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Psicologia ·
Psicologia Social
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Alberto A Andery Alfredo Naffah Neto Antonio da C Ciampa Iray Carone José C Libâneo José R T Reis Marília G de Miranda Silvia T M Lane org Wanderley Codoorg PSICOLOGIA SOCIAL o homem em movimento 8 edição editora brasiliense Coleçào Primeiros Passos O Discurso da Homossexualidade Feminina Dcnise Portinari Evas Marias Liliths As voltes do feminino Vera Paiva Filosofia e Comportamento Bento Prado Jr Freud Pensador daCultura Renato Mczan O Mínimo Eu Christopher Lasch Sigmund Freud e o Gabinete do Dr Lacan Peter Gay e outros Tempo do Desejo Sociologia epsicanálise Heloísa Fernandes org O que é Loucura Joio Frayzt Pereira O que é Psicanálise Fabio Herrmann O que é Psicanálise 2 visão Oscar Cesarotto Márcio PS Leite O que é Psicologia Maria Luiza S Teles O que é Psicologia Comunitária Eduardo M Vasconcelos O que é Psicologia Social Silvia T Maurer Lane O que é Psicodrama Wilsçn Csutcljadc Almeida O que é Psico terapia leda Porchac O que é Psiquiatria Alternativa Alan índio Serrano SILVIA T M LANE WANDERLEY CODO ORGS PSICOLOGIA SOCIAL O HOMEM EM MOVIMENTO edição editora brasiliense Copyright Dos Autores 1984 Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada armazenada em sistemas eletrônicos fotocopiada reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor ISBN 8511150234 Primeira edição 1984 S edição 1989 Revisão José W S Moraes e Mansueto Bemardi Capa Ettore Bottini P Rua da Consolação 2697 01416 São Paulo SP Fone OU 2801222 Telex 1133271 DBLM BR IMPRESSO NO BRASIL Indice Apresentação Silvia T M Lane 7 PARTE 1 INTRODUÇÃO A Psicologia Social e uma nova concepção do homem para a Psicologia Silvia T M Lane 10 A dialética marxista uma leitura epistemológica Iray Carone 20 PARTE 2 AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL linguagem pensamento e representações sociais Silvia T M Lane 32 Consciênciaalienação a ideologia no nível individual Silvia T M Lane 40 O fazer e a consciência Wanderley Codo 46 Identidade Antonio da Costa Ciampa 58 6 INDICE PARTE 3 O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES O processo grupai Silvia T M Lane 78 Família emoção e ideologia José Roberto Tozoni Reis 99 O processo de socialização na escola a evolução da condição social da criança Marília Gouvea de Miranda 125 Relações de trabalho e transformação social Wanderley Codo 136 PARTE 4 A PRÂXIS DO PSICÓLOGO Psicologia educacional uma avaliação crítica José Carlos Libâneo 154 O psicólogo clinico Alfredo Naffah Neto 181 O papel do psicólogo na organização industrial notas sobre o lobo mau em psicologia Wanderley C o d o 195 Psicologia na comunidade Alberto Abib Andery 203 Apresentação Quando publicamos O que é Psicologia Social o fizemos dentro das propostas da Coleção Primeiros Passos procurando sintetizar a produção e discussão de temas que o programa de pósGraduação em Psicologia Social da PUCSP vinha desen volvendo Para nossa surpresa o livro passou a ser leitura constante de alunos de cursos universitários em todo o país indicando a necessidade de um conhecimento alternativo em Psicologia Social Este livro se propõe a atender a essa necessidade com artigos de vários autores abonando os tópicos que julgamos fundamental serem discutidos em disciplinas de Psicologia Social que compõem o currículo de Formação Geral do Psicólogo assim como de outros cursos que necessitem de conhecimentos nessa área A Introdução propõe uma outra concepção de homem e suas implicações epistemológicas a Parte 2 analisa as categorias fun damentais para a Psicologia Social enquanto a Parte 3 aprofunda a análise da relação indivíduosociedade pela mediação grupai e institucional Na Parte 4 os artigos analisam como a partir desta concepção de homem é possível rever a prática do psicólogo nas suas diversas especialidades Esperamos assim contribuir para uma psicologia voltada para os problemas concretos de nossa realidade tornando o profissional um agente de transformação na sociedade brasileira Silvia T M Lane Parte 1 Introdução A Psicologia Social e uma nova concepção do homem para a Psicologia Silvia Tatiana Maurer Lane Quase nenhuma ação humana tem por sujeito um indi víduo isolado 0 sujeito da ação é um grupo um Nós mesmo se a estrutura atuai da sociedade pelo fenômeno da reifiçaçao tende a encobrir esse N ós e a transformálo numa soma de vãrias individualidades distintas e fechadas umas às outras Lucien Goldman 1947 À relação entre Psicologia e Psicologia Social deve ser enten dida em sua perspectiva histórica quando na década de 50 se iniciam sistematizações em termos de Psicologia Social dentro de duas tendências predominantes uma na tradição pragmática dos Estados Unidos visando alterar eou criar atitudes interferir nas relações grupais para harmonizálas e assim garantir a produti vidade do grupo é uma atuação que se caracteriza pela euforia de uma intervenção que minimizaria conflitos tornando os homens felizes recorstrutores da humanidade que acabava de sair da destruição de uma II Guerra Mundial A outra tendência que também procura conhecimentos que evitem novas catástrofes mundiais segue a tradição filosófica européia com raízes na fenomenologia buscando modelos científicos totalizantes como Lewin e sua teoria de Campo A euforia deste ramo científico denominado Psicologia Social dura relativamente pouco pois sua eficácia começa a ser questio nada em meados da década de 60 quando as análises criticas apontavam para uma crise do conhecimento psicossocial que não INTRODUÇÃO 11 conseguia intervir nem explicar muito menos prever comporta mentos sociais As réplicas de pesquisas e experimentos não permi tiam formular leis os estudos interculturais apontavam para uma complexidade de variáveis que desafiavam os pesquisadores e estatísticos é o retorno às análises fatoriais e novas técnicas de análise de multivariância que afirmam sobre relações existentes mas nada em termos de como e por quê Na França a tradição psicanalltica é retomada com toda a veemência após o movimento de 68 e sob sua ótica é feita uma crítica à psicologia social norteamericana como uma ciência ideo lógica reprodutora dos interesses da classe dominante e produto de condições históricas específicas o que invalida a transposição tal e qual deste conhecimento para outros países em outras condições históricosociais Esse movimento também tem suas repercussões na Inglaterra onde Israel e Tàjfell analisam a crise1 sob o ponto de vista epistemológico com os diferentes pressupostos que embasam o conhecimento científico é a crítica ao positivismo que em nome da objetividade perde o ser humano Na América Latina Terceiro Mundo dependente econômica e culturalmente a Psicologia Social oscila entre o pragmatismo norteamericano e a visão abrangente de um homem que só era compreendido filosófica ou sociologicamente ou seja um homem abstrato Os congressos interamericanos de Psicologia são exce lentes termômetros dessa oscilação e que culminam em 1976 Miami com críticas mais sistematizadas e novas propostas principalmente pelo grupo da Venezuela que se organiza numa Associação Venezuelana de Psicologia Sovial AVEPSO coexistindo com a Associação LatinoAmericana de Psicologia Social ALAP SO Nessa ocasião psicólogos brasileiros também faziam suas críticas procurando novos rumos para uma Psicologia Social que atendesse à nossa realidade Esses movimentos culminam em 1979 SIP Lima Peru com propostas concretas de uma Psicologia Social em bases materialistahistóricas e voltadas para trabalhos comunitários agora com a participação de psicólogos peruanos mexicanos e outros O primeiro passo para a superação da crise foi constatar a tradição biológica da Psicologia em que o indivíduo era considerado um organismo que interage no meio físico sendo que os processos psicológicos o que ocorre dentro dele são assumidos como causa ou uma das causas que explicam o seu comportamento Ou seja para compreender o indivíduo bastaria conhecer o que 12 SILVIA T M LANE ocorre dentro dele quando ele se defronta com estímulos do meio Porém o homem fala pensa aprende e ensina transforma a natureza o homem é cultura é história Este homem biológico não sobrevive por si e nem é uma espécie que se reproduz tal e qual com variações decorrentes de clima alimentação etc O seu organismo é uma infraestrutura que permite o desenvolvimento de uma superes trutura que é social e portanto histórica Esta desconsideração da Psicologia em geral do ser humano como produto histórico social é que a torna se não inócua uma ciência que reproduziu a ideologia dominante de uma sociedade quando descreve compor tamento e baseada em freqüências tira conclusões sobre relações causais pela descrição pura e simples de comportamentos ocorrendo em situações dadas Não discutimos a validade das leis de aprendi zagem é indiscutível que o reforço aumenta a probabilidade da ocorrência do comportamento assim como a punição extingue comportamentos porém a questão que se coloca é por que se apreende certas coisas e outras são extintas por que objetos são considerados reforçadores e outros punidores Em outras palavras em que condições sociais ocorre a aprendizagem e o que ela significa no conjunto das relações sociais que definem concretamente o indivíduo na sociedade em que ele vive O ser humano traz consigo uma dimensão que não pode ser descartada que é a sua condição social e histórica sob o risco de termos uma visão distorcida ideológica de seu comportamento Um outro ponto de desafio para a Psicologia Social se colocava diante dos conhecimentos desenvolvidos sabíamos das deter minações sociais e culturais de seu comportamento porém onde a criatividade o poder de transformação da sociedade por ele construída Os determinantes só nos ensinavam a reproduzir com pequenas variações as condições sociais nas quais o indivíduo vive A ideologia nas ciências humanas A afirmativa de que o positivismo na procura da objetividade dos fatos perdera o ser humano decorreu de uma análise crítica de um conhecimento minucioso enquanto descrição de comporta mentos que no entanto não dava conta do ser humano agente de mudança sujeito da história O homem ou era socialmente deter minado ou era causa de si mesmo sociologismo vs biologismo Se INTRODUÇÃO m por um lado a psicanálise enfatizava a história do individiM a sociologia recuperava através do materialismo histórico a espe cificidade de uma totalidade histórica concreta na análise de cadà sociedade Portanto caberia à Psicologia Social recuperar o indi víduo na intersecção de sua história com a história de sua sociedade apenas este conhecimento nos permitiria compreender o homem enquanto produtor da história Na medida em que o conhecimento positivista descrevia comportamentos restritos no espaço e no tempo sem considerar a interrelaçào infra e superestrutural estes comportamentos me diados pelas instituições sociais reproduziam a ideologia domi nante em termos de freqüência observada levando a considerálos como naturais e muitas rezes universais A ideologia como produto histórico que se cristaliza nas instituições traz consigo uma concepção de homem necessária para reproduzir relações sociais que por sua vez são fundamentais para a manutenção das relações de produção da vida material da sociedade como tal Na medida em que a história se produz dialeticamente cada sociedade na organização da produção de sua vida material gera uma contra dição fundamental que ao ser superada produz uma nova socie dade qualitativamente diferente da anterior Porém para que esta contradição não negue a todo momento a sociedade que se produz é necessária a mediação ideológica ou seja valores explicações tidas como verdadeiras que reproduzam as relações sociais necessárias para a manutenção das relações de produção Deste modo quando as ciências humanas se atêm apenas na descrição seja macro ou microssocial das relações entre os homens e das instituições sociais sem considerar a sociedade como produto históricodialético elas não conseguem captar a mediação ideo lógica e a reproduzem como fatos inerentes à natureza do homem E a Psicologia não foi exceção principalmente dada a sua origem biológica naturalista onde o comportamento humano decorre de um organismo fisiológico que responde a estímulos Lembramos aqui Wundt e seu laboratório que objetivando construir uma psicologia científica que se diferenciasse da especu lação filosófica se preocupa em descrever processos psicofisiológicos em termos de estímulos e respostas de causaseefeitos Nesta tradição e no entusiasmo de descrever o homem enquanto um sistema nervoso complexo que o permitia dominar e transformar a natureza criando condições suigeneris para a SILVIA T M LANE sobftvivência da espécie os psicólogos se esqueceram de que este homem junto com outros ao transformar a natureza se trans formava ao longo da história Como exemplo podemos citar Skinner que sem dúvida causou uma revolução na Psicologia mas as condições histórico sociais que o cercam impediramno de dar um outro salto quali tativo Ao superar o esquema SR chamando a atenção para a relação homemambiente para o controle que este ambiente exerce sobre o comportamento criticando o reducionismo biológico permitiu a Skinner ver o homem como produto das suas relações sociais porém não chega a ver estas relações como produzidas a partir da condição histórica de uma sociedade Quando Skinner através da análise experimental do comportamento detecta os controles sutis que através das instituições os homens exercem uns sobre os outros e define leis de aprendizagem e não podemos negar que reforços e punições de fato controlam comportamentos temos uma descrição perfeita de um organismo que se transforma em função das conseqüências de sua ação também a análise do autocontrole se aproxima do que consideramos consciência de si e o contracontrole descreve ações de um indivíduo em processo de conscientização social Skinner aponta para a complexidade das relações sociais e as implicações para a análise dos comportamentos envolvidos desafiando os psicólogos para a elaboração de uma tecnologia de análise que dê conta desta complexidade enquanto contingências presentes em comunidades A história individual é considerada enquanto história social que antecede e sucede à história do Indivíduo Nesta linha de raciocínio caberia questionar por que alguns comportamentos são reforçados e outros punidos dentro de um mesmo grupo social Sem responder a estas questões passamos a descrever o status quo como imutável e mesmo que rendo transformar o homem como o próprio Skinner propõe jamais o conseguiremos numa dimensão históricosocial Impasse semelhante podemos observar em Lewin que procura detectar os casos puros à maneira galileica e assim precisar leis psicológicas Também para ele Indivíduo e Meio são indissociáveis e na medida em que o meio é social e se caracteriza pela complexidade de regiões e subregiões e seus respectivos sistemas de forças se vê num impasse para a comprovação e previsão de comportamentos Este impasse surge entre outros na descrição de processos grupais sob lideranças autocráticas democráticas e laissezfaire quando entendendo ser o processo democrático o mais INTRODUÇÃO íê criativo e produtivo propõe uma liderança democrática fefttt como forma de se chegar a esta relação grupai Também a psicanálise em suas várias tendências enfrenta este problema desde as criticas de Politzer a Freud até as análises atuais dos franceses que procuram fazer uma releitura da obra de Freud numa perspectiva históricosocial do ser humano Não negamos a psicobiologia nem as grandes contribuições da psiconeurologia Afinal elas descrevem a materialidade do orga nismo humano que se transforma através de sua própria atividade mas elas pouco contribuem para entendermos o pensamento hu mano e que se desenvolve através das relações entre os homens para compreendermos o homem criativo transformador sujeito da história social do seu grupo Se a Psicologia apenas descrever o que é observado ou enfocar o Indivíduo como causa e efeito de sua individualidade ela terá uma ação conservadora estatizante ideológica quaisquer que sejam as práticas decorrentes Se o homem não for visto como produto e produtor não só de sua história pessoal mas da história de sua sociedade a Psicologia estará apenas reproduzindo as condições necessárias para impedir a emergência das contradições e a trans formação social Á psicologia social e o materialismo histórico Se o positivismo ao enfrentar a contradição entre objetividade e subjetividade perdeu o ser humano produto e produtor da História se tornou necessário recuperar o subjetivismo enquanto materialidade psicológica A dualidade físico X psíquico implica uma concepção idealista do ser humano na velha tradição animíp tica da psicologia ou então caímos num organicismo onde homem e computador são imagem e semelhança um do outro Nenhuma das duas tendências dá conta de explicar o homem criativo e trans formador Tomouse necessária uma nova dimensão espaçotem poral para se apreender o Indivíduo como um ser concreto manifestação de uma totalidade históricosocial daí a procura de uma psicologia social que partisse da materialidade histórica produzida por e produtora de homens Ê dentro do materialismo histórico e da lógica dialética que vamos encontrar os pressupostos epistemológicos para a recons 16 SILVIA T M LANE trução dç um conhecimento que atenda à realidade social e ao cotidiano de cada indivíduo e que permita uma intervenção efetiva na rede de relações sociais que define cada indivíduo objeto da Psicologia Social Das críticas feitas detectamos que definições conceitos cons tructos que geram teorias abstratas em nada contribuíram para uma prática psicossocial Se nossa meta é atingir o indivíduo concreto manifestação de uma totalidade históricosocial temos de partir do empírico que o positivismo tão bem nos ensinou a descrever e através de análises sucessivas nos aprofundarmos além do apa rente em direção a esse concreto e para tanto necessitamos de categorias que a partir do empírico imobilizado pela descrição nos levem ao processo subjacente e à real compreensão do Indivíduo estudado Também a partir de críticas à psicologia social tradicional pudemos perceber dois fatos fundamentais para o conhecimento do Indivíduo 1 o homem não sobrevive a não ser em relação com outros homens portanto a dicotomia Indivíduo X Grupo é falsa desde o seu nascimento mesmo antes o homem está inserido num grupo social 2 a sua participação as suas ações por estar em grupo dependem fundamentalmente da aquisição da linguagem que preexiste ao indivíduo como código produzido historicamente pela sua sociedade langue mas que ele apreende na sua relação específica com outros indivíduos parole Se a língua traz em seu código significados para o indivíduo as palavras terão um sentido pessoal decorrente da relação entre pensamento e ação mediadas pelos outros significativos O resgate destes dois fatos empíricos permite ao psicólogo social se aprofundar na análise do Indivíduo concreto considerando a imbricação entre relações grupais linguagem pensamento e ações na definição de características fundamentais para a análise psicos social Assim a atividade implica ações encadeadas junto com outros indivíduos para a satisfação de uma necessidade comum Para haver este encadeamento é necessária a comunicação linguagem assim como um plano de ação pensamento que por sua vez decorre de atividades anteriormente desenvolvidas Refletir sobre uma atividade realizada implica repensar suas ações ter consciência de si mesmo e dos outros envolvidos refletir sobre os sentidos pessoais atribuídos às palavras confrontálas com as conseqüências geradas pela atividade desenvolvida pelo grupo INTRODUÇÃO 17 social e nesta reflexão se processa a consciência do indivíduo que é indissociável enquanto de si e social Leontiev inclui ainda a personalidade como categoria decor rente do princípio de que o homem ao agir transformando o seu meio se transforma criando características próprias que se tornam esperadas pelo seu grupo no desenvolver de suas atividades e de suas relações com outros indivíduos Caberia ainda na especificidade psicossocial uma análise das relações grupais enquanto mediadas pelas instituições sociais e como tal exercendo uma mediação ideológica na atribuição de papéis sociais e representações decorrentes de atividades e relações sociais tidas como adequadas corretas esperadas etc A consciência da reprodução ideológica inerente aos papéis socialmente definidos permite aos indivíduos no grupo superarem suas individualidades e se conscientizarem das condições históricas comuns aos membros do grupo levandoos a um processo de identificação e de atividades conjuntas que caracterizam o grupo como unidade Este processo pode ocorrer individualmente e cons tataríamos o desenvolvimento de uma consciência de si idêntica à consciência social Na medida em que o processo é grupai ou seja ocorre com todos os membros ele tende a caracterizar o desen volvimento de uma consciência de classe quando o grupo se percebe inserido no processo de produção material de sua vida e percebe as contradições geradas historicamente levandoo a atividades que visam à superação das contradições presentes no seu cotidiano tomase um gruposujeito da transformação históricosocial Desta forma a análise do processo grupai nos permite captar a dialética indivíduogrupo onde a dupla negação caracteriza a superação da contradição existente e quando o indivíduo e grupo se tornam agentes da história social membros indissociáveis da totalidade histórica que os produziu e a qual eles transformam pôr suas atividades também indissociáveis Esta análise das categorias fundamentais para a compreensão do ser humano nos leva à constatação da impossibilidade de delimitarmos conhecimentos em áreas estanques que comporiam o conjunto das Ciências Humanas Psicologia Sociologia Antropo logia Economia História Pedagogia Lingüística são enfoques a partir dos quais todas as áreas contribuem para o conhecimento profundo e concreto do ser humano Suas fronteiras devem ser necessariamente permeáveis ampliando o conhecimento seja do 18 SILVIA T M LANE indivíduo do grupo da sociedade e da produção de sua existência material e concreta Decorrências metodológicas a pesqufeaação enquanto práxis A partir de um enfoque fundamentalmente interdisciplinary o pesquisadorprodutohistórico parte de uma visão de mundo e do homem necessariamente comprometida e neste sentido não há possibilidade de se gerar um conhecimento neutro nem um conhecimento do outro que não interfira na sua existência Pesqui sador e pesquisado se definem por relações sociais que tanto podem ser reprodutoras como podem ser transformadoras das condições sociais onde ambos se inserem desta forma conscientes ou não sempre a pesquisa implica intervenção ação de uns sobre outros A pesquisa em si é uma prática social onde pesquisador e pesquisado se apresentam enquanto subjetividades que se materializam nas relações desenvolvidas e onde os papéis se confundem e se alternam ambos objetos de análises e portanto descritos empiri camente Esta relação objeto de análise é captada em seu movimento o que implica necessariamente pesquisaação Por outro lado as condições históricas sociais do pesquisador e de pesquisados que respondem pelas relações sociais que os identificam como indivíduos permitem a acumulação de conheci mentos na medida em que as condições são as mesmas onde as especificidades individuais apontam para o comum grupai e social ou seja para o processo histórico que captado nos propicia a compreensão do indivíduo como manifestação da totalidade social ou seja 0 Indivíduo concreto Este caráter acumulativo da pesquisa faz do conhecimento uma práxis onde cada momento empírico é repensado no confronto com outros momentos e a partir da reflexão critica novos caminhos de investigação são traçados que por sua vez levam ao reexame de todos os empíricos e análises feitas ampliando sempre a com preensão e o âmbito do conhecido Pesquisaaçâo é por excelência a práxis científica INTRODUÇÃO 19 Toda a psicologia é social Esta afirmação não significa reduzir as áreas específicas da Psicologia à Psicologia Social mas sim cada uma assumir dentro da sua especificidade a natureza históricosocial do ser humano Desde o desenvolvimento infantil até as patologias e as técnicas de intervenção características do psicólogo devem ser analisadas criticamente à luz desta concepção do ser humano é a clareza de que não se pode conhecer qualquer comportamento humano iso landoo ou fragmentandoo como se este existisse em st e por si Também com esta afirmativa não negamos a especificidade da Psicologia Social ela continua tendo por objetivo conhecer o Indivíduo no conjunto de suas relações sociais tanto naquilo que lhe é específico como naquilo em que ele é manifestação grupai e social Porém agora a Psicologia Social poderá responder à questão de como o homem é sujeito da História e transformador de sua própria vida e da sua sociedade assim como qualquer outra área da Psicologia A dialética marxista uma leitura epistemológica jray Çcfrone Introdução H á algumas pistas e indicações no prefácio da primeira edição alemã de O Capitalt bem como no posfácio da segunda edição alemã que podem ser de extrema utilidade para a compreensão epistemológica do método dialético ou método de exposição tal como está objetivado no desenvolvimento da obra mencionada Pretendemos assinalar essas pistas a fim de empreender uma leitura do método de exposição no primeiro capítulo de O Capital que trata da Mercadoria Comecemos pelo prefácio da primeira edição alemà de 1867 Marx diz qual é o objeto de investigação da obra O regime de produção capitalista e as relações de produção e de circulação que a ele correspondem1 ou mais precisamente as leis naturais de produção capitalista que operam e se impõem com férrea necessidade2 O universo de pesquisa tomado como ilustração é o capi talismo inglês do século passado O ponto de partida da investigação Algumas colocações teóricas deste artigo foram baseadas na análise de Marcos Muller sobre o método de exposição em 0 Capita 1 Marx K O Capitaif I vol 1 trad porl Reginaldo SantAnna 6 ed Rio de Janeiro CivilÍ2aç8o Brasileira 1980 p 5 12 Marx Kf idem iòidem p 5 INTRODUÇÃO 21 teórica é a Mercadoria que corresponde ao capítulo primeiro de O Capital exatamente o que oferece maior dificuldade à com preensão do leitor O método ou modo de tratar o objeto segundo Marx tem analogias com o método de proceder do biologista ou melhor do anatomista bem como com o método do fisico Mas não equivale a nenhum dos dois por causa do objeto as formas econômicas Marx fala em análise e capacidade de abstração como modos adequados de tratar cientificamente as formas econômicas refra tárias à observação direta ou observação indireta com ajuda de instrumentos ou mesmo de experimentação Vejamos a analogia com a maneira de proceder do biologista O pressuposto da analogia é o de que a sociedade burguesa se assemelha a um organismo e a mercadoria equivale a uma célula ou forma elementar desse organismo Na analogia com os procedimentos adotados pelo físico na busca das leis que regulam os processos da natureza Marx diz O físico observa os processos da Natureza quando se manifestam na forma mais característica e estão mais livres de influências pertur badoras ou quando possível faz ele experimentos que assegurem a ocorrência do processo em sua pureza 3 Pela primeira analogia temos de considerar a sociedade como uma totalidade tal como a totalidade orgânica dotada de leis estruturais especificidade e solidariedade funcional entre as partes além disso tal como os organismos vivos a sociedade é pensada como totalidade dotada de história que nasce e caduca como os seres vivos isto é não é imutável sofre transformações Pela segunda analogia temos a razão peia qual o capitalismo da Inglaterra foi tomado como universo de pesquisa e caso exemplar Segundo Marx o regime de produção capitalista inglês estava mais desenvolvido que na Alemanha e outros países eu ropeus a existência de uma legislação fabril atestava o seu grau de desenvolvimento na Alemanha as relações sociais capitalistas estavam em contradição com relações sociais derivadas de modos de produção anteriores ou seja perturbadas e apresentando maior complexidade para a análise e abstração do que o capitalismo inglês Além disso diz Marx comparada com a inglesa é precária 3 Marx K idem fbidem p 4 IRAYCARONE estatística social da Alemanha e dos demais países da Europa Ocidental4 o que permite maior conhecimento factual da situação concreta de vida dos trabalhadores através dos informes dos inspe tores de fábricas dos médicos da Saúde Pública bem como dos comissários que investigam a situação das mulheres e crianças nas fábricas Por último na Inglaterra é palpável o processo revo lucionário5 Ê evidente que Marx não identificou os seus procedimentos com os do físico e do biologista Podemos inferir entretanto que o autor parte de uma perspectiva totalizadora na qual a sociedade burguesa é compreendida como um sistema social sujeito a trans formações Podemos inferir também que embora o capitalismo inglês seja considerado um caso exemplar do regime de produção capitalista o objetivo da obra transcende os limites do próprio universo de pesquisa Tratase de compreender teoricamente o que é o capital e não o capitalismo inglês do século passado Ou melhor um é o na medida em que se realiza uma leitura essencial do que é o capital através de uma de suas concreções históricas O capitalismo inglês na sua singularidade materializa as características univer sais do regime de produção capitalista ou seja as suas leis Passemos agora para o posfácio da segunda edição alemã de O Capital de 1873 O autor diz O método empregado nesta obra conforme demonstram as intérpretações contraditórias não foi bem compreendido6 A Révue Positiviste afirma que Marx trata a economia metafisicamente e que ao mesmo tempo se limita à análise crítica de uma situação dada sem previsões para o futuro Sieber parece têlo compreendido de forma diferente dos positi vistaá O método de Marx é o dedutivo de toda a escola inglesa7 M Block diz que o método é analítico os críticos alemães afirmam que se trata de spfística hegeliana um resenhista russo do periódico de São Petersburgo Mensageiro Europeu pondera que é o método de pesquisas rigorosamente realista8 mas que lamentavelmente o método de exposição é dialéticoalemão 9 4 Marx K idem ibidem p 5 5 Marx K idem ibidem p 6 6 Marx K idem ibidem p 13 7 Marx K idem ibidem p 13 8 Marx K idem ibidem p 14 9 Marx K idem ibidem p 14 INTRODUÇÃO 23 A distinção entre método de pesquisas e método de exposição feita pelo resenhista russo de O Capital é retomada por Man É mister sem dúvida distinguir formalmente o método da exposição do método de pesquisa A investigação tem de apode rarse da matéria em seus pormenores de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e de perquirir a conexão íntima que há entre elas Só depois de concluído esse trabalho é que se pode descrever adequadamente o movimento real Se isto se consegue ficará espelhada no plano ideal a vida da realidade pesquisada o que pode dar a impressão de uma construção apriori10 É muito importante observar tal diferença O método de pesquisa é a investigação de ordem empírica a coleta dos dados a sua classificação o conjunto de técnicas e procedimentos adequados à apropriação analítica do material empírico é preciso não esquecer que Marx escolheu a Inglaterra entre outras razões porque nela o levantamento estatístico a respeito da situação dos trabalhadores nas fábricas era menos precário que na Alemanha e demais países da Europa Ocidental O método de exposição é a reconstrução racional e teórica da realidade pesquisada mas a exposição só é possível a posteriori da pesquisa empírica Ou seja o fato de a pesquisa empírica preceder a exposição teórica mostra que O Capital não pretende ser uma construção apriorista e escolástica embora possa até se assemelhar à especulação metafísica sob o ponto de vista meramente formal Pelo seu caráter analítico e altamente abstrato o capítulo primeiro de O Capital carrega consigo todas as dificuldades da exposição teórica que tenta espe lhar pelo avesso a realidade da mercadoria A mercadoria aparência e essência O capítulo primeiro do livro primeiro de O Capital tem quatro partes distintas Percebemos nos diferentes níveis da exposição pelo menos três definições de Mercadoria À primeira vista a mercadoria nos aparece como um objeto externo uma coisa que por suas propriedades satisfaz necessi dades humanas seja qual for a natureza a origem delas pro 10 Marx Kidem ibidem p 16 24 IRAYCARpNE venham do estômago ou da fantasia11 ou seja a mercadoria é por nós representada como um objeto útil que atende às nossas necessidades quer materiais quer espirituais Em termos teóricos ela é definida como um valordeuso Enquanto valordeuso eia é reconhecida de modo imediato pelos nossos sentidos pelas suas propriedades materiais específicas e particulares Na sociedade burguesa capitalista os valoresdeuso são bens que compramos ou vendemos ou seja são valores de troca Em suma mercadoria é definida num primeiro nível como valor deuso e valor de troca Tal definição deriva da prática social coti diana de venda e compra de mercadorias Na terceira parte do capítulo primeiro após dilatar o universo do discurso com os conceitos teóricos de trabalho concreto e trabalho abstrato valor e magnitude de valor e outros Marx redefine a mercadoria De acordo com hábito consagrado se disse no começo deste capítulo que a mercadoria é valordeuso e valor de troca Mas isto a rigor não é verdadeiro A mercadoria é valordeuso ou objeto útil e valor Ela revela seu duplo caráter o que ela é realmente quando como valor dispõe de uma forma de manifestação própria diferente da forma natural dela a forma de valor de troca e ela nunca possui essa forma isoladamente considerada mas apenas na relação de valor ou de troca com uma segunda mercadoria diferente Sabendo isto não causa prejuízo aquela maneira de exprimirse servindo antes para poupar tempo 12 os grifos são meus Na segunda definição o autor nega a verdade da primeira definição afirmando que ela é correta de um ponto de vista pragmático embora não reflita a essência da mercadoria A segunda definição não seria possível sem o processo da abstração valor é uma propriedade concreta mas impalpável aos sentidos13 de toda e qualquer mercadoria O valordeuso ao contrário é constituído por múltiplas propriedades materiais concretas e empíricas imediatamente apreensiveis pelos sentidos Isso quer dizer que a segunda definição revela a essência contra 11 Marx K idem ibidem p 41 12 Marx K idem ibidem pp 6869 13 Marx K idem ibidem p 56 A coisavalor se mantém imper ceptível aos sentidos INTRODUÇÃO É ditória do ser da mercadoria14 a contradição entre às inu propriedades constitutivas A terceira definição contida na quarta parte do capitulo sob o título O fetichismo da mercadoria o seu segredo causa per plexidade Marx discorre sobre a mercadoria de maneira antro pomórfica como se ela tivesse pés mãos cabeça idéias iniciativa Em outras palavras como objeto misterioso e fantasmagórico Diz À primeira vista a mercadoria parece ser coisa trivial imedia tamente compreensível Analisandoa vêse que ela é algo muito estranho cheio de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas15 Mais além o caráter misterioso que o produto do trabalho apresenta ao assumir a forma mercadoria de onde provém Dessa própria forma é claro16 Ê preciso observar que a terceira definição completa um círculo dialético que tomou a mercadoria como ponto de partida e ponto de chegada Mas é evidente que a terceira definição desmente a primeira de forma cabal A mercadoria tal como é representada por nós numa primeira instância aparece como mera utilidade ou meio para atender a uma finalidade ou seja para atender às nossas necessidades materiais e espirituais Ela reaparece no final da análise como um objeto nãotrivial não como um meio para atender a um fim chamo a isto de fetichismo que está sempre grudado aos produtos do trabalho quando são gerados como mercadorias inseparável da produção das mercadorias17 Dizer que a mercadoria é fetiche ou melhor dizer que a formamercadoria transforma os produtos do trabalho em fetiches significa dizer que a mercadoria é um objeto nãotrivial dotado de poder sobre as nossas necessidades materiais e espirituais Não é pois a mercadoria que está a serviço de nossas necessidades e sim ás nossas necessidades é que estão submetidas controladas e manipuladas pela vontade e inteligência do universo das merca dorias A terceira definição revela a essência da mercadoria pela negação de sua aparência de objeto trivial a serviço de nossas 14 Marx K idem ibidem p 69 15 Marx K idem ibidem p 79 16 Marx K idem ibidem p 80 17 Marx K idem ibidem p 81 26 IRAY CARONE necessidades Ou seja ela inverte as inversões contidas nas repre sentações imediatas e primeiras das mercadorias O esforço teórico que culminou na apreensão do caráter essencialmente falso fantasmagórico e ideológico do ser da forma mercadoria é sem dúvida um movimento negativo de pensamento que pensa o objeto pelo seu avesso Em suma a trivialidade da mercadoria é uma falsa trivia lidade que esconde o seu caráter misterioso a utilidade da mercadoria é uma falsa utilidade na medida em que as nossas necessidades é que são por ela utilizadas A mercadoria é um fetiche tanto quanto nossa vontade é pura heteronomia O circuito dialético portanto representou a subversão total do senso comum dos conceitos pragmáticos das verdades cotidianas O método de exposição não reproduziu racionalmente a realidade concreta na sua positividade imediata O pensar não seguiu o ser e sim o inverteu Se houve reprodução do real foi reprodução pelo seu avesso O concretopensado pelo método da exposição é exatamente o contrário do concreto tal como é vivido e representado por nós Do ponto de vista do método houve um movimento de regres são ao ponto de partida mercadoria mas evidentemente no ponto de chegada mercadoria aumentou o nível de compreensão do objeto Isso quer dizer que não há equivalência entre o ponto de partida e o ponto de chegada mesmo que o objeto seja único a mercadoria Na forma de diagrama o percurso realizado foi o de uma espiral As representações imediatas do objeto mercadoria foram mediatizadas pela teoria Voltando à distinção entre método de pesquisa e método de exposição ficounos claro que sem pesquisa empírica não há exposição teórica dado que a exposição nào é e não pode ser mera construção a priori Ê preciso agora acrescentar a pesquisa empírica não é autosuficiente do ponto de vista da dialética de Marx Os dados empíricos por mais rigorosaménte que sejam coletados permanecem presos às ilusões e inversões ideológicas das representações imediatas dos objetos sociais Eles necessitam por tanto ser interpretados e convertidos pela mediação teórica ou seja os dados imediatos devem ser mediatizados pela teoria O método de exposição ou método dialético embora teórico e racional não tem qualquer postulado de ordem idealista na medida em que tem a pesquisa empírica como exigência básica mas tampouco advoga o princípio empirista da autointeligibilidade do empírico O capita em sua generalidade O objetivo da obra O Capital é saber o que é o capital em geral Após os capítulos sobre a Mercadoria o Processo de Troca e o Dinheiro o capital é definido como valor em progressão oü valor que gera mais valor O valor se torna valor em progressão dinheiro em progressão e como tal capital Sai da circulação entra novamente nela mantémse e multiplicase nela retorna dela acrescido e recomeça incessantemente o mesmo circuito DD dinheiro que se dilata dinheiro que gera dinheiro conforme a definição de capital que sai da boca dos seus primeiros intérpretes os mercantilistas 18 A seqüência dos capítulos tem sua razão de ser lógica O método de exposição é um movimento de pensamento que passa por várias determinações do conceito de capital das mais simples e imediatas às mais complexas e profundas Progressivamente o pensamento se apropria das determinações da esfera da circulação e da troca para alcançar as determinações mais complexas e ricas da esfera da produção ou seja da mercadoria forma de valor simples forma de valor total forma de valor universal forma dinheiro determinações do dinheiro que pertencem à esfera imediata das trocas mercantis às do valor maisvalia maisvalia absoluta maisvali a relativa trabalho assalariado exploração da esfera da produção É um movimento progressivoregressivo Ê progressivo porque as determinações da esfera da circulação não nos dão a plena riqueza das determinações do capital19 de forma que as determi nações essenciais são as da produção que não são imediatas Ê regressivo porque o ponto de partida da exposição é o capital em geral e o ponto de chegada também Mas é evidente que só com as determinações mais superficiais apropriadas sucessivamente não se alcança a essência do concreto capital INTRODUÇÃO 27 18 Marx Kidem ibidem pp 174175 19 Marx K idem ibidem p 183 a circulação ou troca de mercadorias não cria nenhum valor 20 IRÁY CARONE Na prática social nós adquirimos uma vivência do que é o capital e com ele aprendemos a lidar às vezes com êxito No entanto a vivência do capital o que o capital é para nós não coincide com o que ele realmente é Ou seja temos uma prática ou conhecimento pragmático do capital que não coincide com a ciência do capital da mesma maneira que o conhecimento prático da mercadoria não equivale ao conhecimento de sua essência No tópico relativo ao método da Economia Política da obra Para a Crítica da Economia Política 1857 Marx diz O concreto é concreto porque é síntese de muitas determinações isto é unidade do diverso Por isso o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese como resultado não como ponto de partida ainda que seja o ponto de partida efetivo e portanto o ponto de partida também da intuição e da representação 20 O concreto pensado é de fato um produto do movimento do pensamento do esforço racional que mediatiza as representações imediatas do concreto efetivo ou seja transforma as representações em con ceitos21 Daí se segue que o movimento de pensamento que se apropria do concreto como concreto pensado não é de modo nenhum o processo de gênese do próprio concreto 22 ou seja não reconstrói a história do regime de produção capitalista o seu caráter progres sivo das determinações simples às complexas entretanto mostra que ele reconstrói racional e teoricamente o processo de gênese caíegorial do capital enquanto concreto pensado Algumas conclusões relativas ao método dialético em O Capital Das pistas e indicações contidas na obra mencionada pode mos tirar a titulo provisório e sem aprofundamento algumas conclusões sobre o método dialético 1 ele aparece antes de mais nada como um método de exposição teórico especulativo ra 20 Marx Kr Para a Crítica da Economia Política trad port Edgard Malagodi e colaboração de J Arthur Giannotti São Paulo Abril Cultural 1982 p 14 21 Marx K idem ibidem p 15 22 Marx K idem ibidem p 14 in t r o d u ç ã o 39 cional mas não apriorista uma vez que pressupõe a pesquisa empírica 2 um método crítico na medida em que a conversão dialética que transforma o imediato em mediato a representação em conceito é negação das aparências sociais das ilusões ideológi cas do concreto estudado 3 um método progressivoregressivo patente na espiral dialética em que ponto de partida e ponto de chegada coincidem mas não se identificam evidente que enquanto movimento de pensamento está regido por leis ou categorias da ordem do pensamento Tomemos como exemplo a manifestação do valor enquanto propriedade oculta das mercadorias na chamada relação de valor1 que é a equação geral das trocas mercantis Para que uma mercadoria ou melhor o seu valordeuso sirva de espelho para o valor de outra mercadoria é preciso que haja uma conversào dos contrários um no outro Por meio da conversão dos contrários o valordeuso se toma a forma de manifestação do seu contrário isto é do valor23 o trabalho concreto se torna forma de manifestação do seu contrário trabalho humano abstrato14 o trabalho privado se torna a forma dc seu contrário o trabalho em forma diretamente social25 Em outras palavras na manifestação do valor uma propriedade mediata se imediatizaem propriedade visível concreta Outro exemplo é a relação universalparticular pensada pela categoria da Mediação Vermittlung A analogia organismo célula mencionada no prefácio da primeira edição alemã nos diz que a sociedade burguesa é organismo e a mercadoria é célula ou seja estabelece uma relação todoparte universalparticular entre uma e outra Tal relação é de identidade e diferença a parte materializa o todo mas o todo não é o conjunto de partes nem é a parte o todo Enquanto reflexo do sistema social capitalista a mercadoria contém contradições inerentes a ele a mercadoria é um ser contraditório na medida em que é constituída por propriedades opostas do valordeuso e valor a sua contradição interna reproduz a contradição externa entre trabalho concreto e trabalho abstrato própria do regime de produção capitalista 23 Marx K 0 Capitai 1 p 64 24 Marx K O Capitai I p 67 25 Marx K O Capital I p 67 30 IRÀY CARONE a formamercadoria é uma forma fantasmagórica mistifi cadora que esconde o seu poder sobre as necessidades humanas tal como são fantasmagóricas as relações sociais burguesas que a nível imediato e superficial se apresentam como relações simétricas igualitárias e não relações de poder As características macro estruturais estão pois refletidas e reproduzidas em suas micro unidades Outras observações poderiam ainda ser feitas sobre a maneira de proceder do pensamento objetivado em O Capital Ficaremos no entanto restritos a essa leitura preliminar Bibliografia Marx K0 Capital livro I trad port Reginaldo SantAnna 6 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1980 Marx K Para a Critica da Economia Política t trad port Edgard Ma lagodi etalii Sào Paulo Abril Cultural 1982 Fausto R Marx Lógica e Política tomo I São Paulo Ed Bra siliense 1983 Cardoso F Ht ÇapitafismQ e Escravidão no Brasil Meridional Rio de Janeiro Paz e Terra 1977 Muller M Epistemologia e Dialética Caderno de História e Filosofia da Ciência n 2 UNICAMP 1981 Parte 2 As categorias fundamentais da psicologia social Linguagem pensamento e representações sociais Silvia Tatiana Maurer Lane Skinner inicia o seu Verbal Behavior com a seguinte frase Os homens agem sobre o mundo e o transformam e são por sua vez transformados pelas conseqüências de suas ações E mais adiante define comportamento verbal como todo aquele mediado por outra pessoa e assim inclui no verbal gestos sinais ritos e obviamente a linguagem Assim podemos dizer que o homem ao falar transforma o outro e por sua vez é transformado pelas conseqüências de sua fala Porém é necessário para uma compreensão mais profunda do comportamento verbal analisálo em um contexto mais amplo considerandose o ser humano como manifestação de uma totali dade históricosocial produto e produtor de história Deste modo partimos do pressuposto que a linguagem se originou na espécie humana como conseqüência da necessidade de transformar a natureza através da cooperação entre os homens por meio de atividades produtivas que garantissem a sobrevivência do grupo social O trabalho cooperativo exigindo planejamento divisão de trabalho exigiu também um desenvolvimento da linguagem que permitisse ao homem agir ampliando as dimensões de espaço e tempo A linguagem como produto de uma coletividade reproduz através dos significados das palavras articuladas em frases os conhecimentos falsos ou verdadeiros e os valores associados a praticas sociais que se cristalizaram ou seja a linguagem reproduz AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL uma visão de mundo produto das relações que se desenvolveram a partir do trabalho produtivo para a sobrevivência do grupo social Sob esta perspectiva qualquer análise da linguagem implica coft siderála còtno produto histórico de umA coletividade Skinner define tato como sendo os significados das palavras e seriam variáveis independentemente produzidas pelo grupo social ao qual o indivíduo pertence Desta forma a aprendizagem da língua materna insere a criança na história de sua sociedade fazendo com que ela reproduza em poucos anos o processo de hominização pelo qual a humanidade se produziu tomandoa produto e produ tora da história de seu grupo social A última frase do livro de Vygotski sintetiza todo este processo ao afirmar que Uma palavra é um microcosmo da consciência humana Daí a importância fundamental que tem a aquisição materna para a compreensão de qualquer comportamento do ser humano e esta só pode ser analisada numa abordagem inter disciplinar O que não significa que a Psicologia deixe de ter a sua especificidade na contribuição do conhecimento deste processo Seja Skinner Piaget Vygotski Malrieu ou Leontiev todos são concordes em afirmar que a função primária da linguagem é a comunicação e o intercâmbio social através da qual a criança representa o mundo que a cerca e que influenciará seu pensamento e suas ações no seu processo de desenvolvimento e de hominização Cada um destes autores traz a sua contribuição para um conhecimento psicológico da aprendizagem da linguagem Skinner pela análise empírica que faz demonstra a materialidade de falar e pensar Piaget e Malrieu apontam para a gênese social das representações da criança e como ela desenvolve sua visão de mundo Vygotski e Leontiev concebendo o ser humano como manifestação de uma totalidade históricosocial vêem a linguagem como fundamental para o desenvolvimento da consciência de si e social de indivíduo a qual se processa através da linguagem do pensamento e das ações que o homem realiza ao se relacionar com outros homens A análise que Leontiev faz da aprendizagem da língua materna aponta para dois processos que se interligam necessa riamente se por um lado os significados atribuídos às palavras são produzidos pela coletividade no seu processar histórico e no desenvolvimento de sua consciência social e como tal se subor dinam às leis históricosociais por outro os significados se pro cessam e se transformam através de atividades e pensamentos de 34 SILVIA TM LANE indivíduos concretos e assim se individualizam se subjetivam na medida em que retomam para a objetividade sensorial do mundo que os cerca através das ações que eles desenvolvem concretamente Desta forma os significados produzJdos historicamente pelo grupo social adquirem no âmbito do indivíduo um sentido pessoal ou seja a palavra se relaciona com a realidade com a própria vida e com os motivos de cada indivíduo Creio ser oportuno a esta altura retomar uma análise feita por Terwilliger quando afirma ser a palavra uma arma de poder demonstrando o quanto a imposição de um significado único e absoluto à palavra é uma forma de dominação do indivíduo como ocorre em situações de hipnose de comando militar e de lavagem cerebral Todas situações onde a ambiguidade ou alternativas de significados levam à negociação de qualquer um destes processos Esta arma de poder só é dominada pelo confronto que o indivíduo possa fazer entre diferentes significados possíveis e a realidade que o cerca aliás este é o princípio proposto e defendido por Paulo Freire condição para um pensamento crítico para o desenvolvimento da consciência social e conseqüen temente para a criatividade que transforma as relações entre os homens Esta análise nos permite apontar para uma função da lin guagem que é a mediação ideológica inerente nos significados das palavras produzidas por uma classe dominante que detém o poder de pensar e conhecer a realidade explicandoa através de verdades inquestionáveis e atribuindo valores absolutos de tal forma que as contradições geradas pela dominação e vividas no cotidiano dos homens são camufladas e escamoteadas por expli cações tidas como verdades universais ou naturais ou sim plesmente como imperativos categóricos em termos de é assim que deve ser Voltando para a aprendizagem da língua materna a criança ao falar reproduz a visão de inundo de seu grupo social assim como a ideologia que permeia e mantém as relações sociais desse grupo e é levada a agir de forma a não perturbar a ordem vigente1 caso contrário ela será considerada um anormal um marginal e como tal afastada do convívio social E quando os estudos apontam para a família desestruturada como responsável pela marginalização da criança podemos supor que ela aprendeu significados contra ditórios concepções de mundo incompatíveis e incapaz ainda de AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 34 um pensamento crítico e de atividades significativas desempenha comportamentos inaceitáveis pelo seu grupo social Por outro lado observações de crianças em famílias bem estruturadas nos mostraram que o papel de filho é desde os primeiros anos de vida inculcado em termos de obediente bemcomportado respeitador dos mais velhos a ponto de quando questionada sobre um fato ocorrido no dia anterior que fora relatado pela mãe como desobediência e birra da criança este é descrito por ela apenas considerando o final do episódio isto é ela obedeceu a mãe como convêm a um bom filho Essas observações foram feitas a partir de uma indagação de como a criança sentia e reagia às punições de seus pais e depois nfto entendemos como e por que as crianças se submetem ás violências do adulto Este fato mostra quanto a autoridade é cercada de valores e de emoções que a tornam inquestionável e absoluta reproduzindo relações sociais esperadas pelo grupo Todo este processo de reprodução das relações sociais está baseado em como a criança ao falar constrói suas representações sociais entendidas como uma rede de relações que ela estabelece a partir de sua situação social entre significados e situações que lhe interessam para sua sobrevivência Segundo Malrieu a representação social se constrói no processo de comunicação no qual o sujeito põe à prova através de suas ações o valor vantagens e desvantagens do posicio namento dos que se comunicam com ele objetivando e selecionando íeus comportamentos e coordenandoos em função de uma procura de personalização Desta forma a representação social se estrutura tanto pelos objetivos da ação do sujeito social como pelos dados que concordam ou que se opõem a eles Usando uma situação simples para ilustrar imaginemos uma criança entre um ano e um ano e meio de idadet brincando com uma bola um objeto redondo que corre rola pula se atirada com força há toda uma série de ações para experiendar e investigar este objeto denominado bola Na presença de um adulto este objeto será designado por bola é possível que a criança repita apenas bó e seja reforçada pelo adulto Enquanto ela faz a bola correr pelo chão repetindo bó bó provavelmente o adulto estará sorrindo e repetindo com ela a bola ou bola bonita bola redonda Num dado momento a bola é jogada para o alto pondo em perigo um vaso precioso Cuidado Não jogue a bola assim E 36 SILVIA T M LANE agora bò é perigosa é ruim mamãe não gosta E assim a criança cria a sua representação de bola que permitirá que ela se comunique com os outros planejando o seu jogo ou narrando fatos já ocorridos E neste processo de comunicação a criança vai estruturando o seu inundo que inicialmente se encontra em um estado nebuloso através de um sistema de significantes proporcionado pelos que a rodeiam e também vai encontrando formas de se autodefinir às custas de uma esquematização e de uma deformação inevitáveis e sempre superáveis Malrieu mostra como a comunicação e a personalização enquanto identificação e diferenciação determinam e são deter minadas pelas representações que implicam objetivação seleção coordenação das posições dos outros e de si mesmo Às repre sentações por sua vez também estão duplamente vinculadas com a atividade semiótica que se caracteriza pela elaboração dos signi ficantes decorrentes do processo de comunicação O autor conclui mostrando as formas como a linguagem participa na elaboração das representações ou seja como tomada de consciência de uma realidade através de comunicações com adultos que levam a práticas e a diálogos sobre elas as quais vão se estruturando Por outro lado as práticas as percepções os conhecimentos se transformam quando são falados e a própria representação de si mesmo só ocorre através da linguagem interiorizada das recordações e dos projetos E por último na medida em que toda representação implica uma comparação ela propicia uma objetivação que é uma das bases do controle que se pode exercer sobre as ações e emoções À construção de um motivo organizador das próprias ações irá permitir tanto a compreensão destas ações por meio das informações dos demais como o acesso às confrontações das possibilidades que estão na base das operações p 97 Uma análise concreta das representações que um indivíduo tem do mundo que o rodeia só é possível se as considerarmos inseridas num discurso bastante amplo onde as lacunas as contra dições e conseqüentemente a ideologia possam ser detectadas Este discurso amplo para muitos autores seria a visão de mundo que o indivíduo tem porém permanece a questão do que vem a ser no plano individual esta visão de mundo AS CATEGORÍAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 37 François Flahault quem nos dá algumas pistas para esta análise mais concreta das representações sociais Ele parte da análise de atos ilocutórios ou seja as laias que caracterizam as posições ocupadas pelos interlocutores de forma explicita ou implícita No primeiro caso teríamos as ordens os pedidos os insultos que explicitamente definem a relação existente entre os Interlocutores um manda o outro obedece um pede o outro concede Os atos ilocutórios implícitos por sua vez só são com preendidos em relação às posições que os interlocutores ocupam e ao mesmo tempo definem as respectivas posições toda palavra por mais importante que seja seu valor referenciai e informativo é formulada também a partir de um o que sou para você o que você 6 para mim e é operante neste campo a ação que ela representa a título destas trocas se manifesta através do que se pode chamar de atos ilocutórios ou efeitos de posição p 50 Por outro lado os atos ilocutórios implícitos decorrem do fato de que os indivíduos não são donos de operar seus posicio namentos pois pelo contrário este posicionamento è que esta belece suas identidades1 p 52 Deste modo Flahault mostra como a ação de falar implica relações de posições e a língua se apresenta como resultado e como matériaprima do processo discursivo À relação da linguagem com o real necessariamente sofre a mediação das posições sociais de grupo eou classe social e portanto um discurso está sempre em confronto com um mundo já repleto de significações sempre já ordenado sempre já socialmente arrumado um mundo que é o efeito de uma produção social dos sentidos que reproduz inevi tavelmente a produção material e pela inserção de cada indivíduo corpo e alma neste universo semiológico p 85 Entendendose por universo semiológico o conjunto de signos socialmente criados seria a natureza socialmente recriada e transformada Neste sentido este universo traz em si toda a ideologia de uma sociedade que se reproduzirá na linguagem e nos discursos situados Compreender representações sociais implica então conhecer nfio só o discurso mais amplo mas a situação que define o indivícfuo que as produz Para tanto Flahault desenvolve a noço de Espaço de Realização do Sujeito ERS Este espaço é o retomo a manifestação em figuras inde finidamente variáveis de uma instância que atuou de início como constitutiva do sujeito a linguagem enquanto que Outro grande 38 5ILVJA T M 1ANE Outro lacaníano enquanto que laço absoluto ao qual todos estão sujeitos p 54 O ERS ao mesmo tempo que ê constitutivo do Sujeito do seu eu também fundamenta a representação da sociedade tendo uma função reguladora através do imaginário do simbólico e do ideo lógico imbricados num todo no qual a ideologia tem por função no ERS constituir os indivíduos em sujeitos identificados p 156 Desta forma o ERS é o espaço da comunicação da intersubje tividade das relações sociais que identificam o indivíduo e assim produz e reproduz a formação social nos indivíduos que a compõem Resumindo o ERS se apresenta 1 como objetivos comuns ao grupo social que superam os fins particulares 2 como um conjunto de regras e valores 3 como substância enquanto mediação de realidades materiais e corporais através da linguagem que levam a práticas que definem uma realização limitada e específica do sujeito e uma mediação que o põe em relação com vários outros sujeitos FIGURA 1 realidade Todo Mundo Concluindo para conhecermos as representações sociais de um indivíduo ê necessário através dos atos ilocutórios explícitos e implícitos definirmos o lugar que ele ocupa em relação aos outros os que se limitam com ele e através do discurso como seu espaço se constitui nesta relação enquanto realidade subjetiva que se insere no real socialmente representado e reproduzido em termos de todomundo AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 39 Bibliografia Lane S T M O que é Psicologia Social Säo Paulo Ed Brasiliens 1981 Leontiev A Actividad Consciência y Personalidad Buenos Aires Ed Ciencias del Hombre 1978 Malrieu P Lenguage y Representation in la Génesis del Lenguage su Apresendizagcy Desarollo Simpósio da Associação de Psicologia Científica Francesa Madri Pablo del Rio Editor 1978 Piaget J et alii Introducctón a la psycholinguistica Skinner B F Verbal Behavior Nova lorque AppletonCenturyCrofts 1957 Terwilliger R F Meaning and Mind A Study in the Psichology of Language Londres Oxford University Press 1968 Vygotsky L S Pensamiento y Lenguajet Buenos Aires Editoria la Plya de 1973 Flahault F t La Parole Jntermédiaire Paris Eds du Seuil 1978 Consciência alienação a ideologia no nível individual Silvia Tatiana Maurer Lane O indivíduo sujeito da história é constituído de suas relações sociais e é ao mesmo tempo passivo e ativo determinado e deter minante Ser mais ou menos atuante como sujeito da história depende do grau de autonomia e de iniciativa que ele alcança Assim ele é história na medida em que se insere e se define no conjunto de suas relaçòes sociais desempenhando atividades transformadoras destas relações o que implica necessariamente atividade prática e inteligência tào inseparáveis quanto no nível da sociedade são inseparáveis a infra e a superestrutura e cuja unidade é estabelecida por um processo cujo agente exclusivo é a atividade humana em suas diferentes formas dentro deste contexto que devemos analisar como a ideo logia presente em atividades superestruturais da sociedade se reproduz a nível individual levandoo a se relacionar socialmente de forma orgânica e reprodutora das condições de vida e também Este capitulo foi publicado com o título Ideologia no Nfvel Individual in EducaçSo e Sociedade n 14 abril da 1963 Sfio Paulo Participaram das discussões que deram origem ao texto os Professores Antonio da C Ciampa Bader B Sawaia Brigido V Camargo Carlos Peraro Filho Dirceu Pinto Malheiro Elíana Bertolucci Maribele Vi eg as Marilia Fozati Mariae R Vianna Odalr Furtado Suefy Ongaro Wsnderfey Codo Luiz A ftahal membros de um grupo de pesquisa do pósGraduaçSo em Psicologia Social da PUCSP AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 41 como no plano da ideologia o indivíduo se toma consciente dos conflitos existentes no plano da produção de sua vida material O homem como ser ativo e inteligente se insere historicamente em um grupo tocial através da aquisição da linguagem condição básica para a comunicação e o desenvolvimento de suas relações sociais e conseqüentemente de sua própria individualidade A linguagem enquanto produto histórico traz represen tações significados e valores existentes em um grupo social e como tal é veiculo da ideologia do grupo enquanto para o indivíduo é também condição necessária para o desenvolvimento de seu pensa mento Ê preciso ressaltar que nem todas as representações implicara necessariamente reprodução ideológica esta se manifesta através de representações que o indivíduo elabora sobre o Homem a Socie dade a Realidade ou seja sobre aqueles aspectos da sua vida a que explícita ou implicitamente são atribuídos valores de certo errado de bommau de verdadeirofalso No plano superestrutural a ideologia é articulada pelas instituições que respondem pelas formas jurídicas políticas religiosas artísticas e filosóficas no plano individual elas se reproduzem em função da história de vida e da inserção específica de cada indivíduo Desta forma a análise da ideologia deve necessariamente considerar tanto o discurso onde são articuladas as representações como as atividades desenvolvidas pelo indivíduo A análise ideológica é fundamental para o conhe cimento psicossocial pelo fato de ela determinar e ser determinada pelos comportamentos sociais do indivíduo e pela rede de relações sociais que por sua vez constituem o próprio indivíduo Neste sentido podemos entender como é que no plano ideológico o indivíduo pode se tomar consciente ao detectar as contradições entre as representações e suas atividades desempe nhadas na produção de sua vida material Quando falamos em consciência de si como sendo neces sariamente consciência social a alienação definida pela psicologia em termos de doença mental neuroses etc se aproxima da concepção sociológica de alienação Se no plano sociológico é feita a análise da relação de dominação entre as classes sociais definidas pelas relações de produção da vida material da sociedade esta relação se reproduz através da mediação superestrutural via instituições que prescre vem os papéis sociais e que determinam as relações sociais de cada indivíduo 42 SILVIA T M LANE A alienação se caracteriza ontologicamente pela atribuição de naturalidade aos fatos sociais esta inversão do humano do social do histórico como manifestação da natureza faz com que todo conhecimento seja avaliado em termos de verdadeiro ou falso e de universal neste processo a consciência ê reificada negandose como processo ou seja mantendo a alienação em relação ao que ele é como pessoa e conseqüentemente ao que ele é socialmente Neste ponto se toma necessário distinguir em termos de níveis consciência social de consciência de classe esta última é um processo essencialmente grupai e se manifesta quando indivíduos conscientes de si se percebem sujeitos das mesmas determinações históricas que os tomaram membros de um mesmo grupo inseridos nas relações de produção que caracterizam a sociedade num dado momento Nesta perspectiva o pertencer a um grupo cujas ações expressam uma consciência de classe pode ser condição para que um indivíduo desencadeie um processo de conscientização de si e sociaL Desta forma consciência de classe é uma categoria basicamente sociológica enquanto consciência desósocial é uma categoria psicológica Porém elas são intersociâveis no plano da ação tanto individual como grupai O individuo consciente de si necessariamente tem cons ciência de sua pertinência a uma classe social enquanto individuo esta consciência se processa transformando tanto as suas ações a ele mesmo poiém para uma atuação enquanto classe ele necessa riamente deve estar inserido em um grupo que age enquanto tal por exemplo uma greve uma assembléia exigem grupos organizados em torno de uma consciência comum de sua condição social Permanece em aberto uma questão o que ocorre com um indivíduo consciente em um grupo alienado Ou seja as contra dições sociais estão claras mas ele é impedido a nível grupai de qualquer ação transformadora não seria esta uma situação geradora de doença mental como fuga de uma realidade insus tentável É a hipótese levantada por A Abib Andery A questão da alienação consciência só poderá ser ana lisada no plano individual enquanto processo que envolve neces sariamente pensamento e ação mediados pela linguagem pro duto e produtora da história de uma sociedade O homem age produzindo e transformando o seu ambiente e para tanto ele pensa planeja sua ação e depois de executada ela é pensada avaliada determinando ações subseqüentes e este pensar AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 43 se dá através dos significados transmitidos pela linguagem apren dida Por outro lado qualquer ação implica necessariamente uma nãoação e elas só podem coexistir no pensamento enquanto atividade ou o indivíduo age ou nãoage tornando o pensar uma atividade fundamental prevendo conseqüências e levando a uma decisão que se transforma em ação ou nãoação Opção feita novamente ela é pensada em termos e se mas portanto ou seja contradição entre a açãonãoação é pensada agora como avaliação ou justificativa para a decisão tomada Esta justificativa mediada pela linguagem é um produto subjetivo que poderá estar reproduzindo a ideologia com conteúdos próprios às especificidades do indivíduo A reprodução da ideologia enquanto produto superestrutura como produto subjetivo de açãopensamento tem necessariamente suas raízes históricas na medida em que a linguagem presente no pensar é um produto do grupo social ao qual o indivíduo pertence mediando as relações sociais e reproduzindo no conjunto de seus significados a ideologia do grupo dominante e suas manifestações específicas no grupo social ao quai o indivíduo pertence O pensar uma ação pode simplesmente reproduzir essa ideologia na medida em que se submete ou a reproduz através de explicações do tipo é assim que deve ser é assim que se faz1 Porém o pensar uma açào pode ser um confronto das possíveis conseqüências tanto imediatas como mediatas Este pensar recupera experiências anteriores quando ações transformaram o ambiente e outras omitidas mantiveram o status quo apesar de ter havido uma necessidade que gerou a contradição entre fazer não fazer Refletir sobre estas contradições e suas conseqüências fará com que a ação decorrente seja um avanço no processo de conscientização Se esta reflexão não ocorre o pensar a ação se caracterizará por uma resposta pronta tida como verdadeira já elaborada pelo grupo reproduzindo a ideologia e mantendo o indivíduo alienado Desta forma o pensar açãonãoação agirnaoagir e repensar o feitonâofeito traz em si contradições que podem ser resolvidas através de uma explicação de uma justificativa que encerra o processo com uma elaboração ideológica Porém se a contradição é enfrentada é analisada criticamente e é questionada no confronto com a realidade o processo tem continuidade onde cada ação é renovada e repensada ampliando o âmbito de análise e 44 SILVIA T M LANE da própria ação e tem como conseqüência a conscientização do indivíduo Em contraposição as respostas a ações habituais são exata mente aquelas que se reproduzem sem que ocorra o pensar tanto antes como depois Na medida em que estas ações implicam valores e relações sociais elas estarão obrigatoriamente reproduzindo a ideologia dominante mantendo as condições sociais ou seja elas não transformam nem as relações sociais do indivíduo nem a ele mesmo é a persistência da alienação Nesse sentido podese entender como não só o trabalho repetitivo e mecânico de um operário mas também qualquer atividade rotineira contribui para a alienação do ser humano Esta linha de análise nos permite precisar como a ideologia dominante enquanto produção superestrutural da sociedade como uma lógica que ao nível individual se traduz com especifícidades e peculiaridades decorrentes da história de vida do indivíduo dentro de seu grupo social ou seja do conjunto das relações sociais que constituem o indivíduo Concluindo temos como decorrência metodológica desta aná lise a necessidade de pesquisar as representações linguagem pensamento juntamente com as ações de um indivíduo este defi nido pelo conjunto de suas relações sociais para se chegar ao conhecimento de seu nivel de consciênciaalienação num dado momento Implicações metodológicas Como captar o ideológico e o nível de consciência de um indivíduo num dado momento apresentase como problema fundamental para a pesquisa em Psicologia Social quando ela se propõe a conhecer o indivíduo como ser concreto inserido numa totalidade históricosocial Inicialmente é necessário explicitar alguns pressupostos epis temológicos tais como a relação entre teoria e fatos e a nãoneutra lidade científica Na superação da dicotomia entre teoria de um lado e o empírico de outro o materialismo dialético se propõe a conhecer o concreto distinto do empírico e produto de uma análise que partindo do empírico o insere num processo o qual permite detectar como são estabelecidas relações que nos levam a conhecer o AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 45 indivíduo como manifestação de uma totalidade Assim fatos e teoria se tomam indissociáveis tomando o processo cientifico necessariamente acumulativo em direção ao concreto proposto e a ciência um conhecimento relativizado como produção histórica Neste sentido definições abstratas perdem significado pois se antes a generalização caracterizava o conhecer agora é a especificidade do fato compreendido em todas as suas implicações que se toma o objetivo do conhecimento científico Desta forma a ênfase metodológica está na análise que permi tirá a partir do empírico do aparente do estático e recuperando o processo histórico específico chegarse ao essencial ao concreto E isto só é possível através de categorias que nos levam gradati vamente a análises mais profundas visando captar a totalidade A ciência vista como produto histórico também se relativiza como produção humana e portanto perde sua condição de neutra1 pois é sempre fruto de homens situados social e histo ricamente que determinam o prisma pelo qual os fatos são enfocados ou seja as necessidades e valores privilegiados por um grupo social naquele momento Na medida em que os fatos estudados implicam uma inserção histórica não importa quais as especificidades analisadas o conhe cimento necessariamente se processa de forma acumulativa tanto quando realizado num mesmo momento como em diferentes épocas o acumulativo decorre da análise histórica que nos leva ao conhecimento do indivíduo como manifestação de uma totalidade Estes pressupostos determinam procedimentos metodológicos para a Psicologia Social fundamentais para se atingir o concreto ou seja o indivíduo como manifestação da totalidade históricosoçial que vão desde de qual empírico devemos partir até que dimensão interdisciplinar deva ser abarcada Se considerarmos como Leontiev atividade consciência e personalidade as categorias fundamentais de análise do fato psico lógico temos como ponto de partida essencial a linguagem o discurso produzido pelo indivíduo que transmite a representação que ele tem do mundo em que vive ou seja a sua realidade subjetiva determinada e determinante de seus comportamentos e atividades Assim para se detectar o ideológico eou o nível de cons ciência partimos do discurso individual produzido na interação com o pesquisador e que deverá ser analisado através de categorias que emeijam do próprio discurso e que o esgotem em todos os significa 46 S1LVJAT M LANE dos possíveis tanto em relação ao que foi dito como ao não dito Várias técnicas têm sido utilizadas para se chegar às catego rias fundamentais de um discurso desde a AAD de Pecheux até às menos estruturadas que combinam o dito e o nãodito ou aquelas que analisam as relações de subordinação complementaridade etc seja gramatical ou implicitamente presentes no discurso O importante é o caráter a posteriori das categorias que permite elaborar uma síntese precária que direciona análises mais amplas e profundas Com este procedimento o Problema é antes um ponto de partida do que de chegada podendo ser reformulado a cada nível de análise no confrônto com a ação do indivíduo e com as condições que cercam a produção do discurso Também como decorrência deste procedimento o problema referente a amostragem assume outra característica pois não se procura a generalização mas sim a especificidade dentro de uma totalidade e portanto os indivíduos estudados sào escolhidos em função de aspectos ou condições consideradas significativas e que muitas vezes não podem ser prédefinidas mas que emergem da própria análise que vem sendo feita Deste modo o pesquisar é também uma práxis se parte do empírico se analisa se teoriza se volta ao empírico e assim por diante se aprofundando gradativamente para se captar o processo no qual o empírico se insere Chegar ao concreto à totalidade é uma produção coletiva onde as lacunas apontadas pelas sínteses precá rias sào tão fundamentais quanto os conhecimentos desenvolvidos Outro aspecto de vital importância é a relação pesquisador pesquisado que neste processo deve ser considerada como uma relação inerente ao fato estudado sendo que o pesquisador é também objeto de estudo e análise tanto por ele próprio como pelo pesquisado Nesta perspectiva não é possível dissociálo pois ele também é parte material da realidade em estudo e quando a sua atuação a sua presença é analisada não o é em termos de evitar vieses ou de se atingir uma objetividade mas sim de captar a nâoneutralidade como manifestação de um processo que se está procurando compreender em toda a sua extensão Por outro lado a pesquisa em Psicologia Social lidando com seres humanos deverá ter sempre presente que o papel institucionalizado de pesquisador em nossa sociedade traz consigo o caráter de dominação e como tal reproduz a ideologia dominante se não quisermos elaborar conhe cimentos contaminados ideologicamente este fato deve merecer AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 47 uma atenção fundamental no planejamento de procedimento registros e análise do fato pesquisado Conhecer ideologia eou nível de consciência implica também o estudo das relações grupais que se processam desde a reprodução cristalizada de papéis e ctrnio tal da ideologia dominante até o questionamento das relações de dominação e das contradições por elas geradas Neste nível é necessária a análise das atividades desenvolvidas pelo grupo assim como o discurso produzido pelos seus membros O confronto entre o nivel do discurso e o nível da ação é essencial para se compreender o indivíduo seja enquanto reprodutor de ideologia como para análise de seu nível de cons ciência Neste momento a observação participante é fundamental e nossa experiência tem demonstrado que por menor que seja a parti cipação aparente do pesquisador ela ocorre com características decisivas que não podem ser desconsideradas no fato em estudo Concluindo podemos ressaltar alguns pontoschave para uma nova metodologia de pesquisa em Psicologia Social 1 as definições e çonççitos apriorísticos são dispensáveis quando não restritivos para a atividade de pesquisar 2 por outro lado categorias que nos remetem aos vários níveis de análise permitem chegar à materialidade do fato ao con creto que está sob o empírico aparente 3 a pesquisà como práxis1 implica necessariamente interven ção e acumulação de conhecimentos 4t as lacunas no conhecimento são tão importantes quanto o conhe cido se não mais pois são elas que permitirão aprofundar e rever as análises já realizadas Bibliografia Lane S T M O que é Psicologia Social Sâo Paulo Brasiliense 1981 Texier Jacques Gramsci Teórico de las Superestruturas México Edicio nes de Cultura Popular 1975 Uma Redefinição da Psicologia Social in Educação e Sociedade n 6 São Paulo Cortez jun 1980 Codo W A transformação do Comportamento em Mercadoria tese dou torado Leontiev A N Actividad Consciência y Personalidad Buenos Aires Ed Ciências dei Hombre 1978 O fazer e a consciência Wanderley Coào Lehninger em seu tratado de Bioquímica diferencia a matéria viva da matéria nãoviva entre outras características pelo fato de o organismo extrair e transformar a energia do seu meio ambiente em uma relação funcional ou seja a energia é retirada do meio para construir e manter a própria estrutura do organismo vivo Tomando suas palavras os organismos vivos são sistemas abertos pois trocam tanto energia como matéria com seu meio ambiente e ao fazerem isso transformam ambos A estruturação de um organismo vivo através da transfor mação de energia da matéria inanimada se dá necessariamente por uma relação entre ambos que se define com base na reciprocidade dupla relação que envolve a transformação da natureza à imagem e semelhança do organismo e condição sine qua fio o avesso ou seja a transformação do organismo à imagem e semelhança da natureza que o abriga Em outras palavras ocorre uma relação de dupla apropriação a existência mesma do organismo vivo implica apropriação da natureza que exige condiciona a apropriação do organismo pela natureza Assim uma ameba ao estender seus pseudópodes e se apropriar de uma partícula que a alimentará tem de conformarse à estrutura da partícula para conformála a si mesma de certa maneira a ameba é o seu alimento ao representar sua apropriação Em um organismo mais complexo as relações tendem a ficar mais claras Um rato ao se alimentar de um queijo o ratifica com ou sem aspas ou seja ratificar tomar o queijo queijo e ratificar tomar o queijo rato No primeiro sentido porque o queijo também é além de seu significado fisico moléculas estruturadas de uma determinada forma o alimento energizador do comportamento do rato No segundo sentido o rato ratifica o queijo ao transformar o queijo em si mesmo Pelo avesso o rato se queijifica no sentido físico do termo compõese do queijo transformado do sentido biológico do termo sua saliva seu estômago e intestino se estruturam a partir do alimento que devem digerir e também no sentido psicológico sua percepção faro olhos e ouvidos aprendem graças ao queijo a distinguilo do nãoqueijo na natureza A sobrevivência de um organismo depende em última ins tância da capacidade física biológica e psicológica de transformar o meio à sua imagem e semelhança e portanto de autotransformarse à imagem e semelhança do meio Estamos portanto no plano da História Natural e eviden temente as ciências se dividem enquanto recortam esta ou aquela face deste mesmo fenômeno básico Assim a genética toma para si a compreensão da transfor mação da espécie pelo meio durante as gerações a biologia celular estuda as múltiplas relações entre célula e meio externo A Psicologia enquanto nos interessa mais de perto se preocupa com os mecanismos de sobrevivência do organismo em termos de percepção aprendizagem motivação etc1 Em outras palavras conhecendo exatamente como um animal sobrevive muito saberemos sobre como se comportará aí está a etologia que não nos deixa mentir Mesmo no limite da Psicologia animal já se recupera a espe cificidade desta ciência em relação às suas primas No plano bioquímico ou genético em quase todo o universo da biologia o cientista tem a benesse de poder lidar com um fenômeno discreto enquanto que na Psicologia nos deparamos com a dificuldade de se tratar de um fenômeno contínuo Assim apesar de conhecer o movimento entre a célula e o seu meio é possível estudála como unidade relativamente discreta ou seja tendo claros os limites que distinguem a célula da nocélula No caso da Psicologia o objeto AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 49 1 É ôbvk que um animal não apenas come também foge procria etc em cada uma das atividades a relaçáo é a mesma utilizamos apenas a alimentaço neste contexto eomente como um exemplo 50 WANDERLEY CODO mesmo de estudo é a relação organismomeio o exercício da Psicologia não consiste em considerar como variáveis intervenientes o meio ambiente concreto e buscar através da introspecção a consciência humana em sua dimensão pura Como já tentaram alguns cientistas nem consideram o indivíduo como uma tabula rasa na qual o meio escreve sua história como também já se disse oobjeto da Psicologia consiste em estudar a atividade do organismo Ou como diz Leontiev já se referindo a seres humanos na própria organização corporal dos indivíduos está contida a necessidade de entrar em uma relação ativa com o mundo exterior para existir devem atuar ao influir sobre o mundo exterior o modificam com isso se modificam também a si mesmos Por isso o que os homens são está determinado por sua atividade à qual está condicionada pelo nível já alcançado no desenvolvimento de seus meios e formas de organização Tomemos então o homem e vejamos como se dá esta dupla relação organismomeio Ocorre no homem o mesmo fenômeno que ocorre com os animais Sim e não ao mesmo tempo é a respota Sim porque o Homem também tem sua história natural também é o bife que fareja e deglute ou pretende no almoço Não porque acoplase a esta já complexa relação a natureza essencialmente social do Homem O que significa isto O Homem produz sua própria existência portanto produz a si mesmo para tanto se relaciona com os outros portanto produz e é produzido pelo outro Portanto a dupla relação apontada atrás entre organismo e meio se dá mediada pela dupla relação consigo mesmo Ao comer um tomate por exemplo o homem entra em relação de dupla apropriação com todo o planeta e com toda a história da Humanidade literalmente Declinemos a afirmação acima pois ela nos interessa parti cularmente O homem nüo encontra o tomate pronto na natureza tem de plantálo Até aqui nada de novo pois a aranha produz sua teia a diferença ê que o ser humano nâo sabe plantar antes de nascer precisa aprender Enquanto a aranha para construir a teia tem uma tarefa pela frente o homem tem um problema que depende de uma AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 51 técnica e de um projeto Ora a aprendizagem da técnica c o projeto pressupõem o outro Ém outras palavras a técnica pressupõe uma divisão de trabalho tanto longitudinal quantõ transversal Transversalmente o homem se divide para produzir por exemplo uns espantam a caça enquanto outros a matam Longitudinalmente cada geração aperfeiçoa parte da técnica que o homem aprende num dado momento Foi assim da roca de fiar passando pela mulejenny até as fiadoras modernas No cerne desta questão está o problema da divisão de tra balho E é esta divisão de trabalho que permeia a linguagem os instrumentos o pensamento a consciência Passemos em revista a atividade produtiva do homem procu raremos demonstrar como o uso da atividade enquanto categoria central da Psicologia pode ser revelador Tomar o fruto da terra leválo à boca deglutir Como já vimos a mera atividade de apropriação é prenhe de uma relação dialética homemnatureza 1 o fruto se transforma se conforma à imagem e semelhança do homem e 2 ao mesmo tempo o homem se transforma se conforma â imagem e semelhança do fruto de que se apropriou Em 1 o fruto se toma o homem no sentido físico moléculas que se incorporam e passam a compor nosso corpo biológico energia que se transforma pelas e para as células do homem e psicológico o fruto passa a significar um fruto para o homem se incorpora a ele um significado humano Em 2 o homem se toma o fruto pelas mesmas razões físicas e biológicas do ponto de vista psicológico o fruto ensina o homem a distinguilo do nàofmto nossas sensações através da visão porém são estruturadas pelo fruto Além das sensações a apropriação da natureza produz a ação do homem estabelece relações de contingência entre os compor tamentos dispõe o reforçamento dispõe sobre o gesto do braço mãos boca e sobretudo o fruto fornece um significado ao gesto incorpora a ele um telos uma finalidade Sensações ação e também percepção A natureza apropriada liga o olho à boca ao nariz Plantar a semente zelar pela planta colher o fruto Uma das prímeiras màquinas de fiar 52 WANDERLEY CODO Aqui permanece a mesma relação dialética não custa repeti la o homem é transformado pela natureza enquanto se transforma à imagem e semelhança da natureza mas em um nível qualita tivamente superior2 Ao plantar o homem modifica para si o meio externo já não se pode falar de natureza no sentido de contraposição ao Humano o mundo ao redor toma a face do Homem é colocado a seu serviço submetido às suas necessidades portanto à sua vontade Neste sentido a dupla relação HomemNatureza apontada acima ganha um elo novo o homem transforma a natureza que o transforma Mas plantar pressupõe também o fruto presenteausente ou sejaP o projeto do fruto é preciso que o fruto esteja presente na consciência do Homem embora ausente da natureza O fruto pelo Homem se torna transcendente se eterniza na atividade do plantio O aso de instrumentos de trabalho O que é o instrumento de trabalho Marx nos diz 0 meio de trabalho é uma coisa ou um conjunto de coisas que o homem interpõe entre ele e o objeto do seu trabalho como condutor da sua ação Portanto o instrumento tem um caráter mediador na medida em que funciona concretamente como extensão do homem am pliando ou precisando seus gestos o eterniza Um machado por exemplo é o ato do homem objetivado perene imortalizado em uma palavra transcendente ao próprio Homem Neste sentido o instrumento de trabalho é um mediador entre o Homem e a sua transcendência em outras palavras a sua História Um outro caráter mediador se ampara no fato de que embora filho legítimo da ação o instrumento de trabalho pressupõe a ação não realizada ou seja um projeto Assim o instrumento trans forma através do trabalho a reflexão em ação materializada e como se viu transcendente Os meios de trabalho exercem amediação entre a reflexão e a História 2 A análise do plantar pressupõe o uso de instrumentos e conco mitantemente da linguagem aqui por questões didáticas apenas vamos separar os processos AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PICOLOGIA SOCIAL 53 Fabricado pelo Homem como mediador entre ele e a natureza meio de trabalho o instrumento se amolda ao seu criador É a natureza hominizada e meio de homínização da natureza ao mesmo tempo Criado pelo Homem à sua imagem e semelhança o eterniza transforma a atividade individual em História a criação cria o criador Ação e meio de ação sintetizadas e eternizadas a criação se liberta do criador o machado que eu fiz ao mesmo tempo que imortaliza meu gesto recria o gesto do outro à minha imagem e semelhança o machado reapresenta ao Homem individual a História da Humanidade conforma e insere o indivíduo à sua própria espécie ao contrário o instrumento viabiliza a intervenção do Homem em toda a sua História pela via da atividade o machado aperfeiçoado pelo meu sucessor transforma o homem individual em ser genérico a evolução do seu gesto traz em si a revolução da Humanidade Através do instrumento de trabalho o homem trans forma a história dos homens e é transformado por ela O instrumento é produtor e produto da abstração O conceito duro ou mole não emana diretamente da natureza como pode haver na consciência humana algo que não se encontra no mundo O conceito de duro é reflexo de uma interação entre dois objetos de densidades diferentes Ao bater com o machado em uma árvore o homem interage com os dois elementos em questão e principalmente com a relação entre eles a mediação do gesto realizado pelo instrumento informa uma dimensão do real dantes insuspeita arma o homem com a possibilidade de interpretação do mundo Isto é verdade para qualquer abstração qualquer pensa mento Ocorre que amiúde o instrumento de intervenção do homem no universo é a própria palavra que reorganiza relações dos homens entre si funcionando prioritariamente como um instru mento de intervenção no outro ou do outro em mim3 Embora filho legítimo da ação a construção do instrumento de trabalho pressupõe a ação não realizada ou seja um produto de ação o instrumento de trabalho engendra a reflexão e a materializa Em outras palavras o uso de meios de trabalho realiza a volta 3 NSo se fará aqui uma anállsq da linguagem apenas se ressalta o seu papel como instrumento 54 WÁNDERLEY CODO completa promove a consciência do qual è produto produz a cons ciência que promove Em suma o instrumento de trabalho transforma o homem de animal em ser transcendente através da ação mediatizada o homem transcende a si mesmo em direção ao seu projeto portanto em relação ao outro portanto em direção à História O homem e o outro Evidentemente o trabalho enquanto modo de produção de sua própria existência exigiu do homem a convivência em grupos o desenvolvimento da linguagem e a divisão de trabalho Os processos grupais e a linguagem estão formulados em outros momentos deste livro Posso então me poupar desta análise e abordar alguns aspectos da divisão de trabalho que considero relevantes para a análise em questão A divisão de trabalho une e separa une porque separa separa porque une os homçns ao mesmo tempo Se a caça é grande ç perigosa o suficiente para que o homem não possa abatêla sozinho e se organizam grupos encarregados de abatêla e outros encarregados de espantála esta divisão de trabalho tende por uma questão de competência a se cristalizar o que implica que percepções abs trações e também consciências diferentes da realidade se estabe leçam em homens diferentes por outro làdo é igualmente obri gatório que os mesmos homens separados pelas atividades diferenciadas se unam em um plano superior que é o plano do projeto e dos objetivos da atividade em pauta Assim é preciso que os homens estejam ligados entre si pelo produto do seu trabalho atividade objetiva para que possam sobreviver A caça não seria abatida se cada homem não cedesse a seus instintos imediatos e comungasse do projeto do grupo Como se verá adiante esta dialética uniãoseparação é fundamental para o processo de conscientização assim como a relação homemhomem homemnatureza que analisaremos a seguir Já repetimos ad nauseam que é a relação prática do homem com a natureza sua atividade que o constitui No trabalho produtivo este caráter de determinação da prática aparece de forma cristalina é a caça que instrui ao caçador a força do golpe AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 33 Ao mesmo tempo que a atividade eminentemente prática empurra o homem para o contato visàvis a natureza seu modo de ser social e histórico portanto transcendente o obriga a uma relação com o outro que implica afastamento ressaltese as aspas com a natureza Vejamos A construção de instrumentos imbricada com a linguagem permite que o engenho a criatividade a competência de um trabalhador em particular transcenda a si mesmo e passe a pertencer a toda a humanidde A rigor basta que um homem em uma tribo primitiva invente o arco e a flecha para que esta atividade objetivada no produto de sua arte passe a pertencer a toda a coletividade imprimindo sua existência no existir do outro que por sua vez o reformula até atingirmos todos nós o estágio da bazuca por exemplo Percorrendo caminho inverso o ato de um homem particular com um machado particular ao bater em uma árvore é permeado de toda a história da humanidade até então Aqui a dupla apropriação homemmeio transformar e ser transformado pela natureza se funde e tem como requisito a dupla apropriação homemhomeni transformar e ser transformado pelo outro O machado é uma via de consciência do mundo e do social porque é o homem genérico toda a história toda a sociedade representada quanto mais técnica se aperfeiçoa mais o meio ambiente natural do homem se torna humano Hoje encontramos operários lidando com máquinas feitas por máquinas per omnia produzindo a vida de pessoas através da eletricidade que não sabemos ao certo em qual momento histórico foi produzida pela primeira vez Assim se promove um afastamento aparente que se concre tiza por um poder cada vez maior sobre a natureza pela via social vale dizer histórica A minha atividade mediada pela atividade do outro pela via da linguagem e do instrumento de trabalho é exatamente o que permite que a atividade se reapresente a um sujeito particular em um reflexo da realidade concreta destacado das relações que existem entre ela e o sujeito ou seja um reflexo que distingue sujeito ou seja um reflexo que distingue as propriedades objetivas estáveis da Realidade Estamos falando do fenômeno da consciência humana Marx nos revela que a linguagem é a consciência prática Ou seja é a atividade dos homens representada a um sujeito individual 56 WANDERLEY CODO portanto passível de ser reproduzida na ausência do mundo objetivo imediáto ao mesmo tempo que permanece fiel a ele Vimos que a atividade produtiva humana pela via do desenvolvimento imbricado da linguagem dos instrumentos de trabalho e da divisão de trabalho produz a consciência através da dialética homemnatureza homemhomem que se expressa por uma tensão perene entre o indivíduo como sujeito individual e coletivo do seu próprio destino contradição esta que só poderá evoluir pela apropriação coletiva do destino individual Talvez um exemplo possa deixar as coisas mais claras Tomemos um operário que ingressa hoje em uma fábrica encontra ali já construído um modo de produção coletivizado altamente evoluído que o insere em toda a história da humanidade cada produto realizado cada gesto reapropria e transforma o mundo e os homens Ao apertar um botão que aciona uma máquina nosso operário é invadido pela história e tomase seu portador se insere em sua classe e na luta de sua classe na medida em que se organiza coletivamente Ao mesmo tempo encontra o produto do trabalho rompido divorciado do produtor O produto do seu trabalho se lhe apresenta como ser estranho independente do produtor nos diz Marx o trabalho é alienado por isto dividido entre trabalho intelectual e trabalho braçal ou seja o gesto é expropriado da criação O trabalho coletivizado e as relações de trabalho competitivas o irmão do qual o trabalho depende e pelo qual o produto se cria reapresen tado como inimigo O operário viverá entre estes dois fogos o tempo todo a apropriação de si pelo mundo e a reapropriação do mundo O momento da greve por exemplo ao promover a ruptura da produção alienada mesmo que parcialmente rompe também com o isolamento de um indivíduo para com o outro A nãoprodução produz um produtor ativo de si do outro do mundo Pela luta via ação recompondo recriando a atividade até o momento em que pelo outro o homem reencontra a si mesmo até que o existir coletivo reencontre o sujeito individual AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL S7 Bibliografia Lehninger A L Bioquímica trad da 2f ed americana São Paulo Edgard Blücher 1976 Leontiev A N 4ctívúfad ctwcíencw personataotf Buenos Aires Ed Ciências dei Hombre 1978 0 Desenvobimento do Psiquismo Lisboa Livros Horizonte Ltda 1978 Marx K Ei Capitait Fondo de Cultura Econômica 3 vois 4f ed México Buenos Aires 1966 Marx K e Engels F Diaiétinp da Natureza in Obras Escogidas Ed Progreso Moscú 3 vol URSS 1978 Manuscritos Econômicos e Filosóficas in Obras Escogidas idem ibidem A Ideologia Alemä in Obras Escogidas idem ibidem Contribuição à Critica da Economia Política in Obras Escogidas idem ibidem Identidade Antonio da Costa Ciampa Uma pergunta aparentemente simples Quem é você É uma pergunta que freqüentemente nos fazem e que às vezes fazemos a nós mesmos Quem sou eu Quando esta pergunta surge podemos dizer que estamos pesquisando nossa identidade Como em qualquer pesquisa esta mos em busca de respostas de conhecimento Por se tratar de uma pergunta feita a nosso respeito é fácil darmos uma resposta ou nao é Se é um conhecimento que buscamos a respeito de nós mesmos podemos supor que estamos em condições de fornecêlo Afinal se trata de dizer quem somos Experimente N5o continue lendo antes de responder a esta pergunta quem évocê Pronto Respondeu de forma a qualquer pessoa depois dè ouvir sua resposta poder afirmar que o conhece Sua resposta toma possível você se mostrar ao outro e ao mesmo tempo você se reconhecer de forma total e transparente de modo a não haver nenhuma dúvida nenhum segredo a seu respeito Sua resposta produz um conheci mento que o toma perfeitamente previsível Ninguém nem mesmo você depois de conhecer essa resposta terá dúvida sobre como você vai agir pensar sentir em qualquer situação que surja AS CATEGORIAS FUNDAMENTA IS DA PSICOLOGIA SOCIAL 59 Acredito que se você foi sincero estas questões todas podem ter levantado algumas duvidas Será tão fácil dizer quem somos Se como estou supondo não é tão fácil como pode parecer a primeira vista podemos admitir que este é um problema digno de uma pesquisa científica e não só por causa disso Psicólogos sociólogos antropólogos os mais diversos cientistas sociais têm estudado a questão da identidade filósofos também Não só pela dificuldade mas também pela importância que esta questão apre senta outros especialistas têm se envolvido com ela e não só cientis tas e filósofos nos tribunais juizes ptomotores advogados peritos etc na administração tanto pública como privada na polícia na escola no supermercado etc enfim em praticamente todas as situações da vida cotidiana a questão da identidade aparece de uma forma ou de outra e também fora do cotidiano quem era mesmo aquela personagem com quem sonhei ontem Você já reparou como as novelas de TV exploram esse filão Ê frequente uma personagem viver um grande drama porque de repente des cobre estar enganada a respeito da identidade de outra personagem é seu pai sua mâe seu filho sua irmã etc e não quem pensava que fosse conseqüentemente descobre ao mesmo tempo que também estava enganado a respeito da própria identidade afinal se esse desconhecido é meu pai então eu sou seu filho e não de quem pensava a identidade do outro reflete na minha e a minha na dele afinal ele só é meu pai porque eu sou filho dele Outro exemplo nas histórias policiais quase sempre o enredo é todo montado para que se descubra a identidade do criminoso não só no sentido de saber quem cometeu o crime mas também como se tomou criminoso por vezes a história se desenvolve de tal modo que nos os espectaàores ou leitores sabemos quem é o criminoso mas as demais personagens da história não sabem isto nos levanta uma outra questão pelo fato de os outros não saberem ele deixa de ser criminoso Que é ser criminoso1 É cometer um ato criminoso Pense no exemplo digamos fictício de poderosos cidadãos que cometem atos que você considera criminosos mas não são perse guidos pela polícia e pela justiça Podemos falar numa identidade oculta Pense numa história de espionagem a identidade do espião exatamente se caracteriza como uma identidade oculta peio menos para os espionados sendo que suas aventuras prati camente terminam ou deixam de ser atraentes quando essa identidade é revelada Até os superheróis têm sua identidade secreta aquilo de que o SuperHomem tem mais medo é que 60 ANTONIO DA COSTA C1AMPA descubram quem eie é na vida cotidiana como muitos de nós que escondemos algum aspecto de nossa identidade e morremos de medo que os outros descubram esse nosso lado oculto A literatura o cinema a TV as histórias em quadrinhos as artes num sentido bem amplo também lidam com o problema da identidade e podem nos ensinar muito a respeito Voltemos a nosso ponto de partida Se como afirmamos estamos falando de nossa identidade quando respondemos à pergunta quem sou eu a primeira observação a ser feita é que nossa identidade se mostra como a descrição de uma personagem como em uma novela de TVt cuja vida cuja biografia aparece numa narrativa uma história com enredo personagens cenários etc ou seja como personagem que surge num discurso nossa resposta nossa história Ora qualquer discurso qualquer história costuma ter um autor que constrói a personagem Cabe perguntar então você é a personagem do seu discurso ou o autor que cria essa personagem ao fazer o discurso Se você é a personagem de uma história quem é o autor dessa história Se nas histórias da vida real não existe o autor da história será que não são todas as personagens que montam a história Todos nós eu você as pessoas com quem convivemos somos as personagens de uma história que nós mesmos criamos fazendonos autores e personagens ao mesmo tempo Com esta afirmação já antecipamos o que se poderia dizer caso nos consideremos o autor que cria nossa personagem o autor mesmo é personagem da história Na verdade assim poderíamos afirmar que há uma autoria coletiva da história aquele que costumamos designar como autor seria dessa forma um narrador um contador de his tória Com isso podemos perceber outro fato curioso nao só a identidade de uma personagem constituí a de outra e viceversa o pai do filho e o filho do pai como também a identidade das personagens constitui a do autor tanto quanto a do autor constitui a das personagens A trama parece complicarse pois é sabido que muitas vezes nos escondemos naquilo que falamos o autor se oculta por trás da personagem Mas da mesma forma como um autor acaba se revelando através de seus personagens é muito freqüente nos revelarmos através daquilo que ocultamos Somos ocultação e reve lação AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL W Até agora falamos das pessoas como se elas fossem de uma determinada forma e não se modificassem o que é falso Basta observarmos nossos próximos basta nos observarmos No mínimo as pessoas ficam mais velhas a criança se torra adulto o adulto ancião No máximo o que seria no máximo Não reconheço mais Fulano é outra pessoa1 Há mudanças mais ou menos previsíveis mais ou menos desejáveis mais ou menos controláveis mais ou menos mudanças O estudante que se torna um profissional depois de formado representa uma mudinça bem mais previsível do que a do jovem nosso amigo de infância que se torna um criminoso ê lógico que implicitamente estamos também considerando certas condições de classe social numa outra situação social a previsi bilidade pode ser invertida infelizmente Outro exemplo a moci nha que se torna donadecasa mãe de filhos etc vive uma mudança mais desejável do que a daquela que se torna prostituta novamente há algo implícito nesse julgamento valores etc O desempregado que se torna alcoólatra ou criminoso etc sofre uma mudança provavelmente menos controlável do que a do escriturário que se toma gerente como você consideraria aqui a questão de classe de valores etc Há mudanças e mudanças quem muda mais o heterossexual que se torna homossexual ou o adepto de uma religião que se torna ateu O alienado politicamente que se torna revolucionário ou o civil que se torna militar Nós nos tornamos algo que não éramos ou nos tomamos algo que já éramos e estava como que embutido dentro de nós Parece que quando se trata de algo positivamente valorizado a tendência nossa é afirmar que estava embutido em nós sempre tive vocação para ser médico quando não desejável freqüentemente estava embutido1 nos outros sempre achei que ele tinha propensão para o crime que ele tinha um jeito de bicha Q u e dizer da jovem que se tema donadecasa E do religioso que se torna ateu O escriturário que se torna gerente está realizando uma tendência uma vocação1 Podemos imaginar as mais diversas combinações para con figurar uma identidade como uma totalidade Uma totalidade contraditória múltipla e mutável no entanto una Por mais contraditório por mais mutável que seja sei que sou eu que sou ussitn ou seja sou uma unidade de contrários sou uno na multipli cidade e na mudança Quando nossa unidade é percebida como ameaçada quando corremos o risco de não saber quem somos quando nos sentimos 62 ANTONIO DA COSTA CIAMPA desagregando temos maus pressentimentos temos o pressenti mento de que vamos enlouquecer aprendemos a ter horror de sermds outro1 quando queremos ofender alguém cantarolamos um refrão bastan te conhecido Fulano não é mais aquele Z1 não é à to a que o tipo clássico de piada de louco envolve alguém que diz que é quem não ê Napoleão Jesus Cristo etc nestes casos é fácil verificar que ele nào é quem diz que é Porém será sempre fácil saber que alguém é ou não é quem diz que é Num certo sentido podese considerar a chamada doença mental como um problema de identidade o louco é nosso outro tanto quanto o curado é o outro do louco Não afirma o dito popular que de médico e de louco cada um tem um pouco Desde o início estamos jogando perguntas em cima de per guntas provocativamente para uma questão que parecia tão simples Talvez valesse a pena segurar essas duvidas e examinar a questão de forma menos interrogativa Vamos tentar separar dois tipos de problema os de natureza empírica prática e os de natureza teórica e filosófica No princípio era o verbo Quando queremos conhecer a identidade de alguém quando nosso objetivo é saber quem alguém é nossa dificuldade consiste apenas em obter as informações necessárias O pai que deseja saber quem são os amigos que andam com seu filho a mãe que procura conhecer o namorado da filha o empregador que seleciona um candidato para trabalhar o comerciante lojista ou banqueiro que procura se assegurar da credibilidade de um cliente a quem vai fazer um empréstimo todos eles procuram tomar informações através dos mais variados meios e formas a natureza das informações pode variar mas todas têm em comum o fato de permitirem um conheci mento da identidade da pessoa a respeito de quem as informações são tomadas Assim obter as informações necessárias é uma questão prá tica quais as informações significativas quais as fontes confiáveis quem dá as referências de que forma obter as informações como interpretar e analisar essas informações etc Enfim o mesmo procedimento que um cientista adota ao fazer uma pesquisa empí rica talvez sem a sofisticação habitual numa pesquisa científica A5 CATEGORIAS FUNDAMENTAIS D PSICOLOGIA SOCIAL 3 Aqui nào pròblematizamos o resultado obtido não compli camos a questão supomos que as informações nos revelam a reali dade Essa crença é a mesma que guia nossas ações mais corri queiras da vida cotidiana Nossos rituais sociais escondem a dificuldade implícita nessa maneira de pensar e de agir é fácil imaginar como se tornaria difícil conviver com outras pessoas se nào houvesse a suposição compartilhada por todoJnós de que normal mente um indivíduo é a pessoa que diz que é e que os outros dizem que é Pense numa apresentação social um amigo chega com um desconhecido e diz Este é Fulano meu colega e após você o cumprimentar o novo conhecido diz Muito prazer sou Fulano ou então Sou Fulano a seu dispor etc Se as informações são verdadeiras então a realidade está conhecida pelo menos agimos como se estivesse depois de uma apresentação dizemos que o apresentado é nosso conhecido11 Como são fornecidas essas informações A forma mais simples habitual e inicial é fornecer um nome um substantivo se olharmos o dicionário veremos que substantivo é a palavra que designa o ser que nomçia o ser Nós nos identificamos com nosso nome que nos identifica num conjunto de outros seres que indica nossa singularidade nosso nome próprio Falamos chamome Fulano sem prestar muita atenção ao fato de que antes que eu me chamasse Fulano eu era chamado Fulano ou seja nós nos chamamos da forma como os outros nos chamam Nós nos tornamos nosso nome pense em você mesmo com outro nome nào como outra pessoa mas você mesmo com outro nome há um sentimento de estranheza parece que não encaixa Geralmente as pessoas se sentem ofendidas quando por qualquer motivo tro camos seu nome é sinal de amizade e respeito nào esquecer nem confundir o nome das pessoas que prezamos A não ser em casos excepcionais o primeiro grupo social do qual fazemos parte é a família exatamente quem nos dá nosso nome Nosso primeiro nome prenome nos diferencia de nossos familiares enquanto o último sobrenome nos iguala a eles Diferença e igualdade É uma primeira noção de identidade Sucessivamente vamos nos diferenciando e nos igualando conforme os vários grupos sociais de que fazemos parte brasileiro igual a outros brasileiros diferente dos estrangeiros nós os brasileiros somos enquanto os estrangeiros São homem ou niulher os homens são enquanto as mulheres sâo1 Os 64 ANTONIO DA COSTA C1AMPA exemplos podem se multiplicar indefinidamente os corintianos são enquanto os torcedores dos outros clubes so O conhecimento de si é dado pelo reconhecimento reciproco dos indivíduos identificados através de um determinado grupo social que existe objetivamente com sua história suas tradições suas normas seus interesses etc Um grupo pode existir objetivamente por exemplo uma classe socil mas seus componentes podem não se identificar como seus membros e nem se reconhecerem reciprocamente Ê fácil parece perceber as conseqüências de tal fato seja para o indivíduo seja para o grupo social Mas se é verdade que minha identidade é constituída pelos diversos grupos de que faço parte esta constatação pode nos levar a um erro qual seja o de pensar que os substantivos com os quais nos descrevemos sou brasileiro sou homem etc expressam ou indicam uma substância brasilidade masculinidade etc que nos tornaria um sujeito imutável idêntico a simesmo manifestação daquela substância Para compreendermos melhor a idéia de ser a identidade constituída pelos grupos de que fazemos parte fazse necessário refletirmos como um grupo existe objetivamente através das relações que estabelecem seus membros entre si e com o meto onde vivem isto é pela sua prática pelo seu agir num sentido amplot podemos dizer pelo seu trabalho agir trabalhar fazer pensar sentir etc já não mais substantivo mas verbo Usamos tanto o substantivo que esquecemos do fato original do agir Ev comeu a maçã Prometeu roubou o fogo dos céus Oxali com seu cajado separou o mundo dos homens do mundo dos deuses Como devemos dizer o pecador peca o desobediente desobedece o trabalhador trabalha Ao dizer assim estamos pressupondo antes da ação do fazer uma identidade de pecador de desobediente de trabalhador etc contudo é pelo agir pelo fazer que alguém se torna algo ao pecar pecador ao desobedecer desobediente ao trabalhar traba lhador