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Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 80 Por uma anarquia coroada ontologia e política em Deleuze e Guattari For a crowned anarchy ontology and politics in Deleuze and Guattari Larissa Drigo Agostinho Pósdoutoranda pela Universidade de São Paulo São PauloSP Brasil email larissadrigoyahoocombr Resumo O objetivo deste trabalho é pensar a articulação entre a construção de uma ontologia da diferença deleuzeana e a crítica do capitalismo em Deleuze e Guattari Um dos conceitos fundamentais que nos permite pensar esta articulação é a noção de fundamento e a relação representativa ou fantasmática entre fundamento e fundado Este problema como veremos começa ser traçado em Diferença e repetição com a crítica à filosofia platônica e se estende ao longo de toda a obra de Deleuze Com Guattari Deleuze pode estender essa crítica da metafísica para a política e demonstrando de que maneira o problema do fundamento é também um problema político fundamental Palavraschave Fundamento Representação Ser Estado Abstract The objective of this work is to think of the relationship between the construction of a deleuzean ontology of difference and the critique of capitalism in Deleuze and Guattari One of the fundamental concepts that allow us to think this articulation is the notion of foundation and the representative relationship between the foundation and the founded This problem as we shall see begins to be traced in Difference and Repetition with the criticism of Platonic philosophy and extends throughout the work of Deleuze With Guattari Deleuze can extend this critique of metaphysics to politics and demonstrate how the foundation of the problem is also a major political problem Keywords Foundation Representation Being State Introdução A filosofia de Deleuze e Guattari é composta de um duplo movimento crítica da metafísica ou crítica da representação e construção de um pensamento da diferença e da multiplicidade No interior deste duplo movimento uma questão permite unificar ou determinar o centro problemático em torno do qual gira o pensamento de Deleuze e Guattari a noção de fundamento A relação entre o fundamento e o fundado é uma relação central na Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 81 articulação entre metafísica e política ela pode ser definida como a relação que determina o modo de organização da vida social ela é por excelência a relação que instaura e mantém o poder Essa é a diferença que separa Deleuze e Heidegger Evidentemente tratase de um problema clássico da história da filosofia mas que ganha novos contornos ontológicos com a filosofia heideggeriana mas é Deleuze quem explora as consequências políticas deste problema Em Diferença e repetição Deleuze elabora sua filosofia através de uma crítica da metafísica platônica compreendida neste contexto como origem do pensamento representativo Platão teria instaurado uma cisão no interior do seu pensamento com consequências ontológicas graves entre a Ideia e suas cópias A Ideia por exemplo a ideia de justiça implica que só a justiça é justa ela funda o mundo empírico como cópia representação sempre aquém da ideia que ela repete porém jamais completamente ou inteiramente Esta distância entre a ideia e o mundo das cópias torna possível o julgamento filosófico que estabelece a adequação entre pretensões representativas e as legitima a partir de sua adequação ou semelhança aos princípios estabelecidos pelo tribunal da razão A Ideia funciona portanto como fundamento de toda a vida social É a partir dela que os fenômenos sujeitos ou qualidades são julgados legitimados incorporados ou excluídos É também a ideia que estabelece a normatividade a partir da qual a vida social não apenas se legitima mas se reproduz e se conserva Ou seja o problema do fundamento concerne a instauração manutenção e reprodução de uma determinada ordem social Tal operação realizada pelo fundamento obedece segundo Deleuze a exigências similares àquelas próprias ao princípio moderno de razão suficiente princípio moderno ou seja kantiano não leibniziano o fundamento é a operação do logos ou da razão suficiente DELEUZE 1968 p 349 Assim fundar possui três sentidos determinar representar ou reproduzir e organizar Neste sentido a operação do fundamento é a constituição do fundado que neste contexto só pode ser a limitação a restrição um recorte que limita o real com base em um princípio ausente não presente ou transcendente quer dizer que o real se transforma numa imagem de uma Ideia que em seguida é reproduzida ordenando o mundo da representação a partir de um princípio de identidade a Ideia AA que transforma toda diferença na repetição do mesmo Assim Deleuze repete o diagnóstico foucaultiano de As palavras e as coisas Um diagnóstico fundamental para o pensamento francês a partir dos anos 60 Tratase de demonstrar que no interior do pensamento representativo só há espaço para a eterna repetição Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 82 do mesmo Para Foucault Kant teria colocado em prática uma crítica da representação que colocava em questão seu fundamento sua origem e seus limites O pensamento kantiano cria não apenas um tema transcendental mas também campos empíricos novos Surgem duas novas formas de pensar uma interroga as possibilidades da representação a outra questiona as condições de relação entre a representação e o representado Kant não apenas pensa as condições de possibilidade do pensamento mas também buscar definir o que é o pensar correto livre de erros ou seja a adequação entre a representação e o representado Assim surge um novo campo da empiria composto de objetos jamais totalmente representáveis ou objetiváveis o trabalho a vida a vontade a linguagem Buscamse as condições de possibilidade da experiência nas condições de possibilidade dos objetos e de sua existência enquanto que na reflexão transcendental as condições de possibilidade dos objetos da experiência se identificam com as próprias condições da experiência A positividade das ciências da vida do trabalho da linguagem e da economia corresponde à instauração de uma filosofia transcendental Ou seja o transcendental kantiano é limitado pela empiria da mesma maneira que a empiria funda o campo transcendental