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Diálogos v 20 n 3 2016 1629 A Idade Média nos currículos escolares as controvérsias nos debates sobre a BNCC httpdxdoiorg104025dialogosv20i333538 Igor Salomão Teixeira Professor de História Medieval no Departamento e no Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS teixeiraigorgmailcom Nilton Mullet Pereira Professor da Área de Ensino de História na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS niltonmppeadgmailcom Palavras Chave Idade Média Ensino de História Currículo Base Nacional Comum Curricular Keywords Middle Ages History Teaching Curriculum National Basis of Common Curriculum Palabras clave Edad Media Historia de la Educación Currículo Base Nacional Curricular Común Resumo Este artigo é sobre o papel da Idade Média nos currículos escolares Foram consideradas duas versões da BNCC a publicada em 2015 e a publicada em 2016 A partir da concepção que a aprendizagem histórica se dá também pela via do estranhamento e considerando a medievalística medievalidade e reminiscências medievais problematizase o ensino de História da Idade Média no Brasil a partir de algumas entradas Entradas são oportunidades de inserções temáticas do medievo no contexto escolar discursos midiáticos sobre o islã diferenças entre Ocidente e Oriente e residualidades Concluise que pode haver espaço para a Idade Média na Base desde que ampliada a compreensão do ensino de História para além dos usos do passado Considerase o ensino de Idade Média uma etapa importante na escolarização básica que pode favorecer a crítica e a compreensão das apropriações feitas do medievo Abstract The Middle Ages in schools curriculum controversies in the discussions about BNCC This article is about the hole of the Middle Ages in the school curriculum in Brazil We considered the two versions of the National Basis of Common Curriculum the one published in 2015 and the other one published in 2016 Considering that the historical learning can also happen by the strangeness of the past and also considering the medieval studies we problematize the teaching of Middle Ages history in Brazil from some entrances Entrances mean the opportunities to insert some themes in the school context media discourse about Islam differences between East and West and residuality We got the conclusion that there is place for the Middle Ages in the Base since the understanding of the history teaching is broaden to beyond the usages du passé We consider teaching medieval history as an important step of elementary school that it can favor critics and comprehension of the appropriations done from the medieval past Resumen La Edad Media en los currículos escolares controversias en los debates sobre la BNCC Este artículo propone discutir el rol de la Edad Media en el currículo Se consideraron dos versiones de la Base Nacional Curricular Común BNCC publicadas en 2015 y en 2016 A partir de la concepción de que el aprendizaje histórico ocurre a través del extrañamiento y considerando la medievalista medievalidad y reminiscencias medievales se problematiza la enseñanza de la Historia de la Edad Media proponiendo algunas entradas Entradas son oportunidades de inserciones temáticas del medievo en el contexto de la escuela discursos mediáticos sobre el Islam diferencias entre Oriente y Occidente y residualidades El lugar para el medievo en la Base es posible desde que se amplíe la comprensión de la enseñanza de la Historia para más allá de los usos del pasado Artigo recebido em 18092016 Aprovado em 05122017 Diálogos httpdxdoiorg104025dialogosv20i3 ISSN 21772940 Online ISSN 14159945 Impresso 17 IS Teixeira NM Pereira Diálogos v20 n3 1629 Introdução O ano letivo de 2015 foi finalizado e o de 2016 foi iniciado com um importante debate no meio acadêmico brasileiro especialmente entre os historiadores no centro da questão estava e está a Base Nacional Comum Curricular BNCC proposta pelo Ministério da Educação Inúmeras manifestações surgiram em diferentes meios de diferentes formas e em diferentes tons artigos em jornais de ampla circulação como Folha de São Paulo e O Globo notas de Associações de especialistas como a da Associação Brasileira de Estudos Medievais e do Núcleo de Estudos Mediterrânicos da UFPR posts em grupos fechados e abertos nas redes sociais trocas de acusações ideológicas entre os que apóiam e os que rechaçam o texto da Base Em que pese a questão o país neste entretempo enfrenta um processo de ruptura da ordem democrática com o afastamento temporário da presidente eleita Dilma Rousseff e a ascensão de uma equipe interina liderada pelo vice presidente Michel Temer Dentre os elementos que mais causaram reações está a proposta de estruturação do ensino de História a partir de uma concepção que além de questionar a imposição do modelo quadripartite História Antiga Medieval Moderna e Contemporânea adota uma perspectiva epistemológica de considerar a compreensão de processos espaços e tempos mais próximos dos alunos como propiciadora da problematização e o estudo dos homens no tempo Perspectiva esta que é tachada pelos contrários à primeira versão do documento de Brasilcentrismo e que limita o necessário estranhamento temporal passado e presente com instituições costumes conflitos e suas resoluções em outros tempos sociedades e situações Esta perspectiva no entanto lançou luzes necessárias a abordagens antes muito marginais no ensino de História mesmo que em expansão nos últimos anos a história africana e dos povos indígenas Porém para operacionalizar tal inclusão seu par inseparável a exclusão gerou inúmeras estranhezas ao propor uma Base para o ensino de História sem a ênfase dada até então à história européia Especificamente o documento preliminar enfatiza o estudo de processos da modernidade em detrimento a processos anteriores aos séculos XV e XVI Em suma a perspectiva de aproximar ou de se começar sempre pelo que é próximo ao aluno configurou este documento sem conteúdos como história da antiguidade clássica e a história medieval para restringir a apenas duas ausências como exemplo Nesta primeira metade de 2016 depois de uma quantidade significativa de críticas um novo documento foi publicado chamado de Segunda Versão Revista Para surpresa de todos o novo documento realiza uma inversão do que foi feito no documento preliminar uma vez que há um evidente retorno à história quadripartite e um privilégio à história europeia O objetivo deste artigo é analisar manifestações de Associações e de medievalistas publicadas no contexto do debate sobre a BNCC bem como o lugar que a Idade Média assume nas duas versões da Base Considerase ainda neste texto a relação e o descompasso entre as propostas e a inserção facilmente verificada dos estudos medievais nas Universidades Brasileiras seja pelo aumento do número de doutores que compõem os quadros permanentes de IES de laboratórios de pesquisa de eventos e publicações seja pelas peculiaridades que a pesquisa em história medieval realizada no Brasil pode oferecer em relação ao entendimento do mundo europeu