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A crítica da concepção de substância em Nietzsche 87 cadernos Nietzsche 24 2008 A crítica da concepção de substância em Nietzsche Eduardo Nasser Resumo O objetivo deste artigo é examinar em primeiro lugar como Nietzsche ingressa na trilha aberta por Heráclito para recusar ontologica mente o substancialismo Em segundo lugar nosso esforço será de elucidar de que maneira a categoria da substância é para o pensamento nietzschia no uma construção do vivente que além de não encontrar correspon dência com o mundo da vontade de potência carece de qualquer necessi dade a priori Palavraschave viraser erro memória sujeito ente 1 O mundo de relações Aristóteles abre o primeiro livro da Física travando um debate crítico com os pensadores que o antecederam Há de se notar que em meio a essa discussão o núcleo de sua problemática está sutil mente contido na passagem 185 b20 em que a menção feita a Heráclito acena para uma espécie de contraexemplo paradigmático Dirá Aristóteles que se seguirmos os passos do pensador de Éfeso acreditaríamos que seria a mesma coisa ser bom e mau e ser bom e não bom e então a mesma coisa seria boa e não boa e homem e cavalo Em suma e essa é a conclusão do estagirita consentir uma PósGraduando do Departamento de Filosofia da USP Nasser E 88 cadernos Nietzsche 24 2008 hipótese dessa natureza seria o mesmo que recusar a existência de coisas pragmata Em sua obra consagrada a Aristóteles Gilbert Dherbey enten de que o empenho do autor de Ética a Nicômaco pode e deve ser compreendido como uma reação radical ao heraclitismo O comen tador chega ao ponto de afirmar que o desenvolvimento da noção aristotélica de hypokeimenon tem como alvo principal Heráclito no sentido de que este não só dinamiza as coisas mas que ele dina mita a própria idéia de coisa Dherbey 4 p 1834 Portanto o que Aristóteles pretende discutir é que qualquer descrição que não respeite o princípio indemonstrável da nãocontradição Met 1006 b711 está condenada a ser um absoluto devaneio Sabemos que esta lei é formulada com o intuito de abranger os domínios da ontologia Met 1005 b1920 da lógica Met 1011 b1314 e da psicologia Met 1005 b2324 Porém há um inegável privilégio ontológico Só podemos falar e pensar acerca de algo que antes de mais nada seja algo Não resta dúvida de que estamos num terreno hostil ao lógos tal como foi formulado por Heráclito que renuncia a qualquer pretensão copulativa quando visa exprimir que a phy sis gosta de se ocultar Frag 123 Assim ao refutar uma dimen são ontológica regida por coisas que tomadas em conjunto são o todo e o nãotodo Frag 10 a grande originalidade de Aristóteles foi a introdução de um sujeito das mudanças Met 1042 a34 É um absurdo alegar que só existam qualidades em relação pois todas elas devem ser encaradas como predicações da substância ousia enquanto sujeito hypokeimenon Fís 185 a29 Por fim a melhor expressão para a coisa que muda é a de ser algo que sub jaz ou subsiste pois mesmo que afetada por inúmeras variações qualitativas a sua identidade permanece inalterada Ger e Corrup 327 b17 Mas qual a importância dessa reflexão em torno de Heráclito e Aristóteles para Nietzsche Poderíamos responder em primeiro A crítica da concepção de substância em Nietzsche 89 cadernos Nietzsche 24 2008 lugar que o jovem Nietzsche estudou com uma inequívoca admira ção o pensamento de Heráclito como fica claro na recepção do fi lósofo de Éfeso nas aulas proferidas em 1872 na Universidade da Basiléia Os Filósofos PréPlatônicos bem como na obra póstuma A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos de 1873 Contudo no trans correr dos anos esse interesse se transforma numa aliança de tal maneira que no final de sua vida Nietzsche confessa encontrar em Heráclito uma flagrante vizinhança no sentido do seu pensamento se irmanar com a afirmação do fluir e do destruir o decisivo numa filosofia dionisíaca dionysischen Philosophie o dizer Sim à oposi ção e à guerra o viraser Werden com radical rejeição até mesmo da noção de Ser Sein EHEH O nascimento da tragédia 3 Ressuscitar o modo do pensamento de Heráclito XI 3473 não é outra coisa senão uma preparação para a apreensão de uma reali dade que ignore o enfoque substancial E mesmo que Nietzsche não esteja de pleno acordo com o método do filósofo grego como fica claro numa passagem da obra Crepúsculo dos ídolos o que mais importa é que ele não abre mão de adotar a rejeição heraclítica do ser da unidade Einheit da substância Substanz e da coisidade Dinglichkeit GDCI A Razão na Filosofia 21 Num mundo delegado pelo viraser a lei aristotélica da nãocontradição care ce de toda e qualquer validade ontológica Num fragmento póstumo do outono de 1887 Nietzsche retoma o tom heraclítico para condenar o desejo aristotélico de sustentar a lei da nãocontradição a partir da existência de coisas2 O filósofo irá então perguntar os axiomas lógicos são eles adequados ao real Wirklichen adäquat ou são critérios e meios para criar previamente o real o conceito de realidade Wirklichkeit Nietzsche pros segue e diz que o ponto de apoio para admitir que AA está calca do no substrato coisa Ding isto é a nossa crença nas coisas é a pressuposição de nossa crença na lógica unser Glaube an Dinge ist die Voraussetzung für den Glauben an die Logik Mas o que ocorre Nasser E 90 cadernos Nietzsche 24 2008 é que admitir a existência de coisas não passa da própria inter pretação derivada dos nossos juízos predicativos baseados no es quema do Ser Notadamente a teoria da verdade que desde Aristóteles dependerá do princípio de adequação deixa a rigor de descrever a realidade pelo fato desta mesma não obedecer às categorias lógicas XII 997 Para afirmarmos que a realidade respeita a lei da nãocontra dição temos de acreditar forçosamente em coisas separadas de outras coisas O escopo substancial encontra sua absoluta re presentação no reconhecimento de coisas em si Ding an sich Todavia dirá Nietzsche não existem coisas separadas de outras coisas XII 285 ou melhor num mundo de relação Relations Welt que subtrai o ser XIII 1493 não há como falar em coi sas XIII 1479 O determinante é que quando o autor de Zara tustra define que este mundo visto de dentro é vontade de potência Wille zur Macht e nada mais JGBBM 36 ele neutraliza ime diatamente o anseio metafísico de extrair um ente último e elemen tar Este critério viabiliza um enquadramento antisubstancialista da realidade uma vez que a vontade de potência é