5
Literatura
UNILAB
2
Literatura
UNILAB
132
Literatura
UNILAB
154
Literatura
UNILAB
79
Literatura
UNILAB
1
Literatura
UNILAB
13
Literatura
UNILAB
7
Literatura
UNILAB
13
Literatura
UNILAB
70
Literatura
UNILAB
Texto de pré-visualização
O Escravocrata Artur Azevedo Fonte Teatro de Artur Azevedo Tomo III Coleção Clássicos do Teatro Brasileiro vol 7 INACEN 1987 Texto proveniente de Biblioteca Virtual de Literatura wwwbibliocombr Permitido o uso apenas para fins educacionais Este material pode ser redistribuído livremente desde que não seja alterado e que as infomações acima sejam mantidas O ESCRAVOCRATA Drama em 3 atos Em colaboração com Urbano Duarte 1884 A Alfredo Bastos oferecem os sinceros e saudosos amigos AAUD PRÓDOMO O Escravocrata escrito há dois anos e submetido à aprovação do Conservatório Dramático Brasileiro sob o título A família Salazar não mereceu o indispensável placet Embora não trouxesse o manuscrito nota alguma com declaração dos motivos que ponderaram no ânimo dos ilustres censores para induzilos à condenação do nosso trabalho somos levados a crer que essa mudez significa ofensa à moral visto como só nesse terreno legisla e prepondera a opinião literária daquela instituição Resolvemos então publicálo a fim de que o público julgue e pronuncie Sabemos de antemão quais os dois pontos em que a crítica poderá atacálo imoralidade e inverossimilhança Conhecendo isso sangramonos em saúde O fato capital da peça pião em volta do qual gira toda a ação dramática são os antigos amores de um mulato escravo cria de estimação de uma família burguesa com a sua senhora mulher nevrótica e de imaginação desregrada desta falta resulta um filho que até vinte e tantos anos de idade é considerado como se legítimo fosse tais os prodígios de dissimulação postos em prática pela mãe e pelo pai escravo a fim de guardarem o terrível segredo Bruscamente por uma série de circunstâncias imprevistas desvendase a verdade precipitase então o drama violento e rápido cujo desfecho natural é a consequência rigorosa dos caracteres em jogo e da marcha da ação Onde é que se acha o imoral ou o inverossímil As relações amorosas entre senhores e escravos foram e são desgraçadamente fatos comuns no nosso odioso regime social só se surpreenderá deles quem tiver olhos para não ver e ouvidos para não ouvir Se a cada leitor em particular perguntássemos se lhe ocorre à memória um caso idêntico ou análogo ao referido no Escravocrata certo estamos de que ele responderia afirmativamente A questão de moralidade teatral e literária diz respeito tão somente à forma à linguagem à fatura ao estilo Se os moralistas penetrassem na substância na medula das obras literárias de qualquer época ou país que sejam de lá voltariam profundamente escandalizados com as rosas do pudor nas faces incendidas e decididos a lançar no index todos os autores dramáticos passados presentes e futuros Repetir estas coisas é banalidade há porém pessoas muito ilustradas que só não sabem aquilo que deveriam saber Seria muito bom que todas as mulheres casadas fossem fiéis aos seus maridos honestas ajuizadas linfáticas e que os adultérios infamantes não passassem de fantasias perversas de dramaturgos atrabiliários mas infelizmente assim não sucede e o bípede implume comete todos os dias monstruosidades que não podem deixar de ser processadas neste supremo tribunal de justiça o teatro Não queremos mal ao Conservatório reconhecemos o seu direito e curvamos a cabeça Tanto mais que nos achamos plenamente convencidos de que à força de empenhos e de argumentos alcançaríamos a felicidade de ver o nosso drama à luz da ribalta Mas esses trâmites seriam tão demorados e a idéia abolicionista caminha com desassombro tal que talvez no dia da primeira representação do Escravocrata já não houvesse escravos no Brasil A nossa peça deixaria de ser um trabalho audacioso de propaganda para ser uma medíocre especulação literária Não nos ficaria a glória que ambicionamos de haver concorrido com o pequenino impulso das nossas penas para o desmoronamento da fortaleza negra da escravidão Janeiro de 1884 Artur Azevedo e Urbano Duarte PERSONAGENS SALAZAR negociante de escravos GUSTAVO seu filho LOURENÇO seu escravo SERAFIM exsócio do Clube Abolicionista Pai Tomás DOUTOR EUGÊNIO médico SEBASTIÃO sócio de Salazar UM COMPRADOR DE ESCRAVOS UM CREDOR UM CAIXEIRO JOSEFA irmã de Salazar GABRIELA mulher de Salazar CAROLINA sua filha Três mulatas baianas escravos A cena passase no Rio de Janeiro ATO PRIMEIRO Escritório em uma casa de alugar escravos À esquerda secretária à direita sofá sobre o qual está um número do Jornal do Commércio cadeiras Porta ao fundo à esquerda Encostadas à parede do fundo à esquerda uma trouxa e uma esteira suja enroladas CENA I SALAZAR depois UM CAIXEIRO SALAZAR escreve por algum tempo sentado à secretária toca o tímpano entra o caixeiro O CAIXEIRO Da esquerda alta Pronto SALAZAR Levou os negros à Polícia O CAIXEIRO Sim senhor já estão de volta SALAZAR Bem Seguem para cima amanhã no expresso das quatro horas e meia Às três em ponto o senhor deverá estar de pé a fim de poder acharse na Estação às quatro São quarenta e quatro cabeças incluindo o Lourenço Tome lá Vá à minha casa e entregue este bilhete a minha mulher Ela deve entregarlhe o Lourenço e o senhor o reunirá ao lote de escravos que vai embarcar Levantandose passa à direita Resolvi desfazerme daquele tratante haja o que houver e nada me demoverá deste propósito Pode ir O Caixeiro sai pelo fundo CENA II SALAZAR SEBASTIÃO SEBASTIÃO Da esquerda alta Possuímos a melhor fazenda que existe atualmente no mercado do Rio de Janeiro não achas Salazar SALAZAR Sentandose no sofá Gente superfina Os nossos comitentes do Norte capricharam desta vez Só a renque da crioulada vale vinte e cinco alto e mau de olhos fechados É para fazer água na boca Há pouco quando o lote passava na rua o Arruda da Prainha lançoulhe um olhar de sete palmos e meio É só para os moer SEBASTIÃO O Arruda nunca recebeu nem receberá uma partida de negros como esta que veio pelo Ceará SALAZAR Não há um só alcaide Gente limpa escorreita moça reforçada e dócil que faz gosto Só do Ceará nos vieram dez crioulos retintos que valem o seu peso em ouro Se tu não os venderes a vinte e cinco ou trinta dias não te chamarás Sebastião de Miranda o famoso negreiro fluminense sócio e amigo íntimo de Pedro Salazar negociante de grosso trato e fazendeiro sem hipotecas SEBASTIÃO Sim espero fazer bom negócio Por fora a gente é de primeira qualidade não há dúvida mas por dentro Quem é que pode lá conhecer mazelas de negro Negro é bicho do diabo Salazar As vezes estão cheios de moléstias ocultas que só confessam quando lhes faz conta SALAZAR Nem tanto Pois hão de iludir os médicos SEBASTIÃO Ora os médicos os médicos Por cinco mil réis de mais ou de menos fazem a inspeção conforme queremos SALAZAR Negro não tem licença para estar doente Enquanto respira há de poder com a enxada quer queira quer não SEBASTIÃO De acordo mas hoje anda aí em moda tratálos bem com humanidade não sei que mais SALAZAR Tolices Humanidade para negro Para moléstia de negro há um remédio supremo infalível e único o bacalhau Deemme um negro moribundo e um bacalhau que eu lhes mostrarei se o não ponho lépido e lampeiro com meia dúzia de lambadas SEBASTIÃO Perfeitamente de acordo Mas quer queiramos quer não temos de contemporizar com essas idéias Os tais senhores abolicionistas SALAZAR Erguendose e descendo ao proscênio Psiu Não me fales nessa gente pelo amor de Deus Só o nome dessa cáfila de bandidos que ultimamente me têm feito perder mais de oitenta contos irritame de um modo incrível SEBASTIÃO Também a mim Regra geral e sem exceção sujeito que nada tem a perder e não sabe onde cair morto declarase abolicionista SALAZAR Eu vou mais adiante sujeito que tentou sem resultado todos os empregos profissões e indústrias e em nenhum conseguiu reputação ou fortuna por ser incapaz indolente prevaricador ou estúpido arvorase por último em abolicionista para ver se deste modo segura os pirões SEBASTIÃO E com que desprezo nos chamam de escravocratas Dizem que negociamos em carne humana quando são eles que traficam com a boafé dos papalvos e lhes vão limpando as algibeiras por meio de discursos e conferências SALAZAR Exploram o elemento servil pelo avesso sem os percalços do ofício Ao menos nós damos aos negros casa cama comida roupa botica e bacalhau SEBASTIÃO Principalmente bacalhau Porque o negro sem ele é uma utopia Indo examinar uns papéis à secretária Recebeste hoje carta do Evaristo SALAZAR No proscênio Sim a safra promete ser excelente Quatro mil arrobas de primeira Tudo na melhor ordem SEBASTIÃO Com um administrador como o Evaristo vale a pena ser fazendeiro É o nosso factótum SALAZAR Honesto ativo fiel longa prática do eito e chicote sempre na mão SEBASTIÃO Basta que visitemos uma ou duas vezes por ano a nossa fazenda do Pouso Alto para que as coisas nos corram sem novidade Salazar desce ao proscênio Mas então levo ou não levo o Lourenço SALAZAR Sem dúvida desta vez ele não escapa Irra que já ando aborrecidíssimo com aquela peste Preciso descartarme dele oponhase quem se opuser Nada me enraivece mais que ver um negro emproado Já por diversas vezes tenho querido tirarlhe a proa com uma surra mestra mas minha mulher minha filha e meu filho metemse de permeio e fazemme uma choradeira de todos os diabos SEBASTIÃO Pois ainda és desse tempo Atendes a súplica de família quando se trata de surrar negro SALAZAR Pois se eles sempre se colocam em sua frente para defendêlo Ainda anteontem minha mulher quase apanhou uma lambada que era destinada ao Lourenço Protegeo escandalosamente alegando ser ele cria da família e não sei mais o quê E há vinte e cinco anos desde o meu casamento que aturo as insolências daquele patife Leva a ousadia ao ponto de não abaixar a vista quando fala comigo Oh mas desta vez vendoo definitivamente CENA III OS MESMOS SERAFIM SERAFIM Da porta do fundo O Senhor Pedro Salazar SALAZAR Que deseja senhor Serafim entregalhe uma carta SEBASTIÃO À parte examinando Serafim Que tipo Polícia secreta flor da gente ou poeta Vai sentarse no sofá e lê o Jornal do Commércio SALAZAR Depois de ler a carta Serafim Pechincha é o senhor SERAFIM Em carne e osso SALAZAR O compadre Ribeiro escreveme Lê O portador é o Senhor Serafim Pechincha moço filho de uma boa família provinciana o qual se acha desempregado e reduzido à expressão mais simples Parece ser ativo é inteligente Vê se o podes ocupar em algum serviço SERAFIM Redação simples mas eloqüente SALAZAR A recomendação do compadre Ribeiro é muito valiosa porém creio não estranhará que eu procure saber das suas habilitações e precedentes É natural não acha SERAFIM Naturalíssimo Julgo do meu dever falarlhe com toda a franqueza para que me fique conhecendo e depois não diga que sim mas que também Eu cá sou despachado SEBASTIÃO À parte A linguagem não é de polícia secreta SALAZAR Diga SERAFIM Começo por declarar que sou um tipo arrebentado SALAZAR Arrebentado SERAFIM Arrebentadíssimo Constame por informações de terceiro que pertenço a uma boa família provinciana ao que aliás não ligo muito crédito SALAZAR Como assim SEBASTIÃO À parte Flor da gente com certeza SERAFIM À Salazar É verdade não tenho a mais vaga reminiscência de pai nem mãe Cuido mesmo que já nasci órfão Oh triste sina Procura o lenço e não o acha limpa uma lágrima à aba do paletó Quando há tempos o príncipe Natureza dissertou sobre o choque de pai e mãe senti que o coração se me dilacerava de saudades SEBASTIÃO À parte Agora parece poeta SALAZAR Mas não tem parente algum SERAFIM Lá chegarei gosto de ir por partes Aos dez anos tenho lembrança de que um tio nos meteu a mim e a dois irmãos em uma espécie de colégio na Rua de São Diogo SALAZAR Mas até os dez anos De nada se recorda SERAFIM É célebre SERAFIM Celebérrimo Mas todo eu sou celebérrimo Como dizia meteramme no colégio a mim ao Chico e ao Cazuza Aí estivemos três anos durante os quais passamos fome de cachorro O diretor era mais sovina que grosseiro e mais estúpido que sovina e grosseiro Um belo dia nós não podendo suportálo tratamos uma conspiração aplicamoslhe uma coça de marmeleiro e fugimos do colégio SALAZAR À parte Bom precedente SERAFIM Daí em diante a minha vida tem sido um romance sem palavras Quem lhe dera senhor Salazar possuir de contos de réis os dias que não tenho comido Gesto de Salazar Não se admire disto não me peja dizer a verdade nua e crua Eu sou do tipo arrebentado Há dias em que acredito mais no balão Júlio César do que numa nota de quinhentos réis Tenho tentado todos os empregos fui manipulador de cigarros durante dois meses exerci o nobre mister de testadeferro fizme cambista redator do Incendiário e até representei no teatro SEBASTIÃO Vivamente Ah foi cômico SERAFIM Não senhor fiz uma das pernas do elefante do Alibabá na Fênix SALAZAR Mas que fim levaram seus irmãos SERAFIM Ah esses foram mais felizes que eu arranjaramse perfeitamente SALAZAR Estão empregados SERAFIM Ou coisa que o valha o Chico meteuse no Hospício de Pedro II SALAZAR Como enfermeiro SERAFIM Como doido SALAZAR Enlouqueceu SERAFIM Qual teve mais juízo que eu cama mesa médico uma ducha de vez em quando para refrescar as idéias e uma camisola para o frio Afinal é um meio de vida como outro qualquer SALAZAR Surpreso E o Como se chama SERAFIM O Cazuza Assobia Um finório Tantos empenhos meteu que conseguiu um lugar no Asilo da Mendicidade SALAZAR Ah como inspetor de turma SERAFIM Qual inspetor qual turma Como mendigo SEBASTIÃO À parte É um tipo único SERAFIM Vive hoje muito tranqüilo e satisfeito a desfiar estopa Estão ambos arranjados eu é que ainda não criei juízo e vivo ao deusdará SALAZAR Por que não se torna abolicionista SERAFIM Recuando indignado e tomando uma atitute teatral Senhor João Salazar SALAZAR Pedro Pedro se me faz favor SERAFIM Senhor Pedro Salazar creio que todas as misérias que acabei de lhe relatar não o autorizam a cuspirme em face tal injúria Sou um tipo arrebentado mas graças a Deus ainda não desci tão baixo SALAZAR Então odeia SERAFIM Os abolicionistas Não os odeio desprezoos SEBASTIÃO Levantandose entusiasmado e apertandolhe a mão Toque SALAZAR Toque Serafim tem cada uma das mãos apertadas por cada um dos sócios De hoje em diante pode considerarse empregado de Salazar Miranda SEBASTIÃO Entende alguma coisa de negócio SERAFIM Pouco mas modéstia à parte sou muito inteligente Com qualquer coisa me ponho em dia Se me dessem uma explicação sumária SEBASTIÃO Pois não agora mesmo Tomandolhe o braço Venha comigo SERAFIM Saindo à parte Que dirão os meus colegas do Clube Abolicionista Pai Tomás Sebastião sai com Serafim pela esquerda alta CENA IV SALAZAR GUSTAVO SALAZAR Só Desta gente é que eu preciso GUSTAVO Entra do fundo amarrotando um jornal que tem na mão Sacripantes Safardanas Leia isto meu pai veja se o infame mofineiro que publicou este aranzel contra vosmecê e a nossa família não merece que se lhe corte a cara a vergalho Leia isto SALAZAR Não não leio Apesar de não ligar a mínima importância ao grasnar desses miseráveis gazetilheiros que só andam à cata de quem os compre as suas verrinas deixamme numa irritação nervosa que me tira o apetite Ah se eu pilhasse os tais abolicionistas todos no eito GUSTAVO Quem sabe Pode ser que um dia CENA V OS MESMOS LOURENÇO o CAIXEIRO CAIXEIRO Cá está o mulato SALAZAR A Lourenço Prepara a tua trouxa tens que seguir amanhã para cima LOURENÇO Fitao e depois diz pausadamente Mais nada SALAZAR Furioso Mais nada Desavergonhado Patife Cão Puxa já daqui LOURENÇO Não lhe quis faltar ao respeito Este é o meu modo de falar SALAZAR Modo