a partir de uma visão não européia O artigo se propõe ainda a matizar e problematizar ao menos duas possibilidades de compreensão do modo como se dá a aprendizagem histórica nas salas de aula da Escola Básica e que estão diretamente ligadas às discussões que vêm se realizando sobre a BNCC e sobre a inserção da Idade Média nos currículos escolares Tratase por um lado de compreender o papel que as IS Teixeira NM Pereira Diálogos v20 n3 1629 18 relações entre o tempo passado e o tempo presente desde a perspectiva deste último têm assumido na construção de conceitos históricos na escola com vistas a levar os estudantes a construírem relações de pertencimento Por outro lado tratase de pensar a aprendizagem histórica a partir da perspectiva do estranhamento inserindo o passado estranho e distante como parte necessária à aprendizagem dos conceitos históricos com vistas a construir a alteridade Ao final do texto esperase responder à seguinte questão o que esse período pode ajudar a pensar historicamente a partir do estranhamentoalteridade Os estudos medievais no Brasil a consolidação de uma expansão institucional e a participação nos debates sobre a BNCC A atuação de especialistas em história medieval nas Universidades brasileiras nos anos 1990 passou por um processo inicial de expansão Porém essa expansão ficou limitada em número de doutores em estados das regiões sul e sudeste do país com especial concentração em São Paulo e no Rio de Janeiro Não por menos departamentos de História da USP UFRJ e UFF por exemplo atualmente contam em seus quadros com pelo menos cinco doutores da área A mesma situação não se verifica em Universidades como UNICAMP e UFMG com apenas um professorpesquisador medievalista Ainda neste período a maior parte das Universidades brasileiras sequer tinha um medievalista em seus quadros Situação que mudou quantitativa e substancialmente nos últimos dez anos seja pela criação de novas instituições e cursos de História seja pela reposição de aposentadorias seja pela ampliação do número de concursos Neste aspecto por exemplo na Região Sul podese citar a chegada do Dr Renato Viana Boy na Universidade Federal da Fronteira Sul ChapecóSC do Dr Edison Cruxen na Universidade Federal do Pampa JaguarãoRS e da recente posse do Dr Francisco de Paula Sousa Mendonça Júnior na Universidade Federal de Santa MariaRS Três instituições que ampliaram significativamente a presença de medievalistas no Sul do Brasil para além das que já contavam com especialistas em seus quadros como UFPR UFSC UFRGS e UFPEL Certamente o número de IES é maior considerando universidades estaduais e privadas Essa expansão numérica também foi acompanhada por uma explosão do número de laboratórios de pesquisa Segundo Marcelo da Silva Murilo Até o ano 2000 tínhamos no Brasil apenas 6 grupos de pesquisa cadastrados no diretório de Grupos de Pesquisas do CNPq De 2001 a 2012 esse número saltou de 6 para 43 grupos ou seja surgiram mais 37 grupos Há representações em todas as regiões do país nos mais diversos estados inclusive no Distrito Federal MURILO 2013131 Os 37 grupos a mais indicados pelo autor em seu texto refletem também a diversificação das abordagens temáticas tanto em publicações quanto em congressos que a cada ano oferecem aos especialistas e interessados em geral importantes reflexões em 2016 por exemplo estão previstos eventos sobre o ensino escolar de história medieval na Universidade Federal Fluminense sobre a relação ensino pesquisa e extensão envolvendo todos os estados do Sul do país a ser realizado em Porto Alegre e cursos sobre atualizações em história medieval na Universidade Federal de Alagoas dossiês temáticos na Revista Brasileira de História e na revista Diálogos Toda esta movimentação indica que as manifestações específicas sobre a Idade Média no documento preliminar da BNCC são também fruto da vontade de participação e entendimento dos medievalistas nesta importante seara da formação do profissional de história que é o ensino escolar e suas especificidades Em novembro de 2015 a Associação Brasileira de Estudos Medievais ABREM disponibilizou em seu site uma carta sobre a 19 IS Teixeira NM Pereira Diálogos v20 n3 1629 versão preliminar da BNCC e dentre as críticas sobre a escolha da comissão responsável pela elaboração do documento o calendário limitado de consulta e as limitações à própria manifestação no portal da Base os membros da Diretoria afirmaram que a manifestação da ABREM não se trata de uma defesa pelo estudo da História Europeia nem de uma posição conservadora sobre o ensino de História A manifestação tinha por finalidade defender o acesso a um patrimônio cultural diversificado cujo conhecimento é fundamental em um mundo que passa por grandes transformações sociais um mundo que tem colocado frente a frente diferenças que só a ciência do outro será capaz de fazer dialogar e acolher1 Ao afirmar que não defende uma posição conservadora a ABREM manifestase contrária às afirmações em um artigo publicado no jornal Folha de São Paulo assinado por Sabine Righetti Neste artigo críticas ao componente curricular História da BNCC são enquadradas pela autora como manifestações de acadêmicos mais conservadores2 Por não se entender nesta categoria a ABREM defende assim a permanência e pertinência do ensino escolar de história medieval Esta carta expressa uma forte preocupação com a formação das crianças e adolescentes que sonham com o Egito Antigo que se reúnem para jogos ambientados na Idade Média que leem livros que os fazem se perguntar quais são os limites entre História e Ficção que lotam salas de cinema quando os filmes propõem histórias de cavaleiros ou abadias em que sucedem mistérios jovens que têm o direito de 1 Carta da ABREM sobre a BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR BNCC Novembro de 2015 Disponível em httpwwwabremorgbrindexphpnoticias246cartadadiretoriadaabremsobreabnccnov2015 Consultado em abril de 2016 2 RIGHETTI S Proposta de ministério que altera ensino de história causa reações Caderno Educação Folha de São Paulo 22112015 Disponível em httpwww1folhauolcombreducacao2015111709478propostadeministerioque alteraensinodehistoriacausareacoesshtmlcmpidcompfb Consultado em Abril de 2016 3 Carta da ABREMop cit compreender por que a língua que falam é mais próxima da língua de Camões que podem suspeitar que na fruição da leitura de uma peça de Ariano Suassuna está a densidade do Movimento Armorial que inclui a Idade Média e que devem conhecer a formação da cultura política de seu país não a fim de construir linhas ininterruptas entre o passado e o presente mas para analisarem as escolhas da sociedade de que fazem parte3 A partir desta longa citação podese elencar que a defesa recai sobre o apelo que esse passado mais distante tem ao despertar curiosidades e encantamentos cinema cavaleiros abadias e mistérios pertencimento a língua de Camões próxima à falada pelos alunos e de cultura política Neste conjunto podese identificar o que José Rivair Macedo classificou como medievalística conjunto de pesquisadores especializados