ao regressar apearseia num pulo e andaria no pátio assim torto de perneiras gibão guardapeito e chapéu de couro com barbicacho O menino mais velho e Baleia ficariam admirados A terra dos meninos pelados 1939 de Graciliano Ramos Havia um menino diferente dos outros meninos tinha o olho direito preto o esquerdo azul e a cabeça pelada Os vizinhos mangavam dele e gritavam ò pelado Tanto gritaram que ele se acostumou achou o apelido certo deu para se assinar a carvão nas paredes Dr Raimundo Pelado Era de bom gênio e não se zangava mas os garotos dos arredores fugiam ao vêlo escondiamse por detrás das árvores da rua mudavam a voz e perguntavam que fim tinham levado os cabelos deles Raimundo entristecia e fechava o olho direito quando o aperreavam demais aborreciase fechava o olho esquerdo E a cara ficava toda escura Não tendo com quem entenderse Raimundo Pelado falava só e os outros pensavam que ele estava malucando Estava nada Conversava sozinho e desenhava na calçada coisas maravilhosas do país de Tatipirun onde não há cabelos e as pessoas tem um olho preto e outro azul 44ed RJ Record 2013 p78 Infância 1945 de Graciliano Ramos Sem dúvida o meu aspecto era desagradável inspirava repugnância E a gente da casa se impacientava Minha mãe tinha a franqueza de manifestarme viva antipatia Davame dois apelidos bezerroencourado e cabracega Bezerro encourado é um intruso Quando uma cria morre tiramlhe o couro vestem com ele um órfão que neste disfarce é amamentado A vaca sente o cheiro do filho enganase e adota o animal Devo o apodo ao meu desarranjo à feiúra ao desengonço Não havia roupa que me assentasse no corpo a camisa tufava na barriga as mangas se encurtavam ou alongavam o paletó se alargava nas costas enchiase como um balão Na verdade o traje fora composto pela costureira módica atarefada pouco atenta às medidas Todos os meninos porém usavam na vila fatiotas iguais e conseguiam modificálas ajeitálas Eu aparentava pendurar nos ombros um casaco alheio Bezerroencourado Mas não me fazia tolerar Essa injúria revelou muito cedo a minha condição na família comparado ao bicho infeliz considereime um pupilo enfadonho aceito a custo Zangueime permanecendo exteriormente calmo depois serenei Ninguém tinha culpa do meu desalinho daqueles modos horríveis de cambembe Censurandome a inferioridade talvez quisessem corrigirmeA outra alcunha era mais insultuosa que a primeira Lembravame do jogo infantil e arreliavame Memórias de Emília 1936 de Monteiro Lobato De tanto Emília falar em minhas Memórias que uma vez Dona Benta perguntou Mas afinal de contas bobinha que é que você entende por memórias Memórias são a história da vida da gente com tudo o que acontece desde o dia do nascimento até o dia da morte Nesse caso caçoou Dona Benta uma pessoa só pode escrever memórias depois que morre Espere disse Emília O escrevedor de memórias vai escrevendo até sentir que o dia da morte vem vindo Então pára deixa o finalzinho sem acabar Morre sossegado E as suas Memórias vão ser assim Não porque não pretendo morrer Finjo que morro só As últimas palavras têm de ser estas E então morri com reticências Mas é peta Escrevo isso pisco o olho e sumo atrás do armário para que Narizinho fique mesmo pensando que morri Será a única mentira das minhas Memórias Tudo mais verdade pura da dura ali na batata como diz Pedrinho Dona Benta sorriu Verdade pura Nada mais difícil do que a verdade Emília Bem sei disse a boneca Bem sei que tudo na vida não passa de mentiras e sei também que é nas memórias que os homens mentem mais Quem escreve memórias arruma as coisas de jeito que o leitor fique fazendo uma alta idéia do escrevedor Mas para isso ele não pode dizer a verdade porque senão o leitor fica vendo que era um homem igual aos outros Logo tem de mentir com muita manha para dar idéia de que está falando a verdade pura Dona Benta espantouse de que uma simples bonequinha de pano andasse com idéias tão filosóficas Acho graça nisso de você falar em verdade e mentira como se realmente soubesse o que é uma coisa e outra Até Jesus Cristo não teve ânimo de dizer o que era a verdade Quando Pôncio Pilatos lhe perguntou Que é a verdade ele que era Cristo achou melhor calarse Não deu resposta Pois eu sei gritou Emília Verdade é uma espécie de mentira bem pregada das que ninguém desconfia Só isso O Visconde ergueu novamente os olhos para o forro suspirando Estavam os dois fechados no quarto dos badulaques Servia de mesa um caixãozinho e de cadeira um tijolo Emília passeava de um lado para outro de mãos às costas Ia ditar Vamos disse ela depois de ver tudo pronto Escreva bem no alto do papel Memórias da Marquesa de Rabicó Em letras bem graúdas O Visconde escreveu MEMÓRIAS DA MARQUESA DE RABICÓ Agora escreva Capítulo Primeiro O Visconde escreveu e ficou à espera do resto Emília de testinha franzida não sabia como começar Isso de começar não é fácil Muito mais simples é acabar Pingase um ponto final e pronto ou então escrevese um latinzinho FINIS Mas começar é terrível Emília pensou pensou e por fim disse Bote um ponto de interrogação ou antes bote vários pontos de interrogação Bote seis O Visconde abriu a boca Vamos Visconde Bote aí seis pontos de interrogação insistiu a boneca Não vê que estou indecisa interrogandome a mim mesma E foi assim que as Memórias da Marquesa de Rabicó principiaram de um modo absolutamente imprevisto Capítulo Primeiro Emília contou os pontos e achou sete Corte um ordenou O Visconde deu um suspiro e riscou o último ponto deixando só os seis encomendados Capitães da areia 1937 de Jorge Amado Pelo trapiche ia um rumor de risadas de conversas de gritos João Grande distinguia bem a voz do SemPernas estrídula e fanhosa O SemPernas falava alto ria muito Era o espião do grupo aquele que sabia se meter na casa de uma família uma semana passando por um bom menino perdido dos pais na imensidão agressiva da cidade Coxo o defeito físico valeralhe o apelido Mas valialhe também a simpatia de quanta mãe de família o via humilde e tristonho na sua porta pedindo um pouco de comida e pousada por uma noite Agora no meio do trapiche o SemPernas metia a ridículo o Gato que perdera todo um dia para furtar um anelão cor de vinho sem nenhum valor real pedra falsa de falsa beleza também Nunca tivera família Vivera na casa de um padeiro a quem chamava meu padrinho e que o surrava Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria Sofreu fome um dia levaramno preso Ele quer um carinho ua mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta Em cada canto estava um com uma borracha comprida As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes A perna coxa se recusava a ajudálo E a borracha zunia nas suas costas quando o cansaço o fazia parar A princípio chorou muito depois não sabe como as lágrimas secaram Certa hora não resistiu mais abateuse no chão Sangrava Ainda hoje ouve como os soldados riam e como riu aquele homem de colete cinzento que fumava um charuto Depois encontrou os Capitães da Areia foi o Professor quem o trouxe haviam feito camaradagem num banco de jardim e ficou com eles Os fundos da casagrande davam para um pátio onde ficava o povo da serventia Para este pátio dava o quarto das negras velhas antigas escravas africanas que ainda se arrastavam pela cozinha A cozinha do Corredor vivia de portas escancaradas Brancos e negros se encontravam sempre naquela fábrica de fogos acesos A minha avó Janoca quando deixava a sua cadeira de balanço ia sentarse na banca onde passava o dia a velha Galdina aleijada negra africana a quem todos nós chamávamos de vovó A negra Generosa fora escrava e conquistara pela força pelo tempero pela franqueza o reinado da cozinha Tudo ali saía das suas mãos e de seus braços As notícias chegavam primeiro na cozinha as cheias do Paraíba as chuvas no Piauí as secas do sertão as bravatas de Antônio Silvino tudo vinha à cozinha em primeira mão O bicheiro Salvador aparecia do Pilar com as suas novidades As mulheres dos moradores sentavamse pelo chão à espera de remédios ou de sementes para plantar Algumas traziam presentes ovos galinhas gordas rendas bicos Pela manhã guardo nos sentidos o aroma doce que o tempo não conseguiu destruir toda a cozinha cheirava As urupemas de açafroa chegavam da horta para uma negra separar as flores E toda a cozinha cheirava como um bosque Os moleques do pastoreador vinham fazer a mochila para o almoço no campo farinha um pedaço de ceará toucinho cru Muitos curavam as feridas nos pés as mãos furadas com unguentos da velha Generosa Outros tinham os dedos cambados os calcanhares roídos pelos bichosdepé Itinerário de Pasárgada 1954 de Manuel Bandeira Na casa de Laranjeiras nunca faltava o pão mas a luta era dura E eu desde logo tomei parte nela como intermediário entre minha mãe e os fornecedores vendeiro açougueiro quitandeiro padeiro Nunca brinquei com os moleques da rua mas impregneime a fundo do realismo da gente do povo Jamais me esqueci das palavras com que certo caixeiro de venda português deu notícias de um companheiro que não era visto algum tempo O seu Alberto está com os pulmões podres A idade do serrote 1968 de Murilo Mendes Meu pai grande coração comunicante Servidor público Do próximo Escrivão do registro de títulos e hipotecas da cidade de Juiz de Fora Minha mãe afeiçoada ao canto e ao piano morre de parto com vinte e oito anos Tornase constelação Minha segunda mãe Maria José grande dama de cozinha e salão resume a ternura brasileira Risquei do vocabulário a palavra madrasta Solo de clarineta 1973 de Erico Verissimo Existem objetos importantes na infância de todos nós Na minha além desse tipo de fogareiro e do gramofono de campânula marca Victor havia um ferro de passar roupa com seu quente cheiro de brasa umas lâmpadas de acetilene que entravam em atividade sempre que a luz elétrica falhava a máquina Singer em que d Bega cosia e uma grande tesoura de ferro que apareceria trinta anos depois n O tempo e o vento nas mãos de Ana Terra que com ela cortava o cordão umbilical dos recémnascidos que partejava Baú de ossos 1972 de Pedro Nava Cedo meu avô terá ficado órfão pois foi ser criado por sua tiaavó que era também a avó de seu primo irmão adotivo compadre e melhor amigo Antônio Ennes de Souza homem por todos os títulos admirável que tive a vantagem de ter como influência na infância e mestre na adolescência E tive outra prerrogativa a de menino perceber a qualidade do homem com quem lidava Sendo Pedro da Silva Nava o único de meus avós acima do qual eu não podia subir senão duas gerações parando no emigrante Francisco esta porteira fechada sempre me encheu de curiosidade Memórias inventadas 2010 de Manoel de Barros ESCOVA Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso No começo achei que aqueles homens não batiam bem Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão Logo pensei de escovar palavras Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma Para escutar os primeiros sons mesmo que ainda bígrafos Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha Passava horas inteiras dias inteiros fechado no quarto trancado a escovar palavras Logo a turma perguntou o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto Eu respondi a eles meio entressonhado que eu estava escovando palavras Eles acharam que eu não batia bem Então eu joguei a escova fora A Posição do Narrador e o Recorte da Infância em Vidas Secas de Graciliano Ramos à Luz de Walter Benjamin No romance Vidas Secas 1938 de Graciliano Ramos a infância é apresentada como um tema central que reflete a dureza e a aridez do sertão nordestino As crianças assim como os adultos enfrentam as condições desumanas impostas pela seca e pela pobreza extrema A narrativa desvela um ambiente hostil onde os menores são privados de direitos básicos e de momentos lúdicos vivendo em um constante estado de carência O presente trabalho propõe analisar a posição do narrador utilizando as teorias de Walter Benjamin 1936 que aborda a função do narrador e sua relação com a subjetividade na narrativa A impessoalidade e distanciamento do narrador em Vidas Secas têm um impacto profundo na forma e no conteúdo da obra realçando as condições extremas vividas pelos personagens A infância em Vidas Secas é marcada por privações severas e sofrimentos inescapáveis Os filhos de Fabiano e Sinhá Vitória