de falar Pois negro tem modo de falar Quando estiveres em minha presença abaixa a vista ladrão Lourenço não lhe obedece Abaixa a vista cachorro Cortote a chicote se o não fizeres Lourenço conservase imperturbável Salazar avança com um chicote mas Gustavo o contém GUSTAVO Peço por ele meu pai Lourenço é um escravo dócil e obediente A Lourenço com brandura Abaixa a vista Lourenço Lourenço obedece Ajoelhate Idem Pede humildemente perdão a meu pai de lhe não haveres obedecido incontinenti LOURENÇO Peço humildemente perdão a meu senhor SALAZAR Puxa daqui burro Lourenço sai CENA VI SALAZAR GUSTAVO GUSTAVO Vai mandálo para fora SALAZAR Definitivamente Escusam de pedirme Cada vez tem menos vergonha é uma peste GUSTAVO Nem tanto Apesar da ojeriza e do desprezo que tenho por tudo quanto me cheira a negro cativo conservo alguma estima pelo Lourenço SALAZAR As tais amizades do senhor moço Viute nascer trouxete ao colo etc etc Olha podes estar certo de que na primeira ocasião propícia ele te envenenará numa xícara de café ou num copo dágua Ainda és muito moço não sabes de quanto um negro é capaz GUSTAVO Sei bastante para esta raça amaldiçoada só há três princípios o eito o bacalhau e a força Mas não posso deixar de abrir uma exceção para o Lourenço CENA VII OS MESMOS um COMPRADOR COMPRADOR O senhor Pedro Salazar SALAZAR Um seu criado que deseja COMPRADOR Sei que recebeu pelo vapor Ceará uma bela partida de raparigas desejo comprarlhe algumas Gustavo durante o diálogo entretêmse a cortar com uma tesoura um artigo do Jornal que trouxe na mão e guarda o retalho SALAZAR Tenho o que lhe serve fazenda nova bonita e limpa COMPRADOR Podese ver SALAZAR Imediatamente Toca o tímpano entra o caixeiro Traga as mulatas da Bahia Sai o caixeiro Crioulas não lhe servem Gesto negativo do comprador Sim para o seu negócio Abaixando a voz É coisa papafina e barata CENA VIII SALAZAR GUSTAVO o COMPRADOR SEBASTIÃO SERAFIM o CAIXEIRO três mulatas SERAFIM Empurrando as mulatas Vamos Depressa Negro não tem vergonha Olha que ar de santa tem esta descarada Tirote a santidade com couro cru Formem as três para este lado SALAZAR Assim À parte Tenho homem SERAFIM Ao Comprador Foi o senhor que pediu as mulatas Eilas Veja que três mucamas esplêndidas à parte Olá o Raposo cáften GUSTAVO À parte indicando Salazar Ainda não achei situação azada para lhe dar o bote Preciso muito muito SERAFIM Indicando as mulatas Esta daqui cozinha lava e engoma perfeitamente Aquela engoma lava e cozinha admiravelmente Aquela outra cozinha engoma e lava como ninguém ainda cozinhou lavou e engomou neste mundo SEBASTIÃO Possuem ainda uns dengues baianos mas que se tiram com o chicote SERAFIM Vai bem servido A uma das mulatas Faze aí um dengue para aqui o senhor apreciar Vamos lá Dize assim Ó gentes ioiô Mecê tem partes As mulatas conservamse cabisbaixas e silenciosas Fala desavergonhada SEBASTIÃO Baixo a Serafim Deixese de patuscadas O negócio é coisa muito séria SALAZAR Ao Comprador Que tal COMPRADOR Bom frontispício A uma mulata Abre a boca rapariga Boa dentadura Passalhe grosseiramente a mão pela face e pelos cabelos viraa e examinaa de todos os lados Boa peça sim senhor Tira fora este pano A mulata não obedece SALAZAR Tira fora este pano não ouves Arranca o pano e atirao violentamente fora A mulata corre a apanhálo mas Sebastião empurraa Ela volta ao lugar e desfazse em pranto cobrindo os seios com as mãos SEBASTIÃO Olhem Quer ter pudor Onde já se viu isto Negra com pudor SERAFIM E chora Ora não querem ver Cachorra Daqui a pouco é que hás de chorar deveras COMPRADOR A Salazar baixo Por esta que está chorando dou vinte e cinco negócio fechado SALAZAR Baixo Menos de trinta nem um real Tem pudor homem A Serafim Leveas Sai Serafim empurrando na sua frente as mulatas Sai igualmente o Caixeiro CENA IX SALAZAR o COMPRADOR SEBASTIÃO GUSTAVO Dois grupos Salazar conversa com o Comprador Sebastião com Gustavo GUSTAVO A Sebastião Estou em talas SEBASTIÃO Como sempre GUSTAVO Mas desta vez a coisa é séria uma dívida de honra SEBASTIÃO Já conheço as suas dívidas de honra pagar a conta de alguma cocote GUSTAVO Jurolhe que a coisa é de gravidade Uma ninharia quatrocentos mil réis mas se os não arranjo sou bem capaz de fazer saltar os miolos SEBASTIÃO Seria sua primeira ação de juízo GUSTAVO Acha que meu pai me negará esse dinheiro Vou darlhe o bote SEBASTIÃO Se eu fosse seu pai não lho daria porque tenho a certeza de que você iria perdêlo até o último vintém na banca francesa COMPRADOR A Salazar Pois então está concluído o negócio Hoje mesmo virei buscálas SEBASTIÃO Ao Comprador Mas o senhor ainda não viu toda a gente que temos Talvez encontre alguma que lhe agrade Venha contemplála Saem juntos CENA X SALAZAR GUSTAVO GUSTAVO Quero pedirlhe um favor meu pai SALAZAR Dinheiro Não há GUSTAVO Mas SALAZAR Não há já disse Não me aborreça GUSTAVO É que SALAZAR Não há quês nem kás ganheo com o suor de seu rosto que eu não estou para alimentar vícios de malandros Sai CENA XI GUSTAVO depois LOURENÇO GUSTAVO Só Estou a braços com um caiporismo medonho Há três dias que não ganho uma parada Não me ponho no prego por ser difícil achar quem me queira Joguei quatrocentos mil réis sob palavra e não tenho com que os pagar Os amigos a quem posso recorrer ou já são meus credores ou são tão forrecas como eu Palavra que não sei de que expediente lançar mão Lourenço entra de mansinho e vem colocarse junto de Gustavo sem que ele o veja LOURENÇO Vossemecê está incomodado GUSTAVO Ah Lourenço pregasteme um susto Estou incomodado sim LOURENÇO E Lourenço não pode saber GUSTAVO Ora Saber para quê Que remédio podes darme O que eu quero é dinheiro É de dinheiro que eu preciso Tu o tens para mo emprestar LOURENÇO Tirando do bolso dinheiro embrulhado num lenço sujo Aqui estão minhas economias juntadas vintém por vintém Se vossemecê precisa Lourenço faz muito gosto GUSTAVO Abrindo o embrulho e contando avidamente o dinheiro Cento e vinte mil seiscentos e vinte réis À parte Soma esquisita Oh que palpite Em meia dúzia de paradas isto pode render um conto de réis Lourenço daqui a pouco te restituirei esse dinheiro e mais vinte mil réis de gratificação Sai correndo CENA XII LOURENÇO depois GABRIELA CAROLINA LOURENÇO Ergue os olhos aos céus e enxuga uma lágrima O jogo sempre o jogo Não posso não devo não quero sair de junto dele GABRIELA Entrando com Carolina Lourenço onde está o senhor Salazar LOURENÇO No escritório do guardalivros GABRIELA Carolina vai lá dentro ter com teu pai Vê como lhe fazes o pedido Lembrate de que ele é arrebatado só com muita brandura se pode leválo CAROLINA Não lhe dê cuidado mamãe Saindo a Lourenço Tratase de vossemecê senhor Lourenço Veja lá como lhe queremos bem Sai CENA XIII LOURENÇO GABRIELA LOURENÇO Baixo e em tom de ameaça Não quero absolutamente afastarme de junto dele GABRIELA Muito nervosa Sim sim Farei tudo quanto estiver ao meu alcance mas não fales nesse tom porque se nos ouvem LOURENÇO Não tenhas susto há vinte e dois anos que guardo este segredo e ainda não pronunciei uma palavra que pudesse despertar desconfianças Prometo guardálo até à morte se a senhora fizer que eu me conserve sempre ao lado dele GABRIELA Sim prometo prometo À parte Oh Deus mereço eu tamanho castigo Alto Sai daqui Aproximase o senhor Salazar Lourenço sai CENA XIV GABRIELA SALAZAR CAROLINA CAROLINA A Salazar Perdoe ainda esta vez Garantolhe que de hoje em diante ele abaixará a vista quando estiver em sua presença SALAZAR Tá tá tá O Lourenço segue amanhã com o lote tocado pelo Sebastião e vai apanhar café na fazenda com instruções ao Evaristo para castigálo com todo o rigor à menor falta É resoluço inabalável Não cederei aos anjos do céu que venham em comissão CAROLINA Com voz trêmula pela comoção Se as minhas palavras não o comovem meu pai ao menos as minhas lágrimas Desata em pranto SALAZAR Valhame Deus Vem cá pequena dizeme que interesse têm vocês em proteger aquele tratante GABRIELA Não é interesse senhor é amizade O Lourenço é cria de família viua nascer e ao Gustavo Trouxeos ao colo Tratouos sempre com carinho Além disso é bom escravo o senhor só o senhor antipatiza com ele CAROLINA Sem razão sem razão Aquilo nele é natural Cada qual como nasceu Vossemecê preferia que o Lourenço fosse desses escravos que na frente se derretem em humilhações e por detrás são inimigos encarniçados de seus senhores SALAZAR Depois de uma pausa Bem Ainda desta vez cedo AS DUAS Ah SALAZAR Mas sob uma condição CAROLINA Qual SALAZAR De me deixarem livre e desembaraçadamente irlhe ao pêlo quando não andar muito direitinho CAROLINA Pois bem SALAZAR Levemno com todos os diabos CAROLINA Abraçandoo Ah obrigado paizinho Lourenço Lourenço aparece Vamos para casa Vem conosco SALAZAR A Lourenço Vá lá mas sem exemplo Agradeça à sinhazinha ladrão Ouve dentro pancadaria e choradeira Que é isto GABRIELA Enquanto Salazar volta as costas Vamos vamos Sai com Carolina Lourenço acompanhaas CENA XV SALAZAR SERAFIM SERAFIM Trazendo um vergalho em uma das mãos e uma grande palmatória na outra Arre Estreeime perfeitamente SALAZAR Que foi SERAFIM Esta corja de moleques e negrinhas Faziam uma algazarra de ensurdecer Distribuí chicotadas da direita para a esquerda Não perdi uma SALAZAR Toque O senhor é o homem que me serve Depois de lhe apertar a mão Vou vêlos Vou vêlos Sai SERAFIM Só Que dirão os meus colegas do Clube Abolicionista Pai Tomás FIM DO PRIMEIRO ATO ATO II Em casa de Salazar CENA I DOUTOR ENGÊNIO CAROLINA ao piano CAROLINA Não gosta desta habanera DOUTOR Prefiro a mais vulgar música a um trecho sublime de Beethoven ou de Mozart CAROLINA Como assim DOUTOR Quando esta música vulgar é executada pelos seus dedos CAROLINA Enleada Oh Doutor DOUTOR Peçolhe que não me trate pelo meu título as afeições recíprocas excluem essas formalidades banais A sua cerimônia fazme supor não ser correspondido CAROLINA Oh porventura vê alguma coisa em mim que possa autorizar esse juízo DOUTOR Só tenho lido nos seus olhos amor candura e inocência Oh amoa muito adoroa Carolina Tenho uma vaga reminiscência de haver visto o seu semblante em um mundo ideal no mundo dos sonhos talvez À parte Flor entre cardos Pérola no lameirão A eterna antítese Oh mas hei de tirála pura do meio impuro em que vive Porque amoa CENA II OS MESMOS JOSEFA JOSEFA Entrando a praquejar Má raios te partam te enconjuro credo Que azucrinação de todos os diabos Esta molecada não me deixa sossegar Vendo o doutor e Carolina E estes dois aqui sozinhos Que pouca vergonha Vou participar ao mano que não posso mais viver nesta casa De todos os lados só se vê mácriação patifaria e pouca vergonha CAROLINA Deixando o piano Está zangada tia Josefa JOSEFA Estou sim Pois se aqui ninguém me respeita ninguém faz caso de mim Sou um doisdepaus DOUTOR Enganase JOSEFA Deixeme falar que eu só falo quando tenho rezão Mandei um desses moleques à venda comprar quatro vinténs de pimentadoreino e o diabo levou duas horas na rua Que lembrança teve o mano em mandar para cá os negros que não couberam na Casa de Comissão É uma negralhada que nem santo pode aturar CAROLINA Porém JOSEFA Deixeme falar com a breca Não fazem caso de mim os tais senhores negros Se dou uma ordem ela entra por um ouvido e sai por outro Ainda ontem disse à pernambucana que queria o meu vestido de fustão engomado hoje e até agora a excomungada nem ao menos o pôs na goma DOUTOR Mas JOSEFA Deixeme falar homem de Deus Eu levantava as mãos para o céu e acendia uma vela a Nossa Senhora das Candeias no dia em que visse enforcados todos os negros desta terra Olhando ironicamente para o doutor Eugênio Eu bem sei que esta opinião desagrada a certos sujeitinhos que são abolicionistas mas andam à coca de meninas que tem escravos DOUTOR Perdão pareceme JOSEFA Deixeme falar Carolina toma o doutor pela mão e levao para o jardim Josefa não dá pela saída dos dois Se a carapuça serviu a alguém esse alguém que a deite na cabeça e vá para todos os diabos que eu não tenho a quem dar satisfações e não as dava nem a meu pai que ressuscitasse Vendose só Foramse não importa Hei de falar até não poder mais Hei de falar mesmo sozinha porque com certeza alguém estará escutando à porta Doutor das dúzias ainda aqui com partes de abolicionista e quer casar com a filha de um homem que ele sabe que tem toda a sua fortuna em escravos Ah inveja inveja CENA III JOSEFA SERAFIM SERAFIM Senhora dona Josefa o patrão manda buscar as crioulas Jacinta e Quitéria JOSEFA Ah É você Sentese aqui e ouçame Obrigao a sentarse Veja se eu tenho ou não rezão quando falo Vivo aqui no inferno seu Serafim sou tratada como uma negra Ninguém me respeita ninguém faz caso de mim Estou morta por me ir embora Aqui eu fico maluca se já o não estou SERAFIM Querendo levantarse O patrão JOSEFA Obrigandoo a sentarse Deixeme falar Também você SERAFIM Tem toda a razão mas é que JOSEFA Ainda ontem SERAFIM Mexendose O patrão tem pressa JOSEFA Gritando Deixeme falar Ainda ontem tinha eu dado ordem para mudar o coradouro SERAFIM Nada Vou eu mesmo buscar as crioulas Sai rapidamente JOSEFA Perseguindoo Ouça o resto homem do diabo Ainda ontem Olhe Seu Serafim Perdese a voz nos bastidores CENA IV UM CREDOR introduzido por LOURENÇO depois GABRIELA LOURENÇO Faça favor de entrar Eu vou chamar minha senhora Saída falsa Não é preciso ela aí vem Entra Gabriela Minha senhora este senhor deseja falar com vossemecê Gabriela cumprimenta o credor com a cabeça Lourenço afastase e fica escutando ao fundo O CREDOR Minha senhora eu vim procurar seu filho o senhor Gustavo o criado disseme que ele não está em casa fará vossa excelência o obséquio de me informar do lugar e da ocasião em que poderei encontrálo GABRIELA Sou a última a saber da vida de meu filho senhor Raras vezes o vejo Passamse dias e dias que não vem a casa e nunca diz para onde vai O CREDOR Se vossa excelência me concedesse alguns momentos de atenção desejava fazerlhe revelações importantes a respeito do senhor seu filho revelações que com certeza hão de magoála muito mas que julgo necessárias GABRIELA Não me surpreende Já estou tristemente habituada aos desmandos de Gustavo tudo tenho em vão tentado para trazêlo ao bom caminho Queira sentarse Sentamse ambos O CREDOR Mas cuido que Vossa Excelência ignora a que ponto chegaram as coisas GABRIELA Infelizmente sei Apaixonouse por uma mulher perdida e não podendo suprir as despesas extraordinárias que acarretam essas loucuras recorre ao jogo O CREDOR Recorre a coisa pior minha senhora GABRIELA Como O CREDOR Tirando um papel do bolso Tenha a bondade de ver GABRIELA É uma letra de quinhentos mil réis assinada por meu marido O CREDOR Examine bem a assinatura GABRIELA Lendo Pedro Salazar O CREDOR Reconhece a assinatura como do próprio punho do senhor Salazar GABRIELA Depois de uma pausa Meu Deus À parte Falsa LOURENÇO Corre toma freneticamente a letra das mãos do credor e rasgaa Oh O CREDOR Estou duas vezes roubado Vou ter com a Polícia GABRIELA Tomandoo pelo braço Por quem é não o faça É uma mãe que lho pede Queira esperar aqui um momento Sai LOURENÇO Ajoelhandose em frente ao Credor Por tudo quanto há de mais sagrado pelo amor que tem a sua mãe não lhe faça mal meu senhor Juro por Maria Santíssima que lhe pagarei esse dinheiro dentro de pouco tempo com o juro que quiser Erguese GABRIELA Voltando Aqui estão algumas de minhas jóias Leveas vendaas e paguese senhor O CREDOR Depois de uma pausa A prática dos negócios e o atrito dos interesses egoístas blindamnos o coração e nos tornam insensíveis aos dissabores alheios porém não tanto como o propalam os senhores sentimentalistas sem vintém Quando é necessário temos coração Guarde as suas jóias minha