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Texto de pré-visualização
Proposta Considere a leitura prévia das antologias de poesia e as obras em prosa e dramaturgia das aulas 1 até 7 referentes aos anos 50 até 70 bem como as ideias dos textos teóricocríticos recomendados A seguir discuta o desdobramento formal e temático destas produções Para isso articule ao menos 2 dos escritores as estudados as bem como utilize passagens literárias para exemplificar a sua argumentação A5 Anos 50 até 70 conto tópico literatura fantástica Docente Andrea Muraro Literaturas em LP5 Leitura do conto Venha ver o pôrdosol de Lygia Fagundes Telles da obra Antes do baile verde 1949 até 1969 O fantástico ocupa o tempo desta incerteza Assim que se escolhe uma das duas respostas deixase o terreno do fantástico para entrar em um gênero vizinho o estranho ou o maravilhoso O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis naturais frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural In Introdução à literatura fantástica de Todorov p16 O fantástico implica pois uma integração do leitor com o mundo dos personagens definese pela percepção ambígua que o próprio leitor tem dos acontecimentos relatados Terá que advertir imediatamente que com isso temos presente não tal ou qual leitor particular real a não ser uma função de leitor implícita ao texto assim como também está implícita a função do narrador A percepção desse leitor implícito se inscreve no texto com a mesma precisão com que o estão os movimentos dos personagens A vacilação do leitor é pois a primeira condição do fantástico p19 A primeira condição nos remete ao aspecto verbal do texto ou com maior exatidão ao que se denomina as visões o fantástico é um caso particular de visão ambígua A segunda condição é mais complexa por uma parte relacionase com o aspecto sintático na medida em que implica a existência de um tipo formal de unidades que se refere à apreciação dos personagens relativa aos acontecimentos do conto estas unidades poderiam receber o nome de reações por oposição às ações que formam habitualmente a trama da história Por outra parte referese também ao aspecto semântico posto que se trata de um tema representado o da percepção e sua notação Por fim a terceira condição tem um caráter mais geral e transcende a divisão em aspectos tratase de uma eleição entre vários modos e níveis de leitura p 20 Um senhor muito velho com asas muito grandes conto de Gabriel Garcia Marquez de 1968 e Cem anos de solidão 1967 Cf A nova narrativa de Antonio Candido fins dos anos 70 httpswwwrevistasuspbr literartesissueview9367 httpsedisciplinasuspb rpluginfilephp7477596 modresourcecontent 1Todorov20Introducao 20a20literatura20fa ntasticapdf Outros exemplos O conto A armadilha de Murilo Rubião Necessidade de reescrita 1965 e 1978 Porque se a trombeta der um som confuso quem se preparará para a batalha Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios XIV 8 Edição de 2010 com os 33 contos produzidos Usando a ambiguidade como meio ficcional procuro fragmentar minhas histórias ao máximo para dar ao leitor a certeza de que elas prosseguirão indefinidamente numa indestrutível repetição cíclica Rubião em entrevista Mas há precisão na descrição da personagem Alexandre e do prédio que simboliza o ambiente da armadilha em que o velho esgarçado o espera por dois anos após a porta semicerrada para uma conversa que o leitor acompanha observando a dissimulação de ambos quanto às emoções mas que os olhos deixam entrever Ocorre que a vítima e o algoz devem permanecer juntos trancafiados Uma bela e marcante fábula sobre uma pequena cidade invadida por animais que passou a ser uma espécie de referência e síntese de sua obra Cristovão Tezza JOSÉ J VEIGA A HORA DOS RUMINANTES httpswwwcompanhiadasletrascombrsalaprofessorpdfsCLEricoVerissimoincidenteeolevantepdf httpswwwtesesuspbrtesesdisponiveis88151tde27012023163419publico1994ElianaPibernatAntoninipdf httpswwwcompanhiadasletrascombrtrecho9788535905960 SARAIVA S da S O realismo animista e o espaço nãonostálgico em narrativas africanas de Língua Portuguesa In ANAIS DO ENCONTRO REGIONAL DA ABRALIC 2007 Literaturas Artes Saberes 23 a 25 de julho de 2007 São Paulo USP 2007 Disponível em httpwwwabralicorgbrenc2007anais80107pdf acesso em 12 jan 2012 GARUBA Harry Explorações no realismo animista notas sobre a leitura e a escrita da literatura cultura e sociedade africana Nonada Letras em Revista vol 2 núm 19 octubre 2012 pp 235256 Laureate International Universities Porto Alegre Brasil httpswwwredalycorgpdf5124512451673021pdf A4 Anos 60 a 70prosaClarice Docente Andrea Muraro Literaturas em LP V httpsdocumentosreveladoscombrfotohistoricaintelectuaiseartistascontraarepressaodaditadura httpsoglobogloboco mculturalivrosclarice lispectorfoifichada peladitadurarevela novabiografia25284393 No visible text to transcribe from the image httpswwwyoutubecomwatchvTbZriv5THpA entrevista TV Cultura httpswwwyoutubecomwatchvMBxAMJvSip0 filme de Suzana Amaral httpswww1folhauolcombrilustrada202111claricelispectorganhamostraemtudooriginaleque respeitasuaobrashtml recente exposição sobre a obra de Clarice Lispector httpssiteclaricelispectorimscombrlivroalivro link do Museu da Imagem e do Som com cronologia de obras Dos dados da experiência Da bibliografia sobre a obra de Clarice Lispector AMARAL Emília O leitor segundo GH São Paulo Ateliê Editorial 2005 ARÊAS Vilma Clarice Lispector com a ponta dos dedos São Paulo Companhia das Letras 2005 BORELLI Olga Esboço para um possível retrato Rio de Janeiro Nova Fronteira 1981 CANDIDO Antonio No raiar de Clarice In Vários escritos São Paulo Duas Cidades 1970 GOTLIB Nádia Battella Clarice Uma vida que se conta 4 ed São Paulo Ática 1995 HOLANDA Sérgio Buarque de Tema e técnica In PRADO Antonio Arnoni org O espírito e a letra Vol II São Paulo Companhia das Letras 1996 p 207211 MOSER Benjamin Clarice São Paulo Cosac Naify 2009 NOLASCO Edgar Cézar Caldo de cultura A hora da estrela e a vez de Clarice Lispector Mato Grosso do Sul Ed UFMS 2007 NUNES Benedito O drama da linguagem São Paulo Ática 1989 O dorso do tigre São Paulo Perspectiva 1969 OLIVEIRA Solange Ribeiro de A barata e a crisálida o romance de Clarice Lispector Rio de Janeiro Brasília José OympioINL 1985 PONTIERI Regina Clarice Lispector uma poética do olhar São Paulo Ateliê Editorial 1999 SCHWARZ Roberto Perto do coração selvagem In A sereia e o desconfiado ensaios críticos São Paulo Paz e Terra 1981 Voltando porém ao microrelato que atravessa o livro a sensibilidade da autora para os pequenos indícios é para o meandro psicológico é uma coisa espantosa A análise desce ao nível microscópico onde a causalidade é minúscula e minuciosa A construção de experiências psíquicas é admirável na precisão seguindo o fluxo da consciência A figura de Joana é composta por estas ilhotas de luz e engenho inteligíveis mas isoladas as experiências coexistem incomunicáveis Clarice Lispector voltada para a construção detalhada instaura um fluxo das coisas mínimas que não leva em si só à causalidade das unidades maiores dependente de articulação mais ampla Noutras palavras a visão de lente permite examinar a tessitura de cada trama emocional particular mas não dá totalidades não mostra a ligação dos fenômenos psíquicos entre si não fornece a sua ligação ao nível organizado e configurado Uma psicologia de associações e elementarista anterior à gestalt Os momentos psicológicos construídos cada qual a partir de seus elementos mínimos não podem se inserir num desenvolvimeito de cunho histórico e não podem constituir portanto uma biografia O romance respeita esta regra em sua estrutura que é toda de contraposições estanques uso intensivo da metáfora insólita paródia a entrega do fluxo de consciência ou a prática do monólogo interior a rarefação do enredo senso do metafísico eou epifania Do que se encontra nos livros didáticos Sei que há moças que vendem o corpo única posse real em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender ninguém a quer ela é virgem e inócua não faz falta a ninguém Aliás descubro eu agora eu também não faço a menor falta e até o que escrevo um outro escreveria Um outro escritor sim mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas Como a nordestina há milhares de moças espalhadas por cortiços vagas de cama num quarto atrás de balcões trabalhando até a estafa Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiram como não existiriam Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não saber a quem Esse quem será que existe Estou esquentando o corpo para iniciar esfregando as mãos uma na outra para ter coragem Agora me lembrei de que houve um tempo em que para me esquentar o espírito eu rezava p11 Planos narrativos e personagens narrador Rodrigo SM Macabéa Olímpico de Jesus Glória Madame Carlota as companheiras de dormitório o patrão Raimundo As pancadas ela esquecia pois esperandose um pouco a dor termina por passar Mas o que doía mais era ser privada da sobremesa de todos os dias goiabada com queijo a única paixão na sua vida Pois não era que esse castigo se tornara o predileto da tia sabida A menina não perguntava por que era sempre castigada mas nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante de sua vida Esse nãosaber pode parecer ruim mas não é tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguém ensina cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome nascese e ficase logo sabendo p17 Quando penso que eu podia ter nascido ela e por que não estremeço E pareceme covarde fuga de eu não ser sinto culpa como disse num dos títulos Em todo caso o futuro parecia via a ser muito melhor Pelos menos o futuro tinha a vantagem de não ser o presente Sempre há um melhor para o ruim Mas não havia nela miséria humana É que tinha em si mesma uma certa flor fresca p20 HORA DA ESTRELA A CULPA É MINHA OU A HORA DA ESTRELA OU ELA QUE SE ARRANJE OU O DIREITO AO GRITO QUANTO AO FUTURO OU LAMENTO DE UM BLUE OU ELA NÃO SABE GRITAR OU ASSOVIO AO VENTO ESCURO OU EU NÃO POSSO FAZER NADA OU REGISTRO DOS FATOS ANTECEDENTES OU HISTÓRIA LACRIMOGÊNICA DE CORDEL OU SAÍDA DISCRETA PELA PORTA DOS FUNDOS O definível está me cansando um pouco Prefiro a verdade que há no prenúncio Quando eu me livrar dessa história voltarei ao domínio mais irresponsável de apenas ter leves prenúncios Eu não inventei essa moça Ela forçou de dentro de mim a sua exigência Ela não era nem de longe débil mental era à mercê e crente como uma idiota A moça que pelo menos comida não mendigava havia toda uma subclasse de gente mais perdida e com fome Só eu a amo Depois ignorase por quê tinham vindo para o Rio o inacreditável Rio de Janeiro a tia lhe arranjara emprego finalmente morrera e ela agora sozinha morava numa vaga de quarto compartilhado com mais quatro moças balconistas das Lojas Americanas O quarto ficava num velho sobrado colonial da áspera rua do Acre entre as prostitutas que serviam a marinheiros depósitos de carvão e de cimento em pó não longe do cais do porto O cais imundo davalhe saudade do futuro O que é que há Pois estou como que ouvindo acordes de piano alegre será isto o símbolo de que a vida da moça iria ter um futuro esplendoroso Estou contente com essa possibilidade e farei tudo para que esta se torne real Tinha acesso de tosse seca de madrugada abafavaa com o travesseiro ralo Mas as companheiras do quarto Maria da Penha Maria Aparecida Maria José e Maria apenas não se incomodavam Estavam cansadas demais pelo trabalho que nem por ser anônimo era menos árduo Uma vendia pódearroz Coty mas que idéia Elas viravam para o outro lado e readormeciam A tosse da outra até que as embalava em sono mais profundo O céu é para baixo ou para cima Pensava a nordestina Deitada não sabia Às vezes antes de dormir sentia fome e ficava meio alucinada pensando em coxa de vaca O remédio então era mastigar papel bem mastigadinho e engolir E quando acordava Quando acordava não sabia mais quem era Só depois é que pensava com satisfação sou datilógrafa e virgem e gosto de cocacola Só então vestiase de si mesma passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser Será que eu enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos Mas aí que está esta história não tem nenhuma técnica nem estilo ela é ao deusdará Eu que também não marcharia por nada deste mundo com palavras brilhantes e falsas uma vida parca como a da datilógrafa Durante o dia eu faço como todos gestos despercebidos por mim mesmo Pois um dos gestos mais despercebidos é esta história de que não tenho culpa e que sai como sair A datilógrafa vivia numa espécie de atordoado nimbo entre céu e inferno Nunca pensara em eu sou eu Acho que julgava não ter direito ela era um acaso Um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal Há milhares como ela Sim e que são apenas um acaso Pensando bem quem não é um acaso na vida Olímpico de Jesus trabalhava de operário numa metalúrgica e ela nem notou que ele não se chamava de operário e sim de metalúrgico Macabéa ficava contente com a posição social dele porque também tinha orgulho de ser datilógrafa embora ganhasse menos que o salário mínimo Mas ela e Olímpico eram alguém no mundo Metalúrgico e datilógrafa formavam um casal de classe A tarefa de Olímpico tinha o gosto que se sente quando se fuma um cigarro acendendoo do lado errado na ponta da cortiça O trabalho consistia em pegar barras de metal que vinham deslizando de cima da máquina para colocálas embaixo sobre uma placa deslizante Nunca se perguntara por que colocava a barra embaixo A vida não lhe era má e ele até economizava um pouco de dinheiro dormia de graça numa guarita em obras de demolição por camaradagem do vigia Macabéa disse As boas maneiras são a melhor herança p23 Quando ele avisara que ia examinála ela disse Ouvi dizer que no médico se tira a roupa mas eu não tiro coisa nenhuma Passaraa pelo raio X e dissera Você está com começo de tuberculose pulmonar Ela não sabia se isso era coisa boa ou coisa ruim Bem como era uma pessoa muito educada disse Muito obrigada sim p34 Não eu lhe pago a senhora acertou tudo a senhora é Estava meio bêbada não sabia o que pensava parecia que lhe tinham dado um forte cascudo na cabeça de ralos cabelos sentiase tão desorientada como se lhe tivesse acontecido uma infidelidade Sobretudo estava conhecendo pela primeira vez o que os outros chamavam de paixão estava apaixonada por Hans E que é que eu faço para ter mais cabelo ousou perguntar porque já se sentia outra Você está querendo demais Mas está bem lave a cabeça com sabão Aristolino não use sabão amarelo em pedra Esse conselho eu não cobro Até isso explosão bateulhe o coração até mais cabelo Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar Mas não chorou seus olhos faiscavam como o sol que morria Então ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua o Destino explosão sussurrou veloz e guloso é agora é já chegou a minha vez E enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegoua e neste mesmo instante em algum único lugar do mundo um cavalo como resposta empinouse em gargalhada de relincho Macabéa ao cair ainda teve tempo de ver antes que o carro fugisse que já começavam a ser cumpridas as predições de madama Carlota pois o carro era de alto luxo Sua queda não era nada pensou ela apenas um empurrão Batera com a cabeça na quina da calçada e ficara caída a cara mansamente voltada para a sarjeta Aí Macabéa disse uma frase que nenhum dos transeuntes entendeu Disse bem pronunciado e claro Quanto ao futuro Terá tido ela saudade do futuro Ouço a música antiga de palavras e palavras sim é assim Nesta hora exata Macabéa sente um fundo enjôo de estômago e quase vomitou queria vomitar o que não é corpo vomitar algo luminoso Estrela de mil pontas O que é que estou vendo agora e que me assusta Vejo que ela vomitou um pouco de sangue vasto espasmo enfim o âmago tocando no âmago vitória O final foi bastante grandiloqüente para a vossa necessidade Morrendo ela virou ar Ar enérgico Não sei Morreu em um instante O instante é aquele átimo de tempo em que o pneu do carro correndo em alta velocidade toca no chão e depois não toca mais e depois toca de novo Etc etc etc No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada Eu vos pergunto Qual é o peso da luz E agora agora só me resta acender um cigarro e ir para casa Meu Deus só agora me lembrei que a gente morre Mas mas eu também Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos Sim A HORA DA ESTRELA Clarice Lispector HORA DA ESTRELA A CULPA É MINHA OU A HORA DA ESTRELA OU ELA QUE SE ARRANJE OU O DIREITO AO GRITO QUANTO AO FUTURO OU LAMENTO DE UM BLUE OU ELA NÃO SABE GRITAR OU ASSOVIO AO VENTO ESCURO OU EU NÃO POSSO FAZER NADA OU REGISTRO DOS FATOS ANTECEDENTES OU HISTÓRIA LACRIMOGÊNICA DE CORDEL OU SAÍDA DISCRETA PELA PORTA DOS FUNDOS 2 DEDICATÓRIA DO AUTOR Na verdade Clarice Lispector Pois dedico esta coisa aí ao antigo Schumann e sua doce Clara que são hoje ossos ai de nós Dedicome à cor rubra e escarlate como o meu sangue de homem em plena idade e portanto dedicome a meu sangue Dedicome sobretudo aos gnomos anões sílfides e ninfas que me habitam a vida Dedicome à saudade de minha antiga pobreza quando tudo era mais sóbrio e digno e eu nunca havia comido lagosta Dedico me à tempestade de Beethoven À vibração das cores neutras de Bach A Chopin que me amolece os ossos A Stravinsky que me espantou e com quem voei em fogo À Morte e Transfiguração em que Richard Strauss me revela um destino Sobretudo dedicome às vésperas de hoje e a hoje ao transparente véu de Debussy a Marlos Nobre a Prokofiev a Carl Orff a Schönberg aos dodecafônicos aos gritos rascantes dos eletrônicos a todos esses que em mim atingiram zonas assustadoramente inesperadas todos esses profetas do presente e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponto de eu neste instante explodir em eu Esse eu que é vós pois não ser apenas mim preciso dos outros para me manter de pé tão tonto que sou eu enviesado enfim que é que se há de fazer senão meditar para cair naquele vazio pleno que só se atinge com a meditação Meditação não precisa de ter resultados a meditação pode ter como fim apenas ela mesma Eu medito sem palavras e sobre o nada O que me atrapalha a vida é escrever E e não esquecer que a estrutura do átomo não é vista mas sabese dela Sei de muita coisa que não vi E vós também Não se pode dar uma prova de existência do que é mais verdadeiro o jeito é acreditar acreditar chorando Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública Tratase de livro inacabado porque lhe falta resposta Resposta esta que alguém no mundo ma dê Vós É uma história em tecnicolor para ter algum luxo por Deus que eu também preciso Amém para nós todos 3 Tudo no mundo começou com um sim Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida Mas antes da préhistória havia a préhistória da préhistória e havia o nunca e havia o sim Sempre houve Não sei o quê mas sei que o universo jamais começou Que ninguém se engane só consigo a simplicidade através de muito trabalho Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever Como começar pelo início se as coisas acontecem antes de acontecer Se antes da prépré história já havia os monstros apocalípticos Se esta história não existe passará a existir Pensar é um ato Sentir é um fato Os dois juntos sou eu que escrevo o que estou escrevendo Deus é o mundo A verdade é sempre um contato interior inexplicável A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduzse ao próprio último ou primeiro pulsar A dor de dentes que perpassa esta história deu uma fisgada funda em plena boca nossa Então eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente é a minha própria dor eu que carrego o mundo e há falta de felicidade Felicidade Nunca vi palavra mais doida inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes Como eu irei dizer agora esta história será o resultado de uma visão gradual há dois anos e meio venho aos poucos descobrindo os porquês É visão da iminência de De quê Quem sabe se mais tarde saberei Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido Só não inicio pelo fim que justificaria o começo como a morte parece dizer sobre a vida porque preciso registrar os fatos antecedentes Escrevo neste instante com algum prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior e explícita De onde no entanto até sangue arfante de tão vivo de vida poderá quem sabe escorrer e logo se coagular em cubos de geléia trêmula Será essa história um dia meu coágulo Que sei eu Se há veracidade nela é claro que a história é verdadeira embora inventada que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro existe a quem falte o delicado essencial Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconheço já que nunca o vivi É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste Também sei das coisas por estar vivendo Quem vive sabe mesmo sem saber que sabe Assim é que os senhores sabem mais do que imaginam e estão fingindo de sonsos Proponhome a que não seja complexo o que escreverei embora obrigado a usar palavras que vos sustentam A história determino com falso livrearbítrio vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles é claro Eu Rodrigo S M Relato antigo este pois não quero ser mordenoso e inventar modismos à guisa de originalidade Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo meio e gran finale seguido de silêncio e de chuva caindo História exterior e explícita sim mas que contém segredos a começar por um dos títulos Quanto ao futuro que é precedido por um ponto final e seguido de outro ponto final Não se trata de capricho meu no fim talvez se entenda a necessidade do delimitado Mal e mal vislumbro o final que se minha pobreza permitir quero que seja grandioso Se em vez de ponto fosse seguido por reticências o título ficaria aberto a possíveis imaginações vossas porventura até malsãs e sem piedade Bem é verdade que também eu não tenho piedade do meu personagem principal a nordestina é um relato que desejo frio Mas tenho o direito de ser dolorosamente frio e não vós Por tudo isto é que não vos dou a vez Não se trata apenas de narrativa é antes de tudo vida primária que respira respira respira Material poroso um dia viverei aqui a vida de uma molécula com seu estrondo possível de átomos O que é mais do que invenção é minha obrigação 4 contar sobre essa moça entre milhares delas E dever meu nem que seja de pouca arte o de revelarlhe a vida Porque há o direito ao grito Então eu grito Grito puro e sem pedir esmola Sei que há moças que vendem o corpo única posse real em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender ninguém a quer ela é virgem e inócua não faz falta a ninguém Aliás descubro eu agora eu também não faço a menor falta e até o que escrevo um outro escreveria Um outro escritor sim mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas Como a nordestina há milhares de moças espalhadas por cortiços vagas de cama num quarto atrás de balcões trabalhando até a estafa Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiram como não existiriam Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não saber a quem Esse quem será que existe Estou esquentando o corpo para iniciar esfregando as mãos uma na outra para ter coragem Agora me lembrei de que houve um tempo em que para me esquentar o espírito eu rezava o movimento é espírito A reza era um meio de mudamente e escondido de todos atingirme a mim mesmo Quando rezava conseguia um oco de alma e esse oco é o tudo que posso eu jamais ter Mais do que isso nada Mas o vazio tem o valor e a semelhança do pleno Um meio de obter é não procurar um meio de ter é o de não pedir e somente acreditar que o silêncio que eu creio em mim é resposta a meu meu mistério Pretendo como já insinuei escrever de modo cada vez mais simples Aliás o material de que disponho é parco e singelo demais as informações sobre os personagens são poucas e não muito elucidativas informações essas que penosamente me vêm de mim para mim mesmo é trabalho de carpintaria Sim mas não esquecer que para escrever nãoimportaoquê o meu material básico é palavra Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases É claro que como todo escritor tenho a tentação de usar termos suculentos conheço adjetivos esplendorosos carnudo substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação já que palavra é ação concordai Mas não vou enfeitar a palavra pois se eu tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro e a jovem poderia mordêlo morrendo de fome Tenho então que falar simples para captar a sua delicada e vaga existência Limitome a humildemente mas sem fazer estardalhaços de minha humildade que já não seria humilde limitome a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela Ela que devia ter ficado no Sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia já que escrevia tão mal só tinha até o terceiro ano primário Por ser ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamente letra por letra a tia é que lhe dera um curso ralo de como bater à máquina E a moça ganhara uma dignidade era enfim datilógrafa Embora ao que parece não aprovasse na linguagem duas consoantes juntas e copiava a letra linda e redonda do amado chefe a palavra designar de modo como em língua falada diria desiguinar Desculpaime mas vou continuar a falar de mim que sou meu desconhecido e ao escrever me surpreendo um pouco pois descobri que tenho um destino Quem já não se perguntou sou um monstro ou isto é ser uma pessoa Quem antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa Se tivesse a tolice de se perguntar quem sou eu Cairia estatelada em cheio no chão É que quem sou eu Provoca necessidade E como satisfazer a necessidade Quem se indaga é incompleto A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na rua Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham Voltando a mim o que escreverei não pode ser absorvido por mentes que muito exijam e ávidas de requintes Pois o que estarei dizendo será apenas nu Embora tenha como pano de fundo e agora mesmo a penumbra atormentada que sempre há nos 5 meus sonhos quando de noite atormentado durmo Que não se esperem então estrelas no que se segue nada cintilará tratase de matéria opaca e por sua própria natureza desprezível por todos É que a esta história falta melodia cantabile O seu ritmo é às vezes descompasso E tem fatos Apaixoneime subitamente por fatos sem literatura fatos são pedras duras e agir está me interessando mais do que pensar de fatos não há como fugir Perguntome se eu deveria caminhar à frente do tempo e esboçar logo um final Acontece porém que eu mesmo ainda não sei bem como isto terminará E também porque entendo que devo caminha passo a passo de acordo com um prazo determinado por horas até um bicho lida com o tempo E esta é também a minha mais primeira condição a de caminhar paulatinamente apesar da impaciência que tenho em relação a essa moça Com esta história eu vou me sensibilizar e bem sei que cada dia é um dia roubado da morte Eu não sou um intelectual escrevo com o corpo E o que escrevo é uma névoa úmida As palavras são sons transfundidos de sombras que se entrecruzam desiguais estalactites renda música transfigurada de órgão Mal ouso clamar palavras a essa rede vibrante e rica mórbida e obscura tendo como contratom o baixo grosso da dor Alegro com brio Tentarei tirar ouro do carvão Sei que estou adiando a história e que brinco de bola sem bola O fato é um ato Juro que este livro é feito sem palavras É uma fotografia muda Este livro é um silêncio Este livro é uma pergunta Mas desconfio que toda essa conversa é feita apenas para adiar a pobreza da história pois estou com medo Antes de ter surgido na minha vida essa datilógrafa eu era um homem até mesmo um pouco contente apesar do mau êxito na minha literatura As coisas estavam de algum modo tão boas que podiam se tornar muito ruins porque o que amadurece plenamente pode apodrecer Transgredir porém os meus próprios limites me fascinou de repente E foi quando pensei em escrever sobre a realidade já que essa me ultrapassa Qualquer que seja o que quer dizer realidade O que narrarei será meloso Tem tendência mas então agora mesmo seco endureço tudo E pelo menos o que escrevo não pede favor a ninguém e não implora socorro agüentase na sua chamada dor com uma dignidade de barão É Parece que estou mudando o modo de escrever Mas acontece que só escrevo o que quero não sou um profissional e preciso falar dessa nordestina senão sufoco Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela Escrevo em traços vivos e ríspidos de pintura Estarei lidando com fatos como se fossem as irremediáveis pedras de que falei Embora queira que para me animar sinos badalem enquanto adivinho a realidade E que anjos esvoacem em vespas transparentes em torno de minha cabeça quente porque esta quer se transformar em objetocoisa é mais fácil Será mesmo que a ação ultrapassa a palavra Mas que ao escrever que o nome real seja dado às coisas Cada coisa é uma palavra E quando não se a tem inventasea Esse vosso Deus que nos mandou inventar Porque escrevo Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo Escrevo portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de força maior como se diz nos requerimentos oficiais por força de lei Sim minha força está na solidão Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas pois eu também sou o escuro da noite Embora não agüente bem ouvir um assovio no escuro e passos Escuridão Lembrome de uma namorada era moçamulher e que escuridão dentro de seu corpo Nunca a esqueci jamais se esquece a pessoa com quem se dormiu O acontecimento fica tatuado em marca de fogo na carne viva e todos os que percebem o estigma fogem com horror Quero neste instante falar da nordestina É o seguinte ela como uma cadela vadia era teleguiada exclusivamente por si mesma Pois reduziase a si Também eu de fracasso em fracasso me reduzi a mim mas pelos menos quero encontrar o mundo e seu Deus 6 Quero acrescentar à guisa de informações sobre a jovem e sobre mim que vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje a eternidade é o estado das coisas neste momento E eis que fiquei receoso quando pus palavras sobre a nordestina E a pergunta é como escrevo Verifico que escrevo de ouvido assim como aprendi inglês e francês de ouvido Antecedentes meus do escrever Sou um homem que tem mais dinheiro que os que passam fome o que faz de mim de algum modo desonesto E só minto na hora exata da mentira Mas quando escrevo não minto Que mais Sim não tenho classe social marginalizado que sou A classe alta me tem como um monstro esquisito a média com desconfiança de que eu possa desequilibrála a classe baixa nunca vem a mim Não não é fácil escrever É duro como quebrar rochas Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça Sem falar que a história me desespera por ser simples demais O que me proponho a contar parece fácil e à mão de todos Mas a sua elaboração é muito difícil Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo Com mãos de dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria lama De uma coisa tenho certeza essa narrativa mexerá com uma coisa delicada a criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu Cuidai dela porque meu poder é só mostrála para que vós a reconheçais na rua andando de leve por causa da esvoaçada magreza E se for triste a minha narrativa Depois na certa escreverei algo alegre embora alegre por quê Porque também sou um homem de hosanas e um dia quem sabe cantarei loas que não as dificuldades da nordestina Por enquanto quero andar nu ou em farrapos quero experimentar pelos menos uma vez a falta de gosto que dizem ter a história Comer a hóstia será sentir o insosso do mundo e banharse no não Isso será coragem minha a de abandonar sentimentos antigos já confortáveis Agora não é confortável para falar da moça tenho que não fazer a barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco só cochilar de pura exaustão sou um trabalhador manual Além de vestirme com roupa velha rasgada Tudo isso para me pôr ao nível da nordestina Sabendo no entanto que talvez eu tivesse que me apresentar de modo convincente às sociedades que muito reclamam de quem está neste instante mesmo batendo à máquina Tudo isso sim a história é história Mas sabendo antes para nunca esquecer que a palavra é fruto da palavra A palavra tem que se parecer com a palavra Atingila é o meu primeiro dever para comigo E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã tem que ser apenas ela Bem é verdade que também queria alcançar uma sensação fina e que esse finíssimo não se quebrasse em linha perpétua Ao mesmo tempo que quero também alcançar o trombone mais grosso e baixo grave e terra tão a troco de nada que por nervosismo de escrever eu tivesse um acesso incontrolável de riso vindo do peito E quero aceitar minha liberdade sem pensar o que muito acham que existir é coisa de doido caso de loucura Porque parece Existir não é lógico A ação desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto Sim e talvez alcance a flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó Mas voltemos a hoje Porque como se sabe hoje é hoje Não estão me entendendo e eu ouço escuro que estão rindo de mim em risos rápidos e ríspidos de velhos E ouço passos cadenciados na rua Tenho um arrepio de medo Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim Tenho é que me copiar com uma delicadeza de borboleta branca Essa idéia de borboleta branca vem de que se a moça vier a se casar casarseá magra e leve e como virgem de branco Ou não se casará O fato é que tenho nas minhas mãos um destino e no entanto não me 7 sinto com o poder de livremente inventar sigo uma oculta linha fatal Sou obrigado a procurar uma verdade que me ultrapassa Por que escrevo sobre uma jovem que nem pobreza enfeitada tem Talvez porque nela haja um recolhimento e também porque na pobreza de corpo e espírito eu toco na santidade eu que quero sentir o sopro do meu além Para ser mais do que eu pois tão pouco sou Escrevo por não ter nada a fazer no mundo sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse sempre a novidade que é escrever eu morreria simbolicamente todos os dias Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos Experimentei quase tudo inclusive a paixão e o seu desespero E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui Pareço conhecer nos menores detalhes essa nordestina pois se vivo com ela E com muito adivinhei a seu respeito ela se me grudou na pele qual melado pegajoso ou lama negra Quando eu era menino li a história de um velho que estava com medo de atravessar um rio E foi quando apareceu um homem jovem que também queria passar para a outra margem O velho aproveitou e disse Me leva também Eu bem montado nos teus ombros O moço consentiu e passada a travessia avisoulhe Já chegamos agora pode descer Mas aí o velho respondeu muito sonso e sabido Ah essa não É tão bom estar aqui montado como estou que nunca mais vou sair de você Pois a datilógrafa não quer sair dos meus ombros Logo eu que constato que a pobreza é feia e promíscua Por isso não sei se minha história vai ser ser o quê Não sei de nada ainda não me animei a escrevêla Terá acontecimentos Terá Mas quais Também não sei Não estou tentando criar em vós uma expectativa aflita e voraz é que realmente não sei o que me espera tenho um personagem buliçoso nas mãos e que me escapa a cada instante querendo que eu o recupere Esqueci de dizer que tudo o que estou agora escrevendo é acompanhado pelo