crescem em um contexto de extrema pobreza onde os prazeres e necessidades básicas são negados forjando neles uma visão de mundo moldada pela escassez Desde pequenos as crianças estão imersas em um ambiente onde a sobrevivência é a única prioridade o que impede qualquer manifestação de sonhos ou brincadeiras típicas da infância Elas são retratadas como seres que apesar de sua pouca idade já compreendem as dificuldades do mundo ao seu redor e parecem se resignar à condição em que vivem Um exemplo dessa visão aparece no trecho O menino mais velho e Baleia ficariam admirados Ramos 2013 p 98 que sugere uma infância em que até mesmo a admiração é rarefeita fruto de um cotidiano árido e sem perspectivas Walter Benjamin em seu ensaio O Narrador 1936 argumenta que a arte de narrar está profundamente ligada à experiência de vida do narrador Ele sugere que o narrador tradicional está em declínio sendo substituído por narradores mais distantes e impessoais o que reflete mudanças nas formas de contar histórias e na sociedade como um todo Essa ideia de Benjamin aplicase diretamente à forma como o narrador de Vidas Secas se posiciona O narrador em terceira pessoa adota uma postura distante e impessoal o que reflete a indiferença da natureza e das circunstâncias em relação ao sofrimento humano Esse narrador não emite juízos de valor nem se envolve emocionalmente com os personagens o que intensifica a sensação de alienação e desespero presentes na obra A escolha de um narrador distante como propõe Benjamin priva o leitor da subjetividade e da proximidade que narradores tradicionais costumam oferecer Ao mesmo tempo essa postura permite uma análise mais crítica e objetiva da realidade descrita Em Vidas Secas o narrador apenas relata os eventos e as emoções de maneira crua e desapaixonada o que acentua a brutalidade do contexto No trecho Fabiano olhava o céu e via apenas o vazio Ramos 2013 p 75 é possível perceber a ausência de qualquer traço de esperança ou conforto uma característica constante no romance reforçada pela neutralidade do narrador As implicações dessa posição narrativa afetam diretamente tanto a forma quanto o conteúdo da obra O estilo direto e despojado do romance sem adornos ou subjetividades reflete a própria secura e aspereza do sertão Além disso a escolha de um narrador impessoal reforça os temas de desumanização e alienação que permeiam todo o enredo Ao descrever as dificuldades enfrentadas pelas crianças de forma impassível o narrador destaca a brutalidade da vida no sertão e a falta de perspectivas que molda suas infâncias Um exemplo marcante dessa desumanização pode ser encontrado no trecho O menino se encolhia e gritava mas os outros nem ligavam cansados e apáticos Ramos 2013 p 45 A frieza da descrição evidencia o quanto a miséria e o sofrimento se tornaram normais para os personagens que já não conseguem reagir às dores do cotidiano Portanto a posição do narrador em Vidas Secas é essencial para a construção de uma narrativa que ao expor as dificuldades da infância no sertão nordestino mantém uma perspectiva distanciada e objetiva Essa escolha estilística analisada à luz das teorias de Walter Benjamin reforça a ideia de que a narrativa espelha as condições sociais e naturais impostas aos personagens Ao evitar o envolvimento emocional o narrador permite ao leitor uma visão crítica e imparcial o que intensifica o impacto do romance e ressalta a precariedade da existência no sertão A impessoalidade narrativa é assim um recurso fundamental para aprofundar a reflexão sobre a dureza da vida sertaneja e a alienação dos seus habitantes Vidas Secas de Graciliano Ramos embora escrita em 1938 permanece extremamente relevante quando se observa a vida no sertão nordestino nos dias atuais A obra retrata a pobreza extrema a seca constante e a luta pela sobrevivência temas que ainda são parte da realidade de muitas famílias no sertão A aridez do sertão descrita por Ramos onde a água é um recurso escasso e precioso encontra eco nas condições de muitas regiões do Nordeste brasileiro que continuam a enfrentar longos períodos de estiagem afetando a agricultura a pecuária e a vida cotidiana de milhares de sertanejos Hoje apesar dos avanços tecnológicos e das políticas públicas voltadas para o combate à seca como a construção de cisternas e programas de convivência com o semiárido muitos dos problemas enfrentados por Fabiano Sinhá Vitória e seus filhos ainda são vividos por famílias rurais A migração para as grandes cidades em busca de melhores condições de vida continua sendo uma alternativa forçada para aqueles que não conseguem prosperar no sertão O sofrimento silencioso e a resiliência dos sertanejos aspectos centrais em Vidas Secas continuam sendo uma marca registrada de quem vive nessa região especialmente nas comunidades mais isoladas e de menor acesso às iniciativas governamentais As crianças no sertão contemporâneo tal como os filhos de Fabiano no romance ainda lidam com a falta de oportunidades O acesso à educação melhorou mas a evasão escolar e a baixa qualidade do ensino em áreas rurais são problemas que persistem Assim como os personagens da obra essas crianças muitas vezes precisam ajudar suas famílias no trabalho agrícola limitando suas perspectivas de futuro A desigualdade de oportunidades entre as áreas urbanas e o sertão perpetua ciclos de pobreza e marginalização social algo que já era evidente na obra de Graciliano Ramos A desumanização e alienação retratadas em Vidas Secas também podem ser vistas na atualidade quando a luta pela sobrevivência em um ambiente hostil desumaniza os indivíduos e faz com que a rotina de miséria se torne normalizada Esse aspecto é relevante quando consideramos como as populações do sertão muitas vezes são invisibilizadas pelos grandes centros urbanos e políticas nacionais sendo lembradas principalmente em períodos de calamidade No entanto algumas mudanças significativas devem ser reconhecidas A modernização de técnicas de convivência com o semiárido e o desenvolvimento de políticas públicas de transferência de renda como o Bolsa Família trouxeram melhorias que não existiam na época retratada por Ramos Embora o sertão continue sendo uma região de desafios há iniciativas atuais que buscam oferecer suporte para que as famílias possam viver de maneira mais digna mesmo em condições adversas Assim ao traçar um paralelo entre Vidas Secas e a atualidade é possível perceber que apesar de alguns avanços sociais e tecnológicos muitos dos desafios do sertão nordestino ainda persistem tornando a obra de Graciliano Ramos uma representação atemporal da luta por sobrevivência em um ambiente inóspito A seca a pobreza e a desigualdade social continuam a ser questões urgentes que afetam a vida de milhares de sertanejos aproximando a ficção da realidade contemporânea Referências Bibliográficas BENJAMIN W O narrador Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov In Magia e técnica arte e política Ensaios sobre literatura e história da cultura São Paulo Brasiliense 1994 CANDIDO A Literatura e Sociedade São Paulo Companhia Editora Nacional 1965 LAFETÁ J L 1930 A crítica e o Modernismo 2 ed São Paulo Editora 34 2000 RAMOS G Vidas Secas 44 ed Rio de Janeiro Record 2013
26
Literatura
UNILAB
154
Literatura
UNILAB
132
Literatura
UNILAB
5
Literatura
UNILAB
2
Literatura
UNILAB
79
Literatura
UNILAB
1
Literatura
UNILAB
13
Literatura
UNILAB
70
Literatura
UNILAB
13
Literatura
UNILAB
Texto de pré-visualização
3 Os pressupostos básicos João Luiz Lafetá 1930 A CRÍTICA E O MODERNISMO 4 1930 a crítica e o Modernismo Livraria Duas Cidades Ltda Rua Bento Freitas 158 Centro CEP 01220000 São Paulo SP Brasil Tel 11 2205134 Fax 11 2205813 wwwduascidadescombr livrariaduascidadescombr Editora 34 Ltda Rua Hungria 592 Jardim Europa CEP 01455000 São Paulo SP Brasil TelFax 11 8166777 editora34uolcombr Copyright Duas CidadesEditora 34 2000 1930 a crítica e o Modernismo João Luiz Lafetá 1974 A fotocópia de qualquer folha deste livro é ilegal e configura uma apropriação indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor Capa projeto gráfico e editoração eletrônica Bracher Malta Produção Gráfica Revisão Mara Valles Iracema Alves Lazari Isabella Marcatti 2ª Edição 2000 Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro Fundação Biblioteca Nacional RJ Brasil Lafetá João Luiz 19461996 L624c 1930 a crítica e o Modernismo João Luiz Lafetá São Paulo Duas Cidades Ed 34 2000 288 p Coleção Espírito Crítico ISBN 8573261706 Inclui bibliografia 1 Crítica literária Modernismo Brasil I Grieco Agripino 18881973 II Athayde Tristão de 18931983 III Andrade Mário de 18931945 IV Faria Octavio de 19081980 V Título VI Série CDD 80195 7 Prefácio Prefácio Este livro foi um marco na crítica brasileira do nosso tem po e a sua reedição faz pensar no quanto ela perdeu com a mor te precoce de João Luiz Lafetá Lafetá era contido e exigente não fazia questão de apare cer nem tinha pressa em publicar O seu trabalho intelectual se processava com o lento rigor dos que desejam tirar de si mesmos o melhor possível duvidando sempre do resultado Rigor e ten são mental freqüentemente tingidos de angústia caracterizavam o ritmo e o teor do seu esforço de crítico e docente O cuidado com que preparava os cursos e a longa gestação de dúvidas que lhe custavam florescia em aulas que se podem considerar perfei tas porque eram verdadeiras obras de arte didática Usando o qua dronegro com precisão desenvolvendo a explicação e interca lando os exemplos com domínio perfeito da matéria era sempre pessoal e o auditório talvez sentisse o quanto ele o respeitava ao perceber a riqueza de informação e de reflexão embutidas no preparo assim como o esforço de clarificação com que expunha as noções e os conceitos E com certeza admirava o sereno equi líbrio da sua elocução servida pela voz grave naturalmente em postada O que não podia perceber era a natureza do esforço da crispação angustiada que precedia aquele resultado eram as ho ras de tentativa hesitante dissolvidas na harmonia da exposição 8 1930 a crítica e o Modernismo Esse grande professor era um crítico finíssimo e cheio de ta lento capaz de ler os textos de maneira original e de sobrevoar períodos e tendências com força integrativa Prova é este livro que não por acaso se tornou logo título essencial na bibliografia especializada Nele João Luiz Lafetá reinterpretou com espírito renovador o movimento geral do Modernismo brasileiro como enquadramento e ao mesmo tempo finalidade implícita de um estudo sobre a crítica do decênio de 1930 por meio de amostra significativa Teoricamente o seu objetivo é sugerir certas conexões en tre literatura e ideologia problema que tem feito correr rios de tinta e quem navegou por eles bem sabe como são freqüentes as tentativas malogradas as formulações insatisfatórias e sobretu do as afirmações sem demonstração pecado capital no trabalho crítico Ora este livro é impecável pela segurança com que sou be adequar o proposto no plano teórico ao realizado no plano da análise Bem concebido e bem composto repousa num par de con ceitos que o autor manipula tanto no âmbito largo do período domínio próprio da história literária quanto no âmbito reduzi do de cada obra domínio da análise crítica Explícita ou im plicitamente esse par interpretativo percorre o livro não apenas dandolhe unidade e coerência mas operando a interpenetração dos níveis A proposta de Lafetá desde logo incorporada ao elenco dos nossos estudos literários se baseia no intuito de mostrar de que maneira o Modernismo se desdobrou como passagem do projeto estético dos anos de 1920 ao projeto ideológico dos anos de 1930 E é preciso salientar que ao estabelecer esta distinção ele não quis definir momentos estanques mas fases de predomi nância pois estético e ideológico se combinam nos dois momen tos Esta é uma das razões pelas quais o seu trabalho analítico é 9 Prefácio compreensivo e flexível superando a rigidez das dicotomias fre qüente nesse tipo de estudos Inclusive porque tem sempre na mira o problema da linguagem como algo inseparável do teor das mensagens Nas suas palavras qualquer nova proposição estética de verá ser encarada em suas duas faces complementares e aliás intimamente conjugadas não obstante às vezes conjugadas em forte tensão enquanto projeto