Estamos constatando talvez uma obviedade nós somos nossas ações nós nos fazemos pela prática a não ser por gozação você chamaria trabalhador alguém que não trabalhasse essa obviedade que nos coloca frente a um complicadíssimo problema teórico Até aqui estávamos tratando a identidade como um dado1 a ser pesquisado como um produto preexistente a ser conhecido deixando de lado a questão fundamental de saber como se dà esse dado como se produz esse produto A resposta à pergunta quem sou eu é uma representação da identidade Então tomase necessário partir da representação como um produto para analisar o próprio processo de produção Uma questão complicada O que é identidade Já vimos que nos satisfazer com a concepção de que se trata da resposta dada à pergunta quem sou eu é pouco é insatisfatório Ela capta o aspecto representacional da noção de identidade enquanto produto mas deixa de lado seus aspectos constitutivo de produção bem como as implicações recíprocas destes dois aspectos Mesmo assim nosso ponto de partida poderá ser a própria representação considerandoa também como processo de produção de tal forma que a identidade passe a ser entendida como o próprio processo de identificação Dizer que a identidade de uma pessoa é um fenômeno social e não natural é aceitável pela grande maioria dos cientistas sociais Exatamente isso nos permitirá caminhar Com efeito se esta belecermos uma distinção entre o objeto de nossa representação e a sua representação veremos que ambos se apresentam como fenô menos sociais conseqüentemente como objetos sem características de permanência não sendo independentes um do outro Não podemos isolar de um lado todo um conjunto de elementos biológicos psicológicos sociais etc que podem caracterizar um indivíduo identificandoo e de outro lado a representação desse indivíduo como uma duplicação mental ou simbólica que expressaria a sua identidade Isso porque há como que uma interpenetração desses dois aspectos de tal forma que a individualidade dada já pressupõe um processo anterior de repre sentação que faz parte da constituição do indivíduo representado Por exemplo antes de nascer o nascituro já é representado como filho de alguém e essa representação prévia o constitui efetivamente objetivamente como filho membro de uma determinada famí lia posteriormente essa representação é assimilada pelo indivíduo íc tal forma que seu processo interno de representação é incor porado na sua objetividade social como filho daquela família AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 69 66 ANTONIO DA COSTA CIAMPA É verdade que não basta a representação prévia O nascituro uma vez nascido constituirseá como filho na medida em que as relações nas quais esteja envolvido concretamente confirmem essa representação através de comportamentos que reforcem sua conduta como filho e assim por diante Temos de considerar também esse aspecto operativo e não só o representacional Contudo é na medida em que é pressuposta a identificação da criança como filho fe dos adultos em questão como pais que os comportamentos vão ocorrer caracterizando a relação paterno filial Desta forma a identidade do filho se de um lado é conseqüência das relações que se dão de outro com anterioridade é uma condição dessas relações Ou seja é pressuposta uma identidade queé reposta a cada momento sob pena de esses objetos sociais filho pais família etc deixarem de existir objeti vamente ainda que possam sobreviver seus organismos físicos meros suportes que encarnam a objetividade do social Isto introduz uma complexidade que deve ser considerada aqui Uma vez que a identidade pressuposta é reposta ela é vista como dada e não como se dando num contínuo processo de identificação É como se uma vez identificada a pessoa a produção de sua identidade se esgotasse com o produto Na linguagem corrente dizemos eu sou filho dificilmente alguém dirá estou sendo filho Daí a expectativa generalizada de que alguém devè agir de acordo com o que é e conseqüentemente ser tratado como tal De certa forma reatualizamos através de rituais sociais uma iden tidade pressuposta que assim é reposta como algo já dado retirando em conseqüência o seu caráter de historicidade aproximandoa mais da noção de um mito que prescreve as condutas corretas reproduzindo o social O caráter temporal da identidade fica restrito a um momento originário quando nos tornamos algo por exemplo sou professor torneime professor e desde que essa identificação existe me é dada uma identidade de professor como uma posição assim como filho também Eu como ser social sou um serposto A posição de mim o eu serposto me identifica discri minandome como dotado de certos atributos que me dão uma identidade considerada formalmente como atemporal A reposiçâo da identidade deixa de ser vista como uma sucessão temporal AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 67 passando a ser vista como simples manifestação de um ser idêntico a simesmo na sua permanência e estabilidade A mesmice de mim é pressuposta como dada permanentemente e não como reposição de uma identidade que uma vez foi posta Vejamos um exemplo quando alguém é identificado como pai Podese responder que é quando nasce uma criança gerada por esse indivíduo esse fato contudo assim considerado ainda é um fato físico e ser pai é um fato social A paternidade tornase uni fenômeno social quando aquele evento físico é classificado como tal por ser considerado equivalente a outras paternidades prévias O pai se identifica e é identificado como tal por se encontrar na situação equivalente de outros pais t afinal ele também é filho de um pai Se ele é pai e a mesmice de si está assegurada sua identidade de pai está constituída permanen temente de fato ele se tornou pai e assim permanecerá enquanto reconhecer e for reconhecida essa identidade ou seja enquanto ela estiver sendo resposta cotidianamente Ora mas ao mesmo tempo ele também é filho esse outro que ele é é negado na sua posição como pai pois se ele permanecesse como filho a posição de seu filho estaria ameaçada já que a diferença não se estabeleceria Dessa forma cada posição minha me determina fazendo com que minha existência concreta seja a unidade da multiplicidade que se realiza pelo desenvolvimento dessas determinações Em cada momento de minha existência embora eu seja uma totalidade manifestase uma parte de mim como desdobramento das múltiplas determinações a que estou sujeito Quando estou írente a meu filho relacionome como pai com meu pai como filho e assim por diante Contudo meu filho não me vê apenas como pai nem meu pai apenas me vê como filho nem eu compareço frente aos outros apenas como portador de um único papel mas sim como o representante de mim com todas minhas determinações que me tornam um indivíduo concreto Desta forma estabelecese uma intrincada réde de representações que permeia todas as relações onde cada identidade reflete outra identidade desaparecendo qual quer possibilidade de se estabelecer um fundamento originário para cada uma delas Este jogo de reflexões múltiplas que estrutura as relações sociais é mantida pela atividade dos indivíduos de tal forma que é licito dizerse que as identidades no seu conjunto refletem a estrutura social ao mesmo tempo que reagem sobre ela conser vandoa ou a transformando 68 ANTONIO DA COSTA CIAMPA As atividades de indivíduos identificados são normatizadas tendo em vista manter a estrutura social vale dizer conservar as identidades produzidas paralisando o processo de identificação pela reposição de identidades pressupostas que um dia foram postas Assim a identidade que se constitui no produto de um permanente processo de identificação aparece como um dado e não como um darse constante que expressa o movimento do social Para prosseguirmos há necessidade de uma rápida digressão sobre o movimento do social ele é em última análise a História A História é a progressiva e contínua hominização do Homem a partir do momento que este diferenciandose do animal produz suas condições de existência produzindose a si mesmo conse qüentemente A História então como a entendemos é a história da autoprodução humana o que faz do Homem um ser de possibi lidades que compõem sua essência histórica Diferentes momentos históricos podem favorecer ou dificultar o desenvolvimento dessas possibilidades de humanização do Homem mas é certo que a continuidade desse desenvolvimento concretização constitui a substância do Homem o concreto que em si é possibilidade e pela contradição interna desenvolvese levando as diferenças a exis tirem para serem superadas aquela só deixará de existir se não mais existir nem História nem Humanidade Assim o Homem como espécie é dotado de uma substância quet embora não contida totalmente em cada indivíduo faz deste um participante dessa substância Qk que cada homem está enredado num determinado modo de apropriação da natureza no qual se configura o modo de suas relações com os demais homens Então eu como qualquer ser humano participo de uma substância humana que se realiza como história e como sociedade nunca como indivíduo isolado sempre como humanidade Nesse sentido embora não toda ela eu contenho uma infi nitude de humanidade o que me faz uma totalidade que se realiza materialmente de forma contingente ao tempo e ao espaço físicos e sociais de tal modo que cada instante de minha existência como indivíduo é um momento de minha concretização o que me torna parte daquela totalidade em que sou negado como totalidade sendo determinado como parte assim eu existo como negação de AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 9 mimmesmo ao mesmo tempo que o que estousendo sou eumesmo Em conseqüência sou o que estousendo uma parcela de minha humanidade isso me dá uma identidade que me nega naquilo que sou sem estarsendo a minha humanidade totai Essa identidade que surge como representação de meu estar sendo se converte num pressuposto de meu ser como totalidade o que formalmente transforma minha identidade concreta enten dida como um darse numa sucessão temporal em identidade abstrata num dado atemporal sempre presente entendida como identidade pressuposta reposta Isso ocorre porque compareço perante outrem como repre sentante de mimmesmo a partir dessa pressuposição de identidade que se encarna como uma parte de mimcomo totalidade Essa identidade pressuposta não é uma simples imagem mental de mimmesmot pois ela se configurou na relação com outrem que lanibém me identifica como idêntico a mimmesmo desse modo ao me objetificar e ser objetificado por outrem pelo caráter atemporal formalmente atribuído à minha identidade o que estou sendo como parte surge como encarnação da totalidade de mim seja para mim seja para outrem isso confunde o meu comparecimento frente a outrem em como representante de mim com a expressão da totalidade do meu ser de mim como representado Isto se dá porque cada comparecimento meu frente a outrem envolve representação num tríplice sentido 1 eu represento enquanto estou sendo o representante de mim com uma identidade pressuposta e dada fantasmagori camente como sempre idêntica 2 eu represento em conseqüência enquanto desempenho papéis decorrentes de minhas posições ocultando outras partes de mim não contidas na minha identidade pressuposta e reposta caso contrário eu nào sou o representante de mim 3 eu represento finalmente enquanto reponho no presente o que tenho sido enquanto reitero a apresentação de mim reapre sentado como o que estou sendo dado o caráter formalmente atemporal atribuído à minha identidade pressuposta que está sendo reposta encobrindo o verdadeiro caráter substancialmente temporal de minha identidade como uma sucessão do que estou sendo como devir Ao me representar no primeiro sentido representante de mim transformome num desigual de mim por representar no 70 ANTONIO DA COSTA CIAMPA segundo sentido desempenho de papéis um outro que sou eu mesmo o que estou sendo parcialmente como desdobramento de minhas múltiplas determinações e que me determina e por isso me nega impedindo que eu deixe de representar no terceiro sentido reapresentação para expressar o outro outro que também sou eu o que sou sem estar sendo que negaria a negação de mim indicada pelo representar no sentido antenor o segundo Ora essa expressão do outro outro que também sou eu consiste na alterizaçào da minha identidade na supressão de minha identidade pressuposta e no desenvolvimento de uma identidade posta como metamorfose constante em que toda huma nidade contida em mim pudesse se concretizar pela negação não representar no terceiro sentido do que me nega representar no segundo sentido de forma que eu possa como possibilidade e tendência representarme no primeiro sentido sempre como diferente de mim mesmo a fim de estar sendo mais plenamente Ou seja só posso comparecer no mundo frente a outrem efetivamente como representante do meu ser real quando ocorrer a negação da negação entendida como deixar de presentificar uma apresentação de mim que íoi cristalizada em momentos anteriores deixar de repor uma identidade pressuposta ser movimento ser processo ou para utilizar uma palavra mais sugestiva se bem que polêmica ser metamorfose Nem aitfo nem besta apenas homem A análise teórica feita até aqui inverte totalmente a noção tradicional que se tem de identidade ou seja o que é ê um ser é idêntico a ele mesmo isso decorreria da necessidade para o ser de ser o que é Mas o que quer dizer o ser ser o que é Vejamos um exemplo clássico uma semente já contém em si uma pequena plantinha a planta plenamente desenvolvida e seus frutos de onde sairão novas sementes Então ser semente é ser semente mas não só a mesma semente como também a plantinha a planta desenvolvida o fruto e a nova semente uma multiplicidade que naturalmente já está contida na semente e que se concretiza pela transformação em fruto ou seja pelo fazerse outro para então retornar a si mesmo outro outro São distintos momentos cuja AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 71 unidade constitui o concreto uma unidade múltipla como vimos e também contraditória pois a semente não permanece como se mente para ser o que é ela precisa ser negada morrer uma semente que permanecesse indefinidamente semente não seria semente Não germinaria não seria negada ela precisa deixar de ser semente para ser plenamente semente Então r o ser ser o que é implica o seu desenvolvimento concreto a superação dialética da contradição que opõe Dm e Outro fazendo devir um outro outro que é o Um que contém ambos E para o Homem o que é para o ser humano ser o que é Voltemos a uma afirmação feita anteriormente sobre o movi mento do social o qual constitui a História ela é a progressiva e contínua hominizaçâo do Homem a partir do momento em que este diferenciandose do animal produz suas condições de exis tência produzindose a si mesmo conseqüentemente Assim o existir humanamente não está garantido de antemão nem é uma mudança que se dá naturalmente mecanicamente exatamente porque o homem é histórico E afinal a História nem é um Deus que conduz os homens a seus desígnios secretos nem é um processo com um fim último isto seria reduzir o homem à c o n d iç ã o de coisa desconhecer a infinitude humana conceber os homens como seres que chegarão a realizar sua plenitude e nada mais pudessem viraser depois de um momento dado seria considerar que tudo o que foram são serâo e podem ser se esgotasse num absoluto que negasse a dialética do fenômeno humano é verdade que um fato ocorrido é irrecorrível definitivamente mas seus desdobramentos assím como seus significados são imprevisíveis e suas transformações infindáveis o que não significa que certas alternativas não possam ser impossíveis Uma alternativa impossível é o homem deixar de ser social e histórico ele não seria homem absolutamente Outra impossibili dade é deixar de ser também um animal conseqüentemente subme tido às condições dessa sua natureza orgânica tal como a planta à sua natureza vegetal Contudo e por isso foi grifada a palavra também não pode ser só animal dada sua natureza social e histórica Então nem anjo nem besta o homem é homem não como uma afirmação tautológica mas como uma afirmação da mate rialidade da contínua e progressiva hominizaçâo do homem De um lado portanto o homem não está limitado no seu viraser por um fim preestabelecido como a semente de outro 72 ANTONIO DA COSTA CÎAMPA não está liberado das condições históricas em que vive de modo que seu viraser fosse uma indeterminação absoluta A primeira constatação acima de que o viraser do homem não pode se confundir com o de uma semente deve servir para questionar toda e qualquer concepção fatalista mecamcista de um destino inexorável seja nas suas formas mais supersticiosas sou pobre porque Deus quer nasceu para ser criminoso etc seja çm formas mais sofisticadas de teorias pseudocientíficas por exemplo em certas versões de teorias de personalidade A segunda constatação de que o homem não está liberado de suas condições históricas nos coloca um problema e uma tarefa O problema consiste em que não é possível dissociar o estudo da identidade do indivíduo do da sociedade As possibilidades de diferentes configurações de identidade estão relacionadas com as diferentes configurações da ordem social Foge às finalidades e aos limites deste artigo analisar sob quais condições vivemos hoje em nossa sociedade brasileira e conseqüentemente como considerar as alternativas de identidade possíveis aqui e agora Fique claro contudo que uma análise geral como a que está sendo feita precisa ser traduzida para uma análise das circunstâncias concretas e específicas atuais é do contexto histórico e social em que o homem vive que decorrem suas determinações e conseqüentemente emer gem as possibilidades ou impossibilidades os modos e as alterna tivas de identidade O fato de vivermos sob o capitalismo e a complexidade crescente da sociedade moderna impedemnos de ser verdadeiramente sujeitos A tendência geral do capitalismo é constituir o homem como mero suporte do capitai que o determina negandoo enquanto homem já que se torna algo coisificado tornase trabalhadormercadoria e não trabalha autonomamente tomase capitalistapfopriedade do capital e não proprietário das coisas Recorrendo a uma metáfora já utilizada anteriormente o homem deixa de ser verbo para ser substantivo Esta constatação deve ser entendida como indicação de fato que resulta histori camente ligado a um determinado modo de produção e não como algo inerente à natureza humana Genericamente falando a questão da identidade se coloca de maneira diferente em diferentes sociedades précapitalistas capitalistas póscapitalistas etc há especificidades inclusive dentro de um mesmo modo de produção ligadas à ordem simbólica de cada sociedade há quase sempre a sobrevivência de formas arcaicas de identidade etc etc AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 73 Este problema assim formulado sugere um amplo programa dt pesquisas empíricas que certamente mostrariam como pano de fundo o verdadeiro problema de identidade do homem moderno a tllo entre o indivíduo e a sociedade que faz com que cada indivíduo não reconheça o outro como ser humano e conseqüen temente não se reconheça a si próprio como humano Isto está ftliim expresso num verso magistral de Mário de Andrade quando ala de São Paulo Ninguém chega a ser um nesta cidade11 Chegar a ser um ou o que é o mesmo ier uma metamorfose ambulante Se o problema que consideramos está na relação indivíduo e fticedade que tarefa daí decorre A realização de um projeto político A questão da identidade nos remete necessariamente a um projeto político Tentando explicar chegamos até aqui partindo da pergunta o que é para o ser humano ser o que ét1 buscamos uma resposta considerando sua natureza social e histórica expressa pela contí nua e progressiva hominização do homem1 Com isso procuramos esclarecer que o homem em si humanizável humanizase por si este o devir humano Desta forma o futuro se coloca como contínua e progressiva realização da humanidade porém como não é possível aprioris tieamente esgotar a definição do conteúdo de ser humano esta infindável tarefa se nos impõe de maneira inescapável Não se trata evidentemente de conceitos abstratos e definitivos que considerem o homem como pura consciência só como subjetividade este o risco idealista nem também de reduzilo à simples condição de coisa só como objetividade esta a armadilha materíalistamecanicista Tratase de considerar a superação dialética desse dualismo pela prâxis Tratase de não contemplar inerte e quieto a história Mas de se engajar em projetos de coexistência humana que possibilitem um sentido da história como realização de um porvir a ser feito com os outros Projetos que não se definam aprioristicamente por um modelo de sociedade e de homem que todos deveriam sofrer totali lariamente e identicamente mas projetos que possam tender 74 ANTONIO DA COSTA CIAMPA convergir ou concorrer para a transformação real de nossas condições de existência de modo que o verdadeiro sujeito humano venha à existência Qualquer tendência convergência ou concor rência que se arvore em Verdade em ação em expressão definitiva e acabada de um único projeto de transformação absolutizase tornandose antidialética antihistórica antihumana A formulação de tal política de uma política de identidade do Homem da nossa sociedade a realização de tais projetos para ser coerente com seus propósitos há de ser feita coletivamente e de forma democrática entendida aqui como forma racional A questão se coloca como uma questão prática e como tal deve ser enfrentada conscientemente por nós cada um de nós todos nós Acredito que além de outros dois fatores podem impedir esse engajamento consciente num projeto político O primeiro é ter uma atitude de um lado intelectual frente à questão da relação indivíduo e sociedade semelhante àquela que nos leva a discutir quem nasceu primeiro o ovo ou a galinha o que prevalece primeiro a sociedade ou primeiro o indivíduo De outro lado uma atitude prática semelhante à do asno indeciso entre deis montes de feno permanecendo no imobilismo o que atacar primeiro o indivíduo ou a sociedade O segundo fator é uma concepção de identidade como perma nência como estabilidade mais que uma simples concepção abstrata é vivermos privilegiando a permanência e a estabilidade e patologizando a crise e a contradição a mudança e a transfor mação Assim como que estancamos o movimento escamoteamos a contradição impedimos a superação dialética Identidade é movimento ê desenvolvimento do concreto Identidade é metamorfose É sermos o Um e uni Outro para que cheguemos a ser Um numa infindável transformação Bibliografia Fausto R Marx Lógica ePolítica São Paulo Brasiliense 1983 Giannotti T AT Trabalho e Reflexão Sâo Paulo Brasiliense 1983 Habermas J Pam a Reconstrução do Materialismo Histórico São Paulo Brasiliense 1983 Heller A A Filosofia Radical Sâo Paulo Brasiliense 1983 AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 75 i O Quotidiano e a História Rio de Janeiro Paz e Terra 1972 Dentro de uma preocupação mais empírica que filosófica podem ser mencionados especificamente Berger P e Luckmann T Construção Social da Realidade Petrópoüs Vozes 1973 Erikson E Identidade Juventudee Crise 2 ed Rio de Janeiro Zahar 1976 Goffman E A Representação do Eu rta Vida Cotidiana t Petrópolis Vozes 1975 Sarbin T R e Scheibe K E eds Studies in Social Identity Nova Iorque Praeger Publishers 1983 Parte 3 O indivíduo e as instituições O processo grupai Silvia Tatiana Maurer Lane Este trabalho é o resultado de cursos de pósgraduação onde alunos e professor se propuseram rever a noção de pequenos grupos em função de uma redefinição da Psicologia Social onde o grupo não é mais considerado como dicotômico em relação ao indivíduo Indivíduo sozinho X Indivíduo em grupo mas sim como condição necessária para conhecer as determinações sociais que agem sobre o indivíduo bem como a sua ação como sujeito histórico partindo do pressuposto que toda açâo transformadora da sociedade só pode ocorrer quando indivíduos se agrupam Assim o nosso objetivo foi dar início a uma forma sistemática de refletir teoricamente sobre processos grupais alternando obser vações e teorizações na tentativa de definir algumas premissas básicas para o conhecimento concreto de pequenos grupos sociais Tradicionalmente os estudos sobre pequenos grupos estão vinculados à teoria de K Lewin que os analisa em termos de espaço topológico e de sistema de forças procurando captar a dinâmica que ocorre quando pessoas estabelecem uma interdependência seja em relação a uma tarefa proposta sóciogrupo seja em relação aos próprios membros em termos de atração afeição etc psico grupo Este capltuío é uma revisío e ampliação do aftígo Uma Análise Dialética do Processo Grupai por S T M Lane et atii publicado em Cacfemos PUC Psicologia n 11 Educ Corte Editora 1981 O INDIVÍDUO e a s INSTITUIÇÕES 79 É nesta tradição que conceitos como de coesão liderança pressão de grupo foram sendo desenvolvidos em base de observações e experimentos Temse assim descrições de processos grupais que permitem apenas a reprodução através da aprendizagem de grupos produtivos para o sistema social mais amplo Pudemos observar que os estudos sobre pequenos grupos nesta abordagem tem implícitos valores que visam reproduzir os de individualismo de harmonia e de manutenção A função do grupo é definir papéis e conseqüentemente a identidade social dos indiví duos é garantir a sua produtividade social O grupo coeso estruturado é um grupo ideal acabado como se os indivíduos envolvidos estacionassem e os processos de interação pudessem se tornar circulares Em outras palavras o grupo é visto como ahistórico numa sociedade também ahistórica A única perspectiva histórica se refere no máximo à história da aprendizagem de cada indivíduo com os outros que constituem o grupo 0 De uma outra perspectiva encontramos alguns autores que procuram analisar processos grupais na sua inserção social e institucional como ê o caso de Horkheimer e Adorno que vêem o niicrogrupo como a mediação necessária entre o indivíduo e a socie dade e cuja estrutura assume formas historicamente variáveis Loureau propõe uma análise das instituições através das relações grupais que nelas ocorrem caracterizando os grupos em termos de grupoobjeto onde a segmentaridade se dá de forma a manter os indivíduos justapostos sob uma capa de coerência absoluta é o que o autor denomina de grupo tipo bando ou seita Um outro grupoobjeto seria aquele onde os indivíduos se justapõem para a realização de um trabalho e onde a divisão de trabalho determina hierarquias de poder É através da análise da transversalidade que se toma possível o conhecimento da segmentaridade do grupo e da sua autonomia bem como de seus limites condição para um grupo se tornar gruposujeito isto é aquele que percebe a mediação institucional objetiva e conscientemente Também Lapassade analisa grupos quanto a sua dinâmica e seu nível de vida oculto que seria o nível institucional o qual irá determinar as características do grupo se processando numa contradição permanente entre serialização e total ização Retoma Sartre para caracterizar a serialidade como sendo a própria negação do grupo onde apesar de haver um objetivo comum a relação entre os membros não passa de uma somatória ou seja eles formam 80 SILVIA T M LANE uma série tipo primeiro segundo terceiro etc Somente quando os membros se organizam é que podemos falar em grupo que define controla e corrige a práxis comum Lapassade descreve ainda o que seria o grupoterror no qual há a figura de poder que determina as obrigações e a manutenção do status quo A este grupo se oporia o grupovivo que se caracteriza por relações de igualdade entre seus membros e pela autogestão Ainda dentro de uma proposta dialética teríamos a teoria de PichonRivière para quem grupo é um conjunto restrito de pessoas ligadas entre si por constantes de tempo e espaço articuladas por sua mútua representação interna que se propõe de forma explicita ou implícita uma tarefa a qual constitui sua finalidade interatuando através de complexos mecanismos de atribuição e assunção de papéis Este autor destínvolve uma técnica operativa para instru mentar a ação grupai visando a resolução das dificuldades internas dos sujeitos que provém de ansiedades geradas pelo medo da perda do equilíbrio alcançado anteriormente e do ataque de uma situação nova desconhecida medos estes que criam uma resistência à mudança dificultando os processos de comunicação e aprendi zagem Desta forma sua técnica visa uma análise sistemática das contradições que emergem no grupo através da compreensão das ideologias inconscientes que geram a contradição eou estereótipos no processo da produção grupai Para tanto o grupo parte da análise de situações cotidianas para chegar à compreensão das pautas sociais internalizadas que organizam as formas concretas de interação ou seja das relações sociais e dos sujeitos inseridos nessas relações Por último podemos citar o Grupo Operativo analisado por J F Calderôn e G C C De Govia para os quais um grupo é uma relação significativa entre duas ou mais pessoas que se processa através de ações encadeadas Esta interação ocorre em função de necessidades materiais eou psicossociais e visa a produção de suas satisfações A produção do grupo se realiza em função de metas que são distintas de metas individuais e que implicam necessariamente cooperação entre os membros Os autores fazem uma tipologia dos grupos em função de estágios alcançados por eles considerando que os grupos estão em constante transformação na medida em que produzem meios para satisfação de suas necessidades Neste processo o primeiro estágio seria o de grupo aglutinado no qual há um líder que propõe ações O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES conjuntas c do qual os membros esperam soluções é um grupo de baixa produtividade Num segundo momento temos o grupo possessivo onde o líder se torna um coordenador de funções e onde as tarefas exigem a participação de todos levando a maior interação e conhecimentos mútuos Na terceira fase temos o grupo coesivo onde há uma aceitação mútua dos membros o líder se mantém como coorde nador e a ênfase do grupo está na manutenção da segurança conse guida vista como um privilégio É um grupo que tende a se fechar evitando a entrada de novos elementos Por fim temos o grupo independente com a liderança amplamente distribuída pois o grupo já acumulou experiências e aprendizagens os recursos materiais aumentam e as metas funda mentais vão sendo alcançadas surgindo novas metas que visam o desenvolvimento pleno dos membros e das pessoas que se reiaciO nam com o grupo Ê um grupo onde as relações de dominação são minimizadas e a coordenação das atividades tende para a auto gestão Os autores observam que não há tipos puros de grupos pois estes estão sempre se processando diaíeticamente uma etapa englobando aspectos da etapa anterior Podemos perceber por esta revisão de teorias sobre o grupo uma postura tradicional onde sua função seria apenas a de definir papéis ef conseqüentemente a identidade social dos indivíduos e de garantir a sua produtividade pela harmonia e manutenção das relações apreendidas na convivência Por outro lado temos teorias que enfatizam o caráter mediatório do grupo entre indivíduos e a sociedade enfatizando o processo pelo qual o grupo se produz são abordagens que consideram as determinantes sociais mais amplas necessariamente presentes nas relações grupais Essa revisão crítica permitiu levantarmos algumas premissas para conhecer o grupo ou seja 1 o significado da existência e da ação grupai só pode ser encontrado dentro de uma perspectiva histórica que considere a sua inserção na sociedade com suas determinações econômicas institucionais e ideológicas 2 o próprio grupo só poderá ser conhecido enquanto um processo histórico e neste sentido talvez fosse mais correto falarmos em processo grupai em vez de grupo Destas premissas decorre que todo e qualquer grupo exerce uma função histórica de manter ou transformar as relações sociais 13 SILVIA T M LANE desenvolvidas em decorrência das relações de produçào e sob este aspecto o grupo tanto na sua forma de organização como nas suas ações reproduz ideologia que sem um enfoque histórico nào é captada De fato o estudo fracionado de pequenos grupos tem endossado os aspectos ideológicos inerentes ao grupo como naturais e universais reproduzindo assim ideologia com roupagem ciemí fica A seqüência do trabalho se caracterizou pela discussão de como uma análise dialética poderia captar o grupo enquanto processo e inserido numa totalidade maior levar ao conhecimento dos aspectos concretos desse fato social Num artigo anterior Lane aponta para a tradição biológica da psicologia como um dos maiores entraves para o estudo do comportamento social dos indivíduos o que não significa a negação do biológico mas da concepção que decorre desta tradição onde o ser humano é visto como possuidor de uma existência abstrata única isolada de tudo e de todos Mesmo antes do nascimento o homem desenvolvese biologicamente numa relação direta com seu meio ambiente o que significa que o tornarse homem esta intimamente ligado com um ambiente que não pode ser visto como natural mas como um ambiente construído pelo homem Assim a relação homemmeio implica a construção recíproca do homem e do seu meio ou seja o ser humano deve ser visto como produto de sua relação com o ambiente e o ambiente como produto humano sendo então basicamente social O ambiente visto como produto humano se desenvolve a partir da necessidade de sobrevivência que implica o trabalho e a conseqüente transformação da natureza a satisfação destas neces sidades gera outras necessidades que vão tornando as relações de produçào gradativamente mais complexas O desenvolvimento da sociedade humana se dá a partir do trabalho vivo que produz bens e a conseqüente acumulação de bens capital e a necessidade do trabalho assalariado em última análise a formação de ciasses sociais Logo as relações de produçào geram a estrutura da sociedade inclusive as determinações sócioculturais que fazem a mediação entre o homem e o ambiente Uma abordagem psicológica do ser humano teria de enfatizar necessariamente para uma compreensão completa do homem uma macro e microanálise em que a primeira abrangeria todo o contexto social estrutura relações etc e a segunda se direcionaria para o homem formado por este contexto e portanto agindo percebendo pensando e falando segundo as determinações desse contexto que atuando como mediações foram internalizadas pelo ser humano O indivíduo na sua relação com o ambiente social interioriza o mundo como realidade concreta subjetiva na medida em que é pertinente ao indivíduo em questão e que por sua vez se exterioriza em seus comportamentos Esta interiorizaçãoexteriorização obe dece a uma dialética em que a percepção do mundo se faz de acordo com o que já foi interiorizado e a exteriorização do sujeito no mundo se faz conforme sua percepção das coisas existentes Assim a capacidade de resposta do homem decorre de sua adaptação ao meio no qual ele se insere sendo que as atividades tendem a se repetir quando os resultados são positivos para o indivíduo fazendo com que estas atividades se tornem habituais Todos os processos de formação de hábitos antecedem a insti tucionalização dos membros esta ocorrendo sempre quando as atividades tornadas hábitos se amoldam em tipos de ações que são executadas por determinados indivíduos Assim a instituição pres supõe que por exemplo o dirigente e o funcionário ajam de acordo com as normas estabelecidas e assim por diante É importante notar que essas tipificações são elaboradas no curso da história da instituição daí só se poder compreender qualquer instituição se aprendermos o processo histórico no qual ela foi produzida Também é importante ressaltar o fato de que quanto mais solidificados e definidos forem esses padrões mais eficiente se torna o controle da sociedade sobre os indivíduos que desempenham esses papéis O estabelecimento de papéis a serem desempenhados leva à sua cristalização como por exemplo o papei da mulher enquanto formas de ser e agir Essa cristalização faz com que os papéis sejam vistos como tendo uma realidade própria exterior aos indivíduos que têm de se submeter a eles incorporandoos Esta incorporação dos papéis pelos indivíduos realizasse sob a forma de crenças e valores que mantêm a diferenciação social visto estar fundamen tada na distribuição social do conhecimento e na divisão social do trabalho Desta forma o mundo social e institucional é visto como uma realidade objetiva concreta esquecendose que essa objetividade é produzida e construída pelo próprio homein O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES M B4 SILVIA T M LANE Cabe à Psicologia apreender como se dá esta internalização da realidade concreta e como ela faz a mediação na determinação dos comportamentos do indivíduo O ponto inicial do processo se dá a partir do nascimento do homem sem condições físicas que permitam a sua sobrevivência isoladamente o que exige uma disponibilidade para a sociabilidade para tornarse membro de uma sociedade A introdução do homem na sociedade é realizada pela socialização inicialmente a primária e posteriormente a secundária Na nossa sociedade a socialização primária ocorre dentro da família e os aspectos internalizados serão aqueles decorrentes da inserção da família numa classe social através da percepção que seus pais possuem do mundo e do próprio caráter institucional da família A socialização secundária decorre da própria complexidade existente nas relações de produção levando o indivíduo a inter nalizar as funções mais específicas das instituições as subdivisões do mundo concreto e as representações ideológicas da sociedade de forma a incorporar uma visão de mundo que o mantenha ajus tado e conseqüentemente alienado das determinações concretas que definem suas relações sociais Podemos então verificar que toda análise que se fizer do indivíduo terá de se remeter ao grupo a que ele pertence à classe social enfocando a relação dialética homemsociedade atentando para os diversos momentos dessa relação A seguir foram propostas algumas sugestões para a análise do indivíduo inserido num processo grupai a partir do materialismo dialético Em primeiro lugar devemos partir da idéia de que o homem com quem estamos lidando é fundamentalmente o homem alienado embora essa alienação possa assumir formas e graus diferentes Nesse sentido suas representações e sua consciência de si e do outro são sempre num primeiro momento fundamentalmente desencon tradas das determinações concretas que as produzem Há sempre dois níveis operando o da vivência subjetiva marcado pela ideo logia onde cada um se representa como indivíduo livre capaz de se autodeterminar consciente de sua própria ação e representação e a da realidade objetiva onde as ações e interações estão sempre comprimidas e amalgamadas por papéis sociais que restringem essas interações ao nível do permitido e do desejado em função da O INDIVÍDUO E AS INSTITUÍÇÕES S manutenção do s tatus quo O nível da vivência subjetiva reproduz a ideologia do capitalismo o individualismo o selfmademan o nível da realidade objetiva reproduz o cerne do sistema ou seja a relação dominadordominado exploradorexplorado Naffah mos trou num trabalho recente como num sistema capitalista os papéis sociais sempre reproduzem a dinâmica básica dos papéis históricos ou seja a relação dominadordominado Qualquer análise de um processo grupai que se apóie no materialismo dialé tico tem de partir necessariamente desses dois níveis de análise A emergência da consciência histórica portanto de uma ação social comoprâxis transformadora significaria o nível das determinações concretas rompendo as representações ideológicas e se fazendo consciência momento em que a dualidade desapareceria Em segundo lugar todo grupo ou agrupamento existe sempre dentro de instituições que vão desde a família a fábrica a uni versidade até o próprio Estado Nesse sentido é fundamental a análise do tipo de inserção do grupo no interior da instituição se foi um grupo criado pela instituição com que funções e finalidades o foi se surgiu espontaneamente que condições presidiram seu surgimento se foi no sentido de manutenção ou de contestação dessa mesma estrutura institucional etc Por outro lado dado o estado geral da alienação toda tarefa que o grupo se propõe deve apresentar pelo menos de início um estado maior ou menor de alienação isso posto cumpre observar como a realização dessa tarefa opera nos dois níveis de análise o da vivência subjetiva e o das determinações concretas do processo grupai Em terceiro lugar a história de vida de cada membro do grupo também tem importância fundamental no desenrolar do processo grupai Para fins de observação e análise entretanto poderseia dizer que a história de cada um achase condensada no grupo pelo sistema de papéis que ele assume e desempenha no decorrer do processo Ou seja a história de cada um presentificase pelas formas concretas através das quais ele age se coloca se posiciona se aliena se perde ou se recupera ao longo do processo Isso não exclui entretanto a necessidade de uma pesquisa mais sistemática da história de cada um quando isso se fizer necessário Em quarto lugar tomandose os dois níveis de análise o da vivência subjetiva e o das determinações concretas do processa grupai é sempre ancorada no segundo nível que qualquer dialética poderá se desenvolver Isso não quer dizer entretanto que esses dois níveis não se codeterminem e não se engendrem reciprocamente 66 SILVIA T M LANE ao longo do processo Quer dizer simplesmente que é ao nível do desempenho dos papéis que se reproduz a relação dominador dominado a Zuta pelo poder e que é portanto nesse níveJ que podem emergir os processos de oposição negação contradição e negação da negação que constituem qualquer processo dialético Ê também fundamental o desenrolar das vivências subjetivas e das representações ideológicas do grupoT primeiramente porque vão refletir o grau com que se mascaram as determinações concretas ou se deixam emergir como consciência prática De forma geral diríamos que as contradições fundamentais se dão no nível da ação e da interação grupai onde o exercício da dominação tenderia a gerar contradição e negação da própria dominação através dos papéis Ora é a dominação e o seu exercício que sustentam a representação ideológica do individualismo na medida em que o indivíduo só pode ser livre e autônomo pela negação de outro indivíduo quer dizer pela negação na interdependência entre si mesmo e o outro Neste sentido as contradições emergentes nesse nível tendem a produzir outra contradição agora entre o nível das determinações concretas e o da vivência subjetiva Dessa segunda contradição que chamaríamos de periférica poderia nascer ou não um tipo de consciência prática capaz de engendrar qualquer prâxis grupai A emergência dessa consciência pode entretanto ser dificultada por rearranjos ou reorganizações do sistema de representações ideoló gicas presente no grupo através dos próprios membros ou da instituição à qual o grupo pertence uni chefe por exemplo pode veicular a ideologia da instituição no grupo Em grupos mais sofisticados podemos ter esse nível ideológico impedindo o desen rolar das contradições até mesmo no nível das determinações concretas controlando o desempenho dos papéis até um ponto X onde ele não ameace a ordem instituída aí aparece por exemplo a ideologia da integração grupai da coesão etc E por último quanto aos papéis sociais eles aparecem enquanto interação efetiva no nível das determinações concretas onde reproduzem a estrutura relacional característica do sistema relação dominadordominado entretanto eles também existem no nível das vivências subjetivas enquanto representação ideológica Assim por exemplo o papel de líder pode no nível das determinações concretas exercer uma açào de dominação e ser vivido no nível das representações ideológicas como mero coor denador que só quer o bem do grupo e preservar a liberdade de todos Nesse nível os papéis funcionam como máscaras no outro O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 87 nível o da ação como elementos de denúncia e motores da dialé tica Estas reflexões teóricas foram se processando simultanea mente com observações de grupos em situações naturais e numa primeira etapa permitiram precisar dois aspectos primordiais ou seja como se caracteriza a participação dos membros do grupo e que seria a produção ou produto de grupo Quanto ao aspecto de participação no grupo as observações feitas sugeriram de início que este poderia se caracterizar em termos de oposição eou conflitos porém observações subseqüentes em outras condições indicavam que a participação ocorria na forma de acréscimos ou contribuições dentro de um processo de comportamentos encadeados Às observações também permitiram analisar o significado de comportamentos paralelos como comentá rios entre duas pessoas que mesmo se relacionados cotn o tema em discussão só poderiam ser entendidos como participação no nomento em que fossem compartilhados por todos os membros do grupo ou seja em nada resultaria alguém ter uma idéia genial se esta não fosse transmitida a todos neste sentido por mais 1participante que cada indivíduo se sentisse isto não teria significado para o processo grupai apenas a ação efetiva compar tilhada com os outros é que poderia ser caracterizada como participação Outro aspecto constatado foi que o significado das partici pações individuais na maioria das vezes não era dado pela situação em si mas exigia mais informações a respeito da inserção de cada um quanto às suas relações sociais no contexto mais amplo instituição dentro do qual o grupo se processa Caso contrário tínhamos apenas um relato mecânico e vazio de comportamentos em seqüência Quando obtidas estas informações ficava clara a relação entre a instituição e os papéis desempenhados no grupo que num primeiro momento foram vistos como características peculiares de cada um de atuar no grupo As observações permitiram uma análise de participação em termos de assumir papéis e em que medida estes são preexis tentes ao grupo e definidos institucionalmente com a função implícita de reproduzirelações sociais e como tal mascarar as contradições decorrentes de relações de dominação existentes em papéis ditos complementares Na medida em que os papéis são desempenhados como naturais os indivíduos têm pouca cons ciência de sua participação no grupo as coisas acontecem como 88 SILVIA TM LANE devem ser senão é porque alguém não cumpriu com o seu papel E podese então observar a cristalização de papéis que significa evitar qualquer comportamento novo que possa levar a um questionamento do grupo e sua possível desestruturação o objetivo é sempre o de evitar conflitos Neste sentido poderseia dizer que a participação se torna circular e o grupo se caracterizou pela preseiração da alienação de seus membros Quando em um grupo observado os membros fizeram uma análise das determinações institucionais que permeavam as relações entre eles observouse a emergência de um sentido de nós o grupo Neste momento questionaram a presença de obser vadores de fora e impediram a divulgação das observações daquele grupo procurando assim a preservação do grupo enquanto tal A participação que se desenvolveu entre os membros nessa ocasião sugeriu um processo em espiral onde as contradições acabariam por se aclarar levando o grupo a uma transformação qualitativa na participação e na produção grupai Infelizmente a autopreservação do grupo impediu acompanhar o processo e constatar as decorrências desta análise feita pelo grupo Em termos teóricos parece ser necessário que o assumir papéis seja questionado pelo grupo e sua negação só ocorrerá na medida em que os indivíduos tomem consciência das determinações históricas inerentes aos papéis e aos indivíduos que estão presentes nas participações de cada um no processp grupai Como conse qüência desta análise foi feita uma crítica às técnicas de treina mento de grupo em que se enfatizam a troca de papéis a liderança funcional como formas alternativas de impedir a emergência de contradições e manter o grupo na sua função ideológica de repro dutor de relações sociais Os grupos observados não permitiram dado o tempo restrito em que foram acompanhados precisar como aconteceria este processo em espiral ficando para ser melhor explicitada a questão de como a contradição emerge se a nível de um ou de vários indivíduos e de como se daria a superação da contradição quando os mecanismos institucionais exemplo troca de papéis que pro curam impedir a emergência de contradições também são negados e o grupo se torna consciente de suas determinações históricas Estreitamente vinculada à discussão da participação grupai se deu a análise da produção do grupo que separamos para atender a uma forma didática de exposição mas que de fato não pode ser o i n d i v í d u o e a s INSTITUIÇÕES 89 vista separadamente pois toda a participação se dá dentro de um processo de produção grupai A partir das observações iniciais constatouse que a produção do grupo não poderia ser identificada necessariamente com a tarefa nem com os objetivos do grupo A produção seria a própria ação grupai que se dá pela participação de todos seja em tomo de uma tarefa seja visando um objetivo comum Seria processo de produção o grupo se organizar assumir papéis realizar tarefas em outras palavras seria se produzir como grupo ou seja a práxis grupai como afirma Sartre a materialidade que estabelece as relações entre os homens Nas relações entre os indivíduos pela participação entre eles estes se transformam e transformam o grupo produzindo o próprio grupo Assim a produção grupai se daria num processo em espiral parte deste processo já tem sido estudado pelas teorias de dinâmica de grupo quando caracterizam a individualização no assumir papéis qfiando analisam o grupo como necessário para definir a identidade social de cada um Porém via de regra elas param neste ponto quando muito reconhecem na cristalização de papéis uma certa estagnação propondo então formas alternativas de participação troca de papéis liderança funcional etc como soluções para garantir o bom funcionamento do grupo ou seja garantir a circularidade na participação como já vimos anteriormente Se na análise do processo de produção aplicarmos a lei da negação vemos que as teorias tradicionais sobre grupo permanecem na primeira negação ou seja o grupo como negação da condição de espécie biológica do homem que os mantém semelhantes permi tindo a concretização de individualidades de diferenciações entre elas diferenciações que se cristalizam em papéis que definem as relações sociais a serem mantidas No momento em que isto se dá cessaria o processo de produção Teríamos a rotina a institu cionalização do grupo segundo Sartre Porém esta é uma condição que nossas observações do cotidiano mostram que não se perpetua o grupo entra em crise se desestrutura A questãoue se colocou foi Como o grupo superaria esta situação O que seria neste caso a negação da negação necessária para a produção grupai O que significa no processo grupai uma negação da individualidade que a supere sem retomar ao primeiro elemento negado E aqui a análise da participação permite precisar a segunda negação quando através da constatação da função ideológica e mascaradora dos papéis assumidos dentro de um 90 SILVIAT M LANE contexto histórico que leva os indivíduos a se desalienarem ou seja se perceberem enquanto membros da sociedade semelhantes nas suas determinações históricas a abrirem mão desta individualidade institucionalizada para efetivamente assumirem uma identidade grupai e conseqüentemente uma ação grupai Ê somente neste momento que os indivíduos no grupo poderiam ter uma ação social transformadora dentro da sociedade em que vivem Esta elaboração teórica inicial indica que o estudo de pe quenos grupos se torna necessário para entendermos a relação indivíduosociedade pois é o grupo condição para que o homem supere a sua natureza biológica e também condição para que ele supere a sua natureza individualista se tornando um agente consciente na produção da história social Muitos estudos e pesquisas são necessários para que este processo seja conhecido concretamente esperamos ter aberto um caminho Numa segunda etapa onde novos grupos foram observados em todas suas reuniões pudemos precisar melhor as formas de participação e o processo de produção grupai Diante dos relatos de observações dos diversos grupos em todos os seus encontros pudemos analisar alguns aspectos funda mentais do processo grupai ou seja as relações de dominação as lutas pelo poder as determinações institucionais de papéis e mais no confronto com propostas teóricas fazer uma análise crítica do conhecimento que se tem elaborado sobre grupos A partir de alguns fatos que ocorreram em um grupo ope rativo levantamos a hipótese de que a antiguidade de um membro no grupo lhe atribui poder e direitos sobre os demais poder este que é ideologizado em termos de experiência sabedoria títulos e mesmo dedicação seriedade etc Analisando os demais grupos a hipótese parece se confirmar quando num grupo de trabalho em periferia a coordenação ê assumida por um membro mais experiente sem qualquer questionamento pelos demais pelo contrário o grupo sequer inicia uma reunião sem a presença deste coordenador mesmo quando poderiam tomar decisões sem a sua contribuição Num grupo que constituía a diretoria de um sindicato a an ti guidade se apresenta na forma de idade e experiência profissional atribuindo poder ao presidente e ao 2 secretário Aqui percebemos claramente a determinação institucional no sentido de que for O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 91 malmente é exigida uma chapa com cargos e funções definidos Apesar de o grupo ter assumido a diretoria com o propósito de um trabalho em equipe onde todos seriam iguais enquanto poder de decisão e hierarquia prevalece quando em situações de desacordo ou conflito entre os dois mais antigos o grupo apóia e acompanha àquele que ocupa o cargo mais elevado ou seja a submissão atribui poder de dominação a um membro Numa diretoria de entidade estudantil também vimos a anti guidade presente porém escamoteada por diferentes propostas eou posturas políticas não explicitadas Neste grupo a luta pelo poder se apresenta claramente mas agora entre velho e novo Numa equipe de professores a luta que ocorre também se caracteriza por dominação ora pelo mais antigo ora por um dos mais novos Neste grupo surge também um aspecto observado na diretoria do sindicato o grupo é que busca apoio e submissão e com isto atribui poder a um ou a outro ou seja os elementos da relação dominador dominado são opostos na unidade mas implicando necessaria mente o outro O antigo assume naturalmente a coordenação e se caracteriza como sendo mais experiente e mais titulado e também o ponderado e de bom senso Por outro lado o novo é visto como contestador avançado e transformador Estes dois grupos estudantil e professores nos levaram a questionar o quanto a instituição universitária especificamente a PUCSP estaria propiciando a emergência de um papel do novo contestador quando ao mesmo tempo valoriza a titulação e a carreira antiguidade de seus membros A relação de dominação em um grupo de presidiários parece ser fortemente permeada pela instituição o caráter repressivo que define o presidio é negação de qualquer poder individual porém observouse comportamentos decisivos para o grupo em questão que sugerem alguma forma de dominação é o caso de um presidiário que de início contesta a atividade que o grupo se propõe a desenvolver negando e se afastando do grupo e este se afirma executando a tarefa proposta Também o desabafo pessoal de um dos membros após um espetáculo organizado pelo grupo o qual é ouvido passivamente pelos demais determinará o teor da reunião seguinte levando o grupo a uma análise de suas condições sociais num processo de identificação tanto com o primeiro como com o segundo A emergência de um poder negado parece propiciar um salto qualitativo do grupo em termos de conscientização social quando ele chega a perceber a responsabilidade do Estado pelas 92 SILVIA T M LANE condições de vida que geraram a situação atual de todos oS membros do grupo Neste grupo de presidiários a questão de antiguidade não pôde ser observada e possivelmente não deve ocorrer dado o próprio caráter institucional onde não há vantagens nem necessidade de ideologizar qualquer relação de dominação Por outro lado no grupo operativo onde as interferências institucionais são minimi zadas a antiguidade dá o poder de dono do grupo ao membro que compareceu a todas as reuniões inclusive as que não ocorreram por falta de quorum No papel de coordenador em confronto com o coordenador oficial exclui um dos membros que de início assumira certa liderança mas que deixou de comparecer a alguns encontros e foi considerado um elemento novo e objeto de decisão de poder ou não ingressar no grupo igual a outros candidatos que se apre sentaram na ocasião Os grupos observados permitiram analisar como a dominação se reproduz e sua ideologização produzida institucionalmente justi ficando tanto as lutas pelo poder como a submissão dos membros do grupo atribuindo poder a um elemento e assim reproduzindo relações sociais necessárias para que as contradições não emerjam e nem sejam superadas A análise das observações também nos permitem um con fronto com as diversas teorias sobre grupo Assim quando Lewin conceitua liderança a partir de situações experimentais apenas descreve o aparente sem captar as relações de poder que existam mesmo sob liderança democrática e que o leva a concluir paradoxalmente da necessidade de uma liderança democrática forte para um grupo chegar a ser autônomo ou seja efetivamente democrático A pressuposição de um llder forte implica um poder que será doado a todos impedindo a emergência da contradição e conseqüentemente a conscientização dos membros do grupo Para Lewin os grupos de professores e da diretoria do sindicato seriam vistos como democráticos sem possibilidade de analisar o movi mento de submissão do grupo nem a veiculação ideológica na atribuição de poder Sob esta perspectiva os grupos só podem repro duzir relações mantenedoras âo status quo São estes pressupostos e a metodologia adotada que levam os póslewinianos à reificação de grupo como processo natural e universal reproduzindo a ideologia dominante que define os papéis grupais em termos de complementaridade de produtividade e de coesão sem que a 0 INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 93 instituição que os engendra nem suas determinantes históricas sejam consideradas na análise Já Horkheimer e Adorno ao fazerem a critica do estudo de microgrupos apontam para o caráter histórico dos grupos e a impossibilidade de generalizações a partir do empírico Como pudemos ver pela análise dos grupos observados na aparência as relações são peculiares e somente no aprofundamento da análise do processo ocorrendo com suas determinações sociais mais amplas podese captar a natureza reprodutora das relações que se desen volvem em cada grupo enquanto relações de dominação Quanto a Loureau ele contribui para se detectar o quanto os grupos observados se mantêm como gruposobjeto na medida em que coesão harmonia unidade permeiam as relações mantendo hierarquias de poder É interessante notar que apenas o grupo de presidiários onde o poder repressivo da instituição nega qualquer agrupamento é aquele que apresenta maior potencial em direção a vir a ser um gruposujeito possivelmente pela necessidade de definir uma distância institucional a qual não poderá jamais tender a ser infinita dadas as condições objetivas de um presídio A análise da instituição e das determinantes sociais feitas pelo grupo caracterizam um processo de transversalidade tornando possível ao grupo passar de objeto a gruposujeito A contribuição de Lapassade é uma análise grupai dentro de instituições e organizações e as articulações que determinam as relações nos grupos partindo da análise feita por Sartre Nos grupos observados a presença da instituição permeia as relações sociais sendo marcante no grupo de presidiários onde a condição de igualdade de seus membros parece facilitar a identificação entre eles e a análise de suas condições sociais em termos mais abrangentes Também a diretoria do sindicato é determinada institucionalmente quando os cargos que caracterizam divisão de trabalho são hierar quizados levando os membros em situação de conflito a se utilizarem da hierarquia para chegarem a decisões num aparente consenso A instituição universitária está claramente presente no grupo de professores quando a titulação define coordenação e quando desobriga os monitores de uma participação mais ativa perma necendo numa postura de aprendizes A diretoria da entidade estudantil parece estar permeada por instituições políticas que dado o pouco tempo de observação e as várias nuanças de grupos políticos universitários dificulta uma análise de suas determinações institu 94 SILVIA T M LANE cionais Porém a PUC como instituição permeia os dois grupos pela ênfase no novo contestador que vem se tornando um papel esperado se não institucionalizado Os outros dois grupos operativo e de trabalho na periferia por se posicionarem como ainstitucionais necessitariam de mais dados enquanto características individuais para se detectar a presença de instituições A proposta de PichonRivière aparentemente próxima à nossa mas diante das observações de grupos operativos suscitou uma série de questões relativas à análise dialética das formas de interação entre os membros do grupo A principal foi a constatação de relações de dominação que geram alto nível de ansiedade nos grupos a ponto de eles se desfazerem na primeira oportunidade Fica a questão se o problema reside na teoria ou na prática desenvolvida Do ponto de vista teórico apesar de a proposta ser de uma abordagem materialista dialética o autor propõe um es quema conceituar teórico ao invés de categorias que remetam a fatos concretos no que se aproxima do modelo lewiniano onde a teoria leva aos fatos ao empírico e estes reformulam a teoria Por outro lado a dialética proposta se caracteriza como idealista pois pressupõe contradições entre o interno e o externo do indivíduo entre sujeito e grupo entre o implícito e o explicito e entre projeto e resistência à mudança Nenhuma relação é esta belecida com a contradição fundamental das condições históricas da sociedade onde o grupo se insere Desta forma o psicólogo considerado como uma entidade em si implica uma concepção dicotômica e idealista do homem E esta visão determina o papel de coordenador como dono de um saber que o permite interpretar o psíquico oculto de cada indivíduo membro do grupo este saber faz do coordenador uma figura de poder que leva os membros ao que chama de adaptação ativa Desta forma a conscientização que propõe atingir pela práxis nada mais ê que um processo terapêutico tradicional autoconhecimento sem que necessariamente seja um processo de conscientização social onde determinações históricas de classe e as especificidades da história individual se aclaram e se traduzem em atividades transformadoras Do mesmo modo a concepção de papéis por um lado defi nidos institucionaimente por outro objetivo de expectativas individuais como produto singular isento de determinações históricosociais permitem a mediação ideológica dos papéis pois se apenas contradições entre o interno e o externo são O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 95 analisadas passa despercebida a reprodução das relações sociais necessárias para que as contradições não emeijam nem sejam superadas Na abordagem de Calderón e De Govia a proposta mate rialista histórica não se confunde com teorias psicanalíticas man tendo a unicidade do indivíduo como produto histórico e mani festação de uma totalidade social São as necessidades que reúnem indivíduos em grupo para cooperando satisfazêlas Para tanto se organizam de formas próprias lideranças e cuja análise permite aos autores detectar estágios e tipificar os grupos Segundo esta tipologia poderíamos dizer que o grupo da entidade estudantil ainda estaria numa fase de aglutinado cami nhando para dois subgrupos possessivos o de trabalho em peri feria seria tipicamente possessivo enquanto a diretoria do sindi cato por suas características institucionais estaria entre posses sivo e coesivo o grupo de professores parece estar caminhando de coesivo para independente o grupo operativo por sua vez parece oscilar entre aglutinado e coesivo Difícil foi carac terizar o grupo do presídio enquanto preparação do espetáculo foi um grupo possessivo e depois deste na última reunião obser vada parece estar se tornando independente Esta abordagem é sem dúvida a que mais se aproxima da nossa mas a caracterização de estágios ou tipos de grupos não é suficiente para responder à questão de como o grupo se processa superando contradições até se tornar condição de conscientização de seus membros e conseqüentemente agentes históricos Outros grupos foram observados com a preocupação de preci sar unia metodologia de análise e permitiram concluir sobre a nãoneutralidade do observador e principalmente sobre a sua interferência no processo grupai mesmo quando afastado fisica mente e sem qualquer participação no processo Foram casos onde o próprio grupo se avaliando comentava a presença do observador como responsável pela maior produtividade do grupo ou ainda no caso já citado o caráter perturbador do observador exigindo dele um compromisso de sigilo e de participação no grupo Diante destes fatos novas observações foram feitas mas assumindo a intervenção como inevitável colocandose o observador à disposição do grupo para narrar a sua análise a qualquer momento pois também aclarou para nós que o grupo só dá saltos qualitativos no seu processo quando ocorrem análises e reflexões críticas no próprio grupo Com isto esperávamos precisar as condi SILVIA T M LANE çOes necessárias para que um grupo se tomasse consciente e transformador Esta nova etapa de observações participantes foi sendo também confrontada com as observações feitas anteriormente o que nos permitiu precisar algumas categorias fundamentais para a análise do processo grupai A primeira categoria detectada foi a de produção onde a produção da satisfação de necessidade como apontado por Cal derón e De Govia implica necessariamente a produção das relações grupais ou seja a produção do grupo é produção grupai é o processo histórico do grupo Ou seja o processo grupai se carac teriza como sendo uma atividade produtiva Uma segunda categoria definida é a de dominação no sentido de que na sociedade brasileira capitalista as condições infra estruturais para serem reproduzidas implicam mediações tais que de formas as mais diversas reproduzem relações de dominação e que estas implicam a unicidade dominaçãosubmissão ou seja nos grupos onde a proposta de relacionamento é de igualdade entre os membros detectase a dominação pela submissão dos membros a uma outra pessoa Esta categoria leva necessariamente à análise das instituições que fazem a mediação infra e superestrutural através da definição de papéis como necessários para a reprodução de relações sociais conforme previstos pelas instituições de uma dada sociedade A categoria de gruposujeito adotamos a denominação de Loureau de fato só pode ser precisada nessa última etapa de observações quando o observador como participante analisava as contradições decorrentes das relações de dominação levando o grupo a uma autoanálise porém em nenhum momento conse guimos detectar um grupo como um todo agindo em plena cons ciência Detectouse pessoas em processo de conscientização enquanto outras resistiam a mudanças e quando a pressão oriunda da análise se tornava perturbadora a tendência era sempre de o grupo se desfazer seja pela separação física seja pela reorga nização de tarefas de forma a tornálas independentes entre si fazendo com que o produto final fosse apenas somatória de produtos individuais ou seja uma reorganização que é a própria negação do grupo Esta negação do grupo confrontada com observação de grupos onde as tarefas eram sempre individuais sem haver ações necessariamente encadeadas para se atingir um produto nos leva O INDIVÍDUO e a s i n s t h UIÇOES 97 à categoria de nãogrupo e à comprovação de que só é grupo quando ao se produzir algo se desenvolvem e se transformam as relações entre os membros do grupo ou seja o grupo se produz Um exemplo típico de nãogrupo é aquele onde as pessoas se reuniam em uma instituição para apreender e fazer trabalhos manuais cada um envolvido com o seu Fisicamente as pessoas estão agrupadas elas se relacionam conversando assuntos os mais diversificados porém o fato de cada uma ter o seu trabalho faz com que as relações entre elas não se alterem por mais tempo que permaneçam juntas1 Acreditamos que para um grupo como tal ser um grupo sujeito é necessário haver circunstâncias como pressão exterior ao grupo como no presídio ou uma condição de marginalhação como um grupo observado de pessoas cegas ou então haver um forte compromisso entre os membros como o político ou do tipo de sociedade secreta pois os processos de conscientização ocorrem em indivíduos em momentos diferentes passando por estágios dife rentes o que gera contradições em geral difíceis de serem supe radas fazendo com que ocorra a dissolução do grupo antes de uma conscientização grupai E obviamente na nossa sociedade mil e um recursos são oferecidos para evitar esta conscientização grupai perturbadora para os tatus quo Esta análise nos permitiu constatar com clareza por um lado que o grupo social é condição de conscientização do indivíduo e por outro a sua potência através de mediações institucionais na produção de relações sociais historicamente engendradas para que sejam mantidas as relações de produção em uma dada sociedade Outro ponto de fundamental importância para o processo grupai e para superação das contradições existentes é a necessidade de o grupo analisasse enquanto tal O grupo que apenas executa tarefas sobre transformações que se não forem jesgatadas conscientemente pelos membros ele apenas se reajusta sem que ocorra qualquer mudança qualitativa nas relações entre seus membros 1 Este nãogrupo e identifica com o que Sartre e La passado chamam de serialidade e se aproxima da noção de segmentaridade de Loureau São agrupamentos onde tanto as necessidades como os motivos e as atividades decorrentes são individuais e não conseqüências de uma relação onde predomiha o nós e que exige a cooperação de todos 96 SILVIA T M LANE Bibliografia Barremblitt Gregório org Grupos Teoria e Técnica Rio de Janeiro GraalIBRAPSI 1982 Carrera Damas G Puntos de vista de um historiador acerca de la Psicologia Social histórica in Boletim Avcpso n 01 vol II 1979 Doise William L articulation Psychossociologique et ies Relations entre Groupes Bruxelas Ed A de Bock 1976 Fernandes Calderón J e De Govia G C C El Grupo Operativo Teoria y Prática 2 ed Mexico Df Edit Extemporâneas 1978 Horkheimer M e Adorno T Temas básicos de Sociologia Sâo Paulo Cultrix e EDUSP 1973 Lane S T M Uma Redefinição da Psicologia Social in Educação e Sociedade n 6 jun 1980 Lapassade George Grttpos Organizações e Instituições t Rio de Janeiro Livraria Francisco Alves 1977 Loureau Rtnt A Análise Institucional Petropolis Vozes 1975 MaoTséTung Tese da Contradição Belém Ed Boitempo 1978 Marx K e Etlgels F L ideologic AUemande trad de R Cartelle Paris Êds Sociales 1953 Marx K Thèse sur Feuerbach in Marx K e Engels F Études Phi hsophiçues Éds Sociales 1951 Montero Maritza Psicologia Social e História in Boletim AVEPSO n 1 vol 1 1978 Naffah Neto A Psieodroma Descolonização Imaginária Silo Paulo Ed Brasiliense 1979 Ofshe Richard J ed Interpersonnal Behavior in Small Groupst Nova Jersey Prentice Hall 1973 Pichon Rivière E El Proceso Gntpal Del Psicoanalisis a Ia Psicologia Social 5 ed Buenos Aires Ed Nueva Vision 1980 Sartre JP Critique de ia Raison Dialethique Paris Gallimard 1950 Família emoção e ideologia José Roberto Tozoni Reis A família tem estado em evidência Por um lado ela tem sido o centro de atenção por ser um espaço privilegiado para arregi mentação e fruição da vida emocional de seus componentes Por outro tem chamado a atenção dos cientistas pois ao mesmo tempo que sob alguns aspectos mantémse inalterada apresenta uma grande gama de mudanças Ê comum ouvirmos referencias a crise familiar conflito de gerações morte da família Ela também suscita polêmicas para alguns família é a base da sociedade e garantia de uma vida social equilibrada célula sagrada que deve ser mantida intocável a qualquer custo Para outros a instituição familiar deve ser combatida pois representa um entrave ao desenvolvimento social é algo exclusivamente nocivo é o local onde as neuroses são fabricadas e onde se exerce a mais implacável dominação sobre as crianças e as mulheres No entanto o que nào pode ser negado é a importância da família tanto ao uivei das relações sociais nas quais ela se inscreve quanto ao nível da vida emocional de seus membros E na família mediadora entre o indi víduo e a sociedade que aprendemos a perceber o mundo e a nos situarmos nele Ë a formadora da nossa primeira identidade social Ela ê o primeiro nós a quem aprendemos a nos referir A instituição familiar tem ocupado a atenção de estudiosos de todas as ciências sociais O que essas abordagens têm tido em comum via de regra é o fato de ver a família apenas através da ótica de uma disciplina científica especializada Podese verificar que muitas vezes se repete com argumentos tirados do repertório 100 JOSÉ ROBERTO TOZONI REIS científico o que a ideologia tem veiculado dentro da própria família a representação da instituição familiar como algo natural e imutã vel Assim por exemplo Talcott Parsons1 dá à família uma grande importância pois para ele a sociedade é um sistema no qual as relações desta com o indivíduo se dão de forma harmoniosa e autoreguladora A família teria por função desenvolver a sociali zação básica numa sociedade que tem sua essência no conjunto de valores e de papéis Parsons fala da sociedade capitalista e toma a família dessa sociedade como universal e imutável a família nuclear burguesa tornase sinônimo de família Outras formas quando existentes sào consideradas no máximo estruturas que ainda vão se diferenciar em direção a esse modelo ideal de família Freud2 também enveredou por essa mesma senda No entanto isso não significa uma negação de suas importantes descobertas mas impõe a necessidade de situálas em seu devido lugar Ele colo cou às claras o funcionamento interno da família desmontando os mecanismos psíquicos envolvidos na estrutura familiar e que têm como corolário a dominação e a repressão sexual Mas o que para Freud é a família na realidade tratase apenas de uma das formas que a instituição familiar assume em determinado momento histó rico a família burguesa O reducionismo psicológico de Freud a falta de uma visão social fazemno também naturalizai c uni versalizar a família burguesa Os antolhos ideológicos farein com que o autor da grande descoberta da função repressiva da família não consiga inserir suas descobertas no contexto da História c em conseqüência postule uma universalidade para a família burguesa consagrando como natural e inevitável a dominação e a repressão A determinação histórica da estrutura familiar coloca em discussão uma importante questão a das relações entre família e sociedade Essa discussão teve seu primeiro grande passo nos tra balhos de L Morgan que estudou as relações de parentesco em diversas tribos americanas Engels3 apoiandose nas descobertas de Morgan elaborou a formulação materialista dialética sobre a gênese 1 Parsons Talcott et aüi Family Socialization and Interaction Pro cess Nova lorque 1955 2 Para urr maior aprofundamento da quest3o ver O conceito de famflia em Freud in Poster M Teoria Crtíca da Família Rio de Janeiro Zahar 1979 3 Engels F A origem da famffia da propriedade privada e do estado Rio de Janeiro Vitória 1964 o i n d i v í d u o e a s INSTITUIÇÕES 101 e as funções da família monogâmica Para ele foi na família que se iniciou o processo de divisão social do trabalho que foi inicial mente a divisão do trabalho sexual Essa divisão foi o ponto de referência para uma complexificação do processo de divisão do trabalho que culminou com a divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual e concomitantemente com a principal divisão sobre a qual se funda o modo de produção capitalista a oposição entre os proprietários das condições de produção e os que possuem apenas uma força de trabalho explorada pelos primeiros O estágio de desenvolvimento das forças produtivas ç do processo de divisão social do trabalho determinam então a estrutura familiar Segundo Engels a família monogâinica surgiu e foi determinada pelo apare cimento da propriedade privada Da forma de família grupai na sociedade primitiva a organização familiar teria evoluído para a família monogâmica passando por diversos estágios intermediários cada um deles caracterizado sucessivamente por um grau cada vez maior de restrições às possibilidades de intercurso sexual A culmi nância desse processo se deu com o casamento monogâmico composto por um casal e com um caráter permanente de duração Uma de suas principais finalidades seria a de garantir a transmissão da herança a filhos legítimos do homem responsável pela acumulação material o que só seria possível com a garantia de que a mulher exerceria sua sexualidade no âmbito exclusivo do casamento Dai a importância da virgindade e da fidelidade conjugal da mulher Embora algumas das formulações de Engels estejam ultrapassadas principalmente no que se refere à aplicação genérica da evolução esquemática dos modelos de família em todas as sociedades as ligações entre monogamia e propriedade privada ambas se reforçando reciprocamente se apresentam cada vez mais sólidas A relativa autonomia da organização familiar é determinada por uma complexa interação de diversos fatores que se referem tanto às formas peculiares deorganização interna do grupo familiar quanto aos aspectos econômicos sociais e culturais que o circuns crevem Ê por isso que embora a forma de família predominante em todos os segmentos sociais seja a da família monogâmica burguesa existem padrões internos que diferenciam as famílias das diferentes classes assim como padrões que diferenciam formas familiares diferentes dentro de uma mesma classe social Atual mente a classe média urbana apresenta uma grande riqueza na variação de padrões familiares Ao mesmo tempo que abarca a 102 JOSÉ ROBERTO TOZONI REÍ5 família caracterizada por um extremo conservadorismo e uma rígida hierarquia interna abrange também formas mais liberais de vivência familiar que marcam tanto as relações entre os seus membros quanto um posicionamento mais crítico diante da sexua lidade Assim vêse que embora a família tenha um nível de auto nomia em relação à economia o que faz em alguns casos com que suas mudanças não acompanhem imediatamente e no mesmo sentido as mudanças econômicas a estratégia familiar é sempre traçada fora dela É portanto impossível entender o grupo familiar sem considerálo dentro da complexa trama social e histórica que o envolve A partir disso podemos fazer algumas considerações que nos ajudam a situar o presente estudo A primeira delas é que a família não é algo natural biológico mas uma instituição criada pelos homens em relação que se constitui de formas diferentes em situações e tempos diferentes para responder às necessidades sociais Sendo uma instituição social possui também para os homens uma representação que é socialmente elaborada e que orienta a conduta de seus membros A segunda consideração é que a família qualquer que seja sua forma constituise em tomo de uma necessidade material a repro dução Isso não significa que é necessário haver uma determinada forma de família para que haja a reprodução mas que esta é condição para a existência da família A terceira consideração é que além da sua função ligada à reprodução biológica a família exerce também uma função ideo lógica Isto significa que além da reprodução biológica ela promove também sua própria reprodução social é na família que os indi víduos são educados para que venham a continuar biológica e socialmente a estrutura familiar Ao realizar seu projeto de repro dução social a família participa do mesmo projeto global referente à sociedade na qual está inserida É por isso que ela também ensina a seus membros como se comportar fora das relaçòes familiares em toda e qualquer situação A família é pois a formadora do cidadão Resumidamente podemos considerar que as duas importantes funções da família são í econômica no que se refere à reprodução de mãodeobra 2 ideológica no que se refere à reprodução da ideologia dominante Alguns tipos de família têm uma função econômica imediatamente visível Ê o caso das famílias que se constituem como unidade de produção econômica os colonos da cultura do café por exemplo ou as famílias proprietárias de terras o i n d j v Id u o e a s INSTITUIÇÕES 103 em frentes agrícolas nas quais o trabalho familiar é a atividade mais viável Como a ideologia opera na família Ela começa por apre sentar uma noção ideologizada da própria família Essa noção veiculada principalmente pelos pais os principais agentes da edu cação ensina a ver a família como algo natural e universal e por isso imutável Depois passa a apresentar da mesma forma o mundo extrafamiliar e todas as relações sociais É claro que a família cumpre sua função ideológica em complementação a outros agentes sociais Sua importância às vezes relativizada no processo global da transmissão da ideologia dominante não pode ser negada Al thusser por exemplo ao descrever as instituições usadas pelo Estado na manutenção da dominação política da burguesia consi dera a família um importante aparelho ideológico embora afirme ser a escola o aparelho ideológico mais utilizado5 Marcuse ao estudar as sociedades capitalistas mais avan çadas aponta uma descentralização das hinçòes da família o que ele qualifica como um aperfeiçoamento dos mecanismos de domi nação Se a família burguesa dos períodos anteriores criava a submissão criava também a revolta que se expressava no incon formismo e na luta contra o pai e a mãe alvos facilmente identi ficáveis como agentes da dominação Na civilização madura a dominação tornase cada vez mais impessoal objetiva universal e também cada vez mais racional eficaz e produtiva7 O que antes era função quase exclusiva da família é hoje disseminado por uma vasta gama de agentes sociais que vão desde a préescola até os meios de comunicação de massa que utilizam a persuasão na imposição de padrões de comportamento veiculados como normais dificultando a identificação do agente repressor Apesar da vera cidade dos argumentos expostos não se pode dizer que a família hoje seja dispensável ou que tenha sua importância diminuída no Í4 Ver Brandão Carlos Rodrigues Parentes e Parceiros relações de parentesco entre camponeses de Goiás in Almeida María S Kofes dõ Colcha de Retalhos estudos sobre a família no Brasil São Paulo BrasiNense 1962 5 Ver Althusser Louis Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado Portugal Presença Brasil Martins Fontes 1974 6 Ver Marcuse H Eros e Civilização Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud Rio de Janeiro Zahar 1972 7 Marcuse H A diaíética da civilização in Marcuse Hr Eros e Civilização Parte I cap A p 91 Rio de Janeiro Zahar 1972 104 JOSE ROBERTO TOZONI REIS processo de imposição da ideologia dominante Apesar da ação eficiente da Escola e dos outros agentes citados por Marcuse que agem de forma mais racional e organizada não resta dúvida de que essa eficiência só ê possível porque apóiase sobre as bases ideológicas estabelecidas pela família que inclusive preparou anteriormente seus membros para reconhecer outras formas de autoridade A atuação familiar é vivida intensamente pelos indi víduos agindo poderosamente no exercício da subordinação ideo lógica pois está presente desde o início da vida e é marcada por fortes componentes emocionais que estruturam de forma profunda a personalidade de seus membros Para entendermos mais profundamente como a família cumpre suas funções de agente da reprodução ideológica é neces sário voltarmos a atenção para o seu funcionamento interno Nesta perspectiva podemos observar o que mais a diferencia de outros grupos ela é o locus da estruturação da vida psíquica a maneira peculiar com que a família organiza a vida emocional de seus membros que lhe permite transformar a ideologia dominante em uma visão de mundo em um código de condutas e de valores que serão assumidos mais tarde pelos indivíduos Para melhor enten dermos essa organização interna da família usaremos os conceitos desenvolvidos por Mark Poster Para ele a família é o lugar onde se forma a estrutura psíquica e onde a experiência se caracteriza em primeiro lugar por padrões emocionais A função de socialização está claramente implícita nesta definição mas a família não está sendo conceptualizada primordialmente como uma instituição investida na função de socialização Ela é em vez disso a loca lização social onde a estrutura psíquica é proeminente de um modo decisivo9 Ela possui também um outro caráter sumamente impor tante Além de ser o locus da estrutura psíquica a família constitui um espaço social distinto na medida em que gera e consubstancia hierarquias de idade e sexo A família é o espaço social onde gerações se defrontam mútua e diretamente e onde os dois sexos definem suas diferenças e relações de poder Idade e sexo estão presentes é claro como indicadores sociais em todas as instituições Entretanto a família contémnos geraos e os realiza em grau extraordinariamente profundo Por outras palavras o estudo da iô Postei Mark Teoria Crítica da Família Rio de Janeiro Zahar 1979 9 Idem ibidem p 161 O INDÍVlDUO E AS INSTITUIÇÕES 105 família fornece um excelente lugar para se aprender como a socie dade estrutura as determinações de idade e sexo10 A caracterização da família essencialmente pelas vivências emocionais desenvolvidas entre seus membros e pela hierarquia sexual e etária conduz a analise de seu funcionamento a centrarse no binômio autoridadeamor As vias pelas quais afeto e poder se relacionam dentro da família permitemnos comparar os diferentes modelos de família e entender a dinâmica interna da família moderna associada a suas funções de reprodutora ideológica Continuaremos usando as idéias de Poster na comparação entre tipos de família e no estudo das especificidades da família moderna ou família nuclear burguesa Quando usamos o modelo burguês familiar como sinônimo de família atual assim o fazemos por entender que este padrào de organização originário na burguesia espalhouse pelas demais classes sociais que paulatinamente o adotaram Isso nâo significa negar a existência de outras formas de vida familiar nem impor uma padronização absoluta a todas as unidades familiares mas apenas tomar o modelo familiar que predomina na sociedade em que vivemos e que corresponde aos valores da ideologia dominante Aliás a família burguesa ao se representar não apenas como aquela que é normal1 mas também como a única possibilidade nada mais faz do que cumprir sua função ideológica Poster apresenta quatro modelos de família a família aris tocrática e a família camponesa dos séculos XVI e XVII a família proletária e a família burguesa do século XIX Demonstra ainda a determinação de suas estruturas emocionais pelas condições sociais em que se inscrevem no contexto histórico Os tipos fami liares propostos não pretendem apresentar como idênticas todas as unidades familiares da classe social a que se referem mas apenas captar o que há nelas de essencial para o estudo de suas estruturas emocionais em determinados momentos de sua história De início apresentaremos de forma breve os principais caracteres das famílías aristocrata camponesa e proletária para posteriormente discutirmos as peculiaridades da família burguesa que segundo Poster nasceu no seio da burguesia européia em meados do século XVLIL 10 Idem ibidem pp 161162 106 JOSÉ ROBERTO TOZONI REIS A aristocracia tinha sua riqueza assentada nos favores do monarca e no controle da terra que era patrimônio a ser conservado e não investido Sua unidade de habitação era o castelo que abrigava além da família parentes dependentes criados e clientes À linhagem era determinante das relações de parentesco e sua preservação revestiase de capital importância por isso o casa mento era antes de tudo um ato político do qual dependia a manutenção das propriedades familiares A habitação aristocrata não favorecia nenhuma forma de pri vacidade pois era caracterizada por uma baixa diferenciação fun cional de suas peças pela ausência de corredores o que provocava um grande trânsito por todos os cômodos e por um mobiliário dotado de multifuncionalidade As condições sanitárias eram pre cárias o que explica em parte o alto nível de mortalidade infantil que acompanhava o alto nível de natalidade As relações entre os membros da casa eram rigidamente hierarquizadas e estabelecidas pela tradição O trabalho masculino restringiase à guerra e as funções da mulher eram relativas à organização da vida social no castelo O lazer era cultivado e o trabalho desvalorizado A criação dos filhos não era atribuição das mães Os bebês eram amamentados por amasdeleite e entregues aos cuidados de criados O treinamento de hábitos higiênicos era mínimo Como conseqüência desses métodos de educação aristo crática a identificação das crianças não privilegiava as figuras parentais como seus objetos mas valorizava a linha da família Elas estabeleciam seu primeiro vínculo com a amadeleiter eram em geral educadas por vários habitantes do castelo e muitas vezes podiam ser enviadas a outras casas nobres para complementar sua educação O seu aprendizado era dirigido para a obediência à hierarquia social e nesse sentido o castigo físico era o instrumento comumente utilizado Os aristocratas desenvolviam então um agudo senso das normas sociais externas mas não um severo superego O sentimento ligado às transgressões era a vergonha e não a culpa A sexualidade aristocrata obedecia a padrões próprios Seu exercício era reconhecido tanto para os adultos de ambos os sexos quanto para as crianças Os aristocratas praticavam muito o sexo entre si e também com a criadagem As necessidades sexuais das mulheres eram reconhecidas Há registros de casos de mulheres aristocratas que se tornaram famosas por sua intensa vida erótica sem que isso provocasse a perda de seus direitos ou da aceitação social As concubinas eram publicamente reconhecidas e o sexo não O INDIVÍDUO e a s i n s t i t u i ç õ e s 107 era considerado assunto privado ou secreto As brincadeiras sexuais das crianças eram aceitas e até estimuladas em razão do que estas não experimentavam um antagonismo entre o corpo e o mundo social O corpo não era vivido como objeto de ambivalência sexual Portanto a família aristocrata nào atribuía valor algum à priva cidade domesticidade cuidados maternos ou relações íntimas entre pais e filhos Embora diferindo da organização da família da aristocracia a família camponesa apresentava mais traços em comum com esta do que com a familia burguesa11 Assim como a família aristocrata a camponesa se carac terizava por um alto padrão de natalidade associado a uma também acentuada mortalidade infantil Apesar de a pequena família nuclear ser a unidade mais comum este não era o grupo social mais significativo para os seus membros Era à aldeia que todos estavam integrados por sólidos laços de dependência A aldeia regulava a vida cotidiana através dos costumes e da tradição os casamentos assim como os enterros davam origem a rituais que envolviam a aldeia toda ou pelos menos grande parte dela também o namoro era regido por um conjunto de procedimentos coletivos pelos quais se providenciava a formação de pares considerados adequados A família não era o espaço privado ou privilegiado e os laços emocionais se estendiam para fora dela As crianças aprendiam a depender principalmente da comunidade e não dos pais desde pequenos participavam de toda rotina da vida da aldeia Já na infância aprendiam a obedecer às normas sociais inclusive com bastante freqüência às custas de punições físicas Por isso à semelhança das crianças aristocratas sua estrutura psíquica era orientada para a vergonha e não para a culpa A aprovação das ações era externa baseada em sanções públicas por toda a comu nidade1112 À mãe camponesa competia a criação dos filhos de forma integrada às relações comunitárias Ela era ajudada por parentes por moças mais novas e também por mulheres mais velhas que ensinavam e fiscalizavam as práticas relativas ao tratamento dos 11 Em função da grande diversidade de condições de vida dos camponeses europeus nos séculos XVI e XVII Poster limitase para estabelecer o modelo do família camponesa aos que viviam em aldeias 12 Poster citt p 206 J08 JOSÊ ROBERTO TOZONJ REIS bebês Mas as crianças não ocupavam o centro da vida conjugal A necessidade da presença da mulher no trabalho do campo fazia com que os filhos não tivessem a mesma atenção que lhes seria dirigida na família burguesa O enfaixamento dos bebês era comum pois liberava a mãe para o trabalho A amamentação era realizada sem envolvimento emocional Havia pouca preocupação com os hábitos higiênicos e com as atividades sexuais das crianças Elas se familiarizavam desde cedo com os atos sexuais pois dormiam várias pessoas em um mesmo quarto sendo que as vezes os filhos dormiam na mesma cama com os pais Em função dessa dependência da aldeia e dos vínculos que assim surgiam os pais das crianças camponesas não eram os únicos objetos de identificação Estes eram dispersos por toda a aldeia Assim como entre a aristocracia era comum a criança camponesa passar por um período de aprendizagem em casa de outra família Enfim apesar de viver em pequenas unidades nucleares a família camponesa tendo toda sua vida voltada para fora de si também desconhecia e não valorizava a domesticidade e a priva cidade A família proletária é vista por Poster em três fases que vão da sua constituição até a adoção do modelo familiar burguês Sua constituição deuse no período inicial da industrialização início do século XIX sob condições de extrema penúria social e econômica Em geral todos os membros da família trabalhavam em jornadas que variavam de 14 a 17 horas As crianças iam para a fábrica a partir de aproximadamente dez anos de idade As condições sanitárias em que viviam os trabalhadores eram terríveis favo recendo o alto índice de mortalidade infantil Nesse contexto uma forma de resistir à opressão imposta pelo capitalismo foi a manu tenção dos antigos laços comunitários O proletariado conservou vários dos costumes camponeses pois foi dentre estes que se deu o recrutamento da maioria dos novos trabalhadores urbanos Nessa fase a vida da família proletária foi caracterizada por formas comunitárias de dependência e apoio mutuo Os filhos eram criados de maneira informal sem que fossem objeto de especial atenção e fiscalização por parte dos pais que não tinham tempo para se dedicar aos filhos O treinamento dos hábitos higiênicos não causava preocupação assim como não havia repressão à mastur bação infantil Nessa época as crianças proletárias conviviam numa ampla rede de relacionamento com adultos pois na maioria das O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 109 vezes eram criadas por parentes vizinhos ou mesmo soltas pelas ruas dos bairros O segundo estágio da família proletária corresponde à se gunda metade do século XIX que coincide com o aparecimento de setores mais qualificados da classe operária e com a ação de alguns filantropos burgueses preocupados com a melhoria das condições de vida de seus empregados13 Essa fase na qual verificouse uma melhoria das condições de vida operária é marcada por uma aproximação dos padrões burgueses de diferenciação de papéis sexuais a mulher passou a ficar mais tempo em casa com os filhos Os homens estabeleceram a fábrica e o bar como pólos de gravitação de sua vida social enquanto as mulheres passaram a desenvolver uma rede social feminina que integrava mães filhas e outras parentas O terceiro estágio ocorreu já no século XX com a mudança da família operária para os subúrbios a partir daí romperamse os vínculos com a comunidade A mulher afastada das redes femi ninas típicas da fase anterior ficou isolada no lar e o homem passou a valorizar a domesticidade e a privacidade Ao mesmo tempo a educação e o futuro dos filhos passaram a ser prioridade da família Essas transformações foram acompanhadas de um reforço da autoridade paterna e de um incremento do conservadorismo por parte de toda a família proletária Um século depois de seu nascimento a família proletária quase não se distinguia mais da família burguesa em termos de padrões emocionais que carac terizavam as suas relações internas Isso significa que houve um aburguesamento ideológico da classe operária no que concerne à vida familiar A família burguesa nascida na Europa em meados do século XVIII rompeu com os modelos familiares vigentes e criou novos padrões de relações familiares Esses novos padrões que corres pondiam às necessidades da nova classe dominante já estavam nitidamente estabelecidos no início do século XIX Eles se carac terizavam antes de tudo pelo fechamento da família em si mesma Esse isolamento marcou uma clara separação entre a residência e o local de trabalho ou seja entre a vida pública e a privada Para o burguês o trabalho era o espaço no qual as relações deveriam ser 13 A principal referência usada por Poster é a Inglaterra 110 JOSÉ ROBERTO TOZONI REIS regidas pela frieza e pelo calculismo qualidades imprescindíveis para se vencer no inundo dos negócios Sendo o mundo dos negócios o império da razão o lar passou a ser o espaço exclusivo da vida emocional no qual a mulher passaria sua vida em reclusão Outras separações se fizeram a mais notável foi a rigorosa divisão de papéis sexuais O marido passou a ser o provedor material da casa e a autoridade dominante considerada racional e capaz de resolver quaisquer situações Antes de tudo deveria ser um homem livre e autônomo conforme o ideal burguês A mulher burguesa ficou responsável pela vida doméstica pela organização da casa e educação dos filhos Considerada menos capaz e mais emotiva que o homem tomouse totalmente depen dente do marido Além de depender dele materialmente sua iden tidade pessoal seria determinada pela posição que ele ocupasse no mundo extrafamiliar Isolandose da comunidade perdeu seu apoio uma vez que as redes femininas deixaram de operar e ficou totalmente à mercê do marido Deveria pois agora obedecer e servir ao marido para que este obtivesse as melhores condições possíveis para lutar no mundo dos negócios O sucesso do marido seria o seu também A educação dos filhos se constituiu no principal objetivo do casamento burguês e passou a absorver todo o tempo da mãe O filho deveria ser educado para aquilo que a burguesia estabelecera como ideal vir a ser um homem autônomo autodisciplinado com capacidade para progredir nos negócios e dotado de perfeição moral Se por um lado a mulher era agora valorizada por sei responsável pelo futuro dos filhos por outrc lado essa responsa bilidade não deixava de lhe trazer grandes tensões pois ela seria culpada por qualquer desvio na educação ou mesmo qualquer doença que o prejudicasse Ela deveria ser uma mãe perfeita para que os filhos também o fossem A família burguesa também definiu novos padrões de higiene que contribuíram para uma progressiva redução da taxa de mortali dade infantil a qual foi acompanhada por um correspondente decréscimo na taxa de natalidade Grande importância foi atribuída ao asseio da casa e de seus moradores O aleitamento materno passou a ser valorizado e cercado de medidas higiênicas além do grande envolvimento emocional da mãe Foi abolida a prática do enfaixamento dos bebês que passaram a receber atenção constante por parte de suas mães Os hábitos alimentares foram rigorosa mente regularizados assim como as práticas meticulosas de lim O INDIVÍDUO e a s i n s t i t u i ç õ e s U I peza O corpo das crianças burguesas primava pelo asseio Nesse contexto se destacou também o horror aos dejetos humanos que caracterizou o aprendizado da fase anal À criança burguesa aprendeu a identificar no seu corpo algo que deveria ser objeto de constante fiscalização e ação de limpeza para que não fosse apenas uru recipiente e produtor de imundícies 14 O controle dos esfíncteres passou a ser um dos objetivos principais dessa fase de educação burguesa às vezes desenvolvido precocemente e envol vendo o uso de insólitos procedimentos como por exemplo o de amarrar a criança ao urinol E claro que a família nuclear burguesa definiu também novos padrões para a sexualidade Foi no seu seio que a diferenciação dos papéis sexuais foi levada às últimas conseqüências Colocouse em prática com todo o rigor a interdição â sexualidade feminina fora do casamento e a restrição ao desfrute do prazer sexual No casamento a atividade sexual feminina deveria restringirse à necessidade de procriação As mulheres burguesas passaram a ser consideradas seres angelicais acima das necessidades animais do sexo Dessa forma o casamento burguês passou a caracterizarse por uma dissociação entre sexualidade e afetividade A família era o recanto do afeto mas não do prazer sexual Este passou a ser buscado fora do lar pelos homens em geral através da conquista de mulheres das classes inferiores À repressão à sexualidade infantil ganhou um lugar de destaque na família burguesa A masturbação horrorizava os pais e provocava vigilância constante A repressão à masturbação coutava com o apoio da opinião médica do século XIX que a apontava como causadora das mais diversas doenças desde acnes e tumores até a loucura São dessa época os relatos de Freud sobre as ameaças de castração feitas pelos pais que na maioria das vezes não tinham caráter metafórico Também se encontravajn facilmente à venda dispositivos que feriam o pênis ou faziam soar o alarme quando o menino tinha uma ereçào As meninas também não escapavam da ação médica no combate a qualquer manifestação da sexualidade o que incluía até cirurgias Assim vamos encontrar um novo quadro de vida familiar estabelecido pela burguesia Ele começa a tomar forma com a reclusão da vida familiar que cria as condições para a total dependência dos filbos em reiação aos pais Por decorrência 14 Poster M op cit p 190 112 JOSÉ ROBERTO TOZONI REIS dessa nova realidade há uma enorme diminuição das possíveis fontes de identificação para a criança Enquanto a criança aristocrata a camponesa ou mesmo a operária se defrontavam com uma ampla gama de possibilidades de identificação a criança burguesa tinha apenas as figuras parentais ou acabava tendo na realidade apenas um objeto de identificação o progenitor do mesmo sexo em virtude da rigorosa divisão de papéis sexuais que presidia sua vida familiar É importante lembrar que a criança burguesa do século XIX quase não tinha contato com outras pessoas antes de entrar na escola Passava portanto grande parte da sua infância apenas se contatando com os membros da própria família Com o isolamento da família nuclear e a conseqüente inten sificação das relaçes afetivas entre seus componentes a criança ficou na total dependência de seus pais para a satisfação de suas necessidades de afeição Ela aprendia a importância da vida emo cional e ficava à mercê dos pais para receber sua cota de afeto Era função dos pais principalmente da mãe suprir essa necessidade dos filhos Mas esse afeto não era dado incondicionalmente Ele passou a ser associado às condutas que os pais esperavam do filho E que condutas eram essas A primeira exigência que se fazia da criança era a de que ela aprendesse a ter o controle sobre seu próprio corpo Essa era a aprendizagem básica que caracterizava o estágio anal das crianças burguesas do século passado Ela deveria aprender a renunciar ao prazer corporal em troca do afeto dos pais O controle dos esfíncteres que era negligenciado em outras classes sociais passou a ser de muita importância para a família burguesa Daí a tensão a que estavam submetidos os filhos principalmente os que não se mostravam eficientes nessa tarefa eles eram ameaçados de perder o que era essencial a afeição dos pais Estava formada pois a cadeia que une amor e autoridade para ter o amor dos pais o que era de importância vital para a criança burguesa seria necessário que ela também os amasse amálos seria corresponder às expec tativas com as quais os pais a cobriam Portanto amar é sub meterse e nâo amar seria uma alternativa insuportável O poder parental é travestido de amor para submeter os filhos Essa submissão do corpo em troca do amor dos pais conti nuava a mesma no estágio genital e tornava mais agudas as vivências conflitivas pois nesse estágio a masturbação era severamente reprimida Mudava o foco corporal mas continuava vigindo com todo vigor o princípio da educação burguesa o controle sõbre o corpo ou submissão aos pais em troca da afeição parental Ê nesse o in d iv íd u o e a s in s t it u iç õ e s estágio que se desenvolve um esforço sistemático para protelar a satisfação sexual A situação conflitiva vivida pela criança culminava com o aparecimento em cena da ambivalência e do sentimento de culpa A negação dos prazeres corporais provoca a cólera dirigida àquele que impede a sua fruição ou seja a mãe mas esta é ao mesmo tempo o seu principal objeto de amor Tornase portanto impossível transformar em ação o sentimento de ódio contra a mãe como também éIhe insuportável a simples idéia de odiar a pessoa que a ama e a quem tanto ama Esta situação produz portanto ambi valência e sentimento de culpa e fornece as bases para a formação do superego como foi descrito por Freud pela internalização das normas definidas pelos pais no relacionamento com os filhos e que se baseiam numa determinada combinação dos fatores amor e autoridade segredo da estrutura da família burguesa foi que sem intenção consciente de parte dos pais jogou com os sentimentos intensos de amor e ódio que a criança experimentava por seu corpo e por seus pais de tal modo que as regras parentais foram inter nalizadas e cimentadas no inconsciente com base em ambos os sentimentos amor e ódio cada um trabalhando para sustentar e reforçar o outro O amor como ideal de ego e o ódio como superego atuaram ambos para promover atitudes de respeitabili dade burguesa Assim a família gerou o burguês autônomo um cidadão moderno que não necessitava de sanções ou apoios externos mas estava automotivado para enfrentar o mundo competitivo tomar decisões independentes e baterse pela aquisição do capitalS Assim a família burguesa definindose pelo isola mento privilegiando a privacidade a domesticidade e supervalo rizando suas relações emocionais internas ao formar o cidadão autodiscipHüado estava servindo para promover os interesses da nova classe dominante e registrar de um modo sem paralelo os conflitos de idade e sexo16 Poster apresentanos a família burguesa como criada por uma nova classe que veio se estabelecer como dominante Jurandir Freire Costa17 descreve a transformação da estrutura familiar da classe dominante brasileira do século XIX Mantendose como classe 15 Idem ibidem p 193 16 Idem ibidem p 195 17 Costa Jurandir Freire Ordem médica e norma famffiar Rio de Janeiro Graal 1979 114 JOSÉ ROBERTO TOZONI REIS dominante os senhores coloniais brasileiros passaram a adotar o modelo de família nuclear burguesa em substituição à família colonial extensa servindo à formação de um Estado nacional Essa transição foi desencadeada pelo movimento higienista que respal dado na autoridade médica produziu uma nova família com padrões internos que muito se assemelhavam à família burguesa européia uma rígida hierarquia de idade e de sexo e uma peculiar combinação entre amor e autoridade que ensinavam aos filhos a renúncia ao prazer corporal em troca da afeição parental e que tem por resultado a ambivalência e o sentimento de culpa Até aqui vimos a família por um lado como instituição que tem por importante função a reprodução da ideologia e por outro consideramos a dinâmica interna da família burguesa Como se articulam esses dois universos Para responder a esta interrogação é necessário recorrer à noção de papel social Não há consenso na literatura sociológica quanto à definição de papel O uso do termo papel social é tomado por referência a J L Moreno que divide os papéis em três categorias os psicos somáticos os sociais e os psicodramáticos18 T Salem19 denomina apenas papel o que é aqui designado como papel social e expõe sua definição de forma precisa O conceito de papel engloba dois aspectos analítica e empiricamente distintos Referese de um lado às expectativas de desempenho que recaem sobre um ator pelo fato de ocupar uma determinada posição social Essas expectativas que cristalizam tipificações de padrões interacionais são veiculadas por outros atores que em virtude da relação particular que mantêm com o ator em questão se configuram em outros significativos para ele Ê exatamente essa qualidade que converte suas emissões em demandas legítimas e significativas para o ocupante daquela posição Por outro lado o conceito de papel se refere também ao desempenho efetivo levado a cabo por um ator no exercício de sua função A idéia de 118 Os papéis psicossomáticos correspondem às funções biológicas da espécie na satisfação das necessidades vitais como comer defecar urinar os sociais correspondem aos padrões de conduta culturalmente produzidos e reproduzidos e os psicodramâticos compreendem os papéis das categorias anteriores sempre que revitalizados através do uso da imaginação criadora Ver Moreno J L Teoria y practica de los roles in Moreno J L Pskoama Seção V Buenos Aires Éd Hormé 1972 pp 213241 19 Salem Tania 0 vetho e o novo um estudo de papéis e conflitos familiares Petrópolis Vozes 1980 O INDIVÍDUO e AS INSTITUIÇÕES tis comportamento conforme é aqui entendida engloba não apenas a prática expressiva do ator isto é os dados observáveis de seu comportamento como também as suas representações ou seja a maneira particular como retrata e explica suas práticas segundo sua própria lógica20 Alguns aspectos merecem ser destacados os papéis têm sempre um caráter interacional isto é seu desempenho exige um contrapapel que o complemente ao mesmo tempo que significam também cristalizações de padrões de conduta Além disso os papéis sociais são engendrados pelas relações sociais e inseridos numa rede de significações Por isso não podem ser separados da ideologia dominante fodese dizer que os papéis sociais ao prescreverem formas rígidas de conduta como as únicas alternativas possíveis para um sujeito numa dada situação são a própria ideologia corporificada Se o papel social e a ideologia mantêm uma certa identidade é na família local privilegiado de reprodução ideológica que se desenvolve o aprendizado do primeiro papel social o de filho Na família burguesa esse papel é desenvolvido a partir da submissão aos pais definida pelo exercício do controle sobre o próprio corpo em troca do afeto parental Essa estrutura relacional solidifica as bases para o pleno desenvolvimento do papel de filho prescrito pela ideologia vigente A submissão inicial se transforma em aceitação dos valores dos pais e é apresentada como natural e necessária No que consiste hoje por exemplo o papel de filho numa família pequenoburguesa inicialmente ele deve obedecer aos pais apren dendo a controlar os esfíncteres os impulsos sexuais e manterse limpo Quando ingressa no mundo extrafamiliar esperase que represente bem sua família sendo bom aluno na escola apren dendo as lições escolares e transferindo aos professores a relação de obediência aprendida com os pais e que seja modelo de bom comportamento em todas as situações evitando preocupar os pais Obediência aos pais significa assim aceitação de normas que já estavam definidas quando ele nasceu aceitação sem questiona mento isto é submissão Tudo isso em troca do afeto dos pais O que o papel esconde é que ele é constituído a partir das relações sociais determinadas pela divisão social do trabalho e pela dominação de classe A família que circunscreve esse papel produto 20 Salem Tania op cit pp 2526 M6 JOSÉ ROBERTO TOZONI REIS histórico aparece como algo natural de tal forma que os papéis sociais familiares aparecem também como naturais ou seja como invariáveis e independentes das relações sociais de classes Isto é a pura ideologia atuando Já vimos como o Estado determina os papéis sociais em função de seus interesses Quando não pode fazer isso através de leis usa dispositivos que insinuandose no tecido social onde devem atuar vão criar normas para as condutas dos diferentes membros da família E o papel social familiar não apenas outorga essas normas como esconde o processo de sua constituição histórica O ponto culminante do aprendizado do papel social de filho situase na triangulação edipiana na qual o sujeito aprende a inter dição básica que lhe é imposta e reconhece a autoridade paterna introjetandoa A forma como os pais desempenham seus papéis nessa fase é de grande importância para o estabelecimento do superego da criança e para a formação do papel de filho que será o suporte para o desenvolvimento de outros papéis sociais Não se deve esquecer que também a ação dos pais é regida pela