A falência da representação na qual se baseia a episteme clássica provoca o dilaceramento da linguagem que se divide entre o saber limitado pela positividade do mundo empírico da vida do trabalho ou da produção De um lado a outro da experiência a finitude corresponde a si mesma ela é na figura do Mesmo a identidade e a diferença das positividades e de seu fundamento Daí o jogo interminável de uma referência duplicada o transcendental só é capaz de repetir a empiria o fundamento kantiano é a cópia ou a representação do fundado da empiria se o saber do homem é finito é porque ele é tomado sem liberação possível a partir dos conteúdos positivos da linguagem do trabalho e da vida e inversamente se a vida o trabalho e a linguagem se dão em sua positividade é porque o conhecimento tem formas finitas FOUCAULT 1966 p 255256 Escapar da finitude engendrada pelo par kantiano empíricotranscedental é a tarefa que o pensamento pósmaio de 68 o pensamento francês a partir de Foucault atribuiu à filosofia Para Foucault o projeto filosófico do estruturalismo seria portanto abolir o empirismo transcendental kantiano criando uma ontologia da linguagem O que o pensamento moderno vai questionar é a relação do sentido com a forma da verdade e a forma do ser no céu de nossa reflexão reina um discurso um discurso talvez inacessível que seria de uma única vez ao mesmo tempo uma ontologia e uma semântica O estruturalismo não é um Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 83 método novo ele é a consciência desperta e inquieta do saber moderno FOUCAULT 1966 p 221 Este saber moderno como as aventuras de Dom Quixote são a consciência desperta da distância entre as palavras e as coisas mas nem por isso esse saber não deixa de sonhar com uma filosofia que seja ao mesmo tempo uma ontologia e uma semântica Aqui Foucault parece já interessado em uma clínica que não fosse interpretação e em uma ontologia que não pudesse ser capturada por dispositivos do poder A questão aqui não é apenas criticar a representação como uma ideia de verdade onde há adequação entre o enunciado e a realidade ou entre a ideia como representação e a coisa porque pensar a relação de sentido com a forma da verdade e a forma do ser significa pensar o sentido como produção do ser e da verdade em uma palavra filosofia Fazer filosofia é ser capaz de compreender a maneira através da qual se produz o que é e a verdade Mas agora esta questão não se coloca na forma do o que é a verdade mas sim como produzir ser Como produzir a verdade Porque nessa nova filosofia consciente da natureza do saber a questão não é dizer o que é a questão é produzir O estruturalismo é uma nova ontologia e uma nova linguagem porque buscará pensar o ser fora da representação fora do par finito empíricotranscendental Hoje diríamos que Foucault definiu o estruturalismo como uma hermenêutica da linguagem ontológica Não uma ontologia da linguagem mas ele queria pensar uma linguagem própria à ontologia responder a questão como o que é se torna tal qual a natureza da verdade do que ela é feita Eis o que buscava o estruturalismo de Deleuze decifrar a mágica por trás de toda novidade pensar a verdade e o ser como acontecimento A filosofia empírica e transcendental kantiana o pensamento representativo porque repete e espelha o empírico no transcendental e o transcendental no empírico seria uma filosofia que pensa o que acontece sempre e o que se repete da mesma maneira já Deleuze procura uma filosofia que seja experimentação 1 Para Deleuze como para Heidegger só podemos começar a pensar quando nos deparamos com o impensável quando reconhecemos que ainda não pensamos quando encontramos o que ainda não foi pensado a imprevisível novidade de Bergson e o segundo infinito de gozo do diabólico Baudelaire Assim somos colocados diante do problema do fundamento no interior da própria filosofia é possível filosofar sem pressupostos O que significa verdadeiramente começar a pensar 1 Ver LOPES L Deleuze e a obsessão pela gênese Kalagatos UECE v 10 p 193 2013 Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 84 Da crítica à representação instaurada pela filosofia platônica que se constitui essencialmente a partir da relação causal e identitária entre fundamento e fundado Deleuze começa sua filosofia com a reconstituição dos campos empírico e transcendental é nisso que insistem grande parte de seus comentadores2 Mas o que nos interessa num primeiro momento é pensar em que medida a crítica da metafísica presente em Diferença e repetição pode se estender ao campo político Tratase como anunciei antes de pensar a relação entre política e ontologia E para isso é fundamental compreendermos o que está em jogo na crítica deleuzeana ao fundamento para além da crítica ao duplo empírico transcendental kantiano ou da metafísica platônica ou seja no campo político De que maneira o fundamento funciona e opera no campo político e que relação se constitui entre o fundamento e o fundado O que esta relação é capaz de produzir Essas são as questões que gostaria de explorar em seguida Para Lapoujade 2014 p 49 em Diferença e repetição o problema deleuziano é justamente demonstrar de que maneira a diferença e a repetição podem legitimamente contestar a legitimidade de todo fundamento Para isso é preciso explicitar o papel deste par representativo no interior da política A definição tradicional da essência da verdade segundo Heidegger 1979 p 98 é a verdade é adequação da coisa com o conhecimento Ela se articula de duas maneiras tanto a verdade de uma coisa quanto a verdade de uma proposição se definem a partir da adequação ou concordância entre a coisa e o que dela previamente se presume ou pela adequação entre a proposição e a coisa Se a segunda relação diz respeito à linguagem a primeira relação diz respeito ao par fundamento e fundado ela concerne a adequação entre a coisa e a ideia que se tem dela porque o que se presume só pode ser uma imagem do pensamento No campo político essa crítica se desdobra numa crítica da racionalidade das máquinas abstratas através das quais o poder opera Ou seja essa relação representativa entre o fundamento e o fundado na qual o fundado é imagem de uma ideia abstrata é a forma da racionalidade que está em vigor na organização da vida social Problema