acima de tudo um pathos um agir sobre ein Wirken ergiebt XIII 1479 de tal modo que ela não poderia se manifestar sem o contato de resistências XII 9151 Longe de ser uma substância a vontade de potência é composta primordialmente por relações de forças quanta de força KraftQuanta cuja essência consiste no exer cerse sobre outros quanta XIII 14 81 Ao iluminar um mundo de relações Nietzsche quer devolver à noção de força Kraft um sentido mais primitivo do que a idéia de uma força física dinâmica ou psíquica XIII 14121 Nesse ponto é significativo observar a vasta amplitude que o ataque dirigi do à concepção de substância alcança Mesmo que a física mecâni ca seja reconhecida pelo filósofo como uma hipótese regulativa ao oferecer uma representação da realidade que não se apóie em A crítica da concepção de substância em Nietzsche 91 cadernos Nietzsche 24 2008 pressupostos teleológicos XI 26386 o fato é que o atomismo se abastece de um modelo essencialmente substancialista X 2436 O conceito de átomo é ainda adepto dos preconceitos metafísicos na medida em que o movimento é descrito por relações de causa e efeito como se houvessem coisas agindo sobre outras coisas XIII 1479 Entretanto o isolamento de uma força é uma barbárie XI 25196 No lugar de pontos imóveis o que exis te de fato é um continuum de forças sem sucessão e sem jus taposição ein continuum von Kraft ist ohne Nacheinander und ohne Nebeneinander IX 11281 Da mesma forma que é um erro a crença no espaço vazio entre as coisas XI 3456 também deve ser um erro a crença no tempo sucessivo X 2436 Todo o espa ço é redutível às relações entre forças XI 3425 e tudo o que acontece deve se dar numa temporalidade simultânea zugleich isto é num instante Augenblick que não é efeito e nem causa de um outro instante X 2436 Mas não caímos aqui em um imobilismo De modo algum A continuidade que existe entre as forças não desemboca numa in diferença ou num estado de total equilíbrio Nietzsche insiste que o mundo das forças não irá atingir um instante sequer de repouso IX 11148 e que a recusa da temporalidade sucessiva não tem como resultado a atemporalidade Zeitlos O filósofo não abre mão de enfatizar que a mudança e a temporalidade fazem par te da essência das forças Veränderung gehört ins Wesen hinein also auch die Zeitlichkeit XI 3555 Assim se é certo que temos um quantum definido de forças que não aumenta e tampouco diminui também é correto dizer que se a vontade de potência é a dimensão interna das forças XI 3631 cada força busca a todo instante impor sua perspectiva sobre as demais XIII 14186 Tendo isso em vista o quantum de forças deve ser redutível a um quale caso contrário o universo seria morto e imóvel A aspiração do querer um plus de potência ilumina a configuração fundamental Nasser E 92 cadernos Nietzsche 24 2008 mente qualitativa deste mundo determinado por relações de forças em luta XII 2157 Por fim e é isso que mais nos interessa res saltar num mundo governado por contínuas modificações qualitati vas perde todo o sentido traçar um ponto de apoio para os aciden tes como desejava Aristóteles A rigor o pensamento nietzschiano ao eliminar ontologicamente a substância retoma a via heraclítica quando deixa de julgar os acidentes justamente enquanto aciden tes O determinante aqui é fazer com que o acaso Zufall se trans forme em absoluta necessidade Notwendigkeit FWGC 109 2 A crença em substâncias Se primeiramente somos receptores das representações Vorstell ungen fugazes emitidas pela realidade em viraser absoluto por que é preciso falsificar esse plano em nome da mentira do idêntico do imutável do permanente ou seja da substância IX 11330 A resposta de Nietzsche é que sem essa ignorância a vida mes ma seria impossível pois caso contrário não haveria conservação XI 26 294 FWGC 111 Errar é a condição da vida na medida em que o escoamento de todas as coisas é insuportável para os nossos órgãos die letzte Wahrheit vom Fluss der Dinge verträgt die Einverleibung nicht unsere Organe zum Leben sind auf den Irrthum eingerichtet IX 11162 Disso podemos concluir que a perspectiva nietzschiana visa sugerir não só que em um mundo da vontade de potência inexiste qualquer correspondência entre as coisas e os juízos Urtheile lógicos justamente por essa concep ção de mundo subtrair a coisidade mas que acima de tudo é a origem desses juízos que deve ser explicada Segundo Nietzsche muito antes de um juízo predicativo emitir que isto é verdadeiro ele exprime uma crença Glaube eu quero que aquilo seja ver dadeiro exatamente como isto e como aquilo XI 407 As cate A crítica da concepção de substância em Nietzsche 93 cadernos Nietzsche 24 2008 gorias Kategorien que supõem uma determinada estabilidade do ente devem ser encaradas como oriundas de uma espécie de julga mento mais elementar que antecede os juízos apofânticos a saber um juízo de valor negativo sobre o viraser emitido pelo vivente XII 73 O nascimento da lógica é portanto contemporâneo à existência dos seres vivos que têm no querer a verdade Wahrheit isto é o erro Irrthum da estabilidade da coisa a condição para a conservação do organismo XI 25372 A força inventiva Die erfinderische Kraft que forjou as categorias trabalha a serviço da necessidade a saber da necessidade de segurança XII 6113 Mas como o erro é possível Aber wie ist Irrthum möglich XI 3551 Como chegamos à ilusão do ente Täuschung des Seinden XII 989 A vontade que aspira ao ente na medida em que maximiza a sobrevivência só pode ser satisfeita com uma repetição contínua de coisas iguais XII 9106 Em outras pala vras antes de todo e qualquer juízo lógico deve entrar em vigor uma vontade de assimilação Assimilation ou seja de obter um caso idêntico identischen Fall XI 4015 de forma que o vivente passe a procurar pelo igual em meio ao caos de sensações Com um franco espírito kantiano Nietzsche pretende demonstrar que existe uma atividade de assimilação que recusa as diferenças e acolhe as semelhanças das excitações recebidas XI 3810 e que esta atividade só pode ocorrer por intermédio da memória Gedächtnis no orgânico que tornará a experiência possível XI 382 Antes de mais nada é preciso salientar que a memória na filosofia nietzschiana está longe de ser uma faculdade intelectual Não há um órgão próprio da memória Organ des Gedächtnisses todos os nervos por exemplo na perna se lembram das experiên cias passadas IX 268 Por conseguinte é todo o corpo que esquematiza a multiplicidade ao iniciar uma operação de identifica ção das