em diversos aspectos objetivos da realidade histórica história política social econômica e cultural reminiscências medievais formas de apropriação dos vestígios do que um dia pertenceu ao Medievo alterados eou transformados com o passar do tempo e medievalidade em que a Idade Média aparece apenas como uma referência e por vezes uma referência fugidia estereotipada Este autor com ampla trajetória ligada aos estudos medievais e que recentemente tem se dedicado para o estudo das antigas sociedades africanas associa principalmente as reminiscências e a medievalidade ao senso comum e que seriam paralelos à pífia História da Idade Média ensinada na escola MACEDO 2009 1419 Seria a Idade Média então um conteúdo escolar que revela ao mesmo tempo um IS Teixeira NM Pereira Diálogos v20 n3 1629 20 pertencimento com teor conservador ensinado de forma insuficiente e que se justifica pelo interesse que os limites entre a história e a ficção despertam em crianças e adolescentes De certo que tanto o modo como a Idade Média tem sido ensinada na Escola Básica quanto a vontade de dar relevo aos interesses dos jovens despertados pelos jogos pelo cinema ou pela literatura não se apresentam como justificativas adequadas para a defesa da necessidade de se incluir nos currículos esse período da história De qualquer modo o teor conservador de uma Idade Média ensinada tem sido amplamente criticado desde análises específicas sobre livros didáticos de história PEREIRA GIACOMONI 2009 SOUZA 2005 MURILO 2015 FRAZÃO 2005 que se propõem a pensar os estereótipos criados sobre o medievo e que ganham discurso corrente nas salas de aula Essa crítica tem permitido uma boa dose de renovação no campo da produção didática ao menos permitindo que se observe por exemplo referências não preconceituosas ao Islã e inserção de temas medievais que não se limitam às guerras à peste ou à violência como o tema da formação das universidades a filosofia e a literatura do período Isso quer dizer que por um lado a Idade Média escolar já não se limita a um conjunto de noções que apresentam o período como o lado obscuro do Iluminismo Por outro lado ainda há sem dúvida certo desinteresse no âmbito da história ensinada pelo conhecimento histórico que vem sendo produzido por uma ampla e diversificada pesquisa no Brasil sobre Idade Média Tal desinteresse tem dado lugar aos estereótipos de uma Idade Média vista ou sob o prisma do desprezo4 ou sobre a influência da ficção que torna a Idade Média exótica e apartada da pesquisa historiográfica Entretanto é preciso considerar que uma sala de aula de História realiza um duplo 4 Fazemos aqui alusões ao que afirmou Bernard Guenée que a Idade média nasceu do desprezo Desprezo este que foi resumidamente explicado por Hilário Franco Júnior em seu livro A Idade Média nascimento do Ocidente movimento descontrói a memória cristalizada que veicula estereótipos sobre o tempo passado e alimenta a imaginação das crianças e dos adolescentes sobre um passado distante com o qual é possível aprender com a experiência alheia Nesse sentido propomos tomar a crítica aos textos da BNCC considerando a importância que teve a versão preliminar porque é significativa para o estudo dos temas medievais na sala de aula a quebra importante levada a efeito pelo documento em relação a uma história quadripartite que tem como referência a Revolução Francesa e ao mesmo tempo o tanto de medievalidade que se encontrou na segunda versão da Base Pretendemos salientar a defesa realizada pela ABREM que considera o estudo de um passado como a Idade Média em função do encantamento que desperta nos estudantes pelas relações de pertencimentos que permite estabelecer entre esse passado e a realidade dos alunos ou mesmo pelos motivos da criação de uma cultura política No entanto pretendemos também ampliar essa tripla leitura que a Associação utiliza para defender a Idade Média nos currículos escolares A proposta é pensar sobre processos de estranhamento necessários tanto à aprendizagem história dos estudantes quanto à formação política das novas gerações O objetivo da ampliação dessa discussão e do debate fértil e propositivo com a BNCC não se resume portanto a condenar um suposto Brasilcentrismo ou mesmo denunciar um recorte mal feito no passado ao se privilegiar as histórias da América da África ou a história indígena Ao contrário temse a convicção de que a ampliação do papel dessas histórias antes marginalizadas nos currículos de história da Escola Básica foi o que de mais importante ocorreu na proposição da versão preliminar da BNCC Este debate cria uma dicotomia entre um Currículo que inclui ou não inclui o privilégio 21 IS Teixeira NM Pereira Diálogos v20 n3 1629 à história europeia Este artigo parte do princípio que o não privilégio dado à história europeia é justamente o ponto alto da versão preliminar do texto da BNCC pois tal posição reflete um longo período de disputas no campo do ensino de História que se estende desde as anos 80 CABRINI 1994 e que contempla uma forte crítica ao que se chamou de Eurocentrismo No entanto verificouse que a segunda versão da Base desconsidera justamente esse acúmulo realizado pela versão preliminar e ocorre uma volta a um currículo quadripartite e que salienta o caráter estereotipado da Idade Média O que queremos é perguntar por que Idade Média nos currículos escolares Considerando o papel do estranhamento e do pertencimento do passado próximo e do passado distante como se dá a aprendizagem histórica e política das novas gerações Se a Idade Média tem a contribuir e é isso que o conjunto dos argumentos neste artigo quer fazer crer então talvez seja o caso de pensar que há lugar para o medievo na nova BNCC O primeiro passo para entender esta posição é que partimos do pressuposto que a medievalística precisa ter um lugar cada vez mais importante no conjunto da construção dos materiais didáticos e das aulas de história na escola uma vez que ela tem o caráter do conhecimento histórico e de ciência de referência CAIMI 20155 Consideramos que a aula de história pode sim se nutrir das reminiscências medievais de modo a estudar as diferentes formas através das quais o passado medieval reaparece sob outras roupagens na sociedade atual Ao mesmo tempo a medievalidade se apresenta como o que é objeto da crítica que faz parte das aulas de História mas que é descontruída constantemente pela crítica da medievalística Assim passamos a argumentar sobre o papel da Idade Média no conjunto da cultura 5 A noção de ciência de referência aparece em diversos trabalhos da autora para dar conta do conhecimento histórico produzido no campo da pesquisa história CAIMI 2015 p 105124 escolar como reminiscência como passado distante e como possibilidade de relações de pertencimento Isso considerando tanto o ponto de vista epistemológico no que se refere à aprendizagem histórica quanto do ponto de vista político no que se refere à formação política das novas gerações No contexto dessa argumentação propõese discutir as relações entre história e ficção e as relações entre o passado e o presente