ideologia que prescreve as formas de ação parental tanto no que se refere ao cuidados físicos dos filhos quanto aos aspectos da vida emocional Portanto a família nuclear burguesa inserida nas relações sociais mais amplas vai modelar o desenvolvimento dos papéis sociais de seus membros em função de determinações que a trans cendem de forma que os papéis sociais na sua estrutura e dinâmicas próprias nada mais fazem do que repetir e concretizar num âmbito microssociológico a estrutura de contradição e oposi ção básica que se realiza num âmbito maior entre papéis históricos constituída pela relação dominadordominado 21 Quando a família burguesa leva suas funções às últimas conseqüências ensinando a submissão desde o início da vida faz com que essa estrutura relacional se transfira para os outros papéis sociais que terão tio papel de filho o seu molde Ao formar o indivíduo obediente e autodisciplinado com iniciativa apenas para baterse pelos ideais da ascensão social e econômica a família está preparando o cidadão passivo acritico conservador sem espontaneidade e incapaz de criar repetidor de fórmulas veiculadas pela ideologia dominante 21 Naftah Neto Alfredo Psicodrama Descolonizando o imaginá rio São Paulo Brasiliense 1979 p 193 O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES U7 pronto a seguir e obedecer quem se apresente revestido de auto ridade em defesa da ordem estabelecida Se a família nuclear burguesa hoje corresponde ao padrão dominante de estrutura familiar difundido entre outras classes sociais uma importante questão a ser colocada referese à ampli tude com que outras classes foram impregnadas pelos padrões familiares burgueses Ou até mesmo em que nível a família burguesa mantém atualmente os padrões que a definiram no século passado Novos e importantes elementos têm aparecido constantemente no panorama social e a família não fica imune a essas influências Hoje podese perguntar por exemplo qual é a conseqüência para a vida familiar do ingresso maciço das mulheres na universidade e no mercado de trabalho Onde isto ocorreu a mulher se livrou da clausura doméstica Podese pensar então que ela se livrou também da dominação masculina Hâ denúncias de que o simples ingresso no campo do trabalho extradoméstico veio piorar ainda mais suas condições de vida pois ela continua sozinha nas obrigações do trabalho doméstico tendo agora duas jornadas de trabalho princi palmente quando não tem condições de manter uma empregada doméstica Poderseia também questionar sobre as implicações dessa nova situação para a educação dos filhos que deixaram de ter a intensa interação com a mãe típica do início da família burguesa Outro fato importante da vida contemporânea é a presença da televisão na grande maioria dos lares Essa presença provoca um rompimento das distâncias culturais e oferece o risco da padro nização dos valores e costumes esmagando as culturas periféricas Podese pensar a partir dessa realidade que os padrões familiares caminham para uma progressiva padronização abolindo as formas particulares que caracterizam grupos de diferentes regiões ou segmentos sociais E as crianças estarão menos subordinadas aos pais por estarem em idade precoce em contato com um repertório de informações que não seriam acessíveis às crianças de gerações anteriores Os movimentos feministas também têm tido importante atuação no sentido de despertar as consciências para a necessidade da transformação das condições de vida da mulher principalmente entre as classes médias urbanas e em setores do operariado Estas questões todas não podem ser respondidas de uma só ve2 dado sua abrangência No entanto é possível abordar algumas delas situandoas no conjunto Uma dessas possibilidades referese 118 JOSÉ ROBERTO TOZONl REIS á tentativa de entender os atuais padrões familiares Nesse sentido podemos constatar que a família nuclear burguesa continua predominando apesar de algumas modificações e adaptações Embora seja freqüentemente contestada e ainda que sejam feitas tentativas para viabilizar novas formas de organização familiar que superem a dominação e a repressão a estrutura familiar que associa amor e autoridade ainda prevalece com alguns outros traços típicos da família burguesa original como a rígida divisão dos papéis sexuais e a repressão à sexualidade No entanto isso nâo significa que essa família esteja navegando em mares calmos como no passado Embora mantendose traz agora gritantes conflitos instalados em seu interior que em geralT são desencadeados pelas gerações mais novas Nesse sentido são as classes médias que apresentam com mais ênfase os padrões familiares burgueses e ao mesmo tempo exprimem mais claramente a existência desses conflitos Elas demonstram de forma mais evidente a força da ideologia veiculada pela família pois as novas realidades são vividas como experiências bastante conflitivas e angustiantes ao oporem a necessidade de adotar novas condutas aos valores inculcados pela família num doloroso processo que reativa o princípio da educação burguesa que associa amor e autoridade Por isso é comum o sentimento de culpa apresentarse como entrave maior do que a própria ação direta dos pais no processo de transformação dos valores Uma das principais armas do conservadorismo na luta pela manutenção dos padrões tradicionais ainda é a educação desen volvida segundo os moldes da família burguesa Em trabalho anterior22 estudamos as representações de família de participantes de um grupo de psicoterapia psicodramática bem como as irra diações para outros papéis das características dos papéis familiares Em grande parte nossas observações são coincidentes ou comple mentares às elaboradas por T Salém em trabalho desenvolvido com outra metodologia23 Os dois grupos estudados pertencem à classe média Neles havia representantes de diferentes segmentos desde funcionários públicos até diretores de empresas 22 Reis José Roberto Tozoni A família e a reprodução da ideologia Um estudo através do psícodramat Dissertação de Mestrado PUC São Paulo 1983 23 A autora entrevistou separadamente os membros das famílias estudadas e comparou posteriormente as respostas As entrevistas tinham como temas diferentes aspectos da vida familiar O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 119 Um dos pontos colocados em destaque por esses estudos é â autorepresentação da família que se contradiz com as vivências concretas de seus membros Quando se referein ao conceito d família predomina a idéia de harmonia e de disponibilidade incondicional de amor e proteção entre seus membros Quando se fala das relações concretas fazse referência a conflitos dominação sensação de sufoco e opressão Isso provoca o que chamamos de tendência â dissimulação toda vez que algum acontecimento é percebido como passível de colocar em risco a noção idealizada de família tudo é feito para que ele não seja percebido Em casos mais extremos os filhos reprimem qualquer sentimento de hostilidade dirigido aos pais ou irmãos Tudo aquilo que difere da idéia que a família faz de si mesma deve ser negado A prevalência da rígida divisão de papéis sexuais faz com que a família contemporânea se assemelhe bastante à sua ancestral Várias características dos papéis de homem e mulher permaneceram imutáveis Os homens vivem do e para o trabalho e sem ele a vida não tem sentido Por isso temem a aposentadoria pois ela é associada à morte Para eles não há a possibilidade de vida sem os seus trabalhos24 A funçào principal das mulheres como as suas antecessoras contínua sendo a educação dos filhos Algumas tra balham fora Umas o fazem por necessidade econômica mas o fato de ajudarem na manutenção material da família não as libera das obrigações domésticas Para outras o trabalho foi uma forma de combater o vazio e a depressão causados pelo crescimento dos filhos Não tendo mais sua função primordial para desenvolver foi neces sário buscar fora de casa outra ocupação para não sucumbir Em vários casos os filhos e maridos eram os motivos pelos quais a mulher começava a trabalhar ficar em casa poderia provocar vazio ou tédio e com isso desagradar filhos e marido Em ambos os trabalhos citados os homens caracterizamse por um sentimento de autorealização e autonomia acreditandose livres e autores dos roteiros de suas respectivas vidas Esse sentimento era mais acentuado naqueles que haviam experimentado uma ascensão econômicosocial em relação a suas famílias de 24 E impressionante a coincidência do significado atribuído ao trabalho em duas situações bem diferentes no trabalho citado de T Salem quando foram entrevistados todos os país e nas sessões de psicodrama que estudamos quando os filhos dramatizavam os papéis de seus respectivos pais 120 JOSÊ ROBERTO TOZONl REIS origem Ao mesmo tempo relatam sentimentos de solidão e difi culdades para ter amigos Quando os pais sentiam que haviam deixado de ter um benefício pelas dificuldades da vida passada faziam o possível para que isso não faltasse a seus filhos Isso fica muito claro em relação ao diploma universitário Aqueles pais que nâo o possuíam e por isso valorizavam mais as atividades práticas eram os mais empenhados em que os filhos o obtivessem O diploma universitário além de ser considerado um instrumento que facilita o acesso a uma melhor vida material é também considerado como uma marca de distinção social Já as mulheres definemse pela dedicação ao marido e aos filhos o objetivo principal de sua vida está nos outros e por isso se vêem com menos autonomia Sua atuação caracterizase pelos aspectos emocionais ao contrário dos maridos Essas diferenças se apresentam em relação de complementaridade até mesmo no exercício do controle sobre os filhos Enquanto o pai usa explici tamente sua autoridade a mãe lança mão de formas indiretas como a sedução e a chantagem emocional25 Essas características femi ninas mantêmse mesmo nos casos em que a mulher é tão responsável quanto o homem pela manutenção material da família isto é quando tem ganhos equivalentes aos do marido A família atua no sentido do aprendizado diferenciado dos papéis sexuais ao tratar diferentemente filhos e filhas Enquanto os filhos são estimulados a serem independentes sem contudo romper com os valores da geração mais velha as filhas são resguardadas e os pais desenvolvem um esforço sistemático para retêlas no universo familiar A vida profissional e sua preparação os estudos cons tituem a principal preocupação e objeto da vigilância dos pais em relação aos filhos enquanto que para as filhas a principal preocu pação referese à vida afetivosexual Se a formação universitária ê tida como necessária para os filhos para as filhas tem o sentido de proporcionar status ao paí ou ao marido Para elas o diploma deve ser usado como exercício profissional apenas em caso de neces sidade Os filhos reproduzem a autoimagem do progenitor do mesmo sexo enquanto os filhos sentemse livres e donos de seus próprios 25 No grupo que estudamos um dos sujeitos relatou que quando os irmãos começavam alguma briga a mãe ficava nervosa ou ameaçava desmaiar e assim acabava com qualquer briga O INDIVÍDUO e a s i n s t i t u i ç õ e s 121 destinos as filhas sentem a vida determinada por outros e limitada pela família Para os filhos a opção profissional é sentida como exercício da liberdade e da autonomia para as filhas a escolha profissional se caracteriza por sentimentos de insegurança A sexualidade continua ocupando papel destacado na família contemporânea Ainda é vista como algo a ser controlado princi palmente por parte das mulheres A virgindade das filhas constitui grande preocupação para os pais Em todos os casos de pacientes de psicoterapia que estudamos a sexualidade se constituía em núcleo de conflito Existem em geral duas referências a ela uma à sexualidade genericamente referida a sexualidade abstrata que é apresentada como algo natural e prazeroso outra à vivência con creta de cada um nela a sexualidade é causadora de sentimento de culpa e de angustia Essa percepção da sexualidade foi desenvolvida no seio da família embora de forma sutil Todos aprenderam a ver o sexo como errado e pecaminoso embora não se lembrassem de qualquer condenação das atividades sexuais falada abertamente Há uma nova realidade em relação à família burguesa original que às vezes faz da sexualidade um fator de mudança familiar Com a liberalização dos costumes sexuais tem aumentado progressiva mente as possibilidades de transgressão dos padrões sexuais restri tivos No caso da perda da virgindade feminina há sempre um choque e a instalação de uma crise familiar a partir do momento em que o fato se toma conhecido Essa situação pode provocar dife rentes desfechos que vão desde a marginalização e expulsão da filha transgressora o que se torna cada vez mais incomum até a uma adaptação da família à nova situação Neste caso a família acaba por reformular o padrão que associa virgindade e possibilidade de casamento Outro ponto crítico do relacionamento entre pais e filhos é a ligação destes com membros de fora do grupo familiar As amizades são objeto de constante vigilância e muitas vezes elas são respon sabilizadas pelas condutas reprováveis dos filhos Isto se dá princi palmente porque os grupos de pares que se formam a partir da adolescência são bases de apoio para a oposição dos filhos aos pais Esses grupos providenciam importantes trocas afetivas entre seus componentes e por isso podem substituir pelo mepos ftírcíalmente o grupo familiar Na realidade eles permitem que os filhos se sintam mais independentes da família à medida que esta deixa de ser a única fonte de afeto Não dependendo mais exclusivamente da 122 JOSÊ ROBERTO TOZONI REIS família como em geral ocorre durante a infância os filhos já podem questionar os valores que a família lhes impde26 Nos processos de psicoterapia a família é o núcleo da grande maioria das queixas Em geral a família é percebida pelo viés da ideologia Ás posições ocupadas por seus membros no conjunto das relações familiares sâo tidas como fixas e portanto imutáveis Os filhos na sua maioria sentemse impotentes diante de tal situação ao mesmo tempo que se sentem como vítimas do poder paterno que as oprime Assim fazendo não percebem o quanto também contri buem para a manutenção de tal realidade ao complementar o papel materno com o de filho submisso Imobilizado pelo sentimento de culpa Os sujeitos tinham dificuldade para perceber a real função da mãe no controle sobre os filhos pois atribuíam a ela a simples condição de vítima do poder paterno De fato na maioria dos casos as mães também são vítimas do pai Mas ao mesmo tempo elas ajudam a exercer o controle sobre os filhos Para essa finalidade podem ter até mesmo um papel mais importante que o do pai pois usam de meios mais sutis27 Assim podemos concluir que certas características funda mentais da família burguesa típica do século passado que criou novos padrões para a vida familiar adequados às necessidades da nova classe dominante continuam presentes nas famílias contem porâneas Entretanto essa presença se dá parcialmente porque hoje são outras as condições históricas O modo de produção econômico correspondente aos interesses burgueses parece debater se com dificuldades cada vez maiores para sua sobrevivência À estrutura familiar burguesa assim como o modo de vida que a originou é assediada por todos os lados inclusive internamente Algumas mudanças já se processaram e outras se fazem pressentir Mas ainda continua vigindo a rígida hierarquia de sexo e de idade assim como a associação entre amor e autoridade Ambos atuando 26 Uma das pacientes do grupo estudado revelou que sua solidão e sua dificuldade para estabelecer relacionamentos afetivos estáveis foram aprendidas na infância os pais lhe ensinaram que apenas membros da família poderiam se gostar e que estranhos apenas teriam interesse por ela Isso ocorreu quando ela ingressou no jardim da infância e contou em casa que gostava muito da professora e se sentia gostada por ela 27 Um estudo de Naffah Neto J0 drama da família pequenobur guesa in Naffah Neto A Psicodramatt2ar São Paulo Ed Ágora 1980 evidencia a existência de um poder reservado para a mãe no espaçodomôstico correspondente ao de chefe ideológico da família O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES m associadamente ainda produzem sofrimento e angústia ao mesmo tempo que fornecem as bases para o adestramento ideológico Embora reconhecendo as determinações econômicas da estrutura familiar nào podemos esperar que as transformações econômicas produzam por si mesmas e de forma automática as mudanças na vida familiar em direção a uma família mais tolerante e promotora do bemestar emocional de seus membros No entanto constatamos também a ocorrência de algumas transformações na família dentro de um mesmo modo de produção econômico como é o caso da família burguesa Mas sabemos também que uma estrutura familiar predomi nante que promova incondicionalmente o bemestar de seus membros apenas será possível quando ela não mais se definir por um fechamento e uma oposição ao mundo extrafamiliar ou seja quando voltar a integrar seus membros na comunidade que a cir cunscreve o que não significa voltar a modelos historicamente superados E isso apenas será possível quando a competição deixar de ser o motor do relacionamento entre os homens Bibliografia Almeida Maria Suely Kofes et alii Colcha de retalhos estudos sobre a família no Brasil São Paulo Brasiliens 1982 Althusser Louis Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado trad Joa quim José de Moura Ramos Portuga PresençaBrasil Martins Fontes 1974 Canevacci Massimo org Dialética da Família trad Carlos Nélson Gou tinho São Paulo Brasiliense 1982 Costa J F Ordem Médica e Norma Familiar Rio de Janeiro Ed Graal 1979 Biblioteca de filosofia e história das ciências vol n 5 Engels F A origem da família da propriedade privada e do estado Rio de Janeiro Vitória 1964 Marcuse H Eros e Civilização uma interpretação filosófica do pensa mento de Freud trad Álvaro Cabral Rio de Janeiro Zahar 1972 Marx K e Engels F La ideologia alemana Trad do alemào por Wen ceslao Roces 4 ed Buenos Aires Ed Pueblos Unidos 1973 Moreno J L Psicodrama trad Daniel Ricardo Wagner 2 ed Buenos Aires Ed Hormé 1972 Naffah Neto Alfredo Psicodrama descolonizando o imaginário Sào Paulo Brasiliense 1979 Psicodramatizür São Paulo Ed Ãgora 1980 Poster M Teoria crítica da família trad Ãlvaro Cabral Rio de Janeiro Zahar 1979 124 JOSÉ ROBERTO TOZON1 REIS Reis José Roberto Tozoni A família e a reprodução da ideologia um estudo através do psicodrama Dissertação de Mestrado PUC São Paulo 1983 Salem Tatiia O velho e o novo um estudo de papéis e conflitos fami liares Vozes Petròpolis 1980 O processo de socialização na escola a evolução da condição social da criança Marília Gouvea de Miranda O processo de socialização da criança na escola tem merecido dos pedagogos e psicólogos variados estudos explicativos e nonna tivos Contudo os diferentes enfoques teóricos e metodológicos sào construídos tomando por base determinadas concepções raramente questionadas ou redefinidas a idéia de infância a finalidade da escola as relações entre criança escola e sociedade e o próprio processo de socialização A ausência de análise crítica destas questões confere a esta abordagem uma visão abstrata de criança e escola A idealização de uma natureza infantil e de uma função socializadora da educação destituída de seu caráter histórico e socialmente deter minado reduz a teoria a uma finalidade pragmática e profunda mente ideológica promover a integração de uma criança abstrata a uma sociedade harmônica via processo de escolarização essencial mente neutro Em vista disto 1 s propomos a discutir a socialização na escola a partir da avaliação das concepções que dão suporte teórico e ideológico às abordagens não criticas psicológicas e pedagógicas sem pretensões de esgotar a questão Nosso pressuposto é que a redefinição do processo de socialização passa pela análise da produção destas idéias básicas ou seja a retomada dos deter minantes históricos e sociais da concepção de criança e escola 126 MARlLlA GOUVEA DE MIRANDA A idéia de infância a condição social de ser criança A idéia de infância tal qual a concebemos hoje surge simultaneamente ao sentimento de família e ao desenvolvimento da educação escolar Certamente não se trata de uma coincidência Tais transformações resultaram da organização das relações sociais de produção da sociedade industrial Na Idade Média e no início dos tempos modernos os filhos eram evidentemente cuidados e protegidos por seus pais no seio de uma organização familiar Mas a existência de família nào implicava um sentimento de família que unisse emocionalmente seus membros em núcleos isolados o que iria se desenvolver lentamente a partir do século XVII em torno do sentimento de infância Ariès 1981 Anteriormente à sociedade industrial a duração da infância se limitava à tenra idade em que ela necessitava dos cuidados físicos para a sua sobrevivência Logo que este desenvolvimento físico fosse assegurado aproximadamente aos sete anos segundo Ariès a criança passava a conviver diretamente com os adultos comparti lhando do trabalho e dos jogos em todos os momentos A apren dizagem de valores e costumes se dava a partir do contato com o adultos a criança aprendia ajudando aos mais velhos Logo a socialização acontecia no convívio com a sociedade não sendo determinada ou controlada pela unidade familiar Nesta forma coletiva de vida se misturavam idades e condições sociais distintas não havendo lugar para a intimidade e a privacidade A fajrrilia moderna que se estabeleceu na burguesia a partir do século XVIIi veio instalar a intimidade a vida privada o sentimento de união afetiva entre o casal e entre pais e filhos Sua consolidação aconteceu graças à destruição das formas comunitárias tradicionais reorganÍzandose em função das necessidades da ordem capitalista Segundo Ariès a aprendizagem social vai deixando de se realizar através do convívio direto com os adultos sendo substituída pela educação escolar a partir do fim do século XVII Sob a influência dos reformadores moralistas paulatinamente se admitia que a criança não era preparada para a vida cabendo aos pais a responsabilidade pela formação moral e espiritual dos filhos o que levou ao aparecimento de sentimentos novos nas relações entre os membros familiares o sentimento moderno de família Os pais pas saram a enviar seus filhos à escola onde receberiam a sólida 01NDTVIDUO E AS INSTITUIÇÕES formação proclamada pelo pensamento moralista da épOOft Allim segundo esse mesmo autor a família e a escola retiraram Juntai A criançada sociedade dos adultos 1981 p 277 r E importante salientar que tais transformações ocorreram em primeiro lugar nas familias burguesas sendo que a alta nobreza e o povo conservaram por mais tempo os antigos padrões Aries observa que o sentimento de família e de infância surgem do mesmo processo pelo qual se desenvolveu o sentimento de classe social da burguesia ascendente No século XVII por exemplo as crianças ricas costumavam freqüentar as escolas de caridade No século XVIII tal fato já não era admitido passando os filhos da burguesia a freqüentar os colégios garantindo o seu monopólio As considerações destes fatos históricos nos permitem com preender como a idéia moderna de infância foi determinada socialmente pela organização social capitalista definida pelos interesses de uma classe ascendente a burguesia Contudo a idéia de infância que se desenvolveu e chegou até nossos tempos não exprime seu fundamento histórico Ao contrário suprimeo ao se apresentar como se fosse um conceito eterno universal e natural Em conseqüência é dissimulada a dimensão social da relação da criança com o adulto e a sociedade Assim a criança que na sociedade medieval convivia com os adultos em todos os momentos é afastada deste convívio Com isto perdeu a possibilidade de opinar sobre decisões que lhe diziam respeito foi excluída do processo de produção as festas e jogos foram diferenciados restando à criança a condição de mera consumidora de bens e idéias produzidos exclusivamente pelos adultos Tomase então um ser cuja condição social é rejeitada pois é marginalizada econômica social e politicamente Charlot 1971 p 111 Charlot analisa a imagem moderna da criança como um ser usualmente definido pelo que tem de contraditório inocente e má imperfeita e perfeita dependente e independente herdeira e ino vadora idem p 101 Esta dupla face da criança é explicada pela sua própria natureza infantil A criança estaria desprovida de meios para enfrentar o mundo por isso é naturalmente inocente e naturalmente má A idéia de infância como fato natural e não social justifica todas as concepções comuns sobre a criança e tem a função ideológica de dissimular a sua desigualdade social enquanto ser à margem do processo de produção 128 MARlLIÀ GOUVEA DE MIRANDA Apesar de a idéia de infância ser uma representação dos adultos e da sociedade a criança tende a internalizar este modelo e acaba por tornálo sua realidade em parte se identificando e em parte se rebelando contra os preceitos naturais que negam sua condição social Enquanto a assimilação da imagem corresponde às aspirações do adulto e da sociedade a rebeldia corresponde ao temor da nãoassimilação que é preciso a todo custo evitar Para Charlot a criança é assim o reflexo do que o adulto e a sociedade querem que ela seja e temem que ela se torne idem p 109 Tanto a assimilação do modelo quanto a sua recusa são plenamente justificadas pela idéia de natureza infantil Ideologicamente fica legitimada a necessidade de se auxiliar a criança no seu processo de assimilação das normas e penalizar aquelas que as recusam em nome de uma condição natural na criança A ênfase à natureza infantil encontra seu fundamento segundo muitos autores e mesmo a nível do senso comum no processo biológico de desenvolvimento da criança Sem dúvida ela é um ser em formação biológica ainda não plenamente constituída do ponto de vista maturacional Contudo o desenvolvimento biológico não corresponde a toda realidade da criança Mesmo porque o aspecto biológico se caracteriza como um componente do desen volvimento que sofre as determinações da condição social do indivíduo Na verdade o que caracteriza o homem ê sua condição de ser social o que é em parte determinado pela sua condição biológica mas nâo inteiramente Independentemente de sua origem social a criança passa por um processo de maturação biológica em que seu desenvolvimento depende da mediação do adulto Contudo esta mediação se fará de diferentes maneiras às vezes opostas dependendo da condição social da criança Na sociedade capitalista definida pelas relações estabelecidas entre classes sociais antagônicas a origem da criança determina uma condição específica de infância Não existe por tanto uma natureza infantil mas uma condição de ser criança socialmente determinada por fatores que vão do biológico ao social produzindo uma realidade concreta Assim a dependência da criança é um fato social e não um fato natural Esta distinção entre natureza e condição infantil esclarece o uso ideológico da idéia de natureza infantil para a dissimulação das diferentes condições a que são submetidas as crianças em função de sua origem de classe Falar do que é natural na criança supõe a igualdade de todas as crianças a idealização de uma criança o i n d i v í d u o e a s i n s t i t u i ç õ e s 129 abstrata Pelo contrário falar da condição de criança remete à consideração de uma criança concreta socialmente determinada em um contexto de classés sociais antagônicas A representação de infância subjacente às concepções peda gógicas e psicológicas tende a reproduzir a imagem social de infância de sua época evoluindo historicamente Na educação podemos distinguir duas concepções distintas de criança na pedagogia tradicional e na pedagogia nova Ambas conservam a idéia de natureza infantil Segundo Chariot todas as duas abordam a criança do ponto de vista de sua educabilidade e sua corruptibilidade ainda que esta idéia de corrupção seja completamente diferente idem p 116 Para a Pedagogia tradicional a idéia de criança é a idéia do que ela deverá ser se for adequadamente educada Quando relegada à sua própria sorte é facilmente corrompida pelo mal Cabe à educação ensinar normas é conteúdos moralmente sadios que contrariem sua natureza selvagem lá a pedagogia nova vê a criança como um ser pleno para a autorealização em cada etapa de desen volvimento É portanto naturalmente boa e ingênua podendo ser corrompida se não for protegida e respeitada A tarefa da educação é favorecer seu desenvolvimento natural e espontâneo Nas duas pedagogias a criança é portanto definida como um tempo negativo pedagogia tradicional ou tempo positivo pedagogia nova de uma natureza infantil Ainda que seja inegável a contribuição da pedagogia nova para uma visão mais adequada da criança ela não escapa de uma visão naturalista e biológica da infância descon siderando a condição históricosocial da criança A psicologia moderna se desenvolve no mesmo período em que ganha força o movimento da escola nova a partir do fim do século passado em plena consolidação do poder burguês A crença na educação como equalizadora de oportunidades é abalada pela incapacidade da escola de cumprir sua função de universalidade conforme era proclamado pela ideologia liberal O movimento escolanovista vem restaurar a credibilidade na escola afirmando que o fracasso de seus alunos se deve às diferenças individuais A função da nova escola será promover a correção da margi nalidade na medida em que contribuir para a constituição de uma sociedade cujos membros não importam as diferenças de quaisquer tipos se aceitem mutuamente e se respeitem na sua individualidade específica Saviani 1983r p 12 A ênfase na capacidade indi vidual na história dos indivíduos no processo de desenvolvimento 130 MARlLIA GOUVEA DE MIRANDA na idéia de anormalidade faz com que a pedagogia vá buscar suporte teórico na Biologia e na Psicologia A Psicologia por sua vez sob forte inspiração positivista reduz a realidade social do homem ao seu componente psíquico Assim a Psicologia moderna que vem ao auxílio da Pedagogia nova será portanto igualmente individualista naturalista e biológica Socialização nSo é integração a criança já é sempre socializada A Pedagogia e a Psicologia têm quase sempre tratado o processo de socialização como um estágio de integração da criança à sociedade Vimos que tanto a Pedagogia tradicional quanto a Pedagogia nova se preocuparam em fazer da escola uma passagem do mundo infantil para o mundo adulto levando em conta o que a sociedade espera de seus membros em defesa da manutenção de seus interesses Na sociedade medieval a idéia de integração não teria sentido algum uma vçz que o espaço social era igualmente eompartÜhado por crianças e adultos Como vimos a necessidade de integração surgiu com a exclusão das crianças do mundo dos adultos A instituição encarregada de iniciar a criança egressa do meio familiar na vida social adulta passou a ser a escola Na atualidade a escola continua propondo a integração social a socialização como uma de suas principais finalidades Tal finalidade atua como dissimuladora da realidade social pois ainda que marginalizada na estrutura social moderna a criança sofre continuamente um processo de socialização desde o seu nasci mento até mesmo antes no útero ou na própria história de sua mãe Portanto como afirma Charlot a criança é um ser sempre já socializado 1979t p 259 Nâo se pode supor como a Psicologia quase sempre o faz um desenvolvimento social individual que depois se amplia se integra ao mundo social adulto Desde sempre a criança jâ sofre um processo de socialização através do qual a sua origem social de classe determina sua condição de ser social A formação de sua personalidade social não passa primeiro por um estágio individual para depois se socializar Ainda que assuma os contornos de suas características especificas ela é sempre socia lizada Afirmar o contrário é acreditar numa capacidade própria do indivíduo natural para a socialização A marginalidade social O INDIVÍDUO AS INSTITUIÇÕES IJi seria então facilmente explicada pela incapacidade de adaptaço do indivíduo às normas sociais Fica assim plenamente justificada a finalidade ideológica da escola de promover a adaptação do indivíduo à sociedade A escola é uma agência socializadora de uma sociedade que se afirma democrática Se o processo de sociali zação integração não é possível preservase a escola e a ordem democrática pois a responsabilidade será sempre do indivíduo inadaptado Afastada a idéia de socialização enquanto integração pode mos recuperar a idéia de socialização evolutiva proposta por Charlot Para ele a socialização deve ser tratada como um processo evolutivo da condiçào social da criança Assim o problema não é investigar como a criança se socializa mas como a sociedade socializa a criança idem p 259 A Psicologia tem quase sempre tentado explicar como a criança se socializa abordando o processo pelo qual ela se trans forma em ser social A Psicologia não supera portanto o anta gonismo entre indivíduo e sociedade Não tem por objetivo uma análise dialética das relações entre a criança e a sociedade numa perspectiva de totalidade e historicidade A Psicologia estuda a socialização de uma criança que vive em condições sociais específicas e norma tiza suas conclusões para todas as crianças É perto que todas as crianças vivem um período de crescimento de desenvolvimento da personalidade num mundo social adulto que ainda não é inteiramente assimilado em qualquer meio social Mas este processo de desenvolvimento será diferente de acordo com sua condição social A Psicologia normalmente estuda esta complexidade de fatores como influência do meio Não percebe que o processo de desenvolvimento do indivíduo se inscreve num processo històricosocial que o determina e por sua vez é por ele determinado Assim o processo de socialização da criança é concretamente determinado pela sua condição históricosocial Além disso enquanto sujeito da história a criança tem a possibi lidade de recriar seu processo de socialização e através dele interferir na realidade social Afirmar que a criança é sujeito da ação pode causar certa estranheza numa sociedade que nega o papel social da infância Isto fica mais explicito quando consideramos as diferentes formas de participação da criança em condições sociais distintas As crianças pobres da cidade e da zona rural trabalham desde que tenham o desenvolvimento físico suficiente Muitas vezes sustentam suas 132 MARlLIA GOUVEA DE MIRANDA famílias Representara um importante contingente de trabalha dores quase sempre subempregados explorados pelas relações de produção Por outro lado as crianças dos diferentes estratos da classe média são consumidoras muito importantes enquanto filhos de consumidores o que será sempre lembrado pela publicidade pela indústria de brinquedos discos e livros pelas escolas parti culares etc Como trabalhadora ou como consumidora a criança participa ativamente enquanto ser social atuando mais ou menos de acordo com seu estágio de desenvolvimento físico Concluindo o processo de socialização da criança nâo pode ser tratado senào dentro da perspectiva da análise dialética das relações de reciprocidade estabelecidas entre a criança e a sociedade de classes o processo de socialização só pode ser tratado como um processo evolutivo da condição social da criança considerando a sua origem de classe A escola e sua flnaUdade social A escola certamente não é neutra Ela atua como um instrumento de dominação funcionando como reprodutora das classes sociais através dos processos de seleção e exclusão dos mais pobres e ao mesmo tempo da dissimulação desses processos Con tudo esse papel não se realiza perfeitamente pois tanto a escola quanto o saber por ela ministrado constituem partes orgânicas de um todo social definido pela contradição básica contida na relação entre dominantes e dominados Saviani conceitua a educação como uma atividade media dora no seio de uma prática social global 1980 p 120 A mediação ocorre tio âmbito das relações que produzem o movimento de uma totalidade que se transforma em outra e conseqüentemente no âmbito das relações entre diferentes fenômenos que constituem manifestações desta totalidade As relações de mediação expressam necessariamente o movimento de oposição de contradições irrecon ciliáveis em busca de uma síntese superadora A escola constitui uma das mediações possíveis na efetivação do conflito entre as classes sociais Isto se dá porque a escola configura uma manifestação do movimento da totalidade social reproduzindo internamente o confronto entre interesses opostos Portanto a escola que atende às finalidades dos dominadores pode também representar um espaço vivo e dinâmico para os dominados O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 199 A definição dos fins sociais da educação implicam poli â proposição dos interesses de uma determinada classe social O acesso à escola e a qualidade de ensino têm sido reivindicações das classes populares Contudo a escola tem respondido a estas aspirações com a experiência do fracasso e da marginalidade cuja responsabilidade é atribuída à própria criança ou ao seu meio social Em nossa opiniào a escola tem três tarefas básicas a desempenhar a favor dos interesses das classes populares Primei ramente deverá facilitar a apropriação e valorização das carac terísticas sócioculturais próprias das classes populares Em se gundo lugar e como conseqüência da primeira a escola deverá garantir a aprendizagem de certos conteúdos essenciais da chamada cultura básica leitura escrita operações matemáticas noções fundamentais de história geografia ciência etc Finalmente deverá propor a síntese entre os passos anteriores possibilitando a crítica dos conteúdos ideológicos propostos pela cultura dominante e a reapropriação do saber que já foi alienado das classes populares pela dominação Miranda 1983 pp 5455 O fato de essas funções não constituírem hoje uma prática concreta nas escolas não nos impede de lançálas como projeção daquilo que poderá viraser um produto de nossa vontade e de nossa ação Esta possibilidade deverá ser buscada dentro da escola pois este viraser está contido no seu movimento real A tarefa de propor uma educação voltada para os interesses populares requer a elaboração de uma Pedagogia adequada a esses fins Para Charlot a tradução de fins sociais em fins pedagógicos pode ser esclarecida e depurada pelo conhecimento da Psicologia da criança 1979 p 227 Mas certamente uma Psicologia que leve em conta a condição social da infância A Psicologia não define pois os fins da educação mas pode contribuir no sentido de fazer com que eles sejam realizáveis As relações entre criança escola e sociedade o processo de socializaçZo No convívio com a família a criança intemaliza padrões de comportamento normas e valores de sua realidade social decorrente de sua condição de classe Até mesmo antes de nascer tais condições estão presentes Este processo ocorre necessariamente pela mediação do outro De acordo com Spitz a ausência da figura 134 MARlLIA GOUVEA DE MIRANDA materna 110 primeiro ano de vida acarreta sérios distúrbios emo cionais para a criança A presença do outro um adulto quase sempre é veículo para 0 estabelecimento dos vínculos básicos e essenciais entre criança e mundo social através dos quais ela passa a se reconhecer e a reconhecer 0 outro numa relação de reciprocidade Como vimos tal processo de internalização viabilizado pela mediação do outro é determinado pelas condições sociais espe cíficas da criança Assim a classe social em que se insere a família irá determinar os aspectos internalizados o veículo de internali zação e o próprio processo de internalização na socialização básica da criança Na escola a criança vive um processo de socialização qualita tivamente distinto passando a internalizar novos conteúdos pa drões de comportamento e valores sociais Será submetida a novos processos de internalização da realidade social pela mediação de novos veículos sociais Uma crítica à escola capitalista é que ela impõe uma cultura que considera legítima tornando ilegítima qualquer outra manifes tação cultural Desse modo a escola pública nega muitos conteúdos e valores já socializados e propões novos padrões de socialização Uma escola democrática comprometida com os interesses popu lares deverá reconhecer a legitimidade desses aspectos já sociali zados Porém isto não implica reafirmar os padrões já socializados no sentido de preservar uma cultura dominada emergente mas de conhecer com profundidade os padrões de socialização da criança Isto possibilitaria extrair os aspectos que irào direcionar a prática pedagógica e até mesmo aspectos que precisarão ser supe rados para que seja possível a tarefa da escola de assegurar ao aluno a aprendizagem de um conteúdo mínimo A escola devefá portanto atuar crítica e reflexivamente na objetivação dos conteúdos normas e valores internalizados na relação entre criança e escola Da mesma forma é preciso repensar e recriar os processos de internalização e seus veículos sociais ou mais precisamente a metodologia de ensino as normas disciplinares os processos de sedução e coação etc veiculados por todos os integrantes da escola principalmente pela figura do professor Acreditamos que a Psicologia tem uma importante contri buição a dar um auxílio à Pedagogia na redefinição de todos estes aspectos relativos à socialização da criança na escola Problemas como indisciplina violência rivalidade competição descompro misso individualismo autoritarismo estão presentes no cotidiano O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 135 das escolas públicas brasileiras Tais questões são tratadas empiri camente ou se tanto são psicologizadas sob diferentes matizes teóricos Raramente são alvo de uma análise critica ou de propostas de ação refletidas na perspectiva de uma realidade histórico social Qual é pois o significado destes problemas de sociali zação Se considerarmos a precariedade do ensino público no país a péssima qualidade de vida da criança e todo o contexto da atualidade somos levados a afirmar que tais problemas de socialização são sinais de saúde resquícios de uma vitalidade negada formas de resistência Contudo são formas que atrapalham e até mesmo impedem o processo de escolarização da criança que em nossa opinião precisa ser assegurado Possivelmente a releitura desses sinais nos indicarão novas maneiras de repensar o processo de socialização da criança na escola Bibliografia Ariès Philippe História Social da Criança e da Família Rio de Janeiro Zafrar 1981 Charlot Bernrd A Mistificação Pedagógica Rio dc Janeiro Zahar 1979 Miranda Marílía Gouvea de Do Cotidiano da Escola Observações Pre liminares para ume Proposta de Intervenção no Ensino Público Dissert Mestrado São Carlos UFSCar 1983 Saviani Dermeval Educação do Senso Comum à Consciência Filosófica São Paulo Cortez 1980 Escola e Democracia São Paulo Cortez 1983 Relações de trabalho e transformação social Wandertey Codo A Psicologia é a ciência que estuda o comportamento humano Mas que comportamento humano estudar Como iniciar a análise Façamos um exercício fechemos por alguns momentos os livros que já foram escritos a respeito de Psicologia e pensemos ingenuamente no caminho a seguir Começo por mim agora escrevo um texto que deve fazer parte de minha tese de doutoramento O cenário Estou sentado em uma cadeira com uma caneta na mão frente a um bloco de papel uma estante livros paredes interruptor de luz lâmpada acesa Tudo que compõe o ambiente em que estou tem uma característica em comum é o resultado do trabalho humano Para que existisse qualquer um desses objetos homens se reuniram se Qrganizaram o trabalho foi dividido realizado e vendido Não fosse a organização social que produziu a cadeira eu nâo estaria sentado ou a caneta e eu não escreveria ou o papel ou as paredes Posso concluir que me comporto dessa forma porque os homens transformaram a natureza colocaramna a meu serviço e que me comportaria de outra se o trabalho humano produzisse outros resultados O INDÍVIDUO E AS INSTITUIÇÕES 137 Partindo do que me circunda imediatamente encontrei a resposta para a pergunta formulada no início O psicólogo deve estudar o trabalho humano Quem entender como os homens transformam a natureza como se organizam para produzir entenderá muito sobre como e por que o homem se comporta Mas o cenário não é o único ponto de partida posso prescindir do ambiente imediato e tomar como ponto de referência o gesto mesmo meu comportamento O que faço 1 Escrevo ou seja imprimo em um papel pape1 utilizo um instrumento capaz de marcar caneta movimento minha ferramenta e provoco uma mudança no espaço de que disponho Descubro que faço com a caneta e o papel o mesmo que o marceneiro fez para produzir a cadeira em que sento utilizo as propriedades encontradas na natureza e dou a elas um sentido novo transformo a natureza à minha imagem e semelhança Chego à mesma conclusão devo estudar o trabalho do homem 2 Escrevo imprimo sinais em um papel mas não imprimo qualquer sinal uso símbolos que foram desenvolvidos antigamente e que me foram ensinados na infância unifico os símbolos de determinada maneira que também têm a mesma históri a Escrevo papel e você lê papel sofreu experiência próxima da minha foi alfabetizado como eu Eu escrevo e você lê porque nossa sociedade se organizou para coletivizar as experiências que a História permitiu aos nossos antepassados E eisme de novo falando de História de trabalho do Homem que se hominiza ao humanizar a natureza Enfim sob qualquer aspecto que examine meu comporta mento de qualquer ponto que eu parta do agora do passado do futuro do meu cérebro ao meu braço ou viceversat da minha sociedade para o meu comportamento ou viceversa chego à mesma conclusão urge estudar o trabalho Mas talvez este não seja ainda o ponto de partida adequado talvez meu comportamento seja avis rara exceção Deveria então partir do que os outros fazem Vejamos m WANDERLEY CODO Cenário Ruas casas carros asfalto concreto ferro alumínio ambiente no qual os homens se locomovem Lojas armazéns supermercados que os homens fre qüentam e onde compram vendem se encontram conversam Ràdío televisão cinema jornal revistas onde homens produzem informações sobre homens para os hòmens ou onde homens informam sobre produções dos homens para que os homens conheçam e consumam Fábricas onde os homens se organizam para transformar a natureza à sua imagem e semelhança se hierarquizam com base no domínio que têm sobre a produção e os meios de produção dividem desigualmente o produto por toda a sociedade e com essa divisão alimentam suas famílias com maior ou menor eficiência pagam suas habitações neste ou naquele ponto da cidade com mais ou menos conforto educam seus filhos formal e informal mente sempre dependendo do lugar que ocupam na produção Escritórios que organizam a organização dos homens que transformam a natureza e se hierarquizam e tudo se repete Escolas que instrumentalizam o homem que se posicionará nessa estrutura de produção e consumo Empresas inteiras homens e máquinas produzidas por homens dedicadas a transportar homens para os seus postos de trabalho Comportamento Vejamos rapidamente o comportamento de um indivíduo normal que trabalhe num escritório qualquer exercendo uma função burocrática Suponhamos que seja um funcionário de escri tório que tenha por função levar e trazer documentos fazer visitas às firmas etc O lugar onde ele trabalha determina o horário em que deve levantarse da cama portanto o horário de deitarse Deve preocuparse com a aparência ou seja vestir um determinado tipo de roupa por exemplo paletó e gravata o que significa que parte do orçamento doméstico deve ser deslocado para indumen tária e que a passagem pelo espelho é obrigatória antes de sair de casa Os desires que possa cometer uma camisa mal passada O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 139 uma gravata torta provocarão interferência das pessoas com quem ele se relaciona no trabalho direta ou indiretamente o seu chefe imediato pode lhe ordenar que corrija os defeitos os seus colegas de trabalho podem fazer comentários jocosos ou pode ter dificuldade de ser recebido em uma ou outra empresa Por outro lado recebe elogios ao se apresentar bem trajado uma roupa nova merece comentários elogiosos manifestações de inveja o que pode levar o nosso funcionário a se demorar frente às vitrinas a escolher mais criteriosamente o seu cabeleireiro a adotar enfiip toda uma postura ou um projeto um sonho de postura reforçado coti dianamente por todas as suas relações de trabalho Sua linguagem soire interferências diretas do trabalho que ocupa O trabalhador utiliza termos que para os outros mortais não integrados nesse trabalho são desconhecidos ou inusitados como kardex papel ofício requerimento protocolo borderôs RAIS isso para não citar a gíria1 da funçào Nos dias de folga ou depois de sair do trabalho se encontra com seus colegas de escritório e os eventuais amigos que fez por suas andanças Provavelmente namora uma recepcionista ou organiza um time de futebol que disputará com o escritório vizinho uma taça cedida gentilmente por um dos patrões eou fará um curso de datilografia de inglês de contabilidade etc Às relações de trabalho determinam o seu comportamento suas expectativas seus projetos para o futuro sua linguagem seu afeto Mas tomemos um outro exemplo um operário Tal e qual para o nosso funcionário de escritório os seus horários estào regulados pelo trabalho suas relações sociais também seus projetos também Diferentes ambientes de trabalho determinam porém indivíduos radicalmente diferentes As mãos do operário são grossas e ágeis suas roupas escolhidas por critérios de longevidade suas palavras e os bares que freqüenta são outros A análise mais aprofundada de quanto as tarefas intervêm no comportamento do operário será feita mais adiante no texto As afirmações acima são válidas para um comerciante uma enfermeira um executivo um dono de indústria Cada gesto cada palavra cada reflexão cada fantasia traz a marca indelével indis cutível de sua classe social do lugar que o indivíduo ocupa na produção Pois bem sejamos entâo mais pragmáticos e busquemos uma atividade que seja fundamental O homem está vivo porque se 140 WANDERLEY CODO alimenta Sua alimentação é conseguida através de seu trabalho Partindo da sobrevivência do homem chegaremos à mesma con clusão Nós psicólogos vivemos afirmando que o homem é um ser social um ser histórico Mas o que exatamente significa isso Ao declararmos que o liomem é um ser histórico estamos afirmando que a sua relação com o meio ambiente se dá de uma maneira permeada socialmente No dizer de Engels o único fato histórico que existe é que o homem precisa sobreviver E o que muda não é o que se produz num determinado período histórico são as relações de produção são as relações sociais que permeiam ou que signifi cam stricto sensu a relação entre os homens A comida que mantém o homem em pé o sexo que mantém as gerações se sucedendo a forma de expressão do homem sempre estiveram presentes em qualquer momento histórico que se tomar O que muda se transforma são as relações sociais Que os homens utilizam para essa produção No IIOSSO caso vivemos uma relação social muito bem estabe lecida uma definição das formas de produção muito clara que estabelece o papel do homem as relações que ele deve ou não manter com seus semelhantes Tratase do modo de produção capitalista Esse modo de produção permeia literalmente toda a atividade do homem com quem você se relacionará o que você produz o que consome de que maneira você produz fíde que maneira você consome Notese que estamos vivendo um período em que os meios de comunicação estão bastante desenvolvidos e todos eles permeados pelas relações de produção de uma forma direta1 Estamos vivendo na era da televisão do consumo de massas dos eletrodomésticos o que maximiza a relação entre sistema social e comportamento humano este último objeto de estudo da Psicologia Veremos a seguir como o sistema modifica o próprio trabalho e insere o homem numa determinada relação social distinta Tratase então de perceber que aqui mais do que nunca qualquer ato humano qualquer comportamento que servir como objeto de estudo a qualquer psicólogo é permeado necessariamente peias 1 Quando nos referimos a relações de produção queremos significar as relações de trabalho em uma sociedade capitalista onde o trabalho assumo a forma de mercadoria a o objetivo é a extração da maisvalis O INDIVÍDUO e a s INSTITUIÇÕES 141 relações de produção O gesto do homem é um gesto no mundo inserido necessariamente quer os psicólogos queiram ou não quer percebam ou não imediatamente nessas relações de produção desenvolvidas pelo ser humano A cada gesto pode ser atribuído o conteúdo de classe e aqui de novo sobra a mesma conclusão o estudo da Psicologia deve partir das relações de produção reconhecer como o comporta mento é determinado a partir dessas relações de produção Acima ao analisar as várias razões que nos levam a estudar as condições de trabalho humano e a respectiva inserção do homem neste processo falamos principalmente em determinação do com portamento do homem Cabem algumas observações Ê necessário sublinhar que estamos falando de determinação e não de subordinação2 A diferença é essencial não se trata de afirmar que todas as ações humanas estão subordinadas a um sistema capitalista ou qualquer outro sistema de produção Para exemplificar podemos tomar a relação pai e filho utilizando um método bastante comum em Psicologia de reduzir a realidade a seus termos mais simples para tentar explicála Depois voltaremos para a questão que nos interessa Podemos dizer que a vida do filho o seu comportamento atual é determinado pela relação que ele teve anteriormente com seus pais o que não significa que seja subordinada à relação com os pais Um filho não reproduz os pais Um pai que tenha sido um dentista não gerará um filho dentista Poderá por exemplo gerar um filho que tenha raiva horror que se afaste da profissão do pai e venha a ser um sociólogo O fato de o filho ter horror à profissão de dentista é determinado pela profissão do pai pela relação que o pai e filho tiveram durante sua história mas não significa que a escolha da profissão esteja subordinada literalmente ao comportamento do pai Ou ainda um pai idealista desligado absolutamente das questões concretas de sobrevivência preocupado mais com a arte do que com o pão pode gerar um filho absolutamente mesquinho preocupado com cada tostão que puder ser economizado para garantir o seu futuro Mesmo que o filho se desenvolva na mesma i2 A confusão entre determinação e subordinação é comum em uma abordagem mecanicista que queremos de infcio repudiar Como os extremos se tocam o mecanicismo materialista pode levar a uma postura metafísica como já foi apontado por Merani A L Psicologia e Afienação 142 WANDERLEY CODO profissão do pai continua valendo o mesmo raciocínio pois tratase de um novo sujeito em que poderemos estudar a determinação do comportamento do filho pelo pai sem reduzir o fenômeno à subordinação Quando falamos em determinação social estamos usando o mesmo significado Reconhecendo que o comportamento do homem está determinado pela sociedade onde vive semt no entanto se reduzir àquela sociedade Se o sislema gera alienação não precisamos ter necessaria mente operários alienados porque juntamente com alienação o sistema gera revolta a exploração de classe determina o desen volvimento de uma nova consciência de classe e a luta por um novo sistema social No início do texto colocamos a pergunta o que estudar em Psicologia Partindo do meio ambiente imediato em que os seres humanos vivem hoje das relações culturais que se estabelecem entre os homens ou dos fatos que garantem a nossa sobrevivência chega mos à mesma conclusão cumpre estudar o trabalho humano saber como as relações de produção determinam o comportamento do homem Mas dizíamos esta reflexão foi feita com os livros de Psicologia fechados Ao abrir os livros de Psicologia chega a impressionar o distanciamento que a nossa ciência mantém destas questões Apenas para citar um exemplo o fíandbook o f Sociai Psychology Lindzey Aronson 2 ed cinco grossos volumes que percorrem quase todas as áreas de estudo em Psicologia Social dedica exatamente dez páginas para discutir o problema do trabalho humano Vejamos o problema mais de perto convidamos o leitor a abrir um número qualquer do Psychological Abstract por exemplo o de janeiro de 1980 o último número de que disponho enquanto escrevo publicação que resenha todos os últimos trabalhos de Psicologia Procuraremos a palavra worker trabalhador e a revista nos remete à palavra personnel que em inglês significa pessoal grupo de empregados mais ou menos como utilizamos em português Departamento de Pessoal Seleção de Pessoal etc Ora eis aqui uma visão clara do significado da palavra trabalhador A julgar pelo Psychological Abstract o trabalhador interessa à Psicologia em função do Departamento de Pessoal O INDIVÍDUO e a s INSTITUIÇÕES 143 Continuemos nossa pesquisa e veremos que trabalho aparece em Psicologia com alguns significados bastante precisos 1 como uma variável interveniente ou seja um fator que pode interferir em outros aspectos da vida do indivíduo Vejase o artigo de K King 1978 que pergunta como os adolescentes percebem o relacionamento entre os familiares quando suas mães trabalham 2 como uma instituição estranha independente do indivíduo que trabalha Como por exemplo os trabalhos de previsão de tumover onde os objetivos do psicólogo são os de saber qual a probabilidade quando uma empresa contratar um indivíduo de que ele se mantenha no emprego Ver por exemplo o trabalho de F Suzene et al que mostra que quando a expectativa de salário é muito alta ou quando reside muito longe da íàbríca a mulher abandona mais freqüentemente o emprego ou ainda quais são os fatores que garantem a permanência no trabalho ver os artigos sobrejob satisfacüon Em síntese a Psicologia toma o trabalho a partir das relações de produção capitalista Vejamos qual o sentido que o capitalismo engendrou ao trabalho ou ainda qual a diferença entre a formu lação original de trabalho e o estágio de desenvolvimento atual das forças produtivas O trabalho hoje Toda mudança ocorrida nas relações de produção visou libertar o homem do jugo do feudalismo e tornálo livre para vender sua força de trabalho Apesar de lutas de classe ou seja a explo ração de uma classe sobre a outra terem se iniciado muito antes desse período a forma de exploração se modifica radicalmente Pela primeira vez na história o homem passa a vender a sua força de trabalho Essa transformação o advento da maisvalia a transformação do trabalho em mercadoria tem decorrências profundas na socie dade humana e também no comportamento humano que obvia mente se deram dialeticamente relacionadas Aqui por linxites de descrição separaremos os vários pontos tendo sempre em mente que não são eventos estanques ou isolados Muito sucintamente enumeraremos algumas transformações para análise 144 WANDERLEY CODO 1 Aos valores de uso satisfação de necessidades humanas que os objetos produzidos pelo homem contêm acrescentase pela divisão social do trabalho um outro valor o valor de troca Os objetos necessários ao estômago ou à fantasia humanos perdem sua especificidade um paletó não é mais apenas algo que me proteja do frio é também mercadoria trocáveJ por qualquer outra O fator equalizador dos diferentes valores de uso é o trabalho humano cada mercadoria individual é considerada um exemplo médio de sua espécie mercadorias que contêm iguais quantidades de trabalho ou que podem ser produzidas com o mesmo tempo de trabalho possuem conseqüentemente valor da mesma magnitude O valor necessário à produção de uma está para o tempo de produção de outra O Capital p 47 Se o produto do trabalho vale apenas pelas horas de trabalho nele inseridas o vínculo trabalhosatisfação de necessidades ganha um elo novo transformase em trabalhotroca de equivalentes satisfação de necessidades o que faz por tornar as necessidades do Homem contingentes ao dinheiro equivalente e não à sua própria tarefa Pela mesma razão subordina o uso à capacidade de troca e não à capacidade de produção Hm outras palavras a sobrevivência do homem passa a depender não de sua ação ou de seu trabalho mesmo mas sim do trabalho social ação social e por outro lado obviamente sua ação deixa de ser definida por suas necessidades e passa a ser definida por critérios sociais Ocorre aqui um primeiro processo de alienação no sentido de separação entre ação e sobrevivência humana3 o trabalho humano perde sua especificidade e se transforma em valor abstrato confundindose com a moeda que o representa 2 Para que haja mercadoria é necessário que haja divisão de trabalho se todos produzissem tudo não haveria necessidade de troca portanto não haveria necessidade de equivalentes A divisão do trabalho cria ato contínuo uma classe de comerciantes 3 Observese que se o processo se esgotasse por aqui a alienação a que nos referimos não dependeria de classe social lugar que o indivíduo ocupa na produção na medida em que mesmo o dono dos meios de produção não exerce o elo produção autosatisfação de necessidades o que denota duas coisas 1 que nâo é o surgimento do equivalente o responsável solitário pelo surgimento de classes como veremos a seguir 2 que o surgimento do capi talismo não aliena apenas o trabalhador mas tam bém o dono dos meios de produção o i n d i v í d u o e a s INSTITUIÇÕES responsável pela troca de mercadorias entre os consumidores o que faz com que pela primeira vez na história universal todo indivíduo dependesse do mundo inteiro para a satisfação de suas necessidades A Ideologia Alemã p 56 Ocorre que o valor de troca atribuído à mercadoria é expressão pura e simples da quantidade de trabalho injetada na natureza ou seja o trabalho humano é que está sendo negociado Tratase de materialização social do fenômeno apontado em 1 Recebo o necessário à minha vida através de um intermediário ou seja sequer conheço o indivíduo eou o processo de produção responsável pela satisfação de minhas necessidades igual destino sofre o que produzo A ação do homem passa a pertencer à sociedade a ser regu lada pelas leis de oferta e procura acumulada como capital A forma mercadoria é a forma geral do produto do trabalho em conseqüência a relação dos homens entre si como possuidores de mercadoria é a relação social dominante O Capital p 70 O trabalho é representado pelo valor do produto do trabalho e a duração do tempo pela magnitude deste valor fórmulas que per tencem claramente a uma sociedade em que o processo de produção domine o Homem e nâo o Homem dominú o processo de produção social4 grifos A Ideologia Alemã p 8 3 Pois bem o trabalho não é apenas uma mercadoria mas é a única capaz de produzir excedente por ser o único valor de uso capaz de criar valor consumir trabalho é criar trabalho O Capital cap III Tratase do único elo na cadeia de gerar mercadorias que pode ser explorado para gerar maisvalia mais valor pois o trabalho é vendido como qualquer mercadoria pelo preço de custo de sua produção o preço do sustento do trabalhador e sua família produção e reprodução da força de trabalho e pode ou deve produzir mais valor do que custou diferentemente de uma tora de madeira que não pode produzir mais do que um número x de 4 Isto talvez explique por que grande parte do que é chamado de lazer contemporâneo seja do tipo Doit yourself Apenas para exemplificar um acampamento icamping para onde uma famílía viaja horas e onde perde dias para acender uma fogueira e assar um coelho coisa que se pode fazer em duas horas com um telefonema e um apertar de botão ou mesmo boa parte dos jogos preferidos por grande parte da popuíaçSo não significariam o resgate do controle sobre a tarefa Ou a recuperação do eío produçãosatrsfaçâo de necessidade 146 WANDERLEY CODO cadeiras por exemplo O lucro portanto só pode advir da exploração do rabalho alheio pelo capitalista Até aqui o trabalhador produz mercadorias que não consome consome mercadorias que não produziu sua ação e sua sobrevi vência lhe escapam mas é mais que isso invertese a correlação entre esforço e sobrevivência mais trabalho continua significando mais produção mais valores de uso mas não para o trabalhador e sim para o capitalista E pior ainda a superprodução é a razão da pauperização o trabalhador é mais pobre quanto mais riqueza produz Manuscritos Econômicos e Filosóficos Na medida em que a função da compra do trabalho é a expropriação dele mesmo criação de maisvalia o papel do trabalhador é o de produzir riqueza para o outro e ato contínuo sua própria miséria Se falamos em alienação agora podemos falar em roubo o homem se transforma ao transformar pelo domínio a natureza constrói a si mesmo quando vende seu trabalho vende a trans formação que a natureza opera em si sua hominização que por sua vez enquanto mercadoria lhe aparece como objeto independente vendido ao trabalhador em troca do salário 4 O advento do capitalismo traz em seu ventre o desen volvimento da maquinaria O fato histórico apontado acima a transformação do trabalho em mercadoria capaz de gerar mais valia traz como corolário a necessidade de aumentar o rendimento do trabalhador diminuindo o tempo gasto por unidade do produto ou o tempo de trabalho socialmente necessário0 obviamente sem redução do número de horas que o indivíduo dedica à fábrica Embora sendo fruto do mesmo processo a maquinaria vem introduzir um fenômeno qualitativamente distinto no fracionamento do trabalho humano Tratase de promover tanto longitudinal como transver salmente uma fragmentação da ação humana Longitudinalmente o trabalho não é assumido por inteiro pelo trabalhador cada par de braços faz uma parte da tarefa e a partilha é realizada segundo as características das máquinas eou dos ditames de racionalização sendo que quanto maior a divisão de tarefas maior a eficiência MAJOR a produção quanto MENOR for o gesto Transversalmente o operário que aperta um botão desen cadeia um processo que se iniciou em uma mina de ferro que pro duziu lingotes que produziu máquinas que produzem ferramentas que por fim compõem o produto O INDIVÍDUO e a s in s t it u iç õ e s 147 O capital que já alienara o homem do produto de seu trabalho agora roubalhe o gesto o movimento do seu braço é algo que não lhe pertence e que não é determinado pelo trabalhador 5 O desenvolvimento do capital não se deu por igual na medida em que desenvolverse para o capitalismo é a maximização das desigualdades A nível internacional tais diferenças repro duzem mercados diferenciados o que passa a servir ao próprio desenvolvimento do capital que explora com maestria as desigual dades que criou Entra em cena o Capitalismo Multinacional Vimos acima como as relações sociais de produção engendram a alienação do Homem roubamlhe o gesto Cumprese a profecia de Marx e Engels O Homem passa a depender de todo o planeta para a satisfação de suas necessidades1 Com a internacionalização do capitalismo radicalizase esta tendência e outra vez muda de qualidade o Homem passa a depender do mundo inteiro para a produção de bens a matériaprima é produzida em um país as ferramentas em outro as peças num terceiro as montagens finais num quarto país o produto final é consumido em todo o planeta Aqui a fragmentação do trabalho atinge as relações sociais de produção O lucro a expropriação do trabalho deixou de ter nome sobrenome e endereço como na época em que a limusine do patrão deitava às portas da fabrica um corpanzil gordo que parecia acumular as energias sugadas do trabalhador Hoje jovens executivos dinâmicos transmitem ordens superiores recebidas por sua vez de executivos menos jovens que por sua vez também receberam ordens superiores per omnia A internacionalização do capital rouba o ladrão do produto do trabalho Síntese Reproduzimos aqui a maneira violenta como os modos de produção capitalista se apropriam do produtor Falamos até agora do trabalho humano ou seja a apropriação do comportamento do homem Procuramos demonstrar como o trabalho se imiscui e deter mina o comportamento do Homem quando não se identificam coisa e outra 148 WÀNDERLEYCODO O trabalho hoje é o trabalho alienado descolado do Homem que realiza expropriado E á assim que a Psicologia o concebe reedi tando a produção como instância independente estranha ao produtor Nosso objetivo aqui é fazer caminho inverso Tomar a questão do trabalho alienado não como um dado mas como um processo o que implica em cada instante buscar o movimento histórico reconhecêlo contraditório Ao buscar em Psicologia parâmetros de anáJise que permi tam resgatar esta relação dinâmica no trabalho cumpre ter em mente que o problema que se coloca é este entender a nível do indivíduo como se apresenta a transformação do trabalho no seu oposto De instrumento de domínio da natureza pelo Homem em instrumento de Domínio do Homem pela natureza O Capital livro I seção III cap V p 130 Só existe um fato histórico o de que o Homem precisa sobreviver Marx e Engels A Ideologia Alemã Sobreviver é literalmente controlar o meio ambiente transformálo à sua imagem e semelhança Apenas por esta razão podemos perceber que 1 lidar com o controle que o indivíduo tem sobre o meio é lidar com todo o comportamento de qualquer indivíduo em qualquer sistema SOcial e concomitantemente 2 qualquer escala ou experimento por mais completo que seja não será capaz de lidar com o fenômeno como um todo transformandose em um instrumento ou tosco ou fluído Kelly 19S5 afirmava Ê costumeiro dizer que os cien tistas almejam a predição e o controle no entanto curiosamente os psicólogos raramente acreditam que os seus sujeitos experi mentais tenham aspirações semelhantes ê necessário que o homem individual cada qual de sua maneira assuma a estatura de um cientista para procurar predizer e controlar o curso dos eventos nos quais está envolvido Freud dizia que o objetivo da psicoterapia era o de destruir a coerção que pesa sobre a vida do indivíduo através do conhe cimento das representações do inconsciente p 1012 ou ainda que o indivíduo deve se encontrar com ele mesmo se educar a olhar para o seu passado e retratar nele seu presente e o seu futuro Se quiséssemos citar as referências de Skinner à questão do controle do indivíduo sobre seu próprio meio gastaríamos páginas e páginas Basta lembrar o final do livro sobre o bekaviorismo onde o autor manifesta a esperança de que o homem controle o seu próprio destino i O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 149 O problema do controle do homem sobre o seu meio eou sobre si mesmo é fundamental para a Psicologia e não poderia ser de outra forma A Psicologia surgiu em um período que poderia ser delimitado grosseiramente entre 1880 e 1920 com os primeiros trabalhos de William James 1875 Dewey 1887 Ebbinghaus 1880 Pavlov 1900 Watson 1912 Kohler 1912 Wertheimer Kofka entre 1910 e 1912 Freud entre 1880 e 1890 Não se trata do início da reflexão sobre o homem pois esta tarefa sempre foi exercida pela filosofia desde Aristóteles tratase de transformar a reflexão do homem em ciência Filosofia é sofia amigo amizade envolve relação íntima promiscuidade identificação ciência é apropriação afastamento é objetiva referese ao objeto portanto o diferencia do sujeito A preocupação do homem para consigo mesmo sempre existiu no entanto a Psicologia foi uma das últimas a se constituir como ramo científico independente Ou seja a história demorou a exigir que o conhecimento do homem se afastasse dele mesmo se objetivasse Entre 1880 e 1920 o mundo sofria uma transformação cuja marca maior foi a transformação do trabalho em mercadoria como já vimos A Revolução Burguesa tratou de deslocar o processo de explo ração de diferenciação entre classes do domínio divinohereditário para o plano da livre concorrência o poder herdado cede terreno ao poder adquirido A trama econômicosocial passa a depender da capacidade de apropriação do trabalho alheio a maisvalia se dá então na proporção em que o trabalho do homem puder ser colocado sob controle na medida em que os ditames de sangue são substituídos pelos ditames da produção Tempo de Taylor tempo em que a produção humana em última instância instrumento de transformação da natureza pelo homem e do homem pela natureza deve se submeter ao capital tempo em que o homem vende sua capacidade de transformação e autotransformação pelo salário ou seja se aliena de si mesmo Tempo em que a capacidade de acumulação do Capital é inversamente proporcional ao controle do homem sobre seu próprio meio ambiente Neste momento o pensamento humano necessita transformar a reflexão sobre o homem na intervenção sobre o homem Re clamase da Psicologia que abandone a Filosofia a promiscuidade 150 WANDERLEY CODO entre sujeito e objeto e venha se alojar na ciência transformandose de Reflexàoem controle A Psicologia é portanto produto direto e dileto da trans formação do homem em mercadoria ao mesmo tempo que como produto da divisão social do trabalho reproduz e impulsiona esta mesma divisão O espaço da Psicologia por imposição histórica ou por defi nição decorrente de sua prática se insere na contradição que o duplo caráter do trabalho engendra entre a alienação a tortura do trabalho que virou mercadoria e o serviraser que representa o Homem construindo a si mesmo Senão vejamos O sintoma obsessivo compulsivo é caracterizado por uma imperiosa necessidade de pensar ou executar algum ato indepen dente do desejo consciente do indivíduo Podemos exemplificar sucintamente determinada jovem vêse obrigada compulsivamente a evitar todas as frinchas das calçadas caminhando com uma preocupação ansiosa de não pisàlas pois imagina que se vacilar e seu pé tocar algumas dessas frinchas nesse exato momento num local distante sua mãe poderá cair e ter a espinha quebrada A interpretação analítica do fenômeno poderá dar conta de que o que existe inconscientemente é um ódio voltado contra a figura materna que insiste em avançar sobre o Ego e a ansiedade que essa ameaça produz é controJada peio sintoma obsessivocompulsivo que visaria anular esse desejo hostil inconsciente Uma das explicações behavioristas para o mesmo fenômeno seria a de que se trata de um comportamento supersticioso ou seja contingências acidentais fizeram com que aumentasse a freqüência da resposta de não tocar com os pés nas frinchas ou mutatis mutandis a resposta de pisar foi punida acidentalmente e a partir daí generalizouse Tecnicamente falando tanto um behaviorista como um psica nalista estão afirmando a mesma coisa tratase de uma elaboração humana que tem por resultado recuperar magicamente o controle sobre si mesmo eou sobre o meio através da autotransformação do próprio comportamento e eis aqui o conceito de trabalho apontado por Marx reencontrado Filosoficamente no sentido de uma cosinovisão a mensagem analítica poderia ser sintetizada assim o Homem não é dono de si mesmo faz coisas cujas causas não conhece é controlado por forças que escapam do seu controle Seguindo a mesma trilha o behavio rismo afirma o Homem no é dono de si mesmo é controlado pelo meio ambiente O exercício da clínica psicanalítica behaviorista é o mesmo devolver ao indivíduo o controle de si mesmo eou de seu universo Ambos os enfoques sâo vitimas do mesmo pecado filhos qúe sâo de um mundo onde o trabalho virou mercadoria consideram como inerente ao ser humano o que é inerente ao Capital Por isso a Psicanálise corre o risco de propugnar por um homem livre do seu conflito com a vida ou seja adaptado ao mundo no sentido mais conservador que estas palavras possam ter e pelo avesso o beha viorismo corre o risco idêntico de se transformar em Engenharia ignorando o Homem como sujeito de sua História O Homem não é nem escravo nem senhor de si mesmo ou do mundo a dialética do escravo e do senhor ou como já dissemos antes Parafraseando Engels o único fato psicológico é o de que o Homem precisa sobreviver Submeterse ao mundo como um simples mortal projetar e recriar o mundo à sua imagem e semelhança como um Deus f O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 151 Bibliografia Bolles R C Teoria de la Motivaciôn 2 ed México Ed Trilhas 1976 Darwin C A Origem das Espécies Sào Paulo Hemus Gorz A Crítica da Divisão do Trabalho 1 ed bras Sâo Paulo Martins Fontes 1970 Lenin Obras Escogidas URSS Ed Progreso Moscú 12 vols 1978 Lindzey G e Aronson E The Handbook of Social Psychology vol I AddisonWesley Publishing Company Mass 1968 Marx K El Capital 3 vols 4 ed MéxicoBuenos Aires Fondo de Cultura Económica 1966 Marx K e Engels F Obras Escogidas 3 vols URSS Ed Progreso Moscú 1978 Oliveira C de O Banquete e o Sonho vol 3 Sào Paulo Cadernos de Debate Ed Brasiliense 1976 Pinto A V Ciência e Existência Rio de Janeiro Paz e Terra 1969 Skinner B F Cumulative Record Nova Iorque AppletonCentury Crofts 1961 Parte 4 A prática do psicólogo Psicologia educacional uma avaliação crítica José Carlos Libâneo O autor deste texto não é psicólogo mas um educador que há mais de dez anos vem acompanhando a trajetória da Psicologia educacional nos cursos de licenciatura e nas escolas de 1 e 2 graus As idéias expostas aqui não formam um pensamento acabado pelo contrário devem ser consideradas como uma tentativa muito provi sória de estabelecimento das relações entre a Pedagogia e a Psicologia educacional A mais grave limitação do ensino da Psicologia educacional é a distância entre seu conteúdo e a prática escolar e isso explica seu efeito quase insignificante na formação de professores Por exemplo muitos manuais em uso nos cursos referemse a estudos e pesquisas feitos em outros paises cujos resultados são de pouca ou nenhuma valia para o cotidiano de uma sala de aula Em alguns casos o ensino se reduz à descrição de teorias sobre os estágios do desenvolvimento infantil ou às técnicas de diagnóstico e tratamento das dificuldades de aprendÍ2agem e distúrbios emocionais sem levar em conta antecedentes sociais das crianças e prática que os professores vâo enfrentar nas escolas A Psicologia educacional como área profissional específica caracterizouse durante muito tempo por atividades de tratamento de crianças com problemas de aprendizagem e ajustamento escolar Por volta dos anos 6065 houve tentativas na maior parte fracassadas de inserção do psicólogo escolar como membro da equipe técnica da escola ao lado de supervisores e orientadores educacionais Na prática as atribuições cabíveis a um psicólgo A PRÁXfS DO PSICÓLOGO 155 educacional sempre acabaram ficando com o orientador educa cional e evidentemente com o professor que efetivamente sempre esteve exercendo algumas de suas atribuições como psicólogo aplicado Atualmente os psicólogos escolares ou se dedicam a pesquisas sobre a escola e não na escola ou atuam em clínicas especializadas em problemas de aprendizagem e ajustamento escolar prestando serviços eventuais nas escolas Em 1971 Poppovic escrevia Ê de se lamentar em nosso panorama atual a falia de coordenação e entrosamento entre a Pedagogia e a Psicologia Enquanto aquela raramente se preocupa em usar os dados proporcionados pelas pesquisas psicológicas esta com muita freqüência permanece num campo teórico sem chegar a conclusões práticas de utilidade para a Pedagogia11 O fato é que até hoje os psicólogos educacionais insistem em se restringir a tratar problemas de desenvolvimento ou ajustamento das crianças à escola dentro da tradição da Psicologia funcionalista e mais recentemente da Psicologia humanista sem voltarse para questões como metodologia usada peios professores na sala de aula currí culo seleção e organização de conteúdos participação da escola na comunidade e viceversa comportamento de professores em sua interação com alunos etc Ou seja a formação do psicólogo se restringe ao contexto psicológico sem chegar ao pedagógico propriamente dito e muito menos ao social Uma das dificuldades desse entrosamento pode estar na impermeabilidade entre as ciências que concorrem na explicação do ato educativo Devido ao pouco desenvolvimento da ciência peda gógica os próprios educadores têm permitido que as ciências auxiliares da educação Psicologia da Sociologia da Economia da disputem a hegemonia sobre o especificamente pedagógico Isso inclusive tem favorecido toda a sorte de reducionismos além do próprio pedagogismo o soctologismo e o psicologismo Os reducionismos pecam por isolar um aspecto da totalidade do ato educativo e em cima desse aspecto parcial discutir o objeto educação O privilegiamento do enfoque sóciopolítico por exem plo leva a reduzir todos os problemas da escola e da educação ao conhecimento e crítica da função social de reprodução das relações sociais de produção que cumprem em nossa sociedade Esta posição recusa qualquer fundamentação psicológica na educação força a diluição do pedagógico no psicológico e assim falha por não considerar o ato educativo na sua totalidade Por outro lado o JOSÉ CARLOS UBÀNEO enfoque estritamente psicológico ignora o efeito das condições sociais e políticas sobre o comportamento tomando subjetivos os problemas gerados pela estrutura social e econômica Quase todas as tendências psicológicas atuais funcion alistas humanistas cogni tivistas psicanalistas orientalistas etc continuam mantendo a crença numa sociedade harmoniosa para a qual as pessoas devem ser ajustadas procurando principalmente no indivíduo a origem de suas condutas Os professores e técnicos escolares também insistem no seu ismo ao tentar preservar a missão salvadora da escola na supressão das igualdades sociais absolvendo o sistema social e político e até rejeitando os auxílios científicos que podem ser fornecidos pela Psicologia O pedagogismo acredita poder resolver os problemas da escola e do mundo dentro do seu interior como se a mudança social pudesse se dar como conseqüência da mudança escolar O ato educativo é uma totalidade na qual afluem fatores sociais econômicos psicológicos que se constituem nas condições para o desenvolvimento individual Condições biológicas condições sociais disponibilidades psicológicas são todas mediações entre o Indivíduo e a sociedade e que permitem ou dificultam à criança apropriarse do patrimônio cultural construindose pela sua pró pria atividade como ser humano vale dizer como ser social Discutir o objeto da Sociologia e da Psicologia educacional supõe a discussão âo objeto da ciência pedagógica ou seja a especificidade do pedàgógico De fato há mecanismos íntimos próprios da relação pedagógica que incluem mediações de natureza social e política mas também incluem a análise da experiência individual e a própria eficácia da situação de ensino Isso significa que as situações pedagógicas precedem a análise do ato educativo nasuas dimensões psicológica e sociológica No caso da Psicologia ela intervém para explicar os componentes psíquicos envolvidos no processo ensinoaprendizagenuSegundo Mialaret o educador nâo pode deixar de respeitar as leis estabelecidas pela Biologia pela Sociologia ou pela Psicologia mas essas leis não podem ser consideradas senão como meio de ação e de valor relativo às próprias condições pedagógicas 1974 À utilidade da Psicologia educacional portanto depende do grau em que dâ conta de explicar problemas enfrentados pelos professores na sala de aula problemas esses no entanto que somente podem ser compreendidos como resultantes de fatores estruturais mais amplos Não é possível assim que a Psicologia A PRÁX1S DO PSICOLOGO IS educacional seja determinante da ação pedagógica antes è utM fonte de orientação para os processos e situações pedagógicai cabendo à experiência escolar a última palavra O pape prepon derante da Psicologia é o de fornecer ao professor princípios do comportamento humano especialmente os relacionados com a aprendizagem escolar para que ele de acordo com seu senso crítico os transforme em métodos adequados às situações pedagó gicas concretas Psicologia e pedagogia Entender o psicológico dentro do pedagógico e ambos dentro do contexto social amplo significa assumir a posição de que a escola é para os alunos uma mediação entre determinantes gerais que caracterizam seus antecedentes sociais e o seu destino social de classe quer dizer que as finalidades da escola são acima de tudo sociais seja no sentido de adaptação à sociedade vigente seja no sentido de sua transformação Se as relações contraditórias entre reprodução e mudança se efetuam na e pela escola essa mediação se dará tanto no sentido de que a destinaçào social dessa clientela reafirme as suas condições de origem quanto no sentido de que estas condições de origem sejam negadas1 Mello 1982 A ação docente se dá assim entre o indivíduo e as realidades sociais o mundo e a Psicologia é chamada para fornecer apoio na leitura das relações entre o individual e o social e daí para o pedagógico propriamente dito Entretanto a Psicologia que se desenvolve na segunda metade do século XIX refletindo circunstâncias históricas e sociais do período basicamente a consolidação do capitalismo vem acentuar a idéia da natureza humana individual e que se sobrepõe às circunstâncias sociais que a cercam Com efeito é quando começa a vender sua força de trabalho que o homem se define como livre como indivíduo A burguesia enquanto classe em ascensão defende a igualdade e a liberdade individuais já que as novas relações de trabalho supõem o proprietário dos meios de produção e o assalariado livre para aceitar uma relação contratual pela qual vende sua força de trabalho Com o desenvolvimento da produção porém instaurase uma nova versão do individualismo a autonomia individual Desgastandose com a liberação de energia no trabalho o homem precisa garantir sua privacidade certo isolamento que lhe 158 IOSË CARLOS LJBÂNEO possibilite recompor as energias O culto ao individualismo é assim uma necessidade da produção capitalista é uma conseqüência das relações específicas de produção Não interessando explicitar as verdadeiras condições em que o trabalho se dá e o isolamento individual como conseqüência esta relação trabalhoisolamento aparece como fazendo parte da condição humana como comporta mento natural Assim fazendo a Psicologia cunhou a orientação que continua predominando de considerar como fatores causadores do comportamento os processos psicológicos internos emoções sentimentos idéias sem levar em conta a natureza basicamente social do ser humano e de sua consciência A idéia de uma essência humana présocial concebe a perso nalidade humana individual como um caso particular da personali dade humana básica o que pressupõe que cada indivíduo possuí características que são universais e independem de influência do meio social cabendo à Psicologia conhecer esses traços universais É evidente que tal idéia assume a sociedade de classes como o modelo social ideai na qual a realização individual resulta de uma perfeita harmonia entre indivíduo e sociedade Daí a idéia corrente de ajustamento social aplicada à Psicologia e à Educação Os padrões de comportamento a serem ensinados ou modificados correspondem à perspectiva da classe dominante que os torna universais e portanto compulsórios Tal concepção psicológica veio a ser a própria origem do movimento da escola nova no início deste século inaugurando o individualismo na Pedagogia A descoberta da criança como personalidade livre e autônoma que na concepção liberal da sociedade capitalista corresponde à livre iniciativa individual marcou uma concepção pedagógica inteiramente voltada para a criança reduzindo o papel do professor e dos programas escolares Ao conceber a criança como possuindo os atributos universais do gênero humano caberia à educação atualizar estes atributos natu rais desenvolver as potencialidades Edv ar seria essencialmente cultivar o indivíduo desdobrar sua natureza propiciar o desen volvimento harmonioso da individuaJidade em consonância com as expectativas da sociedade As conseqüências para a Pedagogia sào marcantes Ocorreu um desprezo da cultura enquanto patrimônio da humanidade já que é a criança que irá descobrir o saber A ênfase nas necessidades e interesses espontâneos da criança resultou na psicologização das situações escolares ao ponto de os próprios professores passarem a A PRAXIS DO PSICÓLOGO IM explicar o comportamento dos alunos por meio de termos como inibição bloqueios imaturidade agressividade etc A superva lorização da criança A criança é o pai do adulto dizia Montes sori em muitos casos trouxe como conseqüência o espontaneísmo a permissividade a tolerância a crença na bondade natural do ser humano O individualismo em Pedagogia acentuouse significativa mente com o desenvolvimento da Psicologia humanista existencial que divulgou a educação como processo de adequação pessoal frente às influências ambientais A difusão da Psicanálise que introduz a noção do inconsciente na explicação do comportamento também contribuiu para reforçar certas tendências da Pedagogia nova1 Nos últimos anos tem ganho bastante peso entre os psicólogos educacionais as chamadas teorias cognitivas principalmente as que se preocupam com o desenvolvimento das capacidades humanas para o domínio dos conhecimentos Esses sistemas reconhecem a aprendizagem como um processo ativo frente a estímulos externos o meio aparece como elemento indissociável do ato de conhecer Entretanto não escapam à limitação comum às demais concepções ou seja o privilegiamento do pólo individual e não ao pólo dominante que é o social isto é as relações sociais de produção a divisão da sociedade em classes sociais É sob essa ótica que são abordados os tópicos mais usuais nos manuais de Psicologia educacional estágios do desenvolvimento da criança e do adolescente necessidades como determinantes do comportamento processos de aprendizagem economia da aprendi zagem situações de aprendizagem em geral higiene mental na sala de aula etc ou seja o enfoque privilegia a compreensão da criança a autoeducaçlo e não a transmissãoassimilação das matérias escolares Uma Psicologia nãoindividualista portanto uma Psicologia voltada para as relações sociais entende que as capacidades indi viduais não são inerentes à natureza humana são antes determi nadas por variáveis do mundo material externas ao indivíduo O erro básico da Psicologia individualista é não assumir a antecedên 1 O behavíorismo é uma importante corrente psicológica também desenvolvida no início deste século mas sua repercussão na escola brasileira enquanto metodologia de sala de aula ainda 6 bastante reduzida Todavia eta aparece numa formulação pedagógica eclética denominada Pedagogia tecnh cista da qual trataremos oportunamente neste texto 160 JOSÉ CARLOS L1BÀNEO cia das estruturas e dos produtos sociais da atividade humana sobre a individualidade biológica ela não extrapola do sujeito empírico individual isolado fora do contexto histórico Dar conta dos condicionantes sociais do ato pedagógico significa compreender o aluno como um sujeito concreto síntese de múltiplas determinações que dãose num contexto histórico A consideração de uma dimensão histórica significa assumir que tanto os processos internos como os estímulos do meio têm um significado anterior à existência deste indivíduo e esta anterioridade decorre da história da sociedade ou do grupo social ou se quisermos da cultura na qual o indivíduo nasce Por mais que enfatizemos a unicidade a individualidade de cada ser humano por mais sui generis que se possa ser só poderá ocorrer sobre os conteúdos que a sociedade lhe dá sobre as condições de vida real que ela lhe permite ter Lane 1980 Como será uma nova forma de apreender as relações alunoeducadorsociedade Como o social atua sobre o indivíduo e como este voltase para o social para modificálo Compreender a escola na relação dialética indivíduosocie dade significa ao mesmo tempo um processo de cultivo individual promover mudanças no indivíduo e de integração social intervir num projeto de mudança social A especificidade do pedagógico estã em conseguir a realização bemsucedida desses processos sem perder a vinculação com o todo social e isso se faz pela mediação entre a condição concreta de vida dos alunos e sua destinação social Tal mediação consiste na atividade de transmissão professorassi mil ação aluno de conteúdos do saber escolar2 O desafio ao educador está em criar formas de trabalho pedagógico isto é ações concretas através das quais se efetue a mediação entre o saber escolar e as condições de vidae de trabalho dos alunos Antes porém de explicitar melhor os objetivos escolares visando um uovo projeto de sociedade é necessário tomar uma 2 O termo assimilação deve ser entendido aqui no sentido piagetiano ou seja um processo de incorporação de uma informação do ambiente a partir de estruturas mentais já disponíveis no pensamento Tratase de u ma informaçlo trabalhada pelosesquemas mentais acionados pelo próprio aluno ou instigados pelo professor O termo saber escolar é a seleção 6 organização do saber objetivo disponível na cultura social numa etapa histórica determinada para fins de transmissãoassimiiaçSo ao longo da escolarização formal A PRÁXIS DO PSICOLOGO 161 posição face à relação entre os determinantes sociais e a experiência individual Pretendese lançar algumas idéias bastante genéricas sobre o fato de que a experiência individual deve ser considerada dentro de um quadro social onde predominam as condições concretas materiais de existência e que essa abordagem exclui o conceito de indivíduo abstrato de natureza humana de personali dade básica próprios da Psicologia centrada no indivíduo A compreensão da natureza social da experiência individual inserese no pressuposto mais abrangente que é a relação recíproca entre o indivíduo e a sociedade entre sujeito e objeto Marx afirma Os homens fazem eles próprios sua história mas num meio dado que os condiciona A história é então produto da atividade humana entretanto a atividade humana se desenvolve sob bases reais anteriores conflitos contradições lutas que fornecem a direção para as mudanças que vão se processando Sobre as bases dessa realidade material intervém a atividade humana buscando superálas ou seja o que se costuma chamar de práxis é preci samente o movimento que eleva o homem de sua condição de produto das circunstâncias anteriormente determinadas à condição de consciência A sociedade portanto contém em si mesma elementos de mudança por causa do movimento permanente de superaçâodas contradições a contradição principal é a relação trabalhocajntal isto é a contradição entre o caráter social da produção eo caráter privado da sua apropriação mas é o homem que intervém nessa mudança para superação das contradições no sentido da sua humanização O que se pode chamar de natureza humana é então o ser social e histórico é o resultado da interação entre o homem e o mundo social Os homens são produtos ou funções de relações sociais concretas objetivas dentro de uma estrutura social que determina o seu comportamento como indivíduo1 Vazques 1977 Não se está dizendo simplesmente que o homem tem uma natureza social mas mais do que isso ele é um produto das relações sociais tal como se dão sob o capitalismo Por isso compreender o indivíduo ou buscar as causas do seu comportamento significa situálo no contexto de uma existência socialmente configurada ou seja condições de trabalho e de vida numa sociedade de classes Significa enfim compreender que o lugar que ocupa na hierarquia de classes modifica diferencialmente suas percepções sua relação 162 JOSÉ CARLOS LIBÀNEO com o futuro sua relação com as instituições sociais escola por exemplo e expectativas sociais em gerai Esse modo de entender as relações entre o indivíduo e a sociedade não somente rejeita a idéia de que o suporte biológico é antecedente ao psiquismo social como também a idéia de que o social se soma ao biológico O biológico e o social não são instâncias distintas do ser humano pois o biológico é subsumido no social Na verdade sobre uma condição biológica dada se constitui a condição social adquirida e sobre ambas surge a única e verdadeira natureza humana a natureza social e histórica Em outras palavras a atividade humana não se reduz ao biológico pois para se constituir como atividade humana é preciso que se desenvolva sobre o biológico funções novas e próprias da vida em sociedade Mas estas novas funções não são présociais como as condições biológicas mas são criadas historicamente como produtos das interações entre os indivíduos entre os grupos sociais entre os indivíduos e a sociedade Não existe portanto uma natureza humana definitiva estável ctímo quer a Psicologia corrente ela vai se constituindo histórica e socialmente pela luta do homem com o ambiente pela interação entre os indivíduos pelo trabalho pela educação Nas considerações feitas até aqui poderia parecer suficiente para uma Psicologia voltada para o social afirmar a dimensão social do individuo De fato a Pedagogia nova orientada pela Psicologia funcionalista nunca cessou de esperar da educação a adaptação do individuo à sociedade tanto é que destaca o papel das interações sociais no desenvolvimento intelectual Entretanto a Psicologia centrada no indivíduo coloca a socialização como um atributo da natureza humana e evita colocar o papel da estrutura e do meio social na socialização O termo meio social empregado pela Psicologia corrente restringese ao ambiente onde se dá o processo individual de socialização ou seja o ambiente é o ponto de chegada e não o ponto de partida Na verdade o que ocorre é que a sociedade determina as condições de educabüidade da criança a criança já é socializada desde que nasce As ações educativas portanto como são provenientes do meio social impõem à criança propósitos e tarefas que não são necessariamente correspondentes ao desen volvimento espontâneo da natureza humana individual A educação é uma atividade de fora externa à criança ela é de certa forma uma atividade forçada que intervém no curso do desenvolvimento do individuo A PRÀXIS DO PSICÓLOGO 163 E neste ponto chegamos novamente à Pedagogia Se o objeto da Pedagogia é o indivíduo concreto produto de múltiplas deter minações e em conseqüência o que ele é e traz para a situação pedagógica depende das condições de vida real que o meio social permite que ele seja então toda ação pedagógica pressupõe a compreensão do significado social de cada comportamento no con junto das condições de existência em que ocorre Colocase assim a questãochave como articular uma análise estrutural de conjunto com a compreensão dos indivíduos e suas experiências Como ir além do individual para apreender as impli cações sociais do comportamento mas com o objetivo de voltar ao indivíduo para preparálo para buscar novas formas de relações sociais Em primeiro lugar é preciso eliminar qualquer noção de natureza humana individual acentuando ao contrário que os comportamentos dos indivíduos resultam de uma realidade material conflitos de classe e relações de produção conforme vivida no meio social na família no emprego na escola etc Isso significa referir os componentes psíquicos da situação pedagógica necessidades e interesses motivação autoconceito processos mentais de aquisição de conhecimentos prontidão fatores cognitivos etc a fatores estruturais amplos isto é relações de classe que determinam padrões específicos de respostas Em segundo lugar é preciso que o problemas e limitações individuais ou seja as desvantagens sociais que dificultam a aprendizagem sejam compreendidos pelo aluno através da ajuda do professor pelos conteúdos do ensino A compreensão e a transformação do mundo pela prática social supõe efetivamente a compreensão das características mais amplas do sistema capitalista isto é o desvelamento dos mecanismos íntimos do processo de produção capitalista A atividade pedagógica contribui para que o aluno vá aprendendo a explicar o real de tal forma como escreve Vazquez a elevar a consciência da práxis como atividade material do homem que transforma o mundo natural e social para fazer dele um mundo humano O processo de mudança social não se faz sozinho nem apenas com a prática mas também pelo conhecimento A escola e o saber Os objetivos da escola se confundem com a ação exercida sobre crianças e adolescentes principalmente para tornálas aptas 164 JOSÉ CARLOS LIBÀNEO a viver numa determinada sociedade A ação pedagógica é assim o traço de união entre o individual e o social Entretanto pelo fato de a realidade social ser histórica e por isso superável ê relevante perguntarse de que sociedade se trata que homem se quer formar qual o sentido da aprendizagem escolar que significa falar en desenvolvimento da criança e do adolescente Têm sido dadas muitas respostas a essas questões e quaisquer que sejam elas são marcadas por uma dimensão política pois que os propósitos de educação individual não se separam da totalidade social onde está inserida Com efeito numa sociedade de classes dãose relações sociais que são o resultado do conflito de interesses de duas classes fundamentais sendo que uma delas a que detém o poder econômico e político procura conformar as instituições a seus inte resses Assim é que no Brasil a escola sempre esteve organizada para formar as elites sociais A forma pedagógica que predominou até 1920 mais ou menos foi a tradicional cujo objetivo era transmitir uma cultura geral humanística de caráter enciclopédico Ela sempre atendeu às camadas socialmente privilegiadas e atendeu bem tornaser entre tanto ineficaz quando sua clientela se diversifica devido ao acesso das camadas médias e populares Nas primeiras décadas do século XX a burguesia nacional tinha interesse de que a escola se adaptasse às necessidades de desenvolvimento industriai e para isso o currículo enciclopédico da escola tradicional já não servia Eis aí o objetivo do movimento da escola nova modernizar o ensino isto é colòcálo a serviço das necessidades sociais Os princípios da escola nova respeito à individualidade da criança desenvolvimento de aptidões naturais aprender fazendo atividade espontânea etc coincidiam com os princípios da filosofia liberai que exigiam uma escola prática um ensino útil para a sociedade vale dizer para a indústria moderna Na escola nova decresceu o interesse pelos conteúdos das matérias em favor dos métodos habilidades pesquisa com o argumento de que desenvolvendo os processos mentais a criança seria melhor atendida em suas necessidades espontâneas e chegaria sozinha aos conteúdos Essa orientação da escola nova prejudicou muito as crianças das classes populares pois se supunha que elas já traziam de cada uma formação prévia para enfrentar um currículo na base de experiências Com efeito a supremacia do método ativo e intuitivo favorecia aquelas crianças que tinham experiências familiares mais A PR 4X15 DO PSICÓLOGO 165 rícas e sistematizadas e prejudicava as que tinham na escola a única chance de acesso ao saber Os professores por sua vez foram desobrigados de dominar o conteúdo das matérias ganhando peso o domínio das técnicas de ensino O atendimento portanto continuou precário e caiu por terra o propósito apregoado pela escola nova de promover a igualdade de oportunidades Enquanto isso continuaram os elevados índices de evasão e repetência embora persistisse a reivindicação da população por mais escolas É o momento de colocar em ação um modelo pedagógico de escola que viesse a reduzir as pressões atendesse o máximo de crianças e com o menor custo possível além de atender aos interesses da classe empresarial A Pedagogia tecnicista não rompe com a Pedagogia tradicional que nunca deixou de existir e nem com a Pedagogia nova e introduz na escola os objetivos preestabelecidos para uniformizar o ensino acentuar as técnicas simplificar os conteúdos comprometendo mais ainda a qualidade Esse breve esboço da evolução histórica da escola permite compreender como a ação pedagógica acompanha as formas pelas quais a sociedade é organizada Ora se o que caracteriza a sociedade são as relações entre as classes sociais que são relações de contradição em função de interesses que são distintos concluise que essa contradição também existe na escola já que ela é uma manifestação particular da sociedade É possível então considerá la como uma das mediações pela qual se efetua o conflito entre as classes sociais uma interessada na reprodução da estrutura de classes tal qual é outra cujos interesses objetivos exigem a negação da estrutura de classes e a supressão da dominação econômica Mello 1982 Portanto a escola tanto pode se organizar para negar às classes populares o acesso ao conhecimento como para garantilo se assume o papel de agente de mudança nas relações sociais cabelhe instrumentalizar os alunos para superar sua condição de classe tal qual mantida pela estrutura social Portanto uma escola que se proponha a atender os interesses das classes populares terá de assumir suas finalidades sociais referidas a um projeto de sociedade onde as relações sociais existentes sejam modificadas Isso significa uma reorganização pedagógica que parta das condições concretas de vida das crianças e sua destinação social tendo em vista um projeto de transformação da sociedade e aí se insere a função da transmissão do saber escolar Em outras palavras ao lado de outras mediações é a aquisição de conhecimentos e habilidades que assumindo formas 166 JOSÉ CARLOS LIBANEO pedagógicas garantirão a inserção das classes populares num projeto amplo de transformação social A perspectiva que se propõe aqui é uma nova maneira de compreender os elementos da ação pedagógica o aluno o educador a sociedade Com efeito a Pedagogia tradicional caracterizase por privilegiar o pólo da tradição constituída onde o saber é transmitido unilateralmente sem possibilidade de se questionar seu sentido e função face às realidades sociais A Pedagogia nova não lida com o saber enquanto tal por entender que sua busca deva ser espontânea por um processo de descoberta da criança Além disso essa Pedagogia extrapola as funções específicas da escola quando pretende abarcar muitas dimensões do desenvolvimento humano Por outro lado certas posições mais críticas ora negam o valor à escola atual devido à sua condição de reprodutora das relações sociais vigentes ora restringem seu papel à discussão da experiência vivida pelas classes populares a fim de possibilitarlhes adquirir uma consciência política Uma Pedagogia social voltada para os conteú dos culturais entende que há saberes universais que se constituíram em domínios de conhecimento relativamente autônomos incorpo rados pela humanidade e que devem ser permanentemente reava liados face às realidades sociais através de um processo de tratis missãoassimilaçãoreavaliação critica O objetivo da escola assim será garantir a todos o saber e as capacidades necessárias a um dominio de todos os campos da atividade humana como condição para redução das desigualdades de origem social Este é o núcleo da ação pedagógica cujos mecanismos íntimos devem ser bem compreendidos a fim de possibilitar suas interfaces com as dimensões psicológica e social Ação pedagógica conceitos e objetivos O que é a Pedagogia Qual é seu objeto O que configura uma situação pedagógica São questões sobre as quais os educadores estão longe de ter um consenso Entretanto para trilhar um caminho que leve a clarear a especificidade do ato pedagógico podese partir da afirmação de que a Pedagogia é a teoria e prática da educação e portanto seu objeto é a educabilidade do ser humano ou melhor o ser humano a ser educado Educar em latim educare é conduzir de um estado a outro é modificar numa certa direção o que é suscetível de educação O ato pedagógico pode A PRÀXIS DO PSICÓLOGO 1 então ser definido como uma atividade sistemática de interaçto entre seres sociais tanto a nível do intrapessoal quanto a nível da influência do meio interação essa que se configura numa ação exercida sobre sujeitos ou grupos de sujeitos visando provocar neles mudanças tão eficazes que os tome elementos ativos desta própria ação exercida Presumese aí a interligação no ato pedagógico de três componentes um agente alguém um grupo um meio social etc uma mensagem transmitida conteúdos métodos auto matismos habilidades etc e um educando aluno grupos de alunos uma geração etc Mialaret 1976 Chamemos esses componentes de A agente M mensagem e E educando O movimento A M E não é unidirecional pois a ação de A sobre E pode retornar de E para A inclusive pela reavaliação de M Entretanto o retomo de E para A somente existe porque A veiculou antes uma mensagem M Ou seja A tem por pressuposto objetivos prévios em relação a E além de que as relações ÀE são assimétricas porque não são da mesma natureza O especificamente pedagógico estaria assim na imbricação entre M e E propiciada pela ação de A pois somente A poderia garantir a adequação entre o conteúdo de M e as condições de assimilação de E Ou seja a ação pedagógica somente se completa quando a mensagem M tem um efeito tal sobre o educando E de tal forma que se evidencie a participação deste em M Este esquema permite identificar certas características do ato pedagógico que são relevantes para as situações pedagógicas Em primeiro lugar implica uma ação sobre1 o indivíduo ou grupo de indivíduos de tal forma que ao termo dessa ação o educando corresponda tanto quanto possível à imagem que se faz de homem educado Esta ação entretanto não é arbitrária mas decorre da função socializadora da escola representada pelo professor Com isso se quer dizer que o ato pedagógico é o meio pelo qual se torna possível a ligação de reciprocidade entre indivíduo e sociedade Enquanto instância mediadora entre outras a ação pedagógica tem um caráter intencional de convencimento face à transmissão de um conhecimento que viabilizará a inserção do aluno na sociedade de forma crítica Isso leva a admitir que o ato pedagógico supõe a desigualdade entre professores e alunos no ponto de partida para se caminhar à igualdade no ponto de chegada Considerar que alunos e professores são iguais face a um conteúdo objetivo externo a ambos toma sem sentido a ação pedagógica A ação pedagógica o processo educativo é um meio para se chegar a algo sendo esse 168 JOSÉ CARLOS LIBÄNEO algo os conteúdos culturais É por esse caminho que se chega à noção de educação como uma atividade mediadora no seio da prática social global ou seja uma das mediações pela qual o aluno pela sua participação ativa e pela intervenção do professor passa de uma experiência social inicialmente confusa e fragmentada sincré tica a uma visão sintética mas organizada e unificada Saviani 1982 Com efeito de um lado há o aluno y socialmente determinado pertencente a uma classe social que domina um saber não siste matizado valores gostos falas interesses necessidades enfim portador de uma primeira educação adquirida no seu meio socio cultural Esta realidade é o referencial concreto de onde se deve partir para o domínio do conteúdo estruturado trazido pelo pro fessor que por sua vez é o representante do mundo social adulto com mais experiência e mais conhecimentos em tomo das realidades sociais e com o domínio pedagógico necessário para lidar com os conteúdos cuja função consiste em guiar o aluno em seus esforços de sistematização e reelaboração do saber Em segundo lugar a ação pedagógica porque lida com o ser humano educável referese a um objeto aberto à expansão portanto modificável pois seu efeito está precisamente em tomar o aluno sujeito de seu próprio conhecimento O ato pedagógico contém em si não só a dimensão do que é o transmitido o reproduzido como também a dimensão do que pode ser a inovação a reelaboração Aí está uma das dificuldades de conhecimento e apreensão do objetoeducação ele é inconcluso no sentido de que vai se gerando no curso da experiência dos homens como indivíduos e como conjunto Sacristán 1983 ou seja vai sendo construído em decorrência da própria prática educativa Este acentua novamente o caráter social e histórico do ser humano isto é a historicidade do objeto faz com que ele não seja definitivamente mas esteja sempre inacabado neste sentido que o ato pedagógico assume uma dimensão valorativa ideológica para além de seus componentes metodo lógicos e técnicos Em contraposição a outras ciências as ciências da educação não é que não possam já se despojar de um certo componente ideológico próprio de todo trabalho científico mas esse mesmo componente é o que as justifica A força desse componente utópico é a que deve comandar a parte do objeto ainda não configurado embora ajudado por outros co n h e c im e n to s teó ricos mas não unicamente por eles Sacristán1983 A PRÂXIS DO PSICÓLOGO i Esse raciocínio permite insistir no fato de que as criafiÇAT precisam adquirir do professor conceitos necessários e uteniíUot intelectuais para um domínio seguro do saber escolar e eliminar idéias muito difundidas entre os professores de que os conteúdo devem sair deles qualquer livro é bom enfini acreditando em interesses transitórios como os que são captados nas revistas em quadrinhos televisão formas de democratização do ensino mais uma vez segregativas Em terceiro lugar a mensagem são os conteúdos culturais mas que abrangem também os métodos de sua apropriação como de resto o discurso verbal de professores e alunos os gestos os livros didáticos O método de apropriação dos conteúdos consiste na própria lógica do processo de conhecimento Ao fazer da experiência social das crianças a própria trama da experiência educativa sobre a qual se introduz o conteúdo científico das matérias nâo para destruir a experiência prévia antes para elevála estáse conce bendo o conhecimento como uma atividade inseparável da prática social A atividade teórica é o processo que partindo da prática nos leva a apreender a realidade objetiva