rufar enfático de um tambor batido por um soldado No instante mesmo em que eu começar a história de súbito cessará o tambor Vejo a nordestina se olhando ao espelho e um rufar de tambor no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo Tanto nós nos intertrocamos Não há dúvida que ela é uma pessoa física E adianto um fato tratase de moça que nunca se viu nua porque tinha vergonha Vergonha por pudor ou por ser feia Perguntome também como é que eu vou cair de quatro em fatos e fatos É que de repente o figurativo me fascinou crio a ação humana e estremeço Também quero o figurativo assim como um pintor que só pintasse cores abstratas quisesse mostrar que o fazia por gosto e não por não saber desenhar Para desenhar a moça tenho que me domar e para poder captar sua alma tenho que me alimentar frugalmente de frutas e beber vinho branco gelado pois faz calor neste cubículo onde me tranquei e de onde tenho a veleidade de querer ver o mundo Também tive que me abster de sexo e de futebol Sem falar que não entro em contacto com ninguém Voltarei algum dia à minha vida anterior Duvido muito Vejo agora que esqueci de dizer que por enquanto nada leio para não contaminar com luxos a simplicidade de minha linguagem Pois como eu disse a palavra tem que se parecer com a palavra instrumento meu Ou não sou um escritor Na verdade sou mais ator porque com apenas um modo de pontuar faço malabarismos de entonação obrigo o respirar alheio a me acompanhar o texto Também esqueci de dizer que o registro que em breve vai ter que começar pois já não agüento mais a pressão dos fatos o registro que em breve vai ter que começar é 8 escrito sob o patrocínio do refrigerante mais popular do mundo e que nem por isso me paga nada refrigerante esse espalhado por todos os países Alias foi ele quem patrocinou o último terremoto em Guatemala Apesar de ter gosto do cheiro de esmalte de unhas de sabão Aristolino e plástico mastigado Tudo isso não impede que todos o amem com servilidade e subserviência Também porque e vou dizer agora uma coisa difícil que só eu entendo porque essa bebida que tem coca é hoje Ela é um meio da pessoa atualizarse e pisar na hora presente Quanto à moça ela vive num limbo impessoal sem alcançar o pior nem melhor Ela somente vive inspirando e expirando inspirando e expirando Na verdade para que mais que isso O seu viver é ralo Sim Mas por que estou me sentindo culpado E procurando aliviarme do peso de nada ter feito de concreto em benefício da moça Moça essa e vejo que já estou quase na história moça essa que dormia de combinação de brim com manchas bastante suspeitas de sangue pálido Para adormecer nas frígidas noites de inverno enroscavase em si mesma recebendose e dandose o próprio parco calor Dormia de boca aberta por causa do nariz entupido dormia exausta dormia até o nunca Devo acrescentar um algo que importa muito para a apreensão da narrativa é que esta é acompanhada do princípio ao fim por uma levíssima e constante dor de dentes coisa de dentina exposta Afianço também que a história será igualmente acompanhada pelo violino plangente tocado por um homem magro bem na esquina A sua cara é estreita e amarela como se ela já tivesse morrido E talvez tenha Tudo isso eu disse tão longamente por medo de ter prometido demais e dar apenas o simples e o pouco Pois esta história é quase nada O jeito pe começar de repente assim como eu me lanço de repente na água gélida do mar modo de enfrentar com uma coragem suicida o intenso frio Vou agora começar pelo meio dizendo que que ela era incompetente Incompetente para a vida Faltavalhe o jeito de se ajeitar Só vagamente tomava conhecimento da espécie que tinha de si em si mesma Se fosse criatura que se exprimisse diria o mundo é fora de mim eu sou fora de mim Vai ser difícil escrever esta historia Apesar de eu não ter nada a ver com a moça terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus Os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro É o sussurro que me impressiona Faltavalhe o jeito de se ajeitar Tanto que explosão nada argumentou em seu próprio favor quando o chefe da firma de representante de roldanas avisoulhe com brutalidade brutalidade essa que ela parecia provocar com sua cara de tola rosto que pedia tapa com brutalidade que só ia manter no emprego Glória sua colega porque quanto a ela errava demais na datilografia além de sujar invariavelmente o papel Isso disse ele Quanto à moça achou que se deve por respeito responder alguma coisa e falou cerimoniosamente a seu escondidamente amado chefe Me desculpe o aborrecimento O senhor Raimundo Silveira que a essa altura já lhe havia virado as costas voltouse um pouco surpreendido com a inesperada delicadeza e alguma coisa na cara quase sorridente da datilógrafa o fez dizer com menos grosseria na voz embora a contragosto Bem a despedida pode não ser para já é capaz até de demorar um pouco Depois de receber o aviso foi ao banheiro para ficar sozinha porque estava toda atordoada Olhouse maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e rachada cheia de cabelos o que tanto combinava com sua vida Pareceulhe que o espelho baço e escurecido não refletia imagem algum Sumira por acaso a sua existência física Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara todo deformada pelo espelho ordinário o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de papelão Olhouse e levemente pensou tão jovem e já com ferrugem Há os que têm E há os que não têm É muito simples a moça não tinha Não tinha o quê É apenas isso mesmo não tinha Se der para me entenderem está bem Se não 9 também está bem Mas por que trato dessa moça quando o que mais desejo é trigo puramente maduro e ouro no estio Quando era pequena sua tia para castigála com medo disseralhe que homem vampiro aquele que chupa sangue da pessoa mordendolhe o tenro da garganta não tinha reflexo no espelho Até que não seria de todo ruim ser vampiro pois bem lhe iria algum rosado de sangue no amarelado do rosto ela que não parecia ter sangue a menos que viesse um dia a derramálo A moça tinha ombros curvos como os de uma cerzideira Aprendera em pequena a cerzir Ela se realizaria muito mais se se desse ao delicado labor de restaurar fios quem sabe se de seda Ou de luxo cetim bem brilhoso um beijo de almas Cerzideirinha mosquito Carregar em costas de formiga um grão de açúcar Ela era de leve como uma idiota só que não o era Não sabia que era infeliz É porque ela acredita Em quê Em vós mas não é preciso acreditar em alguém ou em alguma coisa basta acreditar Isso lhe dava às vezes estado de graça Nunca perdera a fé Ela me incomoda tanto que fiquei oco Estou oco desta moça E ela tanto mais me incomoda quanto menos reclama Estou com raiva Uma cólera de derrubar copos e pratos e quebrar vidraças Como me vingar Ou melhor como me compensar Já sei amando meu cão que tem mais comida do que a moça Por que ela não reage Cadê um pouco de fibra Não ela é doce obediente Viu ainda dois olhos enormes redondos saltados e interrogativos tinha olhar de quem tem uma asa ferida distúrbio talvez de tiróide olhos que perguntavam A quem interrogava ela A Deus Ela não pensava em Deus Deus não pensava nela Deus é de quem conseguir pegálo Na distração aparece Deus Não fazia perguntas Adivinhava que não há respostas Era lá tola de perguntar E de receber um não na cara Talvez a pergunta vazia fosse apenas para que um dia alguém não viesse a dizer que ela nem ao menos havia perguntado Por falta de que lhe respondesse ela mesma parecia se ter respondido é assim porque é assim Existe no mundo outra resposta Se alguém sabe de uma melhor que se apresente e a diga estou há anos esperando Enquanto isso as nuvens são brancas e o céu é todo azul Para que tanto Deus Por que não um pouco para os homens Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de um nãoseio quê com ar de se desculpar por ocupar espaço No espelho distraidamente examinou de perto as manchas no rosto Em Alagoas chamavamse panos diziam que vinham do fígado Disfarçava os panos com grossa camada de pó branco e se ficava meio caiada era melhor que o pardacento Ela toda era um pouco encardida pois raramente se lavava De dia usava saia e blusa de noite dormia de combinação Uma colega de quarto não sabia como avisarlhe que seu cheiro era morrinhento E como não sabia ficou por isso mesmo pois tinha medo de ofendela Nada nela era iridescente embora a pele do rosto entre as manchas tivesse um leve brilho de opala Mas não importava Ninguém olhava para ela na rua ela era café frio E assim se passava o tempo para a moça esta Assoava o nariz na barra da combinação Não tinha aquela coisa delicada que se chama encanto Só eu a vejo encantadora Sé eu seu autor a amo Sofro por ela E só eu é que posso dizer assim que é que você me pede chorando que não lhe dê cantando Essa moça não sabia que ela era o que era assim como um cachorro não sabe que é cachorro Daí não se sentir infeliz A única coisa que queria era viver Não sabia para quê não se indagava Quem sabe achava que havia uma gloriazinha em viver Ela pensava que a pessoa é obrigada a ser feliz Então era Antes de nascer ela era uma idéia Antes de nascer ela era morta E depois de nascer ela ia morrer Mas que fina talhada de melancia Há poucos fatos a narrar e eu mesmo não sei ainda o que estou denunciando Agora explosão em rapidíssimos traços desenharei a vida pregressa da moça até o momento de espelho do banheiro Nascera inteiramente raquítica herança do sertão os maus antecedentes de que falei Com dois anos de idade lhe haviam morrido os pais de febres ruins no sertão de 10 Alagoas lá onde o diabo perdera as botas Muito depois fora para Maceió com a tia beata única parenta sua no mundo Uma outra vez se lembrava de coisa esquecida Por exemplo a tia lhe dando cascudos no alto da cabeça porque o cocuruto de cabeça devia ser imaginava a tia um ponto vital Davalhe sempre com os nós dos dedos na cabeça de ossos fracos por falta de cálcio Batia mas não era somente porque ao bater gozava de grande prazer sensual a tia que não se casara por nojo é que também considerava de dever seu evitar que a menina viesse um dia a ser uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro aceso esperando homem Embora a menina não tivesse dado mostras de no futuro a ser vagabunda de rua Pois até mesmo o fato de vir a ser uma mulher não parecia pertencer à sua vocação A mulherice só lhe nasceria tarde porque até no capim vagabundo há desejo de sol As pancadas ela esquecia pois esperandose um pouco a dor termina por passar Mas o que doía mais era ser privada da sobremesa de todos os dias goiabada com queijo a única paixão na sua vida Pois não era que esse castigo se tornara o predileto da tia sabida A menina não perguntava por que era sempre castigada mas nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante de sua vida Esse nãosaber pode parecer ruim mas não é tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguém ensina cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome nascese e ficase logo sabendo Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer na certa morreria um dia como se antes tivesse estudado de cor a representação do papel de estrela Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes Quando era pequena tivera vontade intensa de criar um bicho Mas a tia achava que ter um bicho era mais uma boca para comer Então a menina inventou que só lhe cabia criar pulgas pois não merecia o amor de um cão Do contacto com a tia ficaralhe a cabeça baixa Mas a sua beatice não lhe pegara morta a tia ela nunca mais fora a uma igreja porque não sentia nada e as divindades lhe eram estranhas Pois a vida é assim apertase o botão e a vida acende Só que ela não sabia qual era o botão de acender Nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável Mas uma coisa descobriu inquieta já não sabia mais ter tido pai e mãe tinha esquecido o sabor E se pensava melhor dirseia que havia brotado da terra do sertão em cogumelo logo mofado Ela falava sim mas era extremamente muda Uma palavra dela eu às vezes consigo mas ela me foge por entre os dedos Apesar da morte da tia tinha certeza de que com ela ia ser diferente pois nunca ia morrer É paixão minha ser o outro No caso a outra Estremeço esquálido igual a ela O definível está me cansando um pouco Prefiro a verdade que há no prenúncio Quando eu me livrar dessa história voltarei ao domínio mais irresponsável de apenas ter leves prenúncios Eu não inventei essa moça Ela forçou de dentro de mim a sua exigência Ela não era nem de longe débil mental era à mercê e crente como uma idiota A moça que pelo menos comida não mendigava havia toda uma subclasse de gente mais perdida e com fome Só eu a amo Depois ignorase por quê tinham vindo para o Rio o inacreditável Rio de Janeiro a tia lhe arranjara emprego finalmente morrera e ela agora sozinha morava numa vaga de quarto compartilhado com mais quatro moças balconistas das Lojas Americanas O quarto ficava num velho sobrado colonial da áspera rua do Acre entre as prostitutas que serviam a marinheiros depósitos de carvão e de cimento em pó não longe do cais do porto O cais imundo davalhe saudade do futuro O que é que há Pois estou como que ouvindo acordes de piano alegre será isto o símbolo de que a vida da moça iria ter um futuro esplendoroso Estou contente com essa possibilidade e farei tudo para que esta se torne real Rua do Acre Mas que lugar Os gordos ratos da rua do Acre Lá é que não piso pois tenho horror sem nenhuma vergonha do pardo pedaço da vida imunda Uma vez por outra tinha a sorte de ouvir de madrugada um galo cantar a vida e ela se lembrava nostálgica do sertão Onde caberia um galo a cocoricar naquelas paragens 11 ressequidas de artigos por atacado de exportação e importação Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada sairá de si para ver como é às vezes o outro Se é pobre não estará me lendo porque lerme é superfulo para quem tem uma leve fome permanente Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia Bem sei que é assustador sair de si mesmo mas tudo o que é novo assusta Embora a moça anônima da história seja tão antiga que podia ser uma figura bíblica Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração Minto ela era capim Dos verões sufocantes da abafada rua do Acre ela só sentia o suor um suor que cheirava mal Esse suor me parece de má origem Não sei se estava tuberculosa acho que não No escuro da noite um homem assobiando e passos pesados o uivo do viralata abandonado Enquanto isso as constelações silenciosas e o espaço que é tempo que nada tem a ver com ela e conosco Pois assim se passavam os dias O cantar de galo na aurora sanguinolenta dava um sentido fresco à sua vida murcha Havia de madrugada uma passarinhada buliçosa na rua do Acre é que a vida brotava no chão alegre por entre pedras Rua do Acre para morar rua do Lavradio para trabalhar cais do porto para ir espiar no domingo um ou outro prolongado apito de navio cargueiro que não se sabe por que dava aperto no coração um ou outro delicioso embora um pouco doloroso cantar de galo Era do nunca que vinha o galo Vinha do infinito até a sua cama dandolhe gratidão Sono superficial porque estava há quase um ano resfriada Tinha acesso de tosse seca de madrugada abafavaa com o travesseiro ralo Mas as companheiras do quarto Maria da Penha Maria Aparecida Maria José e Maria apenas não se incomodavam Estavam cansadas demais pelo trabalho que nem por ser anônimo era menos árduo Uma vendia pódearroz Coty mas que idéia Elas viravam para o outro lado e readormeciam A tosse da outra até que as embalava em sono mais profundo O céu é para baixo ou para cima Pensava a nordestina Deitada não sabia Às vezes antes de dormir sentia fome e ficava meio alucinada pensando em coxa de vaca O remédio então era mastigar papel bem mastigadinho e engolir É Eu me acostumo mas não amanso Por Deus Eu me dou melhor com os bichos do que com gente Quando vejo o meu cavalo livre e solto no prado tenho vontade de encostar meu rosto no seu vigoroso e aveludado pescoço e contarlhe a minha vida E quando acaricio a cabeça de meu cão sei que ele não exige que eu faça sentido ou me explique Talvez a nordestina já tivesse chegado à conclusão de que a vida incomoda bastante alma que não cabe bem no corpo mesmo alma rala como a sua Imaginavazinha toda supersticiosa que se por acaso viesse alguma vez a sentir um gosto bem bom de viver se desencantaria de súbito de princesa que era e se transformaria em bicho rasteiro Porque por pior que fosse sua situação não queria ser privada de si ela queria ser ela mesma Achava que cairia em grave castigo e até risco de morrer se tivesse gosto Então defendiase da morte por intermédio de um viver de menos gastando pouco de sua vida para esta não acabar Essa economia lhe dava alguma segurança pois quem cai do chão não passa Teria ela a sensação de que vivia para nada Nem posso saber mas acho que não Só uma vez se fez uma trágica pergunta Quem sou eu Assustouse tanto que parou completamente de pensar Mas eu que não chego a ser ela sinto que vivo para nada Sou gratuito e pago as contas de luz gás e telefone Quanto à ela até mesmo de vez em quando ao receber o salário comprava uma rosa Tudo isso acontece no ano este que passa e só acabarei esta história difícil quando eu ficar exausto da luta não sou um desertor Às vezes lembravase de uma assustadora canção desafinada de meninas brincando de roda de mãos dadas ela só ouvia sem participar porque a tia a queria para varrer o chão As meninas de cabelos ondulados com laços de fita corderosa Quero uma de vossas filhas de marrémarrédeci Escolhei a qual quiser marré A música era um fantasma pálido como uma rosa que é louca de beleza mas mortal pálida e mortal a moça era hoje o fantasma suave e terrificante de uma infância sem bola nem boneca 12 Então costumava fingir que corria pelos corredores de boneca na mão atrás de uma bola e rindo muito a gargalhada era aterrorizadora porque acontecia no passado e só a imaginação maléfica a trazia para o presente saudade do que poderia ter sido e não foi Eu bem avisei que era literatura de cordel embora eu me recuse a ter qualquer piedade Devo dizer que essa moça não tem consciência de mim se tivesse teria para quem rezar e seria a salvação Mas eu tenho plena consciência dela através dessa jovem dou o meu grito de horror à vida À vida que tanto amo Volto à moça o luxo que se dava era tomar um gole de café frio antes de dormir Pagava o luxo tendo azia ao acordar Ela era calada por não ter o que dizer mas gostava de ruídos Eram vida Enquanto o silêncio da noite assustava parecia que estava prestes a dizer uma palavra fatal Durante a noite na rua do Acre era raro passar um carro quanto mais buzinassem melhor para ela Além desses medos como se não bastassem tinha medo grande de pegar doença ruim lá embaixo dela isso a tia lhe ensinara Embora os seus pequenos óvulos tão murchos Tão tão Mas vivia em tanta mesmice que de noite não se lembrava do que acontecera de manha Vagamente pensava de muito longe e sem palavras o seguinte já que sou o jeito é ser Os galos de que falai avisavam mais um repetido dia de cansaço Cantavam o cansaço E as galinhas que faziam elas Indagavase a moça Os galos pelo menos cantavam Por falar em galinha a moça às vezes comia num botequim um ovo duro Mas a tia lhe ensinara que comer ovo fazia mal para o fígado Sendo assim obediente adoecia sentindo dores do lado esquerdo oposto ao fígado Pois era muito impressionável e acreditava em tudo o que existia e no que não existia também Mas não sabia enfeitar a realidade Para ela a realidade era demais para ser acreditada Aliás a palavra realidade não lhe dizia nada Nem a mim por Deus Quando dormia quase que sonhava que a tia lhe batia na cabeça Ou sonhava estranhamente em sexo ela que de aparência era assexuada Quando acordava se sentia culpada sem saber por quê talvez porque o que é bom devia ser proibido Culpada e contente Por via das dúvidas se sentia de propósito culpada e rezava mecanicamente três avemarias amém amém amém Rezava mas sem Deus ela não sabia quem era Ele e portanto Ele não existia Acabo de descobrir que para ela fora Deus também a realidade era muito pouco Davase melhor com um irreal cotidiano vivia em câmara leeeenta lebre puuuuulando no aaar sobre os ooooouteiros o vago era o seu mundo terrestre o vago era o de dentro da natureza E achava bom ficar triste Não desesperada pois isso nunca ficara já que era tão modesta e simples mas aquela coisa indefinível como se ela fosse romântica Claro que era neurótica não há sequer necessidade de dizer Era uma neurose que a sustentava meu Deus pelo menos isso muletas Vez por outra ia para a Zona Sul e ficava olhando as vitrines faiscantes de jóias e roupas acetinadas só para se mortificar um pouco É que ela sentia falta de encontrarse consigo mesma e sofrer um pouco é um encontro Domingo ela acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada O pior momento de sua vida era nesse dia ao fim da tarde caía em meditação inquieta o vazio do seco domingo Suspirava Tinha saudade de quando era pequena farofa seca e pensava que fora feliz Na verdade por pior a infância é sempre encantada que susto Nunca se queixava de nada sabia que as coisas são assim mesmo e quem organizou a terra dos homens Na certa mereceria um dia o céu dos oblíquos onde só entra quem é torto Aliás não é entrar no céu é oblíquo na terra mesmo Juro que nada posso fazer por ela Afiançovos que se eu pudesse melhoraria as coisas Eu bem sei que dizer que a datilógrafa tem o corpo cariado é um dizer de brutalidade pior que qualquer palavrão Quanto a escrever mas vale um cachorro vivo Devo registrar aqui uma alegria É que a moça num aflitivo domingo sem farofa teve uma inesperada felicidade que era inexplicável no cais do porto viu um arcoíris Experimentando o leve êxtase ambicionou logo outro queria ver como uma vez em 13 Maceió espocarem mudos fogos de artifício Ela quis mais porque uma verdade que quando se dá a mão essa gentinha quer todo o resto o zépovinho sonha com fome de tudo E quer mas sem direito algum pois não é Não havia meio pelo menos eu não posso de obter os multiplicantes brilhos em chuva chuvisco dos fogos de artifício Devo dizer que ela era doida por soldado Pois era Quando via um pensava com estremecimento de prazer será que ele vai me matar Se a moça soubesse que minha alegria também vem de minha mais profundo tristeza e que tristeza era uma alegria falhada Sim ela era alegrezinha dentro de sua neurose Neurose de guerra E tinha um luxo além de uma vez por mês ir ao cinema pintava de vermelho grosseiramente escarlate as unhas das mãos Mas como as roia quase até o sabugo o vermelho berrante era logo desgastado e viase o sujo preto por baixo E quando acordava Quando acordava não sabia mais quem era Só depois é que pensava com satisfação sou datilógrafa e virgem e gosto de cocacola Só então vestia se de si mesma passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser Será que eu enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos Mas aí que está esta história não tem nenhuma técnica nem estilo ela é ao deusdará Eu que também não marcharia por nada deste mundo com palavras brilhantes e falsas uma vida parca como a da datilógrafa Durante o dia eu faço como todos gestos despercebidos por mim mesmo Pois um dos gestos mais despercebidos é esta história de que não tenho culpa e que sai como sair A datilógrafa vivia numa espécie de atordoado nimbo entre céu e inferno Nunca pensara em eu sou eu Acho que julgava não ter direito ela era um acaso Um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal Há milhares como ela Sim e que são apenas um acaso Pensando bem quem não é um acaso na vida Quanto a mim só me livro de ser apenas um acaso porque escrevo o que é um ato que é um fato É quando entro em contato forças interiores minhas encontro através de mim o vosso Deus Para que escrevo E eu sei Sei não Sim é verdade às vezes também penso que eu não sou eu pareço pertencer a uma galáxia longínqua de tão estranho que sou de mim Sou eu Espantome com o meu encontro A nordestina não acreditava na morte como eu já disse pensava que não pois não é que estava viva Esquecera os nomes da mãe e do pai nunca mencionados pela tia Com excesso de desenvoltura estou usando a palavra escrita e isso estremece em mim que fico com medo de me afastar da Ordem e cair no abismo povoado de gritos o Inferno da liberdade Mas continuarei Continuando Todas as madrugadas ligava o rádio emprestado por uma colega de moradia Maria da Penha ligava bem baixinho para não acordar as outras ligava invariavelmente para a Rádio Relógio que dava hora certa e cultura e nenhuma música só pingava em som gotas que caem cada gota de minuto que passava E sobretudo esse canal de rádio aproveitava intervalos entre as tais gotas de minuto para das anúncios comerciais ela adorava anúncios Era rádio perfeita pois também entre os pingos do tempo dava curtos ensinamentos dos quais talvez algum dia viesse a precisar saber Foi assim que aprendeu que o Imperador Carlos Magno era na terra dele chamado Carolus Verdade que nunca achara modo de aplicar essa informação Mas nunca se sabe quem espera sempre alcança Ouvira também a informação de que o único animal que não cruza com filho era o cavalo Isso moço é indecência disse ela para a rádio Outra vez ouvira Arrependete em Cristo e Ele te dará felicidade Então ela se arrependera Como não sabia bem de quê arrependiase toda e de tudo O pastor também falava que vingança é coisa infernal Então ela não se vingava Sim quem espera sempre alcança É Tinha o que se chama de vida interior e não sabia que tinha Vivia de si mesma como se comesse as próprias entranhas Quando ia ao trabalho parecia uma doida mansa porque ao correr do ônibus devaneava em altos e deslumbrantes sonhos Estes sonhos 14 de tanta interioridade eram vazios porque lhe faltava o núcleo essencial de uma prévia experiência de de êxtase digamos A maior parte do tempo tinha sem o saber o vazio que enche a alma dos santos Ela era santa Ao que parece Não sabia que meditava pois não sabia o que queria dizer a palavra Mas pareceme que sua vida era uma longa meditação sobre o nada Só que precisava dos outros para crer em si mesma senão se perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia nela Meditava enquanto batia à máquina e por isso errava ainda mais Mas tinha prazeres Nas frígidas noites ela toda estremecente sob o lençol de brim costumava ler à luz de vela os anúncios que recortava de jornais velhos do escritório Colavaos no álbum Havia um anúncio o mais precioso que mostrava em cores o pote aberto de um creme para pele de mulheres que simplesmente não eram ela Executando o fatal cacoete que pegara de piscar os olhos ficava só imaginando com delícia o creme era tão apetitoso que se tivesse dinheiro para compralo não seria boba Que pele que nada ela o comeria isso sim à colheradas no pote mesmo É que lhe faltava gordura e seu organismo estava seco que nem saco meio vazio de torrada esfarelada Tornarase com o tempo apenas matéria vivente em sua fonte primária Talvez fosse assim para se defender da grande tentação de ser infeliz de uma vez e ter pena de si Quando penso que eu podia ter nascido ela e por que não estremeço E parece me covarde fuga de eu não ser sinto culpa como disse num dos títulos Em todo caso o futuro parecia via a ser muito melhor Pelos menos o futuro tinha a vantagem de não ser o presente Sempre há um melhor para o ruim Mas não havia nela miséria humana É que tinha em si mesma uma certa flor fresca Pois por estranho que pareça ela acreditava Era apenas fina matéria orgânica Existia Só isto E eu De mim só se sabe o que respiro Embora só tivesse nela a pequena flama indispensável um sopro de vida Estou passando por um pequeno inferno com esta história Queiram os deuses que eu nunca descreva o lázaro porque senão eu me cobriria de lepra Se estou demorando um pouco em fazer acontecer o que já prevejo vagamente é porque preciso tirar vários retratos dessa alagoana E também porque se houver algum leitor para essa história quero que ele se embeba da jovem assim como um pano de chão todo encharcado A moça é uma verdade da qual eu não queria saber Não sei a quem acusar mas deve haver um réu Será que entrando na semente de sua vida estarei como que violando o segredo dos faraós Terei castigo de morte por falar de uma vida que contém como todas um segredo inviolável Estou procurando danadamente achar nessa existência pelos menos um topázio de esplendor Até o fim talvez o deslumbre ainda não sei mas tenho esperança Esqueci de dizer que às vezes a datilógrafa tinha enjôo para comer Isso vinha desde pequena quando soubera que havia comido gato frito Assustouse para sempre Perdeu o apetite só tinha grande fome Parecialhe que havia cometido um crime e que comera um anjo e porque acreditava eles existiam Nunca havia jantado ou almoçado num restaurante Era de pé mesmo no botequim da esquina Tinha uma vaga idéia que mulher que entra em restaurante é francesa e desfrutável Havia coisas que não sabia o que significava Uma era efeméride E não é que Seu Raimundo só mandava copiar com sua letra linda a palavra efemérides ou efeméricas Achava o termo efemírides absolutamente misterioso Quando copiava prestava atenção a cada letra Glória era estenografa e não só ganhava mais como não parecia se atrapalhar com as palavras difíceis das quais o chefe tanto gostava Enquanto isso a mocinha se apaixonara pela palavra efemérides Outro retrato nunca recebera presentes Aliás não precisava de muita coisa Mas um dia viu algo que por um leve instante cobiçou um livro que Seu Raimundo dado a literatura deixara sobre a mesa O título era Humilhados e Ofendidos Ficou pensativa Talvez tivesse pela primeira vez se definido numa classe social Pensou pensou e pensou Chegou à conclusão que na verdade ninguém jamais a ofendera tudo que 15 acontecia era porque as coisas são assim mesmo e não havia luta possível para que lutar Pergunto eu conheceria ela algum dia do amor o seu adeus Conheceria algum do amor os seus desmaios Teria a seu modo o doce vôo De nada sei Que se há de fazer com a verdade de que todo mundo é um pouco triste e um pouco só A nordestina se perdia na multidão Na praça Mauá onde tomava o ônibus fazia frio e nenhum agasalho havia contra o vento Ah mas existiam os navios cargueiros que lhe davam saudades quem sabe de quê Isso só às vezes Na verdade saía do escritório sombrio defrontava o ar lá de fora crepuscular e constatava então que todos os dias à mesma hora fazia exatamente a mesma hora Irremediavelmente era o grande relógio que funcionava no tempo Sim desesperadamente para mim as mesmas horas Bem e daí Daí nada Quanto a mim autor de uma vida me dou mal com a repetição a rotina me afasta de minhas possíveis novidades Por falar em novidades a moça um dia viu num botequim um homem tão tão tão bonito que que queria têlo em casa Deveria ser como como ter uma grande esmeraldaesmeraldaesmeralda num estojo aberto Intocável Pela aliança viu que ele era casado Como casar comcomcom um ser que era paraparapara ser visto gaguejava ela no seu pensamento Morreria de vergonha de comer na frente dele porque ele era bonito além do possível equilíbrio de uma pessoa Pois não é que quis descansar as costas por um dia Sabia que se falasse isso ao chefe ele não acreditaria que lhe doíam as costelas Então valeuse de uma mentira que convence mais que a verdade disse ao chefe que no dia seguinte não poderia trabalhar porque arrancar um dente era muito perigoso E a mentira pegou Às vezes só a mentira salva Então no dia seguinte quando as quatro Marias cansadas foram trabalhar ela teve pela primeira vez na vida uma coisa a mais preciosa a solidão Tinha um quarto só para ela Mal acreditava que usufruía o espaço E nem uma palavra era ouvida Então dançou num ato de absoluta coragem pois a tia não a entenderia Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se tornava livre Usufruía de tudo da arduamente conseguida solidão do rádio de pilha tocando o mais alto possível da vastidão do quarto sem as Marias Arrumou como pedido de favor um pouco de café solúvel com a dona dos quartos e ainda como favor pediulhe água fervendo tomou tudo se lambendo e diante do espelho para nada perder de si mesma Encontrarse consigo própria era um bem que ela até então não conhecia Acho que nunca fui tão contente na vida pensou Não devia nada a ninguém e ninguém lhe devia nada Até deuse ao luxo de ter tédio um tédio até muito distinto Desconfio um pouco de sua facilidade inesperada de pedir favor Então precisava ela de condições especiais para ter encanto Por que não agia sempre assim na vida E até verse no espelho não foi tão assustador estava contente mas como doía Ah mês de maio não me largues nunca mais Explosão foi a sua íntima exclamação no dia seguinte 7 de maio ela que nunca exclamava Provavelmente porque alguma coisa finalmente lhe era dada Dada por si mesma mas dada Nesta manhã de dia 7 o êxtase inesperado para o seu tamanho pequeno corpo A luz aberta e rebrilhante das ruas atravessava a sua opacidade Maio mês dos véus de noiva flutuando em branco O que se segue é apenas uma tentativa de reproduzir três páginas que escrevi e que a minha cozinheira vendoas soltas jogou no lixo para o meu desespero que os mortos me ajudem a suportar o quase insuportável já que de nada me valem os vivos Nem de longe consegui igualar a tentativa de repetição artificial do que originalmente eu escrevi sobre o encontro com o seu futuro namorado É com humildade que contarei agora a história da história Portanto se me perguntarem como foi direi não sei perdi o encontro Maio mês das borboletas noivas flutuando em brancos véus Sua exclamação talvez tivesse sido um prenúncio do que ia acontecer no final da tarde desse mesmo dia no meio da chuva abundante encontrou explosão a primeira espécie de namorado de 16 sua vida o coração batendo como se ela tivesse englutido um passarinho esvoaçante e preso O rapaz e ela se olharam por entre a chuva e se reconheceram como dois nordestinos bichos da mesma espécie que se farejam Ele a olhara enxugando o rosto molhado com as mãos E a moça bastoulhe vêlo para tornálo imediatamente sua goiabadacomqueijo Ele Ele se aproximou e com a voz cantante de nordestino que a emocionou perguntoulhe E se me desculpe senhorita posso convidar a passear Sim respondeu atabalhoadamente com a pressa antes que ele mudasse de idéia E se me permite qual é mesmo a sua graça Macabéa Maca o quê Bea foi ela obrigada a completar Me desculpe mas até parece doença doença de pele Eu também acho esquisito mas minha mãe botou ele por promessa a Nossa Senhora da Boa Morte se vingasse até um ano de idade eu não era chamada não tinha nome eu preferia continuar a nunca ser chamada em vez de ter um nome que ninguém tem mas parece que deu certo parou um instante retomando o fôlego perdido e acrescentou desanimada e com pudor pois como o senhor vê eu vinguei pois é Também no sertão da Paraíba promessa é questão de grande dívida de honra Eles não sabiam como se passeia Andaram sob a chuva grossa e pararam diante da vitrine de uma loja de ferragem onde estavam expostos atrás do vidro canos latas parafusos grandes e pregos E Macabéa com medo de que o silêncio já significasse uma ruptura disse ao recémnamorado Eu gosto tanto de parafuso e prego e o senhor Da segunda vez em que se encontraram caía uma chuva fininha que ensopava os ossos Sem nem ao menos se darem as mãos caminhavam na chuva que na