senhora Nada transpirará deste fato e quanto ao pagamento faloá quando e como lhe for possível Às ordens de vossa excelência GABRIELA Apertandolhe a mão Obrigada LOURENÇO Beijandolhe as mãos Sou um pobre escravo mas as ações generosas fazemme chorar Sai o Credor acompanhado por Lourenço GABRIELA Só Meu Deus meu Deus quando acabará este martírio Cai numa cadeira a soluçar Disfarça as lágrimas ao ver entrar a filha pelo braço do doutor CENA V GABRIELA DOUTOR CAROLINA que entram sem ver GABRIELA CAROLINA Tenha coragem Eugênio Declareselhe francamente Afiançolhe que será bem tratado e receberá o preciso consentimento DOUTOR Não o creio Carolina Basta verme para ficar de mau humor Votame uma antipatia invencível leioa nos seus olhos no seu modo de falar em tudo E se sendo tão mal visto pelo dono da casa ainda me atrevo a pôr aqui os pés é porque é porque GABRIELA Interpondose É porque amaa e deseja casarse com ela Quanto a mim honrome muito em têlo por genro Mas meu marido é contrário a esta idéia e meu marido é teimoso CAROLINA Minha mãe DOUTOR Ignoro a causa desta aversão que ele me volta GABRIELA Pois ignora DOUTOR Decerto Sou perfeitamente inocente GABRIELA Não consta que o doutor tem idéias emancipadoras DOUTOR Sim Se bem que não apresente como paladino faço modestamente tudo quanto posso pela causa da emancipação dos escravos Pausa Estou perfeitamente convicto de que a escravidão é a maior das iniquidades sociais absolutamente incompatível com os princípios em que se esteiam as sociedades modernas É ela é só ela a causa real do nosso atraso material moral e intelectual visto como sendo a base única da nossa constituição econômica exerce a sua funesta influência sobre todos os outros ramos da atividade social que se derivam logicamente da cultura do solo Mesmo no Rio de Janeiro esta grande capital cosmopolita feita de elementos heterogêneos já hoje possuidora de importantes melhoramentos o elemento servil é a pedra angular da riqueza O estrangeiro que o visita maravilhado pelos esplendores da nossa incomparável natureza mal suspeita das amargas decepções que o esperam Nos ricos palácios como nas vivendas burguesas nos estabelecimentos de instrução como nos de caridades nas ruas e praças públicas nos jardins e parques nos pitorescos e decantados arrabaldes no cimo dos montes onde tudo respira vida e liberdade no íntimo do lar doméstico por toda a parte em suma deparaselhe o sinistro aspecto do escravo exalando um gemido de dor que é ao mesmo tempo uma imprecação e um protesto E junto do negro o azorrague o tronco e a força trípode lúgubre em que se baseia a prosperidade do meu país Oh não Cada dia que continua este estado de coisas é uma cusparada que se lança à face da civilização e da humanidade Sei que me acoimarão de idealista alegando que não se governam nações com sentimentalismos e retóricas Pois bem há um fato incontroverso e palpável que vem corroborar as minhas utopias E sabido que os imigrantes estrangeiros não procuram o Brasil ou não se conservam nele por não quererem emparceirarse com os escravos A escravidão é uma barreira insuperável à torrente imigratória Portanto penso que só há uma solução para o problema da transformação do trabalho a espada de Alexandre CAROLINA Muito bem Eugênio daria um jornalista esplêndido GABRIELA As suas idéias doutor chegaram aos ouvidos do senhor Salazar e foi quanto bastou para considerálo seu inimigo natural Ouvese a voz de Josefa que descompõe alguém gritando DOUTOR Nesse caso deverei perder as esperanças porque acima dos impulsos do meu coração achamse os princípios sagrados da liberdade e do direito conculcado GABRIELA Mas não perca a esperança Com paciência muito se conseguirá Sobretudo não precipite os acontecimentos CAROLINA Que ouve a voz de Josefa a qual não tem cessado de ralhar Titia Josefa destemperou Vou bulir com ela Alto Ó titia que é lá isso pegou fogo na casa A VOZ DE JOSEFA Mais próxima enquanto o doutor conversa com Gabriela Também você sua delambida Quer tomar chá de garfo comigo Vem para cá que te ponho as orelhas em pimentão CAROLINA Sempre à porta Não seja tão mazinha titia do coração Foge para junto da mãe JOSEFA Nos bastidores Tomara que já chegue o dia da minha morte só para ver se eu descanso um dia na minha vida Atravessa a cena com uma vassoura na mão e uma caçarola na outra Amanhã me mudo desta casa Não posso mais com esta vida Que inferneira te arrenego Sai Carolina arremedaa CAROLINA Venha cá titia olhe escute GABRIELA Ao doutor Depois de amanhã vamos para a fazenda onde passaremos um mês O doutor não nos quer fazer companhia DOUTOR Eu Depois do que acabo de saber CAROLINA Que se tem aproximado Sem dúvida que há de ir e por isso mesmo Papai terá lá muito pouca gente com quem se entreter e será obrigado a fazer as pazes com o senhor Eu serei a intermediária Ele não é tão mau como dizem GABRIELA Além disso o ar do campo tem a virtude de abrandar um tanto DOUTOR Bem nesse caso aceito Baixo a Carolina passando A tudo me sujeito para estar ao pé de ti Apertandolhe a mão Adeus CAROLINA Até quando DOUTOR Até sempre Aperta a mão de Gabriela Dona Gabriela GABRIELA Até sempre doutor CAROLINA Apareça para combinarmos na viagem O doutor cumprimenta e sai À mãe Felizmente Eugênio é o médico da casa Se não fosse isso papai seria capaz de dar a entender que o não queria ver aqui GABRIELA E se ainda o não deu é por ignorar que ele te requesta Mas vamos para dentro Toma as jóias CAROLINA As suas jóias Por que estão aqui GABRIELA Por nada Vamos Carolina Saem CENA VI SERAFIM entrando a tocar duas escravas diante de si e acompanhado por JOSEFA JOSEFA Mas ouça homem de Deus SERAFIM Desculpe minha senhora desculpe não posso ouvir A senhora já me tem demorado tanto É até possível que o patrão me ponha no andar da rua Eu sou tão caipora sou um tipo tão arrebentado Vamos raparigas Vamos Toca JOSEFA Tomandoo pelo braço Ouça e veja se não tenho razão quando falo escute SERAFIM Virgem Nossa Senhora Não posso agora Estou com muita pressa Logo mais JOSEFA Não há de ser já escute Serafim sai correndo tocando as negras adiante de si À porta Malcriado Trampolineiro Indo à janela Patife Desavergonhado Vou descompôlo pela janela do beco Saindo Hás de pagarme Hei de ensinarte a prestar atenção às pessoas mais velhas Sai gritando sempre A cena fica vazia por alguns momentos Por algum tempo ouvese ao longe a voz de Josefa Entra Gustavo e atira de mau humor o chapéu ao chão CENA VII GUSTAVO depois LOURENÇO GUSTAVO Desgraça Desgraça Só me falta para solução final cravar uma bala nos miolos Já o tentei uma vez mas falhoume a energia e tremeu me o braço Lourenço ao fundo espreitao Uma coisa por demais Não há meio de desforrar mil réis que sejam Pausa Mas é indispensável urgente imprescindível que eu de qualquer modo resgate aquela letra para ao menos ressalvar o resto de vergonha e honradez compatível com a deplorável vida que levo Atirase no sofá e fecha os olhos Pausa Treze Treze Quatorze Quinze Chorrilho de grandes Em um quarto de hora posso ganhar uma fortuna deixando a dobrar Abre os olhos olha em roda de si e aponta para o gabinete É ali Tirando uma chave do bolso A chave cabe perfeitamente Tiro o dinheiro e em menos de meia hora o reponho Ninguém o saberá Dirigese para o gabinete e estaca na porta Gustavo Gustavo que vais fazer Miserável Ah Porém Ora Não há dúvida Bastará um chorrilho de oito grandes para endireitar tudo Sai CENA VIII LOURENÇO depois GUSTAVO LOURENÇO Que tem acompanhado ao fundo todo o monólogo de Gustavo dirigese à porta do gabinete e espreita Que faz ele Jesus Misericórdia Abre a secretária com uma chave falsa Ah não custe o que custar hei de impedir aquela infâmia que o desonra e que me desonra também GUSTAVO Voltando sem ver Lourenço contando o dinheiro Trezentos Trezentos e cinquenta Um chorrilho de oito grandes é coisa muito comum nos dados Pondo cinquenta mil réis a dobrar levanto quatro contos e oitocentos num abrir e fechar dolhos Vai a sair LOURENÇO Interpondose Dême isto GUSTAVO Surpreendido Isto quê LOURENÇO Dê cá este dinheiro GUSTAVO Enlouqueceste Quem és tu para me falares assim LOURENÇO Eu Lourenço Sou eu GUSTAVO Arreda bêbado Deixame passar LOURENÇO Não há de sair daqui com o que tem na mão GUSTAVO Não estou agora para aturarte a cachaça Se estivesses bom da cabeça pagavasme caro o desaforo Vai a sair LOURENÇO Colocandose na porta Não sairá sem me entregar este dinheiro GUSTAVO Encolerizado Deixame diabo LOURENÇO Não Segura Gustavo que tenta sair GUSTAVO Cão Olha que és um negro cativo e eu sou teu senhor LOURENÇO Pouco importa Não posso consentir no que faz Entregueme o dinheiro Pequena luta finda a qual Lourenço temse apoderado do dinheiro GUSTAVO Miserável Ladrão Patife Cortote a chicote Dálhe uma bofetada no momento em que aparece Gabriela CENA IX LOURENÇO GUSTAVO GABRIELA GABRIELA Lourenço Gustavo Meu Deus LOURENÇO Em tom singular Esta bofetada será um direito perante os homens mas perante Deus é um sacrilégio Eu GABRIELA Correndo para Lourenço Lourenço não o digas LOURENÇO Desvencilhandose Eu sou teu pai Tomando Gabriela pelo braço Negue Negue se é capaz Gabriela dá um grito e cai desfalecida Longa pausa Gustavo fulminado recua paulatinamente fitando Lourenço com o olhar desvairado Entra Salazar que estaca no fundo ao ver a cena CENA X OS MESMOS SALAZAR SALAZAR Descendo Que é isto Minha mulher desmaiada Meu filho desvairado Este negro Vendo dinheiro Dinheiro Tomandolhe das mãos Dinheiro Onde o roubaste LOURENÇO Caindo de joelhos a soluçar Da sua secretária meu senhor SALAZAR Colérico Ladrão Além do mais é ladrão GUSTAVO Como voltando a si febrilmente Negro Eu Filho de um escravo Oh Impossível Meu Deus FIM DO SEGUNDO ATO ATO III Na fazenda do Pousoalto Sala interior vendose ao fundo o terreiro com depósito de cereais e aparelhos agrícolas Arvoredos etc etc Ao levantar do pano ouvese a voz do feitor dando ordens CENA I JOSEFA EVARISTO A VOZ DE EVARISTO Se não tens força vou eu ensinarte Ouvese estalar o chicote Tira o couro deste animal Grita burro que quanto mais barulho fizeres pior será Gemidos de dor Levemno para o roçado novo à beira dágua amarremno a um tronco de árvore Lá poderá berrar à vontade Esvaemse os gemidos e a voz JOSEFA Entrando É só o que se vê desde menhã até de noite Negro café chicote tronco tronco café chicote negro Despois que aqui cheguemos há mais de quinze dias inda não vi nem ouvi outra coisa Quem é que pode com esta vida Despois dizem que eu sou faladeira Eu só falo quando tenho rezão Se não querem me ouvir vou pro meio do cafezal e hei de falar falar até não poder mais Quem é que pode ficar calado quando assunta coisas daquelas A gente perde até a vontade de comer Ora quem havera de pensar Bem sei por que ela ficou maluca Desde muito tempo que o tal nhonhô Gustavinho me dava que pensar Ela é branca o mano é muito disfarçado Como é que saiu um filho moreno e de cabelos duros Isto sempre me intrigou mas enfim não dizia nada porque eu só falo quando tenho rezão Porém despois que vi o tal Gustavinho variando por causa da moléstia confirmaramse as minhas desconfianças e vou dar parte ao mano aconteça o que acontecer E sabe Deus sabe Deus se ela está doida e se aquilo de estar no hospício não é manha E de família Já a mãe não se falava bem dela e a irmãcalate boca Elas pelo menos procuravam gente branca Mas não um escravo um negro Oh fico toda arrepiada quando penso nisso À parte Com um escravo parede A uma cadeira Com um negro cadeira Ao sofá Um negro Repete a todos os objetos que se acham na sala com tremeliques nervosos e sai com as mãos na cabeça e repetindo Um negro Um negro CENA II DOUTOR CAROLINA entra cada um de seu lado CAROLINA Indo ao encontro do doutor Como o acha Eugênio DOUTOR Posso quase assegurarlhe que está livre de perigo salvo complicações imprevistas Gustavo foi presa de uma fortíssima comoção cerebral que se devesse matálo já o teria feito Consegui debelar a febre que o prostava e cuido que o seu estado deixou de ser melindroso CAROLINA E minha mãe e minha pobre mãe DOUTOR Talvez recupere a razão no Hospício de Pedro II para o qual foi necessário removêla Mas não tenho esperança alguma A sua loucura apresenta um caráter horrível CAROLINA Chorando apoiase ao ombro do doutor Eugênio No meio de que desgraças e dissabores tem se alimentado o nosso amor DOUTOR Consolate Carolina CAROLINA E por mais que procure não atino com a causa de tanto infortúnio Minha mãe louca Gustavo doente Lourenço Não sei por quê mas pareceme que Lourenço não é estranho a estas desgraças A cólera de papai a fugida de Lourenço DOUTOR Lourenço subtraiu dinheiro da secretária de seu pai A exaltação do senhor Salazar impressionou dona Gabriela a ponto de lhe tirar a razão A doença de Gustavo é causada sem dúvida pelo estado em que viu sua mãe CAROLINA Vamos ter com Gustavo É preciso não abandonálo um só momento Pobre irmão Venha comigo Eugênio Saem CENA III SALAZAR EVARISTO FEITOR SALAZAR Encampo tudo quanto fizer Para negros não há contemplações EVARISTO Eu cá não brindo À menor falta que cometam trabalha o bacalhau feio e forte SALAZAR Assim Entendo que o negro só deixa resultado com o seguinte sistema das cinco da manhã às sete da noite é roçar derrubar matas e apanhar café às oito da manhã e à uma da tarde é angu abóbora e couve E sempre que for possível chicote e tronco para tirarlhes a preguiça EVARISTO É o sistema por mim seguido desde que o senhor me confiou a administração desta fazenda Tenhome dado muito bem com ele e não pretendo mudálo SALAZAR São todos mansos como cordeiros EVARISTO A maior parte Há um grupo de quatro ou cinco um tanto rebeldes Negros novos Gente do Ceará Antipatizam comigo mas essa ojeriza têmlhes custado caro Ainda há pouco mandei surrar um deles com todos os sacramentos Prometo que hei de pôlos a todos no bom caminho E o tal Lourenço Nada SALAZAR Já foi filado segundo um telegrama de Serafim que hoje recebi O rapaz é esperto foi uma bela aquisição o Serafim EVARISTO Ainda bem Agora sua licença vou dar providências sobre o embarque do café SALAZAR Vá vá senhor Evaristo Evaristo sai É o beijinho dos feitores CENA IV JOSEFA SALAZAR SALAZAR A Josefa que entra Como vai o rapaz mana JOSEFA Sei cá Pode ir melhor ou pior ou na mesma pouco se me dá SALAZAR Oh não tanto assim Gustavo é um estróina é um inútil convenho mas afinal é meu filho e portanto seu sobrinho JOSEFA Meu não Lavo a testada SALAZAR Hein JOSEFA Nunca SALAZAR Nunca JOSEFA Jamais SALAZAR Expliquese Não gosto de meias palavras JOSEFA Quantos dedos tenho eu nesta mão SALAZAR Cinco creio JOSEFA E nesta outra SALAZAR Cinco também pareceme JOSEFA E nas duas juntas SALAZAR Ora vá para o inferno JOSEFA Diga SALAZAR Dez Vamos lá JOSEFA Pois tenho tanta certeza de ter cinco nesta cinco nesta e dez nas duas juntas como tenho a certeza de que o tal Gustavinho não é seu filho e muito menos meu sobrinho SALAZAR Você está caducando ou deu na aguardente do alambique JOSEFA Mano eu só falo SALAZAR Quando tem razão os doidos dizem a mesma coisa JOSEFA Desculpo as suas mácriações porque eu só quero o seu bem Está então convencido de que esse coisinha é obra sua SALAZAR Não provavelmente há de ser do vigário JOSEFA Olhe que eu estou falando sério Quem dera que fosse do vigário SALAZAR Então há de ser do diácono JOSEFA Desça SALAZAR Do sacristão JOSEFA Desça mais SALAZAR Ora desça você para as profundezas do inferno com a sua língua de víbora e vá aborrecer ao diabo que a carregue JOSEFA Segurandolhe no braço Digame uma coisa que dia é hoje SALAZAR Sextafeira JOSEFA Quantos do mês SALAZAR Doze JOSEFA Que horas são SALAZAR Deve ser dez Ora senhor