representações ao comparar as novidades com o passado Movida pela premissa de que todo novo conhecimento é nocivo Nasser E 94 cadernos Nietzsche 24 2008 até que ele seja convertido em um órgão do passado Organ der alten IX 11320 a memória no vivente suprime a realidade do viraser ao imaginar como o mesmo aquilo que é profunda mente diferente IX 11138 Sem a memória os organismos es tariam imersos num horizonte de absoluta alteridade e incapacita dos de promover generalizações eles pereceriam rapidamente Em suma só podemos ter a crença de que existem entes pela im pressão de continuidade proporcionada pela memória cujo primei ro resultado vai ser a nossa fé na existência do sujeito Subjekt Entre os anos de 1885 e 1886 e particularmente no primeiro capítulo de Para além de bem e mal Nietzsche se esforçou para rechaçar a herança cartesiana da certeza imediata do ego cogito no intuito de mostrar justamente que o isso pensa Es denkt não é a substância eu Ich e sim o corpo que pensa sente e quer JGBBM 16 17 e 19 Iludidos pela gramática os meta físicos ignoraram que o eu é uma construção do pensamento Construktion des Denkens XI 3535 de modo que sem a ativi dade sintética que organiza a alteridade não teríamos como falar em sujeitos É na sensação de simultaneidade oferecida pela me mória que reside a principal tentação de acreditar em uma alma Seele capaz de reproduzir reconhecer e etc fora do tempo XI 4029 Beneficiados pela sensação de persistência e similitude nós acreditamos que somos uma coisa que não muda IX 11268 Tendo isso em mente pode até ser correto afirmar que o primeiro ente criado pela rememoração orgânica é o eu XII 989 mas com a condição de salientar que esta é uma falsificação origi nária Se o vivente é refém da fantasia de um mundo de coisas separadas de outras coisas é por antes ele ter adotado o mode lo do sujeito como sua necessidade básica XII 991 Os entes só podem aparecer por primordialmente serem modos do sujeito Modus des Subjekts que por assim dizer é o nosso ente funda mental XII 9106 A crítica da concepção de substância em Nietzsche 95 cadernos Nietzsche 24 2008 Para compreendermos melhor a razão do eu ser uma espécie de erro primordial é indispensável mostrar de que maneira Nietzsche evoca o aspecto intencional Absichten que está conti do nessa representação Ao assumirmos que somos um ente que permanece em meio às mudanças acreditamos concomitantemente que este mesmo ente é um agente capaz não só de se separar de suas ações mas de ser causa delas Passamos a pensar indis criminadamente que somos um sujeito livre para poder expressar ou não uma força como se o eu fosse um substrato indiferente indifferentes Substrat às relações GMGM I 13 Mas o que vem em seguida é o que nos chama mais a atenção Dirá Nietzsche que ao admitirmos que somos um ente responsável por nossas ações nós passamos a interpretar todo e qualquer evento por intermédio do escopo intencional ou seja tudo o que acontece é um agir que pressupõe um autor XII 283 O que o filósofo pretende mostrar é que sem a crença no sujeito agente não teríamos como ver coi sas agentes wirkende Dinge no mundo XII 991 Para comprovar que a crença no erro do sujeito fundamenta a crença no erro da substância existe um fragmento póstumo de outono de 1887 que é muito esclarecedor Nele Nietzsche diz o seguinte O conceito de substância é uma conseqüência do concei to de sujeito não o inverso Der Substanzbegriff eine Folge des Subjektsbegriffs nicht umgekehrt Se nós sacrificamos a alma o sujeito perdemos a suposição de uma substância em um sentido absoluto Nós perdemos o ente mesmo XII 1019 A subs tância portanto faz com que a experiência seja determinada por agentes separados de suas ações que permanecem e não mudam de forma que todo o ente só pode aparecer quando obedecer a essa regra Nossa suposição de que existem corpos superfí cies linhas formas é consecutiva a nossa outra suposição de que existem substâncias e coisas o persistente IX 11151 A cate goria da substância muito embora não corresponda à realidade Nasser E 96 cadernos Nietzsche 24 2008 de um mundo que é vontade de potência XI 3815 propicia uma organização da experiência para que o vivente possa apreen der o fenômeno Mas ao lançar mão desta regra será que Nietzsche não se gue sem maiores objeções a esteira do criticismo kantiano A res posta é não É certo que Kant na Crítica da Razão Pura desfere um duro golpe sobre o conceito de substância desenvolvido pela metafísica tradicional dogmática Nessa obra a substância deixa de ser substrato ontológico para se tornar um substrato temporal cuja importância está em conferir ao lado da causalidade objetivi dade à sucessão A184B2274 Nietzsche estaria de pleno acordo com o filósofo de Königsberg que a substância não encontra corres pondência alguma com a realidade Mas o autor de Zaratustra não aceita a alegação de que a substância seja um conceito a priori Para Kant as categorias fornecem os princípios da objetividade enquanto Nietzsche se pergunta pelas condições de possibilidade das catego rias GDCI A Razão na Filosofia 5 Uma das maiores especificidades do pensamento nietzschiano é precisamente o deslocamento da filosofia para a história uma evidência que nos obriga a abandonar a crença de que os nossos conceitos mais elementares tais como o ser a substância o absoluto a identidade a coisa sejam eternos e mesmo in dispensáveis XI 38 14 Tão logo vejamos a origem biológica das categorias XIII 14152 veremos também que conforme a vida se transforma a própria lógica deve estar em evolução Entwicklung des Logischen XI 3912 Tomando como base o caráter perspec tivista da existência Nietzsche pretende provar que todos os orga nismos edificam múltiplos mundos XI 34247 e que cada ser desfruta de uma determinada manipulação das categorias solidária a uma determinada avaliação de valor FWGC 374 XI 34247 Disso podemos concluir que as interpretações lógicas são referidas às variações de força de cada vivente Por exemplo enquanto um A crítica da concepção de substância em Nietzsche 97 cadernos Nietzsche 24 2008 organismo inferior vê tudo como igual a si mesmo idêntico constante absoluto neutro um organismo superior vai ser detentor da habilidade de absorver lentamente o caráter das múlti plas qualidades do mundo da vontade de potência XI 3814 Nietzsche sugere assim que conforme o vivente desvaloriza a con servação ele revaloriza o aumento da potência e que isso poderia desembocar no limite em determinados tipos de