cara de Macabéa parecia lágrimas escorrendo Da terceira vez em que se encontraram pois não é que estava chovendo o rapaz irritado e perdendo o leve verniz de finura que o padrasto a custo lhe ensinara disselhe Você também só sabe é mesmo chover Desculpe Mas ela já o amava tanto que não sabia mais como se livrar dele estava em desespero de amor Numa das vezes em que se encontraram ela afinal perguntoulhe o nome Olímpico de Jesus Moreira Chaves mentiu ele porque tinha como sobrenome apenas o de Jesus sobrenome dos que têm pai Fora criado por um padrasto que lhe ensinara o modo fino de tratar pessoas para se aproveitar delas e lhe ensinara como pegar mulher Eu não entendo o seu nome disse ela Olímpico Macabéa fingia enorme curiosidade escondendo dele que ela nunca entendia tudo muito bem e que isso era assim mesmo Mas ele galinho de briga que era arrepiouse todo com a pergunta tola e que ele não sabia responder Disse aborrecido Eu sei mas não quero dizer Não faz mal não faz mal não faz mal a gente não precisa entender o nome Ela sabia o que era o desejo embora não soubesse que sabia Era assim ficava faminta mas não de comida era um gosto meio doloroso que subia do baixoventre e arrepiava o bico dos seios e os braços vazios sem abraço Tornavase toda dramática e viver doía Ficava então meio nervosa e Glória lhe dava água com açúcar 17 Olímpico de Jesus trabalhava de operário numa metalúrgica e ela nem notou que ele não se chamava de operário e sim de metalúrgico Macabéa ficava contente com a posição social dele porque também tinha orgulho de ser datilógrafa embora ganhasse menos que o salário mínimo Mas ela e Olímpico eram alguém no mundo Metalúrgico e datilógrafa formavam um casal de classe A tarefa de Olímpico tinha o gosto que se sente quando se fuma um cigarro acendendoo do lado errado na ponta da cortiça O trabalho consistia em pegar barras de metal que vinham deslizando de cima da máquina para colocálas embaixo sobre uma placa deslizante Nunca se perguntara por que colocava a barra embaixo A vida não lhe era má e ele até economizava um pouco de dinheiro dormia de graça numa guarita em obras de demolição por camaradagem do vigia Macabéa disse As boas maneiras são a melhor herança Pois para mim a melhor herança é mesmo muito dinheiro Mas um dia vou ser muito rico disse ele que tinha uma grandeza demoníaca a sua força sangrava Uma coisa que tinha vontade de ser era toureiro Uma vez fora ao cinema e estremecera da cabeça aos pés quando vira a capa vermelha Não tinha pena do touro Gostava era de ver sangue No Nordeste tinha juntado salários e salários para arrancar um canino perfeito e trocálo por um dente de ouro faiscante Este dente lhe dava posição na vida Aliás matar tinha feito dele homem com letra maiúscula Olímpico não tinha vergonha era o que se chamava no Nordeste de cabra safado Mas não sabia que era um artista nas horas de folga esculpia figuras de santo e eram tão bonitas que ele não as vendia Todos os detalhes ele punha e sem faltar ao respeito esculpia tudo do Menino Jesus Ele achava que o que é é mesmo e Cristo tinha sido além de santo um homem como ele embora sem dente de ouro Os negócios públicos interessavam Olímpico Ele adorava ouvir discursos Que tinha seus pensamentos isso lá tinha Acocoravase com o cigarro barato nas mãos e pensava Como na Paraíba ele se acocorava no chão o traseiro sentado no zero a meditar Ele dizia alto e sozinho Sou muito inteligente ainda vou ser deputado E não é que ele dava para fazer discurso Tinha o tom cantado e o palavreado seboso próprio para quem abre a boca e fala pedindo e ordenando os direitos do homem No futuro que eu não digo nesta história não é que ele terminou mesmo deputado E obrigando os outros a chamaremno de doutor Macabéa era na verdade uma figura medieval enquanto Olímpico de Jesus se julgava peçachave dessas que abrem qualquer porta Macabéa simplesmente não era técnica ela era só ela Não não quero ter sentimentalismo e portanto vou cortar o coitado implícito dessa moça Mas tenho que anotar que Macabéa nunca recebera uma carta em sua vida e o telefone do escritório só chamava o chefe e Glória Ela uma vez pediu a Olímpico que lhe telefonasse Ele disse Telefonar para ouvir as tuas bobagens Quando Olímpico lhe dissera que terminaria deputado pelo Estado da Paraíba ela ficou boquiaberta e pensou quando nos casarmos então serei uma deputada Não queria pois deputada parecia nome feio Como eu disse essa não é uma história de pensamentos Depois provavelmente voltarei para as inominadas sensações até sensações de Deus Mas a história de Macabéa tem que sair senão eu estouro As poucas conversas entre os namorados versavam sobre farinha carnedesol carneseca rapadura melado Pois esse era o passado de ambos e eles esqueciam o amargor da infância porque esta já que passou é sempre acredoce e dá até nostalgia Pareciam por demais irmãos coisa que só agora estou percebendo não dá para casar Mas eu não sei se eles sabiam disso Casariam ou não Ainda não sei só sei que eram de algum modo inocentes e pouca sombra faziam no chão Não menti agora vi tudo ele não era inocente coisa alguma apesar de ser uma 18 vítima geral do mundo Tinha descobri agora dentro de si a dura semente do mal gostava de se vingar este era o seu grande prazer e o que lhe dava força de vida Mais do que ela que não tinha anjo da guarda Enfim o que fosse acontecer aconteceria E por enquanto nada acontecia os dois não sabiam inventar acontecimentos Sentavamse no que é de graça banco de praça pública E ali acomodados nada os distinguia do resto do nada Para a grande glória de Deus Ele Pois é Ela Pois é o quê Ele Eu só disse pois é Ela Mas pois é o quê Ele Melhor mudar de conversa porque você não me entende Ela Entender o quê Ele Santa Virgem Macabéa vamos mudar de assunto e já Ela Falar então de quê Ele Por exemplo de você Ela Eu Ele Por que esse espanto Você não é gente Gente fala de gente Ela Desculpe mas não acho que sou muito gente Ele Mas todo mundo é gente meu Deus Ela É que não me habituei Ele Não se habituou com quê Ela Ah não sei explicar Ele E então Ela Então o quê Ele Olhe eu vou embora porque você é impossível Ela É que só sei ser impossível não sei mais nada Que é que eu faço para conseguir ser possível Ele Pare de falar porque você só diz besteira Diga o que é do teu agrado Ela Acho que não sei dizer Ele Não sabe o quê Ela Hein Ele Olhe até estou suspirando de agonia Vamos não falar em nada está bem Ela Sim está bem como você quiser Ele É você não tem solução Quanto a mim de tanto me chamarem eu virei eu No sertão da Paraíba não há quem não saiba quem é Olímpico E um dia o mundo todo vai saber de mim É Pois se eu estou dizendo Você não acredita Acredito sim acredito acredito não quero lhe ofender Em pequena ela vira uma casa pintada de rosa e branco com um quintal onde havia um poço com cacimba e tudo Era bom olhar para dentro Então seu ideal se transformara nisso em vir a ter um poço só para ela Mas não sabia como fazer e então perguntou a Olímpico Você sabe se a gente pode comprar um buraco Olhe você não reparou até agora não desconfiou que tudo que você pergunta não tem resposta Ela ficou de cabeça inclinada para o ombro assim como uma pomba fica triste Quando ele falava em ficar rico uma vez ela lhe disse Não será somente visão Vá para o inferno você só sabe desconfiar Eu só não digo palavrões grossos porque você é moçadonzela Cuidado com suas preocupações dizem que dá ferida no estômago Preocupações coisa nenhuma pois eu sei no certo que vou vencer Bem e você 19 tem preocupações Não não tenho nenhuma Acho que não preciso vencer na vida Foi a única vez em que falou de si própria para Olímpico de Jesus Estava habituada a se esquecer de si mesma Nunca quebrava seus hábitos tinha medo de inventar Você sabia que na Rádio Relógio disseram que um homem escreveu um livro chamado Alice no País das Maravilhas e que era também um matemático Falaram também em élgebra O que é que quer dizer élgebra Saber disso é coisa de fresco de homem que vira mulher Desculpe a palavra de eu ter dito fresco porque isso é palavrão para moça direita Nessa rádio eles dizem essa coisa de cultura e palavras difíceis por exemplo o que quer dizer eletrônico Silêncio Eu sei mas não quero dizer Eu gosto tanto de ouvir os pingos de minutos do tempo assim tictactictactic A rádio Relógio diz que dá a hora certa cultura e anúncios Que quer dizer cultura Cultura é cultura continuou ele emburrado Você também vive me encostando na parede É que muita coisa eu não entendo bem O que quer dizer renda per capita Ora é fácil é coisa de médico O que dizer rua Conde de Bonfim O que é que conde É príncipe Não contou que o roubara no mictório da fábrica o colega o tinha deixado na pia quando lavara as mãos Ninguém soube ele era um verdadeiro técnico em roubar não usava o relógio de pulso no trabalho Sabe o que mais eu aprendi Eles disseram que se devia ter alegria de viver Então eu tenho Eu também ouvi uma música linda eu até chorei Era samba Acho que era E cantada por um homem chamado Caruso que se diz que já morreu A voz era tão macia que até doía ouvir A música chamavase Una Furtiva Lacrima Não sei por que eles não disseram lágrima Una Furtiva Lacrima fora a única coisa belíssima na sua vida Enxugando as próprias lágrimas tentou cantar o que ouvira Mas a sua voz era crua e tão desafinada como ela mesma era Quando ouviu começara chorar Era a primeira vez que chorava não sabia que tinha tanta água nos olhos Chorava assoava o nariz sem saber mais por que chorava Não chorava por causa da vida que levava porque não tendo conhecido outros modos de viver aceitara que com ela era assim Mas também creio que chorava porque através da música adivinhava talvez que havia outros modos de sentir havia existências mais delicadas e até com um certo luxo de alma Muitas coisas sabia que não sabia entender Aristocracia significaria por acaso uma graça concedida Provavelmente Se é assim que assim seja O mergulho na vastidão do mundo musical que não carecia de se entender Seu coração disparara E junto de Olímpico ficou de repente corajosa e arrojandose no desconhecido de si mesma disse Eu acho que até sei cantar essa música Lálálálálá Você até parece uma muda cantando Voz de cana rachada Deve ser porque é a primeira vez que canto na vida Ela achava que lacrima em vez de lágrima era erro do homem da rádio Nunca lhe ocorrera a existência de outra língua e pensava que no Brasil se falava brasileiro Além dos cargueiros do mar nos domingos só tinha essa música O substrato último da música era a sua única vibração E o namoro continuava ralo Ele Depois que minha santa mãe morreu nada mais me prendia na Paraíba De que é que ela morreu De nada Acabouse a saúde dela Ele falava coisas grandes mas ela prestava atenção nas coisas insignificantes 20 como ela própria Assim registrou um portão enferrujado retorcido rangente e descascado que abria o caminho para uma série de casinhas iguais de vila Vira isso do ônibus A vila além do número 106 tinha uma plaqueta onde estava escrito o nome das casas Chamavase Nascer do Sol Bonito o nome que também augurava coisas boas Ela achava Olímpico muito sabedor das coisas Ele dizia o que ela nunca tinha ouvido Uma vez ele falou assim A cara é mais importante do que o corpo porque a cara mostra o que a pessoa está sentindo Você tem cara de quem comeu e não gostou não aprecio cara triste vê se muda e disse uma palavra difícil vê se muda de expressão Ela disse consternada Não sei como se faz outra cara Mas é só na cara que sou triste porque por dentro eu só até alegre É tão bom viver não é Claro Mas viver bem é coisa de privilegiado Eu sou um e você me vê magro e pequeno mas sou forte eu com um braço posso levantar você do chão Quer ver Não não os outros olham e vão maldar Magricela esquisita ninguém olha E lá foram para a esquina Macabéa estava muito feliz Realmente ele a levantou para o ar acima da própria cabeça Ela disse eufórica Deve ser assim viajar de avião É Mas de repente ele não agüentou o peso num só braço e ela caiu de cara na lama o nariz sangrando Mas era delicada e foi logo dizendo Não se incomode foi uma queda pequena Como não tinha lenço para limpar a lama e o sangue enxugou o rosto com a saia dizendo Você não olhe enquanto eu estiver me limpando por favor porque é proibido levantar a saia Mas ele emburrara de vez e não disse mais nenhuma palavra Passou vários dias sem procurála seu brio fora atingido Afinal terminou por voltar para ela Por motivos diferentes entraram num açougue Para ela o cheiro da carne crua era um perfume que a levitava toda como se tivesse comido Quanto a ele o que queria ver era o açougueiro e sua faca amolada Tinha inveja do açougueiro e também queria ser Meter a faca na carne o excitava Ambos saíram do açougue satisfeitos Embora ela se perguntasse que gosto terá esta carne E ele se perguntava como é que uma pessoa consegue ser açougueiro Qual era o segredo O pai de Glória trabalhava num açougue belíssimo Ela disse Eu vou ter tanta saudade de mim quando morrer Besteira morrese e morrese de uma vez Não foi o que minha tia me ensinou Que tua tia se dane Sabe o que eu mais queria na vida Pois era ser artista de cinema Só vou ao cinema no dia em que o chefe me paga Eu escolho cinema poeira sai mais barato Adoro as artistas Sabe que Marylin era toda corderosa E você tem cor de suja Nem tem rosto nem corpo para ser artista de cinema Você acha mesmo Tá na cara Não gosto de ver sangue no cinema Olhe sangue eu não posso mesmo ver porque me dá vontade de vomitar Vomitar ou chorar Até hoje com a graça de Deus nunca vomitei É dessa vaca não sai leite Pensar era tão difícil ela não sabia de que jeito se pensava Mas Olímpico não só pensava como usava palavreado fino Nunca esqueceria que no primeiro encontro ele a chamara de senhorinha ele fizera dela um alguém Como era um alguém comprou um batom corderosa O seu diálogo era sempre oco Davase conta longinquamente de que 21 nunca dissera uma palavra verdadeira E amor ela não chamava de amor chamava de nãoseioquê Olhe Macabéa Olhe o quê Não meu Deus não é olhe de ver é olhe como quando se quer que uma pessoa escute Está me escutando Tudinho tudinho Tudinho o quê meu Deus pois se eu ainda não falei Pois olhe vou lhe pagar um cafezinho no botequim Quer Pode ser pingado com leite Pode é o mesmo preço se for mais o resto você paga Macabéa não dava nenhuma despesa a Olímpico Só dessa vez quando lhe pagou um cafezinho pingado que ela encheu de açúcar quase a ponto de vomitar mas controlou se para não fazer vergonha O açúcar ela botou muito para aproveitar E uma vez os dois foram ao Jardim Zoológico ela pagando a própria entrada Teve muito espanto ao ver os bichos Tinha medo e não os entendia por que viviam Mas quando viu a massa compacta grossa preta e roliça do rinoceronte que se movia em câmara lenta teve tanto medo que se mijou toda O rinoceronte lhe pareceu um erro de Deus que me perdoe por favor sim Mas não pensara em Deus nenhum era apenas um modo de Com a graça de alguma divindade Olímpico nada percebeu e ela disse a ele Estou molhada porque me sentei no banco molhado E ele nada percebeu Ela rezou automaticamente em agradecimento Não era agradecimento a Deus só estava repetindo o que aprendera na infância A girafa é tão elegante não é Besteira bicho não é elegante Ela teve inveja da girafa que pairava tão longe no ar Tendo visto que seus comentários sobre bichos não agradavam Olímpico procurou outro assunto Na Rádio Relógio disseram uma palavra que achei meio esquisita mimetismo Olímpico olhoua desconfiado Isso é lá coisa para moça virgem falar E para que serve saber demais O Mangue está cheio de raparigas que fizeram perguntas demais Mangue é um bairro É lugar ruim só pra homem ir Você não vai entender mas eu vou lhe dizer uma coisa ainda se encontra mulher barata Você me custou pouco um cafezinho Não vou gastar mais nada com você está bem Ela pensou eu não mereço que ele me pague nada porque me mijei Depois da chuva do Jardim Zoológico Olímpico não foi mais o mesmo desembestara E sem notar que ele próprio era de poucas palavras como convém a um homem sério disselhe Mas puxa vida Você não abre o bico e nem tem assunto Então aflita ela lhe disse Olhe o Imperador Carlos Magno era chamado na terra dele de Carolus E você sabia que a mosca voa tão depressa que se voasse em linha reta ela ia passar pelo mundo todo em 28 dias Isso é mentira Não é não juro pela minha alma pura que aprendi isso na Rádio Relógio Pois não acredito Quero cair morta neste instante se estou mentindo Quero que meu pai e minha mãe fiquem no inferno se estou lhe enganando Vai ver que cai mesmo morta Escuta aqui você está fingindo que é idiota ou é idiota mesmo Não sei bem o que sou me acho um pouco de quê Quer dizer não sei bem quem eu sou Mas você sabe que se chama Macabéa pelo menos isso 22 É verdade Mas não sei o que está dentro do meu nome Só sei que eu nunca fui importante Pois fique sabendo que meu nome ainda será escrito nos jornais e sabido por todo o mundo Ela disse para Olímpico Sabe que na minha rua tem um galo que canta Por que é que você mente tanto Juro quero ver minha mãe cair morta se não é verdade Mas sua mãe já não morreu Ah é mesmo que coisa Mas e eu E eu que estou contando esta história que nunca me aconteceu e nem a ninguém que eu conheça Fico abismado por saber tanto a verdade Será que o meu ofício doloroso é o de adivinhar na carne a verdade que ninguém quer enxergar Se sei quase tudo de Macabéa é que já peguei uma vez de relance o olhar de uma nordestina amarelada Esse relance me deu ela de corpo inteiro Quanto ao paraibano na certa devo terlhe fotografado mentalmente a cara e quando se presta atenção espontânea e virgem de imposições quando se presta atenção a cara diz quase tudo E agora apagome de novo e volto para essas duas pessoas que por força das circunstancias eram seres meio abstratos Mas ainda não expliquei bem Olímpico Vinha do sertão da Paraíba e tinha uma resistência que provinha da paixão por sua terra braba e rachada pela seca Trouxera consigo comprada no mercado da Paraíba uma lata de vaselina perfumada e um pente como posse sua e exclusiva Besuntava o cabelo preto até encharcálo Não desconfiava que as cariocas tinham nojo daquela meladeira gordurosa Nascera crestado e duro que nem galho seco de árvore ou pedra ao sol Era mais passível de salvação que Macabéa pois não fora à toa que matara um homem desafeto seu nos cafundós do sertão o canivete comprido entrando molemole no fígado macio do sertanejo Guardava disso segredo absoluto o que lhe dava a força que um segredo dá Olímpico era macho de briga Mas fraquejava em relação a enterros às vezes ia três vezes por semana a enterro de desconhecidos cujos anúncios saíam nos jornais e sobretudo no O dia e seus olhos ficavam cheios de lágrimas Era uma fraqueza mas quem não tem a sua Semana em que não havia enterro era semana vazia desse homem que se era doido sabia muito bem o que queria De modo que não era doido coisa alguma Macabéa ao contrário de Olímpico era fruto do cruzamento de o quê com o quê Na verdade ela parecia ter nascido de uma idéia vaga qualquer dos pais famintos Olímpico pelo menos roubava sempre que podia e até do vigia de obras onde era sua dormida Ter matado e roubar faziam com que ele não fosse um simples acontecido qualquer davamlhe uma categoria faziam dele um homem com honra até lavada Ele também se salvava mais do que Macabéa porque tinha grande talento para desenhar rapidamente perfeitas caricaturas ridículas dos retratos de poderosos nos jornais Era a sua vingança Sua única bondade com Macabéa foi dizerlhe que arranjaria para ela emprego na metalúrgica quando fosse despedida Para ela a promessa fora um escândalo de alegria explosão porque na metalúrgica encontraria a sua única conexão atual com o mundo o próprio Olímpico Mas Macabéa de um modo geral não se preocupava com o próprio futuro ter futuro era luxo Ouvira na Rádio Relógio que havia sete bilhões de pessoas no mundo Ela se sentia perdida Mas com a tendência que tinha para ser feliz logo se consolou havia sete bilhões de pessoas para ajudála Macabéa gostava de filme de terror ou de musicais Tinha predileção por mulher enforcada ou que levava um tiro no coração Não sabia que ela própria era uma suicida embora nunca lhe tivesse ocorrido se matar É que a vida lhe era tão insossa que nem pão velho sem manteiga Enquanto Olímpico era um diabo premiado e vital e dele nasceriam filhos ele tinha o precioso sêmen E como já foi dito ou não foi dito Macabéa tinha ovários murchos como um cogumelo cozido Ah pudesse eu pegar Macabéa dar lhe um bom banho um prato de sopa um beijo na testa enquanto a cobria com um cobertor E fazer que quando ela acordasse encontrasse simplesmente o grande luxo de 23 viver Olímpico na verdade não mostrava satisfação nenhuma em namorar Macabéa é o que eu descubro agora Olímpico talvez visse que Macabéa não tinha força de raça era subproduto Mas quando ele viu a colega da Macabéa sentiu logo que ela tinha classe Glória possuía no sangue um bom vinho português e também era amaneirada no bamboleio do caminhar por causa do sangue africano escondido Apesar de branca tinha em si a força da mulatice Oxigenava em amareloovo os cabelos crespos cujas raízes estavam sempre pretas Mas mesmo oxigenada ela era loura o que significava um degrau a mais para Olímpico Além de ter uma grande vantagem que nordestino não podia desprezar É que Glória lhe dissera quando lhe fora apresentada por Macabéa sou carioca da gema Olímpico não entendeu o que significava da gema pois esta era uma gíria ainda do tempo de juventude do pai de Glória O fato de ser carioca tornavaa pertencente ao ambicionado clã do sul do país Vendoa ele logo adivinhou que apesar de feia Glória era bem alimentada E isso fazia dela material de boa qualidade Enquanto isso o namoro com Macabéa entrara em rotina morna se é que alguma vez haviam experimentado o quente Muitas vezes ele não aparecia no ponto do ônibus Mas pelo menos era um namorado E Macabéa só pensava no dia em que ele quisesse ficar noivo E casar Posteriormente de pesquisa em pesquisa ele soube que Glória tinha mãe pai é comida quente em hora certa Isso tornavaa de primeira qualidade Olímpico caiu em êxtase quando soube que o pai dela trabalhava num açougue Pelos quadris adivinhavase que seria boa parideira Enquanto Macabéa lhe pareceu ter em si mesma o seu próprio fim Esqueci de dizer que era realmente de se espantar que para corpo quase murcho de Macabéa tão vasto fosse o seu sopro de vida quase ilimitado e tão rico como o de uma donzela grávida engravidada por si mesma por partenogênese tinha sonhos esquizóides nos quais apareciam gigantescos animais antediluvianos como se ela tivesse vivido em épocas as mais remotas desta terra sangrenta Foi então explosão que se desmanchou de repente o namoro entre Olímpico e Macabéa Namoro talvez esquisito mas pelo menos parente de algum amor pálido Ele avisoulhe que encontrara outra moça é que esta era Glória Explosão Macabéa bem viu o que aconteceu com Olímpico e Glória os olhos de ambos se haviam beijado Diante da cara um pouco inexpressiva demais de Macabéa ele até que quis lhe dizer alguma gentileza suavizante na hora do adeus para sempre E ao se despedir lhe disse Você Macabéa é um cabelo na sopa Não dá vontade de comer Me desculpe se eu lhe ofendi mas sou sincero Você está ofendida Não não não Ah por favor quero ir embora Por favor me diga logo adeus É melhor eu não falar em felicidade ou infelicidade provoca aquela saudade desmaiada e lilás aquele perfume de violeta as águas geladas da maré mansa em espumas pela areia Eu não quero provocar porque dói Macabéa esqueci de dizer tinha uma infelicidade era sensual Como é que num corpo cariado como o dela cabia tanta lascívia sem que ela soubesse que tinha Mistério Havia no começo do namoro pedido a Olímpico um retratinho tamanho 3x4 onde ele saiu rindo para mostrar o canino de ouro e ela ficava tão excitada que rezava três painossos e duas avemarias para se acalmar Na hora em que Olímpico lhe dera o fora a reação dela explosão veio de repente inesperada pôsse sem mais nem menos a rir Ria por não ter se lembrado de chorar Surpreendido Olímpico sem entender deu gargalhadas Ficaram rindo os dois Aí ele teve uma intuição que finalmente era uma delicadeza perguntoulhe se ela estava rindo de nervoso Ela parou de rir e disse muito muito cansada Não sei não Macabéa entendeu uma coisa Glória era um estardalhaço de existir E tudo devia 24 ser porque Glória era gorda A gordura sempre fora o ideal secreto de Macabéa pois em Maceió ouvira um rapaz dizer para uma gorda que passava na rua a tua gordura é formosura A partir de então ambicionara ter carnes e foi quando fez o único pedido de sua vida Pediu que a tia lhe comprasse óleo de fígado de bacalhau Já então tinha tendência para anúncios A tia perguntaralhe você pensa lá que é filha de família querendo luxo Depois que Olímpico a despediu já que ela não era uma pessoa triste procurou continuar como se nada tivesse perdido Ela não sentiu desespero etc etc Também que é que ela podia fazer Pois ela era crônica E mesmo tristeza também era coisa de rico era para quem podia para quem não tinha o que fazer Tristeza era luxo Esqueci de dizer que no dia seguinte ao que ele lhe dera o fora ela teve uma idéia Já que ninguém lhe dava festa muito menos noivado daria uma festa para si mesma A festa consistiu em comprar sem necessidade um batom novo não corderosa como o que usava mas vermelho vivante No banheiro da firma pintou a boca toda e até fora dos contornos para que os seus lábios finos tivessem aquela coisa esquisita dos lábios de Marylin Monroe Depois de pintada ficou olhando no espelho a figura que por sua vez a olhava espantada Pois em vez de batom parecia que grosso sangue lhe tivesse brotado dos lábios por um soco em plena boca com quebradentes e rasgacarne pequena explosão Quando voltou para a sala de trabalho Glória riuse dela Você endoidou criatura Pintarse como uma endemoniada Você até parece mulher de soldado Sou moça virgem Não sou mulher de soldado e marinheiro Me desculpe eu perguntar ser feia dói Nunca pensei nisso acho que dói um pouquinho Mas eu lhe pergunto se você que é feia sente dor Eu não sou feia gritou Glória Depois tudo passou e Macabéa continuou a gostar de não pensar em nada Vazia vazia Como eu disse ela não tinha anjo da guarda Mas se arranjava como podia Quanto ao mais ela era quase impessoal Glória perguntoulhe Por que é que você me pede tanta aspirina Não estou reclamando embora isso custe dinheiro É para eu não me doer Como é que é Hein Você se dói Eu me dôo o tempo todo Aonde Dentro não sei explicar Aliás cada vez mais ela não se sabia explicar Transformarase em simplicidade orgânica E arrumara um jeito de achar nas coisas simples e honestas a graça de um pecado Gostava de sentir o tempo passar Embora não tivesse relógio ou por isso mesmo gozava o grande tempo Era supersônica de vida Ninguém percebia que ela ultrapassava com sua existência a barreira do som Para as pessoas outras ela não existia A sua única vantagem sobre os outros era saber engolir pílulas sem água assim a seco Glória que lhe dava aspirinas admiravaa muito o que dava a Macabéa um banho de calor gostoso no coração Glória advertiua Um dia a pílula te cola na parede da garganta que nem galinha de pescoço meio cortado correndo por aí Um dia teve um êxtase Foi diante de uma árvore tão grande que no tronco ela nunca poderia abraçala Mas apesar do êxtase ela não morava com Deus Rezava indiferentemente Sim Mas o misterioso Deus dos outros lhe dava às vezes um estado de graça Feliz feliz feliz Ela de alma quase voando E também vira o discovoador Tentara contar a Glória mas não tivera jeito não sabia falar e mesmo contar o quê O ar Não se conta tudo porque o tudo é um oco nada Às vezes a graça a pegava em pleno escritório Então ela ia ao banheiro para ficar sozinha De pé e sorrindo até passar pareceme que esse Deus era muito misericordioso 25 com ela davalhe o que lhe tirava Em pé pensando em nada os olhos moles Nem Glória era uma amiga só colega Glória roliça branca e morna Tinha um cheiro esquisito Porque não se lavava muito com certeza Oxigenava os pêlos das pernas cabeludas e das axilas que ela não raspava Olímpico será que ela é loura embaixo também Em relação a Macabéa Glória tinha um vago senso de maternidade Quando Macabéa lhe parecia murcha demais dizia E esse ar é por causa de Macabéa que nunca se irritava com ninguém arrepiavase com o hábito que Glória tinha de deixar a frase inacabada Glória usava uma forte águadecolônia de sândalo e Macabéa que tinha estômago delicado quase vomitava ao sentir o cheiro Nada dizia porque Glória era agora a sua conexão com o mundo Este mundo fora composto pela tia Glória o Seu Raimundo e Olímpico e de muito longe as moças com as quais repartia o quarto Em compensação se conectava com o retrato de Greta Garbo quando moça Para minha surpresa pois eu não imaginava Macabéa capaz de sentir o que diz um rosto como esse Greta Garbo pensava ela sem se explicar essa mulher deve ser a mulher mais importante do mundo Mas o que ela queria mesmo ser não era a altiva Greta Garbo cuja trágica sensualidade estava em pedestal solitário O que ela queria como eu já disse era parecer com Marylin Um dia em raro momento de confissão disse a Glória quem ela gostaria de ser E Glória caiu na gargalhada Logo ela Maca Vê se te manca Glória era toda contente consigo mesma davase grande valor Sabia que o sestro molengole de mulata uma pintinha marcada junto da boca só para dar uma gostosura e um buço forte que ela oxigenava Sua boca era loura Parecia até um bigode Era uma safadinha esperta mas tinha força de coração Penalizavase com Macabéa mas ela que se arranjasse quem mandava ser tola E Glória pensava não tenho nada a ver com ela Ninguém pode entrar no coração de ninguém Macabéa até que falava com Glória mas nunca de peito aberto Glória tinha um traseiro alegre e fumava cigarro mentolado para manter um hálito bom nos seus beijos internináveis com Olímpico Ela era muito satisfatona tinha tudo o que seu pouco anseio lhe dava E havia nela um desafio que se resumia em ninguém manda em mim Mas lá um dia pôsse a olhar e a olhar e a olhar Macabéa De repente não agüentou e com um sotaque levemente português disse Oh mulher não tens cara Tenho sim É porque sou achatada de nariz sou alagoana Digame uma coisa você pensa no teu futuro A pergunta ficou por isso mesmo pois a outra não soube responder Muito bem Voltemos a Olímpico Ele para impressionar Glória e cantar logo de galo comprou pimentamalagueta das brabas na feira dos nordestinos e para mostrar à nova namorada o durão que era mastigou em plena poupa a fruta do diabo Nem sequer tomou um copo de água para apagar o fogo nas entranhas O ardor quase intolerável no entanto o enrijeceu sem contar que Glória assustada passou a obedecêlo Ele pensou pois não é que sou um vencedor E agarrouse em Glória com a força de um zangão ela lhe daria mel de abelhas e carnes fartas Não se arrependeu um só instante de romper com Macabéa pois seu destino era o de subir para um dia entrar no mundo dos outros Ele tinha fome de ser outro No mundo de Glória por exemplo ele ia se locupletar o frágil machinho Deixaria enfim de ser o que sempre fora e que escondia até de si mesmo por vergonha de tal fraqueza é que desde menino na verdade não passava de um coração solitário pulsando com dificuldade no espaço O sertanejo é antes de tudo um paciente Eu o perdôo Glória querendo compensar o roubo do namorado da outra convidoua para tomar lanche da tarde domingo na sua casa Soprar depois de morder Ah que história banal mal agüento escrevêla 26 E lá pequena explosão Macabéa arregalou os olhos É que na suja desordem de uma terceira classe de burguesia havia no entanto o morno conforto de quem gasta todo o dinheiro em comida no subúrbio comiase muito Glória morava na rua General nãoseio quê muito contente de morar em rua de militar sentiase mais garantida Em sua casa até telefone tinha Foi talvez essa uma das poucas vezes em que Macabéa viu que não havia lugar no mundo e exatamente porque Glória tanto lhe dava Isto é um farto copo de grosso chocolate de verdade misturado com leite e muitas espécies de roscas açucaradas sem falar num pequeno bolo Macabéa enquanto Glória saía da sala roubou escondido um biscoito Depois pediu perdão ao Ser abstrato que dava e tirava Sentiuse perdoada O Ser a perdoava de tudo No dia seguinte segundafeira não sei se por causa do fígado atingido pelo chocolate ou por causa de nervosismo de beber coisa de rico passou mal Mas teimosa não vomitou para não desperdiçar o luxo do chocolate Dias depois recebendo o salário teve a audácia de pela primeira vez na vida explosão procurar o médico barato indicado por Glória Ele a examinou a examinou e de novo a examinou Você faz regime para emagrecer menina Macabéa não soube o que responder O que é que você come Cachorroquente Só Às vezes como sanduíche de mortadela Que é que você bebe Leite Só café e refrigerante Que refrigerante perguntou ele sem saber o que falar A toa indagou Você às vezes tem crise de vômito Ah nunca exclamou muito espantada pois não era doída de desperdiçar comida como eu disse O médico olhoua e bem sabia que ela não fazia regime para emagrecer Mas era lhe mais cômodo insistir em dizer que não fizesse dieta de emagrecimento Sabia que era assim mesmo e que era médico de pobres Foi o que disse enquanto lhe receitava um tônico que ela depois nem comprou achava que ir ao médico por si só já curava Ele acrescentou irritado sem atinar com o porquê de sua súbita irritação e revolta Essa história de regime de cachorroquente é pura neurose e o que está precisando é procurar um psicanalista Ela nada entendeu mas pensou que o médico esperava que ela sorrisse Então sorriu O médico muito gordo e suado tinha tique nervoso que o fazia de quando em quando ritmadamente repuxar os lábios O resultado era parecer que estava fazendo beicinho de bebê quando está prestes a chorar Esse médico não tinha objetivo nenhum A medida era apenas para ganhar dinheiro e nunca por amor á profissão nem a doentes Era desatento e achava a pobreza uma coisa feia Trabalhava para os pobres detestando lidar com eles Eles eram para ele o rebotalho de uma sociedade muito alta á qual também ele não pertencia Sabia que estava desatualizado na medicina e nas novidades clínicas mas para pobre servia O seu sonho era ter dinheiro para fazer exatamente o que queria nada Quando ele avisara que ia examinála ela disse Ouvi dizer que no médico se tira a roupa mas eu não tiro coisa nenhuma Passaraa pelo raio X e dissera Você está com começo de tuberculose pulmonar Ela não sabia se isso era coisa boa ou coisa ruim Bem como era uma pessoa muito educada disse Muito obrigada sim O médico simplesmente se negou a ter piedade E acrescentou quando você não souber o que comer faça um espaguete bem italiano 27 E acrescentou com um mínimo de bondade a que ele se permitia já que se considerava também injustiçado pela sorte Não é tão caro assim Esse nome de comida que o senhor falou eu nunca comi na vida É bom Claro que é Olhe só a minha barriga Isso é resultado de boas macarronadas e muita cerveja Dispense a cerveja é melhor não beber álcool Ela repetiu cansada Álcool Sabe de uma coisa Vá para os raios que te partam Sim estou apaixonado por Macabéa a minha querida Maca apaixonado pela sua feiúra e anonimato total pois ela não é para ninguém Apaixonado