Já me não bastava a mulher doida Também esta JOSEFA Pois bem tome nota do que lhe disse mês semana dia hora e lugarSaindo com ironia Eu é que sou maluca Eu é que sou maluca Saída falsa SALAZAR Segurandoa com força pelo braço Velha maldita expliquese ou a esgano Não sei a quem se referem as suas suspeitas Você não passa de uma miserável caluniadora de uma vil intrigrante de uma envenenadora de profissão Eis aí Dálhe um empurrão Josefa vai cair sobre o sofá JOSEFA Erguendose Apare o carro Quer que eu me explique Pois eu me explico Pausa De que cor é a sua pele SALAZAR Aí vem o estilo cabalístico Com força Branca JOSEFA Sim apesar de que o nosso bisavô materno era pardo SALAZAR Tapandolhe a boca Psit mulher JOSEFA Bem pardo SALAZAR Mana JOSEFA E foi escravo até a idade de cinco anos SALAZAR Calate diabo JOSEFA Ninguém nos ouve Era mulato e escravo mas a aliança com galegos purificou a raça de sorte que tanto você como eu somos perfeitamente brancos Temos cabelos lisos e corridos beiços finos e testa larga SALAZAR Bem que mais JOSEFA Qual é a cor de sua mulher SALAZAR Branca JOSEFA E bem branca Ora sim senhor Como é que explica que seu filho seja bastante moreno tenha beiços grossos e cabelos duros Hein SALAZAR Sorrindo Você é uma toleirona Também a mim isto causava espécie mas disseme um médico ser este fato observado em famílias que contam um ou mais ascendentes remotos de cor Desgostoume muito isso mas enfim São caprichos da natureza Uma raça não se purifica inteiramente senão depois de séculos A mestiçagem com africanos produz atavismos JOSEFA Bem não digo mais nada Prefiro deixálo na doce ilusão Vai a sair SALAZAR Segurandoa Com mil diabos Já agora quero saber JOSEFA Quer SALAZAR Sim JOSEFA Pois ouça lá mesmo porque já estou engasgada Sou capaz de estourar se fico calada Ontem à noite fui ao quarto de Gustavo Ele estava ardendo em febre e delirava Sabe o que dizia Dizia assim Eu Filho de um negro Eu Negro Eu Ladrão SALAZAR Muito agitado E o que conclui você daí JOSEFA Hipocritamente Concluo concluo que o Lourenço é uma cria de família muito estimado escandalosamente protegido por sua mulher Deus lhe perdoe e Salazar agarra na garganta da velha dá um grito e sai correndo CENA V JOSEFA Só JOSEFA Quase me estrangula Ih Nunca pensei que a coisa causasse tanto barulho Com voz medrosa e de mãos postas Meu Santo Antônio fazei com que não aconteça alguma desgraça porque tal não era a minha intenção Juro que não era a minha intenção Juro que não era Jura com os dedos em cruz Vós bem sabeis meu bom santo que só falo quando tenho rezão Vou para o meu oratório rezar dez padrenossos e dez avemarias para que fique tudo em paz nesta casa Benzese Minha Nossa Senhora das Candeias Ainda bem que eu estou fora de toda esta intrigalhada Fora de cena e tenho a minha consciência limpinha Só me meto com a minha vida Perdese a voz CENA VI GUSTAVO magro pálido alquebrado amparado pelo DOUTOR e por CAROLINA DOUTOR É uma imprudência Faz mal faz mal senhor Gustavo GUSTAVO Não doutor ficarei sossegado aqui nesta poltrona Sentamno CAROLINA Meu irmão atende ao teu médico GUSTAVO Deixemme quero estar só Fecha os olhos Carolina depois de uma pausa julgandoo a dormir impõe silêncio ao doutor tomao pelo braço e saem ambos pé ante pé Só Terrível terrível pesadelo de todos os momentos Oh por que me não fulminou um raio minutos depois daquela monstruosa revelação Deus Destino Providência Acaso Qualquer que seja o teu nome és bem cruel para aquele cujo único crime foi a leviandade e a inexperiência próprias da mocidade Nervosamente Gustavo Salazar és filho de um escravo Fervete nas veias o sangue africano Pertences à raça maldita dos párias negros À qual sempre votaste o desprezo mais profundo Tua mãe prevaricou com um escravo Oh Soluça amargamente CENA VII O MESMO SERAFIM LOURENÇO SERAFIM traz pelo cós da calça LOURENÇO que tem as mãos amarradas sobre as costas e está magro hirsuto e com ar idiota SERAFIM Aqui está o negro Safa Custei À parte Quando ia entrar na estação da estrada de ferro encontrei o presidente do Clube Abolicionista Pai Tomás Mas é preciso ganhar a vida Gustavo erguese e recua espavorido para o canto oposto do teatro fitando Lourenço com o olhar desvairado Admirase não é assim Ah eu cá quando porfio mato caça Eu e dois pedestres andamos por ceca e meca e Olivares de Santarém mas afinal seguramos o negro e bem seguro A Lourenço Foge agora se és capaz tratante cachorro peste descara GUSTAVO Segurandoo pela garganta Calese SERAFIM Engasgado Fala comigo GUSTAVO Se ousar dirigirlhe a mais leve injúria matoo Largao SERAFIM À parte Esta agora que bicho o mordeu Alto Mas senhor Gustavo GUSTAVO Saia Empurrao SERAFIM Saindo à parte Ora dáse Homessa CENA VIII GUSTAVO LOURENÇO depois o DOUTOR Cena muda Ficam em frente um do outro silenciosos GUSTAVO Consigo Sonho terrível Meu pai aquele que ali está Mas não É o delírio da febre Impossível Pausa Inclinase sobre o sofá e oculta o rosto soluçando Dilataseme o coração estalaseme o peito que mal o pode conter É o grito fatal da natureza É a voz sagrada do sangue Por três vezes sucessivas Gustavo vai dirigirse a Lourenço mas ao aproximarse dele recua convulsivamente com certa repugnância Lourenço curva a cabeça e soluça Neste momento o doutor vai entrar mas vendo o quadro volta e assiste à cena da porta sem ser visto pelos dois Aquele que ali está amarrado e vi ipendiado que em breve vai sentir nos seus pés o ferro da ignomínia e em suas costas o açoite infamante do cativeiro é é meu pai A tirase aos braços de Lourenço o qual com um supremo esforço e dando três solavancos quebra as cordas que lhe algemam os pulsos Ficam abraçados DOUTOR À parte Compreendi tudo meu Deus Desaparece CENA IX GUSTAVO LOURENÇO SALAZAR SERAFIM depois EVARISTO SALAZAR Depois de fitálos com ódio a Serafim Vá chamar o Evaristo Serafim sai GUSTAVO Para que o Evaristo SALAZAR Com que direito me faz essa pergunta GUSTAVO Não sei Pergunto para que manda chamar o Evaristo SALAZAR Para arrancar o couro àquele negro EVARISTO Entrando Pronto SALAZAR Apontando para Lourenço Eilo Entregolho à discrição Evaristo com um gesto de ameaça dirigese para Lourenço GUSTAVO Não lhe toque SALAZAR À parte Ah Alto brandindo o chicote que arranca das mãos do feitor Pois começarei eu mesmo GUSTAVO Interpondose Por Deus que o não há de fazer SALAZAR Furioso Afastese Afastese senão aplicolhe uma chicotada LOURENÇO A Gustavo Deixeo meu senhor Eu sei o que devo fazer Sai Evaristo acompanhao Gustavo quer também acompanhálo mas cai abatido e tenta em vão erguerse CENA X SALAZAR GUSTAVO SALAZAR Filho do meu escravo GUSTAVO Já o sabia Tanto agora como mais tarde SALAZAR Esta sala não é lugar de moleques Saia GUSTAVO Erguendose a custo Sairei Antes porém há de ouvirme SALAZAR Não discuto com os filhos dos meus escravos GUSTAVO Com calma terrível Sou filho do seu escravo sim e nem por isso me julgo mais desprezível do que quando supunha ser seu filho percebe A febre escaldame o delírio fazme ver a nu a verdade das coisas Ouçame Segurandoo Desde o momento em que soube que me corria nas veias o sangue de um escravo senti que este sangue vinha não deturpar ou desonrar mas sim tonificar o meu organismo corrompido pela educação que o senhor me deu Agora ao menos tenho no coração um sentimento coisa que só de nome conhecia Dinheiro estolidez vícios crueldade insolência bestialidade eis tudo quanto eu sabia do mundo E foi o senhor que me ensinou Percebe SALAZAR Já disse que não discuto com um negro GUSTAVO Negro sim Sou da raça escravizada Sinto as faces abrazadas pelo sangue ardente dos filhos do deserto que os seus predecessores algemam à traição para virem com eles poluir o seio virgem das florestas americanas Negro sim Sou negro Estou aqui em sua frente como uma solene represália de milhares de desgraçados cujas lágrimas o têm locupletado Ah os senhores pisam a tacões a raça maldita cospemlhe na face Ela vingase como pode introduzindo a desonra no seio de suas famílias Cai extenuado e em prantos Ó minha mãe SALAZAR Não me fale em sua mãe senhor se não estivesse louca eu CENA XI OS MESMOS SERAFIM que entra esbaforido depois JOSEFA SERAFIM Patrão patrão O Lourenço enforcouse GUSTAVO Com um grito Enforcouse Sai como um louco mal podendo suster Salazar tem um sorriso de satisfação SERAFIM Os negros ao veremno morto revoltamse e armados de foices perseguem o feitor pelo cafezal a dentro Acudao SALAZAR Miseráveis Agarra uma espingarda que está a um canto e sai arrebatadamente SERAFIM Só Escapei de boas Qual Decididamente não me serve o ofício É muito perigoso e eu tenho amor à pele Vou fazerme de novo abolicionista e voltar ao Clube Pai Tomás para ver se melhoro de condição JOSEFA Entrando com muito medo Senhor Serafim Senhor Serafim Ouvese fora vozeria confusa Misericórdia Foge benzendose SERAFIM Eu aqui não estou seguro Vou esconderme no quarto da velha Sai Continua a vozeria CENA XII SALAZAR depois CAROLINA depois escravos o DOUTOR O ruído cresce e aproximase Ouvese a detonação de uma espingarda Salazar entra perseguido e colocase contra a porta que de fora tentam arrombar SALAZAR Venham Morrerei no meu posto e venderei caro a vida CAROLINA Entrando Não se exponha Fuja por ali meu pai SALAZAR Louco de furor Seu pai Eu Procureo no meio desses que vêm me assassinar Talvez o encontre Arrombam a porta Entra uma multidão de escravos armados de foices e machados Avançam para Salazar Carolina interpondose ajoelha CAROLINA Com lágrimas na voz É meu pai Piedade Os negros ficam interditos olham uns para os outros abatem as armas e retiramse resmungando Salazar abraça Carolina e chora SALAZAR São as minhas primeiras lágrimas Carolina Longa pausa durante a qual Salazar soluça apoiado ao colo da filha Mas Gustavo DOUTOR Entrando Fui encontrálo morto junto ao cadáver de seu pai FIM DA PEÇA Cai o pano Proposta 3 ref A4 Considerando a leitura da peça O escravocrata de Arthur Azevedo e Urbano Duarte e a seguinte passagem de R Schwarz em Um mestre na periferia do capitalismo Em suma a vida honesta e independente não está ao alcance do pobre que aos olhos dos abastados é presunçoso quando a procura e desprezível quando desiste uma fórmula aliás do objeto humor de classe p68 disserte sobre os elementos do conflito dramático relativos às ações das personagens Josefa Serafim e Eugênio Análise dos Elementos do Conflito Dramático em O Escravocrata 1 Introdução O Escravocrata de Arthur Azevedo e Urbano Duarte não é apenas uma peça teatral é um espelho que reflete as tensões e disparidades da sociedade brasileira do século XIX imersa em um contexto de transformação social e política Esta obra dramática escrita em 1884 surge em um período crítico da história brasileira marcado pela crescente pressão para a abolição da escravatura e se apresenta como um veículo para a crítica social e a reflexão moral A peça articula as complexidades das relações sociais e os conflitos inerentes a uma sociedade dividida entre a tradição escravocrata e os ventos da mudança trazidos pelos ideais abolicionistas e liberalizantes No coração de O Escravocrata estão os elementos do conflito dramático que se desenrolam através das vidas e interações de suas personagens principais Josefa Serafim e Eugênio Cada uma dessas figuras encarna perspectivas e valores distintos oferecendo um vislumbre das forças em jogo na sociedade da época A obra não apenas ilustra as dinâmicas de poder e submissão inerentes ao sistema escravocrata mas também explora as contradições morais e éticas que surgem à medida que os personagens navegam pelas complexas realidades sociais de sua época O drama revela com aguda perspicácia a maneira como a instituição da escravidão molda e distorce as relações humanas influenciando tanto os senhores quanto os escravos além daqueles que ocupam posições intermediárias na hierarquia social Ao fazer isso Azevedo e Duarte penetram nas camadas da sociedade brasileira expondo as hipocrisias e as justificações morais que sustentam um sistema intrinsecamente desigual e opressor Através das ações e escolhas de Josefa Serafim e Eugênio a peça tece uma narrativa rica em tensão dramática e significado simbólico desafiando o público a confrontar as realidades desconfortáveis de uma sociedade em transição 2 Análise de Personagens e Conflitos 21 Josefa A Representação da Aristocracia Tradicional Josefa irmã do negociante de escravos Salazar simboliza a aristocracia que se sustenta nos valores antigos e na manutenção do status quo Seu comportamento é marcado por uma arrogância que reflete a presunção dos abastados menciona Ela vê a tentativa dos escravos e dos menos afortunados de buscar uma vida melhor como uma afronta à ordem estabelecida Josefa não percebe a ironia de sua própria posição precária dentro da mesma sociedade que defende vivendo à sombra de seu irmão e mostrando se insatisfeita apesar de seu privilégio Seu conflito interno é sutil mas presente ela é parte de um sistema que valoriza a aparência sobre a substância causando sua própria infelicidade e frustração 22 Serafim O Oportunismo e a Sobrevivência Serafim é uma figura complexa que representa o indivíduo pressionado pelas circunstâncias sociais e econômicas Exsócio do Clube Abolicionista sua inserção na casa de Salazar como empregado ilustra o conflito entre seus ideais anteriores e suas ações atuais Serafim adaptase ao ambiente opressor para garantir sua sobrevivência evidenciando a hipocrisia social Seu oportunismo reflete a crítica àqueles que na busca por estabilidade e reconhecimento social acabam compactuando com o sistema que criticavam A dramaturgia utiliza Serafim para demonstrar como a pobreza pode forçar a abdicação de princípios desencadeando desprezo ou piedade daqueles em posição de poder 23 Doutor Eugênio Entre Ideais e Realidades Doutor Eugênio o médico com convicções abolicionistas enfrenta o dilema moral mais explícito Seu envolvimento amoroso com Carolina filha de Salazar coloca em cheque seus ideais Eugênio é pego no conflito entre seu ativismo e a necessidade de manter relações cordiais com Salazar para fins pessoais Ele representa o indivíduo que embora comprometido com a mudança social encontrase emaranhado nas contradições de seu ambiente social A peça utiliza Eugênio para explorar a complexidade de manter a integridade pessoal em um contexto onde as injustiças são normativas e beneficiais para alguns 3 Conclusão Na conclusão da análise de O Escravocrata emerge claramente como Arthur Azevedo e Urbano Duarte utilizam o texto para expor e criticar as mazelas e contradições de uma sociedade enraizada na escravidão A peça não apenas ilustra as injustiças sociais e a complexidade das relações de poder mas também aprofunda o debate moral e ético acerca das responsabilidades individuais e coletivas diante das opressões sistêmicas Josefa Serafim e Eugênio através de suas trajetórias e escolhas tornamse arquétipos dos variados estratos sociais e perspectivas ideológicas que coexistiam na sociedade brasileira do século XIX Portanto O Escravocrata é mais do que uma obra de teatro é um estudo sociológico e psicológico que desafia o público a refletir sobre a complexidade das relações humanas em um contexto de injustiça estrutural A peça em sua essência é um chamado ao questionamento e à reflexão sobre as próprias fundações de qualquer sociedade que se constrói sobre a exploração e a desigualdade Assim concluise que Azevedo e Duarte através deste drama não apenas pintam um retrato de sua própria época mas também oferecem insights atemporais sobre a natureza da opressão a responsabilidade moral e a possibilidade de redenção e mudança