estético diretamente ligada às mo dificações operadas na linguagem e enquanto projeto ideológico diretamente atada ao pensamento visão de mundo de sua épo ca E adiante Essa distinção que pretendemos usar no exame de um aspecto do Modernismo brasileiro é útil porque opera tória não podemos entretanto correr o risco de tornála mecâ nica e fácil na verdade o projeto estético que é a crítica da velha linguagem pela confrontação com uma nova linguagem já con tém em si o seu projeto ideológico O ataque às maneiras de dizer se identifica ao ataque às maneiras de ver ser conhecer de uma época se é na e pela linguagem que os homens externam a sua visão de mundo justificando explicitando desvelando simbo lizando ou encobrindo suas relações reais com a natureza e a so ciedade investir contra o falar de um tempo será investir contra o ser desse tempo Tendo exposto a sua posição Lafetá se fixa na crítica como placa sensível estudando quatro autores que representam qua tro posições em face do Modernismo e lhe permitem analisar níveis diferentes na dialética dos projetos Agripino Grieco Alceu Amoroso Lima Tristão de Athayde Mário de Andrade e Octavio de Faria Utilizando os escritos que produziram no de cênio de 1930 consegue demonstrar o seu ponto de vista e es clarecer a dinâmica do Modernismo brasileiro à luz da consciência crítica A ordem em que estuda os quatro autores segue a crono logia da respectiva entrada na vida literária mas ao mesmo tem 10 1930 a crítica e o Modernismo po gradua a variedade das posições em face da renovação moder nista de maneira a obter uma visão bastante completa Agripino Grieco vinha impregnado da atmosfera póspar nasiana e se aceitou o Modernismo não chegou a penetrar na sua singularidade nem no que havia de diferença criadora na obra dos seus protagonistas Lafetá ressalta a sua qualidade de crítico impressionista identificado ao espírito do jornalismo que pro duz não análises compreensivas mas crônicas pitorescas por vezes cintilantes de humor É como se a renovação literária ti vesse deslizado sobre ele sem modificar a sua visão arraigada nas fases anteriores embora ele tenha usado como os modernistas a arma profilática do riso e do sarcasmo em ataques irreverentes a figurões consagrados do mundo intelectual Deste modo con tribuiu também na sua escala modesta para espanar a literatura do tempo inclusive porque seus artigos atingiam um público nu meroso atraído pela sua verve O caso de Alceu Amoroso Lima é diferente pois tratase de um grande crítico que trouxe contribuições importantes com os seus ensaios do decênio de 1920 não apenas sobre os contem porâneos brasileiros mas sobre estrangeiros então pouco divul gados aqui como foi o caso do tratamento precoce e inteligente da obra de Marcel Proust cujo último volume apareceu em 1926 O estudo de seus escritos do decênio de 1930 valeu como caso ideal para o desígnio de Lafetá pois assim como o Moder nismo estava segundo ele transitando do projeto estético para o projeto ideológico o mesmo se dava com a concepção de li teratura de Alceu Amoroso Lima que a partir de 1929 deixou de ser um intelectual disponível para tornarse católico ardente e empenhado depois de convertido por influência de Jackson de Figueiredo Isso permitiu a Lafetá surpreender o embate dos dois projetos no interior de uma obra cujo autor desejava preser var a integridade do estético apesar de embebido de ideolo 11 Prefácio gia religiosa com fervor de neófito Ele mostra então como Alceu Amoroso Lima viveu uma espécie de drama intelectual ao querer preservar contraditoriamente os valores da tradição sem negar as experiências literárias contemporâneas Daí uma ambi güidade que no fundo tem precedentes em sua fase anterior de relativa neutralidade ideológica pois já nos anos de 1920 assi nala Lafetá estava claro que nele o apreço pelo Modernismo era temperado pelo apego a tipos anteriores de literatura segun do os quais tinham sido formados a sua mente e a sua sensibili dade Nos anos de 1930 essa tendência avulta e é reforçada pela opção católica que o levou a simpatizar com a ordem num sentido bem geral oposta à revolução também em sentido amplo pois esta lhe parecia minar a sociedade contemporânea como elemento dissolvente Daí o fato de encarar com simpatia as fórmulas políticas de direita inclusive as de corte fascista Esse pendor é analisado por Lafetá com acuidade e senso dos mati zes e como precisa respeitar os limites temporais do seu corpus pôde apenas mencionar que no decênio seguinte Alceu Amoro so Lima modificou essencialmente a sua posição na esteira do pensamento cristão progressista coroado pelo processo de atua lização secularização e radicalização de muitos setores da Igreja Católica acelerado nos anos de 1950 O leitor pressente que Lafetá teria gostado de entrar na análise dessa mudança mais afinada com as suas convicções de esquerda O caso de Mário de Andrade é especial pois ele foi um dos líderes do movimento modernista nos anos de 1920 e não ape nas o seu maior representante mas o seu grande teórico Não é portanto de estranhar que lhe seja dedicada a parte mais impor tante e atraente do livro inclusive porque estuda posições que praticamente coincidem com as do seu autor Procurando penetrar o mais fundo possível na mente com plexa e contraditória de Mário de Andrade Lafetá recua até o 12 1930 a crítica e o Modernismo começo do movimento modernista a fim de mostrar como ele definiu o projeto estético nos dois escritos que constituem a sua plataforma teórica o Prefácio interessantíssimo em Pauli céia desvairada e A escrava que não é Isaura Ambos denotam consciência crítica excepcional e propõem temas que Mário de Andrade trabalhará pela vida afora notadamente a relação entre técnica e impulso criador que aprofundaria nos anos de 1930 Para estudar as suas posições Lafetá usa tanto os ensaios e arti gos quanto certos poemas de conotação social nos quais conse gue localizar por dentro isto é no próprio tecido do discurso poético a presença de idéias políticas inseparáveis dos recursos de renovação da linguagem E aí está o ponto de apoio desse capítulo na medida em que mostra como Mário de Andrade teve a verdadeira consciência do problema não apenas ao sentir e perceber mas ao ser capaz de exprimir tanto no plano da cria ção quanto no da teoria a fusão inextricável dos dois projetos A análise lúcida com que Lafetá sugere essa posição é um verda deiro feito crítico seja pela capacidade de leitura seja pela feli cidade na escolha dos exemplos e a segurança de critérios teóri cos Por isso é uma contribuição de primeira ordem para o de bate complicado e freqüentemente inconclusivo sobre as relações entre convicção e fatura nas obras literárias Uma citação deixa rá claro o propósito deste capítulo Procuraremos na frente mostrar como Mário de Andra de na sua pesquisa de uma expressão nova voltouse para o es tudo da psicologia da criação buscando subsídios extraliterários que confirmassem as suas teorias estéticas e a sua concepção do poema como um fato de linguagem Em seguida tentaremos mostrar como a preocupação de participar levao a incluir em seu esquema o dado sociológico modificando sensivelmente várias das posições anteriores mas mantendo sempre a consciên cia básica da linguagem a noção da obra de arte como fatura e 13 Prefácio forma A tentativa final é a de examinar no interior dessas consciências a obra como fato estético como fato psíquico como fato social a tensão entre projeto estético a linguagem nova de vanguarda e projeto ideológico participação na vida social Este roteiro límpido é limpidamente seguido e demonstra a segurança de Lafetá no trabalho de resolver um problema difí cil da crítica literária pois desculpem a insistência consegue mos trar concretamente por meio de uma análise lúcida dos textos o que freqüentemente permanece mesmo em críticos bem do tados no terreno da afirmação sem demonstração Agripino Grieco apolítico não tinha diretriz ideológica Alceu Amoroso Lima era um agnóstico que ao se converter ao catolicismo imprimiu à sua crítica a subordinação do estético ao ético Mário de Andrade foi um intelectual simpatizante da es querda que soube manter a integridade da visão estética numa obra marcada pela participação ideológica O quarto crítico abor dado por Lafetá completa o circuito deste livro pois Octavio de Faria um dos ensaístas mais talentosos do fascismo no Brasil pro curou desqualificar com veemência o Modernismo dos anos de 1920 e a ficção social dos anos de 1930 que a princípio tinha recebido com louvores Ao estudálo Lafetá reformula o que denomina o seu ponto básico isto é a indagação de como o projeto ideológico con trasta com o projeto estético nele interfere e às vezes o determi na Com efeito neste capítulo final fica bem claro que a bússo la crítica do livro é a noção de que a literatura é linguagem antes de mais nada e a conseqüência disso para o crítico é a convic ção de que há uma relação entre a linguagem e a visão do mun do Por não compreendêla Octavio de Faria não compreen deu o Modernismo como não percebeu que os desequilíbrios eventuais da novelística de cunho social dos anos de 1930 eram 14 1930 a crítica e o Modernismo semelhantes aos dos seus próprios romances caudalosos fracas sos nos quais o peso ideológico de uma visão conservadora con tribuiu para a sua insensibilidade estilística como prosador E nes se passo Lafetá mostra que esquerda e direita podem se encon trar quando conferem ao projeto ideológico um predomínio que oblitera o projeto estético Ao fecharmos este livro tão bem concebido e realizado e pararmos para pensar sobre ele o sentimento principal é de ad miração pela coerência e a força interpretativa com que o autor realizou o seu intuito armado de uma firmeza teórica e uma ima ginação crítica que fazem mais uma vez lamentar a sua falta Antonio Candido 19 Os pressupostos básicos Os pressupostos básicos 1 Modernismo projeto estético e ideológico O estudo da história literária colocanos sempre diante de dois problemas fundamentais quando se trata de desvendar o alcance e os exatos limites circunscritos por qualquer movimen to de renovação estética primeiro é preciso verificar em que me dida os meios tradicionais de expressão são afetados pelo poder transformador da nova linguagem proposta isto é até que pon to essa linguagem é realmente nova em seguida e como neces sária complementação é preciso determinar quais as relações que o movimento mantém com os outros aspectos da vida cultural de que maneira a renovação dos meios expressivos se insere no contexto mais amplo de sua época Para retomar a distinção apre sentada pelos formalistas russos diríamos que se trata na his tória literária de situar o movimento inovador em primeiro lu gar dentro da série literária a seguir na sua relação com as ou tras séries da totalidade social Decorre daí que qualquer nova pro posição estética deverá ser encarada em suas duas faces comple mentares e aliás intimamente conjugadas não obstante às ve zes relacionadas em forte tensão enquanto projeto estético di retamente ligada às modificações operadas na linguagem e en 20 1930 a crítica e o Modernismo quanto projeto ideológico diretamente atada ao pensamento vi são de mundo de sua época Essa distinção que pretendemos usar no exame de um as pecto do Modernismo brasileiro é útil porque operatória não podemos entretanto correr o risco de tornála mecânica e fácil na verdade o projeto estético que é a crítica da velha linguagem pela confrontação com uma nova linguagem já contém em si o seu projeto ideológico O ataque às maneiras de dizer se identifica ao ataque às maneiras de ver ser conhecer de uma época se é na e pela linguagem que os homens externam sua visão de mun do justificando explicitando desvelando simbolizando ou en cobrindo suas relações reais com a natureza e a sociedade inves tir contra o falar de um tempo será investir contra o ser desse tempo Entretanto consideremos o poder que tem uma ideolo gia de se disfarçar em formas múltiplas de linguagem revestin dose de meios expressivos diversos dos anteriores pode passar por novo e crítico o que permanece velho e apenas diferente Pensemos por exemplo em certo aspecto exaltador do futuris mo marinettiano que pretendendose expressão da moderna vida industrial representava