por seus pulmões frágeis a magricela Quisera eu tanto que ela abrisse a boca e dissesse Eu sou sozinha no mundo e não acredito em ninguém todos mentem às vezes até na hora do amor eu não acho que um ser fale com o outro a verdade só me vem quando estou sozinha Maca porém jamais disse frases em primeiro lugar por ser de parca palavra E acontece que não tinha consciência de si e não reclamava nada até pensava que era feliz Não se tratava de uma idiota mas tinha a felicidade pura dos idiotas E também não prestava atenção em si mesma ela não sabia Vejo que tentei dar a Maca uma situação minha eu preciso de algumas horas de solidão por dia senão me muero Quanto a mim só sou verdadeiro quando estou sozinho Quando eu era pequeno pensava que de um momento para outro eu cairia para fora do mundo Por que as nuvens não caem já que tudo cai É que a gravidade é menor que a força do ar que as levanta Inteligente não é Sim mas caem um dia em chuva É a minha vingança Nada contou a Glória porque de um modo geral mentia tinha vergonha da verdade A mentira era tão mais decente Achava que boa educação é saber mentir Mentia também para si mesma em devaneio volátil na sua inveja da colega Glória por exemplo era inventiva Macabéa viua se despedir de Olímpico beijando a ponta dos próprios dedos e jogando o beijo no ar como se solta passarinho o que Macabéa nunca pensaria em fazer Esta história são apenas fatos não trabalhados de matériaprima e que me atingem direto antes de eu pensar Sei muita coisa que não posso dizer Aliás pensar o quê Glória talvez por remorso disselhe Olímpico é meu mas na certa você arranja outro namorado Eu digo que ele é meu porque foi o que a minha cartomante me disse e eu não quero desobedecer porque ela é médium e nunca erra Por que você não paga uma consulta e pede pra ela te pôr as cartas É muito caro Estou absolutamente cansado de literatura só a mudez me faz companhia Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte A procura da palavra no escuro O pequeno sucesso me invade e me põe no olho da rua Eu queria chafurdar no lodo minha necessidade de baixeza eu mal controlo a necessidade da orgia e do pior gozo absoluto O pecado me atrai o que é proibido me fascina Quero ser porco e galinha e depois matálos e beberlhes o sangue Penso no sexo de Macabéa miúdo mas inesperadamente coberto de grossos e abundantes pêlos negros seu sexo era a única marca veemente de sua existência Ela nada pedia mas seu sexo exigia como um nascido girassol num túmulo Quanto a mim estou cansadoTalvez da companhia de Macabéa Glória Olímpico O médico me enjoou com sua cerveja Tenho que interromper esta história por uns três dias 28 Nestes últimos três dias sozinho sem personagens despersonalizome e tirome de mim como quem tira uma roupa Despersonalizome a ponto de adormecer E agora emerjo e sinto falta de Macabéa Continuemos É muito caro Eu lhe empresto Inclusive madama Carlota também quebra feitiço que tenham feito contra a gente Ela quebrou o meu à meianoite em ponto de uma sextafeira treze de agosto lá para lá de S Miguel num terreiro de macumba Sangraram em cima de mim um porco preto sete galinhas brancas e me rasgaram a roupa que já estava toda ensangüentada Você tem coragem Não sei se posso ver sangue Talvez porque sangue é a coisa secreta de cada um a tragédia vivificante Mas Macabéa só sabia que não podia ver sangue o resto fui eu que pensei Estou me interessando terrivelmente por fatos fatos são pedras duras Não há como fugir Fatos são palavras ditas pelo mundo Bem Diante da súbita ajuda Macabéa que nunca se lembrava de pedir pediu licença ao chefe inventando dor de dente e aceitou o dinheiro emprestado que nem sabia quando ia devolver Essa audácia lhe deu um inesperado ânimo para audácia maior explosão como o dinheiro era emprestado ela raciocinou tortamente que não era dela e então podia gastálo Assim pela primeira vez na vida tomou um táxi e foi para Olaria Desconfio que ousou tanto por desespero embora não soubesse que estava desesperada é que estava gasta até a última lona a boca a se colar no chão Não foi difícil achar o endereço da madama Carlota e essa facilidade lhe pareceu bom sinal O apartamento térreo ficava na esquina de um beco e entre as pedras do chão crescia capim ela o notou porque sempre notava o que era pequeno e insignificante Pensou vagamente enquanto tocava a campainha da porta capim é tão fácil e simples Tinha pensamentos gratuitos e soltos porque embora à toa possuía muita liberdade interior A própria madama Carlota atendeua olhoua com naturalidade e disse O meu guia já tinha me avisado que você vinha me ver minha queridinha Como é mesmo o seu nome Ah é É muito lindo Entre meu benzinho Tenho uma cliente na salinha dos fundos você espera aqui Aceita um cafezinho minha florzinha Macabéa sentouse um pouco assustada porque faltavamlhe antecedentes de tanto carinho E bebeu com cuidado pela própria frágil vida o café frio e quase sem açúcar Enquanto isso olhava com admiração e respeito a sala onde estava Lá tudo era de luxo Matéria plástica amarela nas poltronas e sofás E até flores de plástico Plástico era o máximo Estava boquiaberta Afinal saiu dos fundos da casa uma moça com olhos muito vermelhos e madama Carlota mandou Macabéa entrar Como é chato lidar com fatos o cotidiano me aniquila estou com preguiça de escrever esta história que é um desabafo apenas Vejo que escrevo aquém e além de mim Não me responsabilizo pelo que agora escrevo Continuemos pois embora com esforço madama Carlota era enxundiosa pintava a boquinha rechonchuda com vermelho vivo e punha nas faces oleosas duas rodelas de ruge brilhoso Parecia um bonecão de louça meio quebrado Vejo que não dá para aprofundar esta história Descrever me cansa Não tenha medo de mim sua coisinha engraçadinha Porque quem está ao meu lado está no mesmo instante ao lado de Jesus E apontou o quadro colorido onde havia exposto em vermelho e dourado o coração de Cristo Eu sou fã de Jesus Sou doidinha por Ele Ele sempre me ajudou Olha quando eu era mais moça tinha bastante categoria para levar vida fácil de mulher E era fácil mesmo graças a Deus Depois quando eu já não valia muito no mercado Jesus sem 29 mais nem menos arranjou um jeito de eu fazer sociedade com uma coleguinha e abrimos uma casa de mulheres Aí eu ganhei dinheiro e pude comprar este apartamentozinho térreo Larguei a casa de mulheres porque era difícil tomar conta de tantas moças que só faziam era querer me roubar Você está interessada no que eu digo Muito Pois faz bem porque eu não minto Seja também fã de Jesus porque o Salvador salva mesmo Olhe a polícia não deixa pôr cartas acha que estou explorando os outros mas como eu lhe disse nem a polícia consegue desbancar Jesus Você notou que Ele até me conseguiu dinheiro para ter mobília de grãfino Sim senhora Ah então você também acha não é Pelo que vejo você é inteligente ainda bem porque a inteligência me salvou Madama Carlota enquanto falava tirava de uma caixa aberta um bombom atrás do outro e ia enchendo a boca pequena Não ofereceu nenhum a Macabéa Esta que como eu disse tinha tendência a notar coisas pequenas percebeu que dentro de cada bombom mordido havia um líquido grosso Não cobiçou o bombom pois aprendera que as coisas são dos outros Eu era pobre comia mal não tinha roupas boas Então caí na vida E gostei porque sou uma pessoa muito carinhosa tinha carinho por todos os homens Além do mais na zona era divertido porque havia muita conversa entre as coleguinhas Nos éramos muito unidas e só de vez em quando eu me atracava com uma Mas isso também era bom porque eu era muito forte e gostava de bater de puxar cabelos e morder Por falar em morder você não pode imaginar que dentes lindos eu tinha todos branquinhos e brilhantes Mas se estragaram tanto que hoje uso dentadura postiça Você acha que se nota que são postiços Não senhora Olhe eu era muito asseada e não pegava doença ruim Só uma vez me caiu uma sífilis mas a penicilina me curou Eu era mais tolerante do que as outras porque sou bondosa e afinal estava dando o que era meu Eu tinha um homem de quem eu gostava de verdade e que eu sustentava porque ele era fino e não queria se gastar em trabalho nenhum Ele era o meu luxo e eu até apanhava dele Quando ele me dava uma surra eu via que ele gostava de mim eu gostava de apanhar Com ele era amor com os outros eu trabalhava Depois que ele desapareceu eu para não sofrer me divertia amando mulher O carinho de mulher é muito bom mesmo eu até lhe aconselho porque você é delicada demais para suportar a brutalidade dos homens e se você conseguir uma mulher vai ver como é gostoso entre mulheres o carinho é muito mais fino Você tem chance de ter uma mulher Não senhora É que também você nem se enfeita Quem não se enfeita por si mesma se enjeita Ai que saudades da zona Eu peguei o melhor tempo do Mangue que era freqüentado por verdadeiros cavalheiros Além do preço fixo eu muitas vezes ganhava gorjeta Ouvi dizer que o Mangue está acabando que a zona agora só tem uma meia dúzia de casas Em meu tempo havia umas duzentas Eu ficava em pé encostada na porta vestindo só calcinha e sutiã de renda transparente Depois quando eu já estava ficando muito gorda e perdendo os dentes é que me tornei caftina Você sabe o que quer dizer caftina Eu uso essa palavra porque nunca tive medo de palavras Tem gente que se assusta com o nome das coisas Vocezinha tem medo de palavras benzinho Tenho sim senhora Então vou me cuidar para não escapulir nenhum palavrão fique sossegada Ouvi dizer que o Mangue tem um cheiro insuportável No meu tempo a gente punha incenso queimando para dar um ar limpo na casa Até tinha cheiro de igreja E tudo era muito respeitoso e com muita religião Quando eu era mulherdama já ia juntando meu dinheirinho dando porcentagem à chefa é claro De vez em quando havia tiros mas nada 30 comigo Minha florzinha estou te aborrecendo com minha história Ah não Você tem paciência de esperar pelas cartas Tenho sim senhora Então madama Carlota contoulhe que lá no Mangue no seu cubículo havia enfeites lindos nas paredes Você sabe meu amor que cheiro de homem é bom Faz bem à saúde Você já sentiu cheiro de homem Não senhora Finalmente depois de lamber os dedos madama Carlota mandoua cortar as cartas com a mão esquerda ouviu minha adoradinha Macabéa separou um monte com a mão trêmula pela primeira vez ia ter um destino Madama Carlota explosão era um ponto alto na sua existência Era o vórtice de sua vida e esta se afunilara toda para desembocar na grande dama cujo ruge brilhante davalhe à pele arregalou os olhos Mas Macabeazinha que vida horrível a sua Que meu amigo Jesus tenha dó de você filhinha Mas que horror Macabéa empalideceu nunca lhe ocorrera que sua vida fora tão ruim Madama acertou tudo sobre o seu passado até lhe disse que ela mal conhecera pai e mãe e que fora criada por uma parente muito madrasta má Macabéa espantouse com a revelação até agora sempre julgara que o que a tia lhe fizera era educála para que ela se tornasse uma moça mais fina Madama acrescentou Quanto ao presente queridinha está horrível também Você vai perder o emprego e já perdeu o namorado coitada de vocezinha Se não puder não me pague a consulta sou madama de recursos Macabéa pouco habituada a receber de graça recusou a dádiva mas com o coração todo grato E eis que explosão de repente aconteceu o rosto da madama se acendeu todo iluminado Macabéa Tenho grandes notícias para lhe dar Preste atenção minha flor porque é de maior importância o que vou lhe dizer É coisa muito séria e muito alegre sua vida vai mudar completamente E digo mais vai mudar a partir do momento em que você sair da minha casa Você vai se sentir outra Fique sabendo minha florzinha que até o seu namorado vai voltar e propor casamento ele está arrependido E seu chefe vai lhe avisar que pensou melhor e não vai mais lhe despedir Macabéa nunca tinha tido coragem de ter esperança Mas agora ouvia a madama como se ouvisse uma trombeta vinda dos céus enquanto suportava uma trombeta vinda dos céus Enquanto suportava uma forte taquicardia Madama tinha razão Jesus enfim prestava atenção nela Seus olhos estavam arregalados por uma súbita voracidade pelo futuro explosão E eu também estou com esperança enfim E tem mais Um dinheiro grande vai lhe entrar pela porta adentro em horas da noite trazido por um homem estrangeiro Você conhece algum estrangeiro Não senhora disse Macabéa já desanimando Pois vai conhecer Ele é alourado e tem olhos azuis ou verde ou castanhos ou pretos E se não fosse porque você gosta de seu exnamorado esse gringo ia namorar você Não Não Não Agora estou vendo outra coisa explosão e apesar de não ver muito claro estou também ouvindo a voz de meu guia esse estrangeiro parece se chamar Hans e é ele quem vai se casar com você Ele tem muito dinheiro todos os gringos são ricos Se não me engano e nunca me engano ele vai lhe dar muito amor e você minha enjeitadinha vai se vestir com veludo e cetim e até casaco de pele vai ganhar Macabéa começou explosão a tremilicar toda por causa do lado penoso que há na excessiva felicidade Só lhe ocorreu dizer Mas casaco de pele não precisa no calor do Rio Pois vai ter só para se enfeitar Faz tempo não boto cartas tão boas E sou sempre sincera por exemplo acabei de ter a franqueza de dizer para aquela moça que 31 saiu daqui que ela ia ser atropelada ela até chorou muito viu os olhos avermelhados dela E agora vou lhe dar um feitiço que você deve guardar dentro deste sutiã que quase não tem seio coitada bem em contacto com a pele Você não tem busto mas vai engordar e vai ganhar corpo Enquanto você não engordar ponha dentro do sutiã chumaços de algodão para fingir que tem Olha minha queridinha esse feitiço também sou obrigada por Jesus a lhe cobrar porque todo o dinheiro que eu recebo das cartas eu dou para um asilo de crianças Mas se não puder não pague só venha e pagar quando tudo acontecer Não eu lhe pago a senhora acertou tudo a senhora é Estava meio bêbada não sabia o que pensava parecia que lhe tinham dado um forte cascudo na cabeça de ralos cabelos sentiase tão desorientada como se lhe tivesse acontecido uma infidelidade Sobretudo estava conhecendo pela primeira vez o que os outros chamavam de paixão estava apaixonada por Hans E que é que eu faço para ter mais cabelo ousou perguntar porque já se sentia outra Você está querendo demais Mas está bem lave a cabeça com sabão Aristolino não use sabão amarelo em pedra Esse conselho eu não cobro Até isso explosão bateulhe o coração até mais cabelo Esquecera Olímpico e só pensava no gringo era sorte demais pegar homem de olhos azuis ou verdes ou castanhos ou pretos não havia como errar era vasto o campo das possibilidades E agora disse a madama você vá embora para encontrar seu maravilhoso destino E mesmo porque tem outra freguesa esperando demorei demais com você meu anjinho mas valeu a pena Num súbito ímpeto explosão de vivo impulso Macabéa entre feroz e desajeitada deu um estalado beijo no rosto da madama E sentiu de novo que sua vida já estava melhorando ali mesmo pois era bom beijar Quando ela era pequena como não tinha a quem beijar beijava a parede Ao acariciar ela se acariciava si própria Madama Carlota havia acertado tudo Macabéa estava espantada Só então vira que sua vida era uma miséria Teve vontade de chorar ao ver o seu lado oposto ela que como disse até então se julgava feliz Saiu da casa da cartomante aos tropeços e parou no beco escurecido pelo crepúsculo crepúsculo que é hora de ninguém Mas ela de olhos ofuscados como se o último final da tarde fosse mancha de sangue e ouro quase negro Tanta riqueza de atmosfera a recebeu e o primeiro esgar da noite que sim sim era funda e faustosa Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada E mudada por palavras desde Moisés se sabe que a palavra é divina Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa Uma pessoa grávida de futuro Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho desespero Se ela não era mais ela mesma isso significava uma perda que valia por um ganho Assim como havia sentença de morte a cartomante lhe decretara sentença de vida Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar Mas não chorou seus olhos faiscavam como o sol que morria Então ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua o Destino explosão sussurrou veloz e guloso é agora é já chegou a minha vez E enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegoua e neste mesmo instante em algum único lugar do mundo um cavalo como resposta empinouse em gargalhada de relincho Macabéa ao cair ainda teve tempo de ver antes que o carro fugisse que já começavam a ser cumpridas as predições de madama Carlota pois o carro era de alto luxo Sua queda não era nada pensou ela apenas um empurrão Batera com a cabeça na quina da calçada e ficara caída a cara mansamente voltada para a sarjeta E da cabeça um fio de sangue inesperadamente vermelho e rico O que queria dizer que apesar de tudo ela pertencia a uma resistente raça anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito 32 Eu ainda poderia voltar atrás em retorno aos minutos passados e recomeçar com alegria no ponto em que Macabéa estava de pé na calçada mas não depende de mim dizer que o homem alourado e estrangeiro a olhasse É que fui longe demais e já não posso mais retroceder Ainda bem que pelo menos não falei e nem falarei em morte e sim apenas um atropelamento Ficou inerme no canto da rua talvez descansando das emoções e viu entre as pedras do esgoto o ralo capim de um verde da mais tenra esperança humana Hoje pensou ela hoje é o primeiro dia de minha vida nasci A verdade é sempre um contato interior inexplicável A verdade é irreconhecível Portanto não existe Não para os homens não existe Voltando ao capim Para tal exígua criatura chamada Macabéa a grande natureza se dava apenas em forma de capim de sarjeta se lhe fosse dado o mar grosso ou picos altos de montanhas sua alma ainda mais virgem que o corpo se alucinaria e explodirse lheia o organismo braços pra cá intestino para lá cabeça rolando redonda e oca a seus pés como se desmonta um manequim de cera Prestou de repente um pouco de atenção para si mesma O que estava acontecendo era um surdo terremoto Tinhase aberto em fendas a terra de Alagoas Fixava só por fixar o capim Capim na grande Cidade do Rio de Janeiro À toa Quem sabe se Macabéa já teria alguma vez sentido que também ela era àtoa na cidade inconquistável O Destino havia escolhido para ela um beco no escuro e uma sarjeta Ela sofria Acho que sim Como uma galinha de pescoço mal cortado que corre espavorida pingando sangue Só que a galinha foge como se foge da dor em cacarejos apavorados E Macabéa lutava muda Vou fazer o possível para que ela não morra Mas que vontade de adormecêla e de eu mesmo ir para a cama dormir Então começou levemente a garoar Olímpico tinha razão ela só sabia mesmo era chover Os finos fios de água gelada aos poucos empapavamlhe a roupa e isso não era confortável Pergunto toda história que já se escreveu no mundo é história de aflições Algumas pessoas brotaram no beco não se sabe de onde e haviam se agrupado em torno de Macabéa sem nada fazer assim como antes pessoas nada haviam feito por ela só que agora pelo menos a espiavam o que lhe dava uma existência Mas quem sou eu para censurar os culpados O pior é que preciso perdoálos É necessário chegar a tal nada que indiferentemente se ame ou não se ame o criminoso que nos mata Mas não estou seguro de mim mesmo preciso perguntar embora não saiba a quem se devo mesmo amar aquele que me trucida e perguntar quem de vós me trucida E minha vida mais forte do que eu responde que quer porque quer vingança e responde que devo lutar como quem se afoga mesmo que eu morra depois Se assim é que assim seja Macabéa por acaso vai morrer Como posso saber E nem as pessoas ali presentes sabiam Embora por via das dúvidas algum vizinho tivesse pousado junto do corpo uma vela acesa O luxo da rica flama parecia cantar glória Escrevo sobre o mínimo parco enfeitandoo com púrpura jóias e esplendor É assim que se escreve Não não é acumulando e sim desnudando Mas tenho medo da nudez pois ela é a palavra final Enquanto isso Macabéa no chão parecia se tornar cada vez mais uma Macabéa como se chegasse a si mesma Este é um melodrama O que sei é que melodrama era o ápice de sua vida todas as vidas são uma arte e a dela tendia para o grande choro insopitável como chuva e raios Apareceu portanto um homem magro de paletó puído tocando violino na esquina Devo explicar que este homem eu o vi uma vez ao anoitecer quando eu era menino em Recife e o som espichado e agudo sublinhava com uma linha dourada o mistério da rua escura Junto do homem esquálido havia uma latinha de zinco onde barulhavam secas as moedas dos que o ouviam com gratidão por ele lhes planger a vida Só agora entendo e 33 só agora brotouseme o sentido secreto o violino é um aviso Sei que quando eu morrer vou ouvir o violino do homem e pedirei música música música Macabéa Ave Maria cheia de graça terra serena da promissão terra do perdão tem que chegar o tempo ora pro nóbis e eu me uso como forma de conhecimento Eu te conheço até o osso por intermédio de uma encantação que vem de mim para ti Espraiar se selvagemente e no entanto atrás de tudo pulsa uma geometria inflexível Macabéa lembrouse do cais do porto O cais chegava ao coração de sua vida Macabéa pedir perdão Porque sempre se pede Por quê Resposta é assim porque assim é Sempre foi Sempre será E se não foi Mas eu estou dizendo que é Pois Viase perfeitamente que estava viva pelo piscar constante dos olhos grandes pelo peito magro que se levantava e abaixava em respiração talvez difícil Mas quem sabe se ela não estaria precisando de morrer Pois há momentos em que a pessoa está precisando de uma pequena mortezinha e sem nem ao menos saber Quanto a mim substituo o ato da morte por um seu símbolo Símbolo este que pode se resumir num profundo beijo mas não na parede áspera e sim bocaaboca na agonia do prazer que é morte Eu que simbolicamente morro várias vezes só para experimentar a ressurreição Acho com alegria que ainda não chegou a hora de estrela de cinema de Macabéa morrer Pelo menos ainda não consigo adivinhar se lhe acontece o homem louro e estrangeiro Rezem por ela e que todos interrompam o que estão fazendo para soprarlhe vida pois Macabéa está por enquanto solta no acaso como a porta balançando ao vento no infinito Eu poderia resolver pelo caminho mais fácil matar a meninainfante mas quero o pior a vida Os que me lerem assim levem um soco no estômago para ver se é bom A vida é um soco no estômago Por enquanto Macabéa não passava de um vago sentimento nos paralelepípedos sujos Eu poderia deixála na rua e simplesmente não acabar a história Mas não irei até onde o ar termina irei até onde a grande ventania se solta uivando irei até onde o vácuo faz uma curva irei aonde meu fôlego me levar Meu fôlego me leva a Deus Estão tão puro que nada sei Só uma coisa eu sei não preciso ter piedade de Deus Ou preciso Tanto estava viva que se mexeu devagar e acomodou o corpo em posição fetal Grotesca como sempre fora Aquela relutância em ceder mas aquela vontade do grande abraço Ela se abraçava a si mesma com vontade do doce nada Era uma maldita e não sabia Agarravase a um fiapo de consciência e repetia mentalmente sem cessar eu sou eu sou eu sou Quem era é que não sabia Fora buscar no próprio profundo e negro âmago de si mesma o sopro de vida que Deus nos dá Então ali deitada teve uma úmida felicidade suprema pois ela nascera para o abraço da morte A morte que é nesta história o meu personagem predileto Iria ela dar adeus a si mesma Acho que ela não vai morrer porque tem tanta vontade de viver E havia certa sensualidade no modo como se encolhera Ou é porque a prémorte se parece com a intensa ânsia sensual É que o rosto dela lembrava um esgar de desejo As coisas são sempre vésperas e se ela não morre agora está como nós na véspera de morrer perdoaime lembrarvos porque quanto a mim não me perdôo a clarividência Um gosto suave arrepiante gélido e agudo como no amor Seria esta a graça a que vós chamais de Deus Sim Se iria morrer na morte passava de virgem a mulher Não não era morte pois não a quero para a moça só um atropelamento que não significava sequer desastre Seu esforço de viver parecia uma coisa que se nunca experimentara virgem que era ao menos intuíra pois só agora entendia que mulher nasce mulher desde o primeiro vagido O destino de uma mulher é ser mulher Intuíra o instante quase dolorido e esfuziante do desmaio do amor Sim doloroso reflorescimento tão difícil que ela empregava nele o corpo e a outra coisa que vós chamais de alma e que eu chamo o quê Aí Macabéa disse uma frase que nenhum dos transeuntes entendeu Disse bem pronunciado e claro Quanto ao futuro 34 Terá tido ela saudade do futuro Ouço a música antiga de palavras e palavras sim é assim Nesta hora exata Macabéa sente um fundo enjôo de estômago e quase vomitou queria vomitar o que não é corpo vomitar algo luminoso Estrela de mil pontas O que é que estou vendo agora e que me assusta Vejo que ela vomitou um pouco de sangue vasto espasmo enfim o âmago tocando no âmago vitória E então então o súbito grito estertorado de uma gaivota de repente a águia voraz erguendo para os altos ares a ovelha tenra o macio gato estraçalhando um rato sujo e qualquer a vida come a vida Até tu Brutus Sim foi este o modo como eu quis anunciar que que Macabéa morreu Vencera o Príncipe das Trevas Enfim a coroação Qual foi a verdade de minha Maca Basta descobrir a verdade que ela logo já não é mais passou o momento Pergunto o que é Resposta não é Mas que não se lamentem os mortos eles sabem o que fazem Eu estive na terra dos mortos e depois do terror tão negro ressurgi em perdão Sou inocente Não me consumam Não sou vendável Ai de mim todo na perdição e é como se a grande culpa fosse minha Quero que me lavem as mãos e os pés e depois depois que os untem com óleos santos de tanto perfume Ah que vontade de alegria Estou agora me esforçando para rir em grande gargalhada Mas não sei por que não rio A morte é um encontro consigo Deitada morta era tão grande como um cavalo morto O melhor negócio é ainda o seguinte não morrer pois morrer é insuficiente não me completa eu que tanto preciso Macabéa me matou Ela estava enfim livre de si e de nós Não vos assusteis morrer é um instante passa logo eu sei porque acabo de morrer com a moça Desculpaime esta morte É que não pude evitála a gente aceita tudo porque já beijou a parede Mas eis que de repente sinto o meu último esgar de revolta e uivo o morticínio dos pombos Viver é luxo Pronto passou Morta os sinos badalavam mas sem que seus bronzes lhes dessem som Agora entendo esta história Ela é animinência que há nos sinos que quasequase badalam A grandeza de cada um Silêncio Se um dia Deus vier à terra haverá silêncio grande O silêncio é tal que nem o pensamento pensa O final foi bastante grandiloqüente para a vossa necessidade Morrendo ela virou ar Ar enérgico Não sei Morreu em um instante O instante é aquele átimo de tempo em que o pneu do carro correndo em alta velocidade toca no chão e depois não toca mais e depois toca de novo Etc etc etc No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada Eu vos pergunto Qual é o peso da luz E agora agora só me resta acender um cigarro e ir para casa Meu Deus só agora me lembrei que a gente morre Mas mas eu também Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos Sim 35 Proposta Considere a leitura prévia das antologias de poesia e as obras em prosa e dramaturgia das aulas 1 até 7 referentes aos anos 50 até 70 bem como as ideias dos textos teóricocríticos recomendados A seguir discuta o desdobramento formal e temático destas produções Para isso articule ao menos 2 dos escritores estudados bem como utilize passagens literárias para exemplificar a sua argumentação O Confronto entre Voz e Silêncio A Dissidência dos Mortos e a Invisibilidade dos Vivos A literatura brasileira tem sido um espaço fecundo para a investigação das condições humanas em suas mais diversas facetas Dois romances representativos dessa tradição Incidente em Antares de Érico Veríssimo e A Hora da Estrela de Clarice Lispector abordam por caminhos distintos a marginalização do indivíduo seja pela negação da voz ou pela indiferença que o circunda Essas obras se inserem no contexto literário das décadas de 1950 a 1970 período de profundas transformações políticas e sociais no Brasil marcado pela repressão e pela resistência cultural Em Incidente em Antares a narrativa se divide entre a construção histórica da cidade e a revolta dos mortos que após uma greve dos coveiros se veem impedidos de serem sepultados e retornam à cidade para expor as contradições e injustiças do mundo dos vivos Dessa maneira os mortos finalmente conquistam o direito à fala Estamos mortos mas ainda temos algo a dizer Esse momento transformase em um símbolo da resistência contra a opressão evidenciando as falhas de uma sociedade corrupta e hipócrita Como observa o crítico Alfredo Bosi em seu livro História concisa da literatura brasileira Veríssimo utiliza a alegoria dos mortos para desnudar a hipocrisia e a complacência da sociedade brasileira diante de seus próprios desmandos Já em A Hora da Estrela a história de Macabéa é narrada por Rodrigo SM um narrador que luta para compreender e dar forma à existência apagada da protagonista Macabéa uma jovem nordestina que migra para o Rio de Janeiro vive uma vida de insignificância extrema quase como se não existisse O narrador traduz essa condição ao afirmar Ela não sabia que estava se entregando pois pensava que viver era aquilo mesmo Ao contrário dos mortos de Antares que clamam por justiça Macabéa é consumida pelo silêncio e pela passividade Segundo Benedito Nunes 1988 Lispector cria por meio de sua protagonista um ser que se move na fronteira entre a existência e a anulação um símbolo da alienação social e do apagamento individual No plano formal os dois romances também se distanciam Veríssimo constrói uma narrativa linear e objetiva com traços de ironia e crítica social dando aos mortos uma presença discursiva forte Em contrapartida Lispector adota uma prosa introspectiva fragmentada e sensorial que reflete a desimportância e a falta de consciência de Macabéa sobre si mesma Enquanto os mortos de Antares gritam para serem ouvidos a protagonista de Lispector se dissolve em sua própria insignificância Assim os dois textos estabelecem um contraste essencial entre presença e ausência voz e silêncio resistência e resignação Os mortos de Antares simbolizam uma insurreição póstuma contra as injustiças do mundo presente naquela época de opressão no Brasil do início da década de 60 com o Golpe Militar de 64 enquanto Macabéa encarna a passividade levada ao extremo até que sua própria morte aconteça sem grandes alardes Como analisa Walnice Nogueira Galvão 2012 Incidente em Antares e A Hora da Estrela revelam cada um à sua maneira uma literatura que oscila entre a denúncia e a contemplação do trágico expondo os dilemas da condição humana no Brasil do século XX Referências BOSI Alfredo História concisa da literatura brasileira 2 ed São Paulo Cultrix 2006 GALVÃO Walnice Nogueira Sinal de Vida literatura e resistência São Paulo Companhia das Letras 2012 LISPECTOR Clarice A Hora da Estrela 38 ed Rio de Janeiro Rocco 1998 NUNES Benedito O Dorso do Tigre São Paulo Ática 1988 VERÍSSIMO Érico Incidente em Antares 34 ed São Paulo Companhia das Letras 2012 Proposta Considere a leitura prévia das antologias de poesia e as obras em prosa e dramaturgia das aulas 1 até 7 referentes aos anos 50 até 70 bem como as ideias dos textos teóricocríticos recomendados A seguir discuta o desdobramento formal e temático destas produções Para isso articule ao menos 2 dos escritores estudados bem como utilize passagens literárias para exemplificar a sua argumentação O Confronto entre Voz e Silêncio A Dissidência dos Mortos e a Invisibilidade dos Vivos A literatura brasileira tem sido um espaço fecundo para a investigação das condições humanas em suas mais diversas facetas Dois romances representativos dessa tradição Incidente em Antares de Érico Veríssimo e A Hora da Estrela de Clarice Lispector abordam por caminhos distintos a marginalização do indivíduo seja pela negação da voz ou pela indiferença que o circunda Essas obras se inserem no contexto literário das décadas de 1950 a 1970 período de profundas transformações políticas e sociais no Brasil marcado pela repressão e pela resistência cultural Em Incidente em Antares a narrativa se divide entre a construção histórica da cidade e a revolta dos mortos que após uma greve dos coveiros se veem impedidos de serem sepultados e retornam à cidade para expor as contradições e injustiças do mundo dos vivos Dessa maneira os mortos finalmente conquistam o direito à fala Estamos mortos mas ainda temos algo a dizer Esse momento transformase em um símbolo da resistência contra a opressão evidenciando as falhas de uma sociedade corrupta e hipócrita Como observa o crítico Alfredo Bosi em seu livro História concisa da literatura brasileira Veríssimo utiliza a alegoria dos mortos para desnudar a hipocrisia e a complacência da sociedade brasileira diante de seus próprios desmandos Já em A Hora da Estrela a história de Macabéa é narrada por Rodrigo SM um narrador que luta para compreender e dar forma à existência apagada da protagonista Macabéa uma jovem nordestina que migra para o Rio de Janeiro vive uma vida de insignificância extrema quase como se não existisse O narrador traduz essa condição ao afirmar Ela não sabia que estava se entregando pois pensava que viver era aquilo mesmo Ao contrário dos mortos de Antares que clamam por justiça Macabéa é consumida pelo silêncio e pela passividade Segundo Benedito Nunes 1988 Lispector cria por meio de sua protagonista um ser que se move na fronteira entre a existência e a anulação um símbolo da alienação social e do apagamento individual No plano formal os dois romances também se distanciam Veríssimo constrói uma narrativa linear e objetiva com traços de ironia e crítica social dando aos mortos uma presença discursiva forte Em contrapartida Lispector adota uma prosa introspectiva fragmentada e sensorial que reflete a desimportância e a falta de consciência de Macabéa sobre si mesma Enquanto os mortos de Antares gritam para serem ouvidos a protagonista de Lispector se dissolve em sua própria insignificância Assim os dois textos estabelecem um contraste essencial entre presença e ausência voz e silêncio resistência e resignação Os mortos de Antares simbolizam uma insurreição póstuma contra as injustiças do mundo presente naquela época de opressão no Brasil do início da década de 60 com o Golpe Militar de 64 enquanto Macabéa encarna a passividade levada ao extremo até que sua própria morte aconteça sem grandes alardes Como analisa Walnice Nogueira Galvão 2012 Incidente em Antares e A Hora da Estrela revelam cada um à sua maneira uma literatura que oscila entre a denúncia e a contemplação do trágico expondo os dilemas da condição humana no Brasil do século XX Referências BOSI Alfredo História concisa da literatura brasileira 2 ed São Paulo Cultrix 2006 GALVÃO Walnice Nogueira Sinal de Vida literatura e resistência São Paulo Companhia das Letras 2012 LISPECTOR Clarice A Hora da Estrela 38 ed Rio de Janeiro Rocco 1998 NUNES Benedito O Dorso do Tigre São Paulo Ática 1988 VERÍSSIMO Érico Incidente em Antares 34 ed São Paulo Companhia das Letras 2012