Desse modo podese concluir que a Idade Média não possui um pertencimento com teor conservador ainda que haja talvez mais da medievalidade do que da medievalística no espaço escolar Do mesmo modo a Idade Média na escola não pode apenas responder a um interesse dos jovens e quem sabe dos adultos por um medievo fantástico da ficção Aprendizagem histórica o próximo e o distante A primeira questão que se apresenta ao pensarmos na inserção ou não da Idade Média nos currículos escolares está relacionada ao imperativo bastante comum no ensino de História desde a revisão crítica dos anos 80 da relação necessária entre o tempo passado e o tempo presente Ou seja na crença de que a aprendizagem histórica dos jovens se dá em função da possibilidade de aproximar o passado do presente vivido ou de tornar familiar um passado distante Em torno dessa bandeira o ensino de História tem sido debatido e não é por menos que a elaboração da versão preliminar da BNCC tenha se pautado significativamente nessa prerrogativa O texto proposto para a disciplina aponta uma questão central para o componente curricular História são os usos das representações sobre o passado em sua interseção com a interpretação do presente e a IS Teixeira NM Pereira Diálogos v20 n3 1629 22 construção de expectativas para o futuro BRASIL 2015 p 241 Neste aspecto podese dizer que a versão preliminar da Base apresenta o ensino de História realizando um movimento que busca ver o caráter de utilidade do conhecimento histórico ensinado na escola considerando as representações sobre o passado e sua interseção com o presente Desse modo o objetivo parece ser a construção de uma consciência histórica e de um pensar historicamente que consiste num uso do passado como um modo de problematizar o presente Isso a partir da versão preliminar da Base permitiria então construir interpretações que permitem regular as ações intervenções e interações sociais dos indivíduos na atualidade balizado por um pensamento histórico É assim que se argumenta na versão preliminar da BNCC que dentre os usos do passado merecem atenção na aprendizagem histórica a dinâmica e a natureza da mídia que também produzem representações orientando as interpretações e a ação sobre o presente BRASIL 2015241 Compreendese que o papel desse uso vital do passado no sentido de pensar as ações e interações no presente assume centralidade da concepção teórica de aprendizagem histórica e de pensar historicamente que se defende no texto da primeira versão da Base Do mesmo modo e nessa direção a justificativa dada aos objetivos de aprendizagem salienta a ênfase na História do Brasil como o alicerce a partir do qual tais conhecimentos serão construídos ao longo da Educação Básica BRASIL 2015242 A compreensão do que seja pensar historicamente bem como dos limites de uma aprendizagem histórica está balizada pelo caráter útil do passado Isso implica em considerar o que torna possível pensar o próprio presente Além disso impera a necessidade que os jovens precisariam partir sempre do que lhes é próximo para acessar uma realidade distante no tempo ou no espaço Considerase que essa noção está bastante bem situada no texto preliminar da BNCC e se acentua como um dos argumentos mais fortes nos tempos atuais no que tange a construção do pensar historicamente O objetivo não é discordar dessa compreensão de imediato Uma vez que este artigo considera importante que para construir um pensamento histórico é necessário passar pelos usos do passado sobretudo este que torna o passado útil para a compreensão do presente para a regulação das ações no presente e para as intervenções políticas e sociais na realidade atual Não resta dúvida que um jovem que pensa historicamente seja capaz de olhar para si mesmo e sua realidade atual situandoa numa historicidade determinada A historicização da realidade é parte fundamental do pensar historicamente e a Escola Básica possui um papel central nesse processo Por isso pensamos que a versão preliminar da BNCC vai por caminho adequado quando se manifesta desse modo Entretanto pensar o passado apenas pelo seu uso como constituidor do pensar historicamente limitado pela utilidade da ação no presente ou da compreensão da historicidade da realidade na qual vivem os estudantes nos tempos atuais deixa de lado uma porção bem importante da aprendizagem histórica que não considera o passado necessariamente útil para a compreensão do presente ou a projeção do futuro Neste sentido é possível concordar com a afirmação que essa concepção torna o presente limite do passado Tudo se passa como se o passado fosse tudo o que o presente pode dele tirar por necessidade por interesse por meio da inteligência PEREIRA TORELLY 2015 p 92 Nesse sentido ainda que seja importante e necessário ver e considerar que a aprendizagem histórica se dá através dos sentidos que o passado adquire para os estudantes e que esses sentidos sejam mais facilmente construídos através de um jogo constante entre o presente e o passado o próximo e o distante compreende se que a porção de passado que escapa ao sentido 23 IS Teixeira NM Pereira Diálogos v20 n3 1629 dado pelo recorte proposto pelo presente pode ser muito importante para a aprendizagem histórica O que se quer dizer é que não apenas há algo mais de passado que o recorte que fizemos dele desde o presente e que o acesso ao passado pode se dar também pelo residual pela imaginação e pela inutilidade Ou seja o estudo da Idade Média muito tem a ver com a criação de uma cultura política como sugere a ABREM em sua carta contra a versão preliminar da BNCC mas muito tem igualmente pelo estrangeiro e pelo estranhamento de abordar as residualidades as ficções criadas sobre o medievo e que aporta os lares no mundo todo todos os dias O estudo sobre o medievo pode se dar pela via do estranhamento sobretudo esta Idade Média tão vista falada e propagada aos quatro cantos em nossa sociedade atual presente e brasileira De tão estrangeira que é através da literatura do cinema da ficção em geral e mesmo na medievalidade da sala de aula ela é tornada próxima Desse modo ensinase o próprio presente ao invés de se aprender com o mundo medieval Na seção seguinte são apresentadas entradas para o estudo da Idade Média As premissas para tal que a aprendizagem histórica se dá sim conforme se pode ler na primeira versão da BNCC pela via importante do pertencimento e das aproximações entre presente e passado que a aprendizagem histórica também se dá pelo estranhamento e pela crítica às apropriações que o presente faz do passado uma vez que a aprendizagem de quem somos nós implica reconhecer o diferente e aprender com ele seus modos de vida sua experiência e as problemáticas criadas pelo seu tempo que pensar historicamente também é desapropriarse do passado deixar que ele possa ser algo mais um excesso que não apenas o recorte que fazemos dele no presente Os estudantes precisam aprender que a interpretação histórica é uma criação de sentido que implica sempre a possibilidade de ser diferente VEYNE 1995 Se a versão preliminar da BNCC permitiu