vida que não só modificam a interpretação substancial mas que a deixam comple tamente de lado5 Porém poderíamos perguntar ao filósofo alemão se a vida por definição depende do erro do ente abandonar a interpretação da realidade mediada pela substância não tornaria a vida impossível Ou melhor se o aumento da potência coincide com a incorporação da verdade do mundo em viraser FWGC 110 o preço a pagar por essa verdade não seria a própria vida Abstract This paper aims to examine firstly as Nietzsche take the path opened by Heraclitus in order to refuse the substancialism ontologically Secondly it intends to elucidate how Nietzsche thinks the category of sub stance as a construction of the living being which does not correspond to the world as will to power and does not have any a priori necessity Keywords becoming error memory subject being Nasser E 98 cadernos Nietzsche 24 2008 notas 1 Segundo Nietzsche Heráclito foi injusto com os sentidos Enquanto o pensador de Éfeso censura a via dos sentidos que sempre mentem o filósofo alemão alega em contra partida que é o que fazemos com os seus testemunhos que introduz pela primeira vez a mentira GDCI A Razão na Filosofia 2 Assim ao que tudo indica Nietzsche segue o caminho aberto por Sexto Empírico que na sua interpretação de Heráclito Adversus Mathematicos opõe lógos e sentidos Porém essa apreciação é discutível Em sua obra dedicada a Heráclito Kostas Axelos recusa cate goricamente essa via de interpretação primeiro argu mentando que os Fragmentos 46 e 107 que sustentam essa tese não podem ser lidos separadamente dos demais e segundo que seria um terrível equívoco atribuir ao pen samento heraclítico qualquer espécie de dualismo Sobre essa discussão ver Axelos K Héraclite et la philosophie pp 65 e 66 2 O fragmento póstumo 26387 do outono de 1884 diz Luta contra Platão e Aristóteles Essa breve passagem contribui ao nosso ver para desmistificar a opinião cor rente de que Nietzsche foi somente um opositor de Platão O estagirita também foi um dos seus alvos principais 3 Didier Franck insiste que a proposta de Nietzsche acaba por expor o fundamento dos juízos predicativos Res saltando que a essência do juízo não está na predicação mas na crença o pensamento nietzschiano abala a tradi ção que vai de Aristóteles a Kant Em linhas gerais Nietzsche desvenda que o juízo predicativo representa uma espécie de juízo de valor que prefere a permanência no lugar do viraser Franck D Nietzsche et lombre de Dieu p 28896 A crítica da concepção de substância em Nietzsche 99 cadernos Nietzsche 24 2008 4 Sobre a questão da substância em Kant ver Strawson P Kant on Substance in Entity and Identity Puech M Kant et la causalité 5 É certo que Nietzsche não desenvolveu um relato sistemáti co da história da substância na humanidade deixando de lado transformações significativas que essa concepção so freu em especial na modernidade com Descartes Espinosa e Leibniz Justamente por esse motivo Alistair Moles na sua obra Nietzsches Philosophy of Nature and Cosmology destaca que dos meios que Nietzsche usufrui para liquidar o substancialismo o viés histórico deve ser o menos eficaz Moles p 59 Mas muito embora esse método detenha uma certa fragilidade isso não implica que ele deixe de ser utilizado com uma relativa freqüência por Nietzsche O filósofo se refere em algumas oportunidades a uma his tória do apogeu e da queda do substancialismo relativo aos rumos da vontade de verdade na humanidade GDCI Como o Mundo Verdadeiro Acabou por se Tornar uma Fábula A história mostra que desde o Deus dos eleatas fomos vítimas da fé em substâncias que duram eternamen te FWGC 109 mas que com o progressivo enfraqueci mento da tradição platônica JBMBM Prefácio essa cren ça passa a ser colocada em dúvida principalmente pelas contribuições oferecidas por intermédio da ciência como é o caso da física de Copérnico e Boscovich que nos con duzem a uma apreensão da realidade do viraser JBM BM 12 Em última instância fica a sensação de que Nietzsche pressente que o drama do ocidente vai culminar com o esgotamento da vontade de verdade e a dissolução do enfoque substancial viabilizando o surgimento de uma nova humanidade uma humanidade dionisíaca Em todo caso essa colocação nos parece ser problemática sob vá rios aspectos dos quais vale mencionar pelo menos dois em primeiro lugar se Nietzsche reitera sua repulsa por uma espécie ideal de homem EHEH III 1 e se a Nasser E 100 cadernos Nietzsche 24 2008 sua concepção de tipo superior não concerne a longevi dade GMGM II 12 XIII 14133 nos parece ser um grave equívoco pensar aqui em uma história dirigida para um contínuo melhoramento da humanidade E em segun do lugar apesar de por vezes Nietzsche insinuar que essa mutação do homem livre da vontade de verdade teria um impacto cultural em larga escala hipótese que ganha força nos momentos em que a doutrina do eterno retorno do mesmo é circunscrita como uma nova Aufklärung XI 2779 como o centro da história X 244 o que pre valece é a visão de que os seres mais fortes serão sempre exceções GDCI Incursões de um Extemporâneo 14 Enfim nos parece que essas duas questões são abor dadas e resolvidas de uma só vez com uma inequívoca lu cidez no fragmento póstumo 11 413 que data do final do ano de 1887 Nele Nietzsche emite a seguinte posição so bre a sua noção capital de alémdohomem A humanida de não apresenta uma evolução para o melhor ou para o mais forte ou para o superior O movimento da evolu ção não tem relação alguma com uma necessidade uma elevação uma intensificação um aumento de força Em um outro sentido existe um incessante êxito de casos particulares em diferentes lugares da terra e procedendo de diferentes culturas nas quais se apresenta um tipo supe rior alguma coisa que relativamente ao conjunto da huma nidade é uma espécie de além do homem Esse frag mento ganha uma versão reduzida no 4 de O Anticristo que reproduz quase que integralmente o que está sendo dito aqui A crítica da concepção de substância em Nietzsche 101 cadernos Nietzsche 24 2008 referências bibliográficas 1 ARISTÓTELES The Complete Works Editado por Jonathan Barnes Princeton Princeton Univ Press 1995 2 Metafísica Tradução de Tomás Calvo Martínez Madri Ed Gredos 1998 3 AXELOS K Héraclite et la philosophie Paris Ed de Minuit 2005 4 DHERBEY G Lês choses mêmes Lausanne LAge dHomme 1983 5 FRANCK D Nietzsche et lombre de Dieu Paris PUF 1998 6 KANT I Crítica da Razão Pura Tradução de Manuela P dos Santos e Alexandre F Mourão Lisboa