para em seguida aplicar o conhecimento adquirido na prática social para transformála A introdução de conhecimentos e informações não visa portanto o acúmulo de informações mas uma reelaboração mental que se traduzirá em comportamentos práticos numa nova perspectiva de ação sobre o mundo social levando efetivamente à passagem do individual ao social Da prática para a teoria para regressar à prática é um movimento de continuidade do já experimentado e aprendido mas essa continuidade é reavaliada criticamente por meio da ruptura propiciada pelo saber organizado trazido pelo professor o que alimentará novamente a prática e assim sucessi vamente Este processo de ida e volta entre a teoria e a prática permitirá um trabalho conjunto professoraluno para compreensão e enfren tamento das características mais amplas das relações capitalistas de produção que resultará gradativamente ao lado de outras práticas sociais no desenvolvimento da consciência de classe Isso significa tomar posição diante do conhecimento como uma forma insubsti tuível de apreender a dinâmica da sociedade de classes Chegase assim às finalidades de ação pedagógica das quais resultam princípios psicológicos acerca do ser que aprende e dos processos de aprendizagem Segundo Mialaret a ação pedagógica necessariamente exercida no quadro de uma situação pedagógica 170 JOSÉ CARLOS LIBÀNEO uma só existe pela oútra e reciprocamente induz condutas prova e utiliza processos psíquicos nos educandos A Psicologia da educação pode pois ser considerada como o conjunto dos estudos dessas condutas e desses processos provocados ou utilizados peia atividade pedagógica O psicólogo educacional por conseguinte deve ser competente ao mesmo tempo no domínio da Psicologia e no da Pedagogia uma vez que as condutas por estudar se desenvolvem sob a influência de condições pedagógicas 1974 Dentro da preocupação com uma escola voltada para a redução das desigualdades sociais a retomada da noção de edu cação como favorecimento das condições de apropriação efetiva dos conteúdos culturais pode se inscrever numa perspectiva global na noção da educação cognitiva articulada com os antecedentes sociais dos alunos Enquanto a Pedagogia tradicional priva o aluno da iniciativa por transmitirlhe conteúdos sem chance de reelaborálos a Pedagogia nova pressupõe na criança um apetite pelo saber que levaa a construir seu próprio conhecimento ignorando o fato de que ele já se encontra estruturado na forma de cultura A Pedagogia social crítica assume a interestruturação entre um sujeito que procura conhecer e os objetos aos quais se refere esse conhecimento Ou seja tratase de uma posição de síntese pois garante com preender o processo de conhecimento como intervenção do sujeito no mundo objetivo e a modificação do sujeito em decorrência de sua ação sobre esse mundo objetivo sendo que essa objetividade se redefine como adequação do conhecimento a uma ação prática 9obre o mundo social Tratase de investir todos os esforços nas possibilidades da escola em obter o máximo possível de desenvol vimento a todas as crianças contribuindo para o sucesso individual domínio do saber e personalização e o sucesso social capacidade de se integrar na sociedade e agir sobre ela a Uma Psicologia das relações sociais O que acontece com a Psicologia ocidental é o seu compro misso com o individualismo portanto com uma criança abstrata sem referir aos determinantes históricosociais e ao contexto em que vivem e trabalham os indivíduos A Psicologia das relações sociais está por fazer mas é possível estabelecer um caminho pelo qual se possa atender à experiência individual concreta isto ét o indivíduo em relação à sua existência material Marx escreveu 4i A produção de idéias de representações e da consciência está em primeiro lugar direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio A PRÃJCIS DO PSICÓLOGO 171 intercâmbio material dos homens é a linguagem da vida real São os homens que produzem suas representações suas idéia tc mas os homens reais atuantes e tais como foram condicionadopor um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e do modo de relações que lhe corresponde incluindo até as formas mais amplas que estas possam tomar Assim sendo o ponto inicial de qualquer plano de ensino é a consideração dos antecedentes sociais e mais do que isso tratase de levar em conta no trabalho pedagógico com as crianças da escola pública as práticas de vida das quais participam e as relações sociais que as sustentam Com efeito são as condições sociais concretas de vida e de trabalho que determinam necessidades interesses atitudes autoconceitos assim como impõem certos limites para o desenvolvimento das capacidades envolvidas no ato de aprender Há alguns anos difundiuse uma proposta de intervir nos antecedentes sociais inibidores da aprendizagem escolar a educação compensatória esta abordagem porém apresenta as crianças pobres como portadoras de negatividades carenciadas desfavo recidas sempre comparadas com o grupo social que não possui essas desvantagens Seu objetivo seria então colocar estas crianças no mesmo nível das outras tidas como normais ignorando não só as razões de natureza estrutural que esto por trás das carências mas também negando que elas sejam portadoras de uma experiência social própria de sua classe social de origem Outra idéia oposta à anterior apresenta as crianças pobres como portadoras de uma cultura e de ura modo de vida suficien temente ricos que não teriam necessidade de assimilar um tipo de saber erudito Esta posição afirma que a educação deve partir da realidade como ela é levando em conta o meio cultural a lin guagem os valores da população e com isto tendem a preservar as atuais circunstâncias de vida preciso porém levar em conta que as classes populares nem são depositárias de uma nova cultura tudo o que vem do povo é bom e nem inferiorizadas desfavorecidas a quem cabe dar uma assistência tipo caritativa O que se propõe é uma ação pedagógica que apreenda a experiência social das classes populares extraindo o que há de positivo não para mantêlas no estado em que se encontram mas para aumentar seus conhecimentos e alargar suas práticas Uma ação pedagógica conseqüente supõe portanto investi gações que mostrem como se dão as condições de maturação dessas 172 JOSÉ CARLOS LIBÄNEO crianças e simultaneamente formas de solicitações sociais do meio as múltiplas mediações que venham a mobilizar a atividade da criança para desenvolver suas capacidades de relação com o saber escolar Em outras palavras é preciso transformar o meio sóciocul tural das crianças em objeto de estudo já que ele fornece as bases para o trabalho escolar Investigações em torno de antecedentes sociais permitiriam esclarecer certas questões que desafiam os educadores até que ponto o insucesso escolar deve ser atribuído a deficiências de ordem intelectual por que há descompasso entre a incompetência da criança nas atividades escolares e a capacidade revelada em outras ativi dades qual é de fato a extensão das desvantagens sóciocul turais que as crianças pobres efetivamente carregam um meio escolar estimulante em vários sentidos contri buiria para melhoria das aprendizagens na mesma intensidade com que as crianças de meios mais favorecidos aprendem como efetivamente as desvantagens poderiam se trans formar em pontos de apoio para deslanchar a ação educativa é possível manter os mesmos parâmetros da cultura padrão das classes socialmente favorecidas para por métodos adequados trazêlos para as classes populares b Prérequisitos para a aprendizagem Prérequisitos referemse aqui a suportes psicológicos e sociais prévios requeridos das crianças para que possam apropriarse de conhecimentos e habilidades que precisam ser dominados Tratase do que comumente se chama de prontidão mas num sentido mais amplo Buscar apoios pedagógicos nas próprias condições sociais concretas da criança é uma forma de colher os meios de levar uma criança com dificuldades escolares a interessarse pelas atividades a ter vontade de aprender a dedicarse aos estudos Ou seja transformar as desvantagens no seu contrário Parece assim fora de dúvida que o ato pedagógico começa com uma atitude e aqui é uma nova abordagem da motivação e do autoconceito que se espera Ou o professor se apóia num interesse disponível na criança ou a atitude favorável às atividades escolares precisam ser provocadas desenvolvidas Se um dos caminhos seria a ligação com experiências de vida é preciso levar em conta que uma A PRAXJS DO PSICÓLOGO 171 boa parte das crianças não possui perspectivas de futuro e neiH CMO a escolaridade pode não fazer muito sentido Como da qualidade dft motivação inicial depende o êxito de outros processos colocados em ação pelo professor é preciso despertar nele a vontade de crescer de ir para a frente ter uma esperança no futuro O trabalho pedagógico aí não poderá restringirse a métodos ou mesmo criar atividades estimulantes mas deve intervir no nível de aspiração oferecer modelos de identificação que possam mostrar suas possibi lidades Ou seja é preciso que a criança chegue a uma elaboração psicológica e individual a respeito de qualquer coisa que esteja na sociedade exterior a ela modelos atraentes de adultos conhecer operários militantes tomar consciência do papel da classe operária na mudança social livros de leitura festas participação em grupos e associações na própria escola São meios que podem ser usados a fim de que os alunos das classes populares dominem a situação desfavorável e superem o fatalismo de sua condição de origem A escola é também um meio de vida da criança ai também se constrói sua personalidade pela provocação de mecanismos psicológicos indispensáveis para que a criança invista positivamente em sua escolaridade O que significa aceitar que as lacunas e carências efetivamente existem e freqüentemente talvez fosse o caso de levar a criança a tomar consciência desses determinantes que pesam sobre ela fazendoa falar expressarse desdramatizar suas próprias condi ções de vida bem como das possibilidades de modificação da situação transformando a desvantagem em alavanca de acultu ração Tratase de campos pouco explorados pela Psicologia edu cacional e que desafiam a investigação em cima de uma nova prática pedagógica e a partir dessa mesma prática Evidentemente os prérequisitos não se resumem à área afetiva Há aspectos sócioculturais que efetivamente comprometem a relação positiva das crianças com certos setores da escola como as artes a poesia as ciências e que somente o provimento de certas condições na própria escola incentivariam essa disponibilidade bibliotecas visitas a museus livros fotografias discos etc A preparação cognitiva propriamente dita impõe a ade quação metodológica do que já foi mencionado atrás partir do que a criança já sabe valorizar o conhecimento já disponível seja qual for procurar mostrarlhe que uma ruptura desse conhecimento prévio contribui para o seu desenvolvimento enfim articular o 174 JOSÉ CARLOS LÏBÂNEO desconhecido com o conhecido A própria discussão em grupo tão usada e tão malfeita hoje em dia permitirá à criança clarificar seu pensamento e sua linguagem aumentando seu poder de dar forma ao real Neste sentido são oportunas as classes de recuperação que serão abordadas mais adiante c Os conteúdosmétodos Os conteúdosmétodos de apropriação ativa do saber impli cam uma relação dinâmica entre a ação cientificamente funda mentada do professor e a vivência e participação do educando Ê preciso rever as normas pedagógicas vigentes currículos pro gramas avaliação face às necessidades da clientela O ato pedagógico visa também a transformação das estruturas psíquicas existentes ou criação de estruturas novas Tratase aqui de verificar quais as disposições exigidas e exercidas por cada uma das matérias de ensino Parece existir hoje um consenso entre os educadores de que ao lado da consideração dos estágios de desenvolvimento cognitivo se pode avaliar as possibilidades de acelerar o desen volvimento dessas estruturas Como situar essa proposição em relação às crianças das camadas populares Por outro lado a ênfase na aprendizagem de sala de aula por meio da transmissão e reelaboração de conteúdos parece ser compatível com a noção de aprendizagem significativa proposta por Ausubel 1980 e com a noção de estrutura das matérias proposta por Bruner 1968 Outros campos de estudo correlatos a Psicologia da memória a formação de hábitos e automatismos os processos de aquisição da linguagem instigam a investigação do psicólogo educacional d O meio escolar O meio escolar deve ser um lugar que propicie determinadas condições que facilitem o crescimento sem prejuízo dos contatos com o meio social externo Há dois pressupostos de partida primeiro é que a escola tem como finalidade inerente a transmissão do saber e portanto requerse a sala de aula o professor o material de ensino enfim o conjunto das condições que garantam o acesso aos conteúdos segundo que a aprendizagem deve ser ativa e para tanto supõese um meio estimulante O meio educativo compõese do meio material a realidade material concreta da escola da classe e da realidade social meio A PRAXIS DO PSICÓLOGO 17 pessoal as intercomunicações existentes entre as diferentes peilOM envolvidas na situação escolar incluindo as posições sociais dâl pessoas e as comunicações que se dão e meio institucional síntese dos demais fatores que compõem o meio educativo incluindo instâncias externas à escola O conjunto desses fatores compõe o ambiente global da aprendizagem que tanto pode inibir e bloquear o trabalho peda gógico quanto pode ser o quadro motivador que possibilite o desenvolvimento das capacidades e poderes das crianças Um dos aspectos a ressaltar são os arranjos ao nível das estruturas de organização das classes A questão homogeneidade heterogeneidade pode ser resolvida pela formação de classes etárias heterogêneas ao lado de grupos homogêneos para recuperação aquisição de automatismos melhora da leitura consolidação de um conceito Ê possível realizarse esse trabalho num momento das aulas quando os alunos poderiam ser separados em grupos dis tintos alunos sem dificuldades que trabalhariam individualmente os médios e os mais fracos que trabalhariam com a ajuda de dois professores em torno das dificuldades apresentadas Paralelamente outra forma de organização seria7i os grupos espontâneos em torno de clubes ou associações espones artes trabalhos manuais etc Entretanto o principal fator de um meio escolar estimulante é o professor e talvez esteja aí um sério fator comprometedor da eficácia da escola pública já que ele também carece de estimu lação Sobre ele escreveu Zazzo Os professores têm espontanea mente tendência a explicar pela inteligência a situação do mau aluno secundariamente peia preguiça muito raramente pelas condições de vida da criança e menos ainda por sua má pedagogia nào é afirmação gratuita mas o resultado de sérios inquéritos 1974 Ê comum os professores levarem em conta apenas o aspecto intelectual dos alunos considerando o insucesso como fenômeno individual ou seja o mau resultado escolar decorrente de condições sociais é algo natural Resulta daí uma expectativa negativa face ao desempenho irregular daquele aluno que não corresponde ao seu trabalho A condição de êxito do trabalho escolar supõe um professor com uma formação científica de alto nível formação que inclua também uma clara compreensão dos mecanismos do insucesso escolar 176 JOSÉ CARLOS LÍBÀNEO Psicologia na escola De acordo com a perspectiva segundo a quaJ o domínio específico da Psicologia educacional isto é os processos psíquicos implicados no ato pedagógico resulta das situações pedagógicas sua atuação na escola pode darse em três níveis pelo próprio professor como psicólogo em ação pelo supervisororientador educacional pelo próprio psicólogo em Centros de Saúde ou organi zações comunitárias O último nível apontado suporia a existência de serviços espe cializados seja para atendimento de casos especiais de alunos com problemas de aprendizagem seja para eventual assistência às escolas pesquisa pedagógica treinamento em serviço programas de recu peração nas matérias etc Como o interesse deste capítulo são as possibilidades institucionais da escola não há maiores comentários sobre este nlvel Os professores da escola pública em geral são céticos quanto às possibilidades de auxilio da Psicologia principalmente os que já têm uma larga experiência de saia de aula Muitos professores chegam a recusar qualquer auxilio técnico posto à sua disposição por desacreditar de sua eficácia Há outros que aceitariam de bom grado os aportes da Psicologia se ela realmente atendesse à proble mática do ensino Há ainda um numeroso grupo que mesmo disposto a acreditar na criança e na escola sentemse impotentes face às condições de vida e de trabalho produzidas por uma sociedade segregativa e discriminadora Por fim de uma forma ou outra paradoxalmente a grande maioria dos professores é larga mente influenciada pelo psicologismo que os leva a transformar os comportamentos das crianças em manifestações psicológicas o que levou Wallon a escrever que a introdução da Psicologia na licen ciatura deveria ter menos a característica de matéria de ensino e mais a de acautelar os professores contra certos slogans psicológi cos e leválos a tirar de sua própria experiência conclusões instru tivas para o próprio psicólogo 1975 A posição segundo a qual a escola pública deve orientarse predominantemente para o ensino das matérias escolares implica assumir que os apoios pedagógicos devem ser buscados nas variáveis que afetam diretamente a aprendizagem escolar Isso significa acreditar que nào há oposição entre ensino centrado no aluno e A PRAXIS DO PSICÓLOGO 177 ensino centrado no professor ou nos programas mas uma conti nuidade Se por um lado é a criança que aprende como sujeito de sua própria aprendizagem por outro a condução do ensino 6 responsabilidade do professor e da escola Não existe apetite inato de aprender uma coisa é reconhecer interesses e necessidades nas crianças e reorientálas para que participem ativamente na apren dizagem outra coisa é entregar a responsabilidade dos conteúdos à espontaneidade das crianças O professor assim é primordial e o que se exige é antes de tudo uma formação científica que abranja o domínio de sua matéria de métodos e recursos de ensino e na Psicologia o conhecimento dos mecanismos geradores do insucesso escolar especialmente os decorrentes da condição de origem das crianças Sem essa formação uma boa parte do discurso proferido neste texto terá sido inútil No que se refere ao ensino da Psicologia tratase de articular seus princípios e explicações com a prática cotidiana do professor para que ele próprio os transforme em métodos e conteúdos Levar em conta a problemática real da escola significa classes numerosas condições desiguais nos prérequisitos para a aprendizagem moti vação e interesses vinculados a perspectivas de classe social problemas de comunicação e entendimento professoralunos indis ciplina inadequação de programas etc A orientação do ensino se torna psicológica quando pretende adaptarse ao aluno Na verdade não se estaria errando muitose se pudesse extrair o conteúdo da Psicologia da observação atenta de como certos professores conse guem aproximarse dos interesses compreensão e linguagem das crianças sem sacrificar a tarefa de ensinar e até como forma de ensinar o que Wallon chama de poder espontâneo de simpatia intelectual e que infelizmente não pertence a todos O segundo nível de atuação da Psicologia na escola se dá através do supervisororientador educacional O autor não faz distinção relevante entre supervisor pedagógico e orientado edu cacional quanto mais cresce a convicção da unidade do ato pedagógico na sua diversidade menos sentido faz a fragmentação do atendimento ao professor e ao aluno algo parecido se poderia dizer do próprio diretor de escola A presença desses profissionais na escola desde que tenham competência é imprescindível para o funcionamento escolar Embora haja um número considerável de tarefas que desempenham 178 JOSÉ CARLOS LIBÂNEO no conjunto da escôla será destacado aqui apenas o aspecto do professor e suas relações com os alunos Com efeito o supervisor orientador atua como auxiliar do professor na sala de aula dando assistência a problemas de aprendizagem relacionamento profes soralunos adequação conteúdosmétodos às condições sócioçultu rais e psicológicas das crianças atividades de sensibilização visando mudança de atitudes e expectativas etc Os professores esperam muito da equipe técnica desde que sejam efetivamente apoiados Eles enfrentam por exemplo o problema da solidão São solicitados a dar muito mas recebem pouco Seu trabalho é a longo prazo e nem sempre podem experi mentar a alegria de ver os alunos corresponderem ao seu trabalho São raros os momentos na escola em que possam trocar idéias com seus colegas e as escolas não incentivam nem favorecem a formação de equipes de professores mesmo porque o trabalho de sala de aula é tão absorvente que às vezes quanto menos se falar de aluno melhor Os professores reclamam também a preparação deficiente dos alunos dos anos anteriores e isso gera ansiedade e afastamento entre os colegas Outros manifestam uma permanente aversão e antipatia pelos problemas manifestados pelos alunos A falta de entendimento entre professores e alunos a indisciplina a não correspondêncla entre as expectativas de uns e outros são alguns fatores que provocam freqüentemente reações emocionais intensas O que é possível fazer Como adequar conteúdosmétodos para que se articulem com as condições dos alunos Eis algumas idéias reforçar o conteúdo científico do ensino e investigar métodos de apropriação que permitam articulação teoriaprâtica social considerar o meio social de origem dos alunos como ponto de partida para as reelaborações dos conteúdosmétodos estudar as características sócioculturaise psicológicas das crianças das classes populares a fim de poder avaliar suas disposições intelectuais suas características positivas bem como as limitações efetivamente exis tentes superando o enfoque da educação compensatória atuar na modificação das expectativas e atitudes dos professores frente ao insucesso escolar das crianças mais pobres estimular a formação de equipes de professores onde se tome possivel um projeto comum de construir uma escola demo A PRÁXIS DO PSICOLOGO 179 crática para redução das desigualdades escolares por razões de origem social incentivar pelo menos a atitude de pesquisa pedagógica que permita inovações c avanços assumir o meio escolar como o conjunto das disposições materiais físicas humanas e institucionais que garantam o clima necessário ao desenvolvimento melhor possível a partir da expe riência social e cultura vivida pela criança auxiliar os professores no manejo de classe e controle da disciplina a partir de uma melhor compreensão do comportamento do aluno em suas implicações de natureza social habilidades de condução de grupos numerosos etc fazer uma revisão de conjunto da adequação de conteúdos métodos face às disponibilidades psicológicas e sóeioculturais das crianças bem como dos prérequisitos de natureza cognitiva trazidos pelas crianças A formação psicológica do educador incluiria pelo menos os seguintes tópicos 1 determinantes sócioculturais da ação pedagógica Univer so cultural dos alunos e da escola Meio sóciocultural e disposições psicológicas Condições sociais de vida e de trabalho das classes populares Aspectos do desenvolvimento físico e cognitivo O ambiente escolar 2 componentes psicológicos Motivação autoconceito atitu des Processos mentais de aquisição de conhecimentos a comu nicação docente Aprendizagem signitiva Capacidades exigidas pelas matérias de estudo 3 Psicologia social percepção e expectativas de papéis em termos de classes sociais Manejo de grupos numerosos Bibliografia Ausubei David etalii Psicologia Educacional Rio interamericana 1980 Bruner Jerome S O processo da Educação São Paulo Nacional 1968 Charlot Bemard A Mistificação Pedagógica Rio Zahar 1979 Corrigan P e Leonard P Prática do Serviço Social no Capitalismo Rio Zahar 1979 Cury Carlos R J Educação e Contradição elementos metodológicos para uma teoria crítica do fenômeno educativo Sào Paulo Tese de doutorado 1979 180 JOSÉ CARLOS LIBÄNEO Debesse M e Mialaret G Tratado das Ciências Pedagógicas Psicologia da Educação voJ 4 São Paulo Nacional 1974 Gfen Grupo Francês de Educação Nova Aproveitamento Escolar Que Pedagogia Lisboa Editorial Caminho 1978 Lane Silvia T M Redefinição da Psicologia Social in Educação e So ciedade São Paulo n 6 Libâneo JoséC TendênciasPedagógicas e Prática Escolar in Revista da ANDE ano 4 nó1983 Martins Joel O Psicólogo Escolar separata da Revista de Psicologia NormalePatológica São Paulo 1970 Mialaret G As Ciências da Educação Lisboa Moraes 1976 Mello Guiomar N de Pesquisa em Educação Questões Teóricas e Ques tões de Método Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas 40 fev 1982 Mello Guiomar N de Educação e Classes Populares Revista da ANDE ano 4 n 611983 Merani Alberto L Psicologia e Pedagogia Lisboa Editorial Noticias 1977 Sacristán José G Explicação Norma e Utopia nas Ciências da Educa ção Cadernos de Pesquisa Fundação Carlos Chagas São Paulo 44 fev 1983 Sâviani DermevaJ Escola e Democracia São Paulo Cortez EdAutores Associados 1983 Snyders George Para Onde Vão as Pedagogias Nãodiretivas Lisboa Moraes 1981 Wallon Henri Psicologia e Educação da Infância T Lisboa Editorial Es tampa 197S O psicólogo clínico Alfredo Naffah Neto Ser um psicólogo clínico sonho de tantos mil vestibulandos antes mesmo de adentrar as portas de uma faculdade de Psicologia De fato a clínica fascina e atrai como a fantasia de algo importante e misterioso Lembrome do olhar de respeito e ao tnesmo tempo de sofreguidão com que eu a namorava nos idos da década de 60 quando era ainda um estudante de Psicologia Era algo assim como a noiva esperada há tantos anos e que eu deveria conquistar com maestria e competência Imaginarme sentado numa sala e tendo diante de mim um cliente Puxai Nâo era brincadeira nàol Alguém que iria depositar no meu saber os destinos da sua vida Isso me fazia importante e poderoso E era como uma autoafirmaçào para as minhas inseguranças de adolescente1 Mais tarde acabei de fato desposando a clínica e como em todo casamento tive de apreender na convivência do cotidiano r a desmistificar os dotes sobrenaturais de tão afamada dama E conseguir conviver com ela num nível mais real Comecemos pelo psicôdiagnóstico tâo valorizado nos meus tempos de aluno Saber aplicar e interpretar os testes do Roschach era algo fundamental o primeiro sinal de que tínhamos sensibi 1 Cabe lembrar ao leitor que nessa época ser psicólogo clínico e psicoterapeuta era algo que envolvia para nós anos e anos de formação Jamais pensarfamos como hoje se fa2 em terminar a faculdade e já iniciar uma prática clfnica sem um curso de especialização 182 ALFREDO NAFFAH NETO lidade1 e aptidão pra o ramo Do TAT então nem se fale Já exigia maiores conhecimentos Sentiame um pouco como um aprendiz de feiticeiro E não tinha qualquer consciência crítica dos pressupostos que tais práticas envolviam Só mais tarde no mestrado em Filosofia lendo Michel Foucault vim a fazer a crítica da psicometria Á começar pelo uso das tabelas estatísticastão valorizadas então uma espécie de emblema da cientificidade do teste Se o teste foi validado e padronizado para a população em questão então tem valor científico diziam todos E tome estatística Mas ninguém se perguntada o que significava pautar as noções de normal e patológico pelos valores médios de uma popu lação Ninguém percebia que a média enquanto símbolo abstrato de uma normalidade era também símbolo da mediocridade e da unidimensionalidade do nosso modelo dé homem Ser normal e portanto nãoneurótico significava ser médio em tudo ai de quem passasse do desviopadrão E com esse princípio não questionado não percebíamos que a padronização do teste implicava diretamente um princípio de padronização do homem Que o que chamávamos de saúde mental era algo que tinha a ver com um homem padrão não mais respostas emocionais do que a média da popu lação não mais respostas globais ou de detalhes do que reza a tabela de normas do teste de Roschach Saudável é o homem médio o que quer dizer o homem medíocre o homem que não se desvia das normas o homem adaptado à realidade E por incrível que pareça ninguém se perguntava por essa realidade se ela era boa ou ruim justa ou injusta E estávamos nos anos 60 pico da ditadura militar e do Terror no Brasill Um início de consciência crítica veio na época através de Ana Maria Poppovic que ao iniciar seus estudos com crianças carentes culturais descobriu que nem sempre um baixo resultado nos testes de inteligência significava necessariamente deficiência mental podia significar também carência cultural Era um primeiro vislumbre da realidade políticocultural bastante importante no momento estávamos então em 68 época da tomada da PUC pelos alunos das comissões paritárias e tudo o mais Pena que isto não nos tenha possibilitado fazer a critica mais plena da psicometria e dos princípios que ela encobre e faz proliferar Também na época os caminhos eram poucos ou optávamos pelo 2 E isso se aplica sem dúvida d maioria da população infantil brasileira A PRAXIS DO PSICOLOGO 1U behaviorismo que tampouco fazia a crítica da realidade mal simplesmente a transformava num conjunto de estímulos varíadoi ou pela clínica tradicional o que quer dizer pelos testes verdade que na época a Psicologia era relativamente nova no Brasil e que tudo o que tínhamos era herdado dos americanos e dos europeus Podese argumentar nesse sentido que o psicólogo brasileiro ainda não tivera tempo suficiente para fazer a crítica dessa herança cultural e da carga ideológica que ela comportava O que assusta entretanto é perceber que hoje quase vinte anos depois o cenário ainda é praticamente o mesmo na maior parte das faculdades de Psicologia Ainda se ensinam as mesmas coisas e falta a mesma consciência critica3 nesse sentido a Psicologia continua ainda sendo um dos baluartes do poder disciplinar Como nos mostra Michel Foucault A arte de punir num regime de poder disciplinar não visa nem à expiação nem mesmo exatamente à repressão Ela coloca em ação cinco operações bem distintas referir os atos as realizações as condutas singulares a um conjunto que seja ao mesmo tempo campo de comparação espaço de diferenciação e princípio de uma regra a seguir Diferenciar os indivíduos uns com relação aos outros ç em função desta norma de conjunto quer se a faça funcionar como um limiar mínimo como uma média a respeitar ou como um optímum do qual devese estar próximo Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades o nível a natureza1 dos indivíduos Pôr em jogo através dessa medida 4valorizante uma coação em direção a uma conformidade a ser realizada Traçar enfim o limite que definirá a diferença com relação a todas as diferenças a fronteira exterior do anormal A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das institui ções disciplinares compara diferencia hierarquiza homogeneíza exclui Numa só palavra normaliza4 Mas o ato de normalizar nào caracteriza somente a psico nietria de forma geral Ele está presente sempre que se fala em diagnosticar ou em tratar sempre que se está às voltas com alguma patologia desvio de conduta ou anormalidade1 Atravessa 3 Pelo menos é que relatam os alunos do programa de PósGraduação em Psicologia Clínica da PUCSP a maioria deles professores em diferentes cursos d graduação em Psicologia 4 Foucauft M Surveiller et Punir Naissance de fa Prison Paris ed Gallimard 1975 p 186 164 ALFREDO NAFF AH NETO desta forma os sentidos mais usuais que definem na prática a psicoterapia Sair desse campo implica abandonar o universo das normas dos desvios das tabelas dos diagnósticos implica consi derar que o sar humano enquanto singularidade é imensurável incomparável nãohierarquizável Implica desistir de fazer da Psicologia o velho modelo da ciência positivista E em abandonar o conceito de doençamental5 A psicanálise tentou sem dúvida alguma sair desse modelo disciplinar através do espírito refinado de Jaeques Lacan Criti cando o pragmatismo norteamericano e retomando o mestre Freud Lacan tentou fazer da psicanálise uma ciência do Inconsciente e do processo psicanalítico um desvelamento desse mesmo Inconsciente agora redefinido a partir de categorias linguísticas e concebido como a região da verdade a mais escondida e essencial do ser humano Não mais processo de adaptação reforço do ego ou normalização a psicanálise com Lacan buscase fundamentalmente como um percurso de revelação de acesso a um saber sobre o desejo singular de cada um Nada disso entretanto impediu que ela fosse criticada pelos próprios franceses entre eles Foucault 41A psicanálise pode ser decifrada historicamente como outra grande forma de despsi quiatrização provocada pelo traumatismoCharcot Uma retirada para fora do espaço do asilo a fim de apagar os efeitos paradoxais de sobrepoder psiquiátrico Mas também reconstituição do poder médico produtor da verdade num espaço preparado para que essa produção permaneça sempre adequada ao poder Á noção de transferência como processo essencial à cura é uma maneira de pensar conceitualmente esta adequação na forma do conhecimento O pagamento contrapartida monetária da transferência é uma fornia de garantila na realidade uma forma de impedir que a produção da verdade não se tome um contrapoder que dificulte anule e revire o poder do médico6 Afirmação que provoca um semnúmero de contraargumentos Mas não sabe Foucault que a psicanálise por princípio e segundo o próprio Freud não tem nada a ver com a medicina Como pois falar em poder médico E não sabe Foucault que não cabe ao psicanalista produzir qualquer verdade Que enquanto sustentáculo do discurso incons 45 Ver nesse sentido Foucault M Doença Menta e Psicologia Rio de Janeiro Ed Tampo Brasileiro 1968 6 Foucault Mt A casa dos loucos in Micro física do Poder Rio de Janeiro Ed GraalLtda 1979 pp 125126 A PRAXIS DO PSICÓLOGO lift ciente do paciente ele é apenas a região de um suposto saber saber que na verdade é inexistente E que psicanalisar consiste justa mente em refugiarse nesse nãosaber e calar qualquer possível resposta para que o discurso do Outro rodopiando sobre si próprio produza a verdade que contém sem saber que contém Ê evidente que Foucault conhece todos esses argumentos afinal o seu discurso é contemporâneo ao de Lacan No entanto a crítica persiste por quê Um episódio pode ilustrar uma possível resposta Em janeiro de 1982 estando em Paris num almoço na casa de Robert Castel outro importante crítico da psicanálise7 num certo momento começouse a discutir psicanálise e eu lhe perguntei se a sua critica atingia a essência da psicanálise ou simplesmente os desvios dela Ele simplesmente respondeu Eu não critico a psica nálise dos livros mas a que vejo acontecer na prática1 Com Foucault talvez se dê algo semelhante De qualquer forma não são somente as críticas de Foucault e Castel que a psicanálise enfrenta na França Há também as de Deleuse e Guatarri que vêem no imperialismo assumido pelo complexo de Êdipo na óptica psica nalítica um reducionismo que castra e domestica a produção inconsciente fazendoa exprimirse e reproduzirse num familia lismo normalizante de acordo com os interesses do capital e reproduzindo a sua própria aparição enquanto fetiche Édipo tem por fórmula J 1 o Um do fálus transcendente sem o qual os termos considerados não formariam um triângulo Tudo se passa como se a cadeia dita slgnificante feita de elementos em si mesmos não significantes de uma escrita polívoca e de fragmentos desta cáveis fosse objeto de um tratamento especial de um achatamento que extraísse um objeto destacado significante despótico em cuja lei toda a cadeia parece então pendurada cada elo triangulado Existe aí um curioso paralogismo que implica um uso transcendente das sínteses do inconsciente passase dos objetos parciais separáveis ao objeto completo separado de onde derivam as pessoas globais por intimação ã falta Por exemplo no código capitalista e sua forma trinitária o dinheiro como cadeia separável é convertido em capital 7 Que aliás me foi apresentado por uma amiga comum Suely Rolnik e que é autor entre outras coisas do livro 0 psicanalismo traduzido e editado pela Graal Ltda Rio de Janeiro 8 Deleuse G e Guatarri E O AntiÉdipo Rio de Janeiro Ed Imafio 1976 e Guatarri F Revolução Molecular pulsações políticas do desejo SSo Paulo Ed Brasiliense 1981 186 ALFREDO NAFFAH NETO como objeto separado que só existe sob o aspecto fetichista do estoque e da falta Acontece o mesmo com o código a libido como energia de extração e de separação é convertida em fálus como objeto separado este último só existindo sob a forma transcendente de estoque e falta algo comum e ausente que falta tanto aos homens quanto às mulheres9 Penso que estas considerações podem dar uma idéia ao leitor de quão complexa é essa questão políticoideológica que atravessa toda a psicologia e que não poupa sequer a psicanálise Nào é meu objetivo aqui entretanto alon garme nessa questão deixo aos psicanalistas a tarefa de debatêla e lançar mais luz sobre o presente tema Quanto a mim meu caminho foi outro Tendo assistido às primeiras aparições do psicodroma no Brasil através de Jaime RojasBermúdez e tendo grande curiosidade pelos métodos grupais sempre achei que se deveria aprender a lidar com grandes massas humanas e que o divã psicanalítico era pouco adequado à realidade brasileira resolvi tornarme psicodramatista No psicodrama encontrei de início um método interessante mas mal aproveitado e uma teoria sem qualquer consistência lógica articulável pelo menos de forma imediata Mas resolvi investir Comecei a utilizar o método na clínica e a descobrir seus meandros Resolvi também fazer o mestrado em Filosofia como forma de me fundamentar para rever criticamente a teoria moreniana Assim apoiado na prática pelas supervisões de Dalmiro Bustos e na teoria pela orientação critica de Marilena Chauí fui traçando meu trabalho de reestruturação fundamentação e crítica da teoria e do método psicodramáticos10 O primeiro resultado foi a tese de mestrado defendida em 1977 e publicada em 1979 Nela aparece entre outras coisas uma tentativa de fundamentar a socionomia que é a disciplina geral proposta por Moreno através do materialismo dialético Se a concepção de homem proposta por Moreno é a do seremrelação se o homem moreniàno mais do que uma subjetividade fechada é intersubjetividade se a sua existência concreta acontece na multi 9 Deleuse G Guatari F O AntiÈdipo op c r t pp 9899 00 Para quem nSo sabe Dalmiro Bustos ô um psicodramatista argentino credenciado pelo Instituto Moreno de Beacon Nova Iorque e a quem nós brasileiros devemos muito enquanto formação Marilena Chauf dispensa apresentações 01 Naffah Neto A Psicodrama Descolonizando o Imaginário São Paulo Ed Brasiliense 1979 plicidade e no entrecruzamento dos Mxei dt rttiflll envolvido se enfim seu ser é o pulsar conitaat tntfl 1 a p l estereotipada do papel social e um movimento espontlntChcrtadOTi tudo isso indica que o locus do homem moreniano é o mundo socíal ê político o mundo das lutas de classes da alienação e da práxis Por essas razões o materialismo dialético serviu na época para dar forma e fundamentar a microssociologia e a Psicologia desenvol vidas por Moreno formando até com elas um todo congruente em termos lógicos11 Essa óptica ainda me acompanhou no livro seguinte pelo menos em alguns dos ensaios que o compunham13 Com o passar do tempo entretanto fui percebendo o quanto o materialismo dialético era cego a certas questões humanas como a questão do desejo o homem marxista definese pela necessidade e a questão do inconsciente a teoria marxista está apoiada na consciência de ciasse A decepção com o materialismo dialético aumentou com a minha viagem a Cuba em julho de 1983 Viagem importante essa que quase me pôs esquizofrênico pois nada do que eu via correspondia ao que eu sentia Descobri um país que de fato conseguiu resolver o problema de sua população em termos das necessidades básicas essenciais alimentação moradia saúde edu cação e nesse sentido o trabalho da Revolução foi primoroso mas que para atingir esse estágio teve de se tornar um país de uma só cabeça uma única forma de pensar disseminada de cima para baixo e rigorosamente controlada pelo Estado Tudo pode desde que dentro das metas do socialismo o que quer dizer do pensamento marxistaleninista Um país onde o diálogo a demo cracia as singularidades tornamse nesse sentido variações dentro de um único tema e onde as subjetividades são produzidas pela máquina do Estado como em qualquer superpotência capitalista E onde o poder que governa é nesse sentido o poder disciplinar País maravilhoso do ponte de vista econômico e detestável do ponto de vista político e que nesse sentido fezme sentir cindido esquizado E a psiquiatria cubana que tanta curiosidade tem despertado nào realiza nada mais nada menos do que um trabalho de A PRAXII DO MKCObOQO 12 Isso inclusive na medida em que eu assumia o materialismo dialético através da óptica do existencialismo francês MerleauPonty Sartre e que a teoria moreniana tem muito d ver com o movimento existencialista 13 Ver Naffah Neto A 0 Drama na famftia pequeno burguesa e Psicodrama e Dialética em Psicodramatizar Ensaios SSo Paulo Ed Ágora 1980 m ALFREDO NAFFAH NETO reinserção do Louco ha sociedade produtiva através da laborterapia Nos textos que pude ler sobre tal trabalho não havia qualquer menção ao possível caráter revolucionário do discurso da loucura nem a qualquer concepção da loucura que nào a tomasse como doença mental Enfim em matéria de psiquiatria os cubanos estão muito longe de Laing Cooper e Foucault O que fazem é procurar abolir a loucura reinserindo o louco na sociedade produtiva desenvolvendolhe o papel de cidadão e de responsável E se a loucura for sintoma de algo se ela refletir algo das contra dições que envolvem a sociedade cubana esse saber é abolido como possibilidade ao se abolir a loucura pela reabsorção social O que significa em suma uma psiquiatria que por trás da fachada de revolucionária encobre um caráter conservador e reacionário14 Mas enfim eu dizia tudo isso para poder justificar o porquê da minha urgência em ultrapassar o materialismo dialético ou pelo menos em transformálo em aspectos essenciais Sem dúvida há coisas do marxismo que ainda valem e muito Não há de se desme recer a descrição da sociedade capitalista exposta em O Capital Mas há de se questionar o naturalismo e o primado da consciência na visão marxista de mundo e de homem Ê necessário se repensar as categorias políticas e sociais do materialismo dialético para talvez descobrir que por trás das relações contraditórias entre as classes sociais e de toda a descrição objetiva da economia burguesa pululam fantasmas e desejos perfilamse tradições autoritárias enfim estruturase um Inconsciente Social e Político que engendra a história nas suas malhas e que não se abole com a revolução do proletariado Após esse empreendimento repensar toda a questão da dialética Quem poderia ter realizado essa crítica de forma mais plena seria talvez a Escola de Frankfurt Entretanto não o fez na medida em que preferiu permanecer em certa medida fiel tanto ao marxismo quanto à psicanálise ficando prensada entre as duas escolas Por outro lado é essa mesma crítica que Deleuse e Guattari têm procurado realizar em livros como O AntiÊdipo por exemplo Entretanto a obra destes autores também apresenta poutos 14 E mesmo que se alegue que os Joucos em Cuba são todoe velhos e que a loucura foi originária do regime anterior ou do choque produzido pela Revolução há de se provar que o eeu desenvolvimento e permanência não reflete algo da atual sociedade cubana A PRÀXIS DO PSICÓLOGO questionáveis como o rechaço talvez prematuro da dialética isso na medida em que se apóiam no pensamento de Nietzsche e herdam nesse sentido a sua crítica a filosofias do negativo15 Não seria necessário levar a dialética às últimas conseqüências para poder de fato repensála com maior vigor ou até chegar à conclusão de que enquanto filosofia e visão de mundo ela está ultrapassada16 Mas voltemos ao psicodrama para tentar mostrar que na idéia moreniana de um CoInconsciente ou Inconsciente Comum talvez esteja um elo possível para a formulação desse Inconsciente Social e Político de que falávamos O que Moreno mostra é simples que o psicodrama com famílias e com outros grupos estreitamente vinculados têm revelado situações em que a produção inconsciente de um membro do grupo vinculase espontaneamente à produção inconsciente de outro membro do grupo formando um só elo de significação mais que isso ele observa que marido e mulher invertendo papéis numa dramatização conseguem muitas vezes trazer à tona conteúdos inconscientes que supostamente seriam do parceiro E conclui pela necessidade de se pensar em estados inconscientes comuns a vários sujeitos uma espécie de CoIncons cientet que desempenharia segundo elç papel importante na vida de pessoas intimamente associadas como pai e filho marido e mulher gêmeos etc e em grupos estreitamente vinculados tais como equipes de trabalho grupos de combate em guerras campos de concentração grupos religiosos carismáticos etc17 Também em meu trabalho como psicodramatista tenho observado fenômenos interessantes nesse sentido sessões psicodramáticas de grupos já relativamente antigos enquanto processo terapêutico mostram 15 Sobre as críticas de Nietzsche à dialética ver Deleuse G Nietzsche e a Filosofia Rio de Janeiro Ed Rio 1976 16 Levar a dialética às últimas conseqüências significa num certo sentido produzindo a si mesmo enquanto subjetividade Nessa perspectiva nâo hegelianomarxista Ou seja recuperar o seu sentido etimológico originário expresso no grego diaJégesthai que significa o processo pelo qual o eu recolhe o múftiplo para dentro de si perpassandoo na sua representabilidade e nesse sentido produzindo a sí mesmo enquanto subjetividade Nessa perpectiva não se poderia pensara dialética como um processo infinito nunca acabado onde cada síntese é sempre fragmentária parcial onde a totalidade designa o fantasma do impossível E onde a multiplicidade permanece sempre como irredutibilidadedú Ser à consciência 17 Ver Moreno J L La terapia interpersonal la psicoterapia de grupo y la funcíón dei inconsciente in Las bases de a psicoterapia Buenos Aires Ed Hormè S A E 1967 190 ALFREDO NAFF AH NETO muitas vezes o grupo como uni todo antecipando na fase de aquecimento da sessão trechos de cenas que seriam encenadas em seguida pelo protagonista ainda não detectado Ou seja o grupo funciona aí como uma espécie de coro de tragédia grega e através de lapsos atos falhos deslizes transferenciais consegue anunciar frag mentos do drama que ainda está por ser encenado como entender esse tipo de fenômeno senão supondo um CoInconsciente grupai Também já mostrei em trabalhos anteriores1 que muitas vezes vaise encontrar o elo de significação que estrutura certas crista lizações de papéis em personagens de duas gerações atrás como avós por exemploOu seja certos sintomas como alguns medos não compreensíveis só encontram seu sentido quando o protago nista consegue encarnar em cena esses fantasmas de antepassados que através da sua história de vida explicam a origem do medo que o paciente vive e cuja razão de ser permanecera até então incons ciente Como pois entender esse fenômeno senão supondo um CoInconsciente familiar estruturado através de gerações e ge rações1 Essas observações permitemnos generalizar e ampliar o conceito para aplicálo a todo o corpo social Ou seja propõem uma nova visão das relações sociais não mais como relações objetivas e imediatas essa é a óptica proposta por um certo tipo de Sociologia nem mesmo como relações mediadas unicamente pelo fetiche do capital óptica do marxismo mas como relações mediadas por um número incalculável de fantasmas inconscientes Ou seja o fan tasma inconsciente antes definido pela psicanálise como represen tação mental intrapsíquica deslocase dessa caixa preta chamada mente para ocupar o lugar que sempre lhe foi de direito as relações entre os homens a estrutura social nas suas produções e transformações Tomese por exemplo o caso de Hiroshima quantas gerações viveram e ainda vivem o seu cotidiano como permeado pelos fantasmas daqueles que morreram fantasmas das casas destruídas das doenças da morte do ogumelo avassalador 18 Ver Naffah Neto A O Drama na família pequeno burguesa op cit 19 Também os psicanalistas conhecem fenômenos desse tipo Maud Man no ni por exemplo cf Lenfant sa maladie et les autyes Paris Ed de Seuil 1967 nos mostra como certas produções inconscientes da criança nada mais fazem do que pôr às claras certos conflitos inconscientes que estruturam a relação dos pais e da famfl ia como um todo A PRAXIS DO PSICÓLOGO 191 da bomba atômica Representações mentais Essa é uma lorma um tanto idealista quando não equivocada de ver a coisa chamar de mentais esses espectros essas sombras que se entrelaçam nas relações que permeiam todo o corpo social nas suas ações mais corriqueiras do cotidiano constitui senão um abuso teórico pelo menos uma concepção ingênua a bomba atômica está de fato lá não só naqueles que ficaram marcados por ela não só na radio atividade que ainda ameaça a vida das pessoas não só no parque e nos monumentos que são o seu testemunho vivo ela está também nos recantos mais escondidos da vida de cada um na saudade daqueles que morreram nos sonhos daqueles que ainda estão por vir na inocência daqueles que sequer foram diretamente afetados por ela Não há dúvida as relações sociais em Hiroshiraa ainda continuam sendo mediadas pelo capital e nesse sentido a óptica marxista se mantém entretanto qualquer análise que ficasse unicamente presa a esse aspecto seria simplesmente simplória E não há dúvida esse trauma social que foi a bomba atômica estruturou e ainda está estruturando um Inconsciente Social e Político que atravessará as vidas de gerações e gerações da cidade marcada E quando um dia tudo passar e a bomba for esquecida se isso for possível as gerações posteriores ainda continuarão a sonhar com cogumelos estranhos parecendo feitos de nuvens ou de fumaça quem sabe lá sem consciência alguma do que se trata Entretanto essa idéia de um inconsciente Social e Político não é assim tão nova Os antigos gregos já a conheciam embora nunca a tenham nomeado desta forma Tomese por exemplo a noção de ananké destino tal qual aparece na tragédia grega e nos mitos ÉdipoRei pode ilustrar o que queremos dizer A idéia não sei se propriamente freudiana ou dos freudianos de que a tragédia é movida pelo desejo incestuoso e parricida de Êdipo é completamente falsa e Jean Píerre Vemant e Pierre VidalNaquet já o demons traram20 O que isso quer dizer Quer dizer simplesmente que entre um suposto desejo inconsciente de Édípo e os acontecimentos centrais da tragédia o assassinato do pai e o casamento com a mãe existe a mediálos um conjunto de oráculos que repetem maldições de antepassados que formam uma trama intrincada e nodosa onde o desejo de Êdipo é apenas uma pequena peça Não há dúvida 20 Vernant J P e VidalNaquet P Édipo sem complexo em Mito e Tragédia na Gréciê Antiga S3o Paulo Ed Duas Cidades 1977 192 ALFREDO NAFF AH NETO a tragédia não revçla todos esses aspectos ela apenas conta que Laio pai de Édipo recebera um oráculo profetizando que seria morto pelo próprio filho Entretanto basta pesquisar o mito para descobrir que todas as versões mais correntes referemse a esse oráculo como repetindo uma antiga maldição que Laio recebera em tempos passados de Pélope rei de Pisa quando raptara seu filho Crisipo para fazêlo seu amante Acontece que Laio se hospedara na casa de Pélope em tempos difíceis e esse rapto representava uma traição à hospitalidade do rei Por esta razão Pélope lançoulhe a maldição de que não teria filhos e se os tivesse morreria nas mãos do próprio filho pedindo a Zeus que a realizasse21 Feitas essas colocações fica bastante claro que se tivéssemos de colocar algum desejo na origem da tragédia de Êdipo esse desejo não seria o do herói não sendo portanto desejo incestuoso e parricida seria isto sim o desejo homossexual de seu pai Laio Entretanto o que caracteriza a mitologia grega é justamente a impossibilidade de se detectar a origem de qualquer fato tudo parece remeter a um desfiladeiro de acontecimentos lutas guerras disputas maldições num conjunto de histórias que se irradiam umas das outras outras como ramos de uma imensa árvore povoada de homens heróis e deuses Nesses entrecruzamentos de histórias as ações dos perso nagens freqüentemente produzem injustiças e infelicidades de outrem contraindo dívidas morais e recebendo maldições que encontram alianças entre os deuses22 Essas maldições intemie diadas pela vontade divina e anunciadas pelos oráculos vão constituir assim o ananké dos personagens Destino que enquanto tal será herdado pelos seus descendentes que estarão des forma sempre lutando com fantasmas fatalidades e injunções que escapam ao seu controle e transcendem a sua existência A tragédia grega é constituída desta forma por um script que é vivido pelo herói mas cujas razões via de regra lheapam Como uma trama inconsciente Como formações de um Inconsciente Social e Político Social porque se produz no entrecruzamento das relações humanas Político porque o que está em jogo são sempre relações de poder poder dos homens entre si poder entre os homens e os deuses 21 Cf Ruiz de Elvira A Mitologia Clássica cap IV item 4 Layo e Édipo Madrid Ed Gredos 1975 pp 190204 22 As ações humanas via de regra incorrem em falhae e erros de julgamento devido à presunção e ao orgulho humanos e sua insistência em desconhecer as leis que regem o mundo inomói e que são postas pelos deuses É esse orgulho justamente que receberá o castigo divino A PRÃXJS DO PSICÓLOGO 193 Retomando essa perspectiva o psicodrama aparece como uma práxis de desvelamento desse Inconsciente tal qual aparece e se faz presente no cotidiano dos homens Processo que é em si uma dialética e que se processa através da contradição entre a pretensa consciência de uma ação soberana livre e responsável e a factuali dade de uma ação predeterminada papel fantasma injunçào de um script inconsciente que insiste por se fazer verdade Contradição entre a ação do presente e as ações dos antepassados Entre o discurso egóico e o discurso anônimo Entre as gerações Entre o riovo e o velho Entre o arbítrio e o destino Entre si mesmo e o Outro Entre a vida e a morte Onde a espontaneidade designa justamente esse encontro entre a subjetividade alienada e a sua história momento em que o sujeito perpassa o objeto seu mundo as leis quç o regem os fantasmas que anunciam a sua verdade para tornálo saberemação fluxo de significações que atravessa o corpo para se fazer movimento de transformação da história Aconte cimento Que Deleuze define com primor O acontecimento não é aquilo que acontece acidente ele é naquilo que acontece o puro exprimido que nos íarsigno e nos aguarda Ele é o que deve ser compreendido o que deve ser desejado o que deve ser representado naquilo que acontece Bousquet nos diz Tornate o homem de tuas infelicidades aprende a encarnarlhes a perfeição e o brilho Não se pode dizer nada além disso nunca se disse nada além disso tornarmonos dignos daquilo que nos acontece por conseguinte desejar isso e resgatar daí o acontecimento tornarmo nos os filhos de nossos próprios acontecimentos e através disso refazer um nascimento romper com o nascimento carnal123 Ou nas palavras de Goethe O que herdaste de teus pais toma e torna teu24 Nesta perspectiva o psicodrama rompe com as antigas dico tomias mundo internomundo externo fantasiarealidade psyché sociusy que sempre alienaram a Psicologia do mundo tornandoa uma máquina de fazer cabeças uma prática de normalização e de disciplina Como práxis de desvelamento do cotidiano consegue assim abrir novos horizontes para a prática terapêutica Mas aspira a mais que isso a poder quem sabe um dia arrebentar o espaço 23 DeJeuse G Logique de sens Paris Les Editions de Minuit 1969 p 175 24 Citação de Rollo May O homem à procura de si mesmo Petrópolis Ed Vozes 1973 p 171 1M ALFREDO NAFFAH NETO privado da clínica e tomarse finalmente aquilo que sempre foi em essência desde a sua origem m teatro terapêutico aberto a todos um psicodrama público Mas poderseia perguntar isso ainda pode ser chamado de Psicologia clínica E como fica a velha definição da Psicologia como ciência do comportamento uma pergunta para a qual no momento não tenho resposta Talvez porque enquanto questão ela nunca tenha de fato me preocupado25 De uma coisa entretanto eu sei se a Psicologia nào puder ser isso então cia não me interessa Ela que fique com os seus velhos conceitos encar quilhados e reacionários fazendo as cabeças do mundo até que apareça a todos a sua virulência Ela que apodreça do seu próprio veneno E que morra Tenho dito 25 É possível que os outros autores deste livro possam lançar maior luz 9obre essa questão O papel do psicólogo na organização industrial notas sobre o lobo mau em psicologia Wander ley Codo O movimento social nos últimos tempos tem se mostrado com tendência inequívoca a uma concentração urbana industriai graças ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil cada vez mais e mais operários concentramse em grandes indústrias o que por si só é relevante para os psicólogos incumbidos por miSsão e profissão a compreender eou transformar o comportamento humano Mas além do argumento meramente estatístico há uma razâo ainda mais forte e igualmente evidente a indústria é o motor da sociedade o locus onde se geram as relaçòes entre as pessoas entre as classes A atuação do psicólogo dentro da indústria deveria ser a menina dos olhos deste profissional os postos mais cobiçados entre os estu dantes A realidade não é esta Ao contrário quanto mais cresce a importância da indústria na sociedade contemporânea mais crescem as criticas que a Psicologia principalmente no âmbito acadêmico faz à atuação do psicólogo na indústria Embora seja muito difícil operacionalizar estas formulações sentese claramente que os professores e alunos de Psicologia referemse a esta especialidade como uma espécie de irmà menor da Psicologia um misto de asco e comiseração comum à mãe prendada que se refere a uma filha que se prostituiu Os dados deste trabalho foram coletados do vol I da tese de Doutoramento de Wanderley Codo A Transformação do Comportamento em MdPcadoria PUC São Paulo 1981 196 WANDERLEYCODO O exame desta contradição nos obriga a recorrer à teoria e à prática do psicólogo industrial assim como as críticas que são feitas à sua atuação A começar pela funçào teórica do psicólogo industrial o departamento de seleção de pessoal se orienta pelo pressuposto fundamental de combinar os indivíduos com as ocupações com as quais se habilita1 O prérequisito básico para o cumprimento deste papel é que haja uma determinação explícita de funções um fluxograma da empresa tanto a nível de tarefa quanto a nível de produção A partir daí á seleção deve elaborar teses capazes de detectar habilidades eou características que possam prever o grau de adaptação do indivíduo à tarefa objetivando por um lado aumentar a satisfação no trabalho e por outro aumentar a produtividade reduzindo o tumover Paralelamente ao desenvolvimento dos métodos de seleção deve ocorrer como aconselham os manuais de Psicologia Industrial uma avaliação periódica de desempenho com a função de orientar as possíveis promoções e ao mesmo tempo funcionar como teste periódico avaliando os critérios da seleção e retroalimentando o sistema O resultado previsto é o aumento da eficiência partindo do pressuposto de que um indivíduo desempenha tanto melhor quanto melhor adaptado estiver à sua função No treinamento mantêmse os motivos e mudam os métodos Tratase de ensinar ao trabalhador as especificidades de um trabalho determinado aumentando seu rendimento na medida em que o capacita para o trabalho Quer na seleção quer no treinamento o princípio que vigora é o de manter o homem certo no lugar certo e também adequar o homem à máquina reduzindo ao mínimo a probabilidade de erro Sobre a crítica da função teórica do psicólogo industrial já se transformou em lugar comum as afirmações de que estas atividades descritas sucintamente acima são intrinsecamente reacionárias o psicólogo se coloca a serviço da indústria como instrumento adicional de exploração do trabalhador ao invés de transformar a estrutura produtiva para que venha a satisfazer as necessidades do ser humano transforma o ser humano à imagem e semelhança da indústria invertendo portanto sua missão de contribuir para a 1 Tiffin Joseph e McCormick Ernest J Psicologia Industrial SSo Paulo Ed Herder 1969 p 113 A PRÀXIS DO PSICOLOGO 19 felicidade do homem e corroborando na alienação do trabalhador transformandoo em dócil e pacato objeto de exploração do Capital Áiguns críticos mais afoitos chegam a responsabilizar toda Psicologia acusandoa de estar a serviço das classes dominantes servindo como instrumento destas contra o trabalhador De passagem é bom frisar que não é privilégio da Psicologia muito menos da Psicologia Industrial o seu compromisso com a classes dominantes É fato já sobejamente conhecido que domínio de uma classe sobre a outra traz como decorrência domínio das idéias da classe que está 110 poder e que a ciência nã escapa através de algum exercício mágico de neutralidade Pei contrário ao produzir conhecimento que necessariamente impltc poder a ciência é apropriada pelas classes dominantes e utilizada ern seu benefício No entanto ao constatarmos esta relação entre ciência poder não podemos correr 0 risco de jogar a criança fora com água do banho Vejamos se o psicólogo ao declarar que a Psico Jogia Industrial está a serviço da grande industria se recusa trabalhar na área está fazendo coro pelo avesso a velhas cantilena que proclamam a neutralidade da ciência isto sim produti ideológico típico das classes dominantes Em outras palavras a crítica que produz a não intervenção é uma crítica caolha covarde que lava as mãos e se recusa em inverter o papel da ciência que não se submete a correr os riscos do poder para tenta subvertêlo verdade que o psicólogo industrial é um empregado d patrão contratado para fazer frente ao operário Por isto mesmo psicólogo consciente deveria estar na indústria refletindo consciea temente para tentar subverter suas funções Franzindo o nariz e s recusando a cumprir tão vil papel os defensores deste tipo d crítica fazem coro exatamente ao sistema pois reivindicam pel avesso a neutralidade da ciência que denunciam como falsa poupam os industriais do incômodo de ter entre suas fileiras un profissional preocupado com a defesa dos direitos do trabalhador Imaginemos que um operário ao tomar consciência ds exploração a que é submetido se recusasse a trabalhar na fábrica ac invés de organizar sua classe dentro da fábrica Triste e irônicc conluio entre a consciência e a covardia em uma palavra falsí pseudoconsciência se traduz em omissão Mas não é apenas no plano genérico que estas criticas s mostram débeis Tivemos oportunidade de fazer um estudo do cas 198 WANDERLEY CODO de uma indústria relatado em um trabalho anterior que aponta para as funções que o psicólogo exerce de fato na indústria Possuímos razões para supor que os dados coletados sejam passíveis de generalização guardando precaução para as possíveis mudanças que ocorram de uma fábrica para outra mas que em nossa opinião nâo alteram o conteúdo básico das observações que realizamos Vejamos então quais são de fato as atribuições do psicólogo na indústria Em se tratando de seleção a industrial geralmente divide seus funcionários em duas categorias a dos horistas e a dos mensalistas Os primeiros são os encarregados diretamente da produção ope rários mais ou menos qualificados e os segundos são funcionários do que chamamos de tecnoburocracia diversos escritórios de controle engenheiros psicólogos etc Cabe ressaltar que os horistas apresentam a maioria esmagadora 7090 do total dos empre gados da fábrica Para os operários literalmente não há seleção não se aplicam testes psicológicos nem de personalidade nem de inteligência apenas uma entrevista que indaga coisas como o lugar onde o operário mora o número de filhos que tenha dependência do salário e experiência anterior entendida no sentido de já ter trabalhado em uma fábrica antes para não se desiludir nas palavras da psicóloga que entrevistamos Digase de passagem não poderia ser de outr forma porque d próprio pedido de mãodeobra não discrimina com detalhes a função que o operário deve realizar Na fábrica que estudamos havia vários trabalhos diferentes colocados sob o mesmo título mon tador quem define que tipo de trabalho o recémchegado fará é o chefe de seção e não a seleção de pessoal De montador o operário pode passar a várias outras funções até atingir a de encarregado de pessoal Todas estas promoções são feitas por critérios estabelecidos e determinados pelo chefe de produção não passando portanto pelo crivo da seleção de pessoal Para os mensalistas encarregados em última instância de controlar o comportamento do operário o departamento de seleção já segue à risca os manuais de Psicologia Industrial são aplicados os testes baseados em descrição de função etc O departamento de treinamento segue as mesmas diretrizes básicas grande parte da sua atenção é dedicada a cursos de relações humanas e de liderança avaliação de desempenho aplicado apenas aos mensalistas cursos de inglês para os gerentes A PRAXIS DO PSICÓLOGO IM Para os operários o departamento de treinamento se limita a algumas instruções de como funciona a fábrica chamada pompo samente de semana de integração e ao adestramento cuja instrução dura no caso de tarefas mais completas em média IS minutos e é feita por uma exoperária promovida a instrutora Depois disto basta que o operário reproduza sob supervisão a tarefa até que alcance o ritmo exigido pela produção A fábrica como se vê prescinde da intervenção do psicólogo na escolha de seus funcionários e na manutenção de um bom anda mento da produção Isto é possível devido a dois mecanismos básicos primeiro através da intervençào da Engenharia Industrial que se dedica ao estudo pormenorizado do trabalho visando a maximização dos lucros por meio da simplificação ad extremum da atividade do operário o que não só agiliza pela divisão do trabalho na linha de montagem a consecução do produto final como também e não menos importante torna o operário facilmente substituível eis aqui o verdadeiro agente de controle do compor tamento dentro da fábrica e segundo por um exército industrial de reserva farto e acotovelado às portas da fábrica à espera de demissões que possibilitem ao trabalhador o acesso cada vez mais raro ao emprego Vejamos agora o que estas providências descritas acima provocam no operário A sua admissão ao emprego lhe aparece como aleatória o exercício das tarefas diárias repetitivas insigni ficantes ou como quer Georges Friedmann o homem é maior do que o gesto sua demissão como arbitrária sua promoção depen dente em última instância dos caprichos do chefe da produção O operário resiste a esta alienação de várias maneiras mas algumas nos interessam aqui particularmente supervaloriza a sua própria seleção chegando a inventar testes que não foram reali zados e atribuindo à sua admissão a inteligência perspicácia etc e dentro da fábrica reivindica eou não perde a oportunidade de realizar qualquer curso técnico com que possa aperfeiçoarse Os mecanismos são evidentes tratase de contrapor à desvalorização a que a fábrica o submete uma revalorização de si mesmo ainda que seja através da fantasia Retornemos às qaestões iniciais toda a crítica que se tem feito à Psicologia do trabalho tem como alvo predileto a tentativa de escolher o homem certo para o lugar certo right man to the right place do ponto de vista da seleção ou melhor pressuposto de adaptar o homem à máquina objetivo que em última instância 200 WANDERLEY CODO reproduz no plano dò treinamento a mesma ideologia da seleção O que se vê na fábrica quando o objeto de estudo são os operários quantitativamente a esmagadora maioria dos trabalhadores e qualitativamente os responsáveis diretos pela produção não é nenhuma tentativa de adaptação do indivíduo à indústria pelo contrário tratase da eliminação do indivíduo que trabalha pelo menos do ponto de vista psicológico Em outras palavras tratase de transformar o trabalho do operário em força de trabalho e utilizála como qualquer outra força elétrica mecânica no processo produtivo Esbulhar o comportamento produtivo da sua dignidade expropriar o trabalha dor do controle do próprio processo de trabalho transformar o gesto produtivo humano por excelência em força de tração Ê que a filosofia do right man in the right place tem sentido em um capitalismo em expansão com taxas de crescimento supe riores ao crescimento vegetativo da oferta de mãodeobra má quinas funcionando a todo vapor novos ramos industriais em expansão Estamos vivendo em uma Outra fase do capitalismo recessão desemprego em larga escala crescimento dos setores financeiros da economia em detrimento das industriais aumento da capacidade ociosa das unidades produtivas em funcionamento falência de pequenas e médias empresas Em uma palavra vivemos numa estagflação nome teórico que os economistas encontraram para batizar uma situação onde combinamse altas taxas de inflação com a estagnação da economia O modo de operação de uma economia capitalista na medida em que repousa sobre a produção coletivizada e a posse individual dos meios de produção carrega em si a contradição de necessitar por um lado de mãodeobra especializada ao mesmo tempo que deve operar para retirar dos trabalhadores o poder que é inerente à especialização o que faz teoricamente da Psicologia organi zacional um instrumento importante na administração dos conflitos entre capital e trabalho Um quadro de recessão e desemprego aumenta em muito a oferta de mãodeobra e os investimentos em tecnologia que fazem o pêndulo oscilar em direção a uma mãodeobra cada vez mais descartável Se alguma frase puder substituir o right man in the right place sugiro em oposição qual quer coisa semelhante a nowhere man in anyplace Tal situação que em síntese promove a transformação do trabalho eliminando a dignidade do trabalhador coloca os críticos da ideologia da adaptação do homem ao trabalho na posição de A PRÁX1S DO PSICÓLOGO X Dom Quixote a lutar contra moinhos de vento ou como já Um poeta tentando matar amanhã o velhote inimigo que m om ontem Se durante o período de recessão houvesse um a poiitic industrial que efetivamente selecionasse e treinasse os operários ei suas funçòes o que ocorreria seria uma valorização do operáric através da valorização dos postos de trabalho dificultando sbustituição de um homem por outro ao mesmo tempo qu aumentaria a segurança psicológica do trabalhador na sua própri capacidade Em uma palavra contribuiria no sentido de fortalecer operário perante a indústria ao invés de enfraquecêlo Imaginemos que os psicólogos bem pensantes ao invés d franzir o nariz para a Psicologia Industrial procurassem ocupar o postos que lhes cabem na fábrica e cumprissem exatamente as sua funções 1 buscando selecionar e classificar de fato homens mai capacitados para exercício de suas funções estendendo a seleção cada operário da fábrica e como reza a nossa ética profissional informando ao candidato os resultados dos testes a que fo submetido assim como os critérios que subjazem sua aprovação o reprovação 2 conquistando a extensão da avaliação de desempenho par todas as funções na fábrica o que ato continuo implicaria t definição de critérios objetivos para a promoção rebaixamento ot demissão de cada operário 3 atuando efetivamente no sentido de treinar os operário não apenas na sua função específica mas também mostrando c funcionamento da estrutura toda de produção Sem dúvida o psicólogo que assim agisse estaria contribuindc para a conscientização do operário para o aumento do seu poder d barganha perante a fábrica e para a segurança e dignidade enquanto ser humano tão escassas nas condições atuais Tudo istc sem precisar brandir a teoria marxista de fora da fábrica e nem ac menos reinventara Psicologia neutra com as vantagens de trocai as velhas cantilenas murmuradas pelos cantos da Universidade poi uma atuação direta com o operariado classe revolucionária poi excelência que se não for favorecida com o auxílio técnico dos psicólogos pelo menos auxiliaos a compreender melhor a história Em outras palavras é hora de fazer a crítica da crítica da atuação do psicólogo industrial que para ser competente necessita 202 VÇANDERLEY CODO ser empreendida de dentro da própria fábriça locus sem dúvida menos confortável do que as escrivaninhas da Universidade mas por isto mesmo concreta É evidente que tal atuaçào está longe de ser possibilitada sem riscos os psicólogos dispostos a atuar dentro da indústria preci sariam ato continuo de uma organização enquanto categoria com força o suficiente para zelar pela manutenção do próprio emprego e pela observância dos princípios éticos em suas atuações Como sempre é possível que todas as nossas considerações estejam erradas Se for o caso a única forma de percebermos é na prática o que termina por revalidar pelo avesso as conclusões acima Temos certeza de que o debate que vier a aprofundar acatar ou recusar as reflexões que expomos pode nos clarear o caminho se for baseado no operário concreto na fábrica real e na atuação do psicólogo fidedigna Estaremos sem duvida melhor embasados na prática e menos suscetíveis às armadilhas próprias dos contos de fada Bibliografia Codo Wanderley A Transformação do Comportamento em Mercadoria São Paulo Tese de Doutoramento PUCSP 1981 mimeo Fríedmann Georges O Trabalho em Migalhasf São Paulo Ed Perspec tiva 1972 McCormick Tiffin Psicologia Industrialt São Paulo Ed da Universidade de São PauloHerder 1969 Psicologia na comunidade Alberto Abib Andery Psicologia na Comunidade é uma expressão relativamente nova em nosso meio Nela a palavra comunidade vem sendo usada para designar a instrumentalização de conhecimentos e técnicas psicológicas que possam contribuir para uma melhoria na qualidade de vida das pessoas e grupos distribuídos nas inúmeras aglome rações humanas que compõem a grande cidade Ê um nome que procura captar um movimento da Psicologia atual de paulatino distanciamento do seu locus tradicional a sala de experimentos ou de discussões puramente acadêmicas a antesala da gerência executiva das empresas industriais o consultório parti cular centrado em atendimento unicamente individual É um movimento de aproximação do cotidiano das pessoas principalmente nos bairros e instituições populares onde a grande parcela da população vive organizase e cria seus canais de expressão Essa busca de inserção da Psicologia na Comunidade parte da descoberta de que nessas situações e lugares a presença ativa dos conhecimentos psicológicos tem sido pouco freqüente privando indivíduos e grupos muito numerosos dos benefícios que a ciência Ao invés de concentrar neste texto a atenção no psicólogo preferiuse falar da Psicologia na Comunidade entendendo ser esta uma prâxis própria mas não exclusiva do psicólogo A interdisciplinaridade e a participação de pessoas da própria comuni dade são defendidas neste texto como integrantes dessa práxis 204 ALBERTO ABIB ANDERY deve proporcionar Persistem aí velhos tabus sobre Psicologia que podem assim ser denunciados Mas é desse contato também que a Psicologia enquanto ciência procura renovarse nos seus conteúdos metodologia e técnica tomandose mais próxima de uma verdadeira Psicologia Social Esse nome apareceu por primeiro na Inglaterra1 e nos Estados Unidos2 e após espalhouse por vários países inclusive o Brasil com aceitação bastante desigual A Psicologia na Comunidade não foi criada para designar uma nova Escola de Psicologia nem uma nova teoria ou um novo ismo de moda Representa uma guinada para uma nova forma de pensar e praticar a Psicologia distinta da tradição dominante até o final dos anos 50 deste século Na sociedade contemporânea perturbada pelas mudanças tecnológicas culturais e sociais é preciso tentar inserir a Psicologia como uma forma de explicação ajuda e mudança em prol da sobrevivência do próprio homem A Psicologia dos anos 50 isolavase demais dos problemas coletivos do homem contem porâneo encerrandose numa torre de cristal da discussão mera mente acadêmica e do atendimento a poucas pessoas da elite económica Pouco se preocupava por definir uma atuação verda deiramente social e constituirse assim numa das ciências sociais úteis para nossa época f Para esse isolamento contribuiu a própria identificação da área chamada Psicologia Social Essa área de pesquisa e conhe cimento surgiu desde o início doséculo XX mas sua maneira de considerar o que vem a ser o social em Psicologia perturbou durante meio século sua inserção na comunidade dos homens As correntes mais antigas definiram Psicologia Social como estudo de comportamentos instintivos gregários agressivos ou outras condutas e emoções ligadas a fatores genéticos e hereditários e isoladas do contexto social mutável em que sempre reaparecem Em contraposição a essa corrente instintivista surgiram os experimentalistas principalmente americanos atomizando o estudo dos comportamentos sociais através do esquema SR abstrato e 1 Ver Bender Mike P Psicologia da Comunidade Col Curso Básico de Psicologia Ed Zahar 1978 2 Ver Korchin Sheldon J Modem Clinica Psychology Principies of Intervention in the Clinic and Community Nova Iorque Basic Books Inc 1976 A PRÃXIS DO PSICÓLOGO 205 vazio de conteúdo social Os comportamentos sociais passam a ser descritos a nível apenas da aprendizagem de reações individuais a estímulos proximais abstraindo esses estímulos dos contextos mais gerais históricos econômicos e culturais em que de verdade estio inseridos e dos quais ganham significado e sentido Essas tendências mais antigas da Psicologia Social que hoje sào consideradas quase asociais duraram mais de meio século com exceção talvez de um ou outro autor como Kurt Lewin prema turamente falecido em 1947 Só nos anos 70 é que essa Psicologia se considera em crise como construção especifica de um saber próprio e busca numa reaproximação às ciências históricosociais sua nova maneira de trabalhar o social em Psicologia E nesse contexto de crise3 e redefinição4 que a Psicologia na Comunidade tem sua hora e vez e pode constituirse até numa porta aberta à reavaliação da Psicologia enquanto teoria e prática Numa recente resenha dos quinze anos de aparecimento da Psicologia na Comunidade o professor americano Sheldon J Korchin5 assim caracterizou os temas principais que marcam o pensamento atual dos que trabalham na área da Psicologia na Comunidade 1 Os fatores sòcioambientais são muito importantes na determinação e modificação de comportamentos 2 As intervenções sóciocomunitârias intervenções orien tadas para o sistema em contraste com Intervenções orientadas para as pessoas podem ser eficientes tanto para tornar as instituições sociais por exemplo a família a escola mais saudáveis quanto para reduzir o sofrimento individual 3 Essas intervenções deveriam visar mais a prevenção do que o tratamento ou a reabilitação de desordens emocionais Não só a pessoa necessitada mas também a populaçãoemrisco é a genuína preocupação da Psicologia da Comunidade 4 Essas intervenções deveriam ter como objetivo a melhoria da competência social mais do que a simples redução do sofrimento psicológico Programas orientados para o comunitário deveriam acentuar mais o que é adaptativo do que o patológico na vida social 3 Ver Rodrigues Aroldo e Schneider Eliezer in Arquivos Brasüeiros de Psicologia Aplicada vol 30 nf 41978 325 4 Ver Lane Silvia T M in Educação e Sociedade n 6 1980 5 Op d t pp 474475 206 ALBERTO ABIB ANDERY 5 A ajuda é mais eficaz quando obtida na proximidade dos ambientes em que os problemas aparecem Portanto os clínicos da comunidade deveriam trabalhar em ambientes familiares próximos das pessoas necessitadas antes que em locais social e geografi camente afastados delas 6 As clínicas da comunidade deveriam ir ao encontro dos clientes antes que ficar passivamente à espera de que eles o procurem profissionalmente Sua atuação profissional deveria ser flexível facilmente acessível no local e tempo onde a necessidade surge e oferecida numa atmosfera que reduza ao invés de aumentar a distância social entre o profissional e a pessoa ajudada A ajuda deveria ser acessível àqueles que dela necessitam e não só aos que a procuram 7 A fim de empregar recursos de fácil acesso e aumentar seu ímpeto potencial o profissional deveria colaborar com os recursos humanos da comunidade responsáveis locais e empregar traba lhadores associados nãoprofissionais O trabalho do profissional pode envolver mais consultoria do que atendimento direto 8 Exigências do papel tradicional e normas costumeiras profissionais devem ser abrandadas Ó exercício da profissão na comunidade exige uma programação imaginosa e novos modelos conceituais as inovações devem ser estimuladas 9 A comunidade deferia se não controlar ao menos parti cipar do desenvolvimento e execução dos programas formulados levando em conta as necessidades e preocupações dos membros da comunidade 10 Problemas de saúde mental deveriam ser encarados de maneira mais abrangente do que restrita desde que eles se entre laçam com muitas outras facetas do bemestar social tais como o emprego habitação e educação Para obter eficiência máxima os programas de saúde mental da comunidade deveriam ocuparse com uma faixa de problemas sociais a mais ampla possível 11 A educação do publico para compreender a natureza e as causas dos problemas psicossociais e os recursos disponíveis para se lidar com esses problemas é uma tarefa valiosa 12 Desde que muitos problemas de saúde mental relacio namse com uma ampla faixa de carências sociais tais como pobreza racismo densidade urbana e alienação carências essas que estão fora do alcance das intervenções dos profissionais o psicólogo da comunidade deveria ser orientado para a promoção e facilitação das reformas sociais A PRÄX1S DO PSICÓLOGO 13 Para desenvolver o conhecimento necessário para uma intervenção com o adequado conhecimento de causa a Psicologia da Comunidade requer a contribuição das abordagens e pesquisas ao natural e ecológicas1 Essas características da Psicologia na Comunidade mostram que essa práxis se afasta tias suas pesquisas e intervenções do assim dito neutralismo do cientista e profissional em Psicologia Esse postulado de neutralismo já tinha sido derrotado pela constatação de que a ciência enquanto construção histórica e social nào é neutra nas suas motivações nem na escolha de seu objeto de estudo Não é neutra nas suas alianças com as orças econômicas e políticas atuantes na Sociedade A Psicologia na Comunidade pretende aproximarse das classes populares ajudandoas na conscientização de sua identidade psicossocial de classes submissas e dominadas como primeiro passo para uma superação dessa degradante situação de submissão Surgindo numa época em que a interdisciplinaridade das ciências sociais e humanas é valorizada em que o labor educativo é tido como primordial na atuação social a Psicologia na Comu nidade procura difundirse através do trabalho do psicólogo e de outros profissionais envolvidos com trabalho educativo e social Valoriza o trabalho educativo conscientizador e reconhece pioneiros e mestres autores que não são profissionalmente Psicó logos Nesse rol incluise necessariamente Paulo Freire um dos brasileiros que destacou na Psicologia a metodologia da alfabeti za çã o das massas O método Paulo Freire6 não é só uma técnica pedagógica de alfabetização mas constituise num modelo de trabalho de aproximação às classes populares Mostra para o psicó logo o que se pode fazer em prol da conscientização e da redes coberta do valor dos indivíduos submetidos a processos seculares de dominação e alienados de sua própria cultura Articula as forças vivas de resistência de reação crescimento e libertação dos grupos sociais populares A Psicologia na Comunidade deverá assim colocar os recursos da Psicologia em prol do processo de libertação Cabe à Psicologia na Comunidade trabalhar nos indivíduos e grupos a visão de mundo a autopercepçâo enquanto pessoas e grupos reavaliar 61 Ver BrandSo Carlos R O que é Método Pauto Freire td Brasíliense 1981 208 ALBERTO AB1B ANDERY hábitos atitudes valores e práticas individuais e coletivas familia res e grupais no sentido de uma consciência mais plena de classes e de destino Para a Psicologia na Comunidade o impulso de sair dos consultórios e das gerências das empresas e ir para os bairros populares e sua opção maior por indivíduos e grupos das classes populares ao invés da clientela tradicional da classe média alta significam redirecionar as pesquisas descobrir novas técnicas de atuaço e até reescrever a partir do observado e vivido muitas das teorias psicológicas Nesse sentido a Psicologia na Comunidade pode vir a ser uma nova maneira de fazer Psicologia que dialeticamente nega seu passado para reconstruirse aproveitando elementos desse passado e do presente para constituirse numa pràxis e numa nova ciência psicológica verdadeiramente Psicologia Social Visões divergentes Essa visão social e dialética da Psicologia na Comunidade não é unanimemente partilhada por todos os que atualmente a ela se dedicam Há os que visualizam apenas uma atuação na comunidade benevolente e caritativa nas horas vagas em prol das classes desvalidas que são consideradas e chamadas de classes mais baixas A Psicologia seria aplicada nos bairros e instâncias popula res com maior intensidade e freqüência do que até hoje os psicólogos o fazem mas numa prática assumida explicitamente como remediativa e superficial Não há nessa visão de Psicologia na Comunidade nenhum questionamento da Psicologia em si mesma de suas alianças históricas de seus constructos e teorias já prontos Não se pensa em inovações técnicas nem se admitem novas visões teóricas Muito menos reavaliamse alianças já feitas com as classes dominantes O exemplo acabado dessa visão é a tentativa de reprodução das clínicas psicológicas nos bairros populares sem alterações dos procedimentos e rotinas consolidadas nas clinicas tradicionais de atendimento à burguesia Simplificamse os móveis elaboramse orçamentos de despesa e receita mais modestos mas nada se altera A PRÁXIS DO PSICÓLOGO 209 do que se entende ser a relação terapeutacliente técnicas de atendimento já prontas parâmetros de julgamento e de diagnóstico Essa visão de Psicologia na Comunidade mereceria mais o título de Psicologia Populista e assistenciaüsta e nada influirá nas mudanças sociais e na estrutura de relacionamento atual das classes sociais Pode até retardar mais um pouco qualquer mudança dessa natureza Outra visão de Psicologia na Comunidade perniciosa aos meios populares é aquela que pretenderia formar psicólogos inseridos nos bairros e instituições populares na qualidade de controladores morais dos hábitos e comportamentos desviantes Pensouse até em formar psicólogos na Comunidade para controle social dos toxicômanos criminosos e demais desvios estigmatizados pelos códigos morais vigentes incluindose aí homossexuais desem pregados e menores abandonados O psicólogo seria uma extensão no bairro do braço policial e sem armas usaria as armas das técnicas psicológicas de controle e repressão Nem todas as propostas nesse seutido obedecem rigidamente ao exposto acima e há matizes de proposição Parece que não há muito que discutir sobre uma proposta assim direcionada reduzindo a função social do psicólogo e de outros profissionais da área de humanas a meros guardiães da ordem instituída sem nenhum questionamento dos fatores sociais que levam aos assim chamados comportamentos desviantes Uma terceira visão apontaria para um ativismo político partidário nos bairros populares sob o nome de Psicologia na Comunidade Ao invés de profissionais preocupados com o crescimento das práticas educativas e de conscientização e libertação os ativistas partidários poderiam sob o manto da Psicologia impor seus partidos políticos e recrutar seus grupos ou tendências de apoio partidário Uma proposta assim pode ser catalogada sem mais de maquiavelismo da pior espécie não servindo nem aos ideais da Psicologia na Comunidade nem ao desenvolvimento de uma verda deira Política Popular de superação das raízes de dominação cultural social e econômica a que as classes populares estão submetidas Só como já foi dito um trabalho educativo e conscien tizador a longo prazo pode levar essa população por própria iniciativa a traçar para si os caminhos de libertação 210 ALBERTO ABIB ANDERY A importância da sinalização aqui dessa terceira visão de Psicologia na Comunidade reside no fato que infelizmente é assim que são vistos às vezes todos os profissionais indiscriminada mente que se empenham nessa práxis social que é a Psicologia na Comunidade Embora a maioria absoluta desses profissionais envolvidos seriamente com a implantação da Psicologia na Comunidade condenem essa visão maquiavélica muitas vezes acabam sendo acusados como agentes desas mesmas práticas oportunistas por aqueles que ainda se mostram incapazes de entender qual é verdadeiramente a proposta da Psicologia na Comunidade Experiências em psicologia na comunidade A Associação Brasileira de Psicologia Social ABRAPSO organizou em 1981 em São Paulo um Encontro Regional para debater as experiências em curso em nosso meio sobre Psicologia na Comunidade7 Diversos profissionais assistentes sociais educadores médicos sociólogos e principalmente psicólogos relataram nesse encontro experiências em andamento de pesquisa e atuação em bairros e em instituições populares Outras publicações brasileiras ressaltam a existência de expe riências de Psicologia na Comunidade em outros países da América Latina que por semelhança às nossas condições históricas políticas e sociais mais se aproximam das experiências brasileiras8 Este breve relato mostra as direções que tem tomado essas experiências que podem ser resumidas nas categorias gerais descritas a seguir 7 Ver Anais de Encontro Regional de Psicoíogia na Comunidade São Paulo 1981 ímimeoda ABRAPSOÍ Endereço para corresp Rua Ministro Godoy 10293 s 326 CEP06015 S3o Paulo SP 8 Cadernos PUC n 1T Pfóòiogia Rôtlexôos sobro a Prâlica da Psicologia Ed CortezEDUC 1981 Na Argentina nos anos 6070 vários autores destacaramse nessa prâxisf publicando vários livros como Bleger J Psicohigiene y Psicologia institucionalvw cap 3 El Psicólogo en la comunidad Buenos Aires Ed Paidos A PRÀXIS DO PSICÓLOGO 211 Experiências na área da saúde mental da população Alguns psicólogos e outros profissionais detiveramse na questão da saúde mental da população da periferia das grandes cidades É nesse segmento populacional que se constatam graves fatores de desgaste ou stress emocional ligados a péssimas condições de habitação alimentação emprego e salários Ê ai na periferia que procuram um teto as correntes migratórias que vêm do campo para a cidade perdendo suas raízes culturais próprias e impedidas de criar novas raízes devido ao fenômeno de turrjover ou pouca permanência de contrato de trabalho nas empresas comércio e serviços na cidade Mal se estabelecem num bairro são obrigadas por razões de desemprego a procurar outro local de residência na maioria das vezes em favelas quando a situação econômica fica quase insuportável Nos hospitais psiquiátricos dessas cidades os leitos são mais freqüentemente ocupados por pessoas que morando em bairros populares estão sujeitas ao desgaste emocional e não têm antes da crise acesso aos recursos do atendimento psicológico A Psicologia na Comunidade tem trabalho face a esse problema da saúde mental da poputaçãoemrisco em dois catnpos distintos de um lado há desde os anos 70 a tentativa de criação de Centros Comunitários de Saúde Mental nos bairros de periferia Nesses centros a questão de saúde mental é discutida e trabalhada junto a essa população As experiências em geral são feitas por equipes multidis ciplinares e têm oscilado entre um atendimento convencional a indivíduos com queixas de teor emocional e trabalhos educativos sobre saúde mental junto a país famílias escolas e associações locais de moradores ou associações religiosas presentes no bairro Outra atuação nessa área tem sido a luta pela presença de profissionais da área psicossocial em Centros ou Postos de Saúde geridos pelo Governo do Estado ou do Município fazendo equipe com os médicos e enfermeiras dessas unidades Esse atendimento psicossocial tem variado também conforme a mentalidade real dessas equipes multidisciplinares e os tipos de ordens que são emanadas das chefias superiores ainda hoje quase que exclusi vamente em mãos de psiquiatras Nem sempre essas chefias estão afinadas com os ventos novos que sopram na sua área e as 212 ALBERTO ABIB ANDERY propostas de psiquiatria na comunidade e alternativa em nosso meio são ainda mais literatura do que prática usual9 Uma das deficiências nessas experiências em curso nos Centros Públicos de Saúde é o pouco tempo de duração dessa nova prática e a contratação de profissionais não ainda familiarizados com as propostas de uma Psicologia e uma Psiquiatria na Comu nidade Sem um preparo acadêmico anterior adequado alguns desses profissionais acabam convertendose nesses Centros de Saúde voltados à Saúde Mental da População em repetidores de uma práxis psicológica inadequada e tradicional Esse fracasso só vem a reforçar a linha psiquiátrica tradicional que propõe para os assim chamados doentes mentais um tratamento apenas medica mentoso e de internação nos velhos hospitais psiquiátricos mais voltados para o lucro do que para uma política de saúde mental da população A contratação de um número grande de profissionais para atuarem nesses Centros de Saúde é uma das bandeiras de luta hoje dos psicólogos e de seus órgãos de representação de classe o sindi cato e o Conselho Regional de Psicologia como o é a exigência de um preparo acadêmico maií refinado para condução da práxis de Psicologia na Comunidade nesses Centros e Postos de Saúde Públicos Essa contratação não só responde aos interesses da população dos bairros como também é uma solução para o problema de sustentação econômica desses profissionais da área psicossocial dedicados à saúde mental das classes populares Fica portanto claro que essa linha de atuação só poderá desenvolverse em nosso meio se os conteúdos das disciplinas psicológicas e psiquiátricas em nossas faculdades universitárias prepararem os alunos através da discussão aprofundada dos fatores sociais que atuam efetivamente nos problemas de saúde e doença mental da população Ê preciso ainda nesses cursos a apresentação de um novo modelo de atuação profissional que se coadune com os princípios e objetivos da Psicologia na Comunidade Esse modelo deve substituir a mera medicalização a base de remédios quimio terápicos ou internação hospitalar Urge o desenvolvimento de atividades psicossociais e educativas que levem à modificação das 9 Ver Caplan Gerard B Princípios de Psiquiatria Preventiva Ed 2ahar 1980 Ver também Serrano Alan 1 Psiquiatria Alternativa Ed Brasiliense 1981 A PRÁXIS DO PSICOLOGO 213 situações ambientais e pessoais geradoras de desgaste e stress nervoso e emocional Experiências em grupos de mulheres e de Jovens nos bairros Os bairros das grandes cidades têm pouca vivência comu nitária Na maioria são bairros meramente residenciais bairros dormitório em que os trabalhadores apenas pernoitam passando a maior parte de seu tempo de vigília fora deles na condução e na empresa Às exceções e essa regra constituemse no grande contingente de mulheres que se obrigam a permanecer em suas casas entregues às tarefas de cuidado dos filhos menores e do lar enquanto o companheiro ou marido e filhos maiores entregamse ao trabalho assalariado nas empresas Mesmo as mulheres que devem suportar a dupla jornada de trabalho na empresa e no lar são mais facilmente contactáveis através do bairro em que residem do que os homens com queconvivem São algumas dessas mulheres que se organizam em pequenos grupos de convivência comunitária em forma de clubes de mães associações de pais e mestres e grupos de aprendizado de artes domésticas ou ainda nas reuniões religiosocomunitárias das igrejas dos bairros Igualmente os adolescentes e jovens do bairro permanecem mais freqüentemente durante o dia nele devido ao crescente desemprego e falta de oportunidade de estudo que afligem principalmente essa faixa da população Alguns desses adolescentes e jovens associamsç em pequenos grupos de quarteirão de rua de esportes ou de igreja São associações informais e de curta duração na maioria das vezes As experiências em Psicologia na Comunidade têm privi legiado também a aproximação a esses grupos de mulheres e de adolescentes e jovens para trocar conhecimentos sobre assuntos e problemas os mais variados como por exemplo educação dos filhos relações afetivas dos jovens e dos casais problemas ligados à prática sexual questões que envolvem o futuro profissional etc São temas que se demonstram extremamente úteis para fins de uma práxis da Psicologia na Comunidade Não há só discussões a nível verbal mas montagens coletivas de peças teatrais que expressam o cotidiano da vida e as propostas 214 ALBERTO ABIB ANDERY transformadoras desses grupos Técnicas de dinâmica de grupo psicodrama expressão corporal sensibilização desenvolvimento organizacional têm sido testados e transformados nas experiências analisadas até agora É também nesses grupos que se pode levar um trabalho de conscientização das condições adversas do bairro como falta de esgoto de água potável de luz de creches ou escolas de postos de saúde etc Também se analisam as péssimas condições de convivência e Fazer e são ensaiadas novas atividades lúdicas e educativas Como conseqüência dessas práticas de acompanhamento desses grupos houve um acréscimo na tomada de consciência dessas mulheres e jovens sobre os problemas sociais presentes no bairro e como afetam a saúde física e mental da população Essa conscientização levou a ações organizativas e reivindicatórias de iniciativa desses grupos obtendo resultados que marcam o início de superação desses problemas sociais A população quase que testa suas próprias forças e descobre surpresa que elas são mais poderosas do que imaginavam num primeiro tempo Um pequeno exemplo nesse sentido é a luta por creches que quando conseguidas no bairro a partir de uma tomada de cons ciência e uma conquista junto ao poder público podem beneficiar as mulheres e as crianças do bairro e acabam consolidando um local a mais de educação e aprendizagem de hábitos importantes para a saúde mental dessa população É aqui que se situa também um pólo de tensão entre a postura e visão política dos profissionais e a dos habitantes dos bairros O respeito aos interesses valores forças e opções dessa população é um imperativo de um trabalho em Psicologia na Comunidade Caminhar com a população e não se sobrepor impositivamente a ela ou dominála politicamente é uma das exigências para uma correta atuação Experiências em Instituições populares Numa comunidade popular há por vezes clubes culturais e recreativos centros de vivência de crianças e jovens associações jurídicas de moradores associações religiosas nas igrejas que podem beneficiarse da presença de profissionais interessados em A PRÀXIS DO PSICÓLOGO III ajudar essas instituições através de manuseio de conhedmentoi t técnicas psicológicas que visam o desenvolvimento das pessoas e grupos atingidos por essas entidades populares Os aspectos institucionais organizacionais e de relações humanas dessas instituições podem ser objeto de diagnóstico e intervenção de pessoas competentes Essas pessoas podem ser os próprios moradores e freqüentadores dessas instituições unia vçz que tenham sido treinados e preparados para uma intervenção eficaz Há ainda nessas organizações populares a necessidade de ampliar seus horizontes para outros problemas sociais culturais ou políticos que via de regra escapam à sua percepção Atividades culturais filmes debates visitas podem integrar nesse caso o rol de atividades ligadas à prática da Psicologia na Comunidade A finalidade dessa atuação é abrir as perspectivas a compreensão e a capacidade da própria população de lidar satisfa toriamente com os problemas de qualidade de vida do bairro A importância das experiências em instituições populares reside ainda na possibilidade de se configurar outra instância jurídica as instituições populares que poderão contratar do mesmo modo que o Poder público nos centros de saúde e escolas do Estado os serviços dos profissionais voltados à Psicologia na Comunidade respondendo assim à questão angustiante que se fazem esses profissionais quem pode remunerar tais trabalhos comunitários Ê verdade que no Brasil ainda não se criou uma consciência comum nessas instituições da oportunidade e da importância desses serviços ligados à Psicologia na Comunidade Só a intensificação dessa atuação junto âs instituições popu lares pode criar essa consciência comum e criar padrões de contrato e remuneração satisfatórios para ambas as partes exi mindo os indivíduos pobres do bairro de arcar com essa obrigação de sustentação condigna desses trabalhadores sociais Aqui se situam os sindicatos dos trabalhadores Alguns deles têm vigorosa expressão econômica graças às contribuições obri gatórias que arrecadam da categoria A verba amealhada é gasta muitas vezes em serviços meramente assistenciais e recreativos sem uma programação simultânea que leve à educação e à conscien tização dos trabalhadores sócios e suas famílias residentes nos bairros da periferia 216 ALBERTO AB1B ANDERY A luta pela criação de uma Psicologia na Comunidade passa então por uma luta paralela de reconstrução continua do movimento sindical No Brasil as distorções desse movimento são antigas e estruturais e cabe apoiar os movimentos operários e dos demais trabalhadores que procuram dar aos seus sindicatos reconquis tados através das afeições uma nova legislação e uma nova prática que alterem os vícios herdados dos regimes autoritários do passado Há experiências em outros países sobre programas formativos patrocinados por sindicatos de trabalhadores que se coadunam perfeitamente com os propósitos da Psicologia na Comunidade10 Experiências nas escola de 1 grau da rede pública Nos bairros populares a escola de 1 grau é quase sempre uma das poucas instituições públicas aí presentes no cotidiano da vida das pessoas A população que freqüenta essas escolas são crianças e adolescentes vivendo em famílias com enormes problemas de sobrevivência onde a cultura familiar tradicional entrou em crise e não pôde mais reconstruirse Pai e mãe muitas vezes vivem quase ausentes do lar pelo dever de ganhar o salário sem o qual as crianças não podem sequer alimentarse Essas crianças são submetidas pelos meios de comunicação social e de propaganda a um bombardeio de anúncios que nelas despertam sonhos inalcançãveis e também comportamentos reativos de revolta e destruição São ameaçadas pelo desejo de lucros do comércio de tóxicos e das revistas de baixo nível cultural e porno gráficas A essas crianças e adolescentes a educação familiar e escolar propõe muitas vezes um futuro de aspirações profissionais ambíguas e inatingíveis sonhase com as melhores carreiras da sociedade quando a dura realidade reserva de fato a elas os últimos ofícios da cidade Nessas escolas os diretores e professores são via de regra recrutados de maneira a mais burocrática e impessoal possível 00 Ver Freire Peulo et afíi Vivendo e Aprendendo cap 2 especialmente Ed Brasiliense 1980 A PRÂXIS DO PSICÓLOGO 217 através de complicados concursos de promoção e remoção que criam freqüentemente nas escolas uma mobilidade permanente de pessoal Os mestres nem sempre captam as condições reais de existência dessas crianças e de suas famílias por provirem de outros estratos da população urbana melhor aquinhoados do que a população da periferia À rede oficial de ensino com suas exigências de uniformidade de procedimentos didáticos desestimula os profes sores de planejar conteúdos e práticas realmente educativas para essa população infantil e adolescente Criase assim um impasse entre os objetivos ideais da escola e a prática de ensino A presença da Psicologia na Comunidade nessas circuns tâncias é de extrema necessidade não para se ocupar com uma função burocrática de distribuição de tarefas didáticas já prontas mas para captar e explicitar o descompasso de ambas as partes que compem o cenário escolar necessidades reais dos alunos e prática real do processo instrucional e educativo Algumas experiências em nosso meio estão sendo feitas para evar a instituição escolar a um trabalho educativo eficaz face às necessidades e carências constatadas dos educandos desses bairros Algumas das atividades que atualmente os profissionais ligados à Psicologia na Comunidade estão tentando desenvolver nas escolas da periferia podem ser assim resumidas presença ativa nas reuniões de pais e mestres visitas domiciliares e reuniões específicas com mães de alunos para compreender melhor a cultura familiar e problemas sociais que interferem na aprendizagem das crianças diagnóstico do bairro e das características psicossociais da popu lação a fim de que diretores e professores da escola possam adaptar os conteúdos e procedimentos pedagógicos às necessidades da população escolar trabalhos nos horários extraescolares com grupos de adolescentes utilizando o espaço da própria escola de bairro para a organização cooperatívística de estudo leitura e lazer exercícios de expressão corporal e psicomotricidade com as crianças e treinamento de professores e agentes da comunidade para lidar com problemas de aprendizagem e saúde das crianças e jovens do bairro A dificuldade para o avanço desses trabalhos profissionais está na rigidez das direções locais e regionais da Educação Pública que via de regra são ainda muito reticentes quanto a propostas de trabalho como essas 218 ALBERTO ABIB ANDERY Não é por acaso que o número de psicólogos na rede escolar de ensino é muito pequeno e infelizmente a maioria dos psicólogos e demais profissionais da área psicossocial não está preparada para os desafios dessa linha de trabalho Mas experiências de Psicologia na Comunidade em Escolas Públicas parecem ser das mais importantes a serem desenvolvidas no Brasil hojet para formar novas gerações menos doentias social e psicologicamente preciso portanto que esses profissionais sejam preparados nas suas faculdades para o exercício dessa nova práxis da Psicologia comprometida com os destinos das crianças e adolescentes dos bairros de periferia Publicações de pesquisas participantes A última área de experiências a ser referida neste texto são as publicações científicas resultantes de uma práxis e uma sistema tização teórica dessas experiências em Psicologia na Comunidade Parece que não há no momento uma resenha mais acurada sobre o que já se publicou sobre o assunto O objetivo destes últimos parágrafos do texto é mais o de enfatizar a importância dessas atividades científicas para o futuro da Psicologia no nosso meio11 O aprendizado da Psicologia na Universidade regese em demasia por textos didáticos de origem ou de inspiração estrangeira Aquilo que é observado pesquisado ou postulado sobre o homem ou a mulher europeus ou norteamericanos de classe média tomase conclusão sem contestação sobre a Psicologia e serve de parâmetro de comparação para se avaliar psicologicamente os indivíduos e grupos sociais do nosso país sem maiores reflexões ou pesquisas Nas faculdades de Psicologia é comum desconheceremse os aspectos culturais e históricos que moldam a Psicologia do nosso povo e omitemse na formação do estudante de Psicologia os contextos sócioeconômicos e culturais que condicionam os compor 11J 0 texto que segue é parte de uma comunicação minha prof originalmente apresentada na 34f Reunião Anual da SBPC em Campinas julho de 1962 dentro de tema mais geral trabalhos em Comunidade Seu Significado para a Produção de Novos Conhecimentos Científicos mimeo A PRAXIS DO PSICÓLOGO 219 lamentos comuns e influem nas características psicológicas das pessoas e dos grupos sociais populares Aplicar na área profissional esses padrões importados sem maior aprofundamento crítico pode resultar num reforço à visão de marginalidade que a maioria do povo trabalhador oferece aos olhos desavisados do profissional psicológico e demais profissionais de nível universitário que estudam esse tipo de Psicologia Daí para a rotulação de excepcionalidade mental e de doença mental é um passo Parece lógico não se aceitar como evidentes as conclusões da ciência importada ciência porque importada e procurar observar mais de perto e com um mínimo de empatia a parti cipação o cotidiano da vida da população trabalhadora no seu bairro na sua família nas suas organizações mais espontâneas e representativas para ampliar confirmar ou modificar o que já se sabe sobre a Psicologia Nâo se pode aceitar como prontas e definitivas as teorias de personalidade e de desenvolvimento e as medidas e testes psico lógicos delas resultantes comumente ensinados em nossas facul dades Há muito a pesquisar ainda nesta área a partir das peculiari dades da cultura popular e dos seus valores que passam desper cebidos pela elite pensante que ocupa os espaços universitários do país Para avançar um pouco nesse conhecimento da Psicologia do trabalhador brasileiro é preciso primeiro explicitar o viés de classe média que institui o modelo burguês como padrão de normalidade e julga dcsviante e marginal a classe trabalhadora como um todo reservandolhe o dilema de escolher o padrão de desenvolvimento psicossocial burguês inacessível de fato para a classe trabalhadora ou então resignarse ao estigma de classe inferior não só socialmente como também psicologicamente Cabe às pesquisas em Psicologia na Comunidade uma apro ximação ao cotidiano do trabalhador sem preconceito convivendo um pouco com ele no seu bairro operário nas suas organizações popularest para apreender sua cultura e forma de vida suas expectativas lutas e fracassos e deles partilhar um pouco também não como quem já sabe mas como quem quer primeiro aprender Há esperanças assim de entender de forma mais justa a verdadeira Psicologia do trabalhador urbano de nossas periferias sabendose que tal conhecimento modificará práticas profissionais vigentes na 220 ALBERTO ABIB ANDERY área da seleção de trabalho de diagnóstico e tratamento clínico e na programação escolar dos estabelecimentos públicos de ensino de le2graus Nestes poucos anos de duração da Psicologia na Comunidade as observações ainda não estão de forma alguma nem acabadas nem muito menos sistematizadas Mas a percepção preconceituosa anterior já se modificou e já se reconhece que há potencialidades e valores que não constam nas padronizações de testes e nas teorias vigentes mas que dignificam esse lutador inteligente e criativo que é o trabalhador brasileiro envolvido numa trama de sobrevivenríd extremamente adversa Partilhar esse esforço de compreensão psicossocial sobre o trabalhador brasileiro com os estudantes da Universidade e futuros profissionais na área de humanas parece ser uma das contribuições das pesquisas e publicações ligadas à Psicologia na Comunidade para modificações na sociedade brasileira no sentido de sua real democratização e respeito à cidadania do brasileiro comum DK FIV IO TÊCA L Sobre os Autores Alberto Abib Andery Professor do Departamento de Psicologia Social da PUCSP psicólogo exdiretor do Sindicato dos Psicólogos do Estado de Sao Paulo Alfredo Naffah Neto Psicólogo psicodramatista mestre em Filo sofia pela USP doutor em Psicologia pela PUCSP profes sor do curso de pósgraduação em Psicologia Clinica Antonio da Costa Ciampa Mestre e doutorando em Psicologia Social pela PUCSP professor no setor de pós graduação em Psicologia Social da PUCSP Iray Carone Professora do Departamento de Filosofia da PUCSP Leciona atualmente Lógica do Conhecimento Científico no Programa de Estudos Pósgraduados em Psicologia Social da PUCSP José Carlos Lihâneo Professor da Universidade Federal de Goiás e da Universidade Católica de Goiás mestrando em Edu cação da PUCSP José Roberto Tozoni Reis Professor de Teorias e Técnicas Psico terápicas do Instituto de Letras História e Psicologia de Assis mestre em Psicologia Clinica pela PUCSP Marília Gouvea de Miranda Professora da Universidade Estadual de Goiás mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos Silvia Tatiana Maurer Lane Coordenadora do Centro de Ciências Hutnanas da PUCSP autora do livro 0 Que é Psicologia Social doutora em Psicologia Social Wanderley Codo Professor de Psicologia na UNESP7 dôutor em Psicologia Social pela PUCSP membro fundador da ABRAPSO Associação Brasileira de Psicologia SociaL Um livro introdutório à Psicologia Social que não exercite ne nhum tipo de traição à realidade Polêm ico com o o m undo de ho je Prenhe de controvérsias com o o nosso cam inho é prenhe de ciladas Inacabado eternamente com o a vida U m livro que busca compreender a vida dos H om ens com muito respeito m as sem conform ism o porque a objetividade científica não significa descom prom isso político Parte 1 A Psicologia Social e um a nova concepção do hom em Parte 2 A s Categorias Fundam entais da Psicologia Social Parte 3 O Indivíduo e as Instituições Parte 4 A Práxis do Psicólogo IS B N 8 5 11 150234