5
Literatura
UNILAB
2
Literatura
UNILAB
132
Literatura
UNILAB
154
Literatura
UNILAB
79
Literatura
UNILAB
1
Literatura
UNILAB
13
Literatura
UNILAB
7
Literatura
UNILAB
13
Literatura
UNILAB
70
Literatura
UNILAB
Texto de pré-visualização
O Escravocrata Artur Azevedo Fonte Teatro de Artur Azevedo Tomo III Coleção Clássicos do Teatro Brasileiro vol 7 INACEN 1987 Texto proveniente de Biblioteca Virtual de Literatura wwwbibliocombr Permitido o uso apenas para fins educacionais Este material pode ser redistribuído livremente desde que não seja alterado e que as infomações acima sejam mantidas O ESCRAVOCRATA Drama em 3 atos Em colaboração com Urbano Duarte 1884 A Alfredo Bastos oferecem os sinceros e saudosos amigos AAUD PRÓDOMO O Escravocrata escrito há dois anos e submetido à aprovação do Conservatório Dramático Brasileiro sob o título A família Salazar não mereceu o indispensável placet Embora não trouxesse o manuscrito nota alguma com declaração dos motivos que ponderaram no ânimo dos ilustres censores para induzilos à condenação do nosso trabalho somos levados a crer que essa mudez significa ofensa à moral visto como só nesse terreno legisla e prepondera a opinião literária daquela instituição Resolvemos então publicálo a fim de que o público julgue e pronuncie Sabemos de antemão quais os dois pontos em que a crítica poderá atacálo imoralidade e inverossimilhança Conhecendo isso sangramonos em saúde O fato capital da peça pião em volta do qual gira toda a ação dramática são os antigos amores de um mulato escravo cria de estimação de uma família burguesa com a sua senhora mulher nevrótica e de imaginação desregrada desta falta resulta um filho que até vinte e tantos anos de idade é considerado como se legítimo fosse tais os prodígios de dissimulação postos em prática pela mãe e pelo pai escravo a fim de guardarem o terrível segredo Bruscamente por uma série de circunstâncias imprevistas desvendase a verdade precipitase então o drama violento e rápido cujo desfecho natural é a consequência rigorosa dos caracteres em jogo e da marcha da ação Onde é que se acha o imoral ou o inverossímil As relações amorosas entre senhores e escravos foram e são desgraçadamente fatos comuns no nosso odioso regime social só se surpreenderá deles quem tiver olhos para não ver e ouvidos para não ouvir Se a cada leitor em particular perguntássemos se lhe ocorre à memória um caso idêntico ou análogo ao referido no Escravocrata certo estamos de que ele responderia afirmativamente A questão de moralidade teatral e literária diz respeito tão somente à forma à linguagem à fatura ao estilo Se os moralistas penetrassem na substância na medula das obras literárias de qualquer época ou país que sejam de lá voltariam profundamente escandalizados com as rosas do pudor nas faces incendidas e decididos a lançar no index todos os autores dramáticos passados presentes e futuros Repetir estas coisas é banalidade há porém pessoas muito ilustradas que só não sabem aquilo que deveriam saber Seria muito bom que todas as mulheres casadas fossem fiéis aos seus maridos honestas ajuizadas linfáticas e que os adultérios infamantes não passassem de fantasias perversas de dramaturgos atrabiliários mas infelizmente assim não sucede e o bípede implume comete todos os dias monstruosidades que não podem deixar de ser processadas neste supremo tribunal de justiça o teatro Não queremos mal ao Conservatório reconhecemos o seu direito e curvamos a cabeça Tanto mais que nos achamos plenamente convencidos de que à força de empenhos e de argumentos alcançaríamos a felicidade de ver o nosso drama à luz da ribalta Mas esses trâmites seriam tão demorados e a idéia abolicionista caminha com desassombro tal que talvez no dia da primeira representação do Escravocrata já não houvesse escravos no Brasil A nossa peça deixaria de ser um trabalho audacioso de propaganda para ser uma medíocre especulação literária Não nos ficaria a glória que ambicionamos de haver concorrido com o pequenino impulso das nossas penas para o desmoronamento da fortaleza negra da escravidão Janeiro de 1884 Artur Azevedo e Urbano Duarte PERSONAGENS SALAZAR negociante de escravos GUSTAVO seu filho LOURENÇO seu escravo SERAFIM exsócio do Clube Abolicionista Pai Tomás DOUTOR EUGÊNIO médico SEBASTIÃO sócio de Salazar UM COMPRADOR DE ESCRAVOS UM CREDOR UM CAIXEIRO JOSEFA irmã de Salazar GABRIELA mulher de Salazar CAROLINA sua filha Três mulatas baianas escravos A cena passase no Rio de Janeiro ATO PRIMEIRO Escritório em uma casa de alugar escravos À esquerda secretária à direita sofá sobre o qual está um número do Jornal do Commércio cadeiras Porta ao fundo à esquerda Encostadas à parede do fundo à esquerda uma trouxa e uma esteira suja enroladas CENA I SALAZAR depois UM CAIXEIRO SALAZAR escreve por algum tempo sentado à secretária toca o tímpano entra o caixeiro O CAIXEIRO Da esquerda alta Pronto SALAZAR Levou os negros à Polícia O CAIXEIRO Sim senhor já estão de volta SALAZAR Bem Seguem para cima amanhã no expresso das quatro horas e meia Às três em ponto o senhor deverá estar de pé a fim de poder acharse na Estação às quatro São quarenta e quatro cabeças incluindo o Lourenço Tome lá Vá à minha casa e entregue este bilhete a minha mulher Ela deve entregarlhe o Lourenço e o senhor o reunirá ao lote de escravos que vai embarcar Levantandose passa à direita Resolvi desfazerme daquele tratante haja o que houver e nada me demoverá deste propósito Pode ir O Caixeiro sai pelo fundo CENA II SALAZAR SEBASTIÃO SEBASTIÃO Da esquerda alta Possuímos a melhor fazenda que existe atualmente no mercado do Rio de Janeiro não achas Salazar SALAZAR Sentandose no sofá Gente superfina Os nossos comitentes do Norte capricharam desta vez Só a renque da crioulada vale vinte e cinco alto e mau de olhos fechados É para fazer água na boca Há pouco quando o lote passava na rua o Arruda da Prainha lançoulhe um olhar de sete palmos e meio É só para os moer SEBASTIÃO O Arruda nunca recebeu nem receberá uma partida de negros como esta que veio pelo Ceará SALAZAR Não há um só alcaide Gente limpa escorreita moça reforçada e dócil que faz gosto Só do Ceará nos vieram dez crioulos retintos que valem o seu peso em ouro Se tu não os venderes a vinte e cinco ou trinta dias não te chamarás Sebastião de Miranda o famoso negreiro fluminense sócio e amigo íntimo de Pedro Salazar negociante de grosso trato e fazendeiro sem hipotecas SEBASTIÃO Sim espero fazer bom negócio Por fora a gente é de primeira qualidade não há dúvida mas por dentro Quem é que pode lá conhecer mazelas de negro Negro é bicho do diabo Salazar As vezes estão cheios de moléstias ocultas que só confessam quando lhes faz conta SALAZAR Nem tanto Pois hão de iludir os médicos SEBASTIÃO Ora os médicos os médicos Por cinco mil réis de mais ou de menos fazem a inspeção conforme queremos SALAZAR Negro não tem licença para estar doente Enquanto respira há de poder com a enxada quer queira quer não SEBASTIÃO De acordo mas hoje anda aí em moda tratálos bem com humanidade não sei que mais SALAZAR Tolices Humanidade para negro Para moléstia de negro há um remédio supremo infalível e único o bacalhau Deemme um negro moribundo e um bacalhau que eu lhes mostrarei se o não ponho lépido e lampeiro com meia dúzia de lambadas SEBASTIÃO Perfeitamente de acordo Mas quer queiramos quer não temos de contemporizar com essas idéias Os tais senhores abolicionistas SALAZAR Erguendose e descendo ao proscênio Psiu Não me fales nessa gente pelo amor de Deus Só o nome dessa cáfila de bandidos que ultimamente me têm feito perder mais de oitenta contos irritame de um modo incrível SEBASTIÃO Também a mim Regra geral e sem exceção sujeito que nada tem a perder e não sabe onde cair morto declarase abolicionista SALAZAR Eu vou mais adiante sujeito que tentou sem resultado todos os empregos profissões e indústrias e em nenhum conseguiu reputação ou fortuna por ser incapaz indolente prevaricador ou estúpido arvorase por último em abolicionista para ver se deste modo segura os pirões SEBASTIÃO E com que desprezo nos chamam de escravocratas Dizem que negociamos em carne humana quando são eles que traficam com a boafé dos papalvos e lhes vão limpando as algibeiras por meio de discursos e conferências SALAZAR Exploram o elemento servil pelo avesso sem os percalços do ofício Ao menos nós damos aos negros casa cama comida roupa botica e bacalhau SEBASTIÃO Principalmente bacalhau Porque o negro sem ele é uma utopia Indo examinar uns papéis à secretária Recebeste hoje carta do Evaristo SALAZAR No proscênio Sim a safra promete ser excelente Quatro mil arrobas de primeira Tudo na melhor ordem SEBASTIÃO Com um administrador como o Evaristo vale a pena ser fazendeiro É o nosso factótum SALAZAR Honesto ativo fiel longa prática do eito e chicote sempre na mão SEBASTIÃO Basta que visitemos uma ou duas vezes por ano a nossa fazenda do Pouso Alto para que as coisas nos corram sem novidade Salazar desce ao proscênio Mas então levo ou não levo o Lourenço SALAZAR Sem dúvida desta vez ele não escapa Irra que já ando aborrecidíssimo com aquela peste Preciso descartarme dele oponhase quem se opuser Nada me enraivece mais que ver um negro emproado Já por diversas vezes tenho querido tirarlhe a proa com uma surra mestra mas minha mulher minha filha e meu filho metemse de permeio e fazemme uma choradeira de todos os diabos SEBASTIÃO Pois ainda és desse tempo Atendes a súplica de família quando se trata de surrar negro SALAZAR Pois se eles sempre se colocam em sua frente para defendêlo Ainda anteontem minha mulher quase apanhou uma lambada que era destinada ao Lourenço Protegeo escandalosamente alegando ser ele cria da família e não sei mais o quê E há vinte e cinco anos desde o meu casamento que aturo as insolências daquele patife Leva a ousadia ao ponto de não abaixar a vista quando fala comigo Oh mas desta vez vendoo definitivamente CENA III OS MESMOS SERAFIM SERAFIM Da porta do fundo O Senhor Pedro Salazar SALAZAR Que deseja senhor Serafim entregalhe uma carta SEBASTIÃO À parte examinando Serafim Que tipo Polícia secreta flor da gente ou poeta Vai sentarse no sofá e lê o Jornal do Commércio SALAZAR Depois de ler a carta Serafim Pechincha é o senhor SERAFIM Em carne e osso SALAZAR O compadre Ribeiro escreveme Lê O portador é o Senhor Serafim Pechincha moço filho de uma boa família provinciana o qual se acha desempregado e reduzido à expressão mais simples Parece ser ativo é inteligente Vê se o podes ocupar em algum serviço SERAFIM Redação simples mas eloqüente SALAZAR A recomendação do compadre Ribeiro é muito valiosa porém creio não estranhará que eu procure saber das suas habilitações e precedentes É natural não acha SERAFIM Naturalíssimo Julgo do meu dever falarlhe com toda a franqueza para que me fique conhecendo e depois não diga que sim mas que também Eu cá sou despachado SEBASTIÃO À parte A linguagem não é de polícia secreta SALAZAR Diga SERAFIM Começo por declarar que sou um tipo arrebentado SALAZAR Arrebentado SERAFIM Arrebentadíssimo Constame por informações de terceiro que pertenço a uma boa família provinciana ao que aliás não ligo muito crédito SALAZAR Como assim SEBASTIÃO À parte Flor da gente com certeza SERAFIM À Salazar É verdade não tenho a mais vaga reminiscência de pai nem mãe Cuido mesmo que já nasci órfão Oh triste sina Procura o lenço e não o acha limpa uma lágrima à aba do paletó Quando há tempos o príncipe Natureza dissertou sobre o choque de pai e mãe senti que o coração se me dilacerava de saudades SEBASTIÃO À parte Agora parece poeta SALAZAR Mas não tem parente algum SERAFIM Lá chegarei gosto de ir por partes Aos dez anos tenho lembrança de que um tio nos meteu a mim e a dois irmãos em uma espécie de colégio na Rua de São Diogo SALAZAR Mas até os dez anos De nada se recorda SERAFIM É célebre SERAFIM Celebérrimo Mas todo eu sou celebérrimo Como dizia meteramme no colégio a mim ao Chico e ao Cazuza Aí estivemos três anos durante os quais passamos fome de cachorro O diretor era mais sovina que grosseiro e mais estúpido que sovina e grosseiro Um belo dia nós não podendo suportálo tratamos uma conspiração aplicamoslhe uma coça de marmeleiro e fugimos do colégio SALAZAR À parte Bom precedente SERAFIM Daí em diante a minha vida tem sido um romance sem palavras Quem lhe dera senhor Salazar possuir de contos de réis os dias que não tenho comido Gesto de Salazar Não se admire disto não me peja dizer a verdade nua e crua Eu sou do tipo arrebentado Há dias em que acredito mais no balão Júlio César do que numa nota de quinhentos réis Tenho tentado todos os empregos fui manipulador de cigarros durante dois meses exerci o nobre mister de testadeferro fizme cambista redator do Incendiário e até representei no teatro SEBASTIÃO Vivamente Ah foi cômico SERAFIM Não senhor fiz uma das pernas do elefante do Alibabá na Fênix SALAZAR Mas que fim levaram seus irmãos SERAFIM Ah esses foram mais felizes que eu arranjaramse perfeitamente SALAZAR Estão empregados SERAFIM Ou coisa que o valha o Chico meteuse no Hospício de Pedro II SALAZAR Como enfermeiro SERAFIM Como doido SALAZAR Enlouqueceu SERAFIM Qual teve mais juízo que eu cama mesa médico uma ducha de vez em quando para refrescar as idéias e uma camisola para o frio Afinal é um meio de vida como outro qualquer SALAZAR Surpreso E o Como se chama SERAFIM O Cazuza Assobia Um finório Tantos empenhos meteu que conseguiu um lugar no Asilo da Mendicidade SALAZAR Ah como inspetor de turma SERAFIM Qual inspetor qual turma Como mendigo SEBASTIÃO À parte É um tipo único SERAFIM Vive hoje muito tranqüilo e satisfeito a desfiar estopa Estão ambos arranjados eu é que ainda não criei juízo e vivo ao deusdará SALAZAR Por que não se torna abolicionista SERAFIM Recuando indignado e tomando uma atitute teatral Senhor João Salazar SALAZAR Pedro Pedro se me faz favor SERAFIM Senhor Pedro Salazar creio que todas as misérias que acabei de lhe relatar não o autorizam a cuspirme em face tal injúria Sou um tipo arrebentado mas graças a Deus ainda não desci tão baixo SALAZAR Então odeia SERAFIM Os abolicionistas Não os odeio desprezoos SEBASTIÃO Levantandose entusiasmado e apertandolhe a mão Toque SALAZAR Toque Serafim tem cada uma das mãos apertadas por cada um dos sócios De hoje em diante pode considerarse empregado de Salazar Miranda SEBASTIÃO Entende alguma coisa de negócio SERAFIM Pouco mas modéstia à parte sou muito inteligente Com qualquer coisa me ponho em dia Se me dessem uma explicação sumária SEBASTIÃO Pois não agora mesmo Tomandolhe o braço Venha comigo SERAFIM Saindo à parte Que dirão os meus colegas do Clube Abolicionista Pai Tomás Sebastião sai com Serafim pela esquerda alta CENA IV SALAZAR GUSTAVO SALAZAR Só Desta gente é que eu preciso GUSTAVO Entra do fundo amarrotando um jornal que tem na mão Sacripantes Safardanas Leia isto meu pai veja se o infame mofineiro que publicou este aranzel contra vosmecê e a nossa família não merece que se lhe corte a cara a vergalho Leia isto SALAZAR Não não leio Apesar de não ligar a mínima importância ao grasnar desses miseráveis gazetilheiros que só andam à cata de quem os compre as suas verrinas deixamme numa irritação nervosa que me tira o apetite Ah se eu pilhasse os tais abolicionistas todos no eito GUSTAVO Quem sabe Pode ser que um dia CENA V OS MESMOS LOURENÇO o CAIXEIRO CAIXEIRO Cá está o mulato SALAZAR A Lourenço Prepara a tua trouxa tens que seguir amanhã para cima LOURENÇO Fitao e depois diz pausadamente Mais nada SALAZAR Furioso Mais nada Desavergonhado Patife Cão Puxa já daqui LOURENÇO Não lhe quis faltar ao respeito Este é o meu modo de falar SALAZAR Modo