de fato o prolongamento anacrônico da consciência burguesa otimista e progressista do século XIX ou lembremos ainda a retórica popularesca e demagógica de con trarevoluções como o fascismo e o nazismo com seu apelo à mobilização das massas instaurando na simbólica partidária a fraude ideológica Por outro lado é também verdade que Mari netti e o fascismo para continuar com nosso exemplo em muitos dos seus aspectos representam inovações radicais na lite ratura e na retórica política e nesse sentido devem ser vistos como rupturas parciais com o passado nesse caso apesar da postura ideológica reacionária de base a linguagem contém elementos pertencentes à modernidade Assim é possível concluir que a despeito de sua artificialida 21 Os pressupostos básicos de a distinção estéticoideológico desde que encarada de forma dialética é importante como instrumento de análise O exame de um movimento artístico deverá buscar a complementaridade desses dois aspectos mas deverá também descobrir os pontos de atrito e tensão existentes entre eles Sob esse prisma e com a finalidade de nos situarmos numa base teórica face ao nosso ob jeto de estudo aspectos da crítica literária no decênio de 30 em São Paulo e no Rio procuramos examinar o Modernismo bra sileiro em uma das linhas de sua evolução Distinguimos o pro jeto estético do Modernismo renovação dos meios ruptura da lin guagem tradicional do seu projeto ideológico consciência do país desejo e busca de uma expressão artística nacional caráter de classe de suas atitudes e produções A experimentação estética é revolucionária e caracteriza for temente os primeiros anos do movimento propondo uma radi cal mudança na concepção da obra de arte vista não mais como mimese no sentido em que o Naturalismo marcou de forma exa cerbada esse termo ou representação direta da natureza mas como um objeto de qualidade diversa e de relativa autonomia subverteu assim os princípios da expressão literária Por outro lado inserindose dentro de um processo de conhecimento e in terpretação da realidade nacional característica de nossa lite ratura não ficou apenas no desmascaramento da estética pas sadista mas procurou abalar toda uma visão do país que subjazia à produção cultural anterior à sua atividade Nesse ponto encon tramos aliás uma curiosa convergência entre projeto estético e ideológico assumindo a modernidade dos procedimentos ex pressionais o Modernismo rompeu a linguagem bacharelesca ar tificial e idealizante que espelhava na literatura passadista de 18901920 a consciência ideológica da oligarquia rural instala da no poder a gerir estruturas esclerosadas que em breve graças às transformações provocadas pela imigração pelo surto indus 22 1930 a crítica e o Modernismo trial pela urbanização enfim pelo desenvolvimento do país iriam estalar e desaparecer em parte Sensível ao processo de mo dernização e crescimento de nossos quadros culturais o Moder nismo destruiu as barreiras dessa linguagem oficializada acres centandolhe a força ampliadora e libertadora do folclore e da literatura popular Assim as componentes recalcadas de nossa personalidade vêm à tona rompendo o bloqueio imposto pela ideologia oficial curiosamente é a experimentação de linguagem com suas exigências de novo léxico novos torneios sintáticos imagens surpreendentes temas diferentes que permite e obri ga essa ruptura1 Tal coincidência entre o estético e o ideológico se deve em parte à própria natureza da poética modernista O Modernismo brasileiro foi tomar das vanguardas européias sua concepção de arte e as bases de sua linguagem a deformação do natural como fator construtivo o popular e o grotesco como contrapeso ao falso refinamento academista a cotidianidade como recusa à idealiza ção do real o fluxo da consciência como processo desmascara dor da linguagem tradicional Ora para realizar tais princípios os vanguardistas europeus foram buscar inspiração em grande parte nos procedimentos técnicos da arte primitiva aliandoos à tradição artística de que provinham e por essa via transfor mandoa mas no Brasil já o notou Antonio Candido as artes negra e ameríndia estavam tão presentes e atuantes quanto a cultura branca de procedência européia O senso do fantásti co a deformação do sobrenatural o canto do cotidiano ou a es pontaneidade da inspiração eram elementos que circundavam as 1 Ver para a análise que se segue Antonio Candido Literatura e sociedade capítulos Literatura e cultura de 19001945 e A literatura na evolução de uma comunidade pp 1956 especialmente 23 Os pressupostos básicos formas acadêmicas de produção artística Dirigindose a eles e dandolhes lugar na nova estética o Modernismo de um só pas so rompia com a ideologia que segregava o popular distor cendo assim nossa realidade e instalava uma linguagem con forme à modernidade do século Outro fator que permite essa convergência é a transforma ção sócioeconômica que ocorre então no país O surto indus trial dos anos de guerra a imigração e o conseqüente processo de urbanização por que passamos nessa época começam a con figurar um Brasil novo A atividade de industrialização já permite comparar uma cidade como São Paulo no seu cosmopolitismo aos grandes centros europeus Esse dado é decisivo já que a lite ratura moderna está em relação com a sociedade industrial tan to na temática quanto nos procedimentos a simultaneidade a rapidez as técnicas de montagem a economia e a racionalização da síntese É de se notar entretanto que no Brasil a arte mo derna não nasce com o patrocínio dos capitãesdeindústria é a parte mais refinada da burguesia rural os detentores das gran des fortunas de café que acolhem estimulam e protegem os es critores e artistas da nova corrente Mário de Andrade insiste nesse aspecto em várias partes do seu O movimento modernista afir mando com humor Nenhum salão de ricaço tivemos nenhum milionário estrangeiro nos acolheu Os italianos alemães os is raelitas se faziam de mais guardadores do bomsenso nacional que Prados e Penteados e Amarais2 Há uma contradição aparente no fato de a arte moderna implicando todas aquelas ligações com a sociedade industrial ter sido patrocinada e estimulada por fração da burguesia rural O 2 Mário de Andrade O movimento modernista in Aspectos da literatura brasileira p 241 24 1930 a crítica e o Modernismo paradoxo todavia fica ao menos parcialmente resolvido se aten tarmos para a divisão de classes no Brasil durante a década de 20 apesar da insuficiência de estudos a esse respeito parece hoje confirmado que além das relações de produção no campo pau lista já terem caráter nitidamente capitalista por essa época uma importante fração da burguesia industrial provém da burguesia rural bem como grande parte dos capitais que permitiram o pro cesso de industrialização3 Daí não haver de fato nada de espan toso em que uma fração da burguesia rural assuma a arte moderna contra a estética passadista oficializada nos jornais do gover no e na Academia Educada na Europa culturalmente refinada adaptada aos padrões e aos estilos da vida moderna não apenas podia aceitar a nova arte como na verdade necessitava dela Por outro lado e isso ajuda a explicar o caráter localista que marca tão fundamente o Modernismo a par do seu cosmopolitismo a burguesia faz praça de sua origem senhorial de proprietária de terras O aristocratismo de que se reveste precisa ser justificado por uma tradição que seja característica marcante e distintiva um verdadeiro caráter nacional que ela represente em seu máxi mo refinamento É interessante observar que ainda em O mo vimento modernista Mário de Andrade assinala a imponência de riqueza e tradição no ambiente dos salões e se refere várias vezes ao cultivo da tradição representada principalmente pela cozinha de cunho afrobrasileiro aparecendo em almoços e jantares perfeitíssimos de composição Dessa forma os artistas do Modernismo e os senhores do café uniam o culto da moder nidade internacional à prática da tradição brasileira 3 Ver Edgard Carone A Primeira República e A República Velha vol I Boris Fausto A Revolução de 1930 Caio Prado Jr A revolução brasileira Celso Furta do Formação econômica do Brasil 25 Os pressupostos básicos Desrecalque localista assimilação da vanguarda européia sintetiza Antonio Candido4 A convergência de projeto estético e de projeto ideológico deu as obras mais radicais mais tipica mente modernistas e talvez mais modernas vistas da perspec tiva de hoje do movimento o Miramar e o Serafim de Oswald de Andrade o Macunaíma de Mário a contundência estética da poesia PauBrasil A ruptura na linguagem literária correspondia ao instante em que o curso da história propiciava um reajusta mento da vida nacional E a coincidência da primeira constru ção brasileira no movimento de reconstrução geral Poesia Pau Brasil intuiu Oswald5 Daí a força renovadora modernista seu caráter marcadamente nacional e o viço de contemporaneidade que cinqüenta anos depois faz com que suas obras mais repre sentativas mantenham o traço da vanguarda 2 Da fase heróica aos anos trinta Essa convergência feliz no entanto se dá principalmente durante a fase heróica do Modernismo por razões que como é óbvio estão longe de terem sido esgotadas sequer afloradas em toda a sua extensão nos breves parágrafos anteriores Li mitemos entretanto nosso campo de investigações não cabe aqui uma análise da essência do movimento modernista e apenas abor damos tais aspectos a fim de nos situarmos com maior clareza face à problemática enfrentada pela crítica literária durante os anos 4 Antonio Candido op cit p 145 5 Oswald de Andrade Manifesto da poesia PauBrasil in Correio da Ma nhã 18031924 26 1930 a crítica e o Modernismo subseqüentes à Revolução de 30 Recapitulemos portanto o que foi visto e tentemos chegar até lá Vimos que por uma razão de ordem artística a natureza intrínseca da linguagem modernista solicitando a incorporação do popular e do primitivo e outra de ordem ideológica a bur guesia apoiandose em sua origem e revalorizando através da transmutação estética modernizante hábitos e tradições cultu rais do Brasil arcaico os dois projetos do Modernismo se arti culam e se complementam Podemos agora levar um pouco mais longe o raciocínio e indagar das condições sociais e políticas que a essa época permitem a complementação Para situar corretamente o Modernismo é preciso pensar na sua correlação com outras séries da vida social brasileira em es pecial na sua correlação com o desenvolvimento da economia ca pitalista em nosso país Aí parece estar o fulcro da questão aten tando para a efervescência política dos anos vinte o observador poderá inferir que o Brasil atravessa uma fase de transformações profundas tendentes a configurar um quadro econômicoestru tural mais complexo que o sistema agrárioexportador herdado do Império As modificações no sistema de produção datam na turalmente de muito antes da década de 20 vêm de antes da Abo lição com o emprego do trabalho assalariado e passam pelos su cessivos surtos de industrialização pela política do Encilhamen to pelas várias levas imigratórias pelas inúmeras agitações operá rias do começo do século tudo caminhando em direção a uma complexificação crescente tanto da nossa vida econômica quan to da nossa vida cultural Apesar de não afastar do poder as oli garquias rurais a burguesia comercial financeira industrial so zinha ou aliada aos interesses capitalistas imperialistas se encontra em franco processo de ascensão cresce também a classe média formase nas cidades um proletariado que sabe às vezes demons trar sua agressividade Nos três primeiros decênios do século XX 27 Os pressupostos básicos os velhos quadros econômicos políticos e culturais do século XIX são lentamente modificados e acabam por estourar na Revolu ção de 30 Há durante esses anos não obstante a resistência das su perestruturas permanece a política dos governadores a serviço das oligarquias permanece em suas linhas básicas a política fi nanceira protecionista do café gerando atritos com a burguesia industrial permanecem ainda em alto grau de diluição o Natu ralismo e o Simbolismo do século anterior Durante os anos vinte esses óbices vão sendo mais vigorosamente atacados o tenen tismo é a clara expressão de um desejo de modificação do país assim como a fundação do Partido Comunista e a