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Texto de pré-visualização
Proposta Considere a leitura prévia das antologias de poesia e as obras em prosa e dramaturgia das aulas 1 até 7 referentes aos anos 50 até 70 bem como as ideias dos textos teóricocríticos recomendados A seguir discuta o desdobramento formal e temático destas produções Para isso articule ao menos 2 dos escritores as estudados as bem como utilize passagens literárias para exemplificar a sua argumentação A5 Anos 50 até 70 conto tópico literatura fantástica Docente Andrea Muraro Literaturas em LP5 Leitura do conto Venha ver o pôrdosol de Lygia Fagundes Telles da obra Antes do baile verde 1949 até 1969 O fantástico ocupa o tempo desta incerteza Assim que se escolhe uma das duas respostas deixase o terreno do fantástico para entrar em um gênero vizinho o estranho ou o maravilhoso O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis naturais frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural In Introdução à literatura fantástica de Todorov p16 O fantástico implica pois uma integração do leitor com o mundo dos personagens definese pela percepção ambígua que o próprio leitor tem dos acontecimentos relatados Terá que advertir imediatamente que com isso temos presente não tal ou qual leitor particular real a não ser uma função de leitor implícita ao texto assim como também está implícita a função do narrador A percepção desse leitor implícito se inscreve no texto com a mesma precisão com que o estão os movimentos dos personagens A vacilação do leitor é pois a primeira condição do fantástico p19 A primeira condição nos remete ao aspecto verbal do texto ou com maior exatidão ao que se denomina as visões o fantástico é um caso particular de visão ambígua A segunda condição é mais complexa por uma parte relacionase com o aspecto sintático na medida em que implica a existência de um tipo formal de unidades que se refere à apreciação dos personagens relativa aos acontecimentos do conto estas unidades poderiam receber o nome de reações por oposição às ações que formam habitualmente a trama da história Por outra parte referese também ao aspecto semântico posto que se trata de um tema representado o da percepção e sua notação Por fim a terceira condição tem um caráter mais geral e transcende a divisão em aspectos tratase de uma eleição entre vários modos e níveis de leitura p 20 Um senhor muito velho com asas muito grandes conto de Gabriel Garcia Marquez de 1968 e Cem anos de solidão 1967 Cf A nova narrativa de Antonio Candido fins dos anos 70 httpswwwrevistasuspbr literartesissueview9367 httpsedisciplinasuspb rpluginfilephp7477596 modresourcecontent 1Todorov20Introducao 20a20literatura20fa ntasticapdf Outros exemplos O conto A armadilha de Murilo Rubião Necessidade de reescrita 1965 e 1978 Porque se a trombeta der um som confuso quem se preparará para a batalha Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios XIV 8 Edição de 2010 com os 33 contos produzidos Usando a ambiguidade como meio ficcional procuro fragmentar minhas histórias ao máximo para dar ao leitor a certeza de que elas prosseguirão indefinidamente numa indestrutível repetição cíclica Rubião em entrevista Mas há precisão na descrição da personagem Alexandre e do prédio que simboliza o ambiente da armadilha em que o velho esgarçado o espera por dois anos após a porta semicerrada para uma conversa que o leitor acompanha observando a dissimulação de ambos quanto às emoções mas que os olhos deixam entrever Ocorre que a vítima e o algoz devem permanecer juntos trancafiados Uma bela e marcante fábula sobre uma pequena cidade invadida por animais que passou a ser uma espécie de referência e síntese de sua obra Cristovão Tezza JOSÉ J VEIGA A HORA DOS RUMINANTES httpswwwcompanhiadasletrascombrsalaprofessorpdfsCLEricoVerissimoincidenteeolevantepdf httpswwwtesesuspbrtesesdisponiveis88151tde27012023163419publico1994ElianaPibernatAntoninipdf httpswwwcompanhiadasletrascombrtrecho9788535905960 SARAIVA S da S O realismo animista e o espaço nãonostálgico em narrativas africanas de Língua Portuguesa In ANAIS DO ENCONTRO REGIONAL DA ABRALIC 2007 Literaturas Artes Saberes 23 a 25 de julho de 2007 São Paulo USP 2007 Disponível em httpwwwabralicorgbrenc2007anais80107pdf acesso em 12 jan 2012 GARUBA Harry Explorações no realismo animista notas sobre a leitura e a escrita da literatura cultura e sociedade africana Nonada Letras em Revista vol 2 núm 19 octubre 2012 pp 235256 Laureate International Universities Porto Alegre Brasil httpswwwredalycorgpdf5124512451673021pdf A4 Anos 60 a 70prosaClarice Docente Andrea Muraro Literaturas em LP V httpsdocumentosreveladoscombrfotohistoricaintelectuaiseartistascontraarepressaodaditadura httpsoglobogloboco mculturalivrosclarice lispectorfoifichada peladitadurarevela novabiografia25284393 No visible text to transcribe from the image httpswwwyoutubecomwatchvTbZriv5THpA entrevista TV Cultura httpswwwyoutubecomwatchvMBxAMJvSip0 filme de Suzana Amaral httpswww1folhauolcombrilustrada202111claricelispectorganhamostraemtudooriginaleque respeitasuaobrashtml recente exposição sobre a obra de Clarice Lispector httpssiteclaricelispectorimscombrlivroalivro link do Museu da Imagem e do Som com cronologia de obras Dos dados da experiência Da bibliografia sobre a obra de Clarice Lispector AMARAL Emília O leitor segundo GH São Paulo Ateliê Editorial 2005 ARÊAS Vilma Clarice Lispector com a ponta dos dedos São Paulo Companhia das Letras 2005 BORELLI Olga Esboço para um possível retrato Rio de Janeiro Nova Fronteira 1981 CANDIDO Antonio No raiar de Clarice In Vários escritos São Paulo Duas Cidades 1970 GOTLIB Nádia Battella Clarice Uma vida que se conta 4 ed São Paulo Ática 1995 HOLANDA Sérgio Buarque de Tema e técnica In PRADO Antonio Arnoni org O espírito e a letra Vol II São Paulo Companhia das Letras 1996 p 207211 MOSER Benjamin Clarice São Paulo Cosac Naify 2009 NOLASCO Edgar Cézar Caldo de cultura A hora da estrela e a vez de Clarice Lispector Mato Grosso do Sul Ed UFMS 2007 NUNES Benedito O drama da linguagem São Paulo Ática 1989 O dorso do tigre São Paulo Perspectiva 1969 OLIVEIRA Solange Ribeiro de A barata e a crisálida o romance de Clarice Lispector Rio de Janeiro Brasília José OympioINL 1985 PONTIERI Regina Clarice Lispector uma poética do olhar São Paulo Ateliê Editorial 1999 SCHWARZ Roberto Perto do coração selvagem In A sereia e o desconfiado ensaios críticos São Paulo Paz e Terra 1981 Voltando porém ao microrelato que atravessa o livro a sensibilidade da autora para os pequenos indícios é para o meandro psicológico é uma coisa espantosa A análise desce ao nível microscópico onde a causalidade é minúscula e minuciosa A construção de experiências psíquicas é admirável na precisão seguindo o fluxo da consciência A figura de Joana é composta por estas ilhotas de luz e engenho inteligíveis mas isoladas as experiências coexistem incomunicáveis Clarice Lispector voltada para a construção detalhada instaura um fluxo das coisas mínimas que não leva em si só à causalidade das unidades maiores dependente de articulação mais ampla Noutras palavras a visão de lente permite examinar a tessitura de cada trama emocional particular mas não dá totalidades não mostra a ligação dos fenômenos psíquicos entre si não fornece a sua ligação ao nível organizado e configurado Uma psicologia de associações e elementarista anterior à gestalt Os momentos psicológicos construídos cada qual a partir de seus elementos mínimos não podem se inserir num desenvolvimeito de cunho histórico e não podem constituir portanto uma biografia O romance respeita esta regra em sua estrutura que é toda de contraposições estanques uso intensivo da metáfora insólita paródia a entrega do fluxo de consciência ou a prática do monólogo interior a rarefação do enredo senso do metafísico eou epifania Do que se encontra nos livros didáticos Sei que há moças que vendem o corpo única posse real em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender ninguém a quer ela é virgem e inócua não faz falta a ninguém Aliás descubro eu agora eu também não faço a menor falta e até o que escrevo um outro escreveria Um outro escritor sim mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas Como a nordestina há milhares de moças espalhadas por cortiços vagas de cama num quarto atrás de balcões trabalhando até a estafa Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiram como não existiriam Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não saber a quem Esse quem será que existe Estou esquentando o corpo para iniciar esfregando as mãos uma na outra para ter coragem Agora me lembrei de que houve um tempo em que para me esquentar o espírito eu rezava p11 Planos narrativos e personagens narrador Rodrigo SM Macabéa Olímpico de Jesus Glória Madame Carlota as companheiras de dormitório o patrão Raimundo As pancadas ela esquecia pois esperandose um pouco a dor termina por passar Mas o que doía mais era ser privada da sobremesa de todos os dias goiabada com queijo a única paixão na sua vida Pois não era que esse castigo se tornara o predileto da tia sabida A menina não perguntava por que era sempre castigada mas nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante de sua vida Esse nãosaber pode parecer ruim mas não é tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguém ensina cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome nascese e ficase logo sabendo p17 Quando penso que eu podia ter nascido ela e por que não estremeço E pareceme covarde fuga de eu não ser sinto culpa como disse num dos títulos Em todo caso o futuro parecia via a ser muito melhor Pelos menos o futuro tinha a vantagem de não ser o presente Sempre há um melhor para o ruim Mas não havia nela miséria humana É que tinha em si mesma uma certa flor fresca p20 HORA DA ESTRELA A CULPA É MINHA OU A HORA DA ESTRELA OU ELA QUE SE ARRANJE OU O DIREITO AO GRITO QUANTO AO FUTURO OU LAMENTO DE UM BLUE OU ELA NÃO SABE GRITAR OU ASSOVIO AO VENTO ESCURO OU EU NÃO POSSO FAZER NADA OU REGISTRO DOS FATOS ANTECEDENTES OU HISTÓRIA LACRIMOGÊNICA DE CORDEL OU SAÍDA DISCRETA PELA PORTA DOS FUNDOS O definível está me cansando um pouco Prefiro a verdade que há no prenúncio Quando eu me livrar dessa história voltarei ao domínio mais irresponsável de apenas ter leves prenúncios Eu não inventei essa moça Ela forçou de dentro de mim a sua exigência Ela não era nem de longe débil mental era à mercê e crente como uma idiota A moça que pelo menos comida não mendigava havia toda uma subclasse de gente mais perdida e com fome Só eu a amo Depois ignorase por quê tinham vindo para o Rio o inacreditável Rio de Janeiro a tia lhe arranjara emprego finalmente morrera e ela agora sozinha morava numa vaga de quarto compartilhado com mais quatro moças balconistas das Lojas Americanas O quarto ficava num velho sobrado colonial da áspera rua do Acre entre as prostitutas que serviam a marinheiros depósitos de carvão e de cimento em pó não longe do cais do porto O cais imundo davalhe saudade do futuro O que é que há Pois estou como que ouvindo acordes de piano alegre será isto o símbolo de que a vida da moça iria ter um futuro esplendoroso Estou contente com essa possibilidade e farei tudo para que esta se torne real Tinha acesso de tosse seca de madrugada abafavaa com o travesseiro ralo Mas as companheiras do quarto Maria da Penha Maria Aparecida Maria José e Maria apenas não se incomodavam Estavam cansadas demais pelo trabalho que nem por ser anônimo era menos árduo Uma vendia pódearroz Coty mas que idéia Elas viravam para o outro lado e readormeciam A tosse da outra até que as embalava em sono mais profundo O céu é para baixo ou para cima Pensava a nordestina Deitada não sabia Às vezes antes de dormir sentia fome e ficava meio alucinada pensando em coxa de vaca O remédio então era mastigar papel bem mastigadinho e engolir E quando acordava Quando acordava não sabia mais quem era Só depois é que pensava com satisfação sou datilógrafa e virgem e gosto de cocacola Só então vestiase de si mesma passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser Será que eu enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos Mas aí que está esta história não tem nenhuma técnica nem estilo ela é ao deusdará Eu que também não marcharia por nada deste mundo com palavras brilhantes e falsas uma vida parca como a da datilógrafa Durante o dia eu faço como todos gestos despercebidos por mim mesmo Pois um dos gestos mais despercebidos é esta história de que não tenho culpa e que sai como sair A datilógrafa vivia numa espécie de atordoado nimbo entre céu e inferno Nunca pensara em eu sou eu Acho que julgava não ter direito ela era um acaso Um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal Há milhares como ela Sim e que são apenas um acaso Pensando bem quem não é um acaso na vida Olímpico de Jesus trabalhava de operário numa metalúrgica e ela nem notou que ele não se chamava de operário e sim de metalúrgico Macabéa ficava contente com a posição social dele porque também tinha orgulho de ser datilógrafa embora ganhasse menos que o salário mínimo Mas ela e Olímpico eram alguém no mundo Metalúrgico e datilógrafa formavam um casal de classe A tarefa de Olímpico tinha o gosto que se sente quando se fuma um cigarro acendendoo do lado errado na ponta da cortiça O trabalho consistia em pegar barras de metal que vinham deslizando de cima da máquina para colocálas embaixo sobre uma placa deslizante Nunca se perguntara por que colocava a barra embaixo A vida não lhe era má e ele até economizava um pouco de dinheiro dormia de graça numa guarita em obras de demolição por camaradagem do vigia Macabéa disse As boas maneiras são a melhor herança p23 Quando ele avisara que ia examinála ela disse Ouvi dizer que no médico se tira a roupa mas eu não tiro coisa nenhuma Passaraa pelo raio X e dissera Você está com começo de tuberculose pulmonar Ela não sabia se isso era coisa boa ou coisa ruim Bem como era uma pessoa muito educada disse Muito obrigada sim p34 Não eu lhe pago a senhora acertou tudo a senhora é Estava meio bêbada não sabia o que pensava parecia que lhe tinham dado um forte cascudo na cabeça de ralos cabelos sentiase tão desorientada como se lhe tivesse acontecido uma infidelidade Sobretudo estava conhecendo pela primeira vez o que os outros chamavam de paixão estava apaixonada por Hans E que é que eu faço para ter mais cabelo ousou perguntar porque já se sentia outra Você está querendo demais Mas está bem lave a cabeça com sabão Aristolino não use sabão amarelo em pedra Esse conselho eu não cobro Até isso explosão bateulhe o coração até mais cabelo Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar Mas não chorou seus olhos faiscavam como o sol que morria Então ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua o Destino explosão sussurrou veloz e guloso é agora é já chegou a minha vez E enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegoua e neste mesmo instante em algum único lugar do mundo um cavalo como resposta empinouse em gargalhada de relincho Macabéa ao cair ainda teve tempo de ver antes que o carro fugisse que já começavam a ser cumpridas as predições de madama Carlota pois o carro era de alto luxo Sua queda não era nada pensou ela apenas um empurrão Batera com a cabeça na quina da calçada e ficara caída a cara mansamente voltada para a sarjeta Aí Macabéa disse uma frase que nenhum dos transeuntes entendeu Disse bem pronunciado e claro Quanto ao futuro Terá tido ela saudade do futuro Ouço a música antiga de palavras e palavras sim é assim Nesta hora exata Macabéa sente um fundo enjôo de estômago e quase vomitou queria vomitar o que não é corpo vomitar algo luminoso Estrela de mil pontas O que é que estou vendo agora e que me assusta Vejo que ela vomitou um pouco de sangue vasto espasmo enfim o âmago tocando no âmago vitória O final foi bastante grandiloqüente para a vossa necessidade Morrendo ela virou ar Ar enérgico Não sei Morreu em um instante O instante é aquele átimo de tempo em que o pneu do carro correndo em alta velocidade toca no chão e depois não toca mais e depois toca de novo Etc etc etc No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada Eu vos pergunto Qual é o peso da luz E agora agora só me resta acender um cigarro e ir para casa Meu Deus só agora me lembrei que a gente morre Mas mas eu também Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos Sim A HORA DA ESTRELA Clarice Lispector HORA DA ESTRELA A CULPA É MINHA OU A HORA DA ESTRELA OU ELA QUE SE ARRANJE OU O DIREITO AO GRITO QUANTO AO FUTURO OU LAMENTO DE UM BLUE OU ELA NÃO SABE GRITAR OU ASSOVIO AO VENTO ESCURO OU EU NÃO POSSO FAZER NADA OU REGISTRO DOS FATOS ANTECEDENTES OU HISTÓRIA LACRIMOGÊNICA DE CORDEL OU SAÍDA DISCRETA PELA PORTA DOS FUNDOS 2 DEDICATÓRIA DO AUTOR Na verdade Clarice Lispector Pois dedico esta coisa aí ao antigo Schumann e sua doce Clara que são hoje ossos ai de nós Dedicome à cor rubra e escarlate como o meu sangue de homem em plena idade e portanto dedicome a meu sangue Dedicome sobretudo aos gnomos anões sílfides e ninfas que me habitam a vida Dedicome à saudade de minha antiga pobreza quando tudo era mais sóbrio e digno e eu nunca havia comido lagosta Dedico me à tempestade de Beethoven À vibração das cores neutras de Bach A Chopin que me amolece os ossos A Stravinsky que me espantou e com quem voei em fogo À Morte e Transfiguração em que Richard Strauss me revela um destino Sobretudo dedicome às vésperas de hoje e a hoje ao transparente véu de Debussy a Marlos Nobre a Prokofiev a Carl Orff a Schönberg aos dodecafônicos aos gritos rascantes dos eletrônicos a todos esses que em mim atingiram zonas assustadoramente inesperadas todos esses profetas do presente e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponto de eu neste instante explodir em eu Esse eu que é vós pois não ser apenas mim preciso dos outros para me manter de pé tão tonto que sou eu enviesado enfim que é que se há de fazer senão meditar para cair naquele vazio pleno que só se atinge com a meditação Meditação não precisa de ter resultados a meditação pode ter como fim apenas ela mesma Eu medito sem palavras e sobre o nada O que me atrapalha a vida é escrever E e não esquecer que a estrutura do átomo não é vista mas sabese dela Sei de muita coisa que não vi E vós também Não se pode dar uma prova de existência do que é mais verdadeiro o jeito é acreditar acreditar chorando Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública Tratase de livro inacabado porque lhe falta resposta Resposta esta que alguém no mundo ma dê Vós É uma história em tecnicolor para ter algum luxo por Deus que eu também preciso Amém para nós todos 3 Tudo no mundo começou com um sim Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida Mas antes da préhistória havia a préhistória da préhistória e havia o nunca e havia o sim Sempre houve Não sei o quê mas sei que o universo jamais começou Que ninguém se engane só consigo a simplicidade através de muito trabalho Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever Como começar pelo início se as coisas acontecem antes de acontecer Se antes da prépré história já havia os monstros apocalípticos Se esta história não existe passará a existir Pensar é um ato Sentir é um fato Os dois juntos sou eu que escrevo o que estou escrevendo Deus é o mundo A verdade é sempre um contato interior inexplicável A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduzse ao próprio último ou primeiro pulsar A dor de dentes que perpassa esta história deu uma fisgada funda em plena boca nossa Então eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente é a minha própria dor eu que carrego o mundo e há falta de felicidade Felicidade Nunca vi palavra mais doida inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes Como eu irei dizer agora esta história será o resultado de uma visão gradual há dois anos e meio venho aos poucos descobrindo os porquês É visão da iminência de De quê Quem sabe se mais tarde saberei Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido Só não inicio pelo fim que justificaria o começo como a morte parece dizer sobre a vida porque preciso registrar os fatos antecedentes Escrevo neste instante com algum prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior e explícita De onde no entanto até sangue arfante de tão vivo de vida poderá quem sabe escorrer e logo se coagular em cubos de geléia trêmula Será essa história um dia meu coágulo Que sei eu Se há veracidade nela é claro que a história é verdadeira embora inventada que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro existe a quem falte o delicado essencial Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconheço já que nunca o vivi É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste Também sei das coisas por estar vivendo Quem vive sabe mesmo sem saber que sabe Assim é que os senhores sabem mais do que imaginam e estão fingindo de sonsos Proponhome a que não seja complexo o que escreverei embora obrigado a usar palavras que vos sustentam A história determino com falso livrearbítrio vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles é claro Eu Rodrigo S M Relato antigo este pois não quero ser mordenoso e inventar modismos à guisa de originalidade Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo meio e gran finale seguido de silêncio e de chuva caindo História exterior e explícita sim mas que contém segredos a começar por um dos títulos Quanto ao futuro que é precedido por um ponto final e seguido de outro ponto final Não se trata de capricho meu no fim talvez se entenda a necessidade do delimitado Mal e mal vislumbro o final que se minha pobreza permitir quero que seja grandioso Se em vez de ponto fosse seguido por reticências o título ficaria aberto a possíveis imaginações vossas porventura até malsãs e sem piedade Bem é verdade que também eu não tenho piedade do meu personagem principal a nordestina é um relato que desejo frio Mas tenho o direito de ser dolorosamente frio e não vós Por tudo isto é que não vos dou a vez Não se trata apenas de narrativa é antes de tudo vida primária que respira respira respira Material poroso um dia viverei aqui a vida de uma molécula com seu estrondo possível de átomos O que é mais do que invenção é minha obrigação 4 contar sobre essa moça entre milhares delas E dever meu nem que seja de pouca arte o de revelarlhe a vida Porque há o direito ao grito Então eu grito Grito puro e sem pedir esmola Sei que há moças que vendem o corpo única posse real em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender ninguém a quer ela é virgem e inócua não faz falta a ninguém Aliás descubro eu agora eu também não faço a menor falta e até o que escrevo um outro escreveria Um outro escritor sim mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas Como a nordestina há milhares de moças espalhadas por cortiços vagas de cama num quarto atrás de balcões trabalhando até a estafa Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiram como não existiriam Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não saber a quem Esse quem será que existe Estou esquentando o corpo para iniciar esfregando as mãos uma na outra para ter coragem Agora me lembrei de que houve um tempo em que para me esquentar o espírito eu rezava o movimento é espírito A reza era um meio de mudamente e escondido de todos atingirme a mim mesmo Quando rezava conseguia um oco de alma e esse oco é o tudo que posso eu jamais ter Mais do que isso nada Mas o vazio tem o valor e a semelhança do pleno Um meio de obter é não procurar um meio de ter é o de não pedir e somente acreditar que o silêncio que eu creio em mim é resposta a meu meu mistério Pretendo como já insinuei escrever de modo cada vez mais simples Aliás o material de que disponho é parco e singelo demais as informações sobre os personagens são poucas e não muito elucidativas informações essas que penosamente me vêm de mim para mim mesmo é trabalho de carpintaria Sim mas não esquecer que para escrever nãoimportaoquê o meu material básico é palavra Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases É claro que como todo escritor tenho a tentação de usar termos suculentos conheço adjetivos esplendorosos carnudo substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação já que palavra é ação concordai Mas não vou enfeitar a palavra pois se eu tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro e a jovem poderia mordêlo morrendo de fome Tenho então que falar simples para captar a sua delicada e vaga existência Limitome a humildemente mas sem fazer estardalhaços de minha humildade que já não seria humilde limitome a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela Ela que devia ter ficado no Sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia já que escrevia tão mal só tinha até o terceiro ano primário Por ser ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamente letra por letra a tia é que lhe dera um curso ralo de como bater à máquina E a moça ganhara uma dignidade era enfim datilógrafa Embora ao que parece não aprovasse na linguagem duas consoantes juntas e copiava a letra linda e redonda do amado chefe a palavra designar de modo como em língua falada diria desiguinar Desculpaime mas vou continuar a falar de mim que sou meu desconhecido e ao escrever me surpreendo um pouco pois descobri que tenho um destino Quem já não se perguntou sou um monstro ou isto é ser uma pessoa Quem antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa Se tivesse a tolice de se perguntar quem sou eu Cairia estatelada em cheio no chão É que quem sou eu Provoca necessidade E como satisfazer a necessidade Quem se indaga é incompleto A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na rua Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham Voltando a mim o que escreverei não pode ser absorvido por mentes que muito exijam e ávidas de requintes Pois o que estarei dizendo será apenas nu Embora tenha como pano de fundo e agora mesmo a penumbra atormentada que sempre há nos 5 meus sonhos quando de noite atormentado durmo Que não se esperem então estrelas no que se segue nada cintilará tratase de matéria opaca e por sua própria natureza desprezível por todos É que a esta história falta melodia cantabile O seu ritmo é às vezes descompasso E tem fatos Apaixoneime subitamente por fatos sem literatura fatos são pedras duras e agir está me interessando mais do que pensar de fatos não há como fugir Perguntome se eu deveria caminhar à frente do tempo e esboçar logo um final Acontece porém que eu mesmo ainda não sei bem como isto terminará E também porque entendo que devo caminha passo a passo de acordo com um prazo determinado por horas até um bicho lida com o tempo E esta é também a minha mais primeira condição a de caminhar paulatinamente apesar da impaciência que tenho em relação a essa moça Com esta história eu vou me sensibilizar e bem sei que cada dia é um dia roubado da morte Eu não sou um intelectual escrevo com o corpo E o que escrevo é uma névoa úmida As palavras são sons transfundidos de sombras que se entrecruzam desiguais estalactites renda música transfigurada de órgão Mal ouso clamar palavras a essa rede vibrante e rica mórbida e obscura tendo como contratom o baixo grosso da dor Alegro com brio Tentarei tirar ouro do carvão Sei que estou adiando a história e que brinco de bola sem bola O fato é um ato Juro que este livro é feito sem palavras É uma fotografia muda Este livro é um silêncio Este livro é uma pergunta Mas desconfio que toda essa conversa é feita apenas para adiar a pobreza da história pois estou com medo Antes de ter surgido na minha vida essa datilógrafa eu era um homem até mesmo um pouco contente apesar do mau êxito na minha literatura As coisas estavam de algum modo tão boas que podiam se tornar muito ruins porque o que amadurece plenamente pode apodrecer Transgredir porém os meus próprios limites me fascinou de repente E foi quando pensei em escrever sobre a realidade já que essa me ultrapassa Qualquer que seja o que quer dizer realidade O que narrarei será meloso Tem tendência mas então agora mesmo seco endureço tudo E pelo menos o que escrevo não pede favor a ninguém e não implora socorro agüentase na sua chamada dor com uma dignidade de barão É Parece que estou mudando o modo de escrever Mas acontece que só escrevo o que quero não sou um profissional e preciso falar dessa nordestina senão sufoco Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela Escrevo em traços vivos e ríspidos de pintura Estarei lidando com fatos como se fossem as irremediáveis pedras de que falei Embora queira que para me animar sinos badalem enquanto adivinho a realidade E que anjos esvoacem em vespas transparentes em torno de minha cabeça quente porque esta quer se transformar em objetocoisa é mais fácil Será mesmo que a ação ultrapassa a palavra Mas que ao escrever que o nome real seja dado às coisas Cada coisa é uma palavra E quando não se a tem inventasea Esse vosso Deus que nos mandou inventar Porque escrevo Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo Escrevo portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de força maior como se diz nos requerimentos oficiais por força de lei Sim minha força está na solidão Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas pois eu também sou o escuro da noite Embora não agüente bem ouvir um assovio no escuro e passos Escuridão Lembrome de uma namorada era moçamulher e que escuridão dentro de seu corpo Nunca a esqueci jamais se esquece a pessoa com quem se dormiu O acontecimento fica tatuado em marca de fogo na carne viva e todos os que percebem o estigma fogem com horror Quero neste instante falar da nordestina É o seguinte ela como uma cadela vadia era teleguiada exclusivamente por si mesma Pois reduziase a si Também eu de fracasso em fracasso me reduzi a mim mas pelos menos quero encontrar o mundo e seu Deus 6 Quero acrescentar à guisa de informações sobre a jovem e sobre mim que vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje a eternidade é o estado das coisas neste momento E eis que fiquei receoso quando pus palavras sobre a nordestina E a pergunta é como escrevo Verifico que escrevo de ouvido assim como aprendi inglês e francês de ouvido Antecedentes meus do escrever Sou um homem que tem mais dinheiro que os que passam fome o que faz de mim de algum modo desonesto E só minto na hora exata da mentira Mas quando escrevo não minto Que mais Sim não tenho classe social marginalizado que sou A classe alta me tem como um monstro esquisito a média com desconfiança de que eu possa desequilibrála a classe baixa nunca vem a mim Não não é fácil escrever É duro como quebrar rochas Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça Sem falar que a história me desespera por ser simples demais O que me proponho a contar parece fácil e à mão de todos Mas a sua elaboração é muito difícil Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo Com mãos de dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria lama De uma coisa tenho certeza essa narrativa mexerá com uma coisa delicada a criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu Cuidai dela porque meu poder é só mostrála para que vós a reconheçais na rua andando de leve por causa da esvoaçada magreza E se for triste a minha narrativa Depois na certa escreverei algo alegre embora alegre por quê Porque também sou um homem de hosanas e um dia quem sabe cantarei loas que não as dificuldades da nordestina Por enquanto quero andar nu ou em farrapos quero experimentar pelos menos uma vez a falta de gosto que dizem ter a história Comer a hóstia será sentir o insosso do mundo e banharse no não Isso será coragem minha a de abandonar sentimentos antigos já confortáveis Agora não é confortável para falar da moça tenho que não fazer a barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco só cochilar de pura exaustão sou um trabalhador manual Além de vestirme com roupa velha rasgada Tudo isso para me pôr ao nível da nordestina Sabendo no entanto que talvez eu tivesse que me apresentar de modo convincente às sociedades que muito reclamam de quem está neste instante mesmo batendo à máquina Tudo isso sim a história é história Mas sabendo antes para nunca esquecer que a palavra é fruto da palavra A palavra tem que se parecer com a palavra Atingila é o meu primeiro dever para comigo E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã tem que ser apenas ela Bem é verdade que também queria alcançar uma sensação fina e que esse finíssimo não se quebrasse em linha perpétua Ao mesmo tempo que quero também alcançar o trombone mais grosso e baixo grave e terra tão a troco de nada que por nervosismo de escrever eu tivesse um acesso incontrolável de riso vindo do peito E quero aceitar minha liberdade sem pensar o que muito acham que existir é coisa de doido caso de loucura Porque parece Existir não é lógico A ação desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto Sim e talvez alcance a flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó Mas voltemos a hoje Porque como se sabe hoje é hoje Não estão me entendendo e eu ouço escuro que estão rindo de mim em risos rápidos e ríspidos de velhos E ouço passos cadenciados na rua Tenho um arrepio de medo Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim Tenho é que me copiar com uma delicadeza de borboleta branca Essa idéia de borboleta branca vem de que se a moça vier a se casar casarseá magra e leve e como virgem de branco Ou não se casará O fato é que tenho nas minhas mãos um destino e no entanto não me 7 sinto com o poder de livremente inventar sigo uma oculta linha fatal Sou obrigado a procurar uma verdade que me ultrapassa Por que escrevo sobre uma jovem que nem pobreza enfeitada tem Talvez porque nela haja um recolhimento e também porque na pobreza de corpo e espírito eu toco na santidade eu que quero sentir o sopro do meu além Para ser mais do que eu pois tão pouco sou Escrevo por não ter nada a fazer no mundo sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse sempre a novidade que é escrever eu morreria simbolicamente todos os dias Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos Experimentei quase tudo inclusive a paixão e o seu desespero E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui Pareço conhecer nos menores detalhes essa nordestina pois se vivo com ela E com muito adivinhei a seu respeito ela se me grudou na pele qual melado pegajoso ou lama negra Quando eu era menino li a história de um velho que estava com medo de atravessar um rio E foi quando apareceu um homem jovem que também queria passar para a outra margem O velho aproveitou e disse Me leva também Eu bem montado nos teus ombros O moço consentiu e passada a travessia avisoulhe Já chegamos agora pode descer Mas aí o velho respondeu muito sonso e sabido Ah essa não É tão bom estar aqui montado como estou que nunca mais vou sair de você Pois a datilógrafa não quer sair dos meus ombros Logo eu que constato que a pobreza é feia e promíscua Por isso não sei se minha história vai ser ser o quê Não sei de nada ainda não me animei a escrevêla Terá acontecimentos Terá Mas quais Também não sei Não estou tentando criar em vós uma expectativa aflita e voraz é que realmente não sei o que me espera tenho um personagem buliçoso nas mãos e que me escapa a cada instante querendo que eu o recupere Esqueci de dizer que tudo o que estou agora escrevendo é acompanhado pelo