de falar Pois negro tem modo de falar Quando estiveres em minha presença abaixa a vista ladrão Lourenço não lhe obedece Abaixa a vista cachorro Cortote a chicote se o não fizeres Lourenço conservase imperturbável Salazar avança com um chicote mas Gustavo o contém GUSTAVO Peço por ele meu pai Lourenço é um escravo dócil e obediente A Lourenço com brandura Abaixa a vista Lourenço Lourenço obedece Ajoelhate Idem Pede humildemente perdão a meu pai de lhe não haveres obedecido incontinenti LOURENÇO Peço humildemente perdão a meu senhor SALAZAR Puxa daqui burro Lourenço sai CENA VI SALAZAR GUSTAVO GUSTAVO Vai mandálo para fora SALAZAR Definitivamente Escusam de pedirme Cada vez tem menos vergonha é uma peste GUSTAVO Nem tanto Apesar da ojeriza e do desprezo que tenho por tudo quanto me cheira a negro cativo conservo alguma estima pelo Lourenço SALAZAR As tais amizades do senhor moço Viute nascer trouxete ao colo etc etc Olha podes estar certo de que na primeira ocasião propícia ele te envenenará numa xícara de café ou num copo dágua Ainda és muito moço não sabes de quanto um negro é capaz GUSTAVO Sei bastante para esta raça amaldiçoada só há três princípios o eito o bacalhau e a força Mas não posso deixar de abrir uma exceção para o Lourenço CENA VII OS MESMOS um COMPRADOR COMPRADOR O senhor Pedro Salazar SALAZAR Um seu criado que deseja COMPRADOR Sei que recebeu pelo vapor Ceará uma bela partida de raparigas desejo comprarlhe algumas Gustavo durante o diálogo entretêmse a cortar com uma tesoura um artigo do Jornal que trouxe na mão e guarda o retalho SALAZAR Tenho o que lhe serve fazenda nova bonita e limpa COMPRADOR Podese ver SALAZAR Imediatamente Toca o tímpano entra o caixeiro Traga as mulatas da Bahia Sai o caixeiro Crioulas não lhe servem Gesto negativo do comprador Sim para o seu negócio Abaixando a voz É coisa papafina e barata CENA VIII SALAZAR GUSTAVO o COMPRADOR SEBASTIÃO SERAFIM o CAIXEIRO três mulatas SERAFIM Empurrando as mulatas Vamos Depressa Negro não tem vergonha Olha que ar de santa tem esta descarada Tirote a santidade com couro cru Formem as três para este lado SALAZAR Assim À parte Tenho homem SERAFIM Ao Comprador Foi o senhor que pediu as mulatas Eilas Veja que três mucamas esplêndidas à parte Olá o Raposo cáften GUSTAVO À parte indicando Salazar Ainda não achei situação azada para lhe dar o bote Preciso muito muito SERAFIM Indicando as mulatas Esta daqui cozinha lava e engoma perfeitamente Aquela engoma lava e cozinha admiravelmente Aquela outra cozinha engoma e lava como ninguém ainda cozinhou lavou e engomou neste mundo SEBASTIÃO Possuem ainda uns dengues baianos mas que se tiram com o chicote SERAFIM Vai bem servido A uma das mulatas Faze aí um dengue para aqui o senhor apreciar Vamos lá Dize assim Ó gentes ioiô Mecê tem partes As mulatas conservamse cabisbaixas e silenciosas Fala desavergonhada SEBASTIÃO Baixo a Serafim Deixese de patuscadas O negócio é coisa muito séria SALAZAR Ao Comprador Que tal COMPRADOR Bom frontispício A uma mulata Abre a boca rapariga Boa dentadura Passalhe grosseiramente a mão pela face e pelos cabelos viraa e examinaa de todos os lados Boa peça sim senhor Tira fora este pano A mulata não obedece SALAZAR Tira fora este pano não ouves Arranca o pano e atirao violentamente fora A mulata corre a apanhálo mas Sebastião empurraa Ela volta ao lugar e desfazse em pranto cobrindo os seios com as mãos SEBASTIÃO Olhem Quer ter pudor Onde já se viu isto Negra com pudor SERAFIM E chora Ora não querem ver Cachorra Daqui a pouco é que hás de chorar deveras COMPRADOR A Salazar baixo Por esta que está chorando dou vinte e cinco negócio fechado SALAZAR Baixo Menos de trinta nem um real Tem pudor homem A Serafim Leveas Sai Serafim empurrando na sua frente as mulatas Sai igualmente o Caixeiro CENA IX SALAZAR o COMPRADOR SEBASTIÃO GUSTAVO Dois grupos Salazar conversa com o Comprador Sebastião com Gustavo GUSTAVO A Sebastião Estou em talas SEBASTIÃO Como sempre GUSTAVO Mas desta vez a coisa é séria uma dívida de honra SEBASTIÃO Já conheço as suas dívidas de honra pagar a conta de alguma cocote GUSTAVO Jurolhe que a coisa é de gravidade Uma ninharia quatrocentos mil réis mas se os não arranjo sou bem capaz de fazer saltar os miolos SEBASTIÃO Seria sua primeira ação de juízo GUSTAVO Acha que meu pai me negará esse dinheiro Vou darlhe o bote SEBASTIÃO Se eu fosse seu pai não lho daria porque tenho a certeza de que você iria perdêlo até o último vintém na banca francesa COMPRADOR A Salazar Pois então está concluído o negócio Hoje mesmo virei buscálas SEBASTIÃO Ao Comprador Mas o senhor ainda não viu toda a gente que temos Talvez encontre alguma que lhe agrade Venha contemplála Saem juntos CENA X SALAZAR GUSTAVO GUSTAVO Quero pedirlhe um favor meu pai SALAZAR Dinheiro Não há GUSTAVO Mas SALAZAR Não há já disse Não me aborreça GUSTAVO É que SALAZAR Não há quês nem kás ganheo com o suor de seu rosto que eu não estou para alimentar vícios de malandros Sai CENA XI GUSTAVO depois LOURENÇO GUSTAVO Só Estou a braços com um caiporismo medonho Há três dias que não ganho uma parada Não me ponho no prego por ser difícil achar quem me queira Joguei quatrocentos mil réis sob palavra e não tenho com que os pagar Os amigos a quem posso recorrer ou já são meus credores ou são tão forrecas como eu Palavra que não sei de que expediente lançar mão Lourenço entra de mansinho e vem colocarse junto de Gustavo sem que ele o veja LOURENÇO Vossemecê está incomodado GUSTAVO Ah Lourenço pregasteme um susto Estou incomodado sim LOURENÇO E Lourenço não pode saber GUSTAVO Ora Saber para quê Que remédio podes darme O que eu quero é dinheiro É de dinheiro que eu preciso Tu o tens para mo emprestar LOURENÇO Tirando do bolso dinheiro embrulhado num lenço sujo Aqui estão minhas economias juntadas vintém por vintém Se vossemecê precisa Lourenço faz muito gosto GUSTAVO Abrindo o embrulho e contando avidamente o dinheiro Cento e vinte mil seiscentos e vinte réis À parte Soma esquisita Oh que palpite Em meia dúzia de paradas isto pode render um conto de réis Lourenço daqui a pouco te restituirei esse dinheiro e mais vinte mil réis de gratificação Sai correndo CENA XII LOURENÇO depois GABRIELA CAROLINA LOURENÇO Ergue os olhos aos céus e enxuga uma lágrima O jogo sempre o jogo Não posso não devo não quero sair de junto dele GABRIELA Entrando com Carolina Lourenço onde está o senhor Salazar LOURENÇO No escritório do guardalivros GABRIELA Carolina vai lá dentro ter com teu pai Vê como lhe fazes o pedido Lembrate de que ele é arrebatado só com muita brandura se pode leválo CAROLINA Não lhe dê cuidado mamãe Saindo a Lourenço Tratase de vossemecê senhor Lourenço Veja lá como lhe queremos bem Sai CENA XIII LOURENÇO GABRIELA LOURENÇO Baixo e em tom de ameaça Não quero absolutamente afastarme de junto dele GABRIELA Muito nervosa Sim sim Farei tudo quanto estiver ao meu alcance mas não fales nesse tom porque se nos ouvem LOURENÇO Não tenhas susto há vinte e dois anos que guardo este segredo e ainda não pronunciei uma palavra que pudesse despertar desconfianças Prometo guardálo até à morte se a senhora fizer que eu me conserve sempre ao lado dele GABRIELA Sim prometo prometo À parte Oh Deus mereço eu tamanho castigo Alto Sai daqui Aproximase o senhor Salazar Lourenço sai CENA XIV GABRIELA SALAZAR CAROLINA CAROLINA A Salazar Perdoe ainda esta vez Garantolhe que de hoje em diante ele abaixará a vista quando estiver em sua presença SALAZAR Tá tá tá O Lourenço segue amanhã com o lote tocado pelo Sebastião e vai apanhar café na fazenda com instruções ao Evaristo para castigálo com todo o rigor à menor falta É resoluço inabalável Não cederei aos anjos do céu que venham em comissão CAROLINA Com voz trêmula pela comoção Se as minhas palavras não o comovem meu pai ao menos as minhas lágrimas Desata em pranto SALAZAR Valhame Deus Vem cá pequena dizeme que interesse têm vocês em proteger aquele tratante GABRIELA Não é interesse senhor é amizade O Lourenço é cria de família viua nascer e ao Gustavo Trouxeos ao colo Tratouos sempre com carinho Além disso é bom escravo o senhor só o senhor antipatiza com ele CAROLINA Sem razão sem razão Aquilo nele é natural Cada qual como nasceu Vossemecê preferia que o Lourenço fosse desses escravos que na frente se derretem em humilhações e por detrás são inimigos encarniçados de seus senhores SALAZAR Depois de uma pausa Bem Ainda desta vez cedo AS DUAS Ah SALAZAR Mas sob uma condição CAROLINA Qual SALAZAR De me deixarem livre e desembaraçadamente irlhe ao pêlo quando não andar muito direitinho CAROLINA Pois bem SALAZAR Levemno com todos os diabos CAROLINA Abraçandoo Ah obrigado paizinho Lourenço Lourenço aparece Vamos para casa Vem conosco SALAZAR A Lourenço Vá lá mas sem exemplo Agradeça à sinhazinha ladrão Ouve dentro pancadaria e choradeira Que é isto GABRIELA Enquanto Salazar volta as costas Vamos vamos Sai com Carolina Lourenço acompanhaas CENA XV SALAZAR SERAFIM SERAFIM Trazendo um vergalho em uma das mãos e uma grande palmatória na outra Arre Estreeime perfeitamente SALAZAR Que foi SERAFIM Esta corja de moleques e negrinhas Faziam uma algazarra de ensurdecer Distribuí chicotadas da direita para a esquerda Não perdi uma SALAZAR Toque O senhor é o homem que me serve Depois de lhe apertar a mão Vou vêlos Vou vêlos Sai SERAFIM Só Que dirão os meus colegas do Clube Abolicionista Pai Tomás FIM DO PRIMEIRO ATO ATO II Em casa de Salazar CENA I DOUTOR ENGÊNIO CAROLINA ao piano CAROLINA Não gosta desta habanera DOUTOR Prefiro a mais vulgar música a um trecho sublime de Beethoven ou de Mozart CAROLINA Como assim DOUTOR Quando esta música vulgar é executada pelos seus dedos CAROLINA Enleada Oh Doutor DOUTOR Peçolhe que não me trate pelo meu título as afeições recíprocas excluem essas formalidades banais A sua cerimônia fazme supor não ser correspondido CAROLINA Oh porventura vê alguma coisa em mim que possa autorizar esse juízo DOUTOR Só tenho lido nos seus olhos amor candura e inocência Oh amoa muito adoroa Carolina Tenho uma vaga reminiscência de haver visto o seu semblante em um mundo ideal no mundo dos sonhos talvez À parte Flor entre cardos Pérola no lameirão A eterna antítese Oh mas hei de tirála pura do meio impuro em que vive Porque amoa CENA II OS MESMOS JOSEFA JOSEFA Entrando a praquejar Má raios te partam te enconjuro credo Que azucrinação de todos os diabos Esta molecada não me deixa sossegar Vendo o doutor e Carolina E estes dois aqui sozinhos Que pouca vergonha Vou participar ao mano que não posso mais viver nesta casa De todos os lados só se vê mácriação patifaria e pouca vergonha CAROLINA Deixando o piano Está zangada tia Josefa JOSEFA Estou sim Pois se aqui ninguém me respeita ninguém faz caso de mim Sou um doisdepaus DOUTOR Enganase JOSEFA Deixeme falar que eu só falo quando tenho rezão Mandei um desses moleques à venda comprar quatro vinténs de pimentadoreino e o diabo levou duas horas na rua Que lembrança teve o mano em mandar para cá os negros que não couberam na Casa de Comissão É uma negralhada que nem santo pode aturar CAROLINA Porém JOSEFA Deixeme falar com a breca Não fazem caso de mim os tais senhores negros Se dou uma ordem ela entra por um ouvido e sai por outro Ainda ontem disse à pernambucana que queria o meu vestido de fustão engomado hoje e até agora a excomungada nem ao menos o pôs na goma DOUTOR Mas JOSEFA Deixeme falar homem de Deus Eu levantava as mãos para o céu e acendia uma vela a Nossa Senhora das Candeias no dia em que visse enforcados todos os negros desta terra Olhando ironicamente para o doutor Eugênio Eu bem sei que esta opinião desagrada a certos sujeitinhos que são abolicionistas mas andam à coca de meninas que tem escravos DOUTOR Perdão pareceme JOSEFA Deixeme falar Carolina toma o doutor pela mão e levao para o jardim Josefa não dá pela saída dos dois Se a carapuça serviu a alguém esse alguém que a deite na cabeça e vá para todos os diabos que eu não tenho a quem dar satisfações e não as dava nem a meu pai que ressuscitasse Vendose só Foramse não importa Hei de falar até não poder mais Hei de falar mesmo sozinha porque com certeza alguém estará escutando à porta Doutor das dúzias ainda aqui com partes de abolicionista e quer casar com a filha de um homem que ele sabe que tem toda a sua fortuna em escravos Ah inveja inveja CENA III JOSEFA SERAFIM SERAFIM Senhora dona Josefa o patrão manda buscar as crioulas Jacinta e Quitéria JOSEFA Ah É você Sentese aqui e ouçame Obrigao a sentarse Veja se eu tenho ou não rezão quando falo Vivo aqui no inferno seu Serafim sou tratada como uma negra Ninguém me respeita ninguém faz caso de mim Estou morta por me ir embora Aqui eu fico maluca se já o não estou SERAFIM Querendo levantarse O patrão JOSEFA Obrigandoo a sentarse Deixeme falar Também você SERAFIM Tem toda a razão mas é que JOSEFA Ainda ontem SERAFIM Mexendose O patrão tem pressa JOSEFA Gritando Deixeme falar Ainda ontem tinha eu dado ordem para mudar o coradouro SERAFIM Nada Vou eu mesmo buscar as crioulas Sai rapidamente JOSEFA Perseguindoo Ouça o resto homem do diabo Ainda ontem Olhe Seu Serafim Perdese a voz nos bastidores CENA IV UM CREDOR introduzido por LOURENÇO depois GABRIELA LOURENÇO Faça favor de entrar Eu vou chamar minha senhora Saída falsa Não é preciso ela aí vem Entra Gabriela Minha senhora este senhor deseja falar com vossemecê Gabriela cumprimenta o credor com a cabeça Lourenço afastase e fica escutando ao fundo O CREDOR Minha senhora eu vim procurar seu filho o senhor Gustavo o criado disseme que ele não está em casa fará vossa excelência o obséquio de me informar do lugar e da ocasião em que poderei encontrálo GABRIELA Sou a última a saber da vida de meu filho senhor Raras vezes o vejo Passamse dias e dias que não vem a casa e nunca diz para onde vai O CREDOR Se vossa excelência me concedesse alguns momentos de atenção desejava fazerlhe revelações importantes a respeito do senhor seu filho revelações que com certeza hão de magoála muito mas que julgo necessárias GABRIELA Não me surpreende Já estou tristemente habituada aos desmandos de Gustavo tudo tenho em vão tentado para trazêlo ao bom caminho Queira sentarse Sentamse ambos O CREDOR Mas cuido que Vossa Excelência ignora a que ponto chegaram as coisas GABRIELA Infelizmente sei Apaixonouse por uma mulher perdida e não podendo suprir as despesas extraordinárias que acarretam essas loucuras recorre ao jogo O CREDOR Recorre a coisa pior minha senhora GABRIELA Como O CREDOR Tirando um papel do bolso Tenha a bondade de ver GABRIELA É uma letra de quinhentos mil réis assinada por meu marido O CREDOR Examine bem a assinatura GABRIELA Lendo Pedro Salazar O CREDOR Reconhece a assinatura como do próprio punho do senhor Salazar GABRIELA Depois de uma pausa Meu Deus À parte Falsa LOURENÇO Corre toma freneticamente a letra das mãos do credor e rasgaa Oh O CREDOR Estou duas vezes roubado Vou ter com a Polícia GABRIELA Tomandoo pelo braço Por quem é não o faça É uma mãe que lho pede Queira esperar aqui um momento Sai LOURENÇO Ajoelhandose em frente ao Credor Por tudo quanto há de mais sagrado pelo amor que tem a sua mãe não lhe faça mal meu senhor Juro por Maria Santíssima que lhe pagarei esse dinheiro dentro de pouco tempo com o juro que quiser Erguese GABRIELA Voltando Aqui estão algumas de minhas jóias Leveas vendaas e paguese senhor O CREDOR Depois de uma pausa A prática dos negócios e o atrito dos interesses egoístas blindamnos o coração e nos tornam insensíveis aos dissabores alheios porém não tanto como o propalam os senhores sentimentalistas sem vintém Quando é necessário temos coração Guarde as suas jóias