formação por Jackson de Figueiredo de um grupamento pequenoburguês católico e direitista Tratase no fundo do processo de plena im plantação do capitalismo no país e do fluxo ascencional da bur guesia dois fatores que mexem com as demais camadas sociais e são espelhados por tal agitação Nesse panorama de modernização geral se inscreve a cor rente artística renovadora que assumindo o arranco burguês con segue paradoxalmente exprimir de igual forma as aspirações de outras classes abrindose para a totalidade da nação através da crítica radical às instituições já ultrapassadas6 Nesse ponto o Mo dernismo retoma e aprofunda uma tradição que vem de Euclides da Cunha passa por Lima Barreto Graça Aranha Monteiro Lobato tratase da denúncia do Brasil arcaico regido por uma política ineficaz e incompetente Mas notemos não há no movimento uma aspiração que transborde os quadros da burguesia A ideologia de esquerda não encontra eco nas obras da fase heróica se há denúncia das más 6 Cf Nelson Werneck Sodré Memórias de um escritor vol I pp 278 28 1930 a crítica e o Modernismo condições de vida do povo não existe todavia consciência da possibilidade ou da necessidade de uma revolução proletária Essa é a grande diferença com relação à segunda fase do Modernismo O decênio de 30 é marcado no mundo inteiro por um recrudescimento da luta ideológica fascismo nazismo co munismo socialismo e liberalismo medem suas forças em disputa ativa os imperialismos se expandem o capitalismo monopolista se consolida e em contraparte as Frentes Populares se organi zam para enfrentálo No Brasil é a fase de crescimento do Partido Comunista de organização da Aliança Nacional Libertadora da Ação Integralista de Getúlio e seu populismo trabalhista A cons ciência da luta de classes embora de forma confusa penetra em todos os lugares na literatura inclusive e com uma profundi dade que vai causar transformações importantes Um exame comparativo superficial que seja da fase herói ca e da que se segue à Revolução mostranos uma diferença bá sica entre as duas enquanto na primeira a ênfase das discussões cai predominantemente no projeto estético isto é o que se dis cute principalmente é a linguagem na segunda a ênfase é sobre o projeto ideológico isto é discutese a função da literatura o papel do escritor as ligações da ideologia com a arte Uma das justifi cativas apresentadas para explicar tal mudança de enfoque diz que o Modernismo por volta de 30 já teria obtido ampla vitória com seu programa estético e se encontrava portanto no instante de se voltar para outro tipo de preocupação Veremos isso adiante Por enquanto importa assinalar essa diferença enquanto nos anos vinte o projeto ideológico do Modernismo correspondia à neces sidade de atualização das estruturas proposta por frações das classes dominantes nos anos trinta esse projeto transborda os qua dros da burguesia principalmente em direção às concepções es querdizantes denúncia dos males sociais descrição do operário e do camponês mas também no rumo das posições conserva 29 Os pressupostos básicos doras e de direita literatura espiritualista essencialista metafí sica e ainda definições políticas tradicionalistas como a de Gil berto Freyre ou francamente reacionárias como o integralismo Na verdade os dois projetos ideológicos parecem corresponder para retomar aqui uma proposição de Mário Vieira de Mello a duas fases distintas da consciência de nosso atraso nos anos vinte a tomada de consciência é tranqüila e otimista e identifica as de ficiências do país compensandoas ao seu estatuto de país novo nos anos trinta dáse início à passagem para a consciência pessimista do subdesenvolvimento implicando atitude diferen te diante da realidade7 Dentro disso podemos concluir que se a ideologia do país novo serve à burguesia que está em franca ascensão e se prevalece portanto de todas as formas mesmo destrutivas de otimismo a consciência ou a préconsciên cia como prefere Antonio Candido pessimista do subdesen volvimento não se enquadra dentro dos mesmos esquemas já que aprofunda contradições insolucionáveis pelo modelo burguês A diferença entre os projetos ideológicos das duas fases vai principalmente por conta dessa agudização da consciência polí tica O anarquismo dos anos vinte descobre o país desmasca ra a idealização mantida pela literatura representativa das oligar quias e das estruturas tradicionais instaura uma nova visão e uma nova linguagem muito diferentes do ufanismo mas ainda oti mistas e pitorescas pintando como em PauBrasil e em João Mi ramar na Paulicéia desvairada e no Clã do jaboti no Verdama relismo estados de ânimo vitais e eufóricos o humorismo é a grande arma desse modernismo e o aspecto carnavalesco o can to largo e aberto jovem e confiante são sua meta e seu princí 7 Mário Vieira de Mello apud Antonio Candido Sousdéveloppement et littérature en Amérique Latine 30 1930 a crítica e o Modernismo pio A politização dos anos trinta descobre ângulos diferentes preocupase mais diretamente com os problemas sociais e pro duz os ensaios históricos e sociológicos o romance de denúncia a poesia militante e de combate Não se trata mais nesse instan te de ajustar o quadro cultural do país a uma realidade mais moderna tratase de reformar ou revolucionar essa realidade de modificála profundamente para além ou para aquém da pro posição burguesa os escritores e intelectuais esquerdistas mos tram a figura do proletário Jubiabá por exemplo e do campo nês Vidas secas instando contra as estruturas que os mantêm em estado de subhumanidade por outro lado o conservadorismo católico o tradicionalismo de Gilberto Freyre as teses do inte gralismo são maneiras de reagir contra a própria modernização Entretanto não podemos dizer que haja uma mudança ra dical no corpo de doutrinas do Modernismo da consciência oti mista e anarquista dos anos vinte à préconsciência do subdesen volvimento há principalmente uma mudança de ênfase Assinale mos por exemplo o Retrato do Brasil oscilando entre o pessi mismo da análise de que foi tão acusado e o otimismo do Post scriptum confiante na revolução ou Macunaíma cuja agu deza satírica parece em 1928 mostrar já o instante da virada ressaltando em tom alternadamente humorístico e melancólico principalmente ao final do livro o nãocaráter do brasileiro As duas fases não sofrem solução de continuidade apenas como dissemos atrás se o projeto estético a revolução na literatura é a predominante da fase heróica a literatura na revolução para utilizar o eficiente jogo de palavras de Cortázar o projeto ideo lógico é empurrado por certas condições políticas especiais para o primeiro plano dos anos trinta E mais essa troca de posições vai se dando progressivamente durante todo o período moder nista o equilíbrio inicial entre revolução literária e literatura revolucionária ou reacionária conservadora tradicionalista pen 31 Os pressupostos básicos semos sempre na direita política vai sendo lentamente desfeito e a década de 30 chegando a seu término assiste a um qua seesquecimento da lição estética essencial do Modernismo a ruptura da linguagem 3 Vanguarda e diluição Esse último ponto pelo que encerra de complexidade deve ser mais detalhadamente matizado Com efeito a opinião unâ nime dos estudiosos do Modernismo é que o movimento atin giu durante o decênio de 30 sua fase áurea de maturidade e equilíbrio superando os modismos e os cacoetes dos anos vinte abandonando o que era pura contingência ou necessidade do período de combate estético Tendo completado de maneira vi toriosa a luta contra o passadismo os escritores modernistas e a nova geração que surgia tinham campo aberto à sua frente e po diam criar obras mais livres mais regulares e seguras Sob esse ângulo de visão a incorporação crítica e problematizada da rea lidade social brasileira representa um enriquecimento adicional e completa pela ampliação dos horizontes de nossa literatura a revolução na linguagem Tal análise aparecenos ainda hoje como essencialmente correta É fato que a década de 30 deunos algumas das obras mais realizadas e alguns dos escritores mais importantes da literatura brasileira Na poesia bastaria lembrar a qualidade dos dois es treantes em livro de 1930 Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes acrescentando ainda que o período tem Rema te de males Libertinagem e Estrela da manhã além de Jorge de Lima na prosa de ficção o romance social de José Lins do Rego Jorge Amado e Rachel de Queiroz o ponto alto atingido por Gra ciliano Ramos a direção diferente de Cyro dos Anjos no ensaio 32 1930 a crítica e o Modernismo os estudos históricos e sociológicos de Gilberto Freyre Caio Prado Jr Sérgio Buarque de Holanda o próprio Mário de Andrade Essa produção pelo alto nível que atinge coroa sem dúvi da o Modernismo aqui a vanguarda vitoriosa mostrase no que tem de melhor e de mais completo abarcando além disso o campo dos problemas sociais A Revolução de 30 com a grande aber tura que traz propicia e pede o debate em torno da histó ria nacional da situação de vida do povo no campo e na cidade do drama das secas etc O real conhecimento do país fazse sen tir como uma necessidade urgente e os artistas são bastante sen sibilizados por essa exigência A Revista Nova por exemplo marca de forma bem clara em seu primeiro editorial o novo roteiro do Modernismo seus diretores Paulo Prado Antônio de Alcântara Machado e Mário de Andrade justificandose com o imenso atraso intelectual do Brasil explicam o caráter abrangente da publicação e escrevem Com tal intuito a Revista Nova não se cingirá à pura literatura de ficção Nem mesmo lhe reservará a maior parte do espaço O conto o romance a poesia e a crítica deles não ocuparão uma linha mais do que de direito lhes com pete numa publicação cujo objetivo é ser uma espécie de reper tório do Brasil Assim o interessado encontrará aqui tudo quan to se refere a um conhecimento ainda que sumário desta terra através da contribuição inédita de ensaístas historiadores fol cloristas técnicos críticos e está visto literatos Numa dosagem imparcial8 Peguemos o problema por esse ângulo nos anos vinte a grande discussão é eminentemente literária e se trava em torno da questão básica da linguagem nova inaugurada pelo Moder nismo no raiar dos anos trinta já se quer uma dosagem impar 8 Revista Nova ano I nº 1 15031931 pp 34 33 Os pressupostos básicos cial e já surge uma revista que se deseja uma espécie de reper tório do Brasil Em termos de mudança de ênfase essa modifica ção é significativa principalmente porque com o decorrer dos anos a imparcialidade da dosagem vai sendo levemente altera da se os primeiros tempos do decênio assistem à alta produção da maturidade modernista assistem também ao início da dilui ção de sua estética à medida que as revolucionárias proposições de linguagem vão sendo aceitas e praticadas rotinizadas se gundo Antonio Candido vão sendo igualmente atenuadas e di luídas vão perdendo a contundência que transparece em livros radicais e combativos da fase heróica como as Memórias senti mentais de João Miramar e Macunaíma Tal diluição aliás começa antes de 30 começa no interior mesmo do movimento modernista e já na hora mais quente da luta O crítico Haroldo de Campos examinando a dialética en tre Vanguarda e kitsch observava com acerto que o Verdama relismo e a Escola da Anta dissolveram e aguaram a escritura vanguardista9 Mas é principalmente na segunda metade da dé cada de 30 que a kitschização da vanguarda parece se tornar mais aguda mais grave até desembocar já nos anos quarenta numa literatura incolor e pouco inventiva e numa linguagem novamen te preciosa anêmica passadista pela qual é principalmente res ponsável a chamada geração de 45 Mas que tem isso a ver com o projeto ideológico do Moder nismo com a intensidade da luta política que se trava após a Revo lução de Outubro com as novas posições assumidas pelos inte lectuais e artistas brasileiros com os extremismos partidaristas do período que nos interessa A nossa hipótese é esta na fase de cons 9 Haroldo de Campos Vanguarda e kitsch in A arte no horizonte do pro vável p 199 34 1930 a crítica e o Modernismo cientização política de literatura participante e de combate o pro jeto ideológico colore o projeto estético imprimindolhe novos matizes que se por um lado possibilitam