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Alberto A Andery Alfredo Naffah Neto Antonio da C Ciampa Iray Carone José C Libâneo José R T Reis Marília G de Miranda Silvia T M Lane org Wanderley Codoorg PSICOLOGIA SOCIAL o homem em movimento 8 edição editora brasiliense Coleçào Primeiros Passos O Discurso da Homossexualidade Feminina Dcnise Portinari Evas Marias Liliths As voltes do feminino Vera Paiva Filosofia e Comportamento Bento Prado Jr Freud Pensador daCultura Renato Mczan O Mínimo Eu Christopher Lasch Sigmund Freud e o Gabinete do Dr Lacan Peter Gay e outros Tempo do Desejo Sociologia epsicanálise Heloísa Fernandes org O que é Loucura Joio Frayzt Pereira O que é Psicanálise Fabio Herrmann O que é Psicanálise 2 visão Oscar Cesarotto Márcio PS Leite O que é Psicologia Maria Luiza S Teles O que é Psicologia Comunitária Eduardo M Vasconcelos O que é Psicologia Social Silvia T Maurer Lane O que é Psicodrama Wilsçn Csutcljadc Almeida O que é Psico terapia leda Porchac O que é Psiquiatria Alternativa Alan índio Serrano SILVIA T M LANE WANDERLEY CODO ORGS PSICOLOGIA SOCIAL O HOMEM EM MOVIMENTO edição editora brasiliense Copyright Dos Autores 1984 Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada armazenada em sistemas eletrônicos fotocopiada reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor ISBN 8511150234 Primeira edição 1984 S edição 1989 Revisão José W S Moraes e Mansueto Bemardi Capa Ettore Bottini P Rua da Consolação 2697 01416 São Paulo SP Fone OU 2801222 Telex 1133271 DBLM BR IMPRESSO NO BRASIL Indice Apresentação Silvia T M Lane 7 PARTE 1 INTRODUÇÃO A Psicologia Social e uma nova concepção do homem para a Psicologia Silvia T M Lane 10 A dialética marxista uma leitura epistemológica Iray Carone 20 PARTE 2 AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL linguagem pensamento e representações sociais Silvia T M Lane 32 Consciênciaalienação a ideologia no nível individual Silvia T M Lane 40 O fazer e a consciência Wanderley Codo 46 Identidade Antonio da Costa Ciampa 58 6 INDICE PARTE 3 O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES O processo grupai Silvia T M Lane 78 Família emoção e ideologia José Roberto Tozoni Reis 99 O processo de socialização na escola a evolução da condição social da criança Marília Gouvea de Miranda 125 Relações de trabalho e transformação social Wanderley Codo 136 PARTE 4 A PRÂXIS DO PSICÓLOGO Psicologia educacional uma avaliação crítica José Carlos Libâneo 154 O psicólogo clinico Alfredo Naffah Neto 181 O papel do psicólogo na organização industrial notas sobre o lobo mau em psicologia Wanderley C o d o 195 Psicologia na comunidade Alberto Abib Andery 203 Apresentação Quando publicamos O que é Psicologia Social o fizemos dentro das propostas da Coleção Primeiros Passos procurando sintetizar a produção e discussão de temas que o programa de pósGraduação em Psicologia Social da PUCSP vinha desen volvendo Para nossa surpresa o livro passou a ser leitura constante de alunos de cursos universitários em todo o país indicando a necessidade de um conhecimento alternativo em Psicologia Social Este livro se propõe a atender a essa necessidade com artigos de vários autores abonando os tópicos que julgamos fundamental serem discutidos em disciplinas de Psicologia Social que compõem o currículo de Formação Geral do Psicólogo assim como de outros cursos que necessitem de conhecimentos nessa área A Introdução propõe uma outra concepção de homem e suas implicações epistemológicas a Parte 2 analisa as categorias fun damentais para a Psicologia Social enquanto a Parte 3 aprofunda a análise da relação indivíduosociedade pela mediação grupai e institucional Na Parte 4 os artigos analisam como a partir desta concepção de homem é possível rever a prática do psicólogo nas suas diversas especialidades Esperamos assim contribuir para uma psicologia voltada para os problemas concretos de nossa realidade tornando o profissional um agente de transformação na sociedade brasileira Silvia T M Lane Parte 1 Introdução A Psicologia Social e uma nova concepção do homem para a Psicologia Silvia Tatiana Maurer Lane Quase nenhuma ação humana tem por sujeito um indi víduo isolado 0 sujeito da ação é um grupo um Nós mesmo se a estrutura atuai da sociedade pelo fenômeno da reifiçaçao tende a encobrir esse N ós e a transformálo numa soma de vãrias individualidades distintas e fechadas umas às outras Lucien Goldman 1947 À relação entre Psicologia e Psicologia Social deve ser enten dida em sua perspectiva histórica quando na década de 50 se iniciam sistematizações em termos de Psicologia Social dentro de duas tendências predominantes uma na tradição pragmática dos Estados Unidos visando alterar eou criar atitudes interferir nas relações grupais para harmonizálas e assim garantir a produti vidade do grupo é uma atuação que se caracteriza pela euforia de uma intervenção que minimizaria conflitos tornando os homens felizes recorstrutores da humanidade que acabava de sair da destruição de uma II Guerra Mundial A outra tendência que também procura conhecimentos que evitem novas catástrofes mundiais segue a tradição filosófica européia com raízes na fenomenologia buscando modelos científicos totalizantes como Lewin e sua teoria de Campo A euforia deste ramo científico denominado Psicologia Social dura relativamente pouco pois sua eficácia começa a ser questio nada em meados da década de 60 quando as análises criticas apontavam para uma crise do conhecimento psicossocial que não INTRODUÇÃO 11 conseguia intervir nem explicar muito menos prever comporta mentos sociais As réplicas de pesquisas e experimentos não permi tiam formular leis os estudos interculturais apontavam para uma complexidade de variáveis que desafiavam os pesquisadores e estatísticos é o retorno às análises fatoriais e novas técnicas de análise de multivariância que afirmam sobre relações existentes mas nada em termos de como e por quê Na França a tradição psicanalltica é retomada com toda a veemência após o movimento de 68 e sob sua ótica é feita uma crítica à psicologia social norteamericana como uma ciência ideo lógica reprodutora dos interesses da classe dominante e produto de condições históricas específicas o que invalida a transposição tal e qual deste conhecimento para outros países em outras condições históricosociais Esse movimento também tem suas repercussões na Inglaterra onde Israel e Tàjfell analisam a crise1 sob o ponto de vista epistemológico com os diferentes pressupostos que embasam o conhecimento científico é a crítica ao positivismo que em nome da objetividade perde o ser humano Na América Latina Terceiro Mundo dependente econômica e culturalmente a Psicologia Social oscila entre o pragmatismo norteamericano e a visão abrangente de um homem que só era compreendido filosófica ou sociologicamente ou seja um homem abstrato Os congressos interamericanos de Psicologia são exce lentes termômetros dessa oscilação e que culminam em 1976 Miami com críticas mais sistematizadas e novas propostas principalmente pelo grupo da Venezuela que se organiza numa Associação Venezuelana de Psicologia Sovial AVEPSO coexistindo com a Associação LatinoAmericana de Psicologia Social ALAP SO Nessa ocasião psicólogos brasileiros também faziam suas críticas procurando novos rumos para uma Psicologia Social que atendesse à nossa realidade Esses movimentos culminam em 1979 SIP Lima Peru com propostas concretas de uma Psicologia Social em bases materialistahistóricas e voltadas para trabalhos comunitários agora com a participação de psicólogos peruanos mexicanos e outros O primeiro passo para a superação da crise foi constatar a tradição biológica da Psicologia em que o indivíduo era considerado um organismo que interage no meio físico sendo que os processos psicológicos o que ocorre dentro dele são assumidos como causa ou uma das causas que explicam o seu comportamento Ou seja para compreender o indivíduo bastaria conhecer o que 12 SILVIA T M LANE ocorre dentro dele quando ele se defronta com estímulos do meio Porém o homem fala pensa aprende e ensina transforma a natureza o homem é cultura é história Este homem biológico não sobrevive por si e nem é uma espécie que se reproduz tal e qual com variações decorrentes de clima alimentação etc O seu organismo é uma infraestrutura que permite o desenvolvimento de uma superes trutura que é social e portanto histórica Esta desconsideração da Psicologia em geral do ser humano como produto histórico social é que a torna se não inócua uma ciência que reproduziu a ideologia dominante de uma sociedade quando descreve compor tamento e baseada em freqüências tira conclusões sobre relações causais pela descrição pura e simples de comportamentos ocorrendo em situações dadas Não discutimos a validade das leis de aprendi zagem é indiscutível que o reforço aumenta a probabilidade da ocorrência do comportamento assim como a punição extingue comportamentos porém a questão que se coloca é por que se apreende certas coisas e outras são extintas por que objetos são considerados reforçadores e outros punidores Em outras palavras em que condições sociais ocorre a aprendizagem e o que ela significa no conjunto das relações sociais que definem concretamente o indivíduo na sociedade em que ele vive O ser humano traz consigo uma dimensão que não pode ser descartada que é a sua condição social e histórica sob o risco de termos uma visão distorcida ideológica de seu comportamento Um outro ponto de desafio para a Psicologia Social se colocava diante dos conhecimentos desenvolvidos sabíamos das deter minações sociais e culturais de seu comportamento porém onde a criatividade o poder de transformação da sociedade por ele construída Os determinantes só nos ensinavam a reproduzir com pequenas variações as condições sociais nas quais o indivíduo vive A ideologia nas ciências humanas A afirmativa de que o positivismo na procura da objetividade dos fatos perdera o ser humano decorreu de uma análise crítica de um conhecimento minucioso enquanto descrição de comporta mentos que no entanto não dava conta do ser humano agente de mudança sujeito da história O homem ou era socialmente deter minado ou era causa de si mesmo sociologismo vs biologismo Se INTRODUÇÃO m por um lado a psicanálise enfatizava a história do individiM a sociologia recuperava através do materialismo histórico a espe cificidade de uma totalidade histórica concreta na análise de cadà sociedade Portanto caberia à Psicologia Social recuperar o indi víduo na intersecção de sua história com a história de sua sociedade apenas este conhecimento nos permitiria compreender o homem enquanto produtor da história Na medida em que o conhecimento positivista descrevia comportamentos restritos no espaço e no tempo sem considerar a interrelaçào infra e superestrutural estes comportamentos me diados pelas instituições sociais reproduziam a ideologia domi nante em termos de freqüência observada levando a considerálos como naturais e muitas rezes universais A ideologia como produto histórico que se cristaliza nas instituições traz consigo uma concepção de homem necessária para reproduzir relações sociais que por sua vez são fundamentais para a manutenção das relações de produção da vida material da sociedade como tal Na medida em que a história se produz dialeticamente cada sociedade na organização da produção de sua vida material gera uma contra dição fundamental que ao ser superada produz uma nova socie dade qualitativamente diferente da anterior Porém para que esta contradição não negue a todo momento a sociedade que se produz é necessária a mediação ideológica ou seja valores explicações tidas como verdadeiras que reproduzam as relações sociais necessárias para a manutenção das relações de produção Deste modo quando as ciências humanas se atêm apenas na descrição seja macro ou microssocial das relações entre os homens e das instituições sociais sem considerar a sociedade como produto históricodialético elas não conseguem captar a mediação ideo lógica e a reproduzem como fatos inerentes à natureza do homem E a Psicologia não foi exceção principalmente dada a sua origem biológica naturalista onde o comportamento humano decorre de um organismo fisiológico que responde a estímulos Lembramos aqui Wundt e seu laboratório que objetivando construir uma psicologia científica que se diferenciasse da especu lação filosófica se preocupa em descrever processos psicofisiológicos em termos de estímulos e respostas de causaseefeitos Nesta tradição e no entusiasmo de descrever o homem enquanto um sistema nervoso complexo que o permitia dominar e transformar a natureza criando condições suigeneris para a SILVIA T M LANE sobftvivência da espécie os psicólogos se esqueceram de que este homem junto com outros ao transformar a natureza se trans formava ao longo da história Como exemplo podemos citar Skinner que sem dúvida causou uma revolução na Psicologia mas as condições histórico sociais que o cercam impediramno de dar um outro salto quali tativo Ao superar o esquema SR chamando a atenção para a relação homemambiente para o controle que este ambiente exerce sobre o comportamento criticando o reducionismo biológico permitiu a Skinner ver o homem como produto das suas relações sociais porém não chega a ver estas relações como produzidas a partir da condição histórica de uma sociedade Quando Skinner através da análise experimental do comportamento detecta os controles sutis que através das instituições os homens exercem uns sobre os outros e define leis de aprendizagem e não podemos negar que reforços e punições de fato controlam comportamentos temos uma descrição perfeita de um organismo que se transforma em função das conseqüências de sua ação também a análise do autocontrole se aproxima do que consideramos consciência de si e o contracontrole descreve ações de um indivíduo em processo de conscientização social Skinner aponta para a complexidade das relações sociais e as implicações para a análise dos comportamentos envolvidos desafiando os psicólogos para a elaboração de uma tecnologia de análise que dê conta desta complexidade enquanto contingências presentes em comunidades A história individual é considerada enquanto história social que antecede e sucede à história do Indivíduo Nesta linha de raciocínio caberia questionar por que alguns comportamentos são reforçados e outros punidos dentro de um mesmo grupo social Sem responder a estas questões passamos a descrever o status quo como imutável e mesmo que rendo transformar o homem como o próprio Skinner propõe jamais o conseguiremos numa dimensão históricosocial Impasse semelhante podemos observar em Lewin que procura detectar os casos puros à maneira galileica e assim precisar leis psicológicas Também para ele Indivíduo e Meio são indissociáveis e na medida em que o meio é social e se caracteriza pela complexidade de regiões e subregiões e seus respectivos sistemas de forças se vê num impasse para a comprovação e previsão de comportamentos Este impasse surge entre outros na descrição de processos grupais sob lideranças autocráticas democráticas e laissezfaire quando entendendo ser o processo democrático o mais INTRODUÇÃO íê criativo e produtivo propõe uma liderança democrática fefttt como forma de se chegar a esta relação grupai Também a psicanálise em suas várias tendências enfrenta este problema desde as criticas de Politzer a Freud até as análises atuais dos franceses que procuram fazer uma releitura da obra de Freud numa perspectiva históricosocial do ser humano Não negamos a psicobiologia nem as grandes contribuições da psiconeurologia Afinal elas descrevem a materialidade do orga nismo humano que se transforma através de sua própria atividade mas elas pouco contribuem para entendermos o pensamento hu mano e que se desenvolve através das relações entre os homens para compreendermos o homem criativo transformador sujeito da história social do seu grupo Se a Psicologia apenas descrever o que é observado ou enfocar o Indivíduo como causa e efeito de sua individualidade ela terá uma ação conservadora estatizante ideológica quaisquer que sejam as práticas decorrentes Se o homem não for visto como produto e produtor não só de sua história pessoal mas da história de sua sociedade a Psicologia estará apenas reproduzindo as condições necessárias para impedir a emergência das contradições e a trans formação social Á psicologia social e o materialismo histórico Se o positivismo ao enfrentar a contradição entre objetividade e subjetividade perdeu o ser humano produto e produtor da História se tornou necessário recuperar o subjetivismo enquanto materialidade psicológica A dualidade físico X psíquico implica uma concepção idealista do ser humano na velha tradição animíp tica da psicologia ou então caímos num organicismo onde homem e computador são imagem e semelhança um do outro Nenhuma das duas tendências dá conta de explicar o homem criativo e trans formador Tomouse necessária uma nova dimensão espaçotem poral para se apreender o Indivíduo como um ser concreto manifestação de uma totalidade históricosocial daí a procura de uma psicologia social que partisse da materialidade histórica produzida por e produtora de homens Ê dentro do materialismo histórico e da lógica dialética que vamos encontrar os pressupostos epistemológicos para a recons 16 SILVIA T M LANE trução dç um conhecimento que atenda à realidade social e ao cotidiano de cada indivíduo e que permita uma intervenção efetiva na rede de relações sociais que define cada indivíduo objeto da Psicologia Social Das críticas feitas detectamos que definições conceitos cons tructos que geram teorias abstratas em nada contribuíram para uma prática psicossocial Se nossa meta é atingir o indivíduo concreto manifestação de uma totalidade históricosocial temos de partir do empírico que o positivismo tão bem nos ensinou a descrever e através de análises sucessivas nos aprofundarmos além do apa rente em direção a esse concreto e para tanto necessitamos de categorias que a partir do empírico imobilizado pela descrição nos levem ao processo subjacente e à real compreensão do Indivíduo estudado Também a partir de críticas à psicologia social tradicional pudemos perceber dois fatos fundamentais para o conhecimento do Indivíduo 1 o homem não sobrevive a não ser em relação com outros homens portanto a dicotomia Indivíduo X Grupo é falsa desde o seu nascimento mesmo antes o homem está inserido num grupo social 2 a sua participação as suas ações por estar em grupo dependem fundamentalmente da aquisição da linguagem que preexiste ao indivíduo como código produzido historicamente pela sua sociedade langue mas que ele apreende na sua relação específica com outros indivíduos parole Se a língua traz em seu código significados para o indivíduo as palavras terão um sentido pessoal decorrente da relação entre pensamento e ação mediadas pelos outros significativos O resgate destes dois fatos empíricos permite ao psicólogo social se aprofundar na análise do Indivíduo concreto considerando a imbricação entre relações grupais linguagem pensamento e ações na definição de características fundamentais para a análise psicos social Assim a atividade implica ações encadeadas junto com outros indivíduos para a satisfação de uma necessidade comum Para haver este encadeamento é necessária a comunicação linguagem assim como um plano de ação pensamento que por sua vez decorre de atividades anteriormente desenvolvidas Refletir sobre uma atividade realizada implica repensar suas ações ter consciência de si mesmo e dos outros envolvidos refletir sobre os sentidos pessoais atribuídos às palavras confrontálas com as conseqüências geradas pela atividade desenvolvida pelo grupo INTRODUÇÃO 17 social e nesta reflexão se processa a consciência do indivíduo que é indissociável enquanto de si e social Leontiev inclui ainda a personalidade como categoria decor rente do princípio de que o homem ao agir transformando o seu meio se transforma criando características próprias que se tornam esperadas pelo seu grupo no desenvolver de suas atividades e de suas relações com outros indivíduos Caberia ainda na especificidade psicossocial uma análise das relações grupais enquanto mediadas pelas instituições sociais e como tal exercendo uma mediação ideológica na atribuição de papéis sociais e representações decorrentes de atividades e relações sociais tidas como adequadas corretas esperadas etc A consciência da reprodução ideológica inerente aos papéis socialmente definidos permite aos indivíduos no grupo superarem suas individualidades e se conscientizarem das condições históricas comuns aos membros do grupo levandoos a um processo de identificação e de atividades conjuntas que caracterizam o grupo como unidade Este processo pode ocorrer individualmente e cons tataríamos o desenvolvimento de uma consciência de si idêntica à consciência social Na medida em que o processo é grupai ou seja ocorre com todos os membros ele tende a caracterizar o desen volvimento de uma consciência de classe quando o grupo se percebe inserido no processo de produção material de sua vida e percebe as contradições geradas historicamente levandoo a atividades que visam à superação das contradições presentes no seu cotidiano tomase um gruposujeito da transformação históricosocial Desta forma a análise do processo grupai nos permite captar a dialética indivíduogrupo onde a dupla negação caracteriza a superação da contradição existente e quando o indivíduo e grupo se tornam agentes da história social membros indissociáveis da totalidade histórica que os produziu e a qual eles transformam pôr suas atividades também indissociáveis Esta análise das categorias fundamentais para a compreensão do ser humano nos leva à constatação da impossibilidade de delimitarmos conhecimentos em áreas estanques que comporiam o conjunto das Ciências Humanas Psicologia Sociologia Antropo logia Economia História Pedagogia Lingüística são enfoques a partir dos quais todas as áreas contribuem para o conhecimento profundo e concreto do ser humano Suas fronteiras devem ser necessariamente permeáveis ampliando o conhecimento seja do 18 SILVIA T M LANE indivíduo do grupo da sociedade e da produção de sua existência material e concreta Decorrências metodológicas a pesqufeaação enquanto práxis A partir de um enfoque fundamentalmente interdisciplinary o pesquisadorprodutohistórico parte de uma visão de mundo e do homem necessariamente comprometida e neste sentido não há possibilidade de se gerar um conhecimento neutro nem um conhecimento do outro que não interfira na sua existência Pesqui sador e pesquisado se definem por relações sociais que tanto podem ser reprodutoras como podem ser transformadoras das condições sociais onde ambos se inserem desta forma conscientes ou não sempre a pesquisa implica intervenção ação de uns sobre outros A pesquisa em si é uma prática social onde pesquisador e pesquisado se apresentam enquanto subjetividades que se materializam nas relações desenvolvidas e onde os papéis se confundem e se alternam ambos objetos de análises e portanto descritos empiri camente Esta relação objeto de análise é captada em seu movimento o que implica necessariamente pesquisaação Por outro lado as condições históricas sociais do pesquisador e de pesquisados que respondem pelas relações sociais que os identificam como indivíduos permitem a acumulação de conheci mentos na medida em que as condições são as mesmas onde as especificidades individuais apontam para o comum grupai e social ou seja para o processo histórico que captado nos propicia a compreensão do indivíduo como manifestação da totalidade social ou seja 0 Indivíduo concreto Este caráter acumulativo da pesquisa faz do conhecimento uma práxis onde cada momento empírico é repensado no confronto com outros momentos e a partir da reflexão critica novos caminhos de investigação são traçados que por sua vez levam ao reexame de todos os empíricos e análises feitas ampliando sempre a com preensão e o âmbito do conhecido Pesquisaaçâo é por excelência a práxis científica INTRODUÇÃO 19 Toda a psicologia é social Esta afirmação não significa reduzir as áreas específicas da Psicologia à Psicologia Social mas sim cada uma assumir dentro da sua especificidade a natureza históricosocial do ser humano Desde o desenvolvimento infantil até as patologias e as técnicas de intervenção características do psicólogo devem ser analisadas criticamente à luz desta concepção do ser humano é a clareza de que não se pode conhecer qualquer comportamento humano iso landoo ou fragmentandoo como se este existisse em st e por si Também com esta afirmativa não negamos a especificidade da Psicologia Social ela continua tendo por objetivo conhecer o Indivíduo no conjunto de suas relações sociais tanto naquilo que lhe é específico como naquilo em que ele é manifestação grupai e social Porém agora a Psicologia Social poderá responder à questão de como o homem é sujeito da História e transformador de sua própria vida e da sua sociedade assim como qualquer outra área da Psicologia A dialética marxista uma leitura epistemológica jray Çcfrone Introdução H á algumas pistas e indicações no prefácio da primeira edição alemã de O Capitalt bem como no posfácio da segunda edição alemã que podem ser de extrema utilidade para a compreensão epistemológica do método dialético ou método de exposição tal como está objetivado no desenvolvimento da obra mencionada Pretendemos assinalar essas pistas a fim de empreender uma leitura do método de exposição no primeiro capítulo de O Capital que trata da Mercadoria Comecemos pelo prefácio da primeira edição alemà de 1867 Marx diz qual é o objeto de investigação da obra O regime de produção capitalista e as relações de produção e de circulação que a ele correspondem1 ou mais precisamente as leis naturais de produção capitalista que operam e se impõem com férrea necessidade2 O universo de pesquisa tomado como ilustração é o capi talismo inglês do século passado O ponto de partida da investigação Algumas colocações teóricas deste artigo foram baseadas na análise de Marcos Muller sobre o método de exposição em 0 Capita 1 Marx K O Capitaif I vol 1 trad porl Reginaldo SantAnna 6 ed Rio de Janeiro CivilÍ2aç8o Brasileira 1980 p 5 12 Marx Kf idem iòidem p 5 INTRODUÇÃO 21 teórica é a Mercadoria que corresponde ao capítulo primeiro de O Capital exatamente o que oferece maior dificuldade à com preensão do leitor O método ou modo de tratar o objeto segundo Marx tem analogias com o método de proceder do biologista ou melhor do anatomista bem como com o método do fisico Mas não equivale a nenhum dos dois por causa do objeto as formas econômicas Marx fala em análise e capacidade de abstração como modos adequados de tratar cientificamente as formas econômicas refra tárias à observação direta ou observação indireta com ajuda de instrumentos ou mesmo de experimentação Vejamos a analogia com a maneira de proceder do biologista O pressuposto da analogia é o de que a sociedade burguesa se assemelha a um organismo e a mercadoria equivale a uma célula ou forma elementar desse organismo Na analogia com os procedimentos adotados pelo físico na busca das leis que regulam os processos da natureza Marx diz O físico observa os processos da Natureza quando se manifestam na forma mais característica e estão mais livres de influências pertur badoras ou quando possível faz ele experimentos que assegurem a ocorrência do processo em sua pureza 3 Pela primeira analogia temos de considerar a sociedade como uma totalidade tal como a totalidade orgânica dotada de leis estruturais especificidade e solidariedade funcional entre as partes além disso tal como os organismos vivos a sociedade é pensada como totalidade dotada de história que nasce e caduca como os seres vivos isto é não é imutável sofre transformações Pela segunda analogia temos a razão peia qual o capitalismo da Inglaterra foi tomado como universo de pesquisa e caso exemplar Segundo Marx o regime de produção capitalista inglês estava mais desenvolvido que na Alemanha e outros países eu ropeus a existência de uma legislação fabril atestava o seu grau de desenvolvimento na Alemanha as relações sociais capitalistas estavam em contradição com relações sociais derivadas de modos de produção anteriores ou seja perturbadas e apresentando maior complexidade para a análise e abstração do que o capitalismo inglês Além disso diz Marx comparada com a inglesa é precária 3 Marx K idem fbidem p 4 IRAYCARONE estatística social da Alemanha e dos demais países da Europa Ocidental4 o que permite maior conhecimento factual da situação concreta de vida dos trabalhadores através dos informes dos inspe tores de fábricas dos médicos da Saúde Pública bem como dos comissários que investigam a situação das mulheres e crianças nas fábricas Por último na Inglaterra é palpável o processo revo lucionário5 Ê evidente que Marx não identificou os seus procedimentos com os do físico e do biologista Podemos inferir entretanto que o autor parte de uma perspectiva totalizadora na qual a sociedade burguesa é compreendida como um sistema social sujeito a trans formações Podemos inferir também que embora o capitalismo inglês seja considerado um caso exemplar do regime de produção capitalista o objetivo da obra transcende os limites do próprio universo de pesquisa Tratase de compreender teoricamente o que é o capital e não o capitalismo inglês do século passado Ou melhor um é o na medida em que se realiza uma leitura essencial do que é o capital através de uma de suas concreções históricas O capitalismo inglês na sua singularidade materializa as características univer sais do regime de produção capitalista ou seja as suas leis Passemos agora para o posfácio da segunda edição alemã de O Capital de 1873 O autor diz O método empregado nesta obra conforme demonstram as intérpretações contraditórias não foi bem compreendido6 A Révue Positiviste afirma que Marx trata a economia metafisicamente e que ao mesmo tempo se limita à análise crítica de uma situação dada sem previsões para o futuro Sieber parece têlo compreendido de forma diferente dos positi vistaá O método de Marx é o dedutivo de toda a escola inglesa7 M Block diz que o método é analítico os críticos alemães afirmam que se trata de spfística hegeliana um resenhista russo do periódico de São Petersburgo Mensageiro Europeu pondera que é o método de pesquisas rigorosamente realista8 mas que lamentavelmente o método de exposição é dialéticoalemão 9 4 Marx K idem ibidem p 5 5 Marx K idem ibidem p 6 6 Marx K idem ibidem p 13 7 Marx K idem ibidem p 13 8 Marx K idem ibidem p 14 9 Marx K idem ibidem p 14 INTRODUÇÃO 23 A distinção entre método de pesquisas e método de exposição feita pelo resenhista russo de O Capital é retomada por Man É mister sem dúvida distinguir formalmente o método da exposição do método de pesquisa A investigação tem de apode rarse da matéria em seus pormenores de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e de perquirir a conexão íntima que há entre elas Só depois de concluído esse trabalho é que se pode descrever adequadamente o movimento real Se isto se consegue ficará espelhada no plano ideal a vida da realidade pesquisada o que pode dar a impressão de uma construção apriori10 É muito importante observar tal diferença O método de pesquisa é a investigação de ordem empírica a coleta dos dados a sua classificação o conjunto de técnicas e procedimentos adequados à apropriação analítica do material empírico é preciso não esquecer que Marx escolheu a Inglaterra entre outras razões porque nela o levantamento estatístico a respeito da situação dos trabalhadores nas fábricas era menos precário que na Alemanha e demais países da Europa Ocidental O método de exposição é a reconstrução racional e teórica da realidade pesquisada mas a exposição só é possível a posteriori da pesquisa empírica Ou seja o fato de a pesquisa empírica preceder a exposição teórica mostra que O Capital não pretende ser uma construção apriorista e escolástica embora possa até se assemelhar à especulação metafísica sob o ponto de vista meramente formal Pelo seu caráter analítico e altamente abstrato o capítulo primeiro de O Capital carrega consigo todas as dificuldades da exposição teórica que tenta espe lhar pelo avesso a realidade da mercadoria A mercadoria aparência e essência O capítulo primeiro do livro primeiro de O Capital tem quatro partes distintas Percebemos nos diferentes níveis da exposição pelo menos três definições de Mercadoria À primeira vista a mercadoria nos aparece como um objeto externo uma coisa que por suas propriedades satisfaz necessi dades humanas seja qual for a natureza a origem delas pro 10 Marx Kidem ibidem p 16 24 IRAYCARpNE venham do estômago ou da fantasia11 ou seja a mercadoria é por nós representada como um objeto útil que atende às nossas necessidades quer materiais quer espirituais Em termos teóricos ela é definida como um valordeuso Enquanto valordeuso eia é reconhecida de modo imediato pelos nossos sentidos pelas suas propriedades materiais específicas e particulares Na sociedade burguesa capitalista os valoresdeuso são bens que compramos ou vendemos ou seja são valores de troca Em suma mercadoria é definida num primeiro nível como valor deuso e valor de troca Tal definição deriva da prática social coti diana de venda e compra de mercadorias Na terceira parte do capítulo primeiro após dilatar o universo do discurso com os conceitos teóricos de trabalho concreto e trabalho abstrato valor e magnitude de valor e outros Marx redefine a mercadoria De acordo com hábito consagrado se disse no começo deste capítulo que a mercadoria é valordeuso e valor de troca Mas isto a rigor não é verdadeiro A mercadoria é valordeuso ou objeto útil e valor Ela revela seu duplo caráter o que ela é realmente quando como valor dispõe de uma forma de manifestação própria diferente da forma natural dela a forma de valor de troca e ela nunca possui essa forma isoladamente considerada mas apenas na relação de valor ou de troca com uma segunda mercadoria diferente Sabendo isto não causa prejuízo aquela maneira de exprimirse servindo antes para poupar tempo 12 os grifos são meus Na segunda definição o autor nega a verdade da primeira definição afirmando que ela é correta de um ponto de vista pragmático embora não reflita a essência da mercadoria A segunda definição não seria possível sem o processo da abstração valor é uma propriedade concreta mas impalpável aos sentidos13 de toda e qualquer mercadoria O valordeuso ao contrário é constituído por múltiplas propriedades materiais concretas e empíricas imediatamente apreensiveis pelos sentidos Isso quer dizer que a segunda definição revela a essência contra 11 Marx K idem ibidem p 41 12 Marx K idem ibidem pp 6869 13 Marx K idem ibidem p 56 A coisavalor se mantém imper ceptível aos sentidos INTRODUÇÃO É ditória do ser da mercadoria14 a contradição entre às inu propriedades constitutivas A terceira definição contida na quarta parte do capitulo sob o título O fetichismo da mercadoria o seu segredo causa per plexidade Marx discorre sobre a mercadoria de maneira antro pomórfica como se ela tivesse pés mãos cabeça idéias iniciativa Em outras palavras como objeto misterioso e fantasmagórico Diz À primeira vista a mercadoria parece ser coisa trivial imedia tamente compreensível Analisandoa vêse que ela é algo muito estranho cheio de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas15 Mais além o caráter misterioso que o produto do trabalho apresenta ao assumir a forma mercadoria de onde provém Dessa própria forma é claro16 Ê preciso observar que a terceira definição completa um círculo dialético que tomou a mercadoria como ponto de partida e ponto de chegada Mas é evidente que a terceira definição desmente a primeira de forma cabal A mercadoria tal como é representada por nós numa primeira instância aparece como mera utilidade ou meio para atender a uma finalidade ou seja para atender às nossas necessidades materiais e espirituais Ela reaparece no final da análise como um objeto nãotrivial não como um meio para atender a um fim chamo a isto de fetichismo que está sempre grudado aos produtos do trabalho quando são gerados como mercadorias inseparável da produção das mercadorias17 Dizer que a mercadoria é fetiche ou melhor dizer que a formamercadoria transforma os produtos do trabalho em fetiches significa dizer que a mercadoria é um objeto nãotrivial dotado de poder sobre as nossas necessidades materiais e espirituais Não é pois a mercadoria que está a serviço de nossas necessidades e sim ás nossas necessidades é que estão submetidas controladas e manipuladas pela vontade e inteligência do universo das merca dorias A terceira definição revela a essência da mercadoria pela negação de sua aparência de objeto trivial a serviço de nossas 14 Marx K idem ibidem p 69 15 Marx K idem ibidem p 79 16 Marx K idem ibidem p 80 17 Marx K idem ibidem p 81 26 IRAY CARONE necessidades Ou seja ela inverte as inversões contidas nas repre sentações imediatas e primeiras das mercadorias O esforço teórico que culminou na apreensão do caráter essencialmente falso fantasmagórico e ideológico do ser da forma mercadoria é sem dúvida um movimento negativo de pensamento que pensa o objeto pelo seu avesso Em suma a trivialidade da mercadoria é uma falsa trivia lidade que esconde o seu caráter misterioso a utilidade da mercadoria é uma falsa utilidade na medida em que as nossas necessidades é que são por ela utilizadas A mercadoria é um fetiche tanto quanto nossa vontade é pura heteronomia O circuito dialético portanto representou a subversão total do senso comum dos conceitos pragmáticos das verdades cotidianas O método de exposição não reproduziu racionalmente a realidade concreta na sua positividade imediata O pensar não seguiu o ser e sim o inverteu Se houve reprodução do real foi reprodução pelo seu avesso O concretopensado pelo método da exposição é exatamente o contrário do concreto tal como é vivido e representado por nós Do ponto de vista do método houve um movimento de regres são ao ponto de partida mercadoria mas evidentemente no ponto de chegada mercadoria aumentou o nível de compreensão do objeto Isso quer dizer que não há equivalência entre o ponto de partida e o ponto de chegada mesmo que o objeto seja único a mercadoria Na forma de diagrama o percurso realizado foi o de uma espiral As representações imediatas do objeto mercadoria foram mediatizadas pela teoria Voltando à distinção entre método de pesquisa e método de exposição ficounos claro que sem pesquisa empírica não há exposição teórica dado que a exposição nào é e não pode ser mera construção a priori Ê preciso agora acrescentar a pesquisa empírica não é autosuficiente do ponto de vista da dialética de Marx Os dados empíricos por mais rigorosaménte que sejam coletados permanecem presos às ilusões e inversões ideológicas das representações imediatas dos objetos sociais Eles necessitam por tanto ser interpretados e convertidos pela mediação teórica ou seja os dados imediatos devem ser mediatizados pela teoria O método de exposição ou método dialético embora teórico e racional não tem qualquer postulado de ordem idealista na medida em que tem a pesquisa empírica como exigência básica mas tampouco advoga o princípio empirista da autointeligibilidade do empírico O capita em sua generalidade O objetivo da obra O Capital é saber o que é o capital em geral Após os capítulos sobre a Mercadoria o Processo de Troca e o Dinheiro o capital é definido como valor em progressão oü valor que gera mais valor O valor se torna valor em progressão dinheiro em progressão e como tal capital Sai da circulação entra novamente nela mantémse e multiplicase nela retorna dela acrescido e recomeça incessantemente o mesmo circuito DD dinheiro que se dilata dinheiro que gera dinheiro conforme a definição de capital que sai da boca dos seus primeiros intérpretes os mercantilistas 18 A seqüência dos capítulos tem sua razão de ser lógica O método de exposição é um movimento de pensamento que passa por várias determinações do conceito de capital das mais simples e imediatas às mais complexas e profundas Progressivamente o pensamento se apropria das determinações da esfera da circulação e da troca para alcançar as determinações mais complexas e ricas da esfera da produção ou seja da mercadoria forma de valor simples forma de valor total forma de valor universal forma dinheiro determinações do dinheiro que pertencem à esfera imediata das trocas mercantis às do valor maisvalia maisvalia absoluta maisvali a relativa trabalho assalariado exploração da esfera da produção É um movimento progressivoregressivo Ê progressivo porque as determinações da esfera da circulação não nos dão a plena riqueza das determinações do capital19 de forma que as determi nações essenciais são as da produção que não são imediatas Ê regressivo porque o ponto de partida da exposição é o capital em geral e o ponto de chegada também Mas é evidente que só com as determinações mais superficiais apropriadas sucessivamente não se alcança a essência do concreto capital INTRODUÇÃO 27 18 Marx Kidem ibidem pp 174175 19 Marx K idem ibidem p 183 a circulação ou troca de mercadorias não cria nenhum valor 20 IRÁY CARONE Na prática social nós adquirimos uma vivência do que é o capital e com ele aprendemos a lidar às vezes com êxito No entanto a vivência do capital o que o capital é para nós não coincide com o que ele realmente é Ou seja temos uma prática ou conhecimento pragmático do capital que não coincide com a ciência do capital da mesma maneira que o conhecimento prático da mercadoria não equivale ao conhecimento de sua essência No tópico relativo ao método da Economia Política da obra Para a Crítica da Economia Política 1857 Marx diz O concreto é concreto porque é síntese de muitas determinações isto é unidade do diverso Por isso o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese como resultado não como ponto de partida ainda que seja o ponto de partida efetivo e portanto o ponto de partida também da intuição e da representação 20 O concreto pensado é de fato um produto do movimento do pensamento do esforço racional que mediatiza as representações imediatas do concreto efetivo ou seja transforma as representações em con ceitos21 Daí se segue que o movimento de pensamento que se apropria do concreto como concreto pensado não é de modo nenhum o processo de gênese do próprio concreto 22 ou seja não reconstrói a história do regime de produção capitalista o seu caráter progres sivo das determinações simples às complexas entretanto mostra que ele reconstrói racional e teoricamente o processo de gênese caíegorial do capital enquanto concreto pensado Algumas conclusões relativas ao método dialético em O Capital Das pistas e indicações contidas na obra mencionada pode mos tirar a titulo provisório e sem aprofundamento algumas conclusões sobre o método dialético 1 ele aparece antes de mais nada como um método de exposição teórico especulativo ra 20 Marx Kr Para a Crítica da Economia Política trad port Edgard Malagodi e colaboração de J Arthur Giannotti São Paulo Abril Cultural 1982 p 14 21 Marx K idem ibidem p 15 22 Marx K idem ibidem p 14 in t r o d u ç ã o 39 cional mas não apriorista uma vez que pressupõe a pesquisa empírica 2 um método crítico na medida em que a conversão dialética que transforma o imediato em mediato a representação em conceito é negação das aparências sociais das ilusões ideológi cas do concreto estudado 3 um método progressivoregressivo patente na espiral dialética em que ponto de partida e ponto de chegada coincidem mas não se identificam evidente que enquanto movimento de pensamento está regido por leis ou categorias da ordem do pensamento Tomemos como exemplo a manifestação do valor enquanto propriedade oculta das mercadorias na chamada relação de valor1 que é a equação geral das trocas mercantis Para que uma mercadoria ou melhor o seu valordeuso sirva de espelho para o valor de outra mercadoria é preciso que haja uma conversào dos contrários um no outro Por meio da conversão dos contrários o valordeuso se toma a forma de manifestação do seu contrário isto é do valor23 o trabalho concreto se torna forma de manifestação do seu contrário trabalho humano abstrato14 o trabalho privado se torna a forma dc seu contrário o trabalho em forma diretamente social25 Em outras palavras na manifestação do valor uma propriedade mediata se imediatizaem propriedade visível concreta Outro exemplo é a relação universalparticular pensada pela categoria da Mediação Vermittlung A analogia organismo célula mencionada no prefácio da primeira edição alemã nos diz que a sociedade burguesa é organismo e a mercadoria é célula ou seja estabelece uma relação todoparte universalparticular entre uma e outra Tal relação é de identidade e diferença a parte materializa o todo mas o todo não é o conjunto de partes nem é a parte o todo Enquanto reflexo do sistema social capitalista a mercadoria contém contradições inerentes a ele a mercadoria é um ser contraditório na medida em que é constituída por propriedades opostas do valordeuso e valor a sua contradição interna reproduz a contradição externa entre trabalho concreto e trabalho abstrato própria do regime de produção capitalista 23 Marx K 0 Capitai 1 p 64 24 Marx K O Capitai I p 67 25 Marx K O Capital I p 67 30 IRÀY CARONE a formamercadoria é uma forma fantasmagórica mistifi cadora que esconde o seu poder sobre as necessidades humanas tal como são fantasmagóricas as relações sociais burguesas que a nível imediato e superficial se apresentam como relações simétricas igualitárias e não relações de poder As características macro estruturais estão pois refletidas e reproduzidas em suas micro unidades Outras observações poderiam ainda ser feitas sobre a maneira de proceder do pensamento objetivado em O Capital Ficaremos no entanto restritos a essa leitura preliminar Bibliografia Marx K0 Capital livro I trad port Reginaldo SantAnna 6 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1980 Marx K Para a Critica da Economia Política t trad port Edgard Ma lagodi etalii Sào Paulo Abril Cultural 1982 Fausto R Marx Lógica e Política tomo I São Paulo Ed Bra siliense 1983 Cardoso F Ht ÇapitafismQ e Escravidão no Brasil Meridional Rio de Janeiro Paz e Terra 1977 Muller M Epistemologia e Dialética Caderno de História e Filosofia da Ciência n 2 UNICAMP 1981 Parte 2 As categorias fundamentais da psicologia social Linguagem pensamento e representações sociais Silvia Tatiana Maurer Lane Skinner inicia o seu Verbal Behavior com a seguinte frase Os homens agem sobre o mundo e o transformam e são por sua vez transformados pelas conseqüências de suas ações E mais adiante define comportamento verbal como todo aquele mediado por outra pessoa e assim inclui no verbal gestos sinais ritos e obviamente a linguagem Assim podemos dizer que o homem ao falar transforma o outro e por sua vez é transformado pelas conseqüências de sua fala Porém é necessário para uma compreensão mais profunda do comportamento verbal analisálo em um contexto mais amplo considerandose o ser humano como manifestação de uma totali dade históricosocial produto e produtor de história Deste modo partimos do pressuposto que a linguagem se originou na espécie humana como conseqüência da necessidade de transformar a natureza através da cooperação entre os homens por meio de atividades produtivas que garantissem a sobrevivência do grupo social O trabalho cooperativo exigindo planejamento divisão de trabalho exigiu também um desenvolvimento da linguagem que permitisse ao homem agir ampliando as dimensões de espaço e tempo A linguagem como produto de uma coletividade reproduz através dos significados das palavras articuladas em frases os conhecimentos falsos ou verdadeiros e os valores associados a praticas sociais que se cristalizaram ou seja a linguagem reproduz AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL uma visão de mundo produto das relações que se desenvolveram a partir do trabalho produtivo para a sobrevivência do grupo social Sob esta perspectiva qualquer análise da linguagem implica coft siderála còtno produto histórico de umA coletividade Skinner define tato como sendo os significados das palavras e seriam variáveis independentemente produzidas pelo grupo social ao qual o indivíduo pertence Desta forma a aprendizagem da língua materna insere a criança na história de sua sociedade fazendo com que ela reproduza em poucos anos o processo de hominização pelo qual a humanidade se produziu tomandoa produto e produ tora da história de seu grupo social A última frase do livro de Vygotski sintetiza todo este processo ao afirmar que Uma palavra é um microcosmo da consciência humana Daí a importância fundamental que tem a aquisição materna para a compreensão de qualquer comportamento do ser humano e esta só pode ser analisada numa abordagem inter disciplinar O que não significa que a Psicologia deixe de ter a sua especificidade na contribuição do conhecimento deste processo Seja Skinner Piaget Vygotski Malrieu ou Leontiev todos são concordes em afirmar que a função primária da linguagem é a comunicação e o intercâmbio social através da qual a criança representa o mundo que a cerca e que influenciará seu pensamento e suas ações no seu processo de desenvolvimento e de hominização Cada um destes autores traz a sua contribuição para um conhecimento psicológico da aprendizagem da linguagem Skinner pela análise empírica que faz demonstra a materialidade de falar e pensar Piaget e Malrieu apontam para a gênese social das representações da criança e como ela desenvolve sua visão de mundo Vygotski e Leontiev concebendo o ser humano como manifestação de uma totalidade históricosocial vêem a linguagem como fundamental para o desenvolvimento da consciência de si e social de indivíduo a qual se processa através da linguagem do pensamento e das ações que o homem realiza ao se relacionar com outros homens A análise que Leontiev faz da aprendizagem da língua materna aponta para dois processos que se interligam necessa riamente se por um lado os significados atribuídos às palavras são produzidos pela coletividade no seu processar histórico e no desenvolvimento de sua consciência social e como tal se subor dinam às leis históricosociais por outro os significados se pro cessam e se transformam através de atividades e pensamentos de 34 SILVIA TM LANE indivíduos concretos e assim se individualizam se subjetivam na medida em que retomam para a objetividade sensorial do mundo que os cerca através das ações que eles desenvolvem concretamente Desta forma os significados produzJdos historicamente pelo grupo social adquirem no âmbito do indivíduo um sentido pessoal ou seja a palavra se relaciona com a realidade com a própria vida e com os motivos de cada indivíduo Creio ser oportuno a esta altura retomar uma análise feita por Terwilliger quando afirma ser a palavra uma arma de poder demonstrando o quanto a imposição de um significado único e absoluto à palavra é uma forma de dominação do indivíduo como ocorre em situações de hipnose de comando militar e de lavagem cerebral Todas situações onde a ambiguidade ou alternativas de significados levam à negociação de qualquer um destes processos Esta arma de poder só é dominada pelo confronto que o indivíduo possa fazer entre diferentes significados possíveis e a realidade que o cerca aliás este é o princípio proposto e defendido por Paulo Freire condição para um pensamento crítico para o desenvolvimento da consciência social e conseqüen temente para a criatividade que transforma as relações entre os homens Esta análise nos permite apontar para uma função da lin guagem que é a mediação ideológica inerente nos significados das palavras produzidas por uma classe dominante que detém o poder de pensar e conhecer a realidade explicandoa através de verdades inquestionáveis e atribuindo valores absolutos de tal forma que as contradições geradas pela dominação e vividas no cotidiano dos homens são camufladas e escamoteadas por expli cações tidas como verdades universais ou naturais ou sim plesmente como imperativos categóricos em termos de é assim que deve ser Voltando para a aprendizagem da língua materna a criança ao falar reproduz a visão de inundo de seu grupo social assim como a ideologia que permeia e mantém as relações sociais desse grupo e é levada a agir de forma a não perturbar a ordem vigente1 caso contrário ela será considerada um anormal um marginal e como tal afastada do convívio social E quando os estudos apontam para a família desestruturada como responsável pela marginalização da criança podemos supor que ela aprendeu significados contra ditórios concepções de mundo incompatíveis e incapaz ainda de AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 34 um pensamento crítico e de atividades significativas desempenha comportamentos inaceitáveis pelo seu grupo social Por outro lado observações de crianças em famílias bem estruturadas nos mostraram que o papel de filho é desde os primeiros anos de vida inculcado em termos de obediente bemcomportado respeitador dos mais velhos a ponto de quando questionada sobre um fato ocorrido no dia anterior que fora relatado pela mãe como desobediência e birra da criança este é descrito por ela apenas considerando o final do episódio isto é ela obedeceu a mãe como convêm a um bom filho Essas observações foram feitas a partir de uma indagação de como a criança sentia e reagia às punições de seus pais e depois nfto entendemos como e por que as crianças se submetem ás violências do adulto Este fato mostra quanto a autoridade é cercada de valores e de emoções que a tornam inquestionável e absoluta reproduzindo relações sociais esperadas pelo grupo Todo este processo de reprodução das relações sociais está baseado em como a criança ao falar constrói suas representações sociais entendidas como uma rede de relações que ela estabelece a partir de sua situação social entre significados e situações que lhe interessam para sua sobrevivência Segundo Malrieu a representação social se constrói no processo de comunicação no qual o sujeito põe à prova através de suas ações o valor vantagens e desvantagens do posicio namento dos que se comunicam com ele objetivando e selecionando íeus comportamentos e coordenandoos em função de uma procura de personalização Desta forma a representação social se estrutura tanto pelos objetivos da ação do sujeito social como pelos dados que concordam ou que se opõem a eles Usando uma situação simples para ilustrar imaginemos uma criança entre um ano e um ano e meio de idadet brincando com uma bola um objeto redondo que corre rola pula se atirada com força há toda uma série de ações para experiendar e investigar este objeto denominado bola Na presença de um adulto este objeto será designado por bola é possível que a criança repita apenas bó e seja reforçada pelo adulto Enquanto ela faz a bola correr pelo chão repetindo bó bó provavelmente o adulto estará sorrindo e repetindo com ela a bola ou bola bonita bola redonda Num dado momento a bola é jogada para o alto pondo em perigo um vaso precioso Cuidado Não jogue a bola assim E 36 SILVIA T M LANE agora bò é perigosa é ruim mamãe não gosta E assim a criança cria a sua representação de bola que permitirá que ela se comunique com os outros planejando o seu jogo ou narrando fatos já ocorridos E neste processo de comunicação a criança vai estruturando o seu inundo que inicialmente se encontra em um estado nebuloso através de um sistema de significantes proporcionado pelos que a rodeiam e também vai encontrando formas de se autodefinir às custas de uma esquematização e de uma deformação inevitáveis e sempre superáveis Malrieu mostra como a comunicação e a personalização enquanto identificação e diferenciação determinam e são deter minadas pelas representações que implicam objetivação seleção coordenação das posições dos outros e de si mesmo Às repre sentações por sua vez também estão duplamente vinculadas com a atividade semiótica que se caracteriza pela elaboração dos signi ficantes decorrentes do processo de comunicação O autor conclui mostrando as formas como a linguagem participa na elaboração das representações ou seja como tomada de consciência de uma realidade através de comunicações com adultos que levam a práticas e a diálogos sobre elas as quais vão se estruturando Por outro lado as práticas as percepções os conhecimentos se transformam quando são falados e a própria representação de si mesmo só ocorre através da linguagem interiorizada das recordações e dos projetos E por último na medida em que toda representação implica uma comparação ela propicia uma objetivação que é uma das bases do controle que se pode exercer sobre as ações e emoções À construção de um motivo organizador das próprias ações irá permitir tanto a compreensão destas ações por meio das informações dos demais como o acesso às confrontações das possibilidades que estão na base das operações p 97 Uma análise concreta das representações que um indivíduo tem do mundo que o rodeia só é possível se as considerarmos inseridas num discurso bastante amplo onde as lacunas as contra dições e conseqüentemente a ideologia possam ser detectadas Este discurso amplo para muitos autores seria a visão de mundo que o indivíduo tem porém permanece a questão do que vem a ser no plano individual esta visão de mundo AS CATEGORÍAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 37 François Flahault quem nos dá algumas pistas para esta análise mais concreta das representações sociais Ele parte da análise de atos ilocutórios ou seja as laias que caracterizam as posições ocupadas pelos interlocutores de forma explicita ou implícita No primeiro caso teríamos as ordens os pedidos os insultos que explicitamente definem a relação existente entre os Interlocutores um manda o outro obedece um pede o outro concede Os atos ilocutórios implícitos por sua vez só são com preendidos em relação às posições que os interlocutores ocupam e ao mesmo tempo definem as respectivas posições toda palavra por mais importante que seja seu valor referenciai e informativo é formulada também a partir de um o que sou para você o que você 6 para mim e é operante neste campo a ação que ela representa a título destas trocas se manifesta através do que se pode chamar de atos ilocutórios ou efeitos de posição p 50 Por outro lado os atos ilocutórios implícitos decorrem do fato de que os indivíduos não são donos de operar seus posicio namentos pois pelo contrário este posicionamento è que esta belece suas identidades1 p 52 Deste modo Flahault mostra como a ação de falar implica relações de posições e a língua se apresenta como resultado e como matériaprima do processo discursivo À relação da linguagem com o real necessariamente sofre a mediação das posições sociais de grupo eou classe social e portanto um discurso está sempre em confronto com um mundo já repleto de significações sempre já ordenado sempre já socialmente arrumado um mundo que é o efeito de uma produção social dos sentidos que reproduz inevi tavelmente a produção material e pela inserção de cada indivíduo corpo e alma neste universo semiológico p 85 Entendendose por universo semiológico o conjunto de signos socialmente criados seria a natureza socialmente recriada e transformada Neste sentido este universo traz em si toda a ideologia de uma sociedade que se reproduzirá na linguagem e nos discursos situados Compreender representações sociais implica então conhecer nfio só o discurso mais amplo mas a situação que define o indivícfuo que as produz Para tanto Flahault desenvolve a noço de Espaço de Realização do Sujeito ERS Este espaço é o retomo a manifestação em figuras inde finidamente variáveis de uma instância que atuou de início como constitutiva do sujeito a linguagem enquanto que Outro grande 38 5ILVJA T M 1ANE Outro lacaníano enquanto que laço absoluto ao qual todos estão sujeitos p 54 O ERS ao mesmo tempo que ê constitutivo do Sujeito do seu eu também fundamenta a representação da sociedade tendo uma função reguladora através do imaginário do simbólico e do ideo lógico imbricados num todo no qual a ideologia tem por função no ERS constituir os indivíduos em sujeitos identificados p 156 Desta forma o ERS é o espaço da comunicação da intersubje tividade das relações sociais que identificam o indivíduo e assim produz e reproduz a formação social nos indivíduos que a compõem Resumindo o ERS se apresenta 1 como objetivos comuns ao grupo social que superam os fins particulares 2 como um conjunto de regras e valores 3 como substância enquanto mediação de realidades materiais e corporais através da linguagem que levam a práticas que definem uma realização limitada e específica do sujeito e uma mediação que o põe em relação com vários outros sujeitos FIGURA 1 realidade Todo Mundo Concluindo para conhecermos as representações sociais de um indivíduo ê necessário através dos atos ilocutórios explícitos e implícitos definirmos o lugar que ele ocupa em relação aos outros os que se limitam com ele e através do discurso como seu espaço se constitui nesta relação enquanto realidade subjetiva que se insere no real socialmente representado e reproduzido em termos de todomundo AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 39 Bibliografia Lane S T M O que é Psicologia Social Säo Paulo Ed Brasiliens 1981 Leontiev A Actividad Consciência y Personalidad Buenos Aires Ed Ciencias del Hombre 1978 Malrieu P Lenguage y Representation in la Génesis del Lenguage su Apresendizagcy Desarollo Simpósio da Associação de Psicologia Científica Francesa Madri Pablo del Rio Editor 1978 Piaget J et alii Introducctón a la psycholinguistica Skinner B F Verbal Behavior Nova lorque AppletonCenturyCrofts 1957 Terwilliger R F Meaning and Mind A Study in the Psichology of Language Londres Oxford University Press 1968 Vygotsky L S Pensamiento y Lenguajet Buenos Aires Editoria la Plya de 1973 Flahault F t La Parole Jntermédiaire Paris Eds du Seuil 1978 Consciência alienação a ideologia no nível individual Silvia Tatiana Maurer Lane O indivíduo sujeito da história é constituído de suas relações sociais e é ao mesmo tempo passivo e ativo determinado e deter minante Ser mais ou menos atuante como sujeito da história depende do grau de autonomia e de iniciativa que ele alcança Assim ele é história na medida em que se insere e se define no conjunto de suas relaçòes sociais desempenhando atividades transformadoras destas relações o que implica necessariamente atividade prática e inteligência tào inseparáveis quanto no nível da sociedade são inseparáveis a infra e a superestrutura e cuja unidade é estabelecida por um processo cujo agente exclusivo é a atividade humana em suas diferentes formas dentro deste contexto que devemos analisar como a ideo logia presente em atividades superestruturais da sociedade se reproduz a nível individual levandoo a se relacionar socialmente de forma orgânica e reprodutora das condições de vida e também Este capitulo foi publicado com o título Ideologia no Nfvel Individual in EducaçSo e Sociedade n 14 abril da 1963 Sfio Paulo Participaram das discussões que deram origem ao texto os Professores Antonio da C Ciampa Bader B Sawaia Brigido V Camargo Carlos Peraro Filho Dirceu Pinto Malheiro Elíana Bertolucci Maribele Vi eg as Marilia Fozati Mariae R Vianna Odalr Furtado Suefy Ongaro Wsnderfey Codo Luiz A ftahal membros de um grupo de pesquisa do pósGraduaçSo em Psicologia Social da PUCSP AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 41 como no plano da ideologia o indivíduo se toma consciente dos conflitos existentes no plano da produção de sua vida material O homem como ser ativo e inteligente se insere historicamente em um grupo tocial através da aquisição da linguagem condição básica para a comunicação e o desenvolvimento de suas relações sociais e conseqüentemente de sua própria individualidade A linguagem enquanto produto histórico traz represen tações significados e valores existentes em um grupo social e como tal é veiculo da ideologia do grupo enquanto para o indivíduo é também condição necessária para o desenvolvimento de seu pensa mento Ê preciso ressaltar que nem todas as representações implicara necessariamente reprodução ideológica esta se manifesta através de representações que o indivíduo elabora sobre o Homem a Socie dade a Realidade ou seja sobre aqueles aspectos da sua vida a que explícita ou implicitamente são atribuídos valores de certo errado de bommau de verdadeirofalso No plano superestrutural a ideologia é articulada pelas instituições que respondem pelas formas jurídicas políticas religiosas artísticas e filosóficas no plano individual elas se reproduzem em função da história de vida e da inserção específica de cada indivíduo Desta forma a análise da ideologia deve necessariamente considerar tanto o discurso onde são articuladas as representações como as atividades desenvolvidas pelo indivíduo A análise ideológica é fundamental para o conhe cimento psicossocial pelo fato de ela determinar e ser determinada pelos comportamentos sociais do indivíduo e pela rede de relações sociais que por sua vez constituem o próprio indivíduo Neste sentido podemos entender como é que no plano ideológico o indivíduo pode se tomar consciente ao detectar as contradições entre as representações e suas atividades desempe nhadas na produção de sua vida material Quando falamos em consciência de si como sendo neces sariamente consciência social a alienação definida pela psicologia em termos de doença mental neuroses etc se aproxima da concepção sociológica de alienação Se no plano sociológico é feita a análise da relação de dominação entre as classes sociais definidas pelas relações de produção da vida material da sociedade esta relação se reproduz através da mediação superestrutural via instituições que prescre vem os papéis sociais e que determinam as relações sociais de cada indivíduo 42 SILVIA T M LANE A alienação se caracteriza ontologicamente pela atribuição de naturalidade aos fatos sociais esta inversão do humano do social do histórico como manifestação da natureza faz com que todo conhecimento seja avaliado em termos de verdadeiro ou falso e de universal neste processo a consciência ê reificada negandose como processo ou seja mantendo a alienação em relação ao que ele é como pessoa e conseqüentemente ao que ele é socialmente Neste ponto se toma necessário distinguir em termos de níveis consciência social de consciência de classe esta última é um processo essencialmente grupai e se manifesta quando indivíduos conscientes de si se percebem sujeitos das mesmas determinações históricas que os tomaram membros de um mesmo grupo inseridos nas relações de produção que caracterizam a sociedade num dado momento Nesta perspectiva o pertencer a um grupo cujas ações expressam uma consciência de classe pode ser condição para que um indivíduo desencadeie um processo de conscientização de si e sociaL Desta forma consciência de classe é uma categoria basicamente sociológica enquanto consciência desósocial é uma categoria psicológica Porém elas são intersociâveis no plano da ação tanto individual como grupai O individuo consciente de si necessariamente tem cons ciência de sua pertinência a uma classe social enquanto individuo esta consciência se processa transformando tanto as suas ações a ele mesmo poiém para uma atuação enquanto classe ele necessa riamente deve estar inserido em um grupo que age enquanto tal por exemplo uma greve uma assembléia exigem grupos organizados em torno de uma consciência comum de sua condição social Permanece em aberto uma questão o que ocorre com um indivíduo consciente em um grupo alienado Ou seja as contra dições sociais estão claras mas ele é impedido a nível grupai de qualquer ação transformadora não seria esta uma situação geradora de doença mental como fuga de uma realidade insus tentável É a hipótese levantada por A Abib Andery A questão da alienação consciência só poderá ser ana lisada no plano individual enquanto processo que envolve neces sariamente pensamento e ação mediados pela linguagem pro duto e produtora da história de uma sociedade O homem age produzindo e transformando o seu ambiente e para tanto ele pensa planeja sua ação e depois de executada ela é pensada avaliada determinando ações subseqüentes e este pensar AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 43 se dá através dos significados transmitidos pela linguagem apren dida Por outro lado qualquer ação implica necessariamente uma nãoação e elas só podem coexistir no pensamento enquanto atividade ou o indivíduo age ou nãoage tornando o pensar uma atividade fundamental prevendo conseqüências e levando a uma decisão que se transforma em ação ou nãoação Opção feita novamente ela é pensada em termos e se mas portanto ou seja contradição entre a açãonãoação é pensada agora como avaliação ou justificativa para a decisão tomada Esta justificativa mediada pela linguagem é um produto subjetivo que poderá estar reproduzindo a ideologia com conteúdos próprios às especificidades do indivíduo A reprodução da ideologia enquanto produto superestrutura como produto subjetivo de açãopensamento tem necessariamente suas raízes históricas na medida em que a linguagem presente no pensar é um produto do grupo social ao qual o indivíduo pertence mediando as relações sociais e reproduzindo no conjunto de seus significados a ideologia do grupo dominante e suas manifestações específicas no grupo social ao quai o indivíduo pertence O pensar uma ação pode simplesmente reproduzir essa ideologia na medida em que se submete ou a reproduz através de explicações do tipo é assim que deve ser é assim que se faz1 Porém o pensar uma açào pode ser um confronto das possíveis conseqüências tanto imediatas como mediatas Este pensar recupera experiências anteriores quando ações transformaram o ambiente e outras omitidas mantiveram o status quo apesar de ter havido uma necessidade que gerou a contradição entre fazer não fazer Refletir sobre estas contradições e suas conseqüências fará com que a ação decorrente seja um avanço no processo de conscientização Se esta reflexão não ocorre o pensar a ação se caracterizará por uma resposta pronta tida como verdadeira já elaborada pelo grupo reproduzindo a ideologia e mantendo o indivíduo alienado Desta forma o pensar açãonãoação agirnaoagir e repensar o feitonâofeito traz em si contradições que podem ser resolvidas através de uma explicação de uma justificativa que encerra o processo com uma elaboração ideológica Porém se a contradição é enfrentada é analisada criticamente e é questionada no confronto com a realidade o processo tem continuidade onde cada ação é renovada e repensada ampliando o âmbito de análise e 44 SILVIA T M LANE da própria ação e tem como conseqüência a conscientização do indivíduo Em contraposição as respostas a ações habituais são exata mente aquelas que se reproduzem sem que ocorra o pensar tanto antes como depois Na medida em que estas ações implicam valores e relações sociais elas estarão obrigatoriamente reproduzindo a ideologia dominante mantendo as condições sociais ou seja elas não transformam nem as relações sociais do indivíduo nem a ele mesmo é a persistência da alienação Nesse sentido podese entender como não só o trabalho repetitivo e mecânico de um operário mas também qualquer atividade rotineira contribui para a alienação do ser humano Esta linha de análise nos permite precisar como a ideologia dominante enquanto produção superestrutural da sociedade como uma lógica que ao nível individual se traduz com especifícidades e peculiaridades decorrentes da história de vida do indivíduo dentro de seu grupo social ou seja do conjunto das relações sociais que constituem o indivíduo Concluindo temos como decorrência metodológica desta aná lise a necessidade de pesquisar as representações linguagem pensamento juntamente com as ações de um indivíduo este defi nido pelo conjunto de suas relações sociais para se chegar ao conhecimento de seu nivel de consciênciaalienação num dado momento Implicações metodológicas Como captar o ideológico e o nível de consciência de um indivíduo num dado momento apresentase como problema fundamental para a pesquisa em Psicologia Social quando ela se propõe a conhecer o indivíduo como ser concreto inserido numa totalidade históricosocial Inicialmente é necessário explicitar alguns pressupostos epis temológicos tais como a relação entre teoria e fatos e a nãoneutra lidade científica Na superação da dicotomia entre teoria de um lado e o empírico de outro o materialismo dialético se propõe a conhecer o concreto distinto do empírico e produto de uma análise que partindo do empírico o insere num processo o qual permite detectar como são estabelecidas relações que nos levam a conhecer o AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 45 indivíduo como manifestação de uma totalidade Assim fatos e teoria se tomam indissociáveis tomando o processo cientifico necessariamente acumulativo em direção ao concreto proposto e a ciência um conhecimento relativizado como produção histórica Neste sentido definições abstratas perdem significado pois se antes a generalização caracterizava o conhecer agora é a especificidade do fato compreendido em todas as suas implicações que se toma o objetivo do conhecimento científico Desta forma a ênfase metodológica está na análise que permi tirá a partir do empírico do aparente do estático e recuperando o processo histórico específico chegarse ao essencial ao concreto E isto só é possível através de categorias que nos levam gradati vamente a análises mais profundas visando captar a totalidade A ciência vista como produto histórico também se relativiza como produção humana e portanto perde sua condição de neutra1 pois é sempre fruto de homens situados social e histo ricamente que determinam o prisma pelo qual os fatos são enfocados ou seja as necessidades e valores privilegiados por um grupo social naquele momento Na medida em que os fatos estudados implicam uma inserção histórica não importa quais as especificidades analisadas o conhe cimento necessariamente se processa de forma acumulativa tanto quando realizado num mesmo momento como em diferentes épocas o acumulativo decorre da análise histórica que nos leva ao conhecimento do indivíduo como manifestação de uma totalidade Estes pressupostos determinam procedimentos metodológicos para a Psicologia Social fundamentais para se atingir o concreto ou seja o indivíduo como manifestação da totalidade históricosoçial que vão desde de qual empírico devemos partir até que dimensão interdisciplinar deva ser abarcada Se considerarmos como Leontiev atividade consciência e personalidade as categorias fundamentais de análise do fato psico lógico temos como ponto de partida essencial a linguagem o discurso produzido pelo indivíduo que transmite a representação que ele tem do mundo em que vive ou seja a sua realidade subjetiva determinada e determinante de seus comportamentos e atividades Assim para se detectar o ideológico eou o nível de cons ciência partimos do discurso individual produzido na interação com o pesquisador e que deverá ser analisado através de categorias que emeijam do próprio discurso e que o esgotem em todos os significa 46 S1LVJAT M LANE dos possíveis tanto em relação ao que foi dito como ao não dito Várias técnicas têm sido utilizadas para se chegar às catego rias fundamentais de um discurso desde a AAD de Pecheux até às menos estruturadas que combinam o dito e o nãodito ou aquelas que analisam as relações de subordinação complementaridade etc seja gramatical ou implicitamente presentes no discurso O importante é o caráter a posteriori das categorias que permite elaborar uma síntese precária que direciona análises mais amplas e profundas Com este procedimento o Problema é antes um ponto de partida do que de chegada podendo ser reformulado a cada nível de análise no confrônto com a ação do indivíduo e com as condições que cercam a produção do discurso Também como decorrência deste procedimento o problema referente a amostragem assume outra característica pois não se procura a generalização mas sim a especificidade dentro de uma totalidade e portanto os indivíduos estudados sào escolhidos em função de aspectos ou condições consideradas significativas e que muitas vezes não podem ser prédefinidas mas que emergem da própria análise que vem sendo feita Deste modo o pesquisar é também uma práxis se parte do empírico se analisa se teoriza se volta ao empírico e assim por diante se aprofundando gradativamente para se captar o processo no qual o empírico se insere Chegar ao concreto à totalidade é uma produção coletiva onde as lacunas apontadas pelas sínteses precá rias sào tão fundamentais quanto os conhecimentos desenvolvidos Outro aspecto de vital importância é a relação pesquisador pesquisado que neste processo deve ser considerada como uma relação inerente ao fato estudado sendo que o pesquisador é também objeto de estudo e análise tanto por ele próprio como pelo pesquisado Nesta perspectiva não é possível dissociálo pois ele também é parte material da realidade em estudo e quando a sua atuação a sua presença é analisada não o é em termos de evitar vieses ou de se atingir uma objetividade mas sim de captar a nâoneutralidade como manifestação de um processo que se está procurando compreender em toda a sua extensão Por outro lado a pesquisa em Psicologia Social lidando com seres humanos deverá ter sempre presente que o papel institucionalizado de pesquisador em nossa sociedade traz consigo o caráter de dominação e como tal reproduz a ideologia dominante se não quisermos elaborar conhe cimentos contaminados ideologicamente este fato deve merecer AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 47 uma atenção fundamental no planejamento de procedimento registros e análise do fato pesquisado Conhecer ideologia eou nível de consciência implica também o estudo das relações grupais que se processam desde a reprodução cristalizada de papéis e ctrnio tal da ideologia dominante até o questionamento das relações de dominação e das contradições por elas geradas Neste nível é necessária a análise das atividades desenvolvidas pelo grupo assim como o discurso produzido pelos seus membros O confronto entre o nivel do discurso e o nível da ação é essencial para se compreender o indivíduo seja enquanto reprodutor de ideologia como para análise de seu nível de cons ciência Neste momento a observação participante é fundamental e nossa experiência tem demonstrado que por menor que seja a parti cipação aparente do pesquisador ela ocorre com características decisivas que não podem ser desconsideradas no fato em estudo Concluindo podemos ressaltar alguns pontoschave para uma nova metodologia de pesquisa em Psicologia Social 1 as definições e çonççitos apriorísticos são dispensáveis quando não restritivos para a atividade de pesquisar 2 por outro lado categorias que nos remetem aos vários níveis de análise permitem chegar à materialidade do fato ao con creto que está sob o empírico aparente 3 a pesquisà como práxis1 implica necessariamente interven ção e acumulação de conhecimentos 4t as lacunas no conhecimento são tão importantes quanto o conhe cido se não mais pois são elas que permitirão aprofundar e rever as análises já realizadas Bibliografia Lane S T M O que é Psicologia Social Sâo Paulo Brasiliense 1981 Texier Jacques Gramsci Teórico de las Superestruturas México Edicio nes de Cultura Popular 1975 Uma Redefinição da Psicologia Social in Educação e Sociedade n 6 São Paulo Cortez jun 1980 Codo W A transformação do Comportamento em Mercadoria tese dou torado Leontiev A N Actividad Consciência y Personalidad Buenos Aires Ed Ciências dei Hombre 1978 O fazer e a consciência Wanderley Coào Lehninger em seu tratado de Bioquímica diferencia a matéria viva da matéria nãoviva entre outras características pelo fato de o organismo extrair e transformar a energia do seu meio ambiente em uma relação funcional ou seja a energia é retirada do meio para construir e manter a própria estrutura do organismo vivo Tomando suas palavras os organismos vivos são sistemas abertos pois trocam tanto energia como matéria com seu meio ambiente e ao fazerem isso transformam ambos A estruturação de um organismo vivo através da transfor mação de energia da matéria inanimada se dá necessariamente por uma relação entre ambos que se define com base na reciprocidade dupla relação que envolve a transformação da natureza à imagem e semelhança do organismo e condição sine qua fio o avesso ou seja a transformação do organismo à imagem e semelhança da natureza que o abriga Em outras palavras ocorre uma relação de dupla apropriação a existência mesma do organismo vivo implica apropriação da natureza que exige condiciona a apropriação do organismo pela natureza Assim uma ameba ao estender seus pseudópodes e se apropriar de uma partícula que a alimentará tem de conformarse à estrutura da partícula para conformála a si mesma de certa maneira a ameba é o seu alimento ao representar sua apropriação Em um organismo mais complexo as relações tendem a ficar mais claras Um rato ao se alimentar de um queijo o ratifica com ou sem aspas ou seja ratificar tomar o queijo queijo e ratificar tomar o queijo rato No primeiro sentido porque o queijo também é além de seu significado fisico moléculas estruturadas de uma determinada forma o alimento energizador do comportamento do rato No segundo sentido o rato ratifica o queijo ao transformar o queijo em si mesmo Pelo avesso o rato se queijifica no sentido físico do termo compõese do queijo transformado do sentido biológico do termo sua saliva seu estômago e intestino se estruturam a partir do alimento que devem digerir e também no sentido psicológico sua percepção faro olhos e ouvidos aprendem graças ao queijo a distinguilo do nãoqueijo na natureza A sobrevivência de um organismo depende em última ins tância da capacidade física biológica e psicológica de transformar o meio à sua imagem e semelhança e portanto de autotransformarse à imagem e semelhança do meio Estamos portanto no plano da História Natural e eviden temente as ciências se dividem enquanto recortam esta ou aquela face deste mesmo fenômeno básico Assim a genética toma para si a compreensão da transfor mação da espécie pelo meio durante as gerações a biologia celular estuda as múltiplas relações entre célula e meio externo A Psicologia enquanto nos interessa mais de perto se preocupa com os mecanismos de sobrevivência do organismo em termos de percepção aprendizagem motivação etc1 Em outras palavras conhecendo exatamente como um animal sobrevive muito saberemos sobre como se comportará aí está a etologia que não nos deixa mentir Mesmo no limite da Psicologia animal já se recupera a espe cificidade desta ciência em relação às suas primas No plano bioquímico ou genético em quase todo o universo da biologia o cientista tem a benesse de poder lidar com um fenômeno discreto enquanto que na Psicologia nos deparamos com a dificuldade de se tratar de um fenômeno contínuo Assim apesar de conhecer o movimento entre a célula e o seu meio é possível estudála como unidade relativamente discreta ou seja tendo claros os limites que distinguem a célula da nocélula No caso da Psicologia o objeto AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 49 1 É ôbvk que um animal não apenas come também foge procria etc em cada uma das atividades a relaçáo é a mesma utilizamos apenas a alimentaço neste contexto eomente como um exemplo 50 WANDERLEY CODO mesmo de estudo é a relação organismomeio o exercício da Psicologia não consiste em considerar como variáveis intervenientes o meio ambiente concreto e buscar através da introspecção a consciência humana em sua dimensão pura Como já tentaram alguns cientistas nem consideram o indivíduo como uma tabula rasa na qual o meio escreve sua história como também já se disse oobjeto da Psicologia consiste em estudar a atividade do organismo Ou como diz Leontiev já se referindo a seres humanos na própria organização corporal dos indivíduos está contida a necessidade de entrar em uma relação ativa com o mundo exterior para existir devem atuar ao influir sobre o mundo exterior o modificam com isso se modificam também a si mesmos Por isso o que os homens são está determinado por sua atividade à qual está condicionada pelo nível já alcançado no desenvolvimento de seus meios e formas de organização Tomemos então o homem e vejamos como se dá esta dupla relação organismomeio Ocorre no homem o mesmo fenômeno que ocorre com os animais Sim e não ao mesmo tempo é a respota Sim porque o Homem também tem sua história natural também é o bife que fareja e deglute ou pretende no almoço Não porque acoplase a esta já complexa relação a natureza essencialmente social do Homem O que significa isto O Homem produz sua própria existência portanto produz a si mesmo para tanto se relaciona com os outros portanto produz e é produzido pelo outro Portanto a dupla relação apontada atrás entre organismo e meio se dá mediada pela dupla relação consigo mesmo Ao comer um tomate por exemplo o homem entra em relação de dupla apropriação com todo o planeta e com toda a história da Humanidade literalmente Declinemos a afirmação acima pois ela nos interessa parti cularmente O homem nüo encontra o tomate pronto na natureza tem de plantálo Até aqui nada de novo pois a aranha produz sua teia a diferença ê que o ser humano nâo sabe plantar antes de nascer precisa aprender Enquanto a aranha para construir a teia tem uma tarefa pela frente o homem tem um problema que depende de uma AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 51 técnica e de um projeto Ora a aprendizagem da técnica c o projeto pressupõem o outro Ém outras palavras a técnica pressupõe uma divisão de trabalho tanto longitudinal quantõ transversal Transversalmente o homem se divide para produzir por exemplo uns espantam a caça enquanto outros a matam Longitudinalmente cada geração aperfeiçoa parte da técnica que o homem aprende num dado momento Foi assim da roca de fiar passando pela mulejenny até as fiadoras modernas No cerne desta questão está o problema da divisão de tra balho E é esta divisão de trabalho que permeia a linguagem os instrumentos o pensamento a consciência Passemos em revista a atividade produtiva do homem procu raremos demonstrar como o uso da atividade enquanto categoria central da Psicologia pode ser revelador Tomar o fruto da terra leválo à boca deglutir Como já vimos a mera atividade de apropriação é prenhe de uma relação dialética homemnatureza 1 o fruto se transforma se conforma à imagem e semelhança do homem e 2 ao mesmo tempo o homem se transforma se conforma â imagem e semelhança do fruto de que se apropriou Em 1 o fruto se toma o homem no sentido físico moléculas que se incorporam e passam a compor nosso corpo biológico energia que se transforma pelas e para as células do homem e psicológico o fruto passa a significar um fruto para o homem se incorpora a ele um significado humano Em 2 o homem se toma o fruto pelas mesmas razões físicas e biológicas do ponto de vista psicológico o fruto ensina o homem a distinguilo do nàofmto nossas sensações através da visão porém são estruturadas pelo fruto Além das sensações a apropriação da natureza produz a ação do homem estabelece relações de contingência entre os compor tamentos dispõe o reforçamento dispõe sobre o gesto do braço mãos boca e sobretudo o fruto fornece um significado ao gesto incorpora a ele um telos uma finalidade Sensações ação e também percepção A natureza apropriada liga o olho à boca ao nariz Plantar a semente zelar pela planta colher o fruto Uma das prímeiras màquinas de fiar 52 WANDERLEY CODO Aqui permanece a mesma relação dialética não custa repeti la o homem é transformado pela natureza enquanto se transforma à imagem e semelhança da natureza mas em um nível qualita tivamente superior2 Ao plantar o homem modifica para si o meio externo já não se pode falar de natureza no sentido de contraposição ao Humano o mundo ao redor toma a face do Homem é colocado a seu serviço submetido às suas necessidades portanto à sua vontade Neste sentido a dupla relação HomemNatureza apontada acima ganha um elo novo o homem transforma a natureza que o transforma Mas plantar pressupõe também o fruto presenteausente ou sejaP o projeto do fruto é preciso que o fruto esteja presente na consciência do Homem embora ausente da natureza O fruto pelo Homem se torna transcendente se eterniza na atividade do plantio O aso de instrumentos de trabalho O que é o instrumento de trabalho Marx nos diz 0 meio de trabalho é uma coisa ou um conjunto de coisas que o homem interpõe entre ele e o objeto do seu trabalho como condutor da sua ação Portanto o instrumento tem um caráter mediador na medida em que funciona concretamente como extensão do homem am pliando ou precisando seus gestos o eterniza Um machado por exemplo é o ato do homem objetivado perene imortalizado em uma palavra transcendente ao próprio Homem Neste sentido o instrumento de trabalho é um mediador entre o Homem e a sua transcendência em outras palavras a sua História Um outro caráter mediador se ampara no fato de que embora filho legítimo da ação o instrumento de trabalho pressupõe a ação não realizada ou seja um projeto Assim o instrumento trans forma através do trabalho a reflexão em ação materializada e como se viu transcendente Os meios de trabalho exercem amediação entre a reflexão e a História 2 A análise do plantar pressupõe o uso de instrumentos e conco mitantemente da linguagem aqui por questões didáticas apenas vamos separar os processos AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PICOLOGIA SOCIAL 53 Fabricado pelo Homem como mediador entre ele e a natureza meio de trabalho o instrumento se amolda ao seu criador É a natureza hominizada e meio de homínização da natureza ao mesmo tempo Criado pelo Homem à sua imagem e semelhança o eterniza transforma a atividade individual em História a criação cria o criador Ação e meio de ação sintetizadas e eternizadas a criação se liberta do criador o machado que eu fiz ao mesmo tempo que imortaliza meu gesto recria o gesto do outro à minha imagem e semelhança o machado reapresenta ao Homem individual a História da Humanidade conforma e insere o indivíduo à sua própria espécie ao contrário o instrumento viabiliza a intervenção do Homem em toda a sua História pela via da atividade o machado aperfeiçoado pelo meu sucessor transforma o homem individual em ser genérico a evolução do seu gesto traz em si a revolução da Humanidade Através do instrumento de trabalho o homem trans forma a história dos homens e é transformado por ela O instrumento é produtor e produto da abstração O conceito duro ou mole não emana diretamente da natureza como pode haver na consciência humana algo que não se encontra no mundo O conceito de duro é reflexo de uma interação entre dois objetos de densidades diferentes Ao bater com o machado em uma árvore o homem interage com os dois elementos em questão e principalmente com a relação entre eles a mediação do gesto realizado pelo instrumento informa uma dimensão do real dantes insuspeita arma o homem com a possibilidade de interpretação do mundo Isto é verdade para qualquer abstração qualquer pensa mento Ocorre que amiúde o instrumento de intervenção do homem no universo é a própria palavra que reorganiza relações dos homens entre si funcionando prioritariamente como um instru mento de intervenção no outro ou do outro em mim3 Embora filho legítimo da ação a construção do instrumento de trabalho pressupõe a ação não realizada ou seja um produto de ação o instrumento de trabalho engendra a reflexão e a materializa Em outras palavras o uso de meios de trabalho realiza a volta 3 NSo se fará aqui uma anállsq da linguagem apenas se ressalta o seu papel como instrumento 54 WÁNDERLEY CODO completa promove a consciência do qual è produto produz a cons ciência que promove Em suma o instrumento de trabalho transforma o homem de animal em ser transcendente através da ação mediatizada o homem transcende a si mesmo em direção ao seu projeto portanto em relação ao outro portanto em direção à História O homem e o outro Evidentemente o trabalho enquanto modo de produção de sua própria existência exigiu do homem a convivência em grupos o desenvolvimento da linguagem e a divisão de trabalho Os processos grupais e a linguagem estão formulados em outros momentos deste livro Posso então me poupar desta análise e abordar alguns aspectos da divisão de trabalho que considero relevantes para a análise em questão A divisão de trabalho une e separa une porque separa separa porque une os homçns ao mesmo tempo Se a caça é grande ç perigosa o suficiente para que o homem não possa abatêla sozinho e se organizam grupos encarregados de abatêla e outros encarregados de espantála esta divisão de trabalho tende por uma questão de competência a se cristalizar o que implica que percepções abs trações e também consciências diferentes da realidade se estabe leçam em homens diferentes por outro làdo é igualmente obri gatório que os mesmos homens separados pelas atividades diferenciadas se unam em um plano superior que é o plano do projeto e dos objetivos da atividade em pauta Assim é preciso que os homens estejam ligados entre si pelo produto do seu trabalho atividade objetiva para que possam sobreviver A caça não seria abatida se cada homem não cedesse a seus instintos imediatos e comungasse do projeto do grupo Como se verá adiante esta dialética uniãoseparação é fundamental para o processo de conscientização assim como a relação homemhomem homemnatureza que analisaremos a seguir Já repetimos ad nauseam que é a relação prática do homem com a natureza sua atividade que o constitui No trabalho produtivo este caráter de determinação da prática aparece de forma cristalina é a caça que instrui ao caçador a força do golpe AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 33 Ao mesmo tempo que a atividade eminentemente prática empurra o homem para o contato visàvis a natureza seu modo de ser social e histórico portanto transcendente o obriga a uma relação com o outro que implica afastamento ressaltese as aspas com a natureza Vejamos A construção de instrumentos imbricada com a linguagem permite que o engenho a criatividade a competência de um trabalhador em particular transcenda a si mesmo e passe a pertencer a toda a humanidde A rigor basta que um homem em uma tribo primitiva invente o arco e a flecha para que esta atividade objetivada no produto de sua arte passe a pertencer a toda a coletividade imprimindo sua existência no existir do outro que por sua vez o reformula até atingirmos todos nós o estágio da bazuca por exemplo Percorrendo caminho inverso o ato de um homem particular com um machado particular ao bater em uma árvore é permeado de toda a história da humanidade até então Aqui a dupla apropriação homemmeio transformar e ser transformado pela natureza se funde e tem como requisito a dupla apropriação homemhomeni transformar e ser transformado pelo outro O machado é uma via de consciência do mundo e do social porque é o homem genérico toda a história toda a sociedade representada quanto mais técnica se aperfeiçoa mais o meio ambiente natural do homem se torna humano Hoje encontramos operários lidando com máquinas feitas por máquinas per omnia produzindo a vida de pessoas através da eletricidade que não sabemos ao certo em qual momento histórico foi produzida pela primeira vez Assim se promove um afastamento aparente que se concre tiza por um poder cada vez maior sobre a natureza pela via social vale dizer histórica A minha atividade mediada pela atividade do outro pela via da linguagem e do instrumento de trabalho é exatamente o que permite que a atividade se reapresente a um sujeito particular em um reflexo da realidade concreta destacado das relações que existem entre ela e o sujeito ou seja um reflexo que distingue sujeito ou seja um reflexo que distingue as propriedades objetivas estáveis da Realidade Estamos falando do fenômeno da consciência humana Marx nos revela que a linguagem é a consciência prática Ou seja é a atividade dos homens representada a um sujeito individual 56 WANDERLEY CODO portanto passível de ser reproduzida na ausência do mundo objetivo imediáto ao mesmo tempo que permanece fiel a ele Vimos que a atividade produtiva humana pela via do desenvolvimento imbricado da linguagem dos instrumentos de trabalho e da divisão de trabalho produz a consciência através da dialética homemnatureza homemhomem que se expressa por uma tensão perene entre o indivíduo como sujeito individual e coletivo do seu próprio destino contradição esta que só poderá evoluir pela apropriação coletiva do destino individual Talvez um exemplo possa deixar as coisas mais claras Tomemos um operário que ingressa hoje em uma fábrica encontra ali já construído um modo de produção coletivizado altamente evoluído que o insere em toda a história da humanidade cada produto realizado cada gesto reapropria e transforma o mundo e os homens Ao apertar um botão que aciona uma máquina nosso operário é invadido pela história e tomase seu portador se insere em sua classe e na luta de sua classe na medida em que se organiza coletivamente Ao mesmo tempo encontra o produto do trabalho rompido divorciado do produtor O produto do seu trabalho se lhe apresenta como ser estranho independente do produtor nos diz Marx o trabalho é alienado por isto dividido entre trabalho intelectual e trabalho braçal ou seja o gesto é expropriado da criação O trabalho coletivizado e as relações de trabalho competitivas o irmão do qual o trabalho depende e pelo qual o produto se cria reapresen tado como inimigo O operário viverá entre estes dois fogos o tempo todo a apropriação de si pelo mundo e a reapropriação do mundo O momento da greve por exemplo ao promover a ruptura da produção alienada mesmo que parcialmente rompe também com o isolamento de um indivíduo para com o outro A nãoprodução produz um produtor ativo de si do outro do mundo Pela luta via ação recompondo recriando a atividade até o momento em que pelo outro o homem reencontra a si mesmo até que o existir coletivo reencontre o sujeito individual AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL S7 Bibliografia Lehninger A L Bioquímica trad da 2f ed americana São Paulo Edgard Blücher 1976 Leontiev A N 4ctívúfad ctwcíencw personataotf Buenos Aires Ed Ciências dei Hombre 1978 0 Desenvobimento do Psiquismo Lisboa Livros Horizonte Ltda 1978 Marx K Ei Capitait Fondo de Cultura Econômica 3 vois 4f ed México Buenos Aires 1966 Marx K e Engels F Diaiétinp da Natureza in Obras Escogidas Ed Progreso Moscú 3 vol URSS 1978 Manuscritos Econômicos e Filosóficas in Obras Escogidas idem ibidem A Ideologia Alemä in Obras Escogidas idem ibidem Contribuição à Critica da Economia Política in Obras Escogidas idem ibidem Identidade Antonio da Costa Ciampa Uma pergunta aparentemente simples Quem é você É uma pergunta que freqüentemente nos fazem e que às vezes fazemos a nós mesmos Quem sou eu Quando esta pergunta surge podemos dizer que estamos pesquisando nossa identidade Como em qualquer pesquisa esta mos em busca de respostas de conhecimento Por se tratar de uma pergunta feita a nosso respeito é fácil darmos uma resposta ou nao é Se é um conhecimento que buscamos a respeito de nós mesmos podemos supor que estamos em condições de fornecêlo Afinal se trata de dizer quem somos Experimente N5o continue lendo antes de responder a esta pergunta quem évocê Pronto Respondeu de forma a qualquer pessoa depois dè ouvir sua resposta poder afirmar que o conhece Sua resposta toma possível você se mostrar ao outro e ao mesmo tempo você se reconhecer de forma total e transparente de modo a não haver nenhuma dúvida nenhum segredo a seu respeito Sua resposta produz um conheci mento que o toma perfeitamente previsível Ninguém nem mesmo você depois de conhecer essa resposta terá dúvida sobre como você vai agir pensar sentir em qualquer situação que surja AS CATEGORIAS FUNDAMENTA IS DA PSICOLOGIA SOCIAL 59 Acredito que se você foi sincero estas questões todas podem ter levantado algumas duvidas Será tão fácil dizer quem somos Se como estou supondo não é tão fácil como pode parecer a primeira vista podemos admitir que este é um problema digno de uma pesquisa científica e não só por causa disso Psicólogos sociólogos antropólogos os mais diversos cientistas sociais têm estudado a questão da identidade filósofos também Não só pela dificuldade mas também pela importância que esta questão apre senta outros especialistas têm se envolvido com ela e não só cientis tas e filósofos nos tribunais juizes ptomotores advogados peritos etc na administração tanto pública como privada na polícia na escola no supermercado etc enfim em praticamente todas as situações da vida cotidiana a questão da identidade aparece de uma forma ou de outra e também fora do cotidiano quem era mesmo aquela personagem com quem sonhei ontem Você já reparou como as novelas de TV exploram esse filão Ê frequente uma personagem viver um grande drama porque de repente des cobre estar enganada a respeito da identidade de outra personagem é seu pai sua mâe seu filho sua irmã etc e não quem pensava que fosse conseqüentemente descobre ao mesmo tempo que também estava enganado a respeito da própria identidade afinal se esse desconhecido é meu pai então eu sou seu filho e não de quem pensava a identidade do outro reflete na minha e a minha na dele afinal ele só é meu pai porque eu sou filho dele Outro exemplo nas histórias policiais quase sempre o enredo é todo montado para que se descubra a identidade do criminoso não só no sentido de saber quem cometeu o crime mas também como se tomou criminoso por vezes a história se desenvolve de tal modo que nos os espectaàores ou leitores sabemos quem é o criminoso mas as demais personagens da história não sabem isto nos levanta uma outra questão pelo fato de os outros não saberem ele deixa de ser criminoso Que é ser criminoso1 É cometer um ato criminoso Pense no exemplo digamos fictício de poderosos cidadãos que cometem atos que você considera criminosos mas não são perse guidos pela polícia e pela justiça Podemos falar numa identidade oculta Pense numa história de espionagem a identidade do espião exatamente se caracteriza como uma identidade oculta peio menos para os espionados sendo que suas aventuras prati camente terminam ou deixam de ser atraentes quando essa identidade é revelada Até os superheróis têm sua identidade secreta aquilo de que o SuperHomem tem mais medo é que 60 ANTONIO DA COSTA C1AMPA descubram quem eie é na vida cotidiana como muitos de nós que escondemos algum aspecto de nossa identidade e morremos de medo que os outros descubram esse nosso lado oculto A literatura o cinema a TV as histórias em quadrinhos as artes num sentido bem amplo também lidam com o problema da identidade e podem nos ensinar muito a respeito Voltemos a nosso ponto de partida Se como afirmamos estamos falando de nossa identidade quando respondemos à pergunta quem sou eu a primeira observação a ser feita é que nossa identidade se mostra como a descrição de uma personagem como em uma novela de TVt cuja vida cuja biografia aparece numa narrativa uma história com enredo personagens cenários etc ou seja como personagem que surge num discurso nossa resposta nossa história Ora qualquer discurso qualquer história costuma ter um autor que constrói a personagem Cabe perguntar então você é a personagem do seu discurso ou o autor que cria essa personagem ao fazer o discurso Se você é a personagem de uma história quem é o autor dessa história Se nas histórias da vida real não existe o autor da história será que não são todas as personagens que montam a história Todos nós eu você as pessoas com quem convivemos somos as personagens de uma história que nós mesmos criamos fazendonos autores e personagens ao mesmo tempo Com esta afirmação já antecipamos o que se poderia dizer caso nos consideremos o autor que cria nossa personagem o autor mesmo é personagem da história Na verdade assim poderíamos afirmar que há uma autoria coletiva da história aquele que costumamos designar como autor seria dessa forma um narrador um contador de his tória Com isso podemos perceber outro fato curioso nao só a identidade de uma personagem constituí a de outra e viceversa o pai do filho e o filho do pai como também a identidade das personagens constitui a do autor tanto quanto a do autor constitui a das personagens A trama parece complicarse pois é sabido que muitas vezes nos escondemos naquilo que falamos o autor se oculta por trás da personagem Mas da mesma forma como um autor acaba se revelando através de seus personagens é muito freqüente nos revelarmos através daquilo que ocultamos Somos ocultação e reve lação AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL W Até agora falamos das pessoas como se elas fossem de uma determinada forma e não se modificassem o que é falso Basta observarmos nossos próximos basta nos observarmos No mínimo as pessoas ficam mais velhas a criança se torra adulto o adulto ancião No máximo o que seria no máximo Não reconheço mais Fulano é outra pessoa1 Há mudanças mais ou menos previsíveis mais ou menos desejáveis mais ou menos controláveis mais ou menos mudanças O estudante que se torna um profissional depois de formado representa uma mudinça bem mais previsível do que a do jovem nosso amigo de infância que se torna um criminoso ê lógico que implicitamente estamos também considerando certas condições de classe social numa outra situação social a previsi bilidade pode ser invertida infelizmente Outro exemplo a moci nha que se torna donadecasa mãe de filhos etc vive uma mudança mais desejável do que a daquela que se torna prostituta novamente há algo implícito nesse julgamento valores etc O desempregado que se torna alcoólatra ou criminoso etc sofre uma mudança provavelmente menos controlável do que a do escriturário que se toma gerente como você consideraria aqui a questão de classe de valores etc Há mudanças e mudanças quem muda mais o heterossexual que se torna homossexual ou o adepto de uma religião que se torna ateu O alienado politicamente que se torna revolucionário ou o civil que se torna militar Nós nos tornamos algo que não éramos ou nos tomamos algo que já éramos e estava como que embutido dentro de nós Parece que quando se trata de algo positivamente valorizado a tendência nossa é afirmar que estava embutido em nós sempre tive vocação para ser médico quando não desejável freqüentemente estava embutido1 nos outros sempre achei que ele tinha propensão para o crime que ele tinha um jeito de bicha Q u e dizer da jovem que se tema donadecasa E do religioso que se torna ateu O escriturário que se torna gerente está realizando uma tendência uma vocação1 Podemos imaginar as mais diversas combinações para con figurar uma identidade como uma totalidade Uma totalidade contraditória múltipla e mutável no entanto una Por mais contraditório por mais mutável que seja sei que sou eu que sou ussitn ou seja sou uma unidade de contrários sou uno na multipli cidade e na mudança Quando nossa unidade é percebida como ameaçada quando corremos o risco de não saber quem somos quando nos sentimos 62 ANTONIO DA COSTA CIAMPA desagregando temos maus pressentimentos temos o pressenti mento de que vamos enlouquecer aprendemos a ter horror de sermds outro1 quando queremos ofender alguém cantarolamos um refrão bastan te conhecido Fulano não é mais aquele Z1 não é à to a que o tipo clássico de piada de louco envolve alguém que diz que é quem não ê Napoleão Jesus Cristo etc nestes casos é fácil verificar que ele nào é quem diz que é Porém será sempre fácil saber que alguém é ou não é quem diz que é Num certo sentido podese considerar a chamada doença mental como um problema de identidade o louco é nosso outro tanto quanto o curado é o outro do louco Não afirma o dito popular que de médico e de louco cada um tem um pouco Desde o início estamos jogando perguntas em cima de per guntas provocativamente para uma questão que parecia tão simples Talvez valesse a pena segurar essas duvidas e examinar a questão de forma menos interrogativa Vamos tentar separar dois tipos de problema os de natureza empírica prática e os de natureza teórica e filosófica No princípio era o verbo Quando queremos conhecer a identidade de alguém quando nosso objetivo é saber quem alguém é nossa dificuldade consiste apenas em obter as informações necessárias O pai que deseja saber quem são os amigos que andam com seu filho a mãe que procura conhecer o namorado da filha o empregador que seleciona um candidato para trabalhar o comerciante lojista ou banqueiro que procura se assegurar da credibilidade de um cliente a quem vai fazer um empréstimo todos eles procuram tomar informações através dos mais variados meios e formas a natureza das informações pode variar mas todas têm em comum o fato de permitirem um conheci mento da identidade da pessoa a respeito de quem as informações são tomadas Assim obter as informações necessárias é uma questão prá tica quais as informações significativas quais as fontes confiáveis quem dá as referências de que forma obter as informações como interpretar e analisar essas informações etc Enfim o mesmo procedimento que um cientista adota ao fazer uma pesquisa empí rica talvez sem a sofisticação habitual numa pesquisa científica A5 CATEGORIAS FUNDAMENTAIS D PSICOLOGIA SOCIAL 3 Aqui nào pròblematizamos o resultado obtido não compli camos a questão supomos que as informações nos revelam a reali dade Essa crença é a mesma que guia nossas ações mais corri queiras da vida cotidiana Nossos rituais sociais escondem a dificuldade implícita nessa maneira de pensar e de agir é fácil imaginar como se tornaria difícil conviver com outras pessoas se nào houvesse a suposição compartilhada por todoJnós de que normal mente um indivíduo é a pessoa que diz que é e que os outros dizem que é Pense numa apresentação social um amigo chega com um desconhecido e diz Este é Fulano meu colega e após você o cumprimentar o novo conhecido diz Muito prazer sou Fulano ou então Sou Fulano a seu dispor etc Se as informações são verdadeiras então a realidade está conhecida pelo menos agimos como se estivesse depois de uma apresentação dizemos que o apresentado é nosso conhecido11 Como são fornecidas essas informações A forma mais simples habitual e inicial é fornecer um nome um substantivo se olharmos o dicionário veremos que substantivo é a palavra que designa o ser que nomçia o ser Nós nos identificamos com nosso nome que nos identifica num conjunto de outros seres que indica nossa singularidade nosso nome próprio Falamos chamome Fulano sem prestar muita atenção ao fato de que antes que eu me chamasse Fulano eu era chamado Fulano ou seja nós nos chamamos da forma como os outros nos chamam Nós nos tornamos nosso nome pense em você mesmo com outro nome nào como outra pessoa mas você mesmo com outro nome há um sentimento de estranheza parece que não encaixa Geralmente as pessoas se sentem ofendidas quando por qualquer motivo tro camos seu nome é sinal de amizade e respeito nào esquecer nem confundir o nome das pessoas que prezamos A não ser em casos excepcionais o primeiro grupo social do qual fazemos parte é a família exatamente quem nos dá nosso nome Nosso primeiro nome prenome nos diferencia de nossos familiares enquanto o último sobrenome nos iguala a eles Diferença e igualdade É uma primeira noção de identidade Sucessivamente vamos nos diferenciando e nos igualando conforme os vários grupos sociais de que fazemos parte brasileiro igual a outros brasileiros diferente dos estrangeiros nós os brasileiros somos enquanto os estrangeiros São homem ou niulher os homens são enquanto as mulheres sâo1 Os 64 ANTONIO DA COSTA C1AMPA exemplos podem se multiplicar indefinidamente os corintianos são enquanto os torcedores dos outros clubes so O conhecimento de si é dado pelo reconhecimento reciproco dos indivíduos identificados através de um determinado grupo social que existe objetivamente com sua história suas tradições suas normas seus interesses etc Um grupo pode existir objetivamente por exemplo uma classe socil mas seus componentes podem não se identificar como seus membros e nem se reconhecerem reciprocamente Ê fácil parece perceber as conseqüências de tal fato seja para o indivíduo seja para o grupo social Mas se é verdade que minha identidade é constituída pelos diversos grupos de que faço parte esta constatação pode nos levar a um erro qual seja o de pensar que os substantivos com os quais nos descrevemos sou brasileiro sou homem etc expressam ou indicam uma substância brasilidade masculinidade etc que nos tornaria um sujeito imutável idêntico a simesmo manifestação daquela substância Para compreendermos melhor a idéia de ser a identidade constituída pelos grupos de que fazemos parte fazse necessário refletirmos como um grupo existe objetivamente através das relações que estabelecem seus membros entre si e com o meto onde vivem isto é pela sua prática pelo seu agir num sentido amplot podemos dizer pelo seu trabalho agir trabalhar fazer pensar sentir etc já não mais substantivo mas verbo Usamos tanto o substantivo que esquecemos do fato original do agir Ev comeu a maçã Prometeu roubou o fogo dos céus Oxali com seu cajado separou o mundo dos homens do mundo dos deuses Como devemos dizer o pecador peca o desobediente desobedece o trabalhador trabalha Ao dizer assim estamos pressupondo antes da ação do fazer uma identidade de pecador de desobediente de trabalhador etc contudo é pelo agir pelo fazer que alguém se torna algo ao pecar pecador ao desobedecer desobediente ao trabalhar traba lhador Estamos constatando talvez uma obviedade