minha senhora Nada transpirará deste fato e quanto ao pagamento faloá quando e como lhe for possível Às ordens de vossa excelência GABRIELA Apertandolhe a mão Obrigada LOURENÇO Beijandolhe as mãos Sou um pobre escravo mas as ações generosas fazemme chorar Sai o Credor acompanhado por Lourenço GABRIELA Só Meu Deus meu Deus quando acabará este martírio Cai numa cadeira a soluçar Disfarça as lágrimas ao ver entrar a filha pelo braço do doutor CENA V GABRIELA DOUTOR CAROLINA que entram sem ver GABRIELA CAROLINA Tenha coragem Eugênio Declareselhe francamente Afiançolhe que será bem tratado e receberá o preciso consentimento DOUTOR Não o creio Carolina Basta verme para ficar de mau humor Votame uma antipatia invencível leioa nos seus olhos no seu modo de falar em tudo E se sendo tão mal visto pelo dono da casa ainda me atrevo a pôr aqui os pés é porque é porque GABRIELA Interpondose É porque amaa e deseja casarse com ela Quanto a mim honrome muito em têlo por genro Mas meu marido é contrário a esta idéia e meu marido é teimoso CAROLINA Minha mãe DOUTOR Ignoro a causa desta aversão que ele me volta GABRIELA Pois ignora DOUTOR Decerto Sou perfeitamente inocente GABRIELA Não consta que o doutor tem idéias emancipadoras DOUTOR Sim Se bem que não apresente como paladino faço modestamente tudo quanto posso pela causa da emancipação dos escravos Pausa Estou perfeitamente convicto de que a escravidão é a maior das iniquidades sociais absolutamente incompatível com os princípios em que se esteiam as sociedades modernas É ela é só ela a causa real do nosso atraso material moral e intelectual visto como sendo a base única da nossa constituição econômica exerce a sua funesta influência sobre todos os outros ramos da atividade social que se derivam logicamente da cultura do solo Mesmo no Rio de Janeiro esta grande capital cosmopolita feita de elementos heterogêneos já hoje possuidora de importantes melhoramentos o elemento servil é a pedra angular da riqueza O estrangeiro que o visita maravilhado pelos esplendores da nossa incomparável natureza mal suspeita das amargas decepções que o esperam Nos ricos palácios como nas vivendas burguesas nos estabelecimentos de instrução como nos de caridades nas ruas e praças públicas nos jardins e parques nos pitorescos e decantados arrabaldes no cimo dos montes onde tudo respira vida e liberdade no íntimo do lar doméstico por toda a parte em suma deparaselhe o sinistro aspecto do escravo exalando um gemido de dor que é ao mesmo tempo uma imprecação e um protesto E junto do negro o azorrague o tronco e a força trípode lúgubre em que se baseia a prosperidade do meu país Oh não Cada dia que continua este estado de coisas é uma cusparada que se lança à face da civilização e da humanidade Sei que me acoimarão de idealista alegando que não se governam nações com sentimentalismos e retóricas Pois bem há um fato incontroverso e palpável que vem corroborar as minhas utopias E sabido que os imigrantes estrangeiros não procuram o Brasil ou não se conservam nele por não quererem emparceirarse com os escravos A escravidão é uma barreira insuperável à torrente imigratória Portanto penso que só há uma solução para o problema da transformação do trabalho a espada de Alexandre CAROLINA Muito bem Eugênio daria um jornalista esplêndido GABRIELA As suas idéias doutor chegaram aos ouvidos do senhor Salazar e foi quanto bastou para considerálo seu inimigo natural Ouvese a voz de Josefa que descompõe alguém gritando DOUTOR Nesse caso deverei perder as esperanças porque acima dos impulsos do meu coração achamse os princípios sagrados da liberdade e do direito conculcado GABRIELA Mas não perca a esperança Com paciência muito se conseguirá Sobretudo não precipite os acontecimentos CAROLINA Que ouve a voz de Josefa a qual não tem cessado de ralhar Titia Josefa destemperou Vou bulir com ela Alto Ó titia que é lá isso pegou fogo na casa A VOZ DE JOSEFA Mais próxima enquanto o doutor conversa com Gabriela Também você sua delambida Quer tomar chá de garfo comigo Vem para cá que te ponho as orelhas em pimentão CAROLINA Sempre à porta Não seja tão mazinha titia do coração Foge para junto da mãe JOSEFA Nos bastidores Tomara que já chegue o dia da minha morte só para ver se eu descanso um dia na minha vida Atravessa a cena com uma vassoura na mão e uma caçarola na outra Amanhã me mudo desta casa Não posso mais com esta vida Que inferneira te arrenego Sai Carolina arremedaa CAROLINA Venha cá titia olhe escute GABRIELA Ao doutor Depois de amanhã vamos para a fazenda onde passaremos um mês O doutor não nos quer fazer companhia DOUTOR Eu Depois do que acabo de saber CAROLINA Que se tem aproximado Sem dúvida que há de ir e por isso mesmo Papai terá lá muito pouca gente com quem se entreter e será obrigado a fazer as pazes com o senhor Eu serei a intermediária Ele não é tão mau como dizem GABRIELA Além disso o ar do campo tem a virtude de abrandar um tanto DOUTOR Bem nesse caso aceito Baixo a Carolina passando A tudo me sujeito para estar ao pé de ti Apertandolhe a mão Adeus CAROLINA Até quando DOUTOR Até sempre Aperta a mão de Gabriela Dona Gabriela GABRIELA Até sempre doutor CAROLINA Apareça para combinarmos na viagem O doutor cumprimenta e sai À mãe Felizmente Eugênio é o médico da casa Se não fosse isso papai seria capaz de dar a entender que o não queria ver aqui GABRIELA E se ainda o não deu é por ignorar que ele te requesta Mas vamos para dentro Toma as jóias CAROLINA As suas jóias Por que estão aqui GABRIELA Por nada Vamos Carolina Saem CENA VI SERAFIM entrando a tocar duas escravas diante de si e acompanhado por JOSEFA JOSEFA Mas ouça homem de Deus SERAFIM Desculpe minha senhora desculpe não posso ouvir A senhora já me tem demorado tanto É até possível que o patrão me ponha no andar da rua Eu sou tão caipora sou um tipo tão arrebentado Vamos raparigas Vamos Toca JOSEFA Tomandoo pelo braço Ouça e veja se não tenho razão quando falo escute SERAFIM Virgem Nossa Senhora Não posso agora Estou com muita pressa Logo mais JOSEFA Não há de ser já escute Serafim sai correndo tocando as negras adiante de si À porta Malcriado Trampolineiro Indo à janela Patife Desavergonhado Vou descompôlo pela janela do beco Saindo Hás de pagarme Hei de ensinarte a prestar atenção às pessoas mais velhas Sai gritando sempre A cena fica vazia por alguns momentos Por algum tempo ouvese ao longe a voz de Josefa Entra Gustavo e atira de mau humor o chapéu ao chão CENA VII GUSTAVO depois LOURENÇO GUSTAVO Desgraça Desgraça Só me falta para solução final cravar uma bala nos miolos Já o tentei uma vez mas falhoume a energia e tremeu me o braço Lourenço ao fundo espreitao Uma coisa por demais Não há meio de desforrar mil réis que sejam Pausa Mas é indispensável urgente imprescindível que eu de qualquer modo resgate aquela letra para ao menos ressalvar o resto de vergonha e honradez compatível com a deplorável vida que levo Atirase no sofá e fecha os olhos Pausa Treze Treze Quatorze Quinze Chorrilho de grandes Em um quarto de hora posso ganhar uma fortuna deixando a dobrar Abre os olhos olha em roda de si e aponta para o gabinete É ali Tirando uma chave do bolso A chave cabe perfeitamente Tiro o dinheiro e em menos de meia hora o reponho Ninguém o saberá Dirigese para o gabinete e estaca na porta Gustavo Gustavo que vais fazer Miserável Ah Porém Ora Não há dúvida Bastará um chorrilho de oito grandes para endireitar tudo Sai CENA VIII LOURENÇO depois GUSTAVO LOURENÇO Que tem acompanhado ao fundo todo o monólogo de Gustavo dirigese à porta do gabinete e espreita Que faz ele Jesus Misericórdia Abre a secretária com uma chave falsa Ah não custe o que custar hei de impedir aquela infâmia que o desonra e que me desonra também GUSTAVO Voltando sem ver Lourenço contando o dinheiro Trezentos Trezentos e cinquenta Um chorrilho de oito grandes é coisa muito comum nos dados Pondo cinquenta mil réis a dobrar levanto quatro contos e oitocentos num abrir e fechar dolhos Vai a sair LOURENÇO Interpondose Dême isto GUSTAVO Surpreendido Isto quê LOURENÇO Dê cá este dinheiro GUSTAVO Enlouqueceste Quem és tu para me falares assim LOURENÇO Eu Lourenço Sou eu GUSTAVO Arreda bêbado Deixame passar LOURENÇO Não há de sair daqui com o que tem na mão GUSTAVO Não estou agora para aturarte a cachaça Se estivesses bom da cabeça pagavasme caro o desaforo Vai a sair LOURENÇO Colocandose na porta Não sairá sem me entregar este dinheiro GUSTAVO Encolerizado Deixame diabo LOURENÇO Não Segura Gustavo que tenta sair GUSTAVO Cão Olha que és um negro cativo e eu sou teu senhor LOURENÇO Pouco importa Não posso consentir no que faz Entregueme o dinheiro Pequena luta finda a qual Lourenço temse apoderado do dinheiro GUSTAVO Miserável Ladrão Patife Cortote a chicote Dálhe uma bofetada no momento em que aparece Gabriela CENA IX LOURENÇO GUSTAVO GABRIELA GABRIELA Lourenço Gustavo Meu Deus LOURENÇO Em tom singular Esta bofetada será um direito perante os homens mas perante Deus é um sacrilégio Eu GABRIELA Correndo para Lourenço Lourenço não o digas LOURENÇO Desvencilhandose Eu sou teu pai Tomando Gabriela pelo braço Negue Negue se é capaz Gabriela dá um grito e cai desfalecida Longa pausa Gustavo fulminado recua paulatinamente fitando Lourenço com o olhar desvairado Entra Salazar que estaca no fundo ao ver a cena CENA X OS MESMOS SALAZAR SALAZAR Descendo Que é isto Minha mulher desmaiada Meu filho desvairado Este negro Vendo dinheiro Dinheiro Tomandolhe das mãos Dinheiro Onde o roubaste LOURENÇO Caindo de joelhos a soluçar Da sua secretária meu senhor SALAZAR Colérico Ladrão Além do mais é ladrão GUSTAVO Como voltando a si febrilmente Negro Eu Filho de um escravo Oh Impossível Meu Deus FIM DO SEGUNDO ATO ATO III Na fazenda do Pousoalto Sala interior vendose ao fundo o terreiro com depósito de cereais e aparelhos agrícolas Arvoredos etc etc Ao levantar do pano ouvese a voz do feitor dando ordens CENA I JOSEFA EVARISTO A VOZ DE EVARISTO Se não tens força vou eu ensinarte Ouvese estalar o chicote Tira o couro deste animal Grita burro que quanto mais barulho fizeres pior será Gemidos de dor Levemno para o roçado novo à beira dágua amarremno a um tronco de árvore Lá poderá berrar à vontade Esvaemse os gemidos e a voz JOSEFA Entrando É só o que se vê desde menhã até de noite Negro café chicote tronco tronco café chicote negro Despois que aqui cheguemos há mais de quinze dias inda não vi nem ouvi outra coisa Quem é que pode com esta vida Despois dizem que eu sou faladeira Eu só falo quando tenho rezão Se não querem me ouvir vou pro meio do cafezal e hei de falar falar até não poder mais Quem é que pode ficar calado quando assunta coisas daquelas A gente perde até a vontade de comer Ora quem havera de pensar Bem sei por que ela ficou maluca Desde muito tempo que o tal nhonhô Gustavinho me dava que pensar Ela é branca o mano é muito disfarçado Como é que saiu um filho moreno e de cabelos duros Isto sempre me intrigou mas enfim não dizia nada porque eu só falo quando tenho rezão Porém despois que vi o tal Gustavinho variando por causa da moléstia confirmaramse as minhas desconfianças e vou dar parte ao mano aconteça o que acontecer E sabe Deus sabe Deus se ela está doida e se aquilo de estar no hospício não é manha E de família Já a mãe não se falava bem dela e a irmãcalate boca Elas pelo menos procuravam gente branca Mas não um escravo um negro Oh fico toda arrepiada quando penso nisso À parte Com um escravo parede A uma cadeira Com um negro cadeira Ao sofá Um negro Repete a todos os objetos que se acham na sala com tremeliques nervosos e sai com as mãos na cabeça e repetindo Um negro Um negro CENA II DOUTOR CAROLINA entra cada um de seu lado CAROLINA Indo ao encontro do doutor Como o acha Eugênio DOUTOR Posso quase assegurarlhe que está livre de perigo salvo complicações imprevistas Gustavo foi presa de uma fortíssima comoção cerebral que se devesse matálo já o teria feito Consegui debelar a febre que o prostava e cuido que o seu estado deixou de ser melindroso CAROLINA E minha mãe e minha pobre mãe DOUTOR Talvez recupere a razão no Hospício de Pedro II para o qual foi necessário removêla Mas não tenho esperança alguma A sua loucura apresenta um caráter horrível CAROLINA Chorando apoiase ao ombro do doutor Eugênio No meio de que desgraças e dissabores tem se alimentado o nosso amor DOUTOR Consolate Carolina CAROLINA E por mais que procure não atino com a causa de tanto infortúnio Minha mãe louca Gustavo doente Lourenço Não sei por quê mas pareceme que Lourenço não é estranho a estas desgraças A cólera de papai a fugida de Lourenço DOUTOR Lourenço subtraiu dinheiro da secretária de seu pai A exaltação do senhor Salazar impressionou dona Gabriela a ponto de lhe tirar a razão A doença de Gustavo é causada sem dúvida pelo estado em que viu sua mãe CAROLINA Vamos ter com Gustavo É preciso não abandonálo um só momento Pobre irmão Venha comigo Eugênio Saem CENA III SALAZAR EVARISTO FEITOR SALAZAR Encampo tudo quanto fizer Para negros não há contemplações EVARISTO Eu cá não brindo À menor falta que cometam trabalha o bacalhau feio e forte SALAZAR Assim Entendo que o negro só deixa resultado com o seguinte sistema das cinco da manhã às sete da noite é roçar derrubar matas e apanhar café às oito da manhã e à uma da tarde é angu abóbora e couve E sempre que for possível chicote e tronco para tirarlhes a preguiça EVARISTO É o sistema por mim seguido desde que o senhor me confiou a administração desta fazenda Tenhome dado muito bem com ele e não pretendo mudálo SALAZAR São todos mansos como cordeiros EVARISTO A maior parte Há um grupo de quatro ou cinco um tanto rebeldes Negros novos Gente do Ceará Antipatizam comigo mas essa ojeriza têmlhes custado caro Ainda há pouco mandei surrar um deles com todos os sacramentos Prometo que hei de pôlos a todos no bom caminho E o tal Lourenço Nada SALAZAR Já foi filado segundo um telegrama de Serafim que hoje recebi O rapaz é esperto foi uma bela aquisição o Serafim EVARISTO Ainda bem Agora sua licença vou dar providências sobre o embarque do café SALAZAR Vá vá senhor Evaristo Evaristo sai É o beijinho dos feitores CENA IV JOSEFA SALAZAR SALAZAR A Josefa que entra Como vai o rapaz mana JOSEFA Sei cá Pode ir melhor ou pior ou na mesma pouco se me dá SALAZAR Oh não tanto assim Gustavo é um estróina é um inútil convenho mas afinal é meu filho e portanto seu sobrinho JOSEFA Meu não Lavo a testada SALAZAR Hein JOSEFA Nunca SALAZAR Nunca JOSEFA Jamais SALAZAR Expliquese Não gosto de meias palavras JOSEFA Quantos dedos tenho eu nesta mão SALAZAR Cinco creio JOSEFA E nesta outra SALAZAR Cinco também pareceme JOSEFA E nas duas juntas SALAZAR Ora vá para o inferno JOSEFA Diga SALAZAR Dez Vamos lá JOSEFA Pois tenho tanta certeza de ter cinco nesta cinco nesta e dez nas duas juntas como tenho a certeza de que o tal Gustavinho não é seu filho e muito menos meu sobrinho SALAZAR Você está caducando ou deu na aguardente do alambique JOSEFA Mano eu só falo SALAZAR Quando tem razão os doidos dizem a mesma coisa JOSEFA Desculpo as suas mácriações porque eu só quero o seu bem Está então convencido de que esse coisinha é obra sua SALAZAR Não provavelmente há de ser do vigário JOSEFA Olhe que eu estou falando sério Quem dera que fosse do vigário SALAZAR Então há de ser do diácono JOSEFA Desça SALAZAR Do sacristão JOSEFA Desça mais SALAZAR Ora desça você para as profundezas do inferno com a sua língua de víbora e vá aborrecer ao diabo que a carregue JOSEFA Segurandolhe no braço Digame uma coisa que dia é hoje SALAZAR Sextafeira JOSEFA Quantos do mês SALAZAR Doze JOSEFA Que horas são SALAZAR Deve ser dez Ora senhor