realizações felizes como as já citadas por outro lado desviam o conjunto da produção li terária da linha de intensa experimentação que vinha seguindo e acabam por destruirlhe o sentido mais íntimo de modernidade Vejamos de forma rápida alguns exemplos Na poesia tal modificação se dá principalmente por causa de uma reação de fundo direitista que vem do grupo espiri tualista encabeçado por Tasso da Silveira corre paralelamente ao Modernismo com as revistas Terra de Sol e Festa e vai encontrar sua realização maior nos poemas prolixos e retóricos de Schmidt Esse poeta tanto como os seus seguidores de menos talento e menos técnica e que proliferaram no decênio de 30 parecenos um bom exemplo de diluição desejando combater as exterio ridades do Modernismo o que fez na realidade foi incorporar o que havia de mais propriamente exterior no movimento ver so livre inspiração solta neoromantismo esquecendose do que este possuía de mais contundente coloquialismo condensação surpresa verbal humor Se Schmidt foi capaz de rotinizar isto é de adotar e aplicar com relativa mestria alguns processos poé ticos de compor preconizados pelos modernos foi incapaz de manter a tensão de linguagem que caracterizou a vanguarda dis solvendoa no condoreirismo reacionário que Mário de Andra de soube ver e denunciar10 Na prosa de ficção esse balanceio entre rotinização e dilui ção ou entre vanguarda e kitsch fica bem mais claro prin cipalmente no romance de denúncia no romance social po 10 Mário de Andrade A volta do condor in Aspectos da literatura brasi leira pp 14171 principalmente as partes IV e V 35 Os pressupostos básicos lítico proletário nordestino que é a grande novidade do decênio Incorporando processos fundamentais do Modernismo tais como a linguagem despida o tom coloquial e presença do popular esse tipo de narrativa mantém entretanto um arcabouço neonaturalista que se é eficaz enquanto registro e protesto contra as injustiças sociais mostrase esteticamente muito pouco inven tivo e pouco revolucionário Colocados ao lado de Serafim Pon te Grande escrito em 1928 embora publicado em 1933 ou Ma cunaíma deixam entrever a pequena audácia e a curta moderni dade de seus esquemas Não cabe nos estreitos limites dessa introdução repeti mos uma análise da evolução estética do Modernismo nos anos trinta Limitamonos aqui a esboçar o roteiro de um conflito que se nos afigura importante para compreender e situar os proble mas que serão enfrentados pela crítica nesse momento A tensão que se estabelece entre o projeto estético da vanguarda a ruptu ra da linguagem através do desnudamento dos procedimentos a criação de novos códigos a atitude de abertura e de autoreflexão contidas no interior da própria obra e o projeto ideológico im posto pela luta política vai ser o ponto em torno do qual se de senvolverá a nossa literatura por essa época Desse conflito é que nascerá uma opinião bastante comum nos anos trinta a suspei ta de que o Modernismo trazia consigo uma carga muito gran de de cacoetes de atitudes literárias que era preciso alijar para se obter a obra equilibrada e bem realizada Na verdade esse ques tionamento tinha um ponto de razão mas na medida em que foi exagerado e nisso a consciência política tanto de direita quan to de esquerda exerceu forte influência afastou das obras então produzidas grande parte da radicalidade da nova estética No bom exemplo que é a reação espiritualista em poesia parecenos que o peso da ideologia é claramente o fator responsável pela di luição pois insistindo em que a literatura devia tratar temas es 36 1930 a crítica e o Modernismo senciais e elevados caminhou para a eloqüência inflada e super ficial no bom exemplo que é o romance neonaturalista foi também a consciência da função social da literatura que toma da de forma errada conforme os parâmetros de um desguarnecido realismo provocou o desvio e a dissolução O estudo da literatura na década de 30 e até o fim da guer ra vista do ângulo dessa tensão entre o projeto estético da van guarda e as modificações introduzidas pelo novo projeto ideoló gico ainda está por ser feita Há naturalmente problemas in trincados a serem resolvidos para ficar num caso apenas pode mos exemplificar com as alterações formais na linguagem do ro mance operadas em compromisso com as estruturas narrativas do século XIX os modelos romântico e naturalista o que cons titui por si só um campo vasto de discussão Mas o nosso interesse é a crítica desse decênio portanto as sinalada a tensão entre vanguarda e posição políticoideológica fiquemos por aqui E passemos ao nosso ponto 4 A crítica do decênio pressupostos para seu estudo Em épocas de grandes revisões nos procedimentos literários de mudanças radicais nas concepções estéticas o papel da críti ca é fundamental no caso contemporâneo esse papel cresce de importância já que se trata de uma literatura que assume a po sição crítica como elemento constitutivo que se constrói a par tir da crítica constante à sua própria linguagem a revisão da obra fazendose no interior da própria obra Com efeito na medida em que o ato criador incorpora a metalinguagem provocan do dessa maneira a ruptura com uma estética da ilusão a lite ratura se pensa e se critica Que resta então a fazer Que sobrará 37 Os pressupostos básicos para a velha crítica aquela que se exerce fora da obra e que pretende ser seu conhecimento e sua avaliação Na verdade o mesmo que antes pensar o desenvolvimento da tradição literária julgar delimitar as posições esclarecer artistas e público justificar condenar Só que agora acrescentaselhe uma nova tarefa já que a literatura moderna se faz como exercí cio de sua própria crítica como reflexão sobre sua própria lin guagem à velha crítica incumbe dizer e explicitar se a obra con segue realizar essa ultrapassagem de si mesma Em outros termos a ela cabe exercer no mais alto grau a consciência da linguagem Ora uma crítica assim deverá ser necessariamente uma crítica estética Mas não tomemos essa expressão no seu sentido mais restrito pelo contrário lembremonos de que na medida mesma em que a literatura contemporânea se duplica se torna literaturaobjeto e metaliteratura ela ultrapassa o simples jogo formalista por refletir a espécie de impasse histórico de nossa sociedade le déchirement de la conscience bourgeoise no di zer de Roland Barthes11 Ao assumir a atitude estética ao estu dar a literatura no que esta tem de específico ao tomar consciência da linguagem a crítica mostra ter compreendido a essência da modernidade literária a ruptura o desnudamento dos procedi mentos funcionando como um verdadeiro engajamento da for ma Barthes e criticando pela base a sociedade na qual se insere Nasce daí o nosso primeiro pressuposto básico para o estu do da crítica literária no decênio de 30 a boa crítica será para nós aquela que mais se aproxime da consciência da linguagem aquela que melhor perceba a literatura enquanto literatura Li gado a esse primeiro pressuposto encontrase aquilo que vimos 11 Roland Barthes Crítica e verdade p 28 e Le degré zéro de lécriture p 12 38 1930 a crítica e o Modernismo discutindo na introdução e que será o segundo ponto de reparo a década de 20 inaugura no Brasil a nossa modernidade a déca da de 30 ao mesmo tempo que incorpora e desenvolve alguns aspectos das doutrinas modernistas inicia também o seu processo de diluição E no fundo desse segundo pressuposto encontrase a observação que procura explicar tal diluição a consciência es tética pressionada com violência pela problemática política e so cial cede lugar à consciência ideológica Em suma procuraremos analisar a crítica literária do decênio principalmente através desses aspectos a rotinização e o desen volvimento do ideário modernista sua diluição e as relações que isso mantém com os problemas políticos e sociais do momento A escolha dos críticos a serem estudados resultou em parte dessa perspectiva em parte da importância de suas contribuições Assim fixamonos em Agripino Grieco apolítico vindo do Pré Modernismo Tristão de Athayde na ocasião católico e conser vador aceitando em parte e recusando em parte a doutrina mo dernista Mário de Andrade a grande figura do movimento di vulgador e defensor da nova estética politicamente situado à es querda e Octavio de Faria direitista em política e timbrando em recusar a herança artística dos anos vinte Teríamos dessa maneira uma visão bastante ampla dos problemas e das soluções propostas pela crítica da época ao mesmo tempo que situandoos sempre sob o mesmo enfoque literatura Modernismo e ideo logia manteríamos a possibilidade de aprofundar a análise httpsedisciplinasuspbrpluginfilephp4332357modresourcecontent1ANTONIOCANDIDORevolucaode30eaCultu rapdf de Antonio Candido sobre as mudanças no processo dos anos 30 e a cultura da obra Literatura e sociedade httpsedisciplinasuspbrpluginfilephp5567904modresourcecontent2Sergio20Miceli20E2809320Intele ctuais20e20Classe20Dirigente20no20Brasilpdf de Sergio Micelli sobre a produção dos intelectuais entre os anos 20 e 40 observar nos links os espaços de resistência dos anos 30 pelo olhar da contemporaneidade httpsmemorialdaresistenciasporgbr no Brasil httpswwwmuseudoaljubeptexposicaopermanente em Portugal 20241 310724 Os pressupostos básicos do Modernismo projeto estético e projeto ideológico Tal coincidência entre o estético e o ideológico se deve em parte à própria natureza da poética modernista O Modernismo brasileiro foi tomar das vanguardas europeias sua concepção de arte e as bases de sua linguagem a deformação do natural como fator construtivo o popular e o grotesco como contrapeso ao falso refinamento academista a cotidianidade como recusa à idealização do real o fluxo da consciência como processo desmascarador da linguagem tradicional Ora para realizar tais princípios os vanguardistas europeus foram buscar inspiração em grande parte nos procedimentos técnicos da arte primitiva aliandoos à tradição artística de que provinham e por essa via transformandoa mas no Brasil já o notou Antonio Candido as artes negra e ameríndia estavam tão presentes e atuantes quanto a cultura branca de procedência europeia O senso do fantástico a deformação do sobrenatural o canto do cotidiano ou a espontaneidade da inspiração eram elementos que circundavam as formas acadêmicas de produção artística Dirigindose a eles e dandolhes lugar na nova estética o Modernismo de um só passo rompia com a ideologia que segregava o popular distorcendo assim nossa realidade e instalava uma linguagem conforme à modernidade do século Os pressupostos básicos In LAFETÁ JL 1930 a crítica e o Modernismo São Paulo Ed 34 p223 Em síntese as características de estilo do Modernismo no Brasil e em Portugal Fragmentação resgate de ideias das vanguardas europeias Síntese Busca pela linguagem oralidades coloquialidade Nacionalismo Ironia humor e paródia Relato do cotidiano Revisão crítica do passado histórico e cultural Subjetivismo Versos livres Entretanto observe que mesmo no primeiro momento do Modernismo metade das características percorrem não só a estética mas também a política portanto já havia lá um projeto ideológico A temática da infância na prosa brasileira de 30 Palavraschave infância autobiografia memórias romance de formação literatura para crianças e jovens posição do narrador autor narrador personagem TOMACHEVSKI B Temática In org TODOROVTeoria da Literatura SP Unesp 2013 p305355 Leia as passagens a seguir de diversos autores que se iniciaram na literatura na década de 30 A questão do tema será retomada em outras aulas O quinze de Rachel de Queiroz Enquanto Cordulina ia raspando para um beiju o achado miserável Josias ao lado dela calado estirado no chão fazia de vez em quando uma careta Afinal disse à mãe que estava com dor de barriga De quê Ele contou a história da manipeba Cordulina levantouse assustada Meu filho Pelo amor de Deus Você comeu mandioca crua Assombrado e sentindo a dor mais forte o pequeno começou a chorar Cordulina aturdida topando no madeirame do chão andou até ao terreiro limpo procurando na terra varrida umas folhas para um chá Depois caindo em si foi às trouxas e do fundo de uma lata tirou um punhado ressequido de sene E enquanto fazia o chá gritava num pranto para o marido que mais longe trocava algumas palavras com um passante Chico Chico Valhame