nós somos nossas ações nós nos fazemos pela prática a não ser por gozação você chamaria trabalhador alguém que não trabalhasse essa obviedade que nos coloca frente a um complicadíssimo problema teórico Até aqui estávamos tratando a identidade como um dado1 a ser pesquisado como um produto preexistente a ser conhecido deixando de lado a questão fundamental de saber como se dà esse dado como se produz esse produto A resposta à pergunta quem sou eu é uma representação da identidade Então tomase necessário partir da representação como um produto para analisar o próprio processo de produção Uma questão complicada O que é identidade Já vimos que nos satisfazer com a concepção de que se trata da resposta dada à pergunta quem sou eu é pouco é insatisfatório Ela capta o aspecto representacional da noção de identidade enquanto produto mas deixa de lado seus aspectos constitutivo de produção bem como as implicações recíprocas destes dois aspectos Mesmo assim nosso ponto de partida poderá ser a própria representação considerandoa também como processo de produção de tal forma que a identidade passe a ser entendida como o próprio processo de identificação Dizer que a identidade de uma pessoa é um fenômeno social e não natural é aceitável pela grande maioria dos cientistas sociais Exatamente isso nos permitirá caminhar Com efeito se esta belecermos uma distinção entre o objeto de nossa representação e a sua representação veremos que ambos se apresentam como fenô menos sociais conseqüentemente como objetos sem características de permanência não sendo independentes um do outro Não podemos isolar de um lado todo um conjunto de elementos biológicos psicológicos sociais etc que podem caracterizar um indivíduo identificandoo e de outro lado a representação desse indivíduo como uma duplicação mental ou simbólica que expressaria a sua identidade Isso porque há como que uma interpenetração desses dois aspectos de tal forma que a individualidade dada já pressupõe um processo anterior de repre sentação que faz parte da constituição do indivíduo representado Por exemplo antes de nascer o nascituro já é representado como filho de alguém e essa representação prévia o constitui efetivamente objetivamente como filho membro de uma determinada famí lia posteriormente essa representação é assimilada pelo indivíduo íc tal forma que seu processo interno de representação é incor porado na sua objetividade social como filho daquela família AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 69 66 ANTONIO DA COSTA CIAMPA É verdade que não basta a representação prévia O nascituro uma vez nascido constituirseá como filho na medida em que as relações nas quais esteja envolvido concretamente confirmem essa representação através de comportamentos que reforcem sua conduta como filho e assim por diante Temos de considerar também esse aspecto operativo e não só o representacional Contudo é na medida em que é pressuposta a identificação da criança como filho fe dos adultos em questão como pais que os comportamentos vão ocorrer caracterizando a relação paterno filial Desta forma a identidade do filho se de um lado é conseqüência das relações que se dão de outro com anterioridade é uma condição dessas relações Ou seja é pressuposta uma identidade queé reposta a cada momento sob pena de esses objetos sociais filho pais família etc deixarem de existir objeti vamente ainda que possam sobreviver seus organismos físicos meros suportes que encarnam a objetividade do social Isto introduz uma complexidade que deve ser considerada aqui Uma vez que a identidade pressuposta é reposta ela é vista como dada e não como se dando num contínuo processo de identificação É como se uma vez identificada a pessoa a produção de sua identidade se esgotasse com o produto Na linguagem corrente dizemos eu sou filho dificilmente alguém dirá estou sendo filho Daí a expectativa generalizada de que alguém devè agir de acordo com o que é e conseqüentemente ser tratado como tal De certa forma reatualizamos através de rituais sociais uma iden tidade pressuposta que assim é reposta como algo já dado retirando em conseqüência o seu caráter de historicidade aproximandoa mais da noção de um mito que prescreve as condutas corretas reproduzindo o social O caráter temporal da identidade fica restrito a um momento originário quando nos tornamos algo por exemplo sou professor torneime professor e desde que essa identificação existe me é dada uma identidade de professor como uma posição assim como filho também Eu como ser social sou um serposto A posição de mim o eu serposto me identifica discri minandome como dotado de certos atributos que me dão uma identidade considerada formalmente como atemporal A reposiçâo da identidade deixa de ser vista como uma sucessão temporal AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 67 passando a ser vista como simples manifestação de um ser idêntico a simesmo na sua permanência e estabilidade A mesmice de mim é pressuposta como dada permanentemente e não como reposição de uma identidade que uma vez foi posta Vejamos um exemplo quando alguém é identificado como pai Podese responder que é quando nasce uma criança gerada por esse indivíduo esse fato contudo assim considerado ainda é um fato físico e ser pai é um fato social A paternidade tornase uni fenômeno social quando aquele evento físico é classificado como tal por ser considerado equivalente a outras paternidades prévias O pai se identifica e é identificado como tal por se encontrar na situação equivalente de outros pais t afinal ele também é filho de um pai Se ele é pai e a mesmice de si está assegurada sua identidade de pai está constituída permanen temente de fato ele se tornou pai e assim permanecerá enquanto reconhecer e for reconhecida essa identidade ou seja enquanto ela estiver sendo resposta cotidianamente Ora mas ao mesmo tempo ele também é filho esse outro que ele é é negado na sua posição como pai pois se ele permanecesse como filho a posição de seu filho estaria ameaçada já que a diferença não se estabeleceria Dessa forma cada posição minha me determina fazendo com que minha existência concreta seja a unidade da multiplicidade que se realiza pelo desenvolvimento dessas determinações Em cada momento de minha existência embora eu seja uma totalidade manifestase uma parte de mim como desdobramento das múltiplas determinações a que estou sujeito Quando estou írente a meu filho relacionome como pai com meu pai como filho e assim por diante Contudo meu filho não me vê apenas como pai nem meu pai apenas me vê como filho nem eu compareço frente aos outros apenas como portador de um único papel mas sim como o representante de mim com todas minhas determinações que me tornam um indivíduo concreto Desta forma estabelecese uma intrincada réde de representações que permeia todas as relações onde cada identidade reflete outra identidade desaparecendo qual quer possibilidade de se estabelecer um fundamento originário para cada uma delas Este jogo de reflexões múltiplas que estrutura as relações sociais é mantida pela atividade dos indivíduos de tal forma que é licito dizerse que as identidades no seu conjunto refletem a estrutura social ao mesmo tempo que reagem sobre ela conser vandoa ou a transformando 68 ANTONIO DA COSTA CIAMPA As atividades de indivíduos identificados são normatizadas tendo em vista manter a estrutura social vale dizer conservar as identidades produzidas paralisando o processo de identificação pela reposição de identidades pressupostas que um dia foram postas Assim a identidade que se constitui no produto de um permanente processo de identificação aparece como um dado e não como um darse constante que expressa o movimento do social Para prosseguirmos há necessidade de uma rápida digressão sobre o movimento do social ele é em última análise a História A História é a progressiva e contínua hominização do Homem a partir do momento que este diferenciandose do animal produz suas condições de existência produzindose a si mesmo conse qüentemente A História então como a entendemos é a história da autoprodução humana o que faz do Homem um ser de possibi lidades que compõem sua essência histórica Diferentes momentos históricos podem favorecer ou dificultar o desenvolvimento dessas possibilidades de humanização do Homem mas é certo que a continuidade desse desenvolvimento concretização constitui a substância do Homem o concreto que em si é possibilidade e pela contradição interna desenvolvese levando as diferenças a exis tirem para serem superadas aquela só deixará de existir se não mais existir nem História nem Humanidade Assim o Homem como espécie é dotado de uma substância quet embora não contida totalmente em cada indivíduo faz deste um participante dessa substância Qk que cada homem está enredado num determinado modo de apropriação da natureza no qual se configura o modo de suas relações com os demais homens Então eu como qualquer ser humano participo de uma substância humana que se realiza como história e como sociedade nunca como indivíduo isolado sempre como humanidade Nesse sentido embora não toda ela eu contenho uma infi nitude de humanidade o que me faz uma totalidade que se realiza materialmente de forma contingente ao tempo e ao espaço físicos e sociais de tal modo que cada instante de minha existência como indivíduo é um momento de minha concretização o que me torna parte daquela totalidade em que sou negado como totalidade sendo determinado como parte assim eu existo como negação de AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 9 mimmesmo ao mesmo tempo que o que estousendo sou eumesmo Em conseqüência sou o que estousendo uma parcela de minha humanidade isso me dá uma identidade que me nega naquilo que sou sem estarsendo a minha humanidade totai Essa identidade que surge como representação de meu estar sendo se converte num pressuposto de meu ser como totalidade o que formalmente transforma minha identidade concreta enten dida como um darse numa sucessão temporal em identidade abstrata num dado atemporal sempre presente entendida como identidade pressuposta reposta Isso ocorre porque compareço perante outrem como repre sentante de mimmesmo a partir dessa pressuposição de identidade que se encarna como uma parte de mimcomo totalidade Essa identidade pressuposta não é uma simples imagem mental de mimmesmot pois ela se configurou na relação com outrem que lanibém me identifica como idêntico a mimmesmo desse modo ao me objetificar e ser objetificado por outrem pelo caráter atemporal formalmente atribuído à minha identidade o que estou sendo como parte surge como encarnação da totalidade de mim seja para mim seja para outrem isso confunde o meu comparecimento frente a outrem em como representante de mim com a expressão da totalidade do meu ser de mim como representado Isto se dá porque cada comparecimento meu frente a outrem envolve representação num tríplice sentido 1 eu represento enquanto estou sendo o representante de mim com uma identidade pressuposta e dada fantasmagori camente como sempre idêntica 2 eu represento em conseqüência enquanto desempenho papéis decorrentes de minhas posições ocultando outras partes de mim não contidas na minha identidade pressuposta e reposta caso contrário eu nào sou o representante de mim 3 eu represento finalmente enquanto reponho no presente o que tenho sido enquanto reitero a apresentação de mim reapre sentado como o que estou sendo dado o caráter formalmente atemporal atribuído à minha identidade pressuposta que está sendo reposta encobrindo o verdadeiro caráter substancialmente temporal de minha identidade como uma sucessão do que estou sendo como devir Ao me representar no primeiro sentido representante de mim transformome num desigual de mim por representar no 70 ANTONIO DA COSTA CIAMPA segundo sentido desempenho de papéis um outro que sou eu mesmo o que estou sendo parcialmente como desdobramento de minhas múltiplas determinações e que me determina e por isso me nega impedindo que eu deixe de representar no terceiro sentido reapresentação para expressar o outro outro que também sou eu o que sou sem estar sendo que negaria a negação de mim indicada pelo representar no sentido antenor o segundo Ora essa expressão do outro outro que também sou eu consiste na alterizaçào da minha identidade na supressão de minha identidade pressuposta e no desenvolvimento de uma identidade posta como metamorfose constante em que toda huma nidade contida em mim pudesse se concretizar pela negação não representar no terceiro sentido do que me nega representar no segundo sentido de forma que eu possa como possibilidade e tendência representarme no primeiro sentido sempre como diferente de mim mesmo a fim de estar sendo mais plenamente Ou seja só posso comparecer no mundo frente a outrem efetivamente como representante do meu ser real quando ocorrer a negação da negação entendida como deixar de presentificar uma apresentação de mim que íoi cristalizada em momentos anteriores deixar de repor uma identidade pressuposta ser movimento ser processo ou para utilizar uma palavra mais sugestiva se bem que polêmica ser metamorfose Nem aitfo nem besta apenas homem A análise teórica feita até aqui inverte totalmente a noção tradicional que se tem de identidade ou seja o que é ê um ser é idêntico a ele mesmo isso decorreria da necessidade para o ser de ser o que é Mas o que quer dizer o ser ser o que é Vejamos um exemplo clássico uma semente já contém em si uma pequena plantinha a planta plenamente desenvolvida e seus frutos de onde sairão novas sementes Então ser semente é ser semente mas não só a mesma semente como também a plantinha a planta desenvolvida o fruto e a nova semente uma multiplicidade que naturalmente já está contida na semente e que se concretiza pela transformação em fruto ou seja pelo fazerse outro para então retornar a si mesmo outro outro São distintos momentos cuja AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 71 unidade constitui o concreto uma unidade múltipla como vimos e também contraditória pois a semente não permanece como se mente para ser o que é ela precisa ser negada morrer uma semente que permanecesse indefinidamente semente não seria semente Não germinaria não seria negada ela precisa deixar de ser semente para ser plenamente semente Então r o ser ser o que é implica o seu desenvolvimento concreto a superação dialética da contradição que opõe Dm e Outro fazendo devir um outro outro que é o Um que contém ambos E para o Homem o que é para o ser humano ser o que é Voltemos a uma afirmação feita anteriormente sobre o movi mento do social o qual constitui a História ela é a progressiva e contínua hominizaçâo do Homem a partir do momento em que este diferenciandose do animal produz suas condições de exis tência produzindose a si mesmo conseqüentemente Assim o existir humanamente não está garantido de antemão nem é uma mudança que se dá naturalmente mecanicamente exatamente porque o homem é histórico E afinal a História nem é um Deus que conduz os homens a seus desígnios secretos nem é um processo com um fim último isto seria reduzir o homem à c o n d iç ã o de coisa desconhecer a infinitude humana conceber os homens como seres que chegarão a realizar sua plenitude e nada mais pudessem viraser depois de um momento dado seria considerar que tudo o que foram são serâo e podem ser se esgotasse num absoluto que negasse a dialética do fenômeno humano é verdade que um fato ocorrido é irrecorrível definitivamente mas seus desdobramentos assím como seus significados são imprevisíveis e suas transformações infindáveis o que não significa que certas alternativas não possam ser impossíveis Uma alternativa impossível é o homem deixar de ser social e histórico ele não seria homem absolutamente Outra impossibili dade é deixar de ser também um animal conseqüentemente subme tido às condições dessa sua natureza orgânica tal como a planta à sua natureza vegetal Contudo e por isso foi grifada a palavra também não pode ser só animal dada sua natureza social e histórica Então nem anjo nem besta o homem é homem não como uma afirmação tautológica mas como uma afirmação da mate rialidade da contínua e progressiva hominizaçâo do homem De um lado portanto o homem não está limitado no seu viraser por um fim preestabelecido como a semente de outro 72 ANTONIO DA COSTA CÎAMPA não está liberado das condições históricas em que vive de modo que seu viraser fosse uma indeterminação absoluta A primeira constatação acima de que o viraser do homem não pode se confundir com o de uma semente deve servir para questionar toda e qualquer concepção fatalista mecamcista de um destino inexorável seja nas suas formas mais supersticiosas sou pobre porque Deus quer nasceu para ser criminoso etc seja çm formas mais sofisticadas de teorias pseudocientíficas por exemplo em certas versões de teorias de personalidade A segunda constatação de que o homem não está liberado de suas condições históricas nos coloca um problema e uma tarefa O problema consiste em que não é possível dissociar o estudo da identidade do indivíduo do da sociedade As possibilidades de diferentes configurações de identidade estão relacionadas com as diferentes configurações da ordem social Foge às finalidades e aos limites deste artigo analisar sob quais condições vivemos hoje em nossa sociedade brasileira e conseqüentemente como considerar as alternativas de identidade possíveis aqui e agora Fique claro contudo que uma análise geral como a que está sendo feita precisa ser traduzida para uma análise das circunstâncias concretas e específicas atuais é do contexto histórico e social em que o homem vive que decorrem suas determinações e conseqüentemente emer gem as possibilidades ou impossibilidades os modos e as alterna tivas de identidade O fato de vivermos sob o capitalismo e a complexidade crescente da sociedade moderna impedemnos de ser verdadeiramente sujeitos A tendência geral do capitalismo é constituir o homem como mero suporte do capitai que o determina negandoo enquanto homem já que se torna algo coisificado tornase trabalhadormercadoria e não trabalha autonomamente tomase capitalistapfopriedade do capital e não proprietário das coisas Recorrendo a uma metáfora já utilizada anteriormente o homem deixa de ser verbo para ser substantivo Esta constatação deve ser entendida como indicação de fato que resulta histori camente ligado a um determinado modo de produção e não como algo inerente à natureza humana Genericamente falando a questão da identidade se coloca de maneira diferente em diferentes sociedades précapitalistas capitalistas póscapitalistas etc há especificidades inclusive dentro de um mesmo modo de produção ligadas à ordem simbólica de cada sociedade há quase sempre a sobrevivência de formas arcaicas de identidade etc etc AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 73 Este problema assim formulado sugere um amplo programa dt pesquisas empíricas que certamente mostrariam como pano de fundo o verdadeiro problema de identidade do homem moderno a tllo entre o indivíduo e a sociedade que faz com que cada indivíduo não reconheça o outro como ser humano e conseqüen temente não se reconheça a si próprio como humano Isto está ftliim expresso num verso magistral de Mário de Andrade quando ala de São Paulo Ninguém chega a ser um nesta cidade11 Chegar a ser um ou o que é o mesmo ier uma metamorfose ambulante Se o problema que consideramos está na relação indivíduo e fticedade que tarefa daí decorre A realização de um projeto político A questão da identidade nos remete necessariamente a um projeto político Tentando explicar chegamos até aqui partindo da pergunta o que é para o ser humano ser o que ét1 buscamos uma resposta considerando sua natureza social e histórica expressa pela contí nua e progressiva hominização do homem1 Com isso procuramos esclarecer que o homem em si humanizável humanizase por si este o devir humano Desta forma o futuro se coloca como contínua e progressiva realização da humanidade porém como não é possível aprioris tieamente esgotar a definição do conteúdo de ser humano esta infindável tarefa se nos impõe de maneira inescapável Não se trata evidentemente de conceitos abstratos e definitivos que considerem o homem como pura consciência só como subjetividade este o risco idealista nem também de reduzilo à simples condição de coisa só como objetividade esta a armadilha materíalistamecanicista Tratase de considerar a superação dialética desse dualismo pela prâxis Tratase de não contemplar inerte e quieto a história Mas de se engajar em projetos de coexistência humana que possibilitem um sentido da história como realização de um porvir a ser feito com os outros Projetos que não se definam aprioristicamente por um modelo de sociedade e de homem que todos deveriam sofrer totali lariamente e identicamente mas projetos que possam tender 74 ANTONIO DA COSTA CIAMPA convergir ou concorrer para a transformação real de nossas condições de existência de modo que o verdadeiro sujeito humano venha à existência Qualquer tendência convergência ou concor rência que se arvore em Verdade em ação em expressão definitiva e acabada de um único projeto de transformação absolutizase tornandose antidialética antihistórica antihumana A formulação de tal política de uma política de identidade do Homem da nossa sociedade a realização de tais projetos para ser coerente com seus propósitos há de ser feita coletivamente e de forma democrática entendida aqui como forma racional A questão se coloca como uma questão prática e como tal deve ser enfrentada conscientemente por nós cada um de nós todos nós Acredito que além de outros dois fatores podem impedir esse engajamento consciente num projeto político O primeiro é ter uma atitude de um lado intelectual frente à questão da relação indivíduo e sociedade semelhante àquela que nos leva a discutir quem nasceu primeiro o ovo ou a galinha o que prevalece primeiro a sociedade ou primeiro o indivíduo De outro lado uma atitude prática semelhante à do asno indeciso entre deis montes de feno permanecendo no imobilismo o que atacar primeiro o indivíduo ou a sociedade O segundo fator é uma concepção de identidade como perma nência como estabilidade mais que uma simples concepção abstrata é vivermos privilegiando a permanência e a estabilidade e patologizando a crise e a contradição a mudança e a transfor mação Assim como que estancamos o movimento escamoteamos a contradição impedimos a superação dialética Identidade é movimento ê desenvolvimento do concreto Identidade é metamorfose É sermos o Um e uni Outro para que cheguemos a ser Um numa infindável transformação Bibliografia Fausto R Marx Lógica ePolítica São Paulo Brasiliense 1983 Giannotti T AT Trabalho e Reflexão Sâo Paulo Brasiliense 1983 Habermas J Pam a Reconstrução do Materialismo Histórico São Paulo Brasiliense 1983 Heller A A Filosofia Radical Sâo Paulo Brasiliense 1983 AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 75 i O Quotidiano e a História Rio de Janeiro Paz e Terra 1972 Dentro de uma preocupação mais empírica que filosófica podem ser mencionados especificamente Berger P e Luckmann T Construção Social da Realidade Petrópoüs Vozes 1973 Erikson E Identidade Juventudee Crise 2 ed Rio de Janeiro Zahar 1976 Goffman E A Representação do Eu rta Vida Cotidiana t Petrópolis Vozes 1975 Sarbin T R e Scheibe K E eds Studies in Social Identity Nova Iorque Praeger Publishers 1983 Parte 3 O indivíduo e as instituições O processo grupai Silvia Tatiana Maurer Lane Este trabalho é o resultado de cursos de pósgraduação onde alunos e professor se propuseram rever a noção de pequenos grupos em função de uma redefinição da Psicologia Social onde o grupo não é mais considerado como dicotômico em relação ao indivíduo Indivíduo sozinho X Indivíduo em grupo mas sim como condição necessária para conhecer as determinações sociais que agem sobre o indivíduo bem como a sua ação como sujeito histórico partindo do pressuposto que toda açâo transformadora da sociedade só pode ocorrer quando indivíduos se agrupam Assim o nosso objetivo foi dar início a uma forma sistemática de refletir teoricamente sobre processos grupais alternando obser vações e teorizações na tentativa de definir algumas premissas básicas para o conhecimento concreto de pequenos grupos sociais Tradicionalmente os estudos sobre pequenos grupos estão vinculados à teoria de K Lewin que os analisa em termos de espaço topológico e de sistema de forças procurando captar a dinâmica que ocorre quando pessoas estabelecem uma interdependência seja em relação a uma tarefa proposta sóciogrupo seja em relação aos próprios membros em termos de atração afeição etc psico grupo Este capltuío é uma revisío e ampliação do aftígo Uma Análise Dialética do Processo Grupai por S T M Lane et atii publicado em Cacfemos PUC Psicologia n 11 Educ Corte Editora 1981 O INDIVÍDUO e a s INSTITUIÇÕES 79 É nesta tradição que conceitos como de coesão liderança pressão de grupo foram sendo desenvolvidos em base de observações e experimentos Temse assim descrições de processos grupais que permitem apenas a reprodução através da aprendizagem de grupos produtivos para o sistema social mais amplo Pudemos observar que os estudos sobre pequenos grupos nesta abordagem tem implícitos valores que visam reproduzir os de individualismo de harmonia e de manutenção A função do grupo é definir papéis e conseqüentemente a identidade social dos indiví duos é garantir a sua produtividade social O grupo coeso estruturado é um grupo ideal acabado como se os indivíduos envolvidos estacionassem e os processos de interação pudessem se tornar circulares Em outras palavras o grupo é visto como ahistórico numa sociedade também ahistórica A única perspectiva histórica se refere no máximo à história da aprendizagem de cada indivíduo com os outros que constituem o grupo 0 De uma outra perspectiva encontramos alguns autores que procuram analisar processos grupais na sua inserção social e institucional como ê o caso de Horkheimer e Adorno que vêem o niicrogrupo como a mediação necessária entre o indivíduo e a socie dade e cuja estrutura assume formas historicamente variáveis Loureau propõe uma análise das instituições através das relações grupais que nelas ocorrem caracterizando os grupos em termos de grupoobjeto onde a segmentaridade se dá de forma a manter os indivíduos justapostos sob uma capa de coerência absoluta é o que o autor denomina de grupo tipo bando ou seita Um outro grupoobjeto seria aquele onde os indivíduos se justapõem para a realização de um trabalho e onde a divisão de trabalho determina hierarquias de poder É através da análise da transversalidade que se toma possível o conhecimento da segmentaridade do grupo e da sua autonomia bem como de seus limites condição para um grupo se tornar gruposujeito isto é aquele que percebe a mediação institucional objetiva e conscientemente Também Lapassade analisa grupos quanto a sua dinâmica e seu nível de vida oculto que seria o nível institucional o qual irá determinar as características do grupo se processando numa contradição permanente entre serialização e total ização Retoma Sartre para caracterizar a serialidade como sendo a própria negação do grupo onde apesar de haver um objetivo comum a relação entre os membros não passa de uma somatória ou seja eles formam 80 SILVIA T M LANE uma série tipo primeiro segundo terceiro etc Somente quando os membros se organizam é que podemos falar em grupo que define controla e corrige a práxis comum Lapassade descreve ainda o que seria o grupoterror no qual há a figura de poder que determina as obrigações e a manutenção do status quo A este grupo se oporia o grupovivo que se caracteriza por relações de igualdade entre seus membros e pela autogestão Ainda dentro de uma proposta dialética teríamos a teoria de PichonRivière para quem grupo é um conjunto restrito de pessoas ligadas entre si por constantes de tempo e espaço articuladas por sua mútua representação interna que se propõe de forma explicita ou implícita uma tarefa a qual constitui sua finalidade interatuando através de complexos mecanismos de atribuição e assunção de papéis Este autor destínvolve uma técnica operativa para instru mentar a ação grupai visando a resolução das dificuldades internas dos sujeitos que provém de ansiedades geradas pelo medo da perda do equilíbrio alcançado anteriormente e do ataque de uma situação nova desconhecida medos estes que criam uma resistência à mudança dificultando os processos de comunicação e aprendi zagem Desta forma sua técnica visa uma análise sistemática das contradições que emergem no grupo através da compreensão das ideologias inconscientes que geram a contradição eou estereótipos no processo da produção grupai Para tanto o grupo parte da análise de situações cotidianas para chegar à compreensão das pautas sociais internalizadas que organizam as formas concretas de interação ou seja das relações sociais e dos sujeitos inseridos nessas relações Por último podemos citar o Grupo Operativo analisado por J F Calderôn e G C C De Govia para os quais um grupo é uma relação significativa entre duas ou mais pessoas que se processa através de ações encadeadas Esta interação ocorre em função de necessidades materiais eou psicossociais e visa a produção de suas satisfações A produção do grupo se realiza em função de metas que são distintas de metas individuais e que implicam necessariamente cooperação entre os membros Os autores fazem uma tipologia dos grupos em função de estágios alcançados por eles considerando que os grupos estão em constante transformação na medida em que produzem meios para satisfação de suas necessidades Neste processo o primeiro estágio seria o de grupo aglutinado no qual há um líder que propõe ações O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES conjuntas c do qual os membros esperam soluções é um grupo de baixa produtividade Num segundo momento temos o grupo possessivo onde o líder se torna um coordenador de funções e onde as tarefas exigem a participação de todos levando a maior interação e conhecimentos mútuos Na terceira fase temos o grupo coesivo onde há uma aceitação mútua dos membros o líder se mantém como coorde nador e a ênfase do grupo está na manutenção da segurança conse guida vista como um privilégio É um grupo que tende a se fechar evitando a entrada de novos elementos Por fim temos o grupo independente com a liderança amplamente distribuída pois o grupo já acumulou experiências e aprendizagens os recursos materiais aumentam e as metas funda mentais vão sendo alcançadas surgindo novas metas que visam o desenvolvimento pleno dos membros e das pessoas que se reiaciO nam com o grupo Ê um grupo onde as relações de dominação são minimizadas e a coordenação das atividades tende para a auto gestão Os autores observam que não há tipos puros de grupos pois estes estão sempre se processando diaíeticamente uma etapa englobando aspectos da etapa anterior Podemos perceber por esta revisão de teorias sobre o grupo uma postura tradicional onde sua função seria apenas a de definir papéis ef conseqüentemente a identidade social dos indivíduos e de garantir a sua produtividade pela harmonia e manutenção das relações apreendidas na convivência Por outro lado temos teorias que enfatizam o caráter mediatório do grupo entre indivíduos e a sociedade enfatizando o processo pelo qual o grupo se produz são abordagens que consideram as determinantes sociais mais amplas necessariamente presentes nas relações grupais Essa revisão crítica permitiu levantarmos algumas premissas para conhecer o grupo ou seja 1 o significado da existência e da ação grupai só pode ser encontrado dentro de uma perspectiva histórica que considere a sua inserção na sociedade com suas determinações econômicas institucionais e ideológicas 2 o próprio grupo só poderá ser conhecido enquanto um processo histórico e neste sentido talvez fosse mais correto falarmos em processo grupai em vez de grupo Destas premissas decorre que todo e qualquer grupo exerce uma função histórica de manter ou transformar as relações sociais 13 SILVIA T M LANE desenvolvidas em decorrência das relações de produçào e sob este aspecto o grupo tanto na sua forma de organização como nas suas ações reproduz ideologia que sem um enfoque histórico nào é captada De fato o estudo fracionado de pequenos grupos tem endossado os aspectos ideológicos inerentes ao grupo como naturais e universais reproduzindo assim ideologia com roupagem ciemí fica A seqüência do trabalho se caracterizou pela discussão de como uma análise dialética poderia captar o grupo enquanto processo e inserido numa totalidade maior levar ao conhecimento dos aspectos concretos desse fato social Num artigo anterior Lane aponta para a tradição biológica da psicologia como um dos maiores entraves para o estudo do comportamento social dos indivíduos o que não significa a negação do biológico mas da concepção que decorre desta tradição onde o ser humano é visto como possuidor de uma existência abstrata única isolada de tudo e de todos Mesmo antes do nascimento o homem desenvolvese biologicamente numa relação direta com seu meio ambiente o que significa que o tornarse homem esta intimamente ligado com um ambiente que não pode ser visto como natural mas como um ambiente construído pelo homem Assim a relação homemmeio implica a construção recíproca do homem e do seu meio ou seja o ser humano deve ser visto como produto de sua relação com o ambiente e o ambiente como produto humano sendo então basicamente social O ambiente visto como produto humano se desenvolve a partir da necessidade de sobrevivência que implica o trabalho e a conseqüente transformação da natureza a satisfação destas neces sidades gera outras necessidades que vão tornando as relações de produçào gradativamente mais complexas O desenvolvimento da sociedade humana se dá a partir do trabalho vivo que produz bens e a conseqüente acumulação de bens capital e a necessidade do trabalho assalariado em última análise a formação de ciasses sociais Logo as relações de produçào geram a estrutura da sociedade inclusive as determinações sócioculturais que fazem a mediação entre o homem e o ambiente Uma abordagem psicológica do ser humano teria de enfatizar necessariamente para uma compreensão completa do homem uma macro e microanálise em que a primeira abrangeria todo o contexto social estrutura relações etc e a segunda se direcionaria para o homem formado por este contexto e portanto agindo percebendo pensando e falando segundo as determinações desse contexto que atuando como mediações foram internalizadas pelo ser humano O indivíduo na sua relação com o ambiente social interioriza o mundo como realidade concreta subjetiva na medida em que é pertinente ao indivíduo em questão e que por sua vez se exterioriza em seus comportamentos Esta interiorizaçãoexteriorização obe dece a uma dialética em que a percepção do mundo se faz de acordo com o que já foi interiorizado e a exteriorização do sujeito no mundo se faz conforme sua percepção das coisas existentes Assim a capacidade de resposta do homem decorre de sua adaptação ao meio no qual ele se insere sendo que as atividades tendem a se repetir quando os resultados são positivos para o indivíduo fazendo com que estas atividades se tornem habituais Todos os processos de formação de hábitos antecedem a insti tucionalização dos membros esta ocorrendo sempre quando as atividades tornadas hábitos se amoldam em tipos de ações que são executadas por determinados indivíduos Assim a instituição pres supõe que por exemplo o dirigente e o funcionário ajam de acordo com as normas estabelecidas e assim por diante É importante notar que essas tipificações são elaboradas no curso da história da instituição daí só se poder compreender qualquer instituição se aprendermos o processo histórico no qual ela foi produzida Também é importante ressaltar o fato de que quanto mais solidificados e definidos forem esses padrões mais eficiente se torna o controle da sociedade sobre os indivíduos que desempenham esses papéis O estabelecimento de papéis a serem desempenhados leva à sua cristalização como por exemplo o papei da mulher enquanto formas de ser e agir Essa cristalização faz com que os papéis sejam vistos como tendo uma realidade própria exterior aos indivíduos que têm de se submeter a eles incorporandoos Esta incorporação dos papéis pelos indivíduos realizasse sob a forma de crenças e valores que mantêm a diferenciação social visto estar fundamen tada na distribuição social do conhecimento e na divisão social do trabalho Desta forma o mundo social e institucional é visto como uma realidade objetiva concreta esquecendose que essa objetividade é produzida e construída pelo próprio homein O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES M B4 SILVIA T M LANE Cabe à Psicologia apreender como se dá esta internalização da realidade concreta e como ela faz a mediação na determinação dos comportamentos do indivíduo O ponto inicial do processo se dá a partir do nascimento do homem sem condições físicas que permitam a sua sobrevivência isoladamente o que exige uma disponibilidade para a sociabilidade para tornarse membro de uma sociedade A introdução do homem na sociedade é realizada pela socialização inicialmente a primária e posteriormente a secundária Na nossa sociedade a socialização primária ocorre dentro da família e os aspectos internalizados serão aqueles decorrentes da inserção da família numa classe social através da percepção que seus pais possuem do mundo e do próprio caráter institucional da família A socialização secundária decorre da própria complexidade existente nas relações de produção levando o indivíduo a inter nalizar as funções mais específicas das instituições as subdivisões do mundo concreto e as representações ideológicas da sociedade de forma a incorporar uma visão de mundo que o mantenha ajus tado e conseqüentemente alienado das determinações concretas que definem suas relações sociais Podemos então verificar que toda análise que se fizer do indivíduo terá de se remeter ao grupo a que ele pertence à classe social enfocando a relação dialética homemsociedade atentando para os diversos momentos dessa relação A seguir foram propostas algumas sugestões para a análise do indivíduo inserido num processo grupai a partir do materialismo dialético Em primeiro lugar devemos partir da idéia de que o homem com quem estamos lidando é fundamentalmente o homem alienado embora essa alienação possa assumir formas e graus diferentes Nesse sentido suas representações e sua consciência de si e do outro são sempre num primeiro momento fundamentalmente desencon tradas das determinações concretas que as produzem Há sempre dois níveis operando o da vivência subjetiva marcado pela ideo logia onde cada um se representa como indivíduo livre capaz de se autodeterminar consciente de sua própria ação e representação e a da realidade objetiva onde as ações e interações estão sempre comprimidas e amalgamadas por papéis sociais que restringem essas interações ao nível do permitido e do desejado em função da O INDIVÍDUO E AS INSTITUÍÇÕES S manutenção do s tatus quo O nível da vivência subjetiva reproduz a ideologia do capitalismo o individualismo o selfmademan o nível da realidade objetiva reproduz o cerne do sistema ou seja a relação dominadordominado exploradorexplorado Naffah mos trou num trabalho recente como num sistema capitalista os papéis sociais sempre reproduzem a dinâmica básica dos papéis históricos ou seja a relação dominadordominado Qualquer análise de um processo grupai que se apóie no materialismo dialé tico tem de partir necessariamente desses dois níveis de análise A emergência da consciência histórica portanto de uma ação social comoprâxis transformadora significaria o nível das determinações concretas rompendo as representações ideológicas e se fazendo consciência momento em que a dualidade desapareceria Em segundo lugar todo grupo ou agrupamento existe sempre dentro de instituições que vão desde a família a fábrica a uni versidade até o próprio Estado Nesse sentido é fundamental a análise do tipo de inserção do grupo no interior da instituição se foi um grupo criado pela instituição com que funções e finalidades o foi se surgiu espontaneamente que condições presidiram seu surgimento se foi no sentido de manutenção ou de contestação dessa mesma estrutura institucional etc Por outro lado dado o estado geral da alienação toda tarefa que o grupo se propõe deve apresentar pelo menos de início um estado maior ou menor de alienação isso posto cumpre observar como a realização dessa tarefa opera nos dois níveis de análise o da vivência subjetiva e o das determinações concretas do processo grupai Em terceiro lugar a história de vida de cada membro do grupo também tem importância fundamental no desenrolar do processo grupai Para fins de observação e análise entretanto poderseia dizer que a história de cada um achase condensada no grupo pelo sistema de papéis que ele assume e desempenha no decorrer do processo Ou seja a história de cada um presentificase pelas formas concretas através das quais ele age se coloca se posiciona se aliena se perde ou se recupera ao longo do processo Isso não exclui entretanto a necessidade de uma pesquisa mais sistemática da história de cada um quando isso se fizer necessário Em quarto lugar tomandose os dois níveis de análise o da vivência subjetiva e o das determinações concretas do processa grupai é sempre ancorada no segundo nível que qualquer dialética poderá se desenvolver Isso não quer dizer entretanto que esses dois níveis não se codeterminem e não se engendrem reciprocamente 66 SILVIA T M LANE ao longo do processo Quer dizer simplesmente que é ao nível do desempenho dos papéis que se reproduz a relação dominador dominado a Zuta pelo poder e que é portanto nesse níveJ que podem emergir os processos de oposição negação contradição e negação da negação que constituem qualquer processo dialético Ê também fundamental o desenrolar das vivências subjetivas e das representações ideológicas do grupoT primeiramente porque vão refletir o grau com que se mascaram as determinações concretas ou se deixam emergir como consciência prática De forma geral diríamos que as contradições fundamentais se dão no nível da ação e da interação grupai onde o exercício da dominação tenderia a gerar contradição e negação da própria dominação através dos papéis Ora é a dominação e o seu exercício que sustentam a representação ideológica do individualismo na medida em que o indivíduo só pode ser livre e autônomo pela negação de outro indivíduo quer dizer pela negação na interdependência entre si mesmo e o outro Neste sentido as contradições emergentes nesse nível tendem a produzir outra contradição agora entre o nível das determinações concretas e o da vivência subjetiva Dessa segunda contradição que chamaríamos de periférica poderia nascer ou não um tipo de consciência prática capaz de engendrar qualquer prâxis grupai A emergência dessa consciência pode entretanto ser dificultada por rearranjos ou reorganizações do sistema de representações ideoló gicas presente no grupo através dos próprios membros ou da instituição à qual o grupo pertence uni chefe por exemplo pode veicular a ideologia da instituição no grupo Em grupos mais sofisticados podemos ter esse nível ideológico impedindo o desen rolar das contradições até mesmo no nível das determinações concretas controlando o desempenho dos papéis até um ponto X onde ele não ameace a ordem instituída aí aparece por exemplo a ideologia da integração grupai da coesão etc E por último quanto aos papéis sociais eles aparecem enquanto interação efetiva no nível das determinações concretas onde reproduzem a estrutura relacional característica do sistema relação dominadordominado entretanto eles também existem no nível das vivências subjetivas enquanto representação ideológica Assim por exemplo o papel de líder pode no nível das determinações concretas exercer uma açào de dominação e ser vivido no nível das representações ideológicas como mero coor denador que só quer o bem do grupo e preservar a liberdade de todos Nesse nível os papéis funcionam como máscaras no outro O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 87 nível o da ação como elementos de denúncia e motores da dialé tica Estas reflexões teóricas foram se processando simultanea mente com observações de grupos em situações naturais e numa primeira etapa permitiram precisar dois aspectos primordiais ou seja como se caracteriza a participação dos membros do grupo e que seria a produção ou produto de grupo Quanto ao aspecto de participação no grupo as observações feitas sugeriram de início que este poderia se caracterizar em termos de oposição eou conflitos porém observações subseqüentes em outras condições indicavam que a participação ocorria na forma de acréscimos ou contribuições dentro de um processo de comportamentos encadeados Às observações também permitiram analisar o significado de comportamentos paralelos como comentá rios entre duas pessoas que mesmo se relacionados cotn o tema em discussão só poderiam ser entendidos como participação no nomento em que fossem compartilhados por todos os membros do grupo ou seja em nada resultaria alguém ter uma idéia genial se esta não fosse transmitida a todos neste sentido por mais 1participante que cada indivíduo se sentisse isto não teria significado para o processo grupai apenas a ação efetiva compar tilhada com os outros é que poderia ser caracterizada como participação Outro aspecto constatado foi que o significado das partici pações individuais na maioria das vezes não era dado pela situação em si mas exigia mais informações a respeito da inserção de cada um quanto às suas relações sociais no contexto mais amplo instituição dentro do qual o grupo se processa Caso contrário tínhamos apenas um relato mecânico e vazio de comportamentos em seqüência Quando obtidas estas informações ficava clara a relação entre a instituição e os papéis desempenhados no grupo que num primeiro momento foram vistos como características peculiares de cada um de atuar no grupo As observações permitiram uma análise de participação em termos de assumir papéis e em que medida estes são preexis tentes ao grupo e definidos institucionalmente com a função implícita de reproduzirelações sociais e como tal mascarar as contradições decorrentes de relações de dominação existentes em papéis ditos complementares Na medida em que os papéis são desempenhados como naturais os indivíduos têm pouca cons ciência de sua participação no grupo as coisas acontecem como 88 SILVIA TM LANE devem ser senão é porque alguém não cumpriu com o seu papel E podese então observar a cristalização de papéis que significa evitar qualquer comportamento novo que possa levar a um questionamento do grupo e sua possível desestruturação o objetivo é sempre o de evitar conflitos Neste sentido poderseia dizer que a participação se torna circular e o grupo se caracterizou pela preseiração da alienação de seus membros Quando em um grupo observado os membros fizeram uma análise das determinações institucionais que permeavam as relações entre eles observouse a emergência de um sentido de nós o grupo Neste momento questionaram a presença de obser vadores de fora e impediram a divulgação das observações daquele grupo procurando assim a preservação do grupo enquanto tal A participação que se desenvolveu entre os membros nessa ocasião sugeriu um processo em espiral onde as contradições acabariam por se aclarar levando o grupo a uma transformação qualitativa na participação e na produção grupai Infelizmente a autopreservação do grupo impediu acompanhar o processo e constatar as decorrências desta análise feita pelo grupo Em termos teóricos parece ser necessário que o assumir papéis seja questionado pelo grupo e sua negação só ocorrerá na medida em que os indivíduos tomem consciência das determinações históricas inerentes aos papéis e aos indivíduos que estão presentes nas participações de cada um no processp grupai Como conse qüência desta análise foi feita uma crítica às técnicas de treina mento de grupo em que se enfatizam a troca de papéis a liderança funcional como formas alternativas de impedir a emergência de contradições e manter o grupo na sua função ideológica de repro dutor de relações sociais Os grupos observados não permitiram dado o tempo restrito em que foram acompanhados precisar como aconteceria este processo em espiral ficando para ser melhor explicitada a questão de como a contradição emerge se a nível de um ou de vários indivíduos e de como se daria a superação da contradição quando os mecanismos institucionais exemplo troca de papéis que pro curam impedir a emergência de contradições também são negados e o grupo se torna consciente de suas determinações históricas Estreitamente vinculada à discussão da participação grupai se deu a análise da produção do grupo que separamos para atender a uma forma didática de exposição mas que de fato não pode ser o i n d i v í d u o e a s INSTITUIÇÕES 89 vista separadamente pois toda a participação se dá dentro de um processo de produção grupai A partir das observações iniciais constatouse que a produção do grupo não poderia ser identificada necessariamente com a tarefa nem com os objetivos do grupo A produção seria a própria ação grupai que se dá pela participação de todos seja em tomo de uma tarefa seja visando um objetivo comum Seria processo de produção o grupo se organizar assumir papéis realizar tarefas em outras palavras seria se produzir como grupo ou seja a práxis grupai como afirma Sartre a materialidade que estabelece as relações entre os homens Nas relações entre os indivíduos pela participação entre eles estes se transformam e transformam o grupo produzindo o próprio grupo Assim a produção grupai se daria num processo em espiral parte deste processo já tem sido estudado pelas teorias de dinâmica de grupo quando caracterizam a individualização no assumir papéis qfiando analisam o grupo como necessário para definir a identidade social de cada um Porém via de regra elas param neste ponto quando muito reconhecem na cristalização de papéis uma certa estagnação propondo então formas alternativas de participação troca de papéis liderança funcional etc como soluções para garantir o bom funcionamento do grupo ou seja garantir a circularidade na participação como já vimos anteriormente Se na análise do processo de produção aplicarmos a lei da negação vemos que as teorias tradicionais sobre grupo permanecem na primeira negação ou seja o grupo como negação da condição de espécie biológica do homem que os mantém semelhantes permi tindo a concretização de individualidades de diferenciações entre elas diferenciações que se cristalizam em papéis que definem as relações sociais a serem mantidas No momento em que isto se dá cessaria o processo de produção Teríamos a rotina a institu cionalização do grupo segundo Sartre Porém esta é uma condição que nossas observações do cotidiano mostram que não se perpetua o grupo entra em crise se desestrutura A questãoue se colocou foi Como o grupo superaria esta situação O que seria neste caso a negação da negação necessária para a produção grupai O que significa no processo grupai uma negação da individualidade que a supere sem retomar ao primeiro elemento negado E aqui a análise da participação permite precisar a segunda negação quando através da constatação da função ideológica e mascaradora dos papéis assumidos dentro de um 90 SILVIAT M LANE contexto histórico que leva os indivíduos a se desalienarem ou seja se perceberem enquanto membros da sociedade semelhantes nas suas determinações históricas a abrirem mão desta individualidade institucionalizada para efetivamente assumirem uma identidade grupai e conseqüentemente uma ação grupai Ê somente neste momento que os indivíduos no grupo poderiam ter uma ação social transformadora dentro da sociedade em que vivem Esta elaboração teórica inicial indica que o estudo de pe quenos grupos se torna necessário para entendermos a relação indivíduosociedade pois é o grupo condição para que o homem supere a sua natureza biológica e também condição para que ele supere a sua natureza individualista se tornando um agente consciente na produção da história social Muitos estudos e pesquisas são necessários para que este processo seja conhecido concretamente esperamos ter aberto um caminho Numa segunda etapa onde novos grupos foram observados em todas suas reuniões pudemos precisar melhor as formas de participação e o processo de produção grupai Diante dos relatos de observações dos diversos grupos em todos os seus encontros pudemos analisar alguns aspectos funda mentais do processo grupai ou seja as relações de dominação as lutas pelo poder as determinações institucionais de papéis e mais no confronto com propostas teóricas fazer uma análise crítica do conhecimento que se tem elaborado sobre grupos A partir de alguns fatos que ocorreram em um grupo ope rativo levantamos a hipótese de que a antiguidade de um membro no grupo lhe atribui poder e direitos sobre os demais poder este que é ideologizado em termos de experiência sabedoria títulos e mesmo dedicação seriedade etc Analisando os demais grupos a hipótese parece se confirmar quando num grupo de trabalho em periferia a coordenação ê assumida por um membro mais experiente sem qualquer questionamento pelos demais pelo contrário o grupo sequer inicia uma reunião sem a presença deste coordenador mesmo quando poderiam tomar decisões sem a sua contribuição Num grupo que constituía a diretoria de um sindicato a an ti guidade se apresenta na forma de idade e experiência profissional atribuindo poder ao presidente e ao 2 secretário Aqui percebemos claramente a determinação institucional no sentido de que for O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 91 malmente é exigida uma chapa com cargos e funções definidos Apesar de o grupo ter assumido a diretoria com o propósito de um trabalho em equipe onde todos seriam iguais enquanto poder de decisão e hierarquia prevalece quando em situações de desacordo ou conflito entre os dois mais antigos o grupo apóia e acompanha àquele que ocupa o cargo mais elevado ou seja a submissão atribui poder de dominação a um membro Numa diretoria de entidade estudantil também vimos a anti guidade presente porém escamoteada por diferentes propostas eou posturas políticas não explicitadas Neste grupo a luta pelo poder se apresenta claramente mas agora entre velho e novo Numa equipe de professores a luta que ocorre também se caracteriza por dominação ora pelo mais antigo ora por um dos mais novos Neste grupo surge também um aspecto observado na diretoria do sindicato o grupo é que busca apoio e submissão e com isto atribui poder a um ou a outro ou seja os elementos da relação dominador dominado são opostos na unidade mas implicando necessaria mente o outro O antigo assume naturalmente a coordenação e se caracteriza como sendo mais experiente e mais titulado e também o ponderado e de bom senso Por outro lado o novo é visto como contestador avançado e transformador Estes dois grupos estudantil e professores nos levaram a questionar o quanto a instituição universitária especificamente a PUCSP estaria propiciando a emergência de um papel do novo contestador quando ao mesmo tempo valoriza a titulação e a carreira antiguidade de seus membros A relação de dominação em um grupo de presidiários parece ser fortemente permeada pela instituição o caráter repressivo que define o presidio é negação de qualquer poder individual porém observouse comportamentos decisivos para o grupo em questão que sugerem alguma forma de dominação é o caso de um presidiário que de início contesta a atividade que o grupo se propõe a desenvolver negando e se afastando do grupo e este se afirma executando a tarefa proposta Também o desabafo pessoal de um dos membros após um espetáculo organizado pelo grupo o qual é ouvido passivamente pelos demais determinará o teor da reunião seguinte levando o grupo a uma análise de suas condições sociais num processo de identificação tanto com o primeiro como com o segundo A emergência de um poder negado parece propiciar um salto qualitativo do grupo em termos de conscientização social quando ele chega a perceber a responsabilidade do Estado pelas 92 SILVIA T M LANE condições de vida que geraram a situação atual de todos oS membros do grupo Neste grupo de presidiários a questão de antiguidade não pôde ser observada e possivelmente não deve ocorrer dado o próprio caráter institucional onde não há vantagens nem necessidade de ideologizar qualquer relação de dominação Por outro lado no grupo operativo onde as interferências institucionais são minimi zadas a antiguidade dá o poder de dono do grupo ao membro que compareceu a todas as reuniões inclusive as que não ocorreram por falta de quorum No papel de coordenador em confronto com o coordenador oficial exclui um dos membros que de início assumira certa liderança mas que deixou de comparecer a alguns encontros e foi considerado um elemento novo e objeto de decisão de poder ou não ingressar no grupo igual a outros candidatos que se apre sentaram na ocasião Os grupos observados permitiram analisar como a dominação se reproduz e sua ideologização produzida institucionalmente justi ficando tanto as lutas pelo poder como a submissão dos membros do grupo atribuindo poder a um elemento e assim reproduzindo relações sociais necessárias para que as contradições não emerjam e nem sejam superadas A análise das observações também nos permitem um con fronto com as diversas teorias sobre grupo Assim quando Lewin conceitua liderança a partir de situações experimentais apenas descreve o aparente sem captar as relações de poder que existam mesmo sob liderança democrática e que o leva a concluir paradoxalmente da necessidade de uma liderança democrática forte para um grupo chegar a ser autônomo ou seja efetivamente democrático A pressuposição de um llder forte implica um poder que será doado a todos impedindo a emergência da contradição e conseqüentemente a conscientização dos membros do grupo Para Lewin os grupos de professores e da diretoria do sindicato seriam vistos como democráticos sem possibilidade de analisar o movi mento de submissão do grupo nem a veiculação ideológica na atribuição de poder Sob esta perspectiva os grupos só podem repro duzir relações mantenedoras âo status quo São estes pressupostos e a metodologia adotada que levam os póslewinianos à reificação de grupo como processo natural e universal reproduzindo a ideologia dominante que define os papéis grupais em termos de complementaridade de produtividade e de coesão sem que a 0 INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 93 instituição que os engendra nem suas determinantes históricas sejam consideradas na análise Já Horkheimer e Adorno ao fazerem a critica do estudo de microgrupos apontam para o caráter histórico dos grupos e a impossibilidade de generalizações a partir do empírico Como pudemos ver pela análise dos grupos observados na aparência as relações são peculiares e somente no aprofundamento da análise do processo ocorrendo com suas determinações sociais mais amplas podese captar a natureza reprodutora das relações que se desen volvem em cada grupo enquanto relações de dominação Quanto a Loureau ele contribui para se detectar o quanto os grupos observados se mantêm como gruposobjeto na medida em que coesão harmonia unidade permeiam as relações mantendo hierarquias de poder É interessante notar que apenas o grupo de presidiários onde o poder repressivo da instituição nega qualquer agrupamento é aquele que apresenta maior potencial em direção a vir a ser um gruposujeito possivelmente pela necessidade de definir uma distância institucional a qual não poderá jamais tender a ser infinita dadas as condições objetivas de um presídio A análise da instituição e das determinantes sociais feitas pelo grupo caracterizam um processo de transversalidade tornando possível ao grupo passar de objeto a gruposujeito A contribuição de Lapassade é uma análise grupai dentro de instituições e organizações e as articulações que determinam as relações nos grupos partindo da análise feita por Sartre Nos grupos observados a presença da instituição permeia as relações sociais sendo marcante no grupo de presidiários onde a condição de igualdade de seus membros parece facilitar a identificação entre eles e a análise de suas condições sociais em termos mais abrangentes Também a diretoria do sindicato é determinada institucionalmente quando os cargos que caracterizam divisão de trabalho são hierar quizados levando os membros em situação de conflito a se utilizarem da hierarquia para chegarem a decisões num aparente consenso A instituição universitária está claramente presente no grupo de professores quando a titulação define coordenação e quando desobriga os monitores de uma participação mais ativa perma necendo numa postura de aprendizes A diretoria da entidade estudantil parece estar permeada por instituições políticas que dado o pouco tempo de observação e as várias nuanças de grupos políticos universitários dificulta uma análise de suas determinações institu 94 SILVIA T M LANE cionais Porém a PUC como instituição permeia os dois grupos pela ênfase no novo contestador que vem se tornando um papel esperado se não institucionalizado Os outros dois grupos operativo e de trabalho na periferia por se posicionarem como ainstitucionais necessitariam de mais dados enquanto características individuais para se detectar a presença de instituições A proposta de PichonRivière aparentemente próxima à nossa mas diante das observações de grupos operativos suscitou uma série de questões relativas à análise dialética das formas de interação entre os membros do grupo A principal foi a constatação de relações de dominação que geram alto nível de ansiedade nos grupos a ponto de eles se desfazerem na primeira oportunidade Fica a questão se o problema reside na teoria ou na prática desenvolvida Do ponto de vista teórico apesar de a proposta ser de uma abordagem materialista dialética o autor propõe um es quema conceituar teórico ao invés de categorias que remetam a fatos concretos no que se aproxima do modelo lewiniano onde a teoria leva aos fatos ao empírico e estes reformulam a teoria Por outro lado a dialética proposta se caracteriza como idealista pois pressupõe contradições entre o interno e o externo do indivíduo entre sujeito e grupo entre o implícito e o explicito e entre projeto e resistência à mudança Nenhuma relação é esta belecida com a contradição fundamental das condições históricas da sociedade onde o grupo se insere Desta forma o psicólogo considerado como uma entidade em si implica uma concepção dicotômica e idealista do homem E esta visão determina o papel de coordenador como dono de um saber que o permite interpretar o psíquico oculto de cada indivíduo membro do grupo este saber faz do coordenador uma figura de poder que leva os membros ao que chama de adaptação ativa Desta forma a conscientização que propõe atingir pela práxis nada mais ê que um processo terapêutico tradicional autoconhecimento sem que necessariamente seja um processo de conscientização social onde determinações históricas de classe e as especificidades da história individual se aclaram e se traduzem em atividades transformadoras Do mesmo modo a concepção de papéis por um lado defi nidos institucionaimente por outro objetivo de expectativas individuais como produto singular isento de determinações históricosociais permitem a mediação ideológica dos papéis pois se apenas contradições entre o interno e o externo são O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 95 analisadas passa despercebida a reprodução das relações sociais necessárias para que as contradições não emeijam nem sejam superadas Na abordagem de Calderón e De Govia a proposta mate rialista histórica não se confunde com teorias psicanalíticas man tendo a unicidade do indivíduo como produto histórico e mani festação de uma totalidade social São as necessidades que reúnem indivíduos em grupo para cooperando satisfazêlas Para tanto se organizam de formas próprias lideranças e cuja análise permite aos autores detectar estágios e tipificar os grupos Segundo esta tipologia poderíamos dizer que o grupo da entidade estudantil ainda estaria numa fase de aglutinado cami nhando para dois subgrupos possessivos o de trabalho em peri feria seria tipicamente possessivo enquanto a diretoria do sindi cato por suas características institucionais estaria entre posses sivo e coesivo o grupo de professores parece estar caminhando de coesivo para independente o grupo operativo por sua vez parece oscilar entre aglutinado e coesivo Difícil foi carac terizar o grupo do presídio enquanto preparação do espetáculo foi um grupo possessivo e depois deste na última reunião obser vada parece estar se tornando independente Esta abordagem é sem dúvida a que mais se aproxima da nossa mas a caracterização de estágios ou tipos de grupos não é suficiente para responder à questão de como o grupo se processa superando contradições até se tornar condição de conscientização de seus membros e conseqüentemente agentes históricos Outros grupos foram observados com a preocupação de preci sar unia metodologia de análise e permitiram concluir sobre a nãoneutralidade do observador e principalmente sobre a sua interferência no processo grupai mesmo quando afastado fisica mente e sem qualquer participação no processo Foram casos onde o próprio grupo se avaliando comentava a presença do observador como responsável pela maior produtividade do grupo ou ainda no caso já citado o caráter perturbador do observador exigindo dele um compromisso de sigilo e de participação no grupo Diante destes fatos novas observações foram feitas mas assumindo a intervenção como inevitável colocandose o observador à disposição do grupo para narrar a sua análise a qualquer momento pois também aclarou para nós que o grupo só dá saltos qualitativos no seu processo quando ocorrem análises e reflexões críticas no próprio grupo Com isto esperávamos precisar as condi SILVIA T M LANE çOes necessárias para que um grupo se tomasse consciente e transformador Esta nova etapa de observações participantes foi sendo também confrontada com as observações feitas anteriormente o que nos permitiu precisar algumas categorias fundamentais para a análise do processo grupai A primeira categoria detectada foi a de produção onde a produção da satisfação de necessidade como apontado por Cal derón e De Govia implica necessariamente a produção das relações grupais ou seja a produção do grupo é produção grupai é o processo histórico do grupo Ou seja o processo grupai se carac teriza como sendo uma atividade produtiva Uma segunda categoria definida é a de dominação no sentido de que na sociedade brasileira capitalista as condições infra estruturais para serem reproduzidas implicam mediações tais que de formas as mais diversas reproduzem relações de dominação e que estas implicam a unicidade dominaçãosubmissão ou seja nos grupos onde a proposta de relacionamento é de igualdade entre os membros detectase a dominação pela submissão dos membros a uma outra pessoa Esta categoria leva necessariamente à análise das instituições que fazem a mediação infra e superestrutural através da definição de papéis como necessários para a reprodução de relações sociais conforme previstos pelas instituições de uma dada sociedade A categoria de gruposujeito adotamos a denominação de Loureau de fato só pode ser precisada nessa última etapa de observações quando o observador como participante analisava as contradições decorrentes das relações de dominação levando o grupo a uma autoanálise porém em nenhum momento conse guimos detectar um grupo como um todo agindo em plena cons ciência Detectouse pessoas em processo de conscientização enquanto outras resistiam a mudanças e quando a pressão oriunda da análise se tornava perturbadora a tendência era sempre de o grupo se desfazer seja pela separação física seja pela reorga nização de tarefas de forma a tornálas independentes entre si fazendo com que o produto final fosse apenas somatória de produtos individuais ou seja uma reorganização que é a própria negação do grupo Esta negação do grupo confrontada com observação de grupos onde as tarefas eram sempre individuais sem haver ações necessariamente encadeadas para se atingir um produto nos leva O INDIVÍDUO e a s i n s t h UIÇOES 97 à categoria de nãogrupo e à comprovação de que só é grupo quando ao se produzir algo se desenvolvem e se transformam as relações entre os membros do grupo ou seja o grupo se produz Um exemplo típico de nãogrupo é aquele onde as pessoas se reuniam em uma instituição para apreender e fazer trabalhos manuais cada um envolvido com o seu Fisicamente as pessoas estão agrupadas elas se relacionam conversando assuntos os mais diversificados porém o fato de cada uma ter o seu trabalho faz com que as relações entre elas não se alterem por mais tempo que permaneçam juntas1 Acreditamos que para um grupo como tal ser um grupo sujeito é necessário haver circunstâncias como pressão exterior ao grupo como no presídio ou uma condição de marginalhação como um grupo observado de pessoas cegas ou então haver um forte compromisso entre os membros como o político ou do tipo de sociedade secreta pois os processos de conscientização ocorrem em indivíduos em momentos diferentes passando por estágios dife rentes o que gera contradições em geral difíceis de serem supe radas fazendo com que ocorra a dissolução do grupo antes de uma conscientização grupai E obviamente na nossa sociedade mil e um recursos são oferecidos para evitar esta conscientização grupai perturbadora para os tatus quo Esta análise nos permitiu constatar com clareza por um lado que o grupo social é condição de conscientização do indivíduo e por outro a sua potência através de mediações institucionais na produção de relações sociais historicamente engendradas para que sejam mantidas as relações de produção em uma dada sociedade Outro ponto de fundamental importância para o processo grupai e para superação das contradições existentes é a necessidade de o grupo analisasse enquanto tal O grupo que apenas executa tarefas sobre transformações que se não forem jesgatadas conscientemente pelos membros ele apenas se reajusta sem que ocorra qualquer mudança qualitativa nas relações entre seus membros 1 Este nãogrupo e identifica com o que Sartre e La passado chamam de serialidade e se aproxima da noção de segmentaridade de Loureau São agrupamentos onde tanto as necessidades como os motivos e as atividades decorrentes são individuais e não conseqüências de uma relação onde predomiha o nós e que exige a cooperação de todos 96 SILVIA T M LANE Bibliografia Barremblitt Gregório org Grupos Teoria e Técnica Rio de Janeiro GraalIBRAPSI 1982 Carrera Damas G Puntos de vista de um historiador acerca de la Psicologia Social histórica in Boletim Avcpso n 01 vol II 1979 Doise William L articulation Psychossociologique et ies Relations entre Groupes Bruxelas Ed A de Bock 1976 Fernandes Calderón J e De Govia G C C El Grupo Operativo Teoria y Prática 2 ed Mexico Df Edit Extemporâneas 1978 Horkheimer M e Adorno T Temas básicos de Sociologia Sâo Paulo Cultrix e EDUSP 1973 Lane S T M Uma Redefinição da Psicologia Social in Educação e Sociedade n 6 jun 1980 Lapassade George Grttpos Organizações e Instituições t Rio de Janeiro Livraria Francisco Alves 1977 Loureau Rtnt A Análise Institucional Petropolis Vozes 1975 MaoTséTung Tese da Contradição Belém Ed Boitempo 1978 Marx K e Etlgels F L ideologic AUemande trad de R Cartelle Paris Êds Sociales 1953 Marx K Thèse sur Feuerbach in Marx K e Engels F Études Phi hsophiçues Éds Sociales 1951 Montero Maritza Psicologia Social e História in Boletim AVEPSO n 1 vol 1 1978 Naffah Neto A Psieodroma Descolonização Imaginária Silo Paulo Ed Brasiliense 1979 Ofshe Richard J ed Interpersonnal Behavior in Small Groupst Nova Jersey Prentice Hall 1973 Pichon Rivière E El Proceso Gntpal Del Psicoanalisis a Ia Psicologia Social 5 ed Buenos Aires Ed Nueva Vision 1980 Sartre JP Critique de ia Raison Dialethique Paris Gallimard 1950 Família emoção e ideologia José Roberto Tozoni Reis A família tem estado em evidência Por um lado ela tem sido o centro de atenção por ser um espaço privilegiado para arregi mentação e fruição da vida emocional de seus componentes Por outro tem chamado a atenção dos cientistas pois ao mesmo tempo que sob alguns aspectos mantémse inalterada apresenta uma grande gama de mudanças Ê comum ouvirmos referencias a crise familiar conflito de gerações morte da família Ela também suscita polêmicas para alguns família é a base da sociedade e garantia de uma vida social equilibrada célula sagrada que deve ser mantida intocável a qualquer custo Para outros a instituição familiar deve ser combatida pois representa um entrave ao desenvolvimento social é algo exclusivamente nocivo é o local onde as neuroses são fabricadas e onde se exerce a mais implacável dominação sobre as crianças e as mulheres No entanto o que nào pode ser negado é a importância da família tanto ao uivei das relações sociais nas quais ela se inscreve quanto ao nível da vida emocional de seus membros E na família mediadora entre o indi víduo e a sociedade que aprendemos a perceber o mundo e a nos situarmos nele Ë a formadora da nossa primeira identidade social Ela ê o primeiro nós a quem aprendemos a nos referir A instituição familiar tem ocupado a atenção de estudiosos de todas as ciências sociais O que essas abordagens têm tido em comum via de regra é o fato de ver a família apenas através da ótica de uma disciplina científica especializada Podese verificar que muitas vezes se repete com argumentos tirados do repertório 100 JOSÉ ROBERTO TOZONI REIS científico o que a ideologia tem veiculado dentro da própria família a representação da instituição familiar como algo natural e imutã vel Assim por exemplo Talcott Parsons1 dá à família uma grande importância pois para ele a sociedade é um sistema no qual as relações desta com o indivíduo se dão de forma harmoniosa e autoreguladora A família teria por função desenvolver a sociali zação básica numa sociedade que tem sua essência no conjunto de valores e de papéis Parsons fala da sociedade capitalista e toma a família dessa sociedade como universal e imutável a família nuclear burguesa tornase sinônimo de família Outras formas quando existentes sào consideradas no máximo estruturas que ainda vão se diferenciar em direção a esse modelo ideal de família Freud2 também enveredou por essa mesma senda No entanto isso não significa uma negação de suas importantes descobertas mas impõe a necessidade de situálas em seu devido lugar Ele colo cou às claras o funcionamento interno da família desmontando os mecanismos psíquicos envolvidos na estrutura familiar e que têm como corolário a dominação e a repressão sexual Mas o que para Freud é a família na realidade tratase apenas de uma das formas que a instituição familiar assume em determinado momento histó rico a família burguesa O reducionismo psicológico de Freud a falta de uma visão social fazemno também naturalizai c uni versalizar a família burguesa Os antolhos ideológicos farein com que o autor da grande descoberta da função repressiva da família não consiga inserir suas descobertas no contexto da História c em conseqüência postule uma universalidade para a família burguesa consagrando como natural e inevitável a dominação e a repressão A determinação histórica da estrutura familiar coloca em discussão uma importante questão a das relações entre família e sociedade Essa discussão teve seu primeiro grande passo nos tra balhos de L Morgan que estudou as relações de parentesco em diversas tribos americanas Engels3 apoiandose nas descobertas de Morgan elaborou a formulação materialista dialética sobre a gênese 1 Parsons Talcott et aüi Family Socialization and Interaction Pro cess Nova lorque 1955 2 Para urr maior aprofundamento da quest3o ver O conceito de famflia em Freud in Poster M Teoria Crtíca da Família Rio de Janeiro Zahar 1979 3 Engels F A origem da famffia da propriedade privada e do estado Rio de Janeiro Vitória 1964 o i n d i v í d u o e a s INSTITUIÇÕES 101 e as funções da família monogâmica Para ele foi na família que se iniciou o processo de divisão social do trabalho que foi inicial mente a divisão do trabalho sexual Essa divisão foi o ponto de referência para uma complexificação do processo de divisão do trabalho que culminou com a divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual e concomitantemente com a principal divisão sobre a qual se funda o modo de produção capitalista a oposição entre os proprietários das condições de produção e os que possuem apenas uma força de trabalho explorada pelos primeiros O estágio de desenvolvimento das forças produtivas ç do processo de divisão social do trabalho determinam então a estrutura familiar Segundo Engels a família monogâinica surgiu e foi determinada pelo apare cimento da propriedade privada Da forma de família grupai na sociedade primitiva a organização familiar teria evoluído para a família monogâmica passando por diversos estágios intermediários cada um deles caracterizado sucessivamente por um grau cada vez maior de restrições às possibilidades de intercurso sexual A culmi nância desse processo se deu com o casamento monogâmico composto por um casal e com um caráter permanente de duração Uma de suas principais finalidades seria a de garantir a transmissão da herança a filhos legítimos do homem responsável pela acumulação material o que só seria possível com a garantia de que a mulher exerceria sua sexualidade no âmbito exclusivo do casamento Dai a importância da virgindade e da fidelidade conjugal da mulher Embora algumas das formulações de Engels estejam ultrapassadas principalmente no que se refere à aplicação genérica da evolução esquemática dos modelos de família em todas as sociedades as ligações entre monogamia e propriedade privada ambas se reforçando reciprocamente se apresentam cada vez mais sólidas A relativa autonomia da organização familiar é determinada por uma complexa interação de diversos fatores que se referem tanto às formas peculiares deorganização interna do grupo familiar quanto aos aspectos econômicos sociais e culturais que o circuns crevem Ê por isso que embora a forma de família predominante em todos os segmentos sociais seja a da família monogâmica burguesa existem padrões internos que diferenciam as famílias das diferentes classes assim como padrões que diferenciam formas familiares diferentes dentro de uma mesma classe social Atual mente a classe média urbana apresenta uma grande riqueza na variação de padrões familiares Ao mesmo tempo que abarca a 102 JOSÉ ROBERTO TOZONI REÍ5 família caracterizada por um extremo conservadorismo e uma rígida hierarquia interna abrange também formas mais liberais de vivência familiar que marcam tanto as relações entre os seus membros quanto um posicionamento mais crítico diante da sexua lidade Assim vêse que embora a família tenha um nível de auto nomia em relação à economia o que faz em alguns casos com que suas mudanças não acompanhem imediatamente e no mesmo sentido as mudanças econômicas a estratégia familiar é sempre traçada fora dela É portanto impossível entender o grupo familiar sem considerálo dentro da complexa trama social e histórica que o envolve A partir disso podemos fazer algumas considerações que nos ajudam a situar o presente estudo A primeira delas é que a família não é algo natural biológico mas uma instituição criada pelos homens em relação que se constitui de formas diferentes em situações e tempos diferentes para responder às necessidades sociais Sendo uma instituição social possui também para os homens uma representação que é socialmente elaborada e que orienta a conduta de seus membros A segunda consideração é que a família qualquer que seja sua forma constituise em tomo de uma necessidade material a repro dução Isso não significa que é necessário haver uma determinada forma de família para que haja a reprodução mas que esta é condição para a existência da família A terceira consideração é que além da sua função ligada à reprodução biológica a família exerce também uma função ideo lógica Isto significa que além da reprodução biológica ela promove também sua própria reprodução social é na família que os indi víduos são educados para que venham a continuar biológica e socialmente a estrutura familiar Ao realizar seu projeto de repro dução social a família participa do mesmo projeto global referente à sociedade na qual está inserida É por isso que ela também ensina a seus membros como se comportar fora das relaçòes familiares em toda e qualquer situação A família é pois a formadora do cidadão Resumidamente podemos considerar que as duas importantes funções da família são í econômica no que se refere à reprodução de mãodeobra 2 ideológica no que se refere à reprodução da ideologia dominante Alguns tipos de família têm uma função econômica imediatamente visível Ê o caso das famílias que se constituem como unidade de produção econômica os colonos da cultura do café por exemplo ou as famílias proprietárias de terras o i n d j v Id u o e a s INSTITUIÇÕES 103 em frentes agrícolas nas quais o trabalho familiar é a atividade mais viável Como a ideologia opera na família Ela começa por apre sentar uma noção ideologizada da própria família Essa noção veiculada principalmente pelos pais os principais agentes da edu cação ensina a ver a família como algo natural e universal e por isso imutável Depois passa a apresentar da mesma forma o mundo extrafamiliar e todas as relações sociais É claro que a família cumpre sua função ideológica em complementação a outros agentes sociais Sua importância às vezes relativizada no processo global da transmissão da ideologia dominante não pode ser negada Al thusser por exemplo ao descrever as instituições usadas pelo Estado na manutenção da dominação política da burguesia consi dera a família um importante aparelho ideológico embora afirme ser a escola o aparelho ideológico mais utilizado5 Marcuse ao estudar as sociedades capitalistas mais avan çadas aponta uma descentralização das hinçòes da família o que ele qualifica como um aperfeiçoamento dos mecanismos de domi nação Se a família burguesa dos períodos anteriores criava a submissão criava também a revolta que se expressava no incon formismo e na luta contra o pai e a mãe alvos facilmente identi ficáveis como agentes da dominação Na civilização madura a dominação tornase cada vez mais impessoal objetiva universal e também cada vez mais racional eficaz e produtiva7 O que antes era função quase exclusiva da família é hoje disseminado por uma vasta gama de agentes sociais que vão desde a préescola até os meios de comunicação de massa que utilizam a persuasão na imposição de padrões de comportamento veiculados como normais dificultando a identificação do agente repressor Apesar da vera cidade dos argumentos expostos não se pode dizer que a família hoje seja dispensável ou que tenha sua importância diminuída no Í4 Ver Brandão Carlos Rodrigues Parentes e Parceiros relações de parentesco entre camponeses de Goiás in Almeida María S Kofes dõ Colcha de Retalhos estudos sobre a família no Brasil São Paulo BrasiNense 1962 5 Ver Althusser Louis Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado Portugal Presença Brasil Martins Fontes 1974 6 Ver Marcuse H Eros e Civilização Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud Rio de Janeiro Zahar 1972 7 Marcuse H A diaíética da civilização in Marcuse Hr Eros e Civilização Parte I cap A p 91 Rio de Janeiro Zahar 1972 104 JOSE ROBERTO TOZONI REIS processo de imposição da ideologia dominante Apesar da ação eficiente da Escola e dos outros agentes citados por Marcuse que agem de forma mais racional e organizada não resta dúvida de que essa eficiência só ê possível porque apóiase sobre as bases ideológicas estabelecidas pela família que inclusive preparou anteriormente seus membros para reconhecer outras formas de autoridade A atuação familiar é vivida intensamente pelos indi víduos agindo poderosamente no exercício da subordinação ideo lógica pois está presente desde o início da vida e é marcada por fortes componentes emocionais que estruturam de forma profunda a personalidade de seus membros Para entendermos mais profundamente como a família cumpre suas funções de agente da reprodução ideológica é neces sário voltarmos a atenção para o seu funcionamento interno Nesta perspectiva podemos observar o que mais a diferencia de outros grupos ela é o locus da estruturação da vida psíquica a maneira peculiar com que a família organiza a vida emocional de seus membros que lhe permite transformar a ideologia dominante em uma visão de mundo em um código de condutas e de valores que serão assumidos mais tarde pelos indivíduos Para melhor enten dermos essa organização interna da família usaremos os conceitos desenvolvidos por Mark Poster Para ele a família é o lugar onde se forma a estrutura psíquica e onde a experiência se caracteriza em primeiro lugar por padrões emocionais A função de socialização está claramente implícita nesta definição mas a família não está sendo conceptualizada primordialmente como uma instituição investida na função de socialização Ela é em vez disso a loca lização social onde a estrutura psíquica é proeminente de um modo decisivo9 Ela possui também um outro caráter sumamente impor tante Além de ser o locus da estrutura psíquica a família constitui um espaço social distinto na medida em que gera e consubstancia hierarquias de idade e sexo A família é o espaço social onde gerações se defrontam mútua e diretamente e onde os dois sexos definem suas diferenças e relações de poder Idade e sexo estão presentes é claro como indicadores sociais em todas as instituições Entretanto a família contémnos geraos e os realiza em grau extraordinariamente profundo Por outras palavras o estudo da iô Postei Mark Teoria Crítica da Família Rio de Janeiro Zahar 1979 9 Idem ibidem p 161 O INDÍVlDUO E AS INSTITUIÇÕES 105 família fornece um excelente lugar para se aprender como a socie dade estrutura as determinações de idade e sexo10 A caracterização da família essencialmente pelas vivências emocionais desenvolvidas entre seus membros e pela hierarquia sexual e etária conduz a analise de seu funcionamento a centrarse no binômio autoridadeamor As vias pelas quais afeto e poder se relacionam dentro da família permitemnos comparar os diferentes modelos de família e entender a dinâmica interna da família moderna associada a suas funções de reprodutora ideológica Continuaremos usando as idéias de Poster na comparação entre tipos de família e no estudo das especificidades da família moderna ou família nuclear burguesa Quando usamos o modelo burguês familiar como sinônimo de família atual assim o fazemos por entender que este padrào de organização originário na burguesia espalhouse pelas demais classes sociais que paulatinamente o adotaram Isso nâo significa negar a existência de outras formas de vida familiar nem impor uma padronização absoluta a todas as unidades familiares mas apenas tomar o modelo familiar que predomina na sociedade em que vivemos e que corresponde aos valores da ideologia dominante Aliás a família burguesa ao se representar não apenas como aquela que é normal1 mas também como a única possibilidade nada mais faz do que cumprir sua função ideológica Poster apresenta quatro modelos de família a família aris tocrática e a família camponesa dos séculos XVI e XVII a família proletária e a família burguesa do século XIX Demonstra ainda a determinação de suas estruturas emocionais pelas condições sociais em que se inscrevem no contexto histórico Os tipos fami liares propostos não pretendem apresentar como idênticas todas as unidades familiares da classe social a que se referem mas apenas captar o que há nelas de essencial para o estudo de suas estruturas emocionais em determinados momentos de sua história De início apresentaremos de forma breve os principais caracteres das famílías aristocrata camponesa e proletária para posteriormente discutirmos as peculiaridades da família burguesa que segundo Poster nasceu no seio da burguesia européia em meados do século XVLIL 10 Idem ibidem pp 161162 106 JOSÉ ROBERTO TOZONI REIS A aristocracia tinha sua riqueza assentada nos favores do monarca e no controle da terra que era patrimônio a ser conservado e não investido Sua unidade de habitação era o castelo que abrigava além da família parentes dependentes criados e clientes À linhagem era determinante das relações de parentesco e sua preservação revestiase de capital importância por isso o casa mento era antes de tudo um ato político do qual dependia a manutenção das propriedades familiares A habitação aristocrata não favorecia nenhuma forma de pri vacidade pois era caracterizada por uma baixa diferenciação fun cional de suas peças pela ausência de corredores o que provocava um grande trânsito por todos os cômodos e por um mobiliário dotado de multifuncionalidade As condições sanitárias eram pre cárias o que explica em parte o alto nível de mortalidade infantil que acompanhava o alto nível de natalidade As relações entre os membros da casa eram rigidamente hierarquizadas e estabelecidas pela tradição O trabalho masculino restringiase à guerra e as funções da mulher eram relativas à organização da vida social no castelo O lazer era cultivado e o trabalho desvalorizado A criação dos filhos não era atribuição das mães Os bebês eram amamentados por amasdeleite e entregues aos cuidados de criados O treinamento de hábitos higiênicos era mínimo Como conseqüência desses métodos de educação aristo crática a identificação das crianças não privilegiava as figuras parentais como seus objetos mas valorizava a linha da família Elas estabeleciam seu primeiro vínculo com a amadeleiter eram em geral educadas por vários habitantes do castelo e muitas vezes podiam ser enviadas a outras casas nobres para complementar sua educação O seu aprendizado era dirigido para a obediência à hierarquia social e nesse sentido o castigo físico era o instrumento comumente utilizado Os aristocratas desenvolviam então um agudo senso das normas sociais externas mas não um severo superego O sentimento ligado às transgressões era a vergonha e não a culpa A sexualidade aristocrata obedecia a padrões próprios Seu exercício era reconhecido tanto para os adultos de ambos os sexos quanto para as crianças Os aristocratas praticavam muito o sexo entre si e também com a criadagem As necessidades sexuais das mulheres eram reconhecidas Há registros de casos de mulheres aristocratas que se tornaram famosas por sua intensa vida erótica sem que isso provocasse a perda de seus direitos ou da aceitação social As concubinas eram publicamente reconhecidas e o sexo não O INDIVÍDUO e a s i n s t i t u i ç õ e s 107 era considerado assunto privado ou secreto As brincadeiras sexuais das crianças eram aceitas e até estimuladas em razão do que estas não experimentavam um antagonismo entre o corpo e o mundo social O corpo não era vivido como objeto de ambivalência sexual Portanto a família aristocrata nào atribuía valor algum à priva cidade domesticidade cuidados maternos ou relações íntimas entre pais e filhos Embora diferindo da organização da família da aristocracia a família camponesa apresentava mais traços em comum com esta do que com a familia burguesa11 Assim como a família aristocrata a camponesa se carac terizava por um alto padrão de natalidade associado a uma também acentuada mortalidade infantil Apesar de a pequena família nuclear ser a unidade mais comum este não era o grupo social mais significativo para os seus membros Era à aldeia que todos estavam integrados por sólidos laços de dependência A aldeia regulava a vida cotidiana através dos costumes e da tradição os casamentos assim como os enterros davam origem a rituais que envolviam a aldeia toda ou pelos menos grande parte dela também o namoro era regido por um conjunto de procedimentos coletivos pelos quais se providenciava a formação de pares considerados adequados A família não era o espaço privado ou privilegiado e os laços emocionais se estendiam para fora dela As crianças aprendiam a depender principalmente da comunidade e não dos pais desde pequenos participavam de toda rotina da vida da aldeia Já na infância aprendiam a obedecer às normas sociais inclusive com bastante freqüência às custas de punições físicas Por isso à semelhança das crianças aristocratas sua estrutura psíquica era orientada para a vergonha e não para a culpa A aprovação das ações era externa baseada em sanções públicas por toda a comu nidade1112 À mãe camponesa competia a criação dos filhos de forma integrada às relações comunitárias Ela era ajudada por parentes por moças mais novas e também por mulheres mais velhas que ensinavam e fiscalizavam as práticas relativas ao tratamento dos 11 Em função da grande diversidade de condições de vida dos camponeses europeus nos séculos XVI e XVII Poster limitase para estabelecer o modelo do família camponesa aos que viviam em aldeias 12 Poster citt p 206 J08 JOSÊ ROBERTO TOZONJ REIS bebês Mas as crianças não ocupavam o centro da vida conjugal A necessidade da presença da mulher no trabalho do campo fazia com que os filhos não tivessem a mesma atenção que lhes seria dirigida na família burguesa O enfaixamento dos bebês era comum pois liberava a mãe para o trabalho A amamentação era realizada sem envolvimento emocional Havia pouca preocupação com os hábitos higiênicos e com as atividades sexuais das crianças Elas se familiarizavam desde cedo com os atos sexuais pois dormiam várias pessoas em um mesmo quarto sendo que as vezes os filhos dormiam na mesma cama com os pais Em função dessa dependência da aldeia e dos vínculos que assim surgiam os pais das crianças camponesas não eram os únicos objetos de identificação Estes eram dispersos por toda a aldeia Assim como entre a aristocracia era comum a criança camponesa passar por um período de aprendizagem em casa de outra família Enfim apesar de viver em pequenas unidades nucleares a família camponesa tendo toda sua vida voltada para fora de si também desconhecia e não valorizava a domesticidade e a priva cidade A família proletária é vista por Poster em três fases que vão da sua constituição até a adoção do modelo familiar burguês Sua constituição deuse no período inicial da industrialização início do século XIX sob condições de extrema penúria social e econômica Em geral todos os membros da família trabalhavam em jornadas que variavam de 14 a 17 horas As crianças iam para a fábrica a partir de aproximadamente dez anos de idade As condições sanitárias em que viviam os trabalhadores eram terríveis favo recendo o alto índice de mortalidade infantil Nesse contexto uma forma de resistir à opressão imposta pelo capitalismo foi a manu tenção dos antigos laços comunitários O proletariado conservou vários dos costumes camponeses pois foi dentre estes que se deu o recrutamento da maioria dos novos trabalhadores urbanos Nessa fase a vida da família proletária foi caracterizada por formas comunitárias de dependência e apoio mutuo Os filhos eram criados de maneira informal sem que fossem objeto de especial atenção e fiscalização por parte dos pais que não tinham tempo para se dedicar aos filhos O treinamento dos hábitos higiênicos não causava preocupação assim como não havia repressão à mastur bação infantil Nessa época as crianças proletárias conviviam numa ampla rede de relacionamento com adultos pois na maioria das O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 109 vezes eram criadas por parentes vizinhos ou mesmo soltas pelas ruas dos bairros O segundo estágio da família proletária corresponde à se gunda metade do século XIX que coincide com o aparecimento de setores mais qualificados da classe operária e com a ação de alguns filantropos burgueses preocupados com a melhoria das condições de vida de seus empregados13 Essa fase na qual verificouse uma melhoria das condições de vida operária é marcada por uma aproximação dos padrões burgueses de diferenciação de papéis sexuais a mulher passou a ficar mais tempo em casa com os filhos Os homens estabeleceram a fábrica e o bar como pólos de gravitação de sua vida social enquanto as mulheres passaram a desenvolver uma rede social feminina que integrava mães filhas e outras parentas O terceiro estágio ocorreu já no século XX com a mudança da família operária para os subúrbios a partir daí romperamse os vínculos com a comunidade A mulher afastada das redes femi ninas típicas da fase anterior ficou isolada no lar e o homem passou a valorizar a domesticidade e a privacidade Ao mesmo tempo a educação e o futuro dos filhos passaram a ser prioridade da família Essas transformações foram acompanhadas de um reforço da autoridade paterna e de um incremento do conservadorismo por parte de toda a família proletária Um século depois de seu nascimento a família proletária quase não se distinguia mais da família burguesa em termos de padrões emocionais que carac terizavam as suas relações internas Isso significa que houve um aburguesamento ideológico da classe operária no que concerne à vida familiar A família burguesa nascida na Europa em meados do século XVIII rompeu com os modelos familiares vigentes e criou novos padrões de relações familiares Esses novos padrões que corres pondiam às necessidades da nova classe dominante já estavam nitidamente estabelecidos no início do século XIX Eles se carac terizavam antes de tudo pelo fechamento da família em si mesma Esse isolamento marcou uma clara separação entre a residência e o local de trabalho ou seja entre a vida pública e a privada Para o burguês o trabalho era o espaço no qual as relações deveriam ser 13 A principal referência usada por Poster é a Inglaterra 110 JOSÉ ROBERTO TOZONI REIS regidas pela frieza e pelo calculismo qualidades imprescindíveis para se vencer no inundo dos negócios Sendo o mundo dos negócios o império da razão o lar passou a ser o espaço exclusivo da vida emocional no qual a mulher passaria sua vida em reclusão Outras separações se fizeram a mais notável foi a rigorosa divisão de papéis sexuais O marido passou a ser o provedor material da casa e a autoridade dominante considerada racional e capaz de resolver quaisquer situações Antes de tudo deveria ser um homem livre e autônomo conforme o ideal burguês A mulher burguesa ficou responsável pela vida doméstica pela organização da casa e educação dos filhos Considerada menos capaz e mais emotiva que o homem tomouse totalmente depen dente do marido Além de depender dele materialmente sua iden tidade pessoal seria determinada pela posição que ele ocupasse no mundo extrafamiliar Isolandose da comunidade perdeu seu apoio uma vez que as redes femininas deixaram de operar e ficou totalmente à mercê do marido Deveria pois agora obedecer e servir ao marido para que este obtivesse as melhores condições possíveis para lutar no mundo dos negócios O sucesso do marido seria o seu também A educação dos filhos se constituiu no principal objetivo do casamento burguês e passou a absorver todo o tempo da mãe O filho deveria ser educado para aquilo que a burguesia estabelecera como ideal vir a ser um homem autônomo autodisciplinado com capacidade para progredir nos negócios e dotado de perfeição moral Se por um lado a mulher era agora valorizada por sei responsável pelo futuro dos filhos por outrc lado essa responsa bilidade não deixava de lhe trazer grandes tensões pois ela seria culpada por qualquer desvio na educação ou mesmo qualquer doença que o prejudicasse Ela deveria ser uma mãe perfeita para que os filhos também o fossem A família burguesa também definiu novos padrões de higiene que contribuíram para uma progressiva redução da taxa de mortali dade infantil a qual foi acompanhada por um correspondente decréscimo na taxa de natalidade Grande importância foi atribuída ao asseio da casa e de seus moradores O aleitamento materno passou a ser valorizado e cercado de medidas higiênicas além do grande envolvimento emocional da mãe Foi abolida a prática do enfaixamento dos bebês que passaram a receber atenção constante por parte de suas mães Os hábitos alimentares foram rigorosa mente regularizados assim como as práticas meticulosas de lim O INDIVÍDUO e a s i n s t i t u i ç õ e s U I peza O corpo das crianças burguesas primava pelo asseio Nesse contexto se destacou também o horror aos dejetos humanos que caracterizou o aprendizado da fase anal À criança burguesa aprendeu a identificar no seu corpo algo que deveria ser objeto de constante fiscalização e ação de limpeza para que não fosse apenas uru recipiente e produtor de imundícies 14 O controle dos esfíncteres passou a ser um dos objetivos principais dessa fase de educação burguesa às vezes desenvolvido precocemente e envol vendo o uso de insólitos procedimentos como por exemplo o de amarrar a criança ao urinol E claro que a família nuclear burguesa definiu também novos padrões para a sexualidade Foi no seu seio que a diferenciação dos papéis sexuais foi levada às últimas conseqüências Colocouse em prática com todo o rigor a interdição â sexualidade feminina fora do casamento e a restrição ao desfrute do prazer sexual No casamento a atividade sexual feminina deveria restringirse à necessidade de procriação As mulheres burguesas passaram a ser consideradas seres angelicais acima das necessidades animais do sexo Dessa forma o casamento burguês passou a caracterizarse por uma dissociação entre sexualidade e afetividade A família era o recanto do afeto mas não do prazer sexual Este passou a ser buscado fora do lar pelos homens em geral através da conquista de mulheres das classes inferiores À repressão à sexualidade infantil ganhou um lugar de destaque na família burguesa A masturbação horrorizava os pais e provocava vigilância constante A repressão à masturbação coutava com o apoio da opinião médica do século XIX que a apontava como causadora das mais diversas doenças desde acnes e tumores até a loucura São dessa época os relatos de Freud sobre as ameaças de castração feitas pelos pais que na maioria das vezes não tinham caráter metafórico Também se encontravajn facilmente à venda dispositivos que feriam o pênis ou faziam soar o alarme quando o menino tinha uma ereçào As meninas também não escapavam da ação médica no combate a qualquer manifestação da sexualidade o que incluía até cirurgias Assim vamos encontrar um novo quadro de vida familiar estabelecido pela burguesia Ele começa a tomar forma com a reclusão da vida familiar que cria as condições para a total dependência dos filbos em reiação aos pais Por decorrência 14 Poster M op cit p 190 112 JOSÉ ROBERTO TOZONI REIS dessa nova realidade há uma enorme diminuição das possíveis fontes de identificação para a criança Enquanto a criança aristocrata a camponesa ou mesmo a operária se defrontavam com uma ampla gama de possibilidades de identificação a criança burguesa tinha apenas as figuras parentais ou acabava tendo na realidade apenas um objeto de identificação o progenitor do mesmo sexo em virtude da rigorosa divisão de papéis sexuais que presidia sua vida familiar É importante lembrar que a criança burguesa do século XIX quase não tinha contato com outras pessoas antes de entrar na escola Passava portanto grande parte da sua infância apenas se contatando com os membros da própria família Com o isolamento da família nuclear e a conseqüente inten sificação das relaçes afetivas entre seus componentes a criança ficou na total dependência de seus pais para a satisfação de suas necessidades de afeição Ela aprendia a importância da vida emo cional e ficava à mercê dos pais para receber sua cota de afeto Era função dos pais principalmente da mãe suprir essa necessidade dos filhos Mas esse afeto não era dado incondicionalmente Ele passou a ser associado às condutas que os pais esperavam do filho E que condutas eram essas A primeira exigência que se fazia da criança era a de que ela aprendesse a ter o controle sobre seu próprio corpo Essa era a aprendizagem básica que caracterizava o estágio anal das crianças burguesas do século passado Ela deveria aprender a renunciar ao prazer corporal em troca do afeto dos pais O controle dos esfíncteres que era negligenciado em outras classes sociais passou a ser de muita importância para a família burguesa Daí a tensão a que estavam submetidos os filhos principalmente os que não se mostravam eficientes nessa tarefa eles eram ameaçados de perder o que era essencial a afeição dos pais Estava formada pois a cadeia que une amor e autoridade para ter o amor dos pais o que era de importância vital para a criança burguesa seria necessário que ela também os amasse amálos seria corresponder às expec tativas com as quais os pais a cobriam Portanto amar é sub meterse e nâo amar seria uma alternativa insuportável O poder parental é travestido de amor para submeter os filhos Essa submissão do corpo em troca do amor dos pais conti nuava a mesma no estágio genital e tornava mais agudas as vivências conflitivas pois nesse estágio a masturbação era severamente reprimida Mudava o foco corporal mas continuava vigindo com todo vigor o princípio da educação burguesa o controle sõbre o corpo ou submissão aos pais em troca da afeição parental Ê nesse o in d iv íd u o e a s in s t it u iç õ e s estágio que se desenvolve um esforço sistemático para protelar a satisfação sexual A situação conflitiva vivida pela criança culminava com o aparecimento em cena da ambivalência e do sentimento de culpa A negação dos prazeres corporais provoca a cólera dirigida àquele que impede a sua fruição ou seja a mãe mas esta é ao mesmo tempo o seu principal objeto de amor Tornase portanto impossível transformar em ação o sentimento de ódio contra a mãe como também éIhe insuportável a simples idéia de odiar a pessoa que a ama e a quem tanto ama Esta situação produz portanto ambi valência e sentimento de culpa e fornece as bases para a formação do superego como foi descrito por Freud pela internalização das normas definidas pelos pais no relacionamento com os filhos e que se baseiam numa determinada combinação dos fatores amor e autoridade segredo da estrutura da família burguesa foi que sem intenção consciente de parte dos pais jogou com os sentimentos intensos de amor e ódio que a criança experimentava por seu corpo e por seus pais de tal modo que as regras parentais foram inter nalizadas e cimentadas no inconsciente com base em ambos os sentimentos amor e ódio cada um trabalhando para sustentar e reforçar o outro O amor como ideal de ego e o ódio como superego atuaram ambos para promover atitudes de respeitabili dade burguesa Assim a família gerou o burguês autônomo um cidadão moderno que não necessitava de sanções ou apoios externos mas estava automotivado para enfrentar o mundo competitivo tomar decisões independentes e baterse pela aquisição do capitalS Assim a família burguesa definindose pelo isola mento privilegiando a privacidade a domesticidade e supervalo rizando suas relações emocionais internas ao formar o cidadão autodiscipHüado estava servindo para promover os interesses da nova classe dominante e registrar de um modo sem paralelo os conflitos de idade e sexo16 Poster apresentanos a família burguesa como criada por uma nova classe que veio se estabelecer como dominante Jurandir Freire Costa17 descreve a transformação da estrutura familiar da classe dominante brasileira do século XIX Mantendose como classe 15 Idem ibidem p 193 16 Idem ibidem p 195 17 Costa Jurandir Freire Ordem médica e norma famffiar Rio de Janeiro Graal 1979 114 JOSÉ ROBERTO TOZONI REIS dominante os senhores coloniais brasileiros passaram a adotar o modelo de família nuclear burguesa em substituição à família colonial extensa servindo à formação de um Estado nacional Essa transição foi desencadeada pelo movimento higienista que respal dado na autoridade médica produziu uma nova família com padrões internos que muito se assemelhavam à família burguesa européia uma rígida hierarquia de idade e de sexo e uma peculiar combinação entre amor e autoridade que ensinavam aos filhos a renúncia ao prazer corporal em troca da afeição parental e que tem por resultado a ambivalência e o sentimento de culpa Até aqui vimos a família por um lado como instituição que tem por importante função a reprodução da ideologia e por outro consideramos a dinâmica interna da família burguesa Como se articulam esses dois universos Para responder a esta interrogação é necessário recorrer à noção de papel social Não há consenso na literatura sociológica quanto à definição de papel O uso do termo papel social é tomado por referência a J L Moreno que divide os papéis em três categorias os psicos somáticos os sociais e os psicodramáticos18 T Salem19 denomina apenas papel o que é aqui designado como papel social e expõe sua definição de forma precisa O conceito de papel engloba dois aspectos analítica e empiricamente distintos Referese de um lado às expectativas de desempenho que recaem sobre um ator pelo fato de ocupar uma determinada posição social Essas expectativas que cristalizam tipificações de padrões interacionais são veiculadas por outros atores que em virtude da relação particular que mantêm com o ator em questão se configuram em outros significativos para ele Ê exatamente essa qualidade que converte suas emissões em demandas legítimas e significativas para o ocupante daquela posição Por outro lado o conceito de papel se refere também ao desempenho efetivo levado a cabo por um ator no exercício de sua função A idéia de 118 Os papéis psicossomáticos correspondem às funções biológicas da espécie na satisfação das necessidades vitais como comer defecar urinar os sociais correspondem aos padrões de conduta culturalmente produzidos e reproduzidos e os psicodramâticos compreendem os papéis das categorias anteriores sempre que revitalizados através do uso da imaginação criadora Ver Moreno J L Teoria y practica de los roles in Moreno J L Pskoama Seção V Buenos Aires Éd Hormé 1972 pp 213241 19 Salem Tania 0 vetho e o novo um estudo de papéis e conflitos familiares Petrópolis Vozes 1980 O INDIVÍDUO e AS INSTITUIÇÕES tis comportamento conforme é aqui entendida engloba não apenas a prática expressiva do ator isto é os dados observáveis de seu comportamento como também as suas representações ou seja a maneira particular como retrata e explica suas práticas segundo sua própria lógica20 Alguns aspectos merecem ser destacados os papéis têm sempre um caráter interacional isto é seu desempenho exige um contrapapel que o complemente ao mesmo tempo que significam também cristalizações de padrões de conduta Além disso os papéis sociais são engendrados pelas relações sociais e inseridos numa rede de significações Por isso não podem ser separados da ideologia dominante fodese dizer que os papéis sociais ao prescreverem formas rígidas de conduta como as únicas alternativas possíveis para um sujeito numa dada situação são a própria ideologia corporificada Se o papel social e a ideologia mantêm uma certa identidade é na família local privilegiado de reprodução ideológica que se desenvolve o aprendizado do primeiro papel social o de filho Na família burguesa esse papel é desenvolvido a partir da submissão aos pais definida pelo exercício do controle sobre o próprio corpo em troca do afeto parental Essa estrutura relacional solidifica as bases para o pleno desenvolvimento do papel de filho prescrito pela ideologia vigente A submissão inicial se transforma em aceitação dos valores dos pais e é apresentada como natural e necessária No que consiste hoje por exemplo o papel de filho numa família pequenoburguesa inicialmente ele deve obedecer aos pais apren dendo a controlar os esfíncteres os impulsos sexuais e manterse limpo Quando ingressa no mundo extrafamiliar esperase que represente bem sua família sendo bom aluno na escola apren dendo as lições escolares e transferindo aos professores a relação de obediência aprendida com os pais e que seja modelo de bom comportamento em todas as situações evitando preocupar os pais Obediência aos pais significa assim aceitação de normas que já estavam definidas quando ele nasceu aceitação sem questiona mento isto é submissão Tudo isso em troca do afeto dos pais O que o papel esconde é que ele é constituído a partir das relações sociais determinadas pela divisão social do trabalho e pela dominação de classe A família que circunscreve esse papel produto 20 Salem Tania op cit pp 2526 M6 JOSÉ ROBERTO TOZONI REIS histórico aparece como algo natural de tal forma que os papéis sociais familiares aparecem também como naturais ou seja como invariáveis e independentes das relações sociais de classes Isto é a pura ideologia atuando Já vimos como o Estado determina os papéis sociais em função de seus interesses Quando não pode fazer isso através de leis usa dispositivos que insinuandose no tecido social onde devem atuar vão criar normas para as condutas dos diferentes membros da família E o papel social familiar não apenas outorga essas normas como esconde o processo de sua constituição histórica O ponto culminante do aprendizado do papel social de filho situase na triangulação edipiana na qual o sujeito aprende a inter dição básica que lhe é imposta e reconhece a autoridade paterna introjetandoa A forma como os pais desempenham seus papéis nessa fase é de grande importância para o estabelecimento do superego da criança e para a formação do papel de filho que será o suporte para o desenvolvimento de outros papéis sociais Não se deve esquecer que também a ação dos pais é regida pela ideologia que prescreve as formas de ação parental