Já me não bastava a mulher doida Também esta JOSEFA Pois bem tome nota do que lhe disse mês semana dia hora e lugarSaindo com ironia Eu é que sou maluca Eu é que sou maluca Saída falsa SALAZAR Segurandoa com força pelo braço Velha maldita expliquese ou a esgano Não sei a quem se referem as suas suspeitas Você não passa de uma miserável caluniadora de uma vil intrigrante de uma envenenadora de profissão Eis aí Dálhe um empurrão Josefa vai cair sobre o sofá JOSEFA Erguendose Apare o carro Quer que eu me explique Pois eu me explico Pausa De que cor é a sua pele SALAZAR Aí vem o estilo cabalístico Com força Branca JOSEFA Sim apesar de que o nosso bisavô materno era pardo SALAZAR Tapandolhe a boca Psit mulher JOSEFA Bem pardo SALAZAR Mana JOSEFA E foi escravo até a idade de cinco anos SALAZAR Calate diabo JOSEFA Ninguém nos ouve Era mulato e escravo mas a aliança com galegos purificou a raça de sorte que tanto você como eu somos perfeitamente brancos Temos cabelos lisos e corridos beiços finos e testa larga SALAZAR Bem que mais JOSEFA Qual é a cor de sua mulher SALAZAR Branca JOSEFA E bem branca Ora sim senhor Como é que explica que seu filho seja bastante moreno tenha beiços grossos e cabelos duros Hein SALAZAR Sorrindo Você é uma toleirona Também a mim isto causava espécie mas disseme um médico ser este fato observado em famílias que contam um ou mais ascendentes remotos de cor Desgostoume muito isso mas enfim São caprichos da natureza Uma raça não se purifica inteiramente senão depois de séculos A mestiçagem com africanos produz atavismos JOSEFA Bem não digo mais nada Prefiro deixálo na doce ilusão Vai a sair SALAZAR Segurandoa Com mil diabos Já agora quero saber JOSEFA Quer SALAZAR Sim JOSEFA Pois ouça lá mesmo porque já estou engasgada Sou capaz de estourar se fico calada Ontem à noite fui ao quarto de Gustavo Ele estava ardendo em febre e delirava Sabe o que dizia Dizia assim Eu Filho de um negro Eu Negro Eu Ladrão SALAZAR Muito agitado E o que conclui você daí JOSEFA Hipocritamente Concluo concluo que o Lourenço é uma cria de família muito estimado escandalosamente protegido por sua mulher Deus lhe perdoe e Salazar agarra na garganta da velha dá um grito e sai correndo CENA V JOSEFA Só JOSEFA Quase me estrangula Ih Nunca pensei que a coisa causasse tanto barulho Com voz medrosa e de mãos postas Meu Santo Antônio fazei com que não aconteça alguma desgraça porque tal não era a minha intenção Juro que não era a minha intenção Juro que não era Jura com os dedos em cruz Vós bem sabeis meu bom santo que só falo quando tenho rezão Vou para o meu oratório rezar dez padrenossos e dez avemarias para que fique tudo em paz nesta casa Benzese Minha Nossa Senhora das Candeias Ainda bem que eu estou fora de toda esta intrigalhada Fora de cena e tenho a minha consciência limpinha Só me meto com a minha vida Perdese a voz CENA VI GUSTAVO magro pálido alquebrado amparado pelo DOUTOR e por CAROLINA DOUTOR É uma imprudência Faz mal faz mal senhor Gustavo GUSTAVO Não doutor ficarei sossegado aqui nesta poltrona Sentamno CAROLINA Meu irmão atende ao teu médico GUSTAVO Deixemme quero estar só Fecha os olhos Carolina depois de uma pausa julgandoo a dormir impõe silêncio ao doutor tomao pelo braço e saem ambos pé ante pé Só Terrível terrível pesadelo de todos os momentos Oh por que me não fulminou um raio minutos depois daquela monstruosa revelação Deus Destino Providência Acaso Qualquer que seja o teu nome és bem cruel para aquele cujo único crime foi a leviandade e a inexperiência próprias da mocidade Nervosamente Gustavo Salazar és filho de um escravo Fervete nas veias o sangue africano Pertences à raça maldita dos párias negros À qual sempre votaste o desprezo mais profundo Tua mãe prevaricou com um escravo Oh Soluça amargamente CENA VII O MESMO SERAFIM LOURENÇO SERAFIM traz pelo cós da calça LOURENÇO que tem as mãos amarradas sobre as costas e está magro hirsuto e com ar idiota SERAFIM Aqui está o negro Safa Custei À parte Quando ia entrar na estação da estrada de ferro encontrei o presidente do Clube Abolicionista Pai Tomás Mas é preciso ganhar a vida Gustavo erguese e recua espavorido para o canto oposto do teatro fitando Lourenço com o olhar desvairado Admirase não é assim Ah eu cá quando porfio mato caça Eu e dois pedestres andamos por ceca e meca e Olivares de Santarém mas afinal seguramos o negro e bem seguro A Lourenço Foge agora se és capaz tratante cachorro peste descara GUSTAVO Segurandoo pela garganta Calese SERAFIM Engasgado Fala comigo GUSTAVO Se ousar dirigirlhe a mais leve injúria matoo Largao SERAFIM À parte Esta agora que bicho o mordeu Alto Mas senhor Gustavo GUSTAVO Saia Empurrao SERAFIM Saindo à parte Ora dáse Homessa CENA VIII GUSTAVO LOURENÇO depois o DOUTOR Cena muda Ficam em frente um do outro silenciosos GUSTAVO Consigo Sonho terrível Meu pai aquele que ali está Mas não É o delírio da febre Impossível Pausa Inclinase sobre o sofá e oculta o rosto soluçando Dilataseme o coração estalaseme o peito que mal o pode conter É o grito fatal da natureza É a voz sagrada do sangue Por três vezes sucessivas Gustavo vai dirigirse a Lourenço mas ao aproximarse dele recua convulsivamente com certa repugnância Lourenço curva a cabeça e soluça Neste momento o doutor vai entrar mas vendo o quadro volta e assiste à cena da porta sem ser visto pelos dois Aquele que ali está amarrado e vi ipendiado que em breve vai sentir nos seus pés o ferro da ignomínia e em suas costas o açoite infamante do cativeiro é é meu pai A tirase aos braços de Lourenço o qual com um supremo esforço e dando três solavancos quebra as cordas que lhe algemam os pulsos Ficam abraçados DOUTOR À parte Compreendi tudo meu Deus Desaparece CENA IX GUSTAVO LOURENÇO SALAZAR SERAFIM depois EVARISTO SALAZAR Depois de fitálos com ódio a Serafim Vá chamar o Evaristo Serafim sai GUSTAVO Para que o Evaristo SALAZAR Com que direito me faz essa pergunta GUSTAVO Não sei Pergunto para que manda chamar o Evaristo SALAZAR Para arrancar o couro àquele negro EVARISTO Entrando Pronto SALAZAR Apontando para Lourenço Eilo Entregolho à discrição Evaristo com um gesto de ameaça dirigese para Lourenço GUSTAVO Não lhe toque SALAZAR À parte Ah Alto brandindo o chicote que arranca das mãos do feitor Pois começarei eu mesmo GUSTAVO Interpondose Por Deus que o não há de fazer SALAZAR Furioso Afastese Afastese senão aplicolhe uma chicotada LOURENÇO A Gustavo Deixeo meu senhor Eu sei o que devo fazer Sai Evaristo acompanhao Gustavo quer também acompanhálo mas cai abatido e tenta em vão erguerse CENA X SALAZAR GUSTAVO SALAZAR Filho do meu escravo GUSTAVO Já o sabia Tanto agora como mais tarde SALAZAR Esta sala não é lugar de moleques Saia GUSTAVO Erguendose a custo Sairei Antes porém há de ouvirme SALAZAR Não discuto com os filhos dos meus escravos GUSTAVO Com calma terrível Sou filho do seu escravo sim e nem por isso me julgo mais desprezível do que quando supunha ser seu filho percebe A febre escaldame o delírio fazme ver a nu a verdade das coisas Ouçame Segurandoo Desde o momento em que soube que me corria nas veias o sangue de um escravo senti que este sangue vinha não deturpar ou desonrar mas sim tonificar o meu organismo corrompido pela educação que o senhor me deu Agora ao menos tenho no coração um sentimento coisa que só de nome conhecia Dinheiro estolidez vícios crueldade insolência bestialidade eis tudo quanto eu sabia do mundo E foi o senhor que me ensinou Percebe SALAZAR Já disse que não discuto com um negro GUSTAVO Negro sim Sou da raça escravizada Sinto as faces abrazadas pelo sangue ardente dos filhos do deserto que os seus predecessores algemam à traição para virem com eles poluir o seio virgem das florestas americanas Negro sim Sou negro Estou aqui em sua frente como uma solene represália de milhares de desgraçados cujas lágrimas o têm locupletado Ah os senhores pisam a tacões a raça maldita cospemlhe na face Ela vingase como pode introduzindo a desonra no seio de suas famílias Cai extenuado e em prantos Ó minha mãe SALAZAR Não me fale em sua mãe senhor se não estivesse louca eu CENA XI OS MESMOS SERAFIM que entra esbaforido depois JOSEFA SERAFIM Patrão patrão O Lourenço enforcouse GUSTAVO Com um grito Enforcouse Sai como um louco mal podendo suster Salazar tem um sorriso de satisfação SERAFIM Os negros ao veremno morto revoltamse e armados de foices perseguem o feitor pelo cafezal a dentro Acudao SALAZAR Miseráveis Agarra uma espingarda que está a um canto e sai arrebatadamente SERAFIM Só Escapei de boas Qual Decididamente não me serve o ofício É muito perigoso e eu tenho amor à pele Vou fazerme de novo abolicionista e voltar ao Clube Pai Tomás para ver se melhoro de condição JOSEFA Entrando com muito medo Senhor Serafim Senhor Serafim Ouvese fora vozeria confusa Misericórdia Foge benzendose SERAFIM Eu aqui não estou seguro Vou esconderme no quarto da velha Sai Continua a vozeria CENA XII SALAZAR depois CAROLINA depois escravos o DOUTOR O ruído cresce e aproximase Ouvese a detonação de uma espingarda Salazar entra perseguido e colocase contra a porta que de fora tentam arrombar SALAZAR Venham Morrerei no meu posto e venderei caro a vida CAROLINA Entrando Não se exponha Fuja por ali meu pai SALAZAR Louco de furor Seu pai Eu Procureo no meio desses que vêm me assassinar Talvez o encontre Arrombam a porta Entra uma multidão de escravos armados de foices e machados Avançam para Salazar Carolina interpondose ajoelha CAROLINA Com lágrimas na voz É meu pai Piedade Os negros ficam interditos olham uns para os outros abatem as armas e retiramse resmungando Salazar abraça Carolina e chora SALAZAR São as minhas primeiras lágrimas Carolina Longa pausa durante a qual Salazar soluça apoiado ao colo da filha Mas Gustavo DOUTOR Entrando Fui encontrálo morto junto ao cadáver de seu pai FIM DA PEÇA Cai o pano Proposta 3 ref A4 Considerando a leitura da peça O escravocrata de Arthur Azevedo e Urbano Duarte e a seguinte passagem de R Schwarz em Um mestre na periferia do capitalismo Em suma a vida honesta e independente não está ao alcance do pobre que aos olhos dos abastados é presunçoso quando a procura e desprezível quando desiste uma fórmula aliás do objeto humor de classe p68 disserte sobre os elementos do conflito dramático relativos às ações das personagens Josefa Serafim e Eugênio Análise dos Elementos do Conflito Dramático em O Escravocrata 1 Introdução O Escravocrata de Arthur Azevedo e Urbano Duarte não é apenas uma peça teatral é um espelho que reflete as tensões e disparidades da sociedade brasileira do século XIX imersa em um contexto de transformação social e política Esta obra dramática escrita em 1884 surge em um período crítico da história brasileira marcado pela crescente pressão para a abolição da escravatura e se apresenta como um veículo para a crítica social e a reflexão moral A peça articula as complexidades das relações sociais e os conflitos inerentes a uma sociedade dividida entre a tradição escravocrata e os ventos da mudança trazidos pelos ideais abolicionistas e liberalizantes No coração de O Escravocrata estão os elementos do conflito dramático que se desenrolam através das vidas e interações de suas personagens principais Josefa Serafim e Eugênio Cada uma dessas figuras encarna perspectivas e valores distintos oferecendo um vislumbre das forças em jogo na sociedade da época A obra não apenas ilustra as dinâmicas de poder e submissão inerentes ao sistema escravocrata mas também explora as contradições morais e éticas que surgem à medida que os personagens navegam pelas complexas realidades sociais de sua época O drama revela com aguda perspicácia a maneira como a instituição da escravidão molda e distorce as relações humanas influenciando tanto os senhores quanto os escravos além daqueles que ocupam posições intermediárias na hierarquia social Ao fazer isso Azevedo e Duarte penetram nas camadas da sociedade brasileira expondo as hipocrisias e as justificações morais que sustentam um sistema intrinsecamente desigual e opressor Através das ações e escolhas de Josefa Serafim e Eugênio a peça tece uma narrativa rica em tensão dramática e significado simbólico desafiando o público a confrontar as realidades desconfortáveis de uma sociedade em transição 2 Análise de Personagens e Conflitos 21 Josefa A Representação da Aristocracia Tradicional Josefa irmã do negociante de escravos Salazar simboliza a aristocracia que se sustenta nos valores antigos e na manutenção do status quo Seu comportamento é marcado por uma arrogância que reflete a presunção dos abastados menciona Ela vê a tentativa dos escravos e dos menos afortunados de buscar uma vida melhor como uma afronta à ordem estabelecida Josefa não percebe a ironia de sua própria posição precária dentro da mesma sociedade que defende vivendo à sombra de seu irmão e mostrando se insatisfeita apesar de seu privilégio Seu conflito interno é sutil mas presente ela é parte de um sistema que valoriza a aparência sobre a substância causando sua própria infelicidade e frustração 22 Serafim O Oportunismo e a Sobrevivência Serafim é uma figura complexa que representa o indivíduo pressionado pelas circunstâncias sociais e econômicas Exsócio do Clube Abolicionista sua inserção na casa de Salazar como empregado ilustra o conflito entre seus ideais anteriores e suas ações atuais Serafim adaptase ao ambiente opressor para garantir sua sobrevivência evidenciando a hipocrisia social Seu oportunismo reflete a crítica àqueles que na busca por estabilidade e reconhecimento social acabam compactuando com o sistema que criticavam A dramaturgia utiliza Serafim para demonstrar como a pobreza pode forçar a abdicação de princípios desencadeando desprezo ou piedade daqueles em posição de poder 23 Doutor Eugênio Entre Ideais e Realidades Doutor Eugênio o médico com convicções abolicionistas enfrenta o dilema moral mais explícito Seu envolvimento amoroso com Carolina filha de Salazar coloca em cheque seus ideais Eugênio é pego no conflito entre seu ativismo e a necessidade de manter relações cordiais com Salazar para fins pessoais Ele representa o indivíduo que embora comprometido com a mudança social encontrase emaranhado nas contradições de seu ambiente social A peça utiliza Eugênio para explorar a complexidade de manter a integridade pessoal em um contexto onde as injustiças são normativas e beneficiais para alguns 3 Conclusão Na conclusão da análise de O Escravocrata emerge claramente como Arthur Azevedo e Urbano Duarte utilizam o texto para expor e criticar as mazelas e contradições de uma sociedade enraizada na escravidão A peça não apenas ilustra as injustiças sociais e a complexidade das relações de poder mas também aprofunda o debate moral e ético acerca das responsabilidades individuais e coletivas diante das opressões sistêmicas Josefa Serafim e Eugênio através de suas trajetórias e escolhas tornamse arquétipos dos variados estratos sociais e perspectivas ideológicas que coexistiam na sociedade brasileira do século XIX Portanto O Escravocrata é mais do que uma obra de teatro é um estudo sociológico e psicológico que desafia o público a refletir sobre a complexidade das relações humanas em um contexto de injustiça estrutural A peça em sua essência é um chamado ao questionamento e à reflexão sobre as próprias fundações de qualquer sociedade que se constrói sobre a exploração e a desigualdade Assim concluise que Azevedo e Duarte através deste drama não apenas pintam um retrato de sua própria época mas também oferecem insights atemporais sobre a natureza da opressão a responsabilidade moral e a possibilidade de redenção e mudança