Nossa Senhora o Josias se envenenou Agora esgotadas as mezinhas findos os recursos sozinha o marido longe Chico Bento saíra de manhãzinha a ver se descobria alguém que ensinasse um remédio de cócoras junto à criança moribunda a cabeça quase entre os joelhos um filho agarrado à saia Cordulina chorava sem consolo Um dos outros pequenos sentado numa trave chupando o dedo olhava o irmão E o Pedro o mais velho do lado oposto de vez em quando tangia com a mão alguma mosca que tentava pousar no rosto do doentinho Mas detrás dele a mulher insistiu Que foi que você resolveu Chico Sem se voltar fixando ainda a estrelinha moribunda ele concordou É dê Se é da gente deixar morrer pra entregar aos urubus antes botar nas mãos da madrinha que ao menos faz o enterro Numa das vezes em que foi buscar as sobras de comida que Dona Inácia lhe guardava Cordulina levou o Duca com a camisinha lavada escanchado ao quadril tão triste e tão magro que não tinha para onde descarnar mais e petrificadas as feições numa careta de choro parado e sem voz Conceição vendoa entrar gritou alegremente Foi de vez comadre Agora não leva mais Pobrezinho de meu afilhado o pequeno acentuou hostilmente a careta chorona e agarrouse à mãe incrustandolhe no ombro a sua pequena garra enegrecida Com muito custo Cordulina o pôs no chão Duquinha ficou de cócoras encolhido agarrado ao pé da mesa como um bicho bravo assustado grunhindo surdamente de desconsolo e de medo a qualquer aproximação E para que ele a não visse sair a mãe depois de ir à cozinha arrecadar a sua trouxa retirouse escondida passando pela alcova Conceição aproximouse de novo procurando atrair o afilhado com agrados com comida Mas Duquinha não se mexia agarrado nervosamente ao seu pé de mesa A moça insistiu Trouxe um pouco de leite e chegouo ao menino A mãozinha seca empurrou o copo com raiva com brutalidade derramando o leite e na mesma obstinação agressiva ficou repelindo tudo enquanto Conceição desolada já não sabia o que fazer Ao meiodia Dona Inácia teve uma idéia fez Conceição com uma colher por detrás dele chegarlhe um pouco de leite à boca Quando o menino cuidou em si já engolia E gostando deixou de se revoltar chupou sofregamente a colher e entrou a beber com fúria com uma pressa áspera e esfaimada abrindo desmedidamente a boca e reclamando com gritos quando a moça se demorava Mas não se movia dali O bracinho empretecido e seco envolvia sempre o pé da mesa E quando enfim dormiu num sono leve e arfante foi com susto com infinitas cautelas que a madrinha o despregou para o levar à redinha armada perto de sua cama Vendo isso Dona Inácia estranhou Para que esses luxos Por que você não bota o menino no quarto de criada com a Maria o pobrezinho está tão doente Mãe Inácia Pode acordar de noite e a Maria é mesmo que uma pedra Menino do engenho 1932 de José Lins do Rego À noitinha chegava o bando à porta da casagrande Vinha António Silvino à frente os seus doze homens a distância Subiu a calçada como um chefe apertou a mão do meu avô com um riso na boca Levado para a sala de visitas os cabras ficaram enfileirados na banda de fora numa ordem de colegiais Só ele tomava intimidade com os de casa Ficávamos nós os meninos numa admiração de olhos compridos para o nosso herói para o seu punhal enorme os seus dedos cheios de anéis de ouro e a medalha com pedras de brilhantes que trazia ao peito O seu rifle pequeno não o deixava trazendoo entre os joelhos À hora do jantar foram todos para a mesa Ele à cabeceira e os cabras por ordem todos calados como se estivessem com medo Só ele falava contava histórias o último cerco que os macacos lhe fizeram em Cachoeira de Cebola numa fala de tátaro querendo fazerse muito engraçado Alta noite foise com o seu bando Para mim tinha perdido um bocado do prestígio Eu faziao outro arrogante e impetuoso e aquela fala bamba viera desmanchar em mim a figura do herói Vidas secas 1938 de Graciliano Ramos Lembrouse de Fabiano e procurou esquecêlo Com certeza Fabiano e Sinhá Vitória iam castigálo por causa do acidente Levantou os olhos tímidos A lua tinha aparecido engrossava acompanhada por uma estrelinha quase invisível Aquela hora os Periquitos descansavam na vazante nas touceiras secas de milho Se possuísse um daqueles periquitos seria feliz Baixou a cabeça tornou a olhar a poça escura que o gado esvaziara Uns riachos miúdos marejavam na areia como artérias abertas de animais Recordouse das cabras abatidas a mão de pilão penduradas de cabeça para baixo num caibro do copiar sangrando Retirouse A humilhação atenuouse pouco a pouco e morreu Precisava entrar em casa jantar dormir E precisava crescer ficar tão grande como Fabiano matar cabras a mão de pilão trazer uma faca de ponta à cintura Ia crescer espicharse numa cama de varas fumar cigarros de palha calçar sapatos de couro cru Subiu a ladeira chegouse a casa devagar entortando as pernas banzeiro Quando fosse homem caminharia assim pesado cambaio importante as rosetas das esporas tilintando Saltaria no lombo de um cavalo brabo e voaria na catinga como pédevento levantando poeira Ao regressar apearseia num pulo e andaria no pátio assim torto de perneiras gibão guardapeito e chapéu de couro com barbicacho O menino mais velho e Baleia ficariam admirados A terra dos meninos pelados 1939 de Graciliano Ramos Havia um menino diferente dos outros meninos tinha o olho direito preto o esquerdo azul e a cabeça pelada Os vizinhos mangavam dele e gritavam ò pelado Tanto gritaram que ele se acostumou achou o apelido certo deu para se assinar a carvão nas paredes Dr Raimundo Pelado Era de bom gênio e não se zangava mas os garotos dos arredores fugiam ao vêlo escondiamse por detrás das árvores da rua mudavam a voz e perguntavam que fim tinham levado os cabelos deles Raimundo entristecia e fechava o olho direito quando o aperreavam demais aborreciase fechava o olho esquerdo E a cara ficava toda escura Não tendo com quem entenderse Raimundo Pelado falava só e os outros pensavam que ele estava malucando Estava nada Conversava sozinho e desenhava na calçada coisas maravilhosas do país de Tatipirun onde não há cabelos e as pessoas tem um olho preto e outro azul 44ed RJ Record 2013 p78 Infância 1945 de Graciliano Ramos Sem dúvida o meu aspecto era desagradável inspirava repugnância E a gente da casa se impacientava Minha mãe tinha a franqueza de manifestarme viva antipatia Davame dois apelidos bezerroencourado e cabracega Bezerro encourado é um intruso Quando uma cria morre tiramlhe o couro vestem com ele um órfão que neste disfarce é amamentado A vaca sente o cheiro do filho enganase e adota o animal Devo o apodo ao meu desarranjo à feiúra ao desengonço Não havia roupa que me assentasse no corpo a camisa tufava na barriga as mangas se encurtavam ou alongavam o paletó se alargava nas costas enchiase como um balão Na verdade o traje fora composto pela costureira módica atarefada pouco atenta às medidas Todos os meninos porém usavam na vila fatiotas iguais e conseguiam modificálas ajeitálas Eu aparentava pendurar nos ombros um casaco alheio Bezerroencourado Mas não me fazia tolerar Essa injúria revelou muito cedo a minha condição na família comparado ao bicho infeliz considereime um pupilo enfadonho aceito a custo Zangueime permanecendo exteriormente calmo depois serenei Ninguém tinha culpa do meu desalinho daqueles modos horríveis de cambembe Censurandome a inferioridade talvez quisessem corrigirmeA outra alcunha era mais insultuosa que a primeira Lembravame do jogo infantil e arreliavame Memórias de Emília 1936 de Monteiro Lobato De tanto Emília falar em minhas Memórias que uma vez Dona Benta perguntou Mas afinal de contas bobinha que é que você entende por memórias Memórias são a história da vida da gente com tudo o que acontece desde o dia do nascimento até o dia da morte Nesse caso caçoou Dona Benta uma pessoa só pode escrever memórias depois que morre Espere disse Emília O escrevedor de memórias vai escrevendo até sentir que o dia da morte vem vindo Então pára deixa o finalzinho sem acabar Morre sossegado E as suas Memórias vão ser assim Não porque não pretendo morrer Finjo que morro só As últimas palavras têm de ser estas E então morri com reticências Mas é peta Escrevo isso pisco o olho e sumo atrás do armário para que Narizinho fique mesmo pensando que morri Será a única mentira das minhas Memórias Tudo mais verdade pura da dura ali na batata como diz Pedrinho Dona Benta sorriu Verdade pura Nada mais difícil do que a verdade Emília Bem sei disse a boneca Bem sei que tudo na vida não passa de mentiras e sei também que é nas memórias que os homens mentem mais Quem escreve memórias arruma as coisas de jeito que o leitor fique fazendo uma alta idéia do escrevedor Mas para isso ele não pode dizer a verdade porque senão o leitor fica vendo que era um homem igual aos outros Logo tem de mentir com muita manha para dar idéia de que está falando a verdade pura Dona Benta espantouse de que uma simples bonequinha de pano andasse com idéias tão filosóficas Acho graça nisso de você falar em verdade e mentira como se realmente soubesse o que é uma coisa e outra Até Jesus Cristo não teve ânimo de dizer o que era a verdade Quando Pôncio Pilatos lhe perguntou Que é a verdade ele que era Cristo achou melhor calarse Não deu resposta Pois eu sei gritou Emília Verdade é uma espécie de mentira bem pregada das que ninguém desconfia Só isso O Visconde ergueu novamente os olhos para o forro suspirando Estavam os dois fechados no quarto dos badulaques Servia de mesa um caixãozinho e de cadeira um tijolo Emília passeava de um lado para outro de mãos às costas Ia ditar Vamos disse ela depois de ver tudo pronto Escreva bem no alto do papel Memórias da Marquesa de Rabicó Em letras bem graúdas O Visconde escreveu MEMÓRIAS DA MARQUESA DE RABICÓ Agora escreva Capítulo Primeiro O Visconde escreveu e ficou à espera do resto Emília de testinha franzida não sabia como começar Isso de começar não é fácil Muito mais simples é acabar Pingase um ponto final e pronto ou então escrevese um latinzinho FINIS Mas começar é terrível Emília pensou pensou e por fim disse Bote um ponto de interrogação ou antes bote vários pontos de interrogação Bote seis O Visconde abriu a boca Vamos Visconde Bote aí seis pontos de interrogação insistiu a boneca Não vê que estou indecisa interrogandome a mim mesma E foi assim que as Memórias da Marquesa de Rabicó principiaram de um modo absolutamente imprevisto Capítulo Primeiro Emília contou os pontos e achou sete Corte um ordenou O Visconde deu um suspiro e riscou o último ponto deixando só os seis encomendados Capitães da areia 1937 de Jorge Amado Pelo trapiche ia um rumor de risadas de conversas de gritos João Grande distinguia bem a voz do SemPernas estrídula e fanhosa O SemPernas falava alto ria muito Era o espião do grupo aquele que sabia se meter na casa de uma família uma semana passando por um bom menino perdido dos pais na imensidão agressiva da cidade Coxo o defeito físico valeralhe o apelido Mas valialhe também a simpatia de quanta mãe de família o via humilde e tristonho na sua porta pedindo um pouco de comida e pousada por uma noite Agora no meio do trapiche o SemPernas metia a ridículo o Gato que perdera todo um dia para furtar um anelão cor de vinho sem nenhum valor real pedra falsa de falsa beleza também Nunca tivera família Vivera na casa de um padeiro a quem chamava meu padrinho e que o surrava Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria Sofreu fome um dia levaramno preso Ele quer um carinho ua mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta Em cada canto estava um com uma borracha comprida As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes A perna coxa se recusava a ajudálo E a borracha zunia nas suas costas quando o cansaço o fazia parar A princípio chorou muito depois não sabe como as lágrimas secaram Certa hora não resistiu mais abateuse no chão Sangrava Ainda hoje ouve como os soldados riam e como riu aquele homem de colete cinzento que fumava um charuto Depois encontrou os Capitães da Areia foi o Professor quem o trouxe haviam feito camaradagem num banco de jardim e ficou com eles Os fundos da casagrande davam para um pátio onde ficava o povo da serventia Para este pátio dava o quarto das negras velhas antigas escravas africanas que ainda