muito presente no pensamento francês contemporâneo Heidegger 1979 p 98 trata muito rapidamente da noção de arckhè em Aristóteles afirmando que é de duvidar que se possa encontrar a essência do fundamento pela via de uma caracterização ao que é comum aos modos de fundar ainda que não se deva desconhecer que nisto reside o impulso para uma originária elucidação do fundamento em geral Quer dizer Heidegger não considerava que o fundamento pudesse se confundir com a 2 Ver SAUVAGNARGUES Anne Deleuze Lempirisme transcendantal Paris PUF 2010 Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 85 ideia de arckhé como o próprio como traço uno e unitário traço identitário que une uma comunidade no entanto não empreendeu a crítica desta noção de arckhé sobretudo no campo político E ele mesmo insinua que aqui estaria uma chave possível para compreendermos ou elucidarmos o fundamento em geral Anos mais tarde em Aux bords du politique Rancière 1998 p 114 afirma que grande parte dos impasses políticos contemporâneos se devem ao fato de que há uma identificação entre a política e a manifestação do que é próprio a uma comunidade Por isso propõe uma distinção entre a polícia a ordem social vigente e o político que não é a atualização de um princípio de uma lei ou do próprio de uma comunidade O político não possui uma arché ele é em sentido estrito anárquico Já Deleuze entende que a arché é um princípio único presente em tudo o que existe este conceito é matriz de sua ontologia só que Deleuze transformará a arché em nomos não mais identificação com um princípio único que rege a distribuição dos espaços e lugares mas distribuição dos seres no espaço Deleuze não poderia que o ser pudesse ser Uno e único pois isso seria a forma mesma da violência nazifascista Esse é o problema política gerado pela identificação entre a arché e o próprio de uma comunidade Por isso para Deleuze o ser é unívoco não Um o ser se diz de uma única diferença mas aquilo do que ele se diz quer dizer o ente difere porque sua ontologia era uma ontologia da diferença e a diferença não é uma ela difere em si mesma como uma mônada ela é infinita Neste sentido Deleuze e Rancière pretendem pensar uma nova vida social a partir de uma outra arché que não a atual uma arché que não seja mais identificada com o Uno único e próprio esta é a hipótese igualitária de Rancière e a aposta da ontologia deleuzeana A crítica deleuzeana à noção de fundamento visa justamente demonstrar qual a relação no interior da qual a comunidade se funda o que faz com que uma comunidade se torne possível ou qual a relação de poder que organiza a vida social tal qual ela é Arché é portanto o oposto de anarquia A vida social não é para Deleuze e Guattari anárquica ela é estruturada por uma noção de arché que indica o próprio o comum em torno da qual uma unidade se constitui daí os problemas políticos contemporâneos serem velhos problemas Nossa forma social se estrutura desde o começo do capitalismo sob a forma do Estado nação cujo Ideal é a unidade e unicidade a soberania ou a constituição de um Império Este aspecto da crítica da metafísica será fundamental para a crítica deleuzoguattariana ao Estado Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 86 Neste sentido a tarefa deleuzeana é como a de Foucault uma arqueologia3 que aqui não concerne apenas a razão e o poder mas também uma ética Tratase de explicitar qual a racionalidade ou quais as racionalidades que governam organizam e reproduzem a ordem social para pensar uma nova ordem encontrar uma nova terra Para Deleuze é a noção de fundamento que permite a distribuição de lugares e espaços no interior da vida social o que Rancière chama de tort ou mésentente O fundamento legitima ou julga a pretensão de participação Participar de uma Ideia corresponder a uma ideia poder ser declarado de acordo com uma pretensão é também legitimar um lugar no interior da vida social Assim o fundamento permite a distribuição dos espaços e habilidades porque permite o julgamento dos pretendentes e a legitimação de suas pretensões O fundamento é o que possui alguma coisa em primeiro lugar mas que torna possível a participação ele confere a participação ao pretendente quando este é capaz de atravessar a prova do fundamento a justiça a qualidade do justo os justos O Político distingue em detalhes o verdadeiro político ou o pretendente bem fundado depois os pais os auxiliares os escravos até os simulacros e falsas cópias DELEUZE 1969 p 295 A função de Espinosa e Leibniz é justamente fornecer um modelo de pensamento onde já não vigora mais este modelo de causalidade transcendente O recurso ao pensamento espinozista e leibniziano sobretudo no que diz respeito à noção de imanência deve ser compreendido aqui como uma maneira de criar uma ontologia distinta da que Heidegger propôs com a distinção ser e ente Gostaria de insistir neste ponto porque esta crítica não foi feita apenas por Deleuze mas também por Adorno Em Critique et Clinique num texto extremamente literário e por essa razão extremamente irônico Deleuze compara a metafísica heideggeriana e a patafísica de Alfred 3 Este momento é fundamental na transição deleuzeana de Diferença e repetição e Lógica do sentido ao encontro com Guattari e a escrita de AntiÉdipo e Mille Platôs Este encontro tem um outro personagem o Foucault de Arqueologia do saber1969 que rompeu com o estruturalismo e passou a pensar o político a partir da noção de multiplicidade Sobre este livro Deleuze escreveu A conclusão da Arqueologia o que é ela senão um apelo à uma teoria geral das produções que deve se confundir com uma prática revolucionária onde o discurso agente se forma no elemento de um fora indiferente à vida e à morte As formações discursivas são verdadeiras práticas e suas linguagens ao invés de um logos universal são mortais aptas à promover e às vezes à exprimir mutações O livro de Foucault constitui o passo mais decisivo na teoriaprática das multiplicidades Talvez isso se deve ao fato de que a noção foucaultiana de enunciado rompe com a noção de estrutura em vigor tanto na psicanálise lacaniana quanto no marxismo de Althusser se a estrutura é proposicional tem um caráter axiomático assinalável num nível bem determinado e forma um sistema homogêneo enquanto que o enunciado é uma