rufar enfático de um tambor batido por um soldado No instante mesmo em que eu começar a história de súbito cessará o tambor Vejo a nordestina se olhando ao espelho e um rufar de tambor no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo Tanto nós nos intertrocamos Não há dúvida que ela é uma pessoa física E adianto um fato tratase de moça que nunca se viu nua porque tinha vergonha Vergonha por pudor ou por ser feia Perguntome também como é que eu vou cair de quatro em fatos e fatos É que de repente o figurativo me fascinou crio a ação humana e estremeço Também quero o figurativo assim como um pintor que só pintasse cores abstratas quisesse mostrar que o fazia por gosto e não por não saber desenhar Para desenhar a moça tenho que me domar e para poder captar sua alma tenho que me alimentar frugalmente de frutas e beber vinho branco gelado pois faz calor neste cubículo onde me tranquei e de onde tenho a veleidade de querer ver o mundo Também tive que me abster de sexo e de futebol Sem falar que não entro em contacto com ninguém Voltarei algum dia à minha vida anterior Duvido muito Vejo agora que esqueci de dizer que por enquanto nada leio para não contaminar com luxos a simplicidade de minha linguagem Pois como eu disse a palavra tem que se parecer com a palavra instrumento meu Ou não sou um escritor Na verdade sou mais ator porque com apenas um modo de pontuar faço malabarismos de entonação obrigo o respirar alheio a me acompanhar o texto Também esqueci de dizer que o registro que em breve vai ter que começar pois já não agüento mais a pressão dos fatos o registro que em breve vai ter que começar é 8 escrito sob o patrocínio do refrigerante mais popular do mundo e que nem por isso me paga nada refrigerante esse espalhado por todos os países Alias foi ele quem patrocinou o último terremoto em Guatemala Apesar de ter gosto do cheiro de esmalte de unhas de sabão Aristolino e plástico mastigado Tudo isso não impede que todos o amem com servilidade e subserviência Também porque e vou dizer agora uma coisa difícil que só eu entendo porque essa bebida que tem coca é hoje Ela é um meio da pessoa atualizarse e pisar na hora presente Quanto à moça ela vive num limbo impessoal sem alcançar o pior nem melhor Ela somente vive inspirando e expirando inspirando e expirando Na verdade para que mais que isso O seu viver é ralo Sim Mas por que estou me sentindo culpado E procurando aliviarme do peso de nada ter feito de concreto em benefício da moça Moça essa e vejo que já estou quase na história moça essa que dormia de combinação de brim com manchas bastante suspeitas de sangue pálido Para adormecer nas frígidas noites de inverno enroscavase em si mesma recebendose e dandose o próprio parco calor Dormia de boca aberta por causa do nariz entupido dormia exausta dormia até o nunca Devo acrescentar um algo que importa muito para a apreensão da narrativa é que esta é acompanhada do princípio ao fim por uma levíssima e constante dor de dentes coisa de dentina exposta Afianço também que a história será igualmente acompanhada pelo violino plangente tocado por um homem magro bem na esquina A sua cara é estreita e amarela como se ela já tivesse morrido E talvez tenha Tudo isso eu disse tão longamente por medo de ter prometido demais e dar apenas o simples e o pouco Pois esta história é quase nada O jeito pe começar de repente assim como eu me lanço de repente na água gélida do mar modo de enfrentar com uma coragem suicida o intenso frio Vou agora começar pelo meio dizendo que que ela era incompetente Incompetente para a vida Faltavalhe o jeito de se ajeitar Só vagamente tomava conhecimento da espécie que tinha de si em si mesma Se fosse criatura que se exprimisse diria o mundo é fora de mim eu sou fora de mim Vai ser difícil escrever esta historia Apesar de eu não ter nada a ver com a moça terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus Os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro É o sussurro que me impressiona Faltavalhe o jeito de se ajeitar Tanto que explosão nada argumentou em seu próprio favor quando o chefe da firma de representante de roldanas avisoulhe com brutalidade brutalidade essa que ela parecia provocar com sua cara de tola rosto que pedia tapa com brutalidade que só ia manter no emprego Glória sua colega porque quanto a ela errava demais na datilografia além de sujar invariavelmente o papel Isso disse ele Quanto à moça achou que se deve por respeito responder alguma coisa e falou cerimoniosamente a seu escondidamente amado chefe Me desculpe o aborrecimento O senhor Raimundo Silveira que a essa altura já lhe havia virado as costas voltouse um pouco surpreendido com a inesperada delicadeza e alguma coisa na cara quase sorridente da datilógrafa o fez dizer com menos grosseria na voz embora a contragosto Bem a despedida pode não ser para já é capaz até de demorar um pouco Depois de receber o aviso foi ao banheiro para ficar sozinha porque estava toda atordoada Olhouse maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e rachada cheia de cabelos o que tanto combinava com sua vida Pareceulhe que o espelho baço e escurecido não refletia imagem algum Sumira por acaso a sua existência física Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara todo deformada pelo espelho ordinário o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de papelão Olhouse e levemente pensou tão jovem e já com ferrugem Há os que têm E há os que não têm É muito simples a moça não tinha Não tinha o quê É apenas isso mesmo não tinha Se der para me entenderem está bem Se não 9 também está bem Mas por que trato dessa moça quando o que mais desejo é trigo puramente maduro e ouro no estio Quando era pequena sua tia para castigála com medo disseralhe que homem vampiro aquele que chupa sangue da pessoa mordendolhe o tenro da garganta não tinha reflexo no espelho Até que não seria de todo ruim ser vampiro pois bem lhe iria algum rosado de sangue no amarelado do rosto ela que não parecia ter sangue a menos que viesse um dia a derramálo A moça tinha ombros curvos como os de uma cerzideira Aprendera em pequena a cerzir Ela se realizaria muito mais se se desse ao delicado labor de restaurar fios quem sabe se de seda Ou de luxo cetim bem brilhoso um beijo de almas Cerzideirinha mosquito Carregar em costas de formiga um grão de açúcar Ela era de leve como uma idiota só que não o era Não sabia que era infeliz É porque ela acredita Em quê Em vós mas não é preciso acreditar em alguém ou em alguma coisa basta acreditar Isso lhe dava às vezes estado de graça Nunca perdera a fé Ela me incomoda tanto que fiquei oco Estou oco desta moça E ela tanto mais me incomoda quanto menos reclama Estou com raiva Uma cólera de derrubar copos e pratos e quebrar vidraças Como me vingar Ou melhor como me compensar Já sei amando meu cão que tem mais comida do que a moça Por que ela não reage Cadê um pouco de fibra Não ela é doce obediente Viu ainda dois olhos enormes redondos saltados e interrogativos tinha olhar de quem tem uma asa ferida distúrbio talvez de tiróide olhos que perguntavam A quem interrogava ela A Deus Ela não pensava em Deus Deus não pensava nela Deus é de quem conseguir pegálo Na distração aparece Deus Não fazia perguntas Adivinhava que não há respostas Era lá tola de perguntar E de receber um não na cara Talvez a pergunta vazia fosse apenas para que um dia alguém não viesse a dizer que ela nem ao menos havia perguntado Por falta de que lhe respondesse ela mesma parecia se ter respondido é assim porque é assim Existe no mundo outra resposta Se alguém sabe de uma melhor que se apresente e a diga estou há anos esperando Enquanto isso as nuvens são brancas e o céu é todo azul Para que tanto Deus Por que não um pouco para os homens Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de um nãoseio quê com ar de se desculpar por ocupar espaço No espelho distraidamente examinou de perto as manchas no rosto Em Alagoas chamavamse panos diziam que vinham do fígado Disfarçava os panos com grossa camada de pó branco e se ficava meio caiada era melhor que o pardacento Ela toda era um pouco encardida pois raramente se lavava De dia usava saia e blusa de noite dormia de combinação Uma colega de quarto não sabia como avisarlhe que seu cheiro era morrinhento E como não sabia ficou por isso mesmo pois tinha medo de ofendela Nada nela era iridescente embora a pele do rosto entre as manchas tivesse um leve brilho de opala Mas não importava Ninguém olhava para ela na rua ela era café frio E assim se passava o tempo para a moça esta Assoava o nariz na barra da combinação Não tinha aquela coisa delicada que se chama encanto Só eu a vejo encantadora Sé eu seu autor a amo Sofro por ela E só eu é que posso dizer assim que é que você me pede chorando que não lhe dê cantando Essa moça não sabia que ela era o que era assim como um cachorro não sabe que é cachorro Daí não se sentir infeliz A única coisa que queria era viver Não sabia para quê não se indagava Quem sabe achava que havia uma gloriazinha em viver Ela pensava que a pessoa é obrigada a ser feliz Então era Antes de nascer ela era uma idéia Antes de nascer ela era morta E depois de nascer ela ia morrer Mas que fina talhada de melancia Há poucos fatos a narrar e eu mesmo não sei ainda o que estou denunciando Agora explosão em rapidíssimos traços desenharei a vida pregressa da moça até o momento de espelho do banheiro Nascera inteiramente raquítica herança do sertão os maus antecedentes de que falei Com dois anos de idade lhe haviam morrido os pais de febres ruins no sertão de 10 Alagoas lá onde o diabo perdera as botas Muito depois fora para Maceió com a tia beata única parenta sua no mundo Uma outra vez se lembrava de coisa esquecida Por exemplo a tia lhe dando cascudos no alto da cabeça porque o cocuruto de cabeça devia ser imaginava a tia um ponto vital Davalhe sempre com os nós dos dedos na cabeça de ossos fracos por falta de cálcio Batia mas não era somente porque ao bater gozava de grande prazer sensual a tia que não se casara por nojo é que também considerava de dever seu evitar que a menina viesse um dia a ser uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro aceso esperando homem Embora a menina não tivesse dado mostras de no futuro a ser vagabunda de rua Pois até mesmo o fato de vir a ser uma mulher não parecia pertencer à sua vocação A mulherice só lhe nasceria tarde porque até no capim vagabundo há desejo de sol As pancadas ela esquecia pois esperandose um pouco a dor termina por passar Mas o que doía mais era ser privada da sobremesa de todos os dias goiabada com queijo a única paixão na sua vida Pois não era que esse castigo se tornara o predileto da tia sabida A menina não perguntava por que era sempre castigada mas nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante de sua vida Esse nãosaber pode parecer ruim mas não é tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguém ensina cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome nascese e ficase logo sabendo Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer na certa morreria um dia como se antes tivesse estudado de cor a representação do papel de estrela Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes Quando era pequena tivera vontade intensa de criar um bicho Mas a tia achava que ter um bicho era mais uma boca para comer Então a menina inventou que só lhe cabia criar pulgas pois não merecia o amor de um cão Do contacto com a tia ficaralhe a cabeça baixa Mas a sua beatice não lhe pegara morta a tia ela nunca mais fora a uma igreja porque não sentia nada e as divindades lhe eram estranhas Pois a vida é assim apertase o botão e a vida acende Só que ela não sabia qual era o botão de acender Nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável Mas uma coisa descobriu inquieta já não sabia mais ter tido pai e mãe tinha esquecido o sabor E se pensava melhor dirseia que havia brotado da terra do sertão em cogumelo logo mofado Ela falava sim mas era extremamente muda Uma palavra dela eu às vezes consigo mas ela me foge por entre os dedos Apesar da morte da tia tinha certeza de que com ela ia ser diferente pois nunca ia morrer É paixão minha ser o outro No caso a outra Estremeço esquálido igual a ela O definível está me cansando um pouco Prefiro a verdade que há no prenúncio Quando eu me livrar dessa história voltarei ao domínio mais irresponsável de apenas ter leves prenúncios Eu não inventei essa moça Ela forçou de dentro de mim a sua exigência Ela não era nem de longe débil mental era à mercê e crente como uma idiota A moça que pelo menos comida não mendigava havia toda uma subclasse de gente mais perdida e com fome Só eu a amo Depois ignorase por quê tinham vindo para o Rio o inacreditável Rio de Janeiro a tia lhe arranjara emprego finalmente morrera e ela agora sozinha morava numa vaga de quarto compartilhado com mais quatro moças balconistas das Lojas Americanas O quarto ficava num velho sobrado colonial da áspera rua do Acre entre as prostitutas que serviam a marinheiros depósitos de carvão e de cimento em pó não longe do cais do porto O cais imundo davalhe saudade do futuro O que é que há Pois estou como que ouvindo acordes de piano alegre será isto o símbolo de que a vida da moça iria ter um futuro esplendoroso Estou contente com essa possibilidade e farei tudo para que esta se torne real Rua do Acre Mas que lugar Os gordos ratos da rua do Acre Lá é que não piso pois tenho horror sem nenhuma vergonha do pardo pedaço da vida imunda Uma vez por outra tinha a sorte de ouvir de madrugada um galo cantar a vida e ela se lembrava nostálgica do sertão Onde caberia um galo a cocoricar naquelas paragens 11 ressequidas de artigos por atacado de exportação e importação Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada sairá de si para ver como é às vezes o outro Se é pobre não estará me lendo porque lerme é superfulo para quem tem uma leve fome permanente Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia Bem sei que é assustador sair de si mesmo mas tudo o que é novo assusta Embora a moça anônima da história seja tão antiga que podia ser uma figura bíblica Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração Minto ela era capim Dos verões sufocantes da abafada rua do Acre ela só sentia o suor um suor que cheirava mal Esse suor me parece de má origem Não sei se estava tuberculosa acho que não No escuro da noite um homem assobiando e passos pesados o uivo do viralata abandonado Enquanto isso as constelações silenciosas e o espaço que é tempo que nada tem a ver com ela e conosco Pois assim se passavam os dias O cantar de galo na aurora sanguinolenta dava um sentido fresco à sua vida murcha Havia de madrugada uma passarinhada buliçosa na rua do Acre é que a vida brotava no chão alegre por entre pedras Rua do Acre para morar rua do Lavradio para trabalhar cais do porto para ir espiar no domingo um ou outro prolongado apito de navio cargueiro que não se sabe por que dava aperto no coração um ou outro delicioso embora um pouco doloroso cantar de galo Era do nunca que vinha o galo Vinha do infinito até a sua cama dandolhe gratidão Sono superficial porque estava há quase um ano resfriada Tinha acesso de tosse seca de madrugada abafavaa com o travesseiro ralo Mas as companheiras do quarto Maria da Penha Maria Aparecida Maria José e Maria apenas não se incomodavam Estavam cansadas demais pelo trabalho que nem por ser anônimo era menos árduo Uma vendia pódearroz Coty mas que idéia Elas viravam para o outro lado e readormeciam A tosse da outra até que as embalava em sono mais profundo O céu é para baixo ou para cima Pensava a nordestina Deitada não sabia Às vezes antes de dormir sentia fome e ficava meio alucinada pensando em coxa de vaca O remédio então era mastigar papel bem mastigadinho e engolir É Eu me acostumo mas não amanso Por Deus Eu me dou melhor com os bichos do que com gente Quando vejo o meu cavalo livre e solto no prado tenho vontade de encostar meu rosto no seu vigoroso e aveludado pescoço e contarlhe a minha vida E quando acaricio a cabeça de meu cão sei que ele não exige que eu faça sentido ou me explique Talvez a nordestina já tivesse chegado à conclusão de que a vida incomoda bastante alma que não cabe bem no corpo mesmo alma rala como a sua Imaginavazinha toda supersticiosa que se por acaso viesse alguma vez a sentir um gosto bem bom de viver se desencantaria de súbito de princesa que era e se transformaria em bicho rasteiro Porque por pior que fosse sua situação não queria ser privada de si ela queria ser ela mesma Achava que cairia em grave castigo e até risco de morrer se tivesse gosto Então defendiase da morte por intermédio de um viver de menos gastando pouco de sua vida para esta não acabar Essa economia lhe dava alguma segurança pois quem cai do chão não passa Teria ela a sensação de que vivia para nada Nem posso saber mas acho que não Só uma vez se fez uma trágica pergunta Quem sou eu Assustouse tanto que parou completamente de pensar Mas eu que não chego a ser ela sinto que vivo para nada Sou gratuito e pago as contas de luz gás e telefone Quanto à ela até mesmo de vez em quando ao receber o salário comprava uma rosa Tudo isso acontece no ano este que passa e só acabarei esta história difícil quando eu ficar exausto da luta não sou um desertor Às vezes lembravase de uma assustadora canção desafinada de meninas brincando de roda de mãos dadas ela só ouvia sem participar porque a tia a queria para varrer o chão As meninas de cabelos ondulados com laços de fita corderosa Quero uma de vossas filhas de marrémarrédeci Escolhei a qual quiser marré A música era um fantasma pálido como uma rosa que é louca de beleza mas mortal pálida e mortal a moça era hoje o fantasma suave e terrificante de uma infância sem bola nem boneca 12 Então costumava fingir que corria pelos corredores de boneca na mão atrás de uma bola e rindo muito a gargalhada era aterrorizadora porque acontecia no passado e só a imaginação maléfica a trazia para o presente saudade do que poderia ter sido e não foi Eu bem avisei que era literatura de cordel embora eu me recuse a ter qualquer piedade Devo dizer que essa moça não tem consciência de mim se tivesse teria para quem rezar e seria a salvação Mas eu tenho plena consciência dela através dessa jovem dou o meu grito de horror à vida À vida que tanto amo Volto à moça o luxo que se dava era tomar um gole de café frio antes de dormir Pagava o luxo tendo azia ao acordar Ela era calada por não ter o que dizer mas gostava de ruídos Eram vida Enquanto o silêncio da noite assustava parecia que estava prestes a dizer uma palavra fatal Durante a noite na rua do Acre era raro passar um carro quanto mais buzinassem melhor para ela Além desses medos como se não bastassem tinha medo grande de pegar doença ruim lá embaixo dela isso a tia lhe ensinara Embora os seus pequenos óvulos tão murchos Tão tão Mas vivia em tanta mesmice que de noite não se lembrava do que acontecera de manha Vagamente pensava de muito longe e sem palavras o seguinte já que sou o jeito é ser Os galos de que falai avisavam mais um repetido dia de cansaço Cantavam o cansaço E as galinhas que faziam elas Indagavase a moça Os galos pelo menos cantavam Por falar em galinha a moça às vezes comia num botequim um ovo duro Mas a tia lhe ensinara que comer ovo fazia mal para o fígado Sendo assim obediente adoecia sentindo dores do lado esquerdo oposto ao fígado Pois era muito impressionável e acreditava em tudo o que existia e no que não existia também Mas não sabia enfeitar a realidade Para ela a realidade era demais para ser acreditada Aliás a palavra realidade não lhe dizia nada Nem a mim por Deus Quando dormia quase que sonhava que a tia lhe batia na cabeça Ou sonhava estranhamente em sexo ela que de aparência era assexuada Quando acordava se sentia culpada sem saber por quê talvez porque o que é bom devia ser proibido Culpada e contente Por via das dúvidas se sentia de propósito culpada e rezava mecanicamente três avemarias amém amém amém Rezava mas sem Deus ela não sabia quem era Ele e portanto Ele não existia Acabo de descobrir que para ela fora Deus também a realidade era muito pouco Davase melhor com um irreal cotidiano vivia em câmara leeeenta lebre puuuuulando no aaar sobre os ooooouteiros o vago era o seu mundo terrestre o vago era o de dentro da natureza E achava bom ficar triste Não desesperada pois isso nunca ficara já que era tão modesta e simples mas aquela coisa indefinível como se ela fosse romântica Claro que era neurótica não há sequer necessidade de dizer Era uma neurose que a sustentava meu Deus pelo menos isso muletas Vez por outra ia para a Zona Sul e ficava olhando as vitrines faiscantes de jóias e roupas acetinadas só para se mortificar um pouco É que ela sentia falta de encontrarse consigo mesma e sofrer um pouco é um encontro Domingo ela acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada O pior momento de sua vida era nesse dia ao fim da tarde caía em meditação inquieta o vazio do seco domingo Suspirava Tinha saudade de quando era pequena farofa seca e pensava que fora feliz Na verdade por pior a infância é sempre encantada que susto Nunca se queixava de nada sabia que as coisas são assim mesmo e quem organizou a terra dos homens Na certa mereceria um dia o céu dos oblíquos onde só entra quem é torto Aliás não é entrar no céu é oblíquo na terra mesmo Juro que nada posso fazer por ela Afiançovos que se eu pudesse melhoraria as coisas Eu bem sei que dizer que a datilógrafa tem o corpo cariado é um dizer de brutalidade pior que qualquer palavrão Quanto a escrever mas vale um cachorro vivo Devo registrar aqui uma alegria É que a moça num aflitivo domingo sem farofa teve uma inesperada felicidade que era inexplicável no cais do porto viu um arcoíris Experimentando o leve êxtase ambicionou logo outro queria ver como uma vez em 13 Maceió espocarem mudos fogos de artifício Ela quis mais porque uma verdade que quando se dá a mão essa gentinha quer todo o resto o zépovinho sonha com fome de tudo E quer mas sem direito algum pois não é Não havia meio pelo menos eu não posso de obter os multiplicantes brilhos em chuva chuvisco dos fogos de artifício Devo dizer que ela era doida por soldado Pois era Quando via um pensava com estremecimento de prazer será que ele vai me matar Se a moça soubesse que minha alegria também vem de minha mais profundo tristeza e que tristeza era uma alegria falhada Sim ela era alegrezinha dentro de sua neurose Neurose de guerra E tinha um luxo além de uma vez por mês ir ao cinema pintava de vermelho grosseiramente escarlate as unhas das mãos Mas como as roia quase até o sabugo o vermelho berrante era logo desgastado e viase o sujo preto por baixo E quando acordava Quando acordava não sabia mais quem era Só depois é que pensava com satisfação sou datilógrafa e virgem e gosto de cocacola Só então vestia se de si mesma passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser Será que eu enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos Mas aí que está esta história não tem nenhuma técnica nem estilo ela é ao deusdará Eu que também não marcharia por nada deste mundo com palavras brilhantes e falsas uma vida parca como a da datilógrafa Durante o dia eu faço como todos gestos despercebidos por mim mesmo Pois um dos gestos mais despercebidos é esta história de que não tenho culpa e que sai como sair A datilógrafa vivia numa espécie de atordoado nimbo entre céu e inferno Nunca pensara em eu sou eu Acho que julgava não ter direito ela era um acaso Um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal Há milhares como ela Sim e que são apenas um acaso Pensando bem quem não é um acaso na vida Quanto a mim só me livro de ser apenas um acaso porque escrevo o que é um ato que é um fato É quando entro em contato forças interiores minhas encontro através de mim o vosso Deus Para que escrevo E eu sei Sei não Sim é verdade às vezes também penso que eu não sou eu pareço pertencer a uma galáxia longínqua de tão estranho que sou de mim Sou eu Espantome com o meu encontro A nordestina não acreditava na morte como eu já disse pensava que não pois não é que estava viva Esquecera os nomes da mãe e do pai nunca mencionados pela tia Com excesso de desenvoltura estou usando a palavra escrita e isso estremece em mim que fico com medo de me afastar da Ordem e cair no abismo povoado de gritos o Inferno da liberdade Mas continuarei Continuando Todas as madrugadas ligava o rádio emprestado por uma colega de moradia Maria da Penha ligava bem baixinho para não acordar as outras ligava invariavelmente para a Rádio Relógio que dava hora certa e cultura e nenhuma música só pingava em som gotas que caem cada gota de minuto que passava E sobretudo esse canal de rádio aproveitava intervalos entre as tais gotas de minuto para das anúncios comerciais ela adorava anúncios Era rádio perfeita pois também entre os pingos do tempo dava curtos ensinamentos dos quais talvez algum dia viesse a precisar saber Foi assim que aprendeu que o Imperador Carlos Magno era na terra dele chamado Carolus Verdade que nunca achara modo de aplicar essa informação Mas nunca se sabe quem espera sempre alcança Ouvira também a informação de que o único animal que não cruza com filho era o cavalo Isso moço é indecência disse ela para a rádio Outra vez ouvira Arrependete em Cristo e Ele te dará felicidade Então ela se arrependera Como não sabia bem de quê arrependiase toda e de tudo O pastor também falava que vingança é coisa infernal Então ela não se vingava Sim quem espera sempre alcança É Tinha o que se chama de vida interior e não sabia que tinha Vivia de si mesma como se comesse as próprias entranhas Quando ia ao trabalho parecia uma doida mansa porque ao correr do ônibus devaneava em altos e deslumbrantes sonhos Estes sonhos 14 de tanta interioridade eram vazios porque lhe faltava o núcleo essencial de uma prévia experiência de de êxtase digamos A maior parte do tempo tinha sem o saber o vazio que enche a alma dos santos Ela era santa Ao que parece Não sabia que meditava pois não sabia o que queria dizer a palavra Mas pareceme que sua vida era uma longa meditação sobre o nada Só que precisava dos outros para crer em si mesma senão se perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia nela Meditava enquanto batia à máquina e por isso errava ainda mais Mas tinha prazeres Nas frígidas noites ela toda estremecente sob o lençol de brim costumava ler à luz de vela os anúncios que recortava de jornais velhos do escritório Colavaos no álbum Havia um anúncio o mais precioso que mostrava em cores o pote aberto de um creme para pele de mulheres que simplesmente não eram ela Executando o fatal cacoete que pegara de piscar os olhos ficava só imaginando com delícia o creme era tão apetitoso que se tivesse dinheiro para compralo não seria boba Que pele que nada ela o comeria isso sim à colheradas no pote mesmo É que lhe faltava gordura e seu organismo estava seco que nem saco meio vazio de torrada esfarelada Tornarase com o tempo apenas matéria vivente em sua fonte primária Talvez fosse assim para se defender da grande tentação de ser infeliz de uma vez e ter pena de si Quando penso que eu podia ter nascido ela e por que não estremeço E parece me covarde fuga de eu não ser sinto culpa como disse num dos títulos Em todo caso o futuro parecia via a ser muito melhor Pelos menos o futuro tinha a vantagem de não ser o presente Sempre há um melhor para o ruim Mas não havia nela miséria humana É que tinha em si mesma uma certa flor fresca Pois por estranho que pareça ela acreditava Era apenas fina matéria orgânica Existia Só isto E eu De mim só se sabe o que respiro Embora só tivesse nela a pequena flama indispensável um sopro de vida Estou passando por um pequeno inferno com esta história Queiram os deuses que eu nunca descreva o lázaro porque senão eu me cobriria de lepra Se estou demorando um pouco em fazer acontecer o que já prevejo vagamente é porque preciso tirar vários retratos dessa alagoana E também porque se houver algum leitor para essa história quero que ele se embeba da jovem assim como um pano de chão todo encharcado A moça é uma verdade da qual eu não queria saber Não sei a quem acusar mas deve haver um réu Será que entrando na semente de sua vida estarei como que violando o segredo dos faraós Terei castigo de morte por falar de uma vida que contém como todas um segredo inviolável Estou procurando danadamente achar nessa existência pelos menos um topázio de esplendor Até o fim talvez o deslumbre ainda não sei mas tenho esperança Esqueci de dizer que às vezes a datilógrafa tinha enjôo para comer Isso vinha desde pequena quando soubera que havia comido gato frito Assustouse para sempre Perdeu o apetite só tinha grande fome Parecialhe que havia cometido um crime e que comera um anjo e porque acreditava eles existiam Nunca havia jantado ou almoçado num restaurante Era de pé mesmo no botequim da esquina Tinha uma vaga idéia que mulher que entra em restaurante é francesa e desfrutável Havia coisas que não sabia o que significava Uma era efeméride E não é que Seu Raimundo só mandava copiar com sua letra linda a palavra efemérides ou efeméricas Achava o termo efemírides absolutamente misterioso Quando copiava prestava atenção a cada letra Glória era estenografa e não só ganhava mais como não parecia se atrapalhar com as palavras difíceis das quais o chefe tanto gostava Enquanto isso a mocinha se apaixonara pela palavra efemérides Outro retrato nunca recebera presentes Aliás não precisava de muita coisa Mas um dia viu algo que por um leve instante cobiçou um livro que Seu Raimundo dado a literatura deixara sobre a mesa O título era Humilhados e Ofendidos Ficou pensativa Talvez tivesse pela primeira vez se definido numa classe social Pensou pensou e pensou Chegou à conclusão que na verdade ninguém jamais a ofendera tudo que 15 acontecia era porque as coisas são assim mesmo e não havia luta possível para que lutar Pergunto eu conheceria ela algum dia do amor o seu adeus Conheceria algum do amor os seus desmaios Teria a seu modo o doce vôo De nada sei Que se há de fazer com a verdade de que todo mundo é um pouco triste e um pouco só A nordestina se perdia na multidão Na praça Mauá onde tomava o ônibus fazia frio e nenhum agasalho havia contra o vento Ah mas existiam os navios cargueiros que lhe davam saudades quem sabe de quê Isso só às vezes Na verdade saía do escritório sombrio defrontava o ar lá de fora crepuscular e constatava então que todos os dias à mesma hora fazia exatamente a mesma hora Irremediavelmente era o grande relógio que funcionava no tempo Sim desesperadamente para mim as mesmas horas Bem e daí Daí nada Quanto a mim autor de uma vida me dou mal com a repetição a rotina me afasta de minhas possíveis novidades Por falar em novidades a moça um dia viu num botequim um homem tão tão tão bonito que que queria têlo em casa Deveria ser como como ter uma grande esmeraldaesmeraldaesmeralda num estojo aberto Intocável Pela aliança viu que ele era casado Como casar comcomcom um ser que era paraparapara ser visto gaguejava ela no seu pensamento Morreria de vergonha de comer na frente dele porque ele era bonito além do possível equilíbrio de uma pessoa Pois não é que quis descansar as costas por um dia Sabia que se falasse isso ao chefe ele não acreditaria que lhe doíam as costelas Então valeuse de uma mentira que convence mais que a verdade disse ao chefe que no dia seguinte não poderia trabalhar porque arrancar um dente era muito perigoso E a mentira pegou Às vezes só a mentira salva Então no dia seguinte quando as quatro Marias cansadas foram trabalhar ela teve pela primeira vez na vida uma coisa a mais preciosa a solidão Tinha um quarto só para ela Mal acreditava que usufruía o espaço E nem uma palavra era ouvida Então dançou num ato de absoluta coragem pois a tia não a entenderia Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se tornava livre Usufruía de tudo da arduamente conseguida solidão do rádio de pilha tocando o mais alto possível da vastidão do quarto sem as Marias Arrumou como pedido de favor um pouco de café solúvel com a dona dos quartos e ainda como favor pediulhe água fervendo tomou tudo se lambendo e diante do espelho para nada perder de si mesma Encontrarse consigo própria era um bem que ela até então não conhecia Acho que nunca fui tão contente na vida pensou Não devia nada a ninguém e ninguém lhe devia nada Até deuse ao luxo de ter tédio um tédio até muito distinto Desconfio um pouco de sua facilidade inesperada de pedir favor Então precisava ela de condições especiais para ter encanto Por que não agia sempre assim na vida E até verse no espelho não foi tão assustador estava contente mas como doía Ah mês de maio não me largues nunca mais Explosão foi a sua íntima exclamação no dia seguinte 7 de maio ela que nunca exclamava Provavelmente porque alguma coisa finalmente lhe era dada Dada por si mesma mas dada Nesta manhã de dia 7 o êxtase inesperado para o seu tamanho pequeno corpo A luz aberta e rebrilhante das ruas atravessava a sua opacidade Maio mês dos véus de noiva flutuando em branco O que se segue é apenas uma tentativa de reproduzir três páginas que escrevi e que a minha cozinheira vendoas soltas jogou no lixo para o meu desespero que os mortos me ajudem a suportar o quase insuportável já que de nada me valem os vivos Nem de longe consegui igualar a tentativa de repetição artificial do que originalmente eu escrevi sobre o encontro com o seu futuro namorado É com humildade que contarei agora a história da história Portanto se me perguntarem como foi direi não sei perdi o encontro Maio mês das borboletas noivas flutuando em brancos véus Sua exclamação talvez tivesse sido um prenúncio do que ia acontecer no final da tarde desse mesmo dia no meio da chuva abundante encontrou explosão a primeira espécie de namorado de 16 sua vida o coração batendo como se ela tivesse englutido um passarinho esvoaçante e preso O rapaz e ela se olharam por entre a chuva e se reconheceram como dois nordestinos bichos da mesma espécie que se farejam Ele a olhara enxugando o rosto molhado com as mãos E a moça bastoulhe vêlo para tornálo imediatamente sua goiabadacomqueijo Ele Ele se aproximou e com a voz cantante de nordestino que a emocionou perguntoulhe E se me desculpe senhorita posso convidar a passear Sim respondeu atabalhoadamente com a pressa antes que ele mudasse de idéia E se me permite qual é mesmo a sua graça Macabéa Maca o quê Bea foi ela obrigada a completar Me desculpe mas até parece doença doença de pele Eu também acho esquisito mas minha mãe botou ele por promessa a Nossa Senhora da Boa Morte se vingasse até um ano de idade eu não era chamada não tinha nome eu preferia continuar a nunca ser chamada em vez de ter um nome que ninguém tem mas parece que deu certo parou um instante retomando o fôlego perdido e acrescentou desanimada e com pudor pois como o senhor vê eu vinguei pois é Também no sertão da Paraíba promessa é questão de grande dívida de honra Eles não sabiam como se passeia Andaram sob a chuva grossa e pararam diante da vitrine de uma loja de ferragem onde estavam expostos atrás do vidro canos latas parafusos grandes e pregos E Macabéa com medo de que o silêncio já significasse uma ruptura disse ao recémnamorado Eu gosto tanto de parafuso e prego e o senhor Da segunda vez em que se encontraram caía uma chuva fininha que ensopava os ossos Sem nem ao menos se darem as mãos caminhavam na chuva que na