se arrastavam pela cozinha A cozinha do Corredor vivia de portas escancaradas Brancos e negros se encontravam sempre naquela fábrica de fogos acesos A minha avó Janoca quando deixava a sua cadeira de balanço ia sentarse na banca onde passava o dia a velha Galdina aleijada negra africana a quem todos nós chamávamos de vovó A negra Generosa fora escrava e conquistara pela força pelo tempero pela franqueza o reinado da cozinha Tudo ali saía das suas mãos e de seus braços As notícias chegavam primeiro na cozinha as cheias do Paraíba as chuvas no Piauí as secas do sertão as bravatas de Antônio Silvino tudo vinha à cozinha em primeira mão O bicheiro Salvador aparecia do Pilar com as suas novidades As mulheres dos moradores sentavamse pelo chão à espera de remédios ou de sementes para plantar Algumas traziam presentes ovos galinhas gordas rendas bicos Pela manhã guardo nos sentidos o aroma doce que o tempo não conseguiu destruir toda a cozinha cheirava As urupemas de açafroa chegavam da horta para uma negra separar as flores E toda a cozinha cheirava como um bosque Os moleques do pastoreador vinham fazer a mochila para o almoço no campo farinha um pedaço de ceará toucinho cru Muitos curavam as feridas nos pés as mãos furadas com unguentos da velha Generosa Outros tinham os dedos cambados os calcanhares roídos pelos bichosdepé Itinerário de Pasárgada 1954 de Manuel Bandeira Na casa de Laranjeiras nunca faltava o pão mas a luta era dura E eu desde logo tomei parte nela como intermediário entre minha mãe e os fornecedores vendeiro açougueiro quitandeiro padeiro Nunca brinquei com os moleques da rua mas impregneime a fundo do realismo da gente do povo Jamais me esqueci das palavras com que certo caixeiro de venda português deu notícias de um companheiro que não era visto algum tempo O seu Alberto está com os pulmões podres A idade do serrote 1968 de Murilo Mendes Meu pai grande coração comunicante Servidor público Do próximo Escrivão do registro de títulos e hipotecas da cidade de Juiz de Fora Minha mãe afeiçoada ao canto e ao piano morre de parto com vinte e oito anos Tornase constelação Minha segunda mãe Maria José grande dama de cozinha e salão resume a ternura brasileira Risquei do vocabulário a palavra madrasta Solo de clarineta 1973 de Erico Verissimo Existem objetos importantes na infância de todos nós Na minha além desse tipo de fogareiro e do gramofono de campânula marca Victor havia um ferro de passar roupa com seu quente cheiro de brasa umas lâmpadas de acetilene que entravam em atividade sempre que a luz elétrica falhava a máquina Singer em que d Bega cosia e uma grande tesoura de ferro que apareceria trinta anos depois n O tempo e o vento nas mãos de Ana Terra que com ela cortava o cordão umbilical dos recémnascidos que partejava Baú de ossos 1972 de Pedro Nava Cedo meu avô terá ficado órfão pois foi ser criado por sua tiaavó que era também a avó de seu primo irmão adotivo compadre e melhor amigo Antônio Ennes de Souza homem por todos os títulos admirável que tive a vantagem de ter como influência na infância e mestre na adolescência E tive outra prerrogativa a de menino perceber a qualidade do homem com quem lidava Sendo Pedro da Silva Nava o único de meus avós acima do qual eu não podia subir senão duas gerações parando no emigrante Francisco esta porteira fechada sempre me encheu de curiosidade Memórias inventadas 2010 de Manoel de Barros ESCOVA Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso No começo achei que aqueles homens não batiam bem Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão Logo pensei de escovar palavras Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma Para escutar os primeiros sons mesmo que ainda bígrafos Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha Passava horas inteiras dias inteiros fechado no quarto trancado a escovar palavras Logo a turma perguntou o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto Eu respondi a eles meio entressonhado que eu estava escovando palavras Eles acharam que eu não batia bem Então eu joguei a escova fora A Posição do Narrador e o Recorte da Infância em Vidas Secas de Graciliano Ramos à Luz de Walter Benjamin No romance Vidas Secas 1938 de Graciliano Ramos a infância é apresentada como um tema central que reflete a dureza e a aridez do sertão nordestino As crianças assim como os adultos enfrentam as condições desumanas impostas pela seca e pela pobreza extrema A narrativa desvela um ambiente hostil onde os menores são privados de direitos básicos e de momentos lúdicos vivendo em um constante estado de carência O presente trabalho propõe analisar a posição do narrador utilizando as teorias de Walter Benjamin 1936 que aborda a função do narrador e sua relação com a subjetividade na narrativa A impessoalidade e distanciamento do narrador em Vidas Secas têm um impacto profundo na forma e no conteúdo da obra realçando as condições extremas vividas pelos personagens A infância em Vidas Secas é marcada por privações severas e sofrimentos inescapáveis Os filhos de Fabiano e Sinhá Vitória crescem em um contexto de extrema pobreza onde os prazeres e necessidades básicas são negados forjando neles uma visão de mundo moldada pela escassez Desde pequenos as crianças estão imersas em um ambiente onde a sobrevivência é a única prioridade o que impede qualquer manifestação de sonhos ou brincadeiras típicas da infância Elas são retratadas como seres que apesar de sua pouca idade já compreendem as dificuldades do mundo ao seu redor e parecem se resignar à condição em que vivem Um exemplo dessa visão aparece no trecho O menino mais velho e Baleia ficariam admirados Ramos 2013 p 98 que sugere uma infância em que até mesmo a admiração é rarefeita fruto de um cotidiano árido e sem perspectivas Walter Benjamin em seu ensaio O Narrador 1936 argumenta que a arte de narrar está profundamente ligada à experiência de vida do narrador Ele sugere que o narrador tradicional está em declínio sendo substituído por narradores mais distantes e impessoais o que reflete mudanças nas formas de contar histórias e na sociedade como um todo Essa ideia de Benjamin aplicase diretamente à forma como o narrador de Vidas Secas se posiciona O narrador em terceira pessoa adota uma postura distante e impessoal o que reflete a indiferença da natureza e das circunstâncias em relação ao sofrimento humano Esse narrador não emite juízos de valor nem se envolve emocionalmente com os personagens o que intensifica a sensação de alienação e desespero presentes na obra A escolha de um narrador distante como propõe Benjamin priva o leitor da subjetividade e da proximidade que narradores tradicionais costumam oferecer Ao mesmo tempo essa postura permite uma análise mais crítica e objetiva da realidade descrita Em Vidas Secas o narrador apenas relata os eventos e as emoções de maneira crua e desapaixonada o que acentua a brutalidade do contexto No trecho Fabiano olhava o céu e via apenas o vazio Ramos 2013 p 75 é possível perceber a ausência de qualquer traço de esperança ou conforto uma característica constante no romance reforçada pela neutralidade do narrador As implicações dessa posição narrativa afetam diretamente tanto a forma quanto o conteúdo da obra O estilo direto e despojado do romance sem adornos ou subjetividades reflete a própria secura e aspereza do sertão Além disso a escolha de um narrador impessoal reforça os temas de desumanização e alienação que permeiam todo o enredo Ao descrever as dificuldades enfrentadas pelas crianças de forma impassível o narrador destaca a brutalidade da vida no sertão e a falta de perspectivas que molda suas infâncias Um exemplo marcante dessa desumanização pode ser encontrado no trecho O menino se encolhia e gritava mas os outros nem ligavam cansados e apáticos Ramos 2013 p 45 A frieza da descrição evidencia o quanto a miséria e o sofrimento se tornaram normais para os personagens que já não conseguem reagir às dores do cotidiano Portanto a posição do narrador em Vidas Secas é essencial para a construção de uma narrativa que ao expor as dificuldades da infância no sertão nordestino mantém uma perspectiva distanciada e objetiva Essa escolha estilística analisada à luz das teorias de Walter Benjamin reforça a ideia de que a narrativa espelha as condições sociais e naturais impostas aos personagens Ao evitar o envolvimento emocional o narrador permite ao leitor uma visão crítica e imparcial o que intensifica o impacto do romance e ressalta a precariedade da existência no sertão A impessoalidade narrativa é assim um recurso fundamental para aprofundar a reflexão sobre a dureza da vida sertaneja e a alienação dos seus habitantes Vidas Secas de Graciliano Ramos embora escrita em 1938 permanece extremamente relevante quando se observa a vida no sertão nordestino nos dias atuais A obra retrata a pobreza extrema a seca constante e a luta pela sobrevivência temas que ainda são parte da realidade de muitas famílias no sertão A aridez do sertão descrita por Ramos onde a água é um recurso escasso e precioso encontra eco nas condições de muitas regiões do Nordeste brasileiro que continuam a enfrentar longos períodos de estiagem afetando a agricultura a pecuária e a vida cotidiana de milhares de sertanejos Hoje apesar dos avanços tecnológicos e das políticas públicas voltadas para o combate à seca como a construção de cisternas e programas de convivência com o semiárido muitos dos problemas enfrentados por Fabiano Sinhá Vitória e seus filhos ainda são vividos por famílias rurais A migração para as grandes cidades em busca de melhores condições de vida continua sendo uma alternativa forçada para aqueles que não conseguem prosperar no sertão O sofrimento silencioso e a resiliência dos sertanejos aspectos centrais em Vidas Secas continuam sendo uma marca registrada de quem vive nessa região especialmente nas comunidades mais isoladas e de menor acesso às iniciativas governamentais As crianças no sertão contemporâneo tal como os filhos de Fabiano no romance ainda lidam com a falta de oportunidades O acesso à educação melhorou mas a evasão escolar e a baixa qualidade do ensino em áreas rurais são problemas que persistem Assim como os personagens da obra essas crianças muitas vezes precisam ajudar suas famílias no trabalho agrícola limitando suas perspectivas de futuro A desigualdade de oportunidades entre as áreas urbanas e o sertão perpetua ciclos de pobreza e marginalização social algo que já era evidente na obra de Graciliano Ramos A desumanização e alienação retratadas em Vidas Secas também podem ser vistas na atualidade quando a luta pela sobrevivência em um ambiente hostil desumaniza os indivíduos e faz com que a rotina de miséria se torne normalizada Esse aspecto é relevante quando consideramos como as populações do sertão muitas vezes são invisibilizadas pelos grandes centros urbanos e políticas nacionais sendo lembradas principalmente em períodos de calamidade No entanto algumas mudanças significativas devem ser reconhecidas A modernização de técnicas de convivência com o semiárido e o desenvolvimento de políticas públicas de transferência de renda como o Bolsa Família trouxeram melhorias que não existiam na época retratada por Ramos Embora o sertão continue sendo uma região de desafios há iniciativas atuais que buscam oferecer suporte para que as famílias possam viver de maneira mais digna mesmo em condições adversas Assim ao traçar um paralelo entre Vidas Secas e a atualidade é possível perceber que apesar de alguns avanços sociais e tecnológicos muitos dos desafios do sertão nordestino ainda persistem tornando a obra de Graciliano Ramos uma representação atemporal da luta por sobrevivência em um ambiente inóspito A seca a pobreza e a desigualdade social continuam a ser questões urgentes que afetam a vida de milhares de sertanejos aproximando a ficção da realidade contemporânea Referências Bibliográficas BENJAMIN W O narrador Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov In Magia e técnica arte e política Ensaios sobre literatura e história da cultura São Paulo Brasiliense 1994 CANDIDO A Literatura e Sociedade São Paulo Companhia Editora Nacional 1965 LAFETÁ J L 1930 A crítica e o Modernismo 2 ed São Paulo Editora 34 2000 RAMOS G Vidas Secas 44 ed Rio de Janeiro Record 2013