Fund Calouste Gulbenkian 1997 7 KIRK G RAVEN JE SCHOEFIELD M Os Filósofos PréSocráticos Tradução de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fund Calouste Gulbenkian 2005 8 MOLES A Nietzsches Philosophy of Nature and Cosmology Nova Iorque Peter Lang 1990 9 NIETZSCHE F Sämtliche Werke Kritische Studiena usgabe in 15 Bänden Berlim Walter de Gruyter 1999 10 A Gaia Ciência Tradução de Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras 2002 11 Além do Bem e do Mal Tradução de Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras 2000 Nasser E 102 cadernos Nietzsche 24 2008 12 NIETZSCHE F Genealogia da Moral Tradução de Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras 2001 13 Crepúsculo dos Ídolos Tradução de Marco A Casa Nova Rio de Janeiro Relume Dumará 2000 14 Ecce Homo Tradução de Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras 2004 15 PUECH M Kant et la causalité Paris Vrin 1990 16 STRAWSON PF Entity and Identity Oxford Oxford University Press 1997
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Sabemos que esta lei é formulada com o intuito de abranger os domínios da ontologia Met 1005 b1920 da lógica Met 1011 b1314 e da psicologia Met 1005 b2324 Porém há um inegável privilégio ontológico Só podemos falar e pensar acerca de algo que antes de mais nada seja algo Não resta dúvida de que estamos num terreno hostil ao lógos tal como foi formulado por Heráclito que renuncia a qualquer pretensão copulativa quando visa exprimir que a phy sis gosta de se ocultar Frag 123 Assim ao refutar uma dimen são ontológica regida por coisas que tomadas em conjunto são o todo e o nãotodo Frag 10 a grande originalidade de Aristóteles foi a introdução de um sujeito das mudanças Met 1042 a34 É um absurdo alegar que só existam qualidades em relação pois todas elas devem ser encaradas como predicações da substância ousia enquanto sujeito hypokeimenon Fís 185 a29 Por fim a melhor expressão para a coisa que muda é a de ser algo que sub jaz ou subsiste pois mesmo que afetada por inúmeras variações qualitativas a sua identidade permanece inalterada Ger e Corrup 327 b17 Mas qual a importância dessa reflexão em torno de Heráclito e Aristóteles para Nietzsche Poderíamos responder em primeiro A crítica da concepção de substância em Nietzsche 89 cadernos Nietzsche 24 2008 lugar que o jovem Nietzsche estudou com uma inequívoca admira ção o pensamento de Heráclito como fica claro na recepção do fi lósofo de Éfeso nas aulas proferidas em 1872 na Universidade da Basiléia Os Filósofos PréPlatônicos bem como na obra póstuma A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos de 1873 Contudo no trans correr dos anos esse interesse se transforma numa aliança de tal maneira que no final de sua vida Nietzsche confessa encontrar em Heráclito uma flagrante vizinhança no sentido do seu pensamento se irmanar com a afirmação do fluir e do destruir o decisivo numa filosofia dionisíaca dionysischen Philosophie o dizer Sim à oposi ção e à guerra o viraser Werden com radical rejeição até mesmo da noção de Ser Sein EHEH O nascimento da tragédia 3 Ressuscitar o modo do pensamento de Heráclito XI 3473 não é outra coisa senão uma preparação para a apreensão de uma reali dade que ignore o enfoque substancial E mesmo que Nietzsche não esteja de pleno acordo com o método do filósofo grego como fica claro numa passagem da obra Crepúsculo dos ídolos o que mais importa é que ele não abre mão de adotar a rejeição heraclítica do ser da unidade Einheit da substância Substanz e da coisidade Dinglichkeit GDCI A Razão na Filosofia 21 Num mundo delegado pelo viraser a lei aristotélica da nãocontradição care ce de toda e qualquer validade ontológica Num fragmento póstumo do outono de 1887 Nietzsche retoma o tom heraclítico para condenar o desejo aristotélico de sustentar a lei da nãocontradição a partir da existência de coisas2 O filósofo irá então perguntar os axiomas lógicos são eles adequados ao real Wirklichen adäquat ou são critérios e meios para criar previamente o real o conceito de realidade Wirklichkeit Nietzsche pros segue e diz que o ponto de apoio para admitir que AA está calca do no substrato coisa Ding isto é a nossa crença nas coisas é a pressuposição de nossa crença na lógica unser Glaube an Dinge ist die Voraussetzung für den Glauben an die Logik Mas o que ocorre Nasser E 90 cadernos Nietzsche 24 2008 é que admitir a existência de coisas não passa da própria inter pretação derivada dos nossos juízos predicativos baseados no es quema do Ser Notadamente a teoria da verdade que desde Aristóteles dependerá do princípio de adequação deixa a rigor de descrever a realidade pelo fato desta mesma não obedecer às categorias lógicas XII 997 Para afirmarmos que a realidade respeita a lei da nãocontra dição temos de acreditar forçosamente em coisas separadas de outras coisas O escopo substancial encontra sua absoluta re presentação no reconhecimento de coisas em si Ding an sich Todavia dirá Nietzsche não existem coisas separadas de outras coisas XII 285 ou melhor num mundo de relação Relations Welt que subtrai o ser XIII 1493 não há como falar em coi sas XIII 1479 O determinante é que quando o autor de Zara tustra define que este mundo visto de dentro é vontade de potência Wille zur Macht e nada mais JGBBM 36 ele neutraliza ime diatamente o anseio metafísico de extrair um ente último e elemen tar Este critério viabiliza um enquadramento antisubstancialista da realidade uma vez que a vontade de potência é acima de tudo um pathos um agir sobre ein Wirken ergiebt XIII 1479 de tal modo que ela não poderia se manifestar sem o contato de resistências XII 9151 Longe de ser uma substância a vontade de potência é composta primordialmente por relações de forças quanta de força KraftQuanta cuja essência consiste no exer cerse sobre outros quanta XIII 14 81 Ao iluminar um mundo de relações Nietzsche quer devolver à noção de força Kraft um sentido mais primitivo do que a idéia de uma força física dinâmica ou psíquica XIII 14121 Nesse ponto é significativo observar a vasta amplitude que o ataque dirigi do à concepção de substância alcança Mesmo que a física mecâni ca seja reconhecida pelo filósofo como uma hipótese regulativa ao oferecer uma representação da realidade que não se apóie em A crítica da concepção de substância em Nietzsche 91 cadernos Nietzsche 24 2008 pressupostos teleológicos XI 26386 o fato é que o atomismo se abastece de um modelo essencialmente substancialista X 2436 O conceito