cara de Macabéa parecia lágrimas escorrendo Da terceira vez em que se encontraram pois não é que estava chovendo o rapaz irritado e perdendo o leve verniz de finura que o padrasto a custo lhe ensinara disselhe Você também só sabe é mesmo chover Desculpe Mas ela já o amava tanto que não sabia mais como se livrar dele estava em desespero de amor Numa das vezes em que se encontraram ela afinal perguntoulhe o nome Olímpico de Jesus Moreira Chaves mentiu ele porque tinha como sobrenome apenas o de Jesus sobrenome dos que têm pai Fora criado por um padrasto que lhe ensinara o modo fino de tratar pessoas para se aproveitar delas e lhe ensinara como pegar mulher Eu não entendo o seu nome disse ela Olímpico Macabéa fingia enorme curiosidade escondendo dele que ela nunca entendia tudo muito bem e que isso era assim mesmo Mas ele galinho de briga que era arrepiouse todo com a pergunta tola e que ele não sabia responder Disse aborrecido Eu sei mas não quero dizer Não faz mal não faz mal não faz mal a gente não precisa entender o nome Ela sabia o que era o desejo embora não soubesse que sabia Era assim ficava faminta mas não de comida era um gosto meio doloroso que subia do baixoventre e arrepiava o bico dos seios e os braços vazios sem abraço Tornavase toda dramática e viver doía Ficava então meio nervosa e Glória lhe dava água com açúcar 17 Olímpico de Jesus trabalhava de operário numa metalúrgica e ela nem notou que ele não se chamava de operário e sim de metalúrgico Macabéa ficava contente com a posição social dele porque também tinha orgulho de ser datilógrafa embora ganhasse menos que o salário mínimo Mas ela e Olímpico eram alguém no mundo Metalúrgico e datilógrafa formavam um casal de classe A tarefa de Olímpico tinha o gosto que se sente quando se fuma um cigarro acendendoo do lado errado na ponta da cortiça O trabalho consistia em pegar barras de metal que vinham deslizando de cima da máquina para colocálas embaixo sobre uma placa deslizante Nunca se perguntara por que colocava a barra embaixo A vida não lhe era má e ele até economizava um pouco de dinheiro dormia de graça numa guarita em obras de demolição por camaradagem do vigia Macabéa disse As boas maneiras são a melhor herança Pois para mim a melhor herança é mesmo muito dinheiro Mas um dia vou ser muito rico disse ele que tinha uma grandeza demoníaca a sua força sangrava Uma coisa que tinha vontade de ser era toureiro Uma vez fora ao cinema e estremecera da cabeça aos pés quando vira a capa vermelha Não tinha pena do touro Gostava era de ver sangue No Nordeste tinha juntado salários e salários para arrancar um canino perfeito e trocálo por um dente de ouro faiscante Este dente lhe dava posição na vida Aliás matar tinha feito dele homem com letra maiúscula Olímpico não tinha vergonha era o que se chamava no Nordeste de cabra safado Mas não sabia que era um artista nas horas de folga esculpia figuras de santo e eram tão bonitas que ele não as vendia Todos os detalhes ele punha e sem faltar ao respeito esculpia tudo do Menino Jesus Ele achava que o que é é mesmo e Cristo tinha sido além de santo um homem como ele embora sem dente de ouro Os negócios públicos interessavam Olímpico Ele adorava ouvir discursos Que tinha seus pensamentos isso lá tinha Acocoravase com o cigarro barato nas mãos e pensava Como na Paraíba ele se acocorava no chão o traseiro sentado no zero a meditar Ele dizia alto e sozinho Sou muito inteligente ainda vou ser deputado E não é que ele dava para fazer discurso Tinha o tom cantado e o palavreado seboso próprio para quem abre a boca e fala pedindo e ordenando os direitos do homem No futuro que eu não digo nesta história não é que ele terminou mesmo deputado E obrigando os outros a chamaremno de doutor Macabéa era na verdade uma figura medieval enquanto Olímpico de Jesus se julgava peçachave dessas que abrem qualquer porta Macabéa simplesmente não era técnica ela era só ela Não não quero ter sentimentalismo e portanto vou cortar o coitado implícito dessa moça Mas tenho que anotar que Macabéa nunca recebera uma carta em sua vida e o telefone do escritório só chamava o chefe e Glória Ela uma vez pediu a Olímpico que lhe telefonasse Ele disse Telefonar para ouvir as tuas bobagens Quando Olímpico lhe dissera que terminaria deputado pelo Estado da Paraíba ela ficou boquiaberta e pensou quando nos casarmos então serei uma deputada Não queria pois deputada parecia nome feio Como eu disse essa não é uma história de pensamentos Depois provavelmente voltarei para as inominadas sensações até sensações de Deus Mas a história de Macabéa tem que sair senão eu estouro As poucas conversas entre os namorados versavam sobre farinha carnedesol carneseca rapadura melado Pois esse era o passado de ambos e eles esqueciam o amargor da infância porque esta já que passou é sempre acredoce e dá até nostalgia Pareciam por demais irmãos coisa que só agora estou percebendo não dá para casar Mas eu não sei se eles sabiam disso Casariam ou não Ainda não sei só sei que eram de algum modo inocentes e pouca sombra faziam no chão Não menti agora vi tudo ele não era inocente coisa alguma apesar de ser uma 18 vítima geral do mundo Tinha descobri agora dentro de si a dura semente do mal gostava de se vingar este era o seu grande prazer e o que lhe dava força de vida Mais do que ela que não tinha anjo da guarda Enfim o que fosse acontecer aconteceria E por enquanto nada acontecia os dois não sabiam inventar acontecimentos Sentavamse no que é de graça banco de praça pública E ali acomodados nada os distinguia do resto do nada Para a grande glória de Deus Ele Pois é Ela Pois é o quê Ele Eu só disse pois é Ela Mas pois é o quê Ele Melhor mudar de conversa porque você não me entende Ela Entender o quê Ele Santa Virgem Macabéa vamos mudar de assunto e já Ela Falar então de quê Ele Por exemplo de você Ela Eu Ele Por que esse espanto Você não é gente Gente fala de gente Ela Desculpe mas não acho que sou muito gente Ele Mas todo mundo é gente meu Deus Ela É que não me habituei Ele Não se habituou com quê Ela Ah não sei explicar Ele E então Ela Então o quê Ele Olhe eu vou embora porque você é impossível Ela É que só sei ser impossível não sei mais nada Que é que eu faço para conseguir ser possível Ele Pare de falar porque você só diz besteira Diga o que é do teu agrado Ela Acho que não sei dizer Ele Não sabe o quê Ela Hein Ele Olhe até estou suspirando de agonia Vamos não falar em nada está bem Ela Sim está bem como você quiser Ele É você não tem solução Quanto a mim de tanto me chamarem eu virei eu No sertão da Paraíba não há quem não saiba quem é Olímpico E um dia o mundo todo vai saber de mim É Pois se eu estou dizendo Você não acredita Acredito sim acredito acredito não quero lhe ofender Em pequena ela vira uma casa pintada de rosa e branco com um quintal onde havia um poço com cacimba e tudo Era bom olhar para dentro Então seu ideal se transformara nisso em vir a ter um poço só para ela Mas não sabia como fazer e então perguntou a Olímpico Você sabe se a gente pode comprar um buraco Olhe você não reparou até agora não desconfiou que tudo que você pergunta não tem resposta Ela ficou de cabeça inclinada para o ombro assim como uma pomba fica triste Quando ele falava em ficar rico uma vez ela lhe disse Não será somente visão Vá para o inferno você só sabe desconfiar Eu só não digo palavrões grossos porque você é moçadonzela Cuidado com suas preocupações dizem que dá ferida no estômago Preocupações coisa nenhuma pois eu sei no certo que vou vencer Bem e você 19 tem preocupações Não não tenho nenhuma Acho que não preciso vencer na vida Foi a única vez em que falou de si própria para Olímpico de Jesus Estava habituada a se esquecer de si mesma Nunca quebrava seus hábitos tinha medo de inventar Você sabia que na Rádio Relógio disseram que um homem escreveu um livro chamado Alice no País das Maravilhas e que era também um matemático Falaram também em élgebra O que é que quer dizer élgebra Saber disso é coisa de fresco de homem que vira mulher Desculpe a palavra de eu ter dito fresco porque isso é palavrão para moça direita Nessa rádio eles dizem essa coisa de cultura e palavras difíceis por exemplo o que quer dizer eletrônico Silêncio Eu sei mas não quero dizer Eu gosto tanto de ouvir os pingos de minutos do tempo assim tictactictactic A rádio Relógio diz que dá a hora certa cultura e anúncios Que quer dizer cultura Cultura é cultura continuou ele emburrado Você também vive me encostando na parede É que muita coisa eu não entendo bem O que quer dizer renda per capita Ora é fácil é coisa de médico O que dizer rua Conde de Bonfim O que é que conde É príncipe Não contou que o roubara no mictório da fábrica o colega o tinha deixado na pia quando lavara as mãos Ninguém soube ele era um verdadeiro técnico em roubar não usava o relógio de pulso no trabalho Sabe o que mais eu aprendi Eles disseram que se devia ter alegria de viver Então eu tenho Eu também ouvi uma música linda eu até chorei Era samba Acho que era E cantada por um homem chamado Caruso que se diz que já morreu A voz era tão macia que até doía ouvir A música chamavase Una Furtiva Lacrima Não sei por que eles não disseram lágrima Una Furtiva Lacrima fora a única coisa belíssima na sua vida Enxugando as próprias lágrimas tentou cantar o que ouvira Mas a sua voz era crua e tão desafinada como ela mesma era Quando ouviu começara chorar Era a primeira vez que chorava não sabia que tinha tanta água nos olhos Chorava assoava o nariz sem saber mais por que chorava Não chorava por causa da vida que levava porque não tendo conhecido outros modos de viver aceitara que com ela era assim Mas também creio que chorava porque através da música adivinhava talvez que havia outros modos de sentir havia existências mais delicadas e até com um certo luxo de alma Muitas coisas sabia que não sabia entender Aristocracia significaria por acaso uma graça concedida Provavelmente Se é assim que assim seja O mergulho na vastidão do mundo musical que não carecia de se entender Seu coração disparara E junto de Olímpico ficou de repente corajosa e arrojandose no desconhecido de si mesma disse Eu acho que até sei cantar essa música Lálálálálá Você até parece uma muda cantando Voz de cana rachada Deve ser porque é a primeira vez que canto na vida Ela achava que lacrima em vez de lágrima era erro do homem da rádio Nunca lhe ocorrera a existência de outra língua e pensava que no Brasil se falava brasileiro Além dos cargueiros do mar nos domingos só tinha essa música O substrato último da música era a sua única vibração E o namoro continuava ralo Ele Depois que minha santa mãe morreu nada mais me prendia na Paraíba De que é que ela morreu De nada Acabouse a saúde dela Ele falava coisas grandes mas ela prestava atenção nas coisas insignificantes 20 como ela própria Assim registrou um portão enferrujado retorcido rangente e descascado que abria o caminho para uma série de casinhas iguais de vila Vira isso do ônibus A vila além do número 106 tinha uma plaqueta onde estava escrito o nome das casas Chamavase Nascer do Sol Bonito o nome que também augurava coisas boas Ela achava Olímpico muito sabedor das coisas Ele dizia o que ela nunca tinha ouvido Uma vez ele falou assim A cara é mais importante do que o corpo porque a cara mostra o que a pessoa está sentindo Você tem cara de quem comeu e não gostou não aprecio cara triste vê se muda e disse uma palavra difícil vê se muda de expressão Ela disse consternada Não sei como se faz outra cara Mas é só na cara que sou triste porque por dentro eu só até alegre É tão bom viver não é Claro Mas viver bem é coisa de privilegiado Eu sou um e você me vê magro e pequeno mas sou forte eu com um braço posso levantar você do chão Quer ver Não não os outros olham e vão maldar Magricela esquisita ninguém olha E lá foram para a esquina Macabéa estava muito feliz Realmente ele a levantou para o ar acima da própria cabeça Ela disse eufórica Deve ser assim viajar de avião É Mas de repente ele não agüentou o peso num só braço e ela caiu de cara na lama o nariz sangrando Mas era delicada e foi logo dizendo Não se incomode foi uma queda pequena Como não tinha lenço para limpar a lama e o sangue enxugou o rosto com a saia dizendo Você não olhe enquanto eu estiver me limpando por favor porque é proibido levantar a saia Mas ele emburrara de vez e não disse mais nenhuma palavra Passou vários dias sem procurála seu brio fora atingido Afinal terminou por voltar para ela Por motivos diferentes entraram num açougue Para ela o cheiro da carne crua era um perfume que a levitava toda como se tivesse comido Quanto a ele o que queria ver era o açougueiro e sua faca amolada Tinha inveja do açougueiro e também queria ser Meter a faca na carne o excitava Ambos saíram do açougue satisfeitos Embora ela se perguntasse que gosto terá esta carne E ele se perguntava como é que uma pessoa consegue ser açougueiro Qual era o segredo O pai de Glória trabalhava num açougue belíssimo Ela disse Eu vou ter tanta saudade de mim quando morrer Besteira morrese e morrese de uma vez Não foi o que minha tia me ensinou Que tua tia se dane Sabe o que eu mais queria na vida Pois era ser artista de cinema Só vou ao cinema no dia em que o chefe me paga Eu escolho cinema poeira sai mais barato Adoro as artistas Sabe que Marylin era toda corderosa E você tem cor de suja Nem tem rosto nem corpo para ser artista de cinema Você acha mesmo Tá na cara Não gosto de ver sangue no cinema Olhe sangue eu não posso mesmo ver porque me dá vontade de vomitar Vomitar ou chorar Até hoje com a graça de Deus nunca vomitei É dessa vaca não sai leite Pensar era tão difícil ela não sabia de que jeito se pensava Mas Olímpico não só pensava como usava palavreado fino Nunca esqueceria que no primeiro encontro ele a chamara de senhorinha ele fizera dela um alguém Como era um alguém comprou um batom corderosa O seu diálogo era sempre oco Davase conta longinquamente de que 21 nunca dissera uma palavra verdadeira E amor ela não chamava de amor chamava de nãoseioquê Olhe Macabéa Olhe o quê Não meu Deus não é olhe de ver é olhe como quando se quer que uma pessoa escute Está me escutando Tudinho tudinho Tudinho o quê meu Deus pois se eu ainda não falei Pois olhe vou lhe pagar um cafezinho no botequim Quer Pode ser pingado com leite Pode é o mesmo preço se for mais o resto você paga Macabéa não dava nenhuma despesa a Olímpico Só dessa vez quando lhe pagou um cafezinho pingado que ela encheu de açúcar quase a ponto de vomitar mas controlou se para não fazer vergonha O açúcar ela botou muito para aproveitar E uma vez os dois foram ao Jardim Zoológico ela pagando a própria entrada Teve muito espanto ao ver os bichos Tinha medo e não os entendia por que viviam Mas quando viu a massa compacta grossa preta e roliça do rinoceronte que se movia em câmara lenta teve tanto medo que se mijou toda O rinoceronte lhe pareceu um erro de Deus que me perdoe por favor sim Mas não pensara em Deus nenhum era apenas um modo de Com a graça de alguma divindade Olímpico nada percebeu e ela disse a ele Estou molhada porque me sentei no banco molhado E ele nada percebeu Ela rezou automaticamente em agradecimento Não era agradecimento a Deus só estava repetindo o que aprendera na infância A girafa é tão elegante não é Besteira bicho não é elegante Ela teve inveja da girafa que pairava tão longe no ar Tendo visto que seus comentários sobre bichos não agradavam Olímpico procurou outro assunto Na Rádio Relógio disseram uma palavra que achei meio esquisita mimetismo Olímpico olhoua desconfiado Isso é lá coisa para moça virgem falar E para que serve saber demais O Mangue está cheio de raparigas que fizeram perguntas demais Mangue é um bairro É lugar ruim só pra homem ir Você não vai entender mas eu vou lhe dizer uma coisa ainda se encontra mulher barata Você me custou pouco um cafezinho Não vou gastar mais nada com você está bem Ela pensou eu não mereço que ele me pague nada porque me mijei Depois da chuva do Jardim Zoológico Olímpico não foi mais o mesmo desembestara E sem notar que ele próprio era de poucas palavras como convém a um homem sério disselhe Mas puxa vida Você não abre o bico e nem tem assunto Então aflita ela lhe disse Olhe o Imperador Carlos Magno era chamado na terra dele de Carolus E você sabia que a mosca voa tão depressa que se voasse em linha reta ela ia passar pelo mundo todo em 28 dias Isso é mentira Não é não juro pela minha alma pura que aprendi isso na Rádio Relógio Pois não acredito Quero cair morta neste instante se estou mentindo Quero que meu pai e minha mãe fiquem no inferno se estou lhe enganando Vai ver que cai mesmo morta Escuta aqui você está fingindo que é idiota ou é idiota mesmo Não sei bem o que sou me acho um pouco de quê Quer dizer não sei bem quem eu sou Mas você sabe que se chama Macabéa pelo menos isso 22 É verdade Mas não sei o que está dentro do meu nome Só sei que eu nunca fui importante Pois fique sabendo que meu nome ainda será escrito nos jornais e sabido por todo o mundo Ela disse para Olímpico Sabe que na minha rua tem um galo que canta Por que é que você mente tanto Juro quero ver minha mãe cair morta se não é verdade Mas sua mãe já não morreu Ah é mesmo que coisa Mas e eu E eu que estou contando esta história que nunca me aconteceu e nem a ninguém que eu conheça Fico abismado por saber tanto a verdade Será que o meu ofício doloroso é o de adivinhar na carne a verdade que ninguém quer enxergar Se sei quase tudo de Macabéa é que já peguei uma vez de relance o olhar de uma nordestina amarelada Esse relance me deu ela de corpo inteiro Quanto ao paraibano na certa devo terlhe fotografado mentalmente a cara e quando se presta atenção espontânea e virgem de imposições quando se presta atenção a cara diz quase tudo E agora apagome de novo e volto para essas duas pessoas que por força das circunstancias eram seres meio abstratos Mas ainda não expliquei bem Olímpico Vinha do sertão da Paraíba e tinha uma resistência que provinha da paixão por sua terra braba e rachada pela seca Trouxera consigo comprada no mercado da Paraíba uma lata de vaselina perfumada e um pente como posse sua e exclusiva Besuntava o cabelo preto até encharcálo Não desconfiava que as cariocas tinham nojo daquela meladeira gordurosa Nascera crestado e duro que nem galho seco de árvore ou pedra ao sol Era mais passível de salvação que Macabéa pois não fora à toa que matara um homem desafeto seu nos cafundós do sertão o canivete comprido entrando molemole no fígado macio do sertanejo Guardava disso segredo absoluto o que lhe dava a força que um segredo dá Olímpico era macho de briga Mas fraquejava em relação a enterros às vezes ia três vezes por semana a enterro de desconhecidos cujos anúncios saíam nos jornais e sobretudo no O dia e seus olhos ficavam cheios de lágrimas Era uma fraqueza mas quem não tem a sua Semana em que não havia enterro era semana vazia desse homem que se era doido sabia muito bem o que queria De modo que não era doido coisa alguma Macabéa ao contrário de Olímpico era fruto do cruzamento de o quê com o quê Na verdade ela parecia ter nascido de uma idéia vaga qualquer dos pais famintos Olímpico pelo menos roubava sempre que podia e até do vigia de obras onde era sua dormida Ter matado e roubar faziam com que ele não fosse um simples acontecido qualquer davamlhe uma categoria faziam dele um homem com honra até lavada Ele também se salvava mais do que Macabéa porque tinha grande talento para desenhar rapidamente perfeitas caricaturas ridículas dos retratos de poderosos nos jornais Era a sua vingança Sua única bondade com Macabéa foi dizerlhe que arranjaria para ela emprego na metalúrgica quando fosse despedida Para ela a promessa fora um escândalo de alegria explosão porque na metalúrgica encontraria a sua única conexão atual com o mundo o próprio Olímpico Mas Macabéa de um modo geral não se preocupava com o próprio futuro ter futuro era luxo Ouvira na Rádio Relógio que havia sete bilhões de pessoas no mundo Ela se sentia perdida Mas com a tendência que tinha para ser feliz logo se consolou havia sete bilhões de pessoas para ajudála Macabéa gostava de filme de terror ou de musicais Tinha predileção por mulher enforcada ou que levava um tiro no coração Não sabia que ela própria era uma suicida embora nunca lhe tivesse ocorrido se matar É que a vida lhe era tão insossa que nem pão velho sem manteiga Enquanto Olímpico era um diabo premiado e vital e dele nasceriam filhos ele tinha o precioso sêmen E como já foi dito ou não foi dito Macabéa tinha ovários murchos como um cogumelo cozido Ah pudesse eu pegar Macabéa dar lhe um bom banho um prato de sopa um beijo na testa enquanto a cobria com um cobertor E fazer que quando ela acordasse encontrasse simplesmente o grande luxo de 23 viver Olímpico na verdade não mostrava satisfação nenhuma em namorar Macabéa é o que eu descubro agora Olímpico talvez visse que Macabéa não tinha força de raça era subproduto Mas quando ele viu a colega da Macabéa sentiu logo que ela tinha classe Glória possuía no sangue um bom vinho português e também era amaneirada no bamboleio do caminhar por causa do sangue africano escondido Apesar de branca tinha em si a força da mulatice Oxigenava em amareloovo os cabelos crespos cujas raízes estavam sempre pretas Mas mesmo oxigenada ela era loura o que significava um degrau a mais para Olímpico Além de ter uma grande vantagem que nordestino não podia desprezar É que Glória lhe dissera quando lhe fora apresentada por Macabéa sou carioca da gema Olímpico não entendeu o que significava da gema pois esta era uma gíria ainda do tempo de juventude do pai de Glória O fato de ser carioca tornavaa pertencente ao ambicionado clã do sul do país Vendoa ele logo adivinhou que apesar de feia Glória era bem alimentada E isso fazia dela material de boa qualidade Enquanto isso o namoro com Macabéa entrara em rotina morna se é que alguma vez haviam experimentado o quente Muitas vezes ele não aparecia no ponto do ônibus Mas pelo menos era um namorado E Macabéa só pensava no dia em que ele quisesse ficar noivo E casar Posteriormente de pesquisa em pesquisa ele soube que Glória tinha mãe pai é comida quente em hora certa Isso tornavaa de primeira qualidade Olímpico caiu em êxtase quando soube que o pai dela trabalhava num açougue Pelos quadris adivinhavase que seria boa parideira Enquanto Macabéa lhe pareceu ter em si mesma o seu próprio fim Esqueci de dizer que era realmente de se espantar que para corpo quase murcho de Macabéa tão vasto fosse o seu sopro de vida quase ilimitado e tão rico como o de uma donzela grávida engravidada por si mesma por partenogênese tinha sonhos esquizóides nos quais apareciam gigantescos animais antediluvianos como se ela tivesse vivido em épocas as mais remotas desta terra sangrenta Foi então explosão que se desmanchou de repente o namoro entre Olímpico e Macabéa Namoro talvez esquisito mas pelo menos parente de algum amor pálido Ele avisoulhe que encontrara outra moça é que esta era Glória Explosão Macabéa bem viu o que aconteceu com Olímpico e Glória os olhos de ambos se haviam beijado Diante da cara um pouco inexpressiva demais de Macabéa ele até que quis lhe dizer alguma gentileza suavizante na hora do adeus para sempre E ao se despedir lhe disse Você Macabéa é um cabelo na sopa Não dá vontade de comer Me desculpe se eu lhe ofendi mas sou sincero Você está ofendida Não não não Ah por favor quero ir embora Por favor me diga logo adeus É melhor eu não falar em felicidade ou infelicidade provoca aquela saudade desmaiada e lilás aquele perfume de violeta as águas geladas da maré mansa em espumas pela areia Eu não quero provocar porque dói Macabéa esqueci de dizer tinha uma infelicidade era sensual Como é que num corpo cariado como o dela cabia tanta lascívia sem que ela soubesse que tinha Mistério Havia no começo do namoro pedido a Olímpico um retratinho tamanho 3x4 onde ele saiu rindo para mostrar o canino de ouro e ela ficava tão excitada que rezava três painossos e duas avemarias para se acalmar Na hora em que Olímpico lhe dera o fora a reação dela explosão veio de repente inesperada pôsse sem mais nem menos a rir Ria por não ter se lembrado de chorar Surpreendido Olímpico sem entender deu gargalhadas Ficaram rindo os dois Aí ele teve uma intuição que finalmente era uma delicadeza perguntoulhe se ela estava rindo de nervoso Ela parou de rir e disse muito muito cansada Não sei não Macabéa entendeu uma coisa Glória era um estardalhaço de existir E tudo devia 24 ser porque Glória era gorda A gordura sempre fora o ideal secreto de Macabéa pois em Maceió ouvira um rapaz dizer para uma gorda que passava na rua a tua gordura é formosura A partir de então ambicionara ter carnes e foi quando fez o único pedido de sua vida Pediu que a tia lhe comprasse óleo de fígado de bacalhau Já então tinha tendência para anúncios A tia perguntaralhe você pensa lá que é filha de família querendo luxo Depois que Olímpico a despediu já que ela não era uma pessoa triste procurou continuar como se nada tivesse perdido Ela não sentiu desespero etc etc Também que é que ela podia fazer Pois ela era crônica E mesmo tristeza também era coisa de rico era para quem podia para quem não tinha o que fazer Tristeza era luxo Esqueci de dizer que no dia seguinte ao que ele lhe dera o fora ela teve uma idéia Já que ninguém lhe dava festa muito menos noivado daria uma festa para si mesma A festa consistiu em comprar sem necessidade um batom novo não corderosa como o que usava mas vermelho vivante No banheiro da firma pintou a boca toda e até fora dos contornos para que os seus lábios finos tivessem aquela coisa esquisita dos lábios de Marylin Monroe Depois de pintada ficou olhando no espelho a figura que por sua vez a olhava espantada Pois em vez de batom parecia que grosso sangue lhe tivesse brotado dos lábios por um soco em plena boca com quebradentes e rasgacarne pequena explosão Quando voltou para a sala de trabalho Glória riuse dela Você endoidou criatura Pintarse como uma endemoniada Você até parece mulher de soldado Sou moça virgem Não sou mulher de soldado e marinheiro Me desculpe eu perguntar ser feia dói Nunca pensei nisso acho que dói um pouquinho Mas eu lhe pergunto se você que é feia sente dor Eu não sou feia gritou Glória Depois tudo passou e Macabéa continuou a gostar de não pensar em nada Vazia vazia Como eu disse ela não tinha anjo da guarda Mas se arranjava como podia Quanto ao mais ela era quase impessoal Glória perguntoulhe Por que é que você me pede tanta aspirina Não estou reclamando embora isso custe dinheiro É para eu não me doer Como é que é Hein Você se dói Eu me dôo o tempo todo Aonde Dentro não sei explicar Aliás cada vez mais ela não se sabia explicar Transformarase em simplicidade orgânica E arrumara um jeito de achar nas coisas simples e honestas a graça de um pecado Gostava de sentir o tempo passar Embora não tivesse relógio ou por isso mesmo gozava o grande tempo Era supersônica de vida Ninguém percebia que ela ultrapassava com sua existência a barreira do som Para as pessoas outras ela não existia A sua única vantagem sobre os outros era saber engolir pílulas sem água assim a seco Glória que lhe dava aspirinas admiravaa muito o que dava a Macabéa um banho de calor gostoso no coração Glória advertiua Um dia a pílula te cola na parede da garganta que nem galinha de pescoço meio cortado correndo por aí Um dia teve um êxtase Foi diante de uma árvore tão grande que no tronco ela nunca poderia abraçala Mas apesar do êxtase ela não morava com Deus Rezava indiferentemente Sim Mas o misterioso Deus dos outros lhe dava às vezes um estado de graça Feliz feliz feliz Ela de alma quase voando E também vira o discovoador Tentara contar a Glória mas não tivera jeito não sabia falar e mesmo contar o quê O ar Não se conta tudo porque o tudo é um oco nada Às vezes a graça a pegava em pleno escritório Então ela ia ao banheiro para ficar sozinha De pé e sorrindo até passar pareceme que esse Deus era muito misericordioso 25 com ela davalhe o que lhe tirava Em pé pensando em nada os olhos moles Nem Glória era uma amiga só colega Glória roliça branca e morna Tinha um cheiro esquisito Porque não se lavava muito com certeza Oxigenava os pêlos das pernas cabeludas e das axilas que ela não raspava Olímpico será que ela é loura embaixo também Em relação a Macabéa Glória tinha um vago senso de maternidade Quando Macabéa lhe parecia murcha demais dizia E esse ar é por causa de Macabéa que nunca se irritava com ninguém arrepiavase com o hábito que Glória tinha de deixar a frase inacabada Glória usava uma forte águadecolônia de sândalo e Macabéa que tinha estômago delicado quase vomitava ao sentir o cheiro Nada dizia porque Glória era agora a sua conexão com o mundo Este mundo fora composto pela tia Glória o Seu Raimundo e Olímpico e de muito longe as moças com as quais repartia o quarto Em compensação se conectava com o retrato de Greta Garbo quando moça Para minha surpresa pois eu não imaginava Macabéa capaz de sentir o que diz um rosto como esse Greta Garbo pensava ela sem se explicar essa mulher deve ser a mulher mais importante do mundo Mas o que ela queria mesmo ser não era a altiva Greta Garbo cuja trágica sensualidade estava em pedestal solitário O que ela queria como eu já disse era parecer com Marylin Um dia em raro momento de confissão disse a Glória quem ela gostaria de ser E Glória caiu na gargalhada Logo ela Maca Vê se te manca Glória era toda contente consigo mesma davase grande valor Sabia que o sestro molengole de mulata uma pintinha marcada junto da boca só para dar uma gostosura e um buço forte que ela oxigenava Sua boca era loura Parecia até um bigode Era uma safadinha esperta mas tinha força de coração Penalizavase com Macabéa mas ela que se arranjasse quem mandava ser tola E Glória pensava não tenho nada a ver com ela Ninguém pode entrar no coração de ninguém Macabéa até que falava com Glória mas nunca de peito aberto Glória tinha um traseiro alegre e fumava cigarro mentolado para manter um hálito bom nos seus beijos internináveis com Olímpico Ela era muito satisfatona tinha tudo o que seu pouco anseio lhe dava E havia nela um desafio que se resumia em ninguém manda em mim Mas lá um dia pôsse a olhar e a olhar e a olhar Macabéa De repente não agüentou e com um sotaque levemente português disse Oh mulher não tens cara Tenho sim É porque sou achatada de nariz sou alagoana Digame uma coisa você pensa no teu futuro A pergunta ficou por isso mesmo pois a outra não soube responder Muito bem Voltemos a Olímpico Ele para impressionar Glória e cantar logo de galo comprou pimentamalagueta das brabas na feira dos nordestinos e para mostrar à nova namorada o durão que era mastigou em plena poupa a fruta do diabo Nem sequer tomou um copo de água para apagar o fogo nas entranhas O ardor quase intolerável no entanto o enrijeceu sem contar que Glória assustada passou a obedecêlo Ele pensou pois não é que sou um vencedor E agarrouse em Glória com a força de um zangão ela lhe daria mel de abelhas e carnes fartas Não se arrependeu um só instante de romper com Macabéa pois seu destino era o de subir para um dia entrar no mundo dos outros Ele tinha fome de ser outro No mundo de Glória por exemplo ele ia se locupletar o frágil machinho Deixaria enfim de ser o que sempre fora e que escondia até de si mesmo por vergonha de tal fraqueza é que desde menino na verdade não passava de um coração solitário pulsando com dificuldade no espaço O sertanejo é antes de tudo um paciente Eu o perdôo Glória querendo compensar o roubo do namorado da outra convidoua para tomar lanche da tarde domingo na sua casa Soprar depois de morder Ah que história banal mal agüento escrevêla 26 E lá pequena explosão Macabéa arregalou os olhos É que na suja desordem de uma terceira classe de burguesia havia no entanto o morno conforto de quem gasta todo o dinheiro em comida no subúrbio comiase muito Glória morava na rua General nãoseio quê muito contente de morar em rua de militar sentiase mais garantida Em sua casa até telefone tinha Foi talvez essa uma das poucas vezes em que Macabéa viu que não havia lugar no mundo e exatamente porque Glória tanto lhe dava Isto é um farto copo de grosso chocolate de verdade misturado com leite e muitas espécies de roscas açucaradas sem falar num pequeno bolo Macabéa enquanto Glória saía da sala roubou escondido um biscoito Depois pediu perdão ao Ser abstrato que dava e tirava Sentiuse perdoada O Ser a perdoava de tudo No dia seguinte segundafeira não sei se por causa do fígado atingido pelo chocolate ou por causa de nervosismo de beber coisa de rico passou mal Mas teimosa não vomitou para não desperdiçar o luxo do chocolate Dias depois recebendo o salário teve a audácia de pela primeira vez na vida explosão procurar o médico barato indicado por Glória Ele a examinou a examinou e de novo a examinou Você faz regime para emagrecer menina Macabéa não soube o que responder O que é que você come Cachorroquente Só Às vezes como sanduíche de mortadela Que é que você bebe Leite Só café e refrigerante Que refrigerante perguntou ele sem saber o que falar A toa indagou Você às vezes tem crise de vômito Ah nunca exclamou muito espantada pois não era doída de desperdiçar comida como eu disse O médico olhoua e bem sabia que ela não fazia regime para emagrecer Mas era lhe mais cômodo insistir em dizer que não fizesse dieta de emagrecimento Sabia que era assim mesmo e que era médico de pobres Foi o que disse enquanto lhe receitava um tônico que ela depois nem comprou achava que ir ao médico por si só já curava Ele acrescentou irritado sem atinar com o porquê de sua súbita irritação e revolta Essa história de regime de cachorroquente é pura neurose e o que está precisando é procurar um psicanalista Ela nada entendeu mas pensou que o médico esperava que ela sorrisse Então sorriu O médico muito gordo e suado tinha tique nervoso que o fazia de quando em quando ritmadamente repuxar os lábios O resultado era parecer que estava fazendo beicinho de bebê quando está prestes a chorar Esse médico não tinha objetivo nenhum A medida era apenas para ganhar dinheiro e nunca por amor á profissão nem a doentes Era desatento e achava a pobreza uma coisa feia Trabalhava para os pobres detestando lidar com eles Eles eram para ele o rebotalho de uma sociedade muito alta á qual também ele não pertencia Sabia que estava desatualizado na medicina e nas novidades clínicas mas para pobre servia O seu sonho era ter dinheiro para fazer exatamente o que queria nada Quando ele avisara que ia examinála ela disse Ouvi dizer que no médico se tira a roupa mas eu não tiro coisa nenhuma Passaraa pelo raio X e dissera Você está com começo de tuberculose pulmonar Ela não sabia se isso era coisa boa ou coisa ruim Bem como era uma pessoa muito educada disse Muito obrigada sim O médico simplesmente se negou a ter piedade E acrescentou quando você não souber o que comer faça um espaguete bem italiano 27 E acrescentou com um mínimo de bondade a que ele se permitia já que se considerava também injustiçado pela sorte Não é tão caro assim Esse nome de comida que o senhor falou eu nunca comi na vida É bom Claro que é Olhe só a minha barriga Isso é resultado de boas macarronadas e muita cerveja Dispense a cerveja é melhor não beber álcool Ela repetiu cansada Álcool Sabe de uma coisa Vá para os raios que te partam Sim estou apaixonado por Macabéa a minha querida Maca apaixonado pela sua feiúra e anonimato total pois ela não é para ninguém Apaixonado