uma densa discussão acerca da aprendizagem histórica e do pensar historicamente ainda que considerasse as relações de pertencimento sobrepostas às relações de estranhamento a segunda versão da Base ao tentar reconstituir o caráter de uma cultura histórica e de um conhecimento das diversas experiências humanas inclusive da Idade Média se volta à velha fórmula que temos chamado neste artigo de medievalidade A Idade Média aparece apenas no 6º ano do Ensino Fundamental através de objetivos que caracterizam um medievo envolto em preconceitos e desatualizações historiográficas O objetivo EF06HI20 mantém a máxima da descentralização do poder político e o controle monolítico da Igreja Católica Identificar a fragmentação do poder político e a primazia cultural e política da Igreja Católica BRASIL 2016 p 468 O objetivo EF06HI21 utiliza uma imagem muito comum sobre o mundo medieval que diz respeito a uma enunciação do Bispo Adalbéron de Laon 977 a 1030 que dividia a sociedade medieval em três ordens tal perspectiva é tomada como verdade histórica sem o devido aprofundamento e debate em torno do tema Classificar a estrutura da sociedade feudal definida a partir de três ordens dos oratores bellatores e laboratores representadas pelas figuras do sacerdote do cavaleiro e do camponês BRASIL 2016 p 470 O objetivo EF06HI31 parece supor como dada a divisão da história em Antiga Média Moderna e Contemporânea uma vez que as apresenta como diferentes formas de periodizar a história Conhecer diferentes formas de periodização dos processos históricos tais como Idades Antiga Média Moderna e Contemporânea Eras do descobrimento das revoluções atômica e espacial Períodos Paleolítico e Neolítico Mundos antigo e moderno Antigo regime Antiguidade Modernidade Pósmodernidade e IS Teixeira NM Pereira Diálogos v20 n3 1629 24 Contemporaneidade BRASIL 2016 p 474 A segunda versão da Base mantém os preconceitos iluministas acerca da Idade Média e além de demonstrar desatualização em relação à pesquisa sobre o medievo no Brasil e no Mundo revelando desse modo um conjunto de estereótipos já desconstituídos pela medievalística Por que o estudo da Idade Média permite o desenvolvimento do pensar historicamente Não se pode subestimar o papel desempenhado pela Idade Média no debate político contemporâneo e na fabricação das identidades sejam elas nacionais regionais ou européias Certas continuidades medievais são discursos destinados a legitimar posturas políticas contemporâneas tanto na França da III República quanto na Alemanha da primeira metade do século XX ou na Sérvia de Slobodan Milosevic CÂNDIDO DA SILVA 2009 p 14 A epígrafe com a qual este item tem início está inserida num texto escrito pelo medievalista brasileiro Marcelo Cândido da Silva O autor não está interessado em discutir questões específicas do ensino escolar de história medieval mas fornece elementos para se pensar os usos do passado medieval em diferentes momentos regiões e situações Optouse por esta referência pois como afirmado anteriormente não necessariamente se discorda da proposta de se aproximar o passado do cotidiano do aluno Aliada a esta proposta há ainda a questão 6 Na primeira edição do periódico após os atentados inclusive há uma charge na página que trata das manifestações em defesa da França e da liberdade de expressão O slogan Je suis Charlie nesta charge específica é acompanhado de um jogo de palavras Je suis Charles Martel Uma referência explícita aos conflitos entre muçulmanos e franceses no século VIII a Batalha de Poitiers 7 A lista de textos e matérias que poderiam ser citadas é extensa mas ficamos com 3 O Globo 16 de abril de 2015 página de Religião Funk com trechos do Alcorão gera briga na Justiça Não quis ofender diz MC Dadinho Disponível em httpogloboglobocomsociedadereligiaofunkcomtrechosdoalcoraogerabriganajusticanaoquisofenderdizmcdadinho 15885643 Consultado em abril de 2016 Artigos publicados em 30 de junho e 17 de julho de 2014 no site da revista Carta Capital assinado por João Antônio Lima e Antônio Luiz M C Costa respectivamente Em 2014 o mundo tem um califado islâmico Como isso foi possível e No Iraque e na Síria o califado do século XXI Reportagem publicada originalmente na edição 807 de Carta Capital do entendimento e problematização das mídias proposta pela versão preliminar da Base em relação ao conhecimento histórico Como isso pode ser relacionado ao passado medieval E é nisto que está localizada a ideia das entradas a relação controversa entre o Ocidente e o Oriente principalmente o Oriente Médio o estranhamento que o conhecimento sobre o Extremo Oriente entre os séculos V e XV certamente gera quando comparado com o Ocidente no mesmo período e o tema das residualidades Primeira entrada O Islã e a circulação de informações no mundo contemporâneo O mundo tem presenciado pelo menos desde os atentados na Vila Olímpica de Munique na década de 1970 cada vez mais ao vivo aspectos que colocam em xeque processos históricos de longa duração guerra do Golfo atentados em 11 de setembro de 2001 nos EUA invasão no Iraque em 2003 atentados em 11 de março de 2004 em Madri 07 de julho de 2005 em Londres caso Jean Charles 15 de abril de 2013 na Maratona de Boston 07 de janeiro Charlie Hebdo6 e 13 de novembro Bataclan Stade de France de 2015 em Paris e recentemente 22 de março de 2016 em Bruxelas Todas essas situações colocam em xeque as relações conflituosas entre o Ocidente e o Oriente Principalmente em tempos nos quais o Estado Islâmico se apropria de formações políticas medievais o califado e assume um discurso cruzadista de retomar os territórios na Península Ibérica7 25 IS Teixeira NM Pereira Diálogos v20 n3 1629 Islã califado Carlos Martel e cruzadas para serem compreendidos prescindem de conhecimentos como monoteísmos cristianismo guerras justa santa cruzada e o controverso e midiático conceito de jihad tão propagado nos meios de comunicação8 e também o próprio fato de no período medieval judeus cristãos e muçulmanos terem vivenciado momentos de coexistência e trocas culturais9 Sendo assim a Idade Média não está necessariamente descolada de um passado usado no presente e também por este motivo deveria ter espaço na proposta da BNCC Ainda assim a referência ao passado medieval pode reforçar a reprodução de estereótipos sobre o mundo árabe e sobre os muçulmanos com a constante associação ao terrorismo além de erros conforme os indicados por Ana Souza 2005 em sua dissertação de mestrado Segundo a autora ao analisar livros didáticos de história publicados ou reeditados entre 19852004 é possível levantar ao menos seis pontos sobre a relação entre o Islã e as publicações didáticas analisadas Dentre esses pontos podemos destacar a inserção da temática em capítulos específicosexclusivos o uso de palavras transliteradas do árabe para o português sem a preocupação com o significado da palavra no original e por fim cabe o destaque alguns livros não verificaram nem certificaram todas as informações recolhidas com o título O califado do século XXI Disponíveis em