de átomo é ainda adepto dos preconceitos metafísicos na medida em que o movimento é descrito por relações de causa e efeito como se houvessem coisas agindo sobre outras coisas XIII 1479 Entretanto o isolamento de uma força é uma barbárie XI 25196 No lugar de pontos imóveis o que exis te de fato é um continuum de forças sem sucessão e sem jus taposição ein continuum von Kraft ist ohne Nacheinander und ohne Nebeneinander IX 11281 Da mesma forma que é um erro a crença no espaço vazio entre as coisas XI 3456 também deve ser um erro a crença no tempo sucessivo X 2436 Todo o espa ço é redutível às relações entre forças XI 3425 e tudo o que acontece deve se dar numa temporalidade simultânea zugleich isto é num instante Augenblick que não é efeito e nem causa de um outro instante X 2436 Mas não caímos aqui em um imobilismo De modo algum A continuidade que existe entre as forças não desemboca numa in diferença ou num estado de total equilíbrio Nietzsche insiste que o mundo das forças não irá atingir um instante sequer de repouso IX 11148 e que a recusa da temporalidade sucessiva não tem como resultado a atemporalidade Zeitlos O filósofo não abre mão de enfatizar que a mudança e a temporalidade fazem par te da essência das forças Veränderung gehört ins Wesen hinein also auch die Zeitlichkeit XI 3555 Assim se é certo que temos um quantum definido de forças que não aumenta e tampouco diminui também é correto dizer que se a vontade de potência é a dimensão interna das forças XI 3631 cada força busca a todo instante impor sua perspectiva sobre as demais XIII 14186 Tendo isso em vista o quantum de forças deve ser redutível a um quale caso contrário o universo seria morto e imóvel A aspiração do querer um plus de potência ilumina a configuração fundamental Nasser E 92 cadernos Nietzsche 24 2008 mente qualitativa deste mundo determinado por relações de forças em luta XII 2157 Por fim e é isso que mais nos interessa res saltar num mundo governado por contínuas modificações qualitati vas perde todo o sentido traçar um ponto de apoio para os aciden tes como desejava Aristóteles A rigor o pensamento nietzschiano ao eliminar ontologicamente a substância retoma a via heraclítica quando deixa de julgar os acidentes justamente enquanto aciden tes O determinante aqui é fazer com que o acaso Zufall se trans forme em absoluta necessidade Notwendigkeit FWGC 109 2 A crença em substâncias Se primeiramente somos receptores das representações Vorstell ungen fugazes emitidas pela realidade em viraser absoluto por que é preciso falsificar esse plano em nome da mentira do idêntico do imutável do permanente ou seja da substância IX 11330 A resposta de Nietzsche é que sem essa ignorância a vida mes ma seria impossível pois caso contrário não haveria conservação XI 26 294 FWGC 111 Errar é a condição da vida na medida em que o escoamento de todas as coisas é insuportável para os nossos órgãos die letzte Wahrheit vom Fluss der Dinge verträgt die Einverleibung nicht unsere Organe zum Leben sind auf den Irrthum eingerichtet IX 11162 Disso podemos concluir que a perspectiva nietzschiana visa sugerir não só que em um mundo da vontade de potência inexiste qualquer correspondência entre as coisas e os juízos Urtheile lógicos justamente por essa concep ção de mundo subtrair a coisidade mas que acima de tudo é a origem desses juízos que deve ser explicada Segundo Nietzsche muito antes de um juízo predicativo emitir que isto é verdadeiro ele exprime uma crença Glaube eu quero que aquilo seja ver dadeiro exatamente como isto e como aquilo XI 407 As cate A crítica da concepção de substância em Nietzsche 93 cadernos Nietzsche 24 2008 gorias Kategorien que supõem uma determinada estabilidade do ente devem ser encaradas como oriundas de uma espécie de julga mento mais elementar que antecede os juízos apofânticos a saber um juízo de valor negativo sobre o viraser emitido pelo vivente XII 73 O nascimento da lógica é portanto contemporâneo à existência dos seres vivos que têm no querer a verdade Wahrheit isto é o erro Irrthum da estabilidade da coisa a condição para a conservação do organismo XI 25372 A força inventiva Die erfinderische Kraft que forjou as categorias trabalha a serviço da necessidade a saber da necessidade de segurança XII 6113 Mas como o erro é possível Aber wie ist Irrthum möglich XI 3551 Como chegamos à ilusão do ente Täuschung des Seinden XII 989 A vontade que aspira ao ente na medida em que maximiza a sobrevivência só pode ser satisfeita com uma repetição contínua de coisas iguais XII 9106 Em outras pala vras antes de todo e qualquer juízo lógico deve entrar em vigor uma vontade de assimilação Assimilation ou seja de obter um caso idêntico identischen Fall XI 4015 de forma que o vivente passe a procurar pelo igual em meio ao caos de sensações Com um franco espírito kantiano Nietzsche pretende demonstrar que existe uma atividade de assimilação que recusa as diferenças e acolhe as semelhanças das excitações recebidas XI 3810 e que esta atividade só pode ocorrer por intermédio da memória Gedächtnis no orgânico que tornará a experiência possível XI 382 Antes de mais nada é preciso salientar que a memória na filosofia nietzschiana está longe de ser uma faculdade intelectual Não há um órgão próprio da memória Organ des Gedächtnisses todos os nervos por exemplo na perna se lembram das experiên cias passadas IX 268 Por conseguinte é todo o corpo que esquematiza a multiplicidade ao iniciar uma operação de identifica ção das representações ao comparar as novidades com o passado Movida pela premissa de que todo novo conhecimento é nocivo Nasser E 94 cadernos Nietzsche 24 2008 até que ele seja convertido em um órgão do passado Organ der alten IX 11320 a memória no vivente suprime a realidade do viraser ao imaginar como o mesmo aquilo que é profunda mente diferente IX 11138 Sem a memória os organismos es tariam imersos num horizonte de absoluta alteridade e incapacita dos de promover generalizações eles pereceriam rapidamente Em suma só podemos ter a crença de que existem entes pela im pressão de continuidade proporcionada pela memória cujo primei ro resultado vai ser a nossa fé na existência do sujeito Subjekt Entre os anos de 1885 e 1886 e particularmente no primeiro capítulo de Para além de bem e mal Nietzsche se esforçou para rechaçar a herança cartesiana da certeza imediata do ego cogito no intuito de mostrar justamente que o isso pensa Es denkt não é a substância eu Ich e sim o corpo que pensa sente