multiplicidade que atravessa os níveis e nas palavras de Foucault cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz aparecer com conteúdos concretos no espaço e no tempo Deleuze Foucault Paris Minuit 1986 2004 p 2223 O enunciado em Foucault como o poder é uma técnica uma arte uma produção de positividades portanto tem uma dimensão ontológica Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 87 Jarry O que Deleuze reprova em Heidegger é a crítica da técnica ou do ser do ente porque ela termina por nadificar o próprio ser A metafísica é um erro que consiste em tratar o epifenômeno como um outro fenômeno um outro ente uma outra vida Na verdade ao invés de considerar o ser como ente superior que funda a constância de outros entes percebidos Jarry ou Heidegger preferem pensar o ser como vazio ou um nãoser O problema é que o raciocínio tortuoso de Heidegger e Jarry poderia nos levar a concluir que o ente barra o ser pode matálo ou destruílo ou que a vida mata o pensamento já que o ser é pensar e a vida mero ente Se além disso o ser está não só no vazio ou no nãoser mas no esquecimento do esquecimento o ser é apenas o se mostrar do fenômeno ou do ente ou seja nada Tratase de uma crítica que se dirige contra uma ontologia negativa de matriz heideggeriana4 É contra Heiddeger que Deleuze insiste na crítica do vazio do Nada da negatividade Tratase não apenas de uma crítica veemente a todo tipo de transcendência em nome de uma filosofia digamos concreta da imanência do sensível Para Deleuze pensar o nada seria pensar que a morte pudesse ser um acontecimento Para Badiou por exemplo o ser se cria a partir do vazio no entanto a ideia heideggeriana aqui criticada é muito distinta O que Deleuze não pode conceber é a passagem do ser ao nada Na impossibilidade de que o ser possa ser nada Deleuze prefere uma ontologia positiva cujo problema não é pensar o ser mas compreender como o ser se torna tal como a diferença produz diferença Essa é a natureza da relação entre ser e ente para Deleuze Assim a presença de pulsão de morte em Deleuze é sempre um momento de criação cujos riscos evidentemente exigem cautela porque são reais mas ela é quem produz um corpo sem órgãos ou o impessoal que se define como acontecimento uma vida Se há pulsão de morte em Deleuze ela é o processo de dilaceramento do eu daí a esquizofrenia cuja imagem aparece tanto em Mil Platôs quanto em Lógica do sentido na análise de Crack up de Fitzgerald Esse processo de dilaceramento produz um corpo sem órgãos cujo princípio fundamental é a multiplicação vida que dura e resiste e que resiste com mais força quando maior for o risco e a proximidade da morte Beethoven com seu estilo tardio profileferouse por séculos5 Neste sentido Adorno pode afirmar que a filosofia não precisa de uma ontologia sobretudo uma ontologia como a heideggeriana porque pensar que uma ontologia possa ser não a criação e a invenção de algo belo e eterno como uma obra de arte mas a destruição ou o aniquilamento do que existe porque o ente existe mesmo que do 4 Essas críticas contra Heidegger e seu pensamento do ser também podem ser encontradas na Dialética negativa de Adorno 5 Ver AGOSTINHO Larissa O estilo tardio Beckett e Deleuze Revista Kriterion V 2 2016 no prelo Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 88 ponto de vista do ser ele seja nada é simplesmente transformar a filosofia em legitimação de práticas como a do III Reich Há aqui portanto um problema ontológico e político de fundamental importância para a filosofia do século XX o ser se mostra também na técnica quando ele se retira afirma Deleuze 1993 p 117 ao comentar HeideggerJarry Heidegger teria atribuído ao socialnacionalismo a invenção ou compreensão da essência da técnica Heidegger encontra este elemento precisamente na tendência populista do nazismo Tendência populista porque ela é ao mesmo tempo desenvolvimentista e místicoreligiosa desenvolvimentista porque louva o progresso o capitalismo faz ser a técnica que produz como mágica esta tendência é também místicoreligiosa não só porque atribui à técnica atributos antes divinos mas também porque a hermenêutica do segredo que este conceito de ser como o que se mostra quando se retira pressupõe é uma hermenêutica própria aos estudos dos textos bíblicos e suas mensagens decodificadas Uma hermenêutica do segredo é uma técnica de exclusão dominada por alguns eleitos os únicos capazes de interpretar os textos da lei 6 A ontologia deleuzeana visa coibir todo tipo de divisão ou cisão de diferenciação ilegítima que justifique ou legitime um modo de organização social no interior do qual a exclusão é a regra Heidegger colocou a vergonha dentro da filosofia Então é preciso que a filosofia construa uma ontologia imune a ideias cujas consequências são catastróficas O ser unívoco é ao mesmo tempo a distribuição nômade e a anarquia coroada DELUZE 1968 p 53 O importante na afirmação da univocidade do ser não é que o ser se diga de uma única maneira mas que ele se diga de uma única maneira de todas as diferenças Portanto do ponto de vista ontológico no que diz respeito à ontologia não é possível pensar fundar ou legitimar nenhum tipo de diferença Do ser só é possível dizer que ele é A diferença para ser pensada deve ser produzida Se é possível pensar o que é a diferença isto deve ser feito do ponto de vista genético A questão deleuzeana não é o que é o ser porque ele não distingue ser e pensar mas como o ser se exprime enquanto diferença 6 Assim as críticas deleuzeanas ao negativo ao nada e ao vazio podem ficar interessantes quando dirigidas contra uma ontologia negativa de matriz heideggeriana Por isso Adorno precisa se confrontar com Heidegger por isso Deleuze precisa se confrontar com Heidegger Essa crítica não se dirige de maneira nenhuma à psicanálise a psicanálise também tem uma ontologia negativa de matriz hegelianolacaniana onde o que está em questão e que interessa muito Deleuze e Guattari é como funciona a produção fantasmática Tratase aqui de uma crítica ao poder e aos mecanismos de funcionamento do poder como conjunto de saberes e práticas aqui a psicanálise como para Adorno ou Foucault será fundamental em Deleuze e Guattari ela tornará possível a crítica da representação no interior dos discursos e práticas do poder Porque