httpwwwcartacapitalcombrinternacionalem2014omundotemumcalifadoislamicocomoissofoipossivel5045html e httpwwwcartacapitalcombrrevista807ocalifadodoseculoxxi4677 Consultados em abril de 2016 8 Para um bom entendimento sobre a diferença entre esses termos bem como suas nuances históricas conferir a conclusão do livro Guerra Santa formação da idéia de cruzada no Ocidente cristão de Jean Flori 2013 p 349362 9 Aqui fazemos alusão ao texto de Aline Dias da Silveira Políticas e convivência entre cristãos e muçulmanos nas Cantigas de Santa Maria 2009 p 3959 Por exemplo encontramos na região mediterrânica medieval um dos maiores testemunhos de convivência eou coexistência entre as três religiões monoteístas É nesta região de trânsito intenso durante a Idade Média que são especialmente constatadas situações de conflito rechaço e perseguições mas também de colaboração tolerância e em consequência disso de trocas culturais Citação na p 39 10 Outra oportunidade de entrada pois o ano de 622 d C marca o início do calendário muçulmano como ano 1 da Hégira 1H E este calendário diferente do adotado no nosso cotidiano é baseado em fases da lua e tem 12 meses de 29 a 30 dias compondo um total de 354 diasano Um professor frente a esse tipo de questão está diante de uma situação bastante peculiar que pode inclusive envolver o conhecimento dos alunos em outras áreas como a matemática nas fontes consultadas antes de fazêlas constar em seus textos didáticos por isso foram encontrados erros crassos sobre o Islã que não são compatíveis com o livro didático de História porque a História ciência investigativa preza pela exatidão dos fatos SOUZA 2005 p 98 Nesta citação há duas questões a analisar o erro crasso ao qual a autora faz menção está relacionado à Hégira 622dC10 A saber a autora encontrou uma inversão em uma publicação didática que o profeta Mohamed teria saído de Medina para Meca quando como se sabe é o contrário Ana Souza afirma ainda que as publicações não apresentam ideologia de ataque porém argumenta que ao apresentarem erros sobre o Islã as publicações podem reforçar estereótipos SOUZA 2005 p 98 A segunda questão a observar nesta citação e neste caso para apontar uma discordância é a questão da exatidão dos fatos Obviamente que se entende que erros cronológicogeográficos confundem e atrapalham a compreensão dos processos históricos estudados Porém não se pode afirmar que a história por ser ciência dá conta de fatos exatos Segunda entrada O Extremo Oriente e o acesso das mulheres ao letramento no Japão Em relação ao Extremo Oriente há vários aspectos que podem auxiliar no estranhamento necessário ao processo de IS Teixeira NM Pereira Diálogos v20 n3 1629 26 aprendizagem em história Pois além de pouco explorado tanto nas publicações didáticas quanto na própria sugestão da versão preliminar da Base que insere esta região do planeta denominada como Ásia apenas no 3º ano do ensino médio CHHI3MOA045 CHHI3MOA048 e 049 oferece uma oportunidade ímpar quando se trata da mesma região para os séculos V a XV Os conteúdos sugeridos nas disciplinasobjetivos de aprendizagem indicados nas siglas entre parêntesis propõem um recorte cronológico para o imperialismo e as descolonizações entre os séculos XIX e XXI Porém no item CHHI3MOA047 lêse Interpretar criticamente os contextos ideológicos e políticos que envolveram diferentes concepções religiosas presentes no Brasil e no mundo Islamismo Judaísmo Cristianismo Hinduísmo e Budismo entre os séculos XIX e XXI BRASIL 2015 p264 Perguntase como analisar essas diferentes concepções religiosas de forma tão abrupta Apenas mencionando que são milenares é o suficiente para a conexão direta com o tempo presente Caberia ainda perguntar e as outras religiões11 O mesmo pode ser feito em relação à temática mulheres escritoras DRONKE 1995 Tema que ganha cada vez mais abordagens para o mundo Ocidental durante a Idade Média mas que em perspectiva comparada pode revelar diferenças significativas das relações entre homens e mulheres e das mulheres com o letramento entre os séculos V e XV Se no Ocidente temos casos como os de Marguerite Porète 1310 e Margery Kempe 1438 que sofreram denúncias de heresia por conta das coisas que escreveram e que culminou com a condenação à fogueira da primeira para o 11 Neste caso indicamos As religiões que o mundo esqueceu FUNARI 2012 e Introdução às religiões chinesas POCESKI 2013 12 Destacamos aqui uma interessante passagem da obra de Sei Shônagon Coisas que são iguais embora soem diferentes A fala do religioso A fala do homem a fala da mulher SHÔNAGON 2013 p 50 Extremo Oriente temos situações como as de Murasaki Shikibu ca1026 autora de Segredos ou Romance de Genji e de Sei Shônagon ca10201024 autora de O livro do Travesseiro12 Neste breve quadro há um elemento que não necessariamente se vê na sociedade japonesa dos séculos X e XI a misoginia Sabese que os homens da Igreja no Ocidente tinham uma postura bastante rígida em relação ao acesso das mulheres à palavra podia confundir e levar ao pecado como Eva o fez em relação a Adão SCHMITTPANTEL 2003 p 129156 Esta temática tão amplamente trabalhada para a Europa Ocidental encontra um contraste interessante do outro lado do mundo e pode propor em situações de sala de aula importantes reflexões sobre as construções de gênero Terceira entrada as residualidades Meu povo peço licença Para lhes apresentar O primeiro personagem Que vai aqui desfilar Bom e nobre cavaleiro Valoroso e altaneiro Passa a vida a galopar Ele é forte e delicado Seu cavalo é todo branco Trajado em armadura prata Capa de bordado santo A luz do sol se reflete Feito dardo se arremete Todos cegam de espanto Agora vou lhes dizer Este homem é tão forte Que mesmo em fogo cruzado Com o cavalo no pinote Levanta a cabeça e luta Espalha bravura arguta O seu nome é Lancelote 27 IS Teixeira NM Pereira Diálogos v20 n3 1629 XXXXXXXXXX Agora eu lhes apresento Um grande cangaceiro Nascido em nosso país Leal e bom companheiro Para uns foi criminoso Para outros foi justiceiro Criado nas terras secas Vaqueiro trabalhador Cuidava de um ralo gado Com coragem e com valor Su nome era Virgulino Mas um dia veio a dor Ao ver seu pai baleado Ele partiu pra vingança À frente dos cangaceiros Se pôs logo em liderança Bando de cabras armados Ao inimigo com ganância XXXXXXXXXX Com este bando temido Atirava igual canhão Com seu rifle poderoso Tornava a noite um clarão Por isso todo orgulhoso Se chamou de Lampião VILELA 2006 estrofes 1 a 3 9 a 11 e 14 Os versos que dão início a esta terceira entrada são da obra infantojuvenil Lampião e Lancelote publicada em 2006 de autoria de Fernando Vilela13 Tratam como é possível ler do encontro entre o tão conhecido cavaleiro medieval Lancelote e Virgulino Ferreira o Lampião O autor usa rimas e ritmo para narrar as proezas dos dois e dos conflitos que as respectivas bravuras geram em um encontro obviamente fictício A ambientação da história em um terreno árido faz ampla alusão ao Nordeste Brasileiro 13 A obra foi transformada em peça teatral homônima com Dramaturgia de Bráulio Tavares direção e concepção de Debora