por seus pulmões frágeis a magricela Quisera eu tanto que ela abrisse a boca e dissesse Eu sou sozinha no mundo e não acredito em ninguém todos mentem às vezes até na hora do amor eu não acho que um ser fale com o outro a verdade só me vem quando estou sozinha Maca porém jamais disse frases em primeiro lugar por ser de parca palavra E acontece que não tinha consciência de si e não reclamava nada até pensava que era feliz Não se tratava de uma idiota mas tinha a felicidade pura dos idiotas E também não prestava atenção em si mesma ela não sabia Vejo que tentei dar a Maca uma situação minha eu preciso de algumas horas de solidão por dia senão me muero Quanto a mim só sou verdadeiro quando estou sozinho Quando eu era pequeno pensava que de um momento para outro eu cairia para fora do mundo Por que as nuvens não caem já que tudo cai É que a gravidade é menor que a força do ar que as levanta Inteligente não é Sim mas caem um dia em chuva É a minha vingança Nada contou a Glória porque de um modo geral mentia tinha vergonha da verdade A mentira era tão mais decente Achava que boa educação é saber mentir Mentia também para si mesma em devaneio volátil na sua inveja da colega Glória por exemplo era inventiva Macabéa viua se despedir de Olímpico beijando a ponta dos próprios dedos e jogando o beijo no ar como se solta passarinho o que Macabéa nunca pensaria em fazer Esta história são apenas fatos não trabalhados de matériaprima e que me atingem direto antes de eu pensar Sei muita coisa que não posso dizer Aliás pensar o quê Glória talvez por remorso disselhe Olímpico é meu mas na certa você arranja outro namorado Eu digo que ele é meu porque foi o que a minha cartomante me disse e eu não quero desobedecer porque ela é médium e nunca erra Por que você não paga uma consulta e pede pra ela te pôr as cartas É muito caro Estou absolutamente cansado de literatura só a mudez me faz companhia Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte A procura da palavra no escuro O pequeno sucesso me invade e me põe no olho da rua Eu queria chafurdar no lodo minha necessidade de baixeza eu mal controlo a necessidade da orgia e do pior gozo absoluto O pecado me atrai o que é proibido me fascina Quero ser porco e galinha e depois matálos e beberlhes o sangue Penso no sexo de Macabéa miúdo mas inesperadamente coberto de grossos e abundantes pêlos negros seu sexo era a única marca veemente de sua existência Ela nada pedia mas seu sexo exigia como um nascido girassol num túmulo Quanto a mim estou cansadoTalvez da companhia de Macabéa Glória Olímpico O médico me enjoou com sua cerveja Tenho que interromper esta história por uns três dias 28 Nestes últimos três dias sozinho sem personagens despersonalizome e tirome de mim como quem tira uma roupa Despersonalizome a ponto de adormecer E agora emerjo e sinto falta de Macabéa Continuemos É muito caro Eu lhe empresto Inclusive madama Carlota também quebra feitiço que tenham feito contra a gente Ela quebrou o meu à meianoite em ponto de uma sextafeira treze de agosto lá para lá de S Miguel num terreiro de macumba Sangraram em cima de mim um porco preto sete galinhas brancas e me rasgaram a roupa que já estava toda ensangüentada Você tem coragem Não sei se posso ver sangue Talvez porque sangue é a coisa secreta de cada um a tragédia vivificante Mas Macabéa só sabia que não podia ver sangue o resto fui eu que pensei Estou me interessando terrivelmente por fatos fatos são pedras duras Não há como fugir Fatos são palavras ditas pelo mundo Bem Diante da súbita ajuda Macabéa que nunca se lembrava de pedir pediu licença ao chefe inventando dor de dente e aceitou o dinheiro emprestado que nem sabia quando ia devolver Essa audácia lhe deu um inesperado ânimo para audácia maior explosão como o dinheiro era emprestado ela raciocinou tortamente que não era dela e então podia gastálo Assim pela primeira vez na vida tomou um táxi e foi para Olaria Desconfio que ousou tanto por desespero embora não soubesse que estava desesperada é que estava gasta até a última lona a boca a se colar no chão Não foi difícil achar o endereço da madama Carlota e essa facilidade lhe pareceu bom sinal O apartamento térreo ficava na esquina de um beco e entre as pedras do chão crescia capim ela o notou porque sempre notava o que era pequeno e insignificante Pensou vagamente enquanto tocava a campainha da porta capim é tão fácil e simples Tinha pensamentos gratuitos e soltos porque embora à toa possuía muita liberdade interior A própria madama Carlota atendeua olhoua com naturalidade e disse O meu guia já tinha me avisado que você vinha me ver minha queridinha Como é mesmo o seu nome Ah é É muito lindo Entre meu benzinho Tenho uma cliente na salinha dos fundos você espera aqui Aceita um cafezinho minha florzinha Macabéa sentouse um pouco assustada porque faltavamlhe antecedentes de tanto carinho E bebeu com cuidado pela própria frágil vida o café frio e quase sem açúcar Enquanto isso olhava com admiração e respeito a sala onde estava Lá tudo era de luxo Matéria plástica amarela nas poltronas e sofás E até flores de plástico Plástico era o máximo Estava boquiaberta Afinal saiu dos fundos da casa uma moça com olhos muito vermelhos e madama Carlota mandou Macabéa entrar Como é chato lidar com fatos o cotidiano me aniquila estou com preguiça de escrever esta história que é um desabafo apenas Vejo que escrevo aquém e além de mim Não me responsabilizo pelo que agora escrevo Continuemos pois embora com esforço madama Carlota era enxundiosa pintava a boquinha rechonchuda com vermelho vivo e punha nas faces oleosas duas rodelas de ruge brilhoso Parecia um bonecão de louça meio quebrado Vejo que não dá para aprofundar esta história Descrever me cansa Não tenha medo de mim sua coisinha engraçadinha Porque quem está ao meu lado está no mesmo instante ao lado de Jesus E apontou o quadro colorido onde havia exposto em vermelho e dourado o coração de Cristo Eu sou fã de Jesus Sou doidinha por Ele Ele sempre me ajudou Olha quando eu era mais moça tinha bastante categoria para levar vida fácil de mulher E era fácil mesmo graças a Deus Depois quando eu já não valia muito no mercado Jesus sem 29 mais nem menos arranjou um jeito de eu fazer sociedade com uma coleguinha e abrimos uma casa de mulheres Aí eu ganhei dinheiro e pude comprar este apartamentozinho térreo Larguei a casa de mulheres porque era difícil tomar conta de tantas moças que só faziam era querer me roubar Você está interessada no que eu digo Muito Pois faz bem porque eu não minto Seja também fã de Jesus porque o Salvador salva mesmo Olhe a polícia não deixa pôr cartas acha que estou explorando os outros mas como eu lhe disse nem a polícia consegue desbancar Jesus Você notou que Ele até me conseguiu dinheiro para ter mobília de grãfino Sim senhora Ah então você também acha não é Pelo que vejo você é inteligente ainda bem porque a inteligência me salvou Madama Carlota enquanto falava tirava de uma caixa aberta um bombom atrás do outro e ia enchendo a boca pequena Não ofereceu nenhum a Macabéa Esta que como eu disse tinha tendência a notar coisas pequenas percebeu que dentro de cada bombom mordido havia um líquido grosso Não cobiçou o bombom pois aprendera que as coisas são dos outros Eu era pobre comia mal não tinha roupas boas Então caí na vida E gostei porque sou uma pessoa muito carinhosa tinha carinho por todos os homens Além do mais na zona era divertido porque havia muita conversa entre as coleguinhas Nos éramos muito unidas e só de vez em quando eu me atracava com uma Mas isso também era bom porque eu era muito forte e gostava de bater de puxar cabelos e morder Por falar em morder você não pode imaginar que dentes lindos eu tinha todos branquinhos e brilhantes Mas se estragaram tanto que hoje uso dentadura postiça Você acha que se nota que são postiços Não senhora Olhe eu era muito asseada e não pegava doença ruim Só uma vez me caiu uma sífilis mas a penicilina me curou Eu era mais tolerante do que as outras porque sou bondosa e afinal estava dando o que era meu Eu tinha um homem de quem eu gostava de verdade e que eu sustentava porque ele era fino e não queria se gastar em trabalho nenhum Ele era o meu luxo e eu até apanhava dele Quando ele me dava uma surra eu via que ele gostava de mim eu gostava de apanhar Com ele era amor com os outros eu trabalhava Depois que ele desapareceu eu para não sofrer me divertia amando mulher O carinho de mulher é muito bom mesmo eu até lhe aconselho porque você é delicada demais para suportar a brutalidade dos homens e se você conseguir uma mulher vai ver como é gostoso entre mulheres o carinho é muito mais fino Você tem chance de ter uma mulher Não senhora É que também você nem se enfeita Quem não se enfeita por si mesma se enjeita Ai que saudades da zona Eu peguei o melhor tempo do Mangue que era freqüentado por verdadeiros cavalheiros Além do preço fixo eu muitas vezes ganhava gorjeta Ouvi dizer que o Mangue está acabando que a zona agora só tem uma meia dúzia de casas Em meu tempo havia umas duzentas Eu ficava em pé encostada na porta vestindo só calcinha e sutiã de renda transparente Depois quando eu já estava ficando muito gorda e perdendo os dentes é que me tornei caftina Você sabe o que quer dizer caftina Eu uso essa palavra porque nunca tive medo de palavras Tem gente que se assusta com o nome das coisas Vocezinha tem medo de palavras benzinho Tenho sim senhora Então vou me cuidar para não escapulir nenhum palavrão fique sossegada Ouvi dizer que o Mangue tem um cheiro insuportável No meu tempo a gente punha incenso queimando para dar um ar limpo na casa Até tinha cheiro de igreja E tudo era muito respeitoso e com muita religião Quando eu era mulherdama já ia juntando meu dinheirinho dando porcentagem à chefa é claro De vez em quando havia tiros mas nada 30 comigo Minha florzinha estou te aborrecendo com minha história Ah não Você tem paciência de esperar pelas cartas Tenho sim senhora Então madama Carlota contoulhe que lá no Mangue no seu cubículo havia enfeites lindos nas paredes Você sabe meu amor que cheiro de homem é bom Faz bem à saúde Você já sentiu cheiro de homem Não senhora Finalmente depois de lamber os dedos madama Carlota mandoua cortar as cartas com a mão esquerda ouviu minha adoradinha Macabéa separou um monte com a mão trêmula pela primeira vez ia ter um destino Madama Carlota explosão era um ponto alto na sua existência Era o vórtice de sua vida e esta se afunilara toda para desembocar na grande dama cujo ruge brilhante davalhe à pele arregalou os olhos Mas Macabeazinha que vida horrível a sua Que meu amigo Jesus tenha dó de você filhinha Mas que horror Macabéa empalideceu nunca lhe ocorrera que sua vida fora tão ruim Madama acertou tudo sobre o seu passado até lhe disse que ela mal conhecera pai e mãe e que fora criada por uma parente muito madrasta má Macabéa espantouse com a revelação até agora sempre julgara que o que a tia lhe fizera era educála para que ela se tornasse uma moça mais fina Madama acrescentou Quanto ao presente queridinha está horrível também Você vai perder o emprego e já perdeu o namorado coitada de vocezinha Se não puder não me pague a consulta sou madama de recursos Macabéa pouco habituada a receber de graça recusou a dádiva mas com o coração todo grato E eis que explosão de repente aconteceu o rosto da madama se acendeu todo iluminado Macabéa Tenho grandes notícias para lhe dar Preste atenção minha flor porque é de maior importância o que vou lhe dizer É coisa muito séria e muito alegre sua vida vai mudar completamente E digo mais vai mudar a partir do momento em que você sair da minha casa Você vai se sentir outra Fique sabendo minha florzinha que até o seu namorado vai voltar e propor casamento ele está arrependido E seu chefe vai lhe avisar que pensou melhor e não vai mais lhe despedir Macabéa nunca tinha tido coragem de ter esperança Mas agora ouvia a madama como se ouvisse uma trombeta vinda dos céus enquanto suportava uma trombeta vinda dos céus Enquanto suportava uma forte taquicardia Madama tinha razão Jesus enfim prestava atenção nela Seus olhos estavam arregalados por uma súbita voracidade pelo futuro explosão E eu também estou com esperança enfim E tem mais Um dinheiro grande vai lhe entrar pela porta adentro em horas da noite trazido por um homem estrangeiro Você conhece algum estrangeiro Não senhora disse Macabéa já desanimando Pois vai conhecer Ele é alourado e tem olhos azuis ou verde ou castanhos ou pretos E se não fosse porque você gosta de seu exnamorado esse gringo ia namorar você Não Não Não Agora estou vendo outra coisa explosão e apesar de não ver muito claro estou também ouvindo a voz de meu guia esse estrangeiro parece se chamar Hans e é ele quem vai se casar com você Ele tem muito dinheiro todos os gringos são ricos Se não me engano e nunca me engano ele vai lhe dar muito amor e você minha enjeitadinha vai se vestir com veludo e cetim e até casaco de pele vai ganhar Macabéa começou explosão a tremilicar toda por causa do lado penoso que há na excessiva felicidade Só lhe ocorreu dizer Mas casaco de pele não precisa no calor do Rio Pois vai ter só para se enfeitar Faz tempo não boto cartas tão boas E sou sempre sincera por exemplo acabei de ter a franqueza de dizer para aquela moça que 31 saiu daqui que ela ia ser atropelada ela até chorou muito viu os olhos avermelhados dela E agora vou lhe dar um feitiço que você deve guardar dentro deste sutiã que quase não tem seio coitada bem em contacto com a pele Você não tem busto mas vai engordar e vai ganhar corpo Enquanto você não engordar ponha dentro do sutiã chumaços de algodão para fingir que tem Olha minha queridinha esse feitiço também sou obrigada por Jesus a lhe cobrar porque todo o dinheiro que eu recebo das cartas eu dou para um asilo de crianças Mas se não puder não pague só venha e pagar quando tudo acontecer Não eu lhe pago a senhora acertou tudo a senhora é Estava meio bêbada não sabia o que pensava parecia que lhe tinham dado um forte cascudo na cabeça de ralos cabelos sentiase tão desorientada como se lhe tivesse acontecido uma infidelidade Sobretudo estava conhecendo pela primeira vez o que os outros chamavam de paixão estava apaixonada por Hans E que é que eu faço para ter mais cabelo ousou perguntar porque já se sentia outra Você está querendo demais Mas está bem lave a cabeça com sabão Aristolino não use sabão amarelo em pedra Esse conselho eu não cobro Até isso explosão bateulhe o coração até mais cabelo Esquecera Olímpico e só pensava no gringo era sorte demais pegar homem de olhos azuis ou verdes ou castanhos ou pretos não havia como errar era vasto o campo das possibilidades E agora disse a madama você vá embora para encontrar seu maravilhoso destino E mesmo porque tem outra freguesa esperando demorei demais com você meu anjinho mas valeu a pena Num súbito ímpeto explosão de vivo impulso Macabéa entre feroz e desajeitada deu um estalado beijo no rosto da madama E sentiu de novo que sua vida já estava melhorando ali mesmo pois era bom beijar Quando ela era pequena como não tinha a quem beijar beijava a parede Ao acariciar ela se acariciava si própria Madama Carlota havia acertado tudo Macabéa estava espantada Só então vira que sua vida era uma miséria Teve vontade de chorar ao ver o seu lado oposto ela que como disse até então se julgava feliz Saiu da casa da cartomante aos tropeços e parou no beco escurecido pelo crepúsculo crepúsculo que é hora de ninguém Mas ela de olhos ofuscados como se o último final da tarde fosse mancha de sangue e ouro quase negro Tanta riqueza de atmosfera a recebeu e o primeiro esgar da noite que sim sim era funda e faustosa Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada E mudada por palavras desde Moisés se sabe que a palavra é divina Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa Uma pessoa grávida de futuro Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho desespero Se ela não era mais ela mesma isso significava uma perda que valia por um ganho Assim como havia sentença de morte a cartomante lhe decretara sentença de vida Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar Mas não chorou seus olhos faiscavam como o sol que morria Então ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua o Destino explosão sussurrou veloz e guloso é agora é já chegou a minha vez E enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegoua e neste mesmo instante em algum único lugar do mundo um cavalo como resposta empinouse em gargalhada de relincho Macabéa ao cair ainda teve tempo de ver antes que o carro fugisse que já começavam a ser cumpridas as predições de madama Carlota pois o carro era de alto luxo Sua queda não era nada pensou ela apenas um empurrão Batera com a cabeça na quina da calçada e ficara caída a cara mansamente voltada para a sarjeta E da cabeça um fio de sangue inesperadamente vermelho e rico O que queria dizer que apesar de tudo ela pertencia a uma resistente raça anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito 32 Eu ainda poderia voltar atrás em retorno aos minutos passados e recomeçar com alegria no ponto em que Macabéa estava de pé na calçada mas não depende de mim dizer que o homem alourado e estrangeiro a olhasse É que fui longe demais e já não posso mais retroceder Ainda bem que pelo menos não falei e nem falarei em morte e sim apenas um atropelamento Ficou inerme no canto da rua talvez descansando das emoções e viu entre as pedras do esgoto o ralo capim de um verde da mais tenra esperança humana Hoje pensou ela hoje é o primeiro dia de minha vida nasci A verdade é sempre um contato interior inexplicável A verdade é irreconhecível Portanto não existe Não para os homens não existe Voltando ao capim Para tal exígua criatura chamada Macabéa a grande natureza se dava apenas em forma de capim de sarjeta se lhe fosse dado o mar grosso ou picos altos de montanhas sua alma ainda mais virgem que o corpo se alucinaria e explodirse lheia o organismo braços pra cá intestino para lá cabeça rolando redonda e oca a seus pés como se desmonta um manequim de cera Prestou de repente um pouco de atenção para si mesma O que estava acontecendo era um surdo terremoto Tinhase aberto em fendas a terra de Alagoas Fixava só por fixar o capim Capim na grande Cidade do Rio de Janeiro À toa Quem sabe se Macabéa já teria alguma vez sentido que também ela era àtoa na cidade inconquistável O Destino havia escolhido para ela um beco no escuro e uma sarjeta Ela sofria Acho que sim Como uma galinha de pescoço mal cortado que corre espavorida pingando sangue Só que a galinha foge como se foge da dor em cacarejos apavorados E Macabéa lutava muda Vou fazer o possível para que ela não morra Mas que vontade de adormecêla e de eu mesmo ir para a cama dormir Então começou levemente a garoar Olímpico tinha razão ela só sabia mesmo era chover Os finos fios de água gelada aos poucos empapavamlhe a roupa e isso não era confortável Pergunto toda história que já se escreveu no mundo é história de aflições Algumas pessoas brotaram no beco não se sabe de onde e haviam se agrupado em torno de Macabéa sem nada fazer assim como antes pessoas nada haviam feito por ela só que agora pelo menos a espiavam o que lhe dava uma existência Mas quem sou eu para censurar os culpados O pior é que preciso perdoálos É necessário chegar a tal nada que indiferentemente se ame ou não se ame o criminoso que nos mata Mas não estou seguro de mim mesmo preciso perguntar embora não saiba a quem se devo mesmo amar aquele que me trucida e perguntar quem de vós me trucida E minha vida mais forte do que eu responde que quer porque quer vingança e responde que devo lutar como quem se afoga mesmo que eu morra depois Se assim é que assim seja Macabéa por acaso vai morrer Como posso saber E nem as pessoas ali presentes sabiam Embora por via das dúvidas algum vizinho tivesse pousado junto do corpo uma vela acesa O luxo da rica flama parecia cantar glória Escrevo sobre o mínimo parco enfeitandoo com púrpura jóias e esplendor É assim que se escreve Não não é acumulando e sim desnudando Mas tenho medo da nudez pois ela é a palavra final Enquanto isso Macabéa no chão parecia se tornar cada vez mais uma Macabéa como se chegasse a si mesma Este é um melodrama O que sei é que melodrama era o ápice de sua vida todas as vidas são uma arte e a dela tendia para o grande choro insopitável como chuva e raios Apareceu portanto um homem magro de paletó puído tocando violino na esquina Devo explicar que este homem eu o vi uma vez ao anoitecer quando eu era menino em Recife e o som espichado e agudo sublinhava com uma linha dourada o mistério da rua escura Junto do homem esquálido havia uma latinha de zinco onde barulhavam secas as moedas dos que o ouviam com gratidão por ele lhes planger a vida Só agora entendo e 33 só agora brotouseme o sentido secreto o violino é um aviso Sei que quando eu morrer vou ouvir o violino do homem e pedirei música música música Macabéa Ave Maria cheia de graça terra serena da promissão terra do perdão tem que chegar o tempo ora pro nóbis e eu me uso como forma de conhecimento Eu te conheço até o osso por intermédio de uma encantação que vem de mim para ti Espraiar se selvagemente e no entanto atrás de tudo pulsa uma geometria inflexível Macabéa lembrouse do cais do porto O cais chegava ao coração de sua vida Macabéa pedir perdão Porque sempre se pede Por quê Resposta é assim porque assim é Sempre foi Sempre será E se não foi Mas eu estou dizendo que é Pois Viase perfeitamente que estava viva pelo piscar constante dos olhos grandes pelo peito magro que se levantava e abaixava em respiração talvez difícil Mas quem sabe se ela não estaria precisando de morrer Pois há momentos em que a pessoa está precisando de uma pequena mortezinha e sem nem ao menos saber Quanto a mim substituo o ato da morte por um seu símbolo Símbolo este que pode se resumir num profundo beijo mas não na parede áspera e sim bocaaboca na agonia do prazer que é morte Eu que simbolicamente morro várias vezes só para experimentar a ressurreição Acho com alegria que ainda não chegou a hora de estrela de cinema de Macabéa morrer Pelo menos ainda não consigo adivinhar se lhe acontece o homem louro e estrangeiro Rezem por ela e que todos interrompam o que estão fazendo para soprarlhe vida pois Macabéa está por enquanto solta no acaso como a porta balançando ao vento no infinito Eu poderia resolver pelo caminho mais fácil matar a meninainfante mas quero o pior a vida Os que me lerem assim levem um soco no estômago para ver se é bom A vida é um soco no estômago Por enquanto Macabéa não passava de um vago sentimento nos paralelepípedos sujos Eu poderia deixála na rua e simplesmente não acabar a história Mas não irei até onde o ar termina irei até onde a grande ventania se solta uivando irei até onde o vácuo faz uma curva irei aonde meu fôlego me levar Meu fôlego me leva a Deus Estão tão puro que nada sei Só uma coisa eu sei não preciso ter piedade de Deus Ou preciso Tanto estava viva que se mexeu devagar e acomodou o corpo em posição fetal Grotesca como sempre fora Aquela relutância em ceder mas aquela vontade do grande abraço Ela se abraçava a si mesma com vontade do doce nada Era uma maldita e não sabia Agarravase a um fiapo de consciência e repetia mentalmente sem cessar eu sou eu sou eu sou Quem era é que não sabia Fora buscar no próprio profundo e negro âmago de si mesma o sopro de vida que Deus nos dá Então ali deitada teve uma úmida felicidade suprema pois ela nascera para o abraço da morte A morte que é nesta história o meu personagem predileto Iria ela dar adeus a si mesma Acho que ela não vai morrer porque tem tanta vontade de viver E havia certa sensualidade no modo como se encolhera Ou é porque a prémorte se parece com a intensa ânsia sensual É que o rosto dela lembrava um esgar de desejo As coisas são sempre vésperas e se ela não morre agora está como nós na véspera de morrer perdoaime lembrarvos porque quanto a mim não me perdôo a clarividência Um gosto suave arrepiante gélido e agudo como no amor Seria esta a graça a que vós chamais de Deus Sim Se iria morrer na morte passava de virgem a mulher Não não era morte pois não a quero para a moça só um atropelamento que não significava sequer desastre Seu esforço de viver parecia uma coisa que se nunca experimentara virgem que era ao menos intuíra pois só agora entendia que mulher nasce mulher desde o primeiro vagido O destino de uma mulher é ser mulher Intuíra o instante quase dolorido e esfuziante do desmaio do amor Sim doloroso reflorescimento tão difícil que ela empregava nele o corpo e a outra coisa que vós chamais de alma e que eu chamo o quê Aí Macabéa disse uma frase que nenhum dos transeuntes entendeu Disse bem pronunciado e claro Quanto ao futuro 34 Terá tido ela saudade do futuro Ouço a música antiga de palavras e palavras sim é assim Nesta hora exata Macabéa sente um fundo enjôo de estômago e quase vomitou queria vomitar o que não é corpo vomitar algo luminoso Estrela de mil pontas O que é que estou vendo agora e que me assusta Vejo que ela vomitou um pouco de sangue vasto espasmo enfim o âmago tocando no âmago vitória E então então o súbito grito estertorado de uma gaivota de repente a águia voraz erguendo para os altos ares a ovelha tenra o macio gato estraçalhando um rato sujo e qualquer a vida come a vida Até tu Brutus Sim foi este o modo como eu quis anunciar que que Macabéa morreu Vencera o Príncipe das Trevas Enfim a coroação Qual foi a verdade de minha Maca Basta descobrir a verdade que ela logo já não é mais passou o momento Pergunto o que é Resposta não é Mas que não se lamentem os mortos eles sabem o que fazem Eu estive na terra dos mortos e depois do terror tão negro ressurgi em perdão Sou inocente Não me consumam Não sou vendável Ai de mim todo na perdição e é como se a grande culpa fosse minha Quero que me lavem as mãos e os pés e depois depois que os untem com óleos santos de tanto perfume Ah que vontade de alegria Estou agora me esforçando para rir em grande gargalhada Mas não sei por que não rio A morte é um encontro consigo Deitada morta era tão grande como um cavalo morto O melhor negócio é ainda o seguinte não morrer pois morrer é insuficiente não me completa eu que tanto preciso Macabéa me matou Ela estava enfim livre de si e de nós Não vos assusteis morrer é um instante passa logo eu sei porque acabo de morrer com a moça Desculpaime esta morte É que não pude evitála a gente aceita tudo porque já beijou a parede Mas eis que de repente sinto o meu último esgar de revolta e uivo o morticínio dos pombos Viver é luxo Pronto passou Morta os sinos badalavam mas sem que seus bronzes lhes dessem som Agora entendo esta história Ela é animinência que há nos sinos que quasequase badalam A grandeza de cada um Silêncio Se um dia Deus vier à terra haverá silêncio grande O silêncio é tal que nem o pensamento pensa O final foi bastante grandiloqüente para a vossa necessidade Morrendo ela virou ar Ar enérgico Não sei Morreu em um instante O instante é aquele átimo de tempo em que o pneu do carro correndo em alta velocidade toca no chão e depois não toca mais e depois toca de novo Etc etc etc No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada Eu vos pergunto Qual é o peso da luz E agora agora só me resta acender um cigarro e ir para casa Meu Deus só agora me lembrei que a gente morre Mas mas eu também Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos Sim 35 Proposta Considere a leitura prévia das antologias de poesia e as obras em prosa e dramaturgia das aulas 1 até 7 referentes aos anos 50 até 70 bem como as ideias dos textos teóricocríticos recomendados A seguir discuta o desdobramento formal e temático destas produções Para isso articule ao menos 2 dos escritores estudados bem como utilize passagens literárias para exemplificar a sua argumentação O Confronto entre Voz e Silêncio A Dissidência dos Mortos e a Invisibilidade dos Vivos A literatura brasileira tem sido um espaço fecundo para a investigação das condições humanas em suas mais diversas facetas Dois romances representativos dessa tradição Incidente em Antares de Érico Veríssimo e A Hora da Estrela de Clarice Lispector abordam por caminhos distintos a marginalização do indivíduo seja pela negação da voz ou pela indiferença que o circunda Essas obras se inserem no contexto literário das décadas de 1950 a 1970 período de profundas transformações políticas e sociais no Brasil marcado pela repressão e pela resistência cultural Em Incidente em Antares a narrativa se divide entre a construção histórica da cidade e a revolta dos mortos que após uma greve dos coveiros se veem impedidos de serem sepultados e retornam à cidade para expor as contradições e injustiças do mundo dos vivos Dessa maneira os mortos finalmente conquistam o direito à fala Estamos mortos mas ainda temos algo a dizer Esse momento transformase em um símbolo da resistência contra a opressão evidenciando as falhas de uma sociedade corrupta e hipócrita Como observa o crítico Alfredo Bosi em seu livro História concisa da literatura brasileira Veríssimo utiliza a alegoria dos mortos para desnudar a hipocrisia e a complacência da sociedade brasileira diante de seus próprios desmandos Já em A Hora da Estrela a história de Macabéa é narrada por Rodrigo SM um narrador que luta para compreender e dar forma à existência apagada da protagonista Macabéa uma jovem nordestina que migra para o Rio de Janeiro vive uma vida de insignificância extrema quase como se não existisse O narrador traduz essa condição ao afirmar Ela não sabia que estava se entregando pois pensava que viver era aquilo mesmo Ao contrário dos mortos de Antares que clamam por justiça Macabéa é consumida pelo silêncio e pela passividade Segundo Benedito Nunes 1988 Lispector cria por meio de sua protagonista um ser que se move na fronteira entre a existência e a anulação um símbolo da alienação social e do apagamento individual No plano formal os dois romances também se distanciam Veríssimo constrói uma narrativa linear e objetiva com traços de ironia e crítica social dando aos mortos uma presença discursiva forte Em contrapartida Lispector adota uma prosa introspectiva fragmentada e sensorial que reflete a desimportância e a falta de consciência de Macabéa sobre si mesma Enquanto os mortos de Antares gritam para serem ouvidos a protagonista de Lispector se dissolve em sua própria insignificância Assim os dois textos estabelecem um contraste essencial entre presença e ausência voz e silêncio resistência e resignação Os mortos de Antares simbolizam uma insurreição póstuma contra as injustiças do mundo presente naquela época de opressão no Brasil do início da década de 60 com o Golpe Militar de 64 enquanto Macabéa encarna a passividade levada ao extremo até que sua própria morte aconteça sem grandes alardes Como analisa Walnice Nogueira Galvão 2012 Incidente em Antares e A Hora da Estrela revelam cada um à sua maneira uma literatura que oscila entre a denúncia e a contemplação do trágico expondo os dilemas da condição humana no Brasil do século XX Referências BOSI Alfredo História concisa da literatura brasileira 2 ed São Paulo Cultrix 2006 GALVÃO Walnice Nogueira Sinal de Vida literatura e resistência São Paulo Companhia das Letras 2012 LISPECTOR Clarice A Hora da Estrela 38 ed Rio de Janeiro Rocco 1998 NUNES Benedito O Dorso do Tigre São Paulo Ática 1988 VERÍSSIMO Érico Incidente em Antares 34 ed São Paulo Companhia das Letras 2012 Proposta Considere a leitura prévia das antologias de poesia e as obras em prosa e dramaturgia das aulas 1 até 7 referentes aos anos 50 até 70 bem como as ideias dos textos teóricocríticos recomendados A seguir discuta o desdobramento formal e temático destas produções Para isso articule ao menos 2 dos escritores estudados bem como utilize passagens literárias para exemplificar a sua argumentação O Confronto entre Voz e Silêncio A Dissidência dos Mortos e a Invisibilidade dos Vivos A literatura brasileira tem sido um espaço fecundo para a investigação das condições humanas em suas mais diversas facetas Dois romances representativos dessa tradição Incidente em Antares de Érico Veríssimo e A Hora da Estrela de Clarice Lispector abordam por caminhos distintos a marginalização do indivíduo seja pela negação da voz ou pela indiferença que o circunda Essas obras se inserem no contexto literário das décadas de 1950 a 1970 período de profundas transformações políticas e sociais no Brasil marcado pela repressão e pela resistência cultural Em Incidente em Antares a narrativa se divide entre a construção histórica da cidade e a revolta dos mortos que após uma greve dos coveiros se veem impedidos de serem sepultados e retornam à cidade para expor as contradições e injustiças do mundo dos vivos Dessa maneira os mortos finalmente conquistam o direito à fala Estamos mortos mas ainda temos algo a dizer Esse momento transformase em um símbolo da resistência contra a opressão evidenciando as falhas de uma sociedade corrupta e hipócrita Como observa o crítico Alfredo Bosi em seu livro História concisa da literatura brasileira Veríssimo utiliza a alegoria dos mortos para desnudar a hipocrisia e a complacência da sociedade brasileira diante de seus próprios desmandos Já em A Hora da Estrela a história de Macabéa é narrada por Rodrigo SM um narrador que luta para compreender e dar forma à existência apagada da protagonista Macabéa uma jovem nordestina que migra para o Rio de Janeiro vive uma vida de insignificância extrema quase como se não existisse O narrador traduz essa condição ao afirmar Ela não sabia que estava se entregando pois pensava que viver era aquilo mesmo Ao contrário dos mortos de Antares que clamam por justiça Macabéa é consumida pelo silêncio e pela passividade Segundo Benedito Nunes 1988 Lispector cria por meio de sua protagonista um ser que se move na fronteira entre a existência e a anulação um símbolo da alienação social e do apagamento individual No plano formal os dois romances também se distanciam Veríssimo constrói uma narrativa linear e objetiva com traços de ironia e crítica social dando aos mortos uma presença discursiva forte Em contrapartida Lispector adota uma prosa introspectiva fragmentada e sensorial que reflete a desimportância e a falta de consciência de Macabéa sobre si mesma Enquanto os mortos de Antares gritam para serem ouvidos a protagonista de Lispector se dissolve em sua própria insignificância Assim os dois textos estabelecem um contraste essencial entre presença e ausência voz e silêncio resistência e resignação Os mortos de Antares simbolizam uma insurreição póstuma contra as injustiças do mundo presente naquela época de opressão no Brasil do início da década de 60 com o Golpe Militar de 64 enquanto Macabéa encarna a passividade levada ao extremo até que sua própria morte aconteça sem grandes alardes Como analisa Walnice Nogueira Galvão 2012 Incidente em Antares e A Hora da Estrela revelam cada um à sua maneira uma literatura que oscila entre a denúncia e a contemplação do trágico expondo os dilemas da condição humana no Brasil do século XX Referências BOSI Alfredo História concisa da literatura brasileira 2 ed São Paulo Cultrix 2006 GALVÃO Walnice Nogueira Sinal de Vida literatura e resistência São Paulo Companhia das Letras 2012 LISPECTOR Clarice A Hora da Estrela 38 ed Rio de Janeiro Rocco 1998 NUNES Benedito O Dorso do Tigre São Paulo Ática 1988 VERÍSSIMO Érico Incidente em Antares 34 ed São Paulo Companhia das Letras 2012