e quer JGBBM 16 17 e 19 Iludidos pela gramática os meta físicos ignoraram que o eu é uma construção do pensamento Construktion des Denkens XI 3535 de modo que sem a ativi dade sintética que organiza a alteridade não teríamos como falar em sujeitos É na sensação de simultaneidade oferecida pela me mória que reside a principal tentação de acreditar em uma alma Seele capaz de reproduzir reconhecer e etc fora do tempo XI 4029 Beneficiados pela sensação de persistência e similitude nós acreditamos que somos uma coisa que não muda IX 11268 Tendo isso em mente pode até ser correto afirmar que o primeiro ente criado pela rememoração orgânica é o eu XII 989 mas com a condição de salientar que esta é uma falsificação origi nária Se o vivente é refém da fantasia de um mundo de coisas separadas de outras coisas é por antes ele ter adotado o mode lo do sujeito como sua necessidade básica XII 991 Os entes só podem aparecer por primordialmente serem modos do sujeito Modus des Subjekts que por assim dizer é o nosso ente funda mental XII 9106 A crítica da concepção de substância em Nietzsche 95 cadernos Nietzsche 24 2008 Para compreendermos melhor a razão do eu ser uma espécie de erro primordial é indispensável mostrar de que maneira Nietzsche evoca o aspecto intencional Absichten que está conti do nessa representação Ao assumirmos que somos um ente que permanece em meio às mudanças acreditamos concomitantemente que este mesmo ente é um agente capaz não só de se separar de suas ações mas de ser causa delas Passamos a pensar indis criminadamente que somos um sujeito livre para poder expressar ou não uma força como se o eu fosse um substrato indiferente indifferentes Substrat às relações GMGM I 13 Mas o que vem em seguida é o que nos chama mais a atenção Dirá Nietzsche que ao admitirmos que somos um ente responsável por nossas ações nós passamos a interpretar todo e qualquer evento por intermédio do escopo intencional ou seja tudo o que acontece é um agir que pressupõe um autor XII 283 O que o filósofo pretende mostrar é que sem a crença no sujeito agente não teríamos como ver coi sas agentes wirkende Dinge no mundo XII 991 Para comprovar que a crença no erro do sujeito fundamenta a crença no erro da substância existe um fragmento póstumo de outono de 1887 que é muito esclarecedor Nele Nietzsche diz o seguinte O conceito de substância é uma conseqüência do concei to de sujeito não o inverso Der Substanzbegriff eine Folge des Subjektsbegriffs nicht umgekehrt Se nós sacrificamos a alma o sujeito perdemos a suposição de uma substância em um sentido absoluto Nós perdemos o ente mesmo XII 1019 A subs tância portanto faz com que a experiência seja determinada por agentes separados de suas ações que permanecem e não mudam de forma que todo o ente só pode aparecer quando obedecer a essa regra Nossa suposição de que existem corpos superfí cies linhas formas é consecutiva a nossa outra suposição de que existem substâncias e coisas o persistente IX 11151 A cate goria da substância muito embora não corresponda à realidade Nasser E 96 cadernos Nietzsche 24 2008 de um mundo que é vontade de potência XI 3815 propicia uma organização da experiência para que o vivente possa apreen der o fenômeno Mas ao lançar mão desta regra será que Nietzsche não se gue sem maiores objeções a esteira do criticismo kantiano A res posta é não É certo que Kant na Crítica da Razão Pura desfere um duro golpe sobre o conceito de substância desenvolvido pela metafísica tradicional dogmática Nessa obra a substância deixa de ser substrato ontológico para se tornar um substrato temporal cuja importância está em conferir ao lado da causalidade objetivi dade à sucessão A184B2274 Nietzsche estaria de pleno acordo com o filósofo de Königsberg que a substância não encontra corres pondência alguma com a realidade Mas o autor de Zaratustra não aceita a alegação de que a substância seja um conceito a priori Para Kant as categorias fornecem os princípios da objetividade enquanto Nietzsche se pergunta pelas condições de possibilidade das catego rias GDCI A Razão na Filosofia 5 Uma das maiores especificidades do pensamento nietzschiano é precisamente o deslocamento da filosofia para a história uma evidência que nos obriga a abandonar a crença de que os nossos conceitos mais elementares tais como o ser a substância o absoluto a identidade a coisa sejam eternos e mesmo in dispensáveis XI 38 14 Tão logo vejamos a origem biológica das categorias XIII 14152 veremos também que conforme a vida se transforma a própria lógica deve estar em evolução Entwicklung des Logischen XI 3912 Tomando como base o caráter perspec tivista da existência Nietzsche pretende provar que todos os orga nismos edificam múltiplos mundos XI 34247 e que cada ser desfruta de uma determinada manipulação das categorias solidária a uma determinada avaliação de valor FWGC 374 XI 34247 Disso podemos concluir que as interpretações lógicas são referidas às variações de força de cada vivente Por exemplo enquanto um A crítica da concepção de substância em Nietzsche 97 cadernos Nietzsche 24 2008 organismo inferior vê tudo como igual a si mesmo idêntico constante absoluto neutro um organismo superior vai ser detentor da habilidade de absorver lentamente o caráter das múlti plas qualidades do mundo da vontade de potência XI 3814 Nietzsche sugere assim que conforme o vivente desvaloriza a con servação ele revaloriza o aumento da potência e que isso poderia desembocar no limite em determinados tipos de vida que não só modificam a interpretação substancial mas que a deixam comple tamente de lado5 Porém poderíamos perguntar ao filósofo alemão se a vida por definição depende do erro do ente abandonar a interpretação da realidade mediada pela substância não tornaria a vida impossível Ou melhor se o aumento da potência coincide com a incorporação da verdade do mundo em viraser FWGC 110 o preço a pagar por essa verdade não seria a própria vida Abstract This paper aims to examine firstly as Nietzsche take the path opened by Heraclitus in order to refuse the substancialism ontologically Secondly it intends to elucidate how Nietzsche thinks the category of sub stance as a construction of the living being which does not correspond to the world as will to power and does not have any a priori necessity Keywords becoming error memory subject being Nasser E 98 cadernos Nietzsche 24 2008 notas 1 Segundo Nietzsche Heráclito foi injusto com os sentidos Enquanto o pensador de Éfeso censura a via