Dubois Cf Programa da peça Lancelote e Lampião distribuída no teatro do Bourbon Country Porto Alegre 21 e 22 de novembro de 2014 Essas questões então remetem aos chamados estudos sobre residualidades medievais no Brasil Área em grande medida constituída em torno do Grupo de Estudos de Residualidade Literária e Cultural GERLIC registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e sediado principalmente na Universidade Federal do Ceará em Fortaleza Segundo estudo publicado por Roberto Pontes um dos coordenadores do GERLIC o objetivo é demonstrar que o caminho mais adequado para estudar a Idade Média no Brasil é focar a investigação nos institutos medievais prevalentes na Península Ibérica sobretudo Espanha e Portugal e nos resíduos destes entre nós já que não dispomos de fontes primárias mediévicas brasileiras PONTES 2015 p 28 A circunscrição dos estudos de residualidade com enfoque nas relações brasileiras com a Península Ibérica é portanto uma característica desta produção Porém ao afirmar que é por não se dispor de fontes primárias mediévicas brasileiras Pontes indica que o estudo do período medieval deve ser realizado pela via dos resíduos ibéricos Isso remete ao argumento do pertencimento É possível apresentar uma discordância deste ponto e como uma definição não restrita ao mundo ibérico e seu legado no novo mundo Em contrapartida concordase com o que propõe José Rivair Macedo Por residualidades medievais ou reminiscências medievais devemse entender justamente as formas de apropriação dos vestígios do que um dia pertenceu ao medievo alterados eou transformados no decurso do tempo Nesta categoria encontramse por exemplo as festas os costumes populares as tradições orais de cunho folclórico que remontam aos séculos anteriores ao XV e que preservam IS Teixeira NM Pereira Diálogos v20 n3 1629 28 algo ainda do momento em que foram criados mesmo tendo sofrido acréscimos adaptações alterações Festas como a de Corpus Christi as Folias de Reis e a Festa do Divino Espírito Santo o Natal e mesmo o Carnaval foram um dia medievais e persistem mas não da mesma forma nem desempenhando os mesmos papéis na Europa ou em outras partes do mundo para onde foram levadas MACEDO 2011 p 13 A partir destas considerações a Idade Média abre espaço para um amplo universo de acesso ao outro que é o passado Passado este que pode estar presente na ficção infantojuvenil como medievalidade ou em constantes referências ao período entre os séculos V e XV como resíduos apontados em outros estudos MALEVAL 2013 p93110 Neste sentido é possível responder à pergunta deste tópico a Idade Média permite pensar historicamente não para estudar a etnogênese CÂNDIDO DA SILVA 2009 e MACEDO 2011 mas para estudar o diferente um outro que é constantemente lembrado e que é usado de formas distintas em contextos distintos com finalidades distintas Considerações finais Ao se propor a reflexão ora apresentada foi importante considerar que seu elemento motivador foram as manifestações publicizadas por associações de pesquisadores sobre o texto preliminar da Base Nacional Comum Curricular BNCC Destacouse aqui um conjunto de elementos usados nestas manifestações a crítica realizada no texto preliminar da Base sobre o Eurocentrismo e o reforço no argumento do estudo do passado a partir de temas aproximáveis ao presente dos alunos e a própria noção de usos do passado reações sobre as exclusões especificamente em relação à história europeia entre os séculos VXV e por fim a contraargumentação de que estas reações são de conservadores Além disso na carta da Associação Brasileira de Estudos Medievais é possível ler que os argumentos própermanência da Idade Média nos currículos escolares Nessa argumentação foram destacados elementos que podem ser sintetizados nos três conceitos medievalística medievalidade e residualidadereminiscências A postura adotada na análise aqui desenvolvida é de considerar possibilidades para o entendimento e aproveitamento do texto preliminar da BNCC com implicações positivas mediante uma ampliação da proposta de usos do passado ou de utilidade Ao mesmo tempo o presente artigo assume uma postura de crítica em relação à segunda versão da Base que abandona os avanços do primeiro e retoma uma Idade Média estereotipada De qualquer modo o que queremos mostrar é que a Idade Média oferece algumas entradas que permitem analisar discursos midiáticos entendimento de questões conflituosas entre Ocidente e Oriente relações de gênero e o interesse despertado em crianças adolescentes jovens e adultos pela ficção Referências BRASIL MEC Versão Preliminar da Base Nacional Comum Curricular 2015 Pesquisado em 01 de março de 2016 httpbasenacionalcomummecgovbrsiteconheca BRASIL MEC Segunda Versão da Base Nacional Comum Curricular 2016 Pesquisado em 01 de maio de 2016 httpbasenacionalcomummecgovbrsiteinicio CABRINI Conceição O Ensino de História revisão urgente São Paulo Brasiliense 1994 CAIMI Flávia Eloisa O que precisa saber um professor de história História Ensino Londrina v 21 n 2 p 105 124 juldez 2015 CANDIDO DA SILVA M A Alta Idade Média entre os séculos XIX e XX da Nação à Etnogênese In PEREIRA N M ALMEIDA C C de e TEIXEIRA I S Orgs Reflexões sobre o medievo I São Leopoldo Oikos 2009 pp 1122 DRONKE P Las escritoras de la Edad Media Barcelona Crítica 1995 29 IS Teixeira NM Pereira Diálogos v20 n3 1629 FLORI J Guerra Santa formação da idéia de cruzada no Ocidente cristão Campinas EDUNICAMP 2013 FUNARI P P Org As religiões que o mundo esqueceu como egípcios gregos celtas astecas e outros povos cultuavam seus deuses São Paulo Contexto 2012 MACEDO J R Cinema e Idade Média Perspectivas de Abordagem In IDEM e MONGELLI L M Orgs A Idade Média no Cinema São Paulo Ateliê Editorial 2009 pp 1348 MACEDO J R Sobre a Idade Média Residual no Brasil In IDEM Org A Idade Média Portuguesa e o Brasil reminiscências transformações ressignificações Porto Alegre Vidráguas 2011 pp 0920 MALEVAL Maria do Amparo Tavares João Cabral de Melo Neto Gil Vicente e a tradição medieval dos autos natalinos In PONTES Roberto MARTINS Elizabeth Dias org A residualidade ao alcance de todos Fortaleza Expressão Gráfica 2015 p 93110 MURILO M da S Idade Média e seu ensino novos horizontesvelhos problemas In SILVA M Org História que ensino é esse Campinas Papirus 2013 pp 123136 MURILO M da S A idade média nos livros didáticos brasileiros A crise do século XIV reverberações da historiografia acadêmica da primeira metade do século xx nos esquemas explicativos escolares Tese Doutorado em História São Paulo USP 2015 315f PEREIRA N M e GIACOMONI M P Possíveis passados representações da Idade Média no ensino de História Porto Alegre Zouk 2008 PEREIRA N M e TORELLY G O Jogo e o Conceito sobre o ato criativo na aula de História Revista Opsis Vol 15 n 1 2015 pp 88100 Disponível em httprevistasufgemnuvenscombrOpsisarticleview 3472720037Vx6mGvkrLIU Consultado em abril de 2016 DOI httpdxdoiorg105216ov15i134727 POCESKI M Introdução às religiões chinesas São Paulo UNESP 2013 PONTES R A Idade Média nos estudos Residuais Revista Graphos vol 