tanto no que se refere ao cuidados físicos dos filhos quanto aos aspectos da vida emocional Portanto a família nuclear burguesa inserida nas relações sociais mais amplas vai modelar o desenvolvimento dos papéis sociais de seus membros em função de determinações que a trans cendem de forma que os papéis sociais na sua estrutura e dinâmicas próprias nada mais fazem do que repetir e concretizar num âmbito microssociológico a estrutura de contradição e oposi ção básica que se realiza num âmbito maior entre papéis históricos constituída pela relação dominadordominado 21 Quando a família burguesa leva suas funções às últimas conseqüências ensinando a submissão desde o início da vida faz com que essa estrutura relacional se transfira para os outros papéis sociais que terão tio papel de filho o seu molde Ao formar o indivíduo obediente e autodisciplinado com iniciativa apenas para baterse pelos ideais da ascensão social e econômica a família está preparando o cidadão passivo acritico conservador sem espontaneidade e incapaz de criar repetidor de fórmulas veiculadas pela ideologia dominante 21 Naftah Neto Alfredo Psicodrama Descolonizando o imaginá rio São Paulo Brasiliense 1979 p 193 O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES U7 pronto a seguir e obedecer quem se apresente revestido de auto ridade em defesa da ordem estabelecida Se a família nuclear burguesa hoje corresponde ao padrão dominante de estrutura familiar difundido entre outras classes sociais uma importante questão a ser colocada referese à ampli tude com que outras classes foram impregnadas pelos padrões familiares burgueses Ou até mesmo em que nível a família burguesa mantém atualmente os padrões que a definiram no século passado Novos e importantes elementos têm aparecido constantemente no panorama social e a família não fica imune a essas influências Hoje podese perguntar por exemplo qual é a conseqüência para a vida familiar do ingresso maciço das mulheres na universidade e no mercado de trabalho Onde isto ocorreu a mulher se livrou da clausura doméstica Podese pensar então que ela se livrou também da dominação masculina Hâ denúncias de que o simples ingresso no campo do trabalho extradoméstico veio piorar ainda mais suas condições de vida pois ela continua sozinha nas obrigações do trabalho doméstico tendo agora duas jornadas de trabalho princi palmente quando não tem condições de manter uma empregada doméstica Poderseia também questionar sobre as implicações dessa nova situação para a educação dos filhos que deixaram de ter a intensa interação com a mãe típica do início da família burguesa Outro fato importante da vida contemporânea é a presença da televisão na grande maioria dos lares Essa presença provoca um rompimento das distâncias culturais e oferece o risco da padro nização dos valores e costumes esmagando as culturas periféricas Podese pensar a partir dessa realidade que os padrões familiares caminham para uma progressiva padronização abolindo as formas particulares que caracterizam grupos de diferentes regiões ou segmentos sociais E as crianças estarão menos subordinadas aos pais por estarem em idade precoce em contato com um repertório de informações que não seriam acessíveis às crianças de gerações anteriores Os movimentos feministas também têm tido importante atuação no sentido de despertar as consciências para a necessidade da transformação das condições de vida da mulher principalmente entre as classes médias urbanas e em setores do operariado Estas questões todas não podem ser respondidas de uma só ve2 dado sua abrangência No entanto é possível abordar algumas delas situandoas no conjunto Uma dessas possibilidades referese 118 JOSÉ ROBERTO TOZONl REIS á tentativa de entender os atuais padrões familiares Nesse sentido podemos constatar que a família nuclear burguesa continua predominando apesar de algumas modificações e adaptações Embora seja freqüentemente contestada e ainda que sejam feitas tentativas para viabilizar novas formas de organização familiar que superem a dominação e a repressão a estrutura familiar que associa amor e autoridade ainda prevalece com alguns outros traços típicos da família burguesa original como a rígida divisão dos papéis sexuais e a repressão à sexualidade No entanto isso nâo significa que essa família esteja navegando em mares calmos como no passado Embora mantendose traz agora gritantes conflitos instalados em seu interior que em geralT são desencadeados pelas gerações mais novas Nesse sentido são as classes médias que apresentam com mais ênfase os padrões familiares burgueses e ao mesmo tempo exprimem mais claramente a existência desses conflitos Elas demonstram de forma mais evidente a força da ideologia veiculada pela família pois as novas realidades são vividas como experiências bastante conflitivas e angustiantes ao oporem a necessidade de adotar novas condutas aos valores inculcados pela família num doloroso processo que reativa o princípio da educação burguesa que associa amor e autoridade Por isso é comum o sentimento de culpa apresentarse como entrave maior do que a própria ação direta dos pais no processo de transformação dos valores Uma das principais armas do conservadorismo na luta pela manutenção dos padrões tradicionais ainda é a educação desen volvida segundo os moldes da família burguesa Em trabalho anterior22 estudamos as representações de família de participantes de um grupo de psicoterapia psicodramática bem como as irra diações para outros papéis das características dos papéis familiares Em grande parte nossas observações são coincidentes ou comple mentares às elaboradas por T Salém em trabalho desenvolvido com outra metodologia23 Os dois grupos estudados pertencem à classe média Neles havia representantes de diferentes segmentos desde funcionários públicos até diretores de empresas 22 Reis José Roberto Tozoni A família e a reprodução da ideologia Um estudo através do psícodramat Dissertação de Mestrado PUC São Paulo 1983 23 A autora entrevistou separadamente os membros das famílias estudadas e comparou posteriormente as respostas As entrevistas tinham como temas diferentes aspectos da vida familiar O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 119 Um dos pontos colocados em destaque por esses estudos é â autorepresentação da família que se contradiz com as vivências concretas de seus membros Quando se referein ao conceito d família predomina a idéia de harmonia e de disponibilidade incondicional de amor e proteção entre seus membros Quando se fala das relações concretas fazse referência a conflitos dominação sensação de sufoco e opressão Isso provoca o que chamamos de tendência â dissimulação toda vez que algum acontecimento é percebido como passível de colocar em risco a noção idealizada de família tudo é feito para que ele não seja percebido Em casos mais extremos os filhos reprimem qualquer sentimento de hostilidade dirigido aos pais ou irmãos Tudo aquilo que difere da idéia que a família faz de si mesma deve ser negado A prevalência da rígida divisão de papéis sexuais faz com que a família contemporânea se assemelhe bastante à sua ancestral Várias características dos papéis de homem e mulher permaneceram imutáveis Os homens vivem do e para o trabalho e sem ele a vida não tem sentido Por isso temem a aposentadoria pois ela é associada à morte Para eles não há a possibilidade de vida sem os seus trabalhos24 A funçào principal das mulheres como as suas antecessoras contínua sendo a educação dos filhos Algumas tra balham fora Umas o fazem por necessidade econômica mas o fato de ajudarem na manutenção material da família não as libera das obrigações domésticas Para outras o trabalho foi uma forma de combater o vazio e a depressão causados pelo crescimento dos filhos Não tendo mais sua função primordial para desenvolver foi neces sário buscar fora de casa outra ocupação para não sucumbir Em vários casos os filhos e maridos eram os motivos pelos quais a mulher começava a trabalhar ficar em casa poderia provocar vazio ou tédio e com isso desagradar filhos e marido Em ambos os trabalhos citados os homens caracterizamse por um sentimento de autorealização e autonomia acreditandose livres e autores dos roteiros de suas respectivas vidas Esse sentimento era mais acentuado naqueles que haviam experimentado uma ascensão econômicosocial em relação a suas famílias de 24 E impressionante a coincidência do significado atribuído ao trabalho em duas situações bem diferentes no trabalho citado de T Salem quando foram entrevistados todos os país e nas sessões de psicodrama que estudamos quando os filhos dramatizavam os papéis de seus respectivos pais 120 JOSÊ ROBERTO TOZONl REIS origem Ao mesmo tempo relatam sentimentos de solidão e difi culdades para ter amigos Quando os pais sentiam que haviam deixado de ter um benefício pelas dificuldades da vida passada faziam o possível para que isso não faltasse a seus filhos Isso fica muito claro em relação ao diploma universitário Aqueles pais que nâo o possuíam e por isso valorizavam mais as atividades práticas eram os mais empenhados em que os filhos o obtivessem O diploma universitário além de ser considerado um instrumento que facilita o acesso a uma melhor vida material é também considerado como uma marca de distinção social Já as mulheres definemse pela dedicação ao marido e aos filhos o objetivo principal de sua vida está nos outros e por isso se vêem com menos autonomia Sua atuação caracterizase pelos aspectos emocionais ao contrário dos maridos Essas diferenças se apresentam em relação de complementaridade até mesmo no exercício do controle sobre os filhos Enquanto o pai usa explici tamente sua autoridade a mãe lança mão de formas indiretas como a sedução e a chantagem emocional25 Essas características femi ninas mantêmse mesmo nos casos em que a mulher é tão responsável quanto o homem pela manutenção material da família isto é quando tem ganhos equivalentes aos do marido A família atua no sentido do aprendizado diferenciado dos papéis sexuais ao tratar diferentemente filhos e filhas Enquanto os filhos são estimulados a serem independentes sem contudo romper com os valores da geração mais velha as filhas são resguardadas e os pais desenvolvem um esforço sistemático para retêlas no universo familiar A vida profissional e sua preparação os estudos cons tituem a principal preocupação e objeto da vigilância dos pais em relação aos filhos enquanto que para as filhas a principal preocu pação referese à vida afetivosexual Se a formação universitária ê tida como necessária para os filhos para as filhas tem o sentido de proporcionar status ao paí ou ao marido Para elas o diploma deve ser usado como exercício profissional apenas em caso de neces sidade Os filhos reproduzem a autoimagem do progenitor do mesmo sexo enquanto os filhos sentemse livres e donos de seus próprios 25 No grupo que estudamos um dos sujeitos relatou que quando os irmãos começavam alguma briga a mãe ficava nervosa ou ameaçava desmaiar e assim acabava com qualquer briga O INDIVÍDUO e a s i n s t i t u i ç õ e s 121 destinos as filhas sentem a vida determinada por outros e limitada pela família Para os filhos a opção profissional é sentida como exercício da liberdade e da autonomia para as filhas a escolha profissional se caracteriza por sentimentos de insegurança A sexualidade continua ocupando papel destacado na família contemporânea Ainda é vista como algo a ser controlado princi palmente por parte das mulheres A virgindade das filhas constitui grande preocupação para os pais Em todos os casos de pacientes de psicoterapia que estudamos a sexualidade se constituía em núcleo de conflito Existem em geral duas referências a ela uma à sexualidade genericamente referida a sexualidade abstrata que é apresentada como algo natural e prazeroso outra à vivência con creta de cada um nela a sexualidade é causadora de sentimento de culpa e de angustia Essa percepção da sexualidade foi desenvolvida no seio da família embora de forma sutil Todos aprenderam a ver o sexo como errado e pecaminoso embora não se lembrassem de qualquer condenação das atividades sexuais falada abertamente Há uma nova realidade em relação à família burguesa original que às vezes faz da sexualidade um fator de mudança familiar Com a liberalização dos costumes sexuais tem aumentado progressiva mente as possibilidades de transgressão dos padrões sexuais restri tivos No caso da perda da virgindade feminina há sempre um choque e a instalação de uma crise familiar a partir do momento em que o fato se toma conhecido Essa situação pode provocar dife rentes desfechos que vão desde a marginalização e expulsão da filha transgressora o que se torna cada vez mais incomum até a uma adaptação da família à nova situação Neste caso a família acaba por reformular o padrão que associa virgindade e possibilidade de casamento Outro ponto crítico do relacionamento entre pais e filhos é a ligação destes com membros de fora do grupo familiar As amizades são objeto de constante vigilância e muitas vezes elas são respon sabilizadas pelas condutas reprováveis dos filhos Isto se dá princi palmente porque os grupos de pares que se formam a partir da adolescência são bases de apoio para a oposição dos filhos aos pais Esses grupos providenciam importantes trocas afetivas entre seus componentes e por isso podem substituir pelo mepos ftírcíalmente o grupo familiar Na realidade eles permitem que os filhos se sintam mais independentes da família à medida que esta deixa de ser a única fonte de afeto Não dependendo mais exclusivamente da 122 JOSÊ ROBERTO TOZONI REIS família como em geral ocorre durante a infância os filhos já podem questionar os valores que a família lhes impde26 Nos processos de psicoterapia a família é o núcleo da grande maioria das queixas Em geral a família é percebida pelo viés da ideologia Ás posições ocupadas por seus membros no conjunto das relações familiares sâo tidas como fixas e portanto imutáveis Os filhos na sua maioria sentemse impotentes diante de tal situação ao mesmo tempo que se sentem como vítimas do poder paterno que as oprime Assim fazendo não percebem o quanto também contri buem para a manutenção de tal realidade ao complementar o papel materno com o de filho submisso Imobilizado pelo sentimento de culpa Os sujeitos tinham dificuldade para perceber a real função da mãe no controle sobre os filhos pois atribuíam a ela a simples condição de vítima do poder paterno De fato na maioria dos casos as mães também são vítimas do pai Mas ao mesmo tempo elas ajudam a exercer o controle sobre os filhos Para essa finalidade podem ter até mesmo um papel mais importante que o do pai pois usam de meios mais sutis27 Assim podemos concluir que certas características funda mentais da família burguesa típica do século passado que criou novos padrões para a vida familiar adequados às necessidades da nova classe dominante continuam presentes nas famílias contem porâneas Entretanto essa presença se dá parcialmente porque hoje são outras as condições históricas O modo de produção econômico correspondente aos interesses burgueses parece debater se com dificuldades cada vez maiores para sua sobrevivência À estrutura familiar burguesa assim como o modo de vida que a originou é assediada por todos os lados inclusive internamente Algumas mudanças já se processaram e outras se fazem pressentir Mas ainda continua vigindo a rígida hierarquia de sexo e de idade assim como a associação entre amor e autoridade Ambos atuando 26 Uma das pacientes do grupo estudado revelou que sua solidão e sua dificuldade para estabelecer relacionamentos afetivos estáveis foram aprendidas na infância os pais lhe ensinaram que apenas membros da família poderiam se gostar e que estranhos apenas teriam interesse por ela Isso ocorreu quando ela ingressou no jardim da infância e contou em casa que gostava muito da professora e se sentia gostada por ela 27 Um estudo de Naffah Neto J0 drama da família pequenobur guesa in Naffah Neto A Psicodramatt2ar São Paulo Ed Ágora 1980 evidencia a existência de um poder reservado para a mãe no espaçodomôstico correspondente ao de chefe ideológico da família O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES m associadamente ainda produzem sofrimento e angústia ao mesmo tempo que fornecem as bases para o adestramento ideológico Embora reconhecendo as determinações econômicas da estrutura familiar nào podemos esperar que as transformações econômicas produzam por si mesmas e de forma automática as mudanças na vida familiar em direção a uma família mais tolerante e promotora do bemestar emocional de seus membros No entanto constatamos também a ocorrência de algumas transformações na família dentro de um mesmo modo de produção econômico como é o caso da família burguesa Mas sabemos também que uma estrutura familiar predomi nante que promova incondicionalmente o bemestar de seus membros apenas será possível quando ela não mais se definir por um fechamento e uma oposição ao mundo extrafamiliar ou seja quando voltar a integrar seus membros na comunidade que a cir cunscreve o que não significa voltar a modelos historicamente superados E isso apenas será possível quando a competição deixar de ser o motor do relacionamento entre os homens Bibliografia Almeida Maria Suely Kofes et alii Colcha de retalhos estudos sobre a família no Brasil São Paulo Brasiliens 1982 Althusser Louis Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado trad Joa quim José de Moura Ramos Portuga PresençaBrasil Martins Fontes 1974 Canevacci Massimo org Dialética da Família trad Carlos Nélson Gou tinho São Paulo Brasiliense 1982 Costa J F Ordem Médica e Norma Familiar Rio de Janeiro Ed Graal 1979 Biblioteca de filosofia e história das ciências vol n 5 Engels F A origem da família da propriedade privada e do estado Rio de Janeiro Vitória 1964 Marcuse H Eros e Civilização uma interpretação filosófica do pensa mento de Freud trad Álvaro Cabral Rio de Janeiro Zahar 1972 Marx K e Engels F La ideologia alemana Trad do alemào por Wen ceslao Roces 4 ed Buenos Aires Ed Pueblos Unidos 1973 Moreno J L Psicodrama trad Daniel Ricardo Wagner 2 ed Buenos Aires Ed Hormé 1972 Naffah Neto Alfredo Psicodrama descolonizando o imaginário Sào Paulo Brasiliense 1979 Psicodramatizür São Paulo Ed Ãgora 1980 Poster M Teoria crítica da família trad Ãlvaro Cabral Rio de Janeiro Zahar 1979 124 JOSÉ ROBERTO TOZON1 REIS Reis José Roberto Tozoni A família e a reprodução da ideologia um estudo através do psicodrama Dissertação de Mestrado PUC São Paulo 1983 Salem Tatiia O velho e o novo um estudo de papéis e conflitos fami liares Vozes Petròpolis 1980 O processo de socialização na escola a evolução da condição social da criança Marília Gouvea de Miranda O processo de socialização da criança na escola tem merecido dos pedagogos e psicólogos variados estudos explicativos e nonna tivos Contudo os diferentes enfoques teóricos e metodológicos sào construídos tomando por base determinadas concepções raramente questionadas ou redefinidas a idéia de infância a finalidade da escola as relações entre criança escola e sociedade e o próprio processo de socialização A ausência de análise crítica destas questões confere a esta abordagem uma visão abstrata de criança e escola A idealização de uma natureza infantil e de uma função socializadora da educação destituída de seu caráter histórico e socialmente deter minado reduz a teoria a uma finalidade pragmática e profunda mente ideológica promover a integração de uma criança abstrata a uma sociedade harmônica via processo de escolarização essencial mente neutro Em vista disto 1 s propomos a discutir a socialização na escola a partir da avaliação das concepções que dão suporte teórico e ideológico às abordagens não criticas psicológicas e pedagógicas sem pretensões de esgotar a questão Nosso pressuposto é que a redefinição do processo de socialização passa pela análise da produção destas idéias básicas ou seja a retomada dos deter minantes históricos e sociais da concepção de criança e escola 126 MARlLlA GOUVEA DE MIRANDA A idéia de infância a condição social de ser criança A idéia de infância tal qual a concebemos hoje surge simultaneamente ao sentimento de família e ao desenvolvimento da educação escolar Certamente não se trata de uma coincidência Tais transformações resultaram da organização das relações sociais de produção da sociedade industrial Na Idade Média e no início dos tempos modernos os filhos eram evidentemente cuidados e protegidos por seus pais no seio de uma organização familiar Mas a existência de família nào implicava um sentimento de família que unisse emocionalmente seus membros em núcleos isolados o que iria se desenvolver lentamente a partir do século XVII em torno do sentimento de infância Ariès 1981 Anteriormente à sociedade industrial a duração da infância se limitava à tenra idade em que ela necessitava dos cuidados físicos para a sua sobrevivência Logo que este desenvolvimento físico fosse assegurado aproximadamente aos sete anos segundo Ariès a criança passava a conviver diretamente com os adultos comparti lhando do trabalho e dos jogos em todos os momentos A apren dizagem de valores e costumes se dava a partir do contato com o adultos a criança aprendia ajudando aos mais velhos Logo a socialização acontecia no convívio com a sociedade não sendo determinada ou controlada pela unidade familiar Nesta forma coletiva de vida se misturavam idades e condições sociais distintas não havendo lugar para a intimidade e a privacidade A fajrrilia moderna que se estabeleceu na burguesia a partir do século XVIIi veio instalar a intimidade a vida privada o sentimento de união afetiva entre o casal e entre pais e filhos Sua consolidação aconteceu graças à destruição das formas comunitárias tradicionais reorganÍzandose em função das necessidades da ordem capitalista Segundo Ariès a aprendizagem social vai deixando de se realizar através do convívio direto com os adultos sendo substituída pela educação escolar a partir do fim do século XVII Sob a influência dos reformadores moralistas paulatinamente se admitia que a criança não era preparada para a vida cabendo aos pais a responsabilidade pela formação moral e espiritual dos filhos o que levou ao aparecimento de sentimentos novos nas relações entre os membros familiares o sentimento moderno de família Os pais pas saram a enviar seus filhos à escola onde receberiam a sólida 01NDTVIDUO E AS INSTITUIÇÕES formação proclamada pelo pensamento moralista da épOOft Allim segundo esse mesmo autor a família e a escola retiraram Juntai A criançada sociedade dos adultos 1981 p 277 r E importante salientar que tais transformações ocorreram em primeiro lugar nas familias burguesas sendo que a alta nobreza e o povo conservaram por mais tempo os antigos padrões Aries observa que o sentimento de família e de infância surgem do mesmo processo pelo qual se desenvolveu o sentimento de classe social da burguesia ascendente No século XVII por exemplo as crianças ricas costumavam freqüentar as escolas de caridade No século XVIII tal fato já não era admitido passando os filhos da burguesia a freqüentar os colégios garantindo o seu monopólio As considerações destes fatos históricos nos permitem com preender como a idéia moderna de infância foi determinada socialmente pela organização social capitalista definida pelos interesses de uma classe ascendente a burguesia Contudo a idéia de infância que se desenvolveu e chegou até nossos tempos não exprime seu fundamento histórico Ao contrário suprimeo ao se apresentar como se fosse um conceito eterno universal e natural Em conseqüência é dissimulada a dimensão social da relação da criança com o adulto e a sociedade Assim a criança que na sociedade medieval convivia com os adultos em todos os momentos é afastada deste convívio Com isto perdeu a possibilidade de opinar sobre decisões que lhe diziam respeito foi excluída do processo de produção as festas e jogos foram diferenciados restando à criança a condição de mera consumidora de bens e idéias produzidos exclusivamente pelos adultos Tomase então um ser cuja condição social é rejeitada pois é marginalizada econômica social e politicamente Charlot 1971 p 111 Charlot analisa a imagem moderna da criança como um ser usualmente definido pelo que tem de contraditório inocente e má imperfeita e perfeita dependente e independente herdeira e ino vadora idem p 101 Esta dupla face da criança é explicada pela sua própria natureza infantil A criança estaria desprovida de meios para enfrentar o mundo por isso é naturalmente inocente e naturalmente má A idéia de infância como fato natural e não social justifica todas as concepções comuns sobre a criança e tem a função ideológica de dissimular a sua desigualdade social enquanto ser à margem do processo de produção 128 MARlLIÀ GOUVEA DE MIRANDA Apesar de a idéia de infância ser uma representação dos adultos e da sociedade a criança tende a internalizar este modelo e acaba por tornálo sua realidade em parte se identificando e em parte se rebelando contra os preceitos naturais que negam sua condição social Enquanto a assimilação da imagem corresponde às aspirações do adulto e da sociedade a rebeldia corresponde ao temor da nãoassimilação que é preciso a todo custo evitar Para Charlot a criança é assim o reflexo do que o adulto e a sociedade querem que ela seja e temem que ela se torne idem p 109 Tanto a assimilação do modelo quanto a sua recusa são plenamente justificadas pela idéia de natureza infantil Ideologicamente fica legitimada a necessidade de se auxiliar a criança no seu processo de assimilação das normas e penalizar aquelas que as recusam em nome de uma condição natural na criança A ênfase à natureza infantil encontra seu fundamento segundo muitos autores e mesmo a nível do senso comum no processo biológico de desenvolvimento da criança Sem dúvida ela é um ser em formação biológica ainda não plenamente constituída do ponto de vista maturacional Contudo o desenvolvimento biológico não corresponde a toda realidade da criança Mesmo porque o aspecto biológico se caracteriza como um componente do desen volvimento que sofre as determinações da condição social do indivíduo Na verdade o que caracteriza o homem ê sua condição de ser social o que é em parte determinado pela sua condição biológica mas nâo inteiramente Independentemente de sua origem social a criança passa por um processo de maturação biológica em que seu desenvolvimento depende da mediação do adulto Contudo esta mediação se fará de diferentes maneiras às vezes opostas dependendo da condição social da criança Na sociedade capitalista definida pelas relações estabelecidas entre classes sociais antagônicas a origem da criança determina uma condição específica de infância Não existe por tanto uma natureza infantil mas uma condição de ser criança socialmente determinada por fatores que vão do biológico ao social produzindo uma realidade concreta Assim a dependência da criança é um fato social e não um fato natural Esta distinção entre natureza e condição infantil esclarece o uso ideológico da idéia de natureza infantil para a dissimulação das diferentes condições a que são submetidas as crianças em função de sua origem de classe Falar do que é natural na criança supõe a igualdade de todas as crianças a idealização de uma criança o i n d i v í d u o e a s i n s t i t u i ç õ e s 129 abstrata Pelo contrário falar da condição de criança remete à consideração de uma criança concreta socialmente determinada em um contexto de classés sociais antagônicas A representação de infância subjacente às concepções peda gógicas e psicológicas tende a reproduzir a imagem social de infância de sua época evoluindo historicamente Na educação podemos distinguir duas concepções distintas de criança na pedagogia tradicional e na pedagogia nova Ambas conservam a idéia de natureza infantil Segundo Chariot todas as duas abordam a criança do ponto de vista de sua educabilidade e sua corruptibilidade ainda que esta idéia de corrupção seja completamente diferente idem p 116 Para a Pedagogia tradicional a idéia de criança é a idéia do que ela deverá ser se for adequadamente educada Quando relegada à sua própria sorte é facilmente corrompida pelo mal Cabe à educação ensinar normas é conteúdos moralmente sadios que contrariem sua natureza selvagem lá a pedagogia nova vê a criança como um ser pleno para a autorealização em cada etapa de desen volvimento É portanto naturalmente boa e ingênua podendo ser corrompida se não for protegida e respeitada A tarefa da educação é favorecer seu desenvolvimento natural e espontâneo Nas duas pedagogias a criança é portanto definida como um tempo negativo pedagogia tradicional ou tempo positivo pedagogia nova de uma natureza infantil Ainda que seja inegável a contribuição da pedagogia nova para uma visão mais adequada da criança ela não escapa de uma visão naturalista e biológica da infância descon siderando a condição históricosocial da criança A psicologia moderna se desenvolve no mesmo período em que ganha força o movimento da escola nova a partir do fim do século passado em plena consolidação do poder burguês A crença na educação como equalizadora de oportunidades é abalada pela incapacidade da escola de cumprir sua função de universalidade conforme era proclamado pela ideologia liberal O movimento escolanovista vem restaurar a credibilidade na escola afirmando que o fracasso de seus alunos se deve às diferenças individuais A função da nova escola será promover a correção da margi nalidade na medida em que contribuir para a constituição de uma sociedade cujos membros não importam as diferenças de quaisquer tipos se aceitem mutuamente e se respeitem na sua individualidade específica Saviani 1983r p 12 A ênfase na capacidade indi vidual na história dos indivíduos no processo de desenvolvimento 130 MARlLIA GOUVEA DE MIRANDA na idéia de anormalidade faz com que a pedagogia vá buscar suporte teórico na Biologia e na Psicologia A Psicologia por sua vez sob forte inspiração positivista reduz a realidade social do homem ao seu componente psíquico Assim a Psicologia moderna que vem ao auxílio da Pedagogia nova será portanto igualmente individualista naturalista e biológica Socialização nSo é integração a criança já é sempre socializada A Pedagogia e a Psicologia têm quase sempre tratado o processo de socialização como um estágio de integração da criança à sociedade Vimos que tanto a Pedagogia tradicional quanto a Pedagogia nova se preocuparam em fazer da escola uma passagem do mundo infantil para o mundo adulto levando em conta o que a sociedade espera de seus membros em defesa da manutenção de seus interesses Na sociedade medieval a idéia de integração não teria sentido algum uma vçz que o espaço social era igualmente eompartÜhado por crianças e adultos Como vimos a necessidade de integração surgiu com a exclusão das crianças do mundo dos adultos A instituição encarregada de iniciar a criança egressa do meio familiar na vida social adulta passou a ser a escola Na atualidade a escola continua propondo a integração social a socialização como uma de suas principais finalidades Tal finalidade atua como dissimuladora da realidade social pois ainda que marginalizada na estrutura social moderna a criança sofre continuamente um processo de socialização desde o seu nasci mento até mesmo antes no útero ou na própria história de sua mãe Portanto como afirma Charlot a criança é um ser sempre já socializado 1979t p 259 Nâo se pode supor como a Psicologia quase sempre o faz um desenvolvimento social individual que depois se amplia se integra ao mundo social adulto Desde sempre a criança jâ sofre um processo de socialização através do qual a sua origem social de classe determina sua condição de ser social A formação de sua personalidade social não passa primeiro por um estágio individual para depois se socializar Ainda que assuma os contornos de suas características especificas ela é sempre socia lizada Afirmar o contrário é acreditar numa capacidade própria do indivíduo natural para a socialização A marginalidade social O INDIVÍDUO AS INSTITUIÇÕES IJi seria então facilmente explicada pela incapacidade de adaptaço do indivíduo às normas sociais Fica assim plenamente justificada a finalidade ideológica da escola de promover a adaptação do indivíduo à sociedade A escola é uma agência socializadora de uma sociedade que se afirma democrática Se o processo de sociali zação integração não é possível preservase a escola e a ordem democrática pois a responsabilidade será sempre do indivíduo inadaptado Afastada a idéia de socialização enquanto integração pode mos recuperar a idéia de socialização evolutiva proposta por Charlot Para ele a socialização deve ser tratada como um processo evolutivo da condiçào social da criança Assim o problema não é investigar como a criança se socializa mas como a sociedade socializa a criança idem p 259 A Psicologia tem quase sempre tentado explicar como a criança se socializa abordando o processo pelo qual ela se trans forma em ser social A Psicologia não supera portanto o anta gonismo entre indivíduo e sociedade Não tem por objetivo uma análise dialética das relações entre a criança e a sociedade numa perspectiva de totalidade e historicidade A Psicologia estuda a socialização de uma criança que vive em condições sociais específicas e norma tiza suas conclusões para todas as crianças É perto que todas as crianças vivem um período de crescimento de desenvolvimento da personalidade num mundo social adulto que ainda não é inteiramente assimilado em qualquer meio social Mas este processo de desenvolvimento será diferente de acordo com sua condição social A Psicologia normalmente estuda esta complexidade de fatores como influência do meio Não percebe que o processo de desenvolvimento do indivíduo se inscreve num processo històricosocial que o determina e por sua vez é por ele determinado Assim o processo de socialização da criança é concretamente determinado pela sua condição históricosocial Além disso enquanto sujeito da história a criança tem a possibi lidade de recriar seu processo de socialização e através dele interferir na realidade social Afirmar que a criança é sujeito da ação pode causar certa estranheza numa sociedade que nega o papel social da infância Isto fica mais explicito quando consideramos as diferentes formas de participação da criança em condições sociais distintas As crianças pobres da cidade e da zona rural trabalham desde que tenham o desenvolvimento físico suficiente Muitas vezes sustentam suas 132 MARlLIA GOUVEA DE MIRANDA famílias Representara um importante contingente de trabalha dores quase sempre subempregados explorados pelas relações de produção Por outro lado as crianças dos diferentes estratos da classe média são consumidoras muito importantes enquanto filhos de consumidores o que será sempre lembrado pela publicidade pela indústria de brinquedos discos e livros pelas escolas parti culares etc Como trabalhadora ou como consumidora a criança participa ativamente enquanto ser social atuando mais ou menos de acordo com seu estágio de desenvolvimento físico Concluindo o processo de socialização da criança nâo pode ser tratado senào dentro da perspectiva da análise dialética das relações de reciprocidade estabelecidas entre a criança e a sociedade de classes o processo de socialização só pode ser tratado como um processo evolutivo da condição social da criança considerando a sua origem de classe A escola e sua flnaUdade social A escola certamente não é neutra Ela atua como um instrumento de dominação funcionando como reprodutora das classes sociais através dos processos de seleção e exclusão dos mais pobres e ao mesmo tempo da dissimulação desses processos Con tudo esse papel não se realiza perfeitamente pois tanto a escola quanto o saber por ela ministrado constituem partes orgânicas de um todo social definido pela contradição básica contida na relação entre dominantes e dominados Saviani conceitua a educação como uma atividade media dora no seio de uma prática social global 1980 p 120 A mediação ocorre tio âmbito das relações que produzem o movimento de uma totalidade que se transforma em outra e conseqüentemente no âmbito das relações entre diferentes fenômenos que constituem manifestações desta totalidade As relações de mediação expressam necessariamente o movimento de oposição de contradições irrecon ciliáveis em busca de uma síntese superadora A escola constitui uma das mediações possíveis na efetivação do conflito entre as classes sociais Isto se dá porque a escola configura uma manifestação do movimento da totalidade social reproduzindo internamente o confronto entre interesses opostos Portanto a escola que atende às finalidades dos dominadores pode também representar um espaço vivo e dinâmico para os dominados O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 199 A definição dos fins sociais da educação implicam poli â proposição dos interesses de uma determinada classe social O acesso à escola e a qualidade de ensino têm sido reivindicações das classes populares Contudo a escola tem respondido a estas aspirações com a experiência do fracasso e da marginalidade cuja responsabilidade é atribuída à própria criança ou ao seu meio social Em nossa opiniào a escola tem três tarefas básicas a desempenhar a favor dos interesses das classes populares Primei ramente deverá facilitar a apropriação e valorização das carac terísticas sócioculturais próprias das classes populares Em se gundo lugar e como conseqüência da primeira a escola deverá garantir a aprendizagem de certos conteúdos essenciais da chamada cultura básica leitura escrita operações matemáticas noções fundamentais de história geografia ciência etc Finalmente deverá propor a síntese entre os passos anteriores possibilitando a crítica dos conteúdos ideológicos propostos pela cultura dominante e a reapropriação do saber que já foi alienado das classes populares pela dominação Miranda 1983 pp 5455 O fato de essas funções não constituírem hoje uma prática concreta nas escolas não nos impede de lançálas como projeção daquilo que poderá viraser um produto de nossa vontade e de nossa ação Esta possibilidade deverá ser buscada dentro da escola pois este viraser está contido no seu movimento real A tarefa de propor uma educação voltada para os interesses populares requer a elaboração de uma Pedagogia adequada a esses fins Para Charlot a tradução de fins sociais em fins pedagógicos pode ser esclarecida e depurada pelo conhecimento da Psicologia da criança 1979 p 227 Mas certamente uma Psicologia que leve em conta a condição social da infância A Psicologia não define pois os fins da educação mas pode contribuir no sentido de fazer com que eles sejam realizáveis As relações entre criança escola e sociedade o processo de socializaçZo No convívio com a família a criança intemaliza padrões de comportamento normas e valores de sua realidade social decorrente de sua condição de classe Até mesmo antes de nascer tais condições estão presentes Este processo ocorre necessariamente pela mediação do outro De acordo com Spitz a ausência da figura 134 MARlLIA GOUVEA DE MIRANDA materna 110 primeiro ano de vida acarreta sérios distúrbios emo cionais para a criança A presença do outro um adulto quase sempre é veículo para 0 estabelecimento dos vínculos básicos e essenciais entre criança e mundo social através dos quais ela passa a se reconhecer e a reconhecer 0 outro numa relação de reciprocidade Como vimos tal processo de internalização viabilizado pela mediação do outro é determinado pelas condições sociais espe cíficas da criança Assim a classe social em que se insere a família irá determinar os aspectos internalizados o veículo de internali zação e o próprio processo de internalização na socialização básica da criança Na escola a criança vive um processo de socialização qualita tivamente distinto passando a internalizar novos conteúdos pa drões de comportamento e valores sociais Será submetida a novos processos de internalização da realidade social pela mediação de novos veículos sociais Uma crítica à escola capitalista é que ela impõe uma cultura que considera legítima tornando ilegítima qualquer outra manifes tação cultural Desse modo a escola pública nega muitos conteúdos e valores já socializados e propões novos padrões de socialização Uma escola democrática comprometida com os interesses popu lares deverá reconhecer a legitimidade desses aspectos já sociali zados Porém isto não implica reafirmar os padrões já socializados no sentido de preservar uma cultura dominada emergente mas de conhecer com profundidade os padrões de socialização da criança Isto possibilitaria extrair os aspectos que irào direcionar a prática pedagógica e até mesmo aspectos que precisarão ser supe rados para que seja possível a tarefa da escola de assegurar ao aluno a aprendizagem de um conteúdo mínimo A escola devefá portanto atuar crítica e reflexivamente na objetivação dos conteúdos normas e valores internalizados na relação entre criança e escola Da mesma forma é preciso repensar e recriar os processos de internalização e seus veículos sociais ou mais precisamente a metodologia de ensino as normas disciplinares os processos de sedução e coação etc veiculados por todos os integrantes da escola principalmente pela figura do professor Acreditamos que a Psicologia tem uma importante contri buição a dar um auxílio à Pedagogia na redefinição de todos estes aspectos relativos à socialização da criança na escola Problemas como indisciplina violência rivalidade competição descompro misso individualismo autoritarismo estão presentes no cotidiano O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 135 das escolas públicas brasileiras Tais questões são tratadas empiri camente ou se tanto são psicologizadas sob diferentes matizes teóricos Raramente são alvo de uma análise critica ou de propostas de ação refletidas na perspectiva de uma realidade histórico social Qual é pois o significado destes problemas de sociali zação Se considerarmos a precariedade do ensino público no país a péssima qualidade de vida da criança e todo o contexto da atualidade somos levados a afirmar que tais problemas de socialização são sinais de saúde resquícios de uma vitalidade negada formas de resistência Contudo são formas que atrapalham e até mesmo impedem o processo de escolarização da criança que em nossa opinião precisa ser assegurado Possivelmente a releitura desses sinais nos indicarão novas maneiras de repensar o processo de socialização da criança na escola Bibliografia Ariès Philippe História Social da Criança e da Família Rio de Janeiro Zafrar 1981 Charlot Bernrd A Mistificação Pedagógica Rio dc Janeiro Zahar 1979 Miranda Marílía Gouvea de Do Cotidiano da Escola Observações Pre liminares para ume Proposta de Intervenção no Ensino Público Dissert Mestrado São Carlos UFSCar 1983 Saviani Dermeval Educação do Senso Comum à Consciência Filosófica São Paulo Cortez 1980 Escola e Democracia São Paulo Cortez 1983 Relações de trabalho e transformação social Wandertey Codo A Psicologia é a ciência que estuda o comportamento humano Mas que comportamento humano estudar Como iniciar a análise Façamos um exercício fechemos por alguns momentos os livros que já foram escritos a respeito de Psicologia e pensemos ingenuamente no caminho a seguir Começo por mim agora escrevo um texto que deve fazer parte de minha tese de doutoramento O cenário Estou sentado em uma cadeira com uma caneta na mão frente a um bloco de papel uma estante livros paredes interruptor de luz lâmpada acesa Tudo que compõe o ambiente em que estou tem uma característica em comum é o resultado do trabalho humano Para que existisse qualquer um desses objetos homens se reuniram se Qrganizaram o trabalho foi dividido realizado e vendido Não fosse a organização social que produziu a cadeira eu nâo estaria sentado ou a caneta e eu não escreveria ou o papel ou as paredes Posso concluir que me comporto dessa forma porque os homens transformaram a natureza colocaramna a meu serviço e que me comportaria de outra se o trabalho humano produzisse outros resultados O INDÍVIDUO E AS INSTITUIÇÕES 137 Partindo do que me circunda imediatamente encontrei a resposta para a pergunta formulada no início O psicólogo deve estudar o trabalho humano Quem entender como os homens transformam a natureza como se organizam para produzir entenderá muito sobre como e por que o homem se comporta Mas o cenário não é o único ponto de partida posso prescindir do ambiente imediato e tomar como ponto de referência o gesto mesmo meu comportamento O que faço 1 Escrevo ou seja imprimo em um papel pape1 utilizo um instrumento capaz de marcar caneta movimento minha ferramenta e provoco uma mudança no espaço de que disponho Descubro que faço com a caneta e o papel o mesmo que o marceneiro fez para produzir a cadeira em que sento utilizo as propriedades encontradas na natureza e dou a elas um sentido novo transformo a natureza à minha imagem e semelhança Chego à mesma conclusão devo estudar o trabalho do homem 2 Escrevo imprimo sinais em um papel mas não imprimo qualquer sinal uso símbolos que foram desenvolvidos antigamente e que me foram ensinados na infância unifico os símbolos de determinada maneira que também têm a mesma históri a Escrevo papel e você lê papel sofreu experiência próxima da minha foi alfabetizado como eu Eu escrevo e você lê porque nossa sociedade se organizou para coletivizar as experiências que a História permitiu aos nossos antepassados E eisme de novo falando de História de trabalho do Homem que se hominiza ao humanizar a natureza Enfim sob qualquer aspecto que examine meu comporta mento de qualquer ponto que eu parta do agora do passado do futuro do meu cérebro ao meu braço ou viceversat da minha sociedade para o meu comportamento ou viceversa chego à mesma conclusão urge estudar o trabalho Mas talvez este não seja ainda o ponto de partida adequado talvez meu comportamento seja avis rara exceção Deveria então partir do que os outros fazem Vejamos m WANDERLEY CODO Cenário Ruas casas carros asfalto concreto ferro alumínio ambiente no qual os homens se locomovem Lojas armazéns supermercados que os homens fre qüentam e onde compram vendem se encontram conversam Ràdío televisão cinema jornal revistas onde homens produzem informações sobre homens para os hòmens ou onde homens informam sobre produções dos homens para que os homens conheçam e consumam Fábricas onde os homens se organizam para transformar a natureza à sua imagem e semelhança se hierarquizam com base no domínio que têm sobre a produção e os meios de produção dividem desigualmente o produto por toda a sociedade e com essa divisão alimentam suas famílias com maior ou menor eficiência pagam suas habitações neste ou naquele ponto da cidade com mais ou menos conforto educam seus filhos formal e informal mente sempre dependendo do lugar que ocupam na produção Escritórios que organizam a organização dos homens que transformam a natureza e se hierarquizam e tudo se repete Escolas que instrumentalizam o homem que se posicionará nessa estrutura de produção e consumo Empresas inteiras homens e máquinas produzidas por homens dedicadas a transportar homens para os seus postos de trabalho Comportamento Vejamos rapidamente o comportamento de um indivíduo normal que trabalhe num escritório qualquer exercendo uma função burocrática Suponhamos que seja um funcionário de escri tório que tenha por função levar e trazer documentos fazer visitas às firmas etc O lugar onde ele trabalha determina o horário em que deve levantarse da cama portanto o horário de deitarse Deve preocuparse com a aparência ou seja vestir um determinado tipo de roupa por exemplo paletó e gravata o que significa que parte do orçamento doméstico deve ser deslocado para indumen tária e que a passagem pelo espelho é obrigatória antes de sair de casa Os desires que possa cometer uma camisa mal passada O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 139 uma gravata torta provocarão interferência das pessoas com quem ele se relaciona no trabalho direta ou indiretamente o seu chefe imediato pode lhe ordenar que corrija os defeitos os seus colegas de trabalho podem fazer comentários jocosos ou pode ter dificuldade de ser recebido em uma ou outra empresa Por outro lado recebe elogios ao se apresentar bem trajado uma roupa nova merece comentários elogiosos manifestações de inveja o que pode levar o nosso funcionário a se demorar frente às vitrinas a escolher mais criteriosamente o seu cabeleireiro a adotar enfiip toda uma postura ou um projeto um sonho de postura reforçado coti dianamente por todas as suas relações de trabalho Sua linguagem soire interferências diretas do trabalho que ocupa O trabalhador utiliza termos que para os outros mortais não integrados nesse trabalho são desconhecidos ou inusitados como kardex papel ofício requerimento protocolo borderôs RAIS isso para não citar a gíria1 da funçào Nos dias de folga ou depois de sair do trabalho se encontra com seus colegas de escritório e os eventuais amigos que fez por suas andanças Provavelmente namora uma recepcionista ou organiza um time de futebol que disputará com o escritório vizinho uma taça cedida gentilmente por um dos patrões eou fará um curso de datilografia de inglês de contabilidade etc Às relações de trabalho determinam o seu comportamento suas expectativas seus projetos para o futuro sua linguagem seu afeto Mas tomemos um outro exemplo um operário Tal e qual para o nosso funcionário de escritório os seus horários estào regulados pelo trabalho suas relações sociais também seus projetos também Diferentes ambientes de trabalho determinam porém indivíduos radicalmente diferentes As mãos do operário são grossas e ágeis suas roupas escolhidas por critérios de longevidade suas palavras e os bares que freqüenta são outros A análise mais aprofundada de quanto as tarefas intervêm no comportamento do operário será feita mais adiante no texto As afirmações acima são válidas para um comerciante uma enfermeira um executivo um dono de indústria Cada gesto cada palavra cada reflexão cada fantasia traz a marca indelével indis cutível de sua classe social do lugar que o indivíduo ocupa na produção Pois bem sejamos entâo mais pragmáticos e busquemos uma atividade que seja fundamental O homem está vivo porque se 140 WANDERLEY CODO alimenta Sua alimentação é conseguida através de seu trabalho Partindo da sobrevivência do homem chegaremos à mesma con clusão Nós psicólogos vivemos afirmando que o homem é um ser social um ser histórico Mas o que exatamente significa isso Ao declararmos que o liomem é um ser histórico estamos afirmando que a sua relação com o meio ambiente se dá de uma maneira permeada socialmente No dizer de Engels o único fato histórico que existe é que o homem precisa sobreviver E o que muda não é o que se produz num determinado período histórico são as relações de produção são as relações sociais que permeiam ou que signifi cam stricto sensu a relação entre os homens A comida que mantém o homem em pé o sexo que mantém as gerações se sucedendo a forma de expressão do homem sempre estiveram presentes em qualquer momento histórico que se tomar O que muda se transforma são as relações sociais Que os homens utilizam para essa produção No IIOSSO caso vivemos uma relação social muito bem estabe lecida uma definição das formas de produção muito clara que estabelece o papel do homem as relações que ele deve ou não manter com seus semelhantes Tratase do modo de produção capitalista Esse modo de produção permeia literalmente toda a atividade do homem com quem você se relacionará o que você produz o que consome de que maneira você produz fíde que maneira você consome Notese que estamos vivendo um período em que os meios de comunicação estão bastante desenvolvidos e todos eles permeados pelas relações de produção de uma forma direta1 Estamos vivendo na era da televisão do consumo de massas dos eletrodomésticos o que maximiza a relação entre sistema social e comportamento humano este último objeto de estudo da Psicologia Veremos a seguir como o sistema modifica o próprio trabalho e insere o homem numa determinada relação social distinta Tratase então de perceber que aqui mais do que nunca qualquer ato humano qualquer comportamento que servir como objeto de estudo a qualquer psicólogo é permeado necessariamente peias 1 Quando nos referimos a relações de produção queremos significar as relações de trabalho em uma sociedade capitalista onde o trabalho assumo a forma de mercadoria a o objetivo é a extração da maisvalis O INDIVÍDUO e a s INSTITUIÇÕES 141 relações de produção O gesto do homem é um gesto no mundo inserido necessariamente quer os psicólogos queiram ou não quer percebam ou não imediatamente nessas relações de produção desenvolvidas pelo ser humano A cada gesto pode ser atribuído o conteúdo de classe e aqui de novo sobra a mesma conclusão o estudo da Psicologia deve partir das relações de produção reconhecer como o comporta mento é determinado a partir dessas relações de produção Acima ao analisar as várias razões que nos levam a estudar as condições de trabalho humano e a respectiva inserção do homem neste processo falamos principalmente em determinação do com portamento do homem Cabem algumas observações Ê necessário sublinhar que estamos falando de determinação e não de subordinação2 A diferença é essencial não se trata de afirmar que todas as ações humanas estão subordinadas a um sistema capitalista ou qualquer outro sistema de produção Para exemplificar podemos tomar a relação pai e filho utilizando um método bastante comum em Psicologia de reduzir a realidade a seus termos mais simples para tentar explicála Depois voltaremos para a questão que nos interessa Podemos dizer que a vida do filho o seu comportamento atual é determinado pela relação que ele teve anteriormente com seus pais o que não significa que seja subordinada à relação com os pais Um filho não reproduz os pais Um pai que tenha sido um dentista não gerará um filho dentista Poderá por exemplo gerar um filho que tenha raiva horror que se afaste da profissão do pai e venha a ser um sociólogo O fato de o filho ter horror à profissão de dentista é determinado pela profissão do pai pela relação que o pai e filho tiveram durante sua história mas não significa que a escolha da profissão esteja subordinada literalmente ao comportamento do pai Ou ainda um pai idealista desligado absolutamente das questões concretas de sobrevivência preocupado mais com a arte do que com o pão pode gerar um filho absolutamente mesquinho preocupado com cada tostão que puder ser economizado para garantir o seu futuro Mesmo que o filho se desenvolva na mesma i2 A confusão entre determinação e subordinação é comum em uma abordagem mecanicista que queremos de infcio repudiar Como os extremos se tocam o mecanicismo materialista pode levar a uma postura metafísica como já foi apontado por Merani A L Psicologia e Afienação 142 WANDERLEY CODO profissão do pai continua valendo o mesmo raciocínio pois tratase de um novo sujeito em que poderemos estudar a determinação do comportamento do filho pelo pai sem reduzir o fenômeno à subordinação Quando falamos em determinação social estamos usando o mesmo significado Reconhecendo que o comportamento do homem está determinado pela sociedade onde vive semt no entanto se reduzir àquela sociedade Se o sislema gera alienação não precisamos ter necessaria mente operários alienados porque juntamente com alienação o sistema gera revolta a exploração de classe determina o desen volvimento de uma nova consciência de classe e a luta por um novo sistema social No início do texto colocamos a pergunta o que estudar em Psicologia Partindo do meio ambiente imediato em que os seres humanos vivem hoje das relações culturais que se estabelecem entre os homens ou dos fatos que garantem a nossa sobrevivência chega mos à mesma conclusão cumpre estudar o trabalho humano saber como as relações de produção determinam o comportamento do homem Mas dizíamos esta reflexão foi feita com os livros de Psicologia fechados Ao abrir os livros de Psicologia chega a impressionar o distanciamento que a nossa ciência mantém destas questões Apenas para citar um exemplo o fíandbook o f Sociai Psychology Lindzey Aronson 2 ed cinco grossos volumes que percorrem quase todas as áreas de estudo em Psicologia Social dedica exatamente dez páginas para discutir o problema do trabalho humano Vejamos o problema mais de perto convidamos o leitor a abrir um número qualquer do Psychological Abstract por exemplo o de janeiro de 1980 o último número de que disponho enquanto escrevo publicação que resenha todos os últimos trabalhos de Psicologia Procuraremos a palavra worker trabalhador e a revista nos remete à palavra personnel que em inglês significa pessoal grupo de empregados mais ou menos como utilizamos em português Departamento de Pessoal Seleção de Pessoal etc Ora eis aqui uma visão clara do significado da palavra trabalhador A julgar pelo Psychological Abstract o trabalhador interessa à Psicologia em função do Departamento de Pessoal O INDIVÍDUO e a s INSTITUIÇÕES 143 Continuemos nossa pesquisa e veremos que trabalho aparece em Psicologia com alguns significados bastante precisos 1 como uma variável interveniente ou seja um fator que pode interferir em outros aspectos da vida do indivíduo Vejase o artigo de K King 1978 que pergunta como os adolescentes percebem o relacionamento entre os familiares quando suas mães trabalham 2 como uma instituição estranha independente do indivíduo que trabalha Como por exemplo os trabalhos de previsão de tumover onde os objetivos do psicólogo são os de saber qual a probabilidade quando uma empresa contratar um indivíduo de que ele se mantenha no emprego Ver por exemplo o trabalho de F Suzene et al que mostra que quando a expectativa de salário é muito alta ou quando reside muito longe da íàbríca a mulher abandona mais freqüentemente o emprego ou ainda quais são os fatores que garantem a permanência no trabalho ver os artigos sobrejob satisfacüon Em síntese a Psicologia toma o trabalho a partir das relações de produção capitalista Vejamos qual o sentido que o capitalismo engendrou ao trabalho ou ainda qual a diferença entre a formu lação original de trabalho e o estágio de desenvolvimento atual das forças produtivas O trabalho hoje Toda mudança ocorrida nas relações de produção visou libertar o homem do jugo do feudalismo e tornálo livre para vender sua força de trabalho Apesar de lutas de classe ou seja a explo ração de uma classe sobre a outra terem se iniciado muito antes desse período a forma de exploração se modifica radicalmente Pela primeira vez na história o homem passa a vender a sua força de trabalho Essa transformação o advento da maisvalia a transformação do trabalho em mercadoria tem decorrências profundas na socie dade humana e também no comportamento humano que obvia mente se deram dialeticamente relacionadas Aqui por linxites de descrição separaremos os vários pontos tendo sempre em mente que não são eventos estanques ou isolados Muito sucintamente enumeraremos algumas transformações para análise 144 WANDERLEY CODO 1 Aos valores de uso satisfação de necessidades humanas que os objetos produzidos pelo homem contêm acrescentase pela divisão social do trabalho um outro valor o valor de troca Os objetos necessários ao estômago ou à fantasia humanos perdem sua especificidade um paletó não é mais apenas algo que me proteja do frio é também mercadoria trocáveJ por qualquer outra O fator equalizador dos diferentes valores de uso é o trabalho humano cada mercadoria individual é considerada um exemplo médio de sua espécie mercadorias que contêm iguais quantidades de trabalho ou que podem ser produzidas com o mesmo tempo de trabalho possuem conseqüentemente valor da mesma magnitude O valor necessário à produção de uma está para o tempo de produção de outra O Capital p 47 Se o produto do trabalho vale apenas pelas horas de trabalho nele inseridas o vínculo trabalhosatisfação de necessidades ganha um elo novo transformase em trabalhotroca de equivalentes satisfação de necessidades o que faz por tornar as necessidades do Homem contingentes ao dinheiro equivalente e não à sua própria tarefa Pela mesma razão subordina o uso à capacidade de troca e não à capacidade de produção Hm outras palavras a sobrevivência do homem passa a depender não de sua ação ou de seu trabalho mesmo mas sim do trabalho social ação social e por outro lado obviamente sua ação deixa de ser definida por suas necessidades e passa a ser definida por critérios sociais Ocorre aqui um primeiro processo de alienação no sentido de separação entre ação e sobrevivência humana3 o trabalho humano perde sua especificidade e se transforma em valor abstrato confundindose com a moeda que o representa 2 Para que haja mercadoria é necessário que haja divisão de trabalho se todos produzissem tudo não haveria necessidade de troca portanto não haveria necessidade de equivalentes A divisão do trabalho cria ato contínuo uma classe de comerciantes 3 Observese que se o processo se esgotasse por aqui a alienação a que nos referimos não dependeria de classe social lugar que o indivíduo ocupa na produção na medida em que mesmo o dono dos meios de produção não exerce o elo produção autosatisfação de necessidades o que denota duas coisas 1 que nâo é o surgimento do equivalente o responsável solitário pelo surgimento de classes como veremos a seguir 2 que o surgimento do capi talismo não aliena apenas o trabalhador mas tam bém o dono dos meios de produção o i n d i v í d u o e a s INSTITUIÇÕES responsável pela troca de mercadorias entre os consumidores o que faz com que pela primeira vez na história universal todo indivíduo dependesse do mundo inteiro para a satisfação de suas necessidades A Ideologia Alemã p 56 Ocorre que o valor de troca atribuído à mercadoria é expressão pura e simples da quantidade de trabalho injetada na natureza ou seja o trabalho humano é que está sendo negociado Tratase de materialização social do fenômeno apontado em 1 Recebo o necessário à minha vida através de um intermediário ou seja sequer conheço o indivíduo eou o processo de produção responsável pela satisfação de minhas necessidades igual destino sofre o que produzo A ação do homem passa a pertencer à sociedade a ser regu lada pelas leis de oferta e procura acumulada como capital A forma mercadoria é a forma geral do produto do trabalho em conseqüência a relação dos homens entre si como possuidores de mercadoria é a relação social dominante O Capital p 70 O trabalho é representado pelo valor do produto do trabalho e a duração do tempo pela magnitude deste valor fórmulas que per tencem claramente a uma sociedade em que o processo de produção domine o Homem e nâo o Homem dominú o processo de produção social4 grifos A Ideologia Alemã p 8 3 Pois bem o trabalho não é apenas uma mercadoria mas é a única capaz de produzir excedente por ser o único valor de uso capaz de criar valor consumir trabalho é criar trabalho O Capital cap III Tratase do único elo na cadeia de gerar mercadorias que pode ser explorado para gerar maisvalia mais valor pois o trabalho é vendido como qualquer mercadoria pelo preço de custo de sua produção o preço do sustento do trabalhador e sua família produção e reprodução da força de trabalho e pode ou deve produzir mais valor do que custou diferentemente de uma tora de madeira que não pode produzir mais do que um número x de 4 Isto talvez explique por que grande parte do que é chamado de lazer contemporâneo seja do tipo Doit yourself Apenas para exemplificar um acampamento icamping para onde uma famílía viaja horas e onde perde dias para acender uma fogueira e assar um coelho coisa que se pode fazer em duas horas com um telefonema e um apertar de botão ou mesmo boa parte dos jogos preferidos por grande parte da popuíaçSo não significariam o resgate do controle sobre a tarefa Ou a recuperação do eío produçãosatrsfaçâo de necessidade 146 WANDERLEY CODO cadeiras por exemplo O lucro portanto só pode advir da exploração do rabalho alheio pelo capitalista Até aqui o trabalhador produz mercadorias que não consome consome mercadorias que não produziu sua ação e sua sobrevi vência lhe escapam mas é mais que isso invertese a correlação entre esforço e sobrevivência mais trabalho continua significando mais produção mais valores de uso mas não para o trabalhador e sim para o capitalista E pior ainda a superprodução é a razão da pauperização o trabalhador é mais pobre quanto mais riqueza produz Manuscritos Econômicos e Filosóficos Na medida em que a função da compra do trabalho é a expropriação dele mesmo criação de maisvalia o papel do trabalhador é o de produzir riqueza para o outro e ato contínuo sua própria miséria Se falamos em alienação agora podemos falar em roubo o homem se transforma ao transformar pelo domínio a natureza constrói a si mesmo quando vende seu trabalho vende a trans formação que a natureza opera em si sua hominização que por sua vez enquanto mercadoria lhe aparece como objeto independente vendido ao trabalhador em troca do salário 4 O advento do capitalismo traz em seu ventre o desen volvimento da maquinaria O fato histórico apontado acima a transformação do trabalho em mercadoria capaz de gerar mais valia traz como corolário a necessidade de aumentar o rendimento do trabalhador diminuindo o tempo gasto por unidade do produto ou o tempo de trabalho socialmente necessário0 obviamente sem redução do número de horas que o indivíduo dedica à fábrica Embora sendo fruto do mesmo processo a maquinaria vem introduzir um fenômeno qualitativamente distinto no fracionamento do trabalho humano Tratase de promover tanto longitudinal como transver salmente uma fragmentação da ação humana Longitudinalmente o trabalho não é assumido por inteiro pelo trabalhador cada par de braços faz uma parte da tarefa e a partilha é realizada segundo as características das máquinas eou dos ditames de racionalização sendo que quanto maior a divisão de tarefas maior a eficiência MAJOR a produção quanto MENOR for o gesto Transversalmente o operário que aperta um botão desen cadeia um processo que se iniciou em uma mina de ferro que pro duziu lingotes que produziu máquinas que produzem ferramentas que por fim compõem o produto O INDIVÍDUO e a s in s t it u iç õ e s 147 O capital que já alienara o homem do produto de seu trabalho agora roubalhe o gesto o movimento do seu braço é algo que não lhe pertence e que não é determinado pelo trabalhador 5 O desenvolvimento do capital não se deu por igual na medida em que desenvolverse para o capitalismo é a maximização das desigualdades A nível internacional tais diferenças repro duzem mercados diferenciados o que passa a servir ao próprio desenvolvimento do capital que explora com maestria as desigual dades que criou Entra em cena o Capitalismo Multinacional Vimos acima como as relações sociais de produção engendram a alienação do Homem roubamlhe o gesto Cumprese a profecia de Marx e Engels O Homem passa a depender de todo o planeta para a satisfação de suas necessidades1 Com a internacionalização do capitalismo radicalizase esta tendência e outra vez muda de qualidade o Homem passa a depender do mundo inteiro para a produção de bens a matériaprima é produzida em um país as ferramentas em outro as peças num terceiro as montagens finais num quarto país o produto final é consumido em todo o planeta Aqui a fragmentação do trabalho atinge as relações sociais de produção O lucro a expropriação do trabalho deixou de ter nome sobrenome e endereço como na época em que a limusine do patrão deitava às portas da fabrica um corpanzil gordo que parecia acumular as energias sugadas do trabalhador Hoje jovens executivos dinâmicos transmitem ordens superiores recebidas por sua vez de executivos menos jovens que por sua vez também receberam ordens superiores per omnia A internacionalização do capital rouba o ladrão do produto do trabalho Síntese Reproduzimos aqui a maneira violenta como os modos de produção capitalista se apropriam do produtor Falamos até agora do trabalho humano ou seja a apropriação do comportamento do homem Procuramos demonstrar como o trabalho se imiscui e deter mina o comportamento do Homem quando não se identificam coisa e outra 148 WÀNDERLEYCODO O trabalho hoje é o trabalho alienado descolado do Homem que realiza expropriado E á assim que a Psicologia o concebe reedi tando a produção como instância independente estranha ao produtor Nosso objetivo aqui é fazer caminho inverso Tomar a questão do trabalho alienado não como um dado mas como um processo o que implica em cada instante buscar o movimento histórico reconhecêlo contraditório Ao buscar em Psicologia parâmetros de anáJise que permi tam resgatar esta relação dinâmica no trabalho cumpre ter em mente que o problema que se coloca é este entender a nível do indivíduo como se apresenta a transformação do trabalho no seu oposto De instrumento de domínio da natureza pelo Homem em instrumento de Domínio do Homem pela natureza O Capital livro I seção III cap V p 130 Só existe um fato histórico o de que o Homem precisa sobreviver Marx e Engels A Ideologia Alemã Sobreviver é literalmente controlar o meio ambiente transformálo à sua imagem e semelhança Apenas por esta razão podemos perceber que 1 lidar com o controle que o indivíduo tem sobre o meio é lidar com todo o comportamento de qualquer indivíduo em qualquer sistema SOcial e concomitantemente 2 qualquer escala ou experimento por mais completo que seja não será capaz de lidar com o fenômeno como um todo transformandose em um instrumento ou tosco ou fluído Kelly 19S5 afirmava Ê costumeiro dizer que os cien tistas almejam a predição e o controle no entanto curiosamente os psicólogos raramente acreditam que os seus sujeitos experi mentais tenham aspirações semelhantes ê necessário que o homem individual cada qual de sua maneira assuma a estatura de um cientista para procurar predizer e controlar o curso dos eventos nos quais está envolvido Freud dizia que o objetivo da psicoterapia era o de destruir a coerção que pesa sobre a vida do indivíduo através do conhe cimento das representações do inconsciente p 1012 ou ainda que o indivíduo deve se encontrar com ele mesmo se educar a olhar para o seu passado e retratar nele seu presente e o seu futuro Se quiséssemos citar as referências de Skinner à questão do controle do indivíduo sobre seu próprio meio gastaríamos páginas e páginas Basta lembrar o final do livro sobre o bekaviorismo onde o autor manifesta a esperança de que o homem controle o seu próprio destino i O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 149 O problema do controle do homem sobre o seu meio eou sobre si mesmo é fundamental para a Psicologia e não poderia ser de outra forma A Psicologia surgiu em um período que poderia ser delimitado grosseiramente entre 1880 e 1920 com os primeiros trabalhos de William James 1875 Dewey 1887 Ebbinghaus 1880 Pavlov 1900 Watson 1912 Kohler 1912 Wertheimer Kofka entre 1910 e 1912 Freud entre 1880 e 1890 Não se trata do início da reflexão sobre o homem pois esta tarefa sempre foi exercida pela filosofia desde Aristóteles tratase de transformar a reflexão do homem em ciência Filosofia é sofia amigo amizade envolve relação íntima promiscuidade identificação ciência é apropriação afastamento é objetiva referese ao objeto portanto o diferencia do sujeito A preocupação do homem para consigo mesmo sempre existiu no entanto a Psicologia foi uma das últimas a se constituir como ramo científico independente Ou seja a história demorou a exigir que o conhecimento do homem se afastasse dele mesmo se objetivasse Entre 1880 e 1920 o mundo sofria uma transformação cuja marca maior foi a transformação do trabalho em mercadoria como já vimos A Revolução Burguesa tratou de deslocar o processo de explo ração de diferenciação entre classes do domínio divinohereditário para o plano da livre concorrência o poder herdado cede terreno ao poder adquirido A trama econômicosocial passa a depender da capacidade de apropriação do trabalho alheio a maisvalia se dá então na proporção em que o trabalho do homem puder ser colocado sob controle na medida em que os ditames de sangue são substituídos pelos ditames da produção Tempo de Taylor tempo em que a produção humana em última instância instrumento de transformação da natureza pelo homem e do homem pela natureza deve se submeter ao capital tempo em que o homem vende sua capacidade de transformação e autotransformação pelo salário ou seja se aliena de si mesmo Tempo em que a capacidade de acumulação do Capital é inversamente proporcional ao controle do homem sobre seu próprio meio ambiente Neste momento o pensamento humano necessita transformar a reflexão sobre o homem na intervenção sobre o homem Re clamase da Psicologia que abandone a Filosofia a promiscuidade 150 WANDERLEY CODO entre sujeito e objeto e venha se alojar na ciência transformandose de Reflexàoem controle A Psicologia é portanto produto direto e dileto da trans formação do homem em mercadoria ao mesmo tempo que como produto da divisão social do trabalho reproduz e impulsiona esta mesma divisão O espaço da Psicologia por imposição histórica ou por defi nição decorrente de sua prática se insere na contradição que o duplo caráter do trabalho engendra entre a alienação a tortura do trabalho que virou mercadoria e o serviraser que representa o Homem construindo a si mesmo Senão vejamos O sintoma obsessivo compulsivo é caracterizado por uma imperiosa necessidade de pensar ou executar algum ato indepen dente do desejo consciente do indivíduo Podemos exemplificar sucintamente determinada jovem vêse obrigada compulsivamente a evitar todas as frinchas das calçadas caminhando com uma preocupação ansiosa de não pisàlas pois imagina que se vacilar e seu pé tocar algumas dessas frinchas nesse exato momento num local distante sua mãe poderá cair e ter a espinha quebrada A interpretação analítica do fenômeno poderá dar conta de que o que existe inconscientemente é um ódio voltado contra a figura materna que insiste em avançar sobre o Ego e a ansiedade que essa ameaça produz é controJada peio sintoma obsessivocompulsivo que visaria anular esse desejo hostil inconsciente Uma das explicações behavioristas para o mesmo fenômeno seria a de que se trata de um comportamento supersticioso ou seja contingências acidentais fizeram com que aumentasse a freqüência da resposta de não tocar com os pés nas frinchas ou mutatis mutandis a resposta de pisar foi punida acidentalmente e a partir daí generalizouse Tecnicamente falando tanto um behaviorista como um psica nalista estão afirmando a mesma coisa tratase de uma elaboração humana que tem por resultado recuperar magicamente o controle sobre si mesmo eou sobre o meio através da autotransformação do próprio comportamento e eis aqui o conceito de trabalho apontado por Marx reencontrado Filosoficamente no sentido de uma cosinovisão a mensagem analítica poderia ser sintetizada assim o Homem não é dono de si mesmo faz coisas cujas causas não conhece é controlado por forças que escapam do seu controle Seguindo a mesma trilha o behavio rismo afirma o Homem no é dono de si mesmo é controlado pelo meio ambiente O exercício da clínica psicanalítica behaviorista é o mesmo devolver ao indivíduo o controle de si mesmo eou de seu universo Ambos os enfoques sâo vitimas do mesmo pecado filhos qúe sâo de um mundo onde o trabalho virou mercadoria consideram como inerente ao ser humano o que é inerente ao Capital Por isso a Psicanálise corre o risco de propugnar por um homem livre do seu conflito com a vida ou seja adaptado ao mundo no sentido mais conservador que estas palavras possam ter e pelo avesso o beha viorismo corre o risco idêntico de se transformar em Engenharia ignorando o Homem como sujeito de sua História O Homem não é nem escravo nem senhor de si mesmo ou do mundo a dialética do escravo e do senhor ou como já dissemos antes Parafraseando Engels o único fato psicológico é o de que o Homem precisa sobreviver Submeterse ao mundo como um simples mortal projetar e recriar o mundo à sua imagem e semelhança como um Deus f O INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES 151 Bibliografia Bolles R C Teoria de la Motivaciôn 2 ed México Ed Trilhas 1976 Darwin C A Origem das Espécies Sào Paulo Hemus Gorz A Crítica da Divisão do Trabalho 1 ed bras Sâo Paulo Martins Fontes 1970 Lenin Obras Escogidas URSS Ed Progreso Moscú 12 vols 1978 Lindzey G e Aronson E The Handbook of Social Psychology vol I AddisonWesley Publishing Company Mass 1968 Marx K El Capital 3 vols 4 ed MéxicoBuenos Aires Fondo de Cultura Económica 1966 Marx K e Engels F Obras Escogidas 3 vols URSS Ed Progreso Moscú 1978 Oliveira C de O Banquete e o Sonho vol 3 Sào Paulo Cadernos de Debate Ed Brasiliense 1976 Pinto A V Ciência e Existência Rio de Janeiro Paz e Terra 1969 Skinner B F Cumulative Record Nova Iorque AppletonCentury Crofts 1961 Parte 4 A prática do psicólogo Psicologia educacional uma avaliação crítica José Carlos Libâneo O autor deste texto não é psicólogo mas um educador que há mais de dez anos vem acompanhando a trajetória da Psicologia educacional nos cursos de licenciatura e nas escolas de 1 e 2 graus As idéias expostas aqui não formam um pensamento acabado pelo contrário devem ser consideradas como uma tentativa muito provi sória de estabelecimento das relações entre a Pedagogia e a Psicologia educacional A mais grave limitação do ensino da Psicologia educacional é a distância entre seu conteúdo e a prática escolar e isso explica seu efeito quase insignificante na formação de professores Por exemplo muitos manuais em uso nos cursos referemse a estudos e pesquisas feitos em outros paises cujos resultados são de pouca ou nenhuma valia para o cotidiano de uma sala de aula Em alguns casos o ensino se reduz à descrição de teorias sobre os estágios do desenvolvimento infantil ou às técnicas de diagnóstico e tratamento das dificuldades de aprendÍ2agem e distúrbios emocionais sem levar em conta antecedentes sociais das crianças e prática que os professores vâo enfrentar nas escolas A Psicologia educacional como área profissional específica caracterizouse durante muito tempo por atividades de tratamento de crianças com problemas de aprendizagem e ajustamento escolar Por volta dos anos 6065 houve tentativas na maior parte fracassadas de inserção do psicólogo escolar como membro da equipe técnica da escola ao lado de supervisores e orientadores educacionais Na prática as atribuições cabíveis a um psicólgo A PRÁXfS DO PSICÓLOGO 155 educacional sempre acabaram ficando com o orientador educa cional e evidentemente com o professor que efetivamente sempre esteve exercendo algumas de suas atribuições como psicólogo aplicado Atualmente os psicólogos escolares ou se dedicam a pesquisas sobre a escola e não na escola ou atuam em clínicas especializadas em problemas de aprendizagem e ajustamento escolar prestando serviços eventuais nas escolas Em 1971 Poppovic escrevia Ê de se lamentar em nosso panorama atual a falia de coordenação e entrosamento entre a Pedagogia e a Psicologia Enquanto aquela raramente se preocupa em usar os dados proporcionados pelas pesquisas psicológicas esta com muita freqüência permanece num campo teórico sem chegar a conclusões práticas de utilidade para a Pedagogia11 O fato é que até hoje os psicólogos educacionais insistem em se restringir a tratar problemas de desenvolvimento ou ajustamento das crianças à escola dentro da tradição da Psicologia funcionalista e mais recentemente da Psicologia humanista sem voltarse para questões como metodologia usada peios professores na sala de aula currí culo seleção e organização de conteúdos participação da escola na comunidade e viceversa comportamento de professores em sua interação com alunos etc Ou seja a formação do psicólogo se restringe ao contexto psicológico sem chegar ao pedagógico propriamente dito e muito menos ao social Uma das dificuldades desse entrosamento pode estar na impermeabilidade entre as ciências que concorrem na explicação do ato educativo Devido ao pouco desenvolvimento da ciência peda gógica os próprios educadores têm permitido que as ciências auxiliares da educação Psicologia da Sociologia da Economia da disputem a hegemonia sobre o especificamente pedagógico Isso inclusive tem favorecido toda a sorte de reducionismos além do próprio pedagogismo o soctologismo e o psicologismo Os reducionismos pecam por isolar um aspecto da totalidade do ato educativo e em cima desse aspecto parcial discutir o objeto educação O privilegiamento do enfoque sóciopolítico por exem plo leva a reduzir todos os problemas da escola e da educação ao conhecimento e crítica da função social de reprodução das relações sociais de produção que cumprem em nossa sociedade Esta posição recusa qualquer fundamentação psicológica na educação força a diluição do pedagógico no psicológico e assim falha por não considerar o ato educativo na sua totalidade Por outro lado o JOSÉ CARLOS UBÀNEO enfoque estritamente psicológico ignora o efeito das condições sociais e políticas sobre o comportamento tomando subjetivos os problemas gerados pela estrutura social e econômica Quase todas as tendências psicológicas atuais funcion alistas humanistas cogni tivistas psicanalistas orientalistas etc continuam mantendo a crença numa sociedade harmoniosa para a qual as pessoas devem ser ajustadas procurando principalmente no indivíduo a origem de suas condutas Os professores e técnicos escolares também insistem no seu ismo ao tentar preservar a missão salvadora da escola na supressão das igualdades sociais absolvendo o sistema social e político e até rejeitando os auxílios científicos que podem ser fornecidos pela Psicologia O pedagogismo acredita poder resolver os problemas da escola e do mundo dentro do seu interior como se a mudança social pudesse se dar como conseqüência da mudança escolar O ato educativo é uma totalidade na qual afluem fatores sociais econômicos psicológicos que se constituem nas condições para o desenvolvimento individual Condições biológicas condições sociais disponibilidades psicológicas são todas mediações entre o Indivíduo e a sociedade e que permitem ou dificultam à criança apropriarse do patrimônio cultural construindose pela sua pró pria atividade como ser humano vale dizer como ser social Discutir o objeto da Sociologia e da Psicologia educacional supõe a discussão âo objeto da ciência pedagógica ou seja a especificidade do pedàgógico De fato há mecanismos íntimos próprios da relação pedagógica que incluem mediações de natureza social e política mas também incluem a análise da experiência individual e a própria eficácia da situação de ensino Isso significa que as situações pedagógicas precedem a análise do ato educativo nasuas dimensões psicológica e sociológica No caso da Psicologia ela intervém para explicar os componentes psíquicos envolvidos no processo ensinoaprendizagenuSegundo Mialaret o educador nâo pode deixar de respeitar as leis estabelecidas pela Biologia pela Sociologia ou pela Psicologia mas essas leis não podem ser consideradas senão como meio de ação e de valor relativo às próprias condições pedagógicas 1974 À utilidade da Psicologia educacional portanto depende do grau em que dâ conta de explicar problemas enfrentados pelos professores na sala de aula problemas esses no entanto que somente podem ser compreendidos como resultantes de fatores estruturais mais amplos Não é possível assim que a Psicologia A PRÁX1S DO PSICOLOGO IS educacional seja determinante da ação pedagógica antes è utM fonte de orientação para os processos e situações pedagógicai cabendo à experiência escolar a última palavra O pape prepon derante da Psicologia é o de fornecer ao professor princípios do comportamento humano especialmente os relacionados com a aprendizagem escolar para que ele de acordo com seu senso crítico os transforme em métodos adequados às situações pedagó gicas concretas Psicologia e pedagogia Entender o psicológico dentro do pedagógico e ambos dentro do contexto social amplo significa assumir a posição de que a escola é para os alunos uma mediação entre determinantes gerais que caracterizam seus antecedentes sociais e o seu destino social de classe quer dizer que as finalidades da escola são acima de tudo sociais seja no sentido de adaptação à sociedade vigente seja no sentido de sua transformação Se as relações contraditórias entre reprodução e mudança se efetuam na e pela escola essa mediação se dará tanto no sentido de que a destinaçào social dessa clientela reafirme as suas condições de origem quanto no sentido de que estas condições de origem sejam negadas1 Mello 1982 A ação docente se dá assim entre o indivíduo e as realidades sociais o mundo e a Psicologia é chamada para fornecer apoio na leitura das relações entre o individual e o social e daí para o pedagógico propriamente dito Entretanto a Psicologia que se desenvolve na segunda metade do século XIX refletindo circunstâncias históricas e sociais do período basicamente a consolidação do capitalismo vem acentuar a idéia da natureza humana individual e que se sobrepõe às circunstâncias sociais que a cercam Com efeito é quando começa a vender sua força de trabalho que o homem se define como livre como indivíduo A burguesia enquanto classe em ascensão defende a igualdade e a liberdade individuais já que as novas relações de trabalho supõem o proprietário dos meios de produção e o assalariado livre para aceitar uma relação contratual pela qual vende sua força de trabalho Com o desenvolvimento da produção porém instaurase uma nova versão do individualismo a autonomia individual Desgastandose com a liberação de energia no trabalho o homem precisa garantir sua privacidade certo isolamento que lhe 158 IOSË CARLOS LJBÂNEO possibilite recompor as energias O culto ao individualismo é assim uma necessidade da produção capitalista é uma conseqüência das relações específicas de produção Não interessando explicitar as verdadeiras condições em que o trabalho se dá e o isolamento individual como conseqüência esta relação trabalhoisolamento aparece como fazendo parte da condição humana como comporta mento natural Assim fazendo a Psicologia cunhou a orientação que continua predominando de considerar como fatores causadores do comportamento os processos psicológicos internos emoções sentimentos idéias sem levar em conta a natureza basicamente social do ser humano e de sua consciência A idéia de uma essência humana présocial concebe a perso nalidade humana individual como um caso particular da personali dade humana básica o que pressupõe que cada indivíduo possuí características que são universais e independem de influência do meio social cabendo à Psicologia conhecer esses traços universais É evidente que tal idéia assume a sociedade de classes como o modelo social ideai na qual a realização individual resulta de uma perfeita harmonia entre indivíduo e sociedade Daí a idéia corrente de ajustamento social aplicada à Psicologia e à Educação Os padrões de comportamento a serem ensinados ou modificados correspondem à perspectiva da classe dominante que os torna universais e portanto compulsórios Tal concepção psicológica veio a ser a própria origem do movimento da escola nova no início deste século inaugurando o individualismo na Pedagogia A descoberta da criança como personalidade livre e autônoma que na concepção liberal da sociedade capitalista corresponde à livre iniciativa individual marcou uma concepção pedagógica inteiramente voltada para a criança reduzindo o papel do professor e dos programas escolares Ao conceber a criança como possuindo os atributos universais do gênero humano caberia à educação atualizar estes atributos natu rais desenvolver as potencialidades Edv ar seria essencialmente cultivar o indivíduo desdobrar sua natureza propiciar o desen volvimento harmonioso da individuaJidade em consonância com as expectativas da sociedade As conseqüências para a Pedagogia sào marcantes Ocorreu um desprezo da cultura enquanto patrimônio da humanidade já que é a criança que irá descobrir o saber A ênfase nas necessidades e interesses espontâneos da criança resultou na psicologização das situações escolares ao ponto de os próprios professores passarem a A PRAXIS DO PSICÓLOGO IM explicar o comportamento dos alunos por meio de termos como inibição bloqueios imaturidade agressividade etc A superva lorização da criança A criança é o pai do adulto dizia Montes sori em muitos casos trouxe como conseqüência o espontaneísmo a permissividade a tolerância a crença na bondade natural do ser humano O individualismo em Pedagogia acentuouse significativa mente com o desenvolvimento da Psicologia humanista existencial que divulgou a educação como processo de adequação pessoal frente às influências ambientais A difusão da Psicanálise que introduz a noção do inconsciente na explicação do comportamento também contribuiu para reforçar certas tendências da Pedagogia nova1 Nos últimos anos tem ganho bastante peso entre os psicólogos educacionais as chamadas teorias cognitivas principalmente as que se preocupam com o desenvolvimento das capacidades humanas para o domínio dos conhecimentos Esses sistemas reconhecem a aprendizagem como um processo ativo frente a estímulos externos o meio aparece como elemento indissociável do ato de conhecer Entretanto não escapam à limitação comum às demais concepções ou seja o privilegiamento do pólo individual e não ao pólo dominante que é o social isto é as relações sociais de produção a divisão da sociedade em classes sociais É sob essa ótica que são abordados os tópicos mais usuais nos manuais de Psicologia educacional estágios do desenvolvimento da criança e do adolescente necessidades como determinantes do comportamento processos de aprendizagem economia da aprendi zagem situações de aprendizagem em geral higiene mental na sala de aula etc ou seja o enfoque privilegia a compreensão da criança a autoeducaçlo e não a transmissãoassimilação das matérias escolares Uma Psicologia nãoindividualista portanto uma Psicologia voltada para as relações sociais entende que as capacidades indi viduais não são inerentes à natureza humana são antes determi nadas por variáveis do mundo material externas ao indivíduo O erro básico da Psicologia individualista é não assumir a antecedên 1 O behavíorismo é uma importante corrente psicológica também desenvolvida no início deste século mas sua repercussão na escola brasileira enquanto metodologia de sala de aula ainda 6 bastante reduzida Todavia eta aparece numa formulação pedagógica eclética denominada Pedagogia tecnh cista da qual trataremos oportunamente neste texto 160 JOSÉ CARLOS L1BÀNEO cia das estruturas e dos produtos sociais da atividade humana sobre a individualidade biológica ela não extrapola do sujeito empírico individual isolado fora do contexto histórico Dar conta dos condicionantes sociais do ato pedagógico significa compreender o aluno como um sujeito concreto síntese de múltiplas determinações que dãose num contexto histórico A consideração de uma dimensão histórica significa assumir que tanto os processos internos como os estímulos do meio têm um significado anterior à existência deste indivíduo e esta anterioridade decorre da história da sociedade ou do grupo social ou se quisermos da cultura na qual o indivíduo nasce Por mais que enfatizemos a unicidade a individualidade de cada ser humano por mais sui generis que se possa ser só poderá ocorrer sobre os conteúdos que a sociedade lhe dá sobre as condições de vida real que ela lhe permite ter Lane 1980 Como será uma nova forma de apreender as relações alunoeducadorsociedade Como o social atua sobre o indivíduo e como este voltase para o social para modificálo Compreender a escola na relação dialética indivíduosocie dade significa ao mesmo tempo um processo de cultivo individual promover mudanças no indivíduo e de integração social intervir num projeto de mudança social A especificidade do pedagógico estã em conseguir a realização bemsucedida desses processos sem perder a vinculação com o todo social e isso se faz pela mediação entre a condição concreta de vida dos alunos e sua destinação social Tal mediação consiste na atividade de transmissão professorassi mil ação aluno de conteúdos do saber escolar2 O desafio ao educador está em criar formas de trabalho pedagógico isto é ações concretas através das quais se efetue a mediação entre o saber escolar e as condições de vidae de trabalho dos alunos Antes porém de explicitar melhor os objetivos escolares visando um uovo projeto de sociedade é necessário tomar uma 2 O termo assimilação deve ser entendido aqui no sentido piagetiano ou seja um processo de incorporação de uma informação do ambiente a partir de estruturas mentais já disponíveis no pensamento Tratase de u ma informaçlo trabalhada pelosesquemas mentais acionados pelo próprio aluno ou instigados pelo professor O termo saber escolar é a seleção 6 organização do saber objetivo disponível na cultura social numa etapa histórica determinada para fins de transmissãoassimiiaçSo ao longo da escolarização formal A PRÁXIS DO PSICOLOGO 161 posição face à relação entre os determinantes sociais e a experiência individual Pretendese lançar algumas idéias bastante genéricas sobre o fato de que a experiência individual deve ser considerada dentro de um quadro social onde predominam as condições concretas materiais de existência e que essa abordagem exclui o conceito de indivíduo abstrato de natureza humana de personali dade básica próprios da Psicologia centrada no indivíduo A compreensão da natureza social da experiência individual inserese no pressuposto mais abrangente que é a relação recíproca entre o indivíduo e a sociedade entre sujeito e objeto Marx afirma Os homens fazem eles próprios sua história mas num meio dado que os condiciona A história é então produto da atividade humana entretanto a atividade humana se desenvolve sob bases reais anteriores conflitos contradições lutas que fornecem a direção para as mudanças que vão se processando Sobre as bases dessa realidade material intervém a atividade humana buscando superálas ou seja o que se costuma chamar de práxis é preci samente o movimento que eleva o homem de sua condição de produto das circunstâncias anteriormente determinadas à condição de consciência A sociedade portanto contém em si mesma elementos de mudança por causa do movimento permanente de superaçâodas contradições a contradição principal é a relação trabalhocajntal isto é a contradição entre o caráter social da produção eo caráter privado da sua apropriação mas é o homem que intervém nessa mudança para superação das contradições no sentido da sua humanização O que se pode chamar de natureza humana é então o ser social e histórico é o resultado da interação entre o homem e o mundo social Os homens são produtos ou funções de relações sociais concretas objetivas dentro de uma estrutura social que determina o seu comportamento como indivíduo1 Vazques 1977 Não se está dizendo simplesmente que o homem tem uma natureza social mas mais do que isso ele é um produto das relações sociais tal como se dão sob o capitalismo Por isso compreender o indivíduo ou buscar as causas do seu comportamento significa situálo no contexto de uma existência socialmente configurada ou seja condições de trabalho e de vida numa sociedade de classes Significa enfim compreender que o lugar que ocupa na hierarquia de classes modifica diferencialmente suas percepções sua relação 162 JOSÉ CARLOS LIBÀNEO com o futuro sua relação com as instituições sociais escola por exemplo e expectativas sociais em gerai Esse modo de entender as relações entre o indivíduo e a sociedade não somente rejeita a idéia de que o suporte biológico é antecedente ao psiquismo social como também a idéia de que o social se soma ao biológico O biológico e o social não são instâncias distintas do ser humano pois o biológico é subsumido no social Na verdade sobre uma condição biológica dada se constitui a condição social adquirida e sobre ambas surge a única e verdadeira natureza humana a natureza social e histórica Em outras palavras a atividade humana não se reduz ao biológico pois para se constituir como atividade humana é preciso que se desenvolva sobre o biológico funções novas e próprias da vida em sociedade Mas estas novas funções não são présociais como as condições biológicas mas são criadas historicamente como produtos das interações entre os indivíduos entre os grupos sociais entre os indivíduos e a sociedade Não existe portanto uma natureza humana definitiva estável ctímo quer a Psicologia corrente ela vai se constituindo histórica e socialmente pela luta do homem com o ambiente pela interação entre os indivíduos pelo trabalho pela educação Nas considerações feitas até aqui poderia parecer suficiente para uma Psicologia voltada para o social afirmar a dimensão social do individuo De fato a Pedagogia nova orientada pela Psicologia funcionalista nunca cessou de esperar da educação a adaptação do individuo à sociedade tanto é que destaca o papel das interações sociais no desenvolvimento intelectual Entretanto a Psicologia centrada no indivíduo coloca a socialização como um atributo da natureza humana e evita colocar o papel da estrutura e do meio social na socialização O termo meio social empregado pela Psicologia corrente restringese ao ambiente onde se dá o processo individual de socialização ou seja o ambiente é o ponto de chegada e não o ponto de partida Na verdade o que ocorre é que a sociedade determina as condições de educabüidade da criança a criança já é socializada desde que nasce As ações educativas portanto como são provenientes do meio social impõem à criança propósitos e tarefas que não são necessariamente correspondentes ao desen volvimento espontâneo da natureza humana individual A educação é uma atividade de fora externa à criança ela é de certa forma uma atividade forçada que intervém no curso do desenvolvimento do individuo A PRÀXIS DO PSICÓLOGO 163 E neste ponto chegamos novamente à Pedagogia Se o objeto da Pedagogia é o indivíduo concreto produto de múltiplas deter minações e em conseqüência o que ele é e traz para a situação pedagógica depende das condições de vida real que o meio social permite que ele seja então toda ação pedagógica pressupõe a compreensão do significado social de cada comportamento no con junto das condições de existência em que ocorre Colocase assim a questãochave como articular uma análise estrutural de conjunto com a compreensão dos indivíduos e suas experiências Como ir além do individual para apreender as impli cações sociais do comportamento mas com o objetivo de voltar ao indivíduo para preparálo para buscar novas formas de relações sociais Em primeiro lugar é preciso eliminar qualquer noção de natureza humana individual acentuando ao contrário que os comportamentos dos indivíduos resultam de uma realidade material conflitos de classe e relações de produção conforme vivida no meio social na família no emprego na escola etc Isso significa referir os componentes psíquicos da situação pedagógica necessidades e interesses motivação autoconceito processos mentais de aquisição de conhecimentos prontidão fatores cognitivos etc a fatores estruturais amplos isto é relações de classe que determinam padrões específicos de respostas Em segundo lugar é preciso que o problemas e limitações individuais ou seja as desvantagens sociais que dificultam a aprendizagem sejam compreendidos pelo aluno através da ajuda do professor pelos conteúdos do ensino A compreensão e a transformação do mundo pela prática social supõe efetivamente a compreensão das características mais amplas do sistema capitalista isto é o desvelamento dos mecanismos íntimos do processo de produção capitalista A atividade pedagógica contribui para que o aluno vá aprendendo a explicar o real de tal forma como escreve Vazquez a elevar a consciência da práxis como atividade material do homem que transforma o mundo natural e social para fazer dele um mundo humano O processo de mudança social não se faz sozinho nem apenas com a prática mas também pelo conhecimento A escola e o saber Os objetivos da escola se confundem com a ação exercida sobre crianças e adolescentes principalmente para tornálas aptas 164 JOSÉ CARLOS LIBÀNEO a viver numa determinada sociedade A ação pedagógica é assim o traço de união entre o individual e o social Entretanto pelo fato de a realidade social ser histórica e por isso superável ê relevante perguntarse de que sociedade se trata que homem se quer formar qual o sentido da aprendizagem escolar que significa falar en desenvolvimento da criança e do adolescente Têm sido dadas muitas respostas a essas questões e quaisquer que sejam elas são marcadas por uma dimensão política pois que os propósitos de educação individual não se separam da totalidade social onde está inserida Com efeito numa sociedade de classes dãose relações sociais que são o resultado do conflito de interesses de duas classes fundamentais sendo que uma delas a que detém o poder econômico e político procura conformar as instituições a seus inte resses Assim é que no Brasil a escola sempre esteve organizada para formar as elites sociais A forma pedagógica que predominou até 1920 mais ou menos foi a tradicional cujo objetivo era transmitir uma cultura geral humanística de caráter enciclopédico Ela sempre atendeu às camadas socialmente privilegiadas e atendeu bem tornaser entre tanto ineficaz quando sua clientela se diversifica devido ao acesso das camadas médias e populares Nas primeiras décadas do século XX a burguesia nacional tinha interesse de que a escola se adaptasse às necessidades de desenvolvimento industriai e para isso o currículo enciclopédico da escola tradicional já não servia Eis aí o objetivo do movimento da escola nova modernizar o ensino isto é colòcálo a serviço das necessidades sociais Os princípios da escola nova respeito à individualidade da criança desenvolvimento de aptidões naturais aprender fazendo atividade espontânea etc coincidiam com os princípios da filosofia liberai que exigiam uma escola prática um ensino útil para a sociedade vale dizer para a indústria moderna Na escola nova decresceu o interesse pelos conteúdos das matérias em favor dos métodos habilidades pesquisa com o argumento de que desenvolvendo os processos mentais a criança seria melhor atendida em suas necessidades espontâneas e chegaria sozinha aos conteúdos Essa orientação da escola nova prejudicou muito as crianças das classes populares pois se supunha que elas já traziam de cada uma formação prévia para enfrentar um currículo na base de experiências Com efeito a supremacia do método ativo e intuitivo favorecia aquelas crianças que tinham experiências familiares mais A PR 4X15 DO PSICÓLOGO 165 rícas e sistematizadas e prejudicava as que tinham na escola a única chance de acesso ao saber Os professores por sua vez foram desobrigados de dominar o conteúdo das matérias ganhando peso o domínio das técnicas de ensino O atendimento portanto continuou precário e caiu por terra o propósito apregoado pela escola nova de promover a igualdade de oportunidades Enquanto isso continuaram os elevados índices de evasão e repetência embora persistisse a reivindicação da população por mais escolas É o momento de colocar em ação um modelo pedagógico de escola que viesse a reduzir as pressões atendesse o máximo de crianças e com o menor custo possível além de atender aos interesses da classe empresarial A Pedagogia tecnicista não rompe com a Pedagogia tradicional que nunca deixou de existir e nem com a Pedagogia nova e introduz na escola os objetivos preestabelecidos para uniformizar o ensino acentuar as técnicas simplificar os conteúdos comprometendo mais ainda a qualidade Esse breve esboço da evolução histórica da escola permite compreender como a ação pedagógica acompanha as formas pelas quais a sociedade é organizada Ora se o que caracteriza a sociedade são as relações entre as classes sociais que são relações de contradição em função de interesses que são distintos concluise que essa contradição também existe na escola já que ela é uma manifestação particular da sociedade É possível então considerá la como uma das mediações pela qual se efetua o conflito entre as classes sociais uma interessada na reprodução da estrutura de classes tal qual é outra cujos interesses objetivos exigem a negação da estrutura de classes e a supressão da dominação econômica Mello 1982 Portanto a escola tanto pode se organizar para negar às classes populares o acesso ao conhecimento como para garantilo se assume o papel de agente de mudança nas relações sociais cabelhe instrumentalizar os alunos para superar sua condição de classe tal qual mantida pela estrutura social Portanto uma escola que se proponha a atender os interesses das classes populares terá de assumir suas finalidades sociais referidas a um projeto de sociedade onde as relações sociais existentes sejam modificadas Isso significa uma reorganização pedagógica que parta das condições concretas de vida das crianças e sua destinação social tendo em vista um projeto de transformação da sociedade e aí se insere a função da transmissão do saber escolar Em outras palavras ao lado de outras mediações é a aquisição de conhecimentos e habilidades que assumindo formas 166 JOSÉ CARLOS LIBANEO pedagógicas garantirão a inserção das classes populares num projeto amplo de transformação social A perspectiva que se propõe aqui é uma nova maneira de compreender os elementos da ação pedagógica o aluno o educador a sociedade Com efeito a Pedagogia tradicional caracterizase por privilegiar o pólo da tradição constituída onde o saber é transmitido unilateralmente sem possibilidade de se questionar seu sentido e função face às realidades sociais A Pedagogia nova não lida com o saber enquanto tal por entender que sua busca deva ser espontânea por um processo de descoberta da criança Além disso essa Pedagogia extrapola as funções específicas da escola quando pretende abarcar muitas dimensões do desenvolvimento humano Por outro lado certas posições mais críticas ora negam o valor à escola atual devido à sua condição de reprodutora das relações sociais vigentes ora restringem seu papel à discussão da experiência vivida pelas classes populares a fim de possibilitarlhes adquirir uma consciência política Uma Pedagogia social voltada para os conteú dos culturais entende que há saberes universais que se constituíram em domínios de conhecimento relativamente autônomos incorpo rados pela humanidade e que devem ser permanentemente reava liados face às realidades sociais através de um processo de tratis missãoassimilaçãoreavaliação critica O objetivo da escola assim será garantir a todos o saber e as capacidades necessárias a um dominio de todos os campos da atividade humana como condição para redução das desigualdades de origem social Este é o núcleo da ação pedagógica cujos mecanismos íntimos devem ser bem compreendidos a fim de possibilitar suas interfaces com as dimensões psicológica e social Ação pedagógica conceitos e objetivos O que é a Pedagogia Qual é seu objeto O que configura uma situação pedagógica São questões sobre as quais os educadores estão longe de ter um consenso Entretanto para trilhar um caminho que leve a clarear a especificidade do ato pedagógico podese partir da afirmação de que a Pedagogia é a teoria e prática da educação e portanto seu objeto é a educabilidade do ser humano ou melhor o ser humano a ser educado Educar em latim educare é conduzir de um estado a outro é modificar numa certa direção o que é suscetível de educação O ato pedagógico pode A PRÀXIS DO PSICÓLOGO 1 então ser definido como uma atividade sistemática de interaçto entre seres sociais tanto a nível do intrapessoal quanto a nível da influência do meio interação essa que se configura numa ação exercida sobre sujeitos ou grupos de sujeitos visando provocar neles mudanças tão eficazes que os tome elementos ativos desta própria ação exercida Presumese aí a interligação no ato pedagógico de três componentes um agente alguém um grupo um meio social etc uma mensagem transmitida conteúdos métodos auto matismos habilidades etc e um educando aluno grupos de alunos uma geração etc Mialaret 1976 Chamemos esses componentes de A agente M mensagem e E educando O movimento A M E não é unidirecional pois a ação de A sobre E pode retornar de E para A inclusive pela reavaliação de M Entretanto o retomo de E para A somente existe porque A veiculou antes uma mensagem M Ou seja A tem por pressuposto objetivos prévios em relação a E além de que as relações ÀE são assimétricas porque não são da mesma natureza O especificamente pedagógico estaria assim na imbricação entre M e E propiciada pela ação de A pois somente A poderia garantir a adequação entre o conteúdo de M e as condições de assimilação de E Ou seja a ação pedagógica somente se completa quando a mensagem M tem um efeito tal sobre o educando E de tal forma que se evidencie a participação deste em M Este esquema permite identificar certas características do ato pedagógico que são relevantes para as situações pedagógicas Em primeiro lugar implica uma ação sobre1 o indivíduo ou grupo de indivíduos de tal forma que ao termo dessa ação o educando corresponda tanto quanto possível à imagem que se faz de homem educado Esta ação entretanto não é arbitrária mas decorre da função socializadora da escola representada pelo professor Com isso se quer dizer que o ato pedagógico é o meio pelo qual se torna possível a ligação de reciprocidade entre indivíduo e sociedade Enquanto instância mediadora entre outras a ação pedagógica tem um caráter intencional de convencimento face à transmissão de um conhecimento que viabilizará a inserção do aluno na sociedade de forma crítica Isso leva a admitir que o ato pedagógico supõe a desigualdade entre professores e alunos no ponto de partida para se caminhar à igualdade no ponto de chegada Considerar que alunos e professores são iguais face a um conteúdo objetivo externo a ambos toma sem sentido a ação pedagógica A ação pedagógica o processo educativo é um meio para se chegar a algo sendo esse 168 JOSÉ CARLOS LIBÄNEO algo os conteúdos culturais É por esse caminho que se chega à noção de educação como uma atividade mediadora no seio da prática social global ou seja uma das mediações pela qual o aluno pela sua participação ativa e pela intervenção do professor passa de uma experiência social inicialmente confusa e fragmentada sincré tica a uma visão sintética mas organizada e unificada Saviani 1982 Com efeito de um lado há o aluno y socialmente determinado pertencente a uma classe social que domina um saber não siste matizado valores gostos falas interesses necessidades enfim portador de uma primeira educação adquirida no seu meio socio cultural Esta realidade é o referencial concreto de onde se deve partir para o domínio do conteúdo estruturado trazido pelo pro fessor que por sua vez é o representante do mundo social adulto com mais experiência e mais conhecimentos em tomo das realidades sociais e com o domínio pedagógico necessário para lidar com os conteúdos cuja função consiste em guiar o aluno em seus esforços de sistematização e reelaboração do saber Em segundo lugar a ação pedagógica porque lida com o ser humano educável referese a um objeto aberto à expansão portanto modificável pois seu efeito está precisamente em tomar o aluno sujeito de seu próprio conhecimento O ato pedagógico contém em si não só a dimensão do que é o transmitido o reproduzido como também a dimensão do que pode ser a inovação a reelaboração Aí está uma das dificuldades de conhecimento e apreensão do objetoeducação ele é inconcluso no sentido de que vai se gerando no curso da experiência dos homens como indivíduos e como conjunto Sacristán 1983 ou seja vai sendo construído em decorrência da própria prática educativa Este acentua novamente o caráter social e histórico do ser humano isto é a historicidade do objeto faz com que ele não seja definitivamente mas esteja sempre inacabado neste sentido que o ato pedagógico assume uma dimensão valorativa ideológica para além de seus componentes metodo lógicos e técnicos Em contraposição a outras ciências as ciências da educação não é que não possam já se despojar de um certo componente ideológico próprio de todo trabalho científico mas esse mesmo componente é o que as justifica A força desse componente utópico é a que deve comandar a parte do objeto ainda não configurado embora ajudado por outros co n h e c im e n to s teó ricos mas não unicamente por eles Sacristán1983 A PRÂXIS DO PSICÓLOGO i Esse raciocínio permite insistir no fato de que as criafiÇAT precisam adquirir do professor conceitos necessários e uteniíUot intelectuais para um domínio seguro do saber escolar e eliminar idéias muito difundidas entre os professores de que os conteúdo devem sair deles qualquer livro é bom enfini acreditando em interesses transitórios como os que são captados nas revistas em quadrinhos televisão formas de democratização do ensino mais uma vez segregativas Em terceiro lugar a mensagem são os conteúdos culturais mas que abrangem também os métodos de sua apropriação como de resto o discurso verbal de professores e alunos os gestos os livros didáticos O método de apropriação dos conteúdos consiste na própria lógica do processo de conhecimento Ao fazer da experiência social das crianças a própria trama da experiência educativa sobre a qual se introduz o conteúdo científico das matérias nâo para destruir a experiência prévia antes para elevála estáse conce bendo o conhecimento como uma atividade inseparável da prática social A atividade teórica é o processo que partindo da prática nos leva a apreender a realidade objetiva para em seguida aplicar o conhecimento