dos sentidos que sempre mentem o filósofo alemão alega em contra partida que é o que fazemos com os seus testemunhos que introduz pela primeira vez a mentira GDCI A Razão na Filosofia 2 Assim ao que tudo indica Nietzsche segue o caminho aberto por Sexto Empírico que na sua interpretação de Heráclito Adversus Mathematicos opõe lógos e sentidos Porém essa apreciação é discutível Em sua obra dedicada a Heráclito Kostas Axelos recusa cate goricamente essa via de interpretação primeiro argu mentando que os Fragmentos 46 e 107 que sustentam essa tese não podem ser lidos separadamente dos demais e segundo que seria um terrível equívoco atribuir ao pen samento heraclítico qualquer espécie de dualismo Sobre essa discussão ver Axelos K Héraclite et la philosophie pp 65 e 66 2 O fragmento póstumo 26387 do outono de 1884 diz Luta contra Platão e Aristóteles Essa breve passagem contribui ao nosso ver para desmistificar a opinião cor rente de que Nietzsche foi somente um opositor de Platão O estagirita também foi um dos seus alvos principais 3 Didier Franck insiste que a proposta de Nietzsche acaba por expor o fundamento dos juízos predicativos Res saltando que a essência do juízo não está na predicação mas na crença o pensamento nietzschiano abala a tradi ção que vai de Aristóteles a Kant Em linhas gerais Nietzsche desvenda que o juízo predicativo representa uma espécie de juízo de valor que prefere a permanência no lugar do viraser Franck D Nietzsche et lombre de Dieu p 28896 A crítica da concepção de substância em Nietzsche 99 cadernos Nietzsche 24 2008 4 Sobre a questão da substância em Kant ver Strawson P Kant on Substance in Entity and Identity Puech M Kant et la causalité 5 É certo que Nietzsche não desenvolveu um relato sistemáti co da história da substância na humanidade deixando de lado transformações significativas que essa concepção so freu em especial na modernidade com Descartes Espinosa e Leibniz Justamente por esse motivo Alistair Moles na sua obra Nietzsches Philosophy of Nature and Cosmology destaca que dos meios que Nietzsche usufrui para liquidar o substancialismo o viés histórico deve ser o menos eficaz Moles p 59 Mas muito embora esse método detenha uma certa fragilidade isso não implica que ele deixe de ser utilizado com uma relativa freqüência por Nietzsche O filósofo se refere em algumas oportunidades a uma his tória do apogeu e da queda do substancialismo relativo aos rumos da vontade de verdade na humanidade GDCI Como o Mundo Verdadeiro Acabou por se Tornar uma Fábula A história mostra que desde o Deus dos eleatas fomos vítimas da fé em substâncias que duram eternamen te FWGC 109 mas que com o progressivo enfraqueci mento da tradição platônica JBMBM Prefácio essa cren ça passa a ser colocada em dúvida principalmente pelas contribuições oferecidas por intermédio da ciência como é o caso da física de Copérnico e Boscovich que nos con duzem a uma apreensão da realidade do viraser JBM BM 12 Em última instância fica a sensação de que Nietzsche pressente que o drama do ocidente vai culminar com o esgotamento da vontade de verdade e a dissolução do enfoque substancial viabilizando o surgimento de uma nova humanidade uma humanidade dionisíaca Em todo caso essa colocação nos parece ser problemática sob vá rios aspectos dos quais vale mencionar pelo menos dois em primeiro lugar se Nietzsche reitera sua repulsa por uma espécie ideal de homem EHEH III 1 e se a Nasser E 100 cadernos Nietzsche 24 2008 sua concepção de tipo superior não concerne a longevi dade GMGM II 12 XIII 14133 nos parece ser um grave equívoco pensar aqui em uma história dirigida para um contínuo melhoramento da humanidade E em segun do lugar apesar de por vezes Nietzsche insinuar que essa mutação do homem livre da vontade de verdade teria um impacto cultural em larga escala hipótese que ganha força nos momentos em que a doutrina do eterno retorno do mesmo é circunscrita como uma nova Aufklärung XI 2779 como o centro da história X 244 o que pre valece é a visão de que os seres mais fortes serão sempre exceções GDCI Incursões de um Extemporâneo 14 Enfim nos parece que essas duas questões são abor dadas e resolvidas de uma só vez com uma inequívoca lu cidez no fragmento póstumo 11 413 que data do final do ano de 1887 Nele Nietzsche emite a seguinte posição so bre a sua noção capital de alémdohomem A humanida de não apresenta uma evolução para o melhor ou para o mais forte ou para o superior O movimento da evolu ção não tem relação alguma com uma necessidade uma elevação uma intensificação um aumento de força Em um outro sentido existe um incessante êxito de casos particulares em diferentes lugares da terra e procedendo de diferentes culturas nas quais se apresenta um tipo supe rior alguma coisa que relativamente ao conjunto da huma nidade é uma espécie de além do homem Esse frag mento ganha uma versão reduzida no 4 de O Anticristo que reproduz quase que integralmente o que está sendo dito aqui A crítica da concepção de substância em Nietzsche 101 cadernos Nietzsche 24 2008 referências bibliográficas 1 ARISTÓTELES The Complete Works Editado por Jonathan Barnes Princeton Princeton Univ Press 1995 2 Metafísica Tradução de Tomás Calvo Martínez Madri Ed Gredos 1998 3 AXELOS K Héraclite et la philosophie Paris Ed de Minuit 2005 4 DHERBEY G Lês choses mêmes Lausanne LAge dHomme 1983 5 FRANCK D Nietzsche et lombre de Dieu Paris PUF 1998 6 KANT I Crítica da Razão Pura Tradução de Manuela P dos Santos e Alexandre F Mourão Lisboa Fund Calouste Gulbenkian 1997 7 KIRK G RAVEN JE SCHOEFIELD M Os Filósofos PréSocráticos Tradução de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fund Calouste Gulbenkian 2005 8 MOLES A Nietzsches Philosophy of Nature and Cosmology Nova Iorque Peter Lang 1990 9 NIETZSCHE F Sämtliche Werke Kritische Studiena usgabe in 15 Bänden Berlim Walter de Gruyter 1999 10 A Gaia Ciência Tradução de Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras 2002 11 Além do Bem e do Mal Tradução de Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras 2000 Nasser E 102 cadernos Nietzsche 24 2008 12 NIETZSCHE F Genealogia da Moral Tradução de Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras 2001 13 Crepúsculo dos Ídolos Tradução de Marco A Casa Nova Rio de Janeiro Relume Dumará 2000 14 Ecce Homo Tradução de Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras 2004 15 PUECH M Kant et la causalité Paris Vrin 1990 16 STRAWSON PF Entity and Identity Oxford Oxford University Press 1997