17 n 2 2015 pp 2732 Disponível em httpperiodicosufpbbrindexphpgraphosarticlevi ewFile2728414637 Consultado em abril de 2016 SCHMITTPANTEL P A criação da mulher um ardil para a história das mulheres In MATOS M I S de e SOIHET R Orgs O corpo feminino em debate São Paulo UNESP 2003 pp 129156 SEI SHÔNAGON O livro do Travesseiro São Paulo Editora 34 2013 SILVA Andréia Cristina Lopes Frazão da Alguns Apontamentos Acerca dos Germanos nos Livros Didáticos de História no Brasil Mirabilia electronic journal of antiquity and middle ages Núm 4 2005 SILVEIRA A D da Política e convivência entre cristãos e muçulmanos nas Cantigas de Santa Maria In PEREIRA N M ALMEIDA C C de e TEIXEIRA I S Orgs Reflexões sobre o medievo I São Leopoldo Oikos 2009 pp 3959 SOUZA Ana G O Islã nos Livros Didáticos de História de 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental no período de 1985 a 2004 Dissertação Mestrado em Língua Literatura e Cultura árabe FFLCHUSP São Paulo 2005 145f VEYNE Paul Marie Como se escreve a história Foucault revoluciona a história 3 ed Brasília Editora da Universidade 1995 VILELA F Lampião Lancelote São Paulo Cosac Naif 2006 TEIXEIRA Igor Salomão PEREIRA Nilton Mullet A Idade Média nos currículos escolares as controvérsias nos debates sobre a BNCC Diálogos v 20 n 3 2016 1629 O artigo faz menção a um importante debate especialmente entre historiadores que se iniciou no final de 2015 e início de 2016 Sobre a Base Nacional Comum Curricular na qual foi apresentado primeiro um documento depois uma segunda versão sobre o ensino de história medieval nos bancos escolares Posto isso os autores durante sua narrativa dialogam a respeito desses documentos e argumentam sobre a importância dos estudos medievalistas para novas interpretações e construções acerca da história Na primeira versão da BNCC é apresentado propostas como a de estruturação do ensino de história que questiona a imposição tradicional de História Antiga Medieval Moderna e Contemporânea e propõe adotar uma outra perspectiva para a compreensão dos processos espaços que estejam mais próximos a realidade dos alunos Mas essa visão é tachada pelos contrários como Brasilcentrismo o que limita o estranhamento temporal necessário para uma análise e interpretação mais profunda das sociedades e situações históricas A partir dessas discussões também foram geradas novas abordagens quanto ao ensino de história africana e povos indígenas sem dar tanta ênfase a história europeia Após críticas a essa primeira versão é publicado um segundo documento que contém o inverso do primeiro o qual evidencia o retorno a história quadripartite e o privilégio a história europeia Por meio dessas colocações o objetivo do artigo é analisar as manifestações das associações e medievalistas em relação aos debates sobre a BNCC e o lugar que a idade média deve ocupar nessas versões da base comum curricular Também se problematiza sobre a compreensão de história nas salas de aula da educação básica as relações entre o passado e o presente e a construção de relações de pertencimento a partir dos estudos de história E por fim o artigo nos faz refletir sobre como o processo de estranhamento pode nos incitar a construção da alteridade A partir dos anos 90 especialistas em história medieval tiveram um aumento significativo no quadro das universidades e laboratórios de pesquisa que trazem uma diversificação de abordagens através de eventos cursos dossiês que mostram a importância dos estudos medievalistas Durante os debates sobre o ensino escolar medieval a Associação Brasileira de Estudos Medievais ABREM afirma que não defende uma posição conservadora em relação ao documento da BNCC quanto a permanência do ensino escolar de história medieval Os autores Teixeira e Pereira nos pontuam sobre qual o sentido da história da idade média ensinada nas escolas pois o interesse por jogos vestimenta literatura e cinema de cunho medieval não são justificativas adequadas para a defesa da necessidade de incluir esse período nos currículos escolares Pois foram criados diversos estereótipos ligados a ficção sobre esse período o que limita a estudos e interpretações a respeito Dessa maneira quanto as críticas aos documentos da BNCC os autores consideram importante a primeira versão apresentada pois é significativa para os estudos de temas medievais em sala de aula Bem como ressaltam a quebra importante do segundo documento Salientam que a defesa da ABREM que considera o estudo da idade média como um fascínio aos estudantes pelas relações de pertencimento entre passado e futuro e amplia a tripla leitura quanto a associação para a defesa da idade média nos currículos e para pensar os processos de estranhamento que são necessários para a aprendizagem de história e a formação política das novas gerações Sobre o discurso do Brasilcentrismo temse a convicção de ampliar o papel da história a povos que foram marginalizados ou excluídos dos currículos de história Pois como Teixeira e Pereira nos ressaltam o não privilégio a história europeia é o ponto alto da versão preliminar do texto da BNCC em razão do eurocentrismo sempre presente nos estudos históricos E há lugar para o medievo na nova BNCC pois os estudos medievais precisam ter um lugar importante na construção de materiais didáticos e das aulas de história como ciência e conhecimento histórico Pois para os mesmos a idade média não possui um pertencimento com teor conservador e não pode apenas responder ao fascínio dos jovens e até adultos por um medievo fantástico da ficção A proposta da primeira versão da BNCC segundo os autores são importantes pois as representações do passado que orientam as interpretações e ações do presente impondo um caráter útil do passado para a construção do pensar historicamente As críticas da segunda versão se referem as divisões da história que limitam a novas construções Também faz críticas as produções estereotipadas sobre o mundo árabe e mulçumano que reforçam associações ao terrorismo Em relação ao Extremo Oriente que é pouco explorado tanto nas publicações didáticas quanto na versão preliminar da base a temática sobre as mulheres escritoras que revela diferenças significativas das relações entre homens e mulheres e das mulheres com o letramento no Ocidente e no oriente Pois os homens da igreja no ocidente tinham uma postura rígida com relação ao acesso das mulheres a palavra e esse elemento não se vê necessariamente na sociedade japonesa no século X e XI Esse contraste traz importantes reflexões que podem ser utilizadas em sala de aula para as construções de gênero Por fim os autores se posicionam a favor do entendimento e aproveitamento do texto preliminar da BNCC mediante uma ampliação da proposta do uso do passado e de utilidade e assume uma postura crítica e relação a segunda versão da base que abandona os avanços da primeira e retorna a uma idade média estereotipada Pois a idade média oferece uma entrada a inúmeras discussões e abre precedentes para reflexões atuais e importantes para o aprendizado e as construções históricas acerca dos diversos temas