adquirido na prática social para transformála A introdução de conhecimentos e informações não visa portanto o acúmulo de informações mas uma reelaboração mental que se traduzirá em comportamentos práticos numa nova perspectiva de ação sobre o mundo social levando efetivamente à passagem do individual ao social Da prática para a teoria para regressar à prática é um movimento de continuidade do já experimentado e aprendido mas essa continuidade é reavaliada criticamente por meio da ruptura propiciada pelo saber organizado trazido pelo professor o que alimentará novamente a prática e assim sucessi vamente Este processo de ida e volta entre a teoria e a prática permitirá um trabalho conjunto professoraluno para compreensão e enfren tamento das características mais amplas das relações capitalistas de produção que resultará gradativamente ao lado de outras práticas sociais no desenvolvimento da consciência de classe Isso significa tomar posição diante do conhecimento como uma forma insubsti tuível de apreender a dinâmica da sociedade de classes Chegase assim às finalidades de ação pedagógica das quais resultam princípios psicológicos acerca do ser que aprende e dos processos de aprendizagem Segundo Mialaret a ação pedagógica necessariamente exercida no quadro de uma situação pedagógica 170 JOSÉ CARLOS LIBÀNEO uma só existe pela oútra e reciprocamente induz condutas prova e utiliza processos psíquicos nos educandos A Psicologia da educação pode pois ser considerada como o conjunto dos estudos dessas condutas e desses processos provocados ou utilizados peia atividade pedagógica O psicólogo educacional por conseguinte deve ser competente ao mesmo tempo no domínio da Psicologia e no da Pedagogia uma vez que as condutas por estudar se desenvolvem sob a influência de condições pedagógicas 1974 Dentro da preocupação com uma escola voltada para a redução das desigualdades sociais a retomada da noção de edu cação como favorecimento das condições de apropriação efetiva dos conteúdos culturais pode se inscrever numa perspectiva global na noção da educação cognitiva articulada com os antecedentes sociais dos alunos Enquanto a Pedagogia tradicional priva o aluno da iniciativa por transmitirlhe conteúdos sem chance de reelaborálos a Pedagogia nova pressupõe na criança um apetite pelo saber que levaa a construir seu próprio conhecimento ignorando o fato de que ele já se encontra estruturado na forma de cultura A Pedagogia social crítica assume a interestruturação entre um sujeito que procura conhecer e os objetos aos quais se refere esse conhecimento Ou seja tratase de uma posição de síntese pois garante com preender o processo de conhecimento como intervenção do sujeito no mundo objetivo e a modificação do sujeito em decorrência de sua ação sobre esse mundo objetivo sendo que essa objetividade se redefine como adequação do conhecimento a uma ação prática 9obre o mundo social Tratase de investir todos os esforços nas possibilidades da escola em obter o máximo possível de desenvol vimento a todas as crianças contribuindo para o sucesso individual domínio do saber e personalização e o sucesso social capacidade de se integrar na sociedade e agir sobre ela a Uma Psicologia das relações sociais O que acontece com a Psicologia ocidental é o seu compro misso com o individualismo portanto com uma criança abstrata sem referir aos determinantes históricosociais e ao contexto em que vivem e trabalham os indivíduos A Psicologia das relações sociais está por fazer mas é possível estabelecer um caminho pelo qual se possa atender à experiência individual concreta isto ét o indivíduo em relação à sua existência material Marx escreveu 4i A produção de idéias de representações e da consciência está em primeiro lugar direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio A PRÃJCIS DO PSICÓLOGO 171 intercâmbio material dos homens é a linguagem da vida real São os homens que produzem suas representações suas idéia tc mas os homens reais atuantes e tais como foram condicionadopor um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e do modo de relações que lhe corresponde incluindo até as formas mais amplas que estas possam tomar Assim sendo o ponto inicial de qualquer plano de ensino é a consideração dos antecedentes sociais e mais do que isso tratase de levar em conta no trabalho pedagógico com as crianças da escola pública as práticas de vida das quais participam e as relações sociais que as sustentam Com efeito são as condições sociais concretas de vida e de trabalho que determinam necessidades interesses atitudes autoconceitos assim como impõem certos limites para o desenvolvimento das capacidades envolvidas no ato de aprender Há alguns anos difundiuse uma proposta de intervir nos antecedentes sociais inibidores da aprendizagem escolar a educação compensatória esta abordagem porém apresenta as crianças pobres como portadoras de negatividades carenciadas desfavo recidas sempre comparadas com o grupo social que não possui essas desvantagens Seu objetivo seria então colocar estas crianças no mesmo nível das outras tidas como normais ignorando não só as razões de natureza estrutural que esto por trás das carências mas também negando que elas sejam portadoras de uma experiência social própria de sua classe social de origem Outra idéia oposta à anterior apresenta as crianças pobres como portadoras de uma cultura e de ura modo de vida suficien temente ricos que não teriam necessidade de assimilar um tipo de saber erudito Esta posição afirma que a educação deve partir da realidade como ela é levando em conta o meio cultural a lin guagem os valores da população e com isto tendem a preservar as atuais circunstâncias de vida preciso porém levar em conta que as classes populares nem são depositárias de uma nova cultura tudo o que vem do povo é bom e nem inferiorizadas desfavorecidas a quem cabe dar uma assistência tipo caritativa O que se propõe é uma ação pedagógica que apreenda a experiência social das classes populares extraindo o que há de positivo não para mantêlas no estado em que se encontram mas para aumentar seus conhecimentos e alargar suas práticas Uma ação pedagógica conseqüente supõe portanto investi gações que mostrem como se dão as condições de maturação dessas 172 JOSÉ CARLOS LIBÄNEO crianças e simultaneamente formas de solicitações sociais do meio as múltiplas mediações que venham a mobilizar a atividade da criança para desenvolver suas capacidades de relação com o saber escolar Em outras palavras é preciso transformar o meio sóciocul tural das crianças em objeto de estudo já que ele fornece as bases para o trabalho escolar Investigações em torno de antecedentes sociais permitiriam esclarecer certas questões que desafiam os educadores até que ponto o insucesso escolar deve ser atribuído a deficiências de ordem intelectual por que há descompasso entre a incompetência da criança nas atividades escolares e a capacidade revelada em outras ativi dades qual é de fato a extensão das desvantagens sóciocul turais que as crianças pobres efetivamente carregam um meio escolar estimulante em vários sentidos contri buiria para melhoria das aprendizagens na mesma intensidade com que as crianças de meios mais favorecidos aprendem como efetivamente as desvantagens poderiam se trans formar em pontos de apoio para deslanchar a ação educativa é possível manter os mesmos parâmetros da cultura padrão das classes socialmente favorecidas para por métodos adequados trazêlos para as classes populares b Prérequisitos para a aprendizagem Prérequisitos referemse aqui a suportes psicológicos e sociais prévios requeridos das crianças para que possam apropriarse de conhecimentos e habilidades que precisam ser dominados Tratase do que comumente se chama de prontidão mas num sentido mais amplo Buscar apoios pedagógicos nas próprias condições sociais concretas da criança é uma forma de colher os meios de levar uma criança com dificuldades escolares a interessarse pelas atividades a ter vontade de aprender a dedicarse aos estudos Ou seja transformar as desvantagens no seu contrário Parece assim fora de dúvida que o ato pedagógico começa com uma atitude e aqui é uma nova abordagem da motivação e do autoconceito que se espera Ou o professor se apóia num interesse disponível na criança ou a atitude favorável às atividades escolares precisam ser provocadas desenvolvidas Se um dos caminhos seria a ligação com experiências de vida é preciso levar em conta que uma A PRAXJS DO PSICÓLOGO 171 boa parte das crianças não possui perspectivas de futuro e neiH CMO a escolaridade pode não fazer muito sentido Como da qualidade dft motivação inicial depende o êxito de outros processos colocados em ação pelo professor é preciso despertar nele a vontade de crescer de ir para a frente ter uma esperança no futuro O trabalho pedagógico aí não poderá restringirse a métodos ou mesmo criar atividades estimulantes mas deve intervir no nível de aspiração oferecer modelos de identificação que possam mostrar suas possibi lidades Ou seja é preciso que a criança chegue a uma elaboração psicológica e individual a respeito de qualquer coisa que esteja na sociedade exterior a ela modelos atraentes de adultos conhecer operários militantes tomar consciência do papel da classe operária na mudança social livros de leitura festas participação em grupos e associações na própria escola São meios que podem ser usados a fim de que os alunos das classes populares dominem a situação desfavorável e superem o fatalismo de sua condição de origem A escola é também um meio de vida da criança ai também se constrói sua personalidade pela provocação de mecanismos psicológicos indispensáveis para que a criança invista positivamente em sua escolaridade O que significa aceitar que as lacunas e carências efetivamente existem e freqüentemente talvez fosse o caso de levar a criança a tomar consciência desses determinantes que pesam sobre ela fazendoa falar expressarse desdramatizar suas próprias condi ções de vida bem como das possibilidades de modificação da situação transformando a desvantagem em alavanca de acultu ração Tratase de campos pouco explorados pela Psicologia edu cacional e que desafiam a investigação em cima de uma nova prática pedagógica e a partir dessa mesma prática Evidentemente os prérequisitos não se resumem à área afetiva Há aspectos sócioculturais que efetivamente comprometem a relação positiva das crianças com certos setores da escola como as artes a poesia as ciências e que somente o provimento de certas condições na própria escola incentivariam essa disponibilidade bibliotecas visitas a museus livros fotografias discos etc A preparação cognitiva propriamente dita impõe a ade quação metodológica do que já foi mencionado atrás partir do que a criança já sabe valorizar o conhecimento já disponível seja qual for procurar mostrarlhe que uma ruptura desse conhecimento prévio contribui para o seu desenvolvimento enfim articular o 174 JOSÉ CARLOS LÏBÂNEO desconhecido com o conhecido A própria discussão em grupo tão usada e tão malfeita hoje em dia permitirá à criança clarificar seu pensamento e sua linguagem aumentando seu poder de dar forma ao real Neste sentido são oportunas as classes de recuperação que serão abordadas mais adiante c Os conteúdosmétodos Os conteúdosmétodos de apropriação ativa do saber impli cam uma relação dinâmica entre a ação cientificamente funda mentada do professor e a vivência e participação do educando Ê preciso rever as normas pedagógicas vigentes currículos pro gramas avaliação face às necessidades da clientela O ato pedagógico visa também a transformação das estruturas psíquicas existentes ou criação de estruturas novas Tratase aqui de verificar quais as disposições exigidas e exercidas por cada uma das matérias de ensino Parece existir hoje um consenso entre os educadores de que ao lado da consideração dos estágios de desenvolvimento cognitivo se pode avaliar as possibilidades de acelerar o desen volvimento dessas estruturas Como situar essa proposição em relação às crianças das camadas populares Por outro lado a ênfase na aprendizagem de sala de aula por meio da transmissão e reelaboração de conteúdos parece ser compatível com a noção de aprendizagem significativa proposta por Ausubel 1980 e com a noção de estrutura das matérias proposta por Bruner 1968 Outros campos de estudo correlatos a Psicologia da memória a formação de hábitos e automatismos os processos de aquisição da linguagem instigam a investigação do psicólogo educacional d O meio escolar O meio escolar deve ser um lugar que propicie determinadas condições que facilitem o crescimento sem prejuízo dos contatos com o meio social externo Há dois pressupostos de partida primeiro é que a escola tem como finalidade inerente a transmissão do saber e portanto requerse a sala de aula o professor o material de ensino enfim o conjunto das condições que garantam o acesso aos conteúdos segundo que a aprendizagem deve ser ativa e para tanto supõese um meio estimulante O meio educativo compõese do meio material a realidade material concreta da escola da classe e da realidade social meio A PRAXIS DO PSICÓLOGO 17 pessoal as intercomunicações existentes entre as diferentes peilOM envolvidas na situação escolar incluindo as posições sociais dâl pessoas e as comunicações que se dão e meio institucional síntese dos demais fatores que compõem o meio educativo incluindo instâncias externas à escola O conjunto desses fatores compõe o ambiente global da aprendizagem que tanto pode inibir e bloquear o trabalho peda gógico quanto pode ser o quadro motivador que possibilite o desenvolvimento das capacidades e poderes das crianças Um dos aspectos a ressaltar são os arranjos ao nível das estruturas de organização das classes A questão homogeneidade heterogeneidade pode ser resolvida pela formação de classes etárias heterogêneas ao lado de grupos homogêneos para recuperação aquisição de automatismos melhora da leitura consolidação de um conceito Ê possível realizarse esse trabalho num momento das aulas quando os alunos poderiam ser separados em grupos dis tintos alunos sem dificuldades que trabalhariam individualmente os médios e os mais fracos que trabalhariam com a ajuda de dois professores em torno das dificuldades apresentadas Paralelamente outra forma de organização seria7i os grupos espontâneos em torno de clubes ou associações espones artes trabalhos manuais etc Entretanto o principal fator de um meio escolar estimulante é o professor e talvez esteja aí um sério fator comprometedor da eficácia da escola pública já que ele também carece de estimu lação Sobre ele escreveu Zazzo Os professores têm espontanea mente tendência a explicar pela inteligência a situação do mau aluno secundariamente peia preguiça muito raramente pelas condições de vida da criança e menos ainda por sua má pedagogia nào é afirmação gratuita mas o resultado de sérios inquéritos 1974 Ê comum os professores levarem em conta apenas o aspecto intelectual dos alunos considerando o insucesso como fenômeno individual ou seja o mau resultado escolar decorrente de condições sociais é algo natural Resulta daí uma expectativa negativa face ao desempenho irregular daquele aluno que não corresponde ao seu trabalho A condição de êxito do trabalho escolar supõe um professor com uma formação científica de alto nível formação que inclua também uma clara compreensão dos mecanismos do insucesso escolar 176 JOSÉ CARLOS LÍBÀNEO Psicologia na escola De acordo com a perspectiva segundo a quaJ o domínio específico da Psicologia educacional isto é os processos psíquicos implicados no ato pedagógico resulta das situações pedagógicas sua atuação na escola pode darse em três níveis pelo próprio professor como psicólogo em ação pelo supervisororientador educacional pelo próprio psicólogo em Centros de Saúde ou organi zações comunitárias O último nível apontado suporia a existência de serviços espe cializados seja para atendimento de casos especiais de alunos com problemas de aprendizagem seja para eventual assistência às escolas pesquisa pedagógica treinamento em serviço programas de recu peração nas matérias etc Como o interesse deste capítulo são as possibilidades institucionais da escola não há maiores comentários sobre este nlvel Os professores da escola pública em geral são céticos quanto às possibilidades de auxilio da Psicologia principalmente os que já têm uma larga experiência de saia de aula Muitos professores chegam a recusar qualquer auxilio técnico posto à sua disposição por desacreditar de sua eficácia Há outros que aceitariam de bom grado os aportes da Psicologia se ela realmente atendesse à proble mática do ensino Há ainda um numeroso grupo que mesmo disposto a acreditar na criança e na escola sentemse impotentes face às condições de vida e de trabalho produzidas por uma sociedade segregativa e discriminadora Por fim de uma forma ou outra paradoxalmente a grande maioria dos professores é larga mente influenciada pelo psicologismo que os leva a transformar os comportamentos das crianças em manifestações psicológicas o que levou Wallon a escrever que a introdução da Psicologia na licen ciatura deveria ter menos a característica de matéria de ensino e mais a de acautelar os professores contra certos slogans psicológi cos e leválos a tirar de sua própria experiência conclusões instru tivas para o próprio psicólogo 1975 A posição segundo a qual a escola pública deve orientarse predominantemente para o ensino das matérias escolares implica assumir que os apoios pedagógicos devem ser buscados nas variáveis que afetam diretamente a aprendizagem escolar Isso significa acreditar que nào há oposição entre ensino centrado no aluno e A PRAXIS DO PSICÓLOGO 177 ensino centrado no professor ou nos programas mas uma conti nuidade Se por um lado é a criança que aprende como sujeito de sua própria aprendizagem por outro a condução do ensino 6 responsabilidade do professor e da escola Não existe apetite inato de aprender uma coisa é reconhecer interesses e necessidades nas crianças e reorientálas para que participem ativamente na apren dizagem outra coisa é entregar a responsabilidade dos conteúdos à espontaneidade das crianças O professor assim é primordial e o que se exige é antes de tudo uma formação científica que abranja o domínio de sua matéria de métodos e recursos de ensino e na Psicologia o conhecimento dos mecanismos geradores do insucesso escolar especialmente os decorrentes da condição de origem das crianças Sem essa formação uma boa parte do discurso proferido neste texto terá sido inútil No que se refere ao ensino da Psicologia tratase de articular seus princípios e explicações com a prática cotidiana do professor para que ele próprio os transforme em métodos e conteúdos Levar em conta a problemática real da escola significa classes numerosas condições desiguais nos prérequisitos para a aprendizagem moti vação e interesses vinculados a perspectivas de classe social problemas de comunicação e entendimento professoralunos indis ciplina inadequação de programas etc A orientação do ensino se torna psicológica quando pretende adaptarse ao aluno Na verdade não se estaria errando muitose se pudesse extrair o conteúdo da Psicologia da observação atenta de como certos professores conse guem aproximarse dos interesses compreensão e linguagem das crianças sem sacrificar a tarefa de ensinar e até como forma de ensinar o que Wallon chama de poder espontâneo de simpatia intelectual e que infelizmente não pertence a todos O segundo nível de atuação da Psicologia na escola se dá através do supervisororientador educacional O autor não faz distinção relevante entre supervisor pedagógico e orientado edu cacional quanto mais cresce a convicção da unidade do ato pedagógico na sua diversidade menos sentido faz a fragmentação do atendimento ao professor e ao aluno algo parecido se poderia dizer do próprio diretor de escola A presença desses profissionais na escola desde que tenham competência é imprescindível para o funcionamento escolar Embora haja um número considerável de tarefas que desempenham 178 JOSÉ CARLOS LIBÂNEO no conjunto da escôla será destacado aqui apenas o aspecto do professor e suas relações com os alunos Com efeito o supervisor orientador atua como auxiliar do professor na sala de aula dando assistência a problemas de aprendizagem relacionamento profes soralunos adequação conteúdosmétodos às condições sócioçultu rais e psicológicas das crianças atividades de sensibilização visando mudança de atitudes e expectativas etc Os professores esperam muito da equipe técnica desde que sejam efetivamente apoiados Eles enfrentam por exemplo o problema da solidão São solicitados a dar muito mas recebem pouco Seu trabalho é a longo prazo e nem sempre podem experi mentar a alegria de ver os alunos corresponderem ao seu trabalho São raros os momentos na escola em que possam trocar idéias com seus colegas e as escolas não incentivam nem favorecem a formação de equipes de professores mesmo porque o trabalho de sala de aula é tão absorvente que às vezes quanto menos se falar de aluno melhor Os professores reclamam também a preparação deficiente dos alunos dos anos anteriores e isso gera ansiedade e afastamento entre os colegas Outros manifestam uma permanente aversão e antipatia pelos problemas manifestados pelos alunos A falta de entendimento entre professores e alunos a indisciplina a não correspondêncla entre as expectativas de uns e outros são alguns fatores que provocam freqüentemente reações emocionais intensas O que é possível fazer Como adequar conteúdosmétodos para que se articulem com as condições dos alunos Eis algumas idéias reforçar o conteúdo científico do ensino e investigar métodos de apropriação que permitam articulação teoriaprâtica social considerar o meio social de origem dos alunos como ponto de partida para as reelaborações dos conteúdosmétodos estudar as características sócioculturaise psicológicas das crianças das classes populares a fim de poder avaliar suas disposições intelectuais suas características positivas bem como as limitações efetivamente exis tentes superando o enfoque da educação compensatória atuar na modificação das expectativas e atitudes dos professores frente ao insucesso escolar das crianças mais pobres estimular a formação de equipes de professores onde se tome possivel um projeto comum de construir uma escola demo A PRÁXIS DO PSICOLOGO 179 crática para redução das desigualdades escolares por razões de origem social incentivar pelo menos a atitude de pesquisa pedagógica que permita inovações c avanços assumir o meio escolar como o conjunto das disposições materiais físicas humanas e institucionais que garantam o clima necessário ao desenvolvimento melhor possível a partir da expe riência social e cultura vivida pela criança auxiliar os professores no manejo de classe e controle da disciplina a partir de uma melhor compreensão do comportamento do aluno em suas implicações de natureza social habilidades de condução de grupos numerosos etc fazer uma revisão de conjunto da adequação de conteúdos métodos face às disponibilidades psicológicas e sóeioculturais das crianças bem como dos prérequisitos de natureza cognitiva trazidos pelas crianças A formação psicológica do educador incluiria pelo menos os seguintes tópicos 1 determinantes sócioculturais da ação pedagógica Univer so cultural dos alunos e da escola Meio sóciocultural e disposições psicológicas Condições sociais de vida e de trabalho das classes populares Aspectos do desenvolvimento físico e cognitivo O ambiente escolar 2 componentes psicológicos Motivação autoconceito atitu des Processos mentais de aquisição de conhecimentos a comu nicação docente Aprendizagem signitiva Capacidades exigidas pelas matérias de estudo 3 Psicologia social percepção e expectativas de papéis em termos de classes sociais Manejo de grupos numerosos Bibliografia Ausubei David etalii Psicologia Educacional Rio interamericana 1980 Bruner Jerome S O processo da Educação São Paulo Nacional 1968 Charlot Bemard A Mistificação Pedagógica Rio Zahar 1979 Corrigan P e Leonard P Prática do Serviço Social no Capitalismo Rio Zahar 1979 Cury Carlos R J Educação e Contradição elementos metodológicos para uma teoria crítica do fenômeno educativo Sào Paulo Tese de doutorado 1979 180 JOSÉ CARLOS LIBÄNEO Debesse M e Mialaret G Tratado das Ciências Pedagógicas Psicologia da Educação voJ 4 São Paulo Nacional 1974 Gfen Grupo Francês de Educação Nova Aproveitamento Escolar Que Pedagogia Lisboa Editorial Caminho 1978 Lane Silvia T M Redefinição da Psicologia Social in Educação e So ciedade São Paulo n 6 Libâneo JoséC TendênciasPedagógicas e Prática Escolar in Revista da ANDE ano 4 nó1983 Martins Joel O Psicólogo Escolar separata da Revista de Psicologia NormalePatológica São Paulo 1970 Mialaret G As Ciências da Educação Lisboa Moraes 1976 Mello Guiomar N de Pesquisa em Educação Questões Teóricas e Ques tões de Método Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas 40 fev 1982 Mello Guiomar N de Educação e Classes Populares Revista da ANDE ano 4 n 611983 Merani Alberto L Psicologia e Pedagogia Lisboa Editorial Noticias 1977 Sacristán José G Explicação Norma e Utopia nas Ciências da Educa ção Cadernos de Pesquisa Fundação Carlos Chagas São Paulo 44 fev 1983 Sâviani DermevaJ Escola e Democracia São Paulo Cortez EdAutores Associados 1983 Snyders George Para Onde Vão as Pedagogias Nãodiretivas Lisboa Moraes 1981 Wallon Henri Psicologia e Educação da Infância T Lisboa Editorial Es tampa 197S O psicólogo clínico Alfredo Naffah Neto Ser um psicólogo clínico sonho de tantos mil vestibulandos antes mesmo de adentrar as portas de uma faculdade de Psicologia De fato a clínica fascina e atrai como a fantasia de algo importante e misterioso Lembrome do olhar de respeito e ao tnesmo tempo de sofreguidão com que eu a namorava nos idos da década de 60 quando era ainda um estudante de Psicologia Era algo assim como a noiva esperada há tantos anos e que eu deveria conquistar com maestria e competência Imaginarme sentado numa sala e tendo diante de mim um cliente Puxai Nâo era brincadeira nàol Alguém que iria depositar no meu saber os destinos da sua vida Isso me fazia importante e poderoso E era como uma autoafirmaçào para as minhas inseguranças de adolescente1 Mais tarde acabei de fato desposando a clínica e como em todo casamento tive de apreender na convivência do cotidiano r a desmistificar os dotes sobrenaturais de tão afamada dama E conseguir conviver com ela num nível mais real Comecemos pelo psicôdiagnóstico tâo valorizado nos meus tempos de aluno Saber aplicar e interpretar os testes do Roschach era algo fundamental o primeiro sinal de que tínhamos sensibi 1 Cabe lembrar ao leitor que nessa época ser psicólogo clínico e psicoterapeuta era algo que envolvia para nós anos e anos de formação Jamais pensarfamos como hoje se fa2 em terminar a faculdade e já iniciar uma prática clfnica sem um curso de especialização 182 ALFREDO NAFFAH NETO lidade1 e aptidão pra o ramo Do TAT então nem se fale Já exigia maiores conhecimentos Sentiame um pouco como um aprendiz de feiticeiro E não tinha qualquer consciência crítica dos pressupostos que tais práticas envolviam Só mais tarde no mestrado em Filosofia lendo Michel Foucault vim a fazer a crítica da psicometria Á começar pelo uso das tabelas estatísticastão valorizadas então uma espécie de emblema da cientificidade do teste Se o teste foi validado e padronizado para a população em questão então tem valor científico diziam todos E tome estatística Mas ninguém se perguntada o que significava pautar as noções de normal e patológico pelos valores médios de uma popu lação Ninguém percebia que a média enquanto símbolo abstrato de uma normalidade era também símbolo da mediocridade e da unidimensionalidade do nosso modelo dé homem Ser normal e portanto nãoneurótico significava ser médio em tudo ai de quem passasse do desviopadrão E com esse princípio não questionado não percebíamos que a padronização do teste implicava diretamente um princípio de padronização do homem Que o que chamávamos de saúde mental era algo que tinha a ver com um homem padrão não mais respostas emocionais do que a média da popu lação não mais respostas globais ou de detalhes do que reza a tabela de normas do teste de Roschach Saudável é o homem médio o que quer dizer o homem medíocre o homem que não se desvia das normas o homem adaptado à realidade E por incrível que pareça ninguém se perguntava por essa realidade se ela era boa ou ruim justa ou injusta E estávamos nos anos 60 pico da ditadura militar e do Terror no Brasill Um início de consciência crítica veio na época através de Ana Maria Poppovic que ao iniciar seus estudos com crianças carentes culturais descobriu que nem sempre um baixo resultado nos testes de inteligência significava necessariamente deficiência mental podia significar também carência cultural Era um primeiro vislumbre da realidade políticocultural bastante importante no momento estávamos então em 68 época da tomada da PUC pelos alunos das comissões paritárias e tudo o mais Pena que isto não nos tenha possibilitado fazer a critica mais plena da psicometria e dos princípios que ela encobre e faz proliferar Também na época os caminhos eram poucos ou optávamos pelo 2 E isso se aplica sem dúvida d maioria da população infantil brasileira A PRAXIS DO PSICOLOGO 1U behaviorismo que tampouco fazia a crítica da realidade mal simplesmente a transformava num conjunto de estímulos varíadoi ou pela clínica tradicional o que quer dizer pelos testes verdade que na época a Psicologia era relativamente nova no Brasil e que tudo o que tínhamos era herdado dos americanos e dos europeus Podese argumentar nesse sentido que o psicólogo brasileiro ainda não tivera tempo suficiente para fazer a crítica dessa herança cultural e da carga ideológica que ela comportava O que assusta entretanto é perceber que hoje quase vinte anos depois o cenário ainda é praticamente o mesmo na maior parte das faculdades de Psicologia Ainda se ensinam as mesmas coisas e falta a mesma consciência critica3 nesse sentido a Psicologia continua ainda sendo um dos baluartes do poder disciplinar Como nos mostra Michel Foucault A arte de punir num regime de poder disciplinar não visa nem à expiação nem mesmo exatamente à repressão Ela coloca em ação cinco operações bem distintas referir os atos as realizações as condutas singulares a um conjunto que seja ao mesmo tempo campo de comparação espaço de diferenciação e princípio de uma regra a seguir Diferenciar os indivíduos uns com relação aos outros ç em função desta norma de conjunto quer se a faça funcionar como um limiar mínimo como uma média a respeitar ou como um optímum do qual devese estar próximo Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades o nível a natureza1 dos indivíduos Pôr em jogo através dessa medida 4valorizante uma coação em direção a uma conformidade a ser realizada Traçar enfim o limite que definirá a diferença com relação a todas as diferenças a fronteira exterior do anormal A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das institui ções disciplinares compara diferencia hierarquiza homogeneíza exclui Numa só palavra normaliza4 Mas o ato de normalizar nào caracteriza somente a psico nietria de forma geral Ele está presente sempre que se fala em diagnosticar ou em tratar sempre que se está às voltas com alguma patologia desvio de conduta ou anormalidade1 Atravessa 3 Pelo menos é que relatam os alunos do programa de PósGraduação em Psicologia Clínica da PUCSP a maioria deles professores em diferentes cursos d graduação em Psicologia 4 Foucauft M Surveiller et Punir Naissance de fa Prison Paris ed Gallimard 1975 p 186 164 ALFREDO NAFF AH NETO desta forma os sentidos mais usuais que definem na prática a psicoterapia Sair desse campo implica abandonar o universo das normas dos desvios das tabelas dos diagnósticos implica consi derar que o sar humano enquanto singularidade é imensurável incomparável nãohierarquizável Implica desistir de fazer da Psicologia o velho modelo da ciência positivista E em abandonar o conceito de doençamental5 A psicanálise tentou sem dúvida alguma sair desse modelo disciplinar através do espírito refinado de Jaeques Lacan Criti cando o pragmatismo norteamericano e retomando o mestre Freud Lacan tentou fazer da psicanálise uma ciência do Inconsciente e do processo psicanalítico um desvelamento desse mesmo Inconsciente agora redefinido a partir de categorias linguísticas e concebido como a região da verdade a mais escondida e essencial do ser humano Não mais processo de adaptação reforço do ego ou normalização a psicanálise com Lacan buscase fundamentalmente como um percurso de revelação de acesso a um saber sobre o desejo singular de cada um Nada disso entretanto impediu que ela fosse criticada pelos próprios franceses entre eles Foucault 41A psicanálise pode ser decifrada historicamente como outra grande forma de despsi quiatrização provocada pelo traumatismoCharcot Uma retirada para fora do espaço do asilo a fim de apagar os efeitos paradoxais de sobrepoder psiquiátrico Mas também reconstituição do poder médico produtor da verdade num espaço preparado para que essa produção permaneça sempre adequada ao poder Á noção de transferência como processo essencial à cura é uma maneira de pensar conceitualmente esta adequação na forma do conhecimento O pagamento contrapartida monetária da transferência é uma fornia de garantila na realidade uma forma de impedir que a produção da verdade não se tome um contrapoder que dificulte anule e revire o poder do médico6 Afirmação que provoca um semnúmero de contraargumentos Mas não sabe Foucault que a psicanálise por princípio e segundo o próprio Freud não tem nada a ver com a medicina Como pois falar em poder médico E não sabe Foucault que não cabe ao psicanalista produzir qualquer verdade Que enquanto sustentáculo do discurso incons 45 Ver nesse sentido Foucault M Doença Menta e Psicologia Rio de Janeiro Ed Tampo Brasileiro 1968 6 Foucault Mt A casa dos loucos in Micro física do Poder Rio de Janeiro Ed GraalLtda 1979 pp 125126 A PRAXIS DO PSICÓLOGO lift ciente do paciente ele é apenas a região de um suposto saber saber que na verdade é inexistente E que psicanalisar consiste justa mente em refugiarse nesse nãosaber e calar qualquer possível resposta para que o discurso do Outro rodopiando sobre si próprio produza a verdade que contém sem saber que contém Ê evidente que Foucault conhece todos esses argumentos afinal o seu discurso é contemporâneo ao de Lacan No entanto a crítica persiste por quê Um episódio pode ilustrar uma possível resposta Em janeiro de 1982 estando em Paris num almoço na casa de Robert Castel outro importante crítico da psicanálise7 num certo momento começouse a discutir psicanálise e eu lhe perguntei se a sua critica atingia a essência da psicanálise ou simplesmente os desvios dela Ele simplesmente respondeu Eu não critico a psica nálise dos livros mas a que vejo acontecer na prática1 Com Foucault talvez se dê algo semelhante De qualquer forma não são somente as críticas de Foucault e Castel que a psicanálise enfrenta na França Há também as de Deleuse e Guatarri que vêem no imperialismo assumido pelo complexo de Êdipo na óptica psica nalítica um reducionismo que castra e domestica a produção inconsciente fazendoa exprimirse e reproduzirse num familia lismo normalizante de acordo com os interesses do capital e reproduzindo a sua própria aparição enquanto fetiche Édipo tem por fórmula J 1 o Um do fálus transcendente sem o qual os termos considerados não formariam um triângulo Tudo se passa como se a cadeia dita slgnificante feita de elementos em si mesmos não significantes de uma escrita polívoca e de fragmentos desta cáveis fosse objeto de um tratamento especial de um achatamento que extraísse um objeto destacado significante despótico em cuja lei toda a cadeia parece então pendurada cada elo triangulado Existe aí um curioso paralogismo que implica um uso transcendente das sínteses do inconsciente passase dos objetos parciais separáveis ao objeto completo separado de onde derivam as pessoas globais por intimação ã falta Por exemplo no código capitalista e sua forma trinitária o dinheiro como cadeia separável é convertido em capital 7 Que aliás me foi apresentado por uma amiga comum Suely Rolnik e que é autor entre outras coisas do livro 0 psicanalismo traduzido e editado pela Graal Ltda Rio de Janeiro 8 Deleuse G e Guatarri E O AntiÉdipo Rio de Janeiro Ed Imafio 1976 e Guatarri F Revolução Molecular pulsações políticas do desejo SSo Paulo Ed Brasiliense 1981 186 ALFREDO NAFFAH NETO como objeto separado que só existe sob o aspecto fetichista do estoque e da falta Acontece o mesmo com o código a libido como energia de extração e de separação é convertida em fálus como objeto separado este último só existindo sob a forma transcendente de estoque e falta algo comum e ausente que falta tanto aos homens quanto às mulheres9 Penso que estas considerações podem dar uma idéia ao leitor de quão complexa é essa questão políticoideológica que atravessa toda a psicologia e que não poupa sequer a psicanálise Nào é meu objetivo aqui entretanto alon garme nessa questão deixo aos psicanalistas a tarefa de debatêla e lançar mais luz sobre o presente tema Quanto a mim meu caminho foi outro Tendo assistido às primeiras aparições do psicodroma no Brasil através de Jaime RojasBermúdez e tendo grande curiosidade pelos métodos grupais sempre achei que se deveria aprender a lidar com grandes massas humanas e que o divã psicanalítico era pouco adequado à realidade brasileira resolvi tornarme psicodramatista No psicodrama encontrei de início um método interessante mas mal aproveitado e uma teoria sem qualquer consistência lógica articulável pelo menos de forma imediata Mas resolvi investir Comecei a utilizar o método na clínica e a descobrir seus meandros Resolvi também fazer o mestrado em Filosofia como forma de me fundamentar para rever criticamente a teoria moreniana Assim apoiado na prática pelas supervisões de Dalmiro Bustos e na teoria pela orientação critica de Marilena Chauí fui traçando meu trabalho de reestruturação fundamentação e crítica da teoria e do método psicodramáticos10 O primeiro resultado foi a tese de mestrado defendida em 1977 e publicada em 1979 Nela aparece entre outras coisas uma tentativa de fundamentar a socionomia que é a disciplina geral proposta por Moreno através do materialismo dialético Se a concepção de homem proposta por Moreno é a do seremrelação se o homem moreniàno mais do que uma subjetividade fechada é intersubjetividade se a sua existência concreta acontece na multi 9 Deleuse G Guatari F O AntiÈdipo op c r t pp 9899 00 Para quem nSo sabe Dalmiro Bustos ô um psicodramatista argentino credenciado pelo Instituto Moreno de Beacon Nova Iorque e a quem nós brasileiros devemos muito enquanto formação Marilena Chauf dispensa apresentações 01 Naffah Neto A Psicodrama Descolonizando o Imaginário São Paulo Ed Brasiliense 1979 plicidade e no entrecruzamento dos Mxei dt rttiflll envolvido se enfim seu ser é o pulsar conitaat tntfl 1 a p l estereotipada do papel social e um movimento espontlntChcrtadOTi tudo isso indica que o locus do homem moreniano é o mundo socíal ê político o mundo das lutas de classes da alienação e da práxis Por essas razões o materialismo dialético serviu na época para dar forma e fundamentar a microssociologia e a Psicologia desenvol vidas por Moreno formando até com elas um todo congruente em termos lógicos11 Essa óptica ainda me acompanhou no livro seguinte pelo menos em alguns dos ensaios que o compunham13 Com o passar do tempo entretanto fui percebendo o quanto o materialismo dialético era cego a certas questões humanas como a questão do desejo o homem marxista definese pela necessidade e a questão do inconsciente a teoria marxista está apoiada na consciência de ciasse A decepção com o materialismo dialético aumentou com a minha viagem a Cuba em julho de 1983 Viagem importante essa que quase me pôs esquizofrênico pois nada do que eu via correspondia ao que eu sentia Descobri um país que de fato conseguiu resolver o problema de sua população em termos das necessidades básicas essenciais alimentação moradia saúde edu cação e nesse sentido o trabalho da Revolução foi primoroso mas que para atingir esse estágio teve de se tornar um país de uma só cabeça uma única forma de pensar disseminada de cima para baixo e rigorosamente controlada pelo Estado Tudo pode desde que dentro das metas do socialismo o que quer dizer do pensamento marxistaleninista Um país onde o diálogo a demo cracia as singularidades tornamse nesse sentido variações dentro de um único tema e onde as subjetividades são produzidas pela máquina do Estado como em qualquer superpotência capitalista E onde o poder que governa é nesse sentido o poder disciplinar País maravilhoso do ponte de vista econômico e detestável do ponto de vista político e que nesse sentido fezme sentir cindido esquizado E a psiquiatria cubana que tanta curiosidade tem despertado nào realiza nada mais nada menos do que um trabalho de A PRAXII DO MKCObOQO 12 Isso inclusive na medida em que eu assumia o materialismo dialético através da óptica do existencialismo francês MerleauPonty Sartre e que a teoria moreniana tem muito d ver com o movimento existencialista 13 Ver Naffah Neto A 0 Drama na famftia pequeno burguesa e Psicodrama e Dialética em Psicodramatizar Ensaios SSo Paulo Ed Ágora 1980 m ALFREDO NAFFAH NETO reinserção do Louco ha sociedade produtiva através da laborterapia Nos textos que pude ler sobre tal trabalho não havia qualquer menção ao possível caráter revolucionário do discurso da loucura nem a qualquer concepção da loucura que nào a tomasse como doença mental Enfim em matéria de psiquiatria os cubanos estão muito longe de Laing Cooper e Foucault O que fazem é procurar abolir a loucura reinserindo o louco na sociedade produtiva desenvolvendolhe o papel de cidadão e de responsável E se a loucura for sintoma de algo se ela refletir algo das contra dições que envolvem a sociedade cubana esse saber é abolido como possibilidade ao se abolir a loucura pela reabsorção social O que significa em suma uma psiquiatria que por trás da fachada de revolucionária encobre um caráter conservador e reacionário14 Mas enfim eu dizia tudo isso para poder justificar o porquê da minha urgência em ultrapassar o materialismo dialético ou pelo menos em transformálo em aspectos essenciais Sem dúvida há coisas do marxismo que ainda valem e muito Não há de se desme recer a descrição da sociedade capitalista exposta em O Capital Mas há de se questionar o naturalismo e o primado da consciência na visão marxista de mundo e de homem Ê necessário se repensar as categorias políticas e sociais do materialismo dialético para talvez descobrir que por trás das relações contraditórias entre as classes sociais e de toda a descrição objetiva da economia burguesa pululam fantasmas e desejos perfilamse tradições autoritárias enfim estruturase um Inconsciente Social e Político que engendra a história nas suas malhas e que não se abole com a revolução do proletariado Após esse empreendimento repensar toda a questão da dialética Quem poderia ter realizado essa crítica de forma mais plena seria talvez a Escola de Frankfurt Entretanto não o fez na medida em que preferiu permanecer em certa medida fiel tanto ao marxismo quanto à psicanálise ficando prensada entre as duas escolas Por outro lado é essa mesma crítica que Deleuse e Guattari têm procurado realizar em livros como O AntiÊdipo por exemplo Entretanto a obra destes autores também apresenta poutos 14 E mesmo que se alegue que os Joucos em Cuba são todoe velhos e que a loucura foi originária do regime anterior ou do choque produzido pela Revolução há de se provar que o eeu desenvolvimento e permanência não reflete algo da atual sociedade cubana A PRÀXIS DO PSICÓLOGO questionáveis como o rechaço talvez prematuro da dialética isso na medida em que se apóiam no pensamento de Nietzsche e herdam nesse sentido a sua crítica a filosofias do negativo15 Não seria necessário levar a dialética às últimas conseqüências para poder de fato repensála com maior vigor ou até chegar à conclusão de que enquanto filosofia e visão de mundo ela está ultrapassada16 Mas voltemos ao psicodrama para tentar mostrar que na idéia moreniana de um CoInconsciente ou Inconsciente Comum talvez esteja um elo possível para a formulação desse Inconsciente Social e Político de que falávamos O que Moreno mostra é simples que o psicodrama com famílias e com outros grupos estreitamente vinculados têm revelado situações em que a produção inconsciente de um membro do grupo vinculase espontaneamente à produção inconsciente de outro membro do grupo formando um só elo de significação mais que isso ele observa que marido e mulher invertendo papéis numa dramatização conseguem muitas vezes trazer à tona conteúdos inconscientes que supostamente seriam do parceiro E conclui pela necessidade de se pensar em estados inconscientes comuns a vários sujeitos uma espécie de CoIncons cientet que desempenharia segundo elç papel importante na vida de pessoas intimamente associadas como pai e filho marido e mulher gêmeos etc e em grupos estreitamente vinculados tais como equipes de trabalho grupos de combate em guerras campos de concentração grupos religiosos carismáticos etc17 Também em meu trabalho como psicodramatista tenho observado fenômenos interessantes nesse sentido sessões psicodramáticas de grupos já relativamente antigos enquanto processo terapêutico mostram 15 Sobre as críticas de Nietzsche à dialética ver Deleuse G Nietzsche e a Filosofia Rio de Janeiro Ed Rio 1976 16 Levar a dialética às últimas conseqüências significa num certo sentido produzindo a si mesmo enquanto subjetividade Nessa perspectiva nâo hegelianomarxista Ou seja recuperar o seu sentido etimológico originário expresso no grego diaJégesthai que significa o processo pelo qual o eu recolhe o múftiplo para dentro de si perpassandoo na sua representabilidade e nesse sentido produzindo a sí mesmo enquanto subjetividade Nessa perpectiva não se poderia pensara dialética como um processo infinito nunca acabado onde cada síntese é sempre fragmentária parcial onde a totalidade designa o fantasma do impossível E onde a multiplicidade permanece sempre como irredutibilidadedú Ser à consciência 17 Ver Moreno J L La terapia interpersonal la psicoterapia de grupo y la funcíón dei inconsciente in Las bases de a psicoterapia Buenos Aires Ed Hormè S A E 1967 190 ALFREDO NAFF AH NETO muitas vezes o grupo como uni todo antecipando na fase de aquecimento da sessão trechos de cenas que seriam encenadas em seguida pelo protagonista ainda não detectado Ou seja o grupo funciona aí como uma espécie de coro de tragédia grega e através de lapsos atos falhos deslizes transferenciais consegue anunciar frag mentos do drama que ainda está por ser encenado como entender esse tipo de fenômeno senão supondo um CoInconsciente grupai Também já mostrei em trabalhos anteriores1 que muitas vezes vaise encontrar o elo de significação que estrutura certas crista lizações de papéis em personagens de duas gerações atrás como avós por exemploOu seja certos sintomas como alguns medos não compreensíveis só encontram seu sentido quando o protago nista consegue encarnar em cena esses fantasmas de antepassados que através da sua história de vida explicam a origem do medo que o paciente vive e cuja razão de ser permanecera até então incons ciente Como pois entender esse fenômeno senão supondo um CoInconsciente familiar estruturado através de gerações e ge rações1 Essas observações permitemnos generalizar e ampliar o conceito para aplicálo a todo o corpo social Ou seja propõem uma nova visão das relações sociais não mais como relações objetivas e imediatas essa é a óptica proposta por um certo tipo de Sociologia nem mesmo como relações mediadas unicamente pelo fetiche do capital óptica do marxismo mas como relações mediadas por um número incalculável de fantasmas inconscientes Ou seja o fan tasma inconsciente antes definido pela psicanálise como represen tação mental intrapsíquica deslocase dessa caixa preta chamada mente para ocupar o lugar que sempre lhe foi de direito as relações entre os homens a estrutura social nas suas produções e transformações Tomese por exemplo o caso de Hiroshima quantas gerações viveram e ainda vivem o seu cotidiano como permeado pelos fantasmas daqueles que morreram fantasmas das casas destruídas das doenças da morte do ogumelo avassalador 18 Ver Naffah Neto A O Drama na família pequeno burguesa op cit 19 Também os psicanalistas conhecem fenômenos desse tipo Maud Man no ni por exemplo cf Lenfant sa maladie et les autyes Paris Ed de Seuil 1967 nos mostra como certas produções inconscientes da criança nada mais fazem do que pôr às claras certos conflitos inconscientes que estruturam a relação dos pais e da famfl ia como um todo A PRAXIS DO PSICÓLOGO 191 da bomba atômica Representações mentais Essa é uma lorma um tanto idealista quando não equivocada de ver a coisa chamar de mentais esses espectros essas sombras que se entrelaçam nas relações que permeiam todo o corpo social nas suas ações mais corriqueiras do cotidiano constitui senão um abuso teórico pelo menos uma concepção ingênua a bomba atômica está de fato lá não só naqueles que ficaram marcados por ela não só na radio atividade que ainda ameaça a vida das pessoas não só no parque e nos monumentos que são o seu testemunho vivo ela está também nos recantos mais escondidos da vida de cada um na saudade daqueles que morreram nos sonhos daqueles que ainda estão por vir na inocência daqueles que sequer foram diretamente afetados por ela Não há dúvida as relações sociais em Hiroshiraa ainda continuam sendo mediadas pelo capital e nesse sentido a óptica marxista se mantém entretanto qualquer análise que ficasse unicamente presa a esse aspecto seria simplesmente simplória E não há dúvida esse trauma social que foi a bomba atômica estruturou e ainda está estruturando um Inconsciente Social e Político que atravessará as vidas de gerações e gerações da cidade marcada E quando um dia tudo passar e a bomba for esquecida se isso for possível as gerações posteriores ainda continuarão a sonhar com cogumelos estranhos parecendo feitos de nuvens ou de fumaça quem sabe lá sem consciência alguma do que se trata Entretanto essa idéia de um inconsciente Social e Político não é assim tão nova Os antigos gregos já a conheciam embora nunca a tenham nomeado desta forma Tomese por exemplo a noção de ananké destino tal qual aparece na tragédia grega e nos mitos ÉdipoRei pode ilustrar o que queremos dizer A idéia não sei se propriamente freudiana ou dos freudianos de que a tragédia é movida pelo desejo incestuoso e parricida de Êdipo é completamente falsa e Jean Píerre Vemant e Pierre VidalNaquet já o demons traram20 O que isso quer dizer Quer dizer simplesmente que entre um suposto desejo inconsciente de Édípo e os acontecimentos centrais da tragédia o assassinato do pai e o casamento com a mãe existe a mediálos um conjunto de oráculos que repetem maldições de antepassados que formam uma trama intrincada e nodosa onde o desejo de Êdipo é apenas uma pequena peça Não há dúvida 20 Vernant J P e VidalNaquet P Édipo sem complexo em Mito e Tragédia na Gréciê Antiga S3o Paulo Ed Duas Cidades 1977 192 ALFREDO NAFF AH NETO a tragédia não revçla todos esses aspectos ela apenas conta que Laio pai de Édipo recebera um oráculo profetizando que seria morto pelo próprio filho Entretanto basta pesquisar o mito para descobrir que todas as versões mais correntes referemse a esse oráculo como repetindo uma antiga maldição que Laio recebera em tempos passados de Pélope rei de Pisa quando raptara seu filho Crisipo para fazêlo seu amante Acontece que Laio se hospedara na casa de Pélope em tempos difíceis e esse rapto representava uma traição à hospitalidade do rei Por esta razão Pélope lançoulhe a maldição de que não teria filhos e se os tivesse morreria nas mãos do próprio filho pedindo a Zeus que a realizasse21 Feitas essas colocações fica bastante claro que se tivéssemos de colocar algum desejo na origem da tragédia de Êdipo esse desejo não seria o do herói não sendo portanto desejo incestuoso e parricida seria isto sim o desejo homossexual de seu pai Laio Entretanto o que caracteriza a mitologia grega é justamente a impossibilidade de se detectar a origem de qualquer fato tudo parece remeter a um desfiladeiro de acontecimentos lutas guerras disputas maldições num conjunto de histórias que se irradiam umas das outras outras como ramos de uma imensa árvore povoada de homens heróis e deuses Nesses entrecruzamentos de histórias as ações dos perso nagens freqüentemente produzem injustiças e infelicidades de outrem contraindo dívidas morais e recebendo maldições que encontram alianças entre os deuses22 Essas maldições intemie diadas pela vontade divina e anunciadas pelos oráculos vão constituir assim o ananké dos personagens Destino que enquanto tal será herdado pelos seus descendentes que estarão des forma sempre lutando com fantasmas fatalidades e injunções que escapam ao seu controle e transcendem a sua existência A tragédia grega é constituída desta forma por um script que é vivido pelo herói mas cujas razões via de regra lheapam Como uma trama inconsciente Como formações de um Inconsciente Social e Político Social porque se produz no entrecruzamento das relações humanas Político porque o que está em jogo são sempre relações de poder poder dos homens entre si poder entre os homens e os deuses 21 Cf Ruiz de Elvira A Mitologia Clássica cap IV item 4 Layo e Édipo Madrid Ed Gredos 1975 pp 190204 22 As ações humanas via de regra incorrem em falhae e erros de julgamento devido à presunção e ao orgulho humanos e sua insistência em desconhecer as leis que regem o mundo inomói e que são postas pelos deuses É esse orgulho justamente que receberá o castigo divino A PRÃXJS DO PSICÓLOGO 193 Retomando essa perspectiva o psicodrama aparece como uma práxis de desvelamento desse Inconsciente tal qual aparece e se faz presente no cotidiano dos homens Processo que é em si uma dialética e que se processa através da contradição entre a pretensa consciência de uma ação soberana livre e responsável e a factuali dade de uma ação predeterminada papel fantasma injunçào de um script inconsciente que insiste por se fazer verdade Contradição entre a ação do presente e as ações dos antepassados Entre o discurso egóico e o discurso anônimo Entre as gerações Entre o riovo e o velho Entre o arbítrio e o destino Entre si mesmo e o Outro Entre a vida e a morte Onde a espontaneidade designa justamente esse encontro entre a subjetividade alienada e a sua história momento em que o sujeito perpassa o objeto seu mundo as leis quç o regem os fantasmas que anunciam a sua verdade para tornálo saberemação fluxo de significações que atravessa o corpo para se fazer movimento de transformação da história Aconte cimento Que Deleuze define com primor O acontecimento não é aquilo que acontece acidente ele é naquilo que acontece o puro exprimido que nos íarsigno e nos aguarda Ele é o que deve ser compreendido o que deve ser desejado o que deve ser representado naquilo que acontece Bousquet nos diz Tornate o homem de tuas infelicidades aprende a encarnarlhes a perfeição e o brilho Não se pode dizer nada além disso nunca se disse nada além disso tornarmonos dignos daquilo que nos acontece por conseguinte desejar isso e resgatar daí o acontecimento tornarmo nos os filhos de nossos próprios acontecimentos e através disso refazer um nascimento romper com o nascimento carnal123 Ou nas palavras de Goethe O que herdaste de teus pais toma e torna teu24 Nesta perspectiva o psicodrama rompe com as antigas dico tomias mundo internomundo externo fantasiarealidade psyché sociusy que sempre alienaram a Psicologia do mundo tornandoa uma máquina de fazer cabeças uma prática de normalização e de disciplina Como práxis de desvelamento do cotidiano consegue assim abrir novos horizontes para a prática terapêutica Mas aspira a mais que isso a poder quem sabe um dia arrebentar o espaço 23 DeJeuse G Logique de sens Paris Les Editions de Minuit 1969 p 175 24 Citação de Rollo May O homem à procura de si mesmo Petrópolis Ed Vozes 1973 p 171 1M ALFREDO NAFFAH NETO privado da clínica e tomarse finalmente aquilo que sempre foi em essência desde a sua origem m teatro terapêutico aberto a todos um psicodrama público Mas poderseia perguntar isso ainda pode ser chamado de Psicologia clínica E como fica a velha definição da Psicologia como ciência do comportamento uma pergunta para a qual no momento não tenho resposta Talvez porque enquanto questão ela nunca tenha de fato me preocupado25 De uma coisa entretanto eu sei se a Psicologia nào puder ser isso então cia não me interessa Ela que fique com os seus velhos conceitos encar quilhados e reacionários fazendo as cabeças do mundo até que apareça a todos a sua virulência Ela que apodreça do seu próprio veneno E que morra Tenho dito 25 É possível que os outros autores deste livro possam lançar maior luz 9obre essa questão O papel do psicólogo na organização industrial notas sobre o lobo mau em psicologia Wander ley Codo O movimento social nos últimos tempos tem se mostrado com tendência inequívoca a uma concentração urbana industriai graças ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil cada vez mais e mais operários concentramse em grandes indústrias o que por si só é relevante para os psicólogos incumbidos por miSsão e profissão a compreender eou transformar o comportamento humano Mas além do argumento meramente estatístico há uma razâo ainda mais forte e igualmente evidente a indústria é o motor da sociedade o locus onde se geram as relaçòes entre as pessoas entre as classes A atuação do psicólogo dentro da indústria deveria ser a menina dos olhos deste profissional os postos mais cobiçados entre os estu dantes A realidade não é esta Ao contrário quanto mais cresce a importância da indústria na sociedade contemporânea mais crescem as criticas que a Psicologia principalmente no âmbito acadêmico faz à atuação do psicólogo na indústria Embora seja muito difícil operacionalizar estas formulações sentese claramente que os professores e alunos de Psicologia referemse a esta especialidade como uma espécie de irmà menor da Psicologia um misto de asco e comiseração comum à mãe prendada que se refere a uma filha que se prostituiu Os dados deste trabalho foram coletados do vol I da tese de Doutoramento de Wanderley Codo A Transformação do Comportamento em MdPcadoria PUC São Paulo 1981 196 WANDERLEYCODO O exame desta contradição nos obriga a recorrer à teoria e à prática do psicólogo industrial assim como as críticas que são feitas à sua atuação A começar pela funçào teórica do psicólogo industrial o departamento de seleção de pessoal se orienta pelo pressuposto fundamental de combinar os indivíduos com as ocupações com as quais se habilita1 O prérequisito básico para o cumprimento deste papel é que haja uma determinação explícita de funções um fluxograma da empresa tanto a nível de tarefa quanto a nível de produção A partir daí á seleção deve elaborar teses capazes de detectar habilidades eou características que possam prever o grau de adaptação do indivíduo à tarefa objetivando por um lado aumentar a satisfação no trabalho e por outro aumentar a produtividade reduzindo o tumover Paralelamente ao desenvolvimento dos métodos de seleção deve ocorrer como aconselham os manuais de Psicologia Industrial uma avaliação periódica de desempenho com a função de orientar as possíveis promoções e ao mesmo tempo funcionar como teste periódico avaliando os critérios da seleção e retroalimentando o sistema O resultado previsto é o aumento da eficiência partindo do pressuposto de que um indivíduo desempenha tanto melhor quanto melhor adaptado estiver à sua função No treinamento mantêmse os motivos e mudam os métodos Tratase de ensinar ao trabalhador as especificidades de um trabalho determinado aumentando seu rendimento na medida em que o capacita para o trabalho Quer na seleção quer no treinamento o princípio que vigora é o de manter o homem certo no lugar certo e também adequar o homem à máquina reduzindo ao mínimo a probabilidade de erro Sobre a crítica da função teórica do psicólogo industrial já se transformou em lugar comum as afirmações de que estas atividades descritas sucintamente acima são intrinsecamente reacionárias o psicólogo se coloca a serviço da indústria como instrumento adicional de exploração do trabalhador ao invés de transformar a estrutura produtiva para que venha a satisfazer as necessidades do ser humano transforma o ser humano à imagem e semelhança da indústria invertendo portanto sua missão de contribuir para a 1 Tiffin Joseph e McCormick Ernest J Psicologia Industrial SSo Paulo Ed Herder 1969 p 113 A PRÀXIS DO PSICOLOGO 19 felicidade do homem e corroborando na alienação do trabalhador transformandoo em dócil e pacato objeto de exploração do Capital Áiguns críticos mais afoitos chegam a responsabilizar toda Psicologia acusandoa de estar a serviço das classes dominantes servindo como instrumento destas contra o trabalhador De passagem é bom frisar que não é privilégio da Psicologia muito menos da Psicologia Industrial o seu compromisso com a classes dominantes É fato já sobejamente conhecido que domínio de uma classe sobre a outra traz como decorrência domínio das idéias da classe que está 110 poder e que a ciência nã escapa através de algum exercício mágico de neutralidade Pei contrário ao produzir conhecimento que necessariamente impltc poder a ciência é apropriada pelas classes dominantes e utilizada ern seu benefício No entanto ao constatarmos esta relação entre ciência poder não podemos correr 0 risco de jogar a criança fora com água do banho Vejamos se o psicólogo ao declarar que a Psico Jogia Industrial está a serviço da grande industria se recusa trabalhar na área está fazendo coro pelo avesso a velhas cantilena que proclamam a neutralidade da ciência isto sim produti ideológico típico das classes dominantes Em outras palavras a crítica que produz a não intervenção é uma crítica caolha covarde que lava as mãos e se recusa em inverter o papel da ciência que não se submete a correr os riscos do poder para tenta subvertêlo verdade que o psicólogo industrial é um empregado d patrão contratado para fazer frente ao operário Por isto mesmo psicólogo consciente deveria estar na indústria refletindo consciea temente para tentar subverter suas funções Franzindo o nariz e s recusando a cumprir tão vil papel os defensores deste tipo d crítica fazem coro exatamente ao sistema pois reivindicam pel avesso a neutralidade da ciência que denunciam como falsa poupam os industriais do incômodo de ter entre suas fileiras un profissional preocupado com a defesa dos direitos do trabalhador Imaginemos que um operário ao tomar consciência ds exploração a que é submetido se recusasse a trabalhar na fábrica ac invés de organizar sua classe dentro da fábrica Triste e irônicc conluio entre a consciência e a covardia em uma palavra falsí pseudoconsciência se traduz em omissão Mas não é apenas no plano genérico que estas criticas s mostram débeis Tivemos oportunidade de fazer um estudo do cas 198 WANDERLEY CODO de uma indústria relatado em um trabalho anterior que aponta para as funções que o psicólogo exerce de fato na indústria Possuímos razões para supor que os dados coletados sejam passíveis de generalização guardando precaução para as possíveis mudanças que ocorram de uma fábrica para outra mas que em nossa opinião nâo alteram o conteúdo básico das observações que realizamos Vejamos então quais são de fato as atribuições do psicólogo na indústria Em se tratando de seleção a industrial geralmente divide seus funcionários em duas categorias a dos horistas e a dos mensalistas Os primeiros são os encarregados diretamente da produção ope rários mais ou menos qualificados e os segundos são funcionários do que chamamos de tecnoburocracia diversos escritórios de controle engenheiros psicólogos etc Cabe ressaltar que os horistas apresentam a maioria esmagadora 7090 do total dos empre gados da fábrica Para os operários literalmente não há seleção não se aplicam testes psicológicos nem de personalidade nem de inteligência apenas uma entrevista que indaga coisas como o lugar onde o operário mora o número de filhos que tenha dependência do salário e experiência anterior entendida no sentido de já ter trabalhado em uma fábrica antes para não se desiludir nas palavras da psicóloga que entrevistamos Digase de passagem não poderia ser de outr forma porque d próprio pedido de mãodeobra não discrimina com detalhes a função que o operário deve realizar Na fábrica que estudamos havia vários trabalhos diferentes colocados sob o mesmo título mon tador quem define que tipo de trabalho o recémchegado fará é o chefe de seção e não a seleção de pessoal De montador o operário pode passar a várias outras funções até atingir a de encarregado de pessoal Todas estas promoções são feitas por critérios estabelecidos e determinados pelo chefe de produção não passando portanto pelo crivo da seleção de pessoal Para os mensalistas encarregados em última instância de controlar o comportamento do operário o departamento de seleção já segue à risca os manuais de Psicologia Industrial são aplicados os testes baseados em descrição de função etc O departamento de treinamento segue as mesmas diretrizes básicas grande parte da sua atenção é dedicada a cursos de relações humanas e de liderança avaliação de desempenho aplicado apenas aos mensalistas cursos de inglês para os gerentes A PRAXIS DO PSICÓLOGO IM Para os operários o departamento de treinamento se limita a algumas instruções de como funciona a fábrica chamada pompo samente de semana de integração e ao adestramento cuja instrução dura no caso de tarefas mais completas em média IS minutos e é feita por uma exoperária promovida a instrutora Depois disto basta que o operário reproduza sob supervisão a tarefa até que alcance o ritmo exigido pela produção A fábrica como se vê prescinde da intervenção do psicólogo na escolha de seus funcionários e na manutenção de um bom anda mento da produção Isto é possível devido a dois mecanismos básicos primeiro através da intervençào da Engenharia Industrial que se dedica ao estudo pormenorizado do trabalho visando a maximização dos lucros por meio da simplificação ad extremum da atividade do operário o que não só agiliza pela divisão do trabalho na linha de montagem a consecução do produto final como também e não menos importante torna o operário facilmente substituível eis aqui o verdadeiro agente de controle do compor tamento dentro da fábrica e segundo por um exército industrial de reserva farto e acotovelado às portas da fábrica à espera de demissões que possibilitem ao trabalhador o acesso cada vez mais raro ao emprego Vejamos agora o que estas providências descritas acima provocam no operário A sua admissão ao emprego lhe aparece como aleatória o exercício das tarefas diárias repetitivas insigni ficantes ou como quer Georges Friedmann o homem é maior do que o gesto sua demissão como arbitrária sua promoção depen dente em última instância dos caprichos do chefe da produção O operário resiste a esta alienação de várias maneiras mas algumas nos interessam aqui particularmente supervaloriza a sua própria seleção chegando a inventar testes que não foram reali zados e atribuindo à sua admissão a inteligência perspicácia etc e dentro da fábrica reivindica eou não perde a oportunidade de realizar qualquer curso técnico com que possa aperfeiçoarse Os mecanismos são evidentes tratase de contrapor à desvalorização a que a fábrica o submete uma revalorização de si mesmo ainda que seja através da fantasia Retornemos às qaestões iniciais toda a crítica que se tem feito à Psicologia do trabalho tem como alvo predileto a tentativa de escolher o homem certo para o lugar certo right man to the right place do ponto de vista da seleção ou melhor pressuposto de adaptar o homem à máquina objetivo que em última instância 200 WANDERLEY CODO reproduz no plano dò treinamento a mesma ideologia da seleção O que se vê na fábrica quando o objeto de estudo são os operários quantitativamente a esmagadora maioria dos trabalhadores e qualitativamente os responsáveis diretos pela produção não é nenhuma tentativa de adaptação do indivíduo à indústria pelo contrário tratase da eliminação do indivíduo que trabalha pelo menos do ponto de vista psicológico Em outras palavras tratase de transformar o trabalho do operário em força de trabalho e utilizála como qualquer outra força elétrica mecânica no processo produtivo Esbulhar o comportamento produtivo da sua dignidade expropriar o trabalha dor do controle do próprio processo de trabalho transformar o gesto produtivo humano por excelência em força de tração Ê que a filosofia do right man in the right place tem sentido em um capitalismo em expansão com taxas de crescimento supe riores ao crescimento vegetativo da oferta de mãodeobra má quinas funcionando a todo vapor novos ramos industriais em expansão Estamos vivendo em uma Outra fase do capitalismo recessão desemprego em larga escala crescimento dos setores financeiros da economia em detrimento das industriais aumento da capacidade ociosa das unidades produtivas em funcionamento falência de pequenas e médias empresas Em uma palavra vivemos numa estagflação nome teórico que os economistas encontraram para batizar uma situação onde combinamse altas taxas de inflação com a estagnação da economia O modo de operação de uma economia capitalista na medida em que repousa sobre a produção coletivizada e a posse individual dos meios de produção carrega em si a contradição de necessitar por um lado de mãodeobra especializada ao mesmo tempo que deve operar para retirar dos trabalhadores o poder que é inerente à especialização o que faz teoricamente da Psicologia organi zacional um instrumento importante na administração dos conflitos entre capital e trabalho Um quadro de recessão e desemprego aumenta em muito a oferta de mãodeobra e os investimentos em tecnologia que fazem o pêndulo oscilar em direção a uma mãodeobra cada vez mais descartável Se alguma frase puder substituir o right man in the right place sugiro em oposição qual quer coisa semelhante a nowhere man in anyplace Tal situação que em síntese promove a transformação do trabalho eliminando a dignidade do trabalhador coloca os críticos da ideologia da adaptação do homem ao trabalho na posição de A PRÁX1S DO PSICÓLOGO X Dom Quixote a lutar contra moinhos de vento ou como já Um poeta tentando matar amanhã o velhote inimigo que m om ontem Se durante o período de recessão houvesse um a poiitic industrial que efetivamente selecionasse e treinasse os operários ei suas funçòes o que ocorreria seria uma valorização do operáric através da valorização dos postos de trabalho dificultando sbustituição de um homem por outro ao mesmo tempo qu aumentaria a segurança psicológica do trabalhador na sua própri capacidade Em uma palavra contribuiria no sentido de fortalecer operário perante a indústria ao invés de enfraquecêlo Imaginemos que os psicólogos bem pensantes ao invés d franzir o nariz para a Psicologia Industrial procurassem ocupar o postos que lhes cabem na fábrica e cumprissem exatamente as sua funções 1 buscando selecionar e classificar de fato homens mai capacitados para exercício de suas funções estendendo a seleção cada operário da fábrica e como reza a nossa ética profissional informando ao candidato os resultados dos testes a que fo submetido assim como os critérios que subjazem sua aprovação o reprovação 2 conquistando a extensão da avaliação de desempenho par todas as funções na fábrica o que ato continuo implicaria t definição de critérios objetivos para a promoção rebaixamento ot demissão de cada operário 3 atuando efetivamente no sentido de treinar os operário não apenas na sua função específica mas também mostrando c funcionamento da estrutura toda de produção Sem dúvida o psicólogo que assim agisse estaria contribuindc para a conscientização do operário para o aumento do seu poder d barganha perante a fábrica e para a segurança e dignidade enquanto ser humano tão escassas nas condições atuais Tudo istc sem precisar brandir a teoria marxista de fora da fábrica e nem ac menos reinventara Psicologia neutra com as vantagens de trocai as velhas cantilenas murmuradas pelos cantos da Universidade poi uma atuação direta com o operariado classe revolucionária poi excelência que se não for favorecida com o auxílio técnico dos psicólogos pelo menos auxiliaos a compreender melhor a história Em outras palavras é hora de fazer a crítica da crítica da atuação do psicólogo industrial que para ser competente necessita 202 VÇANDERLEY CODO ser empreendida de dentro da própria fábriça locus sem dúvida menos confortável do que as escrivaninhas da Universidade mas por isto mesmo concreta É evidente que tal atuaçào está longe de ser possibilitada sem riscos os psicólogos dispostos a atuar dentro da indústria preci sariam ato continuo de uma organização enquanto categoria com força o suficiente para zelar pela manutenção do próprio emprego e pela observância dos princípios éticos em suas atuações Como sempre é possível que todas as nossas considerações estejam erradas Se for o caso a única forma de percebermos é na prática o que termina por revalidar pelo avesso as conclusões acima Temos certeza de que o debate que vier a aprofundar acatar ou recusar as reflexões que expomos pode nos clarear o caminho se for baseado no operário concreto na fábrica real e na atuação do psicólogo fidedigna Estaremos sem duvida melhor embasados na prática e menos suscetíveis às armadilhas próprias dos contos de fada Bibliografia Codo Wanderley A Transformação do Comportamento em Mercadoria São Paulo Tese de Doutoramento PUCSP 1981 mimeo Fríedmann Georges O Trabalho em Migalhasf São Paulo Ed Perspec tiva 1972 McCormick Tiffin Psicologia Industrialt São Paulo Ed da Universidade de São PauloHerder 1969 Psicologia na comunidade Alberto Abib Andery Psicologia na Comunidade é uma expressão relativamente nova em nosso meio Nela a palavra comunidade vem sendo usada para designar a instrumentalização de conhecimentos e técnicas psicológicas que possam contribuir para uma melhoria na qualidade de vida das pessoas e grupos distribuídos nas inúmeras aglome rações humanas que compõem a grande cidade Ê um nome que procura captar um movimento da Psicologia atual de paulatino distanciamento do seu locus tradicional a sala de experimentos ou de discussões puramente acadêmicas a antesala da gerência executiva das empresas industriais o consultório parti cular centrado em atendimento unicamente individual É um movimento de aproximação do cotidiano das pessoas principalmente nos bairros e instituições populares onde a grande parcela da população vive organizase e cria seus canais de expressão Essa busca de inserção da Psicologia na Comunidade parte da descoberta de que nessas situações e lugares a presença ativa dos conhecimentos psicológicos tem sido pouco freqüente privando indivíduos e grupos muito numerosos dos benefícios que a ciência Ao invés de concentrar neste texto a atenção no psicólogo preferiuse falar da Psicologia na Comunidade entendendo ser esta uma prâxis própria mas não exclusiva do psicólogo A interdisciplinaridade e a participação de pessoas da própria comuni dade são defendidas neste texto como integrantes dessa práxis 204 ALBERTO ABIB ANDERY deve proporcionar Persistem aí velhos tabus sobre Psicologia que podem assim ser denunciados Mas é desse contato também que a Psicologia enquanto ciência procura renovarse nos seus conteúdos metodologia e técnica tomandose mais próxima de uma verdadeira Psicologia Social Esse nome apareceu por primeiro na Inglaterra1 e nos Estados Unidos2 e após espalhouse por vários países inclusive o Brasil com aceitação bastante desigual A Psicologia na Comunidade não foi criada para designar uma nova Escola de Psicologia nem uma nova teoria ou um novo ismo de moda Representa uma guinada para uma nova forma de pensar e praticar a Psicologia distinta da tradição dominante até o final dos anos 50 deste século Na sociedade contemporânea perturbada pelas mudanças tecnológicas culturais e sociais é preciso tentar inserir a Psicologia como uma forma de explicação ajuda e mudança em prol da sobrevivência do próprio homem A Psicologia dos anos 50 isolavase demais dos problemas coletivos do homem contem porâneo encerrandose numa torre de cristal da discussão mera mente acadêmica e do atendimento a poucas pessoas da elite económica Pouco se preocupava por definir uma atuação verda deiramente social e constituirse assim numa das ciências sociais úteis para nossa época f Para esse isolamento contribuiu a própria identificação da área chamada Psicologia Social Essa área de pesquisa e conhe cimento surgiu desde o início doséculo XX mas sua maneira de considerar o que vem a ser o social em Psicologia perturbou durante meio século sua inserção na comunidade dos homens As correntes mais antigas definiram Psicologia Social como estudo de comportamentos instintivos gregários agressivos ou outras condutas e emoções ligadas a fatores genéticos e hereditários e isoladas do contexto social mutável em que sempre reaparecem Em contraposição a essa corrente instintivista surgiram os experimentalistas principalmente americanos atomizando o estudo dos comportamentos sociais através do esquema SR abstrato e 1 Ver Bender Mike P Psicologia da Comunidade Col Curso Básico de Psicologia Ed Zahar 1978 2 Ver Korchin Sheldon J Modem Clinica Psychology Principies of Intervention in the Clinic and Community Nova Iorque Basic Books Inc 1976 A PRÃXIS DO PSICÓLOGO 205 vazio de conteúdo social Os comportamentos sociais passam a ser descritos a nível apenas da aprendizagem de reações individuais a estímulos proximais abstraindo esses estímulos dos contextos mais gerais históricos econômicos e culturais em que de verdade estio inseridos e dos quais ganham significado e sentido Essas tendências mais antigas da Psicologia Social que hoje sào consideradas quase asociais duraram mais de meio século com exceção talvez de um ou outro autor como Kurt Lewin prema turamente falecido em 1947 Só nos anos 70 é que essa Psicologia se considera em crise como construção especifica de um saber próprio e busca numa reaproximação às ciências históricosociais sua nova maneira de trabalhar o social em Psicologia E nesse contexto de crise3 e redefinição4 que a Psicologia na Comunidade tem sua hora e vez e pode constituirse até numa porta aberta à reavaliação da Psicologia enquanto teoria e prática Numa recente resenha dos quinze anos de aparecimento da Psicologia na Comunidade o professor americano Sheldon J Korchin5 assim caracterizou os temas principais que marcam o pensamento atual dos que trabalham na área da Psicologia na Comunidade 1 Os fatores sòcioambientais são muito importantes na determinação e modificação de comportamentos 2 As intervenções sóciocomunitârias intervenções orien tadas para o sistema em contraste com Intervenções orientadas para as pessoas podem ser eficientes tanto para tornar as instituições sociais por exemplo a família a escola mais saudáveis quanto para reduzir o sofrimento individual 3 Essas intervenções deveriam visar mais a prevenção do que o tratamento ou a reabilitação de desordens emocionais Não só a pessoa necessitada mas também a populaçãoemrisco é a genuína preocupação da Psicologia da Comunidade 4 Essas intervenções deveriam ter como objetivo a melhoria da competência social mais do que a simples redução do sofrimento psicológico Programas orientados para o comunitário deveriam acentuar mais o que é adaptativo do que o patológico na vida social 3 Ver Rodrigues Aroldo e Schneider Eliezer in Arquivos Brasüeiros de Psicologia Aplicada vol 30 nf 41978 325 4 Ver Lane Silvia T M in Educação e Sociedade n 6 1980 5 Op d t pp 474475 206 ALBERTO ABIB ANDERY 5 A ajuda é mais eficaz quando obtida na proximidade dos ambientes em que os problemas aparecem Portanto os clínicos da comunidade deveriam trabalhar em ambientes familiares próximos das pessoas necessitadas antes que em locais social e geografi camente afastados delas 6 As clínicas da comunidade deveriam ir ao encontro dos clientes antes que ficar passivamente à espera de que eles o procurem profissionalmente Sua atuação profissional deveria ser flexível facilmente acessível no local e tempo onde a necessidade surge e oferecida numa atmosfera que reduza ao invés de aumentar a distância social entre o profissional e a pessoa ajudada A ajuda deveria ser acessível àqueles que dela necessitam e não só aos que a procuram 7 A fim de empregar recursos de fácil acesso e aumentar seu ímpeto potencial o profissional deveria colaborar com os recursos humanos da comunidade responsáveis locais e empregar traba lhadores associados nãoprofissionais O trabalho do profissional pode envolver mais consultoria do que atendimento direto 8 Exigências do papel tradicional e normas costumeiras profissionais devem ser abrandadas Ó exercício da profissão na comunidade exige uma programação imaginosa e novos modelos conceituais as inovações devem ser estimuladas 9 A comunidade deferia se não controlar ao menos parti cipar do desenvolvimento e execução dos programas formulados levando em conta as necessidades e preocupações dos membros da comunidade 10 Problemas de saúde mental deveriam ser encarados de maneira mais abrangente do que restrita desde que eles se entre laçam com muitas outras facetas do bemestar social tais como o emprego habitação e educação Para obter eficiência máxima os programas de saúde mental da comunidade deveriam ocuparse com uma faixa de problemas sociais a mais ampla possível 11 A educação do publico para compreender a natureza e as causas dos problemas psicossociais e os recursos disponíveis para se lidar com esses problemas é uma tarefa valiosa 12 Desde que muitos problemas de saúde mental relacio namse com uma ampla faixa de carências sociais tais como pobreza racismo densidade urbana e alienação carências essas que estão fora do alcance das intervenções dos profissionais o psicólogo da comunidade deveria ser orientado para a promoção e facilitação das reformas sociais A PRÄX1S DO PSICÓLOGO 13 Para desenvolver o conhecimento necessário para uma intervenção com o adequado conhecimento de causa a Psicologia da Comunidade requer a contribuição das abordagens e pesquisas ao natural e ecológicas1 Essas características da Psicologia na Comunidade mostram que essa práxis se afasta tias suas pesquisas e intervenções do assim dito neutralismo do cientista e profissional em Psicologia Esse postulado de neutralismo já tinha sido derrotado pela constatação de que a ciência enquanto construção histórica e social nào é neutra nas suas motivações nem na escolha de seu objeto de estudo Não é neutra nas suas alianças com as orças econômicas e políticas atuantes na Sociedade A Psicologia na Comunidade pretende aproximarse das classes populares ajudandoas na conscientização de sua identidade psicossocial de classes submissas e dominadas como primeiro passo para uma superação dessa degradante situação de submissão Surgindo numa época em que a interdisciplinaridade das ciências sociais e humanas é valorizada em que o labor educativo é tido como primordial na atuação social a Psicologia na Comu nidade procura difundirse através do trabalho do psicólogo e de outros profissionais envolvidos com trabalho educativo e social Valoriza o trabalho educativo conscientizador e reconhece pioneiros e mestres autores que não são profissionalmente Psicó logos Nesse rol incluise necessariamente Paulo Freire um dos brasileiros que destacou na Psicologia a metodologia da alfabeti za çã o das massas O método Paulo Freire6 não é só uma técnica pedagógica de alfabetização mas constituise num modelo de trabalho de aproximação às classes populares Mostra para o psicó logo o que se pode fazer em prol da conscientização e da redes coberta do valor dos indivíduos submetidos a processos seculares de dominação e alienados de sua própria cultura Articula as forças vivas de resistência de reação crescimento e libertação dos grupos sociais populares A Psicologia na Comunidade deverá assim colocar os recursos da Psicologia em prol do processo de libertação Cabe à Psicologia na Comunidade trabalhar nos indivíduos e grupos a visão de mundo a autopercepçâo enquanto pessoas e grupos reavaliar 61 Ver BrandSo Carlos R O que é Método Pauto Freire td Brasíliense 1981 208 ALBERTO AB1B ANDERY hábitos atitudes valores e práticas individuais e coletivas familia res e grupais no sentido de uma consciência mais plena de classes e de destino Para a Psicologia na Comunidade o impulso de sair dos consultórios e das gerências das empresas e ir para os bairros populares e sua opção maior por indivíduos e grupos das classes populares ao invés da clientela tradicional da classe média alta significam redirecionar as pesquisas descobrir novas técnicas de atuaço e até reescrever a partir do observado e vivido muitas das teorias psicológicas Nesse sentido a Psicologia na Comunidade pode vir a ser uma nova maneira de fazer Psicologia que dialeticamente nega seu passado para reconstruirse aproveitando elementos desse passado e do presente para constituirse numa pràxis e numa nova ciência psicológica verdadeiramente Psicologia Social Visões divergentes Essa visão social e dialética da Psicologia na Comunidade não é unanimemente partilhada por todos os que atualmente a ela se dedicam Há os que visualizam apenas uma atuação na comunidade benevolente e caritativa nas horas vagas em prol das classes desvalidas que são consideradas e chamadas de classes mais baixas A Psicologia seria aplicada nos bairros e instâncias popula res com maior intensidade e freqüência do que até hoje os psicólogos o fazem mas numa prática assumida explicitamente como remediativa e superficial Não há nessa visão de Psicologia na Comunidade nenhum questionamento da Psicologia em si mesma de suas alianças históricas de seus constructos e teorias já prontos Não se pensa em inovações técnicas nem se admitem novas visões teóricas Muito menos reavaliamse alianças já feitas com as classes dominantes O exemplo acabado dessa visão é a tentativa de reprodução das clínicas psicológicas nos bairros populares sem alterações dos procedimentos e rotinas consolidadas nas clinicas tradicionais de atendimento à burguesia Simplificamse os móveis elaboramse orçamentos de despesa e receita mais modestos mas nada se altera A PRÁXIS DO PSICÓLOGO 209 do que se entende ser a relação terapeutacliente técnicas de atendimento já prontas parâmetros de julgamento e de diagnóstico Essa visão de Psicologia na Comunidade mereceria mais o título de Psicologia Populista e assistenciaüsta e nada influirá nas mudanças sociais e na estrutura de relacionamento atual das classes sociais Pode até retardar mais um pouco qualquer mudança dessa natureza Outra visão de Psicologia na Comunidade perniciosa aos meios populares é aquela que pretenderia formar psicólogos inseridos nos bairros e instituições populares na qualidade de controladores morais dos hábitos e comportamentos desviantes Pensouse até em formar psicólogos na Comunidade para controle social dos toxicômanos criminosos e demais desvios estigmatizados pelos códigos morais vigentes incluindose aí homossexuais desem pregados e menores abandonados O psicólogo seria uma extensão no bairro do braço policial e sem armas usaria as armas das técnicas psicológicas de controle e repressão Nem todas as propostas nesse seutido obedecem rigidamente ao exposto acima e há matizes de proposição Parece que não há muito que discutir sobre uma proposta assim direcionada reduzindo a função social do psicólogo e de outros profissionais da área de humanas a meros guardiães da ordem instituída sem nenhum questionamento dos fatores sociais que levam aos assim chamados comportamentos desviantes Uma terceira visão apontaria para um ativismo político partidário nos bairros populares sob o nome de Psicologia na Comunidade Ao invés de profissionais preocupados com o crescimento das práticas educativas e de conscientização e libertação os ativistas partidários poderiam sob o manto da Psicologia impor seus partidos políticos e recrutar seus grupos ou tendências de apoio partidário Uma proposta assim pode ser catalogada sem mais de maquiavelismo da pior espécie não servindo nem aos ideais da Psicologia na Comunidade nem ao desenvolvimento de uma verda deira Política Popular de superação das raízes de dominação cultural social e econômica a que as classes populares estão submetidas Só como já foi dito um trabalho educativo e conscien tizador a longo prazo pode levar essa população por própria iniciativa a traçar para si os caminhos de libertação 210 ALBERTO ABIB ANDERY A importância da sinalização aqui dessa terceira visão de Psicologia na Comunidade reside no fato que infelizmente é assim que são vistos às vezes todos os profissionais indiscriminada mente que se empenham nessa práxis social que é a Psicologia na Comunidade Embora a maioria absoluta desses profissionais envolvidos seriamente com a implantação da Psicologia na Comunidade condenem essa visão maquiavélica muitas vezes acabam sendo acusados como agentes desas mesmas práticas oportunistas por aqueles que ainda se mostram incapazes de entender qual é verdadeiramente a proposta da Psicologia na Comunidade Experiências em psicologia na comunidade A Associação Brasileira de Psicologia Social ABRAPSO organizou em 1981 em São Paulo um Encontro Regional para debater as experiências em curso em nosso meio sobre Psicologia na Comunidade7 Diversos profissionais assistentes sociais educadores médicos sociólogos e principalmente psicólogos relataram nesse encontro experiências em andamento de pesquisa e atuação em bairros e em instituições populares Outras publicações brasileiras ressaltam a existência de expe riências de Psicologia na Comunidade em outros países da América Latina que por semelhança às nossas condições históricas políticas e sociais mais se aproximam das experiências brasileiras8 Este breve relato mostra as direções que tem tomado essas experiências que podem ser resumidas nas categorias gerais descritas a seguir 7 Ver Anais de Encontro Regional de Psicoíogia na Comunidade São Paulo 1981 ímimeoda ABRAPSOÍ Endereço para corresp Rua Ministro Godoy 10293 s 326 CEP06015 S3o Paulo SP 8 Cadernos PUC n 1T Pfóòiogia Rôtlexôos sobro a Prâlica da Psicologia Ed CortezEDUC 1981 Na Argentina nos anos 6070 vários autores destacaramse nessa prâxisf publicando vários livros como Bleger J Psicohigiene y Psicologia institucionalvw cap 3 El Psicólogo en la comunidad Buenos Aires Ed Paidos A PRÀXIS DO PSICÓLOGO 211 Experiências na área da saúde mental da população Alguns psicólogos e outros profissionais detiveramse na questão da saúde mental da população da periferia das grandes cidades É nesse segmento populacional que se constatam graves fatores de desgaste ou stress emocional ligados a péssimas condições de habitação alimentação emprego e salários Ê ai na periferia que procuram um teto as correntes migratórias que vêm do campo para a cidade perdendo suas raízes culturais próprias e impedidas de criar novas raízes devido ao fenômeno de turrjover ou pouca permanência de contrato de trabalho nas empresas comércio e serviços na cidade Mal se estabelecem num bairro são obrigadas por razões de desemprego a procurar outro local de residência na maioria das vezes em favelas quando a situação econômica fica quase insuportável Nos hospitais psiquiátricos dessas cidades os leitos são mais freqüentemente ocupados por pessoas que morando em bairros populares estão sujeitas ao desgaste emocional e não têm antes da crise acesso aos recursos do atendimento psicológico A Psicologia na Comunidade tem trabalho face a esse problema da saúde mental da poputaçãoemrisco em dois catnpos distintos de um lado há desde os anos 70 a tentativa de criação de Centros Comunitários de Saúde Mental nos bairros de periferia Nesses centros a questão de saúde mental é discutida e trabalhada junto a essa população As experiências em geral são feitas por equipes multidis ciplinares e têm oscilado entre um atendimento convencional a indivíduos com queixas de teor emocional e trabalhos educativos sobre saúde mental junto a país famílias escolas e associações locais de moradores ou associações religiosas presentes no bairro Outra atuação nessa área tem sido a luta pela presença de profissionais da área psicossocial em Centros ou Postos de Saúde geridos pelo Governo do Estado ou do Município fazendo equipe com os médicos e enfermeiras dessas unidades Esse atendimento psicossocial tem variado também conforme a mentalidade real dessas equipes multidisciplinares e os tipos de ordens que são emanadas das chefias superiores ainda hoje quase que exclusi vamente em mãos de psiquiatras Nem sempre essas chefias estão afinadas com os ventos novos que sopram na sua área e as 212 ALBERTO ABIB ANDERY propostas de psiquiatria na comunidade e alternativa em nosso meio são ainda mais literatura do que prática usual9 Uma das deficiências nessas experiências em curso nos Centros Públicos de Saúde é o pouco tempo de duração dessa nova prática e a contratação de profissionais não ainda familiarizados com as propostas de uma Psicologia e uma Psiquiatria na Comu nidade Sem um preparo acadêmico anterior adequado alguns desses profissionais acabam convertendose nesses Centros de Saúde voltados à Saúde Mental da População em repetidores de uma práxis psicológica inadequada e tradicional Esse fracasso só vem a reforçar a linha psiquiátrica tradicional que propõe para os assim chamados doentes mentais um tratamento apenas medica mentoso e de internação nos velhos hospitais psiquiátricos mais voltados para o lucro do que para uma política de saúde mental da população A contratação de um número grande de profissionais para atuarem nesses Centros de Saúde é uma das bandeiras de luta hoje dos psicólogos e de seus órgãos de representação de classe o sindi cato e o Conselho Regional de Psicologia como o é a exigência de um preparo acadêmico maií refinado para condução da práxis de Psicologia na Comunidade nesses Centros e Postos de Saúde Públicos Essa contratação não só responde aos interesses da população dos bairros como também é uma solução para o problema de sustentação econômica desses profissionais da área psicossocial dedicados à saúde mental das classes populares Fica portanto claro que essa linha de atuação só poderá desenvolverse em nosso meio se os conteúdos das disciplinas psicológicas e psiquiátricas em nossas faculdades universitárias prepararem os alunos através da discussão aprofundada dos fatores sociais que atuam efetivamente nos problemas de saúde e doença mental da população Ê preciso ainda nesses cursos a apresentação de um novo modelo de atuação profissional que se coadune com os princípios e objetivos da Psicologia na Comunidade Esse modelo deve substituir a mera medicalização a base de remédios quimio terápicos ou internação hospitalar Urge o desenvolvimento de atividades psicossociais e educativas que levem à modificação das 9 Ver Caplan Gerard B Princípios de Psiquiatria Preventiva Ed 2ahar 1980 Ver também Serrano Alan 1 Psiquiatria Alternativa Ed Brasiliense 1981 A PRÁXIS DO PSICOLOGO 213 situações ambientais e pessoais geradoras de desgaste e stress nervoso e emocional Experiências em grupos de mulheres e de Jovens nos bairros Os bairros das grandes cidades têm pouca vivência comu nitária Na maioria são bairros meramente residenciais bairros dormitório em que os trabalhadores apenas pernoitam passando a maior parte de seu tempo de vigília fora deles na condução e na empresa Às exceções e essa regra constituemse no grande contingente de mulheres que se obrigam a permanecer em suas casas entregues às tarefas de cuidado dos filhos menores e do lar enquanto o companheiro ou marido e filhos maiores entregamse ao trabalho assalariado nas empresas Mesmo as mulheres que devem suportar a dupla jornada de trabalho na empresa e no lar são mais facilmente contactáveis através do bairro em que residem do que os homens com queconvivem São algumas dessas mulheres que se organizam em pequenos grupos de convivência comunitária em forma de clubes de mães associações de pais e mestres e grupos de aprendizado de artes domésticas ou ainda nas reuniões religiosocomunitárias das igrejas dos bairros Igualmente os adolescentes e jovens do bairro permanecem mais freqüentemente durante o dia nele devido ao crescente desemprego e falta de oportunidade de estudo que afligem principalmente essa faixa da população Alguns desses adolescentes e jovens associamsç em pequenos grupos de quarteirão de rua de esportes ou de igreja São associações informais e de curta duração na maioria das vezes As experiências em Psicologia na Comunidade têm privi legiado também a aproximação a esses grupos de mulheres e de adolescentes e jovens para trocar conhecimentos sobre assuntos e problemas os mais variados como por exemplo educação dos filhos relações afetivas dos jovens e dos casais problemas ligados à prática sexual questões que envolvem o futuro profissional etc São temas que se demonstram extremamente úteis para fins de uma práxis da Psicologia na Comunidade Não há só discussões a nível verbal mas montagens coletivas de peças teatrais que expressam o cotidiano da vida e as propostas 214 ALBERTO ABIB ANDERY transformadoras desses grupos Técnicas de dinâmica de grupo psicodrama expressão corporal sensibilização desenvolvimento organizacional têm sido testados e transformados nas experiências analisadas até agora É também nesses grupos que se pode levar um trabalho de conscientização das condições adversas do bairro como falta de esgoto de água potável de luz de creches ou escolas de postos de saúde etc Também se analisam as péssimas condições de convivência e Fazer e são ensaiadas novas atividades lúdicas e educativas Como conseqüência dessas práticas de acompanhamento desses grupos houve um acréscimo na tomada de consciência dessas mulheres e jovens sobre os problemas sociais presentes no bairro e como afetam a saúde física e mental da população Essa conscientização levou a ações organizativas e reivindicatórias de iniciativa desses grupos obtendo resultados que marcam o início de superação desses problemas sociais A população quase que testa suas próprias forças e descobre surpresa que elas são mais poderosas do que imaginavam num primeiro tempo Um pequeno exemplo nesse sentido é a luta por creches que quando conseguidas no bairro a partir de uma tomada de cons ciência e uma conquista junto ao poder público podem beneficiar as mulheres e as crianças do bairro e acabam consolidando um local a mais de educação e aprendizagem de hábitos importantes para a saúde mental dessa população É aqui que se situa também um pólo de tensão entre a postura e visão política dos profissionais e a dos habitantes dos bairros O respeito aos interesses valores forças e opções dessa população é um imperativo de um trabalho em Psicologia na Comunidade Caminhar com a população e não se sobrepor impositivamente a ela ou dominála politicamente é uma das exigências para uma correta atuação Experiências em Instituições populares Numa comunidade popular há por vezes clubes culturais e recreativos centros de vivência de crianças e jovens associações jurídicas de moradores associações religiosas nas igrejas que podem beneficiarse da presença de profissionais interessados em A PRÀXIS DO PSICÓLOGO III ajudar essas instituições através de manuseio de conhedmentoi t técnicas psicológicas que visam o desenvolvimento das pessoas e grupos atingidos por essas entidades populares Os aspectos institucionais organizacionais e de relações humanas dessas instituições podem ser objeto de diagnóstico e intervenção de pessoas competentes Essas pessoas podem ser os próprios moradores e freqüentadores dessas instituições unia vçz que tenham sido treinados e preparados para uma intervenção eficaz Há ainda nessas organizações populares a necessidade de ampliar seus horizontes para outros problemas sociais culturais ou políticos que via de regra escapam à sua percepção Atividades culturais filmes debates visitas podem integrar nesse caso o rol de atividades ligadas à prática da Psicologia na Comunidade A finalidade dessa atuação é abrir as perspectivas a compreensão e a capacidade da própria população de lidar satisfa toriamente com os problemas de qualidade de vida do bairro A importância das experiências em instituições populares reside ainda na possibilidade de se configurar outra instância jurídica as instituições populares que poderão contratar do mesmo modo que o Poder público nos centros de saúde e escolas do Estado os serviços dos profissionais voltados à Psicologia na Comunidade respondendo assim à questão angustiante que se fazem esses profissionais quem pode remunerar tais trabalhos comunitários Ê verdade que no Brasil ainda não se criou uma consciência comum nessas instituições da oportunidade e da importância desses serviços ligados à Psicologia na Comunidade Só a intensificação dessa atuação junto âs instituições popu lares pode criar essa consciência comum e criar padrões de contrato e remuneração satisfatórios para ambas as partes exi mindo os indivíduos pobres do bairro de arcar com essa obrigação de sustentação condigna desses trabalhadores sociais Aqui se situam os sindicatos dos trabalhadores Alguns deles têm vigorosa expressão econômica graças às contribuições obri gatórias que arrecadam da categoria A verba amealhada é gasta muitas vezes em serviços meramente assistenciais e recreativos sem uma programação simultânea que leve à educação e à conscien tização dos trabalhadores sócios e suas famílias residentes nos bairros da periferia 216 ALBERTO AB1B ANDERY A luta pela criação de uma Psicologia na Comunidade passa então por uma luta paralela de reconstrução continua do movimento sindical No Brasil as distorções desse movimento são antigas e estruturais e cabe apoiar os movimentos operários e dos demais trabalhadores que procuram dar aos seus sindicatos reconquis tados através das afeições uma nova legislação e uma nova prática que alterem os vícios herdados dos regimes autoritários do passado Há experiências em outros países sobre programas formativos patrocinados por sindicatos de trabalhadores que se coadunam perfeitamente com os propósitos da Psicologia na Comunidade10 Experiências nas escola de 1 grau da rede pública Nos bairros populares a escola de 1 grau é quase sempre uma das poucas instituições públicas aí presentes no cotidiano da vida das pessoas A população que freqüenta essas escolas são crianças e adolescentes vivendo em famílias com enormes problemas de sobrevivência onde a cultura familiar tradicional entrou em crise e não pôde mais reconstruirse Pai e mãe muitas vezes vivem quase ausentes do lar pelo dever de ganhar o salário sem o qual as crianças não podem sequer alimentarse Essas crianças são submetidas pelos meios de comunicação social e de propaganda a um bombardeio de anúncios que nelas despertam sonhos inalcançãveis e também comportamentos reativos de revolta e destruição São ameaçadas pelo desejo de lucros do comércio de tóxicos e das revistas de baixo nível cultural e porno gráficas A essas crianças e adolescentes a educação familiar e escolar propõe muitas vezes um futuro de aspirações profissionais ambíguas e inatingíveis sonhase com as melhores carreiras da sociedade quando a dura realidade reserva de fato a elas os últimos ofícios da cidade Nessas escolas os diretores e professores são via de regra recrutados de maneira a mais burocrática e impessoal possível 00 Ver Freire Peulo et afíi Vivendo e Aprendendo cap 2 especialmente Ed Brasiliense 1980 A PRÂXIS DO PSICÓLOGO 217 através de complicados concursos de promoção e remoção que criam freqüentemente nas escolas uma mobilidade permanente de pessoal Os mestres nem sempre captam as condições reais de existência dessas crianças e de suas famílias por provirem de outros estratos da população urbana melhor aquinhoados do que a população da periferia À rede oficial de ensino com suas exigências de uniformidade de procedimentos didáticos desestimula os profes sores de planejar conteúdos e práticas realmente educativas para essa população infantil e adolescente Criase assim um impasse entre os objetivos ideais da escola e a prática de ensino A presença da Psicologia na Comunidade nessas circuns tâncias é de extrema necessidade não para se ocupar com uma função burocrática de distribuição de tarefas didáticas já prontas mas para captar e explicitar o descompasso de ambas as partes que compem o cenário escolar necessidades reais dos alunos e prática real do processo instrucional e educativo Algumas experiências em nosso meio estão sendo feitas para evar a instituição escolar a um trabalho educativo eficaz face às necessidades e carências constatadas dos educandos desses bairros Algumas das atividades que atualmente os profissionais ligados à Psicologia na Comunidade estão tentando desenvolver nas escolas da periferia podem ser assim resumidas presença ativa nas reuniões de pais e mestres visitas domiciliares e reuniões específicas com mães de alunos para compreender melhor a cultura familiar e problemas sociais que interferem na aprendizagem das crianças diagnóstico do bairro e das características psicossociais da popu lação a fim de que diretores e professores da escola possam adaptar os conteúdos e procedimentos pedagógicos às necessidades da população escolar trabalhos nos horários extraescolares com grupos de adolescentes utilizando o espaço da própria escola de bairro para a organização cooperatívística de estudo leitura e lazer exercícios de expressão corporal e psicomotricidade com as crianças e treinamento de professores e agentes da comunidade para lidar com problemas de aprendizagem e saúde das crianças e jovens do bairro A dificuldade para o avanço desses trabalhos profissionais está na rigidez das direções locais e regionais da Educação Pública que via de regra são ainda muito reticentes quanto a propostas de trabalho como essas 218 ALBERTO ABIB ANDERY Não é por acaso que o número de psicólogos na rede escolar de ensino é muito pequeno e infelizmente a maioria dos psicólogos e demais profissionais da área psicossocial não está preparada para os desafios dessa linha de trabalho Mas experiências de Psicologia na Comunidade em Escolas Públicas parecem ser das mais importantes a serem desenvolvidas no Brasil hojet para formar novas gerações menos doentias social e psicologicamente preciso portanto que esses profissionais sejam preparados nas suas faculdades para o exercício dessa nova práxis da Psicologia comprometida com os destinos das crianças e adolescentes dos bairros de periferia Publicações de pesquisas participantes A última área de experiências a ser referida neste texto são as publicações científicas resultantes de uma práxis e uma sistema tização teórica dessas experiências em Psicologia na Comunidade Parece que não há no momento uma resenha mais acurada sobre o que já se publicou sobre o assunto O objetivo destes últimos parágrafos do texto é mais o de enfatizar a importância dessas atividades científicas para o futuro da Psicologia no nosso meio11 O aprendizado da Psicologia na Universidade regese em demasia por textos didáticos de origem ou de inspiração estrangeira Aquilo que é observado pesquisado ou postulado sobre o homem ou a mulher europeus ou norteamericanos de classe média tomase conclusão sem contestação sobre a Psicologia e serve de parâmetro de comparação para se avaliar psicologicamente os indivíduos e grupos sociais do nosso país sem maiores reflexões ou pesquisas Nas faculdades de Psicologia é comum desconheceremse os aspectos culturais e históricos que moldam a Psicologia do nosso povo e omitemse na formação do estudante de Psicologia os contextos sócioeconômicos e culturais que condicionam os compor 11J 0 texto que segue é parte de uma comunicação minha prof originalmente apresentada na 34f Reunião Anual da SBPC em Campinas julho de 1962 dentro de tema mais geral trabalhos em Comunidade Seu Significado para a Produção de Novos Conhecimentos Científicos mimeo A PRAXIS DO PSICÓLOGO 219 lamentos comuns e influem nas características psicológicas das pessoas e dos grupos sociais populares Aplicar na área profissional esses padrões importados sem maior aprofundamento crítico pode resultar num reforço à visão de marginalidade que a maioria do povo trabalhador oferece aos olhos desavisados do profissional psicológico e demais profissionais de nível universitário que estudam esse tipo de Psicologia Daí para a rotulação de excepcionalidade mental e de doença mental é um passo Parece lógico não se aceitar como evidentes as conclusões da ciência importada ciência porque importada e procurar observar mais de perto e com um mínimo de empatia a parti cipação o cotidiano da vida da população trabalhadora no seu bairro na sua família nas suas organizações mais espontâneas e representativas para ampliar confirmar ou modificar o que já se sabe sobre a Psicologia Nâo se pode aceitar como prontas e definitivas as teorias de personalidade e de desenvolvimento e as medidas e testes psico lógicos delas resultantes comumente ensinados em nossas facul dades Há muito a pesquisar ainda nesta área a partir das peculiari dades da cultura popular e dos seus valores que passam desper cebidos pela elite pensante que ocupa os espaços universitários do país Para avançar um pouco nesse conhecimento da Psicologia do trabalhador brasileiro é preciso primeiro explicitar o viés de classe média que institui o modelo burguês como padrão de normalidade e julga dcsviante e marginal a classe trabalhadora como um todo reservandolhe o dilema de escolher o padrão de desenvolvimento psicossocial burguês inacessível de fato para a classe trabalhadora ou então resignarse ao estigma de classe inferior não só socialmente como também psicologicamente Cabe às pesquisas em Psicologia na Comunidade uma apro ximação ao cotidiano do trabalhador sem preconceito convivendo um pouco com ele no seu bairro operário nas suas organizações popularest para apreender sua cultura e forma de vida suas expectativas lutas e fracassos e deles partilhar um pouco também não como quem já sabe mas como quem quer primeiro aprender Há esperanças assim de entender de forma mais justa a verdadeira Psicologia do trabalhador urbano de nossas periferias sabendose que tal conhecimento modificará práticas profissionais vigentes na 220 ALBERTO ABIB ANDERY área da seleção de trabalho de diagnóstico e tratamento clínico e na programação escolar dos estabelecimentos públicos de ensino de le2graus Nestes poucos anos de duração da Psicologia na Comunidade as observações ainda não estão de forma alguma nem acabadas nem muito menos sistematizadas Mas a percepção preconceituosa anterior já se modificou e já se reconhece que há potencialidades e valores que não constam nas padronizações de testes e nas teorias vigentes mas que dignificam esse lutador inteligente e criativo que é o trabalhador brasileiro envolvido numa trama de sobrevivenríd extremamente adversa Partilhar esse esforço de compreensão psicossocial sobre o trabalhador brasileiro com os estudantes da Universidade e futuros profissionais na área de humanas parece ser uma das contribuições das pesquisas e publicações ligadas à Psicologia na Comunidade para modificações na sociedade brasileira no sentido de sua real democratização e respeito à cidadania do brasileiro comum DK FIV IO TÊCA L Sobre os Autores Alberto Abib Andery Professor do Departamento de Psicologia Social da PUCSP psicólogo exdiretor do Sindicato dos Psicólogos do Estado de Sao Paulo Alfredo Naffah Neto Psicólogo psicodramatista mestre em Filo sofia pela USP doutor em Psicologia pela PUCSP profes sor do curso de pósgraduação em Psicologia Clinica Antonio da Costa Ciampa Mestre e doutorando em Psicologia Social pela PUCSP professor no setor de pós graduação em Psicologia Social da PUCSP Iray Carone Professora do Departamento de Filosofia da PUCSP Leciona atualmente Lógica do Conhecimento Científico no Programa de Estudos Pósgraduados em Psicologia Social da PUCSP José Carlos Lihâneo Professor da Universidade Federal de Goiás e da Universidade Católica de Goiás mestrando em Edu cação da PUCSP José Roberto Tozoni Reis Professor de Teorias e Técnicas Psico terápicas do Instituto de Letras História e Psicologia de Assis mestre em Psicologia Clinica pela PUCSP Marília Gouvea de Miranda Professora da Universidade Estadual de Goiás mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos Silvia Tatiana Maurer Lane Coordenadora do Centro de Ciências Hutnanas da PUCSP autora do livro 0 Que é Psicologia Social doutora em Psicologia Social Wanderley Codo Professor de Psicologia na UNESP7 dôutor em Psicologia Social pela PUCSP membro fundador da ABRAPSO Associação Brasileira de Psicologia SociaL Um livro introdutório à Psicologia Social que não exercite ne nhum tipo de traição à realidade Polêm ico com o o m undo de ho je Prenhe de controvérsias com o o nosso cam inho é prenhe de ciladas Inacabado eternamente com o a vida U m livro que busca compreender a vida dos H om ens com muito respeito m as sem conform ism o porque a objetividade científica não significa descom prom isso político Parte 1 A Psicologia Social e um a nova concepção do hom em Parte 2 A s Categorias Fundam entais da Psicologia Social Parte 3 O Indivíduo e as Instituições Parte 4 A Práxis do Psicólogo IS B N 8 5 11 150234