o fantasma é como um fundamento negativo ele não existe mas nem por isso deixa de ter efeitos Esses efeitos são objeto de interesse de Deleuze desde Lógica do sentido A psicanálise é o que permite que possamos compreender de que maneira opera o poder porque aqui o desejo é tomado como produzido por uma falta e a falta é o motor da economia política capitalista ou da história universal deleuzoguattariana Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 89 ou seja de que maneira a diferença surge e produz diferenças neste sentido a univocidade do ser é a matriz de um pensamento da multiplicidade Porque tem na relação disjuntiva entre ser e ente o que Deleuze chamou de repetição7 O tempo do eterno retorno é esse tipo de repetição que engendra uma diferença repetição que será nomeada síntese disjuntiva em Lógica do sentido Um movimento de duplaélice que fornece a base para uma filosofia política ou uma filosofia da história universal Deleuze como Bergson quer criar e fazer durar a imprevisível novidade Por isso precisa pensar um movimento como a síntese disjuntiva e suas múltiplas séries infinitas que mais tarde se transformará em rizoma O ser unívoco não implica relativização absoluta ou intercambialidade não é porque o ser se diz de uma única maneira que tudo o que é é intercambiável ou o mesmo muito pelo contrário o ser está igualmente presente em todas as coisas mas as coisas estão e permanecem de maneira desigual ou distinta no ser DELEUZE 1968 p 53 É preciso distinguir entre uma distribuição que implica partilha do distribuído e uma distribuição nômade ou a anarquia coroada Quando a questão é repartir o distribuído o senso comum e o bom senso funcionam como princípios de repartição pois se declaram como mais bem partilhados Este tipo de distribuição funciona por determinação fixa e proporcional assimiláveis às propriedades aos predicados aos territórios limitados da representação É possível que a questão agrária tenha uma grande importância na organização do julgamento como faculdade de distinguir partes por um lado por outro lado DELEUZE 1968 p 54 A distribuição nômade é de outra natureza aqui não há mais partilha do distribuído não há mais partilha da terra mas repartição daqueles que se distribuem em um espaço aberto e sem limites Preencher um espaço se distribuir no espaço é muito diferente de distribuir o espaço DELEUZE 1968 p 54 a terra Desde Diferença e repetição portanto o problema da Terra é um problema fundamental para Deleuze não apenas na metafísica mas também na política questão agrária questão da Terra questão da propriedade privada Ele nos permite pensar o desenvolvimento do problema político da distribuição dos homens e do espaço em AntiÉdipo e Mil Platôs Na passagem da ontologia para a política o problema do fundamento continua sendo determinante Veremos que ficará a cargo do Estado operar e legitimar a distribuição dos lugares e espaços da vida social 7 Evidentemente esta noção se opõe à divisão heideggeriana entre o ser e o ser do ente entre o ser e o nada pois este tipo de diferença ontológica seria ainda para Deleuze como o pensamento representativo uma matriz capaz de legitimar distinções e distribuições Ver Un précurseur méconnu de Heidegger Alfred Jarry In Critique et clinique Paris Minuit 1993 Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 90 O Estado e suas razões Às vezes criticamos conteúdos conformistas Mas a questão é antes de tudo formal O pensamento seria nele mesmo já conforme a um modelo que ele toma de empréstimo do aparelho de Estado que fixa objetivos caminhos condutas canais órgãos todo um organon Haveria uma imagem do pensamento que cobre todo o pensamento que seria objeto de uma noologia e que seria como a formaEstado desenvolvida no pensamento Vejam que esta imagem possui duas cabeças que remetem cada uma aos dois polos da soberania um imperium do pensador verdadeiro que opera por captura mágica tomada ou ligação constituindo a eficácia de uma fundação muthos uma república de espíritos livres que procede por pacto ou contrato constituindo a organização legislativa e jurídica oferecendo a sanção de um fundamento logos DELEUZE GUATTARI 1980 p 464 O Estado deleuzoguattariano é também uma imagem do pensamento uma racionalidade que opera através de duas frentes como um monstro de duas cabeças Por um lado ele deve oferecer a eficácia de uma fundação por outro a sanção de um fundamento Fundar e legitimar essa é a função do Estado Ou seja o Estado funda a si mesmo e produz os mecanismos estratégias e práticas que o legitimam ordenando a vida social à sua imagem e semelhança ordenando o mundo a partir de um único modo de relação dessa ideia única que o constitui incorporando e devorando tudo o que lhe é exterior O Estado deleuziano é como a imagem movimento de Eisenstein uma totalidade que não cessa de se expandir É um verdadeiro Estado Imperial Deleuze e Guattari criticam as teses de Engels sobre o surgimento do Estado procurando demonstrar que a pergunta pela origem histórica do Estado é uma tautologia Se captura é o nome da essência interior ou da unidade do Estado o termo captura mágica seria o mais adequado para descrever esta situação pois o Estado aparece como já feito e se pressupondo Somos sempre enviados a um Estado que nasce adulto e surge repentinamente Urstaat incondicionada DELEUZE GUATTARI 1980 p 532 Por isso ele é como o mito discurso fundador e instaurador exatamente como o mito platônico da caverna que distingue o verdadeiro do falso só que agora o Estado funciona como fundamento de suas próprias práticas ao se disseminar em contratos e códigos de leis que legitimam o mito que o fez surgir Daí a esquizofrenia do capitalismo que se alimenta de seus próprios limites que os desloca e os incorpora renovandose e alimentandose de tudo o que vem de fora Assim as análises econômicas do capitalismo empreendidas por Deleuze e Guattari visam evidenciar as Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 91 práticas discursos e técnicas através dos quais o Estado cria sua própria legitimação e opera ampliando ou restringindo os horizontes sem limites do capital O Estado seria o polo paranoico que governa a História universal deleuzoguattariana em AntiÉdipo Já o capitalismo seria o polo esquizofrênico desta história Se para Marx o motor da História é a luta de classes para Deleuze e Guattari o motor da História é o desejo Essa multiplicidade rizomática sempre em movimento O desejo é o motor de todas as máquinas deleuzoguattarianas No entanto não se trata aqui de definir o desejo mas de compreendêlo em sua positividade e partir dela assim a questão que sua filosofia política coloca é como funciona o desejo ou seja o que ele é capaz de produzir como ele produz e o que ele produz E como estamos no campo político esta pergunta se desdobra em outra de que maneira o desejo é administrado para servir o modo de produção em vigor na vida social As categorias clínicas paranoia e esquizofrenia são utilizadas para descrever fantasias em vigor na vida social modos de produção fantasmáticas desejos e delírios que mesmo existindo sob a forma da fantasia tem força para mudar o curso da História Assim esta história maquínica do desejo é contada por Deleuze e Guattari como em Kafka e seus precursores de Borges do ponto de vista do capitalismo ou seja tratase de uma história regressiva que é contada desde seus primórdios até hoje como a estória da formação e origem do capitalismo Estamos diante de uma história pensada do ponto de vista do acontecimento onde o que está em questão é pensar não apenas uma transformação no presente mas o que nos faz ver o passado de outra maneira Aqui o presente como o passado estão em movimento Por essa razão a História em Deleuze e Guattari História nomeada de universal é Não somente retrospectiva ela é contingente singular irônica e crítica DELEUZE GUATTARI 1972 p 168 Se a esquizofrenia pode ser considerada como um limite do capitalismo limite originário nesse caso é porque De certa maneira o capitalismo assombrou todas as formações sociais ele as assombra como seu pesadelo aterrador o medo e o pânico que elas têm de um fluxo que escapa de seus códigos DELEUZE GUATTARI 1972 p 168 Aqui o fundamento funciona como origem fantasmática Assim ele é o negativo de todas as formações sociais ele é a coisa inominável a decodificação geral dos fluxos que nos faz compreender a contrário o segredo de todas as formações codificar os fluxos e mesmo recodificálos ao invés de permitir que alguma coisa escape DELEUZE GUATTARI 1972 p 184 Toda formação histórica é assombrada Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 92 por um fluxo incontrolável por isso toda sociedade é também assombrada pelo fantasma paranoico e estatal que conectase com fluxos os interioriza e administra A esquizofrenia como o capitalismo é este fluxo móvel e veloz que deve ser controlado para permitir o bom desenvolvimento da reprodução social não apenas literalmente produzindo força de trabalho mas também gerenciando seus gestos costumes e hábitos O capitalismo só pode controlar a vida social e os agenciamentos que permitem a sua reprodução se conjurar ou controlar seu limite externo a esquizofrenia como desterritorialização absoluta Aqui o fundamento opera como um fim último no entanto exterior ao capitalismo Ou seja as formações históricas são assombradas por dois fantasmas um polo paranoico outro esquizofrênico daí as oscilações as contingências a retroatividade dessas formações elas procuram se equilibrar entre dois polos que funcionam distintamente e por que isso é impossível elas tendem ora em direção a um ora em direção ao outro ou são mesmo capazes de fazer com que as duas forças coexistam assim desterritotialização implica sempre no interior do capitalismo reterritorialização De um lado está o fantasma do Estado despótico uno que controla e recodifica os fluxos o Império do outro está o capitalismo que libera os fluxos sem cessar Esse esquema aparecerá na micropolítica constituída por linhas duras e outras maleáveis e também na definição dos axiomas do capitalismo atual em Mil Platôs axiomas que podem ser autoritários do tipo corte de gastos para conter a inflação ou socialdemocratas do tipo que cria um sistema de seguridade social para manter uma massa de subtrabalhadores sem a qual a exploração seria reduzida Se o desejo alimenta a máquina de reprodução social e se o Estado é o espaço onde se organiza a vida social o desejo investe o Estado o território a geografia esse é o desejo esquizofrênico que funciona como limite externo ao capitalismo que faz com que este busque freálo ou controlalo com seus axiomas A definição de axiomática explica este tipo de relação entre capitalismo e esquizofrenia O capitalismo possui uma racionalidade orientada por dois processos afrontamento e deslocamento de limites Assim esta racionalidade não se define a partir de causas finais racionalidade instrumental mas da produção contínua que instaura e dos fluxos que libera ao prolongar seu espaço de ação Um axioma pode ser compreendido ao mesmo tempo como regra ou norma modo de operação que constitui e determina o funcionamento do capitalismo Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 93 Um axioma funda a si mesmo não tem um fundamento em algo que lhe é exterior Se o fluxo do desejo é decodificado ou liberado pelo capitalismo este não se confunde com a esquizofrenia A psicanálise é como o capitalismo ela tem como limite a esquizofrenia mas ela não cessa de afastar esse limite e de tentar conjurálo DELEUZE 1990 p 34 Para Lapoujade 2014 p 165 é justamente por esta razão que o capitalismo precisa de uma axiomática uma vez que ela permite ligar as potencialidades do desejo e inserílas no interior dos limites estabelecidos pelo capital de tal maneira que toda produção desejante é sempre voltada para o próprio Capital A axiomática é uma maneira de ligar a produção desejante ao processo de crescimento do capital de subjugála sem precisar de um recurso ao fundamento Neste sentido podemos afirmar que é na axiomática capitalista que reside a verdade do Estado ou sua ausência de fundamento É também através desta axiomática que o Estado produz sua própria legitimação Do capitalismo ao seu fim ou a construção da máquina de guerra É assim que Deleuze e Guattari pretendem dar conta do surgimento histórico e da instauração do capitalismo fornecendo uma explicação que leva em conta a racionalidade ou o modo de operação do Capital Vemos que o Estado e o capitalismo operam através de lógicas muito semelhantes por esta razão há em Mille Plateaux e AntiOedipe uma reelaboração do conceito de História onde está em questão demonstrar que a pergunta pela origem histórica do Estado seria uma tautologia Ao criticar o evolucionismo econômico marxista argumentando que critérios históricos evolutivos são na verdade relações coexistentes e dependentes como por exemplo a relação entre nomadismosedentarismo caça criação agricultura cultura indústria ou campocidade Deleuze e Guattari ressaltam a necessidade de pensarmos para dar conta da complexidade do capitalismo atual relações causais complexas sem finalidade mas que testemunham de uma ação do futuro sobre o presente ou do presente sobre o passado É justamente porque a historicidade do capitalismo não se restringe ao seu aspecto econômico mas começa como já apontava Marx a partir de formas de organização estatal e despótica que Deleuze e Guattari podem transformar o capitalismo numa racionalidade orientada por dois processos afrontamento e deslocamento de limites Assim esta racionalidade não se define a partir de causas finais mais da produção contínua que instaura e dos fluxos que libera ao prolongar seu espaço de ação Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 94 Se o capitalismo opera estabelecendo suas próprias regras e normas sem fundamento ou razão como seria possível desarmar esta máquina produtora de dominação e exclusão que inclusive é capaz de produzir e satisfazer os seus sujeitos produtores Se o capitalismo opera como uma máquina estatal produzindo sua própria legitimação que mecanismos e operações podem demonstrar sua ausência de fundamento destruir ou impedir sua reprodução e estabelecer modos de vida imunes ou resistentes às capturas operadas pelo Estado Esta redefinição do que está em jogo no capitalismo atual nos leva também a pergunta sobre a natureza da ação política A filosofia segundo Deleuze e Guattari pode nos levar a pensar um modelo renovado de luta política distinto do funcionamento partidário que obedece ainda à lógica estatal8 Mille Plateaux estabelece uma relação entre o caráter indecidível de todo momento histórico da atualidade política e as decisões revolucionárias Um construtivismo um diagramatismo opera em cada caso pela determinação das condições dos problemas e pelas relações transversais entre os problemas ele se opõe ao automatismo dos axiomas capitalistas e à programação burocrática Neste sentido o que chamamos de proposições indecidíveis não é a incerteza das consequências que pertence a todo sistema É pelo contrário a coexistência ou o caráter inseparável do que o sistema conjuga e do que não cessa de escapar seguindo linhas de fuga inescapáveis O indecidível é por excelência o germe e o lugar das decisões revolucionárias DELEUZE GUATTARI 1980 p 590 Ou seja há algo além ou aquém das máquinas do poder o indecidível e que não se confunde com o indeterminado a noite onde todos os gatos são pardos não é porque há imprevisibilidade mas porque há a possibilidade de que o que é seja outro Isso é o que chamaríamos de contingência O indecidível é um outro que eclode na superfície o que 8 Em Foucault Paris Éditions du minuit 19862004 p 38 lemos Cest comme si quelque chose de nouveau surgissait depuis Marx Cest comme si une complicité autour de lÉtat se trouvait rompue Foucault ne se contente pas de dire quil faut repenser certaines notions il ne dit même pas il le fait et propose ainsi des nouvelles coordonnés pratiques À larrièrefond gronde une bataille avec ces tactiques locales ses stratégies densemble qui ne procèdent pourtant pas par totalisation mais par relais raccordement convergence prolongement Il sagit bien de la question Que faire Le privilège théorique quon donne à lÉtat comme appareil de pouvoir entraîne dune certaine façon la conception pratique dun parti directeur centralisateur procédant à la conquête du pouvoir dÉtat mais inversement cest cette conception organisationnelle du parti qui se fait justifier par cette théorie du pouvoir Une autre théorie une autre pratique de lutte une autre organisation stratégique sont lenjeu du livre de Foucault Podemos acrescentar que a política em Deleuze e Guattari fortemente inspirada pelo pensamento foucaultiano partilha com este os mesmos objetivos criar outra teoria outra prática de luta política outras formas de organização estratégica A importância da filosofia reside portanto na sua capacidade de realizar diagnósticos precisos sobre a multiplicidade dos processos em jogo no interior da vida social salientando a natureza linear das múltiplas racionalidades em vigor no campo político social realizando a crítica de uma visão linear e vertical da política que tanto para Foucault como para Deleuze e Guattari torna os sujeitos políticos impotentes e incapazes de agir Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 95 escapa e não é capturado uma linha de fuga Diante do que não pode ser decidido estamos no meio do redemunho no interior do acontecimento de um presente irredutível que existe incluindo ao mesmo tempo o passado e o futuro Na crítica contra o capitalismo através da noção de indecidabilidade surge não apenas uma crítica da noção de causa final como motor e orientação diretiva do capitalismo ou da História mas uma concepção não causal do próprio capitalismo que altera consideravelmente o que se entedia até então no interior do marxismo como práxis revolucionária O capitalismo gera simplesmente a totalidade das possibilidades de ação no interior da vida social assim como os fluxos que ele mesmo não é capaz de controlar Neste contexto toda ação de ruptura é também o começo de uma nova linha de fuga de uma vida de uma nova vida possível Isso não significa que o caminho para a revolução passa pelo aceleramento dos processos de deslocamento e liberação de limites produzidos pelo próprio capitalismo acelerando a economia mas também não significa que o processo inverso a desaceleração seja verdadeiro se fosse estatal afinal isso já existe Um devir revolucionário consiste antes de mais nada na crítica dos mecanismo e destruição dos mecanismos de captura Se Foucault estabeleceu uma microfísica do poder destacando suas principais linhas de força saber e poder discursos e práticas da medicina às prisões Deleuze e Guattari estabelecem uma micropolítica uma teoria das lutas políticas a partir destas novas relações moleculares de poder a partir da multiplicidade Assim é preciso definir o que seria neste contexto o devirminoria Talvez hoje possamos dizer que os sujeitos políticos de nosso tempo são as minorias mas essas minorias são molares não moleculares sobretudo quando ligadas à burocracia estatal O devirminoria é sobretudo uma questão ética diz respeito ao devir inconsciente dos sujeitos Não se trata de maneira nenhuma em Deleuze e Guattari de afirmar que os sujeitos políticos são as minorias porque isso seria uma condição sociológica por exemplo tomemos o caso do operário ele pode eventualmente se tornar proletário mas para Deleuze e Guattari isso só ocorre quando ele está fora da fábrica A potência da minoria da particularidade encontra sua figura ou sua consciência universal no proletariado Mas como a classe operária se define por um estatuto adquirido ou mesmo por um Estado teoricamente conquistado ela aparece apenas como capital parte do capital capital variável e não sai do plano do capital No máximo o plano se torna burocrático DELEUZE GUATTARI 1980 p 589 Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 96 Ou seja o proletariado como classe operária dentro da fábrica é apenas parte do capital É assim assim que o capitalista vê a força de trabalho quando adentra o Estado o proletariado se transforma com a burocracia porque sua força revolucionária se deixa aniquilar por ela Deleuze e Guattari 1980 p 589 prosseguem em compensação saindo do plano do capital e do Estado e se continuar sempre saindo uma massa se torna sem cessar revolucionária e destrói o movimento dos conjuntos numeráveis O operário se transforma em sujeito político em multitudo apenas quando sai da fábrica Devirminoritário devirmulher deviranimal devircriança são linhas de fuga do inconsciente eles não correspondem de maneira nenhuma a categorias de ordem sociológica biológica questões de orientação ou práticas sexuais raça cor ou gênero Eles são devires imperceptíveis porque descrevem uma vida nova por vir Uma linha de fuga que nos atravessa e nos leva para um lugar desconhecido novo como uma Ilha deserta A política deleuzeana é guiada pelo desejo de descobrir como os poetas novas terras virgens para povoar e habitar de outra maneira Uma Terra que teria se tornado como prenunciava Zaratrousta leve A micropolítica deleuzoguattariana é portanto molecular composta por linhas Uma destas linhas é a fabricação do corpo sem órgãos ou a despossessão de si a impossibilidade de dizer eu e a passagem ao impessoal O conceito de corpo sem órgãos e de linha de fuga dizem respeito a uma ética São questões de uma ética deleuzospinozista porque concernem à alegria o aumento de nossa potência de vida A ética deleuzeana se estende para a crítica e a clínica clínica para Deleuze é falar de saúde de devires de literatura de novas vidas a serem criadas A micropolítica de Deleuze e Guattari começa a se delinear sobretudo em Kafka pour une littérature mineure quando o devir animal aponta para uma saída que o romance consagraria O problema da organização política ou da ligação das massas como diria o mestre de Badiou Mao Tse Tung é também uma questão relevante para Deleuze e Guattari porque significa pensar o que de fato seria colocar a anarquia no poder coroandoa Esse termo como vimos está presente já em Différence et répétition para designar ao mesmo tempo uma ontologia e um nomos um modo de repartição dos seres no espaço Em chave política anarquia é a ausência de Estado ou negação da arché como o próprio de uma sociedade O próprio é o modo de organização social a forma EstadoCapital de organização da vida social O problema fundamental seria portanto dissolver as fundações do Estado e esse é o sentido da crítica deleuzeana descrever os mecanismos através dos quais o Estado produz sua legitimação seu fundamento e se dissemina Destruir o Estado de fora significa criar formas Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 97 de organização política não institucionais isso não significa tudo o que existe fora dos partidos mas sim as organizações que lutam contra e fora das instituições como o GIP Groupe Information Prison do qual Foucault e Deleuze fizeram parte É importante lembrar que da mesma maneira que a ética deleuzeana encontra as condições no interior das quais o sujeito pode desenvolver o máximo de sua potência de vida a anarquia coroada também tem princípios ou fins bem definidos ela não é uma perversão e não pode se tornar uma Mallarmé que testemunhou a primeira crise de organização da Internacional a primeira crise de organização do marxismo e o surgimento da anarquia na França no século XIX tinha duas críticas à anarquia ele rejeitava a violência mortífera dos tiros e bombas com pregos Deleuze também foi radical no que diz respeito à questão da violência quem ama a morte são os fascistas ele dizia A segunda crítica de Mallarmé é a seguinte ele dizia que poderia se interessar pelas bombas ou ações de outra natureza mas se elas não produzissem apenas um estrondo luminoso porém excessivamente breve Era preciso ele dizia construir artefatos que fizessem durar a luz e as novas linhas que nos levariam para fora Era preciso construir linhas que durassem que se multiplicassem Assim arte política e filosofia giram em torno de um problema comum o problema da organização política da ligação das massas a construção das obras de arte e a consistência dos conceitos na filosofia são um único e mesmo problema Referências bibliográficas DELEUZE G Différence et répétition Paris PUF 1968 Foucault Paris Minuit 1986 Pourparlers Paris Minuit 1990 Critique et clinique Paris Minuit 1993 Logique du sens Paris Minuit 1969 DELEUZE GUATTARI AntiŒdipe Paris Minuit 1972 Mille Plateaux Paris 1980 FOUCAULT M Les Mots et les choses Paris Gallimard 1966 HEIDEGGER M Sobre a essência do fundamento IN Heidegger Os pensadores São Paulo Victor Civita 1979 LAPOUJADE D Deleuze Les mouvements aberrants Paris Minuit 2014 LOPES L Deleuze e a obsessão pela gênese Kalagatos UECE v 10 p 193 2013 Poiesis Revista de Filosofia v 13 n 1 pp 8098 2016 UnimontesMG 98 RANCIÈRE Aux bords du politique Paris Gallimard